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XII Semana de História Política

Conflitos e resistências: entre práticas, expectativas e rupturas


IX SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE
02 a 06 de Outubro de 2017

ISSN: 2175-831X

ANAIS 2017
A Semana de História Política é um evento organizado pelos discentes do Programa de
Pós-graduação em História da UERJ.
#UERJRESISTE
ISSN 2175-831X

XII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA

XI SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE

Conflitos e resistências: entre práticas, expectativas e rupturas

ANAIS

Rio de Janeiro, 2017


Semana de História Política / Seminário Nacional de História:
Política, Cultura e Sociedade (XII: 2017: Rio de Janeiro)

ANAIS/XII Semana de História Política: Conflitos e resistên-


cias: entre práticas, expectativas e rupturas / IX Seminário
Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade. Organiza-
ção: Bruna Schulte Moura, João Paulo Lopes, Juliana Timbó
Martins, Mariana Nunes de Carvalho, Michelle Samuel da Sil-
va, Thais dos Santos Portella e Thiago Sobreira Vailati Silva.
Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História, 2017.

2535p.
Texto em português
ISSN 2175-831X
XII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA

Conflitos e resistências: entre práticas, expectativas e rupturas

IX SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA:


POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE

Comissão Organizadora
Bruna Schulte Moura
João Paulo Lopes
Juliana Timbó Martins
Mariana Nunes de Carvalho
Michelle Samuel da Silva
Thais dos Santos Portella
Thiago Sobreira Vailati Silva

Monitores
Anelise Martins de Barros
Bianca Ferreira da Cruz
Camille Cristina Batista da Silva
Carolina Carneiro de Almeida Moraes
Frederico Vieira Zgur
Gabriel Tirre Moreira
Giselle Leite Nascimento
José Roberto Silvestre Saiol
Maria Izabel Siciliano de Souza
Mariana Bahia Barboza Sousa
Patrícia Guimarães de Sá Mendes
Priscila Benevenuto Andrade
Rafaela Vasconcelos da Silva
Raissa Barreto dos Santos
Thaís Sanguineto de Carvalho
Thaísa Antunes da Costa Souza
Realização

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Apoio

Academia Brasileira de Letras (ABL)

Acesso Livre – Revista da Associação dos Servidores do Arquivo Nacional

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ)

Arquivo Nacional

Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ (IFCH)

Instituto de Letras da UERJ

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES)

Laboratório de Estudos de Imigração (LABIMI)

Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA)

Núcleo de Estudos das Américas (NUCLEAS)

Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividade (NUBHES)

Núcleo de Identidade Brasileira e Historiografia Contemporânea (NIBRAHAC)

Projeto República − UFMG

Redes de Poder e Relações Culturais (REDES)

Revista de História da Biblioteca Nacional Faculdade de Comunicação Social (RHBN)

Sub-Reitoria de Extensão e Cultura da UERJ (SR-3)

Sub-Reitoria de Pós-Graduação da UERJ (SR-2)


Anais 2017 - XII Semana de História Política
Conflitos e resistências: entre práticas, expectativas e rupturas

APRESENTAÇÃO

É com felicidade que chegamos a décima segunda edição da Semana de História


Política, evento organizado pelos alunos do Programa de Pós-Graduação de História da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nesta edição, mesmo diante das dificuldades
pelas quais passam nossa universidade e comunidade acadêmica, pretendemos dar con-
tinuidade às questões que foram abordadas nos encontros anteriores, promovendo a pes-
quisa histórica e o diálogo entre pesquisadores, alunos e professores de História, com o
intuito aproximar todos os níveis acadêmicos dos pressupostos teórico-metodológicos que
compõem o âmbito da História Política, sem deixar de lado também suas conexões com a
História Cultural e Social.

Desse modo, entre os dias 02 e 06 de outubro de 2017, a XII Semana de História Po-
lítica de História foi realizada tendo como tema “Conflitos e resistências: entre práticas,
expectativas e rupturas”. A partir de tal temática, buscamos discutir diferentes aspectos
políticos e sociais de nosso país, bem como de nossa própria universidade, através de con-
ferências e mesas-redondas que contaram com a presença ilustre de historiadores como
Lilia Moritz Schwarcz, Ricardo Salles, Ângela de Castro Gomes, Tarcísio Motta, Fernando
Penna, Lúcia Bastos, Orlando de Barros, dentre outros.

Esse projeto visou fomentar debates entre graduandos, pós-graduandos e pós-gra-


duados, prezando por divulgar a produção historiográfica dos interessados e promover o
intercâmbio de ideias entre os profissionais (discentes e docentes) das mais variadas linhas
e instituições. Desse modo, pretendemos contribuir para a solidificação dos Programas de
Pós-Graduação e suas universidades, além de investir na produção editorial através da
publicação dos anais do evento.

Dentro de seu espírito de incentivo aos novos pesquisadores, a Semana de História


manteve o espaço destinado à apresentação de trabalhos de pesquisa realizados por alu-
nos e alunas da graduação, inaugurado na edição de 2013. Assim, o Seminário Nacional
de História: Política, Cultura e Sociedade, já em sua nona edição, se configurou como um
espaço no qual graduandos, participantes de programas de Iniciação Científica ou em fase
de conclusão de curso, puderam contribuir de maneira mais incisiva, apresentando e deba-
tendo oralmente suas pesquisas.

A iniciativa para a abertura deste espaço de diálogo destinado à graduação e sua


consecutiva manutenção durante esses nove anos de realização, parte da ideia de preen-
cher os espaços entre graduação e pós-graduação e da valorização da produção dos tra-
balhos iniciais, os quais todos os anos participam com dinamismo e qualidade no evento.
Salientamos ainda que, como nas edições anteriores, os resumos dos que se enquadraram
Anais 2017 - XII Semana de História Política
Conflitos e resistências: entre práticas, expectativas e rupturas

na categoria de graduação foram publicados em nosso Caderno de Resumos, bem como


seus trabalhos completos são também agora publicados nesses Anais.

Contudo, especialmente neste ano, a Semana de História Política, de forma inédita e


como incentiva à ocupação de nossa universidade no contexto atual do projeto de desmon-
te da UERJ, abriu-se para receber comunicação de graduandos e graduados também em
Simpósios Temáticos, anteriormente destinados apenas a pós-graduandos e pós-gradua-
dos. Esta iniciativa nasceu da crença de que apenas nos unindo enquanto pesquisadores
e professores iguais, ocupando e defendo nosso espaço de produção de conhecimento por
direito, conseguiremos resistir na luta pela universidade pública, gratuita e de qualidade.

O Evento realizou-se nas dependências da Universidade do Estado do Rio de Janei-


ro, campus Maracanã, atraindo em grande escala pesquisadores de todo Brasil. Tivemos
também algumas propostas de comunicação internacionais, o que sustenta a dimensão
e peso que tem tal congresso. Assim, a XII Semana de História Política e o IX Seminário
Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade impulsionaram alunos de diversos Pro-
gramas Pós-Graduação e Departamentos de História do estado e do país a produzirem e
movimentarem seus conhecimentos, permitindo-os ganhar visibilidade, ampliar a temática
e trocar experiências.

Foi de grande valia o esforço dos discentes, junto à Coordenadoria do Programa


de Pós-Graduação em História da UERJ, em administrar a Semana de História, de forma
que contribuísse para a construção de mais um espaço de discussão e de apropriação do
universo científico acadêmico, corroborando com a práxis de pesquisa e de docência dos
cursos de História do Brasil.

Portanto, a Comissão Organizadora gostaria de agradecer aos laboratórios vincu-


lados ao Programa de Pós-Graduação em História da UERJ, à Sub-Reitoria de Pós-Gra-
duação, à Sub-Reitoria de Extensão e Cultura, ao Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro e os demais colaboradores pelo apoio ao evento, sem os quais este não
seria possível.

Sobretudo, a Comissão Organizadora saúda os coordenadores de Simpósios Te-


máticos, proponentes de Minicursos, conferencistas, monitores, comunicadores e ouvintes
vindos de universidades de todas as regiões do país que nos ajudaram e ajudam a compor
este evento que é organizado durante todo o ano com muito carinho e dedicação para todos
e todas.

Comissão Organizadora
XII Semana de História Política

IX Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade

www.semanahistoriauerj.net
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A política externa do Império brasileiro no Primeiro Reinado:
expectativas, projetos e práticas (1822 – 1831)

Abner Neemias da Cruz1

Resumo: Em meio aos movimentos políticos que eclodiram na América Lusitana, no início
da década de 1820, surgiu como instituição política, por volta de 1822, o Império brasileiro.
Neste trabalho, temos por objetivo desdobrar algumas considerações sobre a política externa
elaborada pelo governo imperial brasileiro durante o Primeiro Reinado. Setores da
historiografia que escreveram sobre o tema afirmaram que durante o governo de D. Pedro I a
política externa brasileira esteve centrada, num primeiro momento, na obtenção do
reconhecimento da soberania brasileira por parte de outros Estados. Posteriormente, o foco
deslocou-se para a conquista de acordos, alianças e tratados com outros países. Para além dos
marcos cronológicos supracitados, pretende-se refletir nos matizes políticos contidos nos
projetos, expectativas e práticas que perpassaram a política externa brasileira entre 1822 a
1831.

Palavras-chave: Primeiro Reinado; Política Externa; Brasil Império.

Abstract: During the political movements that has broken out in the Lusitanian America in
the early 1820s, the Brazilian Empire emerged as a political institution around 1822. In this
study, we aim to unfold some considerations about the foreign policy elaborated by Brazilian
imperial government during the First Reign. Sectors of the historiography that wrote on the
subject affirmed that during the government of D. Pedro I the Brazilian foreign policy was
centred, in the first moment, in obtaining the recognition of the Brazilian sovereignty by other
States. Subsequently, the focus shifted towards the achievement of agreements, alliances and
treaties with other countries. In addition, this study also intended to reflect on the political
nuances contained in the projects, expectations and practices occurred in Brazilian foreign
policy between 1822 and 1831.

Key words: First Reign; Foreign policy; Brazilian Empire.

Segundo Reinhart Koselleck, entre as novidades contidas nos descolamentos de visões


que ocorreram no entrecruzar, ou justaposição, da Idade Moderna, com o início dos tempos
tidos por Contemporâneos, encontravam-se as expectativas em relação ao futuro elaboradas,
em alguma medida, nas sociedades ocidentais (KOSELLECK, 1979). Assim, esta noção nos
serve como ponto de partida para a elaboração desta comunicação na qual propomos pensar a

1 Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista, bolsista CAPES, sob a orientação da
prof. Dra. Marisa Saenz Leme. E-mail: abner.neemias@gmail.com

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política externa do Primeiro Reinado, suas práticas e projetos articulados à expectativa de se
“cristalizar” o Império brasileiro no período independentista e, para além. Para tanto,
dividimos o texto que se segue abaixo em alguns eixos: 1. No bojo da Independência
brasileira: a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. 2. A política externa brasileira e
a nova diplomacia: projetos e ações. 3. Os Negócios Externos e o Império brasileiro: a
expectativa como eixo articulador de práticas.

1. No bojo da Independência brasileira: a Secretaria de Estado dos Negócios


Estrangeiros
O novo governo, que haveria de ser constituído em inícios da década de 1820
inaugurara o que a historiografia brasileira atual entende por período imperial. Surgiu em
meio a um denso panorama político-econômico e marcou a ruptura política com a antiga
metrópole – Portugal. O retorno de D. João VI a Portugal, as pressões das Cortes lisboetas, as
elites brasileiras, as diversas visões políticas na América lusitana, as novas ideias versus as
antigas, a ilustração, os interesses econômicos entre outros foram alguns dos elementos que
formavam o “caldo” social, político e cultural que resultou na organização gradual de um
novo Império, de extensão continental, entre os trópicos.
Nesse ínterim, vale ressaltar o cenário que antecedeu aos movimentos
independentistas brasileiros da década de 1820. A vinda da corte portuguesa, em 1808, trouxe
mudanças significativas para a então colônia Brasil, entre outras, a abertura dos portos,
criação da imprensa régia e a transformação do Rio de Janeiro em nova capital do Império
lusitano – que acolheu a estrutura administrativa do Império português. Em 1815, o Brasil foi
oficialmente elevado ao patamar de reino unido quando surgiu o Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves. Sobre a vinda da Corte portuguesa ao Brasil, os historiadores Andréa
Slemian e João Paulo G. Pimenta em O “nascimento político” do Brasil: as origens do
Estado e da nação (1808 – 1825) argumentaram:

Em suma, a experiência portuguesa, inédita na história dos Impérios


ultramarinos da Idade Moderna, de transformação de um território colonial
em sede de Império acabava por criar uma situação contraditória”. De um
lado, reforçava a ordem dinástica, monárquica e legitimista até então
vigente; de outro, aprofundava a crise da mesma ordem, complexificando-a e
antepondo-lhe novos obstáculos e alternativas que acelerariam a sua própria
dissolução (PIMENTA, SLEMIAN, 2003).

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Conjuntamente ao que já foi abordado, acrescenta-se o fato de setores das elites
brasileiras terem se beneficiado economicamente da interiorização da metrópole portuguesa;
além das novidades políticas e econômicas que reverberavam no mundo dito ocidental onde
destacam-se as novas práticas econômicas de cunho capitalista, os pensamentos e visões
ligados à ilustração, os movimentos de independência na América Hispânica e,
indubitavelmente, a Revolução Americana e Francesa.
Em 1821, o Rio de Janeiro deixou de ser a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarves. Dom João VI retornou a Portugal em meio às pressões feitas pelas Cortes
Lisboetas. Segundo o pesquisador Valentim Alexandre, se num primeiro momento houve certa
receptividade de setores brasileiros às proposições das Cortes lusitanas, posteriormente, dado
o enrijecimento das propostas políticas defendidas pelas Cortes, a adesão brasileira foi
pulverizada (ALEXANDRE, 1993). Assim, de forma gradual, a independência política
brasileira foi ganhando força em diversos setores sociais na América Lusitana. Moderados,
concurdas, constitucionais, liberais, exaltados entre outras figuras compuseram o complexo
cenário político em terras brasileiras na década de 1820. Múltiplas vozes, projetos
dissonantes, conflitos e contradições marcaram este período; todavia, pelos idos de 1822, o
projeto político vencedor alçou D. Pedro I ao posto de imperador da nova monarquia que
surgia .
Simultaneamente ao processo de emancipação política, passou-se a organizar uma
monarquia constitucional. A sede do novo império, permaneceria sendo o Rio de Janeiro,
assim como nos tempos de D. João VI. Forças Armadas foram aglutinadas. Uma Assembleia
Constituinte foi instituída. Entre outros, também criaram secretarias, sendo que uma delas
tinha entre suas funções cuidar dos negócios exteriores: a Secretaria de Estado dos Negócios
do Império e Estrangeiros. Esta foi desmembrada em 1823 e deu origem à Secretaria de
Estado dos Negócios Estrangeiros (CASTRO, 1983). A supramencionada secretaria passou a
mediar as relações entre o novo governo brasileiro e os demais países.
Nesse ínterim, vale ressaltar que os negócios externos ocuparam um papel relevante na
consolidação da independência política, afinal, a cristalização de um novo Estado precisava
ser respaldada pelos demais países. Coube à Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros
articular esses diálogos. No princípio, missões diplomáticas pontuais foram organizadas com
o intuito de forjar laços. Ao longo dos anos subsequentes, a pasta dos negócios externos foi
crescendo a partir da criação de legações brasileiras em diversos lugares e ampliação do corpo
diplomático. Além do mais, durante esses primeiros anos, foram criadas rotinas

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administrativas, mecanismos de preservação documental, sistemas de comunicação entre a
respectiva secretaria e as legações estrangeiras.
Consta nos acervos diplomáticos, que no final do Primeiro Reinado, diversas missões
diplomáticas brasileiras haviam sido realizadas em diversas cidades dos continentes europeu,
americano e africano, onde se incluem Assunção, Berlim, Bogotá, Buenos Aires, cidade do
Vaticano, Estocolmo, Londres, Washington, Paris entre outras. Os membros dessa secretaria
formavam um grupo variegado de homens, membros de uma elite letrada, nos quais se
destacam Mello Mattos, Schaeffer, Silvestre Rebello, Correa da Camara, Duarte da Ponte
Ribeiro, Carneiro de Campo além do barão de Itabaiana, o marquês de Barbacena, marquês de
Santo Amaro, marquês de Inhambupe, marquês de Queluz, marquês de Aracati e o marquês
de Abrantes. Eram estes homens membros da primeira geração diplomática brasileira e
responsáveis por executar as primeiras ações do Império brasileiro em prol da política
externa.

2. A política externa brasileira e a nova diplomacia: projetos e ações


No que diz respeito à política externa brasileira, entende-se que, a priori, as diretrizes
que a norteariam estavam concatenadas à necessidade de oficializar o novo governo. Assim,
de 1822 a 1825, a pauta principal da política externa brasileira era o reconhecimento de sua
emancipação. A partir dos idos de 1826, após uma série de reconhecimentos estrangeiros,
sobretudo o inglês e português, a política externa do governo de D. Pedro I esteve voltada à
criação de tratados e acordos econômicos e políticos. Notam-se então dois períodos na
política externa do Primeiro Reinado: 1. o reconhecimento político como pauta central das
missões diplomáticas (1822 – 1825); 2. a cristalização de laços com os demais estados, a
partir de acordos e tratados (1826 -1831).
Vale ressaltar que apesar de estes serem os norteamentos principais, não foram estas as
únicas pautas das relações externas do Brasil no período. Durante o Primeiro Reinado, a
questão do tráfico de escravos esteve presente substancialmente nas relações com os demais
Estados (GUIZELIN, 2011). Também existiram conflitos e divergências dos quais se
destacam: o caso da incorporação de Chiquitos ao território brasileiro, que causou certo mal-
estar entre Brasil e Bolívia; as disputas entre Brasil e Argentina, que culminaram na Guerra da
Cisplatina; os constantes conflitos envolvendo estadunidenses em território brasileiro; os
diálogos e conflitos envolvendo o governo inglês; a contratação de tropas mercenárias em

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outros países etc.
Para que as negociações entre o Brasil e os demais Estados acontecessem, uma nova
diplomacia foi sendo gestada ao longo do Primeiro Reinado. Nova, pois a herança diplomática
portuguesa era limitada. Assim, a primeira geração diplomática foi responsável, por vezes
através do ensaio e erro, pela gestão de uma maneira brasileira de se conduzir a pasta dos
negócios externos. Nesse contexto, destacamos ações pontuais ou fragmentadas, que foram ao
longo dos anos contribuindo para a especificidade diplomática de então. Destacam-se aqui a
reorganização da pasta que ocorreu em 1828; a criação de uniformes diplomáticos do Império
brasileiro; a organização de sistemas de circulação de informações; bem como ações pontuais,
por vezes experimentais, de seus diplomatas, como a criação de rotinas administrativas ao
fundar as novas legações – vide o caso de Silvestre Rebello (CRUZ, 2015); as ações do
Marquês de Barbacena frente aos conflitos envolvendo a política externa de Metternich, ou
negociando o segundo casamento de D. Pedro I ou até mesmo as práticas “administrativas” do
barão de Itabaiana, no que diz respeito ao fundo monetário brasileiro na praça de Londres.
Entende-se aqui que o encadeamento dessa série de fragmentos, dados, e fatos forma
um conjunto de práticas políticas especificas, próprias dessa geração. Do mesmo modo, nota-
se pautas da política externa próprias do período tanto nos projetos quanto nas ações
articuladas. Nesse sentido, entre os projetos e ações – alguns alcançados e outros apenas
idealizados – encontram-se as buscas por alianças bélicas com outros Estados, os acordos de
comércio, bem como a consolidação do Império brasileiro a partir do reconhecimento dos
pares. Vale ressaltar as ações pontuais que ocorreram ao longo do tempo: a ruptura
diplomática com a Argentina durante a Guerra da Cisplatina; as negociações com Portugal,
ligadas à independência brasileira e os diálogos com a Inglaterra, sobretudo no tocante as
questões escravagistas.
Destarte, é possível conceber através dos projetos e ações ligados à política externa e
à diplomacia brasileira que apesar da herança portuguesa, houve novidades oriundas da
experiência política vivida na América Lusitana na década de 1820, assim sendo, trabalhamos
por hora, nessa fase inicial de pesquisa, com a noção de “invenção” ligada às práticas políticas
executadas no plano dos negócios externos brasileiros – sem desconsiderar as heranças
portuguesas, como também as influências externas. Nesse sentido, também lançamos mão da
concepção de expectativa como força motriz dessas vivências políticas, conforme veremos no
próximo tópico.

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3. Os Negócios Externos e o Império brasileiro: a expectativa como eixo articulador de
práticas
A renovação historiográfica que ocorreu nas últimas décadas trouxe à baila novas
abordagens aos temas políticos, inclusive no que diz respeito às relações internacionais. Sobre
esse fenômeno historiográfico, o historiador José Carlos Reis escreveu: “O evento tende a
retornar[…]. Junto com ele, os objetos tradicionais da história: a política, o indivíduo, as
relações diplomáticas, a guerra. Com ela retorna também uma outra concepção do tempo
histórico que envolve a consciência, o sujeito e a busca da liberdade” (REIS, 1994). Dentro
dessa perspectiva, esta comunicação lançou mão das novas concepções relacionadas aos
temas políticos e procurou articular a trajetória política da primeira geração diplomática com a
criação da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e, consecutivamente, com a
política externa do Primeiro Reinado.
A partir da fusão desses temas, entende-se que a análise dos negócios externos no
período independentista e, durante o governo de D. Pedro I apresenta nuances e pontos
relevantes que contribuem para a compreensão do Primeiro Reinado. O exame da composição
da primeira geração diplomática da Secretaria de Estado dos Negócios Exteriores, bem como
os norteamentos da política externa apontam um conjunto de práticas de cunho político
ligadas à construção do Estado brasileiro que podem ser melhor compreendidas quando se
observa as instituições de poder, os agentes e, consequentemente, as ideias e visões de mundo
integradas. Por fim, ao analisar as práticas políticas nessas diversas esferas, no recorte
temporal e espacial oitocentista, chegamos a um outro elemento citado no começo desse
texto: a expectativa como força motriz de ações. Segundo o historiador alemão Reinhart
Koselleck:
“[...] a experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos
ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro,
São adequadas também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois,
enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no
movimento social e político. […] A experiência é o passado atual no qual
acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados […]. Algo
semelhante pode se dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo
ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é
futuro presente […]. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas,
também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da
expectativa.” (KOSELLECK, 1979)

Por hora, parece-nos plausível que a noção de expectativa pairava, em alguma medida,
nos homens que vivenciaram a construção do Império brasileiro. As expectativas de

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conquistar o reconhecimento e, posteriormente, cristalizar o novo governo aparecem como
eixo articulador de ações, concomitantemente ligado à experiência construída ao longo de
1822 a 1831.

Referências Bibliográficas:

ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império. Questão nacional e questão colonial na


crise do Antigo Regime português. Porto: Edições Afrontamento, 1993.

ARMITAGE, John. História do Brasil: desde o período da chegada da família de Bragança,


em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831, compilada à vista dos documentos. Belo
Horizonte/São Paulo: (1ª ed. 1831), Ed. Itatiaia/EDUSP, 1981.

BUENO, Clodoaldo; CERVO, Amado. História da Política Exterior do Brasil. São Paulo:
Ática, 1992.

CALÓGERAS, João Pandiá. A Política Exterior do Império. Vol. II Brasília: Senado Federal,
1998.

CASTRO, Flávio Mendes de Oliveira. Dois Séculos de História da Organização do Itamaraty


(1808 -2008). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

CRUZ, Abner Neemias da. As práticas políticas se Silvestre Rebello: um diplomata brasileiro
nos Estados Unidos da América (1824-1829). Dissertação (mestrado em História). Franca:
Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2015.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos.


Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio, 2006.

REMOND, René. “Uma história Presente”. In: Por uma história política. 2ªEdição. Rio de
Janeiro, Ed. FGV, 2003.

REIS, José Carlos. O Retorno do Evento Estruturado. In: Nouvelle Historie e Tempo
Histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Ática, 1994.

GUIZELIN, Gilberto da Silva. Comércio de Almas e Política Externa: a diretriz Atlântico-


Africana da Diplomacia Imperial Brasileira, 1822-1856. Dissertação de Mestrado. Londrina:
Universidade Estadual de Londrina (UEL), 2011.

38
SLEMIAN, Andréa. PIMENTA, João Paulo Garrido. O “nascimento político” do Brasil: as
origens do Estado e da Nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

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Os 30 anos da Constituinte: memória em ação

Aimée Schneider Duarte1

Resumo: O presente texto pretende apresentar resultados preliminares da pesquisa doutoral


em andamento, que tem como um dos focos pensar o modus operandi da redemocratização
brasileira e a atuação da sociedade em torno do projeto de democracia. Em um período em
que são discutidas, em nível nacional, questões relativas a reversões e permanências,
considera-se que seria importante transcender as camadas que vão além da mera data redonda,
de um teor quase que automaticamente comemorativo dos 30 anos da Constituição Federal,
em 2018. Nos últimos anos, tem-se visto o surgimento, com intensidade crescente, de uma
série de debates e reivindicações, muitas delas baseadas em apelos expressamente contrários
aos trabalhos e expectativas da Constituinte de 1987-88.

Palavras-chave: Democracia; Memória; Assembleia Nacional Constituinte Brasileira de


1987-88.

Abstract: This text intends to present preliminary results of the doctoral research in progress,
which has, as one of its main focuses, the modus operandi of the Brazilian redemocratization
and the society's action around the democracy project. In a period in which national issues of
reversals and permanence are discussed, it is considered that it would be more than desirable
to transcend layers that go beyond the full, three-decade anniversary of the Federal
Constitution in 2018 and its nearly mandatory celebration. In recent years, and with increasing
intensity, disparate debates and claims have emerged, many of them based on expressly
antagonistic appeals, contrary to the Constitutional works of 1987-88.

Keywords: Democracy; Memory; Brazilian Constituent Assembly of 1987-88.

Considerações iniciais
A passagem dos anos 1980 foi um marco na história brasileira, servindo de palco para
a retomada, pela sociedade, de uma série de movimentos sociais e culturais. As campanhas
em torno de uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e pelas Diretas Já! são exemplos evidentes
desse estado de mobilização transformadora.
Apesar de não ter ocorrido eleição direta para Presidente da República, a campanha
em prol dessa demanda acabou por se revelar um exercício de aprendizagem que impulsionou
o movimento pela instauração da Constituinte. Veio, assim, a se conformar como uma etapa

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal


Fluminense; e-mail: schneider_aimee@hotmail.com

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em um projeto político mais amplo de resistência democrática e de superação da ditadura.
Episódios como esse serviram para que os movimentos sociais vislumbrassem o potencial de
mobilização em torno dos seus anseios, apresentando os primeiros indícios acerca de como a
presença da população na política viria a ser fundamental para os rumos do país.
No âmbito da redemocratização da vida política brasileira, as mobilizações foram
fundamentais para a construção dos alicerces dos debates constitucionais, servindo de palco
para a retomada de uma série de movimentos sociais e culturais. Os 584 dias que se seguiram
à instalação dos trabalhos da Constituinte foram marcados por disputas e acordos, bem como
por uma relação, sem precedentes, entre atores parlamentares e extraparlamentares. Segundo
o cientista político Antônio Sérgio Rocha, estima-se que nove milhões de pessoas tenham
passado pelo Congresso Nacional naqueles dois anos (ROCHA, 2013, p. 74). As mobilizações
não ocorreram apenas durante a ANC; começaram antes – dentro e fora do Congresso –, por
meio de caravanas, envio pelos cidadãos de cartas, telegramas e sugestões, entre outras
manifestações.2
Uma série de atores desconhecidos se comprometeu com a Constituinte, ampliando a
rede de atores até então direcionada quase que apenas aos líderes políticos. Além dos partidos
políticos, inúmeras organizações da sociedade, como sindicatos e associações, dialogaram
com a população acerca da Constituinte. O debate político incluía palavras de ordem e uma
luta por espaço visual para que se pusesse colocar em evidência as mais diversas
reivindicações. Neste contexto, foi criado o slogan “Constituinte sem povo não cria nada de
novo” (BRANDÃO, 2011, p. 217).
Contesta-se, assim, a ideia de que a transição esteja relacionada exclusivamente à
operação do sistema político, que enfatiza as instituições e a negociação entre os
parlamentares, deixando de analisar o papel dos movimentos sociais e sua relação com o
Estado. Dessa maneira, é preciso abandonar o enfoque exclusivo da faceta da democratização
relacionada às instituições políticas para abarcar, também, as ações sociais. Tal concepção
“tem a vantagem de estabelecer uma continuidade entre o processo de negociação para a

2 Do mesmo modo, as músicas populares merecem um sinal de destaque: através de letras de


protestos, sempre estiveram presentes na sociedade brasileira, inclusive nos anos da censura instalada pela
ditadura. O período de transição política não foi diferente e diversas músicas contribuíram para a
redemocratização do país: vale a pena sublinhar que a banda Legião Urbana denominava o governo como
“Geração Coca-Cola" e dizia "Somos os filhos da revolução / Somos burgueses sem religião / Somos o futuro
da nação”. Outra música revolucionária bastante conhecida é “Brasil” que faz parte do disco “Ideologia”, de
Cazuza, sendo uma aclamação por mudanças com o intuito de incentivar a presença da população: “Brasil!
/ Mostra tua cara”. Bandas que também se destacaram nesta época foram Barão Vermelho, Paralamas do
Sucesso, Capital Inicial, Blitz, Ultraje a Rigor, entre outras. Foge aos limites e propósitos deste texto
apresentar uma revisão acerca da produção musical do período de transição. Nesse sentido, ver: ROCHEDO,
2014.

41
retirada de atores autoritários do sistema político e o processo de democratização das relações
Estado-sociedade” (AVRITZER, 1995, p. 10).
A importância da investigação proposta emana da necessidade de se conhecer os
efeitos do modelo político democrático, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio de modo
a refletir a mentalidade coletiva. Os códigos simbólicos interagem com o âmbito institucional
de tal modo que o consenso normativo se estabelece sobre normas, regras e valores
compartilhados pelos diferentes grupos que formam a sociedade.

Estado-sociedade

Na esteira das abordagens do entrelace entre regimes políticos e poder, o sociólogo


Boaventura de Souza Santos (2002) e o cientista político Leonardo Avritzer (2002), ao
afirmarem que a democracia assumiu um lugar central no campo político durante o século
XX, propõem um itinerário não-hegemônico para o debate democrático. Santos (2007)
entende que, por haver uma crise de paradigmas na atual conjuntura, os novos
questionamentos não podem ser respondidos com base em antigos critérios. O objetivo
principal dos autores é contribuir para a renovação das Ciências Sociais e, por conseguinte,
formular um estímulo à emancipação social. A renovação científica, portanto, ajudaria a
reinventar este processo emancipatório.
No caso da redemocratização brasileira, a inserção de novos atores na cena política
acarretou uma disputa pelo significado da democracia e pela constituição de uma nova
gramática social. O poder constituinte originário foi desenvolvido como um poder exercido
pelo povo de forma mediada, através dos seus representantes. A ideia desse poder está
vinculada, historicamente, à representação em assembleia constituinte; entretanto, esta ligação
não é apenas normativa, mas também cultural, social e histórica. Ao mesclar o procedimento e
a participação da sociedade, criou-se um experimentalismo na própria esfera do Estado. No
estudo de Santos (2007), a democracia participativa reinventa a emancipação social – e é
nesse ponto que se insere o debate entre democracias representativa e participativa.
A ANC de 1987-88 configurou, portanto, uma nova ordem constitucional que
pretendia atender aos anseios populares, sendo um elo importante para a conexão entre
Constituição e Democracia, contribuindo tanto para a superação do modelo antigo quanto para

42
a construção de um novo sistema democrático. A experiência social vai além do que a
tradição científica ocidental considera importante: “a realidade não pode ser reduzida ao que
existe” (SANTOS, 2002, p. 253). Neste teor, o trabalho de tradução, descrito pelo sociólogo, é
“uma constelação de movimentos e organizações locais, ancorados em diferentes culturas”
(SANTOS, 2002, p. 266), surgindo a partir da correlação entre práticas sociais e seus agentes
e incidindo sobre os saberes transformados em práticas e materialidades; desse modo,
permite-se a ampliação das ideias rumo à transformação social.
O exercício de tradução tem por objetivo criar condições, a partir da imaginação
democrática, para uma justiça social global, bem como para emancipações sociais concretas
“num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência”
(SANTOS, 2002, p. 274). Não apresenta soluções, mas faz uso desta tônica imaginativa para
construir concepções plurais de emancipação social; parte, desse modo, da compreensão de
que é preciso ampliar a inteligibilidade das práticas e mobilizações sociais para dar
visibilidade e credibilidade às alternativas que estão emergindo no mundo.
A cada nível da política pública há um entendimento diferente acerca dos problemas e
suas respectivas soluções, uma configuração institucional específica e pessoas e interesses
distintos. Para os fins deste artigo, entende-se que os elementos básicos da análise da
Constituinte de 1987-88 são as instituições e as pessoas, ambas possuindo competências e
comportamentos variados. Deste modo, os atores parlamentares e extraparlamentares não
possuíam interesses estáticos, mas dinâmicos, de acordo com os papéis que interpretavam.
As demonstrações, manifestações e comícios públicos forjaram um marco da presença
popular enquanto elemento significativo do processo de redemocratização. A partir dessas
expressões, projetaram-se novos protagonistas vindos de diversos segmentos – tais como
associações de bairro, categorias profissionais e organizações religiosas – e, com isso, uma
agenda reivindicatória de direitos se inscreveu no horizonte das mudanças políticas. A
sociedade exprimiu a sua força, adquirindo visibilidade ao articular a defesa e a ampliação de
direitos com o fim do autoritarismo: mudanças econômicas, sociais e políticas eram
reivindicadas. O processo democrático seria uma forma de exercício coletivo do poder
político cuja base estaria pautada em um meio livre para discussão e deliberação.
O contexto social é, portanto, influenciado pelas estruturas sociais em constante
mudança. Segundo o sociólogo Charles Wright Mills (1959), não há como dissociar a vida
pessoal e o curso da história mundial. Espaços que sirvam a uma questão de representação,
como a Assembleia Constituinte, acabam por se tornar espaços reservados para autores da

43
história. A promessa está na "imaginação sociológica", por meio da qual a pessoa pode pensar
a sua existência de forma ampla, observando a interligação entre a sua biografia e a história
dentro da sociedade. A “consciência imaginativa” advém da “capacidade de passar de uma
perspectiva a outra” (MILLS, 1959, p. 13). Há, portanto, uma visão ampla da realidade
pessoal em sua conexão com a realidade social, capaz de ampliar as perspectivas das diversas
sensibilidades culturais e da própria razão humana, com o intuito de apontar caminhos rumo a
uma solução.
Assim é que a Constituição Federal de 1988 foi capaz de incorporar elementos
surgidos na institucionalidade emergente, abrindo espaço para a prática da democracia
participativa. Dois exemplos são os seus artigos 14 e 29, que, respectivamente, garantem a
iniciativa popular como iniciadora de processos legislativos e demandam a participação de
representantes de associações populares no processo de organização das cidades.
Sob esse aspecto, as determinações sociais dependem dos atores nela envolvidos, não
se podendo entender um arranjo político-social sem considerar a sua conjuntura no tempo e
no espaço. Neste teor, e situado no campo da Teoria Social Crítica, o historiador Edward P.
Thompson acredita que este processo seja um campo de conflitos historicamente determinado:

A história é a disciplina do contexto e do processo, logo todo significado é


um significado-no-contexto, e, quando as estruturas mudam, as formas
antigas podem expressar funções novas e as funções antigas podem
encontrar sua expressão em formas novas. (THOMPSON, 2001, p. 238).

A compreensão de um fenômeno cultural só pode ser entendida em prisma histórico


com a reconstrução do ambiente social e político onde ocorreu o debate. Este período de
transformações no cenário político foi marcado pela junção de duas forças: centrífuga, de
dentro para fora, notadamente por meio da transição política conservadora, lenta e gradual,
firmada através de acordos; e centrípeta, de fora para dentro, principalmente no que diz
respeito à feitura da vindoura Carta Magna de 1988, baseada na participação popular. Em
termos simbólicos, o processo de redemocratização visava ao equilíbrio da conjuntura, mas
não às custas da herança institucional do passado. Contudo, em termos práticos, a mobilização
popular foi o “x” da questão, equacionando a seguinte fórmula final: uma nova Constituição,
elaborada por uma ANC que fora, por sua vez, pressionada pelas campanhas do próprio
destinatário do documento final: o povo. Este, por seu turno, contribuiu fortemente para a
confecção do diploma constitucional de 1988, impedindo, por meio da reivindicação de seus
direitos, que o texto definitivo revelasse carga ainda mais conservadora. Sem uma

44
participação desta intensidade, certamente os escritos constitucionais não teriam o mesmo
teor.

Memória

A escritora Clarice Lispector (1983) analisa a relação entre o ser humano e a realidade
que ele constrói, afirmando que o narrador-personagem olha para um ovo e tem a ilusão de
vê-lo e dominá-lo; no entanto, conclui que o ovo não tem uma existência individual em si
mesmo. Por meio da metáfora, é possível verificar que a observação do ovo – aqui,
representando a observação da própria sociedade – não é um ato objetivo, dependendo de uma
realidade social ontológica. A objetividade seria uma ilusão do sujeito, não passando de um
artifício para diminuir a responsabilidade do observador: “Olho o ovo com um só olhar.
Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo” (LISPECTOR, 1983, p. 49).
Poder-se-ia pensar no discurso como um apontamento da memória – e não necessariamente a
memória em si.
Somente com a aparente estabilidade da democracia e com o transcurso dos anos é que
foi possível distanciar-se o suficiente do período autoritário para poder refletir sobre o
passado recente do país. A contínua reconstrução da memória vai corresponder à reconstrução
do sentimento de identidade, tanto individual quanto coletivo. O historiador Pierre Nora já
dizia que questionamentos em torno de um evento/uma data são, eles próprios, lugares de
memória, voltando-se para sua valorização e legitimação.
É neste campo de ideia que o historiador Pierre Laborie (2009) afirma ser através da
rememoração de fragmentos do ocorrido que cada recordação social transmite ao presente
uma das múltiplas representações deste passado que ela deseja testemunhar – ou seja, há uma
multiplicidade de memórias fragmentadas que se constroem sob a influência dos códigos e
das preocupações atuais. Nesta esfera, o sociólogo Maurice Halbwachs (1999) desenvolve a
tese de que a memória é coletiva – o que não significa dizer que a individual não exista – e se
articula com o passado através do presente existindo, portanto, um ponto de articulação entre
os tempos. As representações simbolizam a sociedade e resultam da combinação das
consciências individuais, exprimindo, a um só tempo, a vida exterior e interior. 3

3 Acerca do arranjo complexo de sociedade e indivíduo, o sociólogo Norbert Elias (1994)

45
Sob essa ótica, o antropólogo Fredrik Barth (2000) defende que a pessoa está
posicionada em virtude de um padrão singular, formado pela reunião, nesse indivíduo, de
partes de diversas correntes culturais, bem como em função de suas experiências particulares.
Por conseguinte, o que é lembrado ou esquecido está relacionado às identidades formadas no
presente, e essa percepção varia conforme as relações sociais que se mantém com o meio,
tanto intergrupos como intragrupos. A mentalidade de um indivíduo histórico é o que ele tem
de comum com outros homens de seu tempo e, nas palavras da historiadora Angela de Castro
Gomes (2007), a identidade de qualquer grupo social não se faz sem recorrer ao passado desse
grupo, em um processo dinâmico.
Ainda entre tais questões, o sociólogo Michael Pollak (1992) aponta que entre
lembranças e esquecimentos, “a memória é um fenômeno construído” (POLLAK, 1992, p.
204), pois falar do passado geralmente leva quem o relata a organizar e selecionar os fatos.
Quando se fala em memória dividida4, na verdade, se lida com sua multiplicidade na qual os
acontecimentos correspondem às operações de escolha. Neste prisma, o historiador Daniel
Aarão (2004) afirma que a memória é repleta de “artimanhas” e, por ser imersa no presente,
mas preocupada com o futuro, é sempre seletiva; quando provocada, revela, mas também
silencia. E, se a legitimidade é, conforme a filósofa política Hannah Arendt (1994, p. 41), um
apelo ao passado, é necessário lembrar que ele não é algo inerte, pronto e acabado.
Sendo assim, as leituras do passado devem lidar sempre com as suas narrativas e
versões. Não se trata de afirmar que há memórias autênticas ou mentirosas, mas enfoques e
olhares distintos. Elas não se apresentam em um vazio absoluto da presença social, não
existindo na forma pura, muito menos única: seu caráter plural traz disputas pelo sentido do
passado.
Cabe destacar que a própria escolha, neste trabalho, de quais imagens utilizar e como
organizá-las já revela uma maneira de contar a história. Demonstra uma representação,

destaca: “A rede de funções interdependentes pela qual as pessoas estão interligadas entre si tem peso e leis
próprios. (...) E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada
mais, que chamamos ‘sociedade’ (pp. 22-23). No caso do ser humano, a continuidade da sequência
processual como elemento da identidade-eu está entrelaçada, em maior grau do que em qualquer outra
criatura viva, com outro elemento da identidade-eu: a continuidade da memória” (p. 154).
4 Abrangendo tais questões em um parecer próprio, o escritor Alessandro Portelli (2001) faz
uma interessante análise em relação à história de Civitella in Val di Chiana – cidade italiana da região da
Toscana que foi massacrada em 1944. Para ele, os acontecimentos geraram uma “memória dividida”: por um
lado, a “oficial” e, por outro lado, a criada e preservada pelos sobreviventes. Para o autor, a memória é um
processo moldado no tempo histórico; como exemplo, ele cita os depoimentos que se modificaram com o tempo
e relata que a omissão no depoimento também deve ser considerada como uma representação. Não é uma série
cronológica do pretérito que reproduz antigos acontecimentos, mas as preocupações atuais, a partir da relação
com as ideias e percepções de hoje. Logo, não é o passado, mas sim este conjunto de correspondências que
desencadeia o processo de lembrar.

46
revelando um modo de ver o mundo e a escolha de um enfoque. A título de exemplo, dentro
da conjuntura internacional, Jimmy Carter assumia a Presidência dos Estados Unidos (1977-
1981), defendendo uma firme ação em favor dos direitos humanos e, por conseguinte, o fim
dos regimes ditatoriais, ainda que “de cima para baixo” (SILVA, 2007). Entretanto, neste
estudo, o enfoque recaiu sobre o âmbito nacional, revelando uma preferência de pesquisa. Isso
não significa que apenas um contexto seja válido –, pelo contrário, apenas se deu preferência
a um dos pontos de vista.

Considerações Finais

Esta etapa do presente texto, baseada em ponderações sobre o retorno à democracia,


contou com a intensa participação dos movimentos populares, selando em definitivo o poder
do povo para influenciar os novos rumos do país. Esta jornada, por óbvio, não se encontra
encerrada, mas é preciso calibrar novamente o olhar e projetar a análise para o tempo atual:
compreende-se o presente investigando-se o passado, de modo a promover uma síntese da
dinâmica entre estes tempos, que se comunicam em uma via de mão dupla:

(...) essa solidariedade das épocas tem tanta força que entre elas os vínculos
de inteligibilidade são verdadeiramente de sentido duplo. A incompreensão
do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja
menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do
presente. (BLOCH, 2001, p. 65)

“O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”


(ANDRADE, 1978, p. 254). Se, em seu tempo, o poeta Mário de Andrade encontrou razões
para estranhar o passado, que dizer do tempo atual, neste século XXI? Além do passado, o
presente também é analisado de forma desconfiada. A recente expansão de ideologias
antidemocráticas – tais como o clamor pela volta dos militares ao poder – deixa em evidência
o quanto “é preciso estar atento e forte”, como já diziam Caetano Veloso e Gilberto Gil, na
música Divino, Maravilhoso.
Tal afirmação se faz em função do advento, nos últimos anos de crise política, de
novas medidas normativas voltadas para alterações no panorama da Carta Magna de 1988.
Quase trinta anos após a entrada em vigor da CRFB/88 e seguindo os critérios da

47
conveniência e oportunidade, o Estado brasileiro pretendeu eliminar os recursos destinados à
cultura. Melhor explicando, a perspectiva cultural é vista como gasto em vez de investimento
– e o cenário recente confirma essa falta de prioridade destinada ao setor. O atual Presidente
da República, Michel Temer, visando reduzir os gastos ministeriais, chegou a se desfazer do
Ministério da Cultura, aglutinando-o à pasta da Educação.5 Após manifestações e polêmicas,
contudo, reverteu sua decisão por meio da Lei nº 13.345/16.
Não é a primeira vez que um governo fecha as portas para cultura: em 1964, o então
Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, no exercício interino da Presidência
da República e sob o manto do governo civil-militar, extinguiu o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), órgão que agregava ideias desenvolvimentistas e concebia a cultura como
elemento impulsionador de transformações sociais e construção da identidade nacional; em
1990, o então Presidente da República Fernando Collor de Mello também extinguiu o
Ministério da Cultura, juntamente com diversos de seus órgãos, havendo o seu retorno apenas
em 1992, no governo de Itamar Franco.
É manifesto que o rumo de supressão de direitos e garantias individuais e coletivas por
interesses políticos conservadores, importa na transgressão ao espírito garantista da ANC de
1987-88 e à letra da norma petrificada nos títulos da CRFB/88, intitulados “Dos Direitos e
Das Garantias Fundamentais” e “Da Ordem Social”. 6 Dentre as mudanças mais recentes que
acenam para a retirada de direitos, destaca-se a reforma trabalhista, engendrada na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Em contraste com o direcionamento adotado rumo à ANC de 1987-88, por meio do
qual se buscava consolidar uma nova e relativamente ampla gama de direitos no seio
constitucional, a tônica que hoje se assume revela um cunho predominantemente autoritário.
Apelos, por exemplo, pela volta do regime militar sob a égide de nova Constituição sugerem
palpável risco de cerceamento dos mesmos direitos promovidos três décadas antes. Mesmo
com os limites próprios da transição política, produto das relações de força entre elites
conservadoras e os focos de mobilização social7, a ANC de 1987-88 institucionalizou

5 Medida Provisória nº 726/16: Art. 1º. Ficam extintos: IV – o Ministério da Cultura. Art. 2º.
Ficam transformados: III – o Ministério da Educação em Ministério da Educação e Cultura. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv726.htm>. Vide, ainda, a extinção do
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos.
6 Títulos II e VIII da Carta Magna, respectivamente.
7 É preciso enfatizar que, para além da inclinação democrática, as batalhas pela nova
Constituição também foram travadas por fileiras de verve autoritária. Existia, à época, um projeto de
democracia em andamento, e não uma democracia propriamente dita; dessa maneira, no contexto da
redemocratização, disputas se davam entre atores políticos democráticos e tradicionais, acarretando um
conflito entre renovação e continuidade no interior do sistema político.

48
importantes garantias. Falar, hoje, na Constituinte de mais de trintas anos atrás, ganhou um
tom inesperadamente atual.

Dentro deste entrelace do ontem com o hoje, a importância das imagens nas
manifestações políticas se torna cada vez mais nítida. Os acontecimentos do passado
constituinte atravessaram os anos e se perpetuam nos dias atuais. Por que, afinal, apesar de
registrarem aspectos específicos de cada momento, seus embates e expectativas persistem?

Compreender o processo constituinte é uma empreitada importante para o


entendimento dos movimentos sociais no Brasil contemporâneo: muitas das políticas públicas
atuais possuem fundamento nas reivindicações daquele período. A redução da distância entre
o processo constitucional e as práticas cotidianas fomentou o amadurecimento das
experiências e de novas iniciativas rumo ao fortalecimento da identidade do povo brasileiro.
O novo diploma legal incorporou ideias comprometidas com os direitos sociais e individuais,
corroborando a noção de que o processo constituinte democrático estabelece novas bases de
fortalecimento popular, processando o passado com o intuito de ascender a um novo patamar
na emancipação social.
Considerando os 30 anos da inauguração da ANC, em fevereiro de 2017, e da própria
promulgação da Constituição, em outubro de 2018, o tema assume dimensões de destaque,
invocado que é por estas datas comemorativas. Não se trata, contudo, de entusiasmo em torno
da efeméride da comemoração, mas de reconhecimento da atualidade do grande diploma vivo
do país.

49
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51
ENTRE O REI FILÓSOFO E O MONARCA DOS TRÓPICOS: UM DEBATE
HISTORIOGRÁFICO EM TORNO DAS BIOGRAFIAS DE D. PEDRO II

Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas 1

Resumo: Este trabalho visa mostrar como o conhecimento histórico a respeito de d. Pedro II
(1825-1891), cristalizou a sua representação, reiterada pelos trabalhos acadêmicos, inclusive
os mais recentes. O objetivo é pontuar como a historiografia apropriou-se das múltiplas
narrativas produzidas não só pelas escritas autobiográficas de d. Pedro II, mas também pelos
seus primeiros biógrafos, assim como das narrativas memoriais e do discurso veiculado em
periódicos contemporâneos ao imperador, sublinhando a dualidade entre o monarca e o
cidadão e a sua caracterização enquanto erudito e mecenas, por um lado, ou reforçando as
teses do conservadorismo e da construção simbólica do monarca nos trópicos, por outro lado.
A nossa proposta é refletir em que medida esta apropriação do conhecimento histórico pela
historiografia impede que se perceba a complexidade da trajetória de d. Pedro II.

Palavras-chave: D. Pedro II; Biografias; Historiografia

Abstract: This work aims to show how the historical knowledge about d. Pedro II (1825-
1891) crystallized his representation, reiterated by the academic works, including the most
recent ones. The aim is to point out how historiography appropriated the multiple narratives
produced not only by the autobiographical writings of d. Pedro II, but also by his early
biographers, as well as of the memory narratives and the discourses in contemporary
periodicals to the emperor, reiterating the duality between the monarch and the citizen and his
representation as erudite and patron, on the one hand, or reinforcing the Theses of the
conservative thinking and of the symbolic construction of the monarch in the tropics, on the
other hand. Our proposal is to reflect to what extent this appropriation of historical knowledge
by historiography prevents knowledge about the complexity of his trajectory.

Keywords: D. Pedro II; Biographies; Historiography

1 Mestranda em História (PPGH-UERJ) sob a orientação da Professora Drª Lucia Maria Paschoal Guimarães.
Bolsista CAPES. E-mail: alesfraguas@hotmail.com

52
INTRODUÇÃO
Em artigo intitulado Os fantasmas do Imperador, José Murilo de Carvalho questiona
“se já não há suficientes biografias de Pedro II e se já não se conhece satisfatoriamente a sua
personalidade.” Mais adiante, completa “(...) Como transpor a muralha, como chegar ao ser
humano por trás do Imperador? (...)” (CARVALHO, 1977:418-419). A indagação dimensiona
o tamanho do “desafio biográfico”, parafraseando François Dosse, que representa escrever
sobre o segundo imperador do Brasil, seja buscando algum aspecto inédito da sua trajetória,
seja encarando e debatendo algumas teses consolidadas pela historiografia, tentando romper
com o discurso reiterado ao longo de décadas.
Uma pesquisa no catálogo online da Biblioteca do Museu Imperial, por exemplo,
mostra a referência a d. Pedro II em 1.911 publicações. A consulta em bancos de teses e
dissertações, igualmente, recupera diversos trabalhos cuja temática está relacionada ao ex-
imperador. Paralelamente, instituições como o próprio Museu Imperial, ou o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro-IHGB, têm promovido debates, exposições e publicações
cujas temáticas perpassam reiteradamente a sua biografia. Neste sentido, como encontrar uma
brecha que mobilizasse a investigação sobre um ponto ainda não devidamente estudado na
trajetória de d. Pedro II?
Os primeiros indícios de que haveria uma incoerência entre o que a nossa pesquisa
apontava, obviamente a partir das perguntas que fazíamos à documentação, e o que sobressai
nos trabalhos, acadêmicos ou não, sobre d. Pedro II, foram possíveis porque empreendemos
uma leitura extensa do seu arquivo pessoal. No entanto, sabemos que outros pesquisadores, os
biógrafos clássicos, como Pedro Calmon e Heitor Lyra, por exemplo, também tiveram acesso
a estes documentos, o que nos leva a inferir que as nossas proposições, em parte, somente
foram possíveis, porque o momento historiográfico, a partir da renovação da História Política,
assim o permitiu, como nos diz René Rémond (2003:13):
A História, cujo objeto precípuo é observar as mudanças que afetam a
sociedade, e que tem por missão propor explicações para elas, não
escapa ela à própria mudança. Existe portanto uma história da história
que carrega o rastro das transformações da sociedade e reflete as
grandes oscilações do movimento das idéias (...).

Neste sentido, nosso trabalho pretende refletir sobre fontes exaustivamente


examinadas, como também sobre o conhecimento histórico produzido a partir destas fontes,
sobretudo do arquivo pessoal de d. Pedro II. Partindo dos novos domínios e abordagens

53
historiográficos, das novas perspectivas teóricas e metodológicas, em contraposição às
narrativas hagiográficas e laudatórias, ou aos trabalhos que pretenderam dar coerência -
ressaltando a linearidade - à trajetória do imperador, pensamos ser possível apontar aspectos
inéditos ou apenas tangenciados por aqueles que se dedicaram a compreender dom Pedro
d’Alcantara.
Para tal, ainda que escritores e historiadores consagrados já tenham se dedicado à
tarefa de escrever sobre Pedro II, visamos recuperar algumas escritas canônicas, incluindo os
relatos autobiográficos, com o intuito de averiguar em que medida a narrativa construída no
século XIX, ainda no período de vida do imperador, acabou por influenciar e reverberar nos
trabalhos produzidos a posteriori, apagando ou minimizando o que no nosso entendimento é
um traço fundamental na biografia do imperador: a complexidade da sua trajetória de vida.

ESCRITAS DE SI: DIÁRIOS, CORRESPONDÊNCIA E OUTROS MANUSCRITOS

O que sempre mais estudei foi a mim próprio


Pedro d’Alcantara2

Sem dúvida, os diários de d. Pedro II, cerca de 5.500 páginas manuscritas, têm sido a
fonte por excelência dos pesquisadores, sobretudo após a publicação dos mesmos pelo Museu
Imperial, em 1999 3. Entre eles, há que se separar os diários íntimos daqueles que são relatos
das viagens do imperador no Brasil e no exterior, escritos em cadernetas ou, simplesmente,
em folhas de papel avulsas, com características de rascunho, denotando o intento de uma
posterior sistematização.
Entre os diários íntimos, dois chamam a atenção por terem sido escritos,
deliberadamente, com a intenção de serem relatos autobiográficos para a posteridade. São eles
o volume 1, composto de poucas páginas, anotadas com intervalos entre 1840 e 1842, e o
volume 9, escrito entre 31/12/1861 e 05/01/1863, um caderno de 384 páginas escritas a tinta
que, recentemente, foram objeto de um estudo sobre a escrita de si como questão discursiva,
envolvendo estudos de linguagem e estudos historiográficos. 4

2 Trecho transcrito de Correspondência entre d. Pedro II e o barão do Rio Branco (de 1889 a 1891). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. Carta datada de Cannes, 6 de fevereiro de 1891.
3 Ver BEDIAGA, Begonha (Org.). Diário do Imperador D. Pedro II: 1840-1891. Petrópolis: Museu
Imperial, 1999.
4 Ver LIMA, Madalena Quaresma. As duas faces da mesma moeda: cara e coroa no discurso do Diário do
Imperador D. Pedro II. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras,
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada. Rio de Janeiro, 2016, 182f. A

54
Apesar de ter um objetivo diferente do estudo mencionado anteriormente, José Murilo
de Carvalho (2007), autor de uma das mais recentes biografias de d. Pedro II, baseando-se,
sobretudo, nos diários, apresenta como subtítulo de seu livro a pergunta shakespeariana, ser
ou não ser. O intento é igualmente apontar a dicotomia que permeou toda a trajetória do
segundo imperador do Brasil, sempre dividido entre o monarca e o cidadão, entre os assuntos
de Estado e os seus estudos e projetos pessoais, enfim, entre Pedro II e Pedro d’Alcantara.
A contradição e a tensão entre o projeto pensado pela elite imperial, quer dizer, a
unidade básica da elite política imperial efetivada por fatores de socialização e treinamento
via processos educacionais, e o afastamento do imperador em relação ao pensamento político
hegemônico, a partir de sua aproximação com novos espaços de produção de conhecimento e
do estabelecimento de novas redes de sociabilidade, sobretudo a partir da sua primeira viagem
ao exterior, em 1871, também podem ser notadas na leitura da correspondência,
particularmente a trocada com a condessa de Barral5 e com o conde de Gobineau 6,
interlocutores privilegiados por Pedro II. Igualmente, a correspondência com intelectuais e
cientistas das mais diversas áreas do conhecimento, assim como as cartas trocadas com jovens
da chamada geração de 1870, como o barão do Rio Branco, também revelam indícios que
remetem a um sujeito complexo e múltiplo.
Os argumentos expostos por Leonor Arfuch, em Espaço biográfico: dilemas da
subjetividade contemporânea (2010), de que o narrado é o pensado sobre o vivido, a
dimensão do experimentado, mas não o vivido, já que este não é mais tangível, podem nos
auxiliar a responder a estas perguntas, assim como a pensar melhor os paradoxos de Pedro II,
tantas vezes reiterados nas charges de Ângelo Agostini, ou n’As Farpas de Eça de Queiroz e
Ramalho Ortigão7.

originalidade desta pesquisa encontra-se na forma como o discurso do autor do diário foi analisado, trazendo à
tona as ideias de Pedro de Alcântara como estadista e indivíduo.

5 Luísa Margarida de Barros Portugal, condessa de Barral e marquesa de Montferrat (1816-1891), foi
preceptora das princesas Isabel e Leopoldina, filhas de d. Pedro II, tornando-se uma das principais
interlocutoras do imperador.
6 Joseph Arthur de Gobineau, conde de Gobineau (1816-1882). Diplomata, jornalista, filósofo e escritor
francês. Autor de Essai sur l’inégalité des races humaines, publicado em 1853, considerado um marco das
teorias racialistas. Gobineau viveu no Brasil entre 1869 e 1870, quando se tornou próximo de d. Pedro II,
cultivando uma amizade que duraria até a sua morte, em 1882, como atesta a correspondência ativa e passiva
de ambos.
7 Mensário publicado, em Portugal, entre 1871 e 1883 por Ramalho Ortigão (1836-1915) e Eça de Queiroz
(1845-1900), que acabou se desligando do periódico em 1873. Em fevereiro de 1872, publicaram uma
edição com mais de 90 páginas sobre a primeira viagem de d. Pedro II à Europa, entre 1871 e 1872, onde
satirizaram o périplo imperial e criticaram a dubiedade de Pedro II dividido entre o monarca e o cidadão. Ver
BRITO, Rômulo de Jesus Farias. O cetro e a mala: as narrativas de Raphael Bordallo Pinheiro, Eça de
Queiroz e Ramalho Ortigão sobre a primeira viagem de D. Pedro II à Europa. Dissertação (Mestrado).

55
Arfuch aponta para um trabalho de memória na autobiografia, em que estão implícitas
tanto questões políticas como também éticas, cujo referencial é o presente, ou seja, o passado
é ressignificado à luz do presente. Estas configurações da temporalidade perpassam, por
exemplo, os diários íntimos escritos com a intenção de uma narrativa que deveria ser legada
para o futuro, mas que buscasse os nexos e os fundamentos em um passado que informa as
ações do presente.8
Se a primeira tentativa de escrita autobiográfica, iniciada no dia em que o imperador
completou quinze anos, pode ser considerada apenas um esboço de compilação de memórias
pelo jovem monarca, ao contrário, o diário escrito entre 1861 e 1863 evidencia claramente a
sistematização de uma escrita de si que visava à publicização. Em um texto introdutório, o
imperador distingue o monarca, pessoa jurídica, e o indivíduo, pessoa física, revelando o que
julga ser e, sobretudo, o que gostaria de deixar como imagem para o futuro.
Assim, não só em relação aos diários, mas também quanto à correspondência e outros
manuscritos, outra proposição de Arfuch pode ser mobilizada: a ideia de disjunção entre o
sujeito e o objeto da narrativa. Ainda que a tendência atual seja a de pôr em xeque a
possibilidade de separação entre o sujeito o objeto da narrativa, os escritos do imperador
evidenciam claros esforços empreendidos pelo próprio d. Pedro II em separar o narrador e o
narrado; o imperador e o cidadão.
Esta disjunção fica evidenciada em uma minuta de carta escrita por d. Pedro II a
Alexandre Herculano sobre a recusa deste em aceitar uma condecoração dada pelo Governo
Imperial, na qual distingue os múltiplos ‘eus’ que, por um lado, revela os paradoxos de sua
condição sempre dúbia, e, por outro lado, mostra o descolamento entre o sujeito e o objeto da
narrativa das autobiografias, ou escritas de si, clássicas:

Sr. Herculano,
Logo que recebi sua carta de verdadeiro amigo mostrei-a ao
imperador. A afeição que ele e eu lhe votamos não podia de nenhuma
sorte ressentir-se de sua determinação; (...) Começo pela defesa do
imperador que lhe é muito afeiçoado; mas sempre procurou evitar a
influência de sentimentos pessoais nas ações do governo de sua nação.
(...) Agora torna-se a resposta difícil, por causa da minha posição para
com o monarca do Brasil. (...) o imperador também viola bastante a
sua opinião quando cede a satisfazer a vaidade humana (...). Seu
afeiçoado D. Pedro9

Faculdade de História. PUCRS. Porto Alegre, 2013, 167f.


8 Ver volumes 1 e 9 dos Diários de d. Pedro II. In: BEDIAGA, Begonha (Org.). Diário do Imperador D.
Pedro II: 1840-1891. Petrópolis: Museu Imperial, 1999.
9 Trecho de minuta de carta de d. Pedro II a Alexandre Herculano (1810-1877), escritor e historiador

56
Na correspondência que integra o arquivo pessoal de Pedro II, destacamos ainda a
carta escrita pelo imperador ao ministro plenipotenciário do Brasil em Lisboa, Miguel Maria
Lisboa, barão de Japurá, solicitando que fossem dispensadas as honras com que pretendiam
recebê-lo, por ocasião da sua primeira viagem à Europa, em 1871, cujo excerto copiamos:

Snr. Lisboa,
Minha viagem é em caráter inteiramente particular, e chamo-me como
designo-me. (...) Vou para hotel e hei de alugar trem. (...) Tendo
provavelmente de haver quarentena, irei para o lazareto e muito me
afligirei se qualquer exceção a meu respeito contrariar o intuito da
legislação portuguesa. (...) Seu affeiçoado patrício, D. Pedro
d’Alcantara10

Exemplos como estes são muitos na extensa documentação que forma o arquivo
pessoal de Pedro II, composto por cerca de 40 mil documentos. Os recortes de escrita de si
que expusemos acima tiveram como intuito exemplificar a problemática fundamental do
nosso projeto: a complexidade da trajetória de d. Pedro II em sua passagem do ethos
aristocrático ao ethos burguês. Em outras palavras, as escritas de si de Pedro II nos ajudam a
refletir sobre o deslocamento do imperador que, paulatinamente, descola-se da imagem
aristocrática e cunha, ele mesmo, a imagem do cidadão que serve com devoção ao seu país (o
que remete ao ascetismo laico, no sentido weberiano) 11.
Neste sentido, é consenso entre os pesquisadores que havia por parte de d. Pedro II,
em boa medida, uma intenção deliberada para que seus relatos fossem deixados para a história
(enquanto campo de conhecimento e como campo de acontecimentos). Há documentos onde
esta vontade é claramente explicitada, como na carta enviada do exílio ao seu procurador José
da Silva Costa, na qual delineia o destino que deveria ser dado aos seus pertences que haviam
ficado no Brasil, devido à saída repentina da família do país, em novembro de 1889.
No entanto, diferentemente do que fez, por exemplo, Lilia Schwarcz (2010), no nosso
entender, esta representação não pressupõe apenas um intento racionalmente arquitetado para
que fosse usado como importante capital simbólico para a fundamentação do poder político.

português. c.1875. POB - Maço 163 - Doc. 7546. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC.
10 Trecho de carta escrita por d. Pedro II a Miguel Maria Lisboa, barão de Japurá (1809-1881), enviado
extraordinário e ministro plenipotenciário em Lisboa, Portugal. Lisboa, 12/06/1871. Maço 206 – Doc. 9380-
Arquivo da Casa Imperial do Brasil (POB). Museu Imperial/Ibram/MinC.
11 Ver WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 7. ed., São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1992; WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (Org.). Weber:
Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1991, p. 128-141.

57
Ao contrário, defendemos a tese de que este esforço está atrelado ao seu deslocamento em
relação ao projeto político da elite imperial e, consequentemente, ao seu afastamento do
conservadorismo. Assim, ao se aproximar do ethos burguês, d. Pedro II encarnaria um tipo de
conduta calvinista, vinculada ao ascetismo laico e ao cumprimento dos deveres de cidadão e
governante exemplar, independentemente de suas vontades mais íntimas.
Por isso, partimos do princípio de que as viagens do imperador seriam viagens de
conhecimento e reconhecimento, claramente ligadas à construção de si mesmo que, embora
estudadas sob outros aspectos, carecem de um enfoque mais aprofundado, que permita
desconstruir a tese do imobilismo - segundo a qual, Pedro II teria sido praticamente o mesmo
por toda a sua vida - e mostre a importância destas excursões para a construção de um novo
ethos, pautado no desencantamento do mundo, no rompimento com construções míticas e na
racionalização de todos os domínios da vida em sociedade, inclusive na premissa da
separação entre as esferas pública e privada.
De fato, a partir da década de 1860, percebemos na documentação sinais de que o
ethos burguês começava a se sobressair ao ethos aristocrático. Em outras palavras, notamos
um agente social que, em meio às tensões e aos conflitos que perpassam a estrutura social,
entre projetos coletivos e projetos individuais, acabou por se redefinir, enquanto sujeito
múltiplo. Por outro lado, esta reelaboração - do ethos aristocrático ao ethos burguês - só foi
possível porque a estrutura social sofria profundas transformações em sua passagem à
modernidade a partir da segunda metade do século XIX. É, portanto, nesta dialética entre
estrutura social e sujeito social que se fundamenta a nossa argumentação.
Acreditamos que, sobretudo as viagens que realizou ao exterior (1871, 1876, 1887) e
exílio, (entre 1889 e 1891) tiveram um papel preponderante na construção de uma nova rede
de sociabilidade que contribuiu de forma decisiva para o seu descolamento em relação ao
projeto político da elite imperial. 12
Reiteramos que o caráter ascético e burguês (no sentido weberiano a que nos
referimos), que buscava separar os interesses privados dos públicos, aos quais deveria servir,
ainda que em detrimento de suas aptidões pessoais, pode ser notado em muitas passagens e se
evidencia quando a documentação é tomada como um todo, a partir da leitura extensa, mas
também verticalizada, das fontes.

12 Ver GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. D. Pedro II em Portugal (1871-1872): memória e história. In:
R.IHGB, ano 176, n. 469, 2015, p. 103-117. A autora observa como Pedro II dominava os códigos da cultura
dos viajantes do Oitocentos, que primava por atrelar os estudos às viagens, ressaltando o valor pedagógico
destas excursões.

58
Por fim, inferimos que as escritas autobiográficas de Pedro II apontam indícios de que
a narrativa criada por ele, que reforçava a imagem do cidadão nos diários e na
correspondência, mas também nos poemas, nos conselhos à regente ou na fé de ofício, foi em
boa medida apropriada por aqueles que, posteriormente, se dedicariam a produzir o
conhecimento histórico a respeito do ex-imperador, ainda que tenham realçado a dualidade
entre o monarca e o cidadão sem levar em consideração a sua complexidade.

HISTORIOGRAFIA: AS BIOGRAFIAS DE D. PEDRO II E OS MÚLTIPLOS


OLHARES SOBRE A SUA TRAJETÓRIA

Ele [d. Pedro II] não é nem Minerva [a sabedoria], como lhe dizem
muitos, sem pensarem, nem Juno [o orgulho], como o fez o artista
[Decio Villares], sem querer. É esquisito que ninguém o tenha ainda
visto bem, quando tantos o olham. (grifo nosso)
Julio Dast13

A preocupação com a preservação da memória, para além das diversas formas de


escrita de si, encontrava-se já bastante clara, ainda no período de vida de Pedro II, como
demonstram, por exemplo, excertos de jornais, entre os quais destacamos 316 recortes de
periódicos europeus14, sobretudo franceses, guardados pela família imperial do Brasil entre 16
de novembro e 17 de dezembro de 1889, onde sobressaem as notícias sobre os eventos que
levaram à deposição do imperador, a viagem para o exílio e a sua chegada a Lisboa, além de
relatos sobre sua vida.
Somam-se a isto, os esforços do ex-imperador para que sua biblioteca, coleção de
fotografias e outras coleções e objetos que formavam o seu museu particular fossem deixados
para instituições nacionais que, como podemos perceber na carta escrita ao seu procurador
José da Silva Costa15 (a que já nos referimos anteriormente), sinalizam o papel de Pedro II na
formação de importantes acervos que, sob a denominação D. Thereza Christina Maria e
Imperatriz Leopoldina, deveriam perpetuar tanto a sua memória e a da família imperial, como
a memória do Segundo Reinado: a memória individual e a memória coletiva. 16

13 DAST, Julio [Pseudônimo de José Ribeiro Dantas Jr.]. Chronicas Fluminenses. In: Revista Illustrada, n. 336,
p. 2. Rio de Janeiro, 24 de março de 1883. Acervo Biblioteca/Museu Imperial/Ibram/MinC
14 Documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. II_POB-Maço 52 – Doc. 1143 – Acervo Arquivo
Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC.
15 Carta de d. Pedro II a José da Silva Costa, assinada e datada de Versailles, 08/06/1891. Coleção Silva Costa.
I-DAS-08/06/1891- PII.B.c - Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC.
16 Ver ARGON, Maria de Fátima Moraes. Reflexões Sobre O Arquivo da Família Imperial e o papel de d.
Pedro II na sua formação, publicado pelo Instituto Histórico de Petrópolis. Disponível em: www.ihp.org.br

59
Neste sentido, visamos pensar a partir das proposições de Fernando Catroga (2001)
sobre a relação que a história estabelece com a memória, problematizando em que medida a
historiografia, ao selecionar o que merecia ser lembrado e o que precisava ser esquecido,
apropriou-se das escritas auto-referenciais, enquanto projetos deliberados de construção da
memória pessoal, ou das narrativas memoriais (biografias, crônicas, textos e imagens
veiculados em periódicos, entre outros) relacionadas a Pedro II.
Assim, apropriamo-nos das considerações de Catroga que, embora reconhecendo que
as relações entre a memória e a historiografia não são lineares, pontua que o conhecimento
historiográfico também surge como um “meio de combate contra o esquecimento”. Por isso,
indaga: “será a historiografia inteiramente estranha à função que as liturgias de recordação (e
particularmente o culto aos mortos) desempenham?” (CATROGA, 2001:39-41)
Se há um limite tênue entre o presente e o passado, que se entrecruzam, como as
figuras em um quadro de Miró, para usarmos a expressão de Michel de Certeau (2002:48)
sobre “a operação historiográfica”, nos indagamos o quanto o passado informa o presente,
neste caso, o quanto as narrativas memoriais acabaram por influenciar e permear a narrativa
historiográfica.
Por outro lado, podemos perceber que sempre haverá a possibilidade de relativizar a
apreensão sobre o passado possibilitada pela historiografia. Ou seja, será sempre possível
pensar o impensável e redimensionar o passado, desde que, em algum momento, esta
operação seja possibilitada pelas questões do presente, inclusive pelas questões teórico-
metodológicas apresentadas pela renovação historiográfica. É nesta linha que pretendemos
mostrar que as nossas proposições podem, a despeito de tudo o que já foi escrito sobre Pedro
II, esmiuçar um ponto ainda não devidamente estudado da sua trajetória.
Por isso, voltamos nosso mapeamento para as biografias escritas ainda durante a vida
de Pedro II, destacando aquela atribuída a Benjamin Mossé 17 e, na verdade, de autoria do
barão do Rio Branco 18, publicada em Paris, em 1889. Nosso objetivo é pontuar como neste
texto, a começar pela folha de rosto, aparecem elementos que serão reproduzidos nas escritas,
memoriais e historiográficas, posteriormente. As citações de figuras de relevo como Victor
Hugo e Charles Darwin a respeito de Pedro II dão a tônica do que os autores pretendiam

Acesso em: 29 Set. 2016.


17 Benjamim Mossé (1832-1892), escritor e editor francês, rabino de Avignon. Ver MOSSÉ, Benjamin.
Dom Pedro II, Imperador do Brasil: o Imperador visto pelo barão do Rio Branco /Benjamin Mossé. – Brasília:
FUNAG, 2015.; MOSSÉ, Benjamim. Dom Pedro II, Empereur du Brésil. Paris: Librairie de Firmin-Didot et Cie,
1889.
18 José Maria da Silva Paranhos Júnior, barão do Rio Branco (1845-1912), diplomata e historiador. Era filho de
José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, Presidente do Conselho de Ministros (1871-1875).

60
realçar na biografia do imperador: os epítetos de príncipe filósofo, sábio, amante e
encorajador das letras, das artes e das ciências.
A erudição do imperador que demonstrava conhecimentos nos mais diversos ramos
das ciências, sobretudo a astronomia e a botânica, ou que era capaz de falar, ou ler e traduzir
em diversos idiomas, como o hebraico que, segundo Mossé, ele conhecia melhor do que
muitos judeus; o despojamento que o permitia fazer generosas doações e custear os estudos de
jovens promissores, ou ainda recusar os faustos da vida aristocrática em troca de uma ascética
simplicidade de vida, todos estes pontos enfatizados por Mossé e Rio Branco podem ser
recuperados nas demais biografias de Pedro II, inclusive nas mais recentes, talvez com uma
entonação menos afetada, mas, ainda assim, com os mesmos enfoques.
Em um segundo momento, além das escritas autobiográficas e biográficas, pensamos
sobre a contribuição dos periódicos para a construção do conhecimento histórico a respeito de
Pedro II. Trabalhos recentes, como os do historiador Cláudio Antônio Santos Monteiro
(2007), que analisa as representações de Pedro II em jornais franceses, de diversos matizes
ideológicos, a partir da década de 1870, justamente a que é considerada como o início da
decadência do Império, mas também, contraditoriamente, a da sua ascensão no campo
intelectual europeu, sobretudo francês, têm se debruçado sobre a problemática da memória
construída a respeito de Pedro II com muito êxito.
No exterior, as matérias sobre a deposição de Pedro II em uníssono reforçaram que o
imperador do Brasil era reconhecido na Europa, particularmente, devido ao seu interesse em
assuntos científicos, atrelando textualmente o nome do “soberano brasileiro” à “história das
ciências modernas”, destacando o paradoxo entre a sua queda e a sua nomeação, no mesmo
dia, a Oficial da Instrução Pública, pelas proposições dos Ministros da Instrução Pública e dos
Negócios Estrangeiros da França da Terceira República. 19
Paralelamente, nos indagamos quanto à medida da influência dos periódicos
brasileiros, em especial a Revista Illustrada20 que, como fonte, tem subsidiado inúmeros
trabalhos sobre Pedro II. Nos 635 números publicados entre 1876, ano da criação do jornal, e
1891, ano da morte do ex-imperador, é possível localizar inúmeras referências a Pedro II, a
maioria delas com críticas ácidas não só ao seu governo, como à sua pessoa, considerado
fraco, dúbio, reticente, inseguro, taciturno, enfim, “um incansável assistidor”. Ainda que os

19 Sobre as matérias a respeito de d. Pedro II nos jornais estrangeiros ver Arquivo da Casa Imperial do Brasil.
POB-Maço 52-Doc 1143-Cat. B-Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC
20 Periódico semanal, editado e publicado por Angelo Agostini (1843-1910) e, posteriormente, por Luís de
Andrade, no Rio de Janeiro, entre 1876 e 1898, veiculando textos e imagens (desenhos, charges, caricaturas e
retratos), importantes registros do último quartel do século XIX no Brasil.

61
articulistas da Revista não deixem de pontuar o que chamam de “amor pela ciência”,
percebem esta relação como nefasta por afastar o imperador do cumprimento do seu dever,
exatamente o oposto do que Pedro II pretendia realçar nas suas escritas auto-referenciais e na
construção da memória de si e do seu governo.
O trabalho de indexação da coleção completa da Revista Illustrada21 nos permitiu
perceber, no conjunto, o que a narrativa do periódico fixou como conhecimento histórico
sobre o imperador e o Segundo Reinado divergindo do Pedro II que se revelou a nós através
da leitura extensa, não só dos seus diários, mas do seu arquivo privado como um todo.
Portanto, o monarca, vítima do poder pessoal, que sofria com o acúmulo de
prerrogativas e a concentração de poderes, ou o Pedro II que vivia “no mundo da lua”, imerso
em seus afazeres particulares, que emerge, sobretudo, nas charges publicadas próximas ao fim
do Império, contrapõem-se não só à visão subjetiva e à construção de si mesmo empreendida
pelo imperador e à visão dos memorialistas, seus primeiros biógrafos, mas também àquilo que
nos pareceu revelar um ponto ainda não tangenciado na trajetória do imperador: o seu
deslocamento do ethos aristocrático e a adesão ao ethos burguês, que é o objeto da nossa
pesquisa.
Seguindo os rastros dos múltiplos olhares sobre Pedro II, voltamo-nos para o início
dos anos 1960, quando a monumental obra dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, História
Geral da Civilização Brasileira, vem a público. No tomo referente ao Brasil Monárquico e,
especificamente, nos volumes sobre o Segundo Reinado, emerge um Pedro II conservador,
cuja concentração de poderes o colocaria em oposição aos liberais que, embora pudessem
ainda ser monarquistas, aderiam a teorias mais radicais (HOLANDA, 2012:304).
Quanto às biografias22, no período posterior, destacam-se a História de D. Pedro II,
escrita em 5 volumes por Pedro Calmon, e Exílio e morte do Imperador, de Lidia Besouchet,
ambas publicadas em 1975. Guardadas as devidas proporções das obras, notamos que ambos
os biógrafos, autores também de outras biografias de titulares do Império, acabam por seguir
os cânones de escrita das biografias clássicas, intercalando os acontecimentos pessoais aos
públicos, em uma linguagem muito próxima da narrativa literária.

21 Trabalho desenvolvido, entre 2013 e 2015, como técnica em acervo, responsável pela indexação de livros e
periódicos raros que compõem o acervo da Biblioteca do Museu Imperial/Ibram/MinC, no âmbito do Projeto
de Digitalização do Acervo do Museu Imperial (DAMI).
22 Importante salientar a existência de dezenas de biografias de d. Pedro II, entre as quais, destacamos as
escritas ainda no século XIX pelo Monsenhor Pinto de Campos (1871) e por Benjamin Mossé, juntamente
com o barão do Rio Branco (1889), assim como as biografias canônicas escritas na década de 1930 por Pedro
Calmon (1938) e Heitor Lyra (1938-1940).

62
No caso de Pedro II, reiteradamente a sua vida é descrita, a despeito da riqueza e da
quantidade de fontes utilizadas, como se, de antemão, tivesse um fim último, uma teleologia
cumprida com afinco pelo biografado. Sobre o imperador nos diz Pedro Calmon: “Nascera
nos degraus do trono; a monarquia era ele. Se desaparecesse, se falhasse, também ela
acabaria.” (1975:23) Já Besouchet (1993:37), ao descrever o exílio e morte de Pedro II, assim
narra os últimos momentos do ex-imperador:
Sem se deter em detalhes, saltando pontos obscuros, fatos que lhe
pareceram importantes algum dia, o Imperador na imobilidade de seu
modesto leito de um quarto de hotel parisiense, fechou ainda mais os
olhos às grandezas do mundo, cerrou ainda mais os ouvidos aos ruídos
que subiam da multidão aglomerada lá fora e, enquanto a neve
escorria lentamente pelos vidros das janelas, recordou. Reconstituiu
aquilo que constituía a história de sua vida como um pedaço da
história do Brasil. (grifo nosso)

No nosso entender, esta teleologia denuncia a simplificação da análise tão bem


criticada no texto clássico de Pierre Bourdieu (1986) sobre a “ilusão biográfica”, que esconde
os múltiplos ‘eus’ e a complexidade da trajetória de vida, ou seja, sincrônica e
diacronicamente, os deslocamentos e recolocações do agente no espaço social, justamente, o
que pretendemos mostrar no nosso trabalho.
Na historiografia atual, o Imperador Cidadão, de Roderick Barman, juntamente com
D. Pedro II: Ser ou Não Ser, de José Murilo de Carvalho, seriam as biografias recentes de
maior relevância. No entanto, esses textos ainda se aproximam das biografias escritas na
década de 1930, não pela multiplicidade de adjetivos empregados em certos trechos quase
literários, mas, pelo menos, em relação a uma escrita que prima pelo encadeamento de
eventos pessoais e políticos e por uma narrativa linear sobre a vida do imperador.
Diante do exposto, ainda que tenhamos empreendido uma leitura extensa, intensa e
integrada das fontes e, sobretudo, do arquivo pessoal de d. Pedro II, trazer um novo feixe de
luz sobre a trajetória do imperador não deixa de ser, por isso, menos desafiador. Pelo
contrário, o desafio é gigantesco, e este desafio biográfico deve-se a dois pontos
fundamentais: primeiro, como dito, porque muitos pesquisadores reconhecidos pela academia
já se dedicaram a esta tarefa e, portanto, problematizar em relação a algumas teses já
consolidadas requer certo esforço; segundo, como nos alerta Sérgio Buarque de Holanda
(2010:141), “por maior que possa ser a tentação de querer reduzir o papel que um homem só
possa exercer no curso da história, força é confessar que os poderes que enfeixava o
imperador, (...), não deixam silenciá-lo ou subestimá-lo.”

63
Assim, ao contrário das assertivas que reiteram o imobilismo na trajetória de Pedro II,
como a afirmação de Barman, segundo a qual “em meados de 1848, então com 23 anos e
meio, o imperador havia desenvolvido plenamente as qualidades que o caracterizariam dali
em diante” (2012:183), pretendemos mostrar d. Pedro II como um indivíduo paradoxal e
complexo, do qual, nem as biografias laudatórias e hagiográficas, nem as biografias que
pretendem dar um sentido linear à sua vida, conseguem dar conta.
Propomo-nos a pensar, então, quais eram os interlocutores privilegiados por d. Pedro
II a partir de 1871. Além dos seus amigos, como os já mencionados conde de Gobineau e
condessa de Barral, este mapeamento passa necessariamente por verificar a rede de
sociabilidade que conformou no campo intelectual e científico, seja na Europa, seja nos
Estados Unidos e no Oriente Médio. O inventário da documentação privada de Pedro II
mostra claramente que, a partir da década de 1870, avultam os documentos, sobretudo a
correspondência, sobre temas científicos, paralelamente ao declínio dos documentos
referentes aos assuntos da administração pública ou do governo.
Quanto à relação de d. Pedro II com o campo científico, notamos que as diversas teses
sobre o tema confirmam o pensamento a respeito do interesse do imperador pelo
desenvolvimento das ciências: sempre apresentado como distração diletante, curiosidade ou
mecenato. Desde o lançamento de As Barbas do Imperador, de Lilia Schwarcz23, que se
tornou uma obra de referência sobre d. Pedro II, a problemática teórica abordada por
Schwarcz – os fundamentos simbólicos da estrutura social – e a sua tese sobre a construção
simbólica da imagem de d. Pedro II, de órfão da Nação a cidadão cosmopolita e intelectual,
têm sido seguidas, em maior ou menor grau,24 nos demais trabalhos sobre o segundo
imperador do Brasil, destoando desta perspectiva apenas algumas pesquisas mais recentes,
como as que tratam dos estudos tradutórios de Pedro II, 25 por exemplo.
Contudo, partindo do princípio de que teses são passíveis de desconstrução,
pretendemos discutir aquela consagrada por Lilia Schwarcz, e mostrar que há muitos
momentos na documentação onde, para parafrasearmos a metáfora empregada em As Barbas
do Imperador, o rei se deixa ver nu (SCHWARCZ, 2010:25-33). Ou seja, há narrativas que

23 Além desta obra, destacamos a publicação, pelo Museu Imperial, do Diário do Imperador D. Pedro II: 1840-
1891, sob a organização de Begonha Bediaga, em 1999.
24 Citamos, por exemplo, a pesquisa de Regina Dantas, do Museu Nacional/UFRJ. Ver DANTAS, Regina
Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador: Do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional. Dissertação
(Mestrado) Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007. 276
p.
25 Destacamos as pesquisas do grupo coordenado por Sergio Romanelli, na Universidade Federal de Santa
Catarina. Ver: SOARES, Noêmia; SOUZA, Rosane de; ROMANELLI, Sergio (Org.). Dom Pedro II: um
Tradutor Imperial. Tubarão: Ed. Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.

64
deixam evidente que o projeto intencionado pelas elites nacionais para a construção da
imagem do imperador e, por conseguinte, do próprio Estado Nacional, começou a destoar do
ethos reelaborado por d. Pedro II, gerando uma contradição que, ao fim e ao cabo, levaria ao
esgotamento da forma de governo. A análise simbólica em si mesma, desprendida da estrutura
social, não captaria um importante aspecto da trajetória de d. Pedro II, que é a relação que ele
estabelece dialeticamente com os novos valores, modos de pensar, sentir e agir, no processo
histórico marcado pela passagem à modernidade, na segunda metade do século XIX.
Finalmente, a pista que seguimos para verificar as nossas hipóteses parte justamente
dos clássicos Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda que, embora não tenham
aprofundado seus argumentos, apontaram para um imperador que cada vez mais se
desconectava com o projeto político pensado pela elite imperial no período pós-
independência. Gilberto Freyre, ainda em 1925, nos dá os indícios deste descolamento, e
assim define o imperador: “Deixou de ser o pai e o aliado dos pais-senhores de engenho, dos
pais-barões, dos pais-fazendeiros para ser cúmplice dos filhos - os bacharéis revoltados contra
toda espécie de tradição (...).” (FREYRE, 2011:44). Já Holanda, inclusive citando Freyre, não
deixa de notar, em Raízes do Brasil (1993:122)

Pedro II é bem de seu tempo e de seu país. A ponto de ter sido ele,
paradoxalmente, um dos pioneiros dessa transformação, segundo a
qual a velha nobreza colonial, nobreza de senhores agrários – os
nossos homens de solar – tende a ceder seu posto a esta outra,
sobretudo citadina, que é a do talento e a das letras.

Assim, seguir as pistas deixadas por Freyre e Holanda, que identificam um imperador
paradoxalmente “entre o patriarca e o bacharel” e, a partir das novas abordagens
historiográficas que permitem uma leitura diferenciada do arquivo pessoal de Pedro II e de
outras fontes a ele relacionadas, revelar uma perspectiva inédita sobre a trajetória do
imperador é o desafio a que nos propomos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho nos propusemos a traçar um panorama sobre as escritas (auto)
biográficas de Pedro II, tendo consciência de que, ainda assim, é um recorte, uma
exemplificação, entre o imenso volume de documentos referentes ao ex-imperador. A vasta
documentação sobre d. Pedro II, incluindo seu arquivo pessoal, mas também as fontes
secundárias, nos apresenta o desafio de pontuar um aspecto ainda não devidamente tratado, ou
apenas tangenciado, da sua biografia. No entanto, a ampla leitura que fizemos das fontes,

65
especialmente da documentação privada do imperador que, em conjunto, nos permitiu
perceber não o que está mais evidente – a dicotomia entre o monarca e o cidadão -, mas o que
está nas entrelinhas, nos não ditos, nas hesitações, nas insatisfações manifestas aqui e acolá,
sobretudo aos seus interlocutores privilegiados.
Em outros termos, a pesquisa qualitativa e o paradigma indiciário que escolhemos
como método nos possibilitaram verificar, para além da dicotomia, a complexidade da
trajetória de Pedro II. A nossa pretensão, assim, limita-se a analisar em um recorte da sua
biografia, particularmente o período entre 1871 e 1891, o seu deslocamento em relação ao
projeto político pensado pela elite imperial e a sua adesão a um novo ethos. O fio condutor
para repensarmos esta trajetória, entre outros possíveis, seria a sua participação efetiva nos
campos intelectual e científico do último quartel do Oitocentos, não apenas como mecenas ou
erudito, príncipe ilustrado, amante das ciências e das letras, epítetos construídos desde o
século XIX e reforçados ainda nos dias de hoje.
Em segundo lugar, esperamos poder debater com afinco a tese da teatralização do
poder, seja porque ela ressoa em quase todos os trabalhos recentes que pretendem estudar a
relação de Pedro II com as ciências, seja porque, no nosso entendimento, ao prender-se à
questão da importância do capital simbólico para a fundamentação do poder político, fecha-se
aos sentidos que a experiência pode produzir na vivência, por um lado, e não dá conta de
perceber as mudanças que estão ocorrendo na estrutura social, em sua passagem à
modernidade, por outro lado.
Ainda que, como mostramos, a separação entre o monarca e o cidadão tenha sido
cunhada pelo próprio imperador nas escritas de si, e que se reconheça algum grau de
intencionalidade e sistematização nos relatos deixados para a posteridade, como os diários, a
pesquisa ampla, extensa e intensa da documentação mostrou-nos que há muito mais aspectos
a serem aprofundados do que uma leitura segmentada das fontes poderia indicar.
A revisão historiográfica, neste sentido, nos permitiu aprofundar a problemática da
pesquisa e explorar aspectos que haviam sido apenas tangenciados por outros historiadores.
Por outro lado, contribuiu para as reflexões sobre a renovação do campo da História Política
na historiografia brasileira, visando perceber em que medida o nosso projeto se encaixa nesta
tendência e de que maneira podemos revelar algo inédito, não rompendo, mas aprofundando,
indo além da narrativa que reconhece em d. Pedro II a dicotomia entre o monarca e o cidadão,
o rei filósofo, ou ainda o erudito monarca dos trópicos.

66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Paloma Vidal. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
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Moraes (Coord.). Usos e Abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.
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sesquicentenário de seu nascimento. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1975, 316p.
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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia
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______. O Brasil monárquico. v. 7: do Império à República.10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2012, 500p.

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MONTEIRO, Cláudio Antônio Santos. “Alguns elementos do debate francês sobre o


reconhecimento da república no Brasil (1889-1890)”. In: R. IHGB, Rio de Janeiro, a.
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RÉMOND, René. Por uma história política. 2. ed. Tradução de Dora Rocha. 2. ed. Rio de
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67
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: Dom Pedro II, um monarca nos
trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 623p.

68
A nova Câmara de 1881 e os representantes da nação

Alexandra do Nascimento Aguiar1

Resumo: A representação política foi tema essencial dos debates sobre a organização dos
Estados a partir do último quartel do século XVIII, e se tornou questão fulcral nas discussões
de projetos de Nação, ao longo de todo o oitocentos, tanto na Europa como na América. O
objetivo desse trabalho é situar o Brasil monárquico nesse debate, através das principais
reformas de seu sistema representativo até a Lei Saraiva, em 1881. Dentro desse recorte, esta
apresentação tem como proposta enfocar a primeira Câmara dos Deputados eleita por voto
direto no país, sua composição e seleção de discussões em Plenário, tendo em vista refletir
sobre o sentido da representação política no Brasil, no cenário político criado pela reforma
eleitoral de 1881.
Palavras-chave: representação política, Lei Saraiva, Segundo Império.

Abstrat: The Political Representation was a specific point inside the debates about state
organization during the last quarter of eighteenth century and the discussion on National
Projects of State became the central question in Europe and in America. This article aims to
situate the Brazilian debate about State in monarchy period in this international debate focuses
on mainly reforms of representative system that culminated in the Saraiva`s Law, in 1881. For
that, we will analyze the first Chamber of Deputies elected by direct vote in Brazil, its
composition and a selection of discussions in Plenary, in order to reflect on the meanings of
political representation, in the political scenario created by the electoral reform of 1881.

Key-words: political representation, Lei Saraiva, Second Empire.

Apresentação
A implantação da eleição direta no Brasil, através da reforma eleitoral de 1881, pode
ser interpretada como oportunidade de análise das expectativas políticas do país e dos debates
sobre a representação política no cenário do último quartel do século XIX. Para além da
exclusão da maioria da população pelo censo literário, a reforma promovida pelo Partido
Liberal oferece a possibilidade de reflexão sobre o significado da representação política no
contexto da Lei Saraiva, a partir do perfil da Câmara dos Deputados eleita naquela legislatura
(1881-1884)2.

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


E-mail: alexaaguiar13@gmail.com
2 AGUIAR, Alexandra do Nascimento. “Têm todos os mesmos ares de família”: ideias conservadoras na
Assembleia Geral de 1881. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, 2016.

69
Até a Lei Saraiva, durante o Império, houve três reformas eleitorais significativas que
perseguiram objetivos interligados e essenciais à confiabilidade no sistema representativo de
um país: a lisura no processo eleitoral e a pluralização da Câmara. Em todo o período
monárquico foi recorrente o predomínio de um único partido político nas Câmaras eleitas, e
trazer o partido da oposição para dentro do Parlamento conferia autenticidade à representação
política. A outra questão se referia às fraudes e à coerção física e moral, também presentes nas
eleições imperiais, práticas ilegais cometidas por conservadores e por liberais. Os frequentes
atos ilícitos e de violência durante as eleições eram mobilizados pelas elites locais em sintonia
com as elites provinciais e com as autoridades governamentais. O protagonismo das camadas
populares nesses dias de eleição, seja como votantes ou como capangas e capoeiras, os
“agentes eleitorais” nas áreas rurais e urbanas, foi o argumento nos discursos que defendiam a
eliminação do primeiro grau do sistema eleitoral e com ele a participação política da maioria
pobre. Esta responsabilizada por macular as eleições ao trocar seu voto por benefícios
pessoais ou por obedecer aos mandantes locais contra seus adversários eleitorais.
No entanto, mais do que o aperfeiçoamento do sistema representativo, tais reformas
eleitorais realizadas em 1846, 1855 e 1875 apontavam para um viés conservador, pois traziam
discursos mais ou menos explícitos a concepção sobre a participação e a representação
políticas como expressão de grupos portadores de privilégios, a propriedade e a educação
formal.
Até a primeira reforma eleitoral as eleições eram orientadas pelas Instruções de 1824,
a Lei de Reforma de 1846 criou uma legislação específica para o processo eleitoral. A revisão
do sistema eleitoral se impôs após a conturbada eleição de 1842, apelidada de “eleições do
cacete” devido às estratégias escusas de intimidação de adversários políticos pelos dois
partidos, entretanto mais associadas ao Partido Liberal3. A reforma tinha como finalidade
promover eleições livres de interferência do governo, o que significava tentar impedir o
falseamento da representatividade e da permanência de um único partido no poder 4. No
entanto, também elevou a renda mínima para os votantes, determinando seu cálculo em prata
sob a justificativa de desvalorização da moeda, uma forma de impedir a expansão do
eleitorado.
A seguinte, Lei de Círculos de 1855, aprovada no contexto da Política de Conciliação,

3 SABA, Roberto N. P. F. As “eleições do cacete” e o problema da manipulação eleitoral no Brasil


monárquico. Almanack. Guarulhos, n.02, p.126-145, 2º semestre de 2011.
4 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política. Teatro de sombras: a política
imperial. 4º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 394.

70
instituiu os distritos com o propósito de aproximar os eleitores aos candidatos, envolvendo-os
mais nas eleições, esperava-se reduzir o espaço de influência do governo 5. Opiniões
desfavoráveis ao voto distrital criticavam a inserção das lideranças locais no Parlamento, os
“tamanduás”, como inaptos para debates políticos mais abrangentes sobre o país. Tais chefes
locais levariam o Brasil real para dentro do Parlamento, até então espaço dominado por
políticos de expressão provincial6. Estes se percebiam como os únicos capazes de representar
a nação e educar o povo, exemplificado pela percepção de Bernardo Pereira de Vasconcelos,
“para quem o sistema representativo não era a vontade popular, mas o governo dos melhores,
dos mais esclarecidos, dos mais virtuosos”7.
A Lei do Terço de 1875 foi debatida no quadro de reivindicação pelo voto direto que
se tornara reforma suprapartidária, pois conservadores e liberais faziam propaganda pela
revisão do sistema eleitoral. A Lei do Terço priorizou a representação da minoria partidária, a
eleição em número significativo de deputados do partido da oposição, visando impedir, assim,
a formação das Câmaras unânimes8. Além do propósito de garantir 1/3 dos votos para a
oposição, a lei estabeleceu a qualificação permanente dos votantes com a introdução do título
eleitoral e reorganizou as eleições por Províncias 9 novamente, com o intuito de obstaculizar a
eleição dos “chefes de aldeia”, viabilizada pela reforma anterior. Contudo, esta reforma não
obteve os resultados desejados, pois a Câmara eleita se compôs com ampla maioria
conservadora sob ministério conservador, e a eleição seguinte, sob ministério liberal, formou
uma Câmara inteiramente liberal10. Além disso, foram constatados casos de violência e
distribuição de empregos públicos como “compra de votos”11.
O crescimento da adesão à campanha pela eleição direta estava relacionado à
libertação dos nascituros, obstaculizada pela composição parlamentar majoritária de
escravocratas naquela legislatura. A decisão favorável à Lei do Ventre Livre (1871)
desagradou à bancada escravista do Partido Liberal e do Partido Conservador, unindo-os pela
eleição direta, reivindicação do Partido Liberal desde 1869, em defesa da ideia como meio de

5 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Editora Globo, 2001, p. 371.
6 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 399.
7 FAORO, Raimundo. Op. cit., p. 371
8 Esta era uma reivindicação dos dois partidos e dos dois partidos e, buscando atender essa demanda, o
ministro João Alfredo Correia de Oliveira elaborou o projeto no qual se basearia a Lei do Terço PAIM,
Antônio, BARRETO, Vicente. Evolução do pensamento político brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989, p. 88.
9 HOLANDA, Sergio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil monárquico. Tomo II,
v. 7. Do Império à República. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 213.
10 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 407.
11 HOLANDA, Sergio Buarque. Op. cit., p. 214.

71
restringir a influência do governo no processo eleitoral. Ambos argumentavam que tal vitória
se dera devido ao número de funcionários públicos e de políticos das regiões rurais do Norte
de economia decadente, os dois casos dependentes dos favores do governo, eleitos como
deputados sob a interferência do governo e, por isso, votavam com o governo 12. Logo, a
reforma eleitoral que se realizaria em 1881 teve como propósito reduzir o eleitorado no
campo, a partir da exigência de alfabetização, e limitar as candidaturas do funcionalismo com
a inclusão de incompatibilidades eleitorais.
Os debates sobre a reforma eleitoral iniciaram com o Gabinete Sinimbu (1878-1880),
no entanto, a ausência de consenso entre os liberais quanto a determinados pontos no projeto e
problemas ocorridos durante esse governo levaram a sua substituição por outro Gabinete, este
chefiado por José Antônio Saraiva (1880-1882). O político baiano conseguiu passar a reforma
como decreto e com a controversa exigência de saber ler e escrever para ser eleitor. No
discurso final, a eleição direta foi declarada como vontade nacional e necessária como parte
do progresso e da civilização pretendidos para o Brasil.
No entanto, a Lei Saraiva não se traduziu em expectativas de renovação política, ainda
que tenha sido enunciada no periódico Gazeta de Notícias como “inaugurada uma nova época
parlamentar, oriunda de um novo sistema eleitoral”. Uma parcela dos eleitores via com
reticências a “nova eleição” e a possibilidade de renovação da política e alertava contra a
entrada de novos nomes que poderiam “perturbar o sossego”:
Ás urnas
É essencial ao bom êxito da presente eleição que nela tome parte como
eleitor todo homem honesto e independente. É preciso que os candidatos
anônimos e sem título capaz de recomendá-los à benevolência dos eleitores
sejam fulminados para exemplo dos futuros, que em idênticas condições
tiverem a coragem de vir perturbar o nosso sossego. Escolhamos pessoas
conhecidas pela sua inteligência e moralidade, e que das suas aptidões
tenham dado provas já no Parlamento, já na imprensa, pois que os tempos
difíceis, a que atravessa o país não permitem experiências.
Um grupo de 20 eleitores 13.

Os representantes da nação
No dia 17 de Janeiro de 1882, Pedro II abriu oficialmente as atividades na 18ª
Assembleia Geral, que já se encontrava em sessão preparatória desde dezembro do ano
anterior. A reforma eleitoral de 1881 havia atingido seu principal objetivo: a composição da

12 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Momento monarquiano. O poder


moderador e o pensamento político imperial. Tese de doutorado. IUPERJ, 2007, p. 332
13 Gazeta de Notícias, 31 de outubro de 1881.

72
Câmara pelos dois partidos, situação e oposição se enfrentariam em equilíbrio, ao contrário
dos quadros parlamentares anteriores. O Partido Liberal ocupou 75 cadeiras, contra o Partido
Conservador representado por 47 deputados.
Um dos méritos da Lei Saraiva foi a distribuição de representantes do Partido Liberal e
do Partido Conservador províncias do território imperial. Pode-se dizer que como partido
derrotado, os conservadores foram bem sucedidos, pois, exceto por seis províncias, a oposição
conseguiu ao menos um deputado ou até metade das cadeiras nas demais. Os eleitores do Rio
de Janeiro optaram pelos conservadores, elegendo dez deputados contra dois do Partido
Liberal nos doze distritos fluminenses. Em Pernambuco ocuparam mais da metade das
cadeiras e no Pará elegeram o total de representantes. Na Paraíba, os conservadores também
obtiveram votação expressiva, assim como em Minas Gerais onde alcançaram um terço de
representantes.
A Câmara eleita em 1881 foi fruto de uma reforma que se insere na concepção sobre a
representação política como exercida pelos indivíduos julgados capazes, os “princípios da
distinção” que permitiam a alguém se inserir ou iniciar redes políticas. Segundo Bernard
Manin, os governos representativos formados na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França,
os dois últimos a partir do último quartel do século XVIII e ao longo da primeira metade do
século seguinte, preocuparam-se de que os representantes políticos fossem “socialmente
superiores” aos eleitores em “riqueza, talento e virtude”, adotando a propriedade e a
educação formal como critérios para ocupação de cargos públicos14.
Na legislatura de 1881, os deputados se identificaram pela formação profissional, não
significando que a exercessem de fato. Elegeram-se 84 bacharéis em Direito, 22 médicos, 04
magistrados, 04 bacharéis em Matemática, 02 lavradores, 02 engenheiros, 02 negociantes, 01
lente de Direito e 01 militar 15. Destacando-se a profissão e a formação superior como
definidores da identidade social do grupo. O reduzido número de lavradores, ou seja, aqueles
que administravam diretamente suas propriedades rurais, atividade que boa parte do grupo
considerava inconciliável com a política 16. Entretanto, a categoria sempre esteve representada
no parlamento brasileiro pelo expressivo número de deputados oriundos da lavoura, seja por
família, negócios ou ambos.

14 MANIN, Bernard. O princípio da distinção. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 4. Brasília, julho-
dezembro de 2010, 187-226.
15 BARÃO DE JAVARY. Organizações e programas ministeriais desde 1822 a 1889. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1889, p. 338-343.
16 Verbete Francisco Peixoto de Lacerda Werneck. VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil
Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 296.

73
Os bacharéis em Direito contavam com a formação acadêmica voltada para a atuação
institucional e, ao longo do regime monárquico, conferiu-se à categoria a preferência ou quase
monopólio das funções da burocracia e de mando nas instituições políticas. Esse caráter
específico da formação jurídica no Brasil estava associado à origem de parte significativa dos
advogados, provenientes de famílias ou integrantes de redes constituídas por proprietários
rurais e negociantes influentes na economia e na política 17. Weber observou o crescimento da
atuação dos juristas na política partidária como o “controle dos grupos de interesse”. Segundo
ele, os juristas se destacaram na esfera política ao transpor o uso da palavra com o sentido de
causar efeito, prática de sua profissão, para os debates parlamentares e partidários. Diferente
dos funcionários públicos que não possuíam o treinamento para a argumentação e nem a
independência dos advogados, pois a função técnica tem como essência executar ordens18.
Os jovens deputados iniciantes possuíam em comum com os deputados experientes o
pertencimento às famílias com trajetória política consolidada ou o patrocínio de autoridades
de sua região e a atuação em jornais do partido político vinculado aos familiares. Era quase
um padrão para adentrar no Parlamento, lembrado por Afonso Celso de Assis Figueiredo
Junior, eleito como representante de Minas Gerais pelo Partido Liberal, assim como seu tio,
Carlos Affonso de Assis Figueiredo, nesta mesma legislatura, e que atribuía ao pai, o
Visconde de Ouro Preto, homônimo, sua inserção na carreira política:
Por si só, independente de qualquer patrocínio e auxílio, ninguém jamais, em parte
alguma, começou a vida pública. Que é uma candidatura séria? É aquela que foi
sugerida ou adotada por uma ou muitas influências locais ou gerais. Consiste nisso
mesmo os chamados elementos de um candidato, na estima e confiança que inspira a
correligionários e amigos, os quais tomam a iniciativa, ou resolvem sufragar o nome
dele.19

As regras eleitorais de 1881 beneficiaram os profissionais liberais, médicos,


professores, advogados, pois não estavam, pelo menos oficialmente, ligados ao governo e
dispunham dos quesitos estabelecidos pela reforma, a alfabetização e a comprovação de renda
ou de propriedade. Para profissão liberal adoto a definição utilizada por Coelho, “atividade
especializada que requer preparo através de treinamento formal ou nível superior, que encerra
prestígio social ou intelectual ou ambos, que é praticada de forma autônoma e cuja base de
conhecimentos é de natureza predominantemente técnica ou intelectual”. Segundo o autor, o

17 ADORNO, Sérgio. Aprendizes do Poder. O Bacharelismo Liberal na Política Brasileira. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1988, p. 159-160.
18 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1982,p. 115-116.

19 AFONSO, Celso. Afonso Celso de Assis Figueiredo. Oito anos de parlamento. Brasília: Senado
Federal, 1998, p. 19.

74
termo “profissionais liberais” já era empregado no século XIX, porém, não estava associado à
ideia de erudição, profissões “cultas”20.
Outro aspecto liberal da reforma era tornar o Legislativo mais independente do
Executivo, aumentando o rigor das incompatibilidades eleitorais sobre o funcionalismo
público, visando impedir o uso da máquina do Estado para coibir a liberdade do eleitorado.
Assim, a reforma se propôs a atacar as fraudes de cima para baixo, reduzindo as
possibilidades de candidatura de servidores estatais, especialmente magistrados, que exerciam
poder local. Segundo os grupos favoráveis, os empregados do Estado tendiam a votar com o
governo nos debates parlamentares; enquanto a plebe das cidades e dos campos elegia o
candidato indicado pelo chefe local, votando por ignorância ou por subordinação. Formava-se
um círculo vicioso englobando a influência dos Gabinetes sobre as autoridades provinciais,
que transferiam essa pressão para os chefes políticos locais, atuando, por fim, sobre os
votantes. Por sua vez, estes votavam nos eleitores indicados pelas influências locais, que
elegiam os candidatos a deputados apontados pelas autoridades provinciais, compondo uma
Câmara em números absolutos, ou quase, pelos deputados do partido que já ocupava o
Gabinete.
Considerando as ocupações ou profissões dos parlamentares, a composição da
Assembleia de 1881 sofreu redução considerável do número de funcionários públicos e a
eliminação de religiosos do quadro de deputados. A ampliação das incompatibilidades pela
reforma21 visava tornar o Parlamento menos suscetível à Coroa e aos ministros, pois menos
deputados derivados do funcionalismo significaria menor inclinação da Câmara em votar a
favor de projetos do governo contrários aos interesses de outros grupos de parlamentares.
Esperava-se que as restrições à candidatura do funcionalismo enfraquecessem o
potencial de influência sobre o eleitorado, exercido por cargos públicos de mando, como a
magistratura. Rui Barbosa havia ressaltado a importância das incompatibilidades em relação

20 COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais. Medicina, Engenharia e Advocacia no RJ. 1822-
1930. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 22-24.

21 Das Incompatibilidades. Art. 11 - Ficavam proibidos de ser votados para Senador ou Deputado
Provincial e Geral, em todo o Império, diretores de secretarias de Estado, os cargos de autoridade ou com
atribuições de Presidente de Província, Bispos, Juízes, Chefes de Polícia, Vigários. Art. 12 - “O funcionário
público de qualquer classe que perceber pelos cofres gerais, provinciais ou municipais, vencimentos ou
porcentagens ou tiver direito a custas por atos de ofícios de justiça, se aceitar o lugar de Deputado a
Assembleia Geral ou de membro de Assembleia Legislativa Provincial, não poderá, durante todo o período
da legislatura, exercer o emprego ou cargo publico remunerado que tiver, nem perceber vencimentos ou
outras vantagens, que dele provenham, nem contar antiguidade para aposentação ou jubilação, nem obter
remoção ou acesso em sua carreira, salvo o que lhe competir por antiguidade”. Decreto n. 3029 - de 9 de
Janeiro de 1881 - Reforma a legislação eleitoral. http://www2.camara.leg.br/

75
aos magistrados, ao defender o projeto da Reforma de 1881, “à magistratura, especialmente,
urge estender resolutamente esta medida. [...] Se o que temos em mente é acabar, entre o
poder judiciário e a administração, todos os liames que até hoje, praticamente, submetem o
magistrado ao ministro22”.
A movimentação dos parlamentares era delimitada pela hierarquia social
fundamentada na tradição, o Estado como entidade de preservação daquela ordem social e
econômica e no reconhecimento harmônico de identidades privilegiadas. Liberais e
conservadores se uniam no interesse comum da preservação das fronteiras sociais e da
verticalidade nas relações em transformação. Em especial concernente à escravidão, em que
cada reforma que lhe agregava direitos repercutia como questionamento da autoridade
tradicional e como enfraquecimento da submissão dos escravos e dos coadjuvantes desse
universo senhorial. Os deputados que apresentavam propostas no sentido de dar continuidade
a emancipação dos escravos, paralisada desde 1871, sofriam censuras por desconsiderarem o
trabalho e a propriedade como interesses de grupo. A reforma liberal da eleição direta teve
como finalidade resguardar para o futuro as distinções sociais presentes, restringindo a
participação política, garantia o recuo de direitos.

Dinâmica da Legislatura de 1881


A harmonia entre os dois partidos foi o ponto central nesta legislatura, em que o
Partido Conservador foi vitorioso dentro Parlamento, ao passo que o Partido Liberal o foi nas
urnas, como era esperado por se tratar de eleição sob Gabinete do Partido Liberal. O
eleitorado selecionado e a correção das distorções de resultados do pleito produziram uma
Câmara conservadora sob dois aspectos: o partidário, porque os conservadores foram eleitos
em número suficiente para obstaculizar o governo, o que fizeram em toda a legislatura. E
ideológico, porque as coalizões de conservadores e liberais demonstraram identificação de
ideias entre os dois partidos, cujos membros da dissidência liberal se uniam à minoria contra
as propostas do governo que afetavam seus interesses comuns. Deputados liberais
contribuíram para derrubar Gabinetes do próprio partido e se mostraram divididos sobre o
próprio programa partidário: alguns defendiam sua realização integral, outros divergiam
quanto à atualidade de algumas de suas reivindicações e o aprofundamento de outras,
especialmente sobre a reforma do trabalho servil.
Essa dinâmica, ou seja, as aproximações e os conflitos entre os partidos, pode ser

22 Anais da Câmara dos Deputados, 21 de junho de 1880.

76
demonstrada nas relações entre a Presidência da Câmara e o governo, este na figura da
Presidência do Conselho. Exemplificada pela renúncia de dois Presidentes da Câmara, Martim
Francisco Ribeiro de Andrada durante o Gabinete de Martinho Álvares da Silva Campos
porque este era antirreformista; e Antônio Moreira de Barros no Gabinete de Manuel Pinto de
Souza Dantas23, porque este trouxe de volta para a Câmara o debate sobre emancipação. As
divergências internas e ao mesmo tempo pluralidade de ideias abrigadas pelo Partido Liberal
também são evidenciadas nos diferentes perfis políticos dos Gabinetes organizados entre 1881
e 1884, Martinho Campos, Paranaguá, Lafayette Pereira e Manuel Dantas. Nessa relação
entre a Assembleia Geral e o governo, ressalta-se o desencontro de objetivos observados nos
quatro Gabinetes. Iniciando pela inclinação conservadora de Martinho Campos e sua postura
antirreformista; seguido pela determinação do Visconde de Paranaguá em implementar o
programa do Partido Liberal acima das resistências; substituído por Lafayette Pereira,
signatário republicano e sem apoio dentro seu próprio partido; e encerrado pelo “radicalismo”
de Manuel Dantas ao propor dar continuidade à emancipação dos escravos.
Destaca-se nesta legislatura a atuação da ala fluminense do Partido Conservador, o
núcleo duro do conservadorismo. A coesão do discurso desse grupo em especifico é
reconhecida pelo líder governista Martinho Campos que, sendo membro do Partido Liberal, se
identifica ao Partido Conservador, e exalta o apego do partido adversário às instituições
políticas da Monarquia e às relações sociais arraigadas pela tradição, visão de mundo que os
distinguem dos simples chefes locais:
Na província do Rio de Janeiro, felizmente para nós, essas entidades efêmeras nunca
puderam subsistir, nem durar. A influência é daqueles a quem a população lh’a dá, e
que pelos seus serviços, posição, fortuna e relações de família, são os chefes naturais
e legítimos das suas localidades, porque são as individualidades mais importantes
delas24.

Para ressaltar o aspecto conservador da reforma eleitoral de 1881, considero pertinente


analisar a origem social dos deputados, profissão, ligações pessoais e políticas e as influências
na sua trajetória partidária. Assim como a dinâmica dessa legislatura através das relações
entre Presidência do Conselho, presidentes da Câmara e parlamentares, e que destaca as
correlações de força sob a influência dos argumentos do Partido Conservador e como
afetavam o desempenho do governo do Partido Liberal. Com essa finalidade, selecionei
alguns temas que repercutiram junto à opinião pública, como o republicanismo, a
emancipação e a participação do Brasil na Comissão internacional para observação da

23 Deputados do Partido Liberal, eleitos pela província de São Paulo.


24 Anais da Câmara dos Deputados, 10 de março de 1882.

77
passagem de Vênus.
Os republicanos estavam cada vez mais presentes na Câmara dos Deputados,
elegendo-se através dos partidos imperiais, recurso conhecido pelos estudiosos do período, os
parlamentares se candidatavam como liberal ou conservador e após eleitos se declaravam
republicanos no Parlamento. Em contraste com o regime monarquista associado à inércia, a
República era difundida como progresso, entretanto, seus ideais expostos no parlamento se
revestiam de coloração conservadora. Tal concepção foi demonstrada pelo discurso de Afonso
Celso Jr., deputado do Partido Liberal, que se declarou “republicano conservador”, e
repudiava o voto universal e defendia o modelo de governo republicano acima das questões
sociais e privilegiando as camadas médias urbanas. Segundo ele, a emancipação deveria ser
solucionada com moderação e observando que não trouxesse prejuízos à economia e
preservasse a segurança dos “homens brancos”.
A preocupação do jovem deputado Afonso Celso Jr. em não afetar a tranquilidade dos
“homens brancos” resume as falas dos deputados sobre a emancipação, questão que
reapareceu através dos Gabinetes, seja pela recusa em inclui-la como programa de governo,
seja como tentativa frustrada de incluí-la. A política de emancipação foi retomada por Dantas
e as debates parlamentares sobre o projeto dos sexagenários evidenciaram a percepção sobre
propriedade escrava além do sentido de bem de capital. A propriedade escrava possuía
também o sentido simbólico que lhe conferia o conservadorismo, a posse do escravo
reafirmava o lugar social do proprietário. Esta se traduzia na visão dos senhores sobre o
escravo dócil como parte da intimidade da casa senhorial, uma representação da ordem social
considerada perfeita, criada a partir do espaço privado e que deveria se reproduzir no espaço
público.
Criticavam-se as interferências do Estado na relação privada senhor e escravo, ação
perturbadora do “laço” entre a família senhorial e o escravo. Pois, as medidas emancipadoras
incentivavam o escravo a perceber, fora da casa em que ele vivia, perspectivas de nivelamento
social em que o senhor não seria mais reconhecido como tal. Por isso, a libertação
exclusivamente pelas mãos do senhor garantiria a obediência inquestionável ao proprietário,
pois da mesma forma que a tradição assegurou a autoridade do senhor sobre o escravo, a
mesma tradição asseguraria, futuramente, a autoridade do patrão sobre os libertos.
Entre os temas debatidos nesta legislatura, vale a pena chamar atenção para os debates
sobre o pedido de crédito para que o Brasil tomasse parte na Comissão internacional para
observação do trânsito de Vênus, em 1882. O projeto foi levado à Câmara por Rodolfo

78
Epifânio Dantas, então Ministro do Império, que ressaltou a importância da participação do
país no evento, significando o reconhecimento internacional das pesquisas realizadas pelo
Imperial Observatório do Rio de Janeiro. A recepção negativa pelo Partido Conservador
sobre o pedido evidenciou a visão, pelos parlamentares, de descrença na atividade científica
no Brasil25. A pesquisa científica como investigação para expandir o conhecimento e não
utilitária era interpretada como desperdício de recurso financeiro. Os discursos contrários à
concessão de crédito ressaltaram sobre o Brasil que “não passamos de um país de plantadores
de café...”26, na fala de Domingos de Andrade Figueira, deputado conservador fluminense,
logo não deveríamos perder tempo com questões que não se voltassem para as atividades
agrícolas e problemas relacionados à infraestrutura, considerados concretos e úteis para a
realidade do país.

Considerações finais
A Lei Saraiva é ressaltada por seus aspectos liberais como a percepção sobre a
cidadania política como concessão do Estado aos indivíduos avaliados como socialmente
competentes, capacidade mensurada pela instrução e pela propriedade. No entanto,
perseguimos a hipótese de que tais ideias podem ser interpretadas como conservadoras
quando são discursos para a defesa da preservação de papéis e de posições sociais que
garantem as decisões políticas restritas à determinados grupos. Nesse sentido, a tradição
aparece como uma espécie de cimento das relações sociais, pois é ela que tende a definir os
lugares que serão ocupados pelas pessoas. Esta dinâmica ocorre através de indicações às
funções públicas administrativas e de apoios mútuos aos cargos eletivos na dinâmica interna
das relações privadas e entre as famílias, transformando as instituições políticas do Estado em
expressão das demandas de grupos. Conclui-se que as alianças e os conflitos no Parlamento
eram orientados pelas relações familiares, que se manifestavam nas indicações para o
ministério, nas decisões político-partidárias e nas manobras de apoio ou de rejeição aos
projetos do governo.

25 Este debate foi analisado na tese: Aguiar, Alexandra do Nascimento, “Têm todos os mesmos ares de
família...p. 221 e, posteriormente, a análise foi desenvolvida no artigo AGUIAR, Alexandra do Nascimento.
O “trânsito de Vênus”: a ciência entre a política e a vocação. Temporalidades, v. 9, n. 2, p. 88-106, 2017.
26 Anais da Câmara dos Deputados, 27 de março de 1882.

79
Fontes:

Anais da Câmara dos Deputados, 21 de junho de 1880.


Decreto n. 3029 – de 09 de Janeiro de 1881 - Reforma a legislação eleitoral
Gazeta de Notícias, 31 de outubro de 1881.
Anais da Câmara dos Deputados, 10 de março de 1882.
Anais da Câmara dos Deputados, 27 de março de 1882.

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_________. O “trânsito de Vênus”: a ciência entre a política e a vocação. Temporalidades, v.


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80
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81
Um periódico nos sertões:
as transformações no Brasil Central registradas pela revista brasília (1957-1960)

Alexandre Pinto de Souza e Silva 1

Resumo: O presente trabalho vem de um desdobramento da minha pesquisa de iniciação


científica iniciada na COC/Fiocruz, que foi encaminhada à monografia no curso de História, a
qual busca analisar a atuação do periódico brasília (1957-1960)2 durante o governo de
Juscelino Kubitschek (1956-1961). Logo no início de seu mandato, Kubitschek anunciou a
construção da nova capital no interior do país, tornando-a a meta-síntese do seu Plano de
Metas. Porém, o empreendimento estava longe de ser unanimidade, levando alguns de seus
opositores (como Gustavo Corção e Carlos Lacerda) a se manifestarem através da imprensa.
Com isso, surgia o periódico brasília, cujo objetivo era de mostrar as transformações que
modificavam e reorganizavam o espaço urbano nos sertões do Brasil e construir o simbolismo
de um “novo” Brasil que estava surgindo com a nova capital.

Palavras-chave: Brasília, desenvolvimento, periódico.

Abstract: The presente work comes from of my reasearch in scientific initiation that has
begun in COC/ Fiocruz and was sent to my undergraduate thesis in History course, which
seeks to analyze the role of the periodical brasília (1957-1960)3 during the government
Juscelino Kubitschek (1957-1960). Early in his term, Kubitschek anounced the construction
of the new capital in the interior of the country, making it the meta-synthesis of his Plano os
Goals. However, the venture was far from unanimous, leadins some of it opponents (such as
Gustavo Corção and Carlos Lacerda) to express themsleves through the press. This led to the
publication came the brasília magazine, whose goal was to show the transformations that
modified and reorganized urban space in Brazilian backlands and to construct the symbolism
of a “new” Brazil that was emerging with the new capital.

Key-words: Brasília; development; periodic.

1 Graduando do 9º período de bacharelado e licenciatura do curso de História pela Universidade


do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com monografia orientada pelo professor Carlos Eduardo Pinto de
Pinto. Bolsista do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz (Depes/COC/Fiocruz) financiado
pela Faperj, sob orientação da pesquisadora e presidente da Fundação Oswaldo Cruz Nísia Trindade Lima e
co-orientado pelas professoras Tamara Rangel Vieira e Alejandra Josiowicz pelo período aproximado de dois
anos (março de 2015- ). Especialista nas áreas de História da Saúde, História Contemporânea e História do
Brasil, com ênfase em Brasil República. E-mail: alexandrepisosi@gmail.com.
2 Está sob a guarda da Biblioteca Nacional e disponível no site do Senado Federal.
3 It is under the custody of the Biblioteca Nacional and available on the website of the Federal
Senate.

82
Introdução

O final dos anos 1950 foi marcado por fortes mudanças que iam de acordo com a
perspectiva progressista do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961),
que de acordo com Vânia Maria Losada Moreira4 tinham o intuito de tornar o Brasil, “um
gigante adormecido”, em uma nação próspera. Desde que era prefeito de Belo Horizonte
(1940-1945), Kubitschek já configurava seu perfil político, mas foi em sua campanha à
presidência da República que se consolidava no chamado nacional-desenvolvimentismo 5 que
imbricava num projeto social e político para o Brasil, cujos traços essenciais eram o
compromisso com a democracia e com a intensificação do desenvolvimento industrial. Daí
surge seu slogan “cinquenta anos em cinco”, que sintetizava sua política de desenvolvimento
nacional.

Para acompanhar seu slogan, JK projetou um Plano de Metas6 que visou aprofundar o
processo de industrialização a partir de investimentos privados do capital nacional e
estrangeiro, bem como os investimentos estatais. Segundo Moreira, o presidente cumpriu suas
obrigações e seus resultados na economia foram notáveis, tais como: mais empregos, mais
trabalhadores urbanos, mais produtos de consumo, construção de hidrelétricas e estradas e a
instalação da indústria automobilística no país. Dentre estas metas estava a construção de
Brasília, incorporada após assumir a presidência, que era considerada a meta-síntese de seu
governo. O objetivo do empreendimento era de integrar as diversas regiões do país, se
situando no Brasil Central, assim como desenvolver essa região através do progresso. Nesse
período, o interior brasileiro, ou sertões7, se encontrava num forte contraste com o litoral.
Segundo Nísia Trindade Lima 8, a cidade (ou litoral) esteve associada à liberdade, enquanto
que o campo (ou sertão) esteve associado ao atraso e ao conservadorismo.

Na tentativa de transferir o poder central para o interior, Kubitschek buscava inserir as

4 MOREIRA, Vania Maria Losada. “Os anos de JK: industrialização e modelo oligárquico de
desenvolvimento rural”. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil
Republicano – O Tempo da experiência da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. p. 158.
5 Ibidem, 2003. p. 170.
6 Constitui num programa de 30 metas, distribuídas nos setores de energia, transporte,
alimentação, indústria de base e educação Cf. MOREIRA, Vania Maria Losada. op. cit. p. 159.
7 Pois não havia um único local que pudesse ser reconhecido como “sertão”. Naquela época,
regiões como a Amazônia, o Cerrado goiano, o interior do Nordeste e até os subúrbios cariocas eram
conhecidas como “sertões” pela falta de infraestrutura e de poder público.
8 LIMA, Nísia Trindade. Campo e cidade: veredas do Brasil moderno, In: Botelho,
André e Schwarcz, Lilia (Orgs.). Agenda Brasileira: Temas de uma sociedade em mudança. São Paulo. Cia das
Letras, 2011.

83
populações sertanejas no projeto de nação ao levar aspectos “civilizatórios” para estas regiões.
De acordo com Nísia Trindade, é pertinente pensar a urbanização do sertão como um
instrumento para a criação de um projeto de nacionalidade, como ela mesma enfatiza:
“projetos de transferência da capital para o interior, ou sertão, constituem-se, ao mesmo
tempo, em projetos de nação e trazem um sonho feliz de país e de cidade”9. Aqueles que
acreditavam no movimento mudancista achavam possível pensar na modernização de regiões
distantes e negligenciadas pelo poder público, o qual passaria a estar próximo das mazelas
presentes nos sertões após a concretização da transferência. Assim, a diátese social presente
na sociedade poderia ser resolvida eliminando os traços do subdesenvolvimento no Brasil,
visto que maior parte da população naquele período ainda se configurava no meio rural.
Segundo Tamara Rangel Vieira, “julgava-se ser possível reformar o homem sertanejo através
do saneamento das áreas rurais, assoladas por inúmeras doenças e vítimas do descaso e
abandono por parte do poder público”10. Além disso, de acordo com Paulo Fagundes
Vizentini, isso era uma forma do país ser incluído no ramo dos países desenvolvidos por meio
de uma política externa que “não era mais essencialmente a busca de uma aproximação
privilegiada com os Estados Unidos”11, como na era Vargas, mas de uma autossuficiência para
produzir as próprias riquezas.

No entanto, apesar das transformações serem fundamentais para a formação da


nacionalidade, o projeto de construção da então futura capital ainda estava longe de ser
unanimidade. O movimento conhecido como “anti-mudancista” era composto pela grande
mídia, com personalidades como Gustavo Corção (1896-1978)12 e Assis Chateubriand (1892-
1968)13, e ainda contava com o apoio do maior partido da oposição na época: a União
Democrática Nacional (UDN). Segundo Moreira, a “legenda combatia ostensivamente a
herança política e ideológica de Getúlio Vargas” e via a política de Kubitschek como herdeira
do chamado “getulismo”14. Maria Victoria Benevides15 destaca que antes mesmo de assumir,

9 Idem, 2010. p. 18.


10 VIEIRA, Tamara Rangel. Brasília: uma clareira aberta nos sertões do Brasil – o papel dos
médicos e higienistas na construção da nova capital (1956-1960). Londrina, ANPUH – XXIII Simpósio
Nacional De História, 2005. p. 2.
11 VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. “Do nacional-desenvolvimentismo à Política
Externa Independente (1945-1964)”. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O
Brasil republicano – O Tempo da experiência democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de
Janeiro, Ed: Civilização Brasileira, 2003. p. 197.
12 O maior intelectual da direita católica brasileira Cf. LOPES, Cristiano Aguiar. op. cit. p. 2.
13 Dono do maior conglomerado de comunicações já visto do “lado de cá do Equador”, que
incluía a revista Cruzeiro e a TV Tupi Cf. LOPES, Cristiano Aguiar. op. cit. p. 2.
14 Cf. MOREIRA, Vania Maria Losada. op. cit. pp. 155-194.

84
Kubitschek já era alvo da “virulenta oposição udenista” e, por isso, os udenistas tentaram
impedir a posse do presidente e de seu vice, João Goulart. Dentre os principais nomes da
legenda estava Carlos Lacerda, que tinha um jornal próprio para se manifestar contra o
governo de Juscelino, chamado Tribuna da Imprensa (1956-1960). Lacerda foi o mais
ferrenho crítico à construção de Brasília e já em 1955, antes mesmo de JK assumir, publicava
artigos, reportagens, charges e editoriais contrários à mudança.

Como Maria Beatriz Capello 16 nos afirma, através de uma documentação fotográfica
(urbanismo, arquitetura, estradas etc), relatos e depoimentos de intelectuais e políticos a
revista brasília mostra como a construção da nova capital foi acompanhada passo a passo,
divulgando a criação dos primeiros lotes, a criação das primeiras casas populares e
estabelecimentos comerciais, bem como as Atas do conselho da empresa que administrava as
obras e suas reuniões. Mas para além disso, segundo Tânia Regina de Luca 17, os periódicos
não podem ser tratados como “meros ‘veículos de informações’, transmissor imparcial e
neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere”. No
que diz respeito ao objeto de pesquisa, essa metodologia enfatiza a necessidade de um olhar
crítico visto que brasília servia também, segundo Luisa Videsott, para “afrontar e
contrabalançar as informações divulgadas pela oposição ao governo de Juscelino
Kubitscheck”18.

A revista brasília e a nova capital


Para a construção da meta-síntese de seu governo, Juscelino Kubitschek criou a Lei de
número 2.874. Segundo o Dr. Ernesto Silva (1914-2010)19, esta lei determinou a formação de

15 BENEVIDES, Maria Victoria. “O governo Kubitschek: a esperança como fator de


desenvolvimento”. In: GOMES, Angela de Castro (org.). O Brasil de JK. Editora FGV, Rio de Janeiro, 2ª edição,
2002. p. 24.
16 CAPELLO, Maria Beatriz Camargo. “A revista Brasília na construção da Nova
Capital: Brasília (1957-1962)”. In: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, Programa de
Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (EESC-usp), 2010.
17 LUCA, Tânia Regina de. “Histórias dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 118.
18 VIDESOTT, Luisa. “Informações, representações e discursos acerca das arquitetura-
ícones de Brasília: o caso da revista ‘Brasília’”. São Carlos, Programa de pós-graduação do departamento de
arquitetura e urbanismo/ EESC-USP, 2010. p. 2.
19 Médico especializado em pediatria, antes de assumir o departamento de saúde e educação da
Novacap (1956) foi um dos pioneiros da transferência da capital ocupando o posto de secretário da Comissão
de Localização da Nova Capital do Brasil (1953/1955), chefiada pelo Marechal José Pessoa, e presidente
Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal (1956). Em 1956 foi o
responsável por assinar o edital do Plano Piloto de Brasília. Disponível em:

85
uma sociedade responsável pela transferência da capital, denominada Companhia
Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), em 19 de setembro de 1956, no Rio de
Janeiro, que autorizou o Poder Executivo a tomar inúmeras providências com o intuito de
acelerar a construção da cidade no Planalto Central20. Ainda segundo Silva, a Novacap seria
uma tentativa de o governo construir a capital dentro dos cinco anos de mandato de JK,
evitando a questão burocrática que poderia atrasar o andamento da obra 21. Presidida por Israel
Pinheiro (1955-1960)22, a companhia serviu, inicialmente, para abrir caminho à expansão de
meios de comunicação e transportes para o interior, depois veio a ser encarregada de gerenciar
as obras de construção da capital.
No mesmo ano, como consequência do art. 19 da mesma Lei de número 2.874,
sancionada pelo presidente, foi estatuída a obrigatoriedade da companhia de divulgar por
meio de um boletim mensal os Atos Administrativos da Diretoria da Companhia e os
contratos por ela celebrados. Aproveitando o bojo de criar um veículo de divulgação, os
diretores da Novacap viram uma oportunidade de mostrar a concretização da transferência da
capital por meio de uma revista ilustrada. A partir dos anos 1940, as revistas ilustradas eram
novas formas de se divulgar a informação, pois “dispuseram de um novo poder de persuasão
decorrente do uso maciço da comunicação visual” 23. Nesse ramo, de acordo com Ivete Batista
da Silva Almeida24, a revista O cruzeiro (1928-1975) despontava por ter iniciado este gênero
pioneiro no Brasil, no qual “a revista passa a utilizar a fotografia como suporte visual para o
jornalismo e reportagens de toda sorte. Iniciava-se a era do fotojornalismo”25.

Sendo assim, no ano seguinte cria-se a revista ilustrada brasília (1957-1960) que passa
a ser publicada pela Novacap através de uma parceria com a Bloch Editores, a mesma que
naquele período fazia a revista Manchete (1952-2000)26. O periódico era sediado no Rio de
Janeiro e também tinha Paulo Rehfeld como seu editor-chefe nos quatro primeiros números,

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Ernesto_Silva> Acesso em: 8 de nov. 2017.


20 SILVA, Ernesto. Ernesto Silva: o militante da esperança e a História de Brasília.
Brasília, Editora de Brasília, 2004, p. 68.
21 SILVA, Ernesto. op. cit. p. 68.
22 Anteriormente foi o primeiro presidente da companhia Vale do Rio Doce (1942-1945), foi
deputado federal por Minas Gerais (1946-1961), logo após a inauguração da nova capital se torna o primeiro
prefeito do Distrito Federal (1961-1962) e depois torna-se governador de Minas (1966-1971), durante o
período militar. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Israel_Pinheiro> Acesso em: 8 de nov. 2017.
23 Cf. VIDESOTT, Luisa. op. cit. p. 30.
24 ALMEIDA, Ivete Batista da Silva. Uma nova forma de ver o mundo: as revistas
ilustradas semanais. Uberlândia, Fatos&Versões, v. 3, n. 6. p. 38-56, 2011. p. 48.
25 Ibidem, p. 48.
26 Revista de informação de massa, com oposições em defesa da capital. Cf. VIDESOTT, Luisa.
op. cit. p. 33.

86
mas que depois foi substituído por Raimundo Nonato Silva (1918-2014) que ocupou a função
até 1961. Nonato foi convidado a participar do processo de divulgação da revista pela sua
experiência como jornalista e também pela forte proximidade com Ernesto Silva. Com
exceção dos quatro primeiros números, cuja distribuição ocorria gratuitamente, o periódico
era vendido a um preço de dez cruzeiros, o mesmo que o da revista O cruzeiro (1928-1975),
mas um fato interessante é que até 1960 brasília manteve o mesmo preço, enquanto que a O
cruzeiro era vendida por 20 cruzeiros.

O primeiro número passou a circular a partir do dia 18 de fevereiro de 1957, que de


acordo com Beatriz de Feijó Medeiros27, a edição contou com uma tiragem de 10.000
exemplares28. Mas, segundo Cristiano Lopes Aguiar29 o número de exemplares de outros
periódicos da época era superior ao de brasília, como Diário de Notícias (90.000 exemplares)
e o O Globo (100.000 exemplares) 30. Já José Estevam Gava nos traz outro periódico daquele
período, a revista O cruzeiro, que por sua vez contava com uma tiragem de 550.000
exemplares31. O período foi mapeado entre janeiro de 1957 até dezembro de 1960, mas as
suas publicações persistiram até 196432 com meses compilados em um único número. Depois
ainda ocorreram mais algumas publicações, entre 1965 e 1967 com um número especial por
ano (números 65, 66 e 67) e, depois de um intervalo, ela é retomada em 1988 com outras duas
edições (números 82 e 83). De acordo com Medeiros, a revista inicialmente não tinha um
número fixo de páginas, alguns meses mais tarde passou a ter algo em torno de 24 páginas por
edição a partir do número oito (agosto de 1957) e os seus assinantes eram em grande parte
escolas, bibliotecas, universidades e embaixadas 33.

Graficamente, a revista também contava com um grande acervo iconográfico que


acompanhava o passo a passo, desde os primeiros momentos quando não havia prédios até o
acabamento de monumentos e prédios do governo. O número 5, maio de 1957, não contou

27 MEDEIROS, Beatriz Feijó de. A revista ‘brasília’ e a mitificação da nova capital – como a
revista ajudou na construção da imagem de ‘a capital da esperança’. Brasília: UnB, Monografia apresentada
para conclusão do curso de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário de Brasília, 2012, p. 27.
28 Dado que se manteve assim até a edição de número 25, quando passou a publicar 20.000
exemplares. Cf. MEDEIROS, Beatriz Feijó de. op. cit. p. 27.
29 LOPES, Cristiano Aguiar. A loucura de Brasília: o antimudancismo nas páginas do
jornal Tribuna da Imprensa (1956-1960). Fortaleza, VII Encontro de História da Mídia, 2009. p. 5.
30 RIBEIRO, 2007 apud LOPES, 2009, p. 5.
31 GAVA, José Estevam. O momento Bossa Nova: arte, cultura e representação sob os
olhares da revista ‘O cruzeiro’. São Paulo, UNESP/ Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de
Ciências e Letras, 2003. p. 50.
32 Quando teve o Golpe militar que cancelou a revista.
33 Cf. MEDEIROS, Beatriz Feijó de. op. cit. p. 26.

87
apenas com o ingresso de um novo editor-chefe, mas também com um novo responsável pela
parte gráfica de layout: o arquiteto brasileiro Artur Lício Pontual34. Com nova diagramação e
projeto gráfico, o objetivo seria atrair mais leitores pois, segundo Nonato, “os atos escritos em
linguagem oficial não chamavam atenção”35. Várias feições da revista ganharam um novo
aspecto, as fotos passaram a ter um destaque ainda maior nas publicações e as fontes do nome
“brasília” de garamond cursivo, típico dos anos 1940, passou a ser um arial black, mais
redondo e mais “moderno”36.

A revista também tinha propagandas no final de cada edição, com imagens do Plano
Piloto e usando palavras como “bandeirantes” e “pioneiros” para convencer as pessoas de
comprarem os lotes na então futura capital. Além disso, podemos usar as capas dos três
primeiros números (janeiro, fevereiro e março) para exemplificar a evolução de um novo
olhar sobre a região onde seria a nova capital. De acordo com Capello, a primeira capa, de
janeiro de 1957, mostra uma imagem panorâmica do quadrilátero Cruls 37, com uma estrela
apontando o local específico onde será feita a nova capital. A segunda capa, de fevereiro de
1957, inclui uma representação estilizada de Niemeyer da área de Brasília, com o grande lago
que iria se formar pelo represamento do rio Paranoá. O desenho se repete na capa do número
3, de março de 1957, com um adicional: o projeto do Plano Piloto de Lúcio Costa38.

O número 5, foi um número especial, abordando o tema da primeira missa celebrada


em Brasília pelo Cardeal-arcebispo de São Paulo D. Carmelo de Vasconcelos Mota no dia 3
de maio de 1957. Nesta edição, a revista coletou algumas repercussões do evento em outros
jornais. No jornal A Gazeta (1906-1979)39 foi publicada uma matéria, chamada “Auspiciosa
evocação” 40, que fazia uma associação entre a primeira Missa na Terra de Vera Cruz com a
primeira missa em Brasília, visto que a partir da fé cristã Portugal tomou posse desse território
que viria a ser o Brasil. Nesse sentido, a missa seria um retrato de união de um povo, bem

34 Ele já foi do conselho diretor da revista Módulo (editada por Oscar Niemeyer e fundada em
1955 permanecendo até 1965, após o Golpe militar, e em seguida retomada se mantendo de 1975 até 1989) e
também já foi correspondente da L’Architecture d’Aujourd’hui. Cf. CAPELLO, Maria Beatriz. op. cit. p. 46.
35 MONTENEGRO, Erica. “Arquivo Público relança Brasília”. Metro. Brasília, 11 set.
2012, p. 6.
36 Cf. VIDESOTT, Luisa. op. cit. p. 34.
37 Demarcado pela Comissão Cruls (1892-1896), numa área de 14400 quilômetros quadrados
prevista para o Distrito Federal, era considerado propício para transferir a capital. Cf. CAPELLO, Maria
Beatriz. op. cit. p. 44.
38 Imagens disponíveis no Anexo deste documento.
39 Jornal vespertino fundado por Adolfo Araújo Campos (1873-1915), em São Paulo, com
posicionamento político e tratava de assuntos como economia, literatura e cultura. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Gazeta_(S%C3%A3o_Paulo)> Acesso em: 8 de nov. 2017.
40 GAZETA, A. “Auspiciosa evocação”. brasília, Rio de Janeiro, n. 5, vol.1, 1957, p.16.

88
como da tomada do território, que no caso do Brasil Central havia sido pouco penetrado pelo
poder público. Isto nós podemos ver no seguinte trecho destacado:

Revestiu-se de particular significado a celebração da Primeira Missa


em Brasília, a nova Capital do país. No mesmo dia em que, há 457
anos, Frei Henrique de Coimbra selou, com a elevação da Cruz e a
Primeira Missa, a posse da Terra de Santa Cruz para a coroa de
Portugal e para as conquistas da civilização cristã. Brasília, a nova
Capital, não podia ter outra cerimônia a integrá-la na comunhão
nacional como a primeira de suas unidades municipais 41
Algumas colunas frequentes também utilizavam a parte gráfica, como é o caso da
coluna “Arquitetura e Urbanismo da Nova Capital”42, gerenciada por Oscar Niemeyer, que
mostrava todo o projeto de modernidade da capital e seus traços marcantes através de
maquetes e esboços. Logo na sua primeira edição, em março de 1957, mostra a premiação do
projeto de Lúcio Costa para ser o Plano Piloto e as premiações dadas aos demais projetos que
estiveram entre os melhores. Conforme as obras iam sendo concretizadas, a coluna foi
desaparecendo com publicações irregulares e na edição de número 35, de 1959, passa a ser
retirada da revista.

Além de “Arquitetura e Urbanismo da Nova Capital”, a revista também contava com


outras colunas frequentes, como “noticiário”43, responsável pelas notícias recorrentes na
capital (como visitas de chefes de Estado, andamento das obras, eventos realizados pela
Novacap, opiniões sobre a transferência e entre outras novidades), o “Boletim”44, criado para a
divulgação das Atas e reuniões, a coluna “Brasília na literatura”45, com poemas ou obras
literárias que enalteciam o processo de mudança, e “Marcha da construção de Brasília”46, que
mostrava o andamento das obras, como estradas, prédios e visitas de políticos na região onde
a nova capital estava sendo construída. A coluna “Brasília no exterior”47 era responsável por
mostrar as opiniões de pessoas, chefes-estado e órgão de governo que opinavam sobre a
capital.

Sem um título fixo, diversos profissionais (médicos, cientistas sociais, engenheiros,


arquitetos, políticos etc) engajados com a construção publicavam seus artigos, depoimentos e

41 Ibidem.
42 Esta coluna aparece em 18 edições (1957-1959).
43 Apareceu em 38 edições (1957-1960).
44 Apareceu em 39 edições (1957-1960).
45 Apareceu em 13 edições (1957-1960).
46 Apareceu em 26 edições (1957-1959).
47 Apareceu em 12 edições (1957-1959).

89
discursos defendendo o movimento mudancista. Logo na primeira página da edição de janeiro
de 1957 o presidente Juscelino Kubitschek 48 deixa registrado o seu discurso, sob o título “A
mudança da capital”, direcionado aos críticos do movimento, mostrando que seu governo fora
capaz de cumprir a transferência de acordo com o que a Constituição de 1891 já prescrevia.
Podemos ter esse pensamento a partir do seguinte trecho destacado:

Quero abordar aos meus patrícios o problema da mudança da capital


para Brasília. Conheço as críticas aos trabalhos que vêm sendo feitos
pelo meu govêrno para transformar em realidade a determinação da
Constituição de transferir a Capital para o Interior do país. Não sou o
inventor de Brasília, mas no meu espírito se arraigou a convicção .de
que chegou a hora, obedecendo ao que manda a nossa Lei Magna, de
praticarmos um ato renovador, um ato político criador, um ato que,
impulsionado pelo crescimento nacional a que acabo de me referir,
vira promover a fundação de uma nova era para a nossa pátria 49.
Além dele, Israel Pinheiro 50 também deixa seu olhar registrado na revista. O periódico
teve um número comemorativo pela transferência na edição de número 40, em abril de 1960,
quando teve a inauguração da capital. Segundo o presidente da Novacap, em seu texto
“apresentação”, a nova capital era a meta-síntese de um desafio de homens públicos, cujo
governo optava por uma renovação nacional e representaria “a marcha para o domínio e a
civilização de uma imensa região que o Brasil litorâneo insistia em ignorar”51. Outro que
também registrou sua experiência na capital foi Oscar Niemeyer 52, elogiando o trabalho do
presidente Kubitschek bem como a inovação arquitetônica da nova capital. Em seu texto
“Minha experiência sobre Brasília”, na edição de julho de 1960, o arquiteto diz que os prédios
de Brasília proporcionam aos visitantes uma sensação de surpresa e emoção, bem como são
capazes de sintetizar “uma beleza plástica que atua e domina com uma mensagem permanente
de graça e poesia”53. Ainda sobre a transferência, o cientista social Gilberto Freyre 54 também
registra sua opinião, em seu texto na coluna “noticiário”, na edição de novembro de 1959,
indicando que:

48 KUBITSCHEK, Juscelino. A mudança da capital. brasília, Rio de Janeiro, n.1, vol.1, 1957. p.
1.
49 Ibidem.
50 PINHEIRO, Israel. apresentação. In: brasília. Rio de Janeiro, Bloch Editores, número 40, vol.
4, 1960. p. 2.
51 Ibidem.
52 NIEMEYER, Oscar. “Minha experiência sobre Brasília”. brasília. Rio de Janeiro, Bloch
Editores, número 43, vol. 4, 1960. p. 3.
53 Ibidem.
54 FREYRE, Gilberto. “noticiário”. brasília. Rio de Janeiro, Bloch Editores, número 35, vol. 3,
1959, p.17.

90
Brasília é de certo um esfôrço (sic) que honra a capacidade de
realização dos homens públicos, dos administradores, dos arquitetos,
dos urbanistas, dos educadores, dos técnicos e dos operários neles
empenhados com um fervor que, em alguns, chega a ser um favor
místico ou religioso 55.

As críticas contra a mudança

Na revista brasília, como foi dito anteriormente, tinha todas as suas críticas contra os
anti-mudancistas, ou seja, com posições favoráveis à mudança. Mas, como foi dito no início,
Brasília não foi uma unanimidade e para encontrar essas divergências são recorridos outros
jornais e revistas que seguiam ideologias opostas as do presidente. O maior de seus opositores
era Carlos Lacerda (1914-1977), udenista que defendia a permanência da capital no Rio
através de seu jornal Tribuna da Imprensa (1949-2008)56. Segundo Cristiano Aguiar Lopes, o
jornal se utilizava de artigos, reportagens, charges e editoriais que não poupavam críticas à
construção de Brasília desde 1955 (antes do projeto começar de fato) e vai perdurar até 1960,
quando serão transformadas em matérias diárias 57. Até nas vésperas da inauguração, o jornal
mostrava uma série de reportagens expondo as condições precárias da construção de Brasília.
Ainda de acordo com Lopes, o jornal gozava de um hiato, entre o fim do Estado Novo e o
Golpe militar, que correspondia a um período de grande liberdade de expressão.

A Tribuna tinha uma tiragem de 40.000 exemplares58 no seu ápice, em 1955, e ao


longo dos anos os números seguintes estiveram voltados a atacar o governo de Juscelino
Kubitschek, chegando ao ponto de ser desrespeitoso, “afinal, não é todo dia que vemos um
presidente da República retratado como um rato em uma charge”59. Lacerda dizia que JK
“sequer era um presidente democraticamente eleito”60, afirmando em seu jornal, na coluna
“Otimismo: o Nosso e da Camorra”61, que “o Sr. Kubitschek faz datar a confiança no Brasil
da sua ascensão, pelas armas e pela fraude, à presidência da República”62. Com o acúmulo de

55 Ibidem.
56 No Correio da Manhã, Lacerda tinha uma coluna chamada “Tribuna da Imprensa” criada por
ele em 1946. Ao ser demitido em 1949, Lacerda funda seu próprio jornal, também no Rio de Janeiro, mas
com o mesmo nome da coluna.
57 Cf. LOPES, Cristiano Aguiar. op. cit. p. 3.
58 Ibidem, p. 5.
59 Ibidem, p. 4.
60 Ibidem, p. 4.
61 Ibidem, p. 4.
62 LACERDA, Carlos. “Otimismo: o Nosso e o da Camorra”. Tribuna da Imprensa, Rio de
Janeiro, 29 dez. 1958, p. 4.

91
dívidas, a partir de 1961 o jornal entra em derrocada, que ainda se manteve mesmo com a
morte de seu fundador, em 1977, mas não resistiu e fechou as portas em 2008.

Outro representante do conservadorismo antimudancista foi Gustavo Corção (1896-


1978), membro da UDN e pensador católico brasileiro. De acordo com Cristiane Jalles de
Paula63, Corção criticava a “perspectiva reducionista que associava progresso à mudança da
capital”, que em sua concepção “a escolha da localização de uma capital era produto da
história de determinada sociedade”, caso contrário estaria fadada ao fracasso sendo uma
cidade sem história. Para ele, o Rio ocupava o status de capital desde a época colonial, o que
justificava sua posição. O outro ponto apontado por Corção foi o argumento para a
transferência para o Planalto Central, que não se justificava por esta ser um preceito
constitucional. Para ele, a política de JK era comparada a “mentalidade desvirtuada” de
Getúlio Vargas, reflexo de uma elite “ignorante da tradição, corrupta, corruptora, adepta de
planos caprichosos voltada apenas a interesses próprios”64.

Corção ainda tinha um capital simbólico devido a sua formação como engenheiro de
telecomunicações, inclusive foi um dos fundadores do curso na Universidade do Brasil, o que
dava a ele autoridade para opinar sobre a construção das obras gerenciadas pela Novacap. Os
enormes gastos, a viabilidade técnica e o pouco controle dos recursos despertava o ceticismo
nas pessoas sobre a conclusão das obras. Num de seus pronunciamentos, Corção diz: “Sei que
não se fará em abril de 1960 a mudança da capital da República, se por mudança de capital
entendemos a instalação das casas do Congresso e das famílias dos congressistas”65. Sobre a
rede de telefonia, especialidade do crítico, ele aponta dois equívocos da rede telefônica de
Brasília:

O primeiro é o do equívoco lançado sobre a opinião pública. Centenas


de pessoas saudosas passaram o dia e a noite pedindo ligações para
Brasília. A Companhia Telefônica Brasileira viu-se forçada a publicar
um anúncio (no jornal O Globo) dizendo que ainda não existe o
circuito em serviço normal. O segundo é mais grave. Em certa altura
da conversação, o sr. Israel Pinheiro disse que a partir de 25 do
corrente é só discar 01, pedir Brasília, teremos comunicações com a
mesma facilidade com que temos para Petrópolis ou Ilha do
Governador66.

63 PAULA, Christiane Jalles de. Contra Brasília: a campanha de Gustavo Corção à construção da
nova capital. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. p. 1.
64 Ibidem, p. 2.
65 Ibidem, p. 3.
66 Ibidem, p.4.

92
Outro jornal na linha contra o mudancismo é o Correio da manhã (1956-1969),
sediado no Rio de Janeiro, mostrando as CPIs em torno da construção. Segundo Marcos
Magalhães67, na edição de maio de 1959, o jornal noticiou o requerimento de Carlos Lacerda
para apurar os negócios da Novacap. O processo envolvia analisar os recursos materiais e
financeiros utilizados para a construção da cidade, bem como os contratos de construções de
prédios públicos e privados. Por conta de informações “desencontradas” o processo não foi
assinado por não conseguir reunir a quantidade de assinaturas necessárias68.

Conclusões parciais

A criação de uma nova imagem para o país partia do governo, na perspectiva de


romper com a noção de subdesenvolvimento carregada pelos sertões, que naquele período era
predominante no território nacional. A transferência da capital para regiões “esquecidas” pelo
poder público estaria vinculada com a crença no Brasil como “país do futuro”, bem como a
consolidação da “identidade nacional” e o possível equilíbrio entre “os dois brasis”69. Desse
modo, as populações sertanejas deixariam sua condição de esquecimento e partiriam rumo a
um “novo Brasil” inserido no projeto de nacionalismo por meio do progresso. O
desenvolvimento estaria atrelado à modernidade representada na capital do país, podendo ser
notada nas linhas arquitetônicas dos prédios, e na localidade geográfica, o que integraria todas
as regiões do país.

No bojo de querer mudar o país também foi recorrido ao uso de veículos capazes de
exercer influência na opinião pública naquele momento, uma ferramenta aderida por todos os
lados do conflito ideológico entre mudancistas e antimudancistas. O uso das revistas
ilustradas era recorrente na transmissão de seus ideais, o que se encaixa na lógica de
Bronislaw Baczko70, defendendo que “situações conflituais (sic) entre poderes concorrentes
estimulavam a invenção de novas técnicas de combate no domínio do imaginário”. Ainda
segundo o autor, a criação de simbolismos seria uma estratégia de conseguir adesões por meio
da “constituição de uma imagem desvalorizada do adversário, procurando em especial

67 MAGALHÃES, Marcos. A mudança da capital no Legislativo brasileiro, 1956-1960. brasília,


a.47, n.187, jul./set. 2010. p. 189.
68 Ibidem.
69 Cf. BENEVIDES, Maria Victoria. op. cit. p. 22.
70 BACZKO, Bronislaw. “A Imaginação Social”. In: LEACH. Edmund et alii. Anthropos-
Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 300.

93
invalidar a sua legitimidade”71. Portanto, a concorrência pelo domínio parte da coletividade,
que através de imagens busca impregnar “valores e fortalecer sua legitimidade”72.

Nesse sentido, o contexto de construção da capital favoreceu um campo de opiniões


onde se destacaram personalidades com interesses em trazer símbolos coesos com seus
interesses. Kubitschek e os demais colaboradores da revista brasília estiveram empenhados
em divulgar uma imagem moderna da nova cidade e trazê-la para a realidade do que seria o
país futuramente. No entanto, setores mais conservadores da mesma sociedade acreditavam
que a mudança não seria vantajosa, que já estava consolidada no litoral do país. Assim, vemos
que o olhar tendencioso de transmissores de informação tem que ser visto de forma crítica,
cujo olhar unilateral sobre um determinado fato pode acarretar em equívocos durante a
pesquisa.

71 Ibidem.
72 Ibidem, p. 302.

94
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semanais. Fatos&Versões, Uberlândia: v. 3, n. 6. p. 38-56, 2011.

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95
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96
Anexos
Imagem 1

(Referência: BRASÍLIA, Volume 1, Número 1, janeiro de 1957)


Imagem 2

(Referência: BRASÍLIA, Volume 1, Número 2, fevereiro de 1957)

97
Imagem 3

(Referência: BRASÍLIA, Volume 1, Número 3, março de 1957)

98
O Anticomunismo Católico entre os séculos XIX e XX

Allan Felipe Santana Fernandes1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o discurso anticomunista proposto pelo
Magistério da Igreja Católica entre os séculos XIX e XX. Esta pesquisa se dedica a discutir o conceito
de anticomunismo à luz da doutrina católica e exemplificar esta discussão por meio de encíclicas
importantes para a Doutrina Social da Igreja, tais como a encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa
Leão XIII, e a Divini Redemptoris (1937), do Sumo Pontífice Pio XI.

Palavras-chave: Anticomunismo católico; Magistério da Igreja; Doutrina Social da Igreja.

Abstract: The present work aims to analyze the anticommunist discourse proposed by the
Magisterium of the Catholic Church between the nineteenth and twentieth centuries. This research
is dedicated to discussing the concept of anticommunism in the light of Catholic doctrine and to
exemplify this discussion through important encyclicals for the Social Doctrine of the Church, such
as Pope Leo XIII's Encyclical Rerum Novarum (1891) and Divini Redemptoris (1937) of the
Supreme Pontiff Pius XI.

Keywords: Catholic anti-communism; Magisterium of the Church; Social Doctrine of the Church.

O Anticomunismo Católico

Este pontual artigo tem como objetivo analisar o discurso anticomunista através de
documentos papais que demonstram o conservadorismo histórico da Igreja Católica. Para iniciar a
discussão sobre o anticomunismo católico é necessário definir, primeiramente, o conceito de
Comunismo. Segundo um dos mais importantes teóricos do século XIX, Karl Marx (1818-1883), o
Comunismo seria
(...) a abolição positiva da propriedade privada, da alienação humana e, portanto, a
verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o homem. O
comunismo é, portanto, o retorno do próprio homem como um ser social, isto é,
realmente humano; um retorno completo e consciente que assimila toda a riqueza
do desenvolvimento prévio.2

1 Pós-graduando em História Social e Cultural do Brasil nas Faculdades Integradas Campo-grandense –


FIC/FEUC-RJ. E-mail: allan.fernandes.clio@gmail.com
2 MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos . Livro terceiro.. São Paulo: Boitempo, 2004.
p.105.

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Segundo o pensamento marxista, as disparidades seriam suprimidas no momento em que as classes
subordinadas tomassem o controle do Estado. Controlando esta instituição, teriam a missão histórica
de promover mudanças objetivando o fim das desigualdades sociais e econômicas. O governo guiado
pelo interesse dos trabalhadores reforçaria práticas e costumes em favor do comunismo.
De acordo com o pensamento socialista, a real instituição do comunismo aconteceria no
momento em que o Estado fosse extinto em favor de uma sociedade na qual as riquezas fossem
igualmente divididas a todos aqueles que contribuíssem com sua força de trabalho. Podemos dizer,
portanto, que os princípios comunistas seriam Democracia, Igualdade e Coletivismo. Estes
fundamentos se contrapõem às características essenciais da Igreja Católica, como veremos
posteriormente.
Quanto ao conceito de Anticomunismo, Luciano Bonet 3 o define como oposição à ideologia e aos
objetivos comunistas, e que se tornou força decisiva nos embates políticos do mundo contemporâneo,
sobretudo a partir do período entre guerras do século XX (1919-1938). Segundo o autor, os
comunistas definiram o anticomunismo como ideologia negativa; ideologia da burguesia em crise,
isto é, como fórmula política de saída, quando as fórmulas tradicionais se revelaram ineficazes no
controle das tensões sociais. Todavia, Bonet assevera que o anticomunismo se caracteriza por ser um
fenômeno complexo, ideológico e político ao mesmo tempo, explicável, além disso, à luz do
momento histórico, das condições de cada um dos países, e das diversas origens ideais e políticas
em que se inspira.
O autor ainda subdivide o conceito de anticomunismo em alguns tipos, segundo o método de atuação,
tais como o Fascista, o Nazista-Hitleriano, o Americano, o Social, o Democrático e o Clerical. 4 Este
último, é caro no presente trabalho, pois é sobre o anticomunismo clerical em que nos debruçamos
nesse pontual artigo, mais precisamente sobre o discurso proposto pelos líderes católicos em
oposição aos comunistas entre os séculos XIX e XX.
Portanto, os princípios comunistas de Democracia, Igualdade e Coletivismo se deparam com
características primordiais da Igreja Católica. Contrapondo o princípio democrático, a forma de
governo da Igreja Católica é a Monarquia Teocrática eletiva, pois o dirigente eleito por um conclave5,
o papa, é considerado o representante de Deus na Terra. Sendo a Igreja uma instituição extremamente

3 BONET, Luciano. Anticomunismo. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO,


Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. Tradução de Carmem C. Varriale [el al.], 5.ed. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1993. pp.34-35.
4 Idem.
5 Assembleia de cardeais reunida na Capela Sistina (no Vaticano) especificamente destinada à eleição
do novo papa. Os cardeais eleitores são isolados e trancados na Capela. A votação é processada mediante quatro
escrutínios (apurações), e o resultado comunicado para o exterior com sinais de fumaça (resultado da queima dos votos
em papel): se um novo papa for eleito, a fumaça é branca; se não, a fumaça é negra (cf. AZEVEDO, Antonio Carlos do
Amaral. “Conclave”. In:____. Dicionário histórico de religiões. 2.ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2012. p. 70).

100
hierarquizada (papa, cardeais, bispos, padres, diáconos, seminaristas, religiosos e leigos), o princípio
da igualdade não se legitima.
Já o Coletivismo cristão é limitado, pois a “caridade evangélica” é essencial entre os fiéis,
mas a salvação é individual6. Além disso, como assevera Carla Simone Rodeghero (2002), a Igreja
Católica se opõe à visão de mundo materialista dos comunistas, pois, segundo o catolicismo,
destituiria os seres humanos de suas características espirituais, afastando-os, portanto, do próprio
Deus. Para a Igreja, o comunismo “trataria direitos considerados naturais – a propriedade, o pátrio
poder, o casamento – como contratos que poderiam ser facilmente desfeitos”7. Desse modo, podemos
afirmar que a filosofia comunista opunha-se aos pressupostos básicos do catolicismo.

Apresentadas as diferenciações, partimos para a discussão dos documentos oficiais da Igreja a


respeito da ideologia comunista. Esta documentação compreende o Magistério da Igreja, ou seja, a
autoridade que a Igreja possui para ensinar. 8 Segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2002), em sua obra
Em guarda contra o “perigo vermelho”, o catolicismo consolidou-se como uma das principais fontes
matriciais a fornecerem argumentos para elaboração das representações acerca do “perigo
vermelho”.9
O primeiro documento do Magistério da Igreja que faz referência formal ao comunismo foi a
encíclica 10 Qui pluribus (1846), onde o papa Pio IX (1846-1878) alertava os fiéis a respeito da
doutrina comunista, tida como a maior oposição à lei natural: “(...) [O comunismo é] sumamente
contrário ao próprio direito natural, a qual, uma vez admitido, levaria à subversão radical dos direitos,
das coisas, das propriedades de todos e da própria sociedade humana". 11
O sucessor de Pio IX, Leão XIII (1878-1903), foi outro papa a tecer comentários extremamente
negativos à doutrina comunista. Segundo o papa leonino “(...) [o comunismo é uma] peste mortífera,
que invade a medula da sociedade humana e a conduz a um perigo extremo.” 12 Este mesmo papa é
o autor da encíclica mais importante contra o comunismo, a Rerum Novarum (1891). Leão III, nesta
encíclica sobre a condição dos operários, aproveita para reprovar o marxismo:

6 “Assim, cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio”. (Romanos 14, 12. Cf. Bíblia de
Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. p.1988).
7 RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e Avaliações: norte-americanos, católicos e a recepção do
anticomunismo brasileiro entre 1945 e 1964. Porto Alegre: UFRGS, 2002. Tese de Doutorado em História. pp. 393-394.
8 PEDRO, Aquilino de. “Magistério”. In:____. Dicionário de termos religiosos e afins. 6.ed. Aparecida,
SP: Editora Santuário, 2007. p.182.
9 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil
(1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. p.15.
10 Documento do papa em forma de carta dirigida aos bispos e a todos os fiéis, ou inclusive a todos os
homens dispostos a escutá-lo, sobre um determinado tema, geralmente de caráter doutrinal (cf. PEDRO, Aquilino de.
“Encíclica”. In:____. Dicionário de termos religiosos e afins. 6.ed. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2007. p.95).
11 Pio IX, Qui Pluribus (1846), vol. I.
12 Leão XIII, Quod Apostolici Muneris (1878), Acta Leonis XIII, vol. I.

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A teoria marxista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como
prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais
dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a
tranquilidade pública.13

Ainda analisando a Rerum Novarum, percebemos o esforço do pontífice em internalizar na mente


dos fiéis que os mesmos deveriam aceitar sua condição social, pois a luta de classes proposta pelo
marxismo seria contrária aos desígnios divinos. O papa ainda justificou a desigualdade como algo
natural e necessário para o bom funcionamento do organismo social.
O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência
a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo
nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos
os esforços são vãos. Foi [a natureza], realmente, que estabeleceu entre os homens
diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de
habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce
espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro lado,
reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida
social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva
precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença
das suas respectivas condições. 14

Quarenta anos após a publicação da Rerum Novarum (1891), o papa Pio XI (1922-1939) escreve a
encíclica Quadragesimo Anno (1931), onde o discurso oficial do Magistério permanece contrário às
teses defendidas pelos marxistas. O pontífice “separa o joio do trigo”, para usar uma expressão
bíblica, quando diferencia o catolicismo e o socialismo. Essa estratégia de bipolarização foi
amplamente utilizada pelos líderes católicos.
O socialismo quer se considere como doutrina, quer como fato histórico, ou como
‘ação’, se é verdadeiro socialismo, [...] não pode conciliar-se com a doutrina
católica; pois concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã.
[...] E se este erro, como todos os mais, encerra algo de verdade, o que os Sumos
Pontífices nunca negaram, funda-se contudo numa própria concepção da sociedade
humana, diametralmente oposta à verdadeira doutrina católica. Socialismo
religioso, socialismo católico são termos contraditórios: ninguém pode ser ao
mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista.15

O mesmo papa publica em 1937 uma encíclica intitulada Divini Redemptoris, onde discutiu o
comunismo ateu. Esta encíclica é um dos documentos anticomunistas mais importantes do século
XX e que ajudou a difundir no mundo todo, através da publicação da mesma em periódicos católicos,
a posição da Igreja frente ao movimento comunista. Segundo Pio XI,
[os marxistas pregam que o comunismo seja o] novo ‘evangelho’ e mensagem
salvadora de redenção! Sistema cheio de erros e sofismas, igualmente oposto à
revelação divina e à razão humana; sistema que, por destruir os fundamentos da
sociedade, subverte a ordem social, que não reconhece a verdadeira origem,

13 Leão XIII, Rerum Novarum (1891), n. 7.


14 Idem, n. 11.
15 Pio XI, Quadragesimo Anno (1931), n. 117-120 (capítulo III, secção 2).

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natureza e fim do Estado; que rejeita enfim e nega os direitos, a dignidade e a
liberdade da pessoa humana.16

No Brasil o anticomunismo católico se manifestou principalmente através da imprensa de orientação


católica. Partes da tradução da Divini Redemptoris, por exemplo, foram publicadas através do
periódico católico O Santuário, em 19 de junho de 1937, sob o título de “Encyclica sobre o
communismo: doutrinas e fructos do communismo” e em 25 de setembro de 1937, como “O
Communismo Atheu: Carta Pastoral e mandamento do Episcopado Brasileiro”. Isso nos comprova
que os católicos brasileiros não ficaram de fora da batalha contra o “inimigo da fé”.
Outro papa a atacar o comunismo foi João XXIII (1958-1963). Em sua carta encíclica Mater et
Magistra (1961), o Sumo Pontífice escreveu sobre a evolução da questão social à luz da doutrina
cristã, imbuído, é claro, do anticomunismo característico do Magistério. Retomando a estratégia de
Pio XI, de evidenciar a divergência entre o cristianismo e o comunismo, João XXIII afirmou que,
(...) entre comunismo e cristianismo, (...) a oposição é radical, e [o Magistério]
acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao
socialismo moderado: quer porque ele foi construído sobre uma concepção da vida
fechada no temporal, com o bem-estar como objetivo supremo da sociedade; quer
porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a produção como fim
único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda porque lhe falta todo
o princípio de verdadeira autoridade social. 17

Após um século de sua publicação, a encíclica Rerum Novarum (1891) ainda ecoava no mundo
cristão. O papa João Paulo II (1978-2005) escreveu em 1991 a encíclica Centesimus Anno, em
homenagem a carta encíclica de Leão XIII. O Romano Pontífice esclareceu, dentro de uma
perspectiva cristã, os “erros” estruturais do socialismo/comunismo e afirmou ser o ateísmo o maior
defeito da concepção comunista.
O erro fundamental do socialismo é de caráter antropológico (...). O homem é
reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como
sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o
ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito,
que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade
privada. (...) Se se questiona ulteriormente onde nasce aquela errada concepção da
natureza da pessoa e da subjetividade da sociedade, é necessário responder que a
sua causa primeira é o ateísmo. (...) O referido ateísmo está, aliás, estritamente
conexo com o racionalismo iluminístico, que concebe a realidade humana e social
do homem, de maneira mecanicista. 18

16 Pio XI, Divini Redemptoris (1937), n. 14.


17 João XXIII, Mater et Magistra (1961), n. 34.
18 João Paulo II, Centesimus Anno (1991), n. 13.

103
Após termos analisado a documentação do Magistério percebemos que uma das formas encontradas
pela Igreja Católica para obstaculizar o avanço do ideário comunista foi a produção de um discurso
voltado para a caracterização do comunismo enquanto uma doutrina enganosa. Concluímos que era
com o comunismo que a Igreja Católica disputava o espaço ideológico, daí a farta produção de obras
anticomunistas empreendidas pela Igreja. Havia um “inimigo de Deus” a ser combatido. Um
“antagonista” que ameaçava a família tradicional, a propriedade privada, a ordem, a disciplina, a
unidade, a moralidade e o respeito à autoridade, que são valores defendidos pela Igreja.
Atualmente a Doutrina Social da Igreja ainda defende o anticomunismo, em que pese no parágrafo
2.425 do Catecismo da Igreja Católica (CIC) estar escrito que “a Igreja tem rejeitado as ideologias
totalitárias e ateias associadas, nos tempos modernos, ao 'comunismo' ou ao 'socialismo’” 19 .
Evidenciando, portanto, que a “guerra ideológica” entre a mais influente instituição religiosa do
mundo e o comunismo ainda não acabou.

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. “Conclave”. In:____. Dicionário histórico de religiões.


2.ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2012. p. 70.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política.


Tradução de Carmem C. Varriale [el al.] 5.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993.

CNBB. Catecismo da Igreja Católica. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2000.

JOÃO XXIII. Carta encíclica Mater et Magistra. 13.ed. São Paulo: Paulinas, 2010.

JOÃO PAULO II. ____ . “Carta encíclica Centesimus Annus”. In: COSTA, Lourenço (org.).
Encíclicas de João Paulo II. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 653-651.

LEÃO XIII. Carta encíclica Quod Apostolici Muneris. Disponível em <


http://www.veritatis.com.br/quod-apostolici-muneris-leao-xiii-28-12-1878/>. Acesso em 10 de
outubro de 2017.

LEÃO XIII. Carta encíclica Rerum Novarum. 18.ed. São Paulo: Paulinas, 2009.

MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. Livro Terceiro. São Paulo: Boitempo, 2004.

19 Catecismo da Igreja Católica (1992), n. 2425.

104
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil
(1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.

PEDRO, Aquilino de. Dicionário de termos religiosos e afins. 6.ed. Aparecida, SP: Editora
Santuário, 2007.

PIO IX. Carta encíclica Qui Pluribus. Disponível em < https://w2.vatican.va/content/pius-


ix/it/documents/enciclica-qui-pluribus-9-novembre-1846.html>. Acesso em 10 de outubro de 2017.

PIO XI. Carta encíclica Divini Redemptoris. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2007.

PIO XI. Carta encíclica Quadragesimo Anno. Disponível em < https://w2.vatican.va/ content/pius-
xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html>. Acesso em 10 de
outubro de 2017.

RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e Avaliações: norte-americanos, católicos e a recepção


do anticomunismo brasileiro entre 1945 e 1964. Porto Alegre: UFRGS, 2002. Tese de Doutorado
em História.

105
Guerra, Família E Liberdade Em “Copperhead” (2013)

Amanda Amazonas Mesquita1

Resumo: O diretor Ronald F. Maxwell (n. 1949) apresenta em seu terceiro filme sobre a Guerra de
Secessão (1861 – 1865) uma representação distante dos fronts de batalha que a partir de personagens
democratas residentes do norte do estado de Nova York em 1862. Conhecidos como “copperheads”,
são contrários à guerra e consequentemente entram em conflitos com conterrâneos que a defendem,
apresentando em seus discursos uma perspectiva pouco comum ao cinema que inúmeras vezes
buscou narrar esse conflito. Neste trabalho, dedicamo-nos ao universo recriado por Maxwell no filme
de 2013, “Copperhead”, em busca de interpretar suas percepções sobre como uma guerra em seu
front doméstico apresenta choques ideológicos sobre o conflito em si, sobre um ideal de liberdade,
e como os dois afetaram a estrutura familiar de norte-americanos.

Palavras-chave: Hollywood. Guerra Civil Americana. Representação.

Abstract: The director Ronald F. Maxwell (b. 1949) offers on his third movie about the American
Civil War (1861 – 1865) a representation located far from the battle fronts, one that comes from
Democrat characters from upstate New York in 1862. Known as “copperheads”, they are against the
war and thereafter get into quarrels with their fellow neighbors (those who defend the conflict)
presenting in their speeches a rare perspective to what was previously exhibited by the American
cinema dedicated to narrating this war. Through this paper, we dedicate ourselves to the universe
created by Maxwell for the movie “Copperhead” from 2013, in the efforts of interpreting his
perceptions on how the war (in its domestic front) presents ideological disputes about the conflict in
itself, about an ideal of freedom, and how both affected the small-town American families’ structure.

Keywords: Hollywood. American Civil War. Representation.

Ronald F. Maxwell nasceu em 1949 na cidade de Clifton, em Nova Jersey. Fruto do


casamento entre um veterano da Segunda Guerra Mundial e uma francesa, Maxwell se tornaria um
produtor, diretor e roteirista conhecido especialmente por seu trabalho dedicado à representação da
Guerra de Secessão. Graduado pelo Institute of Film da Universidade de Nova York (NYU),
considera a História e, especialmente, os elementos que compõem a identidade americana, os focos
principais de sua carreira.
Seu trabalho mais reconhecido enquanto diretor foi lançado aos cinemas americanos em
1993, intitulado Gettysburg (trazido para o Brasil para “Anjos Assassinos”). Uma representação da
batalha mais sangrenta da Guerra Civil Americana, o primeiro de filme de Maxwell sobre o conflito
ganhou grande interesse de aficionados pela Guerra de Secessão, um grupo de tamanho considerável
e de resiliência notável nos Estados Unidos.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ). Agências de fomento: CNPq e FAPERJ. E-mail: amanda.mesquita@ufrj.br

106
A grande atração pela história desta guerra é tema de pesquisa de diversos historiadores,
intrigados com a persistência e profundidade de sua memória, seguindo tão viva no imaginário social
norte-americano. Uma querela constantemente evocada para debates sobre identidade, racismo,
federalismo, inúmeras disparidades sociais, patriotismo, símbolos nacionais, e, ao que parece, quase
tudo que diz respeito às tais grandes questões desta sociedade: “A Guerra Civil nunca recuou a um
passado remoto na vida americana. O mais momentoso conflito na história americana teve um
impacto social e político revolucionário que continua a ser sentido hoje” 2.
Não à toa, o historiador David Blight identificaria esta guerra como algo inato aos ossos de
um cidadão dos Estados Unidos da América 3. Poucos momentos da história parecem se fazer tão
presentes, disputados, questionados. Sem dúvida, a arte dedicada a representar este momento
turbulento do século XIX norte-americano se apresenta como também um elemento de disputa.
Gettysburg (1993), de Maxwell, não escapa a este debate. O filme, baseado no romance de Michal
Shaara, “The Killer Angels (1974)4, fora por vezes celebrado por sua longa e “quase-documental”
narrativa da batalha ocorrida em julho de 1863 na Pensilvânia. Ao mesmo tempo, sofrera críticas
como a vinda do professor literatura e cinema norte-americanos da Saint Michael’s College, Robert
Niemi que definiu o filme como uma “experiência impressionante para fanáticos pela Guerra Civil
– uma demografia esmagadoramente branca, masculina e Sulista”5.
Em Gettysburg, no ano de 1863, forças da União e da Confederação se enfrentam na cidade
homônima ao filme em um embate de três dias que é decisivo para a Guerra Civil Americana. O foco
no primeiro dia de conflito é em John Buford (Sam Elliott), General da Cavalaria da União dos
Estados Unidos, responsável por selecionar o campo de batalha. O foco no segundo dia é dado ao
Coronel da União Joshua Lawrence Chamberlain (Jeff Daniels), responsável pela defesa em Little
Round Top6. Na noite seguinte, somos apresentados à preparação e à execução de Pickett’s Charge7,
destacando a atuação do General das forças confederadas, James Longstreet (Tom Berenger).

2 (Tradução minha) FAHS, Alice; WAUGH, John (orgs). The Memory of the Civil War in American Culture.
Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2004, p. 2.
3 BLIGHT, David W. Race and Reunion: the Civil War in American memory. Cambridge: Harvard University
Press, 2001, p. 1.
4 SHAARA, Michael. The Killer Angels. New York: The Modern Library, 1974.
5 (Tradução minha) NIEMI, Robert. History in the media: film and television. Santa Barbara: ABC-Clio, 2006, p. 30.
6 Little Round Top é a menor de duas colinas rochosas localizadas ao sul de Gettysburg, na Pensilvânia. Foi o
local de uma tentativa falha de ataque por parte de tropas Confederadas, em 2 de Julho de 1863, segundo dia da batalha
de Gettysburg.
7 Carga de infantaria Confederada ordenada e liderada pelo General Robert E. Lee, em 3 de Julho de 1863, último
dia da batalha de Gettysburg.

107
A especialista em Cinema, Jenny Barrett, descreveria esta obra como um filme de combate
por excelência 8 : está centrado na ação dos campos de batalha – um ambiente essencialmente
masculino e branco –, nas trocas de tiros, nas estratégias militares dos dois exércitos de um país então
dividido entre União e Confederação. O épico de 271 minutos de duração dedica-se intensa e
exclusivamente à ação militar direta entre os dois lados desta guerra.
O segundo filme do diretor parece seguir uma esquematização relativamente diferente. Gods
and Generals (“Deuses e Generais”, 2003) retoma a glória e a tragédia da Guerra de Secessão já
abordadas pelo trabalho anterior do diretor. Como um prólogo ao filme lançado dez anos antes,
acompanhamos um exame sobre os primeiros momentos do conflito entre Norte e Sul, e a
experiência de três homens sobre o mesmo: o coronel Joshua Lawrence Chamberlain (Jeff Daniels),
que deixa para trás uma carreira como professor universitário no Maine em prol da carreira militar
do lado da União; o general Thomas "Stonewall" Jackson (Stephen Lang), um homem que
constantemente declara os valores de uma vida pia e religiosa, permeada pela fé, que torna-se um
dos mais temidos a servir pela defesa da Confederação; e o general Robert E. Lee (Robert Duvall),
que lidera o exército Confederado e ao ser forçado a decidir entre sua lealdade pelos Estados Unidos
da América e seu amor pelo Sul, decide-se pela segunda causa – a perdida.
Seguimos Chamberlain, Jackson, e Lee através da declaração de guerra e das batalhas no
Manassas, Antietam, Frederickburg, e Chancellorsville (sendo assim, por um lado, um filme de
combate conforme elaborado por Barrett), enquanto conhecemos muitas figuras que fizeram parte
dessa história de proporções épicas, como as mulheres deixadas no front doméstico por esses
marcantes oficiais, dentre elas Fanny Chamberlain (Mira Sorvino) e Anna Jackson (Kali Rocha).
Através delas e de seus relacionamentos com seus maridos, compreendemos mais sobre as
motivações e crenças que os levam e os mantêm em conflito, inseridos na guerra reconhecida como
aquela que definiu os contornos de todo o país.
Em sua segunda obra cinematográfica, portanto, Maxwell apresenta traços de interesse
também em uma esfera antes deixada de lado em Gettysburg: a forma como a guerra afeta famílias
americanas, e sua vivência enquanto grupo inserido em um contexto mais amplo, diante do conflito.
Copperhead, de 2013, mergulharia ainda mais a fundo nesta temática. Para compreendermos o
terceiro filme do diretor sobre a Guerra Civil Americana, devemos atentar para seu título – um que
não poderia ser diretamente traduzido para o português – e, assim, melhor compreender sua
mensagem principal.

8 BARRETT, Jenny. Shooting the Civil War: Cinema, History and American National Identity. London: I. B.
Tauris, 2009, p. 97.

108
Copperheads

Agkistrodon contortrix ou copperhead é uma espécie de cobra venenosa encontrada em uma


larga porção do Leste dos Estados Unidos que abriga desde estados como o Arkansas até Nova York.
No século XIX foi, contudo, utilizada como termo derrogatório de referência aos Peace Democrats,
ou Democratas contrários à guerra. A expressão, aplicada pelos grandes defensores da União, era
destinada especialmente aos homens que se opunham de maneira distinta e vigorosa às medidas de
guerra adotadas por Abraham Lincoln e pelo Congresso 9. A maioria destas figuras chamavam a si
mesmos de conservadores – e a historiadora Jennifer L. Weber os reconhece como tal, visto que o
grupo estabelecia um forte compromisso com a mais minuciosa interpretação e aplicação da
constituição10.
A identificação do primeiro momento em que a expressão é empregada com regularidade é
feita diferentemente por múltiplos historiadores. Contudo, mais de um deles (como Weber e Ronald
C. White) apontam para a publicação feita no periódico Cincinnati Commercial durante o verão de
1861 por um autor anônimo como essencial parra o surgimento e dispersão do termo: seu artigo
discorria sobre os Democratas contrários à guerra como figuras essencialmente comparáveis à
serpente em Gênesis – o texto incluía o provérbio 3:14, desse mesmo livro: “Então o Senhor Deus
disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os
animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida 11”.
Contudo, não demoraria muito para que os acusados de traidores assumissem copperhead
como uma designação a ser usada – e vestida – com orgulho. Copperhead era também o temo
contemporâneo para o penny ou moeda de um centavo de dólar produzida em cobre, e a imagem do
mesmo pareceu casar-se perfeitamente à causa dos homens em questão: “(...) the penny at the time
had Lady Liberty – the perfect symbol for people deeply concerned about incursions on their rights
– on one side of it. Some Peace Democrats adopted the term as their own and sported Lady Liberty
pins made from pennies to signify their loyalties” 12 .
Copperheads estavam unidos, portanto, pela defesa de deus direitos mais essenciais – aqueles
garantidos pelas palavras da Constituição. Para estes conservadores, o documento não poderia adotar

9 RHODES, James Ford. History of the Civil War, 1861 – 1865. Nova York: Ungar Pub, 1961, p. 127.
10 WEBER, Jennifer L. Copperheads: the rise and the fall of Lincoln’s opponents in the North. Nova York:
Oxford University Press, 2006, p. 2.
11 BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de
Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.
12 WEBER, Jennifer L. Copperheads: the rise and the fall of Lincoln’s opponents in the North. Nova York:
Oxford University Press, 2006, p. 2.

109
nenhum tipo de interpretação minimamente aberta. Suas determinações deveriam ser levadas ao pé
da letra, garantidas com veemência aos cidadãos americanos, mesmo que isso significasse a
manutenção da instituição peculiar da escravidão no Sul do país. O maior temor desta facção era o
da possibilidade de abusos e despotismos por parte do presidente, constituindo um big government13,
uma ideologia enraizada nos valores mais arraigados desta sociedade, presente desde os debates para
a construção do aparato do governo no país independente.
Os sentimentos gerais associados ao grupo eram: o de que a guerra era o resultado de uma
agitação abolicionista no Norte do país, de que o Sul não poderia ser conquistado através da força
das armas, e de que os dois lados deveriam imediatamente cessar a disputa e negociar uma
resolução14 (uma que não ferisse, certamente, princípios constitucionais). A guerra avançava e o
mesmo se dava em relação aos gastos por ela causados. Ao mesmo tempo, o governo da União
fortalecia seus esforços na perseguição de desertores, tido como os grandes traidores da nação. Os
Peace Democrats fortaleciamcada vez mais , então, sua retórica de denúncia sobre as maldições
trazidas pelo conflito, pela administração por eles tida como histérica de Lincoln, e pela noção de
abolicionismo.
Uma conspiração anticonstitucional parecia pairar sobre os Estados Unidos, formulada pelos
piores republicanos em busca da destruição da nação. Copperheads se reconheciam como patriotas
dispostos a lutar, através de seus eloquentes discursos, contra toda a ação tirânica do governo central.
No entanto, suas ações lhes trouxeram acusações de traição por parte daqueles que apoiavam a
guerra. Aos poucos, a comunidade do Norte do país parecia encaminhar-se para uma polarização
total de opiniões, pró ou anti-guerra, uma segunda divisão (além daquela entre Norte e Sul) que
separou famílias, vizinhos e colegas – uma divisão representada constantemente no filme de Ronald
F. Maxwell de 2013.

13 Big government é um termo usado para descrever um governo em hipertrofia, envolvido de maneira
considerada inconstitucional em determinadas áreas de políticas públicas, ou mesmo do setor privado. Também pode
ser empregado em relação a políticas governamentais que buscam regular aspectos considerados pessoais aos cidadãos.
Aqui, refere-se essencialmente a um governo federal dominante que busca controlar a autoridade de instituições mais
locais, como a dos estados.
14 ROBINSON, Marsha R. Lesser Civil Wars: civilians defining war and the memory of war. Newcastle:
Cambridge Scholars Publishing, 2012, p. 40.

110
Figura 1 - Cartum sobre copperheads, publicado na Harper's Weekly em
fevereiro de 1863.

"O partido Copperhead - a favor da perseguição vigorosa contra a paz!

Disponível em: < https://www.britannica.com/topic/Copperhead-American-


political-faction>

“Copperhead” (2013)

Em uma comunidade rural ao norte do estado de Nova York em 1862, o fazendeiro Abner
Beech (Billy Campbell) é um Democrata contrário à Guerra de Secessão. Enquanto seus vizinhos
assumem e defendem a causa da União durante o conflito, Beech acredita que a coerção em resistir à
separação dos estados do Sul é inconstitucional e, gradualmente, é cada vez mais assediado por seu
posicionamento. Seu filho primogênito, Thomas Jefferson Beech (Casey Thomas Brown), alista-se
no exército da União. O fazendeiro também desperta a ira de um militante abolicionista radical, Jee
Hagadorn (Angus Macfayden) cuja filha, Esther (Lucy Boynton) é apaixonada por Thomas Jefferson.
Esta é a sinopse mais geral de Copperhead, o terceiro filme dedicado ao conflito da Secessão
americana dirigido por Ronald F. Maxwell.
Em Copperhead estamos distantes dos campos de batalha, e inseridos no front doméstico. O
espectador é apresentado à forma como as famílias de uma área rural de Nova York vivem e percebem

111
o conflito que divide o país, mas também suas expectativas e opiniões mais ferrenhas. O Norte é
representado por sua própria secessão: uma divisão interna política, que torna a convivência entre
vizinhos aparentemente impossível.

Figura 2 - Pôster original do filme Copperhead (2013)

Disponível em:
<http://www.imdb.com/title/tt2404555/mediavi
ewer/rm2408358144>

O personagem do fazendeiro tranquilo, distante dos sons de tiros e do sangue que compunha as
imagens mais violentas da guerra, ganha vida pela figura de Beech, um homem incapaz de aceitar a
violência da guerra, que para ele se traduz na violência de Abraham Lincoln contra a Constituição
de seu país. Apesar da paisagem bucólica que lhe envolve, o conflito chega até sua casa quando seu
filho mais velho resolve alistar-se no exército da União, traindo todos os preceitos políticos e morais
de seu pai.
Aqui, a guerra representada por Maxwell apresenta sua característica lembrada por tantos autores de
romances e diretores de cinema: um conflito que coloca em disputa brother against brother, ou irmão
contra irmão. A expressão é geralmente empregada para demonstrar a oposição que foi colocada
entre compatriotas que defendiam um o Norte, outro o Sul. No filme de Maxwell ela ganha outros
contornos – a disputa se faz entre os pró e anti guerra.

112
A causa para essa guerra, durante toda a narrativa de 120 minutos, parece ser simplesmente o
despotismo do governo federal em ações que o caracterizariam como o temido big government,
intrometendo-se em questões políticas próprias da autoridade dos estados. A escravidão, certamente,
é reconhecida por Beech como moralmente condenável em uma breve passagem no roteiro – no
entanto, mais condenável para ele é o comportamento de tirania de seu presidente, que parece
disposto a ferir a Constituição para enfrentar seus inimigos políticos.
O fazendeiro de pequena propriedade perde seu filho para o conflito, mas não deixa de lutar pelos
seus ideais para que a mesma acabe, e para que Lincoln seja punido em meios políticos. Nessa
empreitada, sofre com as retaliações de seus vizinhos, a maioria grandes admiradores do presidente
e de seus esforços de guerra. Os personagens republicanos abolicionistas são, nesta trajetória
cinematográfica, os grandes antagonistas: presunçosos, ignorantes, irredutíveis, histéricos. A
violência da guerra parece tomar conta do tom de seus discursos e ações contra o tranquilo
fazendeiro. Distantes da imagem do escravo pela localidade em que são retratados, a defesa da
abolição parece deslocada, sem sentido ou completamente fora de contexto – levando em
consideração as imagens que o filme nos oferece como fonte.
O bucolismo desta área rural do nordeste americano passa muito longe da plantation e de sua
instituição peculiar. A defesa ou não da manutenção da escravidão parece, na mesma proporção,
extremamente distante da discussão trazida à tona: a de validade ou não do conflito que separou os
Estados Unidos. A mensagem deixada é a centralidade e a necessidade da existência de uma oposição
que expõe abertamente suas convicções, em especial dentro de um país de imprensa e discurso livres,
que possa manter um sistema de checks and balances15 em pleno funcionamento, evitando que o
governo federal estenda seus tentáculos em hipertrofia sobre questões que não lhe cabem
politicamente, e que possam ferir a liberdade política dos estados (e consequentemente dos grandes
senhores de escravos sulistas).
A liberdade central defendida pelo filme é, assim, a liberdade de pensamento, discurso, e sobretudo,
política. A liberdade do escravo afro-americano esmaece neste cenário. O diretor afirma, após dois
filmes que debatem o motivo de homens honrosos irem à guerra (em Gettysburg e Gods and
Generals) a necessidade de discutir o porquê de homens igualmente honrosos não irem à guerra.
Para tal, destaca a centralidade do núcleo familiar e dos impactos por ele sofridos durante o conflito,
mesmo que longe de ações diretas de violência.

15 Um sistema de checks and balances (ou freios e contrapesos), comumente evocado no direito constitucional
norte-americano, refere-se à ideia de constante vigilância sobre a harmonia e independência entre os poderes.

113
Figura 3 - Abner Beech (Billy Campbell) abraça seus dois filhos, após o primogênito retornar dos campos
de batalha.

Disponível em: <https://pmcvariety.files.wordpress.com/2013/07/copperhead.jpg?w=700&h=393&crop=1>

Considerações Finais

A Guerra de Secessão é um dos eventos históricos mais recobrados pela cultura norte-
americana, seja por meio da televisão, do cinema, ou da literatura. Inúmeros homens e mulheres
mantêm a tradição de reencenar batalhas próprias deste conflito, em roupas, uniformes e armamentos
extremamente fidedignos àqueles do século XIX. Dizer que esta guerra tem um papel importante na
memória do norte-americano seria uma afirmação extremamente simplista.
O escritor Shelby Foote define o conflito como aquele que definiu o país, inclusive as
idiossincrasias de seu presente16. Conforme destaca o escritor e crítico literário Robert Penn Warren:
“A Guerra Civil Americana é nossa história sentida – história vivida na imaginação nacional. Isso
não quer dizer que a Guerra é sempre, e por todos os homens, sentida da mesma maneira” 17.

16 FOOTE, Shelby. The Civil War, A Narrative: Fort Sumter to Perryville. Nova York: Vintage, 1986.
17 “The Civil War is our only “felt” history – history lived in the national imagination. This is not to say that the
War is always, and by all men, felt in the same way.” (Tradução minha) WARREN, Robert Penn. The Legacy of The
Civil War. Nova York: Random House, 1961, p. 4.

114
A forma como filmes apresentam uma visão específica sobre o significado da guerra, suas
motivações e justificativas tem muito a dizer sobre o cinema hollywoodiano e o papel da Guerra de
Secessão na identidade dos norte-americanos. O filme de Maxwell apresenta-se como parte da
representação cinematográfica mais contemporânea da Guerra Civil Americana, e reivindica um
papel importante na manutenção de uma memória sobre o conflito. Refletir criticamente sobre sua
obra significa investigar uma visão sobre a guerra e seu legado, e como estes elementos podem ser
apresentados a partir de uma visão unívoca e idealizada sobre a liberdade política desta sociedade
que reconhece o valor da defesa de uma causa perdida. Essa visão não deixa de ser apreciada,
contudo, por aqueles que dela compartilham.
Certamente o olhar crítico sobre filmes históricos seguirá criando pequenas secessões sobre
a produção cinematográfica como um todo. Não cabe aos historiadores do cinema realizar simples
julgamentos sobre a veracidade das cenas levadas ao cinema, mas sim pesar como cada uma delas
pôde ser pensada naquela forma, naquele momento, por aqueles agentes históricos. Neste trabalho,
buscamos nos dedicar a essas questões, ainda que brevemente.
Aqui, nos esforçamos em compreender a persistência de uma interpretação específica sobre
o conflito como um todo: aquela que deixa de lado uma temática central, como a escravidão, para
delinear a invalidade da guerra como um todo, frente ao documento da Constituição, que delimita de
maneira justa e inequívoca os principais preceitos de um país. Destacamos, ainda, a importância do
lar e dos laços familiares frente a um conflito injustificável – lar esse que sofre as piores máculas
trazidas por uma guerra sem sentido, trazida por abolicionistas irredutíveis e um presidente
preenchido pela fome incessante de poder.

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118
A Coexistência Entre Literatura E História.
A Escrita Balzaquiana Como Projeto De Uma História Dos Costumes

Ana Beatriz Morais de Souza1

Resumo: Esta apresentação tem como objetivo analisar a noção de “história dos costumes” presente
na escrita do autor francês Honoré de Balzac (1799-1850). Através das suas obras Ilusões Perdidas
(1837-1843) e o Tratado da Vida Elegante: Ensaios sobre a moda e a mesa (1830- 1833) podemos
observar a presença de uma noção singular do que poderia ser a escrita historiográfica. Com
influência dos postulados da filosofia natural e o princípio de “unidade de composição orgânica”
movido nas teorias de Geoffroy Saint-Hilaire e outros biólogos e filósofos, Honoré de Balzac
empreende uma análise da sociedade francesa através de uma descrição detalhada das fisionomias
das personagens e do meio ao qual eles pertenciam, dando a entender que essas questões interferiam
na construção dos costumes e do surgimento de tipos humanos.

Palavras-chaves: História dos costumes- escrita literária- escrita jornalística

Abstract: This presentation aims to analyze the notion of “history of customs” present in the work
of the french writer Honoré de Balzac (1799-1850). Through his works Ilusões Perdidas (1835-1843)
and the Tratado da Vida Elegante: Ensaios sobre a moda e a mesa (1830-1833) we can observe the
presence a singular notion of what could be a historiographical writing. With influence of the
postulates of natural philosophy and the principle of "unity of organic composition" moved in the
theories of Geoffroy Saint-Hilaire and other biologists and philosophers, Honoré de Balzac
undertakes an analysis of French society through a detailed description of the physiognomy of the
characters and the milieu to which they belonged, implying that these questions interfered with the
construction of customs and the emergence of human types.

Keywords: History of customs - literary writing - journalistic writing

Percurso invertido: de literato a historiador dos costumes.

“O escritor, encarregado de espalhar as luzes que brilham nos santuários,


deve dar à sua obra um corpo literário e fazer com sejam lidas, com
interesse, as doutrinas mais árduas, e além disso deve enfeitar a ciência.
Portanto, acha-se permanentemente dominado pela forma, pela poesia e
pelos acessórios da arte ”.
Honoré de Balzac

Podemos admitir que a produção intelectual balzaquiana que hoje temos acesso, basicamente
se estende a duas formas de escrita – a escrita literária e a escrita jornalística. Atuando durante quase
todo o momento da sua vida nesses dois ramos do mundo da imprensa, Honoré de Balzac (1799-
1850) divulgou algumas ideias fundamentais que alimentaram a sua produção e que até
influenciaram o seu modo de vida e de observação sobre o mundo. Entre essas inúmeras ideias,

1 Graduanda de História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP, sob a orientação do prof. Dr. Carlos Mauro
de Oliveira Junior. Email: biamorais15@gmail.com

119
elegemos uma. A ideia chave que queremos problematizar neste trabalho está relacionada com a
forma de entendimento do autor sobre o que poderia vir a ser a “história dos costumes”.
Vivendo a efervescência do movimento romântico e sua propensão a uma abordagem mais próxima
dos acontecimentos históricos, Balzac tinha elucidado nas suas produções que a mudança provocada
com a Revolução Francesa havia totalmente desestruturado o que antes eram considerados os
parâmetros fundamentais da sociedade francesa, inclusive no âmbito privado. Como pensador do seu
tempo, da maneira de um “escritor monárquico”2, como ele gostava de se denominar, observamos
nos seus esforços intelectuais uma tentativa de fazer da sua produção algo mais “útil” para
compreender a contemporaneidade como as mudanças vindas da modernidade e a ascensão de novos
padrões de vida, leiam-se padrões burgueses.
[...]. Chegamos a uma época em que, diminuindo as fortunas por igualização, tudo
se empobrecerá: havemos de querer roupas e livros baratos, como se começa a
procurar quadros pequenos por falta de espaço onde colocar os grandes. As camisas
e os livros pouco hão de durar, essa é a verdade. A solidez dos produtos começa a
desaparecer por toda a parte. Assim o problema a ser resolvido é de mais alta
importância para a literatura, para a ciência e para a política. (BALZAC, 1981, p.67)

Por fim, os franceses tornaram-se todos iguais, em seus direitos e também em suas
roupas, e a diferença no tecido ou no corte dos trajes deixou de diferençar as
condições. Como, então, reconhecer-se no meio da uniformidade? (BALZAC, 2016,
p.83)

Para esclarecer melhor essa questão, gostaríamos de dar destaque ao trecho marcante que se encontra
no Avant-propos de A Comédia Humana (1842). Neste, podemos observar a presença de uma certa
pretensão balzaquiana em tornar a sua grande criação literária um modelo possível de registro
histórico.

[...] O acaso é o maior romancista do mundo; para ser fecundo, basta estudá-lo. A
sociedade francesa ia ser o historiador, eu nada mais seria do que seu secretário. Ao
fazer o inventário dos vícios e das virtudes, ao reunir os principais fatos das paixões,
ao pintar os caracteres, ao escolher os acontecimentos mais relevantes da sociedade,
ao compor os tipos pela reunião dos traços de múltiplos caracteres homogêneos,
poderia talvez, alcançar escrever a história esquecida por tantos historiadores, a dos
costumes. Com muita paciência e coragem, eu realizaria para a França do século
XIX esse livro que todos lamentamos não terem deixado Roma, Atenas, Tiro,

2 A denominação “escritor monárquico” pode ser encontrada na apresentação realizada pelo


literato no seu Prefácio à Comédia Humana publicado em 1842. Neste trecho Balzac afirmar que “ A lei do escritor, o
que faz que ele o seja, o que, não temo dizê-lo, o torna igual e talvez superior ao homem de Estado, é uma decisão
qualquer sobre as coisas humanas, uma dedicação absoluta a princípios. Maquiavel, Hobbes, Bossuet, Leibniz, Kant,
Montesquieu são a ciência que os homens de Estado aplicam. ‘Um escritor deve ter em moral e política opiniões
definidas, deve considerar-se como um preceptor de homens; porquanto os homens não necessitam de mestres para
duvidar’, disse Bonald. Cedo adotei como regra essas grandes palavras, que são a lei do escritor monárquico, tanto quanto
a do escritor democrático”. BALZAC, Honoré de. “Prefácio à Comédia Humana”. In: A Comédia Humana: estudos de
costumes: cenas da vida privada. Orientação, introdução e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveiras; 3°
edição. São Paulo: Globo, 2012, p.109.

120
Mênfis, a Pérsia, a Índia sobre sua civilização e que, a exemplo do padre
Barthélemy, o corajoso e paciente Monteil tentara para a Idade Média, mas sob
forma pouco atraente. (BALZAC, 2012, p.108)

A noção de “história” que encontramos presente nesta descrição está limitada à exposição do
presente contemporâneo do autor. Mesmo tendo intenções totalizantes beirando a construção de uma
história nacional, Balzac observa a histoire du coeur humain não como prática científica consagrada
com seus métodos e fontes, mas como uma investigação livre. Segundo Auerbach “não se trata de
history, mas de fiction, não se trata de forma alguma, do passado, mas do presente contemporâneo,
que se estende quanto muito, por alguns anos ou décadas no passado” (AUERBACH, 2013, p. 429).
Vale destacar que, o conceito de história neste momento vinha sofrendo uma mudança nas
suas formulações devido à influência de outros modelos científicos (RIBEIRO, 2013, p.17). Como
elucidou Georges Lefebvre (1981), o século XIX foi marcado pela noção de desenvolvimento
histórico. A história passou a ser encarada como um saber vivo em continua transformação, sua
matéria que não era fatos mortos e amorfos, não obstante, viviam em relação direta com a vida e a
realidade que ela buscava refletir. Como um ser vivo que precisa ser estudado, a história “evolui com
a civilização dos homens e com os acontecimentos que lhes definem a existência e por vezes os
ensinam” (LEFEBVRE, 1981, p.11).
De acordo com as preposições de Erich Auerbach (2013), é comum entre as produções
literárias de determinados períodos existir certa intenção em representar a realidade a partir da sua
forma de compreensão do mundo. Neste caso, considerando algumas produções literárias que
tiveram uma acentuada atuação durante o século XIX, como a de Stendhal, Flaubert e a do próprio
Balzac, Auerbach demonstra que o surgimento de uma geração romântica que ganhou destaque com
o movimento de reinvindicação pela mistura do sublime e do grotesco, fez uma aproximação
inovadora no que condiz à relação da literatura com o mundo real. O romantismo, tendência que teve
origem na “Alemanha” e na Inglaterra e que se desenvolveu intensamente na França a partir de 1820,
rompeu as barreiras estilísticas entre os aspectos realista e trágico promovendo uma mudança de
perspectiva que desencadeou novos polos estilísticos preocupados com a contemporaneidade e não
com a fuga do real como tinha ocorrido no pré-romantismo. (AUERBACH, 2013)
Para James Guinsburg (2013), o movimento historicista promovido pelas ideias românticas,
trouxe para as produções literárias do século XIX a relevância de se ter uma consciência histórica.
Essa consciência não era aquela semelhante ao modelo racionalista do século XVIII ou a história
natural das instituições com as descrições das “vidas ilustres”, no entanto, era a construção de uma
consciência atenta às inúmeras formas de organização da sociedade (comunidades, raças, nações)
“que têm antes cultura do que civilizações, que secretam uma individualidade peculiar, uma

121
identidade, não de cada indivíduo, mas do grupo específico, diferenciado de quaisquer outros”
(GUINSBURG, 2013, p. 15).
Revestidas de cor local, as realidades que os românticos buscavam atingir tinham o objetivo
de traçar a trajetória de cada povo, de um país ou de uma nação, chamando atenção para as
particularidades e os “coloridos nacionais”. Não perdendo essa “paramentação romântica”
(GUINSBURG, 2013 p. 18), romancistas como Balzac e Stendhal desdobram uma forma de escrita
mais colada aos acontecimentos, com objetivos de desvendar fatos, impulsos no contexto do
imprevisível de alta complexidade, no mundo da sensibilidade, da imaginação, aspectos que vinham
sendo entendidos como parte integrante da realidade social.
Com o surgimento do realismo moderno essa mudança foi efetiva. A tendência que trouxe
para o mundo literário um tratamento narrativo mais sério para o quotidiano, mostrando que as
camadas humanas consideradas socialmente inferiores deveriam ser objetos de representação.
Segundo Auerbach, na França esse movimento foi de grande importância, pois trouxe para o corpo
da literatura uma visão moderna da realidade modificada com as novas transformações.
(AUERBACH, 2013, p. 440)
A isto junta-se uma concepção da mistura de estilos que surge da mesma visão
místico realista; não haveria objetos elevados e baixos; o universo seria uma obra
de arte criada sem parcialidade, o artista realista deveria imitar os processos da
criação, e cada objeto conteria, na sua peculiaridade, perante os olhos de Deus, tanto
a seriedade quanto a comicidade, tanto a dignidade quanto a baixeza (AUERBACH,
2013, p. 436).

Essa exigência de maior veracidade na ficção fez com que a narrativa observasse a natureza
humana como fruto das transformações históricas, diferenciada pelas construções do tempo e do
espaço. A partir desse paralelismo entre romantismo e realismo, observamos que o gênero do
romance começa a ganhar novos traços. A própria concepção que Balzac tinha sobre esse modelo é
exemplo disso. Como afirmou Auerbach, Balzac acreditava que o romance, inclusive o de costumes,
poderia ser encarado como um modelo de história e de filosofia que atenta ao mundo real poderia
estar além das estruturas literárias. (AUERBACH, 2013)

Gênero aberto à perspectiva do autor: o romance como espelho da sociedade

Criador do romance de costumes, Balzac encarregou à sua escrita um verdadeiro “laboratório


experimental” fortalecido pela experiência, não muito positiva, como auxiliar de tabeliães em um

122
cartório na Capital e como impressor e tipógrafo provinciano. Operando nestas duas profissões
ganhou conhecimento sobre os detalhes das formalidades e regulamentos da jurisprudência francesa
além de captar a enorme influência que as editoras tinham na coordenação de múltiplas atividades
industriais no ramo literário. Isso o auxiliou na formação de uma visão mais apurada sobre o
romance, fazendo com que o mesmo rompesse com os impasses e as imperfeições do gênero.
(RÓNAI, 2012)
Não podemos esquecer que a maior influência sobre a escrita balzaquiana no que consistem
as formulações do romance veio das produções do romancista escocês Sir Walter Scott 3 que criou o
romance histórico pautado na investigação de documentos e a descrição de cenários memoráveis.
Suas obras serviram de modelo para Balzac, principalmente no que consiste na estratégia do escocês
em adicionar a vida dos seus personagens um ambiente de verossimilhança. Para Balzac, Walter
Scott elevou o valor histórico e filosófico no romance, abrindo espaço para a oportunidade do
surgimento de uma narrativa que pudesse pintar a vida social. Introduziu na obra a junção do
maravilhoso com o verdadeiro, fazendo com que a poesia tivesse uma roupagem mais real,
aproximando-a das linguagens mais humildes. (“Prefácio à Comédia Humana”, 2012, págs.106-107)
Conforme assegurou Erich Auerbach (2013), Balzac considerava a construção do romance
histórico como uma forma de apresentar a história. Para Maria Inês C. Arigoni (2015), a estrutura
dos romances balzaquianos trazia em seu cerne a ideia de que a história era uma moldura
fundamental para a construção do personagem e para expressar as estruturas do mundo. O romance,
tendo essa liberdade de diálogos com diferentes discursos científicos deveria ser melhor que a
história, mesmo não tendo a pretensão em representar o que verdadeiramente ocorreu.
Todavia, o gênero não deixa de ser verdadeiro nos pormenores. Prosseguindo por uma
denúncia contra os postulados da historiografia marcante da sua época “com secas e enfadonhas
nomenclaturas dos fatos denominados históricos” (“Prefácio à Comédia Humana”, 2012, p. 105), o
literato francês sente-se animado pelo esforço do escritor escocês que coloca na sua obra o espírito
dos tempos antigos. Assim, Balzac demostra a importância das formulações de Walter Scott ao seu
próprio modelo de interpretação que condizia em dar vida às paixões humanas, que não eram tão
bem exploradas por Sir Walter Scott como afirmava o literato. Apesar disso, seu objetivo literário se
tornou ousado, em certa medida, pois procurava ultrapassar a construção iniciada por Walter Scott.
Mas, tendo antes achado seu feitio ou no ardor do trabalho, ou pela lógica desse
trabalho, do que propriamente imaginado um sistema, não pensou em ligar suas
composições umas às outras com o fim de coordenar uma história completa, da qual
cada capítulo formasse um romance e cada romance uma época. Ao perceber essa

3 Sir Walter Scott (1771-1832) nasceu na capital da Escócia em Edimburgo, foi o verdadeiro
criador do romance histórico. Entre algumas das suas obras Ivanhoe (1819) pode ser considerada a mais famosa.

123
falha de ligação, que, aliás, não diminui a grandeza do escocês, vi ao mesmo tempo
o sistema favorável à execução de minha obra e a possibilidade de executá-la”
(“PREFÁCIO À COMÉDIA HUMANA”, 2012, págs. 107-108).

Neste interim, observamos que o romance durante o século XIX foi um gênero susceptível
às rápidas mudanças que modificavam o mundo. O aumento populacional, o surgimento da economia
monetária, a ascensão da classe burguesa gerou questionamentos em relação à natureza humana e
aos contornos da modernidade. A consequência das atitudes objetivas “reivindicadas” pela economia
monetária fez com que os lugares sociais se tornassem campos férteis para a competição e os
conflitos de interesses. As conformações políticas, sociais e econômicas contribuíram para que essas
questões fossem canalizadas pelo enredo dos romances.
Como muitos em sua época, que estavam influenciados pelas novas tendências românticas
que realçaram as produções dos romances históricos e realistas, Balzac via na ação da escrita literária
um espaço de atividade social, disposto a questionar a essência da vida e suas vicissitudes.
Reconfigurando o real, o romance poderia desvendar a totalidade da vida e o seu desespero e
embriaguez (AUERBACH,2013). A partir de uma caracterização individualizada, a narrativa
forneceria uma representação dos traços fundamentais dos destinos e da formação da psicologia do
personagem. Em um trecho de Ilusões Perdidas, Balzac expressa essa seguinte preposição:
Procurando provar que a imagem é toda poesia, lamentarás ser tão pouca a poesia
que a nossa língua comporta. [...] Combate tua argumentação precedente, fazendo
ver que evoluímos do século XVIII para cá. Inventa o Progresso! (Uma admirável
mistificação destinada aos burgueses). Nossa jovem literatura procede por quadros
em que se concentram todos os gêneros: - a comédia e o drama, descrições,
caracteres, diálogos, ligados pelos laços brilhantes de um enredo interessante. O
romance, que requer sentimento, estilo e imagens, é a maior das criações modernas.
(BALZAC, 1981, p.207)

A “Unidade de composição orgânica” e a relação de Balzac com as ciências naturais

“Tudo em nós corresponde a uma causa interna.”


Lavater

Pensando em formular um projeto literário com tamanha magnitude como mais tarde ficou
confirmada com o surgimento de A Comédia Humana4, já era evidente que Balzac tinha influência
de outras tendências que estavam à parte do mundo literário. Impregnado pelas teorias da história

4 A Comédia Humana pode ser considerada como o maior monumento literário construído
durante o século XIX. Compilada por Honoré de Balzac para ser um longo trabalho de interpretação da história e a crítica
da sociedade francesa do XIX, a Comédia traz a lume a trajetória fictícia de mais de 2.500 figuras literárias que foram
construídas a partir de vários cenários históricos da época. Esses cenários estão divididos entre as Cenas da Vida Privada,
Cenas da Vida Provinciana, Cenas da Vida Parisiense, Política, Militar e Rural. Nestes seis grupos classificados se
encontram os Estudos de Costumes, os Estudos Filosóficos e os Estudos Analíticos.

124
natural e pelos estudos de pensadores místicos5, o escritor era adepto do que entre os naturalistas era
conhecido como a “unidade de composição orgânica”. As descrições literária e jornalística de Balzac
estiveram influenciadas por esta noção divulgada pelo biólogo francês Étienne Geoffroy Saint-
Hilaire6, que o auxiliou a interpretar as vicissitudes da natureza humana e sua relação com o meio
social.
Fundador da anatomia comparada e da paleontologia, Saint Hilaire sustentava a importância
dos postulados da filosofia natural especulativa. Afirmava que existiria entre as plantas e os animais
um tipo de organização comum que influenciaria no seu plano geral de existência na natureza.
Transportado por Balzac dos planos das ciências naturais para os estudos de costumes da sociedade
humana, essa noção é apresentada como uma forma de apresentar os estados das coisas, de maneira
sugestiva, por meio de unidades orgânicas que estariam estruturadas através de uma relação
harmônica entre os indivíduos e o meio ao qual viviam. (AUERBACH, 2013, p. 424).
Balzac ficou tão impressionado com esse modelo de análise das ciências naturais, que na sua
lista de preferidos tinha espaço para Cuvier, Leibniz, Charles Bonnet, Spallanzani, Müller, Gall e
Lavater 7 . Para se ter ideia da tamanha influência que as formulações naturalistas tinham na
concepção de mundo do autor, Balzac transformou o seu conjunto de textos literários em algo
parecido com o conjunto sobre zoologia que foi produzido pelo conde de Buffon 8 publicado entre
1749 e 1789, composto por mais de 36 volumes sobre História Natural. Balzac, acreditava que era
possível realizar uma composição semelhante ao naturalista, que abarcasse detalhes sobre os
costumes, a vida individual, material e a atmosfera moral presente na sociedade. “Não transforma a
sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros tantos indivíduos
diferentes, à semelhança das variedades em zoologia?” (“Prefácio à Comédia Humana”, 2012, p.
103).

5 Emmanuel Swedenborg (1688-1772) naturalista e mineralogista sueco adepto da teosofia e


do misticismo. Segundo Paulo Rónai, a mãe de Balzac foi leitora assídua da obra de Swedenborg. Saint-Martin (1743-
1803) adepto do misticismo de Emmanuel Swedenborg, percorreu vários países para propagar esta doutrina mística em
combate ao sensualismo e ao materialismo.
6 Étienne Geoffroy Saint- Hilaire (1772-1844), foi naturalista e zoólogo francês. Durante a sua
atuação se envolveu numa polêmica científica com Georges Cuvier (1769-1832) que combate fortemente as suas teorias.
Esta polêmica envolveu considerável interesse de outros literatos da época como Goethe e o próprio Balzac.
7 George Cuvier (1769-1832) naturalista francês; Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716)
cientista e matemático alemão; Charles Bonnet (1720-1793) adepto da filosofia especulativa depois de ter abandonado
o misticismo; Lazzaro Spallanzani (1729-1799) fisiologista e estudioso das ciências naturais; Hans Peter Müller (1801-
1858), médico e fisiologista; Franz Josef Gall (1758-1828) fisiologista e filósofo alemão, fundador da ciência da
frenologia e Johann Kaspar Lavater (1741-1801) inventor da fisiognomia, ciência de julgar o caráter das pessoas pelas
expressões faciais.
8 Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788) foi um naturalista, matemático e
escritor francês. As suas teorias influenciaram duas gerações de naturalistas, entre os quais se encontram Jean-Baptiste
de Lamarck e Charles Darwin.

125
Para o literato, o criador tinha servido de apenas um único padrão para a organização de todos
os seres. E tratando inicialmente das questões que eram associadas ao mundo da zoologia, Balzac
tinha o animal como exemplo de ser vivo transformado pelo meio, limitado por assim dizer, pela sua
natureza já que mantinha o ritmo de vida semelhante em todos os tempos.

O animal tem pouca mobília, não tem arte nem ciência ao passo que o homem por
uma lei que ainda não foi desvendada, tende a reproduzir seus costumes, seus
pensamentos e sua vida em tudo que apropria às necessidades. (“PREFÁCIO À
COMÉDIA HUMANA”, 2012, p. 104-105)

Neste aspecto, de acordo com as estratégias de organização, a sociedade e a natureza se


assemelhavam. Através das analogias biológicas, Balzac construiu suas formulações acerca da
sociedade humana, apontando que as diferenças entre os tipos sociais, os destinos, as relações, as
mudanças comportamentais, o vestuário, as atitudes estariam ligadas como unidades orgânicas ao
meio estruturante da vida em sociedade. Como uma descrição sugestiva o estado das coisas sociais
passou a ser encarado como apreensíveis de interpretação, onde havia a atuação de dispositivos
organizacionais que davam continuidade as relações e a permanência da sociedade. Segundo
Auerbach:

O motivo da unidade do meio apossou-se do próprio Balzac com tanto ímpeto que
os objetos e as pessoas que constituem um meio ganham para ele, frequentemente,
uma espécie de segunda significação [...] (AUERBACH, 2013, p. 42).

Em um trecho do Tratado da Vida elegante: ensaios sobre moda e mesa (1830-1833),


notamos a descrição de um literato profundamente ligado a esse mundo de teorias naturais. Esses
artigos, que foram publicados na época em que o autor atuava assiduamente como jornalista, nos
mostra como antes mesmo de Balzac pensar em construir A Comédia Humana e de publicar alguns
dos seus principais romances, essas ideias já lhes eram familiares.
A vida exterior é uma espécie de sistema organizado que representa um homem tão
exatamente como as cores do caracol se reproduzem em sua concha. Assim, na vida
elegante tudo se encadeia e se comunica entre si. Quando o sr. Cuvier apercebe-se
do osso frontal, maxilar ou crural de algum bicho, daí não induz toda uma criatura,
seja ela antediluviana, e não reconstitui logo um indivíduo classificado, seja entre
os sauros ou os marsupiais, seja entre os carnívoros ou os herbívoros?... Nunca esse
homem se enganou: seu gênio lhe revelou as leis unitárias da vida animal
(BALZAC, 2016 p. 58).
Lavater, Gall e outros fisiologistas descobriram o segredo de adivinhar as afecções
morais, físicas e intelectuais dos homens pela inspeção meditada de suas
fisionomias, de seu modo de andar, de seu crânio. Essa ciência, tão profunda, tão
útil, tão agradável, embora tendo alcançado um alto grau de perfeição ainda não
chegou, porém, ao nível das necessidades atuais e das de nossa civilização francesa;

126
hoje, ela só se dirige a certas classes privilegiadas, a certos indivíduos com chapéu
de doutor (BALZAC, 2016, p. 225).

Essa obra jornalística composta por doze tipos de exposições interpretativas traz para o debate
questões sobre a conformação do espírito, das classes sociais, do movimento, da utilidade dos
apetrechos e suas funções na cidade urbanizada. A primeira parte foi publicada com o título o
Tratado da vida elegante: ensaios sobre a moda e a mesa³ na revista La Mode, nos dias 2,9,16, 23
de outubro e 6 de novembro de 1830.
Segundo Rosa Freire D´Aguiar (2016), esses trabalhos jornalísticos de Balzac nos
apresentam um conjunto de questões que definem muito bem a sua escrita. Percorrendo os espaços
sociais como a rua, os arrabaldes, os salões da alta sociedade, a vida boêmia, as casas dos operários
e dos burgueses, esta investigação jornalística balzaquiana pretende estabelecer a conformação da
origem, da institucionalização e das principais características da “vida elegante”. Além disso, tem
como objetivo desvendar as razões do movimento profundo da sociedade moderna. “Pois os
princípios segundo os quais se conduzem e vivem as pessoas que têm talento, poder ou dinheiro,
jamais se assemelharão aos da vida vulgar. E ninguém quer ser vulgar!... A vida elegante é, pois,
essencialmente a ciência das maneiras” (BALZAC, 2016, p. 37). Vamos observar esse detalhe no
seguinte trecho:
Então, em nossa sociedade as diferenças desapareceram: só restam nuances. Assim,
o savoir-vivre, a elegância das maneiras, o não sei quê, fruto de uma educação,
completam e formam a única barreira que separa o ocioso do homem ocupado. Se
existe um privilégio, ele deriva da superioridade moral. Daí o alto valor atribuído
pela grande maioria à instrução, à pureza da linguagem, à graça do porte, à maneira
mais ou menos natural com que se usa a toalete, ao requinte dos aposentos, em suma,
à perfeição de tudo o que procede do indivíduo (BLAZAC, 2016, p. 42).

Os aspectos gerais, frívolos, secundários são os verdadeiros agentes da sociedade se for


considerar a maneira de análise empreendida por Balzac. Preocupado com as disposições que o
mundo moderno imprimiu na vida da sociedade francesa e a importância que foi dada às coisas da
aparência, suas fisionomias, à análise dos detalhes feita pelo literato pretende interpretar as
disposições morais através da forma como os indivíduos se expressam e se comportam durante as
relações sociais. Os detalhes da personalidade, das perspectivas, intenções e até mesmo da profissão
estão marcadas secundariamente nas formas de se vestir, de falar, de comer, de pensar, de realizar a
toalete e de agir dos agentes humanos com o lugar que ocupam na sociedade.

Coloque aí um cabideiro e pendure roupas! ...Bem. A menos que tenha passeado


como um bobo que não sabe ver nada, você adivinhará o burocrata pelo amarrotado
das mangas, pela larga risca horizontalmente impressa nas costas por conta da
cadeira em que ele se encosta tão frequentemente, enrolando sua pitada de rapé ou
repousando dos cansaços da vadiagem. Você admirará o homem de negócios pelo

127
recheado bolso das cadernetas,; o flâneur, pelos bolsos deformados, onde costuma
manter as mãos; o comerciante, pela abertura extraordinária dos bolsos que vivem
desbeiçados, como para se queixar de estarem privados dos pacotes habituais. Por
fim, um colarinho mais ou menos limpo, empoeirado, gordurento, surrado, botoeiras
mais ou menos gastas, uma aba caindo, a firmeza de uma nova entretela são os
diagnósticos infalíveis das profissões, dos costumes e dos hábitos” (BALZAC,
2016, p. 76).
Preocupado com essas expressões comportamentais dos indivíduos, Balzac acredita que a
sociedade molda os costumes, interfere na forma dos homens de se relacionarem e cria novos tipos
comportamentais. Assim sendo, o autor estabelece na primeira parte do seu tratado denominado
“Generalidades”, que a Revolução foi muito além de uma mudança política e redirecionou a
sociedade francesa em todos os seus aspectos. Inclusive criando novas disposições para a vida social
que separam a atuação do trabalho, das questões do pensamento e da vida do talento, a almejada
“vida elegante”.
A vida elegante repousa, ao contrário, nas deduções mais severas da constituição
social. Não é ela o hábito e os costumes das pessoas superiores que sabem usufruir
da fortuna e obter do povo o perdão de sua elevação graças aos benefícios
espalhados por suas luzes? Não é ela a expressão dos progressos feitos por um país,
já que representa todos os seus gêneros de luxo? Por fim, se ela é o indício de uma
natureza aperfeiçoada, todo homem não deve desejar estuda-la e flagrar seus
segredos? ” (BALZAC, 2016, p.44).
Portanto, hoje, para diferenciar nossa vida pela elegância já não basta ser nobre ou
ganhar um bilhete premiado numa das loterias, ainda é preciso ter sido dotado dessa
indefinível faculdade (o espírito de nossos sentidos, talvez!) que sempre nos leva a
escolher as coisas verdadeiramente belas e boas, as coisas cujo conjunto combina
com nossa fisionomia, com nosso destino. É um tato sofisticado, cujo exercício
constante é a única maneira capaz de fazer descobrir de súbito as relações, prever
as consequências, adivinhar o lugar ou o alcance dos objetos, das palavras, das
ideias e das pessoas; pois, para resumir, o princípio da vida elegante é um
pensamento elevado de ordem e de harmonia destinado a dotar as coisas de poesia
(BALZAC, 206, p.43).

Fisionomias. Ideias. Princípios. Ordem. Harmonia. A sociedade constrói todas essas


possibilidades. Com uma pretensão à descrição naturalista, o formato do tratado composto por
aforismas, máximas, “fisiologias”, apresenta uma preocupação com a educação dos indivíduos
modernos e burgueses que precisaram se acomodar às novas reinvindicações da vida em sociedade.
Com isso, a obra balzaquiana pode apresentar aspectos parecidos com os códigos de boas maneiras,
elucidando condutas positivas ou negativas de acordo com a moda e com a elegância (d´AGUIAR,
2016).

Então, já não é indiferente desprezar ou adotar as fugazes prescrições da MODA;


pois Homens molem agitat: adivinha-se o espírito de um homem pela maneira como
ele porta sua bengala. As distinções se aviltam, ou morrem ao se tornar comuns;
mas existe uma força encarregada de estipular novas, trata-se da opinião aplicada à
roupa. Sendo a roupa o símbolo mais enérgico de todos, a Revolução foi também
uma questão de moda, um debate entre a seda e a lã. Mas hoje A MODA não está

128
mais restrita ao luxo da pessoa. O material da vida, tendo sido objeto do progresso
geral, conheceu um imenso desenvolvimento. Não há uma só de nossas
necessidades que não tenha produzido uma enciclopédia, e nossa vida animal se liga
à universalidade dos conhecimentos humanos. Assim, ao ditar as leis da elegância,
a moda abarca todas as artes. É o princípio das obras e dos labores. Não é ela o
sinete com que um consentimento unânime sela uma descoberta ou marcas
invenções que enriquecem o bem-estar do homem?” (BALZAC, 2016, p.44).

Desnaturalizando a vida comum, o cotidiano, o literato sugeriu que a descrição material


encontraria certo tipo de ligação com a atmosfera moral. Segundo Carlo Ginzburg (2007), os traços
românticos de Balzac estiveram próximos ao que historiador denominou de uma “atitude
historicista”, mostrando que as múltiplas formas culturais de um momento estariam unidas por uma
coerência subterrânea, que deveriam ser desvendadas pelo estudo científico. Paralelo a isso, temos a
seguinte afirmação de Erich Auerbach:
[...] todo espaço vital torna-se para ele uma atmosfera moral e física, cuja paisagem,
habitação, móveis, acessórios, vestuários, corpo, caráter, trato, ideologia, atividade
e destino permeiam o ser humano, ao mesmo tempo em que a situação histórica
geral aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os espaços vitais
individuais” (AUERBACH, 2013 p. 423).

O projeto que foi praticado com a construção de A Comédia Humana deixou clara essa
predisposição balzaquiana. Pretendendo realizar uma investigação sobre as razões sociais que
garantiam a manutenção e continuação da sociedade, Balzac empreendeu a busca pelo sentido que
estava oculto na imensa reunião de tipos, paixões e acontecimentos sociais. Como um “arqueólogo
do mobiliário social” (“PREFÁCIO À COMÉDIA HUMANA”, 2012, p.108), o literato francês
manteve seu interesse pelas conformações da variedade da natureza humana, na tentativa de
desvendar os vícios e as virtudes que lhes são peculiares.
A composição de uma história dos costumes, esquecidas pelos historiadores na visão do
literato, esteve associada a esse plano, de resgatar os caracteres múltiplos e homogêneos que dão
vida aos fatos e às paixões no interior das experiências conformadas pela sociedade francesa.
Influenciado pelo desejo em realizar uma análise comparativa entre “a humanidade e a animalidade”
(“PREFÁCIO À COMÉDIA HUMANA”, 2012, p.101), Balzac amplia as estruturas da obra literária,
sobretudo o romance. E esse tipo de descrição é uma estratégia narrativa muito frequente no romance
Ilusões Perdidas. Abaixo, nas seguintes descrições temos esse exemplo. A primeira é a apresentação
da figura de um típico operário provinciano, e na segunda é a descrição de determinados detalhes
físicos que diferenciam Lucien de Rubempré e David Séchard, Balzac descreve suas caraterísticas
da seguinte forma:
Jerônimo Nicolau Séchard havia trinta anos usava o famoso tricórnio municipal,
que, nalgumas províncias, ainda se encontra à cabeça do tamboreiro da cidade. O
colete e as calças eram de veludo verdoso; vestia um velho redingote castanho,

129
meias variegadas de algodão e sapatos com fivela de prata. Tais vestes burguesas
mal disfarçavam o operário e condiziam tão bem com elas; não se poderia imaginá-
lo sem elas tal como não se concede uma cebola sem casca” (BALZAC, 1981, p.17).

A polidez mundana quando não é um dom do alto nascimento, uma ciência bebida
com o leite ou transmitida pelo sangue, constitui uma educação que o acaso deve
secundar com uma certa elegância de formas, com uma distinção de traços, com um
timbre de voz. Todas essas grandes pequenas coisas faltavam a David, enquanto que
delas a natureza havia dotado seu amigo. Nobre por parte de sua mãe, Lucien
possuía até mesmo o pé alto e arqueado do franco, enquanto David Séchard tinha
os pés chatos do camponês e o cachaço vulgar do pai, o impressor” (BALZAC,
1981, p.44).

Considerada uma das obras primas do literato, Ilusões Perdidas pode ser analisada como um
típico romance de costumes, que foi pulicado na França entre os anos de 1837 a 1843. Balzac
trabalhou por assim dizer quase toda a sua vida e pelo menos a maior parte da sua carreira nessa
obra. Para alguns, Lucien Chardon de Rubempré, protagonista do romance, pode ser considerado
como uma das criações mais completas do literato. Esse romance faz parte da galeria de A Comédia
Humana que Balzac denominou como os “estudos de costumes”.
Trazendo em sua centralidade a trajetória de vida do jovem provinciano Lucien Chardon de
Rubempré, Ilusões Perdidas resgata através da justaposição de ambientes bastante complexos da
sociedade francesa: a província – protagonizada por Angoulême – e a capital parisiense, uma
representação da realidade cotidiana e dos costumes franceses que circulavam durante a Restauração
monárquica. Para isso, o seu personagem principal, Lucien, percorre caminhos simbólicos por meio
da narrativa do romance que o fazem representar um tipo social francês encantado com as
oportunidades do mundo moderno. Da província à capital, Lucien encontra desde aventuras até
ilusões, entrou em contato com diversos “mundos” sociais desde operários, aristocratas, jornalistas,
tipógrafos, poetas e entre outros.
Apresentado como filho de um farmacêutico e de uma parteira da província de Angoulême,
Lucien Chardon de Rubempré vive desencantado com a sua realidade interiorana e busca romper
definitivamente com as limitações que o cercam. Incentivado por familiares e pelo melhor amigo
David Sechárd que acreditam no talento do jovem, Lucien provido da sua inteligência, dirige-se a
capital parisiense para conquistar riqueza e prestígio no meio literário. Com o apoio da Senhora de
Bargeton, uma aristocrata da província com quem mantém relações afetuosas, passa a frequentar
outra parte da esfera social considerada um lugar daqueles que possuem belas maneiras. Lucien que
vê essa relação como uma grande oportunidade, acaba entrando em contato com a pequena nobreza
provinciana que, diferente dos costumes parisienses, representa “uma prataria de velho estilo,
enegrecida, mas pesada” (BALZAC, 1981, p.37). Esse contato o leva a desenvolver pretensões

130
maiores. Não podemos esquecer que o momento ao qual Balzac reflete a trajetória de Lucien, entre
os anos de 1821 a 1830, a França vivia um cenário caótico, onde os adeptos da Restauração tentavam
a todo momento sobreviver às transformações modernas.
Delineando a posição da nobreza na França e dando-lhe esperanças que não se
poderiam realizar sem um transtorno geral, a Restauração aumentou a distância
moral que separava, mais fortemente que a distância local, Angoulême do
Houmeau. A sociedade nobre, unida então ao governo, tornou-se ali mais
exclusivista que em qualquer outro lugar na França. O habitante do Houmeau
parecia-se muito a um pária. Daí procederam aqueles ódios surdos e profundos que
deram espantosa unanimidade à insurreição de 1830 e destruíram em França os
elementos de um estado social durável. A arrogância da nobreza da corte
desafeiçoou do trono a nobreza da província, tanto quanto esta dele afastava a
burguesia ferindo-lhe todas as vaidades” (BALZAC, 1981, p.30).

Considerações Finais

Assim, tendo em vista esta análise apresentada, podemos afirmar que Literatura e História são formas
diferente de apreensão do mundo real. Hoje, devido as grandes transformações que os postulados
normativos da história enfrentaram, sabemos que existe uma possibilidade de ligação entre a prática
e escrita histórica com a narrativa literária e consequentemente a aceitação no campo científico de
que a ficção pode conter, em alguma medida, fragmentos da realidade. Historiadores até então
preocupados com as formulações narrativas destes dois discursos recuperaram um debate que pode
ser encontrado no século XIX. Portanto, nestes dois textos balzaquianos podemos observar um
possível projeto de escrita historiográfica. Para o autor, a história era uma descrição das
singularidades de um povo e de uma época através do esforço em delimitar as especificidades de um
contexto social. E na sua concepção, os estilos de escrita literária, jornalística e historiográfica
estariam em constante relação.

Bibliografia

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roxo e outras terras- Revista de Estudos literários. Londrina: Programa de Pós-graduação em
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literatura ocidental. 6º Ed. São Paulo: Perspectiva. 2013, pp. 405-441.

131
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introdutória de Paulo Rónai. São Paulo: Abril Cultura, 1981.
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costumes: cenas da vida privada. Orientação, introdução e notas de Paulo Rónai. Tradução de Vidal
de Oliveira; 3º ed. São Paulo: Globo, 2012, pp. 100-119.
__________________. Tratado da vida Elegante. Ensaios sobre a moda e a mesa. Organização,
apresentação, tradução e notas de Rosa Freire D´Aguiar. 1º ed. São Paulo: Peguin Classics
Companhia das Letras, 2016.
GINZBURG, Carlo. “ A áspera verdade – Um desafio de Stendhal aos historiadores”. In: O fio e os
rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d´Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das letras, 2007, pp. 170-188.
GUINSBURG, James. “Romantismo, Historicismo e História”. In: O Romantismo. São Paulo:
Perspectiva, 2013, pp.13-22.

LEFEBVRE, George. “ Definições e problemas de base”; “O romance histórico”. In: O nascimento


da moderna historiografia. Tradução de José Pecegueiro. 1º ed. Lisboa: Sá da Costa editora, 1981,
pp. 11-34/ 174

RIBEIRO, Rosária Cristina Costa. “ Alguns fundamentos do romance histórico”. In: A espacialidade
no romance histórico francês no século XIX: Balzac, Hugo e Elémir. Tese (Doutorado em Estudos
Literários) USP- Faculdade de Ciências e Letras, 2013, pp. 16-33.

RÓNAI, Paulo. “ A vida de Balzac, por Paulo Rónai”. In: A Comédia Humana: estudos de costumes:
cenas da vida privada. Orientação, introdução e notas de Paulo Rónai. Tradução de Vidal de
Oliveira; vol.1, 3º Ed. São Paulo: Globo, 2012, pp. 10-99.

132
Letrados e dedicatórias impressas no Brasil oitocentista

Ana Carolina Galante Delmas1

Resumo: Com a trasladação da Família Real Portuguesa, cruzaram também o Atlântico práticas e
sociabilidades características do Antigo Regime, dentre elas a do oferecimento de dedicatórias
impressas como elemento de trocas simbólicas. As dedicatórias, representativas das relações de
mecenato, são símbolos das relações políticas apoiadas na hierarquia vigente, e das trocas efetuadas
na busca por poder e influência. Muitas das obras publicadas a partir de 1808 foram dedicadas a
figuras sociais ou políticas importantes, e um número expressivo ao soberano D. João. No Brasil,
apesar de guardar muitas semelhanças com seu contexto original, a prática adquiriu características
próprias de sua manifestação tropical. As obras dividiram-se entre obras políticas, literárias,
científicas e um elevado número de orações e sermões, característica de uma sociedade marcada pelo
fervor religioso. Constatada a existência da prática no Brasil das primeiras décadas do oitocentos,
busca-se analisá-la ao longo do século XIX e compreender por que alguns letrados alcançavam
franco sucesso utilizando tais homenagens, recebendo benesses e publicando mais obras com
dedicatórias, ao passo que outros não tinham seus elogios bem recebidos. Procura-se também
demonstrar como esses letrados constituíram-se ou não em intelectuais. Sendo o projeto proposto
inovador, muito está sendo descoberto ao longo da realização das pesquisas, abrindo espaço para
outras questões e enriquecendo o trabalho e os estudos da história do livro e da política no Brasil
oitocentista.

Palavras-chave: Mecenato - Família Real – Trocas simbólicas

Abstract: With the transfer of the Portuguese Royal Family, the practices and sociabilities
characteristic of the Old Regime also crossed the Atlantic, and amongst them the offering of printed
dedications as an element of symbolic exchanges. These dedications, representative of patronage
relations, are symbols of the political relations supported in the current hierarchy, and the exchanges
made in the search for power and influence. Many of the works published since 1808 were dedicated
to important figures, social or political, and an expressive number aimed the sovereign D. João. In
Brazil, despite having many similarities with its original context the practice acquired characteristics
of its tropical manifestation. The works were divided between political, literary, scientific works and
a high number of prayers and sermons, characteristic of a society marked by a religious fervor.
Having established the practice in Brazil of the first decades of the nineteenth century, it is sought
to analyze it throughout the nineteenth century and to understand why some literates achieved
success using such honors, receiving blessings and publishing more works with dedications, while
others praises were not well received. It is also sought to demonstrate how these literates became or
not intellectuals. As the proposed project is innovative, much is being discovered throughout the
research, opening up space for other issues and enriching the work and studies of the history of the
book and politics in nineteenth-century Brazil.

Keywords: Patronage - Royal Family - Symbolic exchanges

1 Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio


de Janeiro. Bolsista de pós-doutoramento pela FAPERJ na UERJ. E-mail: anacdelmas@globo.com

132
O Antigo Regime teve suas estruturas abaladas pela Revolução Francesa, porém deixou
permanências no ambiente da Europa e também do Brasil do século XIX. Mesmo perspectivas
divergentes em relação à ruptura total e ao desmoronamento de determinados aspectos concordam
que o referido sistema deixou marcas por várias décadas subsequentes. Uma dessas permanências
foi a prática das dedicatórias, reflexo da continuação das relações de mecenato, e demonstração de
que a hierarquia social não foi tão profundamente modificada.
As relações entre soberanos e letrados fazem parte de práticas ligadas ao Antigo Regime e a seu
complexo sistema de mercês e concessões, presentes de forma latente nos costumes e hábitos da
corte. Nessa sociedade, estavam presentes, nos mais diversos aspectos, os privilégios e as estruturas
de manutenção do poder, por parte do rei e dos indivíduos; o valor era determinado pela importância
social, adquirido pelo reconhecimento dos demais. i A independência do soberano em relação aos
demais é por sua vez algo apenas aparente; este também se apoia no sistema de trocas e privilégios
para manter sua valorização: torna todos seus dependentes para que continuem reunidos à sua volta. ii
A dedicatória impressa era personificação da troca de benefícios por prestígio e afirmação de poder;
manifestação textual dessa relação de interdependência, da troca de poder simbólico por privilégios
com rendimentos materiais. O grupo de letrados da elite era dotado ou procurava dotar-se de
instrumentos materiais e culturais que lhe permitisse assegurar o monopólio da cena política, do
privilégio e da concentração do poder; em geral, tempo livre e capital cultural. Soma-se a essas
características a capacidade de produzir um bem cultural digno de ser oferecido, e que também
pudesse ser reconhecido pelos demais como símbolo de afirmação e enaltecimento do poder do rei -
um bem cultural que fizesse uma declaração pública do poder real expressiva a ponto de ser
recompensado por isso.
Nos livros manuscritos, observaram-se as primeiras expressões das dedicatórias: a presença
de uma expressão iconográfica do tributo, em que se podia ver a figura de um letrado-súdito
ajoelhado, totalmente submisso, oferecendo sua obra aos pés de um soberano, solenemente, sentado
ao trono. A atmosfera de sacralidade e importância simbólica da dedicatória pode ainda ser percebida
ao se observar os termos dedicar (dédier) e dedicatória (dedicace), que designam tanto a
consagração de uma igreja quanto o oferecimento de um livro; ambos elogios públicos utilizados na
busca por proteção.iii Quando do aparecimento dos livros impressos e de um esboço do papel do
autor, houve, então, uma afirmação da identidade do criador da obra, que se colocava em uma
posição mais próxima do soberano sem que fosse abandonada a relação de vassalagem e de
mecenato. A figura do autor se impunha, bem como sua identidade e função; porém, a distinção
hierárquica das posições sociais, das funções e das relações permanecia, assim como a posição de
cada uma das partes na relação de patronato.

133
A obra Elementos de desenho, e pintura. E regras geraes de perspectiva. Dedicadas ao Senhor Rey
D. João VI, de Roberto Ferreira da Silva, publicada pela Impressão Régia em 1817, nos dá indícios
da prática no Brasil é Além de ser exemplo da existência da prática das homenagens impressas na
América Portuguesa, deixa transparecer que essa importante expressão sócio-político-cultural
seguia, no Brasil, princípios semelhantes àqueles de seu contexto original.
SENHOR,
Três são os motivos, que obrigam os Escritores a dedicar suas obras aos Grandes
Príncipes: procurar que possam correr por todas as partes livres da censura, á que se
expõem todas as obras públicas; esperar do conhecimento de tão altos Senhores uma
pia correção; e finalmente ganhar por este meio suas Régias considerações: e como
todas estas circunstâncias me assistem para com VOSSA MAJESTADE, não
poderia, sem que fosse taxado de ingrato, dedicar este meu primeiro trabalho senão
a VOSSA MAJESTADE, que me pondo a coberto de qualquer censura, ao mesmo
tempo me assegura do acolhimento que devo esperar de todos, que a exemplo de
VOSSA MAJESTADE, se dedicam ao conhecimento das Artes Ciências. 2

Mesmo com várias modificações ao longo de sua história, livros e impressos nunca perderam
suas características de sinais e instrumentos de poder, ligados às elites políticas, culturais e
econômicas, ou seja, àqueles que acumulavam não apenas privilégios culturais (do saber e da
escrita), mas da capacidade econômica de estar cercado de livros. Vistos como ameaçadores do
sistema vigente, eram, muitas vezes, considerados perigosos, incluídos em órgãos de censura como
a Real Mesa Censória, em Portugal. A proibição de um livro, no entanto, raramente cumpriu sua
função, uma vez que aguçava ainda mais a curiosidade dos leitores, chegando mesmo a aumentar
sua circulação.iv De fato, foram disseminadores de ideias e cultura, formadores de opinião e símbolo
do chamado processo civilizador.v
Ao longo da história do livro, novos papéis foram se constituindo: um dos primeiros que se
destacou foi o livreiro-editore. Preocupados com o lucro e com os rumos da lógica editorial, os
livreiros-editores foram responsável por grandes inovações materiais, comerciais e culturais vi que
contribuíram, invariavelmente, como guias das práticas de leitura e do próprio processo civilizador.
O papel do autor, por sua vez, foi uma questão que percorreu todo o Antigo Regime, até alcançar uma
conceituação mais precisa, caracterizando-se mesmo certa indefinição sobre seu próprio conceito. O
direito de declarar a autoria de uma obra é algo que começa a ser delineado, mas que permanece sem
uma caracterização sólida, até meados do Século XIX.vii O direito autoral não tinha, então, cunho de

2 Elementos de desenho, e pintura. E regras geraes de perspectiva. Dedicadas ao Senhor Rey D. João VI.
Por Roberto Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 3.

134
propriedade intelectual, e considerado um privilégio, poderia ser revogado ou mesmo ignorado,
resultando na perda dos direitos e na impressão não autorizada de livros. viii
A instabilidade acerca da propriedade intelectual personificava o principal motivo da inconstância
da vida do homem de letras. Não era possível viver da própria pena, fazendo com que o autor
procurasse outros trabalhos, especialmente os cargos públicos. Buscavam também o apoio de um
mecenas, alguém que fosse capaz de lhes oferecer tanto um suporte financeiro quanto a estabilidade
de que necessitavam para se dedicarem às suas obras. Os cargos públicos eram conseguidos por meio
do mesmo prestígio, das mesmas trocas com que se acordavam as práticas do mecenato. E eram
variadas as considerações que determinavam o patrocínio do Estado, recompensando-se em certos
casos, letrados cujos escritos constituíssem propaganda favorável ao regime vigente.
No processo para a aquisição de tais privilégios, para os letrados de qualquer origem, encontram-se
as dedicatórias impressas. Esse era um procedimento carregado de simbologia, que abria as portas e
garantia o futuro de muitos letrados. Além disso, o mecenato privado era menos almejado que o
apoio de um soberano; aqueles que não podiam contar com suas propriedades, cargos ou rendas,
aparentemente eram agradecidos por depender de gratificações da realeza. O amparo de um soberano
ia além das ambições de um mecenas opressor: com a proteção de um soberano, apesar de algumas
concessões serem necessárias, como as obras encomendadas, o letrado sofria menos censura e podia
obter maior liberdade para seu pensamento e seu espírito filosófico. ix
Como o poder de um mecenas da realeza era superior ao de qualquer outro, não surpreende, portanto,
o número de dedicatórias direcionadas aos soberanos. A dedicatória personificava, no universo dos
livros, a relação de patronato e proteção já existente nas relações sociais. No contexto do Antigo
Regime, o oferecimento de um livro ao soberano, com o objetivo de elogiá-lo e homenageá-lo,
constituiu um dos gestos mais tradicionais de submissão do autor. Estabelecia-se uma relação entre
autor e soberano, ao se publicar uma dedicatória, e essa relação iniciava-se, nas primeiras páginas de
um livro, saído de um prelo.
O ato de homenagear o soberano, por meio da dedicatória, em geral, esperava por uma recompensa,
nem sempre recebida, sem que isso significasse um abalo para a prática. Em uma sociedade de trocas,
a dedicatória favorecia aquele que oferecia a homenagem e, também, ao soberano que, elogiado e
reconhecido, muitas vezes, como fonte de inspiração, colecionava em sua biblioteca símbolos de seu
poder absoluto. A homenagem atendia, assim, aos interesses de ambos, estabelecendo-se como
recurso bastante valioso e necessário na Europa. As dedicatórias são capazes de estabelecer uma
primeira rede ao redor daquele que oferece a homenagem, possibilitando uma aliança entre
soberanos, grandes e escritores ou eruditos, ligada a uma Europa das Luzes. x A utilização da

135
dedicatória, por conseguinte, uniu homens de letras que visitavam idéias filosóficas iluministas, a
uma valorização das formas clássicas de mecenato.
Ainda no século XVIII, a dedicatória apresentava-se como uma das melhores formas de atrair
as boas graças de um rei.xi Especialmente no ambiente do Antigo Regime, em que o aspecto físico
das obras era altamente considerado, e o material com que se fabricava a página tão importante
quanto a mensagem nela impressa. xii O oferecimento de uma obra estava ainda sujeito a outra
ocorrência, a da apropriação de uma publicação. A valorização do ato de se dedicar uma obra, e dos
privilégios que poderiam ser adquiridos, levou livreiros e tradutores a se apropriarem de uma obra
para dedicá-la. Doavam obras que não haviam escrito, utilizando-se do texto das dedicatórias para
buscar para si a proteção real, o que ocasionava rivalidade, especialmente entre o autor da obra e
aquele que havia produzido a edição.
Os elogios impressos funcionaram em sociedades nas quais circulavam poder, dinheiro e
vontade dos poderosos – nem sempre estáveis –, e, portanto, sujeitas às possibilidades de mudanças.
Quando bem sucedido o tributo, o que homenageava garantia um mecenas, um protetor; ao ser
elogiado, o soberano sentia-se louvado e demonstrava seu poder sobre os demais. Com a compilação
de várias obras dedicadas, várias joias na coleção, a biblioteca passava a ser mais do que uma coleção
de riquezas ou de obras úteis, mas “um espelho onde se reflete o poder absoluto do príncipe”. xiii
Independentemente de serem organizadas em uma coleção, as dedicatórias destacaram-se
como objeto personificador da troca de poder simbólico, como representação do reconhecimento
público de submissão ao poder do soberano. Essas relações de mecenato, características do Antigo
Regime, também se manifestaram no Antigo Regime dos trópicos.xiv Mesmo na América Portuguesa,
já se manifestavam características político-sociais, acolhedoras para esse tipo de trocas simbólicas.
Antes mesmo das primeiras publicações da Impressão Régia contarem com páginas destinadas às
dedicatórias, reproduzia-se no Brasil um débil ambiente europeu: sua política, burocracia e suas
relações de sociabilidade foram trazidas pelos portugueses, características que seriam
compartilhadas de forma mais profunda após 1808.
O sistema de mercês era prática antiga na sociedade lusa, forma de acumulação presente em todo o
âmbito do Antigo Regime português, uma vez que produzia súditos para a Coroa, gerando laços de
lealdade e interdependência. A chamada “economia do bem comum” apoiava-se na concessão de
privilégios, pelo Rei ou por suas autoridades, em troca de serviços prestados, como garantia de
monopólios e apoio político. Essa rede de alianças, baseada em uma rede de reciprocidades, por meio
de dons e contradons, era arquitetada em nome da manutenção do “interesse do bem comum” e do
“bem-estar dos vassalos”; leia-se do bom funcionamento do governo e dos interesses da coroa,
admitidos como o bem comum. Tal sistema permitia não somente o monopólio de bens e serviços

136
indispensáveis ao público, como a estruturação de um mercado regulado pela política e uma
hierarquização social excludente, típica do Antigo Regime. xv
Para organização e afirmação do governo de D. João no Brasil, fez-se necessária a distribuição de
títulos, comendas, honras, mercês, cargos públicos e privilégios. Essas benesses, porém, foram
menos generosas com os naturais da terra, que, além de representarem um número menor de
indivíduos que receberam títulos, também foram agraciados com titulações mais baixas na hierarquia
nobiliárquica, perdendo espaço para os recém-chegados portugueses. xvi Ainda assim, as elites da
América Portuguesa não deixaram de buscar pelo aumento de sua distinção social.
O ato régio de concessão de honras e privilégios, aos súditos de origem portuguesa ou aos nascidos
no Brasil, foi elemento que instituiu a chamada “economia do dom”, em que os beneficiados
passaram a estar ligados ao monarca por uma rede assimétrica de relações de trocas de favores e
serviços. O favorecimento pelo rei era procurado por ter o poder de aumentar o status de nobreza e
grandeza, o que contribuía para a formação de uma sociedade altamente hierarquizada e excludente.
Além disso, essas concessões eram demonstração do esforço do rei em controlar a representação dos
xvii
indivíduos na sociedade, regulando da mesma forma as delimitações hierárquicas. A
exclusividade sobre a distribuição dos privilégios concedia ao monarca domínio sobre as estruturas
sociais e institucionais, tanto na corte quanto em suas periferias.
A vinda da Família Real e a abertura da Impressão Régia permitiram que essas relações de troca
fossem traduzidas em sua forma impressa, concedendo novas oportunidades, especialmente à elite
de letrados. O indivíduo que requeria uma mercê ou oferecia uma homenagem, em troca das boas
graças reais, reafirmava sua obediência como súdito. A legitimidade dessa troca de favores não
garantia, no entanto, no caso das dedicatórias impressas, a obrigatoriedade da retribuição. Os
acontecimentos do ano de 1808 permitiram, por conseguinte, uma nova dinâmica das relações de
uma “economia política de privilégios”, que relacionava, em termos políticos, o discurso da
conquista e a lógica das graças inscrita na economia de favores estabelecida por meio da
comunicação pelo dom. Esta já ocorria desde meados do Século XVII, uma vez que o Brasil era área
privilegiada na hierarquia espacial do Império Português, mas diante da nova situação política,
assumiu novas feições em uma sociedade dominada pelo ethos aristocrático, abrindo mais espaço
para os súditos nascidos na antiga colônia.
No início do século XIX a antiga colônia apenas começava a se estruturar em sede da
monarquia: os letrados estavam sujeitos a um fraco mercado literário, o que os tornava
fundamentalmente dependentes do poder da Coroa, fato que se perpetuou ao longo de quase todo o
oitocentos. Assim, para sobreviverem, necessitavam das benesses reais para manter uma carreira
estável e alcançar cargos na burocracia administrativa. No ambiente luso-brasileiro – carente de um

137
público consumidor mais amplo, que pudesse proporcionar aos produtores dos bens simbólicos
determinada autonomia –, era a Coroa quem assumia a função não somente de mercado para os bens
simbólicos que surgiam, mas de instância de reprodução, difusão e, especialmente, de consagração
para eles. Não havia espaço, assim, para a ruptura de vínculos com uma economia de mecenato; o
sistema de produção e circulação de bens simbólicos estava sujeito a determinados critérios de
avaliação dos produtos por parte da Coroa – que ainda era principal responsável pelo reconhecimento
do valor desses bens, concedendo-lhes tanto remuneração material quanto simbólica.
O contexto do Brasil que recebeu D. João e sua corte assemelha-se ao contexto de Portugal
do início do oitocentos: um alto número de iletrados, uma cultura fortemente marcada pela oralidade
e uma cultura escrita reservada apenas a alguns homens notáveis. xviii Em um Rio de Janeiro colonial,
a recriação do aparelho central do Estado português e a demanda pela modernização de acordo com
o modelo europeu alteraram drasticamente o estilo de vida. Os desejos de D. João de permanecer no
Rio de Janeiro aproximaram a cidade de forma efetiva ao status de capital do império luso-brasileiro.
Embora visto como um monarca cujos traços de caráter se sobrepunham às habilidades políticas, D.
João demonstrou-se responsável pelo impulso de emancipação intelectual e, logo, pela formação de
intrincadas redes de práticas culturais no Brasil. A Impressão Régia, além de documentos oficiais,
cuidou da publicação de jornais, de obras de cunho científico e literário, e de folhetos políticos. O
ritmo crescente de publicações estimulou o estabelecimento de livreiros e livrarias, mas ainda assim,
para a restrita elite letrada, vivendo em uma cidade com um fraco mercado literário, o uso das
dedicatórias atingiu grande importância.
Pode-se observar que as primeiras publicações da Impressão Régia já contavam com páginas
destinadas às dedicatórias. A produção de livros no Rio de Janeiro dependia quase exclusivamente
única tipografia oficial, e a leitura de livros continuava sendo um privilégio de poucos. Foram
publicadas, entre 1808 e 1822, 1428 obras. Destas, 229 foram oferecidas em homenagem, dividindo-
se da seguinte forma:

138
Ano Obras Publicadas Obras oferecidas
1808 37 09
1809 69 21
1810 94 15
1811 73 25
1812 72 22
1813 37 09
1814 35 09
1815 56 07
1816 52 14
1817 66 19
1818 50 17
1819 43 09
1820 46 07
1821 270 24
1822 428 22
Total 1428 229
Fonte: Ana Maria de Almeida Camargo & Rubens Borba de Moraes. Bibliografia da Impressão Régia do
Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993. V. 1.

Infelizmente, não foi possível localizar exemplares de todas as 229 obras, mas através de
obras de referência como o referido inventário da Bibliografia da Impressão Régia Ana Maria de
Almeida Camargo & Rubens Borba de Moraes pôde-se estabelecer o número de obras oferecidas à
diversos indivíduos, como por exemplo aos membros da Família Real:

D. João: 96 D. Pedro & D. Leopoldina: 1


D. João & D. Carlota: 1 D. Leopoldina: 1
D. João e Príncipes Reais: 1 D. Maria Teresa: 4
D. Carlota Joaquina: 1 D. Maria Teresa e D. Pedro Carlos: 1
D. Maria I: 8 D. Pedro Carlos: 4
D. Pedro: 17 D. Maria Anna: 1

As homenagens escritas pelos componentes da elite intelectual do Brasil tinham na retórica


a tônica de seus discursos, fundamentando argumentações específicas para o público (ou indivíduo)
a que se dirigia, capazes de seduzir o leitor, envolvendo-o para se atingir o objetivo desejado.xix O
tom laudatório visava convencer o soberano da lealdade e do merecimento de favores e mercês. Os
textos eram marcados pelas citações de clássicos latinos ou de autores europeus em voga, utilizadas
para fundamentar a argumentação, e conceder credibilidade ao escrito. As frases bem escritas e a
retórica do convencimento e do elogia assumiam grande importância nessa sociedade em que a
educação era vista como ornamento. A utilização da retórica oferecia diversas possibilidades no

139
engendramento de elogios, levando o leitor a tomar como verdade o que lia, e envolvendo-o para
atingir o objetivo desejado. Além dos elementos citados, encontram-se citações bíblicas e de fatos
históricos, afirmações de submissão e lealdade; elogios a toda a ascendência do homenageado;
enaltecimento às características de temperamento e de caráter; além dos desejos de um futuro
próspero. A grande maioria das dedicatórias termina em uma espécie de “expressão-padrão” - “o
mais fiel e humilde vassalo” -, antecedendo a assinatura daquele que oferece a obra.
As dedicatórias no Brasil joanino não foram impressas apenas em obras literárias ou científicas com
suas primeiras páginas reservadas ao espaço da homenagem. Grande parte das obras elogiosas
constitui-se de orações, sermões, odes, poesias e cantigas em louvor. As primeiras se destacam em
número, oferecidas em ação de graças ou em louvor fúnebre, confirmando a importância do fervor
religioso da corte portuguesa. Era comum quando da publicação de uma oração, que essa fosse
oferecida a outro que não fosse o objeto de seu pronunciamento, mas outra figura expressiva que
guardasse relação com o elogio original. Também é possível observar que, independente de quem
fosse o alvo das dedicatórias, estavam presentes os elogios ao soberano D. João.
No período delimitado para pesquisa, existiu ainda uma imprensa particular, entre os anos de 1811
e 1819: a Tipografia de Antônio Manuel Silva Serva, em Salvador, Bahia. xx Essa casa impressora
publicou 127 obras, das quais 37 foram dedicadas. Destas, 11 destinaram-se a D. João VI, 8 a D.
Marcos de Noronha e Brito (Conde dos Arcos), sendo as demais dirigidas a membros da Família
Real e das elites. Assim como no caso da Impressão Régia, a distribuição dessas obras também
acompanhou a dinâmica política da Corte, reagindo a acontecimentos como a elevação do Brasil a
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves; aos clamores de Portugal pela volta de seu soberano
após a derrota de Napoleão; a aclamação do rei D. João VI e afirmação do Rio de Janeiro como
capital do império português; as Revoluções de Pernambuco e do Porto; e à volta do soberano D.
João em 1821 (que tornou D. Pedro o objeto expressivo das dedicatórias.
Somando-se as obras elogiosas publicadas pela Impressão Régia e pela A Tipografia de Silva Serva,
tem-se um total de 265 publicações. O grupo de autores contabiliza mais de 130 letrados. Ao se
considerar as possibilidades de acesso ao letramento, esse número torna-se expressivo. Ainda assim,
observam-se possibilidades variadas para o uso das homenagens impressas. Os textos das
dedicatórias seguiram de maneira muito próxima a expressão da prática em sua forma original.
Em geral seguiam o propósito da homenagem, procurando chamar atenção para a requisição de seus
autores. Assumiam também a forma de agradecimento por algo já recebido. Procuravam ratificar a
posição de súdito fiel, e comprovar o merecimento de mais benesses. O espaço da dedicatória podia
abrigar explicações sobre os motivos que levaram à publicação, e de que forma esta poderia ser útil
às aspirações do homenageado e para o Brasil.

140
Ocorriam requerimentos de privilégios como a exclusividade dos direitos de impressão e a
obrigatoriedade do pagamento por esses direitos. Alguns autores valiam-se do espaço aberto pela
homenagem para comprovar suas habilidades intelectuais e sua importância, tentando
demonstrarem-se indispensáveis. Nesse ensejo, ainda que de forma incomum, observam-se
sugestões para elaboração de novas e igualmente úteis e imprescindíveis publicações.
Quaisquer que fossem os objetivos, estavam presentes as humildes afirmações de súditos e
vassalos, prontos para utilizarem seus préstimos a fim do engrandecer e glorificar o soberano e o
Brasil. É importante destacar a presença de afinidade de ideias entre os autores e o monarca, e o fato
de que as homenagens extrapolavam o espaço das dedicatórias e se faziam presentes ao longo do
texto dos livros e também de outros impressos capazes de manifestar apoio - como periódicos e
folhetos.
A dedicatória assumiu o papel de impulso a uma trajetória mais proveitosa e engajada com as elites,
e ao estreitamento dos laços com o círculo social da família real. Para alguns letrados, suas relações
com o soberano perpetuaram-se ao longo de suas vidas. Nem todos conquistaram o sucesso, porém,
pode-se observar que uma parte expressiva dos autores que tiveram seus livros publicados entre 1808
e 1822 e até além, dedicaram ao menos uma de suas obras. E, frequentemente, mantiveram a prática
dos elogios em seus escritos subsequentes. Ainda que de forma lenta e gradual e por seleto grupo, a
prática das homenagens impressas, através das obras dedicadas, foi capaz de se enraizar de tal forma
que sua permanência pode ser percebida ao longo de quase todo século XIX.
É interessante notar que, muitas vezes, essas homenagens assumiam outros
significados, como o agradecimento por algo que já havia sido recebido, procurando comprovar o
merecimento de mais benesses. Outro uso para as dedicatórias era a justificativa para a escolha do
conteúdo do texto, buscando exaltar o valor da obra para os leitores, e comprovar as habilidades
intelectuais do autor e sua importância para a sociedade. Quem oferecia a obra nunca se esquecia de
se colocar de forma modesta, oferecendo destrezas naturalmente inspiradas pelo soberano. Se
possível, aproveitava-se do espaço para sugerir encomendas. Quaisquer que fossem os objetivos para
se oferecer uma obra ao soberano, encontravam-se presentes as humildes afirmações de súditos e
vassalos, prontos para utilizarem seus préstimos a fim do engrandecer e glorificar o soberano e o
Brasil.
A maior parte daqueles que se dispunha a publicar uma obra com dedicatória já possuía algum
envolvimento com as elites vigentes; não poderia ser diferente em um ambiente onde a ilustração era
privilégio de alguns poucos. A dedicatória assumia, então, o papel de impulso a uma trajetória mais
próxima da vida política, a uma carreira mais proveitosa e engajada com tais elites e ao estreitamento
dos laços com o círculo social da família real. Pode-se concluir que, além de se assemelhar à prática

141
das dedicatórias nascida no ambiente do Antigo Regime, o uso dessas homenagens conseguiu trilhar
um caminho próprio em sua manifestação tropical.
Ainda que a pesquisa ainda se encontre em andamento, dois exemplos nos permitem perceber que a
prática da utilização de dedicatória se estendeu ao longo do século XIX no Brasil, ainda com suas
características de elogio público. A primeira se encontra na História Geral do Brasil, de Francisco
Adolfo de Varnhagen, em que o autor não apenas agradece à generosidade do monarca com relação
ao IHGB, mas também o acolhimento da obra:

A SUA MAGESTADE IMPERIAL,

O SENHOR D. PEDRO II.

SENHOR,

O Brasil todo sabe que ao generoso amparo de Vossa Majestade Imperial deve
o seu Instituto Histórico a existência, e que dele Imediato Protetor de fato, Vossa
Majestade Imperial o Fez instalar no próprio Paço, e Assiste ás suas sessões literárias
no intuito de fomentar o estudo da Pátria História, tão importante ao esplendor da
Nação, á instrução comum e até ao bom governo do país. O autor do presente ensaio
de uma compendiosa HISTORIA GERAL DO BRAZIL, votada áquela associação,
de que faz parte, e a cujas publicações e impulso
tanto deve, beija pois reverentemente com o mais espontâneo fervor a Mão do Sábio
Imperante, que Protegeu também esta obra, não só Protegendo o mesmo Instituto,
senão Favorecendo e Estimulando o autor delia com Regia Munificência.

SENHOR! Ao alistar-me em último lugar entre os cronistas da Terra de Santa


Cruz, afanei-me por estremar patrioticamente os fatos mais importantes, e por os
referir com a maior imparcialidade; e a tal respeito a voz da consciência não me
acusa o mínimo escrúpulo. E Dignando-se Vossa Majestade Imperial acolher
benignamente este trabalho, que, apesar das suas irregularidades e rudeza que a lima
do tempo irá afeiçoando, ousei dedicar a Vossa Majestade Imperial, desvaneço-me
a publicar que ao Seu Glorioso Reinado, eminentemente
organizador como a seu tempo dirá friamente a Historia, deve todos os elementos
para ele.

Como os demais súditos de Vossa Majestade Imperial, segue implorando ao


Altíssimo que por dilatados anos perpetue o mesmo Augusto Reinado, para
felicidade e gloria da Monarquia Brasileira,

SENHOR,
De Vossa Majestade Imperial,
o mais humilde e leal súdito,
Francisco Adolfo de Varnhagen

Outro exemplo data de 1883, com o Diccionario Bibliographico Brasileiro de Sacramento


Blake. O referido dicionário, ao mesmo tempo criticado e indispensável aos estudos do século XIX,
foi apresentado a D. Pedro II ainda incompleto. O imperador apoiou Blake para que a obra para que
fosse concluída, o que culminou na sucinta dedicatória:

142
A SUA MAGESTADE IMPERIAL

O SENHOR DOM PEDRO II

Quem com mais direito á oferta deste livro, do que Aquele que
ao titulo de Chefe Supremo da Nação reúne o do mais desvelado Protetor das letras?

É pois a Vossa Majestade Imperial que dedico este trabalho,


convicto de que, na altura em que se acha colocado, não recusá-lo-á,
assim como o Oceano, que

"na grã carreira, ás ondas grato


Tributo de caudais rios aceita,
Soberbo não rejeita
Pobre feudo de incógnito regato."

Augusto Victorino Alves Sacramento Blake

Percebe-se então que a prática, mesmo que com menos intensidade, ainda existia nos últimos
anos do Império. No entanto, como já afirmado, as pesquisas ainda estão em andamento, sendo
objetivo principal estudar a prática na totalidade do século XIX, a princípio privilegiando o Rio de
Janeiro. Continuarão os levantamentos de obras e tipografias, bem como a utilização de periódicos
de época e as repercussões das obras dedicadas em suas páginas, buscando descobrir se a prática se
intensificou ou desvaneceu durante os reinados de D. Pedro I, D. Pedro II e o que ocorreu no período
regencial. Surge ainda a questão do uso da prática pela figura dos letrados, a mudança de paradigmas
que trouxeram à tona o conceito de intelectual e suas ilações com as dedicatórias impressas e o
mecenato real.
Ao acompanhar com mais longevidade a trajetória daqueles que dedicavam suas obras, é
objetivo compreender que outros fatores alinhados ao ato de dedicar uma obra ao soberano tornavam
possível a um letrado cair nas boas graças de seu homenageado; e por que alguns letrados alcançavam
franco sucesso utilizando a dedicatória, ao passo que outros não tinham seus elogios bem recebidos.
No mundo luso-brasileiro, com poucas exceções, os homens de letras continuavam majoritariamente
a cortejar o poder, enquanto, depois da Independência de 1822, os escritores precisaram ser “os
guardiães nacionais pagos pela pátria” 3. Desse ângulo, cabe prestar atenção ao papel exercido pelo
Rio de Janeiro, sede da corte, em relação ao restante do país.
Sendo assim, muito ainda está sendo descoberto ao longo da realização das pesquisas, deixando
espaço para que outras questões relativas ao governo vigente, à centralização do poder, às culturas
políticas e às linguagens políticas somem-se às questões propostas e suscitem novas hipóteses,
enriquecendo o trabalho e os estudos do oitocentos e da história do livro no Brasil.

3 Diogo Ramada Curto et al. As gentes do livro. Lisboa, século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2007,
p. 21

143
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BURKE, Peter (org.). A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luis XIV. Rio
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145
Notas:

i BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 119.
ii ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia
de corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001, p.151.
iii CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória”, p. 186.
iv DIDEROT, Denis. Carta sobre o comércio do livro. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002, p. 10.
v ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia
de corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001.
vi OLIVERO, Isabelle. L’Invention de la Collection. De la diffusion de la littérature et des savoirs à la
formation du citoyen au XIX siècle. Paris : Editions de L’IMEC, 1999. p. 58.
vii NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Do privilégio à propriedade literária: a questão da autoria
no Brasil Imperial (1808-1861)”. In: Anais eletrônicos do I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio
de Janeiro. http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br. 2004.
viii DIDEROT, Denis. Carta sobre o comércio do livro. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002. p. 48-49.
ix CHARTIER, Roger. “O Homem de Letras”. In: Michel Vouvelle (dir.) O Homem do Iluminismo.
Lisboa, Presença, 1997, p. 121-122.
x DUPRONT, Alphonse. L. A. Muratori et la société européenne des pré-lumières. Firenze: Leo S.
Olschki, 1976.
xi CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória”. In: M. Baratin e Christian Jacob. O
Poder das Bibliotecas – a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2000, p. 190.
xii DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 401-
402.
xiii CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória”. In: M. Baratin e Christian Jacob. O
Poder das Bibliotecas – a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2000, p. 199.
xiv FRAGOSO et al, João. O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
xv FRAGOSO et al, João. O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 29-50.
xvi LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
xvii FRAGOSO et al, João. O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 206.
xviii NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 665-697.
xix CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. In:
Topoi, nº1, Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2000.
xx CASTRO, Renato Berbet de. A primeira Imprensa da Bahia e suas publicações.Tipografia de Manuel
Antonio da Silva Serva, 1811-1819. Bahia: Secretaria da Educação e da Cultura, 1968.

146
Entre o ideal e o natural de mulher:
as tensões da representação feminina na obra A Carne, de Júlio Ribeiro

Ana Carolina Teixeira Crispin

Resumo: Busca-se, neste texto, analisar as relações entre pornografia-erotismo e a crítica literária da
época a cerca da recepção da obra A Carne de Júlio Ribeiro - romance naturalista escrito em 1888.
Escandaloso entre os críticos, mas que foi sucesso de público, o romance traz uma personagem
histérica como era comum nos romances naturalistas, mas que pertencia às classes mais abastadas,
assim como um discurso cientificista, determinista e positivista que marcou fins do século XIX e as
primeiras décadas do XX. Por meio da análise das críticas literárias da época sobre a obra, esse
trabalho se valeu de uma epistemologia feminista, isto é, a partir de uma perspectiva relacional
compreender como os tabus a cerca da sexualidade feminina foram cruciais para que a obra fosse por
muito tempo classificada como pornográfica e de baixa qualidade entre os cânones.

Palavras chave: Naturalismo, representação feminina e histeria.

Abstract: This article analyzes the relationship between pornography-eroticism and the literary
criticism of the time around the reception of the work Carne de Júlio Ribeiro - naturalistic novel
written in 1888. Scandalous among the critics, but was a success of the public, the novel brings a
hysterical character as was common in naturalistic novels, but belonged to the wealthier classes, as
well as a scientist, determinist and positivist discourse that marked the end of the nineteenth century
and the first decades of the twentieth. Through the analysis of the literary critiques of the time about
the work, this work used a feminist epistemology, that is, from a relational perspective to understand
how the taboos about female sexuality were crucial for the work to be for a long time classified as
pornographic and of poor quality among the canons.

Keywords: Naturalism, female representation and hysteria.

A literatura é um tipo de obra ficcional em que o autor representa em forma de devaneio ou


racionalidade as suas impressões sobre o cotidiano. Legítimo vestígio histórico, que nos faz perceber
as representações do imaginário social acerca das concepções morais e filosóficas de sua
determinada época.
No século XIX, o estilo realista-naturalista nascia com o papel de reformador da sociedade e
das mentalidades de sua era, e teve a ciência como sua arma. Para tal feito, os escritores realistas-
naturalistas abordavam a fundo temas tabus e essa abordagem tinha uma intenção sanitarista. 1
Contudo, embora a origem do naturalismo esteja intimamente relacionada à origem do realismo,
essas duas estéticas são bastante diferentes. Ambas são materialistas, faziam frente à estética
romântica – que era idealista –, acreditavam na necessidade de relatar os dramas de um cotidiano
massacrante, a miséria e o egoísmo humanos. Porém, enquanto a estética realista se pautava por uma

1 BULHÕES, Marcelo. Leituras do desejo: o erotismo no romance naturalista brasileiro. São


Paulo: Editora EDUSP, 2003. p.195-196.

147
lógica racionalista e calculista, a estética naturalista surgia a partir da experimentação, do que era
orgânico, do que era fisiológico.
O estilo naturalista surgiu na França, a partir da segunda metade do século XIX, através das
obras do republicano Émille Zola em um contexto social marcado por contradições provenientes do
processo de industrialização. Com ele surge a crença de que “a literatura inevitavelmente encontraria
o caminho da ciência e, ao assumir os métodos desta, suplantaria qualquer atitude ilusória e idealista”
2
. Esta era a metodologia literária de Zola em seu Romance Experimental, onde ele defendia que o
método científico era o caminho para se alcançar a justiça e a liberdade. Para o naturalista Zola,
“todos os esforços do escritor, tendem a ocultar o imaginário sob o real” 3 e, deste modo defendia a
superação da imaginação na criação literária em benefício do que ele denominou de “senso real”.
Conforme destacou Marcelo Bulhões, a poética de Zola divulgava a crença evolucionista do
progresso humano, de matriz positivista, que pretendia romper com a imaginação, que ele acreditava
estar em declínio, e prender-se ao real tomando emprestado da ciência o método experimental. Ou
seja, o escritor não deveria jamais transcender, mas apenas reproduzir os fatos e contextos que
fossem historicamente comprováveis 4. Ítalo Carone, no entanto,destacou que foi justamente, este
empréstimo dos métodos científicos que faziam do romance naturalista uma operação puramente
imaginária5.
A dimensão natural se estabelecia através de um enfoque negativo da condição humana, no
qual o homem era influenciado pelo meio a que pertencia, assim como por sua hereditariedade
(genética). O humano era representado como um animal adoecido devido às ações exteriores ou por
seu estigma hereditário em uma condição de degeneração, mas que poderia ser regenerada através
do progresso científico. Portanto, essa estética foi profundamente influenciada pelos pensamentos
de sua época, tais como o darwinismo social e o evolucionismo, o cientificismo e o positivismo. 6
No Brasil, a recepção do estilo de Zola se dividiu em dois polos distintos: enquanto uns
admiravam a sua escrita, outros criticavam profundamente o seu caráter moral. 7 A literatura de Zola
era escrita de modo visceral, com objetivo de provocar sensações físicas. Alguns escritores
brasileiros a partir da década de 1880, profundamente influenciados por Zola e Eça de Queiroz,

2 Idem. p.105.
3 ZOLA, Émile. Do Romance. São Paulo: Editora EDUSP, 1995, p.24. Apud.: BULHÕES,
Marcelo. Leituras do desejo: o erotismo no romance naturalista brasileiro. São Paulo: Editora EDUSP, 2003. p. 106.
4 BULHÕES, 2003. Op.cit. p.105-107.
5 CARONI, Ítalo. A utopia naturalista. Introdução. In: ZOLA, Émile. Do Romance. Tradução
de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Edusp, 1995. p.12. Apud.: BULHÕES, Marcelo. Leituras do desejo: o erotismo
no romance naturalista brasileiro. São Paulo: Editora EDUSP, 2003. p.107.
6 CARVALHO, Rodrigo J. Émile Zola e o naturalismo literário. Maringá: Revista Urutágua-
UEM, n.24, 2011.
7 Idem. p. 116.

148
desenvolveram uma estética literária profundamente marcada por escritos masculinos, que tratavam
principalmente de construir diversas imagens do feminino. Aqui, a estética naturalista consagrou-se
por ser carregado de erotismo onde muitos autores valorizaram a temática sexual relacionando-a com
a materialidade, dissociando-se do idealismo romântico oitocentista. Os autores brasileiros que
seguiram essa estética do mesmo modo exploraram temas relacionados à sexualidade humana, o que
fez com que muitos críticos da época julgassem algumas das obras como pornográficas.
Para evitar tais rótulos, muitos autores naturalistas associaram seus escritos a uma linguagem
científica para assegurar a credibilidade e a veracidade de suas teses. Os escritores naturalistas do
Brasil foram mais fortemente influenciados pelo Thérèse Raquim, de Zola, relacionando os escritos
literários naturalistas a uma necessidade de medicalização da sociedade brasileira. 8 Portanto por seus
“estudos de temperamento”, caracterizando-se por “uma crescente e obsessiva medicalização da
linguagem e dos personagens romanescos.” 9 Esse tipo de linguagem, caminhava junto com um
processo político de normatização do saber médico que teria a finalidade de solucionar os mais
diversos problemas da cidade, com objetivos higienistas sobre a sociedade.
O Cortiço (1890), O Mulato (1881) – ambas de Aluízio Azevedo – O Bom-crioulo (1895),
de Adolfo Caminha, que retrataram a degradação humana nas baixas classes sociais tiveram boa
recepção da crítica da época e, permanecem até os dias de hoje como grandes clássicos da estética
naturalista brasileira. Aos olhos das elites, que liam e compravam livros, os corpos degradados das
camadas subalternas eram corpos de outros e, portanto não havia identificação. Entretanto, em O
Homem (1885), de Aluízio de Azevedo e em A Carne (1888) de Júlio Ribeiro por tratarem dos corpos
das elites, ou seja, retratarem desvios de comportamento sexuais nas moças brancas da elite foram
muito mal recebidos pela crítica sendo acusados de inverossimilhança, 10 pois fugia do projeto
modernizador e sanitarista da sociedade brasileira, cuja figura feminina burguesa 11 deveria ser
representada como esposa e mãe, isto é, uma mulher de virtudes que deveria preservar a sua honra.

8 ENGEL, Magali G. Imagens femininas nos romances naturalistas brasileiros (1881-1903). São
Paulo: Revista Brasileira de História, v.9, n.11, ago/set.1989, p.238.
9 SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua história: o
naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. p. 120.
10 MENDES, Leonardo. Júlio Ribeiro, o naturalismo e a dessacralização da literatura. São
Gonçalo: Pensares em Revista, n.4, jan/jun. 2014. p.32.
11 HAHNER, June E. Honra e distinção das famílias. IN.: PINSKY, Carla; PEDRO,
Joana.(org). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2016. pp.43-64.

149
1. A Carne: um romance naturalista e a recepção da crítica

O romance naturalista A Carne, de Júlio Ribeiro publicado em 1888, em resumo, conta a


história de Helena Matoso, apelidada por Lenita, moça órfã, extremamente culta e bela que perdeu
sua mãe no parto e aos 22 anos, após a morte do pai, foi morar numa fazenda do interior de São
Paulo, na residência do coronel Barbosa que tinha sido tutor de seu pai. E foi neste lugar que ela
despertou para os “desejos e prazeres da carne”. Rica, independente, muito bem instruída, recebera
uma educação para além das moças de sua época. A moça fora educada pelo pai, recebendo instrução
elevada: aprendeu gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, e
tantas outras ciências. Era uma mulher ilustrada, mas que sempre se recusava a casar. Sobre a recusa
do casamento, o pai de Lenita ainda no primeiro capítulo do livro ressalva:
Sabes que mais? estou quase convencido de que errei e muito na tua educação: dei-
te conhecimento acima da bitola comum e o resultado é ver-te isolada nas alturas a
que te levantei. O homem fez-se para a mulher e a mulher para o homem. O
casamento é uma necessidade já não digo social, mas fisiológica. Não achas, de
certo, homem algum digno de ti? 12

Após a morte do pai, no entanto, Lenita muda-se para a fazenda do tutor de seu pai, o coronel
Barbosa. A mocinha já instalada na fazenda perde a “sede de ciência” que antes a instigava, passando
a entreter-se com a leitura de obras mais sentimentais. Esse é o momento da feminilização de Lenita,
mas que já não tinha o pai para casá-la. Com isso, a mocinha passou a ser acometida por sucessivas
crises histéricas. Essas crises são descritas como um mal que a deixava de cama, abatida, mole. 13
Porém, também se manifestava em cenas de erotismos, sadismo, voyerismos.
A primeira manifestação de desejo de Lenita ocorre em sonho erótico com um gladiador de
bronze, pouco depois de sua chegada à fazenda. Sucessivas crises de ardente desejo e perversão
acometem a personagem, que passava a “beliscar as crioulinhas, picava com agulhas, feria com
canivete os animais que lhe passavam ao alcance.”14 Em outro momento, o narrador demonstra o
prazer sádico da personagem feminina observando às escondidas a dor de um escravo ao ser açoitado
pelo bacalhau. 15 Passava então, a observar do coito entre animais e escravos. Tais cenas descrevem
um comportamento sexual voyerista e sádico, mas que no romance não é tratado como patológico,
mas como fisiológico: “era a voz da carne a exigir dela o seu tributo de amor, a reclamar o seu

12 RIBEIRO, Júlio. A Carne. São Paulo: Editora Três, 1972. p.24-25.


13 Idem. p.31.
14 Idem. p. 48.
15 Idem. p. 52.

150
contingente de fecundidade para a grande obra da perpetuação da espécie.” 16 Assim, Lenita passou
a cogitar a possibilidade de ter amantes:
Teria amantes, por que não? Que lhe importava a ela as murmurações, os diz-que-
diz-ques da sociedade hipócrita, maldizente. Era moça sensual, rica – gozava.
Escandalizavam-se, pois que se escandalizassem.
Depois, quando ficasse velha, quando quisesse aburguesar, viver como toda a gente,
casar-se-ia. Era tão fácil, tinha dinheiro, não lhe haviam de faltar titulares, homens
formados que se submetessem ao jogo uxório que lhe aprouvesse a ela impor-lhes.
Era pedir por boca, era só escolher.17

A citação acima já nos revela o que iria ocorrer até o desfecho do livro. Para as ideias da
época, que concebiam a virgindade no casamento como um capital mais precioso, as palavras de
Lenita eram escandalosas para a época. Aquelas que não valorizavam a virgindade eram
consideradas como amantes, sedutoras, prostitutas, mulheres de má fama.
O romance foi construído sobre uma perspectiva naturalista e também antirromântica. Isto
fica evidente em alguns momentos do texto, como quando o narrador esboça o que seria o amor,
afirmando que “amor e cio vêm de uma coisa só”. 18 Em outro momento, quando Barbosa envia uma
carta de Santos para Lenita, preocupando-se apenas em descrever o local que visitava e, sem tão
pouco expressar sentimentos mais profundos e complexos por Lenita, além da saudade da
convivência de ambos. 19 A mocinha do romance entrega-se a Barbosa, um homem de meia idade,
que já havia sido casado, mas estava divorciado da esposa. Porém, no Brasil, o divórcio não era
válido. Ao cogitar a hipótese de ter Lenita como sua amante afirmava que “a sociedade estigmatizava
o amor livre, o amor fora do casamento; força era aceitar o decreto antinatural da sociedade”. 20

Contudo, a abordagem de temas tão eróticos, somados às ideias de amor livre e do divórcio, parecem
ter mais assustado a crítica, que pouco o compreendeu como um escrito naturalista e, sobretudo
positivista. Como já destacamos no início do texto, o positivismo também era uma das marcas da
estética naturalista. Essa afirmativa se comprova quando Lenita resolve deixar Barbosa afirmando
que:
A sociedade tem razão: ela se assenta sobre a família, e a família sobre o casamento.
Amor que não tenda a santificar-se pela constituição da família, pelo casamento
legal, aceito, reconhecido, honrado, não é amor, é bruteza animal, é desregramento
de sentidos. Não, ela não amara Barbosa, aquilo não tinha sido amor. Procurara-o,
entregara-se a ele por um desarranjo orgânico, por um desequilíbrio de funções, por
uma nevrose. 21

16 Idem. p. 54.
17 Idem. p. 60.
18 Idem. p. 137.
19 Idem. p. 102.
20 Idem. p. 73.
21 Idem. p. 160.

151
Portanto, o momento da entrega dos amantes foi resultado da histeria que acometera a
mocinha, por falta de casamento em idade adequada para o que se acreditava na época. Lenita
dispensava os candidatos ao matrimônio, perdera o pai que já não a podia mais casar, fora para uma
fazenda, um ambiente não civilizado ficando exposta a degeneração de uma sociedade escravista,
degenerando-se também. O momento da regeneração, porém, ocorre quando ela se vê mãe. Para o
republicano e naturalista Zola, as mulheres nasceram para a maternidade e dizia “a mãe deveria ser
nossa religião”. 22
Por muito tempo os cânones literários consideraram o romance A carne
inadequado a estética naturalista, tendo Júlio Ribeiro falhado na sua execução desta estética.
Contudo, novos críticos tem se debruçado sobre o tema do naturalismo e revertendo esta visão,
fazendo surgir uma nova historiografia da literatura naturalista.
Segundo Leonardo Mendes, José Veríssimo e Machado de Assis se opunham a estética
23
naturalista. E o papel de críticos literários na época era o que fazia com que o livro fosse
consagrado esteticamente ou condenado como de segunda categoria, a livro barato. O tom da crítica
não se limitava a tecer críticas apenas aos textos, mas tinham um tom julgador de caráter moral.
Embora não fosse um jovem escritor, já tendo outros livros lançados, Júlio Ribeiro foi bastante
condenado pela crítica logo após o lançamento de A Carne, ficando quase desconhecido na história
da literatura, por ter sido qualificado como um autor menor. 24 José Veríssimo em 1889 caracterizou
a obra como um “o parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo” 25
Para Veríssimo, Júlio
Ribeiro
“escreveu A carne nos mais apertados moldes do zolismo, e cujo título só por si
indica a feição voluntária e escandalosamente obscena do romance. Salva-o,
entretanto, de completo malogro o vigor de certas descrições. Mas A carne vinha ao
cabo confirmar a incapacidade do distinto gramático para obras de imaginação já
provada em Padre Belchior de Pontes. É, como dela escrevi em 1889, ainda vivo o
autor, o parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo.138 Mas ainda
assim no nosso mofino naturalismo sectário, um livro que merece lembrado e que,
com todos os seus defeitos, seguramente revela talento.”26

Os romances naturalistas brasileiros representavam os problemas femininos relacionados a


histeria. Segundo Veríssimo, este não foi o caminho seguido por Júlio Ribeiro sendo, portanto,

22 PERROT, p.68.
23 MENDES, 2014. Op. cit. p.27.
24 SILVEIRA, Célia. p.197. Fama e infâmia: leituras do romance A Carne, de Júlio Ribeiro.
Uberlândia: ArtCultura, v. 12, n. 21, jul.-dez. 2010. p.197.
25 VERÍSSIMO, José. O romance naturalista no Brasil. EstudosBrasileiros, 2ª Série (1889-
1893). Rio de Janeiro: Laemmert &Cia, 1894. Apud.: SILVEIRA. Op.cit. p.196.
26 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. (PDF). Fundação Biblioteca Nacional.
p.143. Acessado em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/histlitbras.pdf

152
inadequado para a estética naturalista. Araripe Júnior também nega a tese do histerismo apresentada
no romance:
O autor apaixonou-se por essa tese difícil de uma mulher que, de súbito acordando
da inocência, entregou-se às fúrias da carne. Passou-lhe por diante dos olhos a
imagem da Fedra moderna; e o seu pincel, lançando-se de um lado para outro da
tela fulgurante, fê-la surgir em toda a sua beleza e consciente hediondez. Não foi,
porém, como a muitos outros tem parecido, a Fedra histérica, mas a Fedra literária.27

Até mesmo o abolicionista e republicano, como também era o autor de A Carne, Rocha
Pombo ficou escandalizado com o romance e a pessoa de Júlio Ribeiro. Segundo ele:
Não, felizmente é extravagantíssima a psicologia do crítico, desnaturado o
naturalismo do romancista, falsa, falsissima a observação do philosopho. Ainda
temos, teremos sempre donzellas immaculadas e castas, esposas purissimas, — se
submetem á natureza como todos os animais, mas que são vencidas por um
sentimento muito elevado, muito superior a necessidade phisiologica do coito — o
sentimento nobilissimo do amor: e que não se prestam, como Lenita, a “saciar-se
torpemente de gozos” com o primeiro que apareça. 28

Ao comentar os livros naturalistas lançados em 1888, Sílvio Romero chama atenção para a
personagem feminina de A Carne, que segundo ele não passava de “uma pedantesca moça,” a quem
os estudos não puderam conter os impulsos sexuais, “e que se prostituiu sofregamente com o
primeiro que lhe apareceu.” 29
Do mesmo modo, que estes críticos do século XIX, também se
escandalizou com a obra o padre português Sena Freitas, que lançou uma crítica intitulada de A
Carniça no “Diário Mercantil”, respondida por Júlio Ribeiro numa série intitulada O Urubu Sena
Freitas, pois este “farejava carniça”, publicada no periódico “Província de São Paulo”. Este embate
teve a compilação dos textos feita por Victor Caruso e publicada em 1934 sob o título Uma Polêmica
Célebre30 e está integralmente anexada na publicação de 1972 de A Carne pela Editora Três. Para
Freitas:
através daquelas feições animalizadas pela lascívia infrene, o espectador
reconhecerá sempre o símbolo repelente do epicurismo delirante, atascando-se
suinamente, insasciavelmente nas lavaduras do prazer e gotejando sempre dos
beiços novos refinamentos de luxúria. [...] O público desta província [de São Paulo]
do Brasil não está assaz civilizado e, se me permite o neologismo, assaz parisificado
para que não seja por hora uma calúnia e um grave desrespeito dar-lhe a comer a

27 JUNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de Janeiro: MEC/Casa de Rui Barbosa. Vol II, 1960, p.
123. Acessado em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=BibObPub&PagFis=7949
28 ROCHA POMBO. A carne: romance de Júlio Ribeiro. A Galleria Illustrada. Curitiba, 10 dez.
1888, v. 1, n. 3, p. 28. Apud.: SILVEIRA, 2010. Op. cit. p. 198.
29 ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira, Vol V, 5 ª ed. Rio de Janeiro: 1954, p.
1768.
30 OLIVEIRA, Lucélia Rodrigues de. Nos domínios da carne: Júlio Ribeiro, Sena Freitas e a
polêmica no século XIX. In: Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas - VIII SEPECH, 2010, Londrina. VIII Seminário de
Pesquisa em Ciências Humanas, 2010. p.1343-1344. Para analisar as querelas entre os dois personagens, utilizamos a edição
de 1972. Ver: RIBEIRO, Júlio; FREITAS, Padre Senna. A polêmica. Apêndice de: Júlio Ribeiro. A Carne. São Paulo:
Editora Três, 1972. p.181-235.

153
Carne como tigelada de sua predileção, que ele manda comprar à pastelaria do
Teixeira pelo preço dos acepides de alta gastronomia. 31

Acreditou ser a obra “tão pouco complicada, que nem propriamente se lhe pode chamar
romance.” Considerando a obra apenas indecente e nada naturalista. 32 Sendo assim, o livro para ele
foi mal feito e não tinha valor estético e nem de venda:
A carne é um romance de 278 páginas, elegantemente impresso em Portugal e
editado em S. Paulo pelo livreiro Teixeira, emérito comprador em grosso de
charqueada. Meus parabéns calorosos...
O livro custa 3$000, como já disse. É provável que a 2ª edição, se aparecer, e
aparecer expurgada, custe o dobro. Não será caro. Eu não comprei a 1ª edição e dava
6$ por aquele incontestável primor de estilo, com a placenta de menos. Mas neste
caso o romance reduzido às meras descrições aberrantes do âmago do enredo, à
dedicatória e à capa.33

Em dezembro de 1888, na Gazeta de Notícias, o jornalista Eduardo Salamonde, destacava


que “o publico comprou dous mil exemplares do livro e declarou-se profundamente indignado,
atribuindo a Julio Ribeiro a intenção de ter symbolisado no seu personagem feminino a honrada, a
sisuda, a pundonorosa mulher paulista. Os leitores percebem a levianidade da accusação.”34
Segundo Jeová Santana, a crítica ao longo do século XX pouco se modificou em relação aos
críticos contemporâneos de Ribeiro. Nelson Werneck Sodré afirmava que “A Carne terá longa vida,
apesar de todas as suas deficiências.”, porém, “marginal nas letras, não resiste à menor análise, seja
de forma, seja de conteúdo”.35 Lúcia Miguel Pereira é ainda mais precisa em sua crítica. Ela não
ameniza os defeitos do livro e encontra nele qualidades mínimas. Lenita, em sua opinião, é a causa
maior para o desarranjo estrutural da trama elaborada por Júlio Ribeiro:
O caso de Júlio Ribeiro é típico. Filólogo e polemista de valor, autor de um romance
histórico do mais desmarcado romantismo, com cenas à Eurico, deixou-se empolgar
pelos famosos ‘estudos de temperamento’. E malgrado seu poder descritivo, só
conseguiu compor um livro ridículo. 36

Mais solidária em sua crítica, no entanto, foi Flora Süssekind ao rebater as opiniões de José
Veríssimo e Lúcia Miguel Pereira, defendendo a importância dos estudos de temperamento para a
compreensão literária e histórica da sociedade brasileira.

31 FREITAS, Sena. A Carniça. In.: Uma Polêmica Célebre. Apêndice de: Júlio Ribeiro. A
Carne. São Paulo: Editora Três, 1972. p.189-190.
32 Idem. p. 187-188.
33 Idem, p.186
34 Gazeta de Notícias: Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1888.
35 SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. São Paulo: José Olympio, 1960.
p.364. Ver também: SANTANA, Jeová. Mal da leitura em A Carne de Júlio Ribeiro. Campinas: Instituto de Estudos da
Linguagem, 1998. Acessado em: http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio39.html
36 PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira, Vol. II. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1950. p. 127-29. Apud.: SANTANA, Jeová. Mal da leitura em A Carne de Júlio Ribeiro. Campinas: Instituto
de Estudos da Linguagem, 1998. Acessado em: http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio39.html

154
Seriam, no entanto, tais estudos de temperamento tão fora de propósito, tão
afastados da sociedade brasileira? Por que fizeram escola? Por que a preferência
pelas ‘nevropatas’ em detrimento de personagens coletivos ou romances cujo
cenário fosse mais amplo do que uma típica casa de família? Seria possível, ainda,
considerarmos gratuita tal referência quando associamos à voga cientificista e ao
desenvolvimento de uma medicina do comportamento no final do século? 37

Cenas de sadismo, ninfomania, perversões, nudez, encontros da heroína com um homem mais
velho, casado, entrega dos amantes ao sexo eram para época um grande escândalo sexual, que
provocaram em alguns um grande mal-estar na recepção da obra e, ao mesmo tempo em que, foram
ingredientes para o sucesso de público, tornando-se um dos romances mais lidos no ano de sua
publicação, justamente por ter recebido da crítica a feição “obsena”. 38
Um dos poucos elogios à obra veio de Manuel Bandeira, que acreditou ter sido Júlio Ribeiro,
um escritor combativo, mas que fora injustiçado pela crítica. “Ao escritor vibrátil e inovador, que
tinha até o ridículo a paixão das ideias, não lhe reconheceram os contemporâneos senão a glória de
gramático.” Para ele, a sobrevivência do livro A Carne, que em 1938 já estava na sua décima edição
pouco tinha a ver com os episódios escabrosos do livro. 39 Júlio Ribeiro, definia-se como tal e ainda
como um homem racionalista e materialista. Foi um republicano, liberal e abolicionista não de ordem
sentimental, mas pela razão. Assim, era favorável que das classes livres se libertassem dos escravos.
Foi um homem fiel ao seu materialismo e a sua razão, homem combativo ao que lhe parecia
preconceitos religiosos, sociais e literários. Morreu dois anos depois da publicação de seu romance
naturalista, em 1890, sem aceitar se reconciliar com Sena Freitas e nem a se converter.40 Foi mal
compreendido por sua época, devido A Carne trazer à tona uma imagem feminina que não pode
esconder e nem controlar os desejos de sua sexualidade. Os desejos de Lenita foram condenados
pelos críticos, pois este que era considerado um desvio para o comportamento feminino, não era
admitido nas páginas naturalistas paras as mulheres das altas classes. Esse era um comportamento
padrão para mulheres pobres, como a mulata Rita Baiana em O Cortiço de Aluísio Azevedo, que
quanto ao casamento dizia “pra que arrumar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo
que a gente é escrava!”. Afirmativa que corrobora com a tese de Rachel Soihet, 41 de que o controle
da sexualidade feminina estava vinculado ao capital e a propriedade privada, isto é, para as moças

37 SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de janeiro: Achiamé, 1984. p.208.
38 BULHÕES, 2003. p.34.
39 BANDEIRA, Manuel. Discursos Acadêmicos. Academia Brasileira de Letras. Tomo III
(1936-1950). Rio de Janeiro, 2007. p. 604-607.
40 Idem. p. 616.
41 SOIHET, Rachel. Mulheres pobre e violência no Brasil urbano. In.: DEL PRIORE, Mary
(org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p. 368.

155
pobres, sem dote, não haveria o casamento, que tinha um custo alto, fazendo com que as camadas
mais pobres vivessem em concubinato.
A historiografia mais atual, porém, vem classificando Júlio Ribeiro como um escritores
naturalistas brasileiro afinado com os ideais do republicano Zola. Ribeiro “pregava abertamente a
causa republicana em seu jornal de Sorocaba no interior de São Paulo, não permitindo nele anúncios
de escravos fugidos, 42 pois compartilhava de ideias abolicionistas. Segundo Mendes, o erotismo
exagerado em romances naturalistas como A Carne, eram escritos dentro dos discursos de estudos
43
de histeria tinham a finalidade de expor aos jovens os perigos e mistérios da sexualidade.
Entretanto, acredita-se que não havia a intenção de incentivar as liberdades sexuais, mas pelo
contrário, condenar os seus excessos que eram tão cotidianos no estilo de vida monárquico, mas
contrários aos ideias burgueses.

2. Lenita: entre o ideal e o natural de mulher.

O que representava ser mulher no século XIX? O que a sociedade esperava das mulheres burguesas
da época? A história das mulheres é marcada pela metáfora religiosa (no judaísmo, cristianismo e
islamismo) sobre a criação do mundo em que Eva conduz Adão a provar do fruto proibido, pois
queria saber e, por isso sucumbiu às tentações do diabo. Por séculos, a imagem de feminilidade fora
construída contrária ao saber. Neste sentido, as Reformas Protestantes amenizaram essa visão, posto
que todos, homens e mulheres, tinham enquanto indivíduos a obrigação da leitura da Bíblia, fato que
contribuiu bastante para que as meninas passassem a ter acesso menos restrito ao mundo das letras.
Contudo, a educação das mulheres não deveria ser como a dos homens, mas relativas a eles. Às
mulheres não se deveria ensinar mais do que serem boas esposas e mães.
Ao longo do século XIX, muitos intelectuais, como o conservador Joseph de Maistre, o
anarquista Proudhon e o republicano Zola partilham da ideia de que a mulher tinha o defeito de
querer ser homem, isto é, de querer ser culta. A instrução das mulheres, portanto, deveria ser apenas
para dar-lhes o necessário para serem agradáveis e úteis como mulheres casadas e mães de família.
44
Era isso o que se esperava das mulheres burguesas. Esperava-se que as mulheres fossem educadas,

42 MENDES, Leonardo. O retrato do imperador: negociação, sexualidade e romance


naturalista no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p.204
43 Idem. p.23.
44 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p. 92-
93.

156
mas não além do nível primário e boas conhecedoras das prendas domésticas, para que apenas
pudessem ser boas mães e esposas. Norma Telles, destacou que como as mulheres que participavam
do movimento de mulheres, isto é, as causas femininas e feministas no século XIX eram perseguidas
pelos positivistas, que justificavam às mulheres cabiam o papel de exercer a maternidade 45.
Esse foi o século que se apoiou nas descobertas na medicina e na biologia, que através de um
discurso naturalista insistia na existência de duas “espécies” como forma de naturalizar os papéis de
gênero instituídos pela sociedade. Os homens do século XIX foram representados como “o cérebro
(muito mais importante que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às
mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos.” 46 Contudo, este mesmo período deu origem
a Nova Mulher na Europa e nos Estados Unidos, que pretendia a sua emancipação, estando engajadas
no movimento de mulheres, ou na causa das mulheres47 que levantavam a bandeira de direitos iguais
para a educação, pois viam no acesso a uma educação de qualidade a forma de conquistarem a sua
emancipação profissional e financeira.
Do mesmo modo, pensaram algumas mulheres no Brasil, que buscaram se emancipar através
do movimento de mulheres. Eram rebeldes, escritoras e abolicionistas responsáveis até pela gestação
de uma literatura feminina. 48 Mulheres da segunda metade do século XIX criaram jornais femininos,
cuja uma das principais finalidades era para incentivar a escrita feminina e a comunicação entre
mulheres.
Dentro deste contexto, o cenário que se desenhou a partir da segunda metade do século XIX
estendendo-se até o século XX era o da submissão dos corpos para uma nova ética do trabalho e
sobre novos padrões morais de comportamentos sexuais, afetivos e sociais. Paradoxalmente com a
República, estes padrões se tornaram mais rígidos para a legitimação dos novos parâmetros de vida
burgueses que se sobrepuseram aos valores antigos, aristocráticos. Aliada a modernização
republicana estava a psiquiatria, que se comprometia com a construção de uma nova feminilidade e
com as políticas de controle social.
Segundo Engel, no Brasil, a construção da loucura como doença mental está atrelada a
estratégias de normatização dos parâmetros burgueses. 49 Sendo assim, apenas a maternidade, tida na

45 TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. IN.: DEL PRIORE, Mary (org). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p.382.
46 PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2017, p.186.
47 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p.153-
162.
48 TELLES, Norma. Rebeldes, escritoras, abolicionistas. Revista de História, São Paulo, 120,
p.73-83, jan/jul. 1989.
49 ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. IN: DEL PRIORE, Mary (org). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p.323.

157
época como a verdadeira essência da mulher, pois estava inscrita em sua natureza poderia salvar as
mulheres da loucura. E aquelas que não quisessem ou pudessem ter filhos, cedo ou tarde
enlouqueceriam. 50 A esta loucura, a literatura médica da época denominou de histeria, que só poderia
ser prevenida através do casamento, evitando entre os jovens, principalmente as mulheres, excessos
ou perversões na realização do desejo e do prazer 51. Em termos ideais, a mentalidade da época
concebia o casamento como a único meio aceitável para as mulheres exercerem a sua sexualidade
feminina e, portanto, tornarem-se mães. No discurso médico da época, a instituição do casamento
aparece instituição higiênica bem mais que religiosa. Talvez por isso se deva o apoio ao divórcio na
obra de Júlio Ribeiro, mas, sobretudo, ao desfecho da obra que é a desistência da relação entre os
amantes para que Lenita exercesse a maternidade plenamente dentro do casamento, mesmo que com
outro homem que não o pai de seu filho.
Júlio Ribeiro, como os demais escritores naturalistas brasileiros não se furtaram ao discurso
médico da histeria como componente essencial de seu romance. A representação da imagem
feminina no século XIX no discurso médico formulava como saudável aquela mulher que exercia a
maternidade, muito embora, mesmo que na prática muitas mulheres diagnosticadas como histéricas
fossem mães e esposas. A imagem da mulher histérica era representada pelo discurso médico e
literário como aquela que se furtava ao casamento e a maternidade. Magali Engel examinando alguns
textos médicos do século XIX e princípios do XX constatou que:
A perspectiva predominante no discurso médico do período tende, pois a associar a
histeria à natureza feminina, e ainda a distorções no que se refere a abstinências,
excessos e, ou ausência da finalidade reprodutora.52

O imaginário social da época concebia a imagem de uma mulher irascível quando passada da
idade do casamento. Desde a Antiguidade, a essência das representações masculinas sempre estivera
relacionada à razão, enquanto às femininas estão diretamente ligadas ao instinto. Segundo
Aristóteles, as mulheres estão na fronteira entre o humano e o animal, são defeituosas, são um homem
inacabado. Assim, enquanto o homem é o criador, a mulher é apenas um vaso. Durante grande parte
da história do pensamento filosófico, a mulher foi pensada como um ser inferior ao homem. Esse
modo de pensar ainda no século XIX penetrava no imaginário masculino a respeito das mulheres.
Segundo Auguste Comte, criador do pensamento positivista que muito inspirou os republicanos da
Belle Époque de França e do Brasil, a mulher era como mera reprodutora, pois tinha menos
inteligência e com menor razão que os homens. Diversos pensadores criaram, portanto, a imagem de

50 Idem. p. 338.
51 Idem. p. 342.
52 ENGEL, Magali G. Imagens femininas nos romances naturalistas brasileiros (1881-1903).
São Paulo: Revista Brasileira de História, v.9, n.11, ago/set.1989, p.247.

158
que naturalmente, a mulher era inferior aos homens e que, portanto, deveria ser submissa a eles. E
isso, como se pode perceber se construiu antes mesmo antes da estética naturalista. A ruptura com
essa visão natural da sujeição feminina foi acontecer bem mais tarde, em 1949, quando Simone de
Beauvoir, em O Segundo Sexo, analisou a feminilidade não como produto da natureza, mas da
cultura e da história. 53
A histeria surge na protagonista, Lenita, mesmo antes de se entregar de vez aos “desejos da
carne.” O desejo sexual da personagem feminina, em nenhum momento é negado na narrativa, mas
afirmado como “incomum” para uma imagem da mulher, pois era carregado de um erotismo que
denotava um prazer sádico e cruel. A representação de mulheres sedutora, cheias de iniciativas, até
mesmo agressivas e insanas tecida nos romances naturalistas, relacionava-se ao imaginário social
dos oitocentos de que a procriação em conjunto com o casamento eram essenciais para a realização
feminina. Assim, o desejo feminino ligava-se ao casamento e à maternidade para as moças de boa
conduta moral e, nunca a mera satisfação prazer sexual. A satisfação sexual feminina, não era
concebida, pelo contrário era mal vista e tida como desvio próprio das moças pobres, que só podiam
contentar-se com o destino do concubinato como meio de satisfação afetiva e sexual, devido à
ausência de bens e capitais.
Toda a erotização nas representações naturalistas era, portanto, modo de demonstrar a
degeneração humana, que se aproximava dos instintos ao afastar-se dos ideais concebidos como
civilizados e, portanto a uma condição de animalização. O erótico ao estilo naturalista aparecia
sempre próximo ao grotesco, repulsivo, perverso e animalesco, sempre resultante de um meio e de
seres degenerados.
Deste modo, Lenita foi construída sobre a imagem da mulher histérica e, não de uma mulher
livre para exercer a sua sexualidade. Ela é representada como alguém que ficara com o cérebro fraco,
escravizado pela carne, dominado pelo útero, sendo dominada pelo instinto. 54 Tanto Lenita, quanto
Barbosa tem um comportamento desviante marcado por uma batalha entre mente e corpo, entre
encontros e desencontros, prazer e violência totalmente contrários aos ideais socialmente aceitos
para a época. Mais escandaloso ainda a personagem feminina ir de encontro ao amante, tomando a
iniciativa ao invadir o quarto de Manduca para se entregar a ele. E o amante ceifando a própria vida
ao tomar conhecimento do abandono de sua amante.
Sendo assim, Lenita também é representada além de histérica como também viril e, portanto
perigosa por querer saber demais, perdendo-se, portanto do único propósito considerado ideal e
natural para as mulheres o de ser mãe e, voltando a si quando a maternidade lhe é confirmada e

53 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. p. 23, 96 e 100.


54 ENGEL, 2017. Op.cit. p.346.

159
buscando a “segurança”, a proteção do homem provedor através do casamento. Segundo, Michelle
Perrot, os intelectuais do XIX acreditavam que a feminilidade e o saber se excluíam e que, portanto,
a educação das mulheres não deveria ser como a dos homens, mas apenas para torná-las agradáveis
e úteis:
um saber social , em suma. Formá-las para seus papéis futuros de mulher, de dona
de casa, de esposa e mãe. Inculcar-lhes bons hábitos de economia e de higiene, os
valores morais de pudor, obediência, polidez e renúncia, sacrifício... que tecem a
coroa das virtudes femininas.55

Entretanto, as mulheres da elite, reivindicaram desde cedo o direito à educação, entendendo


ser este o caminho para a sua emancipação. Alguns destes escritos já circulavam no Brasil desde a
primeira metade do século XIX, muitas mulheres escreviam literatura e em jornais, criando até
mesmo jornais fenininos, como o jornal A Família de Josephina Álvares de Azevedo, que começa a
ser publicado em São Paulo em 1888.56 Acreditamos, que sobre o alarde do movimento de mulheres
é que Júlio Ribeiro constrói a sua personagem estabelecendo uma crítica ao movimento feminista da
época.

Considerações finais.

O romance de Júlio Ribeiro, A Carne, discutiu temas controversos como divórcio, família,
sexualidade. A histeria em Lenita era persistente antes de a mesma realizar a atividade sexual.
Entretanto, a personagem se vê curada da loucura histérica quando se percebe a espera de seu filho,
a partir daí a personagem deixa de manifestar outras crises histéricas, estando curada pela
maternuidade. Logo, na trama, os problemas que se seguiram depois que Lenita satisfez os desejos
da carne, são de ordem moral e social e, não mais histérica. Para solucioná-los, a mesma resolve
adequar-se a lógica social, buscando amparo no casamento para recuperar a sua honra.
Júlio Ribeiro era um mineiro, mas que vivia com sua família em São Paulo. Por sua obra
literária e jornalística, fica claro que o mesmo era um positivista, 57 A sua obra revelava uma
das maiores hipocrisias sociais do século XIX. Enquanto este se constituiu como século do erotismo,
este era um campo restrito aos homens. Ao dedicar o livro ao público de São Paulo, sem distinção,

55 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. p. 95.


56 CARULA, Karoline. A imprensa feminista no Rio de Janeiro nas décadas finais do século
XIX. IN.: Estudos Feministas, Florianópolis, 24(1): 406, jan./abril 2016. p. 269.
57 SILVEIRA, Célia R. Erudição e ciência: As procelas de Júlio Ribeiro no Brasil oitocentista.
Tese de doutorado. UNESP, Assis, 2005.

160
logo o romance foi rotulado como obra marginal e pornográfica por um conservadorismo
antirreformista, que pouco compreendeu que as intenções de Júlio Ribeiro eram de fazer provocar
uma reflexão sobre a naturalização dos papéis de gênero da sociedade burguesa, que eram muito
mais fruto de uma construção social, do que da natureza humana, atentando para a necessidade da
reforma de certas instituições sociais para a garantia da ordem. Por isso, escandalizou-se o padre
Sena Freitas que comparou a personagem a um vírus como o da febre amarela que fazia muitas
vítimas no período. Via ele, além do caráter erótico, a abordagem do amor livre e do divórcio feita
por Júlio Ribeiro como uma leitura que não era segura para moças honestas, por ser luxurioso e
obseno.
De outro modo, fora deste meio, a mulher se afastava do feminino, tornava-se masculina ou
viril, luxuriosa e perigosa. O mesmo considerou Alfredo Pujol, que dizia que “A Carne não chegaria
à posteridade. Antes disso, cairia de podre...”, porém até os dias de hoje a obra é tema de diversos
estudos nas áreas de literatura, história e psicologia. Segundo Elsie Lessa, o romance “trazia em si o
sex-appeal, que lhe valeria, ainda em 1934, do outro lado do oceano, em Portugal, o reclame de ser
lançado no índex, óleo canforado que ainda o fará viver por muitos anos...” 58
Proibido pelo Índex, rotulado como romance pornográfico e obsceno, em A Carne, de Júlio
Ribeiro, Lenita é representada como uma fêmea, que por instinto da preservação da espécie não
consegue controlar os desejos da carne e sucumbe ao entrega, supondo o desejo sexual, portanto, aos
instintos. Com isso, ela cumpriu o que a natureza lhe cobrava. Entretanto, somente se poderia
realizar-se na como mãe e, também esposa, em defesa da família, atingindo o auge de sua
feminilidade, ao cumprir o que dela e, de todas as mulheres burguesas da época, a sociedade
esperava.

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Acessado em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/histlitbras.pdf

163
O "lastro do real" reinterpretado pelo cinema documentário: um estudo sobre o filme "Os
imaginários" (1970)

Ana Caroline Matias Alencar1

Resumo: Proponho neste artigo a análise de como as reflexões sobre literatura brasileira elaboradas
por José Aderaldo Castello contribuíram para a realização dos filmes de Geraldo Sarno, cineasta
baiano que de 1966 a 1969 realizou, em conjunto com outros cineastas e em parceria com o Instituto
de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), instituto do qual Castello era
então diretor, documentários sobre cultura popular nordestina. Examinarei, por meio do conceito de
“lastro do real”, como o registro e a descrição de aspectos ao mesmo tempo regionais e nacionais
foram expressos em “Os imaginários” (1970), um dos curtas-metragens dirigidos por Geraldo Sarno
no período em questão.

Palavras-chave: Cinema Novo Brasileiro; Caravana Farkas; Intérpretes do Brasil.

Abstract: In this article it`s proposed the analysis of how José Aderaldo Castello`s writings about
Brazilian Literature contributed to the realization of Geraldo Sarno`s documentary films. Sarno is a
brazilian director, who was born in Bahia, that between 1966 and 1969 has realized documentary
films about northeast`s popular culture, gathered with another moviemakers and with the support of
the Institute of Brazilian Studies, institute that is part of the University of São Paulo and of which
Castello was then the director. I´ll examine, by the concept of “real trail”, how the registration and
the description of aspects at the same time regional and national were expressed in “The imaginaries”
(1970), one of the short films directed by Sarno in these years.

Keywords: New Brazilian Cinema; Farkas Caravan; Brazilian interpreters.

Durante meados da década de 1960, Geraldo Sarno, cineasta baiano recém-chegado de um


estágio de duração de um ano em Cuba, no Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica
(ICAIC), por conta da perseguição sofrida em Salvador, quando da instauração do regime ditatorial
no Brasil, buscou acolhida na cidade de São Paulo, onde tinha conhecidos que poderiam ajudá-lo.
Na Universidade de São Paulo (USP) encontrou um espaço propício ao desenvolvimento de seus
próprios projetos, que até então não estavam indissociavelmente relacionados ao cinema. Apesar da
aproximação com a cinematografia quando da sua presença no ICAIC, até aquele momento, a
realização de filmes não havia se confundido com seu projeto de vida.
Ao desenvolver no interior do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP um projeto sobre
cultura popular no Nordeste, em 1966, Geraldo Sarno contou com o auxílio do então diretor do
instituto, José Aderaldo Castello, em especial quando decidiu realizar, como etapa deste projeto do
qual fazia parte, a filmagem de dez documentários enfocando aspectos prioritariamente culturais,

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(PPGH-UNIRIO) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Endereço
eletrônico: anacaroline_94@hotmail.com.

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mas também econômicos de regiões interioranas do Nordeste brasileiro. Castello funcionou neste
momento como o principal estimulador da proposta de realização destes documentários, ao oferecer
o apoio do IEB à empreitada, ao buscar o financiamento pela USP e ao propor a coprodução destes
filmes ao Instituto Nacional de Cinema (INC).
Para além deste apoio do diretor do IEB, buscarei demonstrar a maneira pela qual o contato
com José Aderaldo Castello teria contribuído para a formulação, por Geraldo Sarno, de seu próprio
modelo de cinema documentário e para o delineamento da sua “estética cinematográfica” 2 No
decorrer deste artigo, analisarei de que modo a releitura feita pelo cineasta baiano da obra de Castello
teria fornecido ao cineasta argumentos, interpretações e um conjunto de temas que, reelaborados por
Sarno, poderiam, então, ser expressos nos seus filmes. Disso agora me ocuparei.

Aderaldo Castello esteve à frente de inúmeros cargos na USP, sendo um dos mais importantes
o de diretor do Instituto de Estudos Brasileiros. Exerceu esta função de 1966 a 1981, período no qual
participou da criação da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (RIEB), do acolhimento ao
documentário cinematográfico e do incentivo a jovens pesquisadores. Em 2002, foi-lhe outorgado o
título de professor emérito.
A partir das pesquisas histórico-literárias realizadas por Castello foram escritas obras como
O movimento academicista no Brasil – 1641-1820/22, constituída em seus dezessete volumes pela
reunião de documentos de época referentes ao tema, Manifestações literárias da era colonial, A
literatura brasileira: origens e unidade (1600-1960) e Aspectos do romance brasileiro. A sua
parceria com Antonio Candido, também docente e pesquisador do IEB, foi profícua para a produção
acadêmica de Castello. Exemplos desta colaboração são os três volumes da Presença da literatura
brasileira: I. Das origens ao Romantismo; II. Do Romantismo ao Simbolismo, III. Modernismo.
Recorrente nos escritos de Aderaldo Castello é o tema da autonomia. Não apenas identificada
como uma situação necessária para o desenvolvimento das Letras no Brasil, a consolidação da
autonomia artística constitui nas suas reflexões a direção para a qual rumaria a formação da literatura
brasileira. O exame a seguir de algumas das obras do pesquisador, feito a partir da exposição do
método empregado por Castello em seus estudos e da análise da maneira como tal metodologia foi
mobilizada pelo professor na observação dos casos particulares em torno dos quais giram os seus
estudos literários, será realizado de modo a explicitar o relevo assumido pela questão da autonomia

2 Este recurso teórico proposto por Ismail Xavier expressa o estabelecimento de uma relação entre as normas
particulares de que se valeriam os cineastas e as teorias gerais sobre as possibilidades e a natureza do cinema. Por ser um
conceito abrangente, me permite elucidar questões referentes às interferências mútuas entre as opções de montagem, a
escolha do documentário ao invés da ficção, o tempo de duração dos filmes, a trilha sonora, a escolha dos temas, o
argumento transmitido pela voz over. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2 ed.
rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 10.

165
artística em seus escritos. Com isso, pretendo esmiuçar aspectos fundamentais das reflexões
elaboradas por Aderaldo Castello como forma de refinar o conceito de autonomia artística, uma vez
que tal ideia se impõe como tema forte na produção cinematográfica realizada por Geraldo Sarno.
A proposta de José Aderaldo Castello, em Aspectos do Romance brasileiro, é a elaboração
de um quadro geral da evolução do romance no Brasil. Para tanto, estipula como etapas da sua
investigação o mapeamento da evolução histórica da literatura brasileira em suas três épocas
(romântica, realista e modernista) e a observação e indicação das tendências do nosso romance nas
tradições que já possuiríamos. A recusa de que as origens do romance brasileiro remontariam aos
tempos coloniais, defendida por críticos como Sílvio Romero, é acompanhada pela defesa de que
elas datariam da nossa autonomia literária, identificável, segundo ele, a partir do início do
romantismo no país.
Daí os elogios recorrentes em seu livro ao “plano excepcionalmente grandioso” idealizado e
executado por José de Alencar, cuja obra poderia ser compreendida como a primeira e mais feliz
realização do romance cíclico brasileiro. Por meio deste tipo de romance, o escritor cearense teria
procurado interpretar “os principais aspectos de nossa formação histórica e ressaltar-lhe o caráter
próprio” 3 . O professor relembra o “civismo”, o “ardor patriótico”, a “dedicação ao Brasil”
característicos da família de Alencar como modo de explicar as origens de seu sentimento
antilusitano4. Ademais, realça o valor literário e o significado nacionalista do indianismo romântico
concentrado em José de Alencar, que teria apreendido, por meio da aproximação das duas raças, a
do colonizador e a do indígena, “os fundamentos da nossa formação e das nossas tradições”5. Estes
elogios são interessantes na medida em que indicam quais as características literárias valorizadas por
Aderaldo Castello.
Ao regionalismo, o autor dedica especial atenção. Aspecto do romance social brasileiro, o romance
regionalista seria uma das principais características da literatura do país e uma das principais
tendências da nossa ficção 6. As pesquisas que tal romance exigiria conduziriam a um admirável
esforço, contínuo e renovado, de documentação da paisagem física e social do Brasil. Seria este um
dos aspectos que o Modernismo reaproveitaria do Romantismo. Entretanto, no regionalismo
modernista, o traço universalizante assumiria um vigor não perceptível nas manifestações
anteriores7.

3 CASTELLO, José Aderaldo. Aspectos do romance brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
Serviço de Documetação, 1960, p. 45-46.
4 Ibidem, p. 37.
5 Ibidem, p. 64.
6 Ibidem, p. 49.
7 Ibidem, p. 140.

166
Por meio dos elogios de Aderaldo Castello a José de Alencar, seria possível identificar os
atributos que o pesquisador preza nos nossos artistas, pelo menos nos do Oitocentos: a contribuição
para a autonomização da nossa literatura, para a elaboração de uma genuína expressão literária
brasileira, preocupada com a unidade nacional e com o seu dever de tonalidades patrióticas. Para
tanto, o registro das nossas tradições e expressões regionais seria fundamental, em especial o das
advindas do Norte, mais “puras” por estarem mais distantes da interferência estrangeira. Por meio
desta pesquisa voltada para a nossa realidade, um dos fundamentos do regionalismo, é que o Brasil
poderia ser interpretado por essa literatura.
Castello explica a necessidade do estudo das fases da literatura no Brasil pelo anúncio, na
etapa anterior, das características da próxima etapa. São, portanto, fundamentais para ele
instrumentos conceituais como “obra de transição”, continuidade, tradição, tendência, influência,
cujos empregos são exemplificados, em seus escritos, por meio da constante procura pelos inícios,
seja da literatura no Brasil, ou de um movimento literário específico, bem como pelo esforço de
identificação de traços perpetuados ao longo do tempo e expressos em diferentes períodos da
literatura. Neste sentido, a análise do romance romântico brasileiro é proposta de modo a servir ao
delineamento de um quadro da evolução do nosso romance em geral. No romance romântico, como
já foi indicado, estaria contido, por exemplo, o viés regionalista retomado pelo modernismo.
A aproximação com as teses formuladas por Antonio Candido na sua obra clássica, A
formação da literatura brasileira, escrita ao longo de toda a década de 1950 e publicada pela
primeira vez em 1959, é apreensível neste quadro do romance brasileiro traçado por Aderaldo
Castello. Os dois especialistas em nossa literatura valem-se de recursos interpretativos semelhantes,
como os de período, fase, escola, todos conduzindo à percepção das continuidades presentes nas
obras e nas gerações sucessivas de artistas. Sendo assim, não somente conceitos e instrumentais
teóricos seriam compartilhados por estes dois estudiosos, como também a afinidade com uma
metodologia de viés dialético. Procuram explicar sistematicamente o longo processo formativo da
literatura do país pela elaboração seja de um quadro do romance brasileiro, seja do sistema literário
nacional, e o fazem por meio da análise das permanências entre as nossas fases e escolas literárias,
bem como dos elementos precursores trazidos por cada uma.
O eixo do romance oitocentista, segundo Candido, foi o respeito inicial pela realidade,
manifesto principalmente na verossimilhança que procurava imprimir à narrativa. Haveria nele,
portanto, uma “proporção áurea” obtida pelo ajustamento ideal entre a forma literária e o problema
humano exprimido por ela. No Brasil, o romance romântico elaborou a realidade graças à posição
intelectual e afetiva do nacionalismo literário, orientadora do nosso Romantismo. Neste ponto, a
noção de “lastro do real” ganha contornos mais bem definidos. Nacionalismo, aí, significava escrever

167
sobre aspectos locais, e a consequência imediata disso consistiu na pesquisa das relações humanas e
na descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil.
Esta descrição foi realizada menos por um impulso espontâneo de fazê-la, do que por uma
intenção programática e patriótica. Ela fez do Romantismo uma forma de pesquisa e descoberta do
país por ter constituído um projeto nacional, para além de ter sido um recurso estético. Assim, o
ideal do romantismo-nacionalista de criar a expressão nova de um país novo teria encontrado no
romance a linguagem mais eficiente8. O regionalismo, tal como definido por Aderaldo Castello,
aproxima-se, portanto, do lastro do real examinado por Candido, sendo ambos os traços literários
grandes impulsionadores da descrição da realidade como um dever, mais do que como um recuso
estilístico, na literatura brasileira.
No primeiro volume da obra escrita em conjunto por Candido e Castello, Presença da
literatura brasileira: I. Das origens ao Romantismo, elementos constituintes das propostas dos dois
de escrita de uma história da literatura no Brasil explicitam-se sutilmente já mesmo no recorte
temporal que decidiram analisar, na denominação que adotaram das escolas literárias e nas escolhas
dos representantes de cada período.
A larga introdução ao Romantismo 9 que compõe a obra de Antonio Candido e José Aderaldo
Castello demonstra o relevo sem par deste movimento literário para os dois professores. Segundo
eles, ao retomar e ampliar a tendência barroca de realce das “contradições da realidade interior do
homem”, o Romantismo teria chegado, por meio deste testemunho pessoal, ao nacional e ao
universal. O “reflexo excepcional” adquirido por este movimento na literatura brasileira poderia ser
relacionado, de acordo com os dois especialistas, ao fato de haver coincidido com um “momento
decisivo da definição da nacionalidade”, realizada por meio do propósito de reconhecer e valorizar
o passado histórico do país, o nosso folclore e as origens americanas do Brasil. Ademais, teria
contribuído valorosamente, o Romantismo, para a o reconhecimento de uma tradição literária no
Brasil, que há tempos viria sendo esboçada no seu longo processo de diferenciação frente à literatura
portuguesa, e para que evoluíssemos “da vibração nacionalista” para a criativa elaboração literária
de sentido e conteúdo “universalizante”10.
Dos escritos e do contato com José Aderaldo Castello, sustento haver Geraldo Sarno
reinterpretado o método empregado pelo professor da USP nas suas análises sobre a evolução da
literatura brasileira. A partir da aproximação com as reflexões sobre a literatura do país elaboradas

8 CASTELLO, José Aderaldo. Aspectos do romance brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
Serviço de Documetação, 1960, p. 98-100.
9 CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: I. Das origens ao
Romantismo. Op. cit., p. 203-215.
10 Ibidem, p. 214-215.

168
pelo diretor do IEB, Sarno pôde responder mais precisamente à questão do que deveria procurar de
significativo na expressão artística nacional. A descrição da realidade compreendida como um dever
ao cumprimento do qual se propuseram gerações sucessivas de artistas e como uma das principais
constantes desenvolvidas ao longo do desenvolvimento da nossa expressão literária, a documentação
da paisagem e das pessoas definida como uma tarefa que carregaria em si uma dimensão nacionalista,
todas essas são ideias que podem ser apreendidas das obras de Aderaldo Castello e Antonio Candido.
Por meio do desenvolvimento dessa tendência de registro do real é que, aos poucos, a literatura
brasileira foi capaz de iniciar o seu processo de autonomização.
Nos filmes realizados por Geraldo Sarno, entre os anos de 1966 e 1969, como integrante do
movimento cinematográfico posteriormente denominado “Caravana Farkas”, a procura pela
autonomia artística constituiu-se como impulso para o projeto de filmagem de documentários sobre
cultura popular nordestina. Por sua vez, tal autonomia somente poderia ser atingida por meio do
registro da realidade nacional, o que poderia ser expresso pela noção de “lastro do real”. Semelhante
ao enfoque oferecido por Castello, em suas análises sobre a formação da literatura brasileira, ao
modo como constantes foram sendo ao longo do tempo reelaboradas pelas escolas e movimentos
literários, o exame das modificações ocorridas nos ofícios executados pelos artistas populares é
guiado, nos filmes dirigidos por Geraldo Sarno, pela identificação de quais dos temas e técnicas
pertencentes à tradição alimentadora da arte popular ainda permaneceriam vivos na realização dos
produtos artísticos fabricados na época da filmagem dos documentários.
Em Os imaginários a questão ganha espessura uma vez que níveis diferentes de reflexão
sobre a autonomia artística são desenvolvidos: o nível em que o cineasta por meio do registro da
realidade procura desenvolver uma linguagem cinematográfica autônoma e o nível representado
pelos limites impostos por parte dos processos de modernização da região à autonomia dos artistas
populares. Sobre a maneira como cada um desses níveis se manifesta no curta-metragem me ocuparei
a partir de agora.

Na primeira sequência do filme são exibidos artesãos fabricando suas peças. Diferentes
artistas executando funções distintas, como as de serrar, lixar e esculpir a madeira de que será
composta a escultura, são enfocados, ao passo que o narrador em voz over diz sobre a origem na
região de Juazeiro do Norte, Ceará, da arte dos imaginários de modelar peças em madeira e explica
alguns aspectos da concepção de arte que fundamenta esse fazer artístico específico. Desde o seu
início, com as romarias ao Juazeiro do padre Cícero, caberia ao imaginário, de acordo com o
narrador, “dar forma a personagens místicos ou violentos, cuja vida e comportamento eram tidos por

169
todos como exemplares11”. A concepção do modelo não seria realizada pelo artesão. A ele caberia
somente a materialização na madeira de figuras admiradas pelos sertanejos. Os imaginários,
portanto, aceitavam os modelos elaborados coletivamente e esculpiam suas peças a partir deles.
A submissão do artesão à vontade do povo é identificada pelo narrador não apenas na escolha
do tema, mas também na adequação da técnica empregada na fabricação das figuras ao gosto estético
prevalecente no novo mercado, aberto pela comunidade de romeiros. O tema da obediência da arte
aos desejos manifestos pelo povo é freqüente nos filmes de Geraldo Sarno realizados durante a
participação do cineasta na Caravana Farkas, e serve à definição de arte popular proposta nos seus
documentários.
Outro grande tema abordado pelos filmes dirigidos por Sarno no período em questão é o do
estado das manifestações culturais e artísticas nordestinas no momento da filmagem dos curtas-
metragens, não fugindo também deste mote Os imaginários. Ainda na primeira sequência do filme,
o narrador atenta para o novo mercado a que estavam tendo que atender os imaginários. Ao mesmo
tempo que perderam o seu antigo mercado formado pela população local e pelos romeiros, uma vez
que estes preferem as imagens feitas em gesso, não as em madeira, os artesão estavam subordinando
o seu fazer artístico às demandas crescentes do turismo.
O que se pode inferir do diagnóstico da situação do imaginário oferecido pelo narrador em
voz over do documentário é que não mais está sendo cumprida a tradicional função da arte popular.
Ao invés de corresponder às vontades do povo, o artesão submete-se ao gosto do turista. Isolado do
público que oferece o sentido mais genuíno à sua obra, o artesão enfrentava uma situação altamente
contraditória que neste ponto do filme começava a se esboçar. A partir do fim da primeira sequência,
em que é anunciada a transformação sofrida pela arte popular, o restante do documentário funcionará
de modo a exemplificar a modificação ocorrida nas manifestações artísticas tradicionais, por conta
do rompimento do isolamento do Nordeste ocasionado pelo princípio de um processo de
modernização da região. São dois os casos escolhidos de modo a funcionar como exemplos da
mudança sinalizada pelo narrador: o de mestre Noza e o de Walderêdo Gonçalves.
Ao tratar do primeiro dos casos, a câmara passeia pelo cômodo que funciona como oficina
do mestre Noza. Exibe mulheres trabalhando sobre um pedaço mais bruto de madeira e intercala
imagens em plano fechado das mãos de mestre esculpindo uma peça com imagens de seu rosto.
Enquanto isso, a voz over do narrador afirma ser possível identificar nesse tão conhecido imaginário

11 OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda. Brasil:
Videofilmes, 2009, 1 dvd, 0`40``.

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a “pronta submissão ao mercado”. A técnica empregada pelo artista na confecção de suas obras
correspondia ao gosto dos turistas que, em busca do que julgavam ser mais rústico, desejavam peças
que não tivessem recebido nenhum tipo de tratamento. As imagens tingidas e lixadas agradavam aos
romeiros, não a esse novo público consumidor, desejoso de peças que apenas fossem talhadas a
canivete.
Daí a perceptível transformação na natureza do trabalho do imaginário: a realização do seu
ofício tornou-se a execução de uma tarefa mecânica. E se antes, como já tinha sido sublinhado pelo
narrador, a função da arte na sociedade interiorana do Nordeste era a de materializar os mitos
povoadores da consciência de todos, agora, submissa não mais ao gosto estético do povo, mas ao dos
turistas, os modelos tradicionais continuavam a ser tematizados pelo artesão, porém isso ocorria por
uma exigência do mercado, não de modo a fazer do artesão um intérprete de sua sociedade. A
contradição expressa pelo trabalho do artesão que não mais acredita nos mitos tradicionais da sua
própria sociedade é anunciada na seguinte fala do narrador:
Dedicados a uma tarefa quase mecânica e atendendo ao seu novo mercado, os
imaginários de hoje ainda trabalham com modelos e formas obsessivos do Nordeste
tradicional. Porém, hoje, muito mais que antes, sua tranqüilidade esconde uma
profunda contradição: sua concepção individual do mundo nem sempre está de
acordo com o significado real de sua própria ação: a imagem12.
A sequência termina com mestre Noza sentado em uma cadeira na sua oficina, talhando uma
peça a canivete, enquanto o narrador atenta para que os artesãos desconheceriam a situação
preocupante em que se encontraria o seu próprio ofício artístico. Alheio em seu trabalho, os planos
em que mestre Noza é exibido correspondem ao que diz a voz over do narrador. Servem estes planos,
portanto, à exemplificação ou à reiteração do discurso fundamentado nas ciências sociais de seu
tempo proferido pela voz do narrador. Essa é a única voz no filme capaz de oferecer um diagnóstico.
Na medida em que a ela é concedido um estatuto diferenciado por ser ela embasada cientificamente,
a voz do narrador é a voz da descrição da realidade e da explicação das modificações ocorridas. As
análises comunicadas por ela são as únicas confiáveis.
Deste modo, o papel desempenhado pela voz over do narrador na estrutura de composição
do filme é de fundamental importância para o desenrolar do curta-metragem. Dela podem ser
extraídos os argumentos sustentados pelas demais vozes e pela organização das imagens. A
sequência em que o mestre Noza é exibido talhando serenamente a madeira, de modo a fabricar mais
uma de suas imagens, exemplifica o alheamento em relação às modificações ocorridas nas
tradicionais manifestações culturais nordestinas, assinalado pelo narrador.

12 OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda. Brasil:
Videofilmes, 2009, 1 dvd, 2`40``.

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Tal exemplificação do argumento do narrador por meio das imagens do artesão executando
seu ofício denuncia, ademais, o esforço descritivo imperante ao longo de todo o filme. Desde a
primeira sequência do curta-metragem, ao espectador são exibidas imagens de artesãos ou ajudantes
das oficinas que desempenham diferentes funções na fabricação das peças. Detalhadamente a câmera
os acompanha em seu trabalho e o plano fechado insiste em predominar por várias vezes. O que
preferencialmente é enfocado nessas duas sequências, mas não somente nelas, são as mãos dos
artesãos dando forma às peças. Nada do que é exibido destoa do que diz o narrador, havendo
inclusive momentos em que o que vemos nas imagens do filme corresponde ao que está sendo dito
naquele mesmo instante por ele. Por exemplo, quando em voz over é dito que por exigência do turista
a única elaboração realizada sobre a peça vem sendo o talho a canivete, nesse momento preciso
assistimos a mestre Noza talhando a canivete sua peça. Afora as imagens cuidadosamente escolhidas
durante a montagem do filme de modo por serem extremamente compatíveis com que é dito pelo
narrador, como quando ele diz esconder uma profunda contradição a tranqüilidade do artista e o
mesmo mestre Noza é exibido sentando em uma cadeira no interior da sua oficina trabalhando sobre
uma de suas imagens.
Como já foi sublinhado, a voz over do narrador conta sobre os inícios do ofício de imaginário
em Juazeiro do Norte, apresenta uma definição de quais foram os princípios norteadores deste fazer
artístico durante um longo período, para então tratar do estado do ofício dos artesãos no momento
de filmagem do filme. A partir de então, o esforço de comprovação do diagnóstico oferecido
dominará a estrutura de composição do filme, como quando somos apresentados à figura do santeiro
mestre Noza.
Os próximos dois terços do filme são dedicados à particularíssima figura do xilógrafo
Walderêdo Gonçalves. De modo distinto de mestre Noza, a quem somente conhecemos pelo que
disse o narrador e pelas imagens a que assistimos, Walderêdo tem voz no documentário. Não que na
economia do filme o que diz o artista não nos chegue previamente moldado pela estrutura narrativa
do documentário. Entretanto, apesar de a voz do narrador continuar sendo a mais importante para a
composição do filme, a voz de Walderêdo contando sobre sua concepção de arte faz-se ouvir e, ainda
que não com o mesmo destaque da voz do narrador, contribui para a organização narrativa do curta-
metragem. Inclusive o tempo total de fala do artesão tem duração três vezes maior que o do narrador.
Isso ainda somado aos dois terços do filme nos quais Walderêdo incontestavelmente assume o
protagonismo no filme.
Entretanto, vale ressaltar que esse protagonismo assumido somente foi possível pela força
dominadora que tem a voz do narrador na estruturação do filme. Ela se cala durante toda a sequência
em que a figura de Walderêdo é destacada. Depois que alerta para a contradição que guarda a

172
tranqüilidade do mestre Noza, a voz do narrador fica silenciada até o final do filme. Mas isso não
ocorre porque Walderêdo, então, passa a conduzir a estrutura narrativa do documentário. Pelo
contrário, o artesão pôde desempenhar o papel de protagonista no curta-metragem justamente pelo
estatuto de fato cientificamente examinado que adquire tudo o que o narrador já havia dito. O
diagnóstico apresentado pelo narrador, ao qual chegou pela comparação do estado das manifestações
culturais nordestinas no passado e no seu presente, é capaz de guiar o filme até o seu fim. E essa
capacidade é devida ao poder assertivo que adquire a indicação da mudança irreversível no estado
das manifestações da cultura nordestina, uma vez que tal conclusão se fundamenta nas ciências.
Previamente guiada, a voz de Walderêdo, assim como as imagens dele executando seu trabalho,
funcionam como uma demonstração das análises apresentadas pelo narrador em um momento
anterior, não apresentando, deste modo, nenhum risco para a boa condução da estrutura narrativa do
filme segundo o padrão dominante desde o início do curta-metragem. Ou seja, apesar de ser um
momento excepcional por ser dominado por um aparente protagonismo de Walderêdo, não do
narrador, o domínio da voz over continua a ser sentido na condução do que o espectador vê e ouve.
Sendo assim, o xilógrafo Walderêdo Golçalves é apresentado como mais um caso exemplar
das modificações que vinham ocorrendo no Nordeste. Nele a contradição profunda identificada pelo
narrador ganha nítida expressão: a concepção de mundo do artista não mais é compatível com os
modelos elaborados por ele em seu ofício. A primeira fala de Walderêdo trata do modo pelo qual ele
seleciona os temas das suas xilogravuras. A partir da interpretação de acontecimentos bíblicos, que
realiza por meio do estudo do livro, é que o artista desenha a figura correspondente à sua leitura.
A contradição começa a ser percebida a partir da segunda fala de Walderêdo, na qual o artesão
revela a sua própria cosmogonia particular. Diz não acreditar “na existência da alma, nesse negócio
de ter o céu, o inferno e o purgatório, não13”. Defende ser a religião, assim como o futebol e a política,
uma questão de opinião e um analgésico. E sustenta acreditar somente na matéria e na natureza.
Além disso, aproxima a ideia que faz da natureza da sua ideia de deus: o deus único é a natureza que
tudo faz e desfaz, que tudo modifica. Os corpos, formados pelo átomo, por meio dessa natureza
assemelhada a deus, são transformados em inúmeros outros corpos, segundo o artista.
Walderêdo tematiza, ademais, a contradição que o narrador diz não perceberem os artistas
populares. Fala abertamente sobre fazer seus quadros de acordo com o desejo dos seus compradores.
Se algum cliente quiser um quadro sobre o apocalipse, apesar de o artista haver dito anteriormente
não acreditar em uma concepção tripartida do mundo espiritual, dividido entre céu, inferno e

13 OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda. Brasil:
Videofilmes, 2009, 1 dvd, 4`40``.

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purgatório, afirma que realizará o quadro a partir do tema escolhido e de acordo com a vontade de
quem o for comprar, do povo. Se antes, de acordo com a análise apresentada pelo narrador no começo
do filme, o trabalho do artista popular com “os modelos e as formas obsessivas do Nordeste
tradicional” estaria em conformidade com as crenças individuais do artesão e faria dele um intérprete
da sua sociedade, as transformações ocorridas na região estariam rompendo essa relação próxima
entre artista popular e povo, de importância extrema para a realização das manifestações artísticas
típicas do Nordeste. E tal rompimento Walderêdo reconhece ao dizer:
Por mim, a intenção é fazer o quadro, entregar e receber o dinheiro. Somente esta.
Por interesse do povo, o povo me procura. Eu que vivo disso tenho que fazer isso
como um bem de comércio. Só para, entende?, a sobrevivência. Não é com a
finalidade de propagar cada vez mais a religião, não14.
O processo de modernização verificado na região Nordeste, não mais anunciado pela voz do
narrador que se mantém em silêncio, continua a ser apontado no plano sonoro do filme como a causa
das modificações sucedidas na situação da arte popular. A fala de Walderêdo transcrita acima, na
qual ele demonstra ter consciência das mudanças ocorridas na função de seu ofício, situa-se entre os
trechos de duas canções: uma no estilo iê-iê-iê e outra, que é um baião chamado “Nordeste pra
frente”, cantado por Luiz Gonzaga, que trata da modernização do Nordeste. No trecho do baião
reproduzido no filme, Gonzaga canta:
Senhor repórter, já que está me entrevistando
Vá anotando, pra botar no seu jornal
Que meu Nordeste está mudado
Publique isso pra ficar documentado
[...]
Caruaru tem sua universidade
Campina Grande tem até televisão
Jaboatão fabrica Jipe à vontade
Lá de Natal já está subindo foguetão15

Ambas as músicas oferecem ao que foi dito pelo artesão o estatuto de exemplo do modo como
as manifestações artísticas vinham se transformando, ao passo que a região se modernizava. Sendo
assim, apesar de estar silenciado o seu principal articulador, a estrutura narrativa do filme, por meio
de artifícios como a montagem das imagens e a seleção da trilha sonora, mantém-se em
funcionamento mesmo sem o auxílio da voz over do narrador. Pela potência já mencionada dessa
voz para o desenrolar do documentário, os argumentos defendidos por ela no início do filme
continuam a ressoar nas sequências que se seguem, sem que seja necessária para isso nenhuma
investida a mais da voz do narrador. O estatuto de análise guiada pelo rigor dos métodos das ciências

14 OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda. Brasil:
Videofilmes, 2009, 1 dvd, 5`50``.
15 OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda. Brasil:
Videofilmes, 2009, 1 dvd, 6`15``.

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sociais adquirido por tudo o que diz essa voz tornou o que foi sustentado por ela no princípio do
curta-metragem orientador do desenvolvimento do filme até o seu final. Como se tudo o que fosse
exibido ao espectador durante o documentário funcionasse como reforço do argumento sustentado
pela estrutura de composição do filme, sintetizado e bem expresso pela sua principal condutora: a
voz over do narrador.
Walderêdo Gonçalves também conta receber encomendas das universidades federais da
Bahia e do Ceará, e que nessas instituições lhe disseram ter ele direito sobre a autoria das gravuras.
Entretanto, alega nunca ter se interessado em procurar saber sobre esses direitos. Após dizer isso,
trata de um tema de importância fundamental para a produção cinematográfica realizada por Geraldo
Sarno no período em questão: o das diversas funções assumidas pelos artesãos populares
paralelamente ao seu ofício como artistas. Para a elaboração desse tema, Geraldo Sarno recorre às
produções textuais de outro estudioso da literatura brasileira, Manoel Cavalcanti Proença, a quem
conheceu por intermédio de José Aderaldo Castello. Mas da relação estabelecida por Sarno entre
seus filmes e os escritos deste outro intelectual não me ocuparei agora, uma vez que foge do tema
principal deste artigo. Retomando a fala do artista, sobre as diversas ocupações por ele
desempenhadas Walderêdo relata:
A questão é que eu me viro de toda forma, né? Só não vivo exclusivamente da
xilogravura, não: pego um serviço de pintura de prédio, um caiamento, uma
fundição... Mas se fosse viver só de xilogravura [risos], minha família já teria
morrido de fome. O negócio é: se acontecesse de eu viver por aí afora, das
exposições aqui, ali, acolá, e vendendo cópias e mais cópias, então, poderia ser que
desse algum resultado financeiro. Mas isso eu nunca tentei... Tenho medo do
fracasso, né?16

Apesar de ser inusitada essa figura do artista popular que fala abertamente sobre os objetivos
econômicos do seu fazer artístico e que reconhece a discordância existente entre e as suas concepções
pessoais de mundo e de arte, por um lado, e as obras feitas por ele de acordo com os desejos do seu
público de consumidores, por outro, o documentário não foge ao modelo que domina sua estrutura
de composição até o final do filme. Tal modelo é fundamentado na defesa dos argumentos expostos
pela voz over do narrador. A essa defesa se submetem o som e a imagem do filme durante quase
todo o tempo de duração do curta-metragem. Mesmo quando a voz do narrador se cala, a força das
suas asserções embasadas nas ciências sociais é capaz de manter o modelo em funcionamento,
mesmo que por meio de outros dispositivos, como a organização das sequências, a montagem das
imagens e a escolha da trilha sonora.

16 OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda. Brasil:
Videofilmes, 2009, 1 dvd, 7`10``.

175
Até mesmo a voz de Walderêdo concorre para a tese proposta no início do filme: a de que,
em contraste com a maneira como a arte popular era realizada no passado, a concepção individual
de mundo do artista não mais estaria de acordo com o significado real da sua ação artística, e que tal
descompasso existente entre o artista e sua obra realizada seria devido à modernização que vinha
ocorrendo do Nordeste. Para a demonstração dessa tese, como já foi explicitado, o filme é organizado
de modo a fornecer dois exemplos da mudança identificada: o de mestre Noza e o de Walderêdo
Gonçalves. Portanto, apesar de contradizer a voz do narrador, que havia alegado o desconhecimento
do artista popular frente às transformações ocorridas, mesmo a figura de Walderêdo auxilia na
comprovação do argumento central do filme, mantendo em funcionamento o modelo dominante da
estrutura narrativa característica do documentário. E desse modo o relato de Walderêdo funciona,
uma vez que reitera o que já havia sido dito pelo narrador no início de Os imaginários. Ou seja, a
voz do artista não opera de maneira autônoma na estrutura do documentário.
A única sequência que funciona de modo autônomo no filme, a única que foge ao propósito
de comprovar o argumento central já mencionado, é a última. Nela ouvimos Walderêdo lendo um
longo trecho do livro bíblico “Apocalipse”, ao passo que visualizamos detalhes de várias
xilogravuras feitas pelo artista sobre o tema do juízo final. Além disso, durante o minuto de duração
da cena também ouvimos sobrepostos o baião cantado por Luiz Gonzaga, reproduzido em um
momento anterior do filme, e um canto gregoriano. Entretanto, nem mesmo essa sequência é
completamente autônoma, uma vez que o canto gregoriano, juntamente com a voz de Walderêdo
lendo um trecho bíblico expressam a tradição que vem sendo modificada pela infiltração das
mudanças cantadas por Luiz Gonzaga. Porém, nessa última cena, outro dispositivo fundamental para
o bom funcionamento da estrutura de composição dominante no filme, posto em funcionamento
desde o início do curta-metragem, oferece uma trégua: pela primeira vez repousa o recurso da
descrição do ofício do artesão. Esse é o único momento ao longo do filme em que a imagem exibida
ao espectador não é a de nenhuma das etapas de produção das imagens ou das gravuras. Sendo assim,
a procura pelo lastro deixado pelo real é interrompida. E apesar de as xilogravuras compostas a partir
da temática do apocalipse poderem ser interpretadas como a última etapa da produção, e, assim
sendo, o esforço de descrever a realidade estaria mantido mesmo na última cena do filme, o modo
ligeiro e entrecortado como essas gravuras são exibidas, passando de detalhes de uma delas para os
de outra, somado ao som sobreposto da voz do artista, do canto gregoriano e do baião de Luiz
Gonzaga, tornam questionável que tal sequência funcione apenas para a comprovação do argumento
central do filme e que ela seja dominada pelo princípio da descrição. Pelo contrário, ela adquire uma
autonomia relativa na economia do documentário.

176
Essa independência relativa, por mais que não se realize em mais nenhuma outra sequência,
já era anunciada no plano sonoro do documentário. No total, no curta-metragem de nove minutos de
duração, trechos de cinco canções compõem sua trilha sonora: uma música para rabeca; um canto
gregoriano; um “Sanctus” cantado pelo conjunto folclórico argentino Los Fronterizos; uma no ritmo
do iê-iê-iê; um baião de Luiz Gonzaga. Apesar de tais canções não fugirem aos objetivos do filme,
a variedade da trilha sonora e a forma como cada uma delas é reproduzida no filme acabam por tornar
destoantes as canções, quando sobrepostas às imagens pelas quais o curta-metragem é composto.
As imagens curvam-se inequivocamente ao princípio do lastro do real. Em todas as
sequências o espectador assiste a artesãos trabalhando em suas peças, sejam eles os imaginários José
Ferreira, José Duarte, Manuel Lopes e mestre Noza ou o gravador Walderêdo Gonçalves. Assistimos
a eles talhando a madeira, modelando-a, esculpindo olhos, testas, bocas, chapéus, fabricando
oratórios, desenhando cenas bíblicas, preparando matrizes, a partir desses desenhos de cunho
religioso, para fazer as xilogravuras, passando tinta nas matrizes para estampar em papel a gravura,
vemos filas de imagens já finalizadas pelos imaginários, nos é exibido o interior das oficinas desses
artistas. O plano fechado é para o qual tendem todas as sequências. Enquanto trabalham, geralmente
vemos as mãos desses artistas, seu rosto, detalhes das obras que preparam, e a tudo isso assistimos
bem de perto.
A câmera em todas as sequências, com exceção da cena final, fareja o rastro deixado pelo
real, e a partir do propósito de registrar esse lastro, Geraldo Sarno, reinterpretando de maneira
particular os escritos de José Aderaldo Castello, ofereceu contornos mais precisos à estética
cinematográfica que vinha elaborando. Como se esse registro pudesse capturar aspectos das
manifestações artísticas nordestinas e livrá-los do inevitável desaparecimento anunciado em seus
filmes.

Fontes
Fonte audiovisual:
OS IMAGINÁRIOS. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes Ltda.
Brasil: Videofilmes, 2009, 1 dvd, 10 min.

Fonte textual:
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177
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CASTELLO, José Aderaldo. Cerimônia de outorga do título de Professor Emérito: Prof. Dr. José
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<http://comunicacao.fflch.usp.br/sites/comunicacao.fflch.usp.br/files/Jos%C3%A9AderaldoCastell
o.pdf> Último acesso em 3 de maio de 2017.

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179
D. Maria I: Aclamação Da Primeira Reinante De Portugal

Ana Lucia de S. Abenassiff1

Resumo: Este trabalho apresenta um breve panorama da cerimônia de aclamação de D. Maria I


(1734-1816), a primeira rainha reinante de Portugal entre 1777 e 1792. Para tratar da cerimônia de
Coroação de D. Maria I partimos das informações contidas no Auto do Levantamento, e Juramento
que os Grandes, Títulos Seculares, Eclesiásticos, e mais Pessoas, que se acharão presentes, fizerão
á Muito Alta, Muito Poderosa Rainha... Essa fonte descreve detalhadamente toda a preparação e
execução do prestigioso evento: desde a estrutura montada, os ritos com seus discursos, as pessoas
que compareceram e até detalhes das vestimentas da monarca e da Família Real. Fazemos isso com
o objetivo de conhecer melhor a trama de interesses de sentidos e significados cerimoniais,
característico do Antigo Regime que cercaram a referida ocasião. Para tanto, a analise toma como
referencia a obra A sociedade de corte, de Norbert Elias, a fim de mostrar essa formação social
extremamente rígida e coerente.

Palavras-chave: D. Maria I; Aclamação; Portugal.

Abstract: This work presents a brief overview of the acclamation ceremony of Mary 1st (1734-
1816), the first reigning queen of Portugal between 1777 and 1792. In order to deal with the
coronation ceremony of Mary 1st we start from the information contained in Auto do And the Oath
that the Great, Secular Titles, Ecclesiastics, and more Persons, who will be present, will make the
Very High, Very Mighty Queen ... This source describes in detail all the preparation and execution
of the prestigious event: from the assembled structure , the rites with their speeches, the people who
attended and even the details of the monarch's and Royal Family's costumes. We do this with the
purpose of knowing better the plot of interests of meanings and ceremonial meanings, characteristic
of the Old Regime that surrounded the mentioned occasion. To that end, the analysis takes as
reference Norbert Elias' The Cutting Society, in order to show this extremely rigid and coherent
social formation.

Keywords: Mary 1st, Acclaim, Portugal.

UM POUCO SOBRE D. MARIA

Escassos são os trabalhos que apresentam a trajetória de D. Maria I (1734-1816), rainha de


Portugal entre 1777 e 1792, ou até mesmo, os que abordam o período de sua regência. Apesar de ter
recebido o título de Princesa do Brasil, ela é entre nós pouco conhecida de fato, exceto pelas imagens
satíricas veiculadas pelo cinema e televisão nas últimas décadas. 2 Infelizmente, a carência de

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFES sob a orientação da professora Dra.


Patrícia Merlo. Email: al.abenassiff@gmail.com
2 CARLOTA Joaquina: princesa do Brazil. Direção: Carla Camurati. Produção: Carla Camurati, Bianca
De Felippes. Rio de Janeiro: Warner Bros. Pictures, c1995. 1 DVD. Trata-se de uma comédia que tem como mote a
vinda da família real para o Brasil, sendo D. Maria I retratada como louca, assombrada por visões. Destacamos também
a minissérie brasileira que, em tom pastelão, apresenta os bastidores da Independência do Brasil (1822) e a fundação do

180
pesquisas e publicações relativas à primeira regente portuguesa e seu governo contribui para que o
desconhecimento permaneça.
No dia 17 de dezembro de 1734, nasceu no Paço da Ribeira, em Lisboa, 3 a primeira filha do
casal de Príncipes do Brasil e futuros reis de Portugal, D. José (1714-1777) e D. Mariana Vitória de
Bourbon (1718-1781).
Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança, como foi chamada
a neta primogênita de D. João V, foi prontamente agraciada por seu avô com o título de Princesa da
Beira. 4 Nessa época, seu avó já reinava há 27 anos e seus pais eram muito novos, sua mãe tinha
apenas 16 anos e seu pai 20 anos.5
Quanto à linhagem a princesa recém-nascida descendia, por parte de pai, da dinastia dos
Bragança. Por sua avó paterna, D. Maria Ana de Áustria, a infanta era neta do Imperador do Sacro
Império, Leopoldo I. Era ainda uma Bourbon, por parte do avô, Filipe V de Espanha, 6 com ligações
com a Casa da Baviera e outras casas da Europa, já pela parte de sua avó materna, Isabel Farnésio 7
(1692 -1766), havia uma ligação com a Casa ducal de Parma. 8
O nascimento da pequena Maria Francisca foi comemorado com três dias de festas e queima
de fogos.9 Acerca dos festejos, descreve Caetano Beirão:

Como era de uso em tais ocasiões, houve luminárias por toda a cidade, repique de
sinos, e descargas de artilharia, durante três dias. D. João V despachou logo um
postilhão a participar a novidade aos Reis católicos. Depois, deu audiência ao
Embaixador da Espanha, Marquês de Capecelatro, e a toda corte. No dia seguinte,
missa cantada, sermão e Te Deum na Patriarcal.10

Império do Brasil, O QUINTO dos Infernos. Direção; Wolf Maia. Produção: Rede Globo. Rio de Janeiro: Globo Vídeo,
c2002. 4 DVDs.
3 RAMOS, Luís de Oliveira. D. Maria I. Lisboa: Temas e Debates, 2010, p. 35.
4 Princesa da Beira foi um título, especialmente, criado por seu avô para Maria, que também era a 13ª
duquesa de Bragança, “quando seu pai subiu ao trono em 1750, D. Maria Francisca, como primogênita, passou a ser
designada também por Princesa do Brasil, título que os primogênitos dos reis de Portugal só deixavam de usar quando
acendiam à governação”, pois o título era passado imediatamente ao próximo herdeiro da Coroa, de acordo com a
historiadora Luísa Boléo. BOLÉO, Luísa V. Paiva. D. Maria I: a rainha louca. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009, p.
32-33.
5 RAMOS, 2010, p. 35.
6 Filipe era neto de Luís XIV e havia herdado a Coroa espanhola, sua esposa era Isabel de Farnésio que
era a herdeira do trono ducal de Parma. RAMOS, 2010, p. 37.
7 Isabel Farnésio era filha de “Doroteia Sofia de Neuburgo, irmã de D. Maria Sofia, esposa de D. Pedro
II de Portugal e outrossim irmã da imperatriz D. Leonor, mãe de D. Mariana de Áustria”, avó paterna de D. Maria.
RAMOS, 2010, p. 37
8 RAMOS, 2010, p. 37
9 BENEVIDES, Francisco da Fonseca. Rainhas de Portugal - Estudo histórico. Lisboa: Typographia
Castro irmão, 1878, p. 485.
10 BEIRÃO, Caetano, D. Maria I, 1777-1792: subsídios para a revisão da história do seu reinado, 3.
ed. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1944, p. 29.

181
Por essa descrição podemos perceber além das celebrações de nascimento da futura reinante,
parte dos costumes da corte portuguesa daquela época. Não menos suntuoso também foi seu
batizado, em nove de janeiro de 1735, como menciona a fonte de 1741, Historia genealogica da
Casa Real Portugueza, do primeiro biógrafo de D. Maria, D. António Caetano de Sousa:

Foy bautizada a 9 de janeiro do anno seguinte pelo Patriarca, assistido do seu


Collegio, e das mais Ordens da Santa Igreja de Lisboa, se executou com grande
pompa. [...] Acompanharaõ todas as Damas da rainha, e Princesa, Senhoras de
Honror. Era grande o concurso do povo por toda parte do Paço. 11

Para um evento de tamanha importância os padrinhos escolhidos foram seu avô paterno, Rei
de Portugal e a avó materna Rainha da Espanha, D. Isabel de Farnese 12, representada na ocasião pela
infanta D. Francisca.13 Conforme a historiadora lusa Luísa Boléo, as celebrações mais luxuosas nos
reinados de D. João V, D. José I e D. Maria I, “eram sem dúvida os nascimentos, baptizados,
casamentos, exéquias e aniversários de membros da família real, bem como a evocações em honra
de diversos santos e santas [...]”.14 Os primeiros 16 anos de vida da princesa transcorreram sob a
regência de seu avô que teve um reinado “dos mais longos e profícuos da História de Portugal”. 15
As informações a respeito do período que vai da infância de D. Maria à vida adulta são
escassas, posto que a parca historiografia parte, quase sempre, já do início de seu reinado. De maneira
geral, encontramos alguma informação sobre seu nascimento, suas irmãs e, às vezes, menção ao seu
casamento, em 1760, com seu tio paterno, D. Pedro, 17 anos mais velho. 16 É como se a vida da
personagem só ganhasse destaque após sua aclamação em 13 de maio de 1777.

11 SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza: desde a sua origem
até o presente, com as Familias illustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança: justificada
com instrumentos, e escritores de inviolavel fé : e offerecida a El Rey D. João V... / por Antonio Caetano de Sousa,
Clerigo Regular... ; tomo VII. - Lisboa Occidental : na Officina de Joseph Antonio da Sylva, impressor da Academia
Real, 1735-1749. - 12 tomos em 13 vol. 1741, p. 355.
12 Veremos que o sobre nome da avó materna de D. Maria, dependendo da escolha do autor será escrito
Farnésio em português ou Farnese em italiano. No caso de Luísa Boléo, esta optou pelo uso do italiano na grafia.
13 BOLÉO, 2009, p. 33.
14 BOLÉO, 2009, p. 55 e 56.
15 BOLÉO, 2009, p. 37.
16 PEREIRA, 2011, p 118.

182
A CERIMÔNIA DA COROAÇÃO

Para tratar da cerimônia de Coroação de D. Maria I partimos das informações contidas no Auto do
Levantamento, e Juramento que os Grandes, Títulos Seculares, Eclesiásticos, e mais Pessoas, que
se acharão presentes, fizerão á Muito Alta, Muito Poderosa Rainha Fidelíssima a Senhora D. Maria
I, Nossa Senhora na Coroa destes Reinos, e Senhorios de Portugal, sendo Exaltada, e Coroada sobre
o Régio Throno juntamente com o Senhor Rei D. Pedro III, na tarde do dia Treze de Maio. Anno de
1777. Essa fonte descreve detalhadamente toda a preparação e execução de todo o prestigioso evento:
desde a estrutura montada, os ritos com seus discursos, as pessoas que compareceram e até detalhes
das vestimentas da monarca e da Família Real.
Segundo consta no próprio Auto, sua finalidade era a de fazer uma exata narração do evento, pois
desse modo, a memória da incomparável glória da soberana seria eternizada para a lembrança da
nação portuguesa.17 Assim se inicia o referido documento:

Em nome de Deos. Amem. Saibão quanto este Auto, e Instrumento feito por
mandado da Rainha Nossa Senhora virem, que no Anno do Nascimento de Nosso
Senhor Jesus Christo de mil setecentos setenta e sete, sempre memorável para esta
Monarquia, presidindo como supremo Pastor da Igreja o Santissimo Padre Pio VI.
Em terça feira treze do mez de Maio, dia, em que a Nobreza, e o Povo desta Corte
de Lisboa rendem a Nossa Senhora dos Martyres o antigo, e religioso culto de maior
devoção, em memória de lhe ser dedicada a primeira Freguezia da Capital deste
Reino; vindo particularmente do Palacio de Nossa Senhora da Ajuda, da sua Regia
habitação, para a galeria Occidental da Real Praça do Commercio, onde se lhe tinha
preparado huma decente, e magnífica accomodação da parte do rio Téjo; a Muito
Alta, e Muito Poderosa Senhora a Rainha Fidelicissima Dona Maria a Primeira de
Portugal Nossa Senhora, Filha Primogenita, Herdeira, e Successora de ElRei o
Senhor D. José o Primeiro, que santa gloria haja, e da Rainha a senhora Dona
Marianna Victoria, acompanhada de ElRei Fidelissimo o Senhor D. Pedro Terceiro
Nosso Senhor, e de todas as Pessoas Reaes, se fez o Levantamento, e Juramento de
Sua Magestade Fidelissima na Coroa destes Reinos, e Senhorios de Portugal, em
que succedeo a seu Augusto Pai, sendo exaltada, e coroada sobre o régio Thono
juntamente com o Senhor rei D. Pedro seu Esposo e Tio, Filho do Senhor Rei Dom
João V., e da Rainha a Senhora Dona Marianna de Austria, que santa gloria hajão;
pelos Grandes Titulos Seculares, Ecclesiasticos, e mais Pessoas da Nobreza, que se
acharão presentes, na fórma que ao diante se dirá.18

17 AUTO, 1780, p. 5.
18 AUTO do Levantamento, e Juramento que os Grandes, Títulos Seculares, Eclesiásticos, e mais
Pessoas, que se acharão presentes, fizerão á Muito Alta, Muito Poderosa Rainha Fidelíssima a Senhora D. Maria I,
Nossa Senhora na Coroa destes Reinos, e Senhorios de Portugal, sendo Exaltada, e Coroada sobre o Régio Throno
juntamente com o Senhor Rei D. Pedro III. na tarde do dia Treze de Maio. Anno de 1777, Lisboa, Na Regia Officina
Typografica, Anno de M.DCC.LXXX [1780], p. 3-4.

183
É importante também frisar que o Auto do Levantamento era um documento oficial, produzido a
mando da Coroa, tendo sido redigido por António Pedro Vergollino, escrivão da Câmara de sua
Majestade, fidalgo e tabelião público.19 Trata-se de um registro detalhado que explica os ritos da
solenidade, o local escolhido, a estrutura construída para a celebração, além dos nomes dos
responsáveis por cada função dos preparativos da aclamação:

Para se celebrar este magnífico, e espectável Auto se destinou o sítio dos antigos
Paços da Ribeira na dita Real Praça, onde se mandou construir de novo huma
magestosa Varanda, cuja planta, e risco delineou o Sargento Mór Mattheus Vicente
de Oliveira, commettendo-se a inspecção della ao Conde da Ponte José António de
Sousa Saldanha de Menezes e Castro, Mórdomo mor de ElRei Nosso Senhor, seu
Gentil-Homem da camara, Brigadeiro de Infantaria, e Coronel Comandante do
Regimento de Peniche, de gênio, e talento o mais hábil, e prompto em dar as
providencias necessárias para a sua inteira execução; tendo, além da vastidão da sua
idéa, e grandeza de espírito, recebido de Sua Magestade amplíssimas, e illimitadas
ordens para a perfeição, e riqueza desta soberba obra.20

O Auto de Levantamento ainda descreve em minúcias a riqueza da ornamentação rebuscada e o zelo


das tapeçarias, dos tecidos de alto padrão, dos bordados, dos brocados e fios de ouro, além das talhas
e móveis utilizados. A respeito do interior da varanda observa-se que

Ornava a parte interior da Varanda hum riquíssimo apparato de veludo, e seda


carmesim; e toda a cimalha Real entre as colunmnas se via guarnecida com fastões
de seda, ornados de franjas e borlas de ouro: entre os capitéis das columnas
medeavão pendentes vinte e tres medalhões, ficando quatro entre as columnas, que
adornavão os corpos lateraes: entre as mesmas columnas pendião também varios
genios, sustentando nas mãos as Reaes insígnias de Coroa, Sceptro, e Palmas; e nos
ditos medalões estavão pintados os Imperadores, e Reis, que a Fama decanta mais
gloriosos em acções heroicas.21

O texto todo ainda faz menção à “[...] cadeiras na grandeza majestosa, e ambas similhantes no
adorno, e feitio; a organização era de talha sobredourada [...], véu de nobreza carmesim, bordado, e
guarnecido com estrelas, e renda de ouro”.22 Além da disposição da Família Real e do séquito da
Rainha, também foi pensada uma estrutura de apoio com tribuna, camarins e antessalas. Segundo o
documento, as impecáveis peças de prataria foram encomendadas na França:

Estas três mesas estavam guarnecidas de riquíssima, e copiosas baixelas de prata,


feita modernamente na Corte de París pelo célebre artífice Germain por especial
ordem de El-Rey o Senhor D. José I, sendo a primeira vez que sérvio, e appareceo

19 AUTO, 1780, p. 4.
20 AUTO, 1780, p. 5-6.
21 AUTO, 1780, p. 8.
22 AUTO, 1780, p. 10.

184
em público com a maior admiração, e applauso de todos os Nacionaes, e
estrangeiros, que tiverão a honra de gozar deste novo, agradável, e brilhante
espetáculo nunca visto em similhantes funções. 23

E não somente a prataria como também as 14 alcatifas, “[...] todas ricas na qualidade e formosas no
desenho [...]”.24 Percebemos que a cerimônia foi cuidadosamente preparada incluindo a vestimenta
da soberana, uma vez que D. Maria I estava

[...] riquíssimamente vestida com o precioso manto de tafetá tecido com fio de prata,
e recamado com lantijolas, canutilhos, e palhetas; o assento que parecia totalmente
coberto de ouro; o peitilho, e corpo interior era todo guarnecido com flores de
brilhantes de excessivo preço, e admirável artifício; vendo-se pendente da fitta cor
de fogo a Cruz da Ordem de Christo, composta de diamantes brilhantes de huma
extraordinária e pasmosa grandeza: igualmente se admirava no mais adorno ricos
adereços, e joias, d’onde pendião diversos, e preciosos fios de brilhantes de
inexplicável preço. O toucado fingia huma Coroa Imperial. 25

O Rei Consorte estava igualmente esplêndido, assim como toda a Família real e a Primeira
Nobreza.26
De fato, desde 24 de fevereiro D. Maria já governava o reino. Contudo, sua aclamação só ocorreu
no dia 13 de maio de 1777. Segundo Caetano Beirão:

O dia estava esplêndido – notam os contemporâneos – e logo de manhâ cedo, o Tejo


se apresentou coalhado das mais variadas embarcações, cheias de curiosos que
assim pretendiam assistir às festas, os telhados próximos se pejaram de
espectadores, e o Terreiro do Paço se juncou de compacta multidão ansiosa por
presenciar as cerimónias da aclamação da soberana. Estas iam ter lugar numa
enorme varanda construída, para esse fim, no sítio em que antes se erguiam os paços
da Ribeira. A fachada dessa galeria era formada por vinte e oito arcos sustentados
em colunas coríntias, imitando mármore oriental, como se vê no desenho de
Carneiro e Silva, que está no Museu do Coches. A ornamentação, quer exterior quer
interior, do improvisado edifício, era esplendorosa: escudos, troféus, figuras
alegóricas, ricos tapetes e brocados. No centro da praça, formaram quatro
regimentos de infantaria, ostentando os seus uniformes novos; junto à varanda, a
guarda real; e no Rossio e Pelourinho, piquetes de três regimentos de cavalaria que
estavam, então, em Lisboa.27

Ainda sobre a suntuosidade do trabalho de Carneiro e Silva, o pesquisador Miguel Figueira de Faria
pontua que

23 AUTO, 1780, p. 15.


24 AUTO, 1780, p. 9.
25 AUTO, 1780, p. 23-24.
26 AUTO, 1780, p. 24.
27 BEIRÃO, 1944, p. 119.

185
A varanda construída para a aclamação de D. Maria I que revela uma regularidade
de alçado tardo barroco classicizante, com alguns detalhes de rococó, anda atribuída
a Carneiro da Silva (1727-1818). O apontamento que dela fez e que se encontra no
Museu do Coches atesta que estamos perante uma esmerada composição de
arquitetura efêmera aparatosa que deslumbrou a todos proporcionando
funcionalidades de ritual e de simbolismo político. 28

De acordo com Caetano Beirão, as festividades tiveram início com uma missa de pontifical, em uma
capela de madeira especialmente erigida ao lado da varanda onde se posicionaria a Soberana. 29 “A
missa ‘foi dirigida ao Divino Espírito Santo para a ilustração dos novos Monarchas em o acerto do
bom regimen do seu Reino’”. 30 Se tratou de um acontecimento épico, visto que as cortes não se
reuniam em Portugal já fazia mais de cem anos. 31
Após quase todos os ritos e protocolos da solenidade como o recebimento do Real Cetro e do
posicionamento do Rei Consorte, incluindo a oração feita pelo desembargador do Paço Dr. José
Ricalde Pereira e Castro. D. Maria se ajoelhou na almofada, segurando o cetro agora com a mão
esquerda e com a direita espalmada na Cruz da Ordem de Cristo que trazia ao peito, repetiu o
juramento que os presentes de pé que ouviram:

Juro, e prometto com a graça de Deos vos reger, e governar bem, e direitamente, e
vos administrar direitamente justiça, quanto a humana fraqueza permite; e de vos
guardar vossos bons costumes, privilégios, graças, mercês, liberdades, e franquezas,
que pelos Reis Meus Predecessores vos forão dados, outorgados e confirmados. 32

Assim a Rainha voltou a sentar para desse modo receber as homenagens e os juramentos daqueles
que o deveriam prestar.33 Ainda ocorreram os demais protocolos até que a soberana se dirigiu a
varanda e lá,

O innumeravel Povo, que ocupava a Praça do Commercio, e que esperava já com


impaciência este feliz annúncio, rompeo em altos vivas, e outras muito significates
expressões de alvoroço, amor, e alegria, fazendo bem visível a fidelidade de seus
leaes coração no extremoso affecto, com que acclamavão a Sua Magestade por sua
Rainha, e Senhora destes Reinos, e seus Dominios; ouvindo-se ao mesmo tempo ao
final dos foguetes repicar os sinos das Sés, [...] e navios mercantes com igual

28 FARIA, Miguel Figueira de. Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio. Lisboa: Leya, 2012, p. 233.
29 BEIRÃO, 1944, p. 120.
30 MILHEIRO, Maria Manuela. Festa, Pompa e ritual: a Aclamação de D. Maria I. Porto: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, Departamento de Ciências e Técnicas do Património. Barroco: Actas do II Congresso
Internacional, 2003, p. 573. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7527.pdf Acesso em: 11 de jun. de
2017.
31 BEIRÃO, 1944, p. 122.
32 AUTO, 1780, p. 76.
33 AUTO, 1780, p. 77.

186
estrondo, sem por isso cessar o eco dos vivas, que seria com tal força os ares, que
bem se deixava perceber entre a plausivel confusão das salvas, e dos repiques. 34

De acordo com Beirão, “parece que realmente não havia memória dum monarca ser aclamado com
tanto entusiasmo”. 35 O documento ainda faz menção às acomodações que se destinavam ao séquito
da rainha D. Maria. Nesse caso, a corte de sua majestade também deveria partilhar do cuidado e
riqueza de detalhes em suas acomodações, pois:

Da mesma parte esquerda do Throno Real se fabricou por longo huma tea, que tinha
no comprimento cento e cinco palmos, e cinco de largo e tres e meio de alto no
parapeito, coberta de veludo encarnado guarnecido com fino galão de ouro, a qual
sérvio de vistosa, e decente accomodação á Marqueza de Vila Flor, Camareira mór,
e mais Damas, que cortejarão a Rainha Nossa Senhora neste acto. 36

Para além de um ato político e social, a cerimônia de aclamação também se refere à figuração de
corte, uma vez que esse tipo de ritual seguiam regras bem precisas e tinham uma meticulosa
organização. Ademais, “era nessas ocasiões que o rei [neste caso, a rainha] aproveitava para marcar
as diferenças de nível, distribuindo suas distinções, provas de favorecimento ou de desagrado”. 37
Conforme o sociólogo alemão Norbert Elias, observa-se que nesse caso a “etiqueta tinha uma função
simbólica de grande importância na estrutura dessa sociedade e dessa forma de governo”. 38 Por isso,
o espaço reservado ao lado do trono para o séquito de sua majestade.
Pontuações importantes sobre esse documento são apresentadas pela pesquisadora galega Raquel
Bello Vázquez. É ela quem nos chama atenção para a importância dada ao Rei Consorte já no título
do documento, pois ao Auto de Levamento

[...] se atribui um papel destacado ao seu consorte já no próprio título. A importáncia


deste texto para a compreensom do reinado de D. Maria radica em que nom é de um
dos muitos elogios publicados com motivo da coroacom da nova Rainha, se nom
que constitui umha espécie de acta oficial do acontecimento, o que nos esta a indicar
que desde a própria Corte se queria dar um destaque especial a figura de D. Pedro,
fazendo-a equivaler à da sua esposa.39

34 AUTO, 1780, p. 84-85.


35 BEIRÃO, 1944, p. 124.
36 AUTO, 1780, p. 11.
37 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 102.
38 ELIAS, 2001, p.102.
39 BELLO VÁZQUEZ, Raquel. Uma certa ambiçaõ de gloria. Trajectória, redes e estratégias de Teresa
de Mello Breyner nos campos intelectual e do poder em Portugal (1770-1798). Tese. Santiago de Compostela:
Universidade de Santiago de Compostela, 2005, p. 308.

187
Raquel Bello Vázquez ainda traz outras considerações relevantes, como a questão do casamento da
Rainha com D. Pedro, que segundo a autora, nas palavras do Doutor Ricalde Pereira de Castro o
enlace “tranquilizou os ânimos dos seus Vassallos”. 40 Ainda nessas ressalvas feitas por Pereira e
Castro, haveria alusão à legitimação do direito ao trono por D. Maria e as comparações feitas com
outros reinos europeus.41
Do mesmo modo, o discurso da oração do desembargador do Paço, Dr. José Ricalde Pereira e Castro,
inicia-se, como de praxe42, prestando homenagens a D. José I e destacando seus feitos e virtudes,
depois faz menção aos desejos, do monarca falecido, deixados escritos para sua herdeira:

Temos visto (naquelle tempo, em que a pálida morte avançava para ele com
descarnada mão) as seis recomendações que dirigio a V. Majestade, como Herdeira,
e Successora dos seus Reinos, tão cheias de Unção, de Justiça, de Piedade, e de
religião, que correndo impressas, e fazendo o bom caracter de hum Rei justo, nos
fazem acreditar, que sería preciosa aos olhos de Deos a morte, que terminou huma
vida a mais gloriosa aos olhos dos homens. 43

Outro ponto a ser considerado, seria a imagem de Piedosa, alcunha que D. Maria I carregou durante
todo o seu reinado. Essa mesma palavra é utilizada no começo da oração, como observamos no
trecho acima e também no trecho que remete a liberação dos presos: “Os generosos effeitos da Regia
piedade de huma tal Rainha apparecem por toda a parte; mas muito particularmente na soltura de
tantos prezos de hum, e outro foro, que gemião nas tenebrosas prizões, e nos tristes degredos”. 44
Observamos a construção da imagem de Piedosa da Rainha, em sua gênese, atrelada às primeiras
providências, como no caso, a soltura dos presos.
Portanto, “na sociedade de corte a realidade social residia justamente na posição e na reputação
atribuídas a alguém por sua própria sociedade”. 45 Havia a necessidade da confirmação diante dos
seus pares, posto que o pertencimento a “boa sociedade” fundamentava-se tanto na identidade
pessoal, no título de nobreza, quanto na existência social e na aceitação da corte.
Destarte, cabe fazer alusão ao historiador alemão Ernst Kantorowicz que em sua obra Os Dois
Corpos do Rei, salienta que:

40 BELLO VÁZQUEZ, 2005, p. 308.


41 BELLO VÁZQUEZ, 2005, p. 308-309.
42 Segundo Joaquim Serrão, nesse tipo de discurso sempre era invocado os feitos dos reis anteriores,
C.f. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. V, 2.ª ed, Lisboa: Editorial Verbo, 1992.
43 AUTO, 1780, p. 61.
44 AUTO, 1780, p. 67.
45 ELIAS, 2001, p.111.

188
O misticismo, quando transposto do cálido crepúsculo do mito e da ficção para o frio foco
de luz da razão e do fato, geralmente deixa pouca coisa que o recomende. Sua linguagem,
a menos que ressoe no interior de seu próprio círculo mágico ou místico, parecerá muitas
vezes pobre e até ligeiramente tola, e suas metáforas mais intrigantes e imagens mais
extravagantes, quando privadas de suas asas iridescentes, podem facilmente lembrar a
visão patética e lamentável do Albatroz de Baudelaire. O misticismo político, em
particular, corre o risco de perder o encanto ou tornar-se bastante insignificante quando
46
retirado de seu ambiente nativo, seu tempo, seu espaço.

Sendo assim, ao observar a sociedade de corte portuguesa desse período ou qualquer outro tipo de
corte europeia do Antigo Regime, devemos ter o cuidado de perceber que estamos lidando com outro
tipo de realidade social, diferente da burguesa do século XVIII e de nossa própria figuração social.
Complexa e envolta em suas estruturas de etiqueta e na autorrepresentação da nobreza, essa estrutura
pode parecer-nos frívola, mas fazia todo sentido para os homens e mulheres de sua época, por isso,
a importância dada à cerimônia de aclamação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade de corte do Antigo Regime apresenta uma estrutura extremamente complexa e envolta
em sua autorrepresentação. A etiqueta era uma forma de distinção da nobreza, que parte de uma
racionalidade totalmente diferente da burguesa, o implicava no meticuloso no cálculo dos atos, na
cerimônia e organização geral da etiqueta, no autocontrole.
No entanto, essa estrutura não se formou da noite para o dia, posto que se forjou por meio de um
processo gradual. Processo esse, longo, que levou os cavaleiros e descendentes dos cortesãos da
cavalaria a transformar-se, de algum modo, em cortesãos no sentido próprio da expressão. Isto é, em
indivíduos cuja existência social estava sujeito ao seu nome, de seu prestígio na corte e no seio dessa
sociedade de corte.
Nesse contexto, segundo Norbert Elias identifica o palácio do rei como o centro da corte e dessa
sociedade de corte. Seria esse centro, o lugar em que os cortesãos inspiravam a si e a toda Europa,
como era o caso de Versalhes.

46 KANTOROWICKS, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei: Um estudo sobre teologia política medieval.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.17.

189
Com Portugal não foi diferente, sua corte, mesmo católica e dita conservadora, se rendeu aos
encantos do modelo exportado pelo Palácio de Versalhes, que era o epicentro de um complexo capaz
de abrigar a alta nobreza, local que se assemelhava a uma gaiola de ouro devido a sua suntuosidade.
Por esse motivo, a preocupação e riqueza em cada detalhe da cerimônia de coroação.

Referências:

AUTO do Levantamento, e Juramento que os Grandes, Títulos Seculares, Eclesiásticos, e mais


Pessoas, que se acharão presentes, fizerão á Muito Alta, Muito Poderosa Rainha Fidelíssima a
Senhora D. Maria I, Nossa Senhora na Coroa destes Reinos, e Senhorios de Portugal, sendo
Exaltada, e Coroada sobre o Régio Throno juntamente com o Senhor Rei D. Pedro III. na tarde do
dia Treze de Maio. Anno de 1777, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, Anno de M.DCC.LXXX
[1780].

BEIRÃO, Caetano, D. Maria I, 1777-1792: subsídios para a revisão da história do seu reinado, 3.
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Teresa de Mello Breyner nos campos intelectual e do poder em Portugal (1770-1798). Tese.
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CARLOTA Joaquina: princesa do Brazil. Direção: Carla Camurati. Produção: Carla Camurati,
Bianca De Felippes. Rio de Janeiro: Warner Bros. Pictures, c1995. 1 DVD.

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190
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Vídeo, c2002. 4 DVDs.

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II – O Dia a Dia na Corte. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2011.

RAMOS, Luís de Oliveira. D. Maria I. Lisboa: Temas e Debates, 2010.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal, vol. V, 2.ª ed, Lisboa: Editorial Verbo, 1992.

SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza: desde a sua origem
até o presente, com as Familias illustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de
Bragança: justificada com instrumentos, e escritores de inviolavel fé : e offerecida a El Rey D.
João V... / por Antonio Caetano de Sousa, Clerigo Regular... ; tomo VII. - Lisboa Occidental : na
Officina de Joseph Antonio da Sylva, impressor da Academia Real, 1735-1749. - 12 tomos em 13
vol. 1741.

191
Rompendo mordaças e muros: a obra de Lima Barreto nas aulas de História

Ana Lúcia Ferreira de Mattos1

Resumo: A pesquisa que está sendo desenvolvida no âmbito do PROFHISTÓRIA/UERJ será a


reflexão acerca das possibilidades de uso pedagógico nas aulas de História do Ensino Fundamental
de trechos selecionados das obras do escritor carioca Lima Barreto, que viveu na cidade do Rio de
Janeiro, entre os anos de 1881 e 1922. As obras, são os romances Recordações do escrivão Isaías
Caminha, Clara dos Anjos e o livro de memórias do autor, Diário íntimo. Serão privilegiadas
questões relacionadas às relações étnico-raciais e que contribuam de alguma forma para a denúncia
contra o racismo, a exclusão social e sua permanência na nossa sociedade. Paralelamente ao
desenvolvimento da pesquisa, será produzido um material pedagógico que possa ajudar o trabalho
dos docentes de História em sala de aula.

Palavras-chave: História; ensino de História; Literatura.

Abstract: The research that is being carried out within PROFHISTÓRIA /UERJ will be the reflection
on the possibilities of pedagogical use in the classes of History of Elementary School selected
excerpts from the works of Carioca writer Lima Barreto, who lived in the city of Rio de Janeiro,
among the years of 1881 and 1922. The works are the novels Recordações do escrivão Isaías
Caminha, Clara dos Anjos and the author's memoir, Diário íntimo. Issues related to ethnic-racial
relations will be favored and contribute in some way to the denunciation against racism, social
exclusion and their permanence in our society. Parallel to the development of the research, a
pedagogical material will be produced that can help the work of History teachers in the classroom.

Keywords: History; History teaching; Literature.

Nos anos de experiência que tenho como professora de história do Ensino Fundamental
nas escolas do município do Rio de Janeiro, e nas escolas estaduais em que lecionei para turmas do
Ensino Médio, presenciei entre os alunos situações de constrangimento diante de diferentes formas
de desqualificação infligidas pelos próprios colegas. Apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas
de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando traços físicos, como a textura de cabelos e a
cor da pele, fazendo pouco das religiões de matriz africana às quais muitos colegas pertenciam,
eram utilizados pelos alunos, incluindo também alunos afrodescendentes. Palavras como "macaco",
"cabelo ruim", além de "macumbeiro", eram usadas por alguns alunos de forma pejorativa. Esses
alunos, ao serem indagados sobre os motivos das "brincadeiras", achavam normais essas atitudes,
porque já haviam sofrido situações semelhantes ou porque não se reconheciam como negros.

1 Mestranda do PROFHISTÓRIA – FFP/UERJ, sob a orientação do professor Dr. Daniel Silva Pinha. E-
mail: analuciaferreirademattos@gmail.com

192
Identifiquei também durante as aulas as dificuldades dos alunos em compreender as razões da
origem do preconceito e da discriminação racial em nossa sociedade.
De acordo com o Atlas da Violência 2017, lançado em 5 de junho pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os "homens, jovens,
negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país. A população
negra2 corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas
de homicídios". (IPEA, 2017, p. 30-31). O triste resultado desse estudo divulgado pelo Ipea, é
constatado por mim e pelos meus colegas de magistério no nosso cotidiano de trabalho, quando
observamos a evasão de alunos das turmas por vários motivos, como a necessidade de ajudar
financeiramente os pais (ou cuidar dos irmãos mais novos para os pais trabalharem), a violência
doméstica, a falta de perspectiva de um futuro melhor, o uso de drogas, a criminalidade e
dificuldades de aprendizagem que acabam levando a um desinteresse pela escola e,
consequentemente, ao seu abandono.
Segundo o mesmo Atlas da Violência 2017 a

[...] mortalidade de mulheres não negras teve uma redução de 7,4% entre
2005 e 2015, atingindo 3,1 mortes para cada 100 mil mulheres não negras – ou seja,
abaixo da média nacional -, a mortalidade de mulheres negras observou um aumento
de 22% no mesmo período, chegando à taxa de 5,2 mortes para cada 100 mil
mulheres negras, acima da média nacional.

[...]além da taxa de mortalidade de mulheres negras ter aumentado, cresceu


também a proporção de mulheres negras entre o total de mulheres vítimas de mortes
por agressão, passando de 54,8% em 2005 para 65,3% em 2015. Trocando em
miúdos, 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil no último ano eram negras, na
evidência de que a combinação entre desigualdade de gênero e racismo é
extremamente perversa e configura variável fundamental para compreendermos a
violência letal contra a mulher no país. (IPEA, 2017, p.37)

Diante de todas essas dificuldades, muitas dúvidas e perguntas surgiram. Como contribuir
para tentar diminuir essa triste realidade? Como contribuir para ajudar os docentes em sala de aula,
que, como eu, procuram meios para, através das aulas de história, tentar mudar essa situação? O
interesse em trabalhar com as obras do escritor Lima Barreto revelou-se um caminho possível para

2
No Atlas da Violência 2017 o Ipea adota a classificação do IBGE para raça/cor, que considera negros
os indivíduos de cor preta ou parda; e indivíduos não negros, os brancos, indígenas ou amarelos.

193
tentar responder a essas perguntas, principalmente através de dois de seus romances Clara dos Anjos,
Recordações do escrivão Isaías Caminha e de seu livro de memórias, Diário íntimo.
Durante as minhas aulas de história no Ensino Fundamental e a elaboração de meu projeto
de pesquisa, as seguintes perguntas foram se tornando persistentes: Quais os motivos que fazem com
que muitos alunos usem palavras, expressões e brincadeiras ofensivas em relação à cor, à aparência,
à religião (especialmente as religiões de matriz africana), e também ao gênero? Por que esses mesmos
alunos e alunas acham "normais" essas atitudes? Qual é a visão de mundo (opiniões e perspectivas
de futuro) desses alunos, rapazes e moças?
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental:

[...] o compromisso que deve existir entre o ensino escolar e a História, em


particular, para a construção de uma sociedade democrática, pressupõe abordar
temas que promovam positivamente, grupos, que por muito tempo ficaram ausentes
do ensino da disciplina, ou então eram tratados de forma estereotipada e
preconceituosa, dando-lhes visibilidade. (BRASIL, 2013, p. 136)

Para muitos colegas de profissão, abordar temas considerados polêmicos em sala de aula,
principalmente no contexto atual em que lecionamos (em que estão incluídas dificuldades como
diminuição da autonomia dos professores e sua crescente desvalorização, precariedade das
instituições de ensino, principalmente as públicas, intolerância e desrespeito às opiniões e culturas
diferentes), está cada vez mais difícil. De acordo com Verena Alberti "[o] problema dos temas
sensíveis é que eles não são fáceis de tratar em sala de aula - aliás, em lugar nenhum." (ALBERTI,
2014, p. 2)
Quais são as dificuldades dos professores de história para conseguirem trabalhar temas
considerados polêmicos com os alunos? As dificuldades são muitas. Elas incluem o desinteresse dos
alunos por questões ocorridas em um passado recente ou não, a resistência de alguns responsáveis
que acreditam que o estudo de temas sensíveis não merecem ser trabalhados, porque podem
atrapalhar o cumprimento do programa ou influenciá-los ideologicamente. Como afirma Verena
Alberti "[escolher] trabalhar com esses temas implica, [...], correr riscos. Esses riscos precisam ser
compensados e o professor deve acreditar que vale a pena corrê-los." (ALBERTI, 2014, p. 2)
O respaldo da direção da escola também é muito importante para o trabalho dos professores:

[...] sobre o ensino de questões sensíveis ou controversas é a necessidade de


um ambiente seguro, onde alunos e professores se sintam confortáveis para discutir
o assunto, bem como o fato de os professores e a escola estarem dispostos a correr
riscos. (ALBERTI, 2014, p. 2)

194
É necessário também ouvir os docentes, para que suas experiências e opiniões ajudem no
desenvolvimento da pesquisa e na possível elaboração de um material pedagógico, voltado para
tentar ajudar os professores a trabalhar esses temas em sala de aula, e, assim, dar visibilidade e
importância ao debate racial. E para uma melhor identificação das dificuldades dos professores em
trabalhar temas polêmicos com seus alunos e para o desenvolvimento de um material pedagógico
que os auxiliem nessa tarefa, "[...] está o uso de fontes efetivas, atraentes e estimulantes, que possam
tornar possível o engajamento pessoal. Essas fontes, quando bem escolhidas, têm a função de mudar
a atitude do aluno [...] em relação ao assunto." (ALBERTI, 2014, p. 2)
As fontes escolhidas para a pesquisa são algumas obras do escritor Lima Barreto, em que
serão selecionados trechos para o desenvolvimento de um material pedagógico para uso em sala de
aula. Essas obras são os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha, Clara dos Anjos e o
livro Diário íntimo, uma obra de memórias do autor.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto era filho
de um culto tipógrafo e de uma professora, que morreu quando o escritor tinha sete anos de idade.
Em 1902, foi obrigado a abandonar a Escola Politécnica para trabalhar como amanuense no
Ministério da Guerra e ajudar a sustentar a família, pois o pai enlouqueceu. Entre os anos de 1914
até o fim da vida, Lima Barreto alternou períodos de intensa produtividade e colaboração na imprensa
com interrupções para tratamento em hospícios, devido a depressão e ao alcoolismo. Faleceu em 1922
aos 41 anos, vítima de colapso cardíaco, deixando uma obra da qual fazem parte, contos, sátiras,
novelas, romances, crônicas, artigos em jornais e diários que é de grande importância para a literatura
brasileira 3 . Diversos textos de Lima Barreto abordam questões polêmicas, como o racismo, que
permanece até hoje em nossa sociedade.
Os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha e Clara dos Anjos, abordam temas
como a discriminação, racismo, e a desigualdade social nos primeiros anos do regime republicano no
Brasil, um regime que foi anunciado por muitos políticos e intelectuais do período como sinônimo de
modernidade e portanto, democrático.
O romance autobiográfico Recordações do escrivão Isaías Caminha, narra a história do jovem
mulato Isaías que se muda de uma cidade do interior para a cidade do Rio de Janeiro, então capital
da República, e consegue emprego na redação de um jornal, sofrendo com o preconceito e
testemunhando ao mesmo tempo, toda a mediocridade e corrupção da imprensa na época. No romance
Clara dos Anjos, uma jovem mulata e ingênua, Clara, moradora de um subúrbio da cidade do Rio,
filha do carteiro Joaquim dos Anjos é seduzida pelo malandro Cassi Jones, rapaz branco, conhecido

3 BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto (1881-1922). Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.

195
por ter desonrado muitas donzelas. Apaixonada, Clara acaba engravidando e sendo vítima do
preconceito racial no momento em que procura a família de Jones para pedir ajuda.
O Diário íntimo, livro de memórias do autor, com anotações que se estendem de julho de 1900
até dezembro de 1921, um ano antes de sua morte, estão registradas situações vividas e/ou observadas
por Lima Barreto. Em muitas dessas situações, o próprio Lima Barreto foi vítima de discriminação
por ser mulato, o que o levou a denunciar essa triste realidade em várias de suas obras.
Os principais objetivos da pesquisa serão a produção de um material pedagógico que ajude os
professores a trabalharem nas aulas de história temas como o racismo e a desconstrução de
estereótipos relacionados a cor e religião e que estimule a participação e a reflexão dos alunos sobre
esses temas, dando visibilidade e importância ao debate racial em nossa sociedade. Desse modo, a
pesquisa estará ajudando na implementação da Lei 10.639/03, "que tornou obrigatório o ensino de
história e cultura africana e afro-brasileira em todas as escolas de Educação Básica
brasileiras"(SANTOS, 2013, p.57), contribuindo para o reconhecimento e valorização da história e
cultura da África e dos descendentes de africanos na formação da sociedade brasileira.
De acordo com Lorene dos Santos
As últimas décadas, em nosso país, têm sido marcadas pela emergência de
movimentos sociais e pela intensificação de debates, propostas e políticas visando o
combate a desigualdades historicamente perpetuadas. Neste processo, tem-se
apostado na valorização da diversidade sociocultural que caracteriza a sociedade
brasileira, enquanto um dos caminhos para o reconhecimento e maior visibilidade da
história e cultura de grupos socialmente marginalizados. Valorização da diversidade
e combate às desigualdades passam a ser reconhecidos, assim, como elementos
indissociáveis no processo de construção de uma sociedade mais equânime e capaz
de promover a justiça social. (SANTOS, 2013, p. 57).

Para o desenvolvimento da pesquisa, serão essenciais as leituras dos historiadores que


trabalham a questão racial no Brasil pós-abolição e na Primeira República, Sidney Chalhoub e Lilia
Moritz Schwarcz; textos de Luiz Costa Lima, que discute as fronteiras entre a história, a ficção e a
literatura; Hebe Mattos que discute no texto usado para esse projeto, questões sobre raça, escravidão
e cidadania nos anos finais da monarquia e primeiros anos da república no Brasil.
Espera-se também, através dessa pesquisa, estimular o interesse dos alunos pelos textos
literários, contribuindo para o alargamento de seus horizontes de leitura e de vida, instigando-lhes a
capacidade de reflexão.

196
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BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.l.:].

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proferida no IV Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades, realizado no Centro de
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Caicó (RN), de 17 a 21 de novembro de 2014. Disponível em: < http://hdl.handle.net/10438/17189>.
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198
Memórias do trabalho na Fábrica Opalma na década de 1960: um caminho para apreender
experiências da população negra no Vale do Iguape, no pós-abolição

Ana Paula Batista da Silva Cruz 1

Resumo: O presente artigo, busca refletir acerca do pós-abolição como um campo de estudo
importante para análise das experiências das populações negras e mestiças no Recôncavo da Bahia,
tendo as memórias de trabalhadores da Fábrica Opalma, como principal fonte para acessar a trajetória
desses sujeitos. Buscarei demonstrar quais os espaços de trabalho reservados para a população negra
do Iguape, no ambiente fabril, na tentativa de compreender as tensões de uma sociedade do pós-
abolição.

Palavras-chave: Memória, Trabalho, Pós-abolição.

Abstract: This article seeks to reflect on post-abolition as an important field of study for the analysis
of the experiences of the black and mestizo populations in the Recôncavo of Bahia, with the
memories of black workers from the Opalma Factory as the main source for accessing the trajectory
of these subjects. I will try to demonstrate the work spaces reserved for the black population of
Iguape, in the factory environment, in an attempt to understand the tensions of a society marked by
slavery.

Keywords: Memory, Work, Post-abolition.

A região, conhecida como Vale do Iguape2, é formada por 18 comunidades: Engenho da


Ponte, Engenho da Praia, Engenho da Ponta, Engenho da Cruz, Engenho Vitória, Engenho Novo,
Calolé, Caimbongo, Opalma, Campinas, Caonge, Calembá, Cabonha, Dendê, Embiara, São
Francisco do Paraguaçu, Santiago do Iguape e Tombo. Essas comunidades se formaram nos
territórios da antiga freguesia de São Thiago do Iguape, pertencente ao termo da comarca de
Cachoeira.
A Freguesia de São Thiago do Iguape, durante o período escravocrata, estava entre as regiões
com maior concentração de engenhos de açúcar, como salientou Barickman, na localidade, em 1835
os fogos e as unidades domésticas dos senhores de engenhos e dos lavradores de cana abastados,
funcionavam na região 21 engenhos “moentes e correntes”. Refletiu, ainda, que a estrutura fundiária
da região era altamente concentrada nas mãos dos grandes senhores de engenhos:
Quando se fez o censo de 1835, funcionavam no Iguape 21 engenhos “moentes e
correntes”, cada um dos quais consta do censo como um fogo, com uma força de

1 Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana, Doutoranda em História Social
pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob a orientação do professor Dr. Álvaro Pereira do Nascimento. E-
mail: apbscunica@yahoo.com.br
2 Em alguns momentos utilizo o termo Bacia do Iguape, que se refere à região do Vale do Iguape.

199
trabalho média de cerca de 123 escravos, esses engenhos estavam entre os maiores da
Bahia e do Brasil3.

Fraga Filho em investigação sobre os egressos da escravidão, seus itinerários e os


significados de liberdade4 que construíram no Recôncavo baiano, destaca ser preciso ter um olhar
atento para a variedade de experiências que as populações de ex-cativos construíram para trazer à
tona suas múltiplas formas de acesso à terra. Na sua pesquisa destacou os diferentes meios pelos
quais os ex-escravizados dos engenhos da Cruz, Mataripe e Pitinga permaneceram em seus territórios
de origem, preservando e renovando costumes 5 para se adaptarem a uma sociedade nacional que,
muitas vezes, não os reconhecia como autênticos sujeitos históricos.
A possibilidade de acesso a um lote de terra assegurava maiores alternativas de
subsistência, embora os roceiros fossem obrigados a prestar serviços nas terras dos ex-
senhores. Para estes, era possível ter acesso às feiras locais e diversificar o cultivo de
gêneros de subsistência. Vimos que o direito a parcelas de terras talvez tenha sido o
grande fator de permanência nos engenhos 6.

A partir das premissas lançadas por Fraga Filho considero importante investigar as
comunidades que se formaram no território da antiga Freguesia de São Thiago do Iguape, enquanto
espaço historicamente ocupados por populações negras descendentes do cativeiro, que de diferentes
modos, acumularam experiências históricas.
O presente artigo, tem como objetivo contribuir para a construção do conhecimento histórico
sobre os modos de trabalho em Santiago do Iguape, a partir das narrativas orais 7, trazendo à tona
processos sociais e lutas pela sobrevivência e por melhores condições de vida e de trabalho na
comunidade.

3 BARICKMAN, B. J. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do Recôncavo
Baiano em 1835. In: Revista Afro-Ásia, Salvador, Vol. 29-30: 79-132, 2003.
4 O historiador Eric Foner em suas pesquisas sobre os Estados Unidos foi pioneiro nas discussões sobre
os sentidos da liberdade experimentados pelos ex-cativos, antecipou também que a permanência nos antigos engenhos
representava táticas de manutenção dos “direitos” adquiridos ao longo do cativeiro. Ver: FONER, Eric. Nada Além da
Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1983.
5 Costumes na perspectiva de Edward Thompson, onde as relações sociais cotidianas são por excelência,
palcos de conflitos e disputas, que aparecem como uma forma de legitimar o espaço de sociabilidade entre os seus, práticas
ligadas às realidades materiais e socais da vida e do trabalho. Ver: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum Estudos
Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras,1998.
6 FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia
(1870-1910). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.
7 Fontes orais utilizadas na pesquisa: BRITO, Pedro. (78 anos) Entrevista concedida a Ana Paula
Batista da Silva Cruz em 30/01/13, na casa de Seu Jorge. Gravada em áudio tipo som wave (6.194 KB)Tiago. (58 anos)
Entrevista concedida a Ana Paula Batista da Silva Cruz em 25/03/14, na minha casa na comunidade quilombola Santiago
do Iguape. Gravada em áudio tipo som wave (7.482 KB), JESUS, Salvador Pereira. (70 anos) Entrevista concedida a
Ana Paula Batista da Silva Cruz em 15/02/2012, na minha casa na comunidade quilombola Santiago do Iguape. Gravada
em áudio tipo som wave (12.110 KB), SILVA, Guilherme Gomes. (53 anos) Entrevista concedida a Ana Paula Batista
da Silva Cruz em 15/07/2013, na casa de seu Guilherme. Gravada em áudio tipo som wave (9.658 KB), VIEIRA,
Francisco. (53 anos).

200
Blume 8 , em pesquisa referente às memórias de trabalho e vivências de marisqueiras em
Ilhéus, inspirado em E. P. Thompson, entende a memória como luta e trabalho, por operar no sentido
de trazer as querelas em torno do cotidiano, da cultura e da experiência. Compartilho desta visão, e
defendo que recuperar as memórias dos trabalhadores de Santiago do Iguape é uma forma de dar
visibilidade às lutas histórico-sociais ante as transformações das relações de trabalho na região.
Nesse sentido, utilizar fontes orais me permitiu perceber faces de linguagem como os gestos,
resmungos, olhares e entonações dos sujeitos, vivências expressas e marcadas no corpo. Portelli
ressalta as possibilidades das entrevistas fazerem emergir aspectos e experiências sobre as quais os
entrevistados nunca pensaram ter importância, pois,

A linguagem também é composta por outro conjunto de traços que não podem ser
contidos dentro de um único segmento, mas também são portadores do significado. A
fileira de tom e volume e o ritmo do discurso popular carregam implícitos significados
e conotações sociais irreproduzíveis na escrita. 9

O mesmo autor argumenta ainda que “as fontes orais dão-nos informações sobre o povo
iletrado e grupos sociais cuja história escrita é ou falha ou distorcida” 10, e que cabe aos pesquisadores
o respeito pessoal por aqueles com quem trabalham, bem como O respeito intelectual pelo material
coletado.
Através do uso das fontes orais, portanto, foi possível recuperar histórias não conhecidas, e
também capacitar as pessoas a fazerem suas próprias histórias, narrando o seu cotidiano. Dessa
forma, o presente estudo buscou apreender memórias dos moradores de Santiago do Iguape, bem
como, contribuir na efetivação desses enquanto sujeitos da sua própria história, ao valorizar as várias
camadas de ligação de memórias individuais e coletivas na pluralidade das versões sobre o passado
enunciadas por diferentes narradores.
Quanto a essa categoria norteadora de pesquisa, Le Goff considera que a memória é o
“trabalho de atribuir sentido ao passado no presente, a reescrita, recriação do passado no presente
orientado por motivações de quem lembra e de quem produz memória” 11. Pollak reflete sobre a
existência de pontos de referência que estruturam a memória individual e se inserem na memória da
coletividade a que se pertence:

8 BLUME, Luiz Henrique dos Santos. “Viver de tudo que tem na maré”: tradições, memórias de
trabalho e vivências de marisqueiras em Ilhéus, BA, 1960-2008. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
9 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Revista Projeto História, São Paulo, Vol.
14, 1997, P. 27-28.
10 Ibid., p. 27.
11 LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1996.

201
Em sua análise da memória coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a força dos diferentes
pontos de referência que estruturam nossa memória e que a inserem na memória da
coletividade a que pertencemos. Entre eles incluem-se evidentemente os monumentos,
esses lugares de memória analisados por Pierre Nora, o patrimônio arquitetônico e seu
estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e personagens
históricas de cuja importância somos incessantemente relembrados, as tradições e
costumes, certas regras de interação, o folclore e a música, e, por que não, as tradições
culinárias.12

Uma outra categoria de análise muito cara a esse estudo é o pós-abolição, reconheço o pós-
abolição como um campo de estudo importante para apreender as várias experiências de populações
negras e mestiças, egressas do cativeiro no Recôncavo da Bahia, bem como, suas experiências
históricas com os sujeitos com quem mantiveram relações sociais: antigos senhores e demais setores
da população livre.
No enfrentamento a problemática sobre as estratégias construídas pelos ex-escravizados na
sociedade de pós-abolição, na luta por cidadania, Cunha e Gomes 13, propuseram uma análise de
experiências vivenciadas em áreas urbanas e rurais no Brasil entre o século XIX e primeira metade
do século XX, evidenciando que as noções de igualdade e cidadania foram contestadas em práticas
cotidianas.
Dessa forma, considero que lançar olhar para as experiências de trabalhadores e
trabalhadoras negras em Santiago do Iguape, na década de 1960, sem reconhecer que essa
comunidade é, sobretudo, uma sociedade de pós-abolição, marcada diretamente pelas tensões de
lidar com o fim da escravidão, no ambiente fundamentalmente rural, é abrir mão de ampliar os
horizontes de analises, e de perceber que as práticas cotidianas desses sujeitos revelam como eles
seguem, ao longo do tempo, contestando as noções de igualdade e cidadania, e buscando ampliação
e estabilização de direitos.

Memórias do Trabalho na Fábrica Opalma:

A fábrica em questão foi fundada em 1962 no município de Taperoá, situada na Região do


Baixo Sul do estado da Bahia. Foi montada no mesmo período uma filial na região do Iguape, no

12 POLLAK, Michel . Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
Vol. 2, 1989. P. 8.
13 CUNHA, Olívia Maria Gomes e GOMES, Flávio dos Santos. Introdução- que cidadão? Retóricas da
igualdade e cotidiano da diferença in: CUNHA, Olívia Maria Gomes e GOMES, Flávio dos Santos. Quase-cidadão:
histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

202
povoado da Acutinga14, que se localiza a 10 quilômetros da comunidade de Santiago do Iguape, foco
dessa análise. O Vale do Iguape foi um local estratégico no Recôncavo da Bahia para sua instalação,
devido à vasta extensão de terras caracterizadas como “massapé”, um solo propício para a plantação
de cana-de-açúcar e que se adequou satisfatoriamente ao plantio extensivo de dendê. A Fábrica
Opalma produzia diversos produtos derivados desse fruto, sendo o principal deles o azeite.
Santiago do Iguape, é uma comunidade pesqueira, sua principal atividade produtiva é a pesca
e a coleta de marisco. O trabalho na Fábrica Opalma, apresentou diferentes notações de tempo para
os sujeitos dessa comunidade, acostumados à execução de atividades diversas que exigiam horários
flexíveis.
A pesquisa evidenciou que nas memórias do cotidiano e do trabalho em Santiago do Iguape
a noção de tempo se relaciona com as atividades desenvolvidas, semelhante à direcionada pelas
tarefas, analisadas por Thompson15. E que essa noção estava ligada às diversas situações cotidianas
de trabalho, que obedeciam aos ritmos da natureza. Eram marcadores de tempo os períodos da
pescaria, da plantação de roças, da colheita de quiabo – orientadas pelo desenvolvimento de tarefas
que, segundo Thompson, pressupõe pouca separação entre o trabalho e as demais relações sociais
cotidianas.
O trabalho se prolonga ou se contrai de acordo com a tarefa, ainda hoje é comum os
pescadores serem encontrados durante o dia no bar conversando sobre as pescarias, contando
“causos”, ou sentados às suas portas, remendando redes de pescas nos períodos de intervalo das
tarefas diariamente produtivas. Escutam som, batem papo e às vezes passam o dia tomando uma
pinga, jogando dominó na praça. Contudo, no “cair” da noite, os pescadores saem para a “labuta no
mar”, pois é o período da maré boa para pesca.
A fábrica empregou vários indivíduos da comunidade de Santiago do Iguape e adjacências.
Seu Guilherme relatou que a maioria dos trabalhadores eram oriundos do Vale do Iguape:

Trabalha muita gente ali, da área, bem poucas pessoas eram de fora, porque os de fora
eram mais técnicos, funcionários, mas especializados de nível elevado, por exemplo,
pessoal da área de escritório, morava aqui em Cachoeira, um ou outro, os técnicos de
Cruz das Almas, mas 95% eram de funcionário dali mesmo.

Seu Guilherme mora atualmente na cidade de Cachoeira e exerceu duas funções na Opalma:
foi auxiliar administrativo e trabalhou como “feitor”. O uso do termo feitor emerge nas memórias

14 Devido à instalação da Fábrica Opalma na região, o povoado de Acutinga passou a ser chamado de
Opalma.
15 Ver: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras,1998.

203
dos trabalhadores da fábrica e é utilizado em deslocamento do período do cativeiro, mas imbricado
nos seus significados, uma vez que o feitor representava a figura que chefiava os campos de
plantações de dendês, controlando a realização das tarefas neste local.
O entrevistado considerava que 95% dos trabalhadores da Opalma eram da região do Iguape,
principalmente por fazer uma comparação das funções desempenhadas pelos “nativos” com as
desempenhadas por pessoas provenientes de outras localidades. Na sua fala, ele destaca a presença
dos “trabalhadores de fora”, estes em funções mais especializadas, como: técnicos e auxiliares
administrativos. Essas funções agregavam um contingente menor de trabalhadores, em detrimento
do trabalho do campo, na plantação de dendê. Os trabalhadores do Vale do Iguape, em especial da
comunidade de Santiago do Iguape estudados por essa pesquisa, revelaram que trabalhavam no
campo, desempenhando diversas funções, como marcador de plantação, cortador, apanhador,
trabalho com a bomba de produtos químicos e trabalho com animal. Como afirmou seu Guilherme,
os funcionários da região não costumavam trabalhar no interior da fábrica.
Seu Tico revelou que trabalhou durante muitos anos na Fábrica Opalma e que desempenhou
várias funções, no entanto, sua expressão no momento da entrevista mudou quando ele falou do seu
trabalho na bomba, ficou mais sério, devido aos problemas de saúde que desenvolveu a partir da
injeção de inseticida nos dendezeiros.

Eu trabalhava na bomba, cortando dendê, trabalhava juntando tala. Eu


trabalhava na bomba, era um aparelho que a gente colocava nas costas, dava
pressão pra colocar lá nos cortes do dendê. Eu trabalhei 7 anos na bomba, aí
eu gumitei um pedaço de sangue e parei, aí saí da bomba. Aí fui trabalhar na
roça, panhar dendê, o trabalho lá era botar dendê pra fora.

Este entrevistado trabalhou durante sete anos manuseando a bomba, esta ejetava um líquido
nos cortes feitos nas palmeiras quando retirava-se o “cacho do dendê”, evitando a penetração de um
besouro prejudicial à plantação. “Bomba é um aparelho, porque quando se corta o dendê, aí tem uns
bisourinhos, quando corta a tala se não colocar o produto, tem um bisouro que penetra e mata o pé
do dendê”.
Segundo seu Tico, trabalhar na bomba exigia demasiada responsabilidade. Para cada cacho
de dendê cortado era preciso injetar o inseticida. Ele tinha que fazer hora extra para não deixar
nenhum pé de dendê cortado sem o líquido: “Às vezes ele vinha embora (Pedro que estava presente
no momento da entrevista) e eu ficava pra passar a bomba no pé de dendê, que não podia ficar em
branco. Passava do meu horário, mas ele (Patrão) dava hora extra. ”

204
Depois de sete anos manuseando a bomba, ele precisou se afastar dessa função por problemas
de saúde, passando a trabalhar carregando dendê dos planteis para colocar na estrada.
Seu Pedro, por sua vez, além de rememorar a sua função, apresenta dados sobre a divisão do
trabalho nos campos da Opalma, explicando quais eram as atividades desenvolvidas pelo “cortador”
de dendê, “ajuntador” e “carregador”. A fala dele ajuda também a compreender o retorno da cultura
da cana-de-açúcar na região do Iguape:

Trabalhava no campo, não era dentro da fábrica, tinha a parte do campo, era plantio de
dendê, aquela área daquela terra que hoje é tudo cana, era tudo dendê, de um lado ao
outro da estrada, até lá no portal. Minha função era, tinha o cortador do dendê, tinha o
ajuntador, que era quando o cortador cortava o cacho do dendê, ficava as talas né, e
jogava no chão, minha função era, pegar aquelas talas, cortar em quatro e arrumar tudo
certinho, tinha o carregador.

O depoente juntava as talas de dendê. Em sua fala enfatizou que não trabalhava dentro da
fábrica. Importante nessas memórias é a divisão entre o espaço das instalações internas da fábrica e
o campo. Seu Salvador também evidenciou essa divisão ao dizer que “dentro da fábrica eu mesmo
nunca trabalhei”. Ele também participou de várias funções durante o tempo de trabalho na Fábrica
Opalma, dentre elas, plantar, colher e adubar dendê:

Eu fazia tanta coisa lá, eu trabalhei na área do campo e não sei dizer o trabalho que
eu fazia, o que tivesse tinha que fazer. Olhe eu trabalhei marcando pra plantar dendê,
trabalhei plantando dendê, cortando não, mas culhendo os cachos que o cortador
cortava, em animal também nunca trabalhei não, não gostava não, adubá era dois
balde de 20 quilos, um de um lado, outro de outro. Dentro da fábrica eu mesmo
nunca trabalhei.

No depoimento de seu Joãozito, emerge uma função diferente das já apresentadas, o trabalho
de carregador de dendê, realizado no “lombo” dos animais: “Eu trabalhava no animal, no campo,
pegando dendê com os colegas, pegava dendê, botava cá fora para descarregar.”
Seu Jorge, outro trabalhador, ressaltou que desempenhou duas funções no campo da Opalma,
cortando talas e carregando dendê:

Trabalhei também na Opalma, eu trabalhava na Opalma cortando tala no campo, e


trabalhava também botando dendê nas caçambas, pra trazer pra fábrica, trabalhei
umas duas ou três vezes assim, uma de ano, uma de ano e tanto, eu trabalhei fichado
também, pela parte rural, era no campo, limpando dendê não, era cortando tala no
mato e conduzindo dendê na mão pra botar na caçamba.

Além disso, explicitou as questões trabalhistas como as dispensas e a readmissão dos


trabalhadores. Essas dispensas aparecem na maioria das entrevistas realizadas e podem ter sido

205
cruciais para que muitos desses sujeitos tenham desenvolvido atividades diferenciadas nas suas
experiências de trabalho na Opalma.
A partir das memórias dos trabalhadores dessa fábrica, pode-se perceber que um mesmo
indivíduo desenvolvia várias funções, no entanto todas elas diretamente ligadas ao trabalho no
campo. Segundo Le Goff, a memória tende a recriar o passado no presente. Dessa forma, o passado
é revivido, sempre recriado orientado por motivações, selecionadas por quem lembra. O passado
assim deve ser visto como um território sempre aberto, guiado pela seleção e atribuição das
experiências rememoradas.
Sobre a questão das relações trabalhistas formais, seu Salvador foi mais explícito. A
entrevista com ele foi realizada em sua casa, na comunidade do Caonge. Quando cheguei, ele já
estava me aguardando com uma caixa cheia de documentos referentes aos seus 33 anos de trabalho
legalizado na Fábrica Opalma. Disse-me ele: “Eu trabalhava de carteira assinada, fora os tempos que
eu trabalhei avulso, os seis anos que eu trabalhei avulso, eu tenho 33 anos de carteira assinada.”
Esta ênfase indica uma reflexão: a importância da “carteira assinada”. Na fala, seu Salvador
enfatiza o trabalho com carteira assinada, que deve ter representado para os trabalhadores da Fábrica
Opalma, moradores dos povoados do Vale do Iguape, em sua maioria pescadores e roceiros, a
segurança financeira, “o dinheiro certo”. Os recursos financeiros conquistados através da roça
tradicional e da atividade pesqueira variavam bastante, uma vez que dependiam de fatores naturais.
Dessa forma, os sujeitos dessa pesquisa fizeram questão de destacar que eram trabalhadores de
carteira assinada.

206
Fonte: Acervo particular de Salvador Pereira

Seu Salvador mostrou o seu contrato de trabalho com uma expressão bastante orgulhosa. Esse
documento pode ter representado o “dinheiro certo”, mencionado anteriormente, tanto para ele,
quanto para a maioria dos trabalhadores entrevistados por esse estudo. Mas também, pode ter
representado direito à cidadania para a população negra no pós-abolição.
Nascimento, no seu texto, “Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da
escravidão? O pós-abolição no ensino de história 16 ”, refletiu, a partir de respostas dadas a uma
questão específica no vestibular Nacional da Unicamp, questão essa que deu origem ao título do
referido artigo, que a produção do conhecimento a partir das abordagens dos livros didáticos
continuavam reproduzindo conceitos, como anomia do escravo, democracia racial, imobilidade e
não integração da população negra na sociedade de pós-abolição, muito influenciado, pelos estudos
de Gilberto Freyre na década de 1930 e da escola sociológica paulista da década nos anos de 1960.
O autor considerou que não se deve pensar a passagem do trabalho escravo para o livre de
forma linear e enrijecida, é preciso pensar a história enquanto processual e compreender que os
escravizados participaram desse processo histórico ativamente, buscando ampliação e estabilização
de direitos. Dessa forma, a trajetória de vida de seu Salvador, trabalhador de carteira assinada da

16 NASCIMENTO. Álvaro Pereira do. Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da
escravidão? O pós-abolição no ensino de História. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org). A República e a
Questão do Negro no Brasil. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005.

207
fábrica Opalma, deve ser rememorada e trazida à tona, no intuído de reafirmar que homens negros
alcançaram diversos níveis de cidadania, na contramão de um racismo que insistia em dificultar sua
“ integração” a essa sociedade.
As atividades laborais na Opalma, de certa forma, implantou um outro tempo, do horário
mensurado pelo relógio, pelos turnos de trabalho. Assim, neste estudo foi fundamental apreender
quais as táticas dos iguapenses quanto à articulação dos trabalhos realizados na localidade, como a
pesca e a produção de roças, com as atividades na Fábrica Opalma, após sua instalação no Vale do
Iguape. O presente artigo, buscou apresentar como ela gerou oportunidades de empregos diretos e
indiretos e como isso interferiu na relação de família/trabalho/tempo, da população negra e mestiça,
no Recôncavo da Bahia.

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THOMPSON, E. P. Costumes em Comum Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras,1998.

208
Fontes:
*BRITO, Pedro. (78 anos) Entrevista concedida a Ana Paula Batista da Silva Cruz em 30/01/13, na
casa de Seu Jorge. Gravada em áudio tipo som wave (6.194 KB)Tiago. (58 anos) Entrevista
concedida a Ana Paula Batista da Silva Cruz em 25/03/14, na minha casa na comunidade quilombola
Santiago do Iguape. Gravada em áudio tipo som wave (7.482 KB), JESUS, Salvador Pereira. (70
anos) Entrevista concedida a Ana Paula Batista da Silva Cruz em 15/02/2012, na minha casa na
comunidade quilombola Santiago do Iguape. Gravada em áudio tipo som wave (12.110 KB), SILVA,
Guilherme Gomes. (53 anos) Entrevista concedida a Ana Paula Batista da Silva Cruz em 15/07/2013,
na casa de seu Guilherme. Gravada em áudio tipo som wave (9.658 KB), VIEIRA, Francisco. (53
anos).

*Fotografia, acervo particular de Seu Salvador Pereira.

209
As onze lições de Robert McNamara e o Realismo das Relações Internacionais

Ana Paula Marino de Sant’Anna Reis1

Resumo: Robert Strange McNamara foi o Secretário de Defesa dos Estados Unidos da América de
1961 até 1968 trabalhando nos governos de John Fitzgerald Kennedy e Lyndon Baines Johnson. Ele
participou ativamente de decisões importantes para o mundo bipolar da Guerra Fria, e por isso estava
inserido em situações complexas e de conflitos, como foi o caso da Crise dos Mísseis em Cuba e da
Guerra no Vietnã. No ano de 2003 foi feito um documentário sobre sua experiência nesse cargo,
chamado The Fog of War – Sob a névoa da Guerra. Neste documentário ele apresenta onze lições
importantes para que um país saiba lidar com situações complexas com o inimigo. Esse trabalho
propõe apresentar a visão de McNamara e em paralelo discutir sobre a teoria realista de Relações
Internacionais, que no campo teórico e científico entendemos que pode explicar boa parte da visão
da prática de McNamara.

Palavras-Chave: McNamara, Realismo, Relações Internacionais.

Abstract: Robert Strange McNamara was Secretary of Defense of the United States of America from
1961 to 1968 working in the governments of John Fitzgerald Kennedy and Lyndon Baines Johnson.
He actively participated in important decisions for the bipolar world of the Cold War, and was
therefore involved in complex situations and conflicts, such as the Cuban Missile Crisis and the
Vietnam War. In the year 2003 a documentary about his experience in this position was release and
it’s called The Fog of War. In this documentary, he presents eleven important lessons for a country
to deal with complex situations with the enemy. This paper proposes to present the vision of
McNamara and in parallel discuss about the Realism theory of International Relations, which in the
theoretical and scientific field we understand that can explain much of the vision of the practice of
McNamara.

Key-words: McNamara, Realism, International Relations.

Introdução

As Relações Internacionais (RI) são um campo de estudo complexo e abrangente. Pensar a


política internacional não é simples, pois envolve compreender os atores que estão inseridos nas
situações, os fenômenos que incidem sobre a situação e os processos de mudança. Estudar as
Relações Internacionais implica, portanto, em buscar obter um arcabouço teórico amplo das Ciências
Socais. (PECEQUILO, 2009, p.17). De acordo com Braillard (1990, p.86 apud PECEQUILO, 2009,
p.17) as Relações Internacionais podem ser definidas “como as relações sociais que atravessam as
fronteiras e que se estabelecem entre as diversas sociedades”.

1 Bacharel em Relações Internacionais pela ESPM-RJ. Graduanda em História pela UERJ. Email:
paula.reis@msn.com

210
Para se estudar as Relações Internacionais faz-se necessário ter um conhecimento prévio sobre
alguns conceitos. Segue abaixo a Tabela 1 desenvolvida por Thales de Castro com alguns conceitos-
chave das Relações Internacionais e que serão úteis para o desenvolvimento deste artigo. Deve-se
mencionar que foi selecionado do quadro original somente os conceitos pertinentes nesse texto,
contudo vale a leitura de todo o quadro para quem tem interesse em desenvolver estudos na área de
Relações Internacionais.

Principais Ferramentas conceituais


Estado Entidade político-jurídica que representa a engrenagem central das RI
dotada de população permanente, de território reconhecido, de
governo aceito e de exercício de soberania estatal no plano interno e
externo, perfazendo, assim, seu jus dominium. Em decorrência disso,
possui capacidade de autogoverno, poder de polícia e organização
institucional.
Soberania estatal Conceito derivado do latim summa potestas, a soberania é
prerrogativa exclusiva do exercício da capacidade de mando do
Estado nacional reconhecido. Em sua vertente interna, diz respeito ao
exercício de autogoverno, de poder de polícia e capacidade de
organização político-administrativa, enquanto que em sua esfera
externa diz respeito à sua presença reconhecida, à prerrogativa
jurídica e à articulação internacional com base nos jus in bellum
(direito de decretar guerra e celebrar a paz com outros Estados), jus
tractum (direito de negociar, assinar, retificar e denunciar tratados) e
jus legationis (direito de legação em sua dimensão ativa e passiva;
sendo a dimensão ativa a capacidade de receber enquanto que na
passiva diz respeito ao recebimento de agentes consulares e
diplomáticos), jus petitionis (direito de solicitar a prestação
jurisdicional em tribunais internacionais quanto aceitar a juris dire de
várias Cortes, podendo, para tanto, ser parte ativa ou passiva em
processos judiciais) e jus representationis (direito de representar e
fazer-se representar em organismos internacionais, agências
multilaterais e programas cim direito à voz, voto e determinação de
agenda).
Hegemonia Exercício de hiperpoder multidimensional por um ou mais Estados em
escala global. O exercício hegemônico pressupõe reconhecimento de
tal capacidade por parte dos demais Estados. É escalonada na forma
de consolidação, primeiramente da liderança, posteriormente, da
supremacia em determinadas áreas. Dessa forma, hegemonia
representa a materialização plena e internacionalmente reconhecida
de supremacia em todas as variáveis do quociente de poder
internacional [conceito criado por Castro] que será explicitado no
próximo termo (poder). Hegemonia é atingida pela concentração
cratológica do(s) Estado(s).

211
Poder Capacidade de alterar o comportamento de outros atores
internacionais por meio de exercício de dominação e controle com
finalidades determinadas. Integra os Capitais de força-poder-
interesse. Em nossa visão, o poder internacional de um Estado
(quociente de poder internacional) é expresso pelo somatório de
poderes político-diplomático, econômico-financeiro, cultural, militar
e geodemográfico.
Polaridade Quantidade de polos ou de centro hegemônicos (hiperpoderio ou
hiperpolo) no cenário internacional, limitados, geograficamente, pelo
conceito de sistema (macro, meso ou microssistemia). Representa
acumulação expressiva de Capitais de força-poder-interesse em um
ator internacional. A polaridade refere-se também à morfologia de
distribuição desigual e de relacionamento entre os atores
internacionais, gerando a estratificação cratológica na forma de
pirâmide dos Estados.
Balança de Poder Regra geral de pesos e contrapesos ao exercício dos Capitais de
força-poder-interesse em conjunto com os Padrões de dissuasão-
normas-valores no âmbito das relações dos Estados, dotando-os de
capacidade de manter um certo (e frágil) equilíbrio sistêmico. Balança
de poder tem proximidade com dois outros conceitos importantes:
teoria do poder gravitacional e esferas de influência.
Ordem Mundial Recorte temporal de longa duração com determinação da governança
entre os Estados por meio da junção do exercício de poder (cratologia)
hegemônico em parceria com seus valores, princípios e ideias
exportados e aceitos pela grande maioria dos demais Estados
(principiologia/axiologia). Ordem mundial é posta, de forma
impositiva, sob a égide dos status quo aos demais pelo(s) país(es)
hegemônico(s). Só pode haver governança com o estabelecimento
anterior de ordem. Portanto, OM é um sinônimo de governança
mundial (GM). Em síntese, portanto, temos OM = GM.
Tabela 1: Principais Ferramentas conceituais. Adaptada de CASTRO, Thales. Teoria das Relações Internacionais. Brasília: FUNAG,
2012. p.76-78.2

O Sistema Internacional (SI) é o espaço dessas relações sociais entre os atores (outros autores
podem chamar o SI de cenário ou ambiente). O SI é um espaço essencialmente anárquico, pois é
composto por atores que não possuem um sistema regulatório acima deles, diferente do que acontece
dentro do âmbito dos Estados, onde existe um governo e leis, como apresentado na Tabela 1. Quem
participa desse SI são os atores internacionais, que podem ser os Estados, as Organizações
Internacionais Governamentais ou Intergovernamentais (OIGs) e as Forças Transnacionais (FTs).
Mesmo sendo anárquico, o SI possui uma estrutura que o faz ter coerência e tende a estabelecer um
equilíbrio de forças, que é o que chamados de Equilíbrio de Poder (EP). (PECEQUILO, 2009, p.18-
20). De acordo com Pecequilo (2009, p.19):

2 Fez-se necessário incluir algumas palavras no decorrer do texto da Tabela 1 levando em consideração
que no original elas se encontram abreviadas. Essas palavras estão explicitadas em negrito. Todo o texto é de autoria de
Thales Castro.

212
(...) o EP é um dos principais pilares da teoria realista clássica das Relações
Internacionais do século XX. (...) A ordem internacional emerge a partir da
dinâmica de competição e choque mútuo entre os Estados que se anulam
mutuamente ao perseguir seus interesses nacionais (a razão de Estado orienta o seu
comportamento). A “prioridade primeira” é a manutenção da soberania e da
segurança de cada unidade política individual. Este processo de contenção e
dissuasão mútuas entre os diferentes pólos produz uma condição de estabilidade que
se não satisfaz plenamente a todas as nações, evita a eclosão constante de guerras e
o extremo dos jogos de soma zero. Nesse contexto, tais relações ocorrem sob a
“sombra da guerra” e visam a estabilidade de não a paz, percebida como um objetivo
utópico. (PECEQUILO, 2009, P.19)

Já apresentado na Tabela 1, o poder é um objeto de estudo muito importante para as RI. Para
além da definição de Castro apresentada acima, o poder pode ser analisado pensando especificamente
os recursos de poder que estão à disposição dos Estados, ou seja, “o poder potencial de um Estado,
aquele que existe em sua condição bruta, e o seu poder real, definido por sua capacidade de
conversão”. Além disso o poder pode ser visto quanto a tipologia dos recursos, sendo dividido em
poder duro (hard power) e poder brando (soft power). Esse tipo de classificação advém do
Neoliberalismo das Relações Internacionais e foi cunhado pelo pesquisador Joseph S. Nye Jr.
(PECEQUILO, 2009, p. 21)

Teoria Realista de Relações Internacionais

De acordo com Castro (2012, p. 309) a Teoria Realista “é a mais antiga e mais amplamente
conhecida das escolas de pensamento em Relações Internacionais”. Para apresentar a Teoria Realista
de RI faz-se necessário ter em mente que, por mais que ela se desenvolva como campo teórico no
século XX, suas bases encontram-se em autores anteriores a esse momento. De acordo com
Pecequilo (2009) e Jackson e Sorensen (2013) os autores clássicos são Tucídides, Nicolau Maquiavel
e Thomas Hobbes. Castro (2012) entende que na verdade os fundadores do realismo clássico são
seis, esses três citados anteriormente e também Sun Tzu, Tito Lívio e Richelieu. Pecequilo e Jackson
e Sorensen não desconsideram Richelieu, comentam sobre esse autor pela sua relevância de adicionar
o conceito de razão de estado (raison d’état) contudo não o consideram como um autor basilar.
De acordo com Jackson e Sorensen (2013, p.99-100) a abordagem desses realistas clássicos é
“basicamente normativa e se concentra em valores políticos centrais de segurança nacional e de
sobrevivência estatal”.

213
O realismo clássico inicia seus argumentos sobre a tese da sobrevivência e autoajuda
em sentido amplo por meio da manutenção do Estado, conservação do seu poder e
a preservação da ordem pela subserviência de sua população, tendo a segurança
comum como seus principais pressupostos. A segurança é bem público imaterial de
relevante valor. Mais: é um patrimônio necessário à humanidade que remonta a
antigos anseios das coletividades pré-estatais (pré-westphalianas). (CASTRO,
2012, p. 316)

Para Pecequilo (2009, p.28-29) Tucídides analisa o conflito entre Atenas e Esparta
compreendendo o funcionamento do equilíbrio de poder entre essas duas cidades; Maquiavel por
outro lado se preocupa com a questão da “dinâmica da conquista, manutenção e expansão do poder”
e a eficiência das ações do governante perante seus objetivos; Hobbes demonstra a existência da
anarquia no Sistema Internacional, por meio do seu conceito de estado de natureza e da necessidade
dentro do Estado de se obter leis e controle dos cidadãos, o que não existe no Sistema Internacional.
De acordo com Jackson e Sorensen (2013, p. 106) é possível pensar os valores básicos dos três
realistas clássicos por meio de um esquema simples com conceitos-chave. Segue abaixo a Tabela 2
organizada pelos autores.

Valores básicos de três realistas clássicos


Tucídides Maquiavel Hobbes
Destino político Agilidade política Disposição política
Necessidade e segurança Oportunidade e segurança Dilema de segurança
Sobrevivência política Sobrevivência política Sobrevivência política
Segurança Virtude cívica Paz e felicidade
Tabela 2: Adaptada de: JACKSON, Robert e SORENSEN, Georg. Introdução às Relações Internacionais: teorias e abordagens. Rio
de Janeiro: Zahar, 2013. P.106.

A teoria realista se modifica no pós-Segunda Guerra Mundial com a organização da Teoria


Neoclássica de Hans Morgenthau no livro Política Entre as Nações de 1948. Para esse autor é
importante o conceito de animus domandi, que explica que o homem é por natureza um animal e tem
um desejo por poder. A partir dessa ideia, ele desenvolve outras reflexões, mostrando que esse desejo
por poder gera uma busca por vantagem perante o outro e por isso deve-se estabelecer um espaço de
segurança para que possa existir liberdade e o Estado ser independente, em questões internas, mas a
segurança para além do espaço do Estado é impossível, já que o autor permanece com a premissa de
que o SI é anárquico. Além disso, outro conceito importante é o de auto interesse, que predomina
nas relações entre as pessoas graças ao animus domandi. (JACKSON E SORENSEN, 2013, p.107-

214
111) O autor sintetiza sua visão realista por meio de “seis princípios do realismo político” que foram
bem organizados por Jackson e Sorensen (2013, p. 111-112) e que seguem abaixo:

[1] A política se baseia em uma natureza humana permanente e imutável


caracterizada pelo egoísmo, autoapreço [sic] e autointeresse [sic]. [2] A política é
“uma esfera autônoma de ação” e não pode, portanto, ser reduzida à economia (...)
ou à moral (...). Os líderes estatais deveriam agir de acordo com as ordens do
conhecimento político. [3] O autointeresse [sic] é um fato básico da condição
humana: todas as pessoas têm um interesse mínimo em sua própria segurança e
sobrevivência A política é o palco para a expressão desses interesses, que estão
propensos a entrar em conflito em algum momento. A política internacional é uma
arena de interesses estatais conflitantes. Mas tais desejos não são estáveis: o mundo
é dinâmico e os interesses mudam com o tempo e com o espaço. O realismo é uma
doutrina que reage à realidade política em transformação. [4] A ética das relações
internacionais é uma ética política ou circunstancial, a qual é muito diferente da
moralidade privada (...). Sendo assim, o líder estatal responsável não deveria se
esforçar para fazer o melhor, mas obter o melhor desempenho dentro das
circunstâncias reais. Essa situação limitada de escolha política é a essência
normativa da ética realista. [5] Os realistas se opõem, portanto, à ideia de que nações
particulares (...) possam impor suas ideologias sobre outros países e empregar seus
poderes em estratégias com tal objetivo. Os realistas se opõem porque veem isso
como uma atividade perigosa que ameaça a paz e a segurança internacional. (...) [6]
A política é uma atividade séria e sem inspiração que envolve uma conscientização
profunda das limitações e das imperfeições humanas. Esse conhecimento pessimista
dos seres humanos sobre como são e não como gostaríamos que fossem é um difícil
fato no núcleo da política internacional. (JACKSON E SORENSEN, 2013, p. 111-
112)

Nos anos seguintes a publicação de Morgenthau se desenvolveu no campo metodológico das


RI uma influência muito forte das ideias de que este campo de estudo deveria ser visto como de
interesse nacional e que por isso deveria ser analisado de forma “mais científica” e “mais rigorosa”.
Essa ideia de rigor estava relacionada a uma transposição da metodologia de ciências sociais
aplicadas e matemáticas para as questões da diplomacia, e esse movimento foi chamado de
behaviorismo. (JACKSON E SORENSEN, 2013, p.73).

A principal tarefa [dos behavioristas] é reunir informação empírica sobre o campo,


de preferência uma grande quantidade de dados, que possam ser então usados para
medir, classificar, generalizar e, em última análise, validar a hipótese, isto é,
explicar cientificamente os padrões de comportamento. (JACKSON E
SORENSEN, 2013, p.74).

Essa discussão foi bastante importante na época e ainda hoje está dentro das reflexões acerca
de como pensar o SI. Com a metodologia behaviorista houve um distanciamento das análises que
preconizavam as questões morais e passou-se a pensar que era possível a “formulação de leis
científicas sobre as Relações Internacionais”, assim como são feitas na Física e na Química. Não
devemos pensar que o uso dessa metodologia exclui completamente a importância da filosofia

215
política, do pensamento sobre a moralidade e a ética. Na verdade, o que ocorreu após esse momento
foi a incorporação dessa metodologia, mas muitas vezes conciliando com abordagens tradicionais.
(JACKSON E SORENSEN, 2013, p. 75)
A Teoria Realista se desenvolve depois desse período caminhando para o Neorrealismo (ou
Realismo Estrutural) de Kenneth Waltz na obra Theory of International Politics (1979) que
compreende que “o sistema internacional é a estrutura dentro da qual se processam as Relações
Internacionais, delimitando a atuação dos agentes, isto é, os Estados, segundo parâmetros da
socialização e da competição”. A teoria de Waltz faz com que a Teoria Realista passe a pensar a
interação do ambiente interno (as políticas internas do Estado) como ambiente externo (SI), e que
essa interação produz as políticas externas dos atores do SI. Um aspecto muito importante de sua
visão realista é a compreensão de que o foco é a estrutura do sistema e os atores constituem unidades
interativas que pertencem a essa estrutura. Além de Waltz, temos também outros autores célebres
dessa vertente Realista: John Mearsheimer, Christopher Layne, Schweller, Grieco, John Gaddis,
entre outros. (PECEQUILO, 2009, p. 31 e JACKSON E SORENSEN, 2013, p. 117-119)
Jackson e Sorensen (2013, p.98) resumem a Teoria Realista como um todo em quatro
premissas básicas, que são de grande importância para termos uma visão panorâmica sobre essa
maneira de analisar o SI. Seguem abaixo as premissas:

(1) uma visão pessimista da natureza humana; (2) uma convicção de que as relações
internacionais são necessariamente conflituosas e os conflitos internacionais são,
em última análise, resolvidos por meio da guerra; (3) apreciação pelos valores da
segurança nacional e da sobrevivência estatal; e (4) um ceticismo básico com
relação à existência de um progresso comparável ao da vida política nacional (...)
no contexto internacional. (JACKSON e SORENSEN, 2013, p.98)

O realismo é, portanto, a percepção e detecção “da realidade como é e como se apresenta de


facto”. As temáticas abordadas giram em torno “da segurança, da sobrevivência e da lógica de poder
para tais fins na esfera interativa humana”. (CASTRO, 2012, p. 312-315)

As onze lições de Robert McNamara

No documentário The Fog of War – Sob a névoa da Guerra, com direção de Errol Morris,
Robert Strange McNamara apresenta onze lições sobre como lidar em situações complexas com o
inimigo. Este documentário ganhou o Oscar em 2004 como Melhor Documentário de Longa-
metragem. O documentário conta com trechos de programas de televisão e fotos de McNamara, com

216
gravações de ligações e de reuniões enquanto ele estava no cargo de Secretário de Defesa, além de
imagens diversas que ilustram sua fala. Logo no início do documentário ele afirma que seu lema tem
sido: “Tente aprender, tente entender o que aconteceu. Tire as lições e passe-as adiante”3. Com essa
ideia, McNamara fala sobre sua vida profissional e pessoal, sobre suas experiências, suas atitudes e
aprendizados. (THE FOG..., 2003)
Robert Strange McNamara foi Secretário de Defesa dos Estados Unidos da América entre
1961 e 1968, trabalhando nos governos de John Fitzgerald Kennedy e Lyndon Baines Johnson. Neste
período pode participar ativamente de diversas situações complexas externamente como a Crise dos
Mísseis em Cuba e a Guerra do Vietnã. Antes de trabalhar no governo ele estudou em Harvard e
trabalhou na Ford Motor Company, sendo o primeiro a se estabelecer no cargo de Presidente da
empresa que não era pertencente à família Ford. Participou da Segunda Guerra Mundial trabalhando
pelo exército estadunidense; e depois de trabalhar como Secretário de Defesa foi presidente do Banco
Mundial por treze anos, até 1981. (THE FOG..., 2003)
Abaixo segue a Tabela 3 com as onze lições de McNamara descritas no documentário The
Fog of War – Sob a névoa da Guerra com tradução livre e com a versão original em inglês.

As onze lições de Robert Strange McNamara


Lição 1 Cause empatia no inimigo. Empathize with your enemy.
Lição 2 A racionalidade não nos salvará. Rationality will not save us.
Lição 3 Existe algo além de si próprio. There’s something beyond one’s self.
Lição 4 Maximizar eficiência. Maximize efficiency.
Lição 5 A proporcionalidade deve ser uma diretriz na guerra. Proportionality should be
a guideline in war.
Lição 6 Obtenha dados. Get the data.
Lição 7 A crença e a visão costumam estar erradas. Belief and seeing are both often
wrong.
Lição 8 Esteja preparado para rever seu raciocínio. Be prepared to reexamine your
reasoning.
Lição 9 Para fazer o bem talvez seja preciso fazer o mal. In order to do good, you may
have to engage in evil.
Lição 10 Nunca diga nunca. Never say never.
Lição 11 Não se pode mudar a natureza humana. You can’t change human nature.
Tabela 3: As 11 Lições de Robert Strange McNamara em tradução livre e original em inglês de acordo como Documentário "The Fog
f War" (Estados Unidos: Sony Pictures, 2003. Cor. 95 min, DVD)

De início, com a primeira lição (Cause empatia no inimigo), McNamara explica que é
importante pensar como o inimigo está agindo e o que ele pretende com suas falas e atitudes. De

3 Tradução Livre.

217
acordo com McNamara, quando você conhece o outro consegue se adiantar perante as suas ações.
Ele afirma que “devemos nos colocar na pele deles e olhar para nós com os olhos deles para entender
o pensamento por trás das decisões e dos atos4”. Para exemplificar essa lição ele recorre a suas
memórias sobre a Crise dos Mísseis em Cuba e os telegramas que o presidente Kennedy recebeu de
Moscou no auge das tensões. (THE FOG..., 2003)
A segunda lição (A racionalidade não nos salvará) de McNamara é explicada por ele também
usando o contexto da Crise dos Mísseis. McNamara compreendeu que “Foi a sorte que evitou a
guerra nuclear”, porque naquele momento ele estava vendo grandes personalidades políticas
racionais (Kennedy, Nikita Kruschev e Fidel Castro) que estavam em um momento de alta tensão e
que por pouco não destruíram seus próprios países e toda o SI. Dentro dessa lição ele ainda afirma
que a falibilidade humana combinada com a posse de armas nucleares irá destruir os Estados. (THE
FOG..., 2003)
O contexto de exemplificação da terceira lição (Existe algo além de si próprio) não é mais a
Crise dos Mísseis, e sim sua experiência durante a Segunda Guerra Mundial. Ele afirma que houve
um momento que obtiveram estatísticas que mostraram que muitos pilotos estavam desistindo de se
direcionar ao destino estipulado no Japão por medo de morrer e que foi necessário que o General
LeMay, que comandava o grupo, se posicionasse como o líder e desse o exemplo para que os demais
compreendessem a importância da participação, além de criarem uma compreensão de grupo, de
unidade, de cumplicidade. (THE FOG..., 2003)
A lição seguinte (Maximizar eficiência) permanece no contexto da guerra e é apresentada
como um ponto basilar e que deve ser visto distanciado de questões morais e éticas. De acordo com
McNamara é necessário manter um foco e procurar atingi-lo da forma mais eficiente possível, mais
eficiente no sentido de enfraquecer o adversário. Contudo, a quinta lição (A proporcionalidade deve
ser uma diretriz na guerra) é uma espécie de freio da anterior, compreendendo que há uma
necessidade de se estabelecer um limite, uma regra em relação a beligerância. (THE FOG..., 2003)
McNamara afirma que:

O que se pode criticar é que a raça humana antes daquela época e atualmente ainda
não captou o que chamo de regra de guerra. Havia uma regra dizendo que não se
podia bombardear ou queimar 100 mil civis numa noite? (...) Por que seria imoral
fazer o que fizemos se tivéssemos perdido mas não foi imoral porque vencemos?
(THE FOG..., 2003)5

4 Tradução Livre.
5 Tradução Livre.

218
A sexta lição (Obtenha dados) foi exemplificada por sua experiência trabalhando na Ford
Motor Company. Naquela época McNamara pesquisou quem comprava os carros da concorrência
da Ford para montar carros para esse grupo de pessoas que não via na Ford a opção de produto que
queria. Ele também pesquisou como eram os acidentes para desenvolver carros que fossem mais
seguros. Nesse momento ele dá ênfase na quantidade alta de pesquisas, cálculos e análises vistas
como científicas para que seja possível analisar um problema e resolvê-lo, e transpõe essa ideia de
metodologia para suas lições que levam em consideração conflitos com inimigos. A sétima lição (A
crença e a visão costumam estar erradas) complementa a visão anterior pois desqualifica a percepção
das pessoas perante a situação, o que de certa forma favorece os dados que seriam mais concretos,
como números e estatísticas, isto porque para ele “nós costumamos ver o que queremos acreditar e
ver”6. Para explicar essa lição ele recorre a suas memórias em relação à Guerra no Vietnã, pois de
acordo com McNamara os estadunidenses erraram ao declarar guerra ao Vietnã por causa de um
segundo ataque a bases estadunidenses na Ásia, porque na verdade esse segundo ataque nunca
ocorreu. Além disso, outro erro que ele aponta em relação ao Vietnã é que os EUA perceberam os
interesses vietnamitas de forma incorreta, os inserindo em um contexto de Guerra Fria quando na
verdade sua motivação era mais direcionada a uma questão de Guerra de Independência perante a
França, a China e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). (THE FOG..., 2003)
A oitava lição (Esteja preparado para rever seu raciocínio) leva em consideração a
importância de não ser tão inflexível perante suas opiniões e ações em relação ao inimigo,
compreendendo a importância de agir somente após reflexão e com apoio. (THE FOG..., 2003) De
acordo com McNamara:

Somos a nação mais forte do mundo atual. Jamais devemos usar esse poder
econômico, político ou militar unilateralmente. Se tivéssemos observado essa regra
não teríamos ido ao Vietnã. (...) Se não dá para convencer [nossos aliados] com
valores comparáveis do mérito da nossa causa é melhor rever o raciocínio. (THE
FOG..., 2003)7

A lição de número nove (Para fazer o bem talvez seja preciso fazer o mal) não é com o intuito
de simplesmente afirmar uma beligerância permanente ou afirmar que uma ação sem ética e moral é
justificável em quaisquer circunstâncias perante o inimigo. É, na verdade, uma justificativa para os
atos de guerra comentados por McNamara, levando em consideração que mesmo tendo ideais e
responsabilidades às vezes é necessário agir perante o inimigo de forma cruel, contudo minimizando
esse mal que foi feito. (THE FOG..., 2003)

6 Tradução Livre.
7 Tradução Livre

219
A lição seguinte (Nunca diga nunca) não é muito explorada por McNamara, que a aponta de
forma sucinta e a repete diversas vezes, como se fosse um mantra que deve ser internalizado e não
esquecido. A última lição (Não se pode mudar a natureza humana), que é uma negação e, portanto,
não deveria ser feita dessa forma já que não se deve afirmar, de acordo como próprio McNamara,
que algo nunca pode ocorrer, fecha o documentário justificando a necessidade de se obter tantas
lições para lidar com um inimigo. De acordo com McNamara “Não sou tão ingênuo a ponto de crer
que podemos eliminar a guerra. Não mudaremos a natureza humana tão cedo. Não é que não sejamos
racionais, nós somos racionais. Mas a razão tem limites” 8. (THE FOG..., 2003)

Análise da Fonte

É possível constatar que todas as lições se baseiam em valores políticos centrais de segurança
nacional e de sobrevivência estatal, ou seja, todas elas estão dentro da lógica realista. Além disso, é
possível identificar que muitas delas têm como base pensamentos de autores específicos das RI já
citados acima, e para melhor compreender a situação segue abaixo uma análise comparativa.
No caso da relação entre as análises de Tucídides e de McNamara, se em todo momento
McNamara está pensando na relação com o outro, com o inimigo, e como se tornar mais eficiente,
mais objetivo e saber lidar com as questões referentes as relações com o outro, ele está pensando
sobre o EP entre os atores, assim como pensou Tucídides sobre as relações de EP entre Atenas e
Esparta. A influência do pensamento de Maquiavel é clara nas lições 1, 4, 9, na medida em que são
lições que falaram sobre a dinâmica da conquista e o esforço pela manutenção e expansão de poder.
Para McNamara quem tem a responsabilidade de manter seu poder perante o inimigo tem que
trabalhar com a maior eficiência possível, saber lidar com o inimigo, o que o faz reconhecer que há
um inimigo e ser combatido, ou seja, há um espaço de conquista perante o outro, e que para atingir
seus objetivos os meios devem ser quaisquer, dependendo somente da sua eficiência. As ideias de
outro pensador clássico também são de fácil identificação nas lições de McNamara: Thomas Hobbes.
Além da clara ideia de sobrevivência política explicitada na lição 9, a lição 11 de McNamara é uma
maneira de interpretar o conceito de estado de natureza hobbesiano.
Morgenthau e seus 6 princípios do realismo neoclássico também estão presentes nas lições
do ex-Secretário de Defesa, assim como seu conceito principal, o animus domandi, tem profunda

8 Tradução Livre.

220
relação com o estado de natureza hobbesiano, e com isso, grande relação com a lição 11. Podemos,
então, compreender que as ideias de Morgenthau estão na base do pensamento de McNamara,
contudo não podemos afirmar que ele é um autor específico que o influenciou, já que no
documentário O ex-Secretário de Defesa induz a quem está assistindo a entender que essas lições
advêm exclusivamente de sua experiência prática nas profissões que desempenhou durante sua vida.
Para melhor visualização das relações entre as ideias de Morgenthau e de McNamara, segue abaixo
Tabela 4.

Relação Morgenthau X McNamara


6 Princípios de Morgenthau Lições de McNamara equivalentes
Princípio 1: Natureza humana é imutável, [7] A crença e a visão costumam estar
egoísta e só considera o auto apreço e auto erradas.
interesse [11] Não se pode mudar a natureza humana.
Princípio 2: A política não pode ser reduzida [9] Para fazer o bem talvez seja preciso fazer
à economia ou à moral. “Os líderes estatais o mal.
deveriam agir de acordo com as ordens do
conhecimento político”.
Princípio 3: Na política internacional há [8] Esteja preparado para rever seu
interesses estatais em constante conflito, que raciocínio.
são mutáveis porque o mundo é dinâmico. [10] Nunca diga nunca.
Princípio 4: A ética das relações [4] Maximizar eficiência.
internacionais é uma ética política, ou seja, [9] Para fazer o bem talvez seja preciso fazer
leva em consideração as circunstâncias e o mal.
interesses. O líder tem que obter o melhor
resultado dentro das circunstâncias reais.
Princípio 5: Uma nação não pode impor sua [5] A proporcionalidade deve ser uma
ideologia sobre outra a força ameaçando a diretriz na guerra.
segurança internacional.
Princípio 6: A política é uma atividade séria [2] A racionalidade não nos salvará.
que interpreta os seres humanos de forma [7] A crença e a visão costumam estar
pessimista como eles realmente são e não erradas.
como queríamos que fossem. [8] Esteja preparado para rever seu
raciocínio.
[10] Nunca diga nunca
Tabela 4: Relação Morgenthau X McNamara. Princípios de Morgenthau baseados em JACKSON E SORENSEN
(2013, p. 111-112) e Lições de McNamara retiradas de THE FOG... (2003).

Outra influência importante que deve ser mencionada é a da metodologia behaviorista no


pensamento de McNamara sobre as questões internacionais. Claramente o debate metodológico
causou influência em suas ideias já que, de início ele pretende formular leis gerais para o
entendimento dos conflitos com o outro, mas também está claro em duas lições específicas, a lição

221
de número 4 (Maximizar eficiência) na qual durante o documentário ele fala sobre a importância da
pesquisa e obtenção de informações para que seja possível fazer algo e a lição de número 6 (Obtenha
dados) que por si só já é a representação dessa busca por números, estatísticas e “cientificidade” nas
RI. Outra lição, a de número 3 (Existe algo além de si próprio), foi ilustrada por McNamara com
informações relacionadas a dados e pesquisas, já que fala que muitos pilotos estavam desistindo de
seguir para seu alvo na 2ª Guerra Mundial e foi possível ter essas informações por meio de dados e
pesquisas.
Essa lição de número 3 (Existe algo além de si próprio) merece uma atenção maior porque
em um primeiro momento, olhando somente a frase, pode-se pensar que ela é uma lição contrária a
outras, como a lição 9 (Para fazer o bem talvez seja preciso fazer o mal.). Contudo não podemos
analisa-la fora de seu contexto de discurso no documentário. Como foi apontado acima, essa lição
foi feita pensando a relação estabelecida entre aqueles que estão lutando de um mesmo lado contra
um inimigo comum, ou seja, tem por objetivo a integração e a percepção da importância de dar
exemplo ao outro que está junto na mesma “batalha”, e não uma preocupação com o inimigo. Em
relação ao inimigo deve-se ter em mente, de acordo com McNamara, a lição de número 1 (Cause
empatia no inimigo) que não é o mesmo que ter simpatia pelo inimigo, e sim reconhecer que o outro
está na mesma situação de conflito que você e quanto mais você o conhecer, compreender seu
raciocínio, mais fácil será para você lidar com ele, se adiantando perante suas ações.

Considerações Finais

Como foi possível observar McNamara possui pensamentos e ideias dentro do arcabouço
teórico do Realismo das RI. Não podemos, contudo, afirmar que suas formulações são
necessariamente organizadas baseadas em leituras prévias dos teóricos clássicos, neoclássico,
realistas e neorrealistas. Mas de qualquer forma, não há como negar que estando dentro de um espaço
como o Departamento de Defesa de um Estado, ficando dentro de momentos importantes de decisões
do Sistema Internacional, o vocabulário será próximo do vocabulário usado nos textos dos teóricos.
Certamente, conceitos como soberania estatal, Estado, hegemonia, poder e outros eram frequentes
em suas discussões dentro do Departamento de Defesa.
A importância de seu cargo se intensifica quando percebemos que ele era o Secretário de
Defesa de um dos países que exerciam hegemonia no mundo em um cenário de ordem mundial com
uma bipolaridade entre EUA e URSS. Todas as suas decisões tinham reflexos em todo o mundo, e

222
não podiam ser feitas ao acaso e sim baseadas em pesquisas, análises e estudos, estes que devem
terem sidos feitos baseados em grandes nomes, grandes autores de teoria política da época.
McNamara não pode ser visto como um teórico das RI, mas claramente ele desenvolveu reflexões
acerca das questões do Realismo, e pensou em modo de interpretá-las de acordo com os
conhecimentos que ele tinha adquirido com o tempo.
É interessante analisar o pensamento de McNamara para compreender como as RI não
podem ser vistas como algo denso e teórico, pertinente somente à academia. As discussões e
conhecimentos acerca das RI ultrapassam as barreiras dos livros porque seu objeto de estudo, como
dito anteriormente, são as relações sociais que atravessam fronteiras e seus atores não são
necessariamente teóricos, mas pessoas com diversas formações, diversas histórias de vida, que atuam
no SI e constroem a nossa História.

Referências

CASTRO, Thales. Teoria das Relações Internacionais. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2012.

JACKSON, Robert e SORENSEN, Georg. Introdução às Relações Internacionais: teorias e


abordagens. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. Manual do Candidato: política internacional. Brasília: FUNAG,


2009.

THE FOG of War – Sob a névoa da Guerra. Direção: Errol Morris. Produção: Errol Morris, Michael
Williams e Julie Ahlberg. Estados Unidos: Sony Pictures, 2003. Cor. 95 min, DVD.

223
Segurança Nacional e a defesa da “moral e bons costumes”:
uma análise de escritos da Escola Superior de Guerra sobre os meios de comunicação de
massa (1964-1985)

Ana Rita Fonteles Duarte1

Resumo: Este artigo pretende discutir, a partir de textos escritos por alunos da Escola Superior de
Guerra, principal centro formador de lideranças para o regime ditatorial, estabelecido no Brasil, pós-
1964, em seus cursos destinados a civis e militares, aspectos referentes à gestação de uma censura
adequada ao Brasil, num momento em que os meios de comunicação de massa se expandem,
atingindo novos públicos e faixas etárias. Analisa-se a forma pela qual essa censura é pensada, tendo
em vista a preocupação com a moral e defesa do que seriam os “bons costumes”, dentro de um
projeto marcado pela ideia de segurança nacional.

Palavras-chave: meios de comunicação; censura; moral; ditadura civil-militar

Abstract: This article intends to discuss, from texts written by students of the Escola Suprior de
Guerra, the main training center for the dictatorial regime, established in Brazil, post-1964, in its
courses for civilians and military, aspects related to the gestation of a appropriate censorship to
Brazil, at a time when the mass media are expanding, reaching new audiences and age groups. It
analyzes the way in which this censorship is thought, in view of the concern with the moral and
defense of what would be the "good habits", within a project marked by the idea of national security.

Keywords: media; censorship; moral; Civil-military dictatorship

A ditadura civil-militar, implantada no Brasil em 1964, tem características de guerra. Baseado


na Doutrina de Segurança Nacional, o regime combate o inimigo interno, identificado com setores
da oposição, passíveis de infiltração pela ação comunista, direta ou indiretamente. Incluíam-se, na
lista, estudantes, sindicalistas, intelectuais, movimentos sociais e os que pudessem provocar
antagonismos e pressões de desestabilização da ordem.
A segurança interna tinha-se como missão comparável à defesa do País, diante de ameaça de
invasão de exército estrangeiro, e caberia ao Estado de Segurança Nacional determinar, em última
instância, quem era o inimigo e que atividades constituíam ameaças. A Escola Superior de Guerra
(ESG), criada em 1949, no âmbito da Guerra Fria e ligada ao Ministério da Defesa, tornou-se durante
a ditadura pós-1964, o principal centro de elaboração e disseminação de um pensamento acerca da
segurança nacional e das formas de combater ameaças ao projeto implementado numa parceria entre
militares e civis.

1 Professora Dra. do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. E-mail:


anaritafonteles@uol.com.br. A pesquisa recebeu apoio do CNPq.

224
Seus criadores tiveram como objetivo, desde o início, o reforço de sua posição no aparelho
de Estado, por meio da realização de estudos sigilosos e circunscritos a grupos pequenos, além de
almejar a mobilização política das elites. Não se preocupava, no entanto, apenas com a formação de
altos oficiais, incluindo civis em seu quadro permanente como professores ou convidados, alunos,
conferencistas. Entre 1950 e 1967, 50% de seus alunos eram civis, vários ocuparam postos
importantes no regime em instituições políticas e econômicas brasileiras. O primeiro presidente do
regime, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, foi um dos grandes expoentes da Escola.
A Doutrina de Segurança Nacional (DSN), elaborada pela ESG, pode ser analisada a partir
de um pensamento sistematizado em textos cujo principal é o Manual da Escola Superior de Guerra,
publicado em 1975 e reeditado com reformulações, periodicamente, até 2009, além de artigos
publicados na revista A Defesa Nacional e do pensamento sistematizado de alguns dos seus
principais ideólogos como os generais Golbery do Couto e Silva e Moacir Araújo Lopes, integrantes
da rede civil-militar que institucionalizou e disseminou a DSN através da realização de conferências,
seminários, debates e cursos por todo o país.
Os manuais da ESG e suas publicações complementares, destinadas a alunos de seus cursos
são lugares de referência para a apreensão da DSN e fornecem elementos para pensar o lugar a
comunicação social e/ou de massa tem na elaboração e reelaboração do projeto de Segurança
Nacional durante o regime civil-militar e de como estas preocupações foram sendo transformadas
com o tempo, a partir de novas demandas e mudanças sociais.
De acordo com o Manual Básico da Escola Superior de Guerra, seria necessário conhecer
traços e padrões culturais, a fim de que através da comunicação social se conseguisse de maneira
eficaz desencadear mensagens que conscientizassem sobre a importância das necessidades da nação.
A comunicação social é vista como responsável, em grande medida, por processos como interação
social, formação da opinião pública, do Moral Nacional e pela valorização do ócio e do lazer, Mas,
essa temática, tampouco, era motivo de interesse apenas para o regime ditatorial.
Os media passam a fazer parte das preocupações de várias instituições como a Igreja
Católica, por exemplo, valorizada em sua tarefa de recuperar valores numa sociedade em crise. O
papado publicizou suas posições e diretrizes sobre o bom uso da cinematografia, rádio e televisão,
instruindo, em meados dos anos 1960, espectadores, produtores, autores, pais, pastores e autoridades
a defenderem as leis morais na produção artística e de informação via meios de comunicação a fim
de se proteger públicos considerados vulneráveis como jovens e mulheres.
Finalmente, este poder público que legitimamente trabalha para o bem dos
cidadãos, tem o dever de procurar justa e zelosamente, mediante a oportuna
promulgação e diligente execução das leis, que não se cause dano aos costumes e
ao progresso da sociedade através do mau uso dêstes meios de comunicação. Essa
cuidadosa vigilância, de modo algum restringe a liberdade individual e social,

225
sobretudo se faltam as devidas precauções por parte daqueles que por motivo de seu
ofício manejam tais instrumentos.
Tenham-se um especial cuidado na defesa dos jovens contra a imprensa e os
espetáculos que possam ser nocivos à sua idade. 2

Os estudos acadêmicos também não se furtaram ao debate3. A partir dos anos 1960, uma série
de estudos no âmbito da Sociologia, Psicologia Social e propaganda política foram publicizados e
tinham como objetivo a investigação empírica acerca dos efeitos dos media. Esses estudos, iniciados
ainda nos anos 1930, estavam primeiramente preocupados com a influência do cinema nas crianças
e nos jovens. Utilizar o cinema e outros meios para a persuasão ou informações planificadas estava
entre os objetivos das pesquisas. Não tardou para que preocupações semelhantes se estendessem à
tevê, considerada um novo meio com mais poder de atração que os seus antecessores e com grandes
implicações para a vida social.
Estudavam-se as correlações entre o grau de exposição aos estímulos dos media e mediam-
se variações em mudanças de comportamento, atitudes, opiniões, avaliando numerosas variáveis. Os
estudiosos, muitos deles motivados pelas avaliações de campanhas eleitorais, interessavam-se por
aferir não só as decorrências diretas da tevê, algo que caracterizará o primeiro momento dos estudos
sobre efeitos dos mass media, mas, agora, também as mudanças de longa duração, os fenômenos
coletivos como climas de opinião, estrutura de crenças, ideologias, padrões culturais e as formas
institucionais de produção midiática.
Entrecruzavam-se essas informações como dados sobre o contexto, disposição e motivação
do público. Interessavam-se também pela forma como as organizações midiáticas processavam os
conteúdos antes de distribuí-las às audiências. O surgimento e popularização de pensamento político
de esquerda, nos anos 1960, reunidos no movimento conhecido por Nova Esquerda, também
incrementou o debate sobre os media como instrumentos poderosos de legitimação e controle por
parte dos Estados capitalistas ou burocráticos.
Nesse contexto, a relação com os meios de comunicação, tampouco, dá-se de forma simples.
Há uma preocupação e entendimento da importância assumida pelos meios de comunicação social.
Entre 1964 e 1975, o governo ditatorial investe em condições de infraestrutura e telecomunicações
que permitiriam a disseminação de uma indústria cultural, através de avanços tecnológicos sem
precedentes. Foi criada a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), em 1965, responsável

2 INTER MIRIFICA. São Paulo, 1965, Editora Vozes, p.11-12. No encerramento da segunda sessão
do Concílio Vaticano II, em 04 de dezembro de 1963, a Igreja Católica através do Papa Paulo VI apro-
vou Decreto Inter Mirifica sobre os Meios de Comunicação Social: imprensa, Cinema, Rádio, televisão e
demais. Já em 1957, o Papa Pio XII havia lançado a Carta Encíclica Miranda Prorsus, sobre cinemato-
grafia, rádio e televisão.
3 Sobre essas teorias e correntes teórico-metodológicas de estudos dos media, ver DeFLEUR, Melvin
L.;BALL-ROKEACH, Sandra. Teorias da Comunicação de Massa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

226
pelo Sistema Nacional de Telecomunicações, que permitiu maior agilidade e segurança na troca de
dados. Também em 1965, o Brasil passou a fazer parte da International Telecommunications Satellite
Consortium (Intelsat), consórcio internacional para uso de sistema comercial de telecomunicações,
por satélite, permitindo as primeiras comunicações, nesse formato, a partir da década de 1960. A
partir de 1975, ocorre grande crescimento da infraestrutura de radiodifusão, especialmente da tevê.
É especialmente nos anos de 1970 que a televisão passa a se estruturar de forma mais
evidente, como meio de comunicação, com captação de mais verba publicitária, em relação aos
meios anteriores, como o rádio, e maior presença no cotidiano das pessoas. Enquanto em 1960, havia
somente 4,46% das residências brasileiras que possuíam televisão, esse número cresce para 24,11%
,em 1970, e para 56,1% em 1980. O potencial de audiência, no entanto, segundo Vieira (2016) deve
ser repensado, uma vez que a prática de assistir televisão era constituída de forma comunitária, pelos
chamados televizinhos e pela presença de aparelhos de tevê nas praças por todo o país. A televisão
tornou-se o meio por excelência de divulgação de bens de consumo voltados para a classe média,
incluindo os próprios aparelhos de tevê.
Para o regime em consolidação, as características possibilitadas por este meio de
comunicação possibilitavam experiências úteis como mascarar o isolamento das pessoas, com o
sentimento de construção de outro tipo de proximidade, ajudando a produzir noção de consenso
numa sociedade que vivia de maneira dispersa e atomizada, espalhada por um território imenso e
sem integração completa. A tevê passou a representar, ainda, a modernidade para o Brasil, símbolo
de entusiasmo e euforia em relação ao futuro mobilizado dentro do projeto de “milagre econômico”,
série de medidas políticas, sociais e econômicas adotadas pelo regime civil-militar, com o objetivo
de transformar o país em uma potência regional com grande desenvolvimento agrícola e industrial.
Os marcos de avanços e expansão tecnológica da tevê passaram a ser comemorados e narrados como
avanços do próprio regime, dentro de seu projeto de modernização conservadora 4 .
Mas o Estado, que incentivava e promovia as condições estruturais para expansão e
consolidação da televisão em todo o território nacional, também exercia o controle sobre os
conteúdos e formas de expressão por meio de constituição de um importante aparato de censura,
ligado ao Ministério da Justiça, intensificado com a promulgação da Constituição de 1967, que
expandiu a competência da União para censurar, além de filmes e peças teatrais, também programas
de rádio e tevê, imprensa periódica e letras de música. À Divisão de Censura de Diversões Públicas,

4 MOTTA (2014:49) alerta para as contradições a paradoxos presentes no projeto de poder da ditadura
civil-militar. Por um lado havia o desejo modernizador que impulsionava o desenvolvimento econômico e tecnológico,
proporcionando contatos com o exterior e a mobilidade das pessoas, a expansão industrial e a mecanização agrícola. Por
outro lado, o impulso conservador ligava-se à vontade de preservar a ordem social e valores tradicionais, o que se
configurava no combate às ideias revolucionárias e a todo comportamento considerado desviante.

227
do Ministério da Justiça, coube o papel de estabelecer as condições de apreciação, liberação e veto
de obras artísticas, tarefa exercida durante os 21 anos de ditadura, embora esta ação tenha superado
o ano de 1985.
O controle sobre os meios de comunicação coaduna com os preceitos da Doutrina de
Segurança Nacional, condensada no Manual Básico da Escola Superior de Guerra (ESG), sendo
instrumento importante para a legitimidade do regime. Segundo Rezende,

A pretensão de legitimidade do regime militar somente pode ser compreendida


tendo em vista a atuação do seu grupo de poder para instaurar um processo social
no qual se visava criar condições para potencializar os valores tidos pela ditadura
como essenciais e mantenedores da sociedade brasileira. O regime em vigor
pretendia, assim, a partir e através desses valores, atuar no sentido de construção de
uma ordem social na qual aqueles valores deveriam ganhar proeminência absoluta
.5

Os estudos sobre censura, no entanto, mostram que esse processo não se deu de forma
homogênea, uma vez que a própria ditadura teria sido fruto de um acordo momentâneo de grupos
heterogêneos, na forma de coalizão ampla de forças políticas e econômicas, que pressionaram de
forma também múltipla a malha institucional, incluindo as ações censórias. Os receios relacionados
à tevê, como novo aparato tecnológico e como possibilidade de experiência diante do mundo,
fundaram a preocupação censória, mas tinham amplo alcance e se expressavam de forma diversa e
contraditória, sofrendo a censura pressões variadas e antagônicas, expressos na formatação de leis,
nas relações estabelecidas com produtores, artistas, empresários da comunicação, movimentos de
oposição e nas formas diversificadas de analisar e liberar ou vetar obras produzidas para a veiculação
televisiva.

Os escritos da ESG

A Escola Superior de Guerra ampliou, ao longo dos anos do regime militar, sua missão de
planejar a Segurança Nacional para formular e planejar a política de segurança e desenvolvimento.
De acordo com Arruda (1980), ex-professor da ESG e autor da história oficial da Escola, a Doutrina
da ESG baseava-se em ensinamentos consagrados das Ciências Sociais, corporificando-se através de
“livre debate” e aproveitamento das experiências dos alunos. Prefeririam, assim, trabalhar mais com

5 REZENDE (2001:40).

228
conceitos que com definições, evitando assim os “dogmas”. Essa concepção registrada na
construção da memória da Escola está para além do jogo de palavras, se nos debruçamos sobre as
formas pelas quais temas e problemas abordados por professores e alunos da ESG vão se
transformando, ao longo do tempo, e podem variar de acordo com necessidades e novas
compreensões do presente. A análise de conjuntura fazia parte da elaboração das discussões e textos
dos estagiários.
Para compreender as transformações no conjunto de escritos preservados e analisados no
acervo documental da ESG, nos dias de hoje, é importante conhecer um pouco o método de estudos
e elaboração de trabalho que resultava na formação dos egressos. De acordo com Arruda, o Método
de Trabalho da ESG baseia-se na tentativa não de resolver os problemas nacionais, mas de “ensaiar
método para o equacionamento desses problemas através da análise e da interpretação dos fatores de
toda ordem que os condicionam”, por meio da Didática de nível superior e da Lógica Formal, com
estudos sócio-individualizados.
Dessa forma, os estudos da ESG seguem um método composto pela realização de
conferências e palestras. No primeiro caso, trata-se de exposição formal sobre um tema que fornecerá
dados que poderão ser utilizados em outras atividades durante o período letivo. Geralmente, era
proferida por especialista no assunto a convite da ESG. No segundo caso, a exposição era menos
formal e proferida, geralmente, por membros do corpo permanente da Escola, em equipe.
Após as conferências e palestras, eram realizados debates para complementar as informações
dadas durante a exposição com fins de realização do trabalho pela equipe de alunos. O debate que,
inicialmente, era feito de forma livre pelos alunos ao expositor, passou a seguir regras como inscrição
realizada para elaborar perguntas e obter respostas, sendo que a cada aluno só era permitido realizar
uma pergunta, exceto se houvesse permissão do convidado e por um tempo máximo de cinco
minutos. Era vedado ao debatedor “apontar falhas na exposição ou fazer referências desairosas a
quem quer que seja” sob pena de ter a palavra cassada por um “controlador de debates”.
Após os debates e conferências, os alunos eram divididos em grupos e, sob a coordenação de
um dirigente, designado pelo Departamento de Estudos da ESG, e com assistência de um elemento
do corpo permanente, os alunos desenvolviam trabalhos em equipe, utilizando-se para isso dos textos
básicos da Escola, mas também recorrendo à bibliografia indicada em ficha de orientação. Este
elemento é interessante para a análise dos escritos examinados aqui, uma vez que é possível conhecer
as interações com diversas áreas do conhecimento e autores referências indicados pela Escola,
especialmente através de sua biblioteca.
É possível, ainda, perceber que os alunos não tinham grande margem de liberdade para a
elaboração de seus textos, uma vez que a argumentação partia de textos base a partir da DSN, de

229
debates controlados pelo corpo docente e a partir do acompanhamento permanente de tutores desses
estagiários. Tratava-se, afinal, de aprender uma Doutrina, o que não excluiu a realização de leituras
a partir de bibliografia atualizada para aquele momento, como podemos constatar examinando vários
trabalhos individuais ou em grupo.
Entre os trabalhos de equipe havia a discussão dirigida, precedida de palestra de orientação
com duração de 15 a 30 minutos, e com tópicos motivacionais descritos em Folha de Orientação.
Não se exigia que os alunos da mesma equipe tivessem de chegar a um consenso, pois o objetivo
seria “levantar ideias para melhor entendimento do tema proposto”. Os alunos elaboravam, ainda,
simpósios e trabalho de grupo. O primeiro tinha como objetivo aprofundar aspectos da Doutrina de
Segurança Nacional e do método da ESG e, o segundo, a solução de um problema ou a formação de
um juízo de valor sobre determinado assunto.
Para a constituição destas duas últimas modalidades de trabalho, a equipe deveria passar por
fase preliminar ou preparatória, pesquisas, discussão, elaboração e apresentação de um relatório.
Esse tipo de escrito também é interessante, para o que nos interessa, tendo em vista que os alunos
são preparados para não só debater e aprofundar um tema, mas apontar possíveis caminhos para sua
resolução, com sugestões de encaminhamentos junto a órgãos competentes, elaboração de políticas
públicas, sendo possível dimensionar como alunos militares e civis elaboravam desafios para várias
áreas da vida social e do desenvolvimento do país.
Outra modalidade para o desenvolvimento e discussão de um tema com fins de elaboração
de propostas e soluções para um problema dado era o Trabalho Especial (TE). Este, inicialmente,
era elaborado de forma individual no estilo monográfico, a partir de temas distribuídos pelo
Departamento de Estudos, a cada estagiário. Os textos elaborados serviriam de subsídio para o
planejamento6 . A partir de 1973, de acordo com Arruda, o TE passou a ser elaborado por três
estagiários para cada tema. Cada aluno elaborava sua monografia e os três elaboravam um relatório
resumido sobre o tema distribuído. Em 1978, os trabalhos voltaram a ser individuais.
Essa contextualização é sobremaneira importante para esta análise, levando-se em conta que
a maior parte dos documentos analisados para esse artigo sobre a temática dos meios de comunicação
e censura é formada por TEs arquivados e disponibilizados pela Biblioteca General Cordeiro de
Farias, da Escola Superior de Guerra, ainda hoje localizada na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. O
local continua atendendo os matriculados nos cursos da ESG, atualmente, e funciona como ponto de
referência para a pesquisa sobre a Escola em tempos passados. Os títulos dos trabalhos

6 Os textos elaborados pelos estagiários da ESG visavam o planejamento como atividade permanente e
continuada que se desenvolve de modo ordenado e racional, tornando sistemático um processo de tomada de decisões na
solução de um problema dado. Os textos tinham de dar subsídios para responder às seguintes questões: que fazer, como
fazer, quando fazer, onde fazer, com que meios fazer, para que fazer. Ver ARRUDA (1980:111).

230
disponibilizados ao público podem ser acessados pela Rede de Bibliotecas Integradas do Exército
(Rede Bie) na internet.

Censura e meios de comunicação

Foi justamente a partir do acervo da Biblioteca na Rede Bie que a pesquisa sobre escritos
produzidos na ESG sobre censura aos meios de comunicação se deu. Os registros encontrados
estendem-se a partir do ano de 1968 até 1985, ano final de nosso recorte. Importante salientar a
possibilidade de que nem todos os trabalhos tenham sido disponibilizados na Rede, tendo em vista o
caráter de sigilo de alguns estudos produzidos a partir do signo da segurança nacional. Além de
trabalhos individuais de alunos, podemos encontrar os TEs, realizados em grupo, apostilas de cursos
sobre a temática assinados por professores da ESG e ainda palestras transcritas de convidados pela
Escola para tratar do tema.
A data de início para o aparecimento do tema como tópico explorado pela ESG, nos cursos
de formação de seus estagiários, coincide com o período de centralização e racionalização da censura
por parte do regime ditatorial. Em 16 de novembro de 1964, foi publicada a Lei 4.483 que
reorganizou o Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP). Esta preconizava que seria de
competência da DFSP, por meio do Serviço de Censura a Diversões Públicas (SCDP), a censura a
filmes cinematográficos que transpusessem o âmbito de um Estado.
A partir de 1965, a SCDP passou a coordenar em todo o território nacional, sob aspectos
doutrinários e normativos, as atividades da Censura Federal, por meio do decreto 56.510, de 28 de
junho. Com a Constituição de 1967, foi garantida a competência da União para realizar a censura às
diversões públicas. De acordo com Vieira, a Constituição, aliada à Lei de Segurança Nacional, de
13 de março de 1967, que definia os crimes contra a segurança nacional foram “pedras angulares na
institucionalização da DSN na estrutura estatal. Isso se deu porque ambas transformaram a
preocupação da Segurança Nacional como concebida pela ESG em uma das preocupações centrais
do Estado e da formulação de suas políticas” 7.
O primeiro trabalho encontrado na pesquisa da Rede Bie é a monografia do estagiário Felipe
Augusto de Miranda Rosa, aluno do Curso Superior de Guerra e sobre o qual não são fornecidas

7 In VIEIRA (2016:70).

231
informações no corpo do trabalho 8 . Intitula-se Análise do Fundamento Jurídico do Direito de
Censura no Brasil: com apreciação dos problemas conjunturais relativos à sua aplicação e
caracterizadas suas vinculações com a segurança nacional. Finalizado em 23 de agosto de 1968 e
encaminhado para a leitura e parecer em setembro do mesmo ano, de acordo com anotações na capa
e ao final do trabalho, o texto demonstra uma preocupação em fundamentar o que seriam diretrizes
jurídicas que fundamentassem a prática de censura, algo relevante num momento em que o conceito
de Segurança Nacional, estabelecido pela recém-aprovada Constituição, é alargado para a ameaça
de fronteiras ideológicas e não somente territoriais.
O texto é organizado em quatro capítulos que se dispõe a discutir a o direito de opinião e
liberdade de pensamento, assim como os abusos dessa liberdade e as prerrogativas do Estado para
coibi-lo. A argumentação desenvolvida apega-se ao pressuposto de que a liberdade de opinião e
expressão é algo inerente à vida humana e à formação da personalidade, mas que não pode existir
em caráter absoluto, uma vez que pode chegar ao âmbito social através de variados meios. O Estado,
desta forma, estaria autorizado a agir por meio de seu poder de polícia, de maneira preventiva ou
repressiva quando se fizesse necessário.
A monografia faz apanhados sobre as constituições brasileiras em comparação com cartas de
outros países, a censura às liberdades de opinião é considerada um caminho natural, diante de
sociedades que se tornaram mais complexas. Há também uma tentativa de diferenciar formas de
expressão que poderiam ser garantidas e eram, pelas constituições, e outras passíveis de censura de
forma generalizada. A imprensa, por exemplo, em variadas cartas magnas, seria liberada e não
deveria sofrer censuras em princípio, o mesmo não acontecendo para espetáculos públicos, no
entanto, capazes de mobilizar outros tipos de sentimentos. O teatro, na Grécia antiga, e as limitações
opostas por alguns governantes, quanto a temas possíveis de serem explorados, foi utilizado como
forma de reafirmar a naturalidade da ideia.

Essa enorme força do teatro, como capaz de influir na vida social e de servir de
instrumento poderosíssimo, fora sentido pelos gregos clássicos. A tal ponto que,
ironicamente, Platão falou de uma “teatrocracia”, referindo-se à influência que os
comediantes de seu tempo exerciam, pela representação teatral, sobre as pessoas
que governavam Atenas. Por êsso mesmo, depois de larga fase em que isso foi
observado sem intervenções, Menandro afastou o teatro ateniense dos temas
políticos. É a primeira manifestação conhecida de exercício de censura teatral na
História do Ocidente9.

8 Em alguns trabalhos os estagiários têm suas funções civis ou militares expressas. No primeiro caso,
com o detalhamento da profissão exercida.
9 BRASIL, Escola Superior de Guerra. Análise do Fundamento Jurídico do Direito de Censura no
Brasil: com apreciação dos problemas conjunturais relativos à sua aplicação e caracterizadas suas vinculações com a
segurança nacional, 1968,p.09.

232
Fiel ao preconizado pela Doutrina de Segurança Nacional, elaborada e atualizada pela ESG,
o estudo preocupa-se em perceber a construção de discussões e ações sobre determinado tema a partir
das mudanças de conjuntura. É bastante comum encontrar modificações naquilo que é sugerido como
forma de atuação do Estado nos escritos da ESG ao longo do tempo.
O acirramento entre as disputas entre os blocos socialista e capitalista, característicos da
Guerra Fria, e as transformações na forma de acessar notícias e diversão via meios de comunicação
audiovisuais deveriam trazer novas preocupações e formas de agir por parte dos comandos de
Estados dos países “subdesenvolvidos”, como era o caso do Brasil, sob pena de alterações nos modos
de comportamento e atitudes da sociedade.
A partilha de leituras e argumentos comuns a outros setores como a Sociologia e a
comunicação social são evidentes, embora as apropriações sejam balizadas pelos interesses em
garantir a segurança nacional ameaçada, agora, não apenas pelos inimigos físicos, mas “ideológicos”.
Os meios de comunicação, em sua capacidade de transmitir informações por imagens e sons, via
satélite, reconfiguravam as preocupações geopolíticas.

É mister não perder de vista o que McLuhan quis dizer, ao afirmar que o mundo está
se tornando uma grande aldeia. De fato, as coisas não ocorrem mais como antes, os
lugares longínquos, ou que sentimos como longínquos, diante dos modernos meios
de comunicação, da celeridade com que circulam as notícias e informações, do
acesso quase instantâneo às notícias vindas de todas as partes do planeta, do
crescente grau de participação de todos, nos acontecimentos de todos os tipos e em
todas as regiões numa escala planetária, o grau de consciência individual de tais
fatos, é agora muito elevado. E, com isso, a influência recíproca das realidades
nacionais diversas, dos costumes, atitudes, dos problemas constatados ou
declarados, é sempre crescente. A “circunstância” do homem, na expressão de
Ortega y Gasset ampliou-se; não é mais o seu pequeno mundo local, mas sim todo
o planeta. (... As questões referentes aos costumes, sobretudo, vão perdendo
irremediavelmente seu caráter local. Existe uma tendência clara para uma certa
uniformização dos estilos de vida, sob o influxo do prestígio das formas adotadas
pelos países tidos como líderes; e os problemas ou as modas ou as ... (trecho ilegível
) de opinião e de comportamento que neles se manifestam, logo refletem nas demais
sociedades, sob sua influência.10

Há um aspecto que chama a atenção, uma vez que não coaduna com as práticas censórias
praticadas no período pelo regime, já que que sabemos da existência, já naquele período, da censura
prévia à imprensa, inclusive com a presença de censores cotidianamente em muitos jornais e revistas,
além do “empastelamento” ou recolhimento de várias publicações para que não chegassem às bancas.
O texto do estagiário, no entanto, pondera acerca da importância de evitar uma censura
sistemática à imprensa e a partir do que seriam divergências, apenas políticas, consideradas naturais

10 Ibidem, p. 17-18.

233
e esperadas em qualquer regime. O governo ou dirigentes que a praticassem, nessa modalidade,
correriam o risco de irritar o público e provocar ainda mais resistência e desejo de expressão acerca
do tema vetado. Ou o que seria pior, poderia alimentar um clima de desconfiança acerca do governo
e sua transparência na forma de agir. A censura proibitiva, de caráter geral, poderia ser, dessa forma
“ ineficiente e danosa ao interesse público11”.
O texto apoia, no entanto, uma medida em estudo no período especialmente com relação às
diversões públicas e que diz respeito aos espetáculos e diversões públicas onde estariam enquadradas
obras cinematográficas, teatrais e, depreende-se, televisivas, embora esse aspecto não fique
totalmente claro. Trata-se da classificação etária. Nesse aspecto, o texto monográfico reflete a
preocupação presente no momento com alguns públicos considerados vulneráveis pela Doutrina de
Segurança Nacional, manifestada nas preocupações em torno dos elementos psicossociais da DSN.
A juventude brasileira, por exemplo, que já carregaria características esperadas dessa faixa
etária, como o “inconformismo” e a “rebeldia” teria um catalisador a mais para essas ações: a
informação. Há uma clara preocupação, nesse sentido, com as notícias sobre movimentos juvenis
em outros países, mas especialmente com os modelos importados de obras artísticas que fossem
capazes de promover mudanças nos hábitos e costumes morais, concretamente ameaçados pelos
conteúdos veiculados via rádio e televisão, poderosos meios de comunicação num país ainda tão
pouco letrado.

A censura do rádio e da televisão, porém, tem um outro aspecto de grande


importância educacional e social. É no que toca à polícia de costumes, pois a
penetração dos programas radiofônicos e televisionados nas residências, faz com
que seja de evidente interesse público evitar que, em tais programas, se inclua
apresentações danosas aos chamados bons costumes, que representam a moralidade
mínima da grande maioria da população. Sob esse aspecto, os mecanismos de
censura radiofônica e televisiva tem ( trecho ilegível) importante. E poderão fazê-
lo ainda mais, se mais inteligentes e racionais forem os métodos de fiscalização
estatal à sua atividade12.

A classificação etária protegeria os jovens, pelo menos os menores de 18 anos, e deveria ser
feita, de acordo com o texto, com o auxílio de sociólogos e psicólogos que teriam de dominar a
formulação prática das normas. No entanto, a medida careceria de um complemento no que toca aos
públicos de faixas etárias mais avançadas, sob pena de poderem ser agredidos em sua moral, mesmo
estando teoricamente liberados para a exposição pelo aparato censório, o que coadunaria também
com o aspecto das liberdades individuais.

11 Ibidem, p. 24.
12 Ibidem, p. 23.

234
O que falta no critério meramente classificatório, entretanto, é um elemento que nos
parece fundamental numa sociedade democrática, em defesa de liberdade
individual, já agora, não do exibidor, do ator, do autor, do encenador, do diretor de
espetáculo, mas sim, do espectador. Este deve ter assegurado o seu direito a que não
o iludam, nem o obriguem a assistir a espetáculos que, se êle estivesse corretamente
informado, não gostaria de assistir. Assim, a uma pessoa de profundas convicções
religiosas, é chocante, por vêzes assistir a uma representação teatral em que se
ridiculariza instituições e ritos de sua religião; a essa mesma pessoa, geralmente,
desagradável será assistir a um espetáculo em que se (trecho ilegível) palavras de
baixo calão, ou cenas de erotismo cru; e assim por diante. O espectador tem o direito
de saber, previamente, que espécie de espetáculo lhe será oferecido. E essa
informação não pode, por motivos óbvios ser deixada por conta dos promotores do
espetáculo.
Logo cabe ao poder público prestá-la, no interesse público. Às autoridades do
Estado compete examinar o espetáculo que será encenado, ou exibido, censurando-
o para o fim de, mediante certos recursos de ordem prática, orientar o público
espectador sobre qual a natureza e as características marcantes do espetáculo, aquilo
que possa envolver os inconvenientes apontados. Só assim estará a liberdade do
espectador assegurada pelo Estado. E só assim estará este cumprindo sua missão de
zelar pela ordem, pela paz, pela harmonia e pela liberdade, sem invasão descabida
das áreas protegidas pelo direito de opinião e de livre manifestação do
pensamento”. 13

O autor segue a proposta dos Trabalhos de Turma da ESG de propor ações ou soluções para
o problema estudado, detalhando as formas pelas quais a garantia de informação dos espectadores
poderia ser feita, a fim de garantir sua liberdade de escolha diante dos espetáculos em exibição e
evitando o que seriam abusos na ação censória:

A inclusão obrigatória, nos anúncios do espetáculo, em cartazes ao lado da bilheteria


e da entrada do público, das indicações necessárias poderia realizar esse objetivo,
sem que se possa ver nisso uma intervenção indevida do Estado na liberdade de
consciência e na criação artística. E dará o tom frio, tranquilo (trecho ilegível), ao
exercício do poder de polícia do Estado nesse setor. (...) Bastará, por exemplo,
afirmar: “Este espetáculo contém situações em que são feitas alusões desfavoráveis
à Igreja; 18 palavras comumente consideradas de baixo-calão; e uma cena em que
é representada a prática sexual”. O candidato a espectador entrará, se quiser, no
teatro.

Os direitos do espectador são novamente abordados em Trabalho de Turma, produzido de


forma coletiva pelos alunos da turma M, do Curso Superior de Guerra, em 1973. Instigados a pensar
sobre A Censura como Instrumento de Preservação do Poder Nacional, os estagiários enfatizam, de
forma mais clara a necessidade da censura diante da complexidade dos novos meios de comunicação,
em processo de massificação no país, em especial a televisão. A necessidade de intervenção do
Estado coloca-se como esperada diante da impossibilidade do homem comum em controlar os
conteúdos que entram de “assalto” em sua casa pela imprensa, rádio e televisão e que podem

13 Ibidem, p.26-27.

235
violenta-lo e às normas domésticas e diretrizes traçadas para sua família e para a criação dos seus
filhos.
A ênfase na defesa moral da juventude é, mais uma vez, o argumento utilizado para a
justificativa à censura naquele momento histórico como uma forma de “higiene social”. As ameaças
a este estrato social são tipificadas e coadunam com as justificativas para vetos em processos de
censura a programas televisivos examinados por outros trabalhos sobre a censura no Brasil 14.

A censura, esse conjunto de normas disciplinadoras, tem por objetivo imediato a


defesa da saúde física e mental dos jovens e adolescentes e se propõe a eliminar das
comunicações sociais que lhe são dirigidas às incitações à delinquência, à
sexualidade, enfim, aos temas anti-culturais, devido à influência deletéria que
exercem sobre os espíritos em formação da juventude. A censura incide,
principalmente, sobre a faixa etária que vai até os 18 anos de idade. É a censura que
poderíamos chamar de preventiva, a fim de preservar os valores autênticos da
família cristã e da sociedade democrática. É, nesse sentido, um instrumento do
poder público para a proteção do menor e se transforma, por isso, num dos deveres
de Estado para com a sociedade.15

A argumentação do texto inicial, escrito por Hélio Scarabotôlo, defende a censura, mas não
feita de qualquer forma. Aliás, ressalta, em sociedades consideradas “mais adiantadas”, não há
necessidade de censura, ou de que ela seja feita de forma sistemática, porque as instituições e os
veículos de comunicação já exercem a autocensura em nome da um consenso mais ou menos
estabelecido em torno de conceitos considerados “correto”, “incorreto, “justo”, “injusto, “moral”,
“imoral”. Em outros trechos do trabalho coletivo essa ideia é desenvolvida e fala-se em “educar os
jornalistas” e em promover a “cultura geral”. Esse não era o caso do Brasil, segundo o texto, que
além de ser uma nação em desenvolvimento, estava sofrendo a “invasão” de “livros, filmes, peças
de teatro e sex-shops de cunho nitidamente pornográfico e obsceno”16.
A censura, no entendimento de um dos autores, Hélio Scarabotôlo, poderia contribuir com o
Poder Nacional 17 , uma vez que sua função não seria apenas a proibição, mas “neutralizar os
antagonismos”, estimulando os meios de comunicação na produção e promoção de conteúdos com
conotações “dignificantes, exemplares e positivas”. O trabalho estabelece, assim, listas de temas a

14 Ver VIEIRA. Op. Cit e SILVA, Thiago de Sales. “Espetáculo inconveniente para qualquer horário”: a
censura e a recepção das telenovelas na ditadura militar brasileira (1970-1980). Dissertação. Programa de Pós-
Graduação em História, UFC, 2016.
15 BRASIL, Escola Superior de Guerra. A Censura como Instrumento de Preservação do Poder
Nacional, 1973, p. 2.
16 Ibidem, p.2.
17 O conceito de Poder Nacional utilizado na Doutrina de Segurança Nacional, no período considerado,
foi o formulado pelo general Juarez Távora, em 1953, e dizia respeito à “expressão integrada dos meios de toda a ordem
de que a nação efetivamente dispõe, no momento considerado, para promover, no campo internacional e no âmbito
interno, a consecução e salvaguarda dos objetivos nacionais, a despeito de antagonismos existentes”. In ARRUDA,
Antônio. Op.Cit, p.31-32.

236
serem incentivados na produção dos meios de comunicação de massa, nos quais estão incluídos a
imprensa, o rádio, o cinema, a TV e o teatro. São eles: “incentivo ao estudo, integração familiar,
disciplina pessoal, respeito aos mais velhos, obediência às leis e às autoridades, solidariedade
humana, amor à pátria, dedicação ao trabalho, cultivo da verdade, humildade diante da vitória,
compreensão diante das decepções” 18
Haveria, portanto, no entendimento dos autores, a partir dos debates realizados na Escola
Superior de Guerra, uma censura adequada ao Brasil. Essa escolha, ou melhor dizendo, essa
construção, teria balizas geopolíticas, uma vez que se aproximaria do adotado pelas chamadas
“democracias modernas” alinhadas ao bloco liderado pelos Estados Unidos na Guerra Fria.
Há uma nítida tentativa de afastar-se do que seria uma censura total como a que seria
promovida pelo bloco comunista, em relação às liberdades de opinião e expressão, consideradas
exageradas e abusivas, coisas de “ditadura”, mas tampouco acreditava-se que instrumentos
considerados mais simples como a classificação etária resolveriam nosso problema, uma vez que não
estaríamos preparados para proceder enquanto sociedade, com discernimento, estando longe de
grandes consensos ou pactos. Faltava para isso educação ao povo e de seus produtores culturais.
Fala-se de valores compartilhados por grande parte da população, mas seria necessário estabelecer
normas mais nítidas, decidir formas de censura para cada meio de comunicação em particular. A
influência dos meios é pressuposta, mas ainda pouco explorada em suas especificidades nos textos
nesse momento. Havia uma certeza, no entanto que poderá ser encontrada ao longo de toda a década
de 1970 e 1980 (período de estruturação efetiva do aparato censório no Brasil) nos textos produzidos
sobre o tema na ESG. A censura seria feita num contínuo jogo de tolher e estimular assuntos e
abordagens.

O Estado terá de proibir propaganda de guerra, de subversão da ordem pública ou


de preconceitos de raça ou de classe. Do mesmo modo, não poderá tolerar, até
mesmo pela imprensa, pornografia, obscenidade, incitamento aos vícios, aos
tóxicos, às perversões sexuais. Com isto, estará defendendo a população daquelas
agressões ostensivas, que fogem à ética e afetam os bons costumes e a integridade
física e mental dos cidadãos. 19

Vê-se que na lista negra das proibições, os ataques à “moral e aos bons costumes” seriam
partes constituintes da temida “ameaça subversiva” ou “guerra ideológica” ao lado de conflitos que
pudessem romper com um discurso propagado de nação harmônica e ordeira.

18 BRASIL, Escola Superior de Guerra. A Censura como Instrumento de Preservação do Poder


Nacional, 1973, p 4.
19 Ibidem, p.6.

237
Os escritos da ESG, principal centro formador de lideranças, para a ditadura estabelecida em
1964, sejam eles civis ou militares, cruzam-se com uma série de outros discursos que marcam não
apenas a elaboração de normas, mas a execução de ações efetivas no campo das políticas públicas e
da produção cultural, durante o regime civil-militar, o que desconstrói, ou deveria desconstruir, para
os historiadores e outros estudiosos do período, a ideia de que é possível falar de maneira tão segura
e definitiva de uma censura política e de outra censura de caráter moral.

Referências Bibliográficas:

DUARTE, Ana Rita Fonteles e LUCAS, Meize Regina de Lucena (orgs). As mobilizações do gênero
pela ditadura militar brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2014.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a


influência da cultura política. In: REIS, Daniel Aarão et al. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos
do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade.
Londrina: Editora Uel, 2001.

VIEIRA, Rafael de Farias. Quando a babá eletrônica encontrou a integração nacional ou uma história
da censura televisiva durante a ditadura militar (1964-1988). Programa de Pós-Graduação em
História, UFC. Dissertação de Mestrado, Fortaleza, 2016.

238
As Crônicas do Jornal dos Sports nos anos 1950: o Denuncismo como Prática

André Alexandre Guimarães Couto1

Resumo: O Jornal dos Sports (JS) ao longo de sua trajetória no século XX tornou-se um dos
principais periódicos esportivos em todo o país. Com um discurso em prol das práticas esportivas e
da saúde procurava dar conta de um campo esportivo a partir do início da década de 1930. Já nos
anos 1950, com o modelo jornal/empresa consolidado nas principais cidades brasileiras, as crônicas
tornaram-se um dos espaços mais significativos do JS, por conta de sua natureza inter(subjetiva),
criativa e imaginativa. Capaz de debater a realidade esportiva sob um prisma autoral, os cronistas
publicavam suas opiniões no caminho inverso do processo de modernização das técnicas de
produção do texto jornalístico, que exigiam nas redações uma postura mais objetiva, neutra e
imparcial de seus respectivos profissionais. Neste texto, destacamos uma das características mais
marcantes do jornal: o denuncismo.

O denuncismo, assim como o clubismo, tornaram-se chaves significativas de interpretação


da capacidade do jornal e de seus cronistas de interferirem no campo esportivo e comunicacional,
dialogando e debatendo a partir de criação de representações sociais e culturais em torno das
identidades nacional, regional, local, clubística, sem falar nas campanhas em torno da
regulamentação do esporte de forma mais organizativa e disciplinada possível. Para tanto, os grandes
eventos como as Copas do Mundo, Jogos Olímpicos e Copa Rio eram momentos oportunos para a
exploração de suas intenções e “missões” deste modelo de imprensa especializada. As crônicas, por
seu caráter híbrido, (inter)subjetivo e dialógico, dentre outros, tornaram-se mais do que ferramentas
para as intencionalidades do jornal. Passaram a ser a caixa de ressonância diversa, mista e
heterogênea de narrativas que procuravam interpretar o limite entre a realidade e a ficção em torno
dos esportes, em especial do futebol e criaram ao longo da década de 1950, representações culturais
e sociais que podiam dizer tanto dos seus objetos de análise, quanto mais dos seus narradores.
Neste texto, apresentamos alguns exemplos de como o denuncismo se tornou uma prática dos
cronistas do JS ao longo da década de 1950. Porém, como já anunciamos, outras possibilidades de
análise devem ser consideradas como a prática do clubismo, a qual não privilegiaremos neste
momento.2 Se a defesa de uma representação em torno da união do torcedor carioca não era consenso

1 Professor e Pesquisador do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca


(CEFET/RJ), Doutor em História (UFPR), integra como pesquisador, o SPORT – Laboratório de História do Esporte e
do Lazer da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o NEFS – Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade da
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e o NEPESS – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 Por clubismo, entendemos não apenas a valorização (por vezes aumentada ao extremo) dos sentimentos
clubísticos dos grandes clubes de futebol, mas também a defesa da organização do esporte por meio dos clubes,
agremiações e associações, sejam elas as grandes instituições desportivas, sejam as menores, de bairro, mas que tinham
o propósito de ordenar socialmente o esporte e o lazer, oportunizando a regulação destas práticas. Para mais informações,

239
entre os cronistas do jornal, assim como as opções e estilos narrativos destes autores, sendo em
alguns casos mais formais e eruditos em contraposição ao discurso mais popular e debochado em
outros, podemos apontar alguns valores presentes neste periódico muito comum em vários deles: o
caráter denuncista e vigilante das práticas desportivas como podemos verificar em alguns poucos
exemplos a seguir:

Só pode merecer elogios o Prefeito João Carlos Vital se levar à frente a construção
da raia Olímpica e a doação dos terrenos aos tradicionais clubes de Santa Luzia –
Natação, Internacional, Boqueirão do Passeio e Vasco da Gama.
O remo, esporte imprescindível à mocidade brasileira, que terá de formar a reserva
naval de um país que tem uma costa imensa a defender, não tem merecido grandes
atenções dos poderes públicos.
Os nossos homens públicos confundem arte com esporte. O football profissional,
cujos artistas são os melhor remunerados do mundo, ainda merecem, entre nós, o
título de desportistas e como tais são tratados. Os esportes amadoristas, aqueles que
não produzem rendas e são praticados por diletantismo, estão abandonados. O
remo, por exemplo, tão necessário à formação de uma reserva naval, está na última
lona, às vésperas da falência.
O Boqueirão do Passeio, Natação, Internacional e Vasco da Gama, quatro grandes
expressões do remo nacional, estão quase impossibilitados de praticar o esporte
que define a sua existência. 3

Como dissemos anteriormente, apesar de considerarmos uma característica comum nos


cronistas do JS, podemos afirmar que um dos autores que mais faziam uso deste tema era Álvaro do
Nascimento (“Zé de São Januário”). Um dos fatores que justificam isso era a possibilidade de uso
de um pseudônimo para as suas colunas mais significativas, com textos mais líricos e criativos, o
que colaborava com uma identidade quase anônima diante dos leitores. Portanto, o deboche e acidez
poderiam ser melhor destilados por este cronista que não obstante também militava pela
organização/disciplinarização do esporte.
Neste texto, o autor fazia um apelo ao prefeito do Rio de Janeiro, João Carlos Vital, para que o
mesmo pudesse garantir novas instalações para as práticas dos clubes de remo, cuja atividade estaria
em um patamar inferior em relação ao futebol, por exemplo. 4 Inclusive, o remo, de acordo com o

ler: COUTO, André Alexandre Guimarães. Cronistas Esportivos em Campo: Letras, Imprensa e Cultura no Jornal dos
Sports (1950-1958). Curitiba: UFPR, 2016. Tese de Doutorado em História.
3 NASCIMENTO, Álvaro do (Zé de São Januário). In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 7.035, 3 de
agosto de 1952. P. 10. Coluna Uma pedrinha na Shooteira.
4 O prefeito João Carlos Vital (1900-1984) era engenheiro civil de formação e foi indicado pelo então
presidente Getúlio Vargas para a Prefeitura do Rio de Janeiro. De acordo com os arquivos do CPDOC, “(....) Em abril de
1951 foi nomeado (...) prefeito do Distrito Federal, em substituição ao general Ângelo Mendes de Morais (1947-1951).
À frente da prefeitura elaborou o Primeiro Plano de Obras, iniciando em sua administração a construção da primeira
adutora do rio Guandu, que visava reforçar o abastecimento de água da cidade, e a elaboração do anteprojeto do
Metropolitano do Rio de Janeiro. Nesse período foram duplicados vários trechos da avenida Brasil, foram construídas as
estradas Grajaú-Jacarepaguá, Itararé-Itaóca e Areia Branca, e outras estradas cariocas foram pavimentadas. Foi feito ainda
o estudo preliminar para o estabelecimento do Código de Fundações e Escavações do Distrito Federal, aprovado em maio
de 1955 pelo prefeito Alim Pedro (1954-1955), e apresentado ao Legislativo um projeto de lei tributária que desencadeou

240
cronista seria o responsável pela formação de nossa força naval, uma necessidade para um país com
litoral continental como o nosso. Mas, o que chama bastante a nossa atenção é a antítese criada por
Nascimento acerca dos valores esportivos diante de duas modalidades distintas e que marcaram,
inclusive, a identidade esportiva do carioca: o remo e o futebol. A atenção total dada ao futebol
destoaria da real proporção que este esporte mereceria:

Criaram-se ídolos de barro no football profissional. Há mais crentes no football que


nos terreiros de macumba. E a crença é tão grande, que se confunde football com
os sentimentos mais puros do patriotismo.
Remo, atletismo, tennis, natação e todos os esportes amadoristas, praticados com
fins eugênicos e não com intuito de lucros, andam por aí ao Deus dará sem
provocarem as explosões do sentimento patriótico.
Os “patriotas” do esporte são os jogadores de football profissional, os seus técnicos,
médicos, massagistas e até diretores especializados...
As “tournées” artísticas do nosso football profissional são mais aclamadas do que
Radamés após o seu triunfo sobre os etíopes.
O football profissional, fez crentes e fanáticos que às vezes se degladiam como se
estivessem nas lutas das Santas Cruzadas.
Há centenas de clubes pelo Brasil afora que praticam, apenas, o football profissional
e se inculcam batalhadores em prol da eugenia da raça!
Uma coisa maravilhosa!...
Se o Prefeito João Carlos Vital construir a raia Olímpica e ceder os terrenos aos
clubes náuticos de Santa Luzia, terá prestado um grande serviço ao esporte da
Metrópole.
Até agora, o que se tem feito, apenas beneficiou os artistas do football profissional.
Se o Prefeito João Carlos Vital, levar à frente os seus propósitos, poderemos dizer:
O remo já tem espaço Vital...5

A idolatria em torno dos atletas de futebol seria compreendida como negativa tendo em vista
que estes personagens eram, no limite, forjados por “barro” e que a crença era cega a ponto de
confundir os sentimentos pela seleção brasileira como ato patriótico. 6 Um ponto importante de
inflexão em relação ao espírito discursivo presente ao longo da história do jornal, inclusive na década
de 1950, contrariando, inclusive (e mais uma vez) a linha editorial do mesmo. Na defesa dos esportes
amadores como o remo, a natação e o atletismo e até mesmo o elitista tênis, Nascimento explicitava
que o caráter eugênico destes esportes não deveria estar descolado da cultura e educação da saúde
dos brasileiros pelas quais o país deveria investir. Esta posição em plena década de 1950 denotava
ainda a ideia de um eugenismo moderno, que interpretava a melhoria da “raça” brasileira por meio

intensa polêmica na imprensa e incompatibilizou o prefeito com a Câmara, resultando, em dezembro de 1952, na sua
demissão da prefeitura. Foi substituído pelo general Dulcídio do Espírito Santo Cardoso (1952-1954). Ver em: VITAL,
João Carlos. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/vital-joao-carlos>. Acesso
em: 07/06/2016.
5 Ibidem.
6 Note-se o uso da palavra “macumba” em mais esta crônica do JS, tendo em vista que a proposta era
uma aproximação com o universo popular dos leitores.

241
das práticas esportivas, dentre outras ações saudáveis. O discurso do patriotismo (ou do verdadeiro
e “legítimo” patriotismo) passaria necessariamente pela valorização dos esportes capazes deste feito.
Outro ponto bem importante na pauta das discussões em torno das crônicas esportivas do período
era o processo de desenvolvimento dos esportes por meio da valorização dos clubes, instituições
estas que não necessariamente eram os chamados “grandes clubes” do futebol carioca. Ou seja, mais
uma vez confirmamos nossa tese de que as crônicas deste jornal apontavam temas conjuntos, que
dialogavam entre si e que não necessariamente eram hierarquizados dentro do texto. No exemplo
acima, temos o debate de caráter denuncista sobre as melhorias das instalações para a prática do
remo, ao mesmo tempo em que defendia as organizações nucleares da prática de esporte, no caso os
clubes de remo, como o Boqueirão do Passeio, Vasco da Gama, Internacional e Natação. Desta
forma, percebemos que apesar de escolhermos alguns temas para aprofundar a nossa pesquisa como
a cobertura de eventos como a Copa do Mundo e a Copa Rio ou a prática do denuncismo, como neste
item, é importante salientar que o tratamento dado pelos cronistas tendia a abordar dois ou três
debates em um único texto, procurando resumir ao máximo as discussões escolhidas pelos mesmos.
Em resumo, logo acima temos a união entre o denuncismo e o clubismo, presentes em vários
momentos na linha editorial do jornal no período estudado.
A denúncia em torno do aprimoramento das instalações do remo, passava ainda pelo
argumento de que havia muita atenção, recursos, idolatria e importância direcionada ao futebol,
sobrando pouco para os demais esportes. A ironia e o sarcasmo presentes no texto do cronista
refutavam a ideia de identificar os profissionais do futebol como os verdadeiros “patriotas” do Brasil,
assim como reclamava da visibilidade dada pela imprensa sobre as excursões dos times brasileiros e
a violência empreendida pelas discussões verbais e brigas entre os torcedores e aficionados por um
determinado clube. O uso de nomes e expressões como “Radamés” ou as “Santas Cruzadas” também
denotava uma necessidade de apresentar um discurso sarcástico e popular com doses de erudição,
tendo em vista que se supunha que os leitores do jornal atravessavam classes sociais distintas. 7
Nascimento desabafava com a ironia que lhe era peculiar: “(...) Uma coisa maravilhosa!...”,
resumindo sua crítica ao excesso de atenção dado a um esporte que trazia poucos benefícios para a
sociedade em relação a outros como o remo. Portanto, os recursos financeiros do município poderiam

7 O uso da palavra “Radamés” faz menção à ópera Aída, de Giuseppe Verdi, que conta a aventura do
general egípcio Radamés em sua excursão bélica à Etiópia e tendo se apaixonado pela escrava etíope Aída. A comparação
entre esporte e arte, ou melhor, entre futebol e arte, era um deboche do cronista acerca do sentido artístico que uma prática
esportiva alcançava, podendo superar até mesmo o valor de uma peça clássica de ópera. Já as “Santas Cruzadas” faziam
referência às guerras travadas entre cristãos e muçulmanos, entre os séculos XI e XIII, a partir das expedições dos
primeiros sobre o território considerado “santo” para os mesmos e que estavam sob o domínio de outros povos. É uma
forma de exemplificar o grau de rivalidade entre os torcedores de determinados times que tornavam-se inimigos mortais
e destilavam ódio entre eles por conta das paixões clubísticas.

242
ser melhor utilizados e investidos como a raia olímpica na região de Santa Luzia, no centro da cidade
carioca, local de atuação de vários clubes de remo. Mesmo porque, segundo ele, muito dinheiro teria
sido gasto pela prefeitura do Rio de Janeiro, principalmente com a construção do estádio do
Maracanã (também chamado de Municipal) e preparativos para a Copa do Mundo de 1950, além de
outros recursos (em escala menor) para Copa Rio (1951 e 1952).8
Finalmente, o autor revelava que em caso de aprovação da obra para o desenvolvimento do
remo, a obra seria chamada doravante de “espaço Vital”, em dupla homenagem: à vida que seria
valorizada pelas práticas eugênicas e saudáveis e, obviamente, ao prefeito cujo sobrenome era
exatamente este: Vital. Nascimento com o seu “Zé de São Januário”, se apresentaria como um crítico
ferrenho e denuncista das ações governamentais e organizacionais que porventura não se coadunasse
com o espírito esportivo do carioca, mesmo que este fosse uma construção simbólica do cronista.
Em outra oportunidade, por exemplo, o cronista reclamava da atuação dos cambistas chamados por
ele de “profiteurs”, que na língua francesa significa “explorador”, “especulador” ou “aproveitador”,
dependendo do contexto em que é utilizado.9 Tal feito seria uma vergonha ainda maior para o Brasil
por se tratar de jogos da Copa do Mundo de 1950 como ele aponta: “(...) Os que vão ao Estadio
Municipal, levados pelo sentimentalismo patriótico, não podem ficar sujeitos aos aventureiros e
negocistas que, como chacais, se aproveitam dos restos e da miséria alheia.” 10 Desta forma, seu
caráter denuncista contra a venda de ingressos mais caros para a torcida brasileira, realizado pelos
cambistas, é outro exemplo da força de uma crônica em que apontava os problemas de organização
do evento internacional que o Brasil sediara. A denúncia aponta os problemas de ambos os lados,
dos exploradores e dos explorados: “(...) aqueles que concordaram com os cambistas, nada podem
reclamar. Os que se deixara explorar, não têm o direito a queixas. O único direito que lhe assiste é o
de se queixarem ao bispo...”.11
Outro autor que se apresenta como um interlocutor de Álvaro do Nascimento e dos demais
que se pronunciavam em prol dos esportes com um discurso denuncista e organizativo do campo
esportivo, era João Machado que propunha uma reinvenção da cidade a partir do sucesso que os
esportes alcançaram no Rio de Janeiro nas últimas décadas. Era necessário, para o autor, que
houvesse uma mudança correspondente na infraestrutura da cidade, como podemos perceber no texto
abaixo:

8 Dentre os gastos com a Copa Rio, temos o patrocínio para a compra dos troféus, por exemplo.
9 NASCIMENTO, Álvaro do (Zé de São Januário). In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 6.410, 16
de julho de 1950. P. 9. Coluna Uma pedrinha na Shooteira.
10 Ibidem.
11 Ibidem.

243
Novas praças de desportos
O Rio de Janeiro é uma cidade grande em superfície.
Digo, justamente, cidade grande quando seria mais agradável aos cariocas dizer:
grande cidade.
A nossa capital, porem, ainda não pode ser considerada uma grande cidade, pois são
numerosos os motivos que concorrem para torná-la atrasada em comparação com
outras capitais.
É grande, porem, porque cresceu desordenadamente, principalmente no sentido
horizontal. Os terrenos da zona urbana, em sua divisão primitiva, foram reduzidos
a proporções insignificantes e em cada um foi edificado um prédio acanhado de um
ou dois pavimentos; assim ainda se conserva a maior parte da zona comercial
urbana.
Ao lado desta, e, mesmo constituindo manchas deploráveis nos bairros residenciais,
estão as favelas desafiando com os seus trezentos mil habitantes a capacidade
administrativa do Governo local.
A lamentável incapacidade de nossos antepassados, seguida de perto por muitos dos
atuais administradores, permitia que a cidade se estendesse pelos subúrbios, tão
desordenadamente quanto já se instalara no Centro. 12

A visão elitista do autor propunha uma leitura sobre a cidade do Rio de Janeiro a partir do
seu (des)ordenamento urbano e geográfico. Apesar deste tom, próprio de um lugar de fala de quem
vivia os rumos de uma posição social privilegiada, o discurso denuncista estava presente não só do
ponto de vista da crítica de uma estética própria, da qual as favelas destoariam do resto da cidade,
como também da necessidade da criação de espaços esportivos mais condizentes com o crescimento
da população. Este, por sua vez, pressionaria o poder público a investir no lazer e na prática
desportiva como “válvulas de escape” da tensão social e urbana. As favelas (as chamadas “manchas
deploráveis nos bairros residenciais”), assim como o surgimento desordenado dos subúrbios seriam
resultados da falta de iniciativa do poder público em tornar a cidade carioca mais racional e ordenada.
Mas, de qual ponto de vista? Como já adiantamos, tratava-se de um discurso sanitário que ignorava
a ideia de que as populações mais pobres da sociedade carioca usufruíam de redes de solidariedade
e uma ocupação espacial distinta do imaginado pelas autoridades no assunto, como se autodeclarava
o referido autor:

Vemos, por isso, bairros que têm menos de cincoenta anos, atravessados pelas ruas
estreitas e tortas, insuficientes para o sistema circulante existente.
Nem grandes avenidas, nem praças que existiriam se, em tempo, fossem reservadas
as áreas necessárias.
É razoável admitir que a mentalidade dos nossos antepassados não comportasse a
idéia do rápido desenvolvimento verificado, nesse período, em nossa cidade.
Não se justificará, porem, o que vem sendo observado em relação ao loteamento
de grandes áreas localizadas nas zonas suburbanas e rural, porque os atuais
administradores não podem alegar desconhecimento dos erros cometidos pelos
seus antecessores.

12 MACHADO, João. Novas praças de desportos.


In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 6.698, 28 de junho de 1951. P. 5. Coluna Às quintas-feiras.

244
O fato, porem, é que o crescimento da área habitada no Rio de Janeiro continua a
ser feito desordenada e criminosamente.
Em qualquer parte das zonas suburbana ou rural, continuam a ser feitos loteamentos
de grandes extensões, permitindo-se a abertura de ruas estreitas ao lado do
incompreensível desaparecimento da zona rural, hoje, transformada em grande
parte, em residências para “weekend” ou mesmo domicílios de famílias modestas.
(...)
É chegado o momento, portanto, de impedir que a cidade continue a crescer
desordenadamente em superfície, ou, pelo menos, que se proíba a abertura de ruas
de menos de vinte metros de largura, exigindo-se, a existência de praças
ajardinadas no centro de cada área, loteada e, o que é muito mais importante para
os desportistas, reservando-se sempre o espaço necessário para a instalação de
campos de desportos que compensariam o desaparecimento de mais de trinta
pequenos clubes amadoristas, de cujas praças de desportos foram criminosamente
arrancados, perdendo anos de trabalho e sacrifício, sem qualquer espécie de
indenização, ante a incompreensível indiferença dos poderes públicos. (...)13

A proposta era impedir que a ocupação da cidade do Rio de Janeiro seguisse um rumo de
desordem, indisciplina e atraso do ponto de vista social. Aliás, as questões sociais das quais os
moradores suburbanos e das áreas rurais dependiam em seu dia a dia são completamente ignoradas
pelo autor, que tem seu foco apenas na ocupação crescente destas regiões menos centrais da cidade. 14
Como impedir, de acordo com o cronista, este processo? O que tem o esporte a ver com estas
propostas? Valendo-se da legitimidade da revisão da lei municipal que tratava das obras públicas no
período, Machado informava que os esportes de clubes pequenos e amadores seriam os grandes
perdedores deste processo urbano. Ou seja, ao (re)fazer o ordenamento urbano dos subúrbios e áreas
rurais, cerca de trinta clubes amadores poderiam ser recompensados pela perda de suas atividades
devido à falta de espaços específicos que garantiriam a permanência de sua prática. 15 Desta forma,
o esporte enquanto ação civilizadora reconstituiria uma ordem urbana e social, desequilibrada pela
ocupação desregrada e sem limites. As praças públicas e voltadas para os esportes poderiam resgatar
o papel social e regulatório do poder público, trazendo saúde e lazer para os clubes amadores locais
e seus respectivos participantes.
Por um discurso elitista, como nós já apontamos, a denúncia aqui também seguia vinculada
ao interesse dos clubes, amadores, mas ainda assim associações que promoviam os esportes (no caso,
como desconfiamos, o futebol). Portanto, em mais um exemplo do cronismo esportivo do JS, mesmo
com um tom social diferente, temos a união das intenções de valorização do denuncismo e do
clubismo, sob uma visão de urbanização específica. Há também uma evidente pressão diante do

13 Ibidem.
14 As áreas suburbanas acompanhavam as linhas de trem da Central do Brasil e da Leopoldina, enquanto
as áreas rurais se concentravam mais em direção à Zona Oeste, como em Campo Grande e Santa Cruz, por exemplos.
15 O autor, todavia, não informava a origem destes dados, muito menos citava quais clubes e locais
específicos teriam sido prejudicados pela ocupação destas áreas. Acreditamos, entretanto, que se tratavam de clubes
amadores de futebol, por conta da dificuldade na composição local do ordenamento espacial.

245
poder público, com a frase final do cronista que propunha que suas sugestões fossem atendidas pelas
autoridades municipais, relevando o papel de influência da imprensa assim como demonstrando uma
relação de proximidade com o círculo do poder.
Cabe pensar também que esta defesa em torno dos clubes amadores pequenos não estava
descolada de uma lógica desenvolvimentista de sociedade que proporcionava uma busca pelo
movimento de participação comunitária que não ousasse romper com as estruturas de classe, nem
com o sistema de produção e de trabalho, muito menos com as formas de institucionalização da
dominação social. De acordo com Souza: “(...) Nas décadas de 1950 e 1960, a participação
comunitária foi utilizada como dispositivo de controle do Estado em relação aos aglomerados
urbanos, como mecanismo de controle social.” 16
Se neste caso temos uma visão elitista sobre uma situação popular, ou seja, o crescimento de
ruas e bairros mais pobres em determinadas regiões da cidade, o JS por meio de seus cronistas
militava também na área esportiva mais rica da sociedade carioca e, por vezes, em outras cidades
também. O denuncismo no campo esportivo neste caso, então, era direcionado para o entendimento
e apoio de camadas mais altas da sociedade e não exatamente uma estratégia de ganhar a atenção
dos leitores de classes mais pobres, tornando-se, por exemplo, um jornal esportivo de causas
populares. Como exemplo deste nosso raciocínio, temos algumas crônicas da socialite Inah de
Moraes, que além de possuir um haras, escrevia em uma coluna para o JS: “Rondó dos Cavalões”.
Em geral, este espaço no jornal era dedicado ao turfe, porém em uma análise sobre o mesmo,
podemos afirmar que mais do noticiar as notícias sobre este esporte ou mesmo sobre os cavalos, sua
coluna era dedicada às denúncias e ataques à administração dos jockeys clubs no Rio de Janeiro e
São Paulo, como podemos aferir no texto abaixo:

Idéia do Tomazinho...
A obrigação das Diretorias de Jockey Clube é exatamente essa: cuidar, zelar,
providenciar tudo o que for necessário ao bom andamento do turf. Se por inépcia
ou incompetência não fizeram, não é justo que os proprietários, e principalmente
os pequenos proprietários, paguem por isso. (...)
Se um proprietário resolver recorrer à Justiça, será barbada. Ganhará de ponta a
ponta, trocando orelhas. Logo, essa arbitrariedade só ficará de pé, e vigorando, se,
como os proprietários do Rio, os de São Paulo também foram desunidos e
carneiros, sujeitando-se a tudo o que a Diretoria quer, e resolve. Do contrario a
luminosa idéia do Thomazinho, logo convertida em resolução pela C.C., não terá
tempo de começar a produzir os seus efeitos, pois se verá imediatamente caída por
terra. Basta, para isso, que os protestos dos proprietários não sejam só de boca, e
se convertam em ação. (...)

16 SOUZA, Rodriane de Oliveira. Participação e controle social. In: SALES, Mione Apolinário; MATOS,
Maurílio Castro; LEAL, Maria Cristina (Org.). Política social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo:
Cortez, 2004. P. 167-187.

246
Está dando margem aos mais veementes protestos a resolução tomada pela C. C.
Paulista na qual, alegando: 1) “que há falta de cocheiras para alojamento dos potros
a chegar”; 2) “que o turfe de São Paulo está requerendo, e o público turfista
exigindo a melhoria da classe dos animais que figuram em seus programas, o que
quer dizer maior número de animais novos e sãos;” 3) “que apesar da existência de
hipódromos subsidiários vizinhos a Capital onde, definitivamente, deviam estar
correndo esses animais, seus responsáveis insistem em mantê-los nesta Capital” a
dita C.C. resolveu: “não permitir, por tempo indeterminado, o ingresso, na Vila
Hípica, de animais de 6 anos a mais, que não tenham ganho pelo menos Cr$
100.000,00, em prêmios de primeiro lugar”.
Eis aí a decisão arbitraria e ilegal a Comissão de Corridas do Jockey Club
Paulistano.
E sabem, vocês, de que bestundo saiu semelhante estalo? Do bestundo do
Handicapeur Thomazinho Assunção! É ele o pai de tão aberrante idéia,
imediatamente aprovada pelos oito novos comissários que, com isso, iniciam
brilhantemente a sua gestão.
Consideremos a medida. Ela é, sem a menor dúvida, arbitraria e ilegal. Uma C. C.
ou uma diretoria inteira do Jockey Club não pode prejudicar os proprietários
proibindo-os de fazer correr os seus animais sob o pretexto de que o Jockey Clube
não tem onde alojá-los, ou de que “o turfe está requerendo e o público exigindo a
melhoria da classe dos animais” em atividade, uma vez que estes estejam dentro
do limite de idade previsto pela lei de nacionalização do Turfe.
Não há cocheiras? Pois fizessem, cocheiras, ora bolas!17

A denúncia aqui referida tratava-se de novas regras estabelecidas no Jockey Club de São
Paulo pela Comissão de Corridas (CC) desta associação/clube que, segundo a cronista, traria uma
série de problemas para os proprietários dos cavalos. Para tanto, informava às autoridades
desportivas daquele Jockey Club que os mesmos poderiam fazer uso da justiça, pois assim
conseguiram manter os seus animais em plena atividade. Interessante é que a forma escolhida para
trabalhar a narrativa textual era a que utilizava expressões e jargões do mundo do turfe como, por
exemplo, “barbada” ou “(...) Ganhará de ponta a ponta, trocando orelhas.” Apesar de o seu texto
apresentar um debate denuncista com linguagem clara e direta para os seus interlocutores (tanto os
leitores quanto a quem se dirigia a crônica/denúncia) fez uso destas expressões, reforçando seu lugar
de origem, ou seja, uma colunista que se dedicava em sua vida particular e familiar à prática do
esporte equestre e à criação destes animais. Mais do que uma visão do esporte sobre os maus feitos
dos seus devidos organizadores ou autoridades esportivas e associativas, Inah defende seus interesses
próprios por meio da imprensa especializada da qual fazia parte, como cronista e membro de uma
família de jornalista.18
De acordo com Inah, a decisão do Jockey Club paulistano iniciara um processo de
modernização das atividades de forma arbitrária e desastrosa, pois indicaria um padrão de

17 MORAES, Inah de. Idéia do Tomazinho... In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 6.697, 27 de junho
de 1951. P. 9. Coluna Rondó dos Cavalões.
18 Como já apontamos, Inah de Moraes tornou-se esposa de Pedro Dantas de Moraes Neto, jornalista,
cronista, jurista, poeta e professor, tendo atuado em diversos jornais do Rio de Janeiro.

247
participação dos animais a partir de critérios de mérito, ou seja, a partir de sua juventude e
desempenho nas corridas (neste último caso, medido pela quantidade de prêmios recebidos). Tal
mudança na administração poderia criar uma insatisfação generalizada além de excluir tradicionais
participantes das corridas daquela praça desportiva (como, inclusive, ela mesma). Em sua crônica,
que tornava-se mais um manifesto em causa própria, apesar do caráter anti(regulatório) do campo
esportivo, não aliviava as ofensas contra os idealizadores das medidas supracitadas: as ofensas e
ironias marcavam a participação nesta campanha. A palavra “bestundo”, que significa a pessoa com
a capacidade mental limitada ou de inteligência curta, foi a escolha para designar o idealizador de
tal fato.
A autora, todavia, de fato e no limite não teria uma visão conservadora e tradicional ou mesmo
antimoderna da visão administrativa do esporte, mesmo porque no texto deixara claro de que as obras
para construção de novas cocheiras deveriam ser a solução para os tais problemas e não exatamente
a limitação de atividades de determinados animais e seus respectivos proprietários, razão de existir
do próprio clube. Temos, no limite, vários projetos de modernização do campo esportivo, tendo em
vista os diversos interesses envolvidos.
Em resumo, seja em defesa própria ou de um lugar de ocupação profissional que lhe
conferisse autoridade para apontar as falhas dos poderes públicos e privados em torno da organização
do esporte, o JS se notabilizou na década de 1950 por uma característica de denunciar o que
considerava “curvas fora do padrão” no desenvolvimento do esporte. Todavia, este padrão tinha um
alto tom de disciplina e particularismo como podemos observar nos exemplos estudados. Apesar do
argumento sobre o bem comum ser uma das premissas dos textos com este tom discursivo, nem
sempre o era de fato, tendo em vista interesses pessoais ou de grupos específicos (proprietários de
cavalos e não exatamente o público da assistência ou, ainda, os clubes amadores em contraposição
às camadas mais pobres da cidade que, inclusive, usufruíam das práticas esportivas mais populares,
como o futebol, por exemplo). Cabe lembrar que a conjuntura histórica brasileira, do pós-1945, criou
uma onda reprimida de movimentos judicialistas em torno do acesso aos direitos, sejam eles mais
amplos, inclusive englobando processos de solidariedade entre determinadas comunidades, ou mais
restritos como a própria força que a imprensa passou a ter em uma democracia liberal, reformista ou
desenvolvimentista. Se antes o controle social vinha em um movimento crescente da força do Estado
autoritário sob as instituições sociais e a população como um todo, a década de 1950 atingiria o ápice
de um momento histórico de pós-ditadura com um Estado reformista (ainda conservador e
parcialmente autoritário) com o desenvolvimento de novas formas de controle social, sendo agora,
uma mão dupla de atuação por conta dos movimentos sociais e da própria imprensa. Todavia, estas
manifestações não lograram êxito em sua representatividade política diante de um panorama de

248
crises econômicas e sociais frequentes. Mesmo diante do momento crítico com o final do Governo
Vargas, a imprensa em geral particularizava os seus próprios interesses como os da sociedade como
um todo.19
Desta forma, e fazendo bastante sentido, a imprensa esportiva de então (no caso, nos
referimos ao JS), fazia mais este papel de vigilante das ações das autoridades públicas e
governamentais, porta voz das ações em torno do desenvolvimento dos esportes, sejam eles voltados
para os interesses dos clubes privados, dos torcedores abastados ou proprietários de animais de porte.
Esta postura denuncista extrapolava o caráter de reivindicação das ações do Estado, criando uma
cultura voltada para ampliação da atuação pública da imprensa. A crônica esportiva, por cunhar um
padrão subjetivo, emotivo e opinativo em sua base de formação, contribuía bastante para o
fortalecimento desta estratégia dos meios de comunicação, em particular os jornais impressos.
A subjetividade presente nas escolhas dos temas e das críticas específicas em torno de um
determinado tema criava uma identidade específica em torno do perfil de cada cronista, seja mais
ácido e debochado em alguns casos, mais austero e cortês em outros, ou mais complacente em alguns.
De acordo com Mansano, levando em conta o conceito de subjetividade de Deleuze:

Pode-se notar que essa consideração de Deleuze também rompe com a noção de
uma unidade evidente atribuída ao sujeito, ou seja, com a noção de um ser prévio
que permanece. Para ele, o sujeito não está dado, mas se constitui nos dados da
experiência, no contato com os acontecimentos. Questionamos: como isso
acontece? Nos diferentes encontros vividos com o outro, exercitamos nossa
potência para diferenciar- nos de nós mesmos e daqueles que nos cercam. Existem
diferentes maneiras de viver tais encontros. Alguns deles podem passar
praticamente despercebidos. Já outros são fortes, marcantes e até mesmo violentos.
Dependendo dos efeitos produzidos pelos encontros, o sujeito é praticamente
“forçado” a questionar e a produzir sentidos àquela experiência que emergiu ao
acaso e que, sem consulta, desorganizou um modo de viver até então conhecido.
Obviamente, o contato com esse tipo de dado e de acontecimento gera uma série
de estranhamentos, incômodos e angústias. A vida se desenrola nesse campo
complexo do qual fluem ininterruptamente os dados e os acontecimentos. Os
enfrentamentos aí emergentes não conhecem parada.20

De qualquer forma, o conjunto destes autores moldou uma forma de contribuir as visões
diversas sobre o esporte carioca, a ponto de entendê-lo como nacional. Ou seja, reforçava-se a ideia
de que para o JS era possível disseminar uma leitura de identidades específicas do Brasil, por meio

19 Nos referimos ao momento da crise do segundo governo Vargas, com o consequente suicídio do
presidente, resultado da pressão múltipla que sofria por parte de vários setores da sociedade, como parte significativa da
imprensa por exemplo.
20 MANSANO, Sonia Regina Vargas. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na
contemporaneidade. In: Revista de Psicologia da UNESP, 8(2). 2009. Disponível em:
http://www2.assis.unesp.br/revpsico/index.php/revista/article/viewFile/139/172. Acesso em: 05/01/2015. P. 115.

249
do esporte e por meio de uma forma de noticiar as mesmas, reforçando seu peso criativo, imaginativo
e ficcional, sem perder a objetividade, através das crônicas. Um elemento a parte de um jornal, mas
que mantinha um diálogo com a necessidade comercial da empresa, assim como ampliava um
espectro cultural de textos que militavam no limite da literatura e do jornalismo.

Referências Bibliográficas:

COUTO, André Alexandre Guimarães. Cronistas Esportivos em Campo: Letras, Imprensa e Cultura
no Jornal dos Sports (1950-1958). Curitiba: UFPR, 2016. Tese de Doutorado em História.

MACHADO, João. Novas praças de desportos. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 6.698, 28
de junho de 1951. P. 5. Coluna Às quintas-feiras.

MANSANO, Sonia Regina Vargas. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na


contemporaneidade. In: Revista de Psicologia da UNESP, 8(2). 2009. Disponível em:
http://www2.assis.unesp.br/revpsico/index.php/revista/article/viewFile/139/172. Acesso em:
05/01/2015.

MORAES, Inah de. Idéia do Tomazinho... In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 6.697, 27 de
junho de 1951. P. 9. Coluna Rondó dos Cavalões.

NASCIMENTO, Álvaro do (Zé de São Januário). In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 6.410, 16
de julho de 1950. P. 9. Coluna Uma pedrinha na Shooteira.

_____________. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, n.º 7.035, 3 de agosto de 1952. P. 10. Coluna
Uma pedrinha na Shooteira.

SOUZA, Rodriane de Oliveira. Participação e controle social. In: SALES, Mione Apolinário;
MATOS, Maurílio Castro; LEAL, Maria Cristina (Org.). Política social, família e juventude: uma
questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2004. P. 167-187.

VITAL, João Carlos. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-


biografico/vital-joao-carlos>. Acesso em: 07/06/2016.

250
A Exposição Nacional do Estado Novo, de 1938, e a
divulgação do anticomunismo para as crianças

André Barbosa Fraga1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos do projeto anticomunista criado
pelo governo Vargas logo após a eclosão da chamada Intentona Comunista, movimento armado de
militares, deflagrado com a sublevação de quartéis em Natal, em Recife e no Rio de Janeiro,
respectivamente, nos dias 23, 24 e 27 de novembro, o qual tinha por intenção tomar o poder de
Getúlio Vargas e instalar um governo popular-revolucionário que prepararia a implantação de um
regime socialista no Brasil. Todos esses levantes foram promovidos em nome de uma revolução
popular e da Aliança Nacional Libertadora (ANL), movimento político sob a liderança do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e de seu principal integrante: Luís Carlos Prestes. O governo,
utilizando-se da Lei de Segurança Nacional, havia fechado a ANL em 11 de julho de 1935. Sufocado
pelas forças legalistas, o movimento fracassou e o que se seguiu foi uma violenta repressão do
governo central a todos os opositores do regime. O intuito desta pesquisa será o de mostrar a política
de repressão e de anticomunismo voltada para os jovens brasileiros. Para isso, analisaremos a
primeira grande exposição organizada pela ditadura varguista, ocorrida no Rio de Janeiro, em
dezembro de 1938, como parte das comemorações do primeiro aniversário do Estado Novo e dos
oito anos da chegada de Getúlio ao poder. A mostra buscava revelar ao público as realizações do
regime em suas mais diversas áreas de atuação, contando, para isso, com a participação de todos os
ministérios. O combate ao comunismo, grande preocupação do governo, ganhou um pavilhão
próprio: a Exposição Anticomunista. O governo esperava que as crianças visitassem a exposição, de
maneira a tomarem conhecimento do mal atribuído ao comunismo. Para isso, o Departamento
Nacional de Propaganda (DNP) publicou, em 1939, um livro voltado a elas: Um passeio de quatro
meninos espertos na Exposição do Estado Novo.

Palavras-chave: Anticomunismo; Exposição Nacional do Estado Novo, Departamento de Imprensa


e Propaganda (DIP)

A proposta deste trabalho foi a de analisar um tema que tem sido pouco abordado entre os
estudos que procuraram analisar o combate ao comunismo ocorrido no primeiro governo Vargas
(1930-1945): o anticomunismo voltado para crianças. As práticas anticomunistas no governo Vargas
tiveram início como consequência da chamada Intentona Comunista, movimento armado de
militares, deflagrado com a sublevação de quartéis em Natal, em Recife e no Rio de Janeiro, em
novembro de 1935, o qual tinha por intenção tomar o poder de Getúlio Vargas e instalar um governo
popular-revolucionário que prepararia a implantação de um regime socialista no Brasil. Todos esses
levantes foram promovidos em nome de uma revolução popular e da Aliança Nacional Libertadora

1 Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Email: andrebfraga@yahoo.com.br

251
(ANL), movimento político sob a liderança do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de seu principal
integrante: Luís Carlos Prestes. O governo, utilizando-se da Lei de Segurança Nacional, havia
fechado a ANL em 11 de julho de 1935. Sufocado pelas forças legalistas, o movimento fracassou e
o que se seguiu foi uma violenta repressão do governo central a todos os opositores do regime.
O movimento “desencadeou um processo de institucionalização da ideologia anticomunista
no interior das Forças Armadas” 2 e contribuiu para o fortalecimento de empreendimentos para
engrandecer a figura de Vargas, e aprofundar uma propaganda nacionalista e cívica. O “perigo
comunista”, que há pouco tempo parecia distante, mostrou-se o mais próximo possível. O episódio
da chamada Intentona Comunista deixou claro que havia comunistas no Brasil dispostos a chegar ao
poder por meios revolucionários. Porém, para o governo, o que se mostrou ainda mais perigoso foi
a descoberta da atuação de estrangeiros ligados ao Komintern, a Internacional Comunista, no
movimento, o que fazia dos brasileiros participantes elementos “a serviço de Moscou” e, portanto,
traidores da pátria3.
Havia duas formas de combater o comunismo e de restringir a atuação de seus seguidores. A
primeira, imediata e fundamental, era o uso da força física, com repressão, o que ficou a cargo da
polícia 4 . A segunda, de caráter preventivo e de longo prazo, que vários ministérios procuraram
empregar, era acionar políticas culturais que valorizassem a cultura e a história do Brasil, buscando
incentivar o amor à pátria e, assim, afastar as ideias socialistas advindas da União Soviética,
eliminando sua influência na sociedade.
A primeira forma descrita de combate ao comunismo tem sido objeto de bastante atenção dos
historiadores. Ultimamente, muitos trabalhos procuraram compreender essa repressão com o uso da
força física, estudando a repressão e a perseguição aos brasileiros considerados comunistas. Essas
pesquisas abordaram, por exemplo, a atuação da polícia no fechamento de sindicatos e na prisão e
na tortura dos integrantes deles, bem como o cotidiano de violência nos presídios para os quais os
presos políticos foram enviados. A segunda forma utilizada pelo governo para combater o
comunismo, mais simbólica, também tem sido estudada, mais não tanto. E, quando estudada, foca
mais nas práticas anticomunistas voltadas para os adultos. Este trabalho tem por objetivo demostrar
como os jovens também foram incluídos nesse projeto do governo de propagação do anticomunismo.

2 CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. P. 49.
3 Idem. P. 50 e 51.
4 Ver: FERREIRA, Jorge. “Estado e repressão política no primeiro governo Vargas”. In: Trabalhadores
do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. Pp. 91-122.

252
A EXPOSIÇÃO NACIONAL DO ESTADO NOVO, DE 1938

Um lugar privilegiado para se pensar nessa política anticomunista voltada para as crianças é
a Exposição Nacional do Estado Novo. Essa primeira grande exposição elaborada pela ditadura
varguista ocorreu no Rio de Janeiro, em dezembro de 1938, como parte das comemorações do
primeiro aniversário do Estado Novo e dos oito anos da chegada de Getúlio ao poder. Portanto, a
mostra buscava revelar ao público as realizações do regime em suas mais diversas áreas de atuação,
contando, para isso, com a participação de todos os ministérios. Tendo a Pasta da Justiça, sob a
direção de Francisco Campos, como principal organizadora, o evento apresentou comparativamente
uma síntese dos avanços alcançados pela nova administração iniciada em 1930 e “aperfeiçoada” em
1937, ao demonstrar a evolução obtida entre o passado e o presente e as expectativas otimistas em
relação ao futuro. Nesse sentido, havia o esforço de apresentar ao país o que ele fora, o que ele era e
o que ele seria.
Para a execução do empreendimento, aproveitou-se a estrutura já montada na realização da
XI Feira Internacional de Amostras do Rio de Janeiro 5, localizada no centro da cidade, na Ponta do
Calabouço, região aterrada e reurbanizada na década de 1920 para acolher a Exposição Internacional
Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil. A responsabilidade direta pela efetivação
do projeto coube ao chefe de gabinete do ministro da Justiça, Negrão de Lima 6.
Primeiramente, é preciso esclarecer o tipo de público esperado no evento. Com o intuito de
divulgar o máximo possível as transformações pelas quais o país vinha passando nos últimos oito
anos, os organizadores almejavam alcançar a população em geral, habitante das cidades ou dos
campos. Justamente por esse motivo, todo um esforço foi empregado de modo a facilitar o
deslocamento dos interessados em prestigiar o evento, tornando mais acessível a vinda à capital.
Nesse sentido, foram obtidas reduções de 30 a 50% nos preços das passagens de trem e do transporte
marítimo. Ainda, também contribuindo nesse esforço de atrair os brasileiros, o Sindicato dos

5 Iniciada em 12 de outubro e concluída no dia 20 do mesmo mês, a XI Feira Internacional de Amostras


do Rio de Janeiro apresentou em mostruários os produtos das principais indústrias brasileiras e estrangeiras. Cada país da
América e da Europa presente, além dos estados brasileiros, montou um pavilhão para expor seus itens. Ver: “Inaugura-
se hoje a XI Feira Internacional de Amostras”. Jornal Diário de Notícias, Rio de Janeiro, quarta-feira, 12 de outubro de
1938. P. 3; e “O encerramento da Feira de Amostras”. Jornal O Radical, Rio de Janeiro, domingo, 20 de novembro de
1938. P. 7.
6 Francisco Negrão de Lima (1901-1981), nascido em Minas Gerais, foi advogado, formado pela
Faculdade de Direito de Belo Horizonte, e jornalista. Na política, atuou como deputado federal por Minas Gerais, de 1933
a 1937. Com o golpe de 1937 e a implementação do Estado Novo, foi nomeado chefe de gabinete do ministério presidido
por Francisco Campos. Ver: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – DHBB, CPDOC-FGV, verbete LIMA, Negrão
de.

253
Proprietários de Hotéis e Pensões fez uma redução na tabela de cobrança das diárias 7. Todos os
descontos seriam mantidos durante o funcionamento da exposição.
Além disso, devido ao público-alvo, os curadores tiveram o cuidado de montar os stands com
informações dispostas de maneira simples, autoexplicativas, e com uma linguagem acessível a
qualquer pessoa, de modo a se fazer inteligível mesmo aos visitantes com pouca educação formal.
Para alcançar tal objetivo, foram utilizados numerosos mapas, gráficos, estatísticas, fotografias,
maquetes, trabalhos em alto-relevo e quadros demonstrativos, elementos dispostos “de forma a
proporcionar aos visitantes toda a facilidade na observação e compreensão da evolução e progresso
do país”8. Essa dupla estratégia de atração do público, baseada em facilitação do deslocamento–fácil
entendimento, parece ter alcançado o resultado esperado, já que mais de 40.000 pessoas visitaram a
exposição apenas nos dois primeiros dias 9.
Apesar do número expressivo, o governo nutria a intenção de que o conteúdo da exposição
chegasse à maior quantidade possível de cidadãos e, para isso, contou com o alcance proporcionado
por uma poderosa ferramenta: o rádio. O programa Hora do Brasil fez “uma rápida interpretação da
Exposição Nacional do Estado Novo para a nova geração, demonstrando o sentido criador do Estado,
como resultante da juventude das suas forças” 10.
A Exposição Nacional do Estado Novo foi inaugurada pelo presidente em 10 de dezembro,
às 16h. Recebido por todos os ministros de Estado e por altas autoridades civis e militares à porta do
recinto da Feira de Amostras, a primeira ação inaugural de Vargas foi a de acender, sob salva de
palmas, uma bola luminosa de grande efeito ornamental, colocada na avenida principal do recinto.
Construída pelo Ministério da Marinha, exprimia a renovação advinda de um novo regime, símbolo
de orientação, de guia e de vigilância. Em outras palavras, a iluminação de tal farol representava os
novos rumos alcançados pelo Brasil com a chegada de Getúlio ao poder, transformações que tão bem
seriam demonstradas no interior da mostra11.
Nenhuma área de atuação do governo ficou de fora, de maneira que todos os ministérios
possuíam seus próprios Pavilhões (da Viação e Obras Públicas, da Guerra, da Marinha, da Educação
e Saúde, do Exterior, da Justiça, do Trabalho, da Fazenda e da Agricultura), assim como outros

7 Ver: “A Exposição Nacional do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, quinta-feira, 8 de
dezembro de 1938. P. 2.
8 Ver: “A Exposição do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, sexta-feira, 25 de novembro de
1938. P. 6.
9 Ver: “Exposição Nacional do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, terça-feira, 13 de
dezembro de 1938. P. 3.
10 Ver: “Uma visita à Exposição do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, sexta-feira, 16 de
dezembro de 1938. P. 6.
11 Ver: “A Exposição Nacional do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, quinta-feira, 8 de
dezembro de 1938. P. 2; e “O que é o Brasil Novo construído pelo Presidente Vargas”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro,
domingo, 11 de dezembro de 1938. P. 1.

254
órgãos da administração possuíam seus próprios stands (Departamento Nacional de Propaganda,
Prefeitura, Instituto do Álcool e Açúcar e Comissariado do Brasil na Feira de Nova York e do
Departamento Nacional do Café). Além desses, um assunto de grande preocupação do governo
ganhou um pavilhão próprio, recebendo materiais ilustrativos fornecidos por quase todos os
ministérios: a Exposição Anticomunista 12. A revista Exposição Nacional do Estado Novo13 dedicou
um espaço significativo para detalhar todas as informações que o integravam, apresentando através
de farta ilustração com fotografias e quadros comparativos dados pormenorizados da evolução do
comunismo no mundo e no Brasil, descrevendo esses movimentos em tom depreciativo e alertando
para o perigo dos subversivos integrantes deles, inimigos da pátria brasileira 14.
A Exposição Nacional do Estado Novo logo alcançou destaque, tornando-se sucesso de
crítica e de público. Por essa razão, a data de encerramento, marcada para 31 de dezembro, foi
prorrogada. O Ministério da Justiça, devido ao êxito evidente do evento, organizou um novo
programa de atividades que teve início em 1° de janeiro de 1939 e foi finalizado no dia 22 do mesmo
mês15. Sem dúvida, muito do interesse do público pela mostra se deveu às diversas atrações paralelas
à exibição dos feitos do governo Vargas, como queima diária de fogos de artifício, lutas de boxe e
grandes concertos musicais 16 . Além disso, vários concursos movimentaram o público, atraindo
publicidade e mais pessoas ao evento, como o de bandas de música militares, “Qual o melhor cantor
e qual a melhor cantora de rádio?” e “Qual a música popular brasileira, samba e marcha, de maior
sucesso no momento?”.

12 Para uma análise geral da exposição e detalhada do Pavilhão Anticomunista, ver: NEGRÃO, João
Henrique Botteri. Selvagens e incendiários: o discurso anticomunista do governo Vargas e as imagens da guerra civil
espanhola. São Paulo: Associação Editorial Humanitas/Fapesp, 2005.
13 Exposição Nacional do Estado Novo. Rio de Janeiro: DNP, 1939.
14 Para o espaço reservado à Exposição Anticomunista, ver: Exposição Nacional do Estado Novo. Rio de
Janeiro: DNP, 1939. Pp. 67-96.
15 Ver: “Será prorrogada a Exposição Nacional do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro,
domingo, 25 de dezembro de 1938. P. 8.
16 Ver: “A Exposição do Estado Novo está obtendo o maior êxito”. Jornal O Imparcial, Rio de Janeiro,
domingo, 18 de dezembro de 1938. P. 3 e 16. Claramente, atrações especiais contribuíam para um aumento considerável,
no dia de sua exibição, da venda de entradas para a exposição. Por exemplo, o jornal A Batalha chegou a essa constatação
ao indicar um aumento significativo, comparado aos dias anteriores, na compra de ingressos para 6 de janeiro de 1939,
justamente por nessa ocasião ter sido realizado um espetáculo pugilístico ao ar livre, no qual, em um ringue montado,
ocorreu uma luta preliminar entre amadores e, em seguida, três entre profissionais. Ver: “Exposição Nacional do Estado
Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, sexta-feira, 6 de janeiro de 1939. P. 6.

255
O ANTICOMUNISMO NO LIVRO UM PASSEIO DE QUATRO MENINOS ESPERTOS NA
EXPOSIÇÃO DO ESTADO NOVO

Além dos adultos, a Exposição Nacional do Estado Novo tinha nos jovens o público-alvo.
Daí o interesse de que as famílias levassem os filhos pequenos para prestigiar a mostra. Estimulando
isso, foi armada uma tela nas dependências do evento, formando um cinema ao ar livre 17, bem como
houve a organização de uma corrida de carros entre as crianças presentes com sorteio de um
automóvel a gasolina18. Além disso, negociou-se para que o Parque Shanghai, uma das principais
atrações da XI Feira Internacional de Amostras do Rio de Janeiro, mantivesse-se montado também
durante o evento a respeito das realizações do Estado Novo. No desejo de colaborar para o sucesso
do evento e para o aumento do público infantil, a empresa de diversões resolveu estabelecer preços
populares, reduzindo o valor cobrado para a entrada em seus principais aparelhos, como montanha
russa, polvo e Palácio das Gargalhadas 19.
Ainda no interior dessas ações da Pasta da Justiça, de divulgação para as crianças das
realizações do governo, o Departamento Nacional de Propaganda, órgão submetido àquele
ministério, publicou Um passeio de quatro meninos espertos na Exposição do Estado Novo. O livro
conta a estória de uma professora, Maria de Lourdes, que, diante de uma pergunta curiosa de seu
aluno João (“– Dona Maria, esse Brasil Novo de que estão falando é algum outro Brasil mais moço
que descobriram agora?”20), resolve levá-lo, juntamente com os demais colegas de turma, Antônio,
Gustavo e André, no dia seguinte, a uma atividade extraclasse: “– Para responder bem direitinho à
pergunta de Joãozinho, não teremos aula amanhã, porque vamos fazer um bonito passeio. Vamos
ver o Brasil Novo, na Exposição Nacional do Estado Novo, na Feira de Amostras” 21. E assim, ao
longo da publicação, o leitor acompanha minuciosamente o percurso do grupo por quase todos os
pavilhões do evento, com a explicação em detalhes de dados sobre a natureza do material exposto.
Dessa forma, o livro, conforme indicado pelo jornal Gazeta de Notícias, ao ser distribuído
entre as escolas brasileiras, destinava-se “a ilustrar amplamente os nossos jovens patrícios sobre tudo

17 Ver: “A Exposição do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, sexta-feira, 25 de novembro de
1938. P. 6.
18 Ver: “Na Exposição Nacional do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro, terça-feira, 27 de
dezembro de 1938. P. 3.
19 Ver: “O Parque Shanghai e a Exposição Nacional do Estado Novo”. Jornal A Batalha, Rio de Janeiro,
domingo, 11 de dezembro de 1938. P. 3.
20 Um passeio de quatro meninos espertos na Exposição do Estado Novo. Rio de Janeiro: DNP, 1939. P.
3.
21 Idem. P. 4.

256
que foi exposto ao público durante a realização daquela grande mostra do trabalho nacional” 22 .
Enfim, a publicação em questão, voltada às crianças e utilizando uma linguagem apropriada ao
público-alvo, almejou cumprir a mesma função atribuída ao catálogo Exposição Nacional do Estado
Novo para os adultos. Tal obra apresentou a visita do grupo a vários pavilhões da exposição.
A visita ao pavilhão anticomunista revela a tentativa do autor de transmitir às crianças a
necessidade de se combater o comunismo. Logo que chegam a ele, a professora explica aos alunos
que esse pavilhão foi instalado “para mostrar aos visitantes os piores inimigos do Brasil e de todos
os países que querem viver em ordem e em paz – os comunistas”23. Ela pede que os alunos vejam
um grande livro aberto na exposição. De um lado dele mostra o que o comunismo queria e do outro
o que o Estado Novo queria. Comparando as duas páginas, segundo a professora, daria para ver a
grande diferença entre o que o Estado Novo tem de bom e o que o comunismo tem de mau. Em
seguida, dois dos alunos de Maria de Lourdes leem as páginas: Em uma está escrito “O comunismo
quer submeter o Brasil a um governo internacional, dependente de Moscou!” e na outra “O Estado
Novo quer dar ao Brasil um governo nacional dependente apenas da vontade do seu povo!” 24.
A inserção dessa passagem, escrita em páginas do livro em exposição, serve de pretexto para
o autor da obra, publicada pelo DNP, fazer comparações entre o comunismo e o Estado Novo, de
modo que os jovens leitores desenvolvessem ojeriza àquele e apreço a este. Ao explicar de maneira
mais simplificada o que os alunos haviam acabado de ler, a professora explica que:
Enquanto o comunismo quer que o Brasil seja governado por estrangeiros e
submetido aos caprichos tirânicos dos comunistas de Moscou, que mandam nos
comunistas de todo o mundo, o Estado Novo quer que o Brasil tenha no governo
um brasileiro, como o Presidente Getúlio Vargas, que não dependa do governo de
nenhum país e represente verdadeiramente a vontade do seu bom e pacífico povo25.

Em seguida, ela pede que outro aluno, Joãozinho, leia mais um trecho: “– O comunismo quer
a luta de classes como regime social permanente!” 26. Novamente, a docente explica para as crianças
o que isso significaria:
Quer dizer que, ao invés de promover a harmonia entre os operários e os patrões,
criando um ambiente de ordem e de paz, onde todos trabalhem com alegria e
esperanças, o comunismo quer que os operários vivam brigando com os patrões,
vivam em greve, as fábricas paradas, não trabalhando e não deixando os outros

22 Ver: “Um passeio de quatro meninos espertos na Exposição do Estado Novo”. Jornal Gazeta de
Notícias, Rio de Janeiro, domingo, 2 de julho de 1939. P. 8.
23 Um passeio de quatro meninos espertos na Exposição do Estado Novo. Rio de Janeiro: DNP, 1939. P.
47.
24 Idem. P. 48.
25 Idem. P. 48 e 49.
26 Idem. P. 49.

257
trabalhar, fazendo desordens e matando. Mas isso felizmente ele não consegue no
Brasil27.

O livro segue, então, explicando a suposta “harmonia entre as classes” desenvolvida por
Vargas ao criar as leis trabalhistas e regulamentar o mercado de trabalho no Brasil. Segundo a
publicação, os operários, graças as leis do presidente Vargas, viviam muito bem com os patrões,
trabalhando todos juntos pela prosperidade do país: “O Presidente Getúlio Vargas deu-lhe tudo o que
era de justiça dar. Deu-lhes horas de trabalho, lei de férias, pensões nas enfermidades, aposentadoria
na velhice, garantia no emprego, casa própria e ainda vai dar-lhes salário mínimo” 28 . Segue a
publicação explicando aos leitores mirins a grande diferença entre o comunismo e o Estado Novo:
antes de o presidente Vargas chegar ao poder, os operários viviam em greve, reclamando direitos,
queixando-se de misérias e abandonando as fábricas. Muitos deles ainda eram “enganados” pelos
comunistas, com a falsa promessa de que a vitória do comunismo no Brasil levaria a um mundo de
coisas maravilhosas. Segundo o livro, tal promessa era inteiramente impossível e falsa:
– Ao contrário disso e apesar das suas promessas, o comunismo não tem dado nada
aos operários. Na Rússia, o único pais cujo governo infelizmente está nas mãos dos
comunistas, o que se vê é operário escravizado e morrendo de fome e frio porque
não encontram trabalho, enquanto seus filhos, como aquele menino que Joaozinho
viu chorando naquela fotografia, ficam abandonados nas ruas, ficam uns vadios,
acabam furtando, criminosos dos piores crimes.
– Que pena!
– Pois é, Joãozinho. Que pena! Como eu dizia, neste grande livro está o que o
comunismo quer tão diferente do que o Estado Novo está dando aos brasileiros, sem
precisar prender nem matar ninguém29.

Por fim, após descrever a contribuição do governo Vargas para o mundo do trabalho, o espaço
final do livro Um passeio de quatro meninos espertos da exposição do Estado Novo dedicado ao
pavilhão anticomunista é encerrado com explicações sobre questões morais envolvendo a
“preservação das famílias”, algo com o qual, segundo a publicação, o comunismo queria acabar:
– Vejam aqui, nestes dizeres do livro grande: os comunistas querem acabar com a
família. Querem que você, Zézinho, seja afastado do seu papai e da sua mamãe, que
não queira mais bem aos seus irmãos e não goste dos seus parentes. Não querem
que exista religião nem Deus e querem acabar com a nossa bandeira, tão bela, a
mais bela do mundo e tão amada por todos os brasileiros. Em lugar da nossa
bandeira, eles querem uma bandeira vermelha, vermelha como fogo e sangue, os
seus grandes aliados! Agora, Tonico, pergunto-lhe: você, que é um menino bom e
inteligente, você poderá estar de acordo com isso? – Deus me livre, Dona Maria!
Quero que a nossa bandeira continue a existir, verde e amarela como sempre foi, a
mais bonita e a mais querida de todas as bandeiras do mundo! 30.

27 Idem.
28 Idem. P. 51.
29 Idem. P. 52 e 53.
30 Idem. P. 53.

258
Para convencer os leitores mirins brasileiros do perigo que representaria o comunismo, o livro chega
ao ponto de utilizar algo que sensibilizaria significativamente as crianças: o Natal e a possibilidade
de não existir mais a visita anual do Papai Noel:
– Venham aqui agora. Estas fotografias que vocês estão vendo foram tiradas nas
ruas de Moscou. São fotografias de homens, de mulheres e de crianças andando a
toa pelas ruas, sem casa e sem destino, famintos e tiritando de frio. Não têm casa,
nem onde comer. Morrem pelas ruas e pelas ruas ficam os seus cadáveres, sem que
ninguém se incomode.
Quando os comunistas tomaram conta do governo da Rússia, o povo começou logo
a sofrer toda sorte de privações. Quem fizesse a menor reclamação era condenado à
morte. Muitas coisas boas e bonitas da vida dos meninos foram proibidas.
– O Papai Noel, por exemplo. Todo menino gosta da Festa de Natal, uma festa boa,
na qual todo mundo, mesmo as pessoas grandes, recebem presentes. Seu pai não dá
um presente à sua mãe, Gustavinho?
– Dá, Dona Maria! E o Papai Noel é quem me dá!
– E sua mãe dá também um presente a seu pai. Para dar presentes aos meninos tem
Papai Noel, velhinho, de barbas brancas, com o saco cheio de brinquedos e
chegando devagarinho, pisando de mansinho, para não acordar os meninos. Quanta
alegria quando a gente olha de manhã para os sapatos e eles estão cheios de
brinquedos!
Pois os comunistas acabaram com o Papai Noel e com a linda e gostosa festa do
Natal.
Os meninos da Rússia hoje não têm mais Papai Noel. Estão proibidos de receber
presentes de Papai Noel. Em todos os países, há Papai Noel, menos nos países dos
comunistas. E agora, “seu” Joãozinho, você gostaria de morar num país assim?
– Nem me pagando, Dona Maria!”31.

31 Idem. P. 55 e 56.

259
O Conceito De Memória Em Arendt

André Luis de Souza Alvarenga 1

Resumo: A pesquisa proposta tem como objetivo apresentar o campo discursivo da memória social
fundamentado na teoria política da filósofa Hannah Arendt, especificada em três momentos de seu
pensamento: a tradição; o absoluto; e o início. Arendt nasceu na Alemanha e viveu o processo que
ela denominou de totalitarismo, relatado em sua principal obra, Origens do Totalitarismo, de 1951.
Desta maneira, através da análise imanente da obra da autora, a proposta é investigar o caminhar da
norma sustentada pelo fio perdido da tradição, seu exercício concreto alcançado no totalitarismo e
uma possibilidade de escape deste movimento a partir da premissa agostiniana, do propósito do
Homem, recordada incessantemente por Arendt em suas obras.

Palavras-chave: Arendt. Memória. Política.

Abstract: This research aims to present the discursive field of social memory based on the political
theory of the philosopher Hannah Arendt, specified in three moments of his thought: the tradition;
the absolute; and the beginning. Arendt was born in Germany and lived the process she called
totalitarianism, reported in her main work, Origins of Totalitarianism, from 1951. By the immanent
analysis of the author's work, this research investigates the path of the norm sustained by the wire
lost in tradition, its concrete exercise achieved in totalitarianism and a possibility of escape from this
movement from the Augustinian premise, the purpose of Man, often remembered in his works by
Arendt.

Keywords: Arendt. Memory. Politics.

DESENVOLVIMENTO

De início, parece-nos importante a interpretação do conceito de tradição nas obras de Arendt.


Para a filósofa, o surgimento do que a autora determinou como totalitarismo foi causado pela perda
do fio que conduzia a tradição. Logo, a primeira indagação que nos surge é: de que modo a autora
induz à armação filosófica de que o esquecimento do fio que conduzia a tradição pôde ter
possibilitado o surgimento daquilo que ela denominou de totalitarismo? Em seguida, torna-se
importante o conceito de “absoluto”. O conceito de “absoluto”, na visão da autora, passa a existir na
medida em que a política se torna um meio para um fim específico, teleologicamente guiado para
que se atinja determinada necessidade histórica ou da natureza, ignorando a experiência concreta dos
homens. Neste sentido, de acordo com a filósofa, o conceito de “absoluto” recebeu um caráter

1 Especialista em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Membro
Pesquisador do Instituto de Pesquisa Histórica e Ambiental Regional – IPHAR. E-mail: prof.andre1305@gmail.com.

260
definitivo e pleno no totalitarismo. Desta maneira, como compreender o “absoluto”, que coloca de
lado a experiência concreta da realidade em nome da realização de uma necessidade histórica ou da
natureza? Por fim, seguindo as perguntas já feitas, devemos investigar o conceito de “início”. Sabe-
se que o conceito de “início” tornou-se caro à autora, em suas célebres lembranças da frase
agostiniana, em A Cidade de Deus, de que “o propósito de criação do Homem era de tornar possível
um começo”. Partindo da premissa agostiniana, de que modo o “início” de Arendt pode proporcionar
uma suposta superação dos valores totalitários?
Com a pesquisa alicerçada nestes três conceitos elaborados pela filósofa no decorrer de suas
obras, o questionamento principal da pesquisa proposta é: o que Hannah Arendt pode colaborar ao
fecundo campo da memória social? Para tanto, partindo da análise imanente da obra da própria
autora, deixaremos que a pesquisa nos mostre os resultados. É importante ressaltar, antes de tudo,
que a memória social pode ser entendida como a construção do processo dinâmico da vida social,
um campo conflituoso onde se situam inúmeros processos de articulação de lembranças e
esquecimentos, bem como processos traumáticos, dos distintos atores sociais, semelhante ao campo
da política, pensado pela filósofa. A importância do uso da memória social manifesta-se na medida
em que as

[...] práticas mnemônicas sempre existiram ao longo de todo o processo da


humanidade. Ao mesmo tempo, a memória social é um construto em voga na
contemporaneidade, marcada por relações efêmeras nas quais há um constante jogo
de visibilidade/invisibilidade, na tensão entre a lembrança e o esquecimento, na sua
relação com o passado, o presente e o futuro, passado concebido ora de forma
retrospectiva e/ou melancólica, ora prospectiva, aberto à imprevisibilidade. [...] com
seu poderoso filtro de lembrar e esquecer, [a memória] reconstrói tais experiências
de modo que o Homem produza alternativas de, a partir do passado, vislumbrar o
horizonte futuro. (FARIAS, 2012, p. 8)

Porém, antes de investigarmos a relação da memória social com a teoria política de Hannah
Arendt, que gira em torno da temática do totalitarismo, devemos entender brevemente o caminhar
pessoal e intelectual da autora. Por este motivo, é possível perceber que o ano de 1943 foi decisivo
no caminhar pessoal e intelectual de Hannah Arendt. O choque que viveu ao tomar conhecimento
dos campos de extermínio nazistas naquele ano constituiu o ponto de partida e a motivação de toda
a sua obra. Origens do Totalitarismo, escrito nos anos subsequentes de sua perturbadora descoberta,
em 1951, representou, naquele instante, de acordo com a própria autora, a única saída viável para
lidar com essa experiência. Em um relato em A Dignidade da Política, no capítulo Compreensão e
Política, rebatendo as críticas que recebeu naquele momento, afirmou que compreender o
totalitarismo não significava perdoá-lo. Disse que a compreensão, que é um esforço intelectual que
nunca cessa, felizmente, não era uma condição para uma urgente luta contra os regimes totalitários.

261
Apesar disso, afirmou, também, que a ausência da compreensão dos crimes praticados pelo
totalitarismo impossibilitaria a reconciliação com o mundo como uma morada habitável para a
humanidade. Para a filósofa, a vida seria mais insuportável se o pensamento não pudesse atribuir um
peso e um significado a esses acontecimentos, até então inéditos, de acordo com suas análises.
Para Arendt, a reconciliação com o mundo possui um sentido de inovação, de um novo
começo, termo que lhe custou caro. A busca pela reconciliação de Arendt com o mundo, em Origens
do Totalitarismo, de 1951, chamou a atenção do público e a sua repercussão foi imediata. Críticos
apontavam uma conotação emocional na obra. No entanto, essas críticas não impediram de ser
reconhecida a firmeza argumentativa do livro. Respondendo às críticas, Hannah Arendt afirmava
que toda atividade intelectual tem o seu início no contato com os acontecimentos reais. Tratava-se,
antes de tudo, de embates do pensamento com os incidentes da experiência concreta, dos quais não
poderíamos extrair uma verdade definitiva e, menos ainda, alguma teoria para a vida prática. É válido
ressaltar que, durante uma palestra a respeito da sua vida acadêmica, Arendt afirmou que nunca
esteve realmente interessada em agir, mas que devia seu respeito àqueles que estavam interessados
em fazer alguma coisa. Voltava a afirmar que a brutalidade dos regimes totalitários desafiava os
padrões tradicionais, por conta de sua inovadora “política da morte” e, por isso, deveriam ser
compreendidos acima de tudo.
A compreensão da filósofa a respeito da ascensão dos regimes totalitários na Europa não constituiu,
como se costumava dizer na época, em um excesso de autoridade política, mas sim, em seu
contraponto, na sua ausência. Para ela, a identificação do totalitarismo como uma forma de
autoritarismo estava associada com uma visão distorcida da política, visão muito corrente no período
do pós-guerra. A população, principalmente a europeia, que mantinha viva a lembranças dos horrores
praticados durante a guerra, reconhecia na expansão do aparato estatal um aumento da autoridade,
localizando o Estado como sendo a sede da política. Partindo desta perspectiva, é natural que a
oposição ao totalitarismo estivesse acompanhada de alguma forma de repúdio à política. Hannah
Arendt acusa que a crescente figura de um Estado apolítico, nas décadas seguintes, acompanhada
pela expansão das sociedades de consumo, foi responsável pela alteração e mudança em relação aos
assuntos políticos. A interpretação da filósofa a respeito do totalitarismo era diferente, para não dizer
distante. Para ela, os movimentos totalitários obtiveram sucesso, juntamente com as ideologias do
racismo, movidas pelo imperialismo, e o antissemitismo, o ódio contra judeus, no caso alemão, pois
souberam tirar proveito do vazio de poder deixado pela falência da autoridade política tradicional
que, na prática, vinha sendo garantida desde a fundação de Roma.
De acordo com Hannah Arendt, para existirem enquanto tais, os regimes totalitários necessitam
buscar a massificação da população, liquidando todas as formas tradicionais de associação humana,

262
como os grupos de interesses, classes, etc. Para ela, o surgimento das massas no cenário político do
século XX, século do surgimento das ideologias totalitárias, possui íntima relação com o processo
de alienação do mundo que atravessou toda a Era Moderna desde o seu início, sobretudo, após a
queda da autoridade religiosa, como fator que oferecia certa durabilidade e estabilidade às coisas do
mundo. O processo de alienação na Era Moderna pode ser entendido através da gradual inserção da
esfera privada na esfera pública, principalmente, da esfera econômica na esfera política. Em vista
disso, é importante demarcar, de acordo com Arendt, os passos que levaram ao processo de alienação
e, consequentemente, de massificação, dos homens, na Era Moderna, possibilitando a chegada ao
poder das ideologias totalitárias na Europa. Segunda a autora, em A Condição Humana, de 1958,
três eventos (a Reforma, a descoberta do Novo Mundo e a invenção do telescópio) marcaram o início
da Era Moderna e sua consequente, e inicial, alienação do mundo, que viria se intensificar nos séculos
seguintes. A Reforma, encabeçada por Lutero, na atual Alemanha, alcançou consequências
impensáveis em sua época, ultrapassando as questões teológicas e políticas que a moveram naquele
instante. Acabou contribuindo, para a alienação do mundo, de acordo com Arendt, com a
expropriação dos bens monásticos da Igreja. Essa expropriação levou ao empobrecimento uma
enorme massa de camponeses, que foram deixados à míngua, em uma situação que, destituídos de
um lugar próprio no mundo, foram expostos, às necessidades da vida, isto é, à questão social. Essa
exposição às imperatividades da vida forçou essa massa de camponeses a vender a sua força de
trabalho para garantir sua sobrevivência. Essa massa, em seguida, veio a servir de mão-de-obra para
estimular a Revolução Industrial em meados do século XIX, primeiro na Inglaterra e, posteriormente,
no restante da Europa e do mundo. Além disso, essa massa fora abrigada, posteriormente, no final
dos oitocentos e início dos novecentos, de forma precária, em nacionalidades europeias, servida
como peça nos projetos nacionalistas.
Foi essa população, segundo Hannah Arendt, de homens solitários, sem um espaço que poderiam
chamar de “seu”, sem um vínculo com alguma comunidade que lhe garantisse seus direitos básicos,
comprimidos uns contra os outros, isto é, desprovidos de proteção privada, como os apátridas, que
constituiu alvo principal das doutrinas empregadas pelos movimentos totalitários nos anos
subsequentes. O totalitarismo apareceu para esses homens e mulheres como uma oportunidade de
fuga da realidade, que foi, de acordo com Arendt, uma fuga suicida. Desse modo, as ideologias
totalitárias foram capazes de motivar emocional e intelectualmente uma mobilização política. Para
André Duarte, comentador de Arendt, este período “[...] produziu o ‘espaço vazio’ em que surgiu
uma vasta camada de homens desprovidos de laços e ‘interesses comuns’, os quais se tornaram o
centro nevrálgico do totalitarismo.” (DUARTE, 2000, p. 44)

263
É, neste momento, em que a filósofa faz a distinção entre os conceitos de “isolamento” e de
“solidão”. Segundo Hannah Arendt, a vida dos homens no isolamento é caracterizada pela vivência
em regimes tirânicos e/ou ditatoriais, onde os homens se escondem do tirano e/ou do ditador em seus
lares. Já na solidão, a filósofa afirma ser sentida, semelhantemente, na velhice e na proximidade com
a morte, representada na impotência política e pela retirada, ou seja, o desaparecimento, do mundo
das aparências onde todos podem ser vistos e ouvidos. Neste sentido, o conceito de solidão é chave
fundamental para entendermos os regimes totalitários, que adentram até mesmo o espaço privado
dos homens, controlando-os de todas as maneiras possíveis com suas técnicas, impossibilitando
qualquer espécie de julgamento e, por isso, de diálogo, atividades necessárias para a ação política.
Resumidamente, as tiranias e/ou as ditaduras provocam medo nas populações – que buscam se
resguardar em seus espaços privados, mesmo não participando da vida política. Diferentemente das
tiranias ou das ditaduras, o totalitarismo é mais difuso e eficaz do que, como afirma Arendt, uma
arma apontada contra alguém. Afinal, o totalitarismo rompe, de acordo com a pensadora, com a
instrumentalidade da violência, conceito trabalhado em Sobre a Violência, de 1970. O totalitarismo
produz aquilo que Arendt chamou de “terror”. Para a pensadora

o terror não é o mesmo que a violência; ele é, antes, a forma de governo que advém
quando a violência, tendo destruído todo o poder, em vez de abdicar, permanece
como controle total. Tem sido observado que a eficiência do terror depende quase
totalmente do grau de atomização social. Toda forma de oposição organizada deve
desaparecer antes que possa ser liberada a plena força do terror. Essa atomização
[...] é sustentada e intensificada por meio da ubiqüidade do informante, que pode se
tornar literalmente onipresente porque já não é mais um mero agente profissional a
soldo da polícia, mas, potencialmente, qualquer pessoa com quem se tenha contato.
(ARENDT, 2016, p. 72-73)

No totalitarismo, também, a tradicional visão a respeito das leis, como uma forma de
estabilidade em um mundo incerto das ações humanas, de acordo com a filósofa, é transposta por
uma Lei Superior, que reflete uma suposta necessidade histórica ou da natureza. Neste sentido, a
afirmação da superioridade de um grupo humano sobre outro não foi apenas possível, como era
inevitável. Para Arendt, o aspecto doutrinador de uma ideologia, que se caracteriza pelo desprezo da
experiência concreta, parte de uma única ideia que deve ser, como relatado em Origens do
Totalitarismo, obra de 1951, “suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas e
bastante ampla para orientá-las nas experiências e situações da vida moderna”. O movimento
realizado pela brutalidade das ideologias deve, segundo Arendt, fornecer mecanismos para a
realização de uma Lei da História, eliminando todos os seus entraves no caminho de sua realização,
como ocorreu com os judeus na Alemanha nazista. Na perspectiva de André Duarte, para Arendt, “o
grande risco dessa concepção da história [...] é a de que ela pode implicar a subordinação do homem

264
[...] a forças e tendências inexoráveis e incontroláveis” (DUARTE, 2000, p. 40). Desta forma, o
regime totalitário é capaz de promover, através do movimento da Lei da História, que é, por sua vez,
proclamado pela sua brutalidade, o que a autora chamou de “domínio total”. A eliminação dos
indesejados nos campos de extermínio totalitários, principalmente nazistas, acontecia, de acordo com
a filósofa, em três etapas.
Em um primeiro momento, ocorria a morte jurídica do Homem. Neste instante é importante
pensarmos, como um exemplo, inclusive, vivido e proposto por Hannah Arendt: a figura do apátrida.
Semelhantemente, a anulação jurídica do Homem nos regimes totalitários pôde ser percebida na
efígie do “criminoso que não cometeu crime” algum, muito menos um crime político. Sem nenhuma
acusação formal, no totalitarismo, as pessoas indesejadas eram enviadas aos campos de concentração
e, até mesmo, de extermínio, para que a ideologia totalitária fosse garantida. A anulação da figura
jurídica do Homem favoreceu a invisibilidade que se passava no interior dos campos de extermínio.
Ao ingressarem em uma dessas “fábricas da morte”, apagavam-se os últimos laços que os indivíduos
possuíam com o mundo, sua presença estava apagada. O passo seguinte da implantação do “domínio
total”, de acordo com Arendt, foi a destruição da moral dos indivíduos. A própria organização e
logística dos campos incentivavam e, muitas das vezes, levavam à colaboração, à delação e, até
mesmo, obrigavam os próprios prisioneiros a participarem das execuções de seus respectivos
companheiros. Neste sentido, o senso de comunidade, a consciência moral, fora desafiada
intensamente, e fazer o bem, se tornou quase impossível. O terceiro e último passo do “domínio
total” apontado pela filósofa, que visava à transformação de indivíduos em “mortos-vivos”, foi a
destruição da própria individualidade e, consequentemente, da espontaneidade humana, requisito
fundamental para a liberdade política. Não é por menos que Hannah Arendt ficou impressionada
com as cenas de, como ela afirma, em Origens do Totalitarismo, obra de 1951, “procissões de seres
humanos que vão para a morte como fantoches”. A destruição de toda a capacidade de reação e,
consequentemente, a inevitável promoção do automatismo, começava no transporte dos prisioneiros
nos trens de carga, passando pela uniformização do tratamento nos campos, recebendo seu desfecho
no assassinato em massa nas câmaras de gás. Os condenados à morte se multiplicavam idênticos,
sem que se pudesse discernir entre eles qualquer traço de individualidade ou espontaneidade. De
acordo com a filósofa, com a arbitrariedade produzida no totalitarismo,
[...] vemos a tentativa quase deliberada de construir, em campos de concentração e
câmaras de tortura, uma espécie de Inferno terreno, cuja diferença principal em
relação às imagens medievais do Inferno reside em melhorias técnicas e na
administração burocrática – mas também em sua falta de eternidade. (ARENDT,
1993, p. 70)

265
Assim, do ponto de vista prático, a chegada das ideologias totalitárias no poder foi possível
por conta da adoção de critérios instrumentais nas atividades humanas durante toda a Era Moderna,
culminando nas elaboradas técnicas dos campos de extermínio. Na perspectiva de Arendt, do ponto
de vista do pensamento político, a subida do totalitarismo ao poder deu-se por conta da crise da
tradição e, consequentemente, de sua autoridade política, categoria do pensamento político mais
antiga do Ocidente, nascida, em sua concretude, durante a fundação de Roma, e que possibilitava,
desde então, uma referência ao Homem, no que diz respeito às tomadas de decisões na sociedade.
Hannah Arendt também buscou esclarecer, mas não conservando ou invalidando, os aspectos a
respeito da tradição, mencionada em suas obras: sua crise, do ponto de vista do pensamento político,
e seu desdobramento na direção mencionada dos regimes totalitários, do ponto de vista prático. Neste
sentido, para a filósofa,

já não podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e
simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente
considerá-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento.
A corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa
tradição. Essa é a realidade em que vivemos. E é por isso que todos os esforços de
escapar do horror do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda
eventualmente intacto ou no antecipado oblívio de um futuro melhor, são vãos.
(ARENDT, 1989, p. 13)

De acordo com a filósofa, rastrear quando a política foi concebida como um estatuto, isto é,
como uma referência, dotada de um fim pré-estabelecido, significaria rastrear o aparecimento da
noção da autoridade, de uma regra, e o desaparecimento da dignidade na tradição do pensamento
político ocidental. No ensaio O Que é Autoridade, na obra Entre o Passado e o Futuro, de 1961, a
filósofa aborda o aparecimento e a genealogia da autoridade na tradição do pensamento político
ocidental, que culminou, em sua ruptura, na subida ao poder das ideologias totalitárias. Em sua
análise, Hannah Arendt encontrou as primeiras formas centradas na experiência de uma referência
e, por isso, de um absoluto, em A República, do filósofo grego Platão, mais especificamente, no mito
da caverna que, posteriormente, foram colocadas em prática após a fundação de Roma e, em seguida,
repensada com a Igreja Católica, sendo legadas pela filosofia de Nicolau Maquiavel e restauradas
com as experiências dos movimentos revolucionários durante a Era Moderna, como fora mostrado
em Sobre a Revolução, de 1963, principalmente na França, sobretudo após o emblemático ano de
1848, e, posteriormente, nos Estados Unidos. Segundo a pensadora,
[...] existem muitas maneiras de interpretar a configuração histórica em que teve
aparecimento o incômodo problema de um absoluto. Quanto ao Velho Mundo,
mencionamos a continuidade de uma tradição que parece nos conduzir diretamente
aos últimos séculos do Império Romano e aos primeiros séculos do cristianismo,
quando, depois que o “o Verbo se tornou carne”, a encarnação de um absoluto
divino na Terra foi representada inicialmente pelos vigários do próprio Cristo, pelo

266
bispo e pelo papa, aos quais se sucederam os reis que invocavam direitos divinos
para a realeza, até que por fim à monarquia absoluta se sucedeu a soberania não
menos absoluta da nação. (ARENDT, 2011, p. 251)

Finalmente, de acordo com Hannah Arendt, a autoridade política tradicional, que caminhara,
em sua concretude, desde a fundação de Roma, veio à falência no pensamento do mundo
contemporâneo. O esgotamento da autoridade no pensamento político fora, na visão da filósofa,
apenas uma parte de uma ampla crise que atravessou toda a Era Moderna. Em A Condição Humana,
obra de 1958, no capítulo A Vita Ativa e a Era Moderna, a filósofa afirma que o advento da Era
Moderna resultou no aparecimento de um homem alienado de seu mundo, que antes lhe era comum.
Segundo ela, essa alienação pode ser descrita de duas formas: uma prática; e outra teórica. De um
lado, na prática, o avanço das ciências deslocou o ponto de referência da compreensão de toda a
realidade da Terra para um Universo infinito – a invenção do telescópio por Galileu, já citada, teria
sido responsável por isso. Além disso, a descoberta dos novos continentes, um dos momentos
inaugurais da Era Moderna, segundo a filósofa, conduziu o Homem para o avanço da técnica e da
instrumentalidade, encurtando distâncias e possibilitando a realização de façanhas nunca antes
imaginadas. De outro lado, teoricamente, o pensamento político moderno, por conta do ganho de
notoriedade da dúvida, voltou a sua mentalidade e atenção do mundo exterior para o interior do
homem, acentuando o individualismo e o subjetivismo nas tomadas de decisões na sociedade. Os
acontecimentos descritos acima, juntamente com a Reforma, também já citada e explicitada, e outros,
que não ganharam menção nas obras de Arendt, possibilitaram a perda de confiança da capacidade
receptiva dos sentidos humanos e, consequentemente, da recepção de uma verdade que os conduzisse
no mundo, resultando no surgimento da dúvida como um ponto de partida para as tomadas de
decisões no mundo. Esse momento histórico ficou marcado, segundo a autora, pela frase do filósofo
René Descartes, onde o Homem moderno teria “caído em águas muito profundas da dúvida, sem
poder nadar nem firmar os pés no fundo”. Desde então, a dúvida assombrou toda a história da Era
Moderna. Essa preocupação, de acordo com Hannah Arendt, não cessaria nos séculos seguintes e a
incerteza de garantias, de que aquilo que se tomava como verdade não fosse uma mera ilusão, tomou
conta do Homem. Tal sentimento de instabilidade possibilitou com que o Homem buscasse a
tradicional referência cognitiva que, desde a filosofia platônica, estava alicerçada na contemplação
de um mundo transcendente e/ou de um tempo adâmico, com aquilo que, em sua época, estava ao
seu alcance – a técnica e a instrumentalidade. Por este motivo, Hannah Arendt ressalta que
o fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais
tenham perdido seu poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes
parece que esse poder das noções e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico
à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia a memória de seu início;
ela pode mesmo revelar toda sua força coerciva somente depois de vindo seu fim,
quando os homens nem mesmo se rebelam mais contra ela. (ARENDT, 2013, p. 53)

267
A busca por estabilidade em um mundo de constantes transformações, de
mudanças/reacionarismos, como fora a Era Moderna, ocorreu, de acordo com Hannah Arendt, por
meio dos aparatos técnicos, possibilitando o surgimento daquilo que a autora chamou de Homo
Faber, isto é, um homem voltado, especificamente, para a atividade do trabalho. O Homo Faber,
para ela, duvidoso a respeito da apreensão da realidade, estaria seguro apenas ao conhecer aquilo
que ele mesmo fabrica, compreendendo o acesso a verdade como um ato de intervenção na realidade,
através dos aparatos técnicos. Neste período que, de acordo com a filósofa, a posição de autoridade
na Terra, que antes era legada aos deuses e/ou ao inalcançável, foi transmitida ao ser humano e à
técnica. Não é por menos que, o trabalho, juntamente com seu produto prático, a fabricação,
destacou-se como a mais admirável atividade do Homem. Apesar disso, a figura do Homo Faber foi,
para Hannah Arendt, rapidamente substituída por outra com a chegada dos movimentos totalitários
na contemporaneidade: o Animal Laborans. Para a filósofa, se o Homo Faber é um homem voltado
à atividade do trabalho que, do ponto de vista politicista, não é espontâneo, mas sujeito
teleologicamente para atingir metas previamente determinadas de um produto ou uma obra, o Animal
Laborans, por sua vez, estaria sujeito à manutenção e reprodução da vida, em seu termo estrito e,
desta forma, representando uma parte da cadeia evolutiva das espécies animais, que é presa ao ciclo
vital da sobrevivência e propensa à imortalidade. Neste instante, de acordo com Hannah Arendt, com
a chegada das ideologias totalitárias ao poder, como o nazismo na Alemanha, a atividade do labor
fora elevada à posição da atividade mais valiosa da vita ativa do Homem. Por fim, a autora, em suas
obras, chega à conclusão de que, ao mesmo tempo em que a Era Moderna definiu a atividade do
trabalho como uma referência para a orientação dos homens, em seguida, acabou por arruiná-lo, com
a chegada dos mecanismos e das ideologias totalitárias, cedendo espaço à atividade do labor. Em
meio a essa entropia na política, a solução deste impasse, desta busca por uma estabilidade, isto é,
de um absoluto, foram as monstruosidades cometidas pelos regimes totalitários.
Para a pensadora judia, contrária a toda determinação imposta pela ideologia totalitária,
manifestada, principalmente, na Alemanha, no início do século XX na Europa, estava a
espontaneidade e, consequentemente, a liberdade política, faculdades exclusivas do Homem. Esta
última, só pode ocorrer quando os homens estão reunidos, em pé de igualdade, em um espaço
público, praticando a atividade da ação, a matéria da vida política, diferente das atividades do
trabalho e do labor, possíveis no isolamento. A atividade da ação, para Arendt, só pode se efetivar
e, consequentemente, amparar a política, na medida em que o Homem aprimora a sua capacidade de
conscientização, isto é, seu pensamento e julgamento, do mundo, atividades da vita contemplativa,
trabalhadas em A Vida do Espírito, obra publicada post-mortem, encontrando-se com outros homens
também livres em um espaço público, ou seja, na pólis. Posto que, é na pólis que encontramos o

268
agonismo de duas forças de pensamento que resultam em um juízo, que caminha ao futuro
indeterminado:

[...] As duas forças antagônicas são, ambas, ilimitadas no sentido de suas origens,
vindo uma de um passado infinito, e outra de um futuro infinito; no entanto, embora
não tenham início conhecido, possuem um término, o ponto no qual colidem. A
força diagonal, ao contrário, seria ilimitada no sentido de sua origem, seu o seu
ponto de partida o entrechoque das forças antagônicas, seria, porém, infinita quanto
a seu término, visto resultar de duas forças cuja origem é o infinito. Essa força
diagonal, cuja origem é conhecida, cuja duração é determinada pelo passado e pelo
futuro, mas cujo eventual término jaz no infinito, é a metáfora perfeita para a
atividade do pensamento. (ARENDT, 2013, p. 38)

Além disso, Hannah Arendt, é importante lembrar, participou de debates que mexeram com
o mundo político da sua época, envolvendo-se no, até hoje, polêmico caso do julgamento de Adolf
Eichmann, em Jerusalém, no ano de 1960. Envolvimento que possibilitou a elaboração de uma de
suas obras que, basicamente, pode ser explicada com o seu subtítulo – Um Relato Sobre a Banalidade
do Mal, publicada em 1963. A banalidade, segundo a filósofa, seria a ausência de pensamento e de
julgamento, pressupostos para a ação que, por sua vez, é matéria da vida política. De acordo com a
filósofa, a banalidade estaria acompanhada de um burocratismo, ou seja, de uma vida sem
questionamentos, amnésica, seguindo ordens pré-estabelecidas. Por isso, de acordo com Eduardo
Jardim, na proposta política arendtiana, a “vida do espírito”, isto é, a vita contemplativa, “[...] retira-
se do mundo pelo pensamento e, em seguida, retorna a ele pelo juízo” (JARDIM, 2011, p. 105),
categorias inexistentes em Eichmann, atestadas pela pensadora em Jerusalém.
Neste sentido, devemos pensar a atividade política, que é sustentada pela ação, de acordo
com a filosofia de Hannah Arendt. Poderíamos optar por vários caminhos, de certo. No entanto, em
sua obra O que é Política, publicada dezoito anos após a sua morte, no ano de 1993, é um dos
caminhos possíveis. A filósofa escreveu a obra com o intuito de desconstruir os preconceitos em
relação à política. A situação política de sua época, em meados dos anos 1950, favorecia uma
avaliação negativa da política, por conta da desilusão a respeito do progresso. Afinal, vivia-se o
ressentimento da destruição causada pela Segunda Guerra Mundial e o medo do fim do mundo com
a disputa pela hegemonia global, durante a Guerra Fria, entre Estados Unidos e União Soviética.
Segunda a autora, na época, acreditava-se que os males causados por esses momentos históricos
eram resultado de uma hiperinflação do âmbito político que, por sua vez, causara uma supressão de
todos os outros âmbitos da vida dos homens, sobretudo, a liberdade. Portanto, de acordo com Hannah
Arendt, a situação a respeito da política deveria ser debatida e colocada em exame. Em seu exame,
para o pensamento corrente da época, as liberdades individuais deveriam ser resguardadas e
protegidas do aparato estatal. Ademais, acreditava-se que a política possuía um caráter moralista,

269
baseado na crença de que liberdade seria sinônimo do livre-arbítrio, concepção oriunda do credo
cristão, e de que a sociedade deveria ser movida pelo sentimento do amor, o mais íntimo e menos
mundano sentimento, ao invés da amizade, sentimento assegurador dos pactos políticos, de modo
que os líderes políticos evitariam o fim do mundo por uma questão de caráter e não por um debate
de natureza propriamente política. De acordo com a autora, alguns acreditavam que a política estava
associada à violência: tanto por parte dos que temiam o desastre de uma guerra nuclear como
daqueles que enxergavam na violência uma forma de libertação. Tais movimentos foram, de acordo
com a filósofa judia, reacionários, na medida em que localizavam a política em meio à violência. A
filósofa afirma que estes movimentos estavam presos aos velhos códigos tradicionais do pensamento
político. Vejamos em suas palavras: “quanto mais forte é o apego dos homens ao antigo código, mais
ansiosos estarão para assimilar o novo; a facilidade com que tais inversões podem se dar em certas
circunstâncias sugere de fato que todos estão adormecidos quando elas ocorrem.” (ARENDT, 1993,
p. 92)
Diante deste cenário, Arendt afirma que a pergunta que se levantava na época era se a
humanidade não se voltaria para a razão e se livraria de vez da política, para não ser, de uma vez por
todas, destruída por ela. A resposta que Hannah Arendt gostaria de responder em seu livro O que é
Política, como vimos, já tinha uma conotação negativa em seus possíveis e futuros leitores. E, nesse
sentido, os preconceitos enraizados sobre a política impediam qualquer espécie de julgamento a
respeito do tema. Nestes casos, na visão de Arendt, as ideias de política e de liberdade entram em
conflito. Em suma, por um lado, havia aqueles que acreditavam que a liberdade só poderia ocorrer
longe do Estado e, por isso, da política. De outro, existiam aqueles que acreditavam que a liberdade
deveria suceder da política que, por sua vez, era um instrumento violento na direção de um fim
previsto, sua plena libertação.
No entanto, para Hannah Arendt, que possuía uma grande influência dos gregos, estava convicta de
que a liberdade é o produto do intra-espaço humano, onde os homens colocam-se em posição de
igualdade, em um espaço público, distintamente, do espaço pré-político, onde os homens visam à
satisfação das suas vontades, como em seus espaços privados. O ingresso para a vida política
dependia da satisfação das necessidades básicas do Homem, suas carências em relação à manutenção
da vida. Sua convicção em relação à inovadora política ateniense rendeu-lhe inúmeras críticas de
estudiosos materialistas, que a classificam como uma pensadora idealista, colocando-a em uma
matriz atenocêntrica. Em sua obra Entre o Passado e o Futuro, de 1961, a autora recorda que, para
o pensamento político grego,

[...] a liberdade era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava a se
mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas

270
em palavras e ações. Essa liberdade, é claro, era precedida da liberação: para ser
livre, o homem deve ter-se libertado das necessidades da vida. O estado de liberdade,
porém, não se seguia automaticamente ao ato de liberação. A liberdade necessitava,
além da mera liberação, da companhia de outros homens que estivessem no mesmo
estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los – um mundo
politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada homem livre poderia
inserir-se por palavras e feitos. (ARENDT, 2013, p. 194)

Por esta razão, para a filósofa, a postulação de um fim determinado na política torna-se um
obstáculo para sua própria realização, que é espontânea, assemelhando-se ao fim previsto da uma
obra e/ou do ciclo vital das espécies animais. Durante a história do pensamento político ocidental,
afirma Hannah Arendt, no decorrer de seus livros, que, lamentavelmente, a visão utilitarista da
política se expandiu e passou a prevalecer no mundo contemporâneo. Ademais, de acordo com a
filósofa, o que define a promessa da liberdade é a distinção entre organismos políticos, alicerçados
na pluralidade humana, e apolíticos, aprisionados em um estado natural e mítico das coisas, como as
sociedades primitivas dependentes de fenômenos naturais considerados deuses que puniam ou
abençoavam os seres humanos.
Não é por menos que, no capítulo O Que é Liberdade, em seu livro Entre o Passado e o
Futuro, de 1961, a autora afirma que, a ação, que é matéria da vida política, “deve ser livre, por um
lado, de motivos, e, por outro, de um fim intencionado com um efeito previsível”. Isso não
significava que motivos deveriam estar ausentes na ação, mas antes que a ação se torna livre na
medida em que é capaz de transcendê-los. É importante lembrar que a defesa da política feita pela
filósofa não pressupõe que as distintas perspectivas não possam ser corrigidas e/ou que não haja um
critério político para serem julgadas. Não é por menos que a lógica do espaço dialogal grego permitiu
a mediação das forças políticas em função da pólis. Por isso, o diálogo político, por oposição ao
poder absoluto, exige que umas e outras forças sejam igualmente submetidas à prestação de contas
no espaço público em que se constitui a pólis. Porém, quando falamos em pólis, em nada estamos
tentando submeter nossas análises às cidades-Estado gregas e em seu espaço físico propriamente
dito, mas à formação do intra-espaço humano no qual a liberdade pode vir a operar.
Como já dito, Hannah Arendt lamentou e, por este motivo, buscou compreender, o rumo que
tomou a política no Ocidente, desde quando Platão, desapontado pela morte de Sócrates, pensou A
República, valendo-se da analogia dos ofícios na vida prática. Neste sentido, as “formas” pré-
visualizadas das obras são reproduzidas por meio de um esforço mimético do artista, de um
demiurgo. Com isso, as “formas” tornam-se um padrão constante, isto é, um absoluto, para o sucesso
ou fracasso humano. Enfim, a analogia platônica reproduz “[...] o comportamento moral e político
no mesmo sentido em que a ‘ideia’ de uma cama em geral é o padrão para fabricar qualquer cama
particular e julgar a sua qualidade” (DUARTE, 2000, p. 194). Para a filósofa, o mito do rei-filósofo

271
inaugurou um caráter instrumental nos assuntos políticos, sendo perpetuado e retomado durante toda
a tradição, mesmo depois de seu esgotamento. Com isso, podemos destacar dois perigos causados
pela instrumentalidade da política apontados pela filósofa: o primeiro seria o impedimento no
reconhecimento cognitivo da dimensão da pluralidade humana no mundo; e, o segundo, seria a
impossibilidade das estruturas sociais darem conta da espontaneidade e imprevisibilidade e, portanto,
da ação humana.
O exame da filósofa a respeito das três atividades humanas da vita ativa está descrito em sua obra A
Condição Humana, lançada em 1958. As três atividades são: o trabalho, o labor e a ação. Para tanto,
Hannah Arendt destaca a obra do autor, como sendo o Homo Faber, que produz ou fabrica seu
produto no isolamento, tendo um fim imaginado. Do ponto de vista político, o autor, que fabrica seu
produto no isolamento, é o tirano, que conduz, de forma isolada, a sociedade de acordo com suas
próprias necessidades. Da forma semelhante, segue a atividade do labor, que é sentida e produz a
manutenção da vida no isolamento. Em contraste com as atividades produtivas e laborais, está a
atividade da ação, que não possui um fim previsto e que sempre precisa da presença de outros homens
para se realizar. Desta maneira, a atividade da ação, que só ocorre entre os homens, produz uma teia
de relações políticas; mesmo que se reconheça que a atividade da ação precisa ser despontada por
uma pessoa específica. Enquanto todo o processo produtivo e laboral se esconde para o aparecimento
da obra e/ou para a manutenção da espécie, isto é, do produto final e/ou da sobrevivência, o Homem
que pratica a ação só aparece na medida em que está no intra-espaço humano, isto é, no espaço
público, onde todos os homens demonstram como, de fato, são. Por isso, segundo Hannah Arendt, a
ação é a única atividade capaz de sublinhar a identidade do indivíduo, dotando-o de dignidade.
Acrescenta ainda que, a ação, diferente do trabalho e do labor, possui um caráter inconversível. Os
processos que a ação produz podem ser sentidos muito depois do indivíduo que a causou ter deixado
o mundo, ou seja, a pólis.
Hannah Arendt afirma também que, para lidar com essa imprevisibilidade da ação, é necessário o
uso do recurso da promessa. A promessa é a base sob a qual pactos e tratados são estabelecidos,
representando uma aposta no valor do discurso humano e uma garantia de estabilidade, mesmo que
por um tempo previsível, nos assuntos humanos. Para ela, o valor do conceito da promessa foi,
teórica e inicialmente, reconhecido na poesia épica do Gênesis, na Bíblia, quando Abraão firmou seu
pacto com deus e, que mais tarde, ganhou forma jurídica, e prática, nas leis romanas. Enquanto a
promessa era uma segurança contra a imprevisibilidade da ação, o recurso do perdão, de acordo com
ela, teria a ver com o seu caráter inconversível, assegurado pela faculdade de iniciar algo novo dos
homens. Por esta razão, o perdão, por proporcionar a liberdade tanto de quem perdoa como de quem
é perdoado, é diferente da vingança, que aprisiona ambos em um passado. A filósofa ainda afirma

272
que, por conta do conceito de perdão ter tido origem religiosa, com os ensinamentos de Jesus, seu
reconhecimento na política foi dificultado durante toda a História.
É possível notar, em seus escritos, que Hannah Arendt repudiava a política como uma forma de
associação com a técnica, que reduz a primeira em mera governança e/ou administração, como
ocorreu no mundo contemporâneo. A filósofa também negava a subordinação da política à moral,
forma associativa de origem cristã, pelo fato de ter restringido a liberdade ao âmbito pessoal do livre-
arbítrio. No entanto, foi com Agostinho de Hipona, um dos pais fundadores da Igreja, que sua
inspiração para a formulação do conceito de “início”, de um novo começo, em suas obras, aconteceu.
De acordo com Hannah Arendt, o conceito de “início”, fundamentado exclusivamente na ação,
matéria da vida política, está intimamente ligado com a noção de milagre. A noção de milagre, apesar
de ter origem religiosa, consiste em uma intervenção abrupta que altera o curso dos acontecimentos
e faz nascer algo de novo, como quando os homens nascem e passam a existir e desafiar um mundo
já posto a eles. Além disso, a filósofa demonstrou que o milagre aconteceu, também, no plano dos
processos naturais da vida no Universo. As súbitas alterações que trouxeram o surgimento da Terra,
da vida orgânica e, consequentemente, do próprio Homem, devem, de acordo com Arendt, serem
vistos como verdadeiros milagres. Pois, trata-se de ocorrências inesperadas em ambientes que os
processos naturais são plenamente previsíveis e condicionados. Na mesma direção, portanto, no
âmbito humano, o milagre recebeu um aspecto próprio, com a obtenção de seu instaurador, daquele
que faz os milagres, isto é, o próprio Homem. Afinal, de acordo com Hannah Arendt, as chances são
esmagadoras do hoje ser igual ao amanhã:

A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre


do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta freqüência que parece
estranho até mesmo falar de milagres. Mas o motivo dessa freqüência está
simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente
interrompidos pela iniciativa humana [...]. (ARENDT, 2013, p. 219)

O Homem, como um agente de iniciativas, suprime a continuidade histórica e traz consigo a


novidade, destruindo a monotonia e implacabilidade da natureza. Para Arendt, essas iniciativas
humanas são o fruto da liberdade, que permanecerá sendo o exclusivo dom humano, enquanto a
condição humana não for alterada. A obra da Hannah Arendt, tendo como base a criação e a
possibilidade de um novo mundo, aparece-nos como um raio de luz que parece iluminar o que ela
chamou, e que foi tema de um de seus livros, publicado no ano de 1968, de “tempos sombrios”.

273
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275
Paraíso Cativo: uma representação literária da lepra e da resistência ao exílio nas ilhas
havaianas

André Luiz de S. Oliveira 1

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o potencial político de uma representação literária
da lepra e da resistência ao exílio forçado no Havaí. No conto Koolau, o leproso, o escritor naturalista
norte-americano Jack London elabora a sua própria versão da chamada Batalha de Kalalau (também
chamada de Leper War) ocorrida em 1893 nas ilhas havaianas, então sob influência dos EUA. Nesta
narrativa, apesar da nítida crítica feita ao avanço imperialista dos “homens brancos” sobre as ilhas,
London parece realçar uma inerente inferioridade racial e incapacidade dos havaianos em
governarem a si próprios. Somado a isto, as representações de loucura e animalidade associadas às
personagens portadores da lepra acaba por perpetuar um estigma milenar acerca da doença.

Palavras-chave: Havaí – Jack London - Imperialismo

Abstract: This article aims to analyze the political potential of a literary representation of leprosy
and resistance to forced exile in Hawaii. In the short-story Koolau the leper, the American naturalist
Jack London elaborates his own version of the so-called Battle of Kalalau (also called Leper War)
which occurred in 1893 on the Hawaiian Islands, then under US influence. In this respect, London
seems to emphasize an inherent racial inferiority and inability of the Hawaiians to govern
themselves. Added to this, as a representation of madness and animality associated with characters
carrying the leprosy, for perpetuating a millennial stigma about the disease.

Keywords: Hawaii – Jack London – Imperialism

O Havaí como paraíso perdido: de monarquia a estado americano

O arquipélago que hoje compõe o estado americano do Havaí2 é composto por mais de 130 ilhas
sendo suas oito principais ilhas: Hawai’i, Maui, O’ahu, Kaua’i, Molokai, Lãna’i, Ni’ihau e
Kaho’olawe. Essas são atualmente as únicas ilhas habitadas. Localizado no hemisfério norte do
Oceano Pacífico, esse arquipélago é coberto por extensos rochedos, montanhas e vulcões que há
milhares de anos deram origem às ilhas. Com uma fauna e flora exuberante, as ilhas seriam palco de
sucessivas representações paradisíacas.

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Email:


andreoliveira1304@hotmail.com
2 Em relação às grafias apresentadas nesse trabalho, utilizarei em português o termo Havaí para indicar
todo o arquipélogo que hoje compõe o estado americano. Para me referir a maior ilha do arquipélogo, Hawai’i, manterei
a grafia em língua havaiana com a permanência das oclusões glotais (‘). Tal procedimento nos auxiliará a diferenciar o
arquipélago e a ilha, bem como nos aproxima do vocabulário havaiano, seus usos e sentidos peculiares. Outros termos
serão empregados em havaiano e grafados em itálico.

276
A teoria migratória mais aceita para o início do povoamento das ilhas havaianas é a migração de
povos polinésios vindos do Pacífico Sul, entre eles do Taiti, que trouxeram consigo suas genealogias,
memorizadas em formas de cantos, costumes e crenças. Eles seriam os primeiros a representar o
Havaí como um mundo paradisíaco. Esse imaginário edênico seria retomado pelos exploradores
ocidentais.
A existência das ilhas havaianas se tornou conhecida pelos europeus somente na segunda metade
do século XVIII, no fim da era de exploração do Pacífico. De acordo com Gavan Daws (2015), o
primeiro ocidental a entrar no Pacífico foi Fernão de Magalhães, navegador português considerado
pioneiro em viagem de circum-navegação que logo seria seguido por espanhóis, alemães, franceses
e ingleses. No entanto, foi o capitão inglês James Cook que, após duas grandes viagens ao Pacifico
Sul chegou às ilhas havaianas. Até então, o Pacífico Norte era dominado pelos espanhóis, que
controlavam as Filipinas e outras centenas de pequenas ilhas no Pacífico ocidental que se tornaram
conhecidas coletivamente como Micronésia. Assim como em suas duas primeiras viagens ao
Pacífico Sul, Cook encontrou ilhas já povoadas. Na terceira viagem em que ele encontra o Havaí não
foi diferente. Em 18 de janeiro de 1778, ele alcança parte da cadeia de ilhas que compõem o Havaí 3:
primeiramente O’ahu, seguido de Kaua’i e Ni’ihau. O arquipélago, no entanto, não estava
desabitado. Uma complexa rede de poderes estava em pleno desenvolvimento.
Dentre um dos mais poderosos chefes guerreiros nativos das ilhas havaianas destacou-se aquele que
unificaria, após diversas batalhas, o reino do Havaí (1810), Kamehameha I. A guerra representava
um caminho comum que levava um líder nativo ao poder. Foram necessários anos de batalhas (1782
– 1810) para alcançar a unificação do reino, derrotando outros líderes locais que se opuseram ao seu
domínio. Kamehameha I teve seu governo (1810-1819) marcado pelo tempo de paz e por sua hábil
capacidade de lidar com os haole (estrangeiros). Com sua morte, em 1819, seu filho de apenas 22
anos, Liholiho (Kamehameha II), assumiria o governo sob pressão dos haole para a formalização da
herança de terras. Em 1825, uma nova lei abriria caminho para os interesses dos residentes
estrangeiros. Kamehameha II, ainda jovem e guiado pelo Conselho dos Chefes, fortemente
influenciado pelo britânico Lord Byron, adotou uma política formal permitindo os ali’i (chefes locais)
a transferir terras retidas a seus herdeiros. Esse era um direito ideologicamente já assumido, mas não
legalmente formalizado. Por extensão, estrangeiros da Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos
acreditaram que também tinham o direito individual de posse e propriedade das terras que eles
ocupavam. Assim, à revelia da lei havaiana, haole negociavam títulos de terra.

3 As oito principais ilhas que compões o atual estado americano do Havaí são: Hawai’i, Maui, O’ahu,
Kaua’i, Molokai, Lana’i, Ni’ihau e Kaho’olawe.

277
Sob o reinado de Kamehameha II, iniciaria-se o declínio do sistema religioso havaiano. Sua mãe,
Ka’ahumanu, esposa do primeiro rei do Havaí, exerceria sobre ele grande influência para a difusão
do cristianismo e deposição do sistema kapu (um conjunto elaborado de proibições e regulamentações
que permeava o cotidiano dos nativos havaianos que perpassava a política, a adoração religiosa, sexo,
“posse” de terra, cultivo, alimentação e até mesmo jogos). Violar o kapu, mesmo que acidentalmente,
poderia significar o fim da própria vida. Durante seu reinado, Liholiho (Kamehameha II) enviaria
missionários para todos os distritos do Havaí ordenando a dessacralização dos heiau (templos) e a
deposição de todas as imagens dos deuses havaianos.
Nas décadas de 1830 e 1840, havia três fortes influências sobre o Pacífico: a Grã-Bretanha, a
França e os Estados Unidos. Um intelectual havaiano afirmaria em 1837: “Se uma grande onda vem,
grandes e desconhecidos peixes virão do grande oceano negro e quando virem os pequenos peixes
do litoral irão devorá-los” (GAVAN, p. 146, tradução nossa). O governo de Kamehameha III
possibilitou uma ascensão do cabinete de homens brancos no governo. Seus privilégios de residência,
seu direito a completa naturalização, liberdade econômica e religiosa, acesso às cortes entre outros
forçava cada vez mais a “ocidentalização” do governo e permitia que estrangeiros agissem com
imunidade e à revelia das decisões monárquicas. Seus sucessores não conseguiriam frear o avanço
dos interesses externos nas ilhas, especialmente dos empresários norte-americanos.
Em 1887, um grupo que se auto intitulava “Liga Havaiana” formada por empresários e
descendentes de missionários impuseram o que ficou conhecida como a Bayonet Constitution ao rei
Kalakaua. Este documento removia efetivamente o poder da monarquia havaiana colocando-o nas
mãos dos interesses ocidentais – destacadamente americanos – protegendo seus negócios e
propriedades. A privatização da terra já era uma realidade para o estrangeiro e a produção de açúcar
se tornou alvo de interesse americano – ainda sob controle do reino. Este parecia ser o último
obstáculo a ser superado para o controle dos haole, que se tornavam cada vez mais numerosos e se
fortaleciam com o número decrescente de havaianos (muitos deles mortos com as sucessivas
epidemias que atingiram a população nativa) e o discurso fatalístico de que não seriam mais capazes
de se autogovernar e estavam fadados ao desaparecimento. Muitos escritores que viajaram pelo
Havaí na segunda metade do século XIX caracterizavam-nos como uma “dying race” (“raça
moribunda”). Esse discurso fortaleceria ainda mais a oligarquia branca que se mobilizaria para a
deposição da rainha Lili’uokalani (irmã do rei Kalakaua) em 1983, dando fim ao regime monárquico
na ilha e iniciando um governo provisório – composto majoritariamente por “homens brancos”
empresários - que teria desfecho com a anexação do Havaí aos Estados Unidos (1898),
transformando esse território em estado americano.

278
Molokai: “A cova do inferno, o lugar mais amaldiçoado da Terra”

Ao longo do século XIX o Havaí foi palco de um forte declínio populacional de nativos afetados
por doenças venéreas (introduzidas pelos primeiros exploradores), epidemias de caxumba, varíola,
sarampo, gripe e disenteria que varreram as ilhas havaianas. Acredita-se que a hanseníase (“lepra”)
tenha sido introduzida nas ilhas havaianas por imigrantes chineses nas décadas de 1830 e 1840. A
lepra foi diagnosticada pela primeira vez no Havaí em 1848 (Amundson e Ruddle-Miyamoto, 2010).
No entanto, foi na década de 1860 que a doença recebeu atenção pública (Herman, 2010). A reação
do governo diante do avanço da doença refletiu a repulsa e a discriminação disseminada pelos
estrangeiros residentes no país. Poucos meses após o golpe contra a rainha Lili’uokalani em janeiro
de 1893, o Conselho de Saúde iniciou uma campanha para reunir e isolar todos os havaianos
portadores de hanseníase. Desde 1865, quando o rei Kamehameha V assinou o Act to Prevent the
Spread of Leprosy, a lepra havia sido criminalizada. Essa lei previa a prisão e a detenção da pessoa
diagnosticada com a doença ou com suspeita de tê-la contraído. Os portadores da doença eram
forçosamente exilados em um assentamento para leprosos. Essa lei deu ao presidente do Conselho
de Saúde a autoridade de

“reservar e isolar qualquer território ou porção de terra...assegurar o isolamento e o


afastamento de tais indivíduos leprosos que, de acordo com a opinião do Conselho
de Saúde ou seus agentes, poderiam, estando livres, causar a propagação da lepra”
(HILLEBRAND, 1863 apud INGLIS, 2009, p. 104-105, tradução nossa).

Makanalua4 seria o local escolhido para este assentamento. Localizado na Península de Kalaupapa,
na ilha de Molokai, a quinta maior ilha do Havaí, o leprosário só era acessível pelo mar e por árduas
trilhas por entre penhascos – uma prisão natural. A península era cercada em três lados pelo oceano
e do outro lado pelos íngremes penhascos que contribuíam para o isolamento efetivo dos habitantes.
O primeiro assentamento criado para receber os enfermos afligidos pela lepra foi estabelecido em
1866 em Kalawao, na costa leste da península. O primeiro grupo chegou em 6 de janeiro de 1866 e
era composto por três mulheres e nove homens. 5 Somente na década de 1890, as instalações e os
internos do assentamento de Kalawao seriam transferidos para a região de Kalaupapa, na costa oeste

4 Makanalua é um nome tradicional para o território que compreende os distritos de Kalawao, Makanalua
e Kalaupapa, que são abrangidos pelo que hoje chamamos de Península de Kalaupapa (Inglis, 2009).
5 Essas e outras informações podem ser obtidas no portal oficial do Kalaupapa National Historical Park:
https://www.nps.gov/kala/faqs.htm (acessado em 03 de junho de 2017)

279
da península homônima. Todo um sistema foi elaborado a partir da promulgação da lei de 1865.
Nesse mesmo ano, o Kalihi Hospital and Detention Station em O’ahu abriu suas portas para receber
pacientes portadores da lepra. Esse hospital atendia as pessoas com casos mais suaves da doença e
servia como prisão temporária para aqueles que estivessem em estágio mais avançado da doença.
Esse centro hospitalar e prisional funcionou até 1875 e só seria reaberto em 1889. Outros hospitais
seriam instalados para receber e encaminhar os enfermos para o leprosário em Molokai.
Entre os mais ilustres viajantes estrangeiros que visitaram o assentamento para leprosos no Havaí
estão o escritor escocês Robert Louis Stevenson e o autor naturalista norte-americano Jack London.
Em junho de 1888, Stevenson iniciou uma viagem de São Francisco rumo ao Pacífico, que duraria
aproximadamente três anos. Entre suas paradas estavam as ilhas havaianas, as Ilhas Gilbert, o Taiti,
Nova Zelândia e as Ilhas Samoa. Em sua visita ao Havaí, ele se tornaria amigo do rei Kalakaua, bem
como da sobrinha do rei, princesa Victoria Kaiulani. Seria com Kalakaua que Stevenson aprenderia
mais sobre a história e as lendas das ilhas do sul (Overton, 2005).
Jack London também deixou registradas suas impressões sobre o assentamento em Molokai.
Partindo de São Francisco em 1907, London e sua esposa, Charmian London, acompanhados de uma
pequena tripulação viajaram pelo Pacífico a bordo do navio Snark. Eles, passaram pelo Havaí, Ilhas
Marquesas, Taiti, Bora Bora, Ilhas Fiji, Ilhas Samoa e, por fim, Austrália.
Após 27 dias de viagem, vindo de São Francisco, o Snark aportou na ilha de Oahu, onde London
e sua tripulação foram recepcionados pela elite local (London, s.d.). Jack London viajaria ao Havaí
em dois momentos distintos: primeiro, em 1907 e em uma segunda viagem entre os anos de 1915 e
1916, quando já estava com sua saúde muito debilitada e seria o ano que viria a falecer. No entanto,
foi nessa primeira viagem que Jack e sua esposa, Charmian London, visitariam o assentamento de
Molokai. O casal ficou bastante impressionado com a dura realidade dos habitantes daquele
assentamento que, na época, tinha cerca de 80 pessoas (Kershaw, 2013). Fascinados por Molokai,
Jack e Charmian decidiram acompanhar um grupo de ilhéus que tinha sido diagnosticado com lepra.
Em suas anotações de viagem, Charmian observaria:

“O movimento final de corações e mãos, o auge supremo de compaixão, veio


quando, separados pela grande abertura entre o navio e a doca, os perdidos e
desertados olharam um para o outro pela última vez, e as últimas ofertas de lamento
em formas de grinaldas de flores caíram sobre a água. Nenhum malihini6 normal
poderia permanecer intocado; era completamente e desesperadamente triste - um

6 Como se designa “estrangeiro”, em havaiano.

280
funeral em que os próprios mortos andam” (LONDON, 2008, p. 172, tradução
nossa)

A caminho do assentamento, London expressaria suas primeiras impressões sobre Molokai: “A


cova do inferno, o lugar mais amaldiçoado da Terra” (LONDON, s.d., p. 97). Contraditório tanto na
ficção, quanto nos escritos não-fictícios, Jack logo mudaria de idéia. Ao conhecer o leprosário e o
cotidiano de seus pacientes, ele afirmaria se tratar de uma “colônia feliz” (Idem). Ele se mostraria
interessado em desmistificar as “falsas” representações sobre o assentamento de Molokai e seus
habitantes.

“[...] os horrores que se pintaram sobre Molokai, no passado, não existem. A


instituição foi descrita repetidamente por sensacionalistas que, na maioria das vezes,
nunca tinham posto os olhos nela. Claro, um leprosário é um leprosário e não deixa
de ser uma coisa terrível; mas o que foi escrito a respeito de Molokai era sempre tão
sinistro que nem os leprosos, nem os que devotam suas vidas a cuidar deles tiveram
um reconhecimento justo” (IDEM, p. 100).

London parece disposto a atender um pedido feito pelo major Lee, um norte-americano, residente
no assentamento:
“- Dê uma boa olhada no jeito como vivemos aqui e, pelo amor de Deus, escreva
com sinceridade a respeito. Ponha abaixo a câmara dos horrores e tudo o mais. Não
queremos ser vistos do modo errado. Também temos sentimento. Apenas conte ao
mundo como realmente vivemos aqui” (IDEM, p. 105).

No entanto, mais uma vez, London se mostraria contraditório. Além de expressar-se favorável à
segregação dos leprosos em seu livro de não-ficção The Cruise of Snark, originalmente publicado
em 1911, no ano seguinte, publicaria uma coletânea de contos intitulada The House of Pride, onde
não poupou descrições bizarras que acentuavam os efeitos físicos e mentais causados pela lepra. Ao
publicar Koolau, o leproso dentro desta coletânea, Jack London foi severamente criticado por sua
indelicadeza e distorção dos fatos. Seria chamado pelo editor de The Honolulu Advertiser de “um
covarde de marca maior”, “indigno de confiança e um caipira ingrato e mentiroso” (KERSHAW,
2013, p. 244).

Entre a história e a ficção: a Batalha de Kalalau e sua representação literária

O conto Koolau, o leproso do autor naturalista norte-americano Jack London apresenta-nos uma
história de resistência ao avanço imperialista e ao exílio forçado de nativos havaianos afetados pela

281
hanseníase. Esta obra fictícia toma como base uma história real de resistência no Havaí denominada
Batalha de Kalalau (ou ainda, Leper War), que teve como protagonista um nativo chamado
Kaluiako’olau (popularmente chamado Koolau).
A chamada Batalha de Kalalau iniciou-se em junho de 1893, quando o xerife local Louis Stolz
tentou remover um grupo de havaianos do remoto Vale de Kalalau, onde alguns nativos se
refugiaram em negação ao cumprimento da lei e para encorajar outros à resistência. Stolz e seus
assistentes planejaram uma emboscada para capturar Koolau, que eles presumiram ser o líder do
grupo. No entanto, a armadilha falhou e Koolau atirou e matou o xerife, evitando assim a captura
junto a sua esposa e filho. O incidente levou Sanford Dole, líder do governo provisório, a enviar
tropas para Kalalau para prender Koolau e transferir cerca de vinte havaianos com lepra para
Molokai. Após duas semanas de cerco, alguns suspeitos de lepra foram detidos, mas não
conseguiram prender Koolau e sua família. Várias histórias começaram a ser contadas sobre esse
caso de resistência. Todos esses relatos desestabilizavam a visão de autoridade colonial e os
mecanismos de controle empregados pela oligarquia branca que havia chegado ao poder. Oficiais de
saúde e jornais de lingua inglesa retratavam Koolau como um assassino cuja luta era uma ameaça a
todos. Essa história seria mais uma justificativa para a intervenção de europeus e americanos na vida
dos havaianos. Após a morte de Koolau, Pi’ilani, sua esposa, retirou-se do vale e contou sua versão
sobre o conflito de Kalalau destacando Koolau como uma marido e pai devotado e disposto a
enfrentar as restrições coloniais impostas à sua família e e sua comunidade.
O referido conto de Jack London, ao retratar a Batalha de Kalalau, destaca a bravura de Koolau e
o quanto o protagonista estava disposto a resistir ao domínio imperialista dos “homens brancos”. Na
introdução da narrativa, ele questiona:

“- Por sermos doentes tiram de nós a liberdade. Nós obedecemos à lei. Nada fizemos
de errado. Mesmo assim, eles nos prenderam. Molokai é uma prisão, você conhece.
Niuli, que ali está, teve a irmã mandada para Molokai há sete anos. Não a vê desde
então. E nunca mais a verá. Ela tem de ficar presa até morrer. Não por vontade
própria nem de Niuli, mas por vontade dos homens brancos que governam a terra. E
quem são esses homens brancos? Nós sabemos. Aprendemos de nossos pais e dos
pais deles. Vieram como cordeiros, com fala mansa. Bem, eles tinham de falar assim,
éramos muitos e fortes, e todas as ilhas eram nossas. [...] Uns pediam nossa gentil
permissão para pregar a palavra de Deus; outros, nossa gentil permissão para
comerciar conosco. Esse foi o começo. Hoje todas as ilhas são deles, toda a terra,
todo o gado... tudo é deles” (LONDON, 2013, p. 07).

Após esse discurso que dá início a narrativa, o protagonista relembra ainda um passado idílico
havaiano e como aqueles que dominam as plantações passaram então a comandar a ilha e os
havaianos, fadados a servi-los. Após o discurso, uma celebração com dança hula, onde o narrador
explora a sensualidade das personagens misturados a descrições monstruosas. “Era a dança dos

282
mortos-vivos que, apesar dos corpos desfeitos, ainda amavam e desejavam” (LONDON, 2013, p.
13). Essa cena é seguida pela chegada de soldados em busca de Koolau. É nesse primeiro contato
que Koolau, após negar rendição, mata o xerife encarregado de detê-lo. Logo em seguida chegariam
as tropas governamentais que bombardeariam o vale. Alguns de seus companheiros se renderiam e
outros morreriam no confronto. Somente Koolau sobreviveria ao cerco. Mesmo diante de sua feição
monstruosa – em acentuado contraste com o “jovem [capitão] com rosto barbeado, olhos azuis, uns
vinte e cinco anos, esbelto e elegante em seu uniforme” (LONDON, 2013, p. 30-32) -, a cena final
de Koolau é descrita com certa beleza melancólica em que ele morre na solidão abraçado com seu
fuzil e mergulhado no seu derradeiro delírio de liberdade.
Apesar da descrição do sofrimento e extermínio da população que resistia ao exílio - que parece
visar a comoção e a empatia por tais personagens (fictícias, mas por extensão também verdadeiras)
-, a caracterização das personagens é feita com diversas referências à loucura, animalidade e
deformidades decorrentes da doença que reforçam o estigma milenar da lepra, além de reafirmar
concepções racistas já existente no Havaí, especialmente entre os não-nativos residentes no país. Em
Koolau, o leproso, assim o narrador descreveria o grupo de havaianos afligidos pela lepra que se
refugiava no vale de Kalaupapa:
“A luz do luar banhava a cena em prata. Era uma noite de paz, embora os que ouviam
sentados ao redor parecessem sobreviventes de guerra. Suas faces eram como a de
animais ferozes. Aqui, um buraco no lugar do nariz; lá, um toco de braço onde antes
a mão apodrecera. Eram homens e mulheres, trinta no total, que haviam sido
excluídos por terem recebido a marca da besta” (LONDON, 2013, p. 08).

Na narrativa de London, a presença da família de Koolau é deixada de fora e ele é apresentado


tendo como companhia um pequeno grupo de leprosos, entre eles Kiloliana “intrépido alpinista”,
conhecedor das trilhas; Kapahei, antigo juiz e “homem honrado”, agora acovardado diante da
invasão dos “homens brancos”; e Pahau, um menino que também contraiu a doença. Há grande
destaque para as características deformantes da lepra, inclusive em Koolau que, de acordo com os
registros históricos, tinha sintomas internos da doença (EPERJESI, 2005), sendo assim muito
diferente da representação feita por London que destacava suas deformidades visivelmente
grotescas. Várias passagens do conto apresentam descrições animalescas dos havaianos afetados pela
doença, sendo comparados a animais – como o leão, macaco e cachorro – e outras criaturas
animalescas – como o fauno e a harpia. Sobre o grupo que se reunia ao redor de Koolau, o narrador
nos descreve:

“Eles sentaram, engrinaldados na noite luminosa e perfumada, e seus lábios emitiam


um estranho silvo, e suas gargantas pigarreavam aprovando o discurso de Koolau.
Eram criaturas que, tendo sido homens e mulheres, haviam deixado de sê-lo. Agora

283
eram monstros grotescos de forma e de rosto, caricaturas do humano. [...] Alguns
chafurtavam de dor, e seus peitos gemiam. Dois eram retardados, como enormes
macacos com defeito de fabricação: perto deles mesmo um macaco parecia
angelical” (LONDON, 2013, p. 08).

De acordo com Tim Ingold (1994), na cultura ocidental os animais têm ocupado uma posição
central na construção do próprio conceito de “homem” e a concepção de animalidade é geralmente
associada a “uma deficiência de tudo que apenas nós, os humanos, supostamente temos, inclusive a
linguagem, a razão, o intelecto e a consciência moral”. Assim, a noção de animal implica uma certa
“deficiência” ou ausência de uma característica culturalmente valorizada. As ações humanas, por
exemplo, são entendidas como “intencionais” e, em contrapartida, as ações dos animais se dão de
forma “automática”, não racional. (INGOLD, 1994).
Uma outra característica recorrente entre as personagens, assim como já se observa na citação
acima, é uma inclinação à insanidade de seus protagonistas afetados pela doença.

“Mas uma daquelas criaturas bizarras e semiescas soltou um grito selvagem de


loucura. Koolau aguardou até que a estridente gargalhada reverberasse entre as
paredes de pedra e que seu eco se perdesse na distância pela noite inerte” (LONDON,
2013, p. 10).

Luangphinith (2004), argumenta que a literatura colonial sobre o Pacífico apresenta abundantes
menções à “loucura”, que garantiu suporte aos poderes coloniais ocidentais e à diferenciação entre
quem tinha poder e quem não tinha. Alguns escritores criaram narrativas sobre personagens “loucos”
que desafiavam as convenções sociais ou a ordem estabelecida. Sem dúvida, a narrativa sobre Koolau
é um desses exemplos. Apesar da loucura não estar encarnada no protagonista, ela está presente entre
seus companheiros de resistência, que não coincidentemente sucumbem – se não se rendendo às
tropas governamentais, então mortos por elas. A derrota é inevitável e Koolau, o único a resistir,
morreria na solidão. Sobre o efeito de tal discurso, podemos observar que

“a loucura e as identidades coloniais ambas são delimitadas, frequentemente


fundidas, dentro das produções discursivas dos Estados imperiais; assim, qualquer
discussão sobre insanidade dentro do cenário colonial deve reconhecer a criação de
posições sociais (...)” (LUANGPHINITH, 2004, p. 61, tradução nossa).

O caráter contraditório da visão imperialista de Jack London consiste em por um lado estar
claramente simpatizado com o povo havaiano e denunciar através de seus contos o dominío
imperialista norte-americano sobre o Havaí; e por outro apresentar-nos descrições insanas,
animalescas e monstruosas dos havaianos infectados pela lepra. A questão está para além da doença,
pois Koolau apesar de ser “um símbolo de resistência” é também a representação da “(...) derrota
inevitável, sugerindo assim uma flexibilidade ideológica do imaginário imperialista que proporciona

284
orgulho ao memorar a força e o espírito independente das populações nativas enquanto elas estão
dando seu último suspiro” (EPERJESI, John R, 2005, p. 120). A versão de London sobre a resistência
havaiana reforçava o discurso de missionários e estrangeiros (viajantes e residentes) de que a
população nativa era parte de uma “dying race” e que a submissão por uma “raça superior” era
inevitável. A caracterização das personagens em Koolau, o leproso como loucos, animalescos e
leprosos convergem com essa visão racial que reforça a imagem de inevitável submissão dos
havaianos. Esse discurso racista ajudou e continuaria ajudando a legitimar o domínio imperialista
americano, justamente aquele que London se propôs a denunciar em seus textos ficcionais.

Considerações finais

Poderes coloniais e seus aliados criminalizaram doenças na Índia, nas Filipinas, assim como no
caso do Havaí. A peculiaridade do caso havaiano está, entre outras coisas, por se tratar da fase inicial
do imperialismo norte-americano (final do século XIX) onde se dispôs de complexos mecanismos
que asseguravam a imagem de dependência do Havaí em relação aos Estados Unidos. A ideologia
da supremacia da raça branca anglo-saxã difundida entre europeus e americanos (residentes ou não
nas ilhas havaianas) foi determinante para legitimar a colonização do território e dos corpos dos
colonizados. Jack London apresenta-se, na literatura, um caso peculiar que, ao procurar denunciar a
opressão causada pelo avanço imperialista norte-americano, ao mesmo tempo e em direção oposta
ao que parece se propôr na ficção, produziu uma obra que se aliava ao discurso imperialista. A
imagem deturpada sobre a lepra e seus portadores, possibilitaria a intervenção americana no Havaí
através de um discurso altruísta. De acordo com Merry (2009), nos séculos XIX e XX uma certa
ideia de humanitarismo frequentemente legitimava e justificava o controle imperial. As missões
cristãs, que prometiam trazer “civilização” e “esclarecimento” para os povos colonizados, associados
à literatura de viagem e de ficção, tornaram-se forças legitimadoras do domínio estrangeiro no Havaí.
Jack London, um dos poucos visitantes autorizados a entrar no assentamento de Molokai e um dos
convidados do Conselho de Saúde para defender a colônia de leprosos contra a representação
sensacionalista que a doença tinha na mídia (AHUJA, 2007), foi justamente aquele que abriu mão
de qualquer sutileza para descrever os efeitos da lepra sobre os havaianos em sua obra de ficção.
Através da caracterização da loucura, animalidade e da lepra de formas associadas, London ajudava
a legitimar o discurso da inevitável submissão da “dying race”. O potencial político de Koolau, o
leproso consiste justamente em ser uma representação literária que acaba por naturalizar a

285
dependência colonial exercida sobre o Havaí. Tal efeito toma uma magnitude ainda maior se
levarmos em conta que Jack London era um dos escritores americanos mais populares e mais lidos
nos EUA no início do século XX.

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2009.

287
A Legenda aurea e as relações de poder no medievo: um olhar sobre os usos políticos do
legendário de Jacopo de Varazze

André Rocha de Oliveira1

Resumo: No presente texto, voltaremos nossas atenções para a Legenda Áurea, um dos legendários
mais famosos produzidos no período medieval. Ele foi produzido na segunda metade do século XIII,
no seio da Ordem dos Irmãos Pregadores – uma das ordens mendicantes que surgiram no início do
mesmo século –, e teve sua autoria atribuída ao frade Jacopo de Varazze. Com base na bibliografia
específica desenvolvida a partir da obra, colocaremos em relevo os atributos mais recorrentemente
abordados, o que nos permitirá compreender o processo de produção, circulação e transmissão da
obra, a saber: a datação; a função; a recepção, e os objetivos.

Palavras-chave: Legenda Áurea; hagiografia; historiografia.

Abstract: In the present paper, we turn our attention to the Golden Legend, one of the most famous
legendaries produced in the medieval period. It was conceived in the second half of the thirteenth
century, within the Order of the Preacher Brothers – one of the mendicant orders that arose at the
beginning of the century –, and had its authorship attributed to friar Jacopo de Varazze. Based on a
specific bibliography developed from this work, it will be focused the most recurrently discussed
attributes, allowing us to comprehend the production process, circulation and the transmission of the
work, namely: the dating; the function; the reception, and the goals.

Key Words: Golden Legend; Hagiography; Historiography.

Introdução

No período da Idade Média Central (séculos XI ao XIII), como em qualquer outro período histórico,
a esfera religiosa esteve presente exercendo influência sobre homens e mulheres. A instituição
tradicionalmente responsável por esta questão, a Igreja Romana, adotou uma série de medidas que
visavam – além de corresponder às necessidades espirituais dos fieis – garantir a difusão de seu
projeto político de vida religiosa e de sociedade. 2 Assim, podemos identificar como algumas de suas
ações: a normalização do casamento leigo; a imposição do celibato para os clérigos; o incentivo à
educação clerical; etc.3 Por outro lado, manifestações espontâneas de religiosidade – isto é, sem o
rígido controle da Igreja – ainda eram frequentes na Europa cristã. Neste sentido, verificamos um
fenômeno que, apesar de fugir ao domínio da instituição eclesiástica em diversos casos, perpetuava

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Bolsista Capes.


Email: andrero1898@gmail.com
2 SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Introdução. In: ______ (Org.). Hagiografia e
História. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2008. p. 8
3 Ibid., p. 8.

288
um dos principais mecanismos utilizados pelo clero para pôr em prática o seu projeto: o culto àqueles
considerados veneráveis em determinada localidade.
O culto aos santos era realizado com base na crença de que estes – mesmo após a morte –
teriam a capacidade de interceder junto a Deus por aqueles que os fossem devotos. Acreditava-se
que as ossadas, as partes do corpo, as vestes e todos os objetos que estiveram em contato com o santo
em vida – as chamadas relíquias – seriam dotados dos mesmos poderes que o santo recebera de
Deus.4 Neste sentido, tornou-se comum que cristãos visitassem os túmulos onde se encontravam os
restos mortais dos santos com o objetivo de que, em meio a orações e súplicas, o mesmo intercedesse
contra os males que os afligiam. Como consequência deste movimento, verifica-se a construção de
santuários nas localidades onde os veneráveis foram sepultados. Se somarmos a esta devoção o
fascínio da sociedade medieval pelo sobrenatural, podemos compreender como tal atividade
difundiu-se por toda a cristandade.
Uma ferramenta bastante utilizada para popularizar os diversos cultos aos santos foram as
hagiografias, que já existiam desde a Antiguidade. Estas estão divididas em várias modalidades,
como Paixões; Vidas de Santo; Tratados de Milagres, Relatos de Trasladações; Calendários; etc.
Elaboradas inicialmente para registrar e divulgar o martírio dos cristãos que não renegaram a sua fé
mesmo sendo perseguidos – tornando-se, com isso, os primeiros veneráveis –, as atas dos mártires,
como são conhecidos os relatos acerca de suas mortes (Paixões), se difundiram entre os séculos II e
IV. 5 Com o fim da perseguição, a quantidade de personagens que entregaram suas vidas foi
drasticamente reduzida.
Este fenômeno provocou transformações significativas tanto na concepção de santidade –
com a passagem dos mártires para os confessores –, quanto no conteúdo do material, que
anteriormente se dedicava a exaltar os últimos momentos e a morte daqueles que se recusaram a
renegar a sua fé. Com a escassez de executados em consequência do fim das perseguições
perpetradas pelos agentes da autoridade secular, os hagiógrafos – autores das hagiografias –
passaram a enfatizar as características biográficas dos protagonistas. Destarte, verificamos o
aparecimento das Vidas de Santo, que passaram a ressaltar os veneráveis que não tiveram suas vidas
ceifadas, mas adotaram um comportamento ascético – uma espécie de sacrifício lento e gradual.
Além dos relatos sobre a vida destas personagens, eram destacados também a postura exemplar e os
feitos incríveis realizados – os milagres – tanto em vida, quanto após a morte.

4 VINCENT, Catherine. Culto dos santos, reliquias e peregrinações. In: CORBIN, Alain (Dir.)
História do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 228-233.

5 BAÑOS VALLEJO, Fernando. Las vidas de santos en la literatura medieval española.


Madrid: Laberinto, 2003.

289
Em decorrência da notável produção hagiográfica, observamos o surgimento das primeiras
compilações. Inicialmente, foram os passionários – reunião das Paixões –, e, posteriormente, os
legendários – coletâneas de Vidas de Santo – que apareceram no cenário medieval. Porém, durante
boa parte deste período, as compilações foram escassas. Foi apenas a partir do século IX que estas
obras tornaram-se mais populares, sendo o período que compreende os séculos IX ao XIII
considerado o de plenitude. 6 Com o nascimento das ordens mendicantes, principalmente a
dominicana e a franciscana, no século XIII, verificamos a manutenção da produção de legendários.
A Legenda Áurea (LA), produzida pelo frade dominicano Jacopo de Varazze na segunda metade do
século XIII, foi um desses casos de compilação dessa modalidade hagiográfica.
A LA é uma das obras hagiográficas mais conhecidas da Idade Média, sendo constituída por relatos
sobre Vidas de Santo e festas litúrgicas. Ela foi sucessivamente copiada e traduzida para as línguas
vernáculas – um sinal do sucesso atingido pelo legendário. Chegou à Inglaterra, França, Áustria,
Germânia, regiões do leste europeu, além da própria península itálica, onde o êxito foi imediato.
Desta forma, a LA chegou aos mais diferentes públicos, seja por meio da leitura – silenciosa ou em
voz alta –, seja por meio das pregações, para as quais o legendário foi utilizado como fonte pelos
frades e integrantes do clero em geral. Portanto, podemos afirmar que os diferentes conteúdos
trabalhados na LA percorreram os principais centros econômicos, religiosos, políticos, culturais, etc.
do período, levando as palavras do frade dominicano a uma quantidade significativa de pessoas.
A LA, contudo, não estava alijada das relações de poder que perpassavam a sociedade
medieval. Neste sentido, podemos inferir que o legendário se encontrava em meio às relações de
poder entre as autoridades eclesiástica e secular, cujas tensões giravam em torno da imposição de
um regime de verdade. 7 O presente texto tem por objetivo colocar em relevo os aspectos mais
recorrentemente abordados pela historiografia específica produzida a respeito da LA, situando sua
inserção no contexto político do período de sua produção. Neste sentido, nos próximos itens nos
ocuparemos em discorrer sobre a datação; a função; a recepção, e os objetivos políticos da LA.

6 Ibid., p. 30.
7 No período medieval, a autoridade eclesiástica era a principal interessada em impor um regime
de verdade, e, com isso, usufruir de todos os efeitos de poder daí decorrentes. Neste sentido, ela selecionou e sistematizou
discursos, atuando sempre com o intuito de fazê-los funcionar como verdadeiros. Suas ações, porém, não terminaram por
aí. Se por um lado ela se esforçou em fazer com que seus discursos assumissem um status de “verdade”, por outro, ela se
dedicou a desacreditar os discursos de seus adversários, transmitindo a ideia de que seriam “falsos”. Do mesmo modo,
ela agiu no sentido de determinar o estatuto daqueles que poderiam dizer o que funciona como verdadeiro, ou seja, quais
de seus integrantes estariam autorizados a atuarem como seu porta-voz, e até que ponto eles poderiam ir – afinal, qualquer
um não pode falar de qualquer coisa.

290
Datação

Um dos principais debates historiográficos em torno da LA é a respeito da data em que ela foi
produzida. Apesar das controvérsias entre os estudiosos com relação à datação exata da redação, há
um consenso de que a obra foi escrita – pelo menos a sua primeira versão – na década de 1260.
Alguns autores, dentre os quais podemos destacar Jacques Le Goff e Néri de Barros Almeida,
defendem que a LA possui mais de uma redação: a obra teria sido reescrita e modificada algumas
vezes pelo próprio Jacopo de Varazze. Com isso, a tarefa de precisar a data de sua produção torna-
se ainda mais difícil, afinal de contas, qual foi a data exata de composição? Ou melhor, existe uma
data certa a ser apontada pela historiografia?
Um olhar panorâmico sobre o conflito de datas propostas para a LA pode ser encontrado na
dissertação “Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: Os casos de Maria e
Madalena”, 8 de Carolina Coelho Fortes, na qual esta historiadora aborda a intensa discussão
existente assinalando as variadas posições de diversos autores.
Para Wyzema, a LA foi escrita em 1255. Fortes discorda desta tese com base nas fontes
utilizadas por Jacopo no capítulo sobre São Domingos, que teriam sido produzidas entre 1256 e
1260, tornando, portanto, a data de 1255 inviável. Outro nome mencionado, Richardson, estabelece
que a obra foi confeccionada entre 1250 e 1265, sugerindo que a data mais provável se encontraria
a partir de 1258. Esta posição sustenta-se no capítulo sobre Pedro Mártir, “pois fica implícito que,
da morte de Pedro Mártir até o fim da redação, Milão permanecera livre de heresias, enquanto que
em 1258 Milão passava por uma onda heterodoxa tão forte que o inquisidor fora expulso não só do
convento dominicano como da cidade.”. 9 Reames, por sua vez, define como data limite 1273, uma
vez que esta “coincide com a última afirmação sobre a história da Lombardia constitutiva da maior
parte do capítulo sobre Pelágio”, 10 enquanto que Monleone defende que a LA tenha sido escrita antes
de 1267. Há ainda as posições de Ferrua, datando a produção em 1263, e a de Bertini, que a situa
entre 1260 e 1263.
Conforme mencionamos antes, alguns autores defendem que a obra possuiu mais de uma
versão. Neste sentido, podemos destacar as posições dos já citados Néri de Barros Almeida e Jacques
Le Goff.

8 FORTES, Carolina Coelho. Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Áurea: Os


casos de Maria e Madalena. 2003. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
9 RICHARDSON apud FORTES, op. cit., p. 97-98.
10 FORTES, op. cit., p. 98.

291
Para Almeida, a primeira versão da LA foi escrita na década de 1260, mais especificamente entre
1260 e 1267. Depois disso, o frade dominicano teria, então, reescrito mais duas vezes a LA, “entre
1272-1276 em Bolonha quando prior da Lombardia (função que ocupou entre 1267 e 1277 e entre
1281 e 1286) e entre 1292 e 1298 em Gênova quando arcebispo da cidade.”.11 Seguindo esta mesma
linha, temos Le Goff. No entanto, este autor não estabelece com exatidão quando Jacopo de Varazze
teria modificado a obra, como fez Almeida. Para Le Goff, a LA é fruto de um trabalho iniciado em
1260 e apenas concluído já no fim da vida do frade. Em suas palavras: “Entre 1260, data provável
do início da redação, e sua morte em 1297 [1298], o autor, o dominicano Tiago [Jacopo] de Varazze,
não poucas vezes enriqueceu ou modificou sua obra.”.12
Observamos então, apesar das controvérsias a respeito da data exata da produção da LA – e do caso
de Wyzema, exposto por Fortes –, que há um consenso entre os pesquisadores em torno da década
de 1260. Até mesmo os autores que defendem a existência de mais de uma versão para o legendário,
datam aquela como a da redação da primeira versão do texto. Portanto, baseados na historiografia
disponível sobre o tema, podemos considerar esta década como a mais provável para a elaboração
da LA.

Função

Para que serve a LA? Qual a sua utilidade? Para responder estas perguntas podemos recorrer às
posições de Priscila Gonsalez Falci 13 e da já citada Carolina Coelho Fortes. Por um lado, Falci
defende que a obra possuía três funções principais para com seus públicos: “destinava-se às leituras
litúrgicas nos conventos dominicanos, às leituras particulares como obra de edificação e como ‘fonte’
de consulta para o preparo dos irmãos pregadores.”.14 Por outro lado, temos a posição de Fortes, que
exalta a diferença da LA para as hagiografias tradicionais. Enquanto estas últimas forneciam aos
laicos exemplos que poderiam ser imitados, a LA “dizia quase literalmente que poderiam só

11 ALMEIDA, Néri de Barros. Hagiografia, propaganda e memória histórica. O monasticismo


na Legenda Aurea de Jacopo de Varazze. Revista Territórios e Fronteiras. Cuiabá, v. 7, n. 2, p. 95-111, jul./dez. 2014a.
p. 100.
12 LE GOFF, Jacques. Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 14-15.
13 FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na construção de santidades genderificadas: uma
análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea. 2008. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em
História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
14 Ibid., 50.

292
reverenciar e obedecer aos santos.”.15 Desta forma, ainda de acordo com Fortes, os santos seriam
personagens didáticos capazes de transmitir os principais méritos cristãos àqueles que lessem ou
ouvissem as leituras da LA. 16
É possível perceber, a partir da posição das duas historiadoras, que a LA cumpre um duplo
papel: assume um caráter didático, pedagógico ao transmitir os principais valores cristãos para
aqueles que a utilizam, e serve, simultaneamente, como um mecanismo para a difusão e
fortalecimento da obediência às autoridades eclesiásticas por parte do laicado. De maneira
complementar ao que acabamos de discorrer, Almeida afirma que é “por meio desses dois tipos de
evento [martírio e milagre] que é feita a exposição didática dos valores elevados que se pretende
destacar na obra: renúncia, obediência e pobreza.”.17 Destarte, podemos afirmar que a difusão – de
maneira didática – de valores como a renúncia e a pobreza, mas principalmente a obediência, é
estimulada pela LA de Jacopo de Varazze, se caracterizando para nós como a principal função do
legendário.

Recepção

Ao colocarmos em relevo as condições de recepção da LA, faz-se necessário identificarmos aqui


qual era o público ou os públicos consumidores do legendário e por quais mecanismos se efetivava
este consumo. Hilário Franco Júnior18 atribui o sucesso da obra ao fato desta ter conseguido alcançar
e agradar tanto aos integrantes das elites (cultura erudita, clérigos) quanto aos populares (cultura
popular, laicos). Deste modo, cabe aqui retornarmos ao conceito de cultura intermediária proposto
por este historiador.
A cultura intermediária seria a intercessão entre a cultura clerical e a cultura vulgar. Entende-se como
cultura clerical, de acordo com Franco Júnior, aquela que era produzida no meio eclesiástico, letrada
– com a utilização do latim – e transmitida por meios formais – universidades, escolas monásticas.19
Já a cultura vulgar era tudo o que não pertencia à cultura clerical. Neste sentido, a

15 FORTES, op. cit., p. 104.


16 Ibid., p. 104.
17 ALMEIDA, Néri de Barros. Intenção do autor e cultura folclórica: o martírio na Legenda
aurea. In: TEIXEIRA, Igor Salomão (Org.). História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. São Leopoldo:
Oikos, 2014b. p. 20.
18 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Apresentação. In: JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea.
Trad. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
19 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2006. p. 103.

293
cultura vulgar era oral, transmitida informalmente (nas casas, ruas, praças, tavernas,
etc.) por meio de idiomas e dialetos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela
expressava a mentalidade de forma mais direta, com menos intermediações, com
menos regras preestabelecidas.20

No campo literário, a cultura intermediária parecia estar cindida pelo idioma. Enquanto a cultura
clerical utilizava o latim, a vulgar se valia das línguas vernáculas. Porém, como aponta Franco Júnior,
ao contrário desta suposta ruptura intransponível o que se verifica é um cenário de intensas trocas
entre as culturas. Estas trocas abasteciam e eram abastecidas pela cultura intermediária,

aquela praticada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma
dada sociedade, independentemente de sua condição social. [Ela é] o denominador
comum, o conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecido
e aceito pela grande maioria dos indivíduos da sociedade estudada. 21

Dentro desta concepção de cultura intermediária encontra-se a categoria de literatura enciclopédica


– da qual a LA faz parte –, isto é, “cuja intenção era reunir a essência do conhecimento da época”.22
Por estar presente em um gênero literário pertencente à cultura intermediária e suscitar temas
bastante prestigiados pelas diferentes camadas sociais da sociedade medieval como o belicismo, o
contratualismo, o simbolismo e a escatologia. Neste sentido, podemos conjecturar que a LA teve um
significativo alcance dentro do Ocidente medieval.
Nossa hipótese ganha contornos de validade quando recorremos a Fortes e Falci para identificar
quais seriam o público ou os públicos consumidores da LA. Neste sentido, ambas as autoras
concordam que o legendário possuiria dois públicos. Assim, o primeiro e mais imediato “era formado
por clérigos, especialmente, os freis dominicanos, que consumiriam a obra e a utilizariam na
composição de seus sermões [...] poderíamos circunscrever o público mais direto à parte do clero
bem educada.”.23 Enquanto que os “leigos comporiam o público secundário e final da Legenda, nos
sermões dirigidos a eles pelos frades pregadores [...] ou ainda, para aqueles letrados que, nas leituras
feitas em voz alta em um ambiente privado, estariam escutando o material [...].”. 24 Portanto, a LA
atenderia, de acordo com as autoras citadas, aos membros tanto da cultura clerical, quanto da cultura
vulgar, que se encontrariam no seio da cultura intermediária.

20 Ibid., p. 103.
21 FRANCO JÚNIOR, 2006, op. cit., p. 103.
22 Ibid., p. 116.
23 FALCI, op. cit., p. 50.
24 FORTES, op. cit., p. 103.

294
Até agora, nos ocupamos em identificar quais eram os públicos do legendário e a que meio
pertenciam (cultura intermediária). Porém, para conseguirmos contemplar de fato a recepção da LA
é necessário voltar nossas atenções para algumas questões: como podemos atestar a recepção da LA
e o sucesso a ela atribuído pela historiografia? O que pode ser apontado como prova desta recepção?
O principal indício que temos capaz de comprovar a recepção positiva da obra e o seu sucesso
imediato são os manuscritos remanescentes daquele e dos períodos subsequentes. Neste sentido, a
quantidade de cópias e traduções para as línguas vernáculas da LA são um importante indicativo.
Podemos invocar aqui três autores que atentaram para este fato. São eles: Hilário Franco Júnior,
Jacques Le Goff e Barbara Fleith.
Na apresentação da tradução brasileira do legendário, Franco Júnior – tradutor da obra para o
português com a participação de Néri de Barros Almeida – comprova o sucesso da LA pela
quantidade de manuscritos ainda existentes – cerca de 1100. O autor enumera a quantidade de cópias
e traduções realizadas ainda na Idade Média, dentre as quais podemos destacar as traduções para as
línguas vernáculas ainda no século XIII, como para o catalão, no último quarto do século, e para o
alemão, em 1282.25 Outro autor a enfatizar o número de edições da LA é Jacques Le Goff. Em seu
livro “Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada” este historiador aponta a
existência de dezenas de cópias e traduções produzidas apenas no período medieval. Deste modo,
afirma que há “dez edições em italiano, dezessete em francês, dez em holandês, dezoito em alto-
alemão, sete em baixo-alemão, três em tcheco e quatro em inglês, quer dizer, um total de sessenta e
nove edições.”.26
Nas reflexões presentes em “Santa Agnes entre litterati e illitterati. Algumas observações através da
história da utilização do legendário de Jacopo de Varazze”,27 Barbara Fleith discorre – de maneira
mais detalhada que Franco Júnior e Le Goff – sobre a difusão da LA. Em seu estudo, podemos
identificar como a receptividade à obra ocorreu tanto no meio clerical, quanto entre os leigos – os
dois públicos consumidores do legendário apontados por Fortes e Falci. No que concerne à recepção
da LA pelos eclesiásticos, Fleith assevera que a obra rapidamente se espalhou pelos diferentes grupos
de religiosos – clero tradicional, ordens mendicantes e mosteiros. Deste modo, com relação ao
primeiro grupo, destaca que os bispos eram aqueles que possuíam o maior número de exemplares. 28

25 FRANCO JÚNIOR, 2003, op. cit., p. 21.


26 LE GOFF, op. cit., p. 13.
27 FLEITH, Barbara. Santa Agnes entre litterati e illitterati. Algumas observações através da
história da utilização do legendário de Jacopo de Varazze. In: TEIXEIRA, Igor Salomão. História e Historiografia sobre
a Hagiografia Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2014.
28 Ibid., p. 80.

295
Já com relação às ordens mendicantes, a autora afirma que todas possuíam ou conservavam
exemplares da LA. Em suas palavras:

Os estabelecimentos de toda ordem religiosa possuem ou conservam a Legenda


aurea; nenhuma ordem é predominante. Assim, dominicanos mais que os frades
menores, aparecem uma dezena de vezes como proprietários. Entre os irmãos das
ordens mendicantes os livros são somente emprestados: após a morte de um frade,
o manuscrito deve automaticamente retornar ao convento de origem [...].29

É importante ressaltar, nos baseando nas palavras de Fleith, o fato de que a obra deveria retornar ao
convento de origem após a morte de um frade. Podemos interpretar este fenômeno como um indício
não apenas da propagação do legendário, mas também como um atestador da importância que a LA
tinha para seus consumidores mendicantes. Por último, a autora enfatiza uma “real utilização” da LA
pelos monges:

Nos mosteiros, o livro não é simplesmente “conservado”, mas, inicialmente,


destinado a uma real utilização. Esse desejo é confirmado por numerosas
encomendas de abades e priores: rapidamente, após a compilação da obra, os
responsáveis por alguns mosteiros do lado norte dos Alpes solicitam uma cópia do
novo legendário. Assim, Bernardo III, abade dos agostinianos de Vorau, na Áustria,
encomenda uma cópia antes de 1285.30

Tão relevante quanto como a LA era utilizada nos mosteiros é o fato de já em 1285 um abade na
Áustria ter solicitado uma cópia do legendário. Este acontecimento comprova o rápido sucesso que
a obra atingiu, alcançando regiões de fora da península itálica ainda no século XIII. Este caso pode
ser constatado também na França. Segundo Fleith: “Para locação e colocada à venda pelos ateliês, a
Legenda aurea latina tornou-se rapidamente um bestseller em Paris por volta de 1300.”.31
Com relação à recepção do legendário por parte dos leigos, Fleith aponta as traduções para as línguas
vernáculas como o principal indício do êxito de sua receptividade. Assim, as traduções realizadas
para francês, italiano, holandês, alemão, baixo-alemão e alsaciano assumem o papel de indicativos
da existência de uma demanda pela LA. É necessário destacar a igual rapidez – se comparada com a
difusão da obra entre os eclesiásticos – com que as traduções das Vidas de Santo da LA obtiveram
sucesso junto ao laicado. Este êxito das traduções pode ser exemplificado pelo caso francês. Devido
à bem-sucedida recepção das cópias latinas da obra “desenvolve-se uma demanda por traduções em

29 FLEITH, op. cit., p. 81.


30 Ibid., p. 81.
31 Ibid., p. 86.

296
língua neolatina. [...] A motivação do tradutor é uma melhor compreensão pelos iletrados, aqueles
que não dominam o latim [...].”.32

Objetivos

Com relação aos objetivos, sobretudo políticos, precisamos levar em conta o caráter propagandístico
da LA. De acordo com Iara D’Assunção,33 que em sua dissertação analisou as relações de parentesco
presentes na obra, a circulação de uma propaganda é uma das especificidades inerentes à hagiografia.
Neste sentido, a propaganda voltada para a persuasão do ouvinte ou leitor serviria, no caso do
legendário, para difundir e legitimar os preceitos cristãos e da ordem dominicana. 34 A própria
composição da Legenda aurea atenderia à vulgarização dessas questões. Neste sentido, Almeida
destaca que a

matéria eleita por ele [Jacopo] permitiu que tratasse de temas caros à sua ordem: a
liberdade de pregação dos dominicanos face a quaisquer autoridades, a excelência
da pobreza mendicante e a supremacia da autoridade papal no campo doutrinário e
político. A matéria antiga compilada por Jacopo de Varazze situa os dominicanos
como críticos do poder e salvaguarda da ordem por meio da defesa da Igreja contra
a heresia e os potentados laicos. [...] Podemos ver nisso a expressão da desconfiança
e afastamento dos dominicanos em relação aos poderes terrenos, mas também a
repercussão de sua adesão firme à Igreja romana. Jacopo de Varazze tem em mente
uma relação tensa, moral e juridicamente hierarquizada entre a Igreja e os poderes
mundanos.35

É possível, portanto, perceber a partir das considerações de Almeida que uma das principais
preocupações de Jacopo de Varazze ao redigir o legendário era a ameaça que os segmentos laicos
ofereciam à Igreja romana. Assim, partindo de tal premissa, podemos inferir que a defesa da
supremacia política e doutrinal das autoridades eclesiásticas, principalmente a do papa, são
resguardadas por meio de uma mensagem propagandeada pelo legendário. E é Fortes quem nos
elucida o teor dessa ideia que é vulgarizada por Jacopo:

A mensagem para os contemporâneos de Jacopo é mais óbvia nos capítulos da


Legenda Aurea cujos heróis são prelados, exercendo a autoridade sagrada que

32 Ibid., p. 87.
33 D’ASSUNÇÃO, Iara. A terminologia do parentesco na Legenda Áurea. 2004. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca.
34 D’ASSUNÇÃO, op. cit., p. 18.
35 ALMEIDA, 2014b, op. cit., p. 27.

297
constrangia imperadores e reis. A ênfase dada pelo dominicano a tais lições não
significa que a obra estivesse voltada diretamente para os governantes do século
XIII que combatiam o papado em várias frentes de batalha. A estratégia da Legenda
Aurea era despertar a consciência cristã de seus consumidores, que poderiam
interferir nas ações de seus líderes e governantes. Jacopo privilegiou sobremaneira
os milagres não porque quisesse ceder ao gosto popular, mas por ser o conhecimento
sobre eles o melhor meio de persuadir seus ouvintes e leitores a dar as costas para
os hereges e, especialmente, os líderes seculares que competiam com a Igreja por
sua lealdade. Nesse contexto, a força emocional das legendas é clara. Aqueles que
apoiam os herdeiros dos santos são convidados a se regozijar, pois estão do lado que
Deus favorece; aqueles que se unem à oposição, tremam com a vingança que o
aguarda.36

A partir dessas últimas passagens, podemos (re)afirmar que a LA encontrava-se inserida nas tensões
políticas que marcavam o seu tempo – tensões estas que compreendemos como aquelas entre as
autoridades eclesiástica e secular. E tal inserção não se dava de modo neutro. Pelo contrário, ela
visava a exaltação da autoridade eclesiástica; de sua superioridade com relação à secular. Esta
confrontação no legendário se dava de maneira sutil, e não diretamente. Como nos disse Fortes,
Jacopo teria por objetivo “despertar a consciência cristã de seus consumidores”. Se somarmos a isso
à função da obra como difusora da obediência à autoridade eclesiástica, apelar para o despertar da
consciência cristã pode ser compreendido como um modo perspicaz do autor de assumir uma posição
de exaltação dessa autoridade sem recorrer ao conflito direto com os segmentos laicos.
Priscila Gonsalez Falci segue pela mesma linha que Almeida e Fortes e também conclui que Jacopo
de Varazze busca colocar a autoridade eclesiástica acima da secular. De acordo com Falci,

a obra de Jacopo carrega a responsabilidade simbólica de armar os pregadores contra


os inimigos da doutrina cristã, objetivando o combate às heresias e aos infiéis e a
“manutenção” dos fiéis. Somado a isso, ainda percebemos a promoção dos preceitos
religiosos propostos pela Igreja e a colocação da lei divina acima das demais,
mesmo dos poderes imperiais.37

Os “poderes imperiais” mencionados pela autora não podem ser outro além daquele exercido pelo
Sacro Império Romano. Desta maneira, Falci centraliza as diferentes autoridades seculares –
mencionadas pelas outras historiadoras – na figura do imperador. Com isso, cristaliza o que para nós
é um dos principais conflitos políticos do período – no que tange à relação autoridade eclesiástica-
secular: a querela entre o Papado e o Império. Neste cenário, a ordem dominicana serve à Igreja
romana, trabalhando para acentuar a sua superioridade sagrada perante os imperadores. Sua atuação
se dá por uma dupla via: por meio da pregação e pela produção de instrumentos – como o legendário

36 FORTES, op. cit., p. 43.


37 FALCI, op. cit., p. 50.

298
– que suscitem a magnificência da autoridade eclesiástica, a qual nenhuma outra pode alcançar em
termos de exercício do poder e legitimidade para guiar a cristandade. Portanto, a partir das
considerações apresentadas, podemos concluir que a LA funciona – assim como entende Fortes –
como um instrumento de propaganda política indispensável à imposição do regime de verdade
desejado pela autoridade eclesiástica.

Considerações finais

No presente texto, buscamos apresentar em linhas gerais os principais tópicos presentes no


legendário de Jacopo de Varazze que foram exaltados pela historiografia. Deste modo, percorremos
os debates acerca de sua datação, apontando o consenso dos pesquisadores em torno da década de
1260 para, pelo menos, o início de sua redação. Discorremos sobre a sua função, o que nos auxiliou
a compreender o “para quê?” a obra foi desenvolvida, e permitiu a constatação do incentivo à
obediência, sobretudo dos leigos à autoridade eclesiástica, como uma das, senão a principal função
do texto. Com relação à recepção da LA apontamos, a partir das reflexões de Hilário Franco Júnior,
que um dos principais indícios do sucesso do legendário foi contemplar a chamada “cultura
intermediária”. Além disso, identificamos quais eram os públicos para os quais a obra estava voltada
e, graças às contribuições de Bárbara Fleith, pudemos nos aprofundar acerca da recepção
propriamente dita nos meios eclesiásticos, constatando a presença difundida nas sedes episcopais,
nos conventos mendicantes e nos mosteiros. Por último, situamos a LA no contexto político do
período, indicando a sua inserção nas querelas entre Papado e Império – que, em nossa concepção,
é um dos principais conflitos observados entre a autoridade eclesiástica e a secular.
Este exercício – discorrer sobre estes pontos do legendário com base nas discussões
historiográficas realizadas – foi uma etapa importante de nossa pesquisa de mestrado. Em nossas
reflexões, as relações de poder entre as autoridades eclesiástica e secular – nas quais os conflitos
entre papas e imperadores estão inseridos – visavam a imposição de um regime de verdade. Tal
regime, em nosso entendimento, uma vez consolidado proporcionaria efeitos de poder significativos
àquela autoridade que obtivesse êxito em estabelecê-lo. A LA, nesse sentido, serviria como um
instrumento de propaganda política bastante útil a tal empreitada. Portanto, entendê-la de maneira
mais detalhada era imperativo às nossas reflexões.

299
Referências:

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Legenda Aurea de Jacopo de Varazze. Revista Territórios e Fronteiras. Cuiabá, v. 7, n. 2, p. 95-111,
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TEIXEIRA, Igor Salomão (Org.). História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. São
Leopoldo: Oikos, 2014b.

BAÑOS VALLEJO, Fernando. Las vidas de santos en la literatura medieval española. Madrid:
Laberinto, 2003.

FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na construção de santidades genderificadas: uma análise


comparativa dos relatos da Legenda Áurea. 2008. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

FLEITH, Barbara. Santa Agnes entre litterati e illitterati. Algumas observações através da história
da utilização do legendário de Jacopo de Varazze. In: TEIXEIRA, Igor Salomão. História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2014. p. 72-99.

FORTES, Carolina Coelho. Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Áurea: Os casos de
Maria e Madalena. 2003. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

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______. Apresentação. In: JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea: Vidas de Santos. Trad. Hilário
Franco Júnior. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003. p. 11-25.

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Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Introdução. In: ______ (Org.). Hagiografia e História.
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SOUZA, Néri Almeida. Palavra de púlpito e erudição no século XIII. A Legenda aurea de Jacopo
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TEIXEIRA, Igor Salomão. A Legenda aurea de Jacopo de Varazze: temas, problemas, perspectivas.
São Leopoldo: Oikos, 2015.

300
VINCENT, Catherine. Culto dos santos, reliquias e peregrinações. In: CORBIN, Alain (Dir.)
História do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
p. 228-233.

301
“O Parasita Da Família”: A Metamorfose Nas Lições De Literatura De Vladimir Nabokov
(1899 – 1977)

Andressa Melo da Fonseca1

Resumo: Entre 1941 e 1959, período que residira nos Estados Unidos, Vladimir Nabokov fora
professor universitário de literatura e, antes de se tornar conhecido como o autor de Lolita (1955),
ministrara cursos que se debruçavam sobre contos e romances do século XIX e XX, que seriam
posteriormente editados e transformados nas Lições de Literatura (1982). A aula sobre A
Metamorfose, de Franz Kafka (1883 – 1924) é bastante representativa do procedimento crítico de
Nabokov, uma vez que, ao fazer uma análise esmiuçada sobre a natureza do inquietante romance de
Kafka, traz à tona uma visão renovada sobre a obra.

Palavras-chave: Vladimir Nabokov; Lições de Literatura; Franz Kafka; Metamorfose.

Abstract: While he was living in the United States between 1941 and 1959, Vladmir Nabokov was
an university lecturer who, before becoming known as the author of Lolita (1955), taught courses
about short stories and novels from the 19th and 20th centuries. These lectures would later be edited
and transformed into Lectures on Literature (1982). The lesson on Franz
Kafka's Metamorphosis (1883-1924) is a great representation of Nabokov's critical procedures as he
brings to light a renewed vision on the book though a thorough analysis of the nature of Kafka's
disquieting novel.

Keywords: Vladimir Nabokov; Lectures on Literatura; Franz Kafka; Metamorphosis.

I. Introdução: As Lições de Literatura.

“Um homem pobre tem seu casaco roubado (“O Capote”, de Gógol), outro infeliz é
transformado em besouro (A Metamorfose, de Kafka) – e daí? Não há resposta
racional para “e daí?2

Após migrar para os Estados Unidos fugindo da invasão alemã à França, o crítico e ficcionista
russo Vladimir Nabokov (1899-1977), antes de ficar mundialmente conhecido pelo best-seller Lolita
(1955), fora professor universitário de literatura russa e europeia no Wellesley College e na
Universidade de Cornell e durante os anos de 1941 e 1959, ministrara cursos que se debruçavam
sobre contos e romances de língua inglesa, russa, francesa e alemã do século XIX e XX. Estas aulas
seriam posteriormente editadas e transformadas nos dois volumes intitulados Lições de Literatura, e
Lições de Literatura Russa.

1 Mestranda em História Social pelo PPGHIS/UFRJ. Bolsista do CNPq. Email:


andressamelof@gmail.com
2 NABOKOV, Vladimir. Lições de Literatura. Op., Cit., p. 303.

302
Em suas aulas, Nabokov se debruçava sobre obras escolhidas, em busca de promover uma
análise da estrutura de cada uma destas obras, dando especial atenção “aos talentos individuais” dos
escritores e “a questões de estrutura" dos contos e romances analisados3, removendo da esfera de
análise alguns paratextos que achava dispensáveis, como afirmara em uma aula inicial chamada
“Good Readers and Good Writers” onde fala que o leitor ideal deveria olhar para cada livro “as the
creation of an entirely new world “having no obvious connection with the worlds we already
know””4 buscando abstrair, em outras palavras, primeiro, uma leitura que faça de pronto ligações
com outros mundos, como um leitor de Madame Bovary que o proclame como uma “denúncia à
burguesia”5, ou em outros termos, exorcizando o “demônio da cronologia” como propõe E.M Forster
em Aspectos do Romance .
Apenas assim teríamos um leitor que conseguiria utilizar sua “imaginação impessoal” para
obter a experiência de prazer artístico, este que, por sua vez, surgiria fundamentalmente da
apreciação das qualidades artísticas do autor e da obra em termos formais. Nabokov assim, se
aproximando dos formalistas russos que muito o influenciaram, constrói aulas e opiniões baseadas
fundamentalmente em questões de estilo e forma, produzindo assim, um cânone particular que se
proclama alheio a questões que ultrapassem os aspectos formais.
Se os estudantes de Nabokov eram instruídos a olharem cada livro como uma criação de um
mundo inteiramente novo, abstraindo ideias pré-concebidas, o intuito de Nabokov com as aulas era
apresentar a eles, por sua vez, a arquitetura destes mundos, e as obras selecionadas para a dissecação
eram as que ele considerava verdadeiramente extraordinárias. Dentre o seleto grupo de obras
‘extraordinárias’, trabalhadas de forma exaustiva e bastante peculiar pelo autor para suas aulas,
algumas de se destacam em sua opinião, como é o caso d’A Metamorfose, de Franz Kafka, que
segundo Nabokov, dominara a arte da ficção de forma nada menos que gloriosa.

II. “O parasita da família”

Nabokov começa sua aula sobre Kafka lançando mão de dois lugares comuns em suas
análises: a primeira seria o uso de duas ou mais obras para promover uma análise pautada em
comparações e parâmetros definidos – afinal, ele fora professor de literatura comparada em Cornell;

3 FRANK, Joseph. Op., Cit,, p.261.


4 Ibid., p. 262.
5 Ibid.

303
a segunda, mais subjetiva, pautada no clamor inaudito por uma leitura ativa e o uso da “imaginação
impessoal” para atingir o “prazer artístico”, como afirma em sua aula Good Readers and Good
Writers, tratada acima. Ele afirma:
Podemos desmembrar o conto, ver como as partes são costuradas; mas você precisa
ter alguma célula, algum gene, algum germe que vibre ao reagir a sensações que não
é capaz de definir ou destacar. Beleza mais compaixão – isso é o que melhor se pode
dizer ao buscar e definir a arte.6
Para apreciar Kafka, o leitor ideal deve se impressionar com algo que ultrapassa a obra em
termos de fantasia entomológica. A temática da fantasia e da realidade perpassará essa esmiuçada
análise até o seu fim, pois uma sensação de espanto, de paradoxo, de inusitado se introduz logo nas
primeiras palavras d’A Metamorfose, quando o leitor se depara com a fatal história de Gregor Samsa,
o caixeiro-viajante explorado por sua família e emprego: “Quando certa manhã Gregor Samsa
acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto
monstruoso. ”7. A partir dessa frase – não por acaso, a primeira -, o destino de Gregor estaria posto
e o desenrolar da história se pauta na breve e trágica vida do inseto-Gregor.
Como afirma Modesto Carone, um dos maiores especialistas na obra kafkiana no Brasil, a
verdadeira colisão entre uma linguagem tipicamente cartorial, protocolar, e o inverossímil do que
acabara de ser narrado cria um sentimento dialético no leitor, que não tem – nem terá futuramente –
explicações sobre a pressuposta metamorfose de Gregor, e ainda se verá, paradoxalmente, ligado a
um inseto, não mais homem em forma, mas homem em consciência. Todo e qualquer tipo de
alucinação ou esperança é descartada por Kafka quando Gregor se remexe na cama pensando ““O
que aconteceu comigo? ”, perguntou-se. Não era um sonho.”. O leitor se fixa, já na primeira página,
em uma posição de desconforto, uma vez que se depara com um estranho começo sem início
translúcido, e continuará nele até o final, pois
Dito de outro modo, a metamorfose em inseto é postulada pela novela como algo
definitivo: ela não é um pesadelo do qual se pudesse acordar. Pelo contrário, no
registro costumeiro das inversões kafkianas, é o próprio metamorfoseado quem
desperta para este pesadelo. 8

O desinteresse de Kafka por elucidar a metamorfose de Gregor Samsa gera, assim, a


aceitação desta como um fato, como um componente do real, assim como a imediata preocupação
do caixeiro-viajante com seu atraso nos afasta do inverossímil da transformação do homem em
inseto, fazendo com que o acontecimento seja tratado com naturalidade. No entanto, a genialidade

6 Ibid., p. 303.
7 KAFKA, F. A Metamorfose. Trad. Modesto Carone. 2a Ed. São Paulo. Companhia das Letras, 1997,
p.1.
8 CARONE, M. O parasita da família, Revista Psicologia USP, nº 3, 1992, p. 132.

304
de Kafka não se daria no simples uso da metamorfose, “(...) é evidente que o tema da metamorfose
não é novo em literatura”9, tema este largamente usado em fábulas, mitos e contos.
Porém, nesses casos conhecidos, o distanciamento entre o mundo do acontecimento da
metamorfose e o mundo do leitor é manifesto, enquanto que em Kafka isso desaparece conforme a
transformação do protagonista se fundamenta em dois postulados de naturalização do ocorrido:
primeiro o cenário, um ambiente ordinário, plenamente conhecido pelo leitor; segundo, sua reação
frente ao ocorrido: de extrema naturalidade - apesar de não entende-lo, Gregor o aceita prontamente
-, criando uma sensação paradoxal no leitor, uma mescla de identificação e então, desconforto, uma
vez que ao confrontar a obra, as sensações de aproximação e distanciamento se fragmentam e se
confundem.
Walter Benjamin, quando fala acerca da construção da obra kafkiana, afirma que “É possível
ler durante muito tempo as histórias de Kafka sem se perceber que não se trata, nelas, de homens10,
e assim começamos a compreender a natureza desta obra que mistura seus longos períodos, um
léxico seco e cru, e uma variedade de alegorias que na verdade não estariam tão distantes do leitor
quanto poderia parecer a um primeiro momento, e que somado a isso nos deparemos com a presença
insustentável de um realismo envolto do inverossímil, gerando a dúvida para quem lê: fantasia ou
realidade?
Nabokov também atenta para a necessidade de se discutir essa questão, que profundamente
inquietou os leitores e críticos desde que a obra foi escrita, usando como exemplo, além da
Metamorfose, outras duas obras, O Capote de Gogol e O Médico e o Monstro, de Stevenson, para
ilustrar a temática da fantasia e da realidade:
“O capote”, O médico e o monstro e A metamorfose são comumente consideradas
fantasias. Em minha opinião, toda obra de arte notável é uma fantasia na medida em
que reflete o mundo único de um indivíduo único. Mas quando as pessoas chamam
tais obras de fantasias, apenas indicam que o objeto das histórias se afasta daquilo
que cotidianamente chamamos de realidade. Por isso, tratemos de examinar o que é
a realidade a fim de descobrir de que maneira e em que graus as chamadas fantasias
se distanciam da chamada realidade. 11

Para ilustrar, de forma didática - visto que se trata de uma aula - sua concepção de realidade,
Nabokov nos apresenta uma estória de três homens, atravessando uma mesma região: um
fazendeiro, morador da cidade, gozando de suas férias; um botânico profissional; e um citadino do
tipo pragmático, realista. Enquanto o último caminha pela região observando as árvores como
árvores, seguindo o mapa e as dicas de conhecidos, o botânico observa a natureza sobre a ótica da

9 Idem, p.133.
10 BENJAMIN, W. Franz Kafka: No décimo aniversário de sua morte. In: A modernidade
e os modernos. Tempo Brasileiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro, 2000.
11 NABOKOV, Vladimir. Lições de Literatura, p. 304.

305
ciência, analisando o ecossistema e cada uma de suas particularidades a partir deste prisma; e por
fim o fazendeiro, que se distingue dos dois primeiros pela intensa ligação emocional e pessoal com
o ambiente, visto que crescera e vivera ali, conhecia cada árvore, cada sombra, e cada um desses se
ligava com uma memória particular sua.
Para o turista e o botânico, a realidade parecia “um mundo fantástico, vago, sonhador,
irreal”12. Eles não poderiam conhecer o local com todas suas conexões e memórias da mesma forma
que o fazendeiro, e este, por sua vez, não conhecerá a relação entre a vegetação que o cerca e a visão
botânica de mundo, por exemplo. Nesse sentido, emergem três mundos, completamente diferentes,
três homens que experenciam três realidades diversas. Seja com o personagem que quisermos
adicionar à cena, em cada caso o mundo seria totalmente diferente dos outros,
[...] porque as palavras mais objetivas - árvore, estrada, flor, céu, estábulo, polegar,
chuva - têm, para cada uma das pessoas, conotações subjetivas de todo diferentes.
De fato, essa vida subjetiva é tão poderosa que transforma em uma casca vazia e
quebrada a chamada existência objetiva. O único caminho de volta para a realidade
objetiva é o seguinte: pegamos esses vários mundos individuais, misturamos muito
bem, coletamos uma gota dessa mistura e a chamamos de realidade objetiva. 13

Essa mistura apresenta, em cada uma de suas partículas, um vitral de realidades, que de modo
geral “estariam bem diluídas na gota de realidade objetiva que examinaríamos no nosso tubo de
ensaio”14 e teria em sua essência algo que fundamentalmente transcende as ilusões óticas e os testes
de laboratório, como Nabokov aponta. Logo, compreender o uso do termo realidade torna
imprescindível perceber que pensa-la é atentar para todas essas partículas, e que em cada uma delas
temos uma amostra média da mistura de milhões de realidades individuais.
Esta é, portanto, a noção de realidade para o autor, quando a coloca contra determinados
panos de fundo, como são os mundos d’O Capote, do Médico e o Monstro ou da Metamorfose, que
são fantasias específicas: Gregor Samsa é uma figura dotada de emotividade humana em meio a
personagens grotescos e impiedosos - como, na análise de Nabokov, o é Akaki Akakievich - figuras
ridículas ou de horror. Se a qualidade humana, para o autor, distingue Akaki de Gregor, o mesmo
não acontece com o topos do patético, presente em ambos.
Segundo Nabokov, no mundo de Jekyll e Mr. Hyde não existe tal carga de emoção humana,
nenhum nó na garganta, ou nada do sentimento asfixiante e inescapável que atinge o leitor ao se
deparar com os casos de Akaki e Gregor. Se Stevenson dedica longos períodos ao horror da situação
de Jekyll, no final das contas, ele não passaria de um espetáculo de fantoches, e afirma que
A beleza dos pesadelos privados de Kafka e Gógol está em que seus principais
protagonistas humanos e os personagens desumanos que os cercam pertencem ao

12 Ibid., p. 305.
13 Ibid., p. 305.
14 Ibid., p. 305.

306
mesmo mundo fantástico privado, porém a figura central tenta escapar desse mundo,
livrar-se da máscara, transcender o capote e a carapaça. No entanto, na história de
Stevenson falta essa unidade e não há nenhum contraste 15

Nesse sentido, afirma Nabokov, os personagens de Stevenson - como Utterson ou Poole -,


que deveriam ser personagens comuns, do cotidiano, são todavia derivados de uma maior influência
de Stevenson, que é Dickens, e portanto não fariam parte integral da realidade artística do autor, no
livro. Para Nabokov, o contraste entre a vida de Jekyll e Hyde com a Londres convencional não tem
o mesmo teor que as diferenças entre “um mundo absurdo e o pateticamente absurdo Bachmátchkin,
ou entre o mundo absurdo e o tragicamente absurdo de Gregor”16
A unidade, nesse sentido, não se forma em Stevenson pois sua fantasia é um tipo diferente
da fantasia do cenário. O patético ou o trágico de Jekyll não é especialmente diferente. A arte de
Stevenson não está no impulso de emoção artística que impulsiona, e apesar da sua estilística
notável, como Nabokov afirma em uma aula especificamente sobre “O médico e o monstro”:
A história de Stevenson - Deus guarde sua alma pura -, é defeituosa como história
de detetive. Nem é uma parábola ou alegoria, pois seria de mal gosto como de uma
ou outra. Ela tem, contudo, um encanto próprio se a consideramos um fenômeno
estilístico17. Não é apenas uma boa “história de terror”, como Stevenson exclamou
[...]. É também, e com maior importância, “uma fábula que está mais próxima da
poesia que da prosa comum”. 18

Para Nabokov, o propósito artístico de Stevenson é fazer com que um drama fantástico
transcorra diante de homens comuns e dotados de bom senso, levando isso a cabo em um ambiente
já conhecido dos leitores de Dickens: com um cenário marcado pelo nevoeiro de Londres e suas
atmosfera cinzenta, casas com fachadas lúgubres, advogados de família e mordomos devotados,
vícios anônimos que florescem nos mais respeitáveis cenários. A proposta de Stevenson se
desenvolve no sentido em que
Stevenson lança mão de todos os recursos possíveis - imagens, entonações,
sequencias de palavras e também pistas falsas - para construir gradualmente um
mundo em que a estranha transformação a ser descrita nas próprias palavras de Jekyll
terá sobre o leitor o impacto de uma realidade aceitável e artística. Em outras
palavras, conduzirá o leitor a um estado de espírito em que ele não se perguntará se
aquela transformação é ou não possível. 19

Proposta muito similar à de Dickens, em A Casa Soturna, o qual Nabokov também analisa

15 Ibid., p. 306.
16 Ibid., p. 307.
17 Grifo meu.
18 Ibid., p. 230.
19 Ibid., p. 239.

307
nas lições, Stevenson é analisado de acordo com a ideia de que o fantástico em sua narrativa está
em sua existência como fenômeno estilístico, mas, que, porém, se diferencia vividamente de Kafka
e Gogol. Ele afirma, por fim, que
Em Gógol e Kafka, o protagonista central absurdo pertence ao mundo absurdo que
o cerca, mas patética e tragicamente, tenta lutar para escapar dele e chegar ao mundo
dos humanos - morrendo em desespero. Em Stevenson, o personagem central
irrealista pertence a uma espécie de irrealidade diferente do mundo que o cerca.
Trata-se de um protagonista gótico em um cenário dickensiano; e, quando luta e por
fim morre, seu destino só inspira uma emoção convencional. 20

A análise de Nabokov, nesse sentido, não esconde os processos de atribuição de valor das
obras, pelo autor, e sua análise comparativa, ao tentar retirar os autores e as obras de um tempo
histórico - bem como na imagem de Forster de autores de épocas diversas em uma sala - propõe uma
análise que coloca em um mesmo plano todos os autores, os diferenciando, nesse sentido, pelas
características formais de suas obras. Nabokov segue esta imagem de Forster e, aqui, cria uma
análise que traça as aproximações e distanciamentos de Stevenson, Gogol e Kafka.
Nesse sentido, para perceber de que forma Nabokov, enquanto ficcionista e crítico, afirma
em Kafka um alto valor estético, é necessário perceber o movimento de comparação, contraposição
e equiparação que Nabokov constrói a todo momento, e como esta crítica se torna uma ferramenta
que determina o valor das obras.
Para Nabokov, podemos perceber ao final da triangulação das obras de Stevenson, Gogol e
Kafka, que o primeiro tem um alto valor - tanto que dedica a ele uma aula -, porém que este valor
não é tão alto quanto de Kafka e Gogol, que teriam “cinco ou seis dimensões”, enquanto Stevenson
teria duas, sendo uma “obra-prima menor”. Sua análise, que tenta descartar esferas que considera
supérfluas, cria um cânone particular - que, no entanto, como afirmado anteriormente, não anula o
contexto externo de um campo literário - pautado em questões formais dos romances.
Kafka se mostra como um dos grandes exemplos onde a opinião pessoal do autor se declara
- iconoclasta, como usual -, mostrando um desprezo por contextos que ultrapassam a obra em si e
buscando orientar a crítica através de aspectos formais. Quando começa sua aula sobre Kafka, de
pronto, Nabokov afirma que para sequer começar a analisar a obra kafkiana, é preciso rechaçar duas
opiniões bastante corriqueiras acerca de Kafka: a primeira é a opinião de Max Brod21, de que a única
compreensão que se pode haver sobre Kafka é na categoria de santidade, e não a da literatura. Para
tal acepção, Nabokov declara que Kafka era acima de tudo um artista, e por mais que muitos possam
alegar que todo artista é uma espécie de santo, ele não consegue observar nenhuma implicação

20 Ibid., p. 307.
21 Escritor e jornalista alemão, que fora amigo, biógrafo e testamenteiro de Kafka, e ainda teria organizado
e publicado muitos de seus escritos, como Amerika e Narrativas do Espólio

308
religiosa no talento do autor.
Uma segunda opinião que rejeita é o ponto de vista freudiano, solidificado por seus biógrafos
como Charles Neider, em “The Frozen Sea: A Study of Franz Kafka”, de 1948, que alegam que,
entre outros exemplos, A Metamorfose é baseada na relação de Kafka com seu pai e no sentimento
de culpa que o acompanhou por toda a vida. Estes, ainda, afirmariam mais: que no simbolismo
mítico, crianças seriam representadas por insetos nocivos e animais, e dessa proposição então surge
a ideia de que Kafka teria usado o símbolo do inseto para representar o filho segundo tais postulados
freudianos: “O inseto, dizem eles, caracteriza precisamente seu sentimento de falta de valor diante
do pai”22, declaração esta que Nabokov descarta com escárnio 23.
Após estas afirmações Nabokov reitera que pretende descartar tais opiniões e se concentrar
no elemento artístico. Para tanto, ele propõe uma aproximação com Flaubert:
O escritor que mais influenciou Kafka foi Flaubert. Ele, que odiava a prosa
“bonitinha”, teria aplaudido a atitude de Kafka em relação a seu ofício. Kafka
gostava de extrair seus termos da linguagem da lei e da ciência, conferindo-lhes uma
precisão irônica, sem a intrusão dos sentimentos privados do autor; esse era
exatamente o método de Flaubert por meio do qual ele alcançou um efeito poético
singular. 24

O estilo de Kafka ao qual Nabokov cita já está presente na primeira página da obra. A
caracterização inicial do inseto monstruoso, com “costas duras como couraça” e com “ventre
abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas”25 traz a tona a característica kafkiana que
Nabokov tanto estima. Sabidamente conhecedor e amante de insetos - lepidopterólogo que era -,
Nabokov tenta até mesmo desvendar a informação que o próprio Kafka se negara a confessar em
vida: se questionando que inseto Gregor Samsa seria, ele chega até mesmo a desenhá-lo para seus
alunos, uma ferramenta que muito utilizava em suas aulas para discutir o estilo dos autores, dar
exemplos e até mesmo criar esquemas de narrativa de caráter didático para os estudantes.
Finalmente, ele chega à conclusão que o animalesco Gregor seria não um besouro rola-bosta
como no original, em alemão, a velha arrumadeira o chama (Mistkäfer), e sim, simplesmente, um
besouro. De toda forma, nem Gregor nem Kafka viram-no como besouro com total clareza, segundo
pensa Nabokov. E ainda, analisando essa transformação mais perto, ele expõe um ponto de vista
crucial para a leitura do romance:
A mudança, embora chocante e notável, não é tão estranha quanto possa parecer à
primeira vista. Um observador de bom senso (Paul L. Landsberg em The Kafka
Problem. Ed. Angel Flores, 1946) comenta: “Quando vamos para a cama em um

22 Ibid., p. 308.
23 “Como aqui estou interessado em insetos e não em insultos, descarto essa idiotice”, afirma Nabokov
logo abaixo.
24 Ibid., p. 308.
25 KAFKA, F. A Metamorfose. Trad. Modesto Carone. 2a Ed. São Paulo. Companhia das Letras, 1997,
p.1

309
local desconhecido, é comum termos um momento de pasmo ao acordar, uma
repentina sensação de irrealidade, e essa experiência deve ocorrer muitas vezes na
vida de um caixeiro-viajante, um modo de vida que torna impossível qualquer senso
de continuidade”. O senso de realidade depende da continuidade, da duração. 26

Se o senso de realidade depende da continuidade, e como afirma ainda Nabokov, o


isolamento por sua vez seria aquilo que, em última análise, caracterizaria o artista, o gênio – a família
Samsa em torno de Gregor seria nada mais que a mediocridade circundando o gênio. Nesse sentido,
percebemos que a coisificação, a animalização do homem mostra a angústia do personagem que
perde o controle de si, mostrando a falência do modelo de identidade proposto pela modernidade.
Por isso o mundo que Kafka constrói é angustiante por sua sordidez ou ironia, e muita dessa sordidez
é representada pela ideia da burocracia e de como os personagens, por exemplo, serão definidos em
personalidade pelo trabalho que possuem.
Gregor Samsa, antes de ser Gregor-homem ou Gregor-inseto, é Gregor-caixeiro-viajante. E
o Gregor-caixeiro-viajante não sente tamanho estranhamento ao acordar metamorfoseado, seu senso
de realidade se mantêm, e tudo que ele precisa é escapar dessa condição - e se libertar do verdadeiro
parasita, sua família.
Os familiares de Gregor são parasitas que o exploram, o comem por dentro. Essa é
a coceira do besouro em termos humanos. A ânsia patética de encontrar alguma
proteção contra a traição, a crueldade e a sujeira é o que deu origem à sua carapaça,
seu invólucro, que de início parece duro e seguro, mas posteriormente se revela tão
vulnerável como tinham sido sua carne e seu espírito humano doentios. Qual dos três
parasitas - pai, mãe e irmã - é o mais cruel? 27

A identidade do indivíduo em questão seria, dessa forma, não um confronto com a realidade
e sim sua adaptação - um tanto quanto grotesca – a ela, e por isso quando Gregor não pode mais ser
um caixeiro-viajante, sua identidade se esvazia - ele começa a se sentir mais animalesco –, e a
problemática proposta em Kafka é a iminência da perda de identidade do indivíduo frente a essa
nova realidade, e a incansável busca pela conservação – e o não-esquecimento – da identidade
propriamente dita.
Assim Gregor passa a história em uma tentativa de não esquecimento de sua própria
identidade: se a mãe e irmã querem tirar todos os móveis do quarto para que ele “rasteje” livremente
como um animal, ele se vê, por um ímpeto de lucidez contra sua animalização, impelido a, se
necessário, atacar a própria irmã para defender o quadro que tanto gosta e impedir que o
esquecimento se torne o vetor de sua coisificação.
Ainda nessa passagem do quarto, percebemos que o aspecto da incomunicabilidade será

26 NABOKOV, Vladimir. Op., Cit., p. 312.


27 Ibid., p. 313.

310
essencial para a compreensão da temática da identidade e da realidade durante toda a narrativa de
Kafka – um lugar comum que persiste em toda a obra kafkiana, como n’O Processo. Ao transformar-
se em um animal, Gregor não perde a noção de sua identidade, porém, perde a capacidade de se
comunicar, e de sua voz, apenas chiados são ouvidos pela família. Segundo Carone,
Dito de outra forma, Gregor está realmente transformado num bicho, mas não deixa
nunca de ser Gregor. Ou seja, ele se comporta como um homem que ainda existe,
mas que já não pode ser visto como sendo ele mesmo – e nessa medida ele é
empurrado para o isolamento e a solidão (para acabar na exclusão). 28

A incomunicabilidade 29 entre os personagens se dá não porque estes não conseguem se


expressar – Gregor produzia chiados e guinchos, ou pelo menos, se esforçava para se comunicar –
mas pela incapacidade de se fazerem entender, e essa falha na comunicação que Kafka expressa é
um sintoma de algo muito mais cotidiano e basilar que gera essa barreira invisível entre Gregor e
sua família. Como Carone afirma, Gregor não é mais visto como ele mesmo pela própria família, e
por isso é empurrado para um quarto escuro e para a solidão.
Gregor, ao se metamorfosear, se transforma em um fardo para a família, e na incapacidade
de ser entendido como consciente, é relegado à esfera animal e ao isolamento. Seria como Benjamin
afirma “O mundo das chancelarias e das repartições, dos quartos obscuros, bolorentos e úmidos é
o mundo de Kafka.”30. Porém, para Gregor, ele é tudo menos um animal: sua forma grotesca não o
impede de pensar em termos humanos. Nabokov afirma,
Gregor ainda pensa no seu corpo em termos humanos, mas agora a parte de baixo de
um ser humano é a traseira de um besouro, e a cabeça e o tórax de um ser humano
são a parte superior de um besouro. Um homem de quatro [na cena em que Gregor
tenta, inutilmente, sair da cama] imagina ser o equivalente a um besouro sobre seis
pernas. Sem ainda compreender isso de todo, ele tenta com persistência se pôr de pé
sobre o par de pernas traseiras.31

Na cena seguinte, quando a família finalmente verbaliza a necessidade de buscar um


serralheiro para abrir a porta para ver o que havia acontecido com Gregor – e de um médico, pois ele
só poderia ter sido acometido por um mal muito grave para não ir trabalhar como de costume –,
observamos o desenrolar do processo de animalização para a família em contraposição a perseverante
identidade humana de Gregor: quando ouvira a família tomando atitudes para abrir o quarto, ele, que
apesar de perceber que as palavras que saiam de sua boca se tornavam incompreensíveis para as

28 CARONE, M. O parasita da família, Revista Psicologia USP, nº 3, p. 131-141, 1992, p.137.


29 Nabokov faz um paralelo, inequívoco, sobre a relação entre a animalização/coisificação e a perca da
comunicabilidade em Kafka com uma cena de Finnegans Wake, escrito vinte anos depois por James Joyce, onde duas
lavadeiras que conversam nas margens de um rio se transformam gradualmente em uma pedra e um olmo.
30 BENJAMIN, W. Op., Cit., p.74.
31 NABOKOV, Vladimir. Op., Cit., p. 314.

311
pessoas a sua volta, mas que, no entanto, para ele agora lhe pareciam mais claras, como que se
estivesse se acostumando, pensa, ingenuamente feliz, 32 que ainda estaria incluído no círculo dos
homens.
Porém a felicidade de Gregor duraria pouco, e após alguns episódios, sua trágica vida
terminaria com uma maçã arremessada pelo próprio pai, que perfurando suas costas e se alojando lá,
pouco a pouco esvaziava o que de humano ele ainda se agarrava – e a própria vida. O golpe final é
desferido por sua própria irmã, Grete, em conversa com sua mãe, a qual Gregor escuta, afirma: para
ela, já desaparecera o irmão humano, e agora, deve desaparecer o besouro. Após essa traição final,
Gregor se arrasta ferido para o quarto e desiste da vida. Quando a arrumadeira descobre o corpo seco
de Gregor no dia seguinte, um grande alívio acomete a família. Nabokov, sobre esse momento, afirma
Eis um ponto a ser observado com cuidado e carinho. Gregor é um ser humano em
um disfarce de inseto; sua família é composta de insetos disfarçados de seres
humanos. Com a morte de Gregor, suas almas de insetos repentinamente entendem
que estão livres para se divertir. “Grete, entre um pouquinho conosco”, disse sra.
Samsa com um sorriso trêmulo, e Grete, sem deixar de rever o cadáver, seguiu os
pais o até o quarto”. A arrumadeira escancara a janela, e há algum calor no ar: é o
fim de março, quando os insetos despertam da hibernação. 33

O órgão familiar é a tradução do ambiente de asfixia, de prisão, e a metamorfose, a


transformação de Gregor em animal se insinua como uma libertação. Para Benjamin, “Não é por
acaso que Gregor Samsa acorda transformado em barata precisamente na casa de seus pais”34, e
para ele os personagens que escaparam do seio da família são os quais talvez ainda haja esperança.
Para Carone, “(...) é admissível supor que o inseto Gregor é inútil porque já não produz, só consome;
ao mesmo tempo que Gregor, o inseto, é a forma sensível de uma liberação. ”35. Se nas palavras de
Nabokov, Gregor – bem como Akáki – luta para escapar desse mundo, transcender a carapaça, se
desvencilhar dos verdadeiros parasitas, essa transformação só se dá de forma trágica. A libertação
de Gregor se dá na passagem do adequado ao inadequado, do familiar para o não- familiar, do “ele”
para o “isso”, e finalmente, em sua derradeira morte.
Por fim, Nabokov manifesta algumas temáticas essenciais para a compreensão da história,
como a percepção da repetição do número três para Kafka – a divisão do conto, o número de portas
do quarto de Gregor, as empregadas domésticas, três hóspedes –, uma segunda linha temática
recorrente, que seria no tratamento das portas, e por fim, o tema das oscilações de bem-estar da

32 “Certamente não entendiam mais suas palavras, embora para ele elas pareceram claras, mais claras
que antes, talvez porque o ouvido havia se acostumado. De qualquer forma agora já se acreditava que as coisas com ele
não estavam em perfeita ordem, e a disposição era de ajuda-lo. A confiança e a certeza com que foram tomadas as
primeiras decisões fizeram-lhe bem.” KAFKA, Franz. Op., Cit., 15.
33 NABOKOV, Vladimir. Op., Cit., p. 335.
34 BENJAMIN, W. Op., Cit., p.77.
35 CARONE, M. O parasita da família, p. 139.

312
família Samsa, e o equilíbrio do seu bem-estar com, por outro lado, a condição de Gregor.
Nabokov reafirma aqui, com sua análise, a noção, já solidificada no interior do campo
literário, do alto valor estético n’A Metamorfose, e a faz traçando paralelos e distanciamentos com
Stevenson e Gógol, – com mais distanciamentos do primeiro e aproximações do segundo, como
pudemos observar – para justamente perceber aquilo que ele deixa claro para seus alunos na aula
Good Readers and Good Writers: a detalhada arquitetura desses verdadeiros mundos criados por
ficcionistas, que quando conseguem atingir o auge da estética literária podem ser consideradas como
verdadeiras obras primas.

III. Considerações finais

Após sua análise, como de costume, pormenorizada, fica claro que a opinião que Nabokov
tem de Kafka é de alta estima. Em suas aulas, o autor que não mede palavras no agrado ou desafeto
por determinas obras e determinados ficcionistas disseca cada passagem da obra e segue, cena por
cena, colocando o estilo de Kafka, suas ferramentas e artifícios formais sob uma criteriosa lupa de
crítico e escritor. Na aula de Kafka, ele termina afirmando que
Vocês terrão notado o estilo de Kafka. Sua clareza, a entonação precisa e formal em
notável contraste com a matéria de pesadelo do conto. Nenhuma metáfora poética
ornamenta a história severamente simples em preto e branco. A limpidez de seu
estilo realça a riqueza sombria da fantasia. Contraste e unidade, estilo e assunto,
método e trama estão perfeitamente integrados. 36

Para Nabokov, A Metamorfose é uma obra-prima moderna, ficando abaixo apenas de Ulysses
em seu cânone particular: “My greatest masterpieces of tewntieth century prose are, in this order:
Joyce’s Ulysses, Kafka’s Transformation; Biely’s Petersburg; and the first half of Proust’s fairy
tale In Search of Lost Time” 37 , ele afirma em entrevista. No entanto, o cânone particular que
Nabokov traz à tona com sua crítica, como exposto anteriormente, não se dá fora das dinâmicas de
um quadro maior, que é o do próprio campo literário. Tendo influenciado profundamente autores
como Albert Camus, Jean-Paul Sartre, George Luis Borges e Eugène Iodesco e uma geração inteira
de ficcionistas que vieram após sua vida, Kafka, ainda, fora alvo de estudos de Gilles Deleuze,
Theodor Adorno, Walter Benjamin, György Lukács e Bertol Brecht para citar apenas alguns. Milan
Kundera afirma que “More than anything, Kafka brought about an aesthetic revolution. An aesthetic

36 NABOKOV, Vladimir. Op., Cit., p. 339.


37 NABOKOV, Vladimir. Strong Opinions, p. 57.

313
miracle. Of course, no one can repeat what he did.”38
Nesse sentido, podemos observar que, como proposto inicialmente, por mais que Nabokov
esteja propondo uma análise que se situe fora de muletas como tempo e espaço e abraçando, pelo
menos teoricamente, a proposta de Forster de colocar os escritores, ombro a ombro em uma sala,
ignorando em que contexto se situam, em que língua escrevem, em que época escrevem, para
compará-los através dos recursos formais – o que para Nabokov, modernista, seria um verdadeiro
flerte com os formalistas russos que tanto o influenciaram –, é improvável que, qualquer crítico,
especialmente os ficcionistas, consigam se colocar em um patamar para além das opiniões,
discussões e canonizações que emergem do campo literário.
Se o cânone particular de Nabokov elege, no que tange à literatura europeia Austen, Dickens,
Flaubert, Kafka, Joyce, Proust e Stevenson – uns com mais estima, como Dickens, e outros menos,
como Jane Austen, a qual Nabokov relutara bastante em considerar como tendo relevância estética
e formal e que nunca fizera parte de seus escritores favoritos –, para citar as obras que ele decide
analisar em seus cursos, ou seja, que apesar das opiniões pessoais, fazem parte do hall de escritores
que, na sua opinião, merecem estar em um curso de literatura europeia por sua contribuição às
futuras gerações de escritores e leitores, este cânone se pauta, incontornavelmente, nas opiniões já
solidificadas e discutidas do campo literário.
Nabokov não fora o primeiro e não será o último a conferir a Dickens ou Flaubert a mais alta
estima na arte da ficção. De fato, ele tenta – com sucesso – não tratar de temas exteriores às obras
em suas aulas e permanecer imerso na estrutura destas, e esmiuçar os estilos dos autores, analisando
e colocando a sua lupa em cada efeito estético que estes tentam causar, se são bem sucedidos ou
não, ou o intuito do uso de determinados artifícios estéticos, e etc.
Certamente suas aulas tinham como objeto a estrutura das obras e Nabokov se utiliza
largamente da literatura comparada para construir suas análises e criar parâmetros: Stevenson
consegue apenas criar “duas dimensões” com sua prosa, mas Kafka ou Gógol conseguem “cinco ou
seis” – é este um exemplo objetivo da criação de parâmetros e comparações por Nabokov. De fato,
ele deixa de lado analises psicologizantes dos autores; não se preocupa com datas (O Capote fora
escrito em 1842, o que não o impede de colocá-lo em pé de igualdade com A Metamorfose de 1915,
e ainda, opô-los ao Médico e o Monstro de 1886) e outros possíveis contextos.
Porém isso não retira suas opiniões acercas das obras e de autores de um contexto maior, e
em especial, nos mostra como a literatura comparada se mostra uma ferramenta fundamental para
perceber como o próprio campo literário se renova e funciona. Se como afirma Rene Wellek 39, o
objeto de estudo da crítica seria o estudo das inter-relações entre literaturas e, ainda, que não

38 KUNDERA, Milan. The Art of Fiction No. 81. Paris, 1984.


39 WELLECK, René. Conceitos de Crítica. São Paulo: Editora Cultrix, 1963.

314
existiriam fatos neutros em literatura, logo, o simples ato de se fazer uma escolha entre infindáveis
livros se torna, por si só, um ato crítico.
Por outro lado, compreender que o processo de atribuição de valor literário a uma obra
específica passa, incontornavelmente, pelo interior da lógica do crítico, como afirma Leyla Perrone-
Moyses, em especial do crítico ficcionista, que será o personagem que irá perpetuar valores e formas
através não só da sua atividade crítica, como também na apropriação e utilização desses valores
escolhidos na sua escrita ficcional se relaciona profundamente com a proposta aqui delineada: se
Nabokov tem em altíssima estima Kafka, os críticos-leitores de Nabokov ainda não conseguem
definir o quão profunda é a influência deste. John Burt Foster, Jr afirma:
A much broader issue that demands further research would move beyond the
differential maneuverings just outlined to ask whether Nabokov, despite his lucidity
and self-consciousness, might have learned more from Kafka than he knew.

Como leitor de Kafka e ficcionista, o quanto Nabokov teria sido influenciado por este? Esta
questão, que requer uma pesquisa mais sólida na relação entre os dois autores, por hora, nos responde
que a proposta de Perrone-Moyses40 não é infundada: o papel do crítico-autor é fundamental para a
perpetuação dos valores que serão, por sua vez, estimados no campo literário. Quando Kafka
perpetua valores postos em circulação por Flaubert, ou quando por sua vez, Nabokov toma
empréstimo de Kafka vários destes e os imortaliza através não só de sua própria literatura, como da
sua trajetória como crítico e ainda mais, como professor, ele se mostra o leitor mais importante de
uma obra de ficção, como Perrone-Moyses nos mostra.
Construindo um cânone particular, ele se torna mais uma peça nessa eterna partida de xadrez
que é o campo literário. Nabokov era reconhecido enxadrista, tendo formulado problemas até hoje
são considerados como tendo grande qualidade técnica. O mesmo podemos dizer de sua crítica,
profundamente voltada para os detalhes.

Bibliografia

ABDULMASSIH, Fábio Brazolin. Aulas de Literatura Russa - F. M Dostoiévski por V. Nabókov:


por que tirar Dostoiévski do pedestal? / Fábio Brazolin Abdulmassih; orientador Homero Freitas de
Andrade. - São Paulo, 2016.

40 MOISÉS, Leyla Perroni. Altas literaturas: Escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São
Paulo: Companhia Das Letras, 1998.

315
ALEXANDROV, Vladimir E. The Garland companion to Vladimir Nabokov. Traducao. New York:
Garland Pub., 1995.

BENJAMIN, W. Franz Kafka: No décimo aniversário de sua morte. In: A modernidade e os


modernos. Tempo Brasileiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro, 2000.

CARONE, M. O parasita da família, Revista Psicologia USP, nº 3, 1992, p. 132.

CONNOLLY, J. The Cambridge Companion to Vladimir Nabokov. Traducao. Cambridge:


Cambridge University Press, 2005.

______________. Nabokov and his Fiction: New Perspectives. Tradução. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999.

FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. São Paulo: Globo, 2005.

KAFKA, F. A Metamorfose. Trad. Modesto Carone. 2a Ed. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.

_______________. The Art of Fiction No. 81. Paris, 1984.

MOISÉS, Leyla Perroni. Altas literaturas: Escolha e valor na obra crítica de escritores modernos.
São Paulo: Companhia Das Letras, 1998.

NABOKOV, Vladimir. Fala, memória: uma autobiografia revisitada. 1ª ed. - Rio de Janeiro:
Objetiva, 2014.

__________________. Lições de Literatura. São Paulo: Três Estrelas, 2015.

__________________. Lições de Literatura Russa. São Paulo: Três Estrelas, 2015.

WELLECK, René. Conceitos de Crítica. São Paulo: Editora Cultrix, 1963.

WOOD, James. Como funciona a ficção. 3. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

316
Cultura Material: Fonte de contato com o passado

Anelise Martins de Barros1

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre o uso da cultura material enquanto fonte pelos
historiadores ao longo do tempo. Sendo a cultura material interpretada enquanto fonte primária e de
grande importância para a história por permitir que o historiador construa uma visão de como era o
cotidiano dos indivíduos que viveram tanto em períodos distantes quanto próximos a
contemporaniedade.

Palavras-chave: Cultura Material, Fonte primária, História.

Abstract: This article proposes a reflection about the use of material culture as a source by historians
over time. Being the material culture interpreted as a primary source and of great importance for the
history for allowing the historian to construct a vision of the quotidian of the individuals who lived
as much in distant as near contemporary times.

Keywords: Material culture, Primary source, History.

Introdução

Vista enquanto objeto de estudo apenas da arqueologia e da museologia, a cultura material por um
longo período de tempo foi utilizada apenas como fonte para os historiadores que estudam a
antiguidade, os quais não possuíam uma vasta gama de fontes escritas2 para análise. Com isso, a
cultura material foi relegada as sombras e não foi objeto de estudo dos historiadores, de modo geral,
por um longo período de tempo.

Definições de Cultura Material


Os autores Anne Gerritsen3 e Giorgio Riello 4, no livro Writing Material Culture History, apontam
justamente para a dificuldade da história, assim como de outras ciências humanas, em relação ao uso
da cultura material. A proposta dos mesmos é por meio de seu trabalho definir o que é cultura

1 Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email:


a.nelise_martins@hotmail.com
2 O que se compreende por fontes escritas varia de acordo com o período histórico. Antes da virada
historiográfica, com a Escola dos Annales e os apontamentos da historiografia alemã, as fontes deveriam compreender os
documentos oficiais e a história possuía um viés, sobretudo, político.
3 Afiliada a Universidade de Leiden, tem como objeto de pesquisa as dinâmicas interculturais entre a
Ásia e a Europa, tendo como foco a cultura material, arte e o desenvolvimento humano.
4 Professor da Universidade de Warwick. Tem como objeto de estudo a história da cultura material,
moda, design e consumo na Europa e Ásia durante a idade moderna.

317
material e reunir uma coletânea de artigos que apontem caminhos para que pesquisadores de diversas
áreas façam uso dessa fonte, assim como fazem uso das fontes escritas.
Sendo assim, para os autores a cultura material não se resume apenas a objetos, mas a objetos que
possuíam um significado no passado.
A compreensão do significado desse objeto é realizada por meio da análise do contexto em que ele
foi encontrado, do seu modo de fabricação, dos vestígios botânicos presentes em seu interior, dentre
outros5.
Ulpiano de Meneses6, em "A cultura material no estudo das sociedades antigas" realiza críticas a
discriminação dos historiadores em relação ao uso dessa fonte, aponta uma "marginalização da
cultura material" e o uso da "informação arqueológica, de maneira puramente instrumental"
(Meneses, p.104).
Interessante ressaltar que assim como a cultura material, a iconografia também passa por esse
processo de defesa enquanto objeto de estudos dos historiadores, onde autores, como Lília Schwarcz,
defendem que ela não deve mais ser vista enquanto ilustração de um documento, mas sim como fonte
primária. Com o uso das ilustrações e fotografias enquanto fontes primárias, diversos estudos podem
ser desenvolvidos, como por exemplo, o trabalho de Schwarcz sobre o triângulo - o rei, a natureza e
seus naturais - que é estabelecido enquanto base do Brasil Imperial de D. Pedro II.
Retornando a questão da cultura material, Ulpiano de Meneses defende o uso da cultura material por
historiadores e a define como "segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem.
Por apropriação cultural convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos
do meio físico, segundo propósitos e normas culturais." (Meneses, p. 112).7

5 Sobre esta temática consutar os seguintes artigos:


Scheel-Ybert, Rita et al. "Novas perspectivas na reconstituição do modo de vida dos sambaquieiros: uma
abordagem multidisciplinar". Revista de Arqueologia, v. 16, n. 1, p. 109-137, jun. 2017. ISSN 1982-1999. Disponível
em: <http://www.revista.sabnet.com.br/revista/index.php/SAB/article/view/182>. Acesso em: 09 out. 2017.
Agostini, Camila. Resistência cultural e reconstrução de identidades: Um olhar sobre a cultura material de
escravos do século XIX. Revista de História Regional, RJ. p. 115-137. 1998.
6 Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP. Estuda História Antiga
(história da cultura, pintura helenística, urbanismo antigo), cultura material, cultura visual, patrimônio cultural, museus e
museologia.
7 Para um maior aprofundamento na discussão sobre apropriação cultural, ver PERROTTI, E.;
PIERUCCINI, I. "Infoeducação: saberes e fazeres da contemporaneidade". In: LARA, M. L. G, FUJINO, A. NORONHA,
D. P. (Org.) Informação e contemporaneidade: perspectivas. Recife: Néctar, 2008.p. 46-97

318
A cultura material enquanto objeto de estudo no Brasil

No artigo "Arqueologia no Brasil hoje", Pedro Paulo Funari e André Chevitarese, realizam uma
grande contribuição ao mostrarem como o estudo sobre a cultura material se modificou ao longo do
tempo no Brasil.
De acordo com os autores, os estudos relativos a cultura material se iniciaram com a vinda da família
real portuguesa, após a sua expulsão de Portugal por Napoleão Bonaparte. Na vinda, diversos
artefatos foram trazidos de Portugal.
No Brasil imperial, D. Pedro II juntamente com sua esposa, a Imperatriz Teresa Cristina, trouxe
diversos artefatos arqueológicos de Pompéia para o Brasil e em contrapartida, diversos artefatos dos
povos indígenas foram levados para a Europa em retribuição.
Com o fim do Império e a ascensão da República, uma forte repulsa ao indígena é trazida a tona e,
com isso, há um recuo da arqueologia brasileira, a qual será retomada apenas na década de 30 do
século XX quando o Estado novo escolhe o período da colonização como o momento que irá definir
a sociedade brasileira.
A emergência da ditadura civil-militar com o golpe de 1964 trouxe à tona projetos que visassem o
controle do território nacional, um desses projetos era o Pronapa, criado em parceria com os EUA,
que visava a descoberta de sítios arqueológicos em território brasileiro. A partir dessas pesquisas,
pode-se conhecer mais do território brasileiro e houve uma valorização da cultura material produzida
pelos povos indígenas devido ao trabalho de pesquisadores como o professor Ondemar Dias, o qual
participou de diversas pesquisas e catalogou diversos sítios em território nacional.
Um dos sítios catalogados nesse período foram os sambaquis, os quais por muito tempo foram
interpretados enquanto montanhas de lixo empilhadas na costa pelos povos que residiam no litoral
brasileiro. No entanto, a partir de estudos como os de Madu Gaspar, pode-se compreender que havia
um significado muito maior por trás desses monumentos, pois eles continham uma grande quantidade
de enterramentos, pequenas esculturas zoomórficas e fogueiras em seu interior.
Com o fim da ditadura, a constituição passa a proteger o patrimônio cultural nacional através do
artigo 216, onde temos a seguinte premissa "bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à maioria dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem͟, de acordo com os seus
Parágrafos IV e V as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico."

319
Esse artigo promoveu uma valorização da cultura material, que a priori é vista enquanto objeto de
estudo apenas da arqueologia e dos historiadores que lidam com sociedades ágrafas.

A cultura material como fonte histórica

Recentemente diversos pesquisadores têm feito uso da cultura material para compreender não apenas
sociedades ágrafas, mas também sociedades com registros escritos.
Para ilustrar o diálogo da cultura material com a história, serão comentados três exemplos do uso da
cultura material como fonte na contemporaneidade. O primeiro são estudos sobre a ocupação da
cidade do Rio de Janeiro por meio do material retirado nas escavações arqueológicas do Cais da
Imperatriz, também conhecido como Cais do Valongo, onde os artefatos recolhidos permitiram que
pesquisadores acessassem como era o cotidiano dos indivíduos que chegavam ao cais. Permitiram
acessar também a realidade da população local e a pluralidade presente na cidade do Rio de janeiro
em um período que possui registros escritos, onde diversas culturas dialogavam e onde emerge o que
pode ser intitulado enquanto uma cultura afro-americana, de acordo com Mintz e Price8.
O segundo são as escavações em África que trouxeram, e ainda trazem à tona constantes descobertas
sobre o passado pré-colonial, colonial e pós-colonial africano. Alberto da Costa e Silva, em A enxada
e a lança, no capítulo "Os litorais do Índico”, aponta para um contato entre bantos e estrangeiros, por
meio da análise de cerâmicas, faianças persas e vidros islâmicos oriundos de escavações em
territórios dos povos pertencentes ao tronco linguístico banto. Sendo assim, a cultura material foi um
meio de comprovar e compreender a relação comercial entre bantos e estrangeiros pelo litoral do
índico.
Para além do uso da cultura material em estudos relacionados aos períodos anteriores a chegada dos
europeus, a materialidade africana é tão plural que permite ao historiador um contato com diversos
momentos na história dos países africanos. Como exemplo desse uso para compreender os diversos
momentos, temos a análise das trocas de galanterias entre o Rei Adandozan e D. João VI, a qual
demonstra a valorização que ambos davam a relação estabelecida.

8 Autores apontam como as condições heterogêneas do novo mundo podem ter servido como
catalisadoras para a emergência de uma cultura afro-americana que se desenvolve na medida em que esses indivíduos a
criam.

320
O terceiro e último, são as escavações realizadas no terreiro da Gomeia em Duque de Caxias, pelo
arqueólogo Rodrigo Pereira. Nessas escavações, há a busca por uma compreensão do local e dos
ritos que ocorriam nele por meio da estrutura remanescente do terreiro e dos vestígios deixados.
Pereira ressalta a todo momento em seus estudos que a antropologia, a história e a arqueologia são
capazes da trazer a tona inúmeras respostas acerca de locais, ritos e acontecimentos que
transcorreram a algum tempo e se mantem enquanto um enigma.
Essas pesquisas apontam o quão enriquecedor para a historiografia é o uso dos artefatos do passado
enquanto fonte primária e não apenas como ilustração ou suporte para a fonte documental.

Conclusão

Em suma, a cultura material permite diversas possibilidades de estudo. Historiadores na


contemporaneidade tem se aberto a essa fonte enquanto central no estudo de sociedades ágrafas, no
entanto, como vimos ao longo do artigo, esse objeto de estudo abre a possibilidade de compreensão
tanto de sociedades ágrafas quanto de sociedades em que a escrita é utilizada como forma de
narrativa.
Esse conjunto de fatores aponta a necessidade da valorização da cultura material e o seu uso tanto
pelos arqueólogos quanto pelos historiadores.
Por meio dela, todos os indivíduos do passado tem voz e, em decorrência, têm suas histórias
transmitidas. Sendo assim, a cultura material permite que se narre a história de todos os homens no
tempo.

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322
Discours Autour Des Émeutes Dans Les Banlieues Françaises En 2005
Discursos em torno das rebeliões nas periferias francesas em 2005
Discourses concerning the riots in French suburbs in 2005

Anouk Considera El-Kareh1

Resumo: Os levantes populares ocorridos durante o outono de 2005 nas periferias francesas tiveram uma
grande repercussão midiática. Freqüentemente relatados enquanto expressões de “violência urbana”, essas
rebeliões, feitas por membros dos setores sociais menos abastados, foram geralmente destituídos de suas causas
político-sociais, sendo descritas através de um vocabulário que as reduz a manifestações de rebeldia e de
desordem sem causas justificáveis. Nós reparamos que é sobretudo a partir da noção de um “desregulamento
social” que os “jovens de periferia” (apontados enquanto os atores das rebeliões) são retratados, embora as
referências históricas que afirmam esse contexto social não sejam consensuais. Face à predominância de um
certo olhar sobre essas rebeliões, é interessante analisar a construção desses discursos, enfatizando as suas
similaridades e diferenças, as reapropriações de vocábulos e os contextos nos quais aparecem.

Palavras-chave : classes sociais ; discursos ; laços sociais; levantes populares.

Abstract: The riots that took place during 2005 autumn in French suburbs had a great midiatic impact.
Frequently depicted as expression of “urban violence”, the political and social causes of those riots that were
led by members of low social classes were generally removed, since they were described by a vocabulary that
reduces them to expressions of rebellion and disorder not justifiable. We noticed that it is from the notion of
“social disturb” that the “young people from the suburbs” (pointed as the actors of the riots) are portrayed,
although the historical references that affirm this social context are not consensual. Since there a predominance
of a certain point of view about those riots, it is interesting to analyze the construction of those discourses,
emphasizing their similarities and differences, the appropriation of terms and the contexts in which they appear.

Key-words: discourses; riots; social bonds; social classes.

L’automne de 2005 a été marqué par l’occurrence d’émeutes dans plusieurs banlieues
françaises. Les évènements ont consisté dans l’affrontement entre des jeunes et les forces de l’ordre
et dans l’attaque à des établissements publics. La série de confrontations, qui a eu lieu du 27 octobre
au 17 novembre, a débuté dans la commune de Seine-Saint-Denis (dans les proximités de Paris) et
s’est propagée dans dix-sept régions françaises2. Face à un grand retentissement de ces soulèvements,
successivement annoncés par les médias, des discours sur les banlieues et sur les « populations de
banlieue » ont été intensément proliférés. Il s’agissait de définir les émeutiers et fournir des
« explications » à la population.

1 Mestre em História pelas Universidade de Évora e École des Hautes Études en Sciences Sociales.
2 ROBINE, Jérémy. Les ghettos de la nation : Ségrégation, délinquance, identités, islam. Paris :
Vendémiaire, 2011.

323
Largement catégorisé en tant que des « désordre public » et des « actes de violence », ces
événements ont été définis a priori par le vocabulaire utilisé. Le terme « violence », dans ce cas,
signifie une expression de rage, ou une force brutale et destructive, ou une agression aillant pour but
de blesser, de porter préjudice ou d’atteindre l’intégrité physique de l’autre. Les violences qui se
réfèrent aux « conduites qui ont pour projet (conscient ou non) de forcer, contraindre,
emprisonner, annexer, confisquer, instrumentaliser, programmer, chosifier [ou] rendre dépendant 3 »
sont effacées des discours. Ainsi, les formes de violence sont cachées – et du coup les formes de
résistance disparaissent - et « la violence » devient uniquement une évocation d’un comportement
agressif. Les émeutes ont été ainsi plutôt reliées à la question de la déviance et de la criminalité.

À partir d’un regard très synthétique, nous pouvons retrouver deux regards divergents qui
prédominent parmi ces discours : l’un consisterait à accuser les acteurs des agitations d’une certaine
sauvagerie, en jugeant leur comportement malintentionné, bestial et donc condamnable ; l’autre serait
de prendre en compte l’environnement social des émeutiers en faisant en parallèle entre des difficultés
localisées et des comportements spécifiques.

Ces deux lectures distinctes des perturbations sociales ne sont pas nouvelles. En réalité, nous
pouvons les retrouver parmi les trois principaux courants de pensée de la tradition criminologique.
Le positivisme criminologique prêche, depuis la fin du XIXe siècle, que la criminalité serait une
maladie du corps et de l’âme, en affirmant l’existence de personnalités criminelles. Ainsi, cette théorie
détermine une essentialisation du criminel, en le distinguant des autres individus « normaux ». Dans
ce cas, l’idée d’une dysfonction mentale amène à la nécessité de répression et d’extirpation de
l’élément corrompu. Un autre courant de pensée se constitue à l’École de Chicago, à partir des années
1910, en introduisant une perspective qui cherche à situer sociologiquement le déviant. En
conséquence, le milieu social et les formes d’interaction et d’adaptation seraient indispensables dans
la compréhension d’une certaine rationalité « de l’intérieur » qui favoriserait un comportement jugé
criminel par les autres. La reforme de la ville et de la société seraient le traitement plus efficaces pour
l’insertion du déviant dans un environnement sain. Le troisième courant - qui débute au XIXe siècle,
mais n’est pratiquement pas repris dans les discours sociologiques sur les émeutes de 2005 - serait la
pensée classique. Elle départ d’un regard « de l’extérieur » par rapport au crime, en le considérant
une pratique généralisée et produit d’un choix libre et rationnel de la part de l’individu, en fonction
des occasions et des alternatives possibles.

3 REITZMAN, Igor. Longuement subir puis détruire. De la violance des dominants aux violences des
dominés. Paris : Editions Dissonances, 2002, p. 8.

324
Or, malgré les divergences entre le paradigme du fait social et celui de la définition sociale4,
nous notons des aspects importants qui rapprochent les deux regards qui prédominent dans les
analyses des agitations sociales dans les banlieues françaises. De fait, les perspectives qui suivent la
théorie positiviste et ainsi que celles qui s’alignent à la tradition chicagoan défendent toutes les deux
que la criminalité est dérivée d’une pathologie, soit d’une certaine disposition psychologique, voire
biologique, qui engagerait l’idée d’une anomalie de l’individu, soit d’un contexte de désorganisation
sociale qui inciterait à l’adoption d’un comportement déviant. Ainsi, ces approches présupposent que
l’engagement dans un acte criminel serait irrationnel ou lié à une rationalité propre à un groupe social.
La notion de pathologie conduit aussi à comprendre le crime en tant qu’une pratique effectuée par
des individus spécifiques et donc par une minorité affectée par des « difficultés ».

Donc, si nous retrouvons continuellement dans la littérature du XXe siècle une controverse
entre ceux qui interprètent la criminalité en tant qu’un problème de dépravation du caractère et ceux
qui la considèrent une question dérivée d’une situation historiquement constituée, nous soulignons
ici que, dans la plupart des travaux sociologiques qui tentent d’analyser les « émeutes
contemporaines » (et plus généralement les « violences urbaines ») en France, on peut identifier une
accentuation de la dimension individuelle de l’émeutier.

En se traitant de faits concernant des « populations défavorisées » et ayant lieu dans des
« zones déshéritées », la question des émeutes peut être perçue en tant que reliée à une thématique
plus large, dans un débat concernant le bien-être social qui met en évidence, entre autres, la notion de
« vulnérabilité sociale ».

En aillant pour fond l’étude du développement des systèmes d’assistance médical et social en
Europe, culminant dans l’établissement de l’État-providence, nous identifions une partialité des
perspectives empruntées pour définir la situation et la position sociale des « populations de banlieue »
par rapport au reste de la société. Car les études sur les populations défavorisées peuvent être perçues
en tant qu’insérées dans deux grandes traditions, à savoir celle qui voit dans le comportement
individuel et dans la conduite morale la cause de la maladie et de la pénurie, et celle qui pose les
« problèmes sociaux » dans une perspective structurelle, dont la pauvreté apparaît comme une
question primordiale. Cependant, dans la description de l’environnement social des émeutiers, nous

4 « Aujourd'hui, on peut diviser rétrospectivement l'histoire du savoir scientifique sur la criminalité


grosso modo en deux grands blocs: (a) ceux qui l'ont conçue quasi exclusivement comme un fait social inéluctable
et l'ont étudiée comme un comportement et (b) ceux qui l’ont conçue quasi exclusivement comme une étiquette et l'ont
étudiée comme une manière de définir certaines situations conflictuelles et de réagir à leur égard ». PIRES, Alvares. « La
criminalité : enjeux épistémologiques, théoriques et éthiques ». In Les classiques des sciences sociales,
http://www.uqac.ca/Classiques_des_sciences_sociales, 1994.

325
retrouvons des similarités dans une refuse du structuralisme et dans un éloignement de
l’argumentation socioéconomique.

De fait, nous percevons, dans la plupart des « discours savants » qui ont eu l’intention
d’analyser les raisons des émeutes de l’automne 2005, une accentuation de la dimension sociale et
donc des dispositions relationnelles des acteurs sociaux. Autrement dit, parmi ces écrits académiques,
le contexte socioculturel des individus est généralement posé en tant que le facteur le plus déterminant
à la participation dans les soulèvements. Ainsi, les catégories sociologiques qui sont mises en
évidence dans les descriptions des émeutiers détachent la relation entre l’individu et les institutions
(la nation, la communauté, la famille, l’école, le travail, le syndicat et etc.) et les analyses retombent
souvent dans une évaluation psychologique des participants.

La problématique que nous proposons d’aborder dans ce mémoire est un questionnement non
pas de la pertinence du regard culturaliste, mais de l’usage exacerbé (et presque exclusif) de celui-ci
dans l’analyse des émeutes. Car malgré ces études apportent d’intéressantes perspectives sur les
problèmes sociaux, nous identifions, spécialement par rapport aux « violences urbaines », une
tendance à une survalorisation du sujet en détriment du contexte économique et politique dans lequel
les acteurs sociaux sont insérés. En quelques mots, nous remarquons l’affirmation d’un point-de-vue
qui appelle à l’individualisation des problèmes sociaux.

Ce travail consiste ainsi dans une critique à l’association abrupte entre « émeutes » et
« criminalité » ; il est aussi une évocation de la réduction du « problème de la violence », surtout vis-
à-vis des « populations de banlieue ». Il s’agit plus précisément d’une critique à l’emploi d’un regard
historique peu élaboré vis-à-vis des éléments mobilisés dans la définition des émeutiers et de leurs
actions.

Car nous constatons que, dans le milieu académique actuel, les soulèvements sociaux et les
mouvements sociaux ont été majoritairement une thématique de la sociologie. En effet, malgré les
références historiques soient un élément constitutif des analyses sociologiques et malgré les
références fréquentes à des dispositions psychologiques des acteurs des « violences urbaines », les
discours récents sur les émeutes ne sont développés ni par des historiens ni par des psychologues,
mais presque exclusivement par des sociologues.

Cette constatation ne vise pas à poser un doute quant à la légitimité du savoir produit par les
différents champs des sciences sociales et humaines, mais à questionner un certain consensus qui
s’est produit autour des causes des « violences urbaines ». En effet, « l’absence de l’histoire est

326
symptomatique du durcissement des catégories de pensée et de l’évidence que confère aux problèmes
sociaux traités leur seule actualité médiatique et politique 5 ».

Cette recherche se présente aussi en tant qu’un effort d’application de théories et de


perspectives bien développées dans la thématique des systèmes d’assistance sociale et visiblement
marginalisées des approches qui traitent la criminalité et les agitations sociales. En d’autres termes,
c’est à partir d’un parcours académique centré sur les perceptions historiques sur la pauvreté 6, que
nous nous positionnons par rapport à l’importance de la structure économique dans la détermination
des conditions de vie d’une population, à l’indispensabilité de capitaux sociaux dans la promotion du
bien-être social, à l’influence de formes de contrôle social dans les relations sociales (notamment
dans le milieu de travail) et à l’indéniable rapport de force qui recouvrent les interactions
individuelles.

Or, la relevance de ce travail se trouve surtout dans l’affirmation que les références historiques
méritent d’être prises en compte pour un enrichissement du débat sur les problèmes qui touchent les
« populations de banlieue » de nos jours et, plus précisément, pour un regard alternatif sur les
possibles motivations des émeutiers.

Car une analyse plus détaillée des études sociologiques qui abordent le sujet des émeutes, et
plus généralement des « violences urbaines », dégage l’affirmation de trois perspectives principales
sur les désordres sociaux, par rapport aux quelles nous nous positionnons de manière critique.

Premièrement, nous identifions des intellectuels qui perçoivent les émeutes en tant que le
produit d’une large transformation sociale et du manque de canaux politiques suivants ces
changements. Cette perspective suppose qu’auparavant les classes populaires étaient caractérisées par
une culture ouvrière, des modes de vie et des trajectoires individuelles semblables et par une
organisation politique forte (le mouvement ouvrier), en formant un groupe aillant des régulations
spontanées qui maitriseraient les expressions de violence et aillant un système politique qui
canaliserait les insatisfactions personnelles vers un projet universel. Pourtant, l’avènement de la
société postindustrielle aurait provoqué un « basculement de la question sociale », où la culture serait
devenue la dimension centrale des dispositions sociales, posant le malaise social surtout à niveau des
identités culturelles. Le changement du contexte social n’aurait pas été accompagné de l’institution
de nouvelles organisations capables de traduire les « nouveaux problèmes sociaux », fruit de

5 COLLOVALD, Annie. « Des désordres sociaux à la violence urbaine ». In: Actes de la recherche en
sciences sociales, 2001/1, n° 136-137, p. 113.
6 Dans une connotation élargie de ce concept.

327
l’exclusion sociale (e.g. la discrimination raciale). Ainsi, le manque de repères idéologiques aurait
laissé la place à la frustration. L’impasse entre une volonté d’intégration et un manque de dispositions
pour rationaliser ces demandes résulteraient dans l’enragement des jeunes défavorisés, caractéristique
fondamentale des émeutiers.

Puis, nous percevons une approche qui met l’accent sur des phénomènes de rupture sociale et
de rétrécissement des réseaux de solidarité à niveau des groupes sociaux. En fait, ce point-de-vue se
base surtout dans l’idée de la « défaillance des institutions », en détachant le démantèlement de l’État-
providence, la rupture des liens interpersonnels et la désunion du monde du travail. L’accent est posé
sur un processus de vulnérabilisation des individus qui n’appartiennent pas (ou plus) à des réseaux
de sociabilité stables et amples, un mouvement spécialement prononcé dans la désagrégation des
« communautés traditionnelles » et dans la « précarisation » de l’emploi. Aussi, cette perspective
pose souvent un problème à niveau des « populations issues de l’immigration » et à la difficulté
d’insertion et d’adaptation sociale de celles-ci. Ainsi, la question de la violence serait plutôt le reflet
d’un « sentiment d’insécurité », plus visibles entre les habitants de la banlieue dû à un « cumul
d’handicaps » de socialisation. Les émeutes sont ainsi définies en tant qu’une réaction au manque de
protections sociales et à la carence de participation à des fonctions sociales légitimées.

Finalement, nous retrouvons une perspective qui soutient une perte des principes de
« civilisation » et une régression du processus d’intériorisation des mœurs entre les acteurs de
violences. Si cette perspective peut se confondre avec les deux approches antérieurement présentées,
car elle prêche une « rupture radicale du lien social7 » et une dualisation de la société (inclus versus
exclus) , sa particularité consiste dans une essentialisation des conduites de certains individus,
présumant plutôt un manque d’autocontrôle sur le corps et appelant à une intensification du contrôle
social : « les mécanismes classiques qui assuraient la surveillance sociale et la solidarité de proximité
[auraient] cessé de fonctionner. Les mécanismes sociaux d’apprentissage et du contrôle de soi-même
et du respect mutuel se délite[raient] 8 ». Les incivilités, fruit du « relâchement des règles »,
laisseraient place à une atmosphère psychologique de dégradation qui serait propice à l’apparition
d’actes de délinquance. Bref, les émeutes sont considérées « des comportements déviants de masse
dans une société individualiste9 ».

Synthétiquement et généralement, nous notons ainsi trois principales manières distinctes de


définir les causes des émeutes : 1) celle qui défend que les violences représentent des expressions de

7 ROCHÉ, Sebastian. La Société incivile. Qu’est-ce que c’est l’insécurité ? Paris : Seuil, 1996, p. 76.
8 Ibidem, p. 11.
9 Ibidem, p. 43.

328
haine dans une société basée sur des valeurs « postindustrielles » ; 2) celle qui pose les problèmes
sociaux à niveau du lien social et des réseaux de sociabilité ; 3) celle qui accentue une déviance à
niveau des conduites collectives de groupes sociaux jugés plus éloignés d’une « culture supérieure ».
Il est important de préciser que ces perspectives ne sont pas toujours aussi délimitées, mais souvent
elles se combinent et se confondent.

Il est patent l’absence du discours marxiste 10. Cela ne veut pas dire qu’il n’y aurait aucune
approche d’inclinaison marxiste sur les émeutes, mais que parmi les publications académiques de
plus facile accès, c’est-à-dire celles que nous avons pu repérées dans le réseau CAIRN et dans les
bibliothèques municipales de la ville de Paris 11, la sphère économique apparaît plutôt en tant qu’un
handicap en plus empêchant l’insertion social des « exclus ».

Nous pouvons pourtant retrouver, dans les études sur les banlieues françaises, des ouvrages
qui critiquent les approches plus disséminées vis-à-vis des « populations de banlieue », en insistant
dans la sphère économique et dans les dispositions socioéconomiques des individus défavorisés12. À
l’opposé de perspectives citées ci-dessus, ce regard certifie la légitimité de penser les problèmes
sociaux à partir de la notion de pauvreté, en affirmant que l’existence d’inégalités socioéconomiques
et en questionnant la définition des populations françaises uniquement sur bases socioculturelles.
D’après ce regard, les rapports sociaux devraient ainsi être perçus vis-à-vis des relations de pouvoir
qui prédominent dans un système capitaliste.

En vu de la variété de sujets qui peuvent naître de ces différentes perspectives et en vu des


nombreux travaux déjà écrits à ce sujet, dans ce présent travail, nous proposons d’analyser les deux
premières approches citées, c’est-à-dire celles qui attestent que les émeutes seraient un conséquence
d’un dérèglement des modes de socialisation dans les milieux populaires, et qui sont plutôt
composantes du discours de la gauche.

10 Nous n’avons trouvé aucun ouvrage travaillant spécifiquement les émeutes d’après un angle marxiste.
Cependant, parmi les études qui traitent de la question des « quartiers sensibles », particulièrement celles des sociologues
Sylvie Tissot et Loïc Wacquant, il est localisable une perspective socioéconomique dans la définition des « populations
de banlieue », en ouvrant ainsi une voie pour un autre regard sur les « violences urbaines » en France. Annie Collovald
présente une analyse de perspective historique sur l’imposition d’un certain discours dans la presse sur les agitations
sociales, mais ne traite pas des faits eux-mêmes.
11 Les recherches ont été basées surtout sur les mots-clés « émeutes », « violences urbaines »,
« manifestations » et « banlieue ». Les articles consultés ont été majoritairement ceux disponibles gratuitement par le
service lié au réseau de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales. Les livres consultés ont été ceux faisant partie
des collections des bibliothèques municipales de la ville de Paris.
12 Sylvie Tissot traite des émeutes en tant qu’un instrument utilisé pour la consolidation d’une image
particulière et négative des « quartiers sensibles » exigeant une intervention politique spécifique. Loïc Wacquant insiste
dans les disparités entre les ghettos nord-américains et les banlieues françaises.

329
Malgré leurs divergences, l’approche qui souligne les rapports sociaux « postindustriels » et
l’approche qui travaille la « rupture des liens sociaux » acceptent souvent une chronologie qui
démarque le début des « émeutes contemporaines » en 1981, avec des évènements dans la banlieue
de Lyon. Nous pouvons percevoir que toutes les deux théories partent d’une idée de rupture, qui se
serait passée dans les années 1970, affectant les principes intégrateurs de la société. En effet, une de
leur conceptions de base consiste à affirmer l’épuisement de la perspective marxiste dans l’analyse
des problèmes sociaux actuels, soit en s’alignant à la notion de l’avènement de la société
postindustrielle (selon le schéma d’Alain Touraine), soit en suivant l’idée de métamorphose de la
question sociale (comme proposé par Robert Castel). L’une et l’autre positions remettent ainsi à la
notion de minimisation, voire d’effacement, des rapports de classes et de valorisation d’une
dimension culturelle dans les rapports sociaux.

Dans cette conception, malgré le chômage en masse soit saisi en tant qu’un fait essentiel pour
la compréhension de la « nouvelle question sociale », il ne se constituerait pas en tant qu’un problème
principalement de nature économique, en tant qu’un facteur d’appauvrissement des populations, mais
il est surtout appréhendé en tant qu’un mécanisme déclenchant la rupture des liens
socioprofessionnels et la défaillance du mouvement ouvrier. D’une part, le malaise dans le monde du
travail serait dans la disqualification des « travailleurs sans travail » ; d’autre part, il serait
essentiellement dans le « vide idéologique » résultant de la désorganisation syndicale.

De manière générale, nous pouvons dire que ces études, qui prêchent une transformation du
caractère des ouvriers, supposent l’existence d’une ancienne classe ouvrière solide et consciente. De
fait, les représentations de la classe ouvrière des années 1960 font souvent référence à un groupe
lucide de sa position sociale et se basant sur la théorie socialiste pour penser son rapport vis-à-vis à
d’autres groupes sociaux. Autrement dit, beaucoup d’intellectuels s’alignent à l’idée que « les
conditions sociales de la culture de classe (relative homogénéité sociologique, existence d'un groupe
central, autonomie vis-à-vis des autres groupes sociaux, enracinement local, canaux ouvriers de
transmission des valeurs) favori[saient] la structuration de réseaux de solidarité et d'entraide internes
à la classe 13 », en plus de tracer un destin ouvrier qui donnait un sens aux trajectoires et aux
comportements des membres des classes populaires.

Pourtant, nous percevons un décalage entre cette conception des classes populaires et
l’histoire de la formation de la classe ouvrière en France. En effet, les recherches historiques

13 MISCHI, Julian, RENAHY, Nicolas. « Classes sociales - classe ouvrière ». In Encyclopaedia


Universalis, [en ligne], consulté le 25/09/2012. URL : https://universalis.aria.ehess.fr/encyclopedie/classes-sociales-
classe-ouvriere/.

330
convergent dans la démonstration que celle-ci a été fortement dépendante de l’immigration, dans un
contexte de constants flux de mobilité d’individus déracinés de leur milieu social. D’après plusieurs
spécialistes, la constitution du prolétariat français doit être perçue par une faible culture industrielle
dans un pays où l’industrialisation a été tardive et s’est faite en dépit de la participation des
populations plus longuement établies sur le territoire français. Ainsi, cette perspective suppose plutôt
une hétérogénéité des classes populaires, dans un contexte peu propices à l’affermissement d’attaches
entre les travailleurs.

Une de nos hypothèses est celle que le point de départ de beaucoup d’études sur les secteurs
populaires – ceux-ci repris par les chercheurs qui travaillent notamment les « jeunes de banlieue »
qui participent aux émeutes – s’appuient sur une notion peu fidèle des dispositions sociales de la
classe ouvrière dans les années 1950-1970. Les notions de « défaillance du groupe ouvrier » et de
« rupture de modes de socialisation traditionnels » doivent ainsi être revues à partir de l’idée de la
construction d’une identité collective qui ne correspondait pas nécessairement à une culture de classe
effective.

La bibliographie sur les « violences urbaines » nous révèle qu’il y a deux questions principales
qu’il faut considérer et étudier pour une adéquate analyse du sujet. En premier lieu, elle nous propose
de penser en quoi consisterait ladite rupture de l’ordre social qui aurait donné place à l’apparition de
« nouveaux problèmes sociaux ». Cela consiste dans une révision des fondements socio-historiques
des études qui affirment un basculement de la question sociale. En deuxième lieu, nous devons nous
interroger sur le caractère des populations assignées à vivre dans les banlieues et leurs possibles
motivations dans la participation aux émeutes.

Une autre hypothèse par de la patente absence du « traditionnel » discours socialiste sur les
inégalités socioéconomiques. En se traitant de violences majoritairement perçues comme des
expressions d’individus « vulnérables », il est intéressant aussi d’analyser pourquoi les perspectives
d’inclination marxiste sont aussi marginales dans le débat public de la gauche. De fait, même les
intellectuels qui acceptent les classes sociales en tant que des représentations pertinentes pour la
compréhension du monde social, refusent d’attribuer une « conscience de classe » aux populations
des « quartiers sensibles ».

Nous proposons ainsi une discussion autour de la lutte idéologique qui est intrinsèque à tous
discours. La mise en évidence d’une certaine lecture de la société défendue par les approches
prédominantes dans les analyses des émeutes de 2005 a pour but de révéler que les réalités du monde
social sont aussi créées dans la pratique discursive, à partir de la mobilisation d’acteurs sociaux

331
soutenant un point-de-vue politique semblable. L’ « apparition des émeutes » serait aussi liée à
l’imposition de nouveaux discours sur les problèmes sociaux.

Ainsi, notre objectif général est d’identifier les raisons politiques et idéologiques de la
production de discours sur les émeutes dans les banlieues françaises et leur capacité
« transformatrice » de diriger et de former des opinions.

En ayant pour base l’encadrement spatial et temporel précis de notre objet, c’est-à-dire, la
périphérie parisienne entre 1990 et 2005, en sa dimension sociohistorique, nous prétendons analyser
les différents enregistrements trouvés dans des travaux de scientifiques sociaux et dans des discours
politiques à propos de ces manifestations, afin d’expliquer les différents points de vue qui les
traversent.

Mais aussi, nous avons l’intention de vérifier, depuis une perspective historique, l’évolution
des différents discours dans la période proposée, leur effective capacité de refléter les expectatives
des acteurs en lice et leurs effets sociaux réels, en particulier dans les champs des mouvements de
contestation et des groups sociaux qui les rejettent.

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338
Operação de risco: Uma análise da secessão americana nos Estados através do
binômio risco vs oportunidade

Arnaldo Lucas Pires Junior 1

Resumo: De todas as ações exigidas do Estado e de seus agentes políticos, talvez a decisão de
mergulhar em uma guerra seja a mais dramática. Tal iniciativa envolve grandes arregimentações de
recursos, a formação de toda uma economia voltada para a guerra e, por fim, o consumo de vidas
humanas. Assim, tão interessante quanto o desempenho das tropas em combate, é a análise das
iniciativas de decisão e dos debates que levaram determinados agentes estatais à guerra. Esse artigo
busca investigar, através do binômio “risco vs oportunidade”, os processos decisórios que
culminaram na secessão de onze Estados da União entre dezembro de 1860 e junho de 1861. O
argumento central é o de que essas medidas de secessão não foram simples resultados de um arroubo
pró-escravista dos fire-eaters americanos, sendo, na verdade, consequência de uma análise
consciente dos possíveis riscos e ganhos advindos de cada decisão.

Palavras-chave: Guerra Civil Americana, Secessão, Escravidão, Risco, Oportunidade.

Abstract: Of all actions demanded of the State and its political agents perhaps the decision to plunge
into a war is the most dramatic one. Such an initiative involves large amounts of resources, the
formation of an economy entirely war-oriented and, ultimately, the consumption of human lives.
Therefore, as interesting as the performance of troops in combat, is the analysis of decision-making
initiatives and the debates that have led certain state agents to war. This article seeks to investigate,
through the binomial "risk x opportunity", the decision-making processes that culminated in the
secession of eleven states between December 1860 and June 1861. My central argument here is that
these secession measures were not merely the results of a pro-slavery outburst of American fire-
eaters, and were actually the result of a conscious analysis of the possible risks and gains arising
from each decision.

Keywords: American Civil War, Secession, Slavery, Risk, Opportunity.

1. Um mosaico de secessões

Passaram-se apenas 169 dias entre 20 de dezembro de 1860 – data da primeira secessão, a da
Carolina do Sul – e 8 de junho de 1861 – data de secessão do último dos Estados confederados, o
Tennessee. A proximidade entre estas datas e o efeito cascata com que se deram as separações dos
Estados pode nos levar a pensar que se trata de um movimento estritamente homogêneo. De fato,
existem alguns elementos centrais que constituem o cerne das motivações de todos os Estados
secessionistas, contudo, se abordarmos somente estes argumentos mais gerais, acabamos por perder
de vista as estruturas internas e o conjunto de forças políticas que atuavam diretamente nos Estados.
Proponho que comecemos analisando estes posicionamentos centrais que impeliram os Estados

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

339
escravocratas do Sul a se separarem da união e, uma vez construído o plano de fundo das motivações
de nosso quadro, possamos avançar em uma análise mais minuciosa, trazendo as motivações internas
dos Estados e suas espectativas ao primeiro plano.
Pode-se dizer que a secessão dos Estados sulistas é resultado direto da escalada de tensões
entre os interesses conflitantes da indústria nortista e dos fazendeiros escravistas do Sul. A história
das tensões que precediam a Guerra Civil Americana deve ser compreendida como o duelo entre
esses dois modelos econômico-políticos pelo controle do Estado central e a manutenção ou criação
de políticas capazes de suportá-los e apoiar sua expansão em novos territórios. Um ponto fulcral
desta escalada de tensões será a eleição de Lincoln, que trará ao centro de poder uma coalizão
político-econômica diretamente ligada aos interesses industriais e substanciada por um conjunto de
ideias que podemos definir, seguindo Foner, como free-labor ideology.2
Diante da chegada ao poder do Partido republicano, havia pouco futuro à escravidão, ao
menos era o que pensavam os sulistas. O conjunto de políticas e ações que poderiam ser tomadas
pelo novo governo fazia com que cenários apocalípticos se tornassem possíveis, contudo, mesmo o
mais pessimista dos escravocratas, não acreditaria que, no dia seguinte à sua posse, algum tipo de
iniciativa abolicionista fosse instituída por parte de Lincoln. Neste momento, ações possíveis no
contexto político eram muito menos diretas, muito mais capazes de estrangular a expansão da
escravidão do que, necessariamente destruí-la em um só golpe. O próprio Lincoln havia deixado bem
claro, em discurso proferido no debate de 21 de agosto de 1858, quais eram suas visões em relação
a escravidão. Ao ser acusado por Stephen Douglas de procurar promover a igualdade entre as raças,
Lincoln respondeu,
Direi aqui, enquanto estivermos neste assunto, que não tenho como objetivo, direta
ou indiretamente, interferir na instituição da escravidão nos estados onde ela existe.
Eu acredito que não tenho direito de fazê-lo e não tenho, igualmente, inclinação em
fazê-lo. Não tenho intenção alguma na introdução de igualdade política e social
entre as raças negra e branca.3

Mais relevante do que o que está expresso na fala de Lincoln é o que está implícito. Ao
afirmar que não tinha nenhuma intenção de interferir com a instituição da escravidão nos estados
em que ela já existe, Lincoln deixava em aberto sua posição com relação à expansão da instituição
para novos territórios. A posição do futuro presidente faz eco a de vários outros republicanos mais
moderados que, apesar de contrários ao desenvolvimento e a expansão da escravidão, acreditavam
que a servidão acabaria por morrer à mingua diante do free-labor. Bastava apenas que fossem

2 . FONER, Eric. Free Soil, Free Labor, Free Men: The Ideology of the Republican Party Before the
Civil War. New York: Oxford University Press, 1970. p. 32.
3 First Douglas-Lincoln debate. Ottawa, Illinois, 21 de agosto de 1858.

340
contidos seus impulsos expansionistas e seus privilégios governamentais para que a “verdade
evidente” da superioridade do trabalho livre viesse à tona.
A secessão trata-se, nesse sentido, de um movimento defensivo, uma resposta diante da percepção
de que, no contexto das forças que se organizavam em torno do governo federal, o apoio às demandas
sulistas estava perdido. A eleição de um presidente diretamente ligado ao projeto de free-labor
republicano foi a faísca que acendeu um estopim de tensões progressivas que vinham em escalada
desde a década de 50
Um argumento frequentemente mobilizado para problematizar a questão das secessões em
larga escala e discutir a coerência econômica das forças centrípetas que afastaram os Estados sulistas
da união é o da interdependência econômica entre Sul e Norte. A ideia da interdependência
econômica dos dois modelos econômicos – o Norte dependia do algodão plantado no Sul, enquanto
o Sul precisava dos recursos que afluíam do Norte – foi frequentemente mobilizada por
contemporâneos para dirimir forças separatistas. O Senador William Seward, nesse momento já
preocupado em ressaltar a importância da União, afirmou,
[...] Interesses comerciais amarram os estados escravocratas e os estados livres com
laços de ouro rebitado em ferro, e não podem ser quebrados, seja pela paixão ou
pela ambição. Cada uma das partes deve submeter-se a ascendência da outra, ao
invés de desperdiçar as vantagens comerciais dessa União. Laços políticos amarram
a união – uma necessidade comum, e não somente uma necessidade comum, mas
interesses de nosso império – um império que o mundo nunca viu antes. 4

Parte crucial deste choque entre mundos era o fato de que ambos modelos econômicos
buscavam sua expansão e, dessa forma, os novos territórios à oeste passavam a ser o centro
nevrálgico dessas tensões. Durante a década que antecedeu as secessões do Sul, o grande tema –
trazido à tona desde a anexação dos territórios conquistados com a vitória sobre o México em 1848
– foi o da expansão da escravidão para os novos territórios e a inclusão de novos Estados
escravocratas à união. Mesmo entre republicanos não radicais, a contenção da escravidão em suas
fronteiras atuais eram um projeto bastante viável e necessário.
Do outro lado, políticos sulistas viam na necessidade de criação de outros Estados
escravocratas a condição fundamental para a manutenção da viabilidade política da escravidão e para
a sobrevivência econômica de seu modelo de sociedade. Sem a expansão territorial, a tendência era
de depreciação do preço do escravo e, por conseguinte, a diminuição da produtividade marginal por
unidade escrava. Além disso, a concentração de um número maior de escravos contidos em um
pequeno território, levaria a desafios ainda maiores para a manutenção da ordem e o controle de

4 United States. Congress. The Congressional Globe, Volume [29]: Thirty-Third Congress, First
Session, Appendix. Washington D.C.. UNT Digital Library. http://digital.library.unt.edu/ark:/67531/metadc30788/.
Acessado em 14 de novembro de 2016.

341
rebeliões, trazendo danos à autoridade e despesas adicionais aos senhores de escravos. É preciso que
fique claro que não se tratava de um simples desejo ideológico de expansão da escravidão, havia um
cálculo econômico, ou ao menos um temor da depreciação de investimentos futuros, era o medo de
perda de valor de seus investimentos que impelia os escravocratas à expansão.
Repercutindo esta crise dos expansionismos e percebendo uma mudança de tendência na
política americana, o New York Times afirmará em seu edital de outubro de 1860,
As características das sociedades do Norte e do Sul parecem ter sofrido uma
transformação completa nos últimos anos. Antes de 1850, a força expansiva do Sul
parecia ser ilimitada. Kentucky e Tennessee foram transformados em Estados antes
mesmo de Ohio ter adquirido a população necessária para a admissão na União e,
enquanto a lenta corrente imigratória do Norte estava penetrando nas praias de
Indiana e Illinois, quatro estados do Sul – Alabama, Mississippi, Louisiana e
Missouri – estavam preparados para ocupar seus lugares na união. Com a mesma
celeridade Arkansas, Florida e Texas eram ocupados.5

Apesar da aguçada percepção do editorialista sobre o choque entre expansionismos e a uma


certa transformação da natureza da expansão do país após 1850, o jornal acabou equivocando-se com
relação ao futuro da nação e do governo republicano ao afirmar que,
O eleitor da Carolina do Sul que se sente assustado e apreensivo com as
consequências de uma administração republicana, cuja carta abordando o assunto
publicamos outro dia, tem, arriscamos, pouco a temer. Ele pode ficar certo que o Sr.
Lincoln se esforçará para fazer amigos no Sul e que ele será bem-sucedido.6

Não houve muito tempo para que Lincoln fizesse as amizades sulistas que o editorialista do
New York Times apostava ser fácil conseguir. Nove meses depois de sua posse, a Carolina do Sul
se separaria da União e a partir dali uma miríade de novos Estados acabariam seguindo a mesma
solução secessionista. Seria um equívoco pensar que a decisão tomada por estes Estados é resultado
de simples ultraje ou somente do medo das possíveis ações contra a escravidão a serem tomadas pelo
governo federal. Cada secessão é resultado de um processo de cálculo não só da sua viabilidade, mas
igualmente das vantagens que seriam adquiridas diante desta decisão, além, é claro, das possíveis
medidas de reação que seriam tomadas pela União. Podemos dividir os impulsos secessionistas em
três grandes grupos lógicos que, a partir de agora analisaremos aqui: iniciativa da Carolina do Sul, a
unidade fundamental do Deep South – Mississipi, Florida, Alabama, Georgia, Louisiana e Texas –
cujas secessões se dão no espaço de menos de um mês e, por fim, a ambivalência dos Border States.
A própria posição mais recalcitrante dos Border States em relação à causa da Confederação nos
apresenta uma possibilidade de interpretação e uma hipótese de trabalho que procurarei desenvolver

5 The New York Times. 1 Outubro de 1860. Disponível em:


<http://www.nytimes.com/1860/10/01/news/the-north-and-south.html/>
6 Idem.

342
a partir de agora. Argumento que, para além das óbvias discordâncias políticas com relação ao
governo republicano, os Estados procuraram levar em conta suas rotas comerciais, os destinos de
suas produções e as tendências econômicas já consolidadas. Pode-se dizer, portanto, que a análise
da adesão ou não à Confederação levou em conta, além dos alinhamentos político-ideológicos, as
tradicionais rotas comerciais e a geografia econômica consolidada no país. Em qualquer ponto em
que fossem traçadas as linhas de divisão entre as duas nações haveria algum tipo de dano econômico
e isso foi particularmente considerado por estes agentes políticos.

2. Carolina do Sul: a iniciativa secessionista

Em uma bucólica Igreja de colunas vermelhas e belas janelas em forma de arco, a First
Baptist Church, na Hampton St., em Columbia, um grupo de cidadãos de posses da Carolina do Sul
se aglomerou, em 17 de dezembro de 1860, para deferir o futuro de seu Estado. Entre eles havia
fazendeiros, juízes, legisladores e clérigos, muitos dos quais poderiam ser classificados como fire-
eaters sem qualquer problema. Após um dia de deliberações, chegaram a uma conclusão, era preciso
separar-se da união. Para completar essa tarefa solicitou-se uma reunião da legislatura estadual, que
tomaria lugar dois dias depois, em Charleston.
A Reunião do dia 20 de dezembro, pouco mais de dois meses depois da eleição de Lincoln,
referendou as demandas levantadas pelos cidadãos sul-carolinianos dias antes. Nesta ocasião os 169
delegados do Estado, de maneira unânime, votaram a favor de uma “secession against Republican
Presidential leadership on matters of race, economics, and politics”.7 Em seguida, produziu-se uma
declaração das causas imediatas da secessão da Carolina do Sul, assinada por todos os presentes.
Estava consolidada, mesmo antes da posse do presidente republicano – que só correria em março de
1861 – a separação da Carolina do Sul da União.
Uma breve análise desse documento nos mostra uma grande preocupação memorialista, o
documento começa com uma peça histórica demonstrando como a Carolina do Sul vinha, desde
1852, colocando-se em rota de colisão com o que chamava de “frequentes violações da constituição

7 Mesmo antes da decisão tomada pela convenção estadual, o representante democrata da Carolina do
Sul na House of Rrepresentatives, John Winsmith, grande proprietário de escravos, propôs uma “Resolution to Call the
Election of Abraham Lincoln as U.S. President a Hostile Act and to Communicate to Other Southern States South
Carolina’s Desire to Secede from the Union.”.

343
por parte do Governo Federal”.8 Toda a retórica da peça estava baseada na constituição, segundo a
interpretação dos líderes sulistas da Carolina do Sul. A ação do Governo Federal sobre os Estados
era contrária aos princípios de independência e aos direitos centrais garantidos pela união aos agentes
estatais, direitos estes claramente consolidados na constituição. O documento apontava a perseguição
à instituição da escravidão como uma ingerência dos Estados da Nova Inglaterra contra os Estados
Sulistas e estabelecia a eleição de Lincoln como a gota d’água nesta escalada de tensões. Invocando
uma retórica de defesa do direito dos Estados e da legalidade constitucional, o documento assegura,
Nós, povo da Carolina do Sul, através de nossos delegados reunidos em Convenção,
apelando ao juiz supremo do mundo pela retidão de nossas intenções, declaramos
solenemente que a união até então existente entre este Estado e os outros Estados
da América do Norte está dissolvida e que o Estado da Carolina do Sul retomou sua
posição entre as nações do mundo como um Estado separado e independente; com
plenos poderes para conduzir guerra e a paz, contrair alianças, estabelecer comércio
e fazer todos os outros atos que os Estados independente tem direito de fazê-lo. 9

Para além da retórica pomposa e da unanimidade entre os seus representantes, quais eram as
intenções da Carolina do Sul? Qual era a composição de sua elite e de que forma a secessão
impactava seus interesses? O Estado era então governado por Francis Pickens, primo de John
Calhoum e ex-representante da Carolina do sul na House of representatives entre 1834 e 1843. Com
forte histórico pró-nulidade, o democrata tinha boa relação com o então presidente James Buchanan,
que o havia nomeado recentemente como embaixador na Russia.
A Carolina do Sul era, claramente, o mais inflamado dos estados na retórica e ação contra a
eleição de Lincoln e um dos únicos a manter o sistema de seleção legislativa durante o pleito de
1860.10 Entre as regiões de maior apelo econômico do Estado a que se destacava era o lowcountry,
principalmente por suas plantações de arroz. Era dessa região que afluíam os elementos que
constituíam a elite estatal. Não aleatoriamente, as áreas de maior vigor secessionista eram as áreas
costeiras e condados como Mecklenburg, no Piedmont. O Censo de 1860 mostra que, para um total
de 703,812 habitantes, a Carolina do Sul possuía 402.541 escravos, ou seja, um total de 57.2% da
sua população era formado por cativos. 11 Segundo os dados do mesmo censo, ainda que não fosse o
Estado com maior número absoluto de escravos, era na Carolina do Sul que eles correspondiam a
maior quantidade da população em relação ao seu total e mesmo superavam em números absolutos

8 Declaration of the immediate causes with induce and justify the secession of South Carolina.
Disponível em: <http://www.teachingushistory.org/pdfs/DecImmCauses.pdf>. Acesso em: 14 de novembro de 2016.
9 Idem.
10 A Carolina do Sul só usaria o Sistema de voto popular a partir da eleição de 1868, após a Guerra
civil. Durante a eleição de 1860 os 8 votos do colégio eleitoral da Carolina do Sul foram para o democrata sulista John
Breckinridge.
11 1860 US Census. Disponível em:
<http://historicalcharts.noaa.gov/historicals/preview/image/CWSLAVE>. Acesso em: 14 de novembro de 2016.

344
a população livre – como acontecia em outros locais, principalmente no Deep South. Outro dado
interessante apontado pelo censo era que, ao menos no momento que precedeu a secessão, o número
de possuidores de escravos na Carolina do Sul era de 26.701, cerca de 8.7% da população livre.
A decisão de separação em relação a União por parte da Carolina do Sul guarda um elemento
de ironia. Controlada por políticos historicamente simpáticos à questão da nulidade e do direito dos
Estados, o Estado levanta como um dos motivos centrais para sua separação justamente o exercício
da nulificação, por parte dos Estados do Norte, das fugitive slave laws. As elites estatais e a posição
oficial do Estado identificavam o futuro da escravidão com a própria prosperidade da Carolina do
Sul. Ainda que menos de 10% da sua população fosse diretamente possuidora de escravos, a
identidade sul caroliniana estava diretamente ligada à instituição da escravidão e a sua manutenção.
Todavia, a decisão pela secessão não era somente um estratagema para a defesa de privilégios
políticos de uma minoria possuidora de escravos. A defesa de uma atitude contrária à imposição de
tarifas por parte do governo federal também mobilizava este juízo. O discurso de Willian Boyce,
representante da Carolina do Sul, é bastante significativo deste duplo objetivo,
Eles propõem [o partido republicano] nenhuma mudança tarifária, o que significa
que um grande fardo de tributação deve ser lançado sobre o Sul e uma maior ainda
compensação às manufaturas do Norte. Eles não propõem nenhuma alteração da lei
pela qual o comércio do litoral se limita exclusivamente aos navios americanos, cuja
vantagem prática é limitada quase exclusivamente aos Estados do Norte. Eles não
propõem alteração na lei que, sob a forma do tratado de reciprocidade, isenta o povo
do Norte ao longo da fronteira canadense de pagar direitos sobre o grande valor das
importações incluídas na lista livre. 12

Boyce lista em seu discurso uma série de questões econômicas que impeliam o Sul,
especialmente a Carolina do Sul, à secessão. Ainda que elas ficassem em segundo plano diante de
toda a retórica pró-escravidão que conformava a maioria dos discursos pró-secessão, não se pode
negar que estes temas tiveram peso nas decisões e que as autoridades sul carolinianas acreditaram
estar rompendo muito mais as amarras que as prendiam do que caminhando para uma guerra que
destruiria todo o Estado.
A Carolina do Sul foi o primeiro Estado a tornar realidade uma ameaça que era uma
realidade desde as tensões sobre a tarifação, ainda na década de 30. As lideranças estatais
escolheram, diante da eleição de Lincoln, se colocar na dianteira desse movimento de separação,
entre o binômio risco e oportunidade, acreditaram que as oportunidades geradas pelo movimento
separatista, uma vez argumentado e pautado, em sua visão, na constituição, sobrepujavam os riscos
que enfrentariam.

12 Idem.

345
A decisão foi, de fato, a escolha da iniciativa em substituição à prudência, mas não se tratava
de uma aposta sem sentido, os políticos sul carolinianos percebiam claramente o impacto que a
eleição de Lincoln gerava no aumento do descontentamento de outros estados Sulistas e souberam
interpretar essa escalada de tensões com exatidão. Também não havia grande certeza do tamanho da
resposta que seria dada por parte do Norte, o que reforçava mais ainda os julgamentos em prol da
escolha separatista. Mas a Carolina do Sul não ficaria sozinha por muito tempo, menos de um mês
depois outros Estados, especialmente no deep South, a acompanhariam neste movimento. Apenas
dois meses depois, já eram sete os Estados secessionistas.

3. Deep South: A unidade fundamental

No dia 7 de janeiro de 1861 era a vez de uma convenção estadual ser organizada em Jackson, capital
do Mississippi. Enquanto os últimos esforços de manutenção da união eram feitos em Washington,
o Mississippi e outros estados do Deep South seguiam o caminho separatista da Carolina do Sul. 13
A sessão, que decidiria sobre a viabilidade de adotar “measures for vindicating the sovereignty of
the State as shall appear to them to be demanded”, começou com uma longa oração ministrada pelo
reverendo C. K. Marshall. Marshall adotou um tom solene, como demandava a ocasião,
Esse é um dia dolorido para patriotas e cristãos, estamos aqui reunidos para elaborar
medidas governamentais para nossa proteção e bem-estar. Temendo confiar
questões conflituosas sobre a formação de nossos planos na à mera sabedoria e
prudência humana, nós, assim, devotamente olhamos para tí senhor, orando que tua
benção paterna possa inspirar esse corpo para que, por sua ação e trabalho, a causa
da liberdade, da religião, da agricultura, comercio, governo, nossa paz doméstica e
prosperidade possa ser mantida e prospere.14

A pregação seguiu a mesma lógica defensiva observada em outros discursos sulistas.


Marshall pediu a Deus pela prosperidade dos irmãos sulistas, acusou o Norte de atacar injustamente
as instituições abençoadas por Deus no Sul, defendeu que todas as ações tomadas até então tinham
sido para a defesa da família, do comércio, da agricultura e, principalmente da paz interna. Depois
dessa pequena apresentação contextual do que unia todos os homens ali reunidos, Marshall termina
a sua oração de maneira interessante,

13 Especificamente a Washington Peace Conference e os comitês dos treze no Senado e dos trinta e três
na House of representatives.
14 Ata da convenção estatal do Mississippi. Disponível em:
<http://docsouth.unc.edu/imls/missconv/missconv.html>. Acesso em: 14 de novembro de 2016.

346
Faça de nós o teu povo, nos livrai do mal e que nunca tenhamos de nos arrepender
dos passos que estamos prestes a dar e do enorme trabalho que está à nossa frente.
Esses favores e bênçãos são o que imploramos humildemente, em nome e através
dos méritos do nosso senhor Jesus Cristo. Amém. 15

A fala não só deixa clara toda a atmosfera de incerteza presente na convenção, como
também deixa transparecer uma certa inquietação, um certo temor sobre o futuro. Ao que parece não
haviam muitas dúvidas sobre o resultado do que seria aferido naquela assembleia, mas sim sobre as
consequências daquela decisão para o futuro de todos os ali presentes. Marshall só iria morrer em
1891, mas não sabemos se ele e outros personagens daquela convenção se arrependeram da decisão
que tomaram ali.
Dois dias depois desta oração, estava concluída a secessão do Mississippi. Em seguida seria
a vez da Flórida, em 10 de janeiro, do Alabama, em 11 de janeiro, da Georgia, 19 de janeiro, da
Louisiana, 26 de janeiro e, por fim, do Texas, em 1 de fevereiro. Ainda que um pouco menos
unânimes que a Carolina do Sul, o grau de aceitação das moções em prol da separação nestes estados
foi de cerca de 80%.16 A principal incerteza das lideranças sulistas no momento não era em relação
aos objetivos ou a necessidade da separação em relação à união, mas da forma com a qual ela se
daria.
A grande maioria das lideranças apostava em uma solução individual de cada estado,
baseada em um movimento de “dominó” com secessões individuais referendadas pelas convenções
estatais. Outros, uma minoria localizada especialmente no Alabama, na Geórgia e na Louisiana,
desejavam algum tipo de declaração de cooperação prévia entre os Estados, uma forma de garantia
de solidariedade mútua caso confirmada a Apesar de serem minorias em seus estados, as advertências
colocadas pelos cooperacionistas não poderiam ser simplesmente ignoradas. Em alguns estados,
estes representantes chegavam a formar cerca de 40% dos delegados em algumas convenções
estatais, sendo particularmente mais fortes nos Estados com menor número de escravos e plantations
– especialmente nas regiões montanhosas do Tennessee, Alabama e Arkansas. 17

A posição majoritária no grupo era a daqueles que acreditavam que a secessão devia ocorrer,
mas em conjunção com outros Estados. Para estes, a secessão em um grande bloco, além de reforçar
a posição de todos os seus integrantes e acelerar um possível reconhecimento por parte de nações
estrangeiras, manteria os vínculos econômicos e sociais que mantinham o low South unido. Esses
vínculos econômicos foram, em último caso, elemento retro-alimentador das secessões em forma de

15 Idem.
16 MCPHERSON, James M. Battle Cry of Freedom: The Civil War Era. New York: Oxford University
Press, 1988. p. 235.
17 MCPHERSON, James M. Op. Cit. p. 239.

347
“efeito-dominó” que tomaram o deep South entre janeiro e fevereiro de 1861. Se, como veremos
adiante, as incertezas com relação à destruição dos vínculos econômicos acabaram atuando como
elemento anti-secessão nos Border States, aqui, no Deep South, o movimento foi inverso. A secessão
não surgiu unicamente pelas divergências sociais e políticas entre Norte e Sul, ela é resultado de uma
avaliação sensata dos laços econômicos de cada Estado e de como qualquer tentativa de construção
de um novo modelo de integração econômica, dadas as condições de forças existentes no governo
federal, colocaria o Sul em posição subordinada.
Se a lógica do binômio risco vs oportunidade apontava, ao menos aos olhos dos
cooperacionistas, muito mais riscos do que oportunidades, conforme outros Estados sulistas foram
aderindo ao movimento secessionista, esse cálculo foi se transformando. O que poderia de ocorrer
de pior para qualquer um destes estados era permanecer isolado em alguma posição, seja ela
secessionista ou unionista. A quebra da unidade fundamental do Deep South traria muito mais riscos
do que oportunidades.
Isso não significa dizer que a secessão nestes estados não foi pautada em um real sentimento
de ultraje em relação ao governo republicano e a sua postura anti-escravidão, é claro que este
elemento, repetido em todas as declarações de motivos apresentadas pelos Estados, era central para
o movimento secessionista. Contudo, a aceitação desse tipo de política foi claramente facilitada pelo
conjunto de forças que se organizou no deep South. Os cooperativistas, que até então tinham
advogado prudência, foram aos poucos, graças às secessões sequenciais de cada estado, perdendo
sua força argumentativa e, quando os primeiros tiros ecoaram no Fort Sumter, a grande maioria já
estava apoiando diretamente o conflito. A melhor corporificação desse exemplo é o próprio
Alexander Stephens, claramente conservador em seus discursos antes da onda de secessões, Stephens
passou a apoiar o conflito e assumir papel de destaque na Confederação nascente.

4. Border States: Ambiguidades e incertezas

Por volta de 8 de junho, o upper South também já havia se separado do da União. Virginia –
agora dividida em duas -, Arkansas, Carolina do Norte e Temesse formavam as fronteiras do novo
Estado constituído, mas alguns Estados continuavam balançando entre a neutralidade e a escolha de
um dos lados da contenda. Aos poucos ia ficando mais claro que o posicionamento de Estados como
Delaware, Maryland, Missouri e Kentucky seria central para a definição do futuro do conflito.
Divididos entre seus laços culturais com o Sul, suas relações econômicas com os estados do Norte –

348
bastante ampliadas graças à expansão das ferrovias na década de 50 – e uma tradição unionista e
moderada, os border states balançavam entre uma e outra posição. Independente do lado escolhido,
eles acabariam se tornando a porta de entrada entre as duas nações, o elo mais fraco na corrente
Confederada ou Unionista.
Contando com uma população de quase 3 milhões de pessoas, dentre as quais quase meio
milhão de escravos, os Border States eram peça chave na estratégia de manutenção da união, centrais
no sistema de comunicação e logística, ricos em recursos naturais e, principalmente, possuindo uma
grande população branca recrutável, a secessão de qualquer um destes Estados seria um duro golpe
na causa Unionista. O próprio Lincoln tinha noção dessa importância e a forma cautelosa com que
lidou com os Border States só demonstra isso. Em carta enviada a Orville Hickman Browning, então
Senador por Illinois, mas natural do Kentucky, ele deixa claro a importância destes Estados e de que
forma a secessão de um deles, provavelmente, significaria a de outros,
Acredito que perder o Kentucky é quase a mesma coisa que perder todo o jogo. O
Kentucky perdido, não conseguiremos manter Missouri e nem, creio eu, Maryland.
Todos estes contra nós e o trabalho em nossas mãos será maior do que podemos
aguentar. Teremos, nós também, de concordarmos com a separação de vez,
incluindo a rendição dessa capital.18

A forma com que Lincoln negociou a permanência destes Estados na união tem sido vista como
uma das provas da capacidade de adaptação e dos méritos de negociação do presidente, contudo,
além de parcimônia e flexibilidade, as políticas de Lincoln para os Border States buscavam ser muito
mais incisivas. Os objetivos centrais de Lincoln para estes estados eram a manutenção de governos
favoráveis à união e a utilização da máquina governamental dos Estados como instrumento de
popularização, através do convencimento e, principalmente, da força, com vistas à aceitação da causa
unionista.
Esta ambiguidade entre convencimento e coerção direta é vista com clareza em todos os Border
States, mas ficará mais evidente no caso de Maryland. Maryland era um Estado escravista encravado
entre o Sul e o Norte e com uma curiosa mistura de agrarismo sulista e mercantilismo nortista. Apesar
de não nutrir desejos separatistas tão intensos quanto os presentes no Sul, o Estado era abertamente
contrário as políticas republicanas, tendo dado apenas 2.5% de seus votos válidos a Lincoln na
eleição de 1860. Economicamente, duas áreas se destacavam no Estado com simpatias diferenciadas,
os fazendeiros de tabaco da Baia Chesapeake assumindo posições bastante simpáticas ao Sul,
enquanto os habitantes do Norte e do Oeste do Estado – inclusive o grande contingente de imigrantes

18 Carta de Abraham Lincoln para Orville Hickman Browning, Disponível em:


<http://quod.lib.umich.edu/l/lincoln/lincoln4/1:1003?rgn=div1;view=fulltext>. Acesso em: 14 de novembro de 2016.

349
alemães – aproximavam-se do Norte. A grande faixa fronteiriça com a unionista Pensilvânia também
era um argumento mobilizado em favor da sua manutenção na união.
O Governo do Estado estava nas mãos do republicano Thomas Holliday Hicks, que
frequentemente era cobrado por cidadãos secessionistas do estado e acusado de parcialidade em
relação à União e a Lincoln. Foi só depois de muita pressão que Hicks aceitou organizar a convenção
que decidiria sobre a situação de Maryland em relação a secessão. A convenção não se deu em
Baltimore, então capital, e foi transferida para Frederick, cidade especialmente simpática a causa da
união, lá foram apresentados os argumentos em prol e contrários à secessão e, em uma votação
definida com 53 votos a favor e 12 contra, a legislatura estadual definiu que não cabia a ela os direitos
constitucionais de aceitação de uma ordenança de secessão.19 As tensões continuaram altas, diversas
denúncias davam conta da prisão de opositores políticos que, portanto, não puderam estar presentes
na sessão de votação, coerção e convencimento entraram em ação e foram efetivos, Maryland, palco
de algumas batalhas durante os primeiros anos da guerra, não se separaria da União.
A partir do exemplo de Maryland conseguimos tecer algumas conclusões. Aqui o esforço de
concentração e manutenção de uma unidade entre os Border States não foi somente resultado de uma
decisão consciente das autoridades estatais – como no caso do Deep South –, a ação ostensiva do
Governo Federal e a maneira habilidosa com a qual Lincoln lidou com a questão da lealdade à união
nos estados fronteiriços escravagistas acabaram por adicionar novas variáveis à análise do binômio
risco vs oportunidade. Todavia, a certeza de que, principalmente se optassem pela secessão, esses
estados passariam a tornar-se uma região de fronteira entre duas nações, acabou por pesar nesta
análise.
Do ponto de vista econômico, os Border States eram uma casa dividida, influentes forças
pendiam para ambos os lados e o caso que vimos em Maryland se repetia em outros estados,
adaptando-se as particularidades geográficas de cada um deles. Os Border States foram colocados
diante de uma escolha, as consequências econômicas da secessão dos Estados do Sul e da divisão do
país em duas nações acentuavam as ambivalências produtivas já existentes no interior destes Estados,
dessa forma, o crescente desenvolvimento manufatureiro de algumas destas áreas exercerá peso
importante na capacidade destes estados em assumir o risco de uma escolha pela secessão. Não
aleatoriamente, as fronteiras entre a Confederação e a União acabaram por ser traçadas justamente
nas regiões onde havia menor ligação econômica com a escravidão. 20

19 SCHARF, J. Thomas. History of Western Maryland. Philadelphia : L. H. Everts. p. 202.


20 BENSEL, Richard Franklin. Yankee Leviathan: The origins of central state authority in America.
1859-1877. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 37.

350
Aqui, mais do que em qualquer outra região já analisada, o binômio risco vs oportunidade¸
assumiu papel fundamental nas escolhas dos agentes estatais. A decisão de manutenção das posições
unionistas foi resultado de um cálculo que mostrava muito mais riscos do que oportunidades para os
Estados no caso de uma secessão. Contudo, como ficou claro no trecho da carta de Lincoln, a
manutenção da unidade destes estados era fundamental para a condução da guerra. O Kentucky e o
Missouri, ambos mais populosos, eram pedras de toque para o resto da região e sua condição ia
acabar por decidir que caminho seguiriam os outros Estados.
A manutenção do sentimento unionista também foi dura no Kentucky e no Missouri, em
ambos, os governadores Beriah Magoffin, do Kentucky, e Claiborne F. Jackson, Missouri, eram
simpatizantes da causa sulista e defensores do argumento do direito dos Estados. As tensões entre
governo central e dos estados ficam claras quando, por exemplo, Lincoln, ele mesmo natural do
Kentucky, solicita, em abril de 61, tropas ao governador do Estado. Magoffin responde sua
solicitação em telegrama afirmando, “Presidente Lincoln, não enviarei nenhum homem ou dólar com
o perverso propósito de subjugar nossos Estados irmãos do Sul”.21 Apesar dessa rejeição inicial e de
uma posição de neutralidade, nenhum dos border states acabaria por se separar da União, uma
mistura de análise de riscos e ação direta do Governo Federal foram fundamentais neste processo,
para estes estados fronteiriços era muito mais arriscado unir-se a confederação.

5. Conclusão

Ao longo das páginas que se passaram, pudemos fazer uma breve revisão das motivações e
das formas com as quais os diferentes estados do Sul reagiram à eleição de Lincoln. Um debate mais
aprofundado, levando em conta a situação específica de cada Estado e investigando de que forma a
escolha pela secessão mantinha ou criava novos laços econômicos e políticos, ainda é um esforço a
ser feito e as limitações de extensão de um trabalho desta natureza não deixam que o façamos.
Todavia, já é possível avançar em algumas conclusões mais gerais e reunir aqui os argumentos que
defendi anteriormente.
A secessão foi um movimento preventivo de defesa contra uma ameaça iminente, é, portanto,
uma decisão política em que o medo do porvir exerce papel fundamental como motivador das ações

21 MCMURTHY, R. Gerald. Ben Hardin Helm, "rebel" brother in law of Abraham Lincoln, with a
biographical sketch of his wife and an account of the Todd family of Kentucky. Chicago, Priv. Print. for the Civil War
Round Table, 1943. p.22.

351
de seus agentes. Certos de que o futuro da escravidão estava gravemente ameaçado, dada a correlação
de forças que se organizava no controle do Governo Federal, líderes sulistas e as elites estaduais
resolveram agir. Para tanto, mobilizaram antigos argumentos sobre o direito dos Estados e, por mais
incompatível que possa parecer a princípio, pautaram-se diretamente na constituição da nação da
qual queriam se separar. Resgatando a memória da Revolução Americana, os líderes sulistas
procuravam tomar para si a designação de defensores dos verdadeiros valores americanos. A
identidade sulista era, necessariamente, conservadora, pautada na reação direta às mudanças e na
defesa do papel do Estado central como um agente possibilitador de instituições como a escravidão.
Um ponto que procurei deixar claro é que, apesar destas tendências gerais do separatismo
sulista, diferentes áreas do Sul levaram em conta cálculos muito particulares para a decisão em prol
ou contra a secessão. Alguns pontos foram centrais para a análise do binômio risco vs oportunidade,
na maioria das vezes, estes pontos se referiam a manutenção da unidade de um bloco em específico
e a consideração do risco que significava assumir uma posição afastada do resto dos Estados vizinhos
– principalmente no deep South. A consideração da importância da manutenção rotas comerciais –
que se mostrou fundamental para a não secessão dos Border States – e dos vínculos econômicos de
cada estado, bem como uma análise do grau de inserção que o Governo Federal possuía no interior
de cada estado.
O papel do governo federal no interior dos estados talvez seja o elemento que mereça mais
estudos a partir de então, uma vez que, é a natureza da inserção do governo federal nos Estados
durante o pré-guerra que pode nos ajudar a compreender melhor o ponto que talvez ainda seja mais
difícil de ser entendido pela lógica do binômio risco vs oportunidade, a saber, a iniciativa
secessionista da Carolina do Sul sem garantias e de que outros estados a seguiriam. Duas hipóteses
podem ser levantadas, os políticos Sul Carolinianos souberam perceber muito bem a organização de
forças que surgia a partir da eleição de Lincoln e, de maneira arrojada, colocaram-se na dianteira do
processo de separação – o que também pode ser explicado pela posição combativa, pelo papel dos
fire eaters no Governo Estadual, a estrutura política da Carolina do Sul e pelas tensões que a Carolina
do Sul alimentava contra o governo federal durante a última década.
Por fim, uma análise mais geral nos mostra que as oportunidades surgidas por uma secessão
no Sul eram evidentes para os agentes históricos nela envolvidos. A separação da União quebrava
laços de subordinação do Sul que, com a eleição de Lincoln, pareciam só aumentar, abria
oportunidades para a expansão da escravidão, colocava a Confederação em uma posição de primazia
com relação aos seus vizinhos sulistas – México e América Central – e, fundamentalmente, garantia
o papel do Governo como um elemento de manutenção e suporte do modelo escravocrata. Os riscos,
por outro lado, eram mais altos em alguns Estados do que em outros, considerando a inserção do

352
governo federal em cada um deles. Quanto mais dependente de rotas comerciais e de estruturas
logísticas do Norte fosse determinado Estado, maior eram os riscos de debacle gerados pela decisão
separatista.
Todos estes cálculos, com maior ou menor grau de arrojo, foram feitos pelos agentes políticos
em cada um dos Estados, chegando à conclusões diferentes e, obviamente, a resultados diferentes.
Pouquíssimos personagens políticos, seja no Norte ou no Sul, esperavam que estas tensões
acabassem gerando um conflito das proporções da Guerra Civil Americana, e que o que antes era
calculado na base do risco e oportunidade, acabou por perder espaço para a tragédia.

Bibliografia:

Fontes documentais:
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Militar na ditadura empresarial militar

Ayra Guedes Garrido1

Resumo: O Judiciário Militar foi um órgão de grande protagonismo durante o regime militar. A
partir do Ato Institucional nº 2, baixado em 1965, o Tribunal Militar se torna a instituição judiciária
responsável pelo julgamento de pessoas processadas pela Lei de Segurança Nacional. Utilizo o
conceito de exceção de Giorgio Agamben para entender o papel legitimado da Justiça Militar na
condenação de réus políticos do regime.

Palavras-chave: ditadura militar, Justiça Militar, Ministério Público Militar, exceção, legitimação

Introdução

A ditadura empresarial militar 2 representou um período de muitas mudanças nas instituições


brasileiras. Influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional3, foi difundida no Brasil através da
Escola Superior de Guerra, tendo com um dos seus entusiastas, o General Golbery. A Doutrina tinha
como objetivo transformar o Brasil em uma grande potência, moderna e desenvolvida. Para que isso
acontecesse seria necessário reformular as instituições para garantir a ordem e o progresso
necessários para o desenvolvimento do país. Muitas instituições sofreram mudanças durante a
ditadura. Polícias, jornais, universidades, sindicatos, empresas e organizações sofreram intervenções
recorrentes do governo militar. Os poderes como o Legislativo e o Judiciário também foram afetados.
A ditadura brasileira, teve suas singularidades frente às outras do Cone Sul. Como a da Argentina e
do Chile. Nesses regimes ditatoriais, o Judiciário foi fechado durante algum período das ditaduras.
Diferentemente do Brasil, onde o Judiciário funcionou durante toda a época ditatorial. O cientista
político Anthony Pereira analisa a legitimação do funcionamento do Judiciário no Brasil com o
conceito de “legalidade autoritária” 4. Onde o governo teria se utilizado de uma roupagem de governo
democrático, pelo fato das instituições como o Legislativo e o Judiciário continuarem funcionando.
Através de uma legalidade autoritária, com um sistema judicial baseado em leis autoritárias, criadas
na vigência do regime.

1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Graduada em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Endereço eletrônico: ayra.garrido@hotmail.com
2 Importância dos grupos empresarias na articulação do golpe e da ditadura. Ver “1964: A Conquista do
Estado”, de René Dreifuss. 1981. Ed. Vozes
3 Ver “Estado e Oposição (1964-1984) ”, Maria Helena Moreira Alves. 1984. Ed. Vozes
4 Ver “Ditadura e repressão”, Anthony Pereira. 2010. Ed. Paz e Terra

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O Judiciário, apesar de continuar funcionando, sofreu fortes influências do Regime, principalmente
o Judiciário militar, que a partir de outubro de 1965, após a promulgação do Ato Institucional nº 2,
passa a julgar os crimes incursos na Lei de Segurança Nacional. O que incluía o julgamento de civis,
e principalmente de réus políticos, com envolvimento na oposição ao regime. A partir de 1969, com
o Decreto do novo Código Penal Militar 5, as penas aos crimes incursos na Lei de Segurança Nacional
se tornam mais severas. É instituída a pena de morte, a prisão perpétua e o banimento. Aumentando
em grau considerável o tipo de pena.
A partir desse cenário é importante sinalizar a interferência do político, dos interesses
governamentais na estrutura judiciária do país. Ao colocar uma instituição militar para julgar civis
envolvidos em crimes políticos, isso mostra uma clara interferência do regime nas instituições
brasileiras.
É importante destacar que nesse período, o Judiciário Militar, foi visto como a única salvação
para presos políticos do regime, já que para eles estarem sendo processados no Tribunal Militar, seria
uma forma de manter-se vivo6. Porém, é importante que se faça uma crítica a esse Judiciário, que
muitas vezes se mostrava autoritário, ao omitir denúncias de tortura, ilegalidades nos processos,
defender abertamente o regime em discursos preconceituosos, além de condenar severamente
pessoas envolvidas em ações políticas7.

A exceção como legitimação do regime

Grande parte dessa intervenção, pode ser justificada ou legitimada, através do discurso da
exceção. A ideia de que o país estaria sofrendo um período de exceção, uma “ameaça comunista” e
um desequilíbrio econômico, onde seria necessário reagir de forma extralegal para conseguir a
“ordem e o progresso” de volta ao país. Segundo Agamben, “o Estado de exceção apresenta-se como
a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (AGAMBEN, 2004. P. 12). Essa ideia de

5 Decreto-Lei nº 1001, de 21 de outubro de 1969:


“Os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes
confere o art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1° do art. 2°, do Ato Institucional
n° 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam: o Código Penal Militar de 1969. ” Aplicação da lei penal militar.
6 Ver “Ousar lutar: memórias da guerrilha que vivi”. José Roberto Rezende e Mouzar Benedito. 2000.
Ed. Viramundo
7 Ver “Relatório do Projeto Justiça Autoritária – Uma investigação sobre a estrutura da repressão no
Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (1964-1985) ”. Vanessa Berner. 2015. Relatório da Comissão da
Verdade do Rio de Janeiro.

356
Agamben, se aproxima do conceito de “legalidade autoritária”, de Anthony Pereira, onde o regime
militar se apropria de uma ideia de exceção, para criar atos e decretos com o objetivo de agir de
forma autoritária afim de conseguir seus interesses.
Para Agamben, um regime totalitário criado através de um estado de exceção, baseado na existência
de uma guerra civil, acaba justificando a eliminação de adversários políticos contrários ao governo,
que por qualquer razão não se integrem ao sistema político. O Estado ditatorial brasileiro, ao intervir
na forma como o Judiciário deve agir, acaba por fim, em condenar os grupos e indivíduos políticos,
de forma a tirá-los de circulação e impedir a propagação de ideias contrárias aos interesses do regime.
O estado de exceção caracterizado por Agamben, seria um estado onde há uma suspensão da
ordem jurídica e uma interseção entre o jurídico e o político. Uma situação de “plenos poderes”,
onde há uma ampliação dos poderes governamentais, principalmente do Executivo na formulação
de atos e decretos como força de lei. Esse Estado só é vivido na forma de exceção a partir de uma
crise, ou guerra civil, que “necessite” a suspenção de direitos, para se retornar à estabilidade social
e econômica.
A ditadura empresarial militar iniciada com o golpe de 1964, teve como objetivo, segundo René
Dreifuss, promover todo um aparelhamento político e econômico de forma a garantir um ambiente
confortável para o desenvolvimento e modernização do país a longo prazo. Para que isso ocorresse,
seria fundamental que se constituísse um aparelho estatal de segurança eficiente, que impossibilitasse
o surgimento de movimentos que “atrapalhariam” o desenvolvimento do país e, consequentemente,
os seus interesses. Como antes do golpe, esses grupos empresariais não tinham total controle das
diretrizes políticas no país, era necessário que a ideia de um inimigo a ser combatido, que
atrapalhasse o desenvolvimento e a segurança do país fosse criado de forma a legitimar as ações de
um estado de exceção. Apesar de estar presente o “boom” do anticomunismo, foram criadas
instituições, como o IPES, que ajudaram na propagação do medo comunista, através da organização
de grupos conservadores que se aliaram na luta contra o comunismo. 8 Criado um estado de exceção,
seria possível uma legitimação da atuação do Estado de maneira repressiva, já que se estaria diante
de uma situação de crise, onde os direitos deveriam ser deixados de lado para reestabelecer a ordem
e a economia.
Segundo Agamben, o estado de exceção implicaria um retorno a um tipo de Estado onde não se dava
a distinção plena entre os diversos poderes. Não haveria uma independência entre o Executivo,
Legislativo e Judiciário. Devido a um estado em crise, o Executivo se tornava protagonista,
intervindo no Legislativo e no Judiciário. O que, como vimos, aconteceu na ditadura. No Legislativo,

8 Ver: “Os Senhores das Gerais”, Heloisa Maria Murgel Starling. 2ª Edição. Ed. Vozes, 1986.

357
vários partidos políticos foram extintos e houve a adoção do bipartidarismo, com um partido da
oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro); e o da situação, a Arena (Aliança
Renovadora Nacional). Já no Judiciário, houveram mudanças, como dito acima, na legislação, além
do afastamento através de aposentadorias compulsórias de juízes que votavam contra os interesses
do regime, como no caso do juiz do Superior Tribunal Militar (STM), Peri Bevilacqua; como também
em promoções a juízes e promotores do Ministério Público Militar (MPM), que agiam em
consonância com o regime. Para Agamben, essa característica de abolição da independência entre os
poderes durante um estado de exceção, poderia transformar-se em prática duradoura de governo.
Como podemos perceber em vários aspectos políticos e sociais no Brasil, a ditadura deixou muitas
marcas em nossa sociedade. Além das dores, ausências e marcas profundas que ela deixou em
centenas de famílias, o regime militar mudou profundamente as instituições brasileiras. Além da
confusão da divisão e função dos poderes no Brasil, ainda vemos um processo atual de judicialização
da política no Brasil, como o acionamento recorrente do Superior Tribunal Federal (STF) em
escândalos políticos. Ainda temos o funcionamento de uma Justiça Militar, que em muitos países só
funciona em períodos de guerra, em períodos de exceção. Além de sua existência mesmo após o fim
da ditadura, ela continua julgando civis.
Segundo o art.9 do Código Penal Militar, Decreto-Lei 1001/699, qualquer civil pode ser processado
pela Justiça Militar nos dias de hoje, seguindo ainda um código penal militar, criado em plena
vigência do regime. Nos últimos anos, o número de civis processados pela Justiça Militar, vem
crescendo em grande número devido às ocupações militares nas áreas de conflito da cidade do Rio
de Janeiro. Em muitos desses casos, os processos são enviados ao Ministério Público Militar, por
desacato à autoridade militar. Como visto por Agamben, esse estado de exceção promoveu um
prolongamento da confusão entre poderes, e essas ações continuam sendo legitimadas por um
suposto estado de exceção que viveríamos hoje devido à chamada “Guerra às drogas”.

9 Art. 9
III – Os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares,
considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra
funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício,
acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no
desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando
legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

358
Democracia protegida

“Uma "democracia protegida" não é uma democracia e que o paradigma da ditadura


constitucional funciona sobretudo como uma fase de transição que leva fatalmente a instauração
de um regime totalitário”
(AGAMBEN, 2004, p.29)

Para Agamben, o Estado ao adotar um período de exceção, deixa de ser uma democracia. Ao
suspender direitos em favor de uma “proteção à democracia”, já que ela viveria um estado
excepcional, ela deixa de ser um estado democrático de direito e passa a ser um regime ditatorial que
não garante a seus cidadãos os seus direitos. Reprimindo de todas as maneiras os cidadãos através
de uma legitimação da exceção.
A ditadura ao manter suas instituições em funcionamento e uma Constituição vigorando, ela se
propôs a ser um regime democrático protegido. Tendo suas graves violações de direitos humanos,
travestidos como “excessos” de um regime excepcional que se auto denominava democrático.
Uma democracia onde não se podia votar, não se podia se organizar politicamente, não se podia se
expressar, não se podia amar e principalmente nem pensar. Mas, com toda a certeza, uma democracia
protegida e muito segura, mas somente para àqueles que estivessem de acordo com essas condições.

A Justiça como exceção

Como dito no começo do artigo, a Justiça, muitas vezes, era vista como a única forma de salvação
dos indivíduos que se encontravam presos clandestinamente pelo regime. Segundo alguns advogados
da época10, você conseguir ter o seu cliente com um processo na Justiça Militar era uma garantia de
que ele não seria morto. O que aconteceu com cerca de 400 pessoas desaparecidas pela ditadura
empresarial militar brasileira.
A ideia de que a nossa ditadura foi uma das ditaduras que menos matou frente às ditaduras no Cone
Sul, como a da Argentina e do Chile que mataram milhares de pessoas, é bem recorrente. Mas é
importante destacar que apesar da ditadura brasileira não ter matado milhares de pessoas, ela julgou,

10 Ver “Advocacia em Tempos Difíceis”. Paula Spieler e Rafael Queiroz 2014. Ed. FGV

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processou e condenou muitas pessoas de forma autoritária, baseada em processos fraudulentos e
cheios de discursos autoritários.
O Ministério Público Militar, o órgão acusatório, responsável pelas denúncias encaminhadas a
Justiça Militar, baseava-se em Inquéritos Policiais Militares (IPM), produzidos sob tortura, com
testemunhas e provas forjadas, além de translados ilegais dos presos e sua incomunicabilidade com
os advogados e a família. Os promotores dessa instituição produziam discursos ideológicos de defesa
ao regime, chamando-o de “Revolução de 1964”, proferindo discursos preconceituosos chamando
os réus de “subversivos terroristas”, discursos de vitimização das mulheres que atuavam em grupos
políticos e omissão frente às práticas de tortura e fraudes no processo. Esses promotores baseavam
suas acusações em provas e testemunhas, muitas vezes, forjadas, denegrindo a imagem do acusado
e pedindo penas de morte ou prisões perpétuas.
Ao se pronunciarem, os acusados mostravam suas marcas de sevícias e torturas aos juízes das
Auditorias Militares, que são a primeira instância da Justiça Militar. Era incomum que os presos
fizessem isso, pois ao voltarem às cadeias e presídios, eles poderiam ser torturados novamente. Mas,
ao apresentar suas denúncias aos juízes das Auditorias, que eram compostas por quatro juízes
militares e um civil, chamado de togado por possuir diploma de direito; essas denúncias eram
ignoradas, e muitas vezes nem chegavam a aparecer nos processos. As poucas citações de denúncias
presentes nos processos são descritas como “constrangimentos”. Esses juízes por serem militares,
acabavam por trazer ao julgamento valores da ideologia militar, imbuída pela ideia de um inimigo a
ser combatido. E, que esses réus, condenados através da Lei de Segurança Nacional seriam terroristas
perigosos, que deveriam ser condenados por seus atos contra a integridade nacional. A partir dessa
visão, os juízes das Auditorias acabavam por condenar os acusados seguindo o pedido de pena dos
promotores do Ministério Público Militar, além de reforçarem o discurso de proteção ao regime
militar.
Algumas vezes, os advogados entravam com recursos para o Superior Tribunal Militar, que é a
segunda instância da Justiça Militar, como forma de amenizar as penas pedidas pelo MPM. O STM,
a partir do Ato Institucional nº 2, em 1965, passa a ter quinze ministros. Três militares da Marinha,
quatro do Exército, três da Aeronáutica e cinco civis. Essa composição do STM é mantida até os dias
de hoje pela Constituição de 1988. O Superior Tribunal Militar, apesar de ser a segunda instância e
possuir um número maior de ministros, também acabava por votar e julgar a favor dos interesses do
regime. Mantendo a condenação das Auditorias Militares. Porém alguns juízes dessa instância, se
mostravam legalistas e rejeitavam processos onde houvessem denúncias ou fraudes. Como o caso do
general Peri Bevilacqua, como dito acima. E nesse, caso os juízes eram aposentados

360
compulsoriamente e afastados dos casos. Houveram processos, onde os juízes eram trocados poucas
horas antes das audiências.
Havia ainda a última e terceira instância de todas as Justiças. O Superior Tribunal Federal. Formado
por ministros civis, o STF também sofreu alterações legislativas a partir dos Atos Institucionais.
Além de também ter os juízes que não compartilhavam com o regime afastados e aposentados
compulsoriamente. Como, o jurista e cientista político Victor Nunes Leal, que é afastado do Tribunal
em 1969, após não agir de conforme ao regime.
É importante destacar que os presos que eram processados pela Justiça Militar, muitas vezes já
estavam em poder do regime através de prisões clandestinas. Como, por exemplo, a ex-militante de
luta armada Inês Etienne, que foi para a Casa da Morte, em Petrópolis, em maio de 1971 e ficou até
agosto de 1971, sendo torturada e seviciada. Sem comunicação com família ou advogados. Portanto,
já tendo passado grande período sendo torturada em poder das forças de repressão do regime. E
quando os presos iam para a Justiça ser processados e condenados, recebiam penas de morte ou
prisão perpétua, como no caso da Inês, que em dezembro de 1971 é condenada à prisão perpétua
pelo sequestro do embaixador Giovanni Enrico Bucher.
A Justiça Militar até hoje, nunca julgou os perpetradores e agentes repressores do Estado. Os
processos políticos da época só foram trazidos a público através do projeto “Brasil Nunca Mais”,
lançado em 1985, que recolheu processos da Justiça Militar de todo o país. O projeto criou uma
plataforma digital com 710 processos digitalizados, 198 deles do Estado do Rio de Janeiro e desses
198, 138 são processos de organizações políticas11. Dessa informação, podemos ver o interesse que
o regime militar tinha em condenar e exterminar os grupos políticos opositores ao regime.

Conclusão

A partir da ideia de exceção desenvolvida pelo filósofo Giorgio Agamben é possível compreender a
legitimação e manutenção da ditadura empresarial militar no Brasil durante duas décadas. A ditadura
é legitimada pela ideia de um Estado em crise, que precisa de mãos autoritárias para retornar à sua
estabilidade e desenvolvimento. O anticomunismo é difundido, pessoas no interior do Brasil
acreditavam no mito de que comunistas comiam criancinhas. E assim é de se esperar que o Estado
aja com autoridade contra o “perigo” do comunismo, que ameaça à integridade e segurança nacional.

11 Fonte: Plataforma digital Brasil Nunca Mais. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/

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O Estado, então, tem que intervir nas instituições, acabando com a independência entre os três
poderes, que, segundo Montesquieu regem um sistema republicano democrático. O Executivo como
protagonista, intervindo no Legislativo e no Judiciário. Esse Estado de exceção, como vimos, se
prolonga até os dias de hoje, através das instituições. As polícias ainda mantêm códigos de conduta
criados durante o regime militar, a Justiça Militar também continua em vigência, atuando baseada
em leis criadas no Estado ditatorial.
É possível afirmar que a Justiça Militar foi um dos braços do regime ao julgar e condenar pessoas
através de leis autoritárias, processos fraudulentos e omissões de tortura. O Tribunal Militar não
condenou repressores e agentes envolvidos em violações de direitos humanos. E agiu através da
suspensão de direitos, próprias de um estado de exceção.
A ditadura se vestiu de uma aparência democrática ao não fechar as instituições e vigorar através de
uma Constituição. Como Agamben diz, “uma democracia protegida, não é uma democracia. ” A
partir dessa ideia, podemos fazer também uma reflexão da democracia que temos nos dias de hoje.
Será que a nossa democracia garante os nossos direitos? Ela nos garante nos expressar, nos
manifestar? Ela comete graves violações de direitos humanos? Talvez ainda não vivamos em uma
democracia consolidada, talvez ainda temos mais continuidades da ditadura do que gostaríamos de
admitir. Talvez ainda vivamos em um estado de exceção.

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D'ARAUJO, Maria Celina. Justiça Militar, Segurança Nacional e Tribunais de Exceção.


30° Encontro Anual da ANPOCS GT08 - Forças Armadas, Estado e sociedade, 24 a 28
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MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 2ª ed. Martins Fontes, 2000.

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Argentina e no Chile. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

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RELATÓRIO DA COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO DE JANEIRO. “Relatório


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SPIELER, Paula, QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (Coord.), 2014. Advocacia em Tempos Difíceis:
Ditadura Militar 1964-1985. Curitiba: FGV.

363
A Assistência À Infância Na Misericórdia Carioca (1902-1928)

Beatriz Virgínia Gomes Belmiro 1

Resumo: Este artigo tem por objetivo estudar o perfil da infância abandonada, bem como conhecer
essas famílias que abandonavam, no que tange conhecer a representação da pobreza do Rio de
Janeiro. Buscou-se inicialmente visualizar as entradas das crianças na Casa dos Expostos referentes
as transformações que sucederam no último quartel do século XIX, como por exemplo a Lei do
Ventre Livre de 1871, e perceber de que maneira essas mudanças influenciaram no perfil das crianças
enjeitas especificamente do Rio de Janeiro no Educandário Romão Duarte e respectivamente
vincula-se diretamente aos esforços de entendermos a questão da institucionalização da pediatria na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o papel exercido pelos médicos nela envolvidos, bem
como de seus hospitais – por eles criados e/ou dirigidos.

Palavras-chave: infância; assistência; institucionalização da pediatria.

Abstract: Abstract: This article has the purpose to study the profile of the abandoned childhood, as
well as to know the families which abandoned those children, in order to understand the
representation of Rio de Janeiro's poverty. Initially were sought to view the children’s entries at the
“Casa dos Expostos” regarding the changings in the last quarter of the 19th century – for example
the 1871’s “Lei do Ventre Livre” – and realize in which ways these changes had an affect on the
encased children's profile, specially on Rio de Janeiro at the “Educandário Romão Duarte”. It links
directly to the efforts put into understanding the matter of the institutionalization of the pediatrics at
the Rio de Janeiro’s Medicine University and the role played by its doctors as well as by its hospitals
– of its own criation and/or under its management.

Keywords: childhood; assistance; institutionalization of pediatrics

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo estudar o perfil da infância abandonada, bem como conhecer essas
famílias que abandonavam, no que tange conhecer a representação da pobreza do Rio de Janeiro.
Buscou-se inicialmente visualizar as entradas das crianças na Casa dos Expostos referentes as
transformações que sucederam no último quartel do século XIX, como por exemplo a Lei do Ventre
Livre de 1871, e perceber de que maneira essas mudanças influenciaram no perfil das crianças
enjeitas especificamente do Rio de Janeiro no Educandário Romão Duarte e respectivamente
vincula-se diretamente aos esforços de entendermos a questão da institucionalização da pediatria na

1 Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista PIBIC na Fiocruz sob a
orientação da professora Gisele Porto Sanglard, doutora em História das Ciências da Saúde. Apoio: CNPq/Fiocruz.
Email: beatrizvirginia9@gmail.com

364
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o papel exercido pelos médicos nela envolvidos, bem
como de seus hospitais – por eles criados e/ou dirigidos.
Para chegarmos ao nosso intento, iniciamos a pesquisa analisando, a partir de amostragens, alguns
anos do final do século XIX a fim de procurar entender o que se modificou na Casa dos Expostos no
início do século XX. Assim, os dados aqui apresentados referem-se a este esforço inicial de
compreendermos como funcionava a instituição.
Tendo em vista a assistência a infância no Rio de Janeiro referente ao cenário de institucionalização
da pediatria, anterior a isso buscamos compreender como a Santa Casa de Misericórdia com a
abertura das Rodas, especificamente do Educandário Romão Duarte no Flamengo que teve atuação
ativa também no século XIX tendo sua roda extinta na década de 1930 (Sanglard, 2016, p. 338),
atuava diante o índice elevado de mortalidade infantil e abandono.
Contudo, a sociedade durante os séculos XVIII e XIX, período de expansão das Rodas brasileiras
diante o quadro de abandono, ainda se encontrava preocupada de maneira religiosa com a salvação
da criança, médicos portugueses afirmavam que a existência das crianças normalmente reduzia-se a
um intervalo entre o útero e o túmulo (Venâncio, 2001 p. 198). Segundo Maria Luiza Marcílio, a
Igreja tolerava o abandono e condenava o aborto e o infanticídio. É em função desta tolerância que
pode ser entendida a criação de instituições de amparo para a proteção da criança abandonada, como
é o caso da primeira Roda e Casa dos Expostos de Portugal que foi criada junto a Santa Casa de
Misericórdia de Lisboa em 1492 (Marcílio, 2010, p. 21:22). Havia então em meio a mortalidade
infantil, uma preocupação em relação a salvação da criança abandonada, acreditava-se que a criança
quando falecia sem o sacramento do batismo ficava a vagar pelo limbo, sendo assim, instituição
como a Santa Casa de misericórdia, não necessariamente precisava ser de matriz católica para além
dos cuidados físicos, também estar comprometida com os cuidados da alma, pois essa questão estava
relacionada ao meio religioso católico em que emergia, como afirma Renato Franco sobre o
protagonismo das Misericórdias na América Portuguesa, afirmando que essas instituições, “na
medida do que lhes era possível, conservaram vivos valores caros à tradição religiosa” (Franco, 2014:
18). Um exemplo dessa questão é em relação as crianças mais fragilizadas que chegavam à Casa dos
Expostos no ano de 1870, como Adão, uma criança de seis dias, negra que chega no dia 9 de janeiro
de 1870, com tétano e vem a falecer no dia 10 de janeiro, sendo batizado em perigo de vida (livro de
crianças entradas na Roda Registro 33619/145). O exemplo de Adão nos permite entender que
“desde o início do cristianismo, vozes se levantavam em prol dos inocentes enjeitados que faleciam
sem sacramentos” (Venâncio, 2001: 190). Sendo assim, a Casa dos Expostos ficava também
encarregada de batizar os expostos. Chamamos atenção que no livro dos expostos pertencente ao

365
acervo do Educandário Romão Duarte, as datas de batismo estão próximas às datas da chegada da
criança e interessante destacar que as crianças fragilizadas eram batizadas às pressas.
A este cenário, Gisele Sanglard afirma que a Casa dos Expostos passou então a exercer função de
abrigo e hospital infantil em um cenário de inúmeras transformações sociais no Brasil, a lei do ventre
livre em 1871, onde a criança nascida do ventre escravo se tornaria livre e a abolição da escravidão
em 1888, entre outras transformações (Sanglard, 2016, p. 338).
A roda, na qual se deixava a criança prestes a ser abandonada, mantinha secreta a identidade das
mães, contudo era possível obter alguma informação acerca da mãe, quando ela própria escrevia
bilhetes que seriam deixados junto a criança no ato do abandono. Algumas crianças, portavam
medalhinhas, fitas amarradas no braço e mesmo moedas, acessórios que hipoteticamente poderiam
servir na identificação, como, por exemplo, é descrito nos registros das crianças expostas do
Educandário Romão Duarte, Antonio, uma criança branca que chegou no dia 1 de fevereiro de 1870
com “4 meses e 15 dias de nascido, o qual veio muito fraco. Trouxe por sinal uma fita azul amarrada
no braço esquerdo” (livro de crianças entradas na Roda Registro 33652/178). Um dos alguns motivos
para o abandono naquele período era em relação a moral da mulher, onde a criança poderia ser
resultado de um amor proibido, ou pela questão da pobreza, havendo ainda as mães que estavam
enfermas no hospital da Santa Casa de Misericórdia e por não ter como cuidar de seu filho, o mesmo
era encaminhado provisoriamente para a Casa dos Expostos por tempo indeterminado até sua mãe
melhorar, sendo apenas classificado como exposto em caso de sua mãe falecer (Venâncio, 2001, p.
192:193).

A Casa dos Expostos

Referente aos dados coletados dos respectivos anos de 1870 e 1875 da Casa dos Expostos da Santa
Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, podemos analisar o número de registros desses dois anos
juntos que foi o total de 1151 expostos, dentre esses o qual aproximadamente 50,4 % são meninas e
48,8 % meninos, havendo ainda 0,5% dos registros danificados e 0,1% de registros onde o sexo do
exposto não é especificado. No parâmetro de cor, os números podem ser imprecisos, pois algumas
denominações são ditas com incerteza como por exemplo o caso do exposto menino que deu entrada
no dia treze de julho de 1870 de nome danificado, o qual é classificado como “parece branco” (Livro
de crianças entradas na Roda Registro 33945/64), diante disso temos aproximadamente 46,2% de
expostos brancos, 36,5% pardos, 14,4% pretos, 1,2% cor de cabra contando com 1,4% danificados

366
e 0,08% sem informação. Dentre os dados coletados é possível também saber sobre a situação do
exposto, se ele foi dado a criar, entregue a mãe, se faleceu após a entrada no Educandário ou ainda
quais chegaram mortos. Sendo assim, foi possível identificar a entrada de aproximadamente 7,3%
de cadáveres, 23,1% dos expostos foram dados a criar onde 39,09% apenas no município de Maricá
seguindo por Itaboraí com 19/9%, 0,2% foram entregues às mães, 35,1% faleceram.
A análise permitiu-nos perceber que alguns expostos foram entregues a destinos repetidos,
totalizando 18 expostos onde os destinos se encontraram, dentre esses quatro foram entregues a
mesma pessoa, “Dionisio Jose Nunes casado com Florina Rosa do Espírito Santo” (livro de crianças
entradas na Roda), morador do município de Maricá, província do Rio de Janeiro. Contudo,
apresentava alterações com relação ao quarteirão ou número da casa - o que pode significar um
intermediário ou mesmo uma mudança de residência por melhoria ou piora nas condições de vida.
Tendo em vista a importância do matrimônio para a sociedade do século XIX, bem como a moral da
época, chama atenção os casos em que crianças eram entregues a mulheres solteiras, como por
exemplo Theodora, uma criança branca que foi “dada a criar à Sra. Alexandrina da [Conceição]
solteira” moradora no 6º quarteirão de Maricá, em 21 de janeiro de 1870 (livro de crianças entradas
na Roda Registro33617/144).
Chamou-nos atenção o fato que as crianças encaminhadas para a criação externa eram
entregues a famílias que habitavam sobretudo a província do Rio de Janeiro – onde a localidade que
mais recebeu expostos foi Maricá, seguida da capital da província, Niterói, que também recebeu
expostos para serem criados. De um modo geral, o que os dados apontam é que as crianças eram
encaminhadas para criação em locais muito distantes da Casa dos Expostos (como Maricá e
Guaratiba), que se localizava à época, no centro do Rio de Janeiro – próximo ao Hospital da
Misericórdia.
Outra questão que vale apena ser observada é que no que tange à cor. Os dados obtidos através da
amostragem utilizada referente aos anos de 1870 e 1875 coletados nos livros dos expostos do
Educandário Romão Duarte, foi possível visualizar que quase da metade dos expostos são
classificados como brancos (46,2%) e 52,2% são marcadas pelo cativeiro (pardas, negras e cabras)
– conforme pode ser observado no gráfico abaixo:

367
Livro de crianças entradas na Roda, 1870 e 1875. Acervo Educandário Romão Duarte, SCMRJ

Os dados estudados corroboram com a análise de Sheila Castro Faria, de que há uma permanência
de crianças brancas tanto em Salvador quanto no Rio de Janeiro, desde a primeira metade do século
XIX é predominante (FARIA, S., C., 2010, p.84). Tal fato possibilita repensar uma série de hipóteses,
como por exemplo a chegada de imigrantes no Brasil, onde na Casa dos Expostos, se encontram
bilhetinhos estrangeiros pedindo para cuidar da criança enjeitada, como é o caso da criança branca
de 3 meses Martha Couthier que chegou no dia 4 de maio de 1875, doente com gastro enterite
acompanhada de um bilhetinho em frâncês (Livro de crianças entradas na Roda Registro 36241/87)
ou como Sheila Castro Faria afirma sobre esse perfil de abandono, dizendo que “só por serem brancas
não significam que sejam ricas” (FARIA, S., C., 2010, p.84), porém a Sheila Castro Faria indica que
também não significa que brancos pobres enjeitavam mais que os negros e pardos, a cor também
poderia revelar lugar social, entendendo que a criança abandonada segundo a legislação, se tornava
livre, porém no quesito sexo percebemos uma maior homogeneidade dos dados, conforme pode ser
percebido no gráfico abaixo:

368
O sexo dos enjeitados na Roda do Rio de janeiro - 1870 e 1875

total
meninas
meninos
danificado
sem informação

Livro de crianças entradas na Roda, 1870 e 1875. Acervo Educandário Romão Duarte, SCMRJ

A análise dos dados aponta que 35,1% do total de 1151 expostos somados referente aos anos
de 1870 e 1875 registrados vieram a falecer dias depois da entrada na instituição, apontando então
um cenário de mortalidade infantil já presente no século XIX no Brasil e consequentemente na
infância abandonada.
Os registros mostram que algumas crianças já chegavam em más condições de saúde, porém, como
Renato Franco aponta, questões relevantes sobre a mortalidade dos expostos já vinham sendo
discutidas, entre essas a questão do aleitamento mercenário, os estabelecimentos de acolhida das
crianças apertados e com condições insalubres, justificando assim o funcionamento do sistema de
amas externas e o abandono domiciliar, que mesmo com suas questões, evitava que os expostos
ficassem em contato diariamente com outros expostos doentes (Franco, 2014a: 208). A mortalidade
infantil foi, aos poucos, se tornando alvo de preocupação para os médicos da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, divulgando suas ideias pela imprensa, sendo um dos responsáveis pelas
intervenções higienistas daquele período, pois como afirma Karoline Carula “as crianças eram vistas
como alvo de engrandecimento da pátria” (Carula, 2013: 206).

369
Considerações finais

Inicialmente, me dediquei a transcrever e inserir os dados no banco de dados que estamos


construindo. Apesar da dificuldade inicial de compreender a paleografia do século XIX, bem como
o tipo de informação contida nos registros, consegui fechar o ano de 1870 e 1875 – totalizando 1151
registros inseridos no banco de dados.
A análise destes primeiros 1151 registros gerou duas tabelas complementares: a primeira foi
referente aos destinos dos expostos, para quem eram entregues a criar, com o objetivo de identificar
quais os bairros ou localidades que eram mais frequentes. Com esta tabela, identificamos para onde
estavam sendo encaminhadas os expostos para criação externa, destacando o município de Maricá
com 39,9%, outras freguesias de Niterói também receberam crianças enjeitadas, como as freguesias
de São João Batista (freguesia central), São Gonçalo, Cordeiros e Itaipu; além de regiões mais
distantes da província como Saquarema e Itaboraí.
Das crianças que ficaram no município da Corte, Jacarepaguá, Irajá e Inhaúma foram regiões
que receberam crianças; bem como regiões de habitação popular como a freguesia de Santo Antônio
e a rua das Laranjeiras.
Outra tabela importante, e também derivada da base de dados geral, busca agrupar as crianças
encaminhadas para as mesmas famílias, chamando atenção para o espaço e o tempo que estas
famílias as recebiam. Do conjunto, identificamos 18 ocorrências em que uma mesma família recebeu
mais de uma criança, como o caso de Rosa Maria Pereira, moradora do 2º distrito de Maricá que
recebeu a primeira criança a 25 de maio de 1870; um mês depois, a segunda criança; e a 24 de
outubro a terceira criança. Outro dado que pudemos observar, que algumas vezes o registro era dado
no nome do marido, como o caso de Dionísio José Nunes, casado com Florinda Rosa do Espírito
Santo e residente no 2º distrito de Maricá. O casal recebeu ao menos quatro crianças em 1870: a
primeira chegou dia 12 de janeiro e faleceu dois dias depois; a segunda, chegou no mesmo dia 12/01
(o casal recebeu esta criança que fora destinada, num primeiro momento a outra família), a terceira
chegou a 29 de março e a quarta, a 24 de setembro.
Em suma, com a transcrição e análise destes dois anos 1870 e 1875, possibilitou que algumas
hipóteses fossem analisadas para entender qual o perfil dos assistidos pela Casa dos Expostos, no
ano de 1870 percebe-se alguns detalhes que acompanham os expostos podem fazer referências a
origem estrangeira, como medalhinhas, e outras simbologias. Percebe-se, entretanto, o aumento da
presença de filhos de imigrantes no ano de 1875, pelo aumento de cartas escritas em francês, como
é o caso de Guillaume que acompanha um bilhetinho em francês que diz:

370
As onze horas e meia, foi depositado um menino. Rogamos à superiora de cuidar
dele com toda atenção pois ele será retirado depois de um lapso de tempo. Rogamos
que ele seja batizado com o nome de Guillaume, inclui a quantia de 1200 para pagar
suas vacinas e a cada mês sua mãe enviará segundo suas possibilidades (Livro de
crianças entradas na Roda Registro 36163/3).

Este bilhetinho também nos revela uma suposta aproximação desta mãe com a Casa dos
Exposto, se realmente foi cumprido o que a carta descreve, o que é diferente se formos pensar no
caráter anonimato que é direcionado as Rodas através do seu mecanismo de deixar a criança sem que
a pessoa do outro lado saiba quem a deixou. Não somente a relação com imigrantes foi vista, mas
também nos chama atenção a relação da cor do enjeitado tendo o branco prevalecendo acima das
outras denominações de cor. Em se tratando de recém-nascidos, algumas vezes as cores podem ser
confusas por eles poderem mudar de cor ao longo de seu crescimento, porém, ainda assim, nos faz
repensar qual o perfil da pobreza do final do século XIX no Rio de Janeiro, o que poderia influenciar
o número de enjeitados já que o impacto da Lei do Ventre Livre 1871 não necessariamente aumentou
o número de expostos negros, e o quão subjetivo seria referente a quem anotava os dados do exposto,
também repensar como Sheila de Castro Faria aponta, se referir a expostos mais claros estaria ligada
a condição do enjeitado dada como livre (FARIA, S. C. 2010, p.84), compreendendo que a condição
de negro na sociedade colonial para além de cor se refere a lugar social, sendo assim, continuaremos
com a análise dos anos do século XIX após 1875 buscando estas respostas sobre o perfil dos
assistidos pela Santa Casa de Misericórdia, bem como sua atuação diante as transformações da época.

Bibliografia

Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Livro de crianças entradas na Roda Registro.
CARULA, Karoline. “A educação feminina em A Mãi de Familia”. In: Karoline Carula, Magali
Gouveia Engel, Maria Letícia Corrêa. (Org.). Os intelectuais e a nação: educação, saúde e a
construção de um Brasil moderno. 1ed. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2013, p. 85-112

FRANCO, R., J., “O modelo luso de assistência e a dinâmica das Santas Casas de Misericórdia na
América Portuguesa” IN: Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 27, nº 53, p. 5-25, janeiro-junho de 2014a.

FRANCO, Renato A piedade dos outros: o abandono de recém-nascido em uma vila colonial, século
XVIII, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014b, 256 p.

371
MARCÍLIO, M., L., “A criança abandonada na história de Portugal e do Brasil” p. 13-37 IN:
VENÂNCIO, Renato Pinto (org.) Uma história social do abandono de crianças de Portugal ao
Brasil: séculos XVIII-XX, São Paulo, Editoria PUC Minas, 2010.

SÁ, I. dos Guimarães. As crianças e as idades da vida. In: MATTOSO, J. (Dir.). História da vida
privada em Portugal. Lisboa: Círculo dos Leitores e Temas e Debates, 2011. v. 3: A idade moderna;
p. 71-96.

SANGLARD, Gisele. “Entre o Hospital Geral e a Casa dos Expostos: assistência à infância e
transformação dos espaços da Misericórdia carioca (Rio de Janeiro, 1870-1920)”. IN: Revista
Portuguesa de História – t. XLVII (2016) – P. 337-358 – ISSN: 0870.4147.

VENÂNCIO, Renato Pinto. “Maternidade negada” IN: PRIORI, M. del. et BASSANEZI, Carla.
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FARIA, Sheila de Castro. “A propósito das origens dos enjeitados no período escravista” IN:
VENÂNCIO, Renato Pinto (org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao
Brasil: séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda/Editora PUC Minas, 2010.

372
Corrida global por terras: um debate teórico sobre os impulsos para land grabbing

Bruna Figueiredo Gonçalves


Mestranda em Relações Internacionais na PUC-RIO
bruna_fg@ymail.com

RESUMO: O rápido crescimento nas transações de terra na última década, fenômeno a que nos
referimos por land grabbing, é cercado por disputas e debates quanto a sua definição, motivações e
impactos nas diversas regiões do mundo que ocorre. O objetivo deste trabalho é refletir sobre o
contexto político e econômico que tem conduzido este fenômeno e, especificamente, como as
teorias de David Harvey e Saskia Sassen possibilitam compreender os impulsos para estas
transformações. Este processo de alcance global se intensifica em um contexto de convergência de
múltiplas crises e, argumentamos, está intimamente relacionado à dinâmicas do capital e suas
particularidades no período contemporâneo.
Palavras-chave: Land Grabbing; Acumulação por Espoliação; Economia Política
Internacional.

ABSTRACT: The rapid growing of land deals in the last decade, phenomenon to which we refer as
land grabbing, generates disputes and debates on its definition, motivation and impacts on the
regions around the world where it happens. The purpose of this research is to reflect about the
political and economic context that drives this phenomenon and, specifically, how David Harvey
and Saskia Sassen’s theories allow us to comprehend the motivations to these transformations. This
global scale process grows in a context of convergence of multiple crisis and, this paper argues, is
intimately related to capital dynamics and to its particularities on the contemporaneous period.
Key words: Land Grabbing; Accumulation by dispossession; International Political Economy.

1. Introdução

O crescimento significativo nas transações de terras em larga escala na última década chamou a
atenção do mundo para um fenômeno que tem alcance cada vez maior. Preocupações de
organizações da sociedade civil, como o mostrado no relatório lançado em 2008 pela ONG GRAIN1
e a repercussão na imprensa, que noticia desde então casos de conflitos e disputas no campo e

1
GRAIN é uma organização não governamental que apoia pequenos agricultores e movimentos sociais nas suas lutas
por um sistema alimentar controlado e baseado no respeito a biodiversidade. Ver
https://www.grain.org/pages/organisation

373
alarma sobre a escassez de alimentos ou a compra de terras brasileiras por estrangeiros 2, alertaram o
mundo sobre o processo mundial que estava acontecendo e alarmou sobre seus potenciais impactos
negativos do que se chamou de “land grab”.

Esta corrida por terras desperta debates sobre inúmeros aspectos em que toca, como a
(in)segurança alimentar, energia, direitos humanos, economia política internacional, governança e
outros, chamando a atenção, não só da imprensa, como também de diversos acadêmicos, ativistas e
outras organizações da sociedade civil, que se engajaram em entende-la, a partir de diferentes
posições e perspectivas teóricas. O fenômeno ecoa em todo o mundo em desenvolvimento,
principais destinos dos investimentos, e a intensificação nos estudos sobre tal surgem da
importância de se compreender, sobretudo, suas motivações e seus impactos sociais, ambientais,
políticos e econômicos nas várias regiões do mundo em que ocorrem.

O objetivo desta pesquisa, ainda em desenvolvimento, é refletir sobre o contexto político e


econômico que tem conduzido a este rápido aumento no número de transações de terra na última
década, fenômeno a que nos referimos por “land grabbing”. O período considerado nesta pesquisa é
a fase contemporânea do fenômeno land grabbing, que se inicia em 2006-2007, e segue até os dias
de hoje. Ainda que a tomada de controle de terras não seja novo, defendemos que há
particularidades nesta fase, que a diferencia de períodos anteriores, sobre as quais buscaremos
refletir, sobretudo as relacionadas à Economia Política Internacional.

A primeira seção deste trabalho reflete sobre a definição e a caracterização de land


grabbing, com o intuito de compreender o fenômeno e, assim, refletir, na segunda seção, sobre as
forças que o tem conduzido. O contexto em que o crescimento de land grabbing ocorre é de um
mundo globalizado, de financeirização de commodities e de convergência de múltiplas crises –
alimentos, energia, mudanças climáticas e finanças – que fazem o setor agrícola e o mercado de
terras parecerem mais interessantes aos investidores. Ao mesmo tempo, argumentamos que certas
ideias e conceitos dos autores David Harvey e Saskia Sassen contribuem para a compreensão dos
impulsos e particularidades desta fase contemporânea.

2. Corrida por terras: o fenômeno land grabbing

2
Para exemplos, ver SAUER, S.; BORRAS, S. JR. ‘Land Grabbing’ e ‘Green Grabbing’: Uma leitura da ‘corrida na
produção acadêmica’ sobre a apropriação global de terras. Campo-território: revista de geografia agrária, edição
especial, p. 6-42, 2016.

374
Em paralelo ao rápido crescimento nas transações de terras, houve, em um relativo curto
período de tempo, a publicação de diversos trabalhos acadêmicos sobre o tema, que em um primeiro
momento funcionaram como um “making sense” na literatura. Estes primeiros trabalhos buscavam
entender este fenômeno recente de forma mais elementar, com perguntas relacionadas ao que estava
acontecendo, onde, quando, quem estava envolvido, qual era a quantidade de terras e pessoas
envolvidas e outras questões mais de caráter metodológico, que parecem caminhar neste momento
para reflexões mais profundas sobre o tema (EDELMAN; OYA; BORRAS, 2013).

Apesar disso, a definição e a caracterização do próprio fenômeno em análise seguem sendo


pontos de debate fundamentais na literatura, sobre os quais existem diversas disputas. Cabe notar
que há debates relacionados ao fenômeno que envolvem até mesmo o termo utilizado para se referir
a este. Por um lado, não há consenso na literatura quanto a tradução para o português dos termos
utilizados para se referir ao fenômeno, de modo que diferentes autores traduzem o termo “land
grabbing” para variadas expressões e termos, que variam não só de idiomas, mas também de
significados. Dentre as possíveis traduções para o fenômeno, está o termo “grilagem de terras”, mas
que entendemos não corresponder exatamente a tal. Em português, grilagem de terras refere-se
apropriação ilegal de propriedades públicas, enquanto land grabbing envolve também apropriações
de propriedades privadas e por mecanismos legais (SAUER E BORRAS, 2016).

Ainda quanto ao significado do termo, há autores que entendem land grabbing como sinônimo
de estrangeirização de terras. Este trabalho entende que a estrangeirização de terras nacionais é
uma dimensão importante de land grabbing e uma das mais controversas, mas concordamos com a
ideia de Borras et al. (2012) de que estes fenômenos não são sinônimos. Conforme estes autores,
entender o fenômeno como estrangeirização resulta em uma compreensão limitada deste processo
atual de corrida por terras, cuja complexidade envolve não apenas a apropriação de terras por
estrangeiros. Apesar de frequentemente casos de land grabbing envolverem a estrangeirização de
terras, a estrangeirização de terras não necessariamente requer ou resulta em land grabbing. Ao
mesmo tempo, land grabbing não requer a participação de atores ou capitais estrangeiros para ser
caracterizado, mas pode ser exclusivamente conduzido por atores nacionais, como indivíduos ou
empresas nacionais.

Nesse sentido, propomos construir uma definição de land grabbing a partir de contribuição de
alguns estudiosos do tema, conectando-a à perspectiva teórica de David Harvey. Partimos, assim,
especialmente das contribuições dos autores Borras et al. (2012) e Fairhead et al. (2012). Estes
últimos definem land grabbing como “apropriação de terras”, em que o termo apropriação
implica “na transferência de propriedade, de direitos de uso e do controle sobre recursos que foram

375
propriedades pública ou privada” (FAIRHEAD et al., 2012, p. 238, tradução nossa). Há dois
aspectos, intimamente entrelaçados, que chamam a atenção nesta definição.

O primeiro ponto é que esta definição ressalta que o fenômeno envolve não só a transferência de
títulos de propriedade, e permite notar as diferentes formas pelos quais land grabs acontecem, como
compra, arrendamento, contratos, conservação de florestas e outros, e não só em termos de compra
de terras, ainda que esta seja uma das faces do fenômeno que mais ganham destaque na literatura e
que mais geram resistência. Devido a isso, Borras et al. (2012) defendem que o fenômeno não seja
entendido apenas em termos de escala de terras, mas também em termos de escala de capital.

O segundo ponto, que se conecta ao primeiro, refere-se a ideia de ver o fenômeno como
“control grabbing”, isto é, como o poder de controlar terra e outros recursos associados a ela, como
a água, com vistas à se beneficiar deste controle. Land grabbing envolve frequentemente mudança
no significado e propósito da terra e dos recursos associados a ela, cujos novos usos ficam
condicionados às necessidades de acumulação de capital que os controlam. Assim, esta definição
possibilita pensar não só em “land grabs” (apropriação de terras, em tradução livre), mas também
em “water grabs” e “green grabs”, termos que têm se tornado cada mais frequentes na literatura
para indicar apropriação de água e apropriação verde (em tradução livre), respectivamente
(BORRAS et al., 2012).

Além disso, Fairhead et al. (2012) defendem ainda que apropriação está diretamente
relacionado aos processos duais e inter-relacionados de acumulação e espoliação (FAIRHEAD et
al., 2012). Estas noções estão relacionadas a teoria de David Harvey (2004b), que defende que a
reprodução ampliada de capital é acompanhada pelo que chama de processos de acumulação por
espoliação. Nosso argumento é que land grabbing pode ser entendido pela perspectiva de Harvey,
que se manifesta de ambas as formas, como será desenvolvido adiante.

Nesse sentido, land grabbing pode ser simples acumulação de capital, em que os lucros
acumulados são reinvestidos, aumentando o capital e a concentração de sua propriedade ou pode ser
acumulação primitiva, em que há expulsão ou redução de direitos de um proletariado que é
separado da terra e da natureza, e as propriedades são liberadas para o capital privado (FAIRHEAD
et al., 2012). O conceito de acumulação por espoliação é uma releitura deste processo de
acumulação primitiva descrito por Karl Marx3, que destaca a continuidade destes processos ao
longo do desenvolvimento capitalista até os dias de hoje, fundamentais para acumulação de capital
na contemporaneidade.

3
Ver MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.

376
Para compreender este processo, propomos refletir sobre a teoria do O Novo Imperialismo de
David Harvey. Como mencionado, Harvey (2004b) defende que a reprodução ampliada de capital é
acompanhada pelo que chama de processos de acumulação por espoliação. Seus argumentos são
desenvolvidos a partir da tese central de Rosa Luxemburgo, importante autora marxista sobre
imperialismo. Esta autora defende que as recorrentes crises do capitalismo podem ser explicadas
por um subconsumo ou uma falta de demanda efetiva suficiente para absorver a produção
capitalista, além de que este necessita de algo "exterior" a si - um "outro" - para que se estabilize,
sejam estas formações e estruturas não capitalistas, que são absorvidas pelo capitalismo como forma
de realizar acumulação (HARVEY, 2004a). Este é, para Harvey, o cerne da definição de
Luxemburgo para imperialismo.

Por um lado, o autor discorda da perspectiva do subconsumo de Luxemburgo e defende que


as recorrentes crises não são explicadas pelo subconsumo da sociedade, mas sim pela falta de
oportunidades de investimentos lucrativos para absorver o capital excedente, o que chama de
"sobreacumulação". Por outro lado, concorda com a ideia de Luxemburgo que há algo "exterior" ao
capitalismo necessário para sua estabilização. Porém, diferente desta autora, defende que este
exterior pode tanto ser formações pré-existentes (formações não capitalistas ou setores do
capitalismo ainda não proletarizado, como a Educação), quanto exteriores que o capitalismo mesmo
produza ativamente. Hannah Arendt já teria argumentos semelhantes a estes anos antes: ela explica
o imperialismo inglês pela sobreacumulação de capital e o surgimento do dinheiro supérfluo que
não encontravam mais oportunidade de investimento dentro das fronteiras nacionais na Inglaterra
entre 1860 e 1870. Nesse processo, percebe-se que a acumulação primitiva, associada ao simples
roubo, deveria se repetir ao longo da história do capitalismo, para que este não morresse, isto é,
continuasse a acumular capital (HARVEY, 2004).

Para refletir sobre esta dialética "interior-exterior", que seria necessária para a sobrevivência
do capitalismo e a sua expansão contínua, Harvey propõe, assim, uma releitura do conceito de
"acumulação primitiva" de Karl Marx. Ao recuperar os processos descritos por Marx como
acumulação primitiva de capitais, o autor sugere que estes permanecem presentes no capitalismo até
hoje, de forma que vai além da proposta da Marx, que via estes processos como pertencentes a um
período já acabado, original e não mais relevante, e além de Luxemburgo, que os via como alguma
forma exterior ao capitalismo como sistema fechado. Harvey propõe, então, que a acumulação de
capitais baseada em atividades predatórias, fraudulentas e até violentas está presente de forma
contínua no desenvolvimento do capitalismo. Este processo de acumulação ainda em andamento é
chamada por ele de "acumulação por espoliação". Tanto a ideia de sobreacumulação, como a

377
necessidade de algo exterior ao capitalismo para sua estabilização dão as bases para compreensão
desta estratégia (HARVEY, 2004).

Os conceitos de acumulação primitiva de Karl Marx e de acumulação por espoliação de David


Harvey são usados por vários autores da literatura de land grabbing para analisar o fenômeno. Cabe
ressaltar, entretanto, que estes conceitos são interpretados de formas diferentes por diversos autores
e isto tem levado a diferentes análises sobre o fenômeno (HALL, 2013). A existência de um amplo
debate sobre diferentes interpretações sobre estes conceitos torna necessário que definamos a forma
como o entendemos e, para isso, destacamos uma diferença fundamental entre interpretações, que é
importante para nossa pesquisa: em alguns trabalhos estes conceitos são usados como sinônimos e
em outros estes são vistos como processos diferentes.

Entendemos que ambos possuem diferenças que devem ser considerados que dizem respeito
especialmente à ideia de continuidade presente em acumulação por espoliação. Enquanto alguns
autores entendem que este conceito, assim como o de acumulação primitiva de Marx, informa sobre
a forma como relações sociais capitalistas são criadas e como pessoas e recursos que estavam fora
do capitalismo são trazidos para dentro dele, procuramos afastar esta interpretação do conceito de
acumulação por espoliação. Nossa interpretação deste conceito ressalta tal ideia de continuidade
presente neste, o que acontece dentro do próprio capitalismo. A acumulação por espoliação é uma
parte necessária para reprodução do capital e acontece de formas tanto legais quanto ilegais.

Para ressaltar a ideia de continuidade neste conceito, Harvey destaca diversos processos
identificados por Marx como formas de acumulação primitiva, que seguem presentes no dia de hoje,
como a “mercadificação e a privatização da terra, a expulsão violenta de populações camponesas, a
conversão de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos
exclusivos da propriedade privada” e outras (HARVEY, 2004, p. 121). Populações camponesas têm
sido expulsas de terras em diversas partes do mundo, recursos antes partilhados, como a água, têm
sido privatizados e inseridos na lógica capitalista de acumulação, o agronegócio substituiu a
agropecuária familiar e mais. Ao mesmo tempo, novas formas de acumulação por espoliação foram
criadas nos últimos anos, como a biopirataria ou mercadificação da natureza de diversas formas
(HARVEY, 2004). Estes processos se conectam diretamente a forma como land grabbing tem
ocorrido no período contemporâneo, como se pretende argumentar.

Harvey afirma que alguns dos mecanismos da acumulação primitiva destacados por Marx se
aprimoraram e desempenham hoje um papel ainda mais forte. Determinadas características do
capitalismo contemporâneo representam “grandes trampolins de predação, fraude e roubo”, como o
sistema de crédito e o capital financeiro (HARVEY, 2004, p. 122). Além destes, cabe destacar, para

378
o desenvolvimento desta pesquisa, ainda outros mecanismos predatórios e fraudulentas, como a
financeirização, valorizações fraudulentas de ações, destruição de ativos pela inflação e dívidas que
aprisionam indivíduos e países (HARVEY, 2004).

Em definição, a acumulação por espoliação libera um conjunto de ativos (incluindo força de


trabalho) a custo mais baixo (às vezes zero), de forma que o capital excedente pode se apropriar
deste conjunto de ativos e dar-lhes um uso lucrativo. Dessa forma, o capital global excedente
encontra, através da acumulação por espoliação, novos mercados para investir. A série de
privatizações do final do século passado podem ser explicadas desta forma: bens coletivos são
disponibilizados para o mercado para ser usado em algo mais lucrativo pelo capital excedente
(HARVEY, 2004).

O capital excedente também pode encontrar oportunidade de investimento através de


"desvalorizações dos ativos de capital e da força de trabalho existentes". Com isso, "esses ativos
desvalorizados podem ser vendidos a preço de banana e reciclados com lucro no circuito de
circulação do capital pelo capital sobreacumulado" (HARVEY, 2004, p. 124). Isto ocorre através de
crises, que podem ser orquestradas, administradas e controladas. Esse mecanismo corresponde
basicamente a programas de austeridades administrado por Estados, que possibilitam a transferência
de propriedade de uns para outros, representando também formas de acumulação por espoliação.
Taxas de juros e sistemas de créditos são centrais nesses processos, que podem ocorrer limitadas a
um setor, a um território ou a toda uma região e para isso, conta-se com o sistema financeiro
internacional, liderado pelo FMI e pelo Estado “superior”, os Estados Unidos. Desvalorizações e
liberalizações financeiras impostas pelo FMI podem apontar para este caminho (HARVEY, 2004).

Através de crises e desvalorizações, o capitalismo cria o seu próprio "outro" pelo qual irá se
alimentar. Nesse processo, "valiosos ativos são tirados de circulação e desvalorizados. Ficam
esvaziados até que o capital excedente faça uso deles a afim de dar nova vida à acumulação do
capital" (HARVEY, 2004, p. 126). Dessa forma, Harvey entende que a acumulação por espoliação é
uma saída do capitalismo para as sucessivas crises que enfrenta.

Este quadro teórico permite entender land grabbing em associação direta a processos de
acumulação de capital por espoliação, em que terras são disponibilizadas ao mercado e aparecem
como nova oportunidade de investimento para o capital excedente, para receber uso lucrativo, como
novo local de acumulação de capital. As terras são disponibilizadas para estes investidores de
diversas maneiras, como desapropriações, privatizações e desvalorizações, como apontado por
Harvey, que podem ocorrer de forma orquestrada, administradas e controladas pelos próprios
Estados, de forma a possibilitar a transferência de propriedade de uns para outros. O capitalismo

379
cria as próprias condições para manter acumulação de capital, em grande parte, com ajuda dos
Estados.

A apropriação de terras, em particular a apropriação de terras por estrangeiros, é parte da


história da humanidade e não representa um fenômeno novo. Porém, a apropriação de terras
associada às dinâmicas de expansão do capital, conforme interpretação proposta de Harvey,
apontam para particularidades na fase contemporânea diretamente relacionadas à globalização
neoliberal e outros eventos, sobre os quais propomos refletir a seguir.

3. Particularidades e impulsos da fase contemporânea de land grabbing

As forças endógenas e exógenas que conduziram ao aumento no número de transações de terras


constituem debate central na literatura sobre o fenômeno estudado. Diversos motivos são apontados
por grande parte dos autores como centrais para o aumento de casos de land grabbing, como a
financeirização da terra e de commodities, assim como a crise de alimentos de 2007-2008, bem
como outras crises, de modo que não há consenso na literatura. A proposta desta pesquisa é refletir
sobre tais motivações a partir de pistas teóricas e conceituais dos autores David Harvey e Saskia
Sassen, que permitem pensar o tema land grabbing a partir da Economia Política Internacional,
compreendendo-o em relação às mudanças e transformações políticas e econômicas ocorridas no
período abarcado pela pesquisa.

O contexto específico em que land grabbing ocorre é fundamental para sua compreensão e está
diretamente relacionados aos impulsos para sua intensificação na última década. Este contexto é o
de convergência de múltiplas crises no final da década de 2000, que faz o setor agrícola e o
mercado de terras parecerem interessantes aos investidores e constituem a razão mais apontada
pelos pesquisadores que se dedicam ao tema para o aumento nas transações em terra e agricultura.
Tais múltiplas crises são: alimentos, energia, mudanças climáticas e finanças (WHITE et al., 2012;
BORRAS et al., 2012; outros).

As motivações para o crescimento nos casos de land grabbing relacionadas a tais crises
apontadas por pesquisadores são muitas e se misturam de forma complexa entre si e com outros
elementos. Desse modo, não cabe no escopo deste trabalho explorar de forma profunda tais
motivações, nem se pretende esgotar as interpretações possíveis. Propomos apenas apontar

380
brevemente associações feitas por outros autores, a partir de uma breve revisão de literatura, ponto
que deve ser melhor explorado no desenvolvimento futuro desta pesquisa, que ainda está em curso.

As crises de alimentos e as crises energéticas são as que tem recebido maior destaque. Ambas
constituem a maior parte das motivações para apropriações de terras nas Américas em Agricultura,
que representam a mais significativa parte das transações. Alimentos correspondem a 50% da
demanda e biocombustíveis a 29% (Nolte, Chamberlain, Giger, 2016).4 Associado a crise
energética, está o medo do aumento e da volatilidade dos preços dos combustíveis ou mesmo o
medo da perda de soberania nacional pela estrangeirização de recursos energéticos, que abriu
demanda para novas forma de extração de recursos para segurança energética e desenvolvimento
nacional, além de outros fatores. Nesse contexto, os biocombustíveis aparecem como resposta a esta
crise. Além disso, o crescimento das chamadas flex crops, commodities flexíveis, atraem interesses
dos investidores (WHITE ET AL., 2012).

A crise de alimentos é vista como motivação para o aumento nas transações de terras devido
a preocupações com a segurança alimentar em todo o globo, de modo que diversos país começaram
a buscar fontes de alimentos em outros países, como forma de garantir seus abastecimentos
internos, que normalmente possuem menos recursos disponíveis para tal. Organizações
internacionais, como algumas agências da ONU, tiveram papel neste processo ao gerar preocupação
ao estimar um aumento na demanda por alimentos (WHITE ET AL., 2012).

A crise ambiental, por sua vez, está associada ao que se tem chamado de green grabbing ou
apropriação verde com fins ambientais, em que se controla não propriamente a terra, mas os
recursos verdes associados a ela, como florestas e outros, em contexto de mudanças climáticas
(WHITE ET AL., 2012). A crise financeira é vista, neste trabalho, como crise de sobreacumulação
que teve o seu boom em 2007-2008 nos EUA e na Europa e gerou uma procura do capital
financeiro por novos territórios para realização de capital (HARVEY, 2004a), além da
financeirização da agricultura e do surgimento de novos instrumentos financeiros que almejam a
redução de riscos de mercado enquanto permitem, simplificadamente, lucrar com investimentos em
terra. Há ainda atividades especulativas em terra, como é o caso dos fundos de pensão (WHITE ET
AL., 2012).

Ao contexto de convergência de múltiplas crises, soma-se os argumentos de Saskia Sassen, que


trata diretamente de land grabbing nos países do Sul global. A autora argumenta que os programas

4
Land Matrix é um iniciativa global e independente de monitoramento da terra, que promove transparência e
responsabilização em decisões sobre terra e investimentos. Os dados disponibilizados por essa iniciativa, entretanto,
possuem limitações e não devem ser entendidos como absolutos.

381
de reestruturação implementados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial nos
anos 1980 e 1990 tornaram possíveis, em grande parte, as aquisições de terras por estrangeiros hoje.
Sassen ressalta que isto se deve a objetivos explícitos, mas também a consequências não planejadas
destes programas. Além disso, afirma que as demandas da OMC na década de 1990 e início de 2000
para levantar as barreiras de importação e exportação em nome do livre comércio, que promovia a
abertura de fronteiras nacionais, também tiveram peso (SASSEN, 2016).

Estes programas incluíram a terra nos circuitos globais de acumulação de capital e são parte
importante para a explicação das peculiaridade da fase atual de aumento de land grabbings em
relação a períodos anteriores. Sassen argumenta que estes programas prepararam o terreno, em
países do Sul global, para uma expansão do que entende como capitalismo avançado. Nesse
processo, o território destes países passam a representar não Estados-nação, soberanos, mas sim
recursos necessários para o sistema capitalista seguir acumulando capital, isto é, como espaço
operacional para o capitalismo avançado se expandir (SASSEN, 2010; SASSEN, 2016). A terra
passa a ser cada vez mais demandada pelo capitalismo, levando a uma maior comodificação e
financeirização da terra, enquanto os próprios territórios nacionais são reposicionados como forma
de atender estas demandas, vindas de empresas e governos nacionais e estrangeiros.

As limitações impostas e as demandas desses programas disciplinou os governos que ainda não
haviam se adequado e integrado aos regimes de livre comércio, representando normas para uma
administração correta da economia destes países caso desejassem crescimento e prosperidade.
Sassen indica que entre as normas mais conhecidas estão o controle da inflação, pagamento da
dívida e a privatização de serviços básicos. No entanto, o efeito obtido por estes programas foi
contrário ao seu objetivo de promover o crescimento dos países, tendo resultado no aumento do
endividamento dos países com relação aos credores estrangeiros e no encolhimento dos fundos
governamentais para educação, saúde e infraestrutura (SASSEN, 2016).

Dessa forma, estes programas, além de atuar na abertura da economia destes países, levaram ao
aumento da dívida destes países nas décadas de 1980 e 1990. As dinâmicas do endividamento
gerado por estes programas são o ponto central para entender o papel destes programas sobre land
grabbing hoje. Não somente a dívida em si é importante, mas também a forma como esta dívida é
usada para reorganização da economia política.

Estes programas são responsáveis, em parte, pela facilidade com que compradores estrangeiros
podem adquirir terra em muitos países e pela facilidade com que governos desejam permitir essas
aquisições. Estes efeitos estão relacionados ao papel disciplinador do regime da dívida. Por um
lado, o regime da dívida é entendido como fator de enfraquecimento e empobrecimento de governos

382
nacionais em boa parte do Sul global, que gerou frequentemente corrupção extrema, negligência
quanto ao bem estar da população e maior disponibilidade do governo de um país vender grandes
quantidades de terra e/ou expulsar populações. Por outro lado, o regime da dívida funcionou como
uma porta de acesso aos Estados soberanos, não só para o FMI e o Banco Mundial, mas agora
também para governos e empresas estrangeiras. A grande reorganização fiscal deste período
colocou como prioridade o pagamento da dívida externa em detrimento de investimentos no bem-
estar populacional, em setores como saúde e educação, o que teve efeitos socioeconômicos em boa
parte destes países. Isto funcionou como facilitador para a compra de terras por estrangeiros
(SASSEN, 2013; SASSEN, 2016).

Assim, Sassen defende que países enfraquecidos e corruptos, com população com pouca voz e
representação política, se tornam locais mais fáceis de se comprar terra para países e investidores
ricos. Esses programas são muito mais do que apenas o pagamento da dívida gerada, são uma forma
de moldar uma economia política e reposicionar aqueles como lugares de extração de recursos
naturais. A primazia dessa lógica de exploração em grande parte não foi intencional, mas contribui
para a devastação de grandes setores das economias tradicionais, empobrecimento do Estado e sua
população e dentre outras consequências (SASSEN, 2016).

A perspectiva de Sassen dialoga diretamente com a de Harvey, que contribui também para
entendermos a conjuntura atual em que houve um aumento significativo nos casos de land
grabbing, notando, em especial, as particularidades deste período, que funcionam também como
impulsos para este. Os processos de acumulação por espoliação aumentaram após 1973, período
associado ao início do imperialismo neoliberal, chave para compreensão do seu argumento.

A financeirização, a globalização e a política neoliberal tiveram papel fundamental para que


houvesse esse aumento nas acumulações por espoliação neste período. O sistema financeiro
internacional que se fortaleceu neste período contribuiu com surtos de valorização que favorecem a
acumulação por espoliação, segundo Harvey. Ademais, a globalização neoliberal contribuiu para
um comércio internacional mais livre, com novos territórios entrando no desenvolvimento
capitalista, além da política neoliberal que, por sua vez, teve peso ao informar as formas distintas
como o Estado, sempre um grande agente da acumulação por espoliação, deveria se desenvolver.
Privatizações e a liberalização do mercado se destacam pelo papel fundamental que tiveram na
acumulação por espoliação desse período (HARVEY, 2004a).

Neste processo, destaca-se a abertura de novos países no final do século XX ao


desenvolvimento capitalista e ao mercado capitalistas ou, em outras palavras, a política
internacionalista de neoliberalismo e privatização, que representam um dos principais fatores que

383
favoreceram o aumento na acumulação por espoliação desde então. Este é o cerne do chamado
“novo imperialismo”, em que os ajustes-temporais necessários para a acumulação de capital passam
a precisar se expandir para além das fronteiras nacionais, dada a incapacidade de descobrir soluções
internamente para a sobreacumulação, e buscam em outros países oportunidades de investimento do
capital excedente, momento em que a liberalização da economia de diversos países – a abertura de
mercados-, inclusive o Brasil, no final do século XX, mediante pressões do FMI e da OMC, aparece
como principal mecanismo que permitiu essas práticas.

4. Considerações Finais

Neste trabalho, buscamos compreender o rápido crescimento nos casos de land grabbing na
última década e, sobretudo, refletir sobre as particularidades e as forças que tem conduzido o
fenômeno neste período. Apesar de não ser um fenômeno novo, defendemos que o contexto político
e econômico, de um mundo globalizado, financeirizado, dentre outros, contribui para novas
dinâmicas nesse processo. A conjuntura em que as aquisições de terra se intensificam, de
convergência de crises, financeirização, globalização neoliberal, marcadas pela abertura dos
mercados de diversos países, combinada a dívida de países em desenvolvimento, facilitam as
oportunidades de land grabbing.

A intensificação nos casos de land grabbing no período considerado remontam, dessa forma,
aos programas de reestruturação dos anos 1970, como defende Sassen, e também à globalização
neoliberal, à financeirização e a política neoliberal deste período, como informa David Harvey, que
leva ao chamado “novo imperialismo”. Tanto Harvey quanto Sassen destacam o deslocamento
espacial envolvido em land grabbing e, assim, destacam o papel dos capitais estrangeiros neste
processo. Apesar disso, reconhecem a importância de capitais nacionais, por exemplo, do Estado
que auxilia em diversos mecanismos pelos quais acumulação por espoliação acontecem.

Em suma, os argumentos destes autores mostram land grabbing como parte de mudanças
maiores na economia global e nos mercados financeiros, na análise do desenvolvimento capitalista
global no período contemporâneo. Estes autores nos mostram os impulsos para o aumento de casos
de land grabbing desde 1970, relacionando o fenômeno a tais mudanças.

384
5. Referências bibliográficas

BORRAS, Saturnino. Jr. et al. Land grabbing and global capitalist accumulation: key features in
Latin America. Canadian Journal of Development Studies, v. 33, n.4, 2012.
EDELMAN, Marc., OYA, Carlos. BORRAS, Saturnino Jr. Global Land Grabs: historical processes,
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n.9, 2013.
FAIRHEAD, James; LEACH, Melissa; SCOONES, Ian. Green Grabbing: a new appropriation of
nature? The Journal of Peasant Studies, vol. 39, n. 2, p. 237-261, 2012.
HALL, Derek. Primitive Accumulation, Accumulation by Dispossession and the Global Land Grab.
Third World Quarterly, vol. 34, n. 9, 2013.
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004a.
HARVEY, DAVID. O Novo Imperialismo: Acumulação Por Espoliação. Socialist Register, vol. 40,
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MARGULIS, Matias E.; McKEON, Nora; BORRAS, Saturnino. Land Grabbing and Global
Governance: critical perspectives. Globalizations, v. 10, n. 1, 2013.
MARGULIS, Matias. E.; PORTER, Tony. Governing the Global Land Grab: Multipolarity, Ideas,
and Complexity in Transnational Governance. Globalizations, vol. 10, n. 1, p. 65-86, 2013.
NOLTE, Kerstin; CHAMBERLAIN, Wytske; GIGER, Markus. International Land Deals for
Agriculture: Fresh insights from the Land Matrix: Analytical Report II, 2016.
SASSEN, Saskia. A Land Grabs Today: feeding the disassembling of national territory.
Globalizations, vol. 10, n.1, 2013.
____. A Savage Sorting of Winners and Losers: Contemporary Versions of Primitive
Accumulation. Globalizations, vol. 7, n. 1–2, 2010.
____. Expulsões - Brutalidade e Complexidade na Economia Global. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2016.
SAUER, Sergio; BORRAS, Saturnino JR. ‘Land Grabbing’ e ‘Green Grabbing’: Uma leitura da
‘corrida na produção acadêmica’ sobre a apropriação global de terras. Campo-território: revista de
geografia agrária, edição especial, p. 6-42, 2016.
WHITE, Ben. et al. The New Enclosures: critical perspectives on corporate land deals. Journal of
Peasant Studies, v. 39, n. 3-4, p. 619-647, 2012.

385
Minerva Brasiliense: Um Projeto Ilustrativo

Bruna Schulte Moura1

Resumo: A partir de artigos introdutórios da Revista Minerva Brasiliense é possível perceber um


projeto pedagógico-ilustrativo presente na referida revista, este texto centra-se nesta questão. O
presente debate gira em torno no desvelamento tanto do projeto quanto na percepção do
direcionamento desta publicação a determinado público alvo, e perguntamos: afinal, a quem os
redatores de Minerva Brasiliense se dirigem? Através das inquietações e questões que trazem os
textos da revista, pretendo trazer argumentos da retórica para tentar apreender que indivíduos estes
homens tentavam formar. Compreender quem era seu pretenso público leitor e como eles buscavam
realizar a tarefa de ilustrar o “povo”, ou seja, qual era a ideia de pedagogia adotada por estes letrados
que faziam parte de Minerva.

Palavras-chave: Imprensa – Retórica – História da Historiografia

Abstract: From the introductory articles of the magazine Minerva Brasiliense it’s possible to
perceive a pedagogical-illustrative project present in this magazine, this text focuses on this issue.
The present debate revolves around the unveiling of both the project and the perception of the
direction of this publication to a certain target audience, and we ask: after all, who are the writers of
Minerva Brasiliense addressing? Through the anxieties and questions brought by the texts of the
magazine, I intend to bring arguments of rhetoric to try to apprehend what individuals these men
tried to form. Understand who their supposed readership was and how they sought to accomplish the
task of illustrating the "people," that’s, what was the idea of pedagogy adopted by these scholars who
were part of Minerva.

Keywords: Press – Rhetoric – History of Historiography

A fim de se compreender de forma mais profunda a Revista científica e literária Minerva


Brasiliense, ressalta-se a relevância de conhecer o projeto pedagógico presente na mesma. Neste
sentido é importante salientar que uma das questões chave de desenvolvimento deste debate centra-
se na percepção de para quem os editores desta revista se dirigem, qual seu público alvo? A partir
desta questão é possível apreender a forma como a pedagogia funcionou para formular uma ideia de
história do Brasil, assim como ajuda a ter uma percepção mais clara sobre a elite do Império no
começo da década de 1840. Desta forma, apresentar-se-á uma análise dos textos “Progressos do
século atual”, publicado como introdução do primeiro número de Minerva do ano de 1843 e escrito
por seu então redator chefe Francisco de Salles Torres Homem, e “Grandes fases da civilização
brasileira: antecedentes e caráter dos progressos literários e sociais: jornalismo: novas vistas da
Minerva, etc”, também publicado como introdução, mas da nova fase da revista com Santiago Nunes

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

386
Ribeiro a frente da empreitada. Estes textos também apresentam algumas compreensões de seus
escritores que torna possível entender os objetivos deste periódico.
Elementos da retórica são importantes na análise deste texto e José Murilo de Carvalho 2
destaca que em um dado momento a natureza da retórica exige que se leve em conta tanto o autor e
o leitor – ou ouvinte – quanto o texto em si. Sobre o uso da retórica nos textos da Minerva, é
importante observar que Francisco de Salles Torres Homem era um político e utiliza em seu
argumento a retórica com certa constância, enquanto Santiago Nunes Ribeiro era professor de
retórica e poética do Colégio Pedro II. Carvalho também chama a atenção para a importância do
auditório. Para que a retórica seja eficaz é preciso conhecer o público para quem os argumentos
escolhidos, assim como o estilo e a forma como será colocada, serão dirigidos. Dessa forma o
discurso torna-se capaz de ser sentido e tocado pelas palavras postas pelo autor. 3
No entanto é relevante chamar a atenção para o fato de que para estes redatores o público
leitor não é uma realidade dada e sim imagina, este público está em construção. Neste sentido, o
projeto pedagógico desta revista pressupõe um público leitor imaginado e a missão da revista é a
formação do leitor. Sendo assim, uma importante questão é colocada: quem é o público a quem a
Minerva se direciona? Quando os autores se referem a “povo”, é sobre qual camada social estão se
referindo? É o que buscamos compreender aqui.
No seu artigo “Progressos do século atual”, integrando a introdução da revista, que de acordo
com Hélio Lopes, vale como artigo-manifesto da publicação, Torres Homem inicia o texto afirmando
que “desde o princípio do século tem havido [progressos] nos diversos ramos da árvore
enciclopédica, e em algum dos melhoramentos práticos da condição humana” 4 . Posteriormente
descreve os avanços ocorridos em diversas áreas do saber humano nas primeiras décadas do século
XIX. A história natural, medicina, química, física, política, moral, filosofia, psicologia, letras e o
cristianismo, são citadas para realizar um balanço do aperfeiçoamento de todos os setores do saber.
Alguns exemplos ilustram tais ideias, como quando Torres Homem escreve que sobre os
métodos científicos de investigação afirmando que foram substituídos por “Métodos severos de
investigação” ao invés de “devaneios da imaginação na ciência médica” 5. Sobre as ciências políticas
e morais o autor defende que “o sistema constitucional, que antes não passava de um grande fato
estabelecido pela mão do tempo na Inglaterra, tornou-se um princípio, a fórmula da liberdade, a
condição do progresso dos povos, o centro de sua política gravitação.” 6 Sobre economia, Torres

2 CARVALHO, José Murilo de, 2000, pp. 127-142


3 Idem Ibidem, pp. 127-142
4 TORRES HOMEM, Francisco de Salles, 1843, p. I.
5 Idem Ibidem, p. I.
6 Idem Ibidem, p. III.

387
Homem avalia “Foi por terra a teoria da balança do comércio; e com ela parte dos obstáculos postos
nas fronteiras, e no interior dos Estados à circulação dos produtos, que se busca hoje favorecer.” 7
Por fim, em conclusão a estes avanços, o autor declara:
A vista destas tendências e de tantas empresas concebidas em menos de quarenta
anos, cuja enumeração brevíssima acabamos de fazer, e quando o movimento
intelectual continua em aceleração progressiva, é impossível não invejarmos a sorte
das gerações futuras, destinadas a colher o fruto de tão grandes e úteis trabalhos! 8

Em seguida, o autor continua apresentando sua crença no progresso, e afirma:

O homem continuará em sua marcha indefinida derrubando as barreiras que se lhe


apõe em cada século; o caminho que tem a percorrer, é imenso. Somente a sua
missão no porvir será talvez mais tranquila, o parto da inteligência e da civilização
menos laborioso, do que até aqui o tem sido, e o será ainda por algum tempo mais.
9

Ao fim de seu texto, o autor faz um rápido balanço das transições ocorridas no mundo
ocidental. Inicialmente trata do século V, quando o mundo romano desmorona, depois no século XV
e sua luta contra a feudalidade, evoca o século XVI e a expansão do elemento religioso e, por fim,
no século XIX, o desenvolvimento da indústria. Em conclusão, Torres Homem declara:

Parece que na ordem providencial do mundo, nada se obtém sem sacrifício; ele é a
condição de nossa perfectibilidade; para que tenha lugar o progresso da sociedade é
mister que uma geração seja oferecida em holocausto à outra. 10

Apresentando seu nobre interesse de que não haja nenhum “holocausto” na transição que o
Brasil vive, observa-se que ele reconhece e proclama para a sua geração a incumbência de trabalhar
para a geração futura: “Para nós, portanto, os tormentos de uma época crítica, a fadiga da construção,
os ardores da luta: para as gerações vindouras, as flores da primavera, o orvalho do céu, a fruição
não disputada de sua herança.”11 Percebe-se aqui as similaridades de pensamento com relação ao
público a que se direcionam, isto facilita compreender que o “nós” a quem o autor proclama a tal
“fadiga da construção” e as “gerações vindouras” que colheriam “as flores da primavera” são seus

7 Idem Ibidem, p. IV.


8 Idem Ibidem, p. VI.
9 Idem Ibidem., p. VI.
10 Idem Ibidem, p. VI.
11 Idem Ibidem, p. VI.

388
iguais, é um público pensante, pertencente ao mesmo meio literário-político-científico que ele e seus
colegas de redação.

Pode-se observar também que o autor resume os desejos pelos quais estes homens,
pertencentes a esta geração, eram movidos: a ânsia de alcançar um progresso para tornar a nova
nação firme culturalmente e colocá-la à altura dos povos mais antigos e adiantados. Além disso,
proclama a sua geração como promovedora da transição necessária, ou seja, seriam eles os
responsáveis pela construção da brasilidade, os românticos. De acordo com Hélio Lopes,
Torres Homem toma consciência, e quer despertá-la em seus compatriotas, da
responsabilidade de tudo fazerem, quanto lhes compete, para facilitar o caminho
dos vindouros. Reconhece e proclama para sua geração a incumbência de trabalhar
para a geração futura.12

Civilização e progresso, no decorrer do século XIX, são compreensões que andam atrelados
intimamente, já que o sentido de processo – no sentido de evolução a caminho da perfeição – do
primeiro conceito surge ao mesmo tempo que a ideia de progresso. Como conceito unificador, a ideia
de civilização designa o movimento que faz dos indivíduos civilizados, e está totalmente ligada a
noção de aperfeiçoamento, através do progresso, do estado social da humanidade. Nesse sentido, o
conceito passa a estar associado à concepção de desenvolvimento da atividade social e individual de
um lado, e progresso – aqui compreendido como marcha, que tem como propósito a perfectibilidade
– da sociedade e humanidade de outro. Desta forma, a representação da marca da civilização por
meio de diversas etapas do aperfeiçoamento sucessivo leva a crer no quadro de progressos do espírito
humano. Observamos que, quando o termo civilização ganha o sentido de processo – aqui na ideia
de evolução – fundamental da história, e também se designa com o resultado final dele, é posto em
oposição a noções como primitivo, selvagem ou bárbaro. 13
Em vista disso, percebemos que o conceito de civilização é suscetível de receber uma acepção
de valores pluralizada. Pode designar um processo, que se produziu diversas vezes ao longo do
tempo, ou pode também fazer referência a um estado relativamente estável e isto pode diferir de uma
civilização para outra. Ou seja, podem existir múltiplas civilizações. E, embora haja de fato uma
frente variada de compreensões acerca deste termo, o conceito ainda conserva algumas implicações
que fazem desta ideia um imperativo unitário, atribuindo um único sentido de “marcha” da espécie
humana inteira. 14 Esta ideia está, portanto, intimamente ligada a noção de progresso inesgotável,
ilimitado, indefinido, rumo a perfeição. Ainda pode-se articular a essa concepção a noção de história

12 LOPES, Hélio. 1978, p. 33.


13 STAROBINSKI, 2001, pp. 11-57.
14 Idem, Ibidem.

389
coletiva e singular da qual trata Koselleck, uma vez que, na história do progresso e da civilização
humana, onde cabe o desenvolvimento de ambos no locus brasileiro? É nisto que a geração de
Minerva se propõe fazer quando compete a si mesma em sacrifício, em holocausto, em detrimento
do progresso da sociedade. Quando declara para si a fadiga da construção para deixar o caminho de
orvalho no céu e de flores da primavera à próxima geração, que desfrutaria de uma civilização mais
avançada, alcançada através do progresso empregado por eles.
A partir de 15 de novembro de 1844, Torres Homem deixa a função de editor-chefe e esta
passa para Santiago Nunes Ribeiro. Os números da revista recomeçam e a publicação da referida
data tem novamente o número 1. A tipografia também muda, saindo da J. E. S. Cabral, na Rua do
Hospício número 6 e passando para a Tipografia Austral, no Beco de Bragança, número 15.

No seu artigo “Grandes fases da civilização brasileira: antecedentes e caráter dos progressos
literários e sociais: jornalismo: novas vistas da Minerva, etc”, Nunes Ribeiro estampa a introdução
desta nova fase de Minerva com suas propostas. Inicialmente, o autor faz um retrospecto das
inovações ocorridas no século XV, falando sobre Guttemberg, Lutero, Vasco da Gama e Colombo.
Fala-se também acerca das conquistas na América, enaltecendo Pedro Álvares Cabral, em uma
suposição do que aconteceria se Colombo não tivesse sido atendido pelos reis da Espanha. Ribeiro
também faz considerações positivas da administração colonial de Portugal ao Brasil de 1500 a
1822.15
A partir deste momento, o artigo apresenta um breve resumo sobre a história brasileira,
abarcando, sobretudo a vinda da família real, a decisão da permanência de D. Pedro I e o processo
de declínio da monarquia portuguesa. Traça, a partir daí, um paralelo com os movimentos ocorridos
no Brasil afirmando: “No Brasil, quase nos mesmos dias, se opera uma resolução, a passagem deste
país da infância a adolescência, à emancipação política: esforço algum pode impedi-la, porque Deus
dissera: separai-vos, e separaram-se.”16
Em seguida, Ribeiro escreve “Pretendo só lançar uma vista de olhos na cultura intelectual do
Brasil e dizer que a civilização atual é o resultado das ideias que presidem as suas grandes épocas
históricas.”17 Neste momento ele aponta que a introdução cristã e os livros como responsáveis pela
propagação da cultura, que em conjunto com a circulação de notícias e ideias na Europa alimentou
o espírito da literatura. A imprensa periódica aparece assim como elemento importante na
construção de uma cultura intelectual.

15 RIBEIRO, Santiago Nunes, 1844, p. 1.


16 RIBEIRO, Santiago Nunes, Op. Cit., p. 2
17 RIBEIRO, Santiago Nunes, Op. Cit., p. 2.

390
Ao tratar de Minerva, o autor proclama que caberia uma consideração sobre ela, mas que pelo
fato de ainda existir, ele se concentraria nas mudanças que ocorreriam na publicação. Santiago Nunes
Ribeiro anuncia:
Até o presente, neste como em outros países, o máximo número dos leitores era o
dos homens de letras, estudiosos, e as pessoas que sem o serem de profissão, haviam
recebido uma educação literária. Hoje, porém, além destas que o tem em maior grau,
o gosto da leitura se acha na parte sã de todas as classes, o singularmente nas duas
mais úteis ao Estado, a dos negociantes e fazendeiros, pois que são como as artérias
do corpo social nas quais gira a riqueza pública. Para estes, bem como para outros
muitos leitores, a instrução deve ser mais recreativa que científica na forma, por que
não leem, como os homens de profissão, para entender o que há de geral e abstrato,
isto é, de filosófico nas ciências, ou nas particularidades, aquilo que por ser técnico
só interessa a quem estuda ciência, ou exerce a arte. Isto posto, é sabido que o nosso
fim é dar uma instrução sólida, substancial e divertida, os nossos leitores podem
contar com artigos mais variados e recreativos que os da Minerva do ano findo, sem
que porém se entenda que esta publicação vai descer tanto que se nivele a alguns
Magazines, ou armazéns de notícias e descrições nimiamente superficiais e
populares. 18

Este é o manifesto do novo redator. A mudança seria agora para ilustrar outra camada da elite
imperial, não mais apenas a intelectual a fim de assegurar a independência cultural do país, mas sim
a econômica, com o intuito de homogeneizar as elites. Para isto, fica decidido que nesta nova fase
da Minerva serão diminuídas as quantidades de poesia para dar lugar a “escritos de mais positiva
utilidade.”19 Depois disso, Santiago Nunes anuncia a mudança mais clara deste novo momento:
Resta-nos falar de uma mudança que julgamos utilíssima na marcha da publicação
e na matéria desta última. Observando a escassez de algumas obras e o preço
exorbitante delas, entendemos conveniente dar em 12 números alternados de
Minerva reimpressões das ditas obras de novelas, viagens, ou quaisquer outras que
preencham nossos fins. Todas quantas pessoas temos consultado sobre esta ideia de
um de nossos colegas mais ilustrados e zelosos, lhe dão assenso e louvor sem
restrição. Resulta disso que os nossos assinantes terão 340 réis um volume de 56
páginas que se vendem de 1$000 a 2$000 nas livrarias.20

18 RIBEIRO, Santiago Nunes, 1844, p. 2.


19 Idem Ibidem, p. 3.
20 Idem Ibidem, p. 3.

391
Santiago Nunes Ribeiro nomeou a referida coleção de "Biblioteca Brasílica", afirmando em
seu artigo/introdução que “o povo não pode exercer seus direitos constitucionais, se vive na
ignorância. Só o instruído estará capacitado de governar-se.” 21 Remetendo ao conceito de boa
sociedade, como composta por votantes e eleitores 22 e também como sendo a reduzida elite
econômica, política e cultural do império 23, percebe-se que a nova proposta de Ribeiro é direcionada,
portanto, a este estrato social, uma vez que ele a apresenta para a pequena camada da população que
possui direitos constitucionais.
Prosseguindo com o artigo, Nunes Ribeiro afirma que Francisco de Salles Torres Homem
deixou a chefia de redação da publicação definitivamente, mas que ainda esperam tê-lo como
colaborador das publicações, fato que se concretiza. Depois de apresentar considerações sobre a arte
deste primeiro número, que não foi realizada pelo artista combinado, encerra-se a apresentação desta
nova fase com a enumeração de cada contribuinte da publicação, separados pela respectiva seção, e
um breve texto sobre a “Abertura do Atheneo”, também de Santiago Nunes Ribeiro.
A partir da compreensão de para quem se destinava Torres Homem em sua introdução,
podemos destacar que o novo redator da revista não foge muito da regra, no entanto busca alargar
seu público através da proposta de uma leitura mais recreativa. Sendo assim, é perceptível que a
grande massa não está inclusa nestes planos, bem como quando Santiago Nunes realiza uma
repaginação na estrutura do periódico a fim de também incluir a classe econômica mais expressiva
do país: os fazendeiros e negociantes.
Ao longo da revista é possível também observar outros artigos que reafirmam esta proposta.
A partir daqui, mais voltada para a questão literária, pode-se destacar que três artigos nos oferecem
um campo de percepção acerca da questão pedagógica, que é tão forte na revista e na imprensa do
oitocentos de forma geral. São artigos como “Bibliografia: obras sobre geografia e história do Brasil
– o compêndio do Sr. General Abreu e Lima”, assinado por T. e publicado no segundo número da
primeira fase da revista, “Parnaso Brasileiro”, produzido por Santiago Nunes Ribeiro e também
publicado no mesmo número e, por fim, “Utilidade e vantagens das ciências e letras”, escrito por Dr.
Lapa e publicado no 5º número deste periódico que nos permitem observar como este projeto se faz
presente no seu corpo de publicações.
O primeiro texto destacado trata de uma obra produzida pelo General Abreu e Lima e foca
na geografia e história do Brasil. T., portanto, destaca em seu artigo a importância de obras deste
tipo para a nação. Ao iniciar o texto o autor afirma que o Brasil é mais comumente conhecido pelos

21 LOPES, Hélio, 1978, p. 37.


22 MATTOS, Ilmar Rohloff de, 2009, p. 27.
23 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, 2008, pp. 95-97

392
estrangeiros do que pelos próprios brasileiros, já que seriam eles quem publicavam estudos sobre o
país – como os exemplos que T. ressalta sobre o tamanho de suas montanhas ou a extensão de seus
rios – e ao fechar a ideia, o autor afirma que o conhecimento sobre a nação é praticamente ignorada
por sua população, a não ser por questões locais ou de interesses econômicos sobre algum lugar.
Nesse sentido, afirma:
Estranhas umas as outras, falta as nossas províncias a força do laço moral, o nexo
da nacionalidade espontânea que poderia prender estreitamente os habitantes desta
imensa peça, que a natureza abarcou com os dois maiores rios do universo. A
história do país ou depositada em antigos e fastidiosos volumes e geralmente
ignorada, ou escrita até certo tempo por mãos menos aptas, por estrangeiros que,
como Beachamp, trataram só de compor um romance, que excitasse a curiosidade
de seus leitores na Europa, não pôde despertar no espírito de nossa juventude o
nobre sentimento de amor de pátria, que torna o cidadão capaz dos maiores
24
sacrifícios, e o eleva acima dos cálculos mesquinhos do interesse individual.

A partir de Hobsbawn podemos perceber que não são as nações que formam os Estados e os
nacionalismos e sim o contrário; são os Estados que formam as nações e seus nacionalismos. 25 Para
os teóricos do começo do século XIX, a nação se estabelecia a partir da etnicidade, idioma, religião,
território e lembranças históricas comuns. Para, além disso, a construção da ideia de nação e seus
nacionalismos é uma tarefa das elites, que se vestem dos motivos nacionais, para construírem uma
narrativa histórica a fim de unificar o povo através de uma ideologia comum e isso pode ser
observado em Minerva.26
Nesse sentido, o autor destaca uma questão importante para eles e que apresenta uma das
marcas mais fortes do periódico, bem como sua pretensão ilustrativa e pedagógica, quando pergunta
“Como legislar convenientemente para um país que nação se conhece bem? Como dispor de matéria,
sobre a qual se possui apenas uma notícia leve, geral e muito imperfeita?” 27. Desta forma, além de
deixar bastante evidente uma das maiores preocupações desta publicação, o ele ainda apresenta a
quem se dirige: aos futuros possíveis legisladores deste jovem país. Ao continuar desenvolvendo sua
ideia de que sem conhecer o próprio território tudo neste país é afetado, ele apresenta sugestões,
como por exemplo, usar os mapas já existentes para exame e correção, litografar e distribuir ao
público por preços módicos. 28

24 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 51.


25 HOBSBAWN, Eric J, 2013, p. 19.
26 Idem Ibidem, Passim.
27 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 51.
28 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 51

393
Sobre a questão da história do Brasil, T. afirma que o general adota com destreza os métodos
de pesquisa, afirmando que trata os assuntos com a imparcialidade desejada inclusive dos eventos
aos quais fora testemunha. O “amor pela verdade” é um dos elementos destacados no que tange a
confiabilidade do estudo realizado pelo General. O compêndio ao qual a crítica se refere trata dos
eventos ocorridos da Independência do país até a coroação de D. Pedro II e, de acordo com o próprio
autor deste, mesmo que lhe falte uma exatidão no tratamento dos fatos, ao menos ele é rico em
documentos precisos. 29 Importante lembrar que, como destaca Valdei Lopes de Araújo 30, esta é
uma preocupação inicial do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: como se deve escrever a
História nacional, antes de ser escrita de fato. Portanto, o rigor das fontes é uma preocupação prévia
destes homens das letras. Ao final o autor conclui que uma história completa do Brasil de fato ainda
resta compor e entrega esta missão ao recém-fundado IHGB. 31
Sobre a relação do passado para a construção nacional é imprescindível evocar Ernest Renan
em seu texto sobre a nacionalidade. Em “O que é nação”, o autor defende que “A nação moderna é
portanto um resultado histórico produzido por uma série de fatos que convergem para um mesmo
ponto”32, eis a importância da história neste processo. Neste sentido, a importância do conhecimento
de seu passado, de acordo com Renan, é muito semelhante ao apresentado por T., uma vez que é um
dos elementos primordiais para promover o nexo de nacionalidade evocado pelo autor da revista.
Renan afirma:
A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo passado de esforços, de
sacrifícios e de devoções. O culto dos ancestrais é, entre todos, o mais legítimo; os
ancestrais fizeram de nós o que nós somos. Um passado heroico, grandes homens,
glória (refiro-me a verdadeira), eis o capital social sobre o qual assenta-se uma ideia
nacional. Ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito
grandes coisas juntos, querer continuar a fazê-las, eis as condições essenciais para
ser um povo.33

Em “Parnaso Brasileiro”, escrito por Santiago Nunes Ribeiro, há um direcionamento para a


questão literária nacional por tratar-se de uma crítica ao livro escrito que tem por título o mesmo do
artigo, que foi escrito pelo Sr. Dr. Pereira da Silva. O autor inicia seu texto tratando da importância
de livros e sobre o alto custo deles e ressalta, demonstrando mais uma vez a preocupação pedagógica
e ilustrativa que direciona o projeto desta publicação:

29 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 52.


30 ARAÚJO, Valdei Lopes de, 2008.
31 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. pp. 52-53.
32 RENAN, Ernest, 1997, p. 20
33 Idem Ibidem, p. 39.

394
A livraria de um país ilustrado deve procurar os meios de satisfazer a exigência de
bons livros, desejados pelos amadores de sã e amena instrução, e isto pelo preço
mais módico (...) Cumpre pois descobrir os meios de imprimir e vender livros
recreativos e morais, por preço cômodo. 34

Ao prosseguir, Santiago Nunes apresenta a relevância de uma imprensa ilustrativa ativa, para
além da periódica. Ou, sendo periódica, que fosse literária e científica, tal qual é a publicação objeto
deste texto, como afirma ao dizer que “(...) se a imprensa não periódica (ou periódica, mas literária
e científica), tivesse sido mais ativa; a instrução pública teria ganhado muito.” 35
Esta foi uma
reflexão, de acordo com Nunes Ribeiro, que não se aplica ao livro em questão, uma vez que ele é
uma compilação de produções das belas letras brasileiras.
Já no artigo de Dr. Lapa, “utilidade e vantagens das ciências e letras”, publicado no número
5 da revista, revela uma sumária crença no progresso e na perfectibilidade do homem através do
conhecimento e desenvolvimento crescente dele, tal como pudemos observar no editorial da primeira
fase da revista escrito por Torres Homem. No artigo em questão o autor afirma que o estudo das
ciências e das letras seria uma forma de ampliar o domínio da existência e consequentemente
promoveria a felicidade e o progresso do homem civilizado, por isso a importância dele. Seria através
destes estudos que o espírito humano se elevaria e a sociedade como um todo lucraria com suas
vantagens em decorrência disso. 36
Como o foco deste trabalho centra-se na questão literária da revista, portanto não há
necessidade de se deter aos detalhes que o autor expressa na defesa da importância do estudo das
ciências e sim, das letras. Inicialmente é importante destacar que Dr. Lapa considera, conforme se
expressa em seu texto, que a cultura das letras – por ele descrita como a poesia, a música, a história
e a eloquência – são menos importantes que as ciências em termos de utilidade. À cultura das letras
o autor designa uma relevância recreativa, uma forma útil de se obter prazeres de espírito, descanso
e aperfeiçoamento. 37 Neste sentido, Dr. Lapa escreve que “As letras formam o coração e o espírito;
elas ensinam como conhecer e apreciar os encantos e doçuras da virtude; fonte fecunda são de
prazeres puros para o homem; e para quem for dotado de certa elevação de espírito, nenhum gosto
corre parelhas com o que ele sente em sua cultura.” 38
Embora atribua menos importância às letras, não pode-se deixar de notar que existe sim uma
importância em sua produção já que promoveria instrução mesmo em momentos de lazer. É neste

34 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 53.


35 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 53.
36 Minerva Brasiliense, nº 5, vol. I, 1844. p. 135.
37 Minerva Brasiliense, nº 5, vol. I, 1844.. p. 136.
38 Minerva Brasiliense, nº 5, vol. I, 1844.. p. 136.

395
ponto que o artigo revela sua importância, uma vez que levanta formas de tornar a população de seu
país mais instruída a fim de civiliza-la, o que entra em consonância com todo o projeto pedagógico
deste periódico. Neste sentido, ratificando o que foi posto, o autor ainda afirma que:
Em todos os países e em todas as épocas da vida as letras recreiam e descansam
agradavelmente o espírito do homem; instruem e formam a mocidade; deleitam e
aformosentam a vida na velhice; abrilhantam e servem de ornamento na
prosperidade, consolam na desgraça, e são asilo seguro contra as dores pungentes
da alma; no interior de nossas casas são nossas delícias, em nenhuma situação da
vida nos importunam, ainda no exercício dos misteres domésticos, e perenemente
velam conosco em viagem, ou já no campo. (...) São finalmente as letras que, desde
Hesíodo e Homero, hão dado origem a tantas obras primas do espírito humano;
obras imortais, que serão em todo o sempre objeto das delícias e da constante
admiração dos homens de gosto puro e iluminado.39

Ainda dentro desta questão pedagógica tão latente em Minerva, pode-se destacar os artigos
de Emile Adet sobre literatura contemporânea francesa. Esta é uma série de artigos publicados em 3
números da revista que tem como propósito avaliar a produção literária francesa contemporânea,
mas que nos permite enxergar também reafirmações das propostas civilizadora, pedagógica e
ilustrativa. No primeiro deles, publicado no segundo número de Minerva, o autor apresenta ideias
como a França ser a provedora de civilização na contemporaneidade, o Brasil como sendo discípulo
dela na literatura da época presente e qualifica a literatura contemporânea francesa como sendo a
nova escola literária – chamada por ele de lirismo. 40
A partir de então, neste número, Emile Adet realiza uma revisão da literatura francesa passada
a fim de encontrar qual seria o ponto de separação da antiga para a nova escola. Atribui, por fim,
esta ruptura às revoluções que sacudiram a França afirmando ela estaria recuperando o caráter
nacional de sua literatura. Elege Victor Hugo como o mais brilhante e nobre representante desta nova
escola moderna de literatura, à qual ressalta não estar ainda fixa e não contar com numerosos
representantes. 41
No artigo seguinte, no número 3 desta revista, o Adet define a poesia lírica como sendo ode
e elegia, da qual diz que não irá separar. Afirma que o primeiro autor deste lirismo é Chateaubriand,
que revelou o estilo e permitiu que outros autores pudessem criar a partir deste, no que defende
partirem “de uma faísca saído do mesmo foco poético”. 42 Adet então complementa afirmando que

39 Minerva Brasiliense, nº 5, vol. I, 1844.. pp. 136-137.


40 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. 1, 1843. p. 37.
41 Minerva Brasiliense, nº 2, vol. I, 1843. p. 40-41.
42 Minerva Brasiliense, nº 3, vol. I, 1843. p. 89.

396
Lamartine e Victor Hugo são discípulos de Chateaibriand, contudo exalta a performance do segundo
dizendo “que o vento lançou[-o] em novos caminhos para fazê-lo percorrer espaços até aí
desconhecidos.” 43 Por fim, trata de Béranger, que, posto entre Lamartine e Victor Hugo, é descrito
como “uma das glórias mais populares do século, o poeta mais nacional da França.” 44
Partindo
destas informações, podemos perceber que o lirismo da literatura francesa nada mais é do que o
movimento romântico, escola literária desenvolvida pelos autores de Minerva.
Já no terceiro e último artigo sobre este tema, Emile Adet defende a ideia de que apenas a
França possuía uma grande literatura. No desenvolvimento desta ideia o autor ressalta, a fim de
apresentar que a escola contemporânea apenas está em seu início:
A literatura moderna, cuja restauração só começou em 1819 a lançar os primeiros
clarões, e que em 1828 já havia derramado extensa luz, não é folha nem do século
18, nem do 19, ela nasceu do coração do primeiro cristão. O que caracteriza a
literatura contemporânea da França é a poesia épica, que se revelou a Chateabriand,
Alfredo de Vigny, Alexandre Soumet e Edgar Quinet; a poesia lírica, isto é, a ode
que se revelou a Victor Hugo; a elegia, a Lamartine. O romance, que tomou novas
feições; que toca hoje em todas as questões sociais e não se acha mais comprimido
no estreito círculo que outrora não pôde alargar. A filosofia, que sob a influencia do
restabelecimento literário e do espiritualismo alemão, deu um passo para a verdade.
A história, que ora entrou nos limites da filosofia e ultrapassou os limites que
punham travas a sua marcha. A linguística, que, entregue as sábias mãos de Chezi,
dos Jaubert, dos Quatremère, dos Saint-Martin, dos Abel Remusat, dos Sylvestre de
Sacy, dos Balbi, dos Bernouf, subiu ao ponto que elevaram em Alemanha os Bopp,
os Eichhorn, os Hammer, , os Ticksen, os Vater, os Klaproth, os Adelung, os
Eischoff e os Humboldt. Há em todos os espíritos um despertar geral, uma atividade
incessante para o progresso; mas também uma inquietação sobre o futuro, a
incerteza entre o presente, em tudo a dúvida e uma vontade fraca e vacilante. A
literatura não tem ponto central ao qual tudo convirja; eis a causa destas apalpadelas
contínuas, deste andar ao acaso, desta liberdade que se torna desordem: casa qual
abre um caminho sobre qual forma um sistema. 45

E, embora negue, apresenta sua defesa ao romantismo:


Digamo-lo, posto que não querendo constituir-nos defensores do romantismo, é uma
injustiça que se faz à escola moderna compará-la à antiga. Quanto a esta, os tempos
passaram; aquela apenas começa o seu período. Aguardai, não compareis por ora;

43 Minerva Brasiliense, nº 3, vol. I, 1843. p. 89.


44 Minerva Brasiliense, nº 3, vol. I, 1843. p. 91.
45 Minerva Brasiliense, nº 4, vol. I, 1843. p. 110.

397
há quiçá um gênio próximo a nascer da sombra! Newton aparece no mesmo ano em
que morre Galileu, Shakespeare só havia quatro anos que tinha falecido quando
Molière veio ao mundo, e quando o gênio de Voltaire se extinguia, o fogo celeste já
abrasava a fronte de um menino ignorado em uma ilha! Para que apareça a aurora é
forçoso o crepúsculo. 46

Muitas são as ideias que estes textos direcionam no que se refere ao projeto do periódico em
si. Inicialmente, podemos ressaltar a importância dada à França como provedora de civilidade e
progresso pelos quais devem ser buscados como exemplo pela jovem nação. Adet apresenta se
profícuo conhecimento sobre a literatura francesa e busca fornecê-lo ao seu leitor a fim de que este
também compreenda os processos pelos quais à literatura passou, bem como seus processos
históricos.
De acordo com Ricupero, “Sua influência não é, porém, mero modismo, já que o meio
intelectual latino-americano e o francês enfrentam ordem de problemas em certo ponto similar”. 47

Ao tratar da literatura como um meio de recuperar a nacionalidade deste país europeu após ser
abalado por duas revolução, é possível interpretar que este gênero literário tão aclamado por Emile
Adet seria capaz de promover a nacionalidade pelos quais buscam os autores deste impresso, tendo
em vista que pode-se compreender o movimento romântico brasileiro como o responsável por pensar,
mesmo que de forma imatura, quais seriam os códigos e elementos que constituem a literatura de
nacionalidade brasileira.. Neste sentido, compreender o romantismo francês seria uma forma de
tornar o romantismo brasileiro possível e aclamado pela sua população. A literatura e a história,
responsáveis por carregar as marcas das ações nos homens no mundo, eram duas das engrenagens
do projeto ilustrativo com o qual contava a revista Minerva Brasiliense, mas que muitas vezes – por
motivo da fluidez das suas concepções no mundo do oitocentos – se fundiam numa só. Os autores
que publicavam neste periódico mostraram-se alinhados a este projeto, que acaba sendo o fio
condutor das publicações de seus colaboradores.

Bibliografia:

ARAÚJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo. Conceitos e narrativa na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Huicitec, 2008.

46 Minerva Brasiliense, nº 4, vol. I, 1843. pp. 110-111.


47 RICUPERO, Bernardo, 2004, p. 45.

398
CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. In:
Revista Topoi. Rio de Janeiro, nº1, jan-dez. 2000.
HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2013.
LOPES, Hélio. A divisão das águas: contribuição ao estudo das revistas românticas Minerva
Brasiliense (1843-1845) e Guanabara (1849-1856). São Paulo: Secretaria da cultura, ciência
e tecnologia, 1978.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. “O gigante e o espelho”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo.
(Org) O Brasil Imperial – Vol. II – 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. "Boa Sociedade". In: VAINFAS, Ronaldo (Org.),
Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
RENAN, Ernest. “O que é nação?”. In: ROUANET, Maria Helena (Org). Nacionalidade em
Questão. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997.
RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
RIBEIRO, Santiago Nunes. “Grandes fases da civilização brasileira: antecedentes e caráter dos
progressos literários e sociais: jornalismo: novas vistas da MINERVA, etc”. In: Minerva
Brasiliense, número 1, 1844.
STAROBINSK, Jean. As Máscaras da Civilização: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
TORRES HOMEM, Francisco de Salles. “Progressos do século atual”. In: Minerva Brasiliense,
número 1, 1843.

FONTE:

Minerva Brasiliense. Rio de Janeiro. 31 edições, 1843-1845. – Disponível on-line em:


http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/nitheroy/700045

399
Jornal O Globo E A Insistente Defesa Da Agenda Privatista No Brasil

Bruno Ferrari Baptista1

Resumo: O presente estudo busca analisar o discurso do jornal O Globo, durante a década de 1990 e
os anos 2016 e 2017, diante da privatização de empresas públicas de grande relevância para a
infraestrutura nacional. Procuramos comparar as narrativas publicadas nos editorais do jornal nesses
dois períodos diversos da História Política do Brasil acerca dessa temática neoliberal para inferir a
insistência discursiva do periódico em torno da defesa da agenda de privatizações no Brasil.

Palavras-chave: Privatizações – O Globo – Neoliberalismo.

Abstract: This study propose to analyze O Globo newspaper's discourse during the 1990s and 2016
and 2017 in the face of the privatization of public enterprises with great relevance to the national
infrastructure. We seek as narratives published in the newspaper's edicts in these diverse moments of
the Political History of Brazil about the neoliberal thematic to infer a discursive insistence of the
newspaper around the defense of the privatization agenda in Brazil.

Keywords: Privatizations – O Globo – Neoliberalism.

Neste estudo partido da premissa de que não há imparcialidade na ação dos meios de
comunicação. O controle de grandes instrumentos comunicacionais possibilita a difusão e
potencialização de determinados discursos e perspectivas. Controlar os meios de comunicação
garante uma ação política concreta e permite um agendamento das prioridades e diretrizes políticas
e econômicas. Como salienta Luiz Gonzaga de Mello Belluzo destaca que:
Há muito tempo as relações de poder entre a mídia e o Estado estão de cabeça para
baixo, ou melhor, foram colocadas de cabeça para cima pela celebrada ‘revolução das
comunicações’. Os partidos, os governos e os fatos políticos só existem pela via dos
meios de comunicação. O poder real há muito migrou para os cérebros e para as mãos
dos donos da informação, que se entregam ao trabalho de ‘orientação’ das massas
desarvoradas (...) Os amigos dos reis costumam contra-atacar, argumentando que é
ridículo supor uma conspiração entre a mídia, os governos e os negócios. Têm toda
razão: o pior é que não há mesmo nenhuma maquinação. São apenas consensos
produzidos pelo andamento normal dos negócios. 2

A ação das Organizações Globo ao longo da História Política recente é absolutamente evidente
em diversos momentos como o apoio ao golpe e à ditadura militar, a tentativa de interferência nas
eleições do Rio em 1982, a manipulação em torno da luta pelas Diretas Já! e nas disputa eleitoral
entre Collor e Lula em 1989.

1 Mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e graduado em
Comunicação Social (Jornalismo) na FACHA. Email: brunoferrarib@gmail.com.
2 BELLUZO, Luiz Gonzaga de Mello. Democracia na América. Folha de São Paulo (02/09/2000) Apud
AMARAL, Roberto. op.cit., p. 81.

400
Mas as Organizações Globo também têm um papel insistente na busca por consolidar a ideia da
falência do Estado e da Esfera Pública e da necessidade de efetivar a privatização das empresas e
serviços público.
Ao longo da década de 1990, por exemplo, o jornal O Globo construiu e difundiu um discurso
favorável ao processo de privatizações no Brasil; e, como parte dessa narrativa pró-desestatização,
o periódico também veiculou uma narrativa desabonadora perante as empresas estatais brasileiras.
O jornal O Globo publicou diversos editoriais em que tecia duras críticas às empresas públicas
nacionais, chamava atenção para a suposta “evidente falência” das companhias públicas, e apontava
o suposto “rombo que as estatais causaram às contas do Tesouro Nacional”. Segundo o jornal, havia
“muitas estatais que” precisavam “ser recuperadas, e isso” exigiria “uma completa reformulação
gerencial” que só a administração privada poderia alcançar. 3 O periódico ressaltava em sua coluna
de opinião argumentos e adjetivos depreciativos perante às estatais. Por exemplo, em um editorial
que tinha o título “Ameaça ao plano”, o jornal afirmava que:

O movimento em favor da extinção ou venda de empresas estatais destituídas de


função estratégica dispensa a contemplação de bem-sucedidas experiências
privatistas externas, como as de Espanha e Grã-Bretanha. Basta-nos a evidencia da
realidade brasileira: uma legião de entidades encasteladas em privilégios
corporativistas servindo a si mesmas e não à Nação. Têm elas, quase todas, a
marca da ineficiência inevitável a uma estrutura em que deveres não
correspondem a direitos; e em que estes cresceram muito além de qualquer medida
razoável, graças a uma histórica cumplicidade de governantes e políticos. Fontes
de empreguismo, com padrões de remuneração e planos de previdência e assistência
interna inteiramente fora da realidade do país, as empresas estatais concorrem com
a iniciativa privada, ou a substituem monopolisticamente, com imunidade garantida
pela inexistência do teste de competência: excluído o risco de falência, é o dinheiro
do contribuinte que responde por todos os seus fracassos.4

Segundo o jornal O Globo, a “retomada do desenvolvimento” exigiria “da máquina do Estado


eficiência inalcançável com os baronatos representados por todas estatais”, que deveriam “ser
extintas ou vendidas”. De acordo com a perspectiva do periódico, o Brasil era vítima de um “Estado-
empresário” e o processo de privatização seria a salvação das empresas públicas e deveria seguir a
todo vapor no Brasil pois a ineficácia das estatais era flagrante. O jornal salientava que não eram
“poucos os problemas que o Governo” tinha “para resolver na área das empresas estatais – como é
o caso da política salarial e benefícios. Há empresas tecnicamente insolventes e outras caminham

3 Editorial. A solução plausível. 01/04/1993. p. 6. Editorial. Atrair os pequenos. O Globo. 16/11/1999.


p. 6.
4 Editorial. Ameaça ao plano. O Globo. 05/04/1990. p. 1. (grifo meu).

401
nessa direção”; e, nesse sentido, somente a “desestatização” poderia “equilibrar as finanças
públicas”.5
A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi alvo de diversos editoriais do jornal O Globo que
também ressaltavam as supostas precariedades desta estatal. Para o periódico da família Marinho -
que chegou a chamar a CSN, uma das mais importantes siderúrgicas do mundo, de “sucata” -, o
“saneamento das finanças da Companhia Siderúrgica Nacional” era “assunto prioritário”, pois,
segundo O Globo, a siderúrgica precisava ser salva “da desorganização administrativa e da falência”
e adquirir “agilidade gerencial”. De acordo com o periódico, a CSN era “uma empresa em situação
crítica, quase imobilizada por falta de dinheiro para compra de matéria prima. A siderúrgica sequer
pagava impostos”.6 Segundo O Globo, a má situação da CSN e a incapacidade de gestão do Estado
brasileiro ensejariam a urgência de sua privatização:

Enfraquecida por anos de uma política de preços antieconômica para a empresa, e


agora quase levada ao colapso por uma greve prolongada, a CSN precisa de toda
ajuda que lhe for possível dar (...) A sua recuperação, note-se, passa ao largo da
discussão sobre o destino que lhe será dado a seguir. Para se manter como estatal,
a siderúrgica precisa de manter de pé; para ser privatizada, igualmente – pois
ninguém compra sucata. (...) Ultrafértil e CSN não fogem a esse contexto. São
empresas que (...) estão perdendo terreno em seus respectivos setores por
deterioração de seus ativos industriais. Não há porque retardar a privatização, em
ambos os casos. Através de leilões públicos, com regras amplamente divulgadas, o
mercado saberá melhor do que ninguém determinar o preço justo de venda dessas
empresas. Quanto as normas para a venda, apenas uma se impõe como realmente
indispensável: é preciso atrair compradores com capacidade de investir. Pois a
urgência da privatização deriva precisamente do fato de que falta essa capacidade
ao atual proprietário – o Estado. Vender para quem não tenha capacidade de deter
o sucateamento seria condenar a empresa à extinção.7

Ainda em 1990, o jornal O Globo já afirmava a emergência da privatização da Companhia


Siderúrgica Nacional (CSN) e destacava que a desestatização seria a “solução possível”. O Globo
até propunha diretrizes e encaminhamentos práticos para a estatal (e até mesmo para seus
funcionários) sediada em Volta Redonda, interior do Rio de Janeiro. 8 Nas palavras do periódico:
Infelizmente, devido a uma série de erros, tanto de planejamento empresarial como
de Brasília, ela se viu sufocada por endividamento que jamais terá condições de
saldar mantendo sua estrutura patrimonial. A companhia precisa de capital. Mas
seu principal acionista, a União, não pode socorrê-la, por absoluta falta de
recursos. Dessa forma, a solução possível para a CSN é torná-la uma companhia
particular. Como não há um único grupo empresarial no Brasil em condições de

5 Idem; Editorial. Riscos na privatização. O Globo.01/03/1993. p.6. Editorial. Quebrando tabus. O


Globo. 23/08/1990. p. 4.
6 Editorial. Solução boa para todos. O Globo. 17/08/1990. p. 4; Editorial. Na hora da CSN. O Globo.
31/10/1992. p. 6; Editorial. Um circo contra a CSN. O Globo. 24/03/1993. p. 6.
7 Idem; Editorial. Privatização vacilante. O Globo. 15/12/1992. p. 6.
8 Editorial. Saída em Volta Redonda. O Globo. 28/04/1990. p. 4.

402
comprá-la, a privatização terá de mobilizar grande número de acionistas
individuais e institucionais, do Brasil e do exterior. Da mesma maneira que foi
marco da industrialização, talvez a CSN tenha a oportunidade de ser pioneira de
um processo de efetiva democratização do capital de uma grande companhia
brasileira. Mas, até que a privatização se efetive, a empresa passará por difícil
período de transição. Seu endividamento de curto prazo, por exemplo, é
insustentável. Terá mesmo que abrir mão de instalações e ativos que podem ser
úteis na fabricação de aço. (...) Paralelamente a estrutura administrativa começará
a ser reformulada, implicando o enxugamento do quadro gerencial, visivelmente
inchado. A primeira reação do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda à
ideia da privatização não foi boa. Os sindicalistas insistem em falar dos erros do
passado e não conseguem olhar para frente. É importante que os empregados da
CSN (...) sejam aliados desse processo de privatização (até como futuros sócios) e
não adversários. Libertada das amarras de um Estado empresarialmente
ineficiente, a CSN poderá pôr em prática muitos dos seus planos, como, por
exemplo, um novo laminador e uma coqueria em Itaguai, junto ao porto de
Sepetiba, formando a Usina II. Sem a privatização, A Companhia Siderúrgica
Nacional – inegavelmente a mais moderna das usinas estatais – continuará em lenta
agonia, o que não interessa ao Brasil e, muito menos, aos empregados da empresa.9

Em seus editoriais, o jornal O Globo criticava opositores da privatização da Companhia


Siderúrgica Nacional (CSN) e reiterava a suposta urgência na desestatização da empresa. Chamando
de “circo” o movimento que contestava a venda da estatal de Volta Redonda, O Globo defendia os
preços estabelecidos para a venda, e afirmava que a desestatização da CSN representaria uma
“oportunidade única” que não poderia ser retardada. Nas palavras de O Globo:
Trata-se de uma oportunidade única: dificilmente voltarão a se reunir tantas
condições favoráveis para que a empresa se liberte da paralisante ingerência
política do Estado. Empresas de consultoria, com nome a zelar no mercado, fizeram
avaliações meticulosas, e a partir delas estabeleceu-se um preço mínimo de venda,
base do leilão marcado para 2 de abril. Todas as supostas alternativas ao processo
de venda só terão um efeito: retardar a privatização. (...) Em outras áreas, levantam-
se suspeitas para criar um clima desfavorável na opinião pública e abrir caminho
para decisões judiciais suspendendo o leilão. O prefeito de Volta Redonda, eleito
por uma coalisão PSB-PT, chegou a decretar ponto facultativo para incentivar uma
manifestação às portas da CSN – e é positivamente significativo que nem assim
conseguiu juntar mais de 300 pessoas. A CUT também se mobiliza para promover
um ato intimidatório à frente da Bolsa de Valores do Rio (tal como ocorreu na
privatização da Usiminas). Assim, o circo está sendo armado, mas para um triste
espetáculo: o esforço para jogar por terra o futuro de uma grande companhia que
quer andar com suas próprias pernas.10

Na edição publicada no dia seguinte à realização do leilão da mais importante siderúrgica


brasileira, a manchete principal do jornal destacava: “Governo vence batalha judicial e privatiza
CSN”.11 Em um editorial suplementar publicado no mesmo espaço da matéria que abordava a venda

9 Idem. (grifo meu)


10 Editorial. Um circo contra a CSN. O Globo. 24/03/1993. p. 6.
11 O Globo. 03/04/1993. p. 1.

403
da estatal, o jornal O Globo comemorava a privatização da CSN e, mais uma vez, chamava essa
desestatização de “marco” (inclusive, este era o título deste segmento de opinião):
A Companhia Siderúrgica Nacional é um marco na história da industrialização no
Brasil. Ontem, ela passou a ser também um marco no processo de redefinição do
Estado brasileiro. De todas as estatais, a CSN talvez seja a que mais sofreu com a
falência do setor público: chegou à beira da ruína na greve de novembro de 1988,
que terminou em tragédia. A recuperação da empresa foi produto de uma luta
demorada e difícil; nela, direção e trabalhadores uniram esforços para deixá-la
pronta para a privatização. E, hoje, nada impede que a usina de Volta Redonda,
sob o comando de capitais privados, desenvolva todo seu potencial e se transforme
numa das alavancas da economia do Estado do Rio e do país. Um marco, sem
dúvida. E um exemplo.12

O periódico das Organizações Globo deixava claro em seus editoriais que em sua opinião a
privatização da CSN era incontestável e representava um importante avanço para o país. De acordo
com o jornal O Globo, “ninguém de boa fé pode, portanto, demonstrar surpresa ou decepção em
face da privatização da Companhia Siderúrgica Nacional. Pois a consolidação da desestatização da
CSN representava “um grande passo dado pelo atual Governo no processo inevitável de
modernização da economia do país”.13 Segundo a perspectiva do jornal O Globo, “a Companhia
Siderúrgica Nacional sem dúvida passou a contribuir mais para o desenvolvimento econômico e
social de Volta Redonda e do Estado do Rio de Janeiro depois que foi privatizada”.14 Para O Globo:
A privatização representa uma esperança também para o município de Volta
Redonda (e para o estado do Rio de Janeiro, pois se trata da segunda maior empresa
fluminense), que sofreu dramático esvaziamento econômico nos últimos anos. A CSN,
como estatal, não usava adequadamente seu poder de barganhar para atrair
fornecedores para a região, o que reduziria muito seu custo de produção, gerando
empregos e maior renda fiscal na região. O empreguismo, a corrupção, e a
politicagem dentro da empresa afastaram do município muitos potenciais
investidores. A opinião pública de Volta Redonda e, principalmente, os empregados
da CSN estão cada vez mais conscientes de que o caminho para a mudança é a
privatização. Nos últimos meses, a CUT – inimiga figadal da desestatização – foi
derrotada nas eleições de dois sindicatos locais, o dos metalúrgicos e o dos
engenheiros. Volta Redonda espera agora seguir os passos da Usiminas e da Acesita,
deixando de viver apenas das glórias de um passado que já se esfumaça. Não basta
para a CSN ser apenas um símbolo (...).15

O Globo publicou diversos editorias, bem como, matérias ressaltando os supostos benefícios
que a privatização da CSN traria ao país e à população. O jornal destacou os valores que a
desestatização havia proporcionado aos cofres públicos e as melhorias que o setor privado garantiria
a empresa, entretanto, o periódico evitou temas polêmicos acerca da venda da siderúrgica: como o
volume real de recursos injetados no Tesouro Nacional. Edilson José Graciolli, salienta que “às

12 Editorial. Marco. O Globo. 03/04/1993. p. 25.


13 Editorial. O Rio confia. O Globo. 05/04/1993. p. 1.
14 Editorial. Minas na contramão. O Globo. 25/02/1996. p. 6.
15 Editorial. Na hora da CSN. O Globo. 31/10/1992. p. 6.

404
vésperas da privatização, o suspense a respeito do percentual de dinheiro vivo que se exigiria no
leilão da CSN se mantinha”. E que “embora se tenha chegado a falar em 40% ou 50%, (...) o montante
em moeda corrente pago ao governo no leilão da CSN representou 3,8% do total do valor de venda
da usina”.
Além da CSN, diversas outras estatais importantíssimas para a infra-estrutura nacional foram
alvo desse discurso depreciativo perante a esfera pública e positivo em torno da ideia privatista. Essa
linha de defesa da agenda de privatizações em torno de empresas infraestruturais permanece sendo
adotada pelo jornal O Globo na segunda década do século XX.
Durante o governo golpista de Michel Temer (PMDB), as teses neoliberais voltaram a ocupar
o centro da agenda política nacional e o projeto privatista ganhou enorme força. Empresas e setores
importantes da infra-estrutura pública foram e continuam sendo negociados (ou em processo de
discussão para tal ação) e o tom pró-neoliberalismo/privatizações do jornal O Globo permanece o
mesmo observado durante as gestões neoliberais da década de 1990.
A Eletrobrás, por exemplo, está sendo colocada em pauta para uma desestatização. O jornal
O Globo demonstrou seu incisivo apoio (que beirou a cobrança) para a consolidação desta
privatização. Alguns editoriais publicados pelo periódico da família Marinho deixam claro a posição
pró-privatização da Eletrobras. Segundo o jornal O Globo:
Aperto fiscal não só leva governo a tratar de reformas que vinham sendo adiadas,
como a reduzir o tamanho do Estado-empresário, essencial para a sociedade O
cenário político é intrincado, e o econômico, incerto. Mas deve-se reconhecer que a
crise tem permitido que o país caminhe na direção certa, na formulação de reformas,
embora, infelizmente, o enfraquecimento político do governo Temer, devido a
denúncias e ao seu telhado de vidro ético, o impeça de avançar, como necessário,
na aprovação, no Congresso, das mudanças na Previdência. É certo que a queda do
governo lulopetista de Dilma Rousseff facilitou a imposição da agenda das
reformas, embora, mesmo ela, se continuasse no Planalto, seria obrigada a fazê-las,
por simples questão de sobrevivência. O motor que impulsiona aperfeiçoamentos
cruciais na condução da economia é a mais séria crise fiscal de que se tem notícia
no país. Dela derivam o desengavetamento, enfim, da modernização da Previdência,
entre outras ações, e, também não era sem tempo, a retomada das privatizações. O
governo já havia lançado um programa de parcerias de investimentos (PPI), para
ampliar concessões, e, na segunda-feira, anunciou a venda da Eletrobras, holding
estatal do setor elétrico — com exceção de Itaipu, por ser binacional, e das usinas
nucleares, por imposição constitucional. Deve melhorar os humores na economia,
pela relevância desta correta decisão. A equipe econômica espera melhorar a
situação fiscal com o aporte estimado de no mínimo R$ 20 bilhões, a serem
levantados com a venda de ações de controle da empresa, sendo criada uma golden
share, para a União ter poder de veto em qualquer decisão estratégica. O mesmo foi
feito na venda da Embraer e da Vale. Se a Eletrobras não fosse estatal no governo
Dilma, a presidente não colocaria a empresa em enormes dificuldades, ao intervir
no setor por meio da MP 579, em 2012, forçando a redução das tarifas em 20% e
também mexendo nas concessões, com nítidos objetivos populistas e eleitoreiros.
Prejuízos das elétricas terminaram no Tesouro e no bolso da população. Esta é outra
grande vantagem da desestatização, para além do aporte de dinheiro ao Tesouro na

405
venda da empresa: tira dos cofres públicos o enorme custo de ter de sustentar
companhias inviáveis e resgatar outras em momentos de dificuldades, muitas vezes
criadas pelos próprios governantes. E ainda permite redução de custos, logo, de
tarifas. O modelo de privatização da Eletrobras, pela venda de ações, pode muito
bem ser usado para desestatizar a Petrobras, por exemplo. O campo a explorar na
mais do que imperiosa redução do tamanho do Estado-empresário é extenso. Basta
considerar que recente levantamento oficial contabilizou 159 estatais federais ativas
— as 220 inativas também sobrecarregam o Erário —, das quais só 89 têm
orçamentos próprios de investimento. Ou seja, 70 dependem abertamente do
Tesouro. A crise tem permitido que a sociedade entenda por que paga tanto imposto,
e mesmo assim os déficits públicos não zeram. 16

As teses de falência do setor público são novamente imputadas pelo jornal O Globo à estatais
como a Eletrobrás e suas subsidiárias e, de acordo com o periódico, a única solução para esse “grande
problema” estaria na privatização desta relevante empresa pública nacional. Para O Globo:

Combalida, a Eletrobrás não consegue arcar com os investimentos em energia de que o país
precisa. O sufoco fiscal em que se encontra o governo — o déficit primário continua acima
dos 2% do PIB, desde a saída de Dilma Rousseff, responsável pela crise — é forte mola
propulsora para levá-lo a programar a privatização da Eletrobras, bem como acelerar a
licitação de concessões (estradas, aeroportos, por exemplo), entre outras medidas. A questão
é que não se trata apenas de uma oportunidade de o Tesouro obter, estima-se, algo entre R$
20 bilhões e R$ 30 bilhões. Para efeito de comparação, a meta para este ano e o que vem é
de déficits de R$ 159 bilhões. Uma ajuda nada desprezível. Até mais do que isso, privatizar
a Eletrobrás é essencial para preservar o setor elétrico e garantir os investimentos
necessários a fim de garantir o fornecimento de energia que sustente o crescimento da
economia, sem risco de apagões. Também é fato que a barbeiragem cometida pela ainda
presidente Dilma Rousseff, tida como competente conhecedora do sistema elétrico brasileiro,
desestabilizou de tal forma a estatal que, por ironia, ajudou a inviabilizá-la de vez como
estatal. Ao baixar a Medida Provisória 579, em 2012, para reduzir na base do voluntarismo
a tarifa de luz em 20% — com evidente objetivo político-eleitoral —, o equilíbrio do sistema
foi rompido. Com ideia fixa na “modicidade” tarifária — fez o mesmo no pedágio em
estradas licitadas, e obras não foram feitas —, o governo Dilma, por aquela MP, estabeleceu
regras para antecipar a renovação de concessões ainda a vencer. O princípio era que usinas
amortizadas poderiam cobrar tarifas mais baixas. A filosofia intervencionista, porém, nunca
consegue manejar com todas as variáveis. E assim, elétricas públicas de estados (Cesp, de
São Paulo; Cemig, de Minas; Copel, do Paraná) não aceitaram as condições da MP, enquanto
as estatais federais foram obrigadas a aderir ao novo regime. O autoritarismo é intrínseco ao
dirigismo. Veio um longo período de seca, e desmontou de vez o sistema de Dilma. Nem
toda a energia passou a ser produzida sob a regras que queria o governo, que enquadrou as
usinas incluídas nas novas regras num sistema de cotas, em que a energia era vendida a preços
baixos. Sem considerar variações de custos das hidrelétricas, por exemplo. Um modelo típico
do planeamento centralizado. O longo período de seca na hidrologia desmontou o castelo de
cartas, montado bem no estilo lulopetista. O parque de termelétricas, principalmente a gás e
óleo, de custo mais elevado, foi acionado e pulverizou a “modicidade”. Dilma continuou
tentando, e o Tesouro foi convocado a subsidiar parte do aumento de custo. No fim, restou
um tarifaço, para equilibrar o sistema no lado financeiro. Sem considerar rombos em
empresas, com a volta dos “esqueletos”. Os estragos do dirigismo deixaram heranças, uma
delas, a impossibilidade de uma Eletrobras combalida arcar com os investimentos em energia

16 Editorial. A privatização da Eletrobrás é o lado positivo da crise. O Globo. 23/08/2017


(http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2017/08/privatizacao-da-eletrobras-e-lado-positivo-da-crise.html)

406
de que o país necessita. Vendê-la é a única alternativa sensata. Também para melhorar a
gestão do setor e livrá-lo de delírios de poderosos de turno. Como aconteceu no lulopetismo.17

A campanha do jornal O Globo em torno da privatização da Eletrobrás e de suas subsidiárias


é tamanha que o periódico chegou a publicar um editorial com explícitas cobranças a partidos
historicamente aliados dos Marinho como o DEM e o PSDB em torno da necessidade do
comprometimento dessas legendas com a agenda privatista em torno da Eletrobras. O Editorial do
periódico das Organizações Globo afirmava que:

Resistência de frações desses partidos com respeito à redução do peso do Estado vai
contra os programas fundadores de suas agremiações. Há 29 anos, ainda na transição
do regime autoritário para a democracia, políticos identificados com a
socialdemocracia e o liberalismo exercitaram a ousadia na formulação de um novo
projeto político para o país. Havia convergência sobre objetivos na reconstrução
nacional. O PSDB, por exemplo, apresentou-se contra o populismo personalista e o
autoritarismo concentrador do poder e da riqueza. “Longe das benesses oficiais, mas
perto do pulsar das ruas”, dizia no manifesto de fundação, em 25 de julho de 1988.
Entre os compromissos, alinhou a reforma da administração pública “para livrá-la
das práticas clientelistas e assegurar eficiência às empresas e órgãos estatais”. Já o
PFL reciclou-se na modernidade das ideias liberais, mudou o nome para Democratas
(DEM), em 2007, afirmando-se na luta contra o Estado “obeso”, como definiu à
época no manifesto de refundação: “Quando se incha a máquina pública faz-se a
alegria de uns poucos companheiros e renegam-se a qualidade do atendimento e o
respeito a milhões de cidadãos.” Precisamente por essas razões, é absolutamente
incompreensível e inaceitável a sucessão de condições que frações regionalistas
desses dois partidos tentam impor ao programa de privatizações e concessões,
principalmente em relação às subsidiárias da Eletrobras, como Furnas e Chesf. No
PSDB, a reação contrária à privatização da Eletrobras partiu da ala mineira,
comandada pelo senador Aécio Neves, afastado da presidência do partido e
investigado por corrupção. O porta-voz do retrocesso foi o deputado Marcus
Pestana, que preside o partido em Minas: “Furnas é um símbolo de Minas Gerais”.
Na sequência, insurgiu-se o deputado baiano José Carlos Aleluia, secretário
nacional do DEM: “Fui contra em 1997 e sou contra outra vez a privatização da
Chesf”. Logo, alinharam-se parlamentares da região Norte em defesa da retirada da

17 Editorial. Única alternativa. O Globo. 26/09/2017. (https://oglobo.globo.com/opiniao/unica-


alternativa-21852076)

407
Eletronorte da lista de privatizações. É crítica, insustentável mesmo, a situação da
Eletrobras. São quase cinco anos seguidos de prejuízos (acima de R$ 30 bilhões) e
perdas operacionais significativas (R$ 20,5 bilhões em 2015). É o resultado de
décadas de ingerência política indevida, corrupção e opacidade nos negócios desse
grupo de 15 estatais e duas centenas de subsidiárias — a maioria, estabelecida à
margem do controle público. Tudo agravado por Dilma e sua medida provisória. A
reação só confirma a urgência da retirada do Estado de uma área dominada por
interesses de minorias privilegiadas, ávidas por empregos e remunerações
extraordinárias, como se comprova na Eletronorte, e por negócios obscuros, como
evidenciam os inquéritos sobre corrupção. A oposição à privatização emergente em
algumas alas do PSDB e do DEM configura uma traição de fato aos princípios
fundacionais dos partidos, que deveriam representar fielmente a social-democracia
e o liberalismo modernos.18

O Globo também defendeu e insistiu com a tese da desestatização de outro setor estratégico
e básico para qualquer país: a gestão da água e do esgoto. O periódico afirmava que era necessário
maior eficiência e menores custos na gestão hídrica e do saneamento e “a forma mais rápida e prática
de se obter esse resultado” seria “abrir a exploração de tais serviços para a iniciativa privada”. Por
exemplo, ao falar da Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE) em seus
editoriais da década de 1990, o jornal defendia a privatização da empresa (mesmo sabendo do fato
de que a empresa estava na lista das maiores empresas do Brasil em faturamento) e afirmava que “a
abertura do mercado” significaria “simultaneamente um reforço expressivo de caixa para o Tesouro
estadual. (...) Por outro lado”, também haveria “uma multiplicação dos investimentos que se fazem
necessários para que toda a população fluminense seja atendida por um bom serviço de
abastecimento de água e coleta de esgoto doméstico”. A privatização da companhia iria “trazer
grandes benefícios ao consumidor, seja na qualidade dos serviços” ou com “a redução de tarifas”.
Além de salientar uma suposta ineficiência da CEDAE, o jornal O Globo também ressaltava que a
companhia estatal era responsável por um grande desperdício de água e, nesse sentido, a privatização
solucionaria todos esses problemas. 19 De acordo com O Globo:
No edital de privatização da Cedae, o Governo do estado reconhece que entre a
estação de tratamento e a torneira do consumidor perde-se mais de 50% da água
tratada pela empresa. (...) Esse índice de perdas justifica sozinho a privatização da
Cedae. (...) Não há explicação razoável para esse quadro. As tarifas de água e
esgoto estão em patamar bastante elevado (...) Boa parte da Cedae está amortizada

18 Editorial. PSDB e DEM precisam apoiar e defender privatizações. O Globo. 27/08/2017.


(http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2017/08/psdb-e-dem-precisam-apoiar-e-defender-privatizacoes.html)
19 Editorial. Somar esforços. O Globo. 09/08/1996. p. 6; Editorial. Superar os impasses. O Globo.
22/02/1998. p. 6.

408
e depreciada. (...) A verdade é que a empresa tem sido historicamente vitimada pela
manipulação política de diferentes administrações estaduais. Mantendo-se como
estatal, estará certamente condenada a perpetuar as deformações. A privatização
é a opção mais prática para salvar e dinamizar a empresa. (...) A privatização da
Cedae é absolutamente necessária para assegurar a toda população do Estado do
Rio de Janeiro serviços de saneamento básico de boa qualidade.20

Vale destacar que a CEDAE permanece sendo uma empresa lucrativa (em 2015 a Companhia "teve
receita bruta de R$4,4 bilhões, e lucro líquido de R$ 248,8 milhões") e era uma das poucas estatais
do Rio de Janeiro que ainda não foram efetivamente privatizadas (A proposta de privatização da
companhia desde o ano de 2016 voltou a ser discutida pelo Poder Público do Rio de Janeiro, e no
mês de fevereiro de 2017 foi aprovada pela Assembleia Legislativa do estado). Contudo, o jornal O
Globo continua insistindo com a tese de que a privatização da empresa é fundamental para o estado:
em 2016 e 2017 o periódico das Organizações Globo publicou diversos editoriais defendendo a
desestatização da CEDAE, chamada pelo jornal de “gigantesca e ineficiente estatal do saneamento
e de fornecimento de água”. O jornal afirmou que “o modelo de privatização” da CEDAE é o melhor
“caminho para o estado” pois “as vantagens desse modelo são inequívocas”, a melhora e
universalização do serviço prestado pela companhia seria mais “factível com o motor da iniciativa
privada”, ou seja, segundo O Globo, é preciso “aproveitar o dinamismo e a forças dos investimentos
de empresas privadas” também na gestão da água e do esgoto. Ainda em 2016, O Globo já afirmava
que “Temer deveria incluir esta privatização como cláusula nos contratos da renegociação da dívida
fluminense” (o que de certa forma – de fato – acabou acontecendo). Também ressaltava que “críticas
à privatização nesse setor são de fundo ideológico. O resultado” de uma possível desestatização
seria “irrefutável”. Em fevereiro de 2017, na véspera da data em que a votação sobre a privatização
da CEDAE aconteceria na Alerj (a data foi adiada) – O Globo publicou um editorial intitulado
“Gestão ineficiente” em que critica a companhia e afirma que: “Em meio à maior crise financeira
do estado, a privatização da Cedae é contrapartida do Rio para obter o socorro financeiro da União,
mas é também a oportunidade de universalizar o fornecimento de água e ampliar a coleta e o
tratamento de esgoto no estado, reduzindo os índices de poluição em praias, rios e lagoas. E, quem
sabe, alçar a capital fluminense a uma posição mais favorável no ranking de saneamento”. Após a
aprovação, promovida pela Alerj, da proposta de privatização da CEDAE, o jornal O Globo publicou
um editorial intitulado “Cedae precisa ser apenas início do ajuste” em que afirmou que “a venda da
companhia é condição fundamental para tirar o Rio da situação de calamidade financeira que se
encontra” e ressaltou, ainda, que só a privatização da CEDAE não resolveria os problemas

20 Editorial. Água pelo ralo. O Globo. 06/08/1998.p. 6; Editorial. Superar os impasses. O Globo.
22/02/1998. p. 6. (grifo meu).

409
fluminenses, nesse sentido, o governo estadual deveria promover “um ajuste rigoroso nas contas do
estado”.21

Considerações Finais

Como pudemos observar através desta série de publicações explicitamente opinativas do jornal O
Globo acerca da agenda de privatizações no Brasil, fica evidente o comprometimento insistente do
periódico principal da família Marinho na defesa contundente da ampla agenda privatista no país.
Ao longo da década de 1990, o jornal O Globo publicou diversos editoriais e matérias em que não
só defendia, mas também, cobrava a consolidação e aceleração do processo de privatização das
empresas e serviços públicos nacionais. O jornal, ao longo desse período histórico, defendeu a
desestatização de siderúrgicas, das telecomunicações, setor financeiro, água, energia, e até mesmo
da Petrobrás.
A agenda de privatizações de fato foi amplamente implementada no Brasil durante a década de 1990,
sob as gestões neoliberais de Fernando Collor, Itamar Franco e, sobretudo, Fernando Henrique
Cardoso.
Após o golpe parlamentar de 2016, emergiu um governo comprometido com a agenda neoliberal de
encolhimento e precarização do Estado e de corte de direitos sociais e trabalhistas. O jornal O Globo
nesse cenário voltou a defender mais incisivamente a agenda neoliberal, principalmente no que diz
respeito à política de privatizações.
O jornal O Globo atravessou o século e chegou à 2017 repetindo insistentemente sua linha discursiva
pró-privatizações amplamente difundida na década de 1990. A postura do jornal e as narrativas
publicadas pelo periódico ajudam a corroborar a tese do comprometimento da família Marinho com
a construção de um consenso positivo em torno da agenda neoliberal do Brasil. Ontem e hoje.

21 Editorial. A melhor alternativa de privatização da Cedae. O Globo.


24/04/2016(http://oglobo.globo.com/opiniao/a-melhor-alternativa-de-privatizacao-da-cedae-19148701);Editorial.
Caminho certo. O Globo. 29/08/2016 (http://oglobo.globo.com/opiniao/caminho-certo-20002242); Editorial. Gestão
ineficiente. O Globo. 13/02/2017 (http://oglobo.globo.com/opiniao/gestao-ineficiente-20910753); Editorial. Cedae
precisa ser apenas início do ajuste. 22/02/2017 (http://oglobo.globo.com/opiniao/cedae-precisa-ser-apenas-inicio-do-
ajuste-20961101). Jornal O Dia. 21/02/2017. p. 3.

410
Na imprensa, uma trincheira: a coluna "Plantão Militar" e as reivindicações profissionais e
políticas de sargentos e praças (1957-1964)

Bruno Guedes de Carvalho 

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise sobre a coluna "Plantão
Militar", assinada pelo jornalista e sargento reformado do Exército João Batista de Paula, e editada
por oito anos no jornal Última Hora, entre a segunda metade da década de 1950 e a primeira de 1960.
Com o objetivo de abordar questões e problemas relativos às Forças Armadas, com especial atenção
às demandas por melhorias profissionais e problemas de representatividade política de sargentos e
praças, a iniciativa de Última Hora e de seu colunista foi pioneira na imprensa brasileira. "Plantão
Militar" foi fruto direto da trajetória biográfica e profissional de seu colunista no tratamento de
diversas questões que afetavam a vida cotidiana destes militares – que, dada sua recorrência, se
tornaram verdadeiras campanhas visando sua plena consecução.

Palavras-chave: sargentos – jornal Última Hora – coluna "Plantão Militar"

Abstract: This paper aims to make a brief analysis of the "Military Duty" column, signed by the
journalist and retired army sergeant João Batista de Paula, and edited for eight years in the newspaper
Última Hora, between the second half of the decade 1950 and the first in 1960. In order to address
issues and problems related to the Armed Forces, with special attention to the demands for
professional improvements and problems of political representativeness of sergeants and other low
scales of the military hierarchy, such as cables and soldiers, the initiative of Última Hora and its
columnist was a pioneer in the Brazilian press. "Military Duty" was a direct result of the biographical
and professional trajectory of his columnist in the treatment of various issues that affected the daily
life of these soldiers, who, given their recurrence, became true campaigns that aimed their full
achievement.

Keywords: seargeants – newspaper Última Hora – column "Military Duty"

Algumas considerações teóricas:

Em estudo apresentado por Ângela de Castro Gomes acerca das produções acadêmicas sobre a
história política no Brasil, bem como suas fronteiras teórico-metodológicas, a autora mostra a
necessidade de se enfatizar "(...) certos temas de análise, o que pode se traduzir pela emergência de
"novos" objetos e métodos, ou pelo retorno de "velhos" objetos, revigorados por novas abordagens."2
Diante do exposto, o trabalho de análise histórica do crescimento gradativo de um fenômeno como
as lutas políticas e institucionais dos militares subalternos em prol de suas demandas vem cumprir o

1 Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:


bruguevalho78@gmail.com
2 GOMES, Ângela de Castro. "Política, História, Ciência, Cultura, etc.". In: Estudos Históricos, vol. 9,
ANPOCS. n.o 17. 1996, p. 65.

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objetivo de travar contato com um tema que apenas em tempos mais recentes foi elencado como
ponto passível de ser estudado pela historiografia atual.
Ao elegermos os militares subalternos como objetos de análise histórica, com primazia para
questões referentes à esfera política, tomada aqui sob contornos mais amplos, procuramos resgatar a
voz de um setor social que, em virtude de sua trajetória de ação institucional, sofreria, por excelência,
os primeiros expurgos empreendidos após a outorga do golpe civil-militar em 1964. Nesse sentido,
ao se vislumbrar tal objetivo nos estudos históricos acerca da ação político-institucional dos militares
de baixa patente, pontificamos, como meta mais geral, ainda segundo o que é colocado por Ângela
de Castro:

"(...) Situar os 'estudos políticos' (...) pensando-os como contribuições que


alargaram a concepção da política para além da esfera institucional /
administrativa e que contemplaram, de forma muito clara, a ação do Estado e de
outros agentes coletivos até então praticamente ignorados".3

De maneira geral, os militares subalternos, até mesmo em função de sua condição de membros
integrantes da Instituição Militar, e cientes das prerrogativas que isso acarretava, muitas das vezes,
em suas demonstrações político-institucionais de força, agiam por canais "extraoficiais" somente
conhecidos pelos mesmos (como, por exemplo, suas entidades associativas). O conhecimento da
lógica organizativa e infraestrutural da Instituição lhes permitia agir no intuito de fazer valer, mesmo
que por ações e canais "indiretos", as suas demandas e reivindicações políticas. Com relação a esse
tipo de ação política por "vias indiretas", escreveu Vavy Pacheco Borges: "(...) A noção do político
se amplia (...) [ao] incluir o comportamento dos cidadãos diante da política, a evolução de suas
atividades ao tomarem posição (...), para intervir nas áreas em que se decidem seus destinos". 4
E tal postura se verifica de sobremaneira na organização militar, pois que esta possui um alto grau
de ingerência sobre a vida cotidiana daqueles que integram seus quadros institucionais, chegando
mesmo a construir uma espécie de "marca indelével" entre seus indivíduos. Marca que lhes permitiam
traçar, com graus consideráveis de autonomia, planos de ação que são de suma importância por
representarem a busca por uma lógica existencial estritamente militar.5 Os militares têm em seus dois
princípios basilares (o binômio hierarquia + disciplina) o ponto de conflito com eventuais
motivações para o envolvimento político de indivíduos inseridos na sua condição existencial. E,

3 Ibidem, p. 67.
4 BORGES, Vavy Pacheco. "História e política: laços permanentes". Revista Brasileira de História.
Política e Cultura. Editora Marco Zero / ANPUH, vol. 12, n.o 23 / 24. 1992. p. 16 (adendos do autor).
5 Conforme definição dada por Erwin Goffman para as chamadas "instituições totais". Citado em
CARVALHO, José Murilo de. "As Forças Armadas na Primeira República: o poder desestabilizador". In: FAUSTO,
Boris. História Geral da Civilização Brasileira. 2.a edição. 1978. São Paulo. Editora Difel. Tomo III: O Brasil
Republicano, vol. 2: Sociedades e Instituições, 1889-1930. pp. 181-234.

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quando há premissas políticas coincidentes entre militares e civis, estas ocorrem mais por injunção
de conjunturas políticas muito específicas de uma ou outra fração social do que uma nítida aliança
política entre ambos.6 A intromissão de aspectos políticos no cotidiano da caserna põe em risco a
lógica existencial hierárquica e disciplinar na Instituição Militar.
Para os propósitos deste trabalho, optamos por abordar a questão das demandas profissionais
e políticas dos sargentos, esclarecidas ao início da exposição, e veiculadas constantemente em
"Plantão Militar", sob o prisma teórico do conceito de "cultura política", tal como defendido por
autores como Serge Berstein e Jean-Francois Sirinelli. Ambos são historiadores pertencentes a um
grupo externo ao movimento dos Annales, tradicionalmente pouco receptivo à história política, e
que, sob a liderança informal de René Remond e sua coletânea Por Uma História Política (1988),
se tornaram referências importantes para compreender os caminhos trilhados pela "nova história
política", situando nesse processo os estudos de cultura política. O novo frescor teórico vivenciado
pela História Política fez retomar a necessidade de utilização de fontes periódicas pelos historiadores,
não apenas por conta de sua pretendida função de registro dos fatos cotidianos, mas também em
função da historicidade de aspectos importantes relativos ao jornalismo impresso. Ao fazer uso de
periódicos como fontes históricas, os pesquisadores do político passaram a atentar para aspectos
relacionados à sua materialidade e suporte, que evocam certas práticas de leitura; as condições
técnicas de produção e averiguação do que sejam, em certos contextos, fatos noticiáveis; e,
principalmente, sua função social. 7
O trabalho com jornais e revistas de periodicidade variável, destinados ao grande público,
supõe alguns cuidados teórico-metodológicos que devem ser considerados pelo historiador: 1º) – Os
fatores que levam periódicos a destacar e publicizar determinados fatos, transformando-os em
notícia; 2º) – O teor e significado dos discursos presentes naquilo que este noticia, e as relações
mantidas com seu pretendido público alvo; 3º) – A identificação dos grupos responsáveis por sua
linha editorial, sua rede de colaboradores e os critérios que pontuam para escolher os títulos e o
conteúdo programático de seus textos; 4º) – O esclarecimento quanto a seu nível de vinculação com
grupos de interesse políticos e econômicos; 5º) – O confronto com outros tipos de fonte, visando
compreender seus processos de organização, lançamento e manutenção; e 6º) – O uso dos periódicos
a partir de uma análise circunstanciada de seu lugar de inserção, abordando-os, ao mesmo tempo,
como fonte e objeto de pesquisa historiográfica, devidamente submetidos ao crivo crítico do
historiador.8

6 Idem, p. 233.
7 LUCA, Tania Regina de. "História dos, nos e por meios dos periódicos". In: PINSKY, Carla Bassanesi
(org.) Fontes Históricas. 3ª edição. São Paulo: Contexto, 2011.p. 132.
8 Ibdem, pp. 140-141.

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Portanto, os sargentos e praças das Forças Armadas, suas reivindicações e lutas, quer
transcorressem por vias institucionais ou pelo desafio franco e aberto à Instituição Militar, são
compreendidas, segundo estes parâmetros, em adequação ao conceito de "espelhos deformantes",
proposto por Alain Rouquié. Segundo a proposição deste autor – que é válida também para os demais
braços armados da Instituição Militar:

"O Exército brasileiro não é somente o que está em jogo e o campo de luta dos
conflitos civis; ele também é um espelho das tensões da sociedade, mas um espelho
deformador. (...) As linhas de cisão interna [que perpassam os escalões hierárquicos
tanto horizontal quanto verticalmente] procedem de mecanismos complexos que de
modo algum podem se reduzir ao simples jogo de cooptação ou de aliança com
setores econômicos ou políticos civis. Os militares naturalmente se dividem em
função dos grandes problemas nacionais, mas segundo procedimentos próprios e
com consequências singulares ligadas às diversas pressões a que são submetidos e
aos múltiplos papéis que desempenham".9

Os militares subalternos, para o recorte cronológico proposto à presente pesquisa, são


compreendidos como vetores de releitura e resignificação de variadas culturas políticas em
circulação na sociedade brasileira durante o período ora em estudo (trabalhismo, nacionalismo, etc.).
Estamos, portanto, nos referindo a um conjunto de valores, tradições, práticas e representações
políticos partilhados por grupos políticos e sociais diversos, que encontravam na extensão de direitos
básicos da cidadania às camadas populares brasileiras seu ponto de intersecção e objetivo comum.
Elementos que expressam uma identidade coletiva e fornecem leituras comuns do passado, bem
como inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro, conforme nos propõe Rodrigo
Motta.10
Ao se analisar a constituição de uma cultura política, Angela de Castro Gomes afirma ser
necessário considerar o tempo demandado por este processo, já que este conceito abrange fenômenos
políticos de média e longa duração. O que, no entanto, não o torna imune à ocorrência de impulsos
transformadores – muito embora marcados pela lentidão e por não serem nem casuais, tampouco
dependentes da vontade de outrem. Reiterando a insistência dos historiadores quanto à diversidade
de culturas políticas existentes numa sociedade, a autora pontua que:

"(...) o processo de constituição de culturas políticas, e esse é o ponto, incorporaria


sempre uma leitura do passado – histórico, mítico ou ambos –, que conota positiva
ou negativamente períodos, personagens, eventos e textos referenciais. Essa leitura
do passado também envolveria um "enredo" – uma narrativa – do próprio passado,

9 ROUQUIÉ, Alain (coord.) Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 20
(Adendos do autor).
10 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. "Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia". In: Culturas Políticas na História: Novos Estudos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. p. 21.

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podendo-se então conformar uma cultura histórica articulada a uma cultura
política. Estudar uma cultura política, sua formação e divulgação (...) seria
igualmente entender "como" uma interpretação do passado (do presente e do
futuro) foi produzida e consolidada através do tempo, integrando-se ao imaginário
ou à memória coletiva de grupos sociais, inclusive os nacionais." 11

A utilização do conceito de "cultura política", contudo, requer alguns cuidados. Ciro Flamarion
Cardoso, por exemplo, acende o alerta sobre a questão, enxergando uma relação antonímica entre as
ideias de representação e realidade social presente nos argumentos de Serge Berstein, quando este
autor se dedica a analisar os processos históricos que levaram ao ocaso da cultura comunista na
França ao longo do século XX. Para o historiador francês, a contradição da cultura política comunista
com a realidade objetiva vivida ao longo desse período é fator explicativo de sua gradual perda de
credibilidade e protagonismo na sociedade francesa, sobretudo em contextos considerados
traumáticos ou críticos. Ciro Cardoso, ao contrário, vê as representações coletivas como elementos
tão reais quanto quaisquer outros que estão presentes na realidade natural e social, não enxergando
nenhuma mútua exclusão entre estas duas ideias. Portanto, contrariando Berstein, que pontua a
impossibilidade de sobrevivência indefinida de uma cultura política quando em forte contradição
com uma dada realidade, Ciro Cardoso afirma que a realidade não pode ser evocada apenas como
chave explicativa para momentos de trauma ou ruptura - ou, em outros termos, para se compreender
a origem ou desaparecimento de determinadas culturas políticas. Sob pena de que perca todo sentido
o propósito de Serge Berstein: encarar a cultura política, entendida como a estruturação de
representações sociais e sua entronização nos indivíduos, e como explicação mais satisfatória sobre
comportamentos políticos.12
Para que os propósitos da coluna "Plantão Militar" possam ser devidamente compreendidos, é
preciso, primeiro, analisá-la como parte do universo editorial em que era escrita e veiculada. Última
Hora, empreendimento jornalístico mais ambicioso de seu redator-chefe, Samuel Wainer, foi fruto
da notoriedade adquirida junto ao grande público, bem como o prestígio que adquiriu após a vitória
eleitoral de Getúlio Vargas em 1950. Sobre a criação deste diário, um aspecto político importante
precisa ser realçado:

"(...) Ao incentivar e favorecer a criação do inovador jornal de Samuel Wainer,


Vargas interviera diretamente no mercado, ou campo jornalístico, não apenas
privilegiando a ação de um jornalista particularmente bem dotado, como

11 GOMES, Angela de Castro. "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo". In: ABREU, Martha.
SOIHET, Raquel. e GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / Faperj, 2007, p. 48.
12 CARDOSO, Ciro Flamarion. "História e poder: uma nova história política?" In: CARDOSO, Ciro
Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. P. 52.

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subvertendo as regras de acesso ao fechado clube dos proprietários de jornal, dos
fazedores de notícia". 13

Ilustrando as inúmeras pesquisas que Samuel Wainer procedera, durante anos, em jornais e
revistas de outros países, em busca de formas inovadoras de apresentação dos fatos que eram notícia
ao seu público leitor, Última Hora trazia um tipo de configuração, até então, sem precedentes no
jornalismo impresso brasileiro. Além de contar com diversos colaboradores, que abordavam temas
sobre os quais os outros periódicos mostravam-se indiferentes (como as coberturas esportivas – em
especial as voltadas ao futebol – e as matérias policiais, por exemplo), Última Hora possuía um
espaço específico para a publicação de queixas e reivindicações populares (em seu 2º caderno), que
se mesclavam às notas de colunismo social. A miríade de assuntos abordados, cada qual, em colunas
específicas, ilustrando a diversidade própria dos diversos componentes de sua redação, demonstram
o grande diferencial de Última Hora em relação aos demais periódicos que, a partir da publicação
de seu primeiro número, em 12 de junho de 1951, lhe fariam encarniçada concorrência e oposição
política: seu ecletismo temático.
Ecletismo que, cabe a ressalva, não implicou em plena liberdade para seus colunistas. Última
Hora era, em sua essência, um empreendimento de cunho jornalístico e empresarial, com explícitas
vinculações políticas de apoio ao segundo mandato de Getúlio Vargas – o que, necessariamente,
pressupunha a veiculação dos valores e representações defendidos pelo governo em suas páginas.
Esse vínculo fazia com que os interesses do governo getulista se tornassem, por tabela, interesses da
empresa de Samuel Wainer. Logo, sua linha editorial e posicionamento político encontravam na
defesa do getulismo, do nacionalismo e do trabalhismo o norte magnético pelo qual suas perspectivas
de ação eram guiadas, bem como uma clara demarcação de limites na liberdade de seus colunistas;
limites reiteradamente manifestos em Última Hora desde a sua primeira edição.14
Para além das novidades visuais e temáticas, Última Hora também trazia como elemento
inovador e diferenciador a abordagem das notícias feita a partir de uma linguagem próxima à dos
setores sociais mais humildes; a estes dedicando, ao mesmo tempo, textos produzidos por jornalistas
e intelectuais, que se preocupavam em trazer à baia assuntos de interesse popular (futebol, notas
policiais, movimento sindical, política nacional, etc.). Mais do que isso: Última Hora procedeu a um

13 ABREU, Alzira Alves de & LATTMAN-WELTMAN, Fernando. "Fechando o cerco: a imprensa e a


crise de agosto de 1954". In: Vargas e a Crise dos Anos 50. Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará. 1994, p. 29.
14 Logo na primeira página da primeira edição de Última Hora, está a íntegra uma carta de Getúlio Vargas,
felicitando Samuel Wainer pela criação do diário. Um dos trechos dessa é lapidar quanto ao propósito do governo em
manter relações tão estreitas com o jornal: "O jornalismo desempenha uma grande missão social, que é a de orientar a
opinião pública, auxiliando eficientemente o Governo, hoje mais do que nunca. Os problemas sociais e políticos são de
tal modo complexos, que só um contato vivo, perene e fecundo com a opinião pública de todo o país pode dar luzes e
força ao Governo para enfrentá-los e resolvê-los." Última Hora, 12 de junho de 1951, 1.ª página.

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resgate de elementos que eram identificados com o "povo", com o "popular", não apenas no nível
vocabular, como também no que tange ao seu dia-a-dia, transformado em principal fonte de notícias
e grande "filão" jornalístico do diário. Segundo Fátima Cristina Campos, apesar de um universo
variado de colunistas e jornalistas, como parte integrante da redação de Última Hora, cada um deles
seguia critérios para a produção do jornal muito bem definidos, cujo fio condutor era a defesa do
getulismo, do nacionalismo e do reformismo. A relação de amizade que Samuel Wainer desenvolveu
com Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que partia de uma clara identificação do jornalista com os
planos de justiça social pretendidos pelo presidente eleito, representou-lhe também uma
oportunidade única para consolidar sua realização como figura de relevo do jornalismo brasileiro. 15

Um sargento e sua trincheira: João Batista de Paula e a coluna "Plantão Militar":

Natural de Guareí, cidade do interior de São Paulo, o término dos estudos e o desejo de "ganhar
a vida" na cidade grande fizeram com que, ao final da década de 1930, o jovem João Batista de Paula
saísse em busca de emprego na capital paulista. Depois de fazer "bicos" como engraxate e promotor
de vendas, por intermédio de um amigo próximo ao interventor de São Paulo, Adhemar de Barros,
consegue ser indicado para ocupar um cargo público na prefeitura paulista. Porém, por contar 18
anos à época, e não possuir o Certificado de Reservista, não pode assumir a pretendida vaga no
funcionalismo público. A procura pelo requerido documento, após falsificar a assinatura do pai, foi
a motivação para sua entrada nas fileiras do Exército, momento que marcaria e restante de sua. De
acordo com suas memórias, a entrada no Exército foi uma experiência marcante, tanto no que diz
respeito ao aprendizado de valores que levaria consigo para sempre, baseados na hierarquia e na
disciplina, quanto pelo testemunho das diferenças e injustiças com que os escalões mais baixos da
hierarquia militar eram tratados pelo alto comando das Forças Armadas. 16
A volta ao Brasil dos contingentes da Força Expedicionária Brasileira, após o fim da Segunda
Guerra Mundial, foi, de acordo com Batista de Paula, o ponto de partida para o que considera como
um processo de posicionamento e ação políticos mais explícitos dentro das Forças Armadas.
Processo cujo mote principal de discussões, feitas não apenas dentro dos quarteis como também
espaços de convívio como o Clube Militar, orbitavam em torno do problema da assistência

15 CAMPOS, Fátima Cristina Gonçalves. Visões e Vozes. O governo Goulart nas páginas da Tribuna da
Imprensa e Última Hora. UFF. Niterói, 1996 (Dissertação de Mestrado). pp. 69-71.
16 SANTOS, Andréia Paula dos. À Esquerda das Forças Armadas Brasileiras. História oral de vida de
militares nacionalistas de esquerda. São Paulo: USP-FFLCH (Dissertação de Mestrado). 1998. pp. 376-377.

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governamental aos ex-combatentes, e que pareciam encontrar no anticomunismo o seu denominador
comum. Fruto direto da reação do comando das Forças Armadas ao levante comunista de 1935, a
imputação de "comunismo" como pecha acusatória era, invariavelmente, levantada pelos
comandantes contra seus subordinados sempre que alguma escaramuça pusesse em questão o
binômio hierarquia + disciplina, valores caros às Forças Armadas. Segundo o historiador João
Roberto Martins Filho, a repressão aos movimentos comunista e integralista fez com que, uma vez
imposta a ditadura estadonovista em 1937, Estado e Forças Armadas se tornassem amalgamados,
tendo o Exército o papel de mantenedor da ordem interna e fiador da política industrialista nacional.
Protagonismo político que seria reificado ao fim da Segunda Guerra Mundial: a pressão dos ministros
militares levou ao fim do Estado Novo em 1945; a Instituição Militar tornou-se a principal avalista
das tensões advindas à manifesta vontade de diversos grupos sociais – como o próprio Partido
Comunista – pela continuidade de Getúlio Vargas no poder. Simultaneamente, o cenário
internacional bipolar próprio do início da Guerra Fria agravaria as inclinações anticomunistas dentro
alto comando das Forças Armadas, que vinham adquirindo crescente influência desde a repressão da
rebelião de 1935.17
Foi durante o fim da guerra que Batista de Paula, que já ocupava o posto de sargento, foi
designado para o Departamento Geral de Administração (DGA) no prédio do Ministério da Guerra,
na Central do Brasil, Rio de Janeiro. Testemunhando seu talento para a escrita, um amigo, Ariosto
Pinto, lhe convidou para tentar uma vaga na redação da revista Diretrizes, primeira atuação no ramo
jornalístico de Samuel Wainer anterior à criação do jornal Última Hora, e periódico que assumia
posição de oposição ao governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra. Começando como revisor, não
demorou muito até que Batista de Paula começasse a escrever suas próprias reportagens. Tempos
depois, mais uma vez por intermédio do mesmo Ariosto Pinto, conseguiria uma vaga na redação do
Diário Trabalhista, jornal que pertencia a Oliveira Rodrigues, genro do Presidente da República, e
de orientação diametralmente oposta à Diretrizes. Como o início de seu trabalho como jornalista se
deu enquanto ainda se ocupava de seus afazeres militares de sargento lotado em funções
administrativas no Ministério da Guerra, sua vida profissional tornou-se, durante alguns anos, não
só muito corrida como também marcada pela dubiedade no exercício jornalístico. Pela manhã dirigia-
se à redação de Diretrizes, jornal que fazia oposição ao governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra,
onde o atacava; ao meio-dia, apressava-se para chegar ao seu escritório no DGA do Ministério da

17 MARTINS FILHO, João Roberto. "Forças Armadas e política, 1945-1964: a ante-sala do golpe". In:
FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática.
Vol. 3. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. pp. 105-107.

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Guerra; ao final da tarde, corria até o Diário Trabalhista, jornal favorável ao Presidente Dutra –
onde, portanto, devia defendê-lo.
Foi na sua passagem pelo Diário Trabalhista que Batista de Paula iniciou a cobertura das
notícias do Poder Legislativo federal, onde teve oportunidade de manter contato próximo com
importantes lideranças parlamentares, experiência que se revelaria fundamental em suas incursões
futuras na atividade jornalística, e que se somaria ao contato constante que mantinha com destacados
chefes militares, por conta de seu trabalho no Ministério da Guerra. 18
Batista de Paula deu baixa no serviço ativo do Exército, passando para a reserva, no início da
década de 1950, exatamente no momento em que recebe convite de Samuel Wainer para integrar a
redação do recém-fundado jornal Última Hora. Para o editor-chefe do matutino, o contato constante
de importantes chefes das Forças Armadas, com traquejo e trânsito mesmo entre oficiais generais,
mais o contato e convívio com muito deputados federais e senadores, tornavam o nome de Batista
de Paula a escolha óbvia para a cobertura do setor militar, área considerada muito sensível e envolta
em melindres dentro e fora das Forças Armadas.
Porém, a cobertura sobre o setor militar feita por Batista de Paula não se deu em um ambiente
tranquilo: dado o notório apoio de Última Hora aos valores do trabalhismo defendido pelo governo
de Getúlio Vargas, oficiais generais politicamente identificados com as oposições conservadoras,
sobretudo a ala da União Democrática Nacional (UDN) vinculada a Carlos Lacerda, se mostraram
hostis, em reiteradas ocasiões, à atuação do "sargento jornalista". Preocupado com a possibilidade
de que tais hostilidades resultassem numa interdição do acesso do jornalista ao seu trabalho no
Palácio Duque de Caxias, Samuel Wainer, seguindo sugestão feita pelo Mar. Odylio Denys, que
também temia um possível rescaldo negativo da forte oposição à Última Hora nos meios militares,
decide criar um espaço exclusivo à abordagem das Forças Armadas, assinado diariamente por Batista
de Paula. Nascia, assim, a coluna "Plantão Militar".
A atuação jornalística de Batista de Paula, cobrindo para Última Hora as notícias referentes às
Forças Armadas e Auxiliares, foi marcada, justamente, pela quebra de tabus. Até então, era praxe
entre os poucos jornalistas que faziam a cobertura do delicado setor restringir suas notas aos
conteúdos que circulavam nos boletins oficiais – ou oficiosos – emitidos pelos comandos das
unidades e repartições militares espalhadas pelo país. Batista de Paula, ao contrário, produzia suas
reportagens nos próprios quartéis abordando toda gama de assuntos, inclusive os de teor político,
relativos aos militares. Para tanto, a título de fontes privilegiadas de informação, contava sempre
com o eficiente auxílio de oficiais, capitães em sua maioria, que trabalhavam como ajudantes-de-

18 SANTOS, Andréia Paula dos. Op. cit, p. 385.

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ordens de chefes militares e comandantes de tropa, bem como os sargentos motoristas de oficiais-
generais, que, por força de suas funções, mantinham com estes um convívio diário. Graça à ajuda
destes capitães e sargentos motoristas, Batista de Paula se informava sobre os fatos mais
importantes.19 A cobertura jornalística in loco realizada por Batista de Paula sobre o setor militar
também foi objeto de muitas críticas da parte de vários oficiais comandantes, que a enxergavam
como uma intromissão indevida sobre assuntos de veiculação, até então, muito restrita. Tal era o
caso, por exemplo, das promoções de patentes de oficiais superiores e de generais. Graças a sua
experiência na cobertura política junto ao Poder Legislativo federal, Batista de Paula mantinha-se
sempre a par dos debates e campanhas que demandavam melhorias nos vencimentos militares nas
três forças, aos quais conseguia acompanhar pessoalmente por conta do bom relacionamento que
construiu junto à maior parte dos parlamentares.
De forma geral, Batista de Paula iniciava todas as suas colunas diárias com um comentário
sobre um assunto de interesse dos militares – em sua maior parte, eram abordados temas relativos
aos problemas que afetavam alguns quartéis, tais como a qualidade da comida servida no racho, o
tratamento dispensado aos jovens recrutas convocados para o serviço militar, ou ainda críticas às
atitudes de algum chefe militar. Fosse positivo ou negativo, o teor desses textos temáticos,
publicados geralmente segundo uma distribuição de três a quatro colunas dentro do espaço físico que
Última Hora disponibilizava para sua publicação, provocavam pronta reação entre aqueles
mencionados em sua coluna. Segundo afirma, bastaram alguns números para que a "Plantão Militar"
se impusesse como leitura obrigatória em todos os escalões das Forças Armadas, permitindo a Última
Hora gozar de um pouco mais de respeito entre os militares, sobretudo entre os círculos dos oficiais,
que nutriam forte antipatia contra o vespertino. Uma das precauções que norteavam sua abordagem
jornalística do setor militar, fruto direto de sua formação castrense, marca indelével em sua
personalidade, era o de nunca divulgar assuntos secretos ou sigilosos que lhe chegassem ao
conhecimento, que fossem perigosos a ponto de representarem ameaças à segurança nacional ou
criarem problemas a alguns comandantes ou simples chefes de unidades. Outro cuidado constante
do colunista, próprio da lide profissional jornalística, era o de não revelar suas fontes de notícia, o
que lhe valia a constante confiança de seus informantes. 20
A influência da linha editorial adotada por Última Hora, de claro apoio às causas governistas,
com as quais o próprio colunista demonstrava reiterado alinhamento, convergem como dois
elementos fundamentais que irão dar substância às opiniões emitidas em "Plantão Militar" sobre as
Forças Armadas. O tipo de abordagem proposta por Batista de Paula gerava reações tanto de

19 DE PAULA, João Batista. Plantão Militar (Miscelânea). s/d, p. 9.


20 Ibidem, p. 30.

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admiração, da parte de seus partidários, quanto de repúdio, entre seus detratores. Estes se
congregavam, majoritariamente, entre as alas mais conservadoras da União Democrática Nacional
(UDN) e do Partido Social Democrata (PSD), sobretudo os grupos afeitos ao discurso golpista de
Carlos Lacerda, dentro e fora das Forças Armadas. O apelo constante das falas lacerdistas, enfáticas
quanto à necessidade de uma maior intervenção dos militares nos rumos do País, e em especial seus
efeitos no procedimento de determinados membros da Instituição, quer agissem sozinhos ou em
grupo, eram o alvo principal da crítica de "Plantão Militar" no campo das questões políticas. A
proeminência de assuntos políticos foi, gradualmente, se tornando cada vez mais constante nas
edições das colunas. Tendência que se fortaleceu no início da década de 1960, particularmente após
a tentativa de golpe advinda à renúncia de Jânio Quadros ao final de agosto de 1961, e reforçada, até
certo ponto, pelo próprio envolvimento de Batista de Paula com a atividade política. O colunista se
candidatou a deputado federal em 1958, não conseguindo, entretanto, se eleger; e foi nomeado como
delegado de imprensa da campanha presidencial do Mar. Henrique Teixeira Lott ao final de 1959.

O acesso ao círculo dos oficiais:

Um dos primeiros problemas abordados por "Plantão Militar", que afetava diretamente a vida
profissional de muitos subtenentes, suboficiais e sargentos das Forças Armadas e Auxiliares, dizia
respeito à falta de clareza das leis militares quanto ao acesso ao oficialato. Para Batista de Paula, a
importância das promoções dizia respeito ao reconhecimento da Instituição Militar do mérito de seus
integrantes no seu árduo exercício profissional cotidiano, "(...) para quem vive sob regime de
disciplina, em ambiente que o dever está acima de tudo, levantando-se às 4 ou 5 da madrugada e
passando o dia empenhado de corpo e alma na luta da caserna." 21
Ainda que o direito à estabilidade profissional, há muito almejado por estes militares, já estivesse
concretizado na Lei Ordinária n.º 2852 de 25/08/1956, este dispositivo legal, visando lhes garantir o
direito à promoção ao oficialato no serviço ativo, previa a criação de dois quadros de acesso: o
Quadro de Oficiais da Administração (QOA) e o Quadro de Oficiais Especialistas (QOE). O
problema residia no fato de que, pelo texto da Lei n.º 2852, a criação do QOA e do QOE dependia
da aprovação, pelo Congresso Nacional, e de posterior sanção presidencial, de lei específica que
regulamentasse as formas de acesso dos suboficiais, subtenentes e sargentos para tais quadros.

21 Última Hora, 20 de março de 1958, p. 12.

421
Já havia um projeto de lei tratando dessa questão, elaborado pelo próprio Ministro da Guerra do
Presidente da República Juscelino Kubitschek, Gen. Henrique Teixeira Lott, tramitando no
Congresso. Porém, de acordo com o colunista, este se encontrava engavetado em algumas das
comissões da Câmara dos Deputados.22 A partir de então, Batista de Paula dedicou-se a publicar
várias matérias sobre este problema em sua coluna. O problema da aprovação dos QOA-QOE
também explicita a importância adquirida pelo Ministro da Guerra, Gen. Henrique Teixeira Lott.
Para Batista de Paula, o titular da pasta da Guerra será visto como elemento fundamental para
conquistas profissionais e de cidadania dos sargentos e praças. Importância que, com o tempo,
transbordaria para a esfera política. No início de 1957, por exemplo, Batista de Paula vê justamente
no chefe do Exército tanto um referencial para a o bom andamento do governo de Juscelino
Kubitschek, quanto um exemplo moral de como outros militares, em cargos políticos, deveriam se
portar.

"O General Lott, que tanto se esforçou para que seus comandados não sofressem
todo o peso da lei do QAA, ao ponto de pedir ao Congresso a criação de mais dois
quadros para oficiais, bem que poderia entender-se com o líder [da Câmara Federal]
Vieira de Melo no sentido de ser votada em regime de urgência a lei que
regulamenta os citados quadros. Do contrário continuará o projeto a perambular
pelos órgãos técnicos como filho órfão, porque as proposições prorrogando
mandatos, permitindo a importação de automóveis e outras do mesmo tipo,
monopolizam sempre as atenções da maioria dos representantes do povo." 23

Um obstáculo que se revelou constante às aspirações dos suboficiais, subtenentes e sargentos


quanto à promoção no serviço ativo foi a ausência de uma lei de promoções específica para seus
círculos. A falta de um texto legal, de caráter geral, que criasse regras claras para que estes militares
chegassem ao oficialato fazia com que a regulação deste direito fosse ocasional, dependendo de
portarias e avisos ministeriais feitos, muitas vezes, com o claro objetivo de atender a interesses
particulares. O colunista cita sua própria carreira militar como exemplo claro dos efeitos desse
problema.24 Durante o tempo em que serviu como sargento do Exército, tendo realizado dois cursos
que equivaliam ao de comando de pelotão – o que, em tese, lhe garantiria promoção ao posto de 2º
Ten na ativa –, viu seu direito sendo posto de lado constantemente. Isso porque muitos de seus
colegas de patente, que realizavam cursos que não se equivaliam ao de comando de pelotões, tinham
tal equivalência decretada momentaneamente, mediante posteriores avisos vindos da pasta da
Guerra.25

22 Última Hora, 14 de fevereiro de 1957, p. 11.


23 Ibdem (adendos meus).
24 Última Hora, 27 de abril de 1957, p. 7.
25 Última Hora, 23 de março de 1957, p. 7.

422
Tal situação, para Batista de Paula, era incompatível com o grau de formação cultural que, por
força da modernização verificada então nas atividades militares, impunha-se como elemento
imperativo aos sargentos para a melhoria no desempenho de suas funções. Processo que não estava
restrito ao espaço e cotidiano dos quartéis, e realçava a importância cada vez maior dos sargentos
para a Instituição Militar. Procurava o colunista, dessa forma, justificar a necessidade de auxílio dos
chefes das Forças Armadas, a quem sargentos e praças deviam respeito e obediência, para a
concretização de suas demandas. O aspecto meritocrático, subjacente à profissionalização nas Forças
Armadas, é expresso em "Plantão Militar" como característica amalgamada ao esforço de
implemento intelectual como marca distintiva do sargento nas Forças Armadas contemporâneas. É
nesse sentido que o colunista fala sobre a importância dos clubes e associações de suboficiais,
subtenentes e sargentos, ao pretender destacar sua diferença em relação às associações civis.

"Os sargentos, acompanhando passo a passo o desenvolvimento das Forças


Armadas, que deles exige inteligência desenvolvida, cultura mais sólida do que
antigamente, mergulharam nos livros e tudo estão fazendo para aprimorar seus
conhecimentos. É natural que também se esforcem, e para isso contam com a ajuda
de seus Ministros, para a conquista de uma lugar destacado na sociedade. Quem já
assistiu alguma das festas realizadas no Clube dos Suboficiais e Sargentos da
Aeronáutica ou nos Clubes dos Sargentos do Exército, da Marinha ou da Polícia
Militar do Distrito Federal, sabe que esses militares galgaram muitos pontos na
escala social, porque o ambiente sadio de camaradagem que impera naquelas
associações nem sempre é encontrado nos grandes clubes da classe média, no meio
civil."26

Para reforçar seu ponto de vista, o colunista procurou enfatizar a força adquirida pela "classe"
dos sargentos também na esfera política e eleitoral. Força que não podia ser desprezada, não apenas
do ponto de vista quantitativo de seus membros integrantes, mas também, e sobretudo, pelo exemplo
de suas condutas entre o restante das corporações as quais serviam. A importância do círculo dos
sargentos crescia, conforme frisava Batista de Paula, não apenas em função de seu constante
aperfeiçoamento intelectual, como também por conta de sua crescente influência no cenário político.

"Os tenentes oriundos da tropa, no exercício do cargo de delegado de recrutamento


e nas juntas de alistamento militar por esse Brasil afora, representam sem dúvida
poderosa força eleitoral, principalmente nas pequenas cidades. Quanto aos
subtenentes e sargentos basta dizer que em estados como o Rio Grande e
Pernambuco, e também no Distrito Federal, podem eleger, folgadamente,
representantes nas Casas do Congresso, não só pelo número de votos que somam
como pela influência que exercem no meio em que vivem."27

26 Última Hora, 27 de março de 1957, p. 15.


27 Última Hora, 16 de maio de 1957, p. 17 (grifos meus).

423
Ao longo dos anos de publicação de "Plantão Militar", o problema das promoções não se
restringiu ao círculo dos subtenentes e sargentos, interferindo também na vida dos praças. Os cabos
do Exército, por exemplo, além do curso de comando de pelotão, eram obrigados à prestar uma prova
eliminatória que desconsiderava completamente critérios como a antiguidade no posto, bem como a
eficiência e disciplina demonstrados em sua lide profissional diária. Os sargentos do Exército
continuaram a padecer da falta de indefinição do comando das forças de terra, em especial da parte
dos sucessivos chefes de seu Estado-Maior, quanto ao estabelecimento de regras claras para o acesso
ao círculo dos oficiais. Mesmo em ocasiões em que os próprios titulares da pasta ministerial da
Guerra intercederam em favor de seus comandados, suas determinações eram sistematicamente
descumpridas. 28 Batista de Paula denunciou, inclusive, a falta de um almanaque por onde fosse
possível controlar a antiguidade dos subtenentes e sargentos em seus postos, tal como acontece no
oficialato do Exército.29 Entre os sargentos e praças das Polícias Militares e Corpo de Bombeiros,
eram constantes não apenas o descumprimento das leis relativas à promoção desses militares, como
também sua própria estabilidade profissional era frequentemente posta em xeque. 30 Tais problemas
se repetiam na Marinha e, com especial gravidade, na Aeronáutica. 31

Conclusão:

Em se tratando de uma sociedade como a brasileira, cujas inúmeras interdições ao pleno


exercício de direitos de cidadania marcam tão profundamente nossa formação histórica, certas
questões tidas, a princípio, como específicas de determinado grupo social, ao encontrarem pontos de
contato com outras reivindicações de natureza semelhante, oriundas de outros segmentos da
sociedade, fazem com que estes debates, muitas vezes, cheguem a um maior espectro de pessoas.
Eventos como o levante de sargentos ocorrido em Brasília em setembro de 1963, não podem, como
que numa falsa relação direta de causa e efeito, encontrar suas origens apenas nos variados problemas

28 Conforme o colunista denuncia nas edições de "Plantão Militar" em 26/01/1959, p. 12.; 13/02/1960, p.
6.; 11/10/1960, p. 8; 24/24/1962, p. 11.; 31/07/1962, p. 11.; 28/01/1963, p. 7.; 09/02/1963, p. 9.; 07/09/1963, p. 8. e
13/12/1963, p. 6.
29 Última Hora, 15 de março de 1961, p. 5 (2º caderno).
30 10 - É o que Batista de Paula procura ilustrar nas edições de sua coluna datadas de 24/09/1959, p. 8.;
31/05/1963, p. 8. e 02/08/1963, p. 8.
31 No caso da Aeronáutica, ver as edições de "Plantão Militar" em Última Hora nas datas de 13/10/1959,
p. 8.; 11/03/1960, p. 8.; 15/03/1961, p. 5 (2º caderno).; 10/04/1961, p. 4 (2º caderno); 30/06/1961, p. 14.; 03/07/1961, p.
6. e 31/07/1962, p. 11. Para a Marinha, as edições de 08/01/1960, p. 7.; 11/03/1960, p. 8.; 20/12/1960, p. 4 (2º caderno).
e 12/06/1963, p. 9.

424
profissionais que afetavam o cotidiano de sargentos e praças, abordados pela coluna assinada por
João Batista de Paula. Contudo, tendo em vista o fato de que muitas das problemáticas abordadas
em "Plantão Militar" permaneceram sem nenhum vislumbre de solução, supor a inflexão destes
problemas sobre os processos de tomada de posição e descontentamento das baixas patentes das
Forças Armadas é perfeitamente plausível. Frente ao quadro exposto, é possível ao historiador, se
não explicar em sua plenitude, ao menos tornar explícito o nível elevado de insatisfação que pontuava
o cotidiano profissional de sargentos e praças neste período, bem como a opção pelo franco desafio
à Instituição Militar feita por alguns de seus membros.

Fontes:

– Jornal Última Hora (coluna "Plantão Militar");


– DE PAULA, João Batista. Plantão Militar (Miscelânea). s/d.

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425
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SANTOS, Andréia Paula dos. À Esquerda das Forças Armadas Brasileiras. História oral de vida de
militares nacionalistas de esquerda. São Paulo: USP-FFLCH (Dissertação de Mestrado). 1998.

426
O Mito e A Composição Visual Dos Espaços

Bruno Rodrigo Couto Lemos1

Resumo: Esta comunicação tem por objetivo apresentar algumas questões referentes à circulação
das narrativas míticas no contexto da pólis clássica ateniense em vista das possibilidades de entrelace
das relações de visualidade e espacialidade. Partindo da apreensão de múltiplas práticas cotidianas,
determinados espaços seriam percebidos como capazes de provocar efeitos, produzir e sustentar
formas de sociabilidade e, no limite, tornar empíricas as formas de relação entre os gregos antigos e
sua tradição mitológica. Desta forma, a proposta aqui apresentada é abordar tais ambientes a partir
da interação entre tradição mitológica e práticas cotidianas para, assim, tornar possível a apreensão
dos espaços que se configuram a partir de intercâmbios sociais, mobilizando múltiplas relações e
não simplesmente pela via de uma codificação simbólica.

Palavras-chave: mito, espaço, visualidade.

Abstract: This communication aims to present some questions concerning the circulation of
mythical narratives, in the context of the Athenian classical polis, considering the possibilities of
interrelationship between daily practices, visuality and spatiality. Starting from the apprehension of
multiple daily practices, certain spaces would be perceived as capable of promoting effects,
producing and sustaining forms of sociability, and making empirical forms of relationship between
the ancient Greeks and their mythological tradition. Therefore, the proposal presented seeks to
approach such environments from the interaction between mythological tradition and daily practices,
in order to make possible the apprehension of the spaces that are configured from social exchanges,
mobilizing multiple relations and not simply through a symbolic codification.

Keywords: myth, space, visuality.

Ao falarmos do mito em sua dimensão visual, na Atenas do período clássico, não estamos
pensando na direção da composição de uma imagem objetiva de uma dada narrativa mitológica.
Nossa abordagem não se voltará às questões da imagética iconográfica, apesar de reconhecermos aí
um aspecto que se liga à visualidade das cenas míticas. Não obstante, propomos problematizar tal
dimensão visual pela via das práticas do espaço, ou seja, pela apreensão das relações que constituem
a vivência do lugar (DE CERTEAU, 1994, p.201-202). Desta forma, nossa compreensão da
dimensão visual do mito se apresenta a partir de uma série de práticas que se dão em diálogo com os
espaços em que se desenrolam.
Não há aqui, porém, qualquer pretensão em se qualificar, ou apontar espaços em que esta
dimensão visual esteja objetivamente acessível; espaços onde as práticas que os envolvem os

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social – PPGHIS/UFRJ, sob a orientação da Profª Drª
Marta Mega de Andrade. Email: brunorclemos@gmail.com

427
potencializem, privilegiadamente, como espaços de representação mítica. Há, certamente, lugares
como estes, em que a atmosfera que os engloba os configura como espaços onde a experiência com
o mito, ou o místico, é sua função objetiva – certamente os templos, os oráculos e os altares de
sacrifícios aos deuses guardavam estes ares. Entretanto, acreditamos haver um âmbito de
aproximação das tradições mitológicas, que funciona como um estrato que se desdobra sobre as
ações corriqueiras da vida ordinária, em que é possível apreender uma relação menos litúrgica e mais
flexível com estas narrativas mitológicas. Sendo assim, são as práticas e os espaços menos
controlados que nos interessam, na medida em que nosso objetivo é lançar luz sobre as possibilidades
de circulação destas narrativas no contexto do cotidiano da sociedade clássica ateniense.
Apreender o mito pela sua dimensão visual é percebê-lo, então, através das práticas que
envolvem os lugares de vivência cotidiana que, significando estes lugares, criam, ou configuram,
espaços em que as narrativas míticas encontram respaldo na – e a partir da – experiência cotidiana.
São esses espaços, enquanto lugares praticados, que pretendemos buscar. É só a partir da interação
sujeito-espaço que se torna possível a apreensão da visualidade. Contudo, para tanto, torna-se
prerrogativa a percepção, nas fontes, das formas e das possibilidades desta interação visual na
sociedade clássica ateniense. Deste modo, compreender a configuração visual dos ambientes,
significa estar atento aos suportes desta visualidade. Não é o caso de apenas inferir a visualidade da
pólis em sua monumentalidade, como se esta fosse uma instituição visual por excelência, ou ainda,
engessar nas condições técnicas da retórica filosófica uma casualidade da composição visual do
discurso. É preciso compreender as condições sociais em que estas práticas se projetam e os apelos
culturais aos quais respondem (MENESES, 2005, p.01), compondo, ou antes, pintando, o quadro no
qual circulam e são consumidas as narrativas míticas.
Assim, buscar ultrapassar as variadas formas de representação do mito para, através da
visualidade, perceber seu enraizamento nas práticas cotidianas da pólis, significa ir além da
identificação dos espaços em que o mito figure como tema – da imagética iconográfica às festas
cívicas e apresentações teatrais – e evidenciar os espaços de vivência do mito, onde as práticas do
espaço se desdobram como um arranjo de elementos que permitem as narrativas da tradição
mitológica adquirir sentido e inteligibilidade. Cremos que se formos capazes de perceber as
narrativas mitológicas como um dos elementos fundamentais na configuração das práticas do espaço
e como estas narrativas estavam a tal ponto enraizadas nas condições de significação destes lugares,
estaremos dando um passo singular na direção de ultrapassarmos a compreensão do pensamento
grego como raiz primitiva da racionalidade ocidental, para percebê-lo com um pensamento outro.
É sob este olhar que em Fedro, diálogo platônico escrito por volta de 370 A.E.C.,
encontramos alguns indícios que nos parecem relevantes ao buscarmos perceber a construção visual

428
do discurso por intermédio das narrativas mitológicas. São passagens em que Platão parece
ambientar o diálogo, como se construísse a atmosfera propícia ao discurso que será proferido. Neste
processo, chama-nos a atenção que uma ampla descrição, em uma espécie de ambientação da
conversa, parece de alguma forma se fazer necessária para que determinado assunto seja tematizado.
Das críticas da filosofia platônica à retórica sofística e ao comportamento de certos grupos da elite
aristocrática ateniense até à tradição poética, tais passagens de construção visual da narrativa
parecem capazes de, por si só, veicularem um discurso de censura, reprovação e deslegitimação.
Entretanto, no diálogo Fedro, no que tange a tematização das narrativas mitológicas, o que
nos parece significativo notar é que, por mais que tal ambientação, seguindo a lógica da retórica do
texto, tenha por objetivo construir o lugar propício ao debate de um dado tema, esta tematização
parece emergir, no contexto do diálogo, quase que em sentido oposto. Da forma como é inserido na
dinâmica da conversa entre Sócrates e Fedro, o tema da tradição mitológica aparece como se o
próprio lugar possibilitasse ou mesmo condicionasse um “trazer à memória” de determinado tema.
Deixaremos de lado a questão que cerca o teor filosófico do diálogo para nos focarmos na
construção visual do discurso. Deste modo, ao encontrar Sócrates, Fedro o convida a uma caminhada
pelas imediações da cidade a fim de que possam conversar e debater sobre o discurso de Lísias.
Platão situa o diálogo nos arredores da cidade, as margens do rio Ilisso, ao sul de Atenas.

FEDRO – Parece que nem de propósito vim sem sandálias! Quanto a ti, já é costume
andares descalço, como toda a gente sabe. De qualquer maneira não deixará de ser
agradável meter os pés na água e caminhar ao longo da margem deste rio, e mais
agradável ainda nesta estação, e esta hora do dia.
SÓCRATES – Nesse caso caminha e vai procurando um lugar onde nos possamos
sentar.
(PLATÃO, Fedro, 229a)

Alguns elementos de descrição já são inseridos como componentes de uma paisagem: as


margens do rio onde se molham os pés; a estação; a hora do dia. Todos esses elementos constituem
peças de um espaço que visualmente compõe a cênica do diálogo. Logo em seguida, Fedro e Sócrates
decidem-se por um “bom local” onde poderiam sentar e levar a frente o debate sobre o discurso de
Lísias:

FEDRO: - Vês aquele altíssimo plátano?


SÓCRATES: - Como não!
FEDRO: - Ali há sombra, relva, e sopra um pouco de brisa. Debaixo dele podemos
nos sentar, e até, se quiseres, deitar-nos.
SÓCRATES: - Vamos para lá.
(PLATÃO, Fedro, 229a-b)

429
Árvores, relva e uma agradável brisa terminam por compor o cenário descrito por Platão. O
local idealizado pelo filósofo para desenvolver seu diálogo está então definido e, aparentemente,
nada nos daria o indício de que uma temática transversa poderia ser abordada. Contudo, um
questionamento colocado por Fedro desvia o eixo do diálogo, levando Platão a expor a perspectiva
socrática acerca das narrativas da tradição mitológica. Como apontamos anteriormente, é somente
ao alcançarem este determinado lugar que Fedro questiona Sócrates sobre a veracidade do mito do
rapto de Orítia e se este acredita que foi mesmo ali que se deu tal acontecimento ou se nas imediações
das colinas de Ares, onde outra versão da história diz ter ocorrido:

FEDRO: - Dize-me uma coisa, caro Sócrates, não afirma o povo que de um desses
lugares, à margem do Ilisso, Bóreas raptou Orítia? Ou foi na colina de Ares? A
lenda, com efeito, admite que foi no Ares e não aqui que Orítia foi raptada.
SÓCRATES: - Com efeito.
FEDRO: - Quem sabe se não foi aqui mesmo onde estamos? É bonito este trecho do
regato; a água aqui é pura e transparente; este lugar bem se presta aos folguedos das
jovens.
SÓCRATES: - Não foi aqui, mas cerca de três ou quatro estádios mais abaixo, onde
atravessamos o regato em direção ao templo de Agra. Há naquele ponto um altar a
Bóreas.
FEDRO: - Não prestei muita atenção. Mas por Zeus, caro Sócrates. Dize-me uma
coisa: acreditas que esse mito corresponda à verdade?
(PLATÃO, Fedro, 229c-d)

A resposta do filósofo nós já conhecemos: tenderá a uma desqualificação daquele tipo de


conversa, vinculando-a a todo tipo de “gente vulgar” que dá crédito ao que dizem os poetas. Apesar
de oferecer a Fedro um parecer sobre o rapto de Orítia, Sócrates logo minimiza a importância dessas
histórias, apontando tantos outros seres míticos que precisariam ser desmitificados, como centauros
e quimeras, em um vão esforço de exegese, que a nada levaria a não ser a uma “sabedoria grosseira”.
A resposta de Sócrates encaixa-se plenamente na hipótese de Paul Veyne (1984) acerca dos
“programas de verdade” e da disputa por locais de fala e por legitimidade entre a filosofia nascente
e as tradições correntes, bem como a sofística. Deste modo, não seria incorreto afirmar que todo o
“prólogo” do diálogo foi elaborado com tal finalidade, preparando os ouvintes/leitores e introduzindo
a temática mais ampla. Contudo, é a forma como a tematização das narrativas míticas é trazida à
tona que nos chama a atenção.

Assim, no que tange nossa problemática, o que queremos sinalizar é a forma como a descrição
apresentada, no diálogo, deu lugar e viabilizou a abordagem do tema. Platão torna a descrever a
paisagem, Sócrates parece maravilhado com o espaço externo da cidade, apesar de logo em seguida
o desqualificar em termos de qualquer possibilidade de produção de saber: “[...] o campo e as árvores

430
nada me podem ensinar, ao contrário dos homens da cidade” (Fedro, 230e). A descrição parece
cercar e encerrar o tema dos mitos, abrindo espaço ao discurso de Lísias.

SÓCRATES – Oh, por Hera, que lugar aprazível! Na verdade, este plátano não só
faz muita sombra como também é muito alto; e este agnocasto, como é imponente
e como oferece uma sombra magnífica! Na plenitude da floração, não admira que
este local seja percorrido por um aroma delicioso! Além disso, há o encanto sem par
desta fonte que rebenta sob o plátano, a frescura da sua água: basta mergulhar nela
o pé para o verificar! A julgar por estas figuras e pelas estátuas, sem dúvida este
lugar foi consagrado a algumas ninfas e a Aqueloo. Não te encanta o ar puro que
respira aqui, não é ele desejável e prodigiosamente agradável? Cristalina melodia
do verão, que faz eco ao canto das cigarras! O mais agradável de tudo é, no entanto,
esta relva, a medida que cresce na encosta suave, densa o ideal para que se coloque
a cabeça sobre ela. Um estrangeiro não poderia encontrar melhor guia do que tu,
meu caro Fedro!
(PLATÃO, Fedro, 230b-c)

Ao nos depararmos com este tipo de descrição, a questão da ambientação nos pareceu
relevante: por que tal ambientação se fez necessária para a abordagem do tema? Seria ela meramente
artifício retórico que daria fluidez ao texto? Se formos capazes de redirecionar nossa questão,
poderíamos nos perguntar pelo o que tal espacialização, visualmente construída na narrativa, faz?

Se desta forma, poderíamos pensá-la, então, como uma forma de preparação do ouvinte/leitor
para o tema que se seguiria. Ouvinte/leitor este deparado cotidianamente com aquela paisagem, e
que diante das práticas que envolvem aquele espaço, imediatamente lança mão de uma série de
pensamentos, saberes e tradições que, de alguma forma, se relacionam com aquele espaço. Se desta
maneira, tal descrição não seria apenas um elemento componente do encadeamento do discurso, de
modo que não poderia ser trocada aleatoriamente pela descrição de outro ambiente qualquer – como
talvez o espaço de uma assembleia, de um tribunal ou do teatro – mas haveria de fato uma escolha
premeditada de tal ambientação.

Desta maneira, o que podemos perceber é que os elementos articulados por Platão na
construção de sua narrativa compõem uma paisagem. Esta, por sua vez, ao mesmo tempo em que se
apresenta como corriqueira e cotidiana, como a circunvizinhança da cidade, é também capaz de
viabilizar um discurso, através de sua apreensão visual, e o faz na medida em que se liga ao espaço
cotidiano pela prática de um espaço vivido e associado ao contexto da narrativa mítica do rapto de
Orítia. Ou seja, de algum modo, a paisagem descrita por Platão remete-se à narrativa mítica de Orítia
e Boreas, mesmo que aquele não fosse o local tradicionalmente consagrado à divindade. Para inserir
o tema dos mitos Platão apela àquela paisagem, porque a sua apreensão visual a liga a tradição
mitológica.

431
Não esperamos com isso indicar que tais “locais de caminhada” são então espaços em que
comumente se discutem temas mitológicos, evidenciando assim um espaço de circulação das
narrativas míticas. De fato, o que pretendemos é chamar a atenção para o modo como tal espaço
possibilitou, ou ainda, viabilizou a tematização de uma dada narrativa mitológica. Neste sentido,
consideramos pertinente refletir sobre a possibilidade de determinados espaços, lugares comuns de
circulação ou mesmo eventos cotidianos, suscitarem a tematização de narrativas mitológicas
conhecidas através de práticas que envolvem, ao mesmo tempo, a visualidade e a narrativa mítica,
como constituintes de uma paisagem. Essa paisagem, por seu turno, incita uma determinada prática
discursiva em que se contrapõem os mitos comuns e as palavras de Sócrates.

Assim se dariam, portanto, em dados espaços, em dados momentos, a vivência do mito: nos
lugares em que as práticas que os envolvem, no momento em que se desdobram, se ligam de alguma
forma às narrativas que compõe o quadro das tradições mitológicas. Uma destas formas, temos
buscado sinalizar como advindas da visualidade, ao comporem um conjunto de relações que se
apreendem pela prática do olhar. Esta ligação, no entanto, não se daria necessariamente por uma
atividade litúrgica ou ritual, mas transbordaria das ações, movimentações, deslocamentos e afazeres
habituais que ao se conjugarem ao lugar, trariam à tona uma reconfiguração e ressignificação do
espaço que o abriria a uma relação, no limite, empírica com o mito.

Encontrar os indícios destas ressignificações espaciais nos indicaria um caminho expressivo


na compreensão, não apenas das possibilidades de circulação nas narrativas míticas na Atenas
clássica, mas, principalmente, do enraizamento destas narrativas na conformação do pensamento
grego.

Deste ponto de vista, pensar a circulação do mito seria pensar como determinados espaços
poderiam se constituir, frente à sociedade ateniense do período clássico, como espaços vividos e
investidos de sentido através de suas apreensões visuais. Contudo, de modo algum procuramos
demonstrar que tais espaços trariam em si os elementos, ou as condições que os fundassem como
espaços propícios, por excelência, a tal experiência, mas é a partir das práticas sociais relacionadas
a eles que estes se conformariam, ou ainda seriam objetivados como tais. Desta forma, acreditamos
ser possível pensar estes espaços, assim configurados, como espaços que se aproximam daquilo que
Foucault (2003) chamou heterotopias.

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços


reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade –
que são algo como contra-lugares, espécies de utopias realizadas nas quais todos os
outros lugares reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são,

432
simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está
fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição
geográfica na realidade. (FOUCAULT, 2003, p. 80)

Sendo assim, estes espaços de vivência do mito se constituiriam em um momento específico


como sobre-lugares: espaços absolutamente reais, mas que, plenamente associados a todo um
conjugado de práticas, imagens e tradições, ao mesmo tempo, sobrepõe-se a si mesmo como um
espaço outro. É neste sentido que falamos da possibilidade de vivência do mito por meio desses
espaços heterotópicos, que num só lugar real, conseguem sobrepor vários outros, a princípio
completamente incompatíveis.

Na maior parte dos casos, as heterotopias estão ligadas a pequenos momentos,


pequenas parcelas do tempo – estão intimamente ligadas àquilo que chamarei, a bem
da simetria, heterocronias. O auge funcional de uma dada heterotopia só é alcançado
quando de uma certa ruptura do homem com a sua tradição temporal. (FOUCAULT,
2003, p. 82)

Espaços, momentos, mas sobretudo, práticas que, no limite, possibilitam uma abertura para
a vivência concreta daquelas narrativas míticas veiculadas por uma longuíssima tradição oral. Se na
construção de uma percepção identitária pelos gregos a tradição mitológica já tem sido, há muito,
objeto de estudos e, assim, entendida como elemento central de todo um complexo sistema de
práticas, de valores e de regras sociais (VERNANT, 2006, p.14), não obstante, quando falamos de
uma vivência do mito que se dá em um contexto de visualidade, nosso objetivo é lançar nova
perspectiva sobre a percepção deste enraizamento das narrativas míticas na sociedade ateniense,
sobretudo, do período clássico. Pensar as narrativas míticas por esta via é perceber um movimento
de espacialização destas histórias capaz de ultrapassar as tão pretendidas sólidas fronteiras de um
imaginário fabuloso e abstrato e, no limite, cristalizar, nos próprios espaços da cidade e adjacências,
esta identidade. Na construção desta identidade, tais espaços tornam-se passíveis de um reconhecer-
se neles, não na medida em que são apreendidos como monumentos, “lugares de memória”, como
certamente serão outros muitos espaços, mas como espaços vividos, e desta maneira, como destacado
por Marc Augé, históricos “na exata proporção em que escapam à história como ciência” (AUGÉ,
1994:53).

É desta forma que pensar os espaços de circulação do mito é, em nossa perspectiva, estar
atendo às condições de investimento de sentido nesses espaços. Atento a aquilo que Augé chamou
de uma dimensão materialmente temporal:

A praça do mercado só merece esse título em certos dias. [...] Os locais consagrados
aos cultos e às reuniões políticas ou religiosas são apenas por momentos, em geral

433
em datas fixas, objeto de tal consagração. As cerimônias de iniciação, os ritos de
fecundidade ocorrem em intervalos regulares: o calendário religioso ou social
modela-se geralmente em cima do calendário agrícola, e a sacralidade dos locais
onde se concentra a atividade ritual é uma sacralidade que se poderia dizer
alternativa. (AUGÉ 1994:58)

Se retornarmos ao Fedro de Platão, podemos agora perceber no espaço descrito no diálogo


os elementos que o ligam à tradição mitológica. Como já dissemos, aquele não é um espaço de
vivência do mito por excelência. É um espaço qualquer, corriqueiro, ao redor da cidade. Não há nada
nas árvores, na relva ou no rio que o ligue, de imediato, ao rapto de Orítia por Bóreas. Poderiam
mesmo haver muitos outros espaços como aquele, como talvez fossem as colinas de Ares na medida
em que “a lenda, com efeito, admite que foi no Ares e não aqui que Orítia foi raptada”. Contudo,
dentro das fronteiras da história narrada por Platão, a apreensão visual do espaço lança sobre Fedro
a narrativa mítica de Orítia; fora dessas fronteiras, os ouvintes/leitores de Platão, são arrastados a ela
pela construção visual da narrativa do filósofo.

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438
A permissão do feitiço - As religiões de origem africana e afro brasileira durante a
Primeira República no Rio de Janeiro. 1890-1910

Caio Sérgio de Moraes1

Resumo: Entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a ideia de ordem era
encarada não só como prevenção e repressão dos crimes públicos ou privados, mas também consistia
em garantir um bom andamento das relações sociais existentes. As ruas do Rio de Janeiro eram
enfestadas de indivíduos que encantavam com suas feitiçarias grande parte da população carioca. A
“prática da feitiçaria e seus sortilégios” era um dos combustíveis que alimentavam a crença do povo
nas práticas de cura populares e busca por boa sorte. Esses indivíduos donos do feitiço, se mantinham
as margens da sociedade e ao mesmo tempo eram capazes de tecer redes de sociabilidade, que os
permitiam, circular em locais de status social elevado, muitas vezes os tornava imunes a aplicação
plena das leis, e os colocavam em um lugar de destaque na sociedade carioca.

Palavras Chaves: Feiticeiros; Religiosidade afro-brasileira; Feitiçaria.

Abstract: In mid of century XIX and first decades of century XX, the order idea was not faced just
to prevention and repression public and private crimes, but also affirmed a good way to the social
relationships that existed. The streets of Rio de Janeiro were croweded of people enchanted with the
spells. The “practice of witchcraft and spells” was one of the things that encouraged people belief in
the cure practices and the search for good lucky. The owners of the spells were on the society margin,
but in the same time they had capacity to make a social connect that allowed them to be in high status
places, that many times protected them against the full punishment of laws and put them in a high
place in the society of Rio de Janeiro.

Key Words: Wizards, Afro-Brazilian religiosity, Witchcraft

Os cultos de origem africano e afro-brasileiros nas leis republicanas.

Durante à Primeira República a política higienista aplicada pelo governo do Rio de Janeiro,
a despeito das disputas iniciais, revelou-se cada vez mais hostil às práticas que eram comuns às
classes populares no seu cotidiano.2 Assim, embora a primeira Constituição republicana garantisse
a liberdade de credo, as práticas de origem africana e afro-brasileira eram discriminadas de forma
legal, pois “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios” assim como a “medicina ilegal” estava
presente no código penal da então nova República.3 Os artigos 156, 157 e 158 traziam em seus textos:

1 Mestre em história Social pela Universidade Federal Fluminense. Email: caio_sergiobr@hotmail.com


2 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A flor da União: festa e identidade nos clubes carnavalescos
do Rio de Janeiro”. In: Terceira Margem, v. 14, jan/jun de 2006, pp 169-179; CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e
botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp,2008;
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque.
Rio de Janeiro: Paz e Terra,1989.; CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma história social do carnaval
carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
3 Códigos penal . Cap III Art 156 e 157.

439
Art. 156 – Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a arte dentária ou a
farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal,
sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos.
Penas – de prisão celular por um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Parágrafo único: Pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina em geral,
os seus atores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos
crimes que derem casos.
Art. 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e
cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias
curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Parágrafo 1ª Se, por influência, ou por consequência de qualquer destes meios,
resultar ao paciente privação ou alteração, temporária ou permanente, das faculdades
psíquicas.
Penas – de prisão celular por um ano a seis anos, e multa de 200$000 a 500$000.
Parágrafo 2º Em igual pena, e mais na privação de exercício da profissão por tempo
igual ao da condenação, incorrerá o médico que diretamente praticar qualquer dos
atos acima referidos, ou assumir as responsabilidades deles. (...)
Art. 158 – Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo, para uso
interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos
reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim, o ofício do denominado
curandeirismo.
Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$000 a 500$000.
Parágrafo único: Se do emprego de qualquer substância resultar à pessoa privação
ou alteração, temporária ou permanente, de suas faculdades psíquicas ou funções
fisiológicas, deformidades ou inabilitação do exercício de órgão ou aparelho
orgânico, ou, em suma, alguma enfermidade:
Penas – de prisão celular por um a seis anos, e multa de 200$00 a 500$000.
Se resultar morte:
Pena – de prisão celular por seis a vinte e quatro anos (COLEÇÃO DE LEIS DO
BRASIL). (p.69)

Qualquer pessoa não habilitada a “exercer a medicina em qualquer dos seus ramos”, “praticar
o espiritismo, a magia e seus sortilégios” e “ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio
curativo para uso interno ou externo”, poderia ser presa, e a punição variava de seis meses a seis
anos, além de uma multa que iria de 100$ a 500$000 mil réis4. Porém, de acordo com o Art.72 § 3º
da Constituição de 1891, “todos os indivíduos e confissões religiosas poderiam exercer pública e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do
direito comum”. Ou seja, permitia a todo indivíduo de “exercer pública e livremente seu culto
religioso”5.

4 Código Penal de 1890 . Cap III Art 156,157 e 158. Retirado:


http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049 Acessado em: 30 de junho de 2016.
5 Constituição de 1891 Art.72 § 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública
e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.

440
A presença das práticas religiosas 6 africanas onde voduns, orixás e minkisi 7 eram partes
importantes das religiões, esbarrava na intolerância de parte da população carioca ao longo do século
XIX. Personagens como o famoso feiticeiro Juca Rosa tornavam-se figuras presentes nos jornais e
principalmente no cotidiano não só da população pobre, mas também no dos indivíduos pertencentes
à diferentes status sociais. Essas pessoas que dominavam a magia na crença popular, surgiam em
larga escala nas ruas do Rio de Janeiro 8 , e eram encaradas pelos adeptos e admiradores como
curandeiros e pelos céticos como charlatães.
Eduardo Possidonio argumenta que o Rio de Janeiro durante as últimas décadas do século
XIX (de 1870 a 1900), era uma cidade negra9, onde a presença das tradições e culturas africanas
deixaram marcas na sociedade.10 Porém, esse raciocínio do autor pode ser expandido para todo o
século XIX. Cabe ressaltar que, esses foram aspectos compartilhados/reinterpretados pelos
descendentes desses indivíduos o que pode ser verificado na atuação de uma série de “sacerdotes”
homens e mulheres nas freguesias cariocas durante a escravidão e no pós-abolição.11 Para Possidonio,
a cidade era um espaço propício para a manutenção dos costumes que os diversos grupos de africanos
tinham em comum, o que também permitia a criação de novos laços:
O Rio de Janeiro, ao longo do século XIX, era uma cidade negra, com a
presença de muitas tradições de origem africanas e, assim sendo, várias foram as
marcas deixadas por esses grupos. Essa conclusão ganha força ao observarmos os
números apresentados por Mary Karasch, nos quais escravos e libertos (pardos e
negros) somavam no fim da primeira metade do Oitocentos, maioria frente à
população branca. Podemos compreender, então, o espaço das freguesias urbanas da
cidade como um local propício para a manutenção e troca de “costumes em comum”
entre africanos e seus descendentes. Acreditamos que foram esses costumes que
pautaram as dinâmicas de sobrevivência entre esses grupos, permitindo a
manutenção de laços antigos, bem como a criação de novos, tais como a formação
de famílias, o parentesco espiritual (compadrio), a busca por irmandades religiosas,
ligações interétnicas, fugas acompanhadas de formação de quilombos, entre tantas

6 A escolha pela utilização do termo “práticas religiosas” para se referir aos cultos praticados no período,
está diretamente ligada as variadas formas de práticas que aparecem nas fontes como: candomblé, umbanda, cartomancia,
quimbanda, calundu, entre outros.
7 “...eram pequenas estatuetas, geralmente de madeiras, confeccionados pelos ngangas, que exerciam a
função de sacerdotes para serviços privados. Existia uma variedade de minkisi (plural de nkisi), que sempre eram
adequados para diferentes usos, a cada função recebiam um ingrediente diferente, poderia ser mineral, vegetal e/ou
animal. Eram objetos mágicos indispensáveis”. Ver: POSSIDONIO, Eduardo. “Entre ngangas e manipansos: a presença
centro-africana nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro” In: Simpósio de História Nacional – Lugares de Historiadores:
Velhos e Novos Desafios. XXVIII. 2015. Florianópolis-SC. p.1-17
8 João do Rio – As Religiões no Rio – Editora Nova Águia – Coleção Biblioteca Manancial nº. 47 - 1976
9 Ideia levantada por diversos autores devido a enorme presença africana no Rio de Janeiro. Em destaque:
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia das
Letras,
10 Sobre a cultura afro americana conferir entre outros. MINTZ, Sidney Wilfred, 1922 – O nascimento
da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica/ Sdney W. Mintz e Richard Price/ tradução Vera Ribeiro –
Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Candido Mendes, 2003.
11 RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. “O pós-abolição como problema histórico: balanços e
perspectivas”. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, p. 170-198. Junho. 2004.

441
outras estratégias que permitiram a africanos e crioulos criarem possibilidades de
sobrevivência dentro da sociedade escravista brasileira.12

Jhonata Goulart Serafim e Jeferson Luiz de Azeredo em artigo onde abordam o processo de
criminalização da cultura negra no Código de 1890, mostram que a capoeira e a expressão religiosa
africana eram os principais elementos expressos nos artigos repressivos do Código. 13 Ao observar o
Código, fica evidente quais eram os interesses das elites nacionais. 14
Os autores argumentam que o papel desempenhado pelos juristas na construção do
ordenamento jurídico, no qual também influenciavam o ordenamento jurídico, assim estampando a
vontade que a elite tinha de construir uma nação ao “molde europeu”. Para se construir uma nação
civilizada, como era o desejo dos juristas, era necessário o “disciplinamento da população tornando-
a civilizada”. 15 Apoiados no argumento da antropóloga Letícia Reis, Serafim e Azeredo reforçam a
ideia de que as elites republicanas brasileiras tinham como forte desejo, apagar “o grande elemento
social da herança africana, aqui deixada por vários séculos pela escravidão”.16
Sendo assim, em busca da eliminação aos elementos africanos, combater os rituais religiosos
e a capoeira estavam no caminho para a eliminação da herança cultural negra. Consequentemente
esses elementos foram criminalizados pelo Código Penal de 1890. Porém, como afirmam os autores,
não por tais práticas representarem um risco a sociedade, mas sim porque seus praticantes eram
vistos como “perigosos” aos olhos da elite. 17
A historiadora Adriana Gomes nos mostra que, o Governo Provisório em 1890 começou o
processo de secularização do Estado através do Decreto 119-A. Esse decreto aparentemente proibia
a intervenção do Estado e das autoridades federais em matéria religiosa e ofereceu “plena liberdade
aos cultos religiosos.18 Apoiada nos argumentos do antropólogo Emerson Giumbelli, a autora aborda
que três campos podem ser discriminados a partir do Decreto119-A. Na concepção de Gomes, o
primeiro seria o “Estado” que foi terminantemente proibido de interferir na religião; o segundo seria
as “confissões religiosas” que “passariam a ter igualdade para realizarem seus cultos e proferirem a
sua fé”; e a terceira seria o “indivíduo” e todas os institutos que “usufruiriam da liberdade de culto”. 19

12 POSSIDONIO, Eduardo. ENTRE NGANGAS E MANIPANSOS: A religiosidade centro-africana nas


freguesias urbanas do Rio de Janeiro de fins do Oitocentos (1870-1900). Dissertação de (Mestrado) – Universidade
Salgado de Oliveira. 2015 p.21 e 22.
13 SERAFIM, Jhonata Goulart; AZEREDO, Jeferson Luiz de. “A (des) criminalização da cultura negra
nos Códigos de 1890 e 1940”. Amicus Curiae, UNESC, V.6, N.6, 1-17, 2009. P. 2.
14 Idem, p.6.
15 Idem, p.7.
16 Idem, p.7.
17 Idem, p.7 e 8.
18 GOMES, Adriana. “O processo de laicização do Estado brasileiro e a criminalização do espiritismo
no Código Penal de 1890”. Tribuna Virtual, Ano 01, Edição nº04, maio de 2013, p. 30.
19 Idem, p.30.

442
Gomes nos mostra que a garantia dessa liberdade ficaria instituída pelo Decreto 874 do
Código Penal de 1890.20 A autora ainda continua:
O projeto secularizador da República expressou-se em medidas
articuladas de laicização do Estado, que iam dos registros civis, ao ensino
leigo, perpassando para os cemitérios públicos. O Decreto 119-A preconizou
pela “separação”, pela liberdade e pela igualdade em torno de uma concepção
generalizada do que se interpretava como religião. O Estado passaria a
garantir legalidade à liberdade de os indivíduos professarem a sua fé e se
fazer representar em grupos religiosos publicamente, concedendo-lhes, “pelo
menos no plano jurídico, tratamento isonômico” (ORO, 2005, p. 439), sendo
interpretado como grupos religiosos, sobretudo, os protestantes e os judeus. 21

No entanto, as religiões chamadas mediúnicas – entendemos aqui como o cultos africanos e


afro-brasileiros e o espiritismo kardecista – não receberam o mesmo tratamento isonômico iguais as
outras. Assim, viraram alvo de perseguição policiam e de discriminação, sobre a alegação de
exercício ilegal da medicina. 22
Isso nos mostra que essa liberdade religiosa apresentava limites. Para os praticantes de
“religiões mediúnicas” havia uma dificuldade maior ainda, pois além de “ultrapassarem esses
limites”, nas palavras de Gomes também se inseriam “numa outra ordem de cerceamento e
intolerância, a criminalidade”.
A pluralidade religiosa e a liberdade de consciência tinham limites. Porém, entre os cidadãos
espíritas e de outras confissões mediúnicas, as dificuldades de proferir a sua religiosidade tornaram-
se ainda mais problemáticas, pois além dos cerceamentos anteriormente mencionados, tiveram que
23
enfrentar, ainda, numa outra ordem de cerceamento e intolerância, a criminalidade.
Analisando algumas questões de acusações de feitiçarias recaídas sobre os escravos na região
sudeste do Brasil, durante o período Imperial (século XIX), Luiz Alberto Couceiro aponta que “as
acusações de feitiçaria pesquisadas nos arquivos estavam ligadas a assassinatos ou ameaças de

20 “A garantia a essa liberdade ficaria instituída pelo Decreto 847 do Código Penal Republicano, em que
sob o título “dos crimes contra o livre exercício dos direitos individuais”, nos arts. 179 ao 188 sancionava-se a proibição
à perseguição por motivos religiosos e o impedimento e a perturbação da realização de cultos religiosos”. Gomes, p.30.
21 Idem, p.31.
22 Idem, p. 31.
23 “Algumas de suas práticas religiosas foram tipificadas como criminosas sob a acusação de
charlatanismo e prática ilegal da medicina, que foram inseridas no Código Penal Republicano de 1890.... Os médicos
conseguiram espaço que há tempos desejavam, a fim de reclamarem a proteção legal para o exercício de sua proteção.
No entanto, eles só conseguiram proteção jurídica quando as relações sociais tradicionais já estavam desestruturadas, e
os curandeiros puderam ser criminalizados... No Código Penal de 1890 os médicos conseguiram a garantia efetiva de se
impor contra quem ameaçasse cura e o conhecimento do corpo, que não fosse através de técnicas e da cientificidade”.

443
assassinatos, praticados por escravos contra os senhores e seus empregados, bem como insurreições
ou ameaças de insurreições de escravos”. 24
De acordo com o autor, o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, não condenava a
prática de feitiçaria como crime, diferente das Ordenações Filipinas25de 1823 e do Código Penal
republicano, de 1890. Couceiro explica:
No Título 3 do Livro 5 daquelas Ordenações, intitulado “Dos Feiticeiros”,
podemos ler sobre uma série de atitudes consideradas como sendo “feitiçaria”, mas
não encontramos definição alguma desta palavra. O acusado de feitiçaria deveria
pagar três mil réis ao acusador, ser açoitado no braço, em plena vila onde residisse,
e degredado para o Brasil A acusação de feitiçaria também aparece em outra
situação nas Ordenações. No Título 88 do Livro 4, “Das causas porque o pai ou mãe
podem deserdar seus filhos”, o Item 7 fala em deserção no caso de alguém “usar de
feitiçaria ou conversar com feiticeiros”. Em seguida, uma nota intitulada
“Feiticeiros” faz uma longa análise das hipóteses de surgimento da expressão e
conclui que não é possível definir feitiçaria e nem feiticeiro(a). 26

Já o Código Penal de 1890 também regulava a crença, mas sem uma definição clara de
“feitiçaria”. O capitulo III (crime contra a saúde pública) do Código Penal de 1890, proibia a
qualquer pessoa não habilitada a “exercer a medicina em qualquer dos seus ramos”, “praticar o
espiritismo, a magia e seus sortilégios” e “ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio
curativo para uso interno ou externo”27.
Couceiro nos mostra que as palavras “feitiçaria” e “feiticeiro” não estavam presentes no
Código Criminal do Império.28 Para o autor a documentação criminal do período vai além, e chama
a atenção para a falta de “acusações de crença e prática de feitiçaria para abertura de um processo
criminal”, e também apresenta a ideia de que a crença no poder do feitiço era forte no período
Imperial, e o Código Criminal, não condenava tais práticas fazendo com que indivíduos que
cometiam tais ações – como a feitiçaria – eram punidos em outros crimes:
Como nos arquivos brasileiros os documentos relativos aos crimes
cometidos no Império, grosso modo, estão organizados pelos artigos daquele
Código, não podemos encontrar as acusações de crença e prática de feitiçaria como
motivos legais para a abertura de um processo criminal. Entretanto, encontramos

24 COUCEIRO, Luiz Aberto. “Acusações de feitiçaria e insurreições escravas no sudeste do Império do


Brasil” - Revista Afro-Ásia, nº 38, (2008). p.212
25 Em 1603, publicaram-se as Ordenações Filipinas, mandadas compilar por Filipe I, que, em Portugal,
vigoraram até 1868. No Brasil, as Ordenações Filipinas, por força da lei de 20 de outubro de 1823, vigoraram até 31 de
dezembro de 1916, como subsídio do direito pátrio, e só foram, definitivamente, revogadas pelo Código Civil de 1917.
Abud: COUCEIRO, Luiz Aberto. “Acusações de feitiçaria e insurreições escravas no sudeste do Império do Brasil” -
Revista Afro-Ásia, nº 38, (2008). p.212
26 Ordenações Filipinas, disponível em <http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p931.htm>,
acessado em 14/08/2007. Idem. Couceiro. Pag 212/213
27 Códigos penal 1890. Cap III Art 156,157 e 158. “Tais inflações poderiam resultar na prisão do
acusado, que variavam de seis meses a seis anos, além de uma multa que iria de 100$ a 500$000 mil reis”.
28 COUCEURO. op. cit. p. 213

444
esta acusação diluída em outras fontes, como um processo criminal de homicídio,
outro de estelionato, notícias de jornais e correspondências privadas de delegados
de polícia e ministros da justiça. Além destas fontes, não é novidade a existência de
romances que narram histórias nas quais personagens chamados de feiticeiros
aparecem como agentes centrais da trama. Estas informações demonstram que a
crença no poder do feitiço e dos feiticeiros existia no Império do Brasil, e que não
havia lei alguma que punisse os acusados de feitiçaria, ao contrário do período
colonial e do republicano. As pessoas eram punidas não por serem feiticeiras e nem
por praticarem a feitiçaria, mas sim por estelionato, homicídio, e demais crimes
prescritos pelo Código Criminal. 29

Gabriela Sampaio no livro “Nas trincheiras da cura – As diferentes medicinas no Rio de


Janeiro Imperial” dialogando com Yvone Maggie, argumenta que “ Se essa crença não fosse
compartilhada, não haveria diferenciação na repressão e todos os cultos seriam igualmente
combatidos”.30 Para Maggie, a estimulação das autoridades para se denunciar tais práticas, acabou
por reforçar a crença.31 Sampaio também chama a atenção para o fato da existência dos cultos ir além
da autorização ou não das forças da lei, dependia também dos interesses e concepções dos indivíduos
que praticavam tais ações, mesmo sofrendo forte repressão:
Ao afirmar que a repressão reforça a crença, Maggie mostra que, na sua
opinião, as práticas de feitiçaria seriam talvez bem mais fracas se fossem esquecidas
pelas autoridades... é importante lembrar toda a forte tradição ligada àquelas
práticas, todas as motivações e os significados daquelas atividades para os grupos
que delas participam. Isso acaba ficando pouco trabalhado na argumentação da
autora, que se preocupa mais em investigar os mecanismos da repressão do governo
republicano. Sem desconsiderar o cuidadoso trabalho da autora, vale relembrar que
a existência daqueles cultos não dependia apenas da aprovação ou não das
autoridades, mas dos interesses e concepções dos participantes, apenas de toda a
repressão sofrida.32

Assim, podemos perceber que durante as décadas iniciais do período republicana, as religiões
de origem africana e afro-brasileiras estiveram em constante debate. O combate a tais práticas
religiosas fazia parte de um processo político de eliminação da herança africana. Buscava-se a
modernidade na Capital Federal, aonde um cenário repleto de “feiticeiros” praticando o “espiritismo
e seus sortilégios” não estava incluído. Mesmo assim, tais práticas foram se adaptando e buscando
novas estratégias para se manterem vivas durante o período.

29 Couceiro, p.213 e 214


30 SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro
imperial – Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, IFCH, 2001.
p.152.
31 Idem, p.152.
32 Sampaio,2001. op. cit. p.152.

445
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belle époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp,2008.

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446
O Instituto do Ceará e o IHGB: identidade regional a partir do movimento abolicionista
cearense no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX

Camila de Sousa Freire1

Resumo: Neste trabalho buscamos compreender como a abolição dos escravos do Ceará, ocorrida
em 1884, foi utilizada posteriormente, já nas primeiras décadas do século XX, como elemento
fortalecedor da identidade regional, através do trabalho historiográfico empreendido pelo Instituto
Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (1887), em diálogo com o IHGB (1838). Para tanto
utilizamos a Revista do Instituto do Ceará como principal fonte, e trabalhamos com a relação entre
centro e periferia para tratar o contato entre os dois institutos, além de outros conceitos, como o de
alteridade, a relação entre História e memória e a ideia de nação.

Palavras-chave: Abolição, movimento abolicionista cearense, Instituto do Ceará

Abstract: In this work we seek to understand how the abolition of the slaves of Ceará, which occurred
in 1884, was used as a strengthening element of regional identity in the first decades of the 20th
century through the historiographic work undertaken by the Historical, Geographic and
Anthropological Institute of Ceará ( 1887), in dialogue with the IHGB (1838). For this, we use the
Revista do Instituto do Ceará as the main source, and we work with the relationship between center
and periphery to deal with the contact between the two institutes, as well as other concepts such as
alterity, the relation between History and memory and the idea of nation.

Keywords: Abolition, abolicionist movement in Ceará, Institute of Ceará

A criação do IHGB e posteriormente do Instituto do Ceará insere-se em um contexto de discussão


sobre as nações e as nacionalidades na Europa e nas Américas, que marca o século XIX, e sobre o
qual fala Anne-Marie Thiesse2, Benedict Anderson3 e Eric Hobsbawm4. Thiesse trata da formação
dos Estados nacionais na Europa em um processo que é um produto da modernidade e das
transformações da época, mas suas ideias nos permitem refletir sobre o caso brasileiro. Segundo ela,
as nações foram forjadas na tentativa de unificação de um povo a partir de uma identidade comum.
Para isso, foram criadas referências coletivas em um trabalho pedagógico para que esse povo nelas
se reconhecesse. Dessa forma, foram elencados diversos elementos que formariam as identidades

1 Pós-graduanda em História Social da FFP/Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. E-


mail: camilachristi@yahoo.com.br
2 THIESSE, Anne-Marie. “Ficções Criadoras: As identidades nacionais”. Anos 90, Porto Alegre, n. 15,
2001/2002, pp. 7-23.
3 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
4 HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Tradução de
Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. 6ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2013.

447
dessas nações, tais como os ancestrais em comum; a instituição de uma língua nacional; aspectos
culturais, como danças e trajes tradicionais; aspectos naturais, com ênfase em uma paisagem
nacional; e, entre outros, a criação de uma historiografia da nação, onde um passado comum seria
forjado. Estes elementos constituíam o que ela chama de “lista identitária” das nações. Nesse
contexto, foram importantes os trabalhos de romancistas, artistas e eruditos, que buscaram no
passado os elementos necessários para a construção dessa identidade nacional. São definidos também
nesse período os “limites do nacional” 5, ou seja, as fronteiras de cada nação, destacando-se a tentativa
de estabelecer os direitos de propriedade do território a partir dos ancestrais, utilizando-se para isso
a filologia, a etnografia, a arqueologia, a história, entre outros. No entanto, dentro de um território
nacional havia grupos heterogêneos, que poderiam não se sentir representados e até mesmo
reivindicar independência. Segundo Thiesse, o momento não era propício para tais reivindicações e
essas identidades foram então redefinidas como identidades regionais. Segundo ela:
“(...) a construção de identidades nacionais foi acompanhada da elaboração de
identidades locais, concebidas segundo modalidades similares; mas elas foram
colocadas como secundárias, subordinadas à identidade nacional e não
contraditórias com ela.”6

Thiesse destaca também a fundação de museus nacionais de etnografia que surgiram nas capitais
europeias nesse período, bem como sociedades nacionais de etnografia. Estas publicavam revistas
na tentativa de captar o interesse do público para a “cultura popular dentro de uma perspectiva
patriótica”7, ou seja, buscavam a atenção para os elementos nacionais que estavam sendo forjados
naquele momento. No entanto, a autora chama a atenção para o fato de que nesse processo nem toda
cultura popular foi realmente destacada, como a do campesinato por exemplo. São destacados alguns
dos seus elementos, mas o objetivo era principalmente “operar uma renovação da cultura letrada” 8.
A identidade forjada possuía um caráter excludente, selecionando na cultura popular apenas os
aspectos desejáveis à ideia de nação que se queria construir.
Já Benedict Anderson, que vê o nacionalismo como um produto cultural, resultado de um
“‘cruzamento’ complexo de diferentes forças históricas” 9 , se tornando posteriormente produtos
“modulares”, capazes de serem transplantados para outros terrenos sociais e realidades distintas.
Anderson propõe a definição de nação como uma comunidade imaginada, sendo ao mesmo tempo
limitada e soberana. Imaginada, pois a maioria dos membros que a compõem não se conhece e ainda
assim possuem sentimentos de comunhão e fraternidade mútuos. Limitada do ponto de vista das

5 THIESSE, Anne-Marie. Op. Cit.; p. 17.


6 Ibidem, p. 18.
7 Ibidem, p. 16.
8 Ibidem, p. 10.
9 ANDERSON, Benedict. Op. Cit., p. 30.

448
fronteiras territoriais, que são finitas, delimitando seu território e o de outras nações. Soberana como
alternativa ao direito divino, garantindo o ideal de liberdade trazido pela Revolução Francesa e pelo
Iluminismo. Por fim, a nação seria uma comunidade por ser concebida com o que o autor chama de
“camaradagem horizontal” 10, mesmo que existam desigualdades ou explorações em seu interior.
Anderson fala ainda da “construção de genealogias nacionais”11, que seria o processo pelo qual se
relembra os fatos mais marcantes do passado de um povo, afim de legitimar uma nova época em
detrimento de outra anterior. Para ele, as nações do Novo Mundo formadas a partir dos movimentos
de independência não tinham ainda os elementos para formar uma identidade nacional – dos quais
fala Anne-Marie Thiesse –, pois todos esses elementos estavam ligados à Europa. Assim, a solução
teria sido encontrada na história. Sobre essa questão, Anne Marie-Thiesse afirma que quando o
século XIX chega ao fim os principais elementos da “lista identitária” já estarão definidos na Europa,
podendo servir de exemplo para as nações surgidas posteriormente.
Eric Hobsbawm destaca a modernidade da ideia de nação, embora queira-se fazer crer que esta tem
raízes em tradições mais antigas. Ele defende que “o nacionalismo vem antes das nações. As nações
não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto”12; ou seja, o Estado seria fundamental
no processo de construção da nação, tornando possível o sentimento de nacionalidade. Além disso,
seriam “fenômenos duais”, construídas do alto, mas que não podem deixar de ser analisadas também
de baixo, do ponto de vista das “suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das
pessoas comuns.”13. Ele destaca três critérios que permitiam a um povo ser classificado como nação:
associação histórica com um Estado existente ou com um passado razoavelmente durável, ainda que
recente; uma elite cultural estabelecida que possuísse um vernáculo administrativo e literário; e
comprovada capacidade de conquista. A partir de 1880 os elementos constituintes do “sentimento
nacional” (etnicidade, língua, religião, território, história, cultura) passaram a preocupar e o debate
sobre a “questão nacional” intensificou-se, já que havia um apelo político por trás dos slogans
nacionais que visavam mobilizar os votantes. Para ele, aspectos como a língua e a etnicidade foram
problemáticos, devido à heterogeneidade dos povos; sendo essas diferenças utilizadas para distinguir
o outro. No entanto, a base mais forte do protonacionalismo (aspectos já existentes em determinado
grupo e utilizados para forjar os laços nacionais) seria a “nação histórica”, pois “a vinculação a um
Estado histórico (...) pode agir diretamente sobre a consciência das pessoas comuns para produzir
um protonacionalismo – ou talvez até algo próximo do patriotismo moderno.”14. Assim, utilizamos

10 Ibidem, p. 34.
11 Ibidem, p. 266.
12 HOBSBAWM, Op. Cit., p. 19.
13 Ibidem.
14 Ibidem, p. 100.

449
o Benedict Anderson para nos auxiliar a pensar o papel da história, do passado comum pré-existente
ao Estado, bem como as identidades regionais, assim como a Anne Marie Thiesse; enquanto que Eric
Hobsbawm nos auxilia a compreender o papel das instituições no processo de construção da ideia de
nação. Alguns destes elementos podem ser identificados no caso brasileiro, outros não, pois cada
local tem suas especificidades. No entanto, nosso trabalho enfoca no fortalecimento da identidade
nacional e regional a partir da história, neste momento uma história que se queria oficial,
empreendida pelo IHGB e pelos institutos regionais, como veremos.
O IHGB teve influência europeia, iluminista, como destaca Manoel Luís Salgado Guimarães. Como
um Instituto criado na corte do Império, patrocinado pelo próprio Imperador, tinha como objetivo
delinear o perfil da nação brasileira, além de lhe conferir uma identidade própria. Segundo Manoel
Salgado, o IHGB estava inserido em um contexto que tinha como característica “o pensar a
história”15, própria do século XIX. A historiografia construída pelo IHGB buscou a homogeneização
dos aspectos heterogêneos que compunham a sociedade brasileira, formando a ideia de Nação
desejada. De acordo com Guimarães:
“A leitura da história empreendida pelo IHGB está, assim, marcada por um duplo
projeto: dar conta de uma gênese da Nação brasileira, inserindo-a contudo numa
tradição de civilização e progresso, idéias tão caras ao iluminismo. A Nação, cujo
retrato o instituto se propõe a traçar, deve, portanto, surgir como o desdobramento,
nos trópicos, de uma civilização branca e européia. Tarefa sem dúvida a exigir
esforços imensos, devido à realidade social brasileira, muito diversa daquela que se
tem como modelo.”16

Além disso, o IHGB buscava integrar as diferentes regiões do Brasil em uma totalidade. Percebemos
esta atitude nos estatutos de fundação do mesmo, apresentados pelo primeiro secretário Januário da
Cunha Barbosa em 25 de Novembro de 1838, um mês depois de sua fundação:
“(...) as pretensões do IHGB em manter relações com instituições congêneres, quer
nacionais, quer internacionais, e em constituir-se numa central, na capital do
Império, que, incentivando a criação de institutos históricos provinciais, canalizasse
de volta para o Rio de Janeiro as informações sobre as diferentes regiões do país.” 17

O IHGB então passou a patrocinar, a partir da década de 186018, a criação de institutos regionais,
que remeteriam suas contribuições para a sede, situada na Corte. Estes contribuíram com suas

15 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 5.
16 Ibidem, p. 8.
17 Ibidem.
18 Institutos regionais congêneres ao IHGB: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano (1862); Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (1869); Instituto do Ceará (1887); Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia (1894); Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894); Instituto Histórico e
Geográfico de santa Catarina (1896); Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (1900); Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte (1902); Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (1905); Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais (1907); Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1912); Instituto Histórico e

450
histórias, personagens e feitos para a construção da história nacional. Além disso, realizou concursos
para premiar os melhores trabalhos sobre a história do Brasil e excursões ao interior do país em busca
de documentos e conhecimentos acerca das populações distantes e das regiões limítrofes. Já no
período republicano, a partir de 1914, passa a organizar também os Congressos de História Nacional,
nos quais intelectuais de diversas regiões do país deveriam contribuir com trabalhos a serem
apresentados e posteriormente publicados nos anais do evento, dos quais fala Lucia Maria Paschoal
Guimarães19.
O projeto intelectual do IHGB estava alinhado com um projeto político, já que segundo Lucia
Guimarães nasce sob a “imediata proteção do imperador d. Pedro II”20, ou seja, era patrocinado pelo
Imperador e contava com sua presença em eventos e sua opinião sobre as diretrizes do Instituto. A
história do IHGB no Oitocentos foi uma história legitimadora do Imperador e dos feitos do Império.
Na República o mesmo teve que se reinventar e se adaptar ao novo contexto, porém continuou
legitimando o Estado nação e buscando fortalecer o “espírito nacional”, como destaca Lucia
Guimarães. Assim, a criação dos dois Institutos estava inserida no contexto de formação da
identidade nacional brasileira, que seria efetuada pelo IHGB por meio da escrita da história do Brasil,
com a qual contribuiriam também os institutos regionais, com as províncias experimentando um
processo de escrita de suas próprias histórias. Dentre as contribuições do Instituto do Ceará destaca-
se o fato de ter sido a primeira província brasileira a libertar todos os seus escravos. Naquele
momento, os próprios abolicionistas cearenses já viam aquele movimento como pioneiro e como
algo que ficaria marcado para a posteridade, como se pode ver no trecho destacado a seguir, presente
no jornal Libertador, órgão da Sociedade Cearense Libertadora, importante associação abolicionista
daquela província, onde procurava-se destacar a importância daquele evento para a história do país:
“(...) Os membros d'esta associação, considerando que o seu fim estava preenchido
com a libertação total da provincia, resolveram dissolver a mesma sociedade. Ao
historiador imparcial compete o juízo verdadeiro dos esforços e merecimento d'essa
associação, que contou os seus dias por luctas renhidas e fecundas.”21

Podemos perceber uma formação identitária embrionária no próprio movimento abolicionista.


Dentro desta identidade, forjada naquele momento, e da memória que esses abolicionistas queriam

Geográfico do Espírito Santo (1916); Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (1917); Instituto Histórico e
Geográfico Piauiense (1918); Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (1919); Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul (1920); Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (1925); Instituto Histórico e Geográfico de
Goiás (1932), Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia (?);Instituto Histórico e Geográfico do Pará(1944); Instituto
Histórico e Geográfico do Distrito Federal (1964); Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (1957); Instituto
Histórico e Geográfico do Mato Grosso do Sul (1978). Disponível em http://www.ihgb.org.br/ihgb6.php
19 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Platina ao Silogeu: Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.
20 Ibidem, p. 15.
21 Libertador – Fortaleza, n. 160, 1884, p. 2.

451
deixar para a posteridade está a ideia de que o Ceará, apesar de ser uma província pobre, já estaria,
pela suposta abnegação de seu povo, destinado a esta conquista, bem como às glórias e honras
advindas da mesma. Buscaram também, ao final, destacar que em sua atuação não houve
derramamento de sangue ou perturbação da ordem social e, por isso, deveriam ser tidos como
exemplo pelas demais províncias do Império. Além disso, eles estavam contribuindo para uma causa
civilizatória e patriótica, encaminhando o Brasil para o rol dos países civilizados. Esta era a memória
que desejavam que fosse preservada.
Para Michael Pollak uma das funções da memória é dar coesão e identidade a um grupo 22. Pollak 23
nos diz ainda que a memória, coletiva ou individual, é formada por acontecimentos, identificação
com certo período histórico (ou memória herdada), personagens e lugares e que todos esses aspectos
são comuns ao grupo. Logo, a memória constitui a identidade, sendo construída, forjada e seletiva.
Pollak também aborda a questão da memória nacional e diz que: “A memória organizadíssima, que
é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para
determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo”24. Não são
todas as memórias do grupo que fazem parte da história nacional, mas algumas são selecionadas em
detrimento de outras no momento em que a nacionalidade é forjada. É o que vemos acontecer com
o Ceará no contexto analisado. Buscou-se a formação de uma identidade a partir da memória de seu
movimento abolicionista para que o Ceará fosse valorizado diante das demais províncias do Império
e das nações ditas civilizadas. O papel de fortalecer essa identidade coube, em grande parte, ao
Instituto do Ceará.
O Instituto do Ceará foi fundado em um contexto onde agremiações como esta eram
caracterizadas por suas práticas intelectuais e políticas, ou seja, imbuídas de um caráter científico, e
também se interessavam e interferiam politicamente em seu meio social através de suas produções.
Gleudson Passos Cardoso25 aborda em seu trabalho os movimentos intelectuais que ocorreram no
Ceará entre 1873 e 1904, focalizando principalmente nas organizações e movimentos literários. Este
nos mostra o contexto de efervescência intelectual pelo qual passava o Ceará naquele momento,
principalmente em Fortaleza. Lá eram pensados modelos de Estado e nação no período de fim da
monarquia e das décadas iniciais do regime republicano. Acreditamos que o Instituto do Ceará esteja
inserido neste contexto a partir de 1887, como instituição que legitimaria a identidade regional

22 POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. Estudos Históricos, RJ, vol.2, n.3,1989,p.
7.
23 POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. Estudos Históricos, RJ, vol 5, n. 10, 1992,pp.
200-212.
24 Ibidem, p. 204.
25 CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa e política
(1873-1904). Dissertação de Mestrado. Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, 2000.

452
cearense a partir do uso da memória daquele acontecimento na escrita da História da província.
Gleudson Cardoso defende que houve nesses espaços letrados a construção de um “ideário ilustrado
cearense para o Estado e Nação brasileiros diante da transição política” 26. Ideário fundamentado em
três bases: a chegada das “Luzes” e as ideias eurocêntricas que norteavam o progresso rumo à
civilização, que conquistavam espaço entre os intelectuais cearenses naquele período; as secas, que
foram interpretadas como uma fase evolutiva, dentro dos conceitos evolucionistas também em voga
naquele momento; e a libertação dos escravos em 1884, tida pelos intelectuais da Mocidade
Cearense27 como uma conquista institucional perante o restante do país. Dessa forma, o Instituto do
Ceará, com o objetivo de tornar conhecida a história da província e a produção destes intelectuais
neste sentido, fundou sua própria revista, a Revista do Instituto do Ceará, em 1887, no mesmo ano
da fundação do Instituto. Em seus artigos podemos perceber a exaltação daqueles acontecimentos.
Destaco um artigo de 1956, intitulado “Uma história da Abolição”, de Mozart Soriano Aderaldo:
“(...) A libertação dos escravos é, sem sombra de dúvida, o mais empolgante feito
de tôda a nossa evolução político-social, superando mesmo o movimento em favor
da República e, até, a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, em 1824,
que tantas glórias acrescentaram à substancial soma de sofrimento por que já havia
passado e haveria ainda de passar o povo cearense. Dado que sua significação
transbordou as nossas lindes políticas, não sòmente em relação as demais regiões
do País, como aos mais distantes e cultos povos do mundo civilizado, mereceu o
Ceará, por tal feito, a antonomásia de ‘Terra da Luz’, com se aquela outra – ‘Terra
do Sol’ – não bastasse para fixar nossa feição particular.”28

O autor reclamava para a abolição do Ceará importância maior que a sua participação na Revolução
Pernambucana de 1817, na Confederação do Equador, em 1824, e até mesmo na proclamação da
República, em 1889. Além disso, vemos que o autor destacou o fato de o movimento abolicionista
cearense não ter ficado restrito ao Ceará, mas ter conseguido atrair não só os olhares das outras
províncias, como também de outros países, ditos civilizados. Ele o fez em referência a um jantar
organizado em Paris por José do Patrocínio por ocasião da libertação dos escravos do Ceará, onde
compareceram diversos intelectuais franceses. Nessa ocasião, foi convidado para o jantar o escritor
Victor Hugo, personalidade vista com muita admiração pelos abolicionistas cearenses. Victor Hugo
alegou não poder comparecer por motivos de doença, mas enviou um bilhete parabenizando o Ceará,
que foi publicado no jornal Gazeta da Tarde e citado no trabalho de Lusirene Ferreira:

26 Ibidem, p. 10.
27 Movimento letrado ocorrido no Ceará na década de 1870 e que deu origem a agremiações, clubes e
sociedades literárias.
28 ADERALDO, Mozart Soriano. “Uma História da Abolição”. Revista do Instituto do Ceará,
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, Tomo LXX, 1956, p. 160.

453
“Uma província do Brazil acaba de declarar abolida a escravidão em seu território.
Para mim esta notícia é immensa. (...) O Brazil deu na escravidão um golpe
decisivo.”29

Dessa forma, podemos perceber um claro trabalho de fortalecimento de uma memória coletiva
regional que mostrasse o quanto o Ceará teria contribuído para a história nacional, tanto por seus
feitos quanto por suas personalidades, como também vemos ser destacado nas figuras de Francisco
José do Nascimento, o Dragão do Mar, que ficou conhecido como líder da greve dos jangadeiros,
quando estes fecharam o porto de Fortaleza ao embarque de escravos em 1881; e Pedro Pereira da
Silva Guimarães, deputado cearense que apresentou já em 1850 um projeto de lei que previa a
libertação de escravos recém nascidos, sendo por isso considerado, nos artigos da Revista, como
percursor da Lei do Ventre Livre. Fica clara também a busca pelo reconhecimento de seus supostos
feitos e pelo olhar das outras províncias e de outros países, desejo este presente desde o momento
em que o movimento abolicionista se desenrolava, e que adentra o período republicano, como
exemplificamos, na tentativa de cooperação na escrita da história nacional. Tzvetan Todorov nos
esclarece sobre a busca por reconhecimento através do olhar do outro, aspectos muito presentes nos
discursos dos abolicionistas cearenses. Para ele, o reconhecimento é uma condição inerente à própria
existência do ser humano, confirmando-a a partir do outro. Sendo assim, toda coexistência em
sociedade é uma constante busca por reconhecimento. Quando fala sobre o reconhecimento nas
relações hierárquicas, Todorov afirma que:
“(...) ela [a demanda por reconhecimento] pode também articular-se com relações
nas quais a presença de uma hierarquia permite evitar conflitos. A superioridade ou
a inferioridade dos parceirosé, frequentemente, dada de antemão; cada um deles não
deixa de desejar a aprovação do outro.” 30

Esta demanda por reconhecimento está muito ligada a um regionalismo e uma busca por por
identidade regional. Anne-Marie Thiesse também se propõe a pensar o regionalismo, a partir do
exemplo da França durante a Terceira República (1870-1940) 31 . Ela procura demonstrar como,
durante esse período na França, o regionalismo foi utilizado para demonstrar ao mesmo tempo a
diversidade e a união da França, onde a diversidade compunha a nacionalidade. Assim, o
regionalismo não foi construído em oposição ao nacional, mas para completar e corrigir o
centralismo excessivo em Paris, que começou a ser contestado em meados do século XIX. Dessa

29 GAZETA DA TARDE, 1884; Apud FERREIRA,Lusirene Celestino França. Nas asas da Imprensa: A
repercussão da abolição da escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de Janeiro (1884-1885).
Dissertação de Mestrado. São João del-Rei – UFSJ. 2010, p. 126.
30 TODOROV, Tzvetan. A vida em comum: Ensaio de Antropologia Geral.São Paulo: Editora Unesp,
2014, p. 117.
31 THIESSE, Anne-Marie. “’La Petit Patrieenclosedansla grande’: regionalismo e identidade nacional
na França durante a Terceira República (1870-1940)”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 3-16.

454
forma, Thiesse destaca que “o regionalismo, portanto, desempenha na história francesa um papel de
consolidação da identidade nacional, relegado com frequência ao segundo plano, mas subitamente
colocado em evidência nos períodos de crise intensa” 32. Crise que naquele momento tinha como
principais motivos este centralismo político e econômico em Paris, visto como um desequilíbrio,
além da derrota francesa para a Alemanha na Guerra Franco-prussiana em 1870, que levou dirigentes
e intelectuais a buscarem novos elementos que demonstrassem a excelência francesa. Essa grandeza
consistia em sua diversidade, que fazia da França um país “abençoado pela natureza” e “o resumo
ideal de toda a Europa”33.
Assim, o patriotismo consistia em “conhecer, amar e avivar” 34 a diversidade francesa. Ela
destaca que a escola teria importante papel neste sentido, já que era ali que as crianças primeiramente
aprendiam sobre a “pequena pátria”, a região, para depois aprender sobre a “grande pátria”, a nação,
onde a região estaria inserida, contribuindo para a sua unidade. Ela destaca o surgimento de
Sociedades Regionalistas a partir do início do século XX, assim como museus de folclore, festivais
de danças folclóricas e uma importante produção literária regionalista, de grande êxito entre o
público, entre os anos de 1900-1930. Ela cita ainda a Exposição Internacional de Artes e Técnicas,
realizada em Paris em 1937, onde os países tiveram oportunidade de expressar sua identidade
nacional e seus projetos políticos, tendo a França como tema de sua seção o regionalismo.
Dessa forma, a autora nos mostra como na França, o regionalismo atuou fortemente como
elemento de consenso da consciência nacional, sendo utilizado no sentido de união. Apresentava-se
ainda como agente da paz social e superação dos conflitos, sendo utilizado em momentos de crise,
onde cada região possuía sua identidade própria, iguais em direitos, que se complementavam no todo
nacional. O que não foi diferente do que aconteceu no Brasil, como demonstramos neste trabalho,
onde buscava-se uma hegemonia diante da diversidade do país, desde a segunda metade do século
XIX, e que continua nas primeiras décadas do século XX, mesmo com as reconfigurações políticas
de cada período. No que diz respeito à escrita da história, que é nosso objeto principal, vemos como
o IHGB buscou a cooperação das regiões, que a partir de suas histórias peculiares, contribuiria para
a história e a identidade nacionais, ao mesmo tempo em que fortaleciam suas próprias identidades
regionais, como no caso do Ceará.
Pierre Bourdieu35 afirma que nas lutas pela identidade regional, são desejados os meios de
divisão pelos quais se formam e se reconhecem os grupos. Essa divisão legítima consiste no “ato de

32 Ibidem, p. 5.
33 Ibidem, p. 6.
34 Ibidem, p. 7.
35 BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a
ideia de região”. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989, pp. 107-132.

455
autoridade” de “circunscrever a região, o território” e de “impor a definição (...) legítima, conhecida
e reconhecida, das fronteiras e do território, em suma, o principio de divisão legítima do mundo
social.”36 Pois, nas lutas regionais, os grupos são estigmatizados e essas divisões territoriais e sociais
são arbitrárias, impostas por aqueles que possuem “autoridade”, que consiste em se afirmar uma
verdade, que gera reconhecimento, produzindo “a existenciadaquilo que se enuncia” 37 . Assim, a
figura de autoridade – que podemos dizer ser o centro, dentro da perspectiva adotada por Ginzburg,
que discutiremos adiante – impõe todas essas características à região ao afirmar “com autoridade,
quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao
arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como
conformes à natureza das coisas (...)”38. Assim, é justamente essa autoridade que os grupos regionais
buscam subverter, e tomar para si, para caracterizar sua própria identidade.
Ele fala ainda sobre o discurso regionalista, dizendo ser performativo, ou seja, tem em vista
“impor como legítima uma nova definição de fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região
assim delimitada”39, em oposição a uma definição dominante já existente. A eficácia do discurso
performativo consiste na autoridade de quem o enuncia. O discurso produz o que está enunciando,
mas quem anuncia deve estar imbuído de autoridade para tanto. Aqui é importante destacar também
a abordagem do autor sobre o papel do discurso científico para legitimar determinadas classificações.
Pensamos ser interessante observar o Instituto do Ceará sob este prisma, como um lugar de
autoridade para emitir estes discursos científicos, já que este pode ser importante para atrair o
reconhecimento para a região. O que é justamente o objetivo do Instituto do Ceará. Para Bourdieu,
“qualquer enunciado sobre a região funciona como um argumento que contribui – tanto mais
largamente quanto mais largamente é reconhecido – para favorecer ou desfavorecer o acesso da
região ao reconhecimento e por este meio à existência” 40 , já que o reconhecimento confere
existência, de acordo com Todorov, como já vimos. Para este, “muito antes de buscar a satisfação
dos sentidos, os seres humanos desejam reconhecimento simbólico (...)”41. Bourdieu também adota
esse ponto de vista ao dizer que nas lutas regionais os agentes colocam toda sua vitalidade, todo seu
“ser social”42, já que o valor do indivíduo se reduz à sua identidade. Eles colocam em jogo o que
entendem por “nós” em oposição aos “outros”43.

36 Ibidem, p. 114.
37 Ibidem.
38 Ibidem.
39 Ibidem, p. 116.
40 Ibidem, p. 120.
41 TODOROV, Op. Cit., p. 128.
42 BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., p. 124.
43 Ibidem.

456
Assim, a luta regional teria como objetivo a “reapropriação coletiva deste poder sobre os
princípios de construção e de avaliação da sua própria identidade (...)”44. Para tanto, eles se utilizam
até mesmo dos estigmas que lhes são impostos em seus discursos por reconhecimento. O estigma
confere as determinantes simbólicas e seus “fundamentos econômicos e sociais” que se tornam os
“princípios de unificação do grupo e pontos de apoio objetivos da ação de mobilização” 45. É o que
também vemos ocorrer no caso do Ceará, que utiliza o estigma de província pobre, castigada pelas
secas, para conseguir reconhecimento na medida em que, apesar dessas características adversas do
meio, consegue um feito considerado glorioso como ser a primeira província do Brasil a libertar
todos os escravos. A luta regionalista seria também uma “resposta à estigmatização que produz o
território.”46 Se a região não fosse um “espaço estigmatizado”, ou seja, uma província definida pela
distância econômica e social em relação ao centro, privada do capital material e simbólico, que se
concentra também no centro; não poderia reivindicar uma existência. Aqueles que fazem parte da
região estigmatizada lutam justamente porque esta “existe como unidade negativamente definida
pela dominação simbólica e econômica (...)”47.
Nesse sentido, buscamos analisar a relação entre o Ceará e o Rio de Janeiro a partir da relação
entre centro e periferia, abordada por Carlo Ginzburg48. Este analisa a história da arte italiana, onde
Roma era considerada o centro, atraindo artistas de diversas províncias da Itália, impondo as técnicas
e estilos de arte a serem seguidas pelos demais. Logo, o centro é caracterizado pela imposição de
modelos e como um lugar de atração, buscando dominar política e culturalmente as periferias. Porém,
essa relação entre o centro e as periferias, apesar de ser conflituosa, é também fluida, de trocas
recíprocas e passível de transformações. Apesar de o Rio de Janeiro ter se caracterizado como centro,
por ser a Corte e o núcleo administrativo e econômico do Império, principalmente com o
desenvolvimento da atividade cafeeira, e o Ceará, como uma província pobre e fustigada pelas secas,
ter sido caracterizado como periferia, vemos que estas definições mudam no que se refere ao
movimento abolicionista, com o Ceará se tornando o centro das atenções nacionais. Inclusive era
constantemente notícia na imprensa da Corte49. A notícia da abolição dos escravos do Ceará, que
seria formalizada em uma cerimônia no dia 25 de Março de 1884, causou grande comoção no Rio de
Janeiro, onde houve comemorações por meses, sendo o ponto alto a visita do jangadeiro Francisco

44 Ibidem, p. 125.
45 Ibidem.
46 Ibidem, p. 126.
47 Ibidem.
48 GINZBURG, Carlo. “História da arte italiana”. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico;
PONI; Carlo (Orgs). A Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.
49 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: José do Patrocínio e a imprensa abolicionista
do Rio de Janeiro. Niterói: Editora da UFF, 2014.

457
José do Nascimento, o Dragão do Mar50. Nesse momento, o Ceará estava literalmente no centro das
atenções, no centro do Império, demonstrando essa inversão da relação entre centro e periferia.
Também percebemos essa relação no que diz respeito à escrita da História empreendida pelo IHGB
e pelo Instituto do Ceará, onde aquele Instituto, em uma posição centralizadora, recolhe as
contribuições dos Institutos regionais. Para Ana Paula Barcelos, essa relação se caracteriza por um
movimento de “aproximação e afastamento entre a História regional e a nacional” 51 , de trocas
constantes, em uma via de mão dupla, já que estes intelectuais dos institutos regionais viam nesta
aproximação uma oportunidade de afirmação diante do país. De um lado, o Ceará contaria sua história
para o restante do país; de outro, o IHGB buscava a unidade e participação da província na história
nacional, obtendo ainda documentos e publicações para seu acervo. Assim, acreditamos que a relação
entre os dois Institutos se caracteriza pela reciprocidade, onde o Instituto do Ceará tentava
demonstrar, a partir de documentos, que houve muitos episódios e personagens importantes para a
história do Brasil no Ceará, como a abolição dos escravos em 1884, por exemplo. Os intelectuais do
Instituto buscaram, então, romper com o estigma do atraso a partir do pioneirismo da abolição.

A partir da discussão apresentada podemos perceber o trabalho empreendido por aquele


Instituto na tentativa de formação de uma identidade a partir da memória daqueles acontecimentos.
Inclusive alguns associados do Instituto do Ceará estiveram diretamente envolvidos no movimento
abolicionista naquela província, como, por exemplo, o Barão de Studart, Antonio Bezerra de
Menezes, Rodolpho Teophilo e o padre João Augusto da Frota. Estes buscaram levar a memória
daqueles acontecimentos para o Instituto do Ceará, que atuou diretamente junto ao IHGB e a outras
instituições do Rio de Janeiro a fim de lhe conferir um lugar na história nacional. Desta maneira,
vemos como foi empreendido o trabalho do Instituto do Ceará em relação à história da abolição dos
escravos daquela província, consolidando-a no momento de reconstrução da nacionalidade
brasileira, já nos últimos anos da Monarquia e no início da República, estendendo-se por boa parte
do século XX. Uma história que vai contar com elementos da memória coletiva construída sobre a
abolição e, ao mesmo tempo, contribui para sua consolidação.

50 FERREIRA, Lusirene Celestino França. Op. Cit.


51 SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da. “‘Nem História nem mesmo Chronica’: escrita da história,
identidade e integração nacional no intercâmbio entre o IHGB e o Instituto do Ceará (1889-1931)”. R. IHGB, Rio de
Janeiro, a. 177(471): 101-124, abr./jun. 2016, p. 8.

458
Bibliografia:

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do


nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a
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CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa e política
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FERREIRA, Lusirene Celestino França. Nas asas da Imprensa: A repercussão da abolição da


escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de Janeiro (1884-1885). Dissertação de
Mestrado. São João del-Rei – UFSJ. 2010.

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1989.

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GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.Da Escola Platina ao Silogeu: Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.

HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Tradução
de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino, 6ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2013.

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POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. Estudos Históricos, RJ, vol 5, n. 10, 1992,pp.
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SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da. “‘Nem História nem mesmo Chronica’: escrita da história,
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THIESSE, Anne-Marie. “Ficções Criadoras: As identidades nacionais”. Anos 90, Porto Alegre, n.
15, 2001/2002, pp. 7-23.

______. “’La petite patrie enclose dans la grande’: regionalismo e identidade nacional na França
durante a Terceira República (1870-1940)”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995,
pp. 3-16.

459
TODOROV, Tzvetan. A vida em comum: Ensaio de Antropologia Geral. São Paulo: Editora Unesp,
2014.

460
Encontrada em Zungu. Mulheres negras na rede de apoio a escravos, livres e libertos no Rio
de Janeiro oitocentista

Camila Welikson1

Resumo: Desde 1808, quando a família Real portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro, a cidade
passou por grandes transformações; manteve, no entanto, a escravidão como um de seus aspectos
mais marcantes até o final do século XIX, mesmo que a proibição definitiva do tráfico tenha ocorrido
em 1850. Neste cenário escravista e altamente patriarcal, mulheres negras desenvolveram uma rede
de apoio aos escravos, livres e libertos através do provimento de moradia e alimento. Esta malha de
auxílio foi cimentada, em parte, dentro de Zungus, espaços de convivência e ajuda mútua.

Palavras-chave: Escravidão urbana – Mulheres – Zungus

Abstract: Since 1808, when the Portuguese royal family landed in Rio de Janeiro, the city went
through major transformations; it maintained, however, slavery as one of its most striking aspects
until the end of the 19th century, even though the definitive prohibition of the traffic occurred in
1850. In this scenario, highly patriarchal, slave women have developed a support network to black
people, delivered through the provision of housing and food. This mesh of aid was cemented, in part,
in Zungus, spaces of coexistence and mutual aid.

Keywords: Urban slavery –Women – Zungus

No dia 3 de setembro de 1867, na freguesia de Santa Rita, no centro do Rio de Janeiro, as


escravas Bemvinda, Jovita, Luiza, Maria e Júlia, e as negras livres Esperança, Felicidade Maria da
Conceição, Benedita Anna e Felicidade Feliciana foram presas por serem encontradas em Casa de
Zungu2.
A informação faz parte da seção de prisões do Jornal do Commercio e é apenas mais uma
entre inúmeras notas sobre a detenção de negras, escravas ou não, no Rio de Janeiro oitocentista. Ao
longo do século XIX, as seções de prisões eram comuns nos jornais e os comunicados a respeito de
mulheres presas em Casas de Zungu, recorrentes. Estes recintos, vistos com desconfiança pela elite
e pela polícia, funcionavam como espaços de solidariedade e ajuda mútua no meio urbano, eram
abrigos para fugidos, lugares para descansar e se alimentar na cidade. Há indícios de que
funcionavam também como lugares para práticas sexuais.
Apesar de haver ainda muitas perguntas e poucas respostas sobre as Casas de Zungu, uma
particularidade sobre elas é precisa: muitas mulheres negras eram personagens frequentes ali. A
participação feminina nestes locais nos permite pensar a História do Rio de Janeiro do século XIX

1 Mestre pela Universidade Nova de Lisboa e graduada em História pela PUC-Rio.


Email: camilawelikson@hotmail.com
2 Jornal do Commercio, 4 de setembro de 1867. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

461
sob uma perspectiva diferente, em que a mulher negra é estudada não apenas como personagem, mas
como protagonista.
Para entender como a mulher negra alcançou uma posição de destaque nas Casas de Zungu,
é importante salientar que o crescimento do Rio de Janeiro ao longo do XIX e a política de Estado
que defendia a escravidão no Brasil foram dois fatores que permitiram o desenvolvimento de uma
realidade bastante singular, marcada por paradoxos.
A classe senhorial tentava organizar a cidade de acordo com o conceito europeu de
civilização, porém, as ruas eram ocupadas por escravos, livres e libertos, africanos ou crioulos,
personagens incompatíveis com o ideal de ordem e civilidade da elite branca e, ao mesmo tempo,
parte intrínseca da estrutura urbana escravista estabelecida por esta mesma elite.
Neste cenário, as possibilidades de trabalhar ao ganho, conquistando assim certa autonomia,
e "morar sobre si", alcançando, desta forma, um pouco de liberdade, deram aos escravos a chance de
estabelecer uma ordem própria, em que a mulher ocupava um papel fundamental.
Muitas delas eram quitandeiras, viviam a vender seus produtos e a relacionar-se com clientes,
fornecedores e todos aqueles que também frequentavam as ruas, largos, praças e mercados da cidade.
Elas ocupavam os espaços urbanos como especialistas das ruas, preparadas para percorrer os becos
e vielas da cidade e se defender de possíveis ameaças comuns nas vias públicas; eram como
"empresárias" que alimentavam a cidade, literalmente, com o angu, o prato que muitas serviam e
que, presumivelmente, deu origem ao termo "zungu", e, metaforicamente, atuando de forma
expressiva e indispensável dentro da rede de solidariedade e resistência negra que acontecia pelos
becos de uma sociedade urbana escravista marcada por imbróglios de ordem social. E, talvez, tenha
sido justamente esta desenvoltura e conhecimento do meio urbano que tenha lhes dado mais pujança
para, dentro do possível, trilhar seus próprios caminhos.
Quem circulava entre elas – africanos, crioulos, brancos pobres e comerciantes mais
abastados – as respeitavam, independentemente de serem escravas, livres ou libertas. Ao tecer estas
relações, elas adquiriam poder e conseguiam, assim, ajudar a comunidade negra.
É interessante destacar, por exemplo, uma prática que se repetiu diversas vezes entre as muitas
libertas que compravam escravas para lhes ajudar no trabalho nas ruas: deixar bens materiais a estas
cativas em testamento, além de lhes dar a alforria. 3

3 É possível que houvesse gratidão pelo trabalho das escravas e por sua ajuda na aquisição de bens, ou talvez o
estabelecimento de laços afetivos, ou ainda identificação com as histórias de vidas de todas as envolvidas, o fato é que
esta prática permitiu uma reprodução de mobilidade ascendente entre mulheres. A alforria e ascensão de uma negra
permitia que o mesmo se passasse com outras e, consequentemente, isto afetava suas famílias. Para saber mais, ver Reis,
2012.

462
Muitas mulheres negras, ao trabalhar nas ruas, conseguiram juntar dinheiro suficiente para
alugar os espaços conhecidos como Zungus. Elas, então, utilizavam estes locais para prover moradia
e alimento a quem necessitasse.
É importante ressaltar que os Zungus não foram criados pelas mulheres. Na verdade, seu
surgimento e crescimento se deu graças ao costume dos escravos de “morar sobre si”, expressão que
significava dormir fora da residência de seus proprietários. No meio urbano, durante o período
joanino, o cativo pôde experimentar diferentes formas de “morar sobre si”. A prática de passar a
noite longe do olhar senhorial era resultado de uma relação estabelecida entre cativos e seus donos.

Ainda que as residências senhoriais reservassem um espaço à sua escravaria, por


menor que fosse, muitos cativos conseguiram acordar com seus amos a
possibilidade de habitarem outros locais. 4

A permissão para que os escravos "morassem sobre si" era interessante ao senhor, pois era
uma forma de cortar gastos. Para além dos seus interesses, havia, evidentemente, os interesses dos
próprios escravos que viam nesta situação uma boa oportunidade para gozar de um pouco de
autonomia e alguma “liberdade”, mesmo que o custo financeiro fosse alto. Esta era, portanto, uma
prática comum no Rio de Janeiro oitocentista, apesar de ir contra os princípios de uma Corte
“civilizada”, de acordo com as ideias da elite.
Eram vários os modos encontrados pelos escravos de passar a noite longe dos seus senhores.
Alguns dividiam seus espaços com negros libertos, outros viviam em casas de conhecidos ou
“parentes de nação”, em situação que ficou conhecida como “dar coito”, ou seja, dar abrigo.
Em muitos casos, a expressão significava que havia um escravo fugido escondido em determinada
casa. Não era raro encontrar anúncios de jornal recriminando e ameaçando punir aqueles que davam
coito a escravos fugidos, como as duas publicações a seguir:

Fugiu no dia 26 de dezembro um preto por nome Manoel, olhos grandes, cara
redonda, e coixo da perna direita, é de nação Cabinda; quem dele tiver notícias, ou
o levar na Gavia a sua Sra. Anna Barbosa, e nesta Cidade na rua Direita do Catete,
armazém n. 180, receberá boa recompensa do seu trabalho, outro sim protesta-se
com todo o rigor da Lei, contra qualquer pessoa que lhe dê coito em sua casa.5

Fugiu no dia 12 do corrente, uma preta, crioula, de meia idade, de nome Thereza,
levou vestido de riscado azul, um lenço grande de touquim cor de azeitona, usado,
um dito branco de riscas azuis, amarrado na cabeça, alta, tem uma pequena belide
em um olho, e uma cicatriz na cara; a pessoa que a agarrar e a levar ao Quartel da
Guarda velha a José Maria de Azevedo, será gratificado; e se protesta contra quem
lhe der coito.6

4 SANTOS, 2006, p. 100.


5 Diário do Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1831. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
6 Diário do Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1836. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

463
Os anúncios indicam que os escravos contavam com a ajuda de homens e mulheres livres,
dispostos a lhes dar abrigo. Nestes casos, havia punições para os cativos pelo fato de estarem fugidos
e os que lhes davam abrigo estavam sujeitos a prisões e multas.
De qualquer forma, apesar das publicações de jornal indicarem que “dar coito” significava
esconder um escravo fugido, Ynaê Lopes dos Santos defende a ideia de que a expressão poderia
significar também o ato efetivo do escravo morar longe do seu proprietário. Para a autora, o coito
oferecido a escravos seria uma forma de prover uma moradia em lugar diferente da residência
senhorial, “mesmo que esse morar não fosse acordado com seus proprietários”. 7
De acordo com Mary Karasch, enquanto muitos escravos dormiam fechados no chão dos
próprios locais de trabalho, como armazéns, oficinas, lojas e fábricas, e algumas vezes, acorrentados,
outros buscavam seu próprio espaço para passar a noite.

Moradias de escravos no Rio eram simples cabanas de taipa com tetos de palha, e
escravos achavam áreas do Rio onde construir ou alugar suas malocas por contra
própria. Alguns se refugiavam em morros como o do Castelo, ou nos pântanos da
Cidade Nova, ou nos subúrbios distantes do centro. 8

A independência do Brasil e o processo de formação do Estado nacional não provocaram


modificações estruturantes em relação aos escravos. O Estado brasileiro decidiu manter, inclusive
no espaço urbano, muitas das leis e práticas do sistema escravista vigente. Assim, a dependência em
relação ao trabalho escravo permanecia. Porém, a polícia passou a controlar com mais rigor a
movimentação dos escravos nas ruas do Rio.
Até 1838, não havia sido publicada nenhuma postura municipal ou lei do Estado que
mencionasse a questão da moradia dos escravos – a polícia e outros órgãos administrativos
intervinham apenas em casos de perigo à ordem e ao “bem viver”. Em 1839 e 1840, um Projeto de
aditamento às posturas municipais de 1838 abordou este assunto.

Fica proibido aos Senhores de escravos consentirem que eles morem sobre si, a
pretexto de quitandarem, ou por qualquer outro: os transgressores serão punidos
com 5 a 15 dias de prisão, e multa de 10 a 30$ e os escravos castigados com 100
açoites, e trarão por 1 ano ferro ao pescoço, penas estas que serão dobradas havendo
reincidência.9

Pela primeira vez, o Estado propunha uma intervenção direta em um acordo que, até então,
era estabelecido entre senhor e escravo e, portanto, pertencia ao âmbito privado.

7 SANTOS, 2006, p. 95.


8 KARASCH, 2000, p. 105.
9 AGCRJ - Posturas e editais da Câmara Municipal do Rio de Janeiro: 1821-1890. Códice 6.1.28.

464
O castigo do cativo era o uso do ferro no pescoço, a mesma penalidade dada aos escravos
fugidos. De acordo com Ynaê Lopes dos Santos, esta decisão indicava que a Câmara Municipal
passava a entender o "morar sobre si" como uma fuga. Mais que isso, a Câmara Municipal passava
a considerar o senhor tão responsável pelo crime como o escravo. Talvez, por isso, a lei não tenha
sido sancionada.

Antes de mais nada é fundamental salientar que esse projeto ia além dos limites
razoáveis da interferência estatal, na medida em que propunha não só a multa como
a prisão do senhor, caso seu escravo fosse encontrado morando sobre si. Essa
medida do artigo 14º do projeto de aditamento chega a ser absurda, pois a um só
tempo ia contra o direito de propriedade garantida a todos os cidadãos, como tornava
o proprietário um refém em potencial de seus próprios cativos. 10

Ao longo do século XIX, ainda de acordo com Santos, a negociação sobre a moradia escrava
aconteceu exclusivamente no âmbito privado. Só houve a intervenção do Estado quando a ordem e
a segurança da cidade foram colocadas “em risco”, na visão da elite senhorial.
Mas, de forma geral, muitos foram os escravos urbanos que conseguiram morar longe da vista de
seus donos. Espaços de autonomia foram conquistados com negociações diretas ou, em casos de não
haver acordo, a partir de fugas, temporárias ou não.
É importante lembrar, também, que a posição socioeconômica dos senhores era fundamental
na determinação do tipo de moradia dos seus cativos. Abster-se dos custos de manter um cativo em
sua própria residência significava uma vantagem para muitos dos proprietários pertencentes a uma
“classe média senhorial”. Para estes, mesmo que soe paradoxal, “a permissão e o respeito pela
autonomia cativa no espaço urbano, inclusive as diversas formas de morar sobre si, foi um dos modos
mais seguros de controlar o cativo”. 11
Foi neste contexto que surgiram os Zungus, porém, com características especiais, pois além
de moradia, tinham também outras funções e, por esta razão, foram considerados um problema de
segurança pública no século XIX e foram proibidos pela Câmera Municipal do Rio de Janeiro:

São proibidas as casas conhecidas vulgarmente pelos nomes de casas de zungu e


batuques. Os donos, ou chefes, de tais casas serão punidos com a pena de oito dias
de prisão e 30$000 de multa, e, nas reincidências, com as de 30 dias de prisão e
60$000 de multa.12

10 SANTOS, 2006, p. 135.


11 SANTOS, 2006, p. 149.
12 AGCRJ - Posturas e editais da Câmara Municipal do Rio de Janeiro: 1821-1890. Item documental BR
RJAGCRJ.CM.POM.2.2.004. Disponível em http://wpro.rio.rj.gov.br/arquivovirtual/web. Acesso em 04 de janeiro de
2017.

465
É curioso que as Casas de Zungu tenham passado despercebidas por vários historiadores; o
fato de terem sido proibidas nos faz concluir que tiveram bastante importância no espaço urbano
carioca e, como já dissemos anteriormente, nestes locais, as mulheres conquistaram um papel de
destaque.
Do ponto de vista da elite econômica e política do Rio de Janeiro, os Zungus eram espaços
de desordem, anarquia e confusão. De acordo com Beaurepaire-Rohan, que além de Diretor de Obras
do Rio de Janeiro, foi também autor de um dicionário de vocábulos brasileiros, os Zungus eram
frequentados por pessoas de classe baixa que usavam o local para imoralidades.

Zungú: casa dividida em pequenos compartimentos, que se alugam, mediante paga,


não só para dormida da gente de mais baixa ralé, como para a prática de
imoralidades, e serve de coito a vagabundos, capoeiras, desordeiros e ébrios de
ambos os sexos. 13

Esta visão deletéria desconsiderava o significado desses locais pelos próprios frequentadores.
Para Carlos Eugênio Líbano Soares, o primeiro historiador a se dedicar com mais atenção ao tema,
os Zungus foram criados como locais de refeição, onde negros (africanos e crioulos) dividam o
alimento; rapidamente tornaram-se microcomunidades de negros que fugiam dos olhares
inquisidores dos brancos para buscar refúgio em ambientes fechados e clandestinos. Tornaram-se
um ponto de encontro de negros, fossem escravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos, que
encontravam ali alimento e abrigo e poderiam realizar práticas culturais e religiosas; para os
fugitivos, serviam como esconderijo temporário. Enfim, eram espaços de solidariedade em uma
sociedade urbana escravista, portanto hostil aos negros, e tornaram-se mais um espaço de
convivência:

Onde as fronteiras étnicas urbanas foram relidas, interpretadas e modificadas por


aqueles que chamamos genericamente de africanos ou crioulos. Um local de
encontro, de troca, de solidariedade, onde a fronteira étnica podia ter,
momentaneamente, pouca importância como fator de cizânia. 14

O angu, comida consumida em todo o Brasil, é a provável origem do nome Zungu. Debret
descreve o que era o alimento e quem eram as negras vendedoras de angu:

É ainda na classe das negras livres que se encontram as cozinheiras vendedoras de


angú. Para o exercício dessa indústria suplementar bastam-lhes duas marmitas de
ferro batido colocadas sobre fornos portáteis; um pedaço de pano, de lã ou de
algodão, por cima da tampa de cada marmita, completa o aparelhamento culinário,
a que se acrescentam duas grandes colheres de pau de cabo comprido. Conchas
grandes e chatas e cacos de barro fazem as vezes de pratos para os transeuntes que

13 BEAUREPAIRE-ROHAN apud SOARES, 1998, p.34.


14 FARIAS et al, 2006, p. 92.

466
se lembram de parar, e uma concha volumosa de marisco serve de colher (...). As
vendedoras de angú são encontradas nas praças ou em suas quitandas, que também
vendem legumes e frutas. A venda começa de manhã, lá pelas 6 horas e vai até às
dez, continuando do meio-dia às duas, hora em que se reúnem em torno delas os
operários escravos que não são alimentados por seus senhores. 15

Alguns pontos em relação à descrição de Debret merecem nossa atenção. De imediato, o


artista afirma que as vendedoras de angu eram negras livres. No entanto, anúncios de vendas de
escravas nos jornais do Rio de Janeiro indicavam que havia também cativas trabalhando nas ruas e
exercendo o mesmo ofício para gerar renda aos seus senhores. Era o caso de "uma preta de uma
elegante figura, formidável quitandeira de angú", colocada à venda por seu proprietário na rua do
Conde, n. 15, 16 e também de uma outra escrava "alta, reforçada, rapariga, e muito bem feita,
excelente quitandeira de comprar e vender hortaliças, legumes, galinhas, tripas, angú, enfim, de
tudo",17 colocada à venda por seu proprietário, não por ela ter qualquer moléstia ou vício, mas por
ele, o senhor, desejar se retirar para Portugal.
Outro detalhe interessante no relato de Debret é sobre a venda do angú aos escravos, que
ocorria entre o meio-dia e as duas da tarde, horário em que os homens brancos e comerciantes se
recolhiam para a sesta. Para Soares, os cativos escolhiam este momento para se reunir em torno das
quitandeiras vendedoras de angú, pois poderiam usufruir de certa "liberdade", ainda que limitada.
Isto tornava o alimento e a sociabilidade elementos perfeitamente articulados. 18
Ainda de acordo com Líbano Soares, a descrição de Debret é a referência mais antiga ao angú
como parte da construção social escrava no Rio de Janeiro. Depois disso, diversos autores passaram
a classificar angú como alimento, casa e quitanda e o Zungu como moradia, hospedaria e pousada.
Quando as Casas de Zungu e batuque foram proibidas, já existia a ideia de que esses locais:

Eram uma espécie de albergue ou casas de cômodos, onde muitos escravos


moravam, que serviam também de ponto de reunião noturna para muitos indivíduos
nesta condição. Muitas destas casas ofereciam comidas e bebidas para os negros
cativos, que aproveitavam a oportunidade de reunião para também se divertirem
com seus cantos e danças ou, em ocasiões menos profanas, se dedicarem aos seus
cultos religiosos. 19

Os zungus eram, portanto, lugares de práticas culturais totalmente reprimidas se praticadas


em ambientes públicos ou de fácil acesso da polícia. Por isso, estas casas estavam localizadas no
entranhado de prédios que eram verdadeiros labirintos, com corredores tortuosos, cercados de

15 DEBRET, 1954, p. 228 e 229.


16 Diário do Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1827. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
17 Diário do Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1828. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
18 SOARES, 1998, p. 33.
19 SOARES, 2007, p. 217.

467
inúmeros quartos e, algumas vezes, quintais que levavam a segundas e terceiras levas de construções
em um mesmo terreno. Portanto, como bem frisou Juliana Barreto Farias, as Casas de Zungu eram
esconderijos, até certo ponto bem resguardados entre tantos corredores e becos da cidade, "para onde
convergiam silenciosamente centenas de africanos, escravos, pardos, mulatos, libertos, crioulos e
pretos, em busca de amigos, festas, deuses, esperanças". 20
Entretanto, com o passar dos anos, estes lugares já não eram tão secretos. Percebe-se isso
através das batidas policiais que ocorreram com frequência na segunda metade do século XIX. A
partir de então, a reunião de cativos, o acobertamento de fugidos, a prescrição de feitiços e os
batuques e rituais religiosos continuavam a acontecer nos Zungus, mas o risco do flagrante era maior.
Estas atividades aqui mencionadas são confirmadas através dos anúncios de jornal. Vejamos alguns
exemplos. Sobre prescrição de feitiços, uma publicação do Diário do Rio de Janeiro menciona "um
adivinho e curador de feitiços" que fazia "mesa e terreiro" em um Zungu. 21
A nota alerta para o perigo de alguns desinformados serem enganados pelo sujeito, o que
indica que, em meados da década de 1840, os Zungus já não eram mais locais ocultos, mas espaços
em que até mesmo os brancos, por vezes, circulavam.
Sobre o acobertamento de fugidos, alguns anúncios do Diário do Rio de Janeiro deixam claro que,
efetivamente, havia escravos que escapavam dos seus senhores e buscavam abrigo nestes lugares. O
barbeiro Domingos dos Santos do Rosário prometia 15$ para quem encontrasse seu cativo, um "preto
barbeiro de 18 a 20 anos chamado Lourenço". Domingos prometia pagar o dobro, "sendo o preto
preso em zungú".22
Outra nota do mesmo jornal foi publicada como declaração de esclarecimento do Sr. Luiz
Paulo de Araujo Basto, Desembargador Juiz do Crime dos bairros de São José e Sé. A nota é longa
e apresenta detalhes bastante interessantes sobre as relações que se estabeleciam nos Zungus:

Havendo-me Antonio Desiderio, morador na rua do Lavradio, requerido


providências sobre a fuga de um seu escravo de nome Bonifácio, suspeitando com
razão que ele estivesse acoitado em um angú na mesma rua, pertencente ao preto
Henrique, escravo, mandei vir à minha presença pelo Alcaide da Polícia, e o
resultado desta diligência foi uma aberta resistência da parte do mesmo preto, que
com a navalha que lhe envio, acometeu o Alcaide (...). Este preto portanto foi preso
com mais três, que se achavam na referida casa, e todos são cativos, dos quais a de
nome Marianna declarou morar com o dito Henrique alugada por ele para o servir,
que o escravo do queixoso ali estivera, e que dizia voltar à noite, que mesmo nesta
semana havia tido outros escravos, e deles disposto, confirmando que ele é sedutor
e ladrão de escravos. 23

20 FARIAS et al, 2006, p. 84.


21 Jornal do Comércio, 29 de abril de 1846. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
22 Diário do Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1830. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
23 Diário do Rio de Janeiro, 1 de fevereiro de 1830. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

468
Como bem lembra Farias, é importante "não esquecer que a voz que emana dos documentos
é aquela dos algozes",24 ainda assim, não podemos ignorá-los, tampouco ignorar o fato de que um
escravo era o inquilino de um imóvel que funcionava como Zungu e, mais que isso, ali ele reunia
diversos escravos fugidos. O documento mostra, ainda, que Bonifácio, o cativo procurado que
desencadeou a busca e aprisionamento de todos os outros, dormia no Zungu, mas ausentava-se
durante o dia, o que indica, muito provavelmente, que ele estivesse a trabalhar como escravo ao
ganho na cidade para juntar seu próprio dinheiro sem ter que repassar o jornal ao seu dono.
Vejamos, agora, mais detalhes sobre a presença maciça de mulheres em Zungus.
Possivelmente, elas eram peças fundamentais na sua organização e formação e seu papel era bastante
significativo. De acordo com pesquisa realizada por Mary Karasch, os navios negreiros traziam uma
imensa maioria de homens para o Brasil. Entre 1830 e 1841, por exemplo, dos 3.270 africanos que
aportaram aqui, 72,9% eram do sexo masculino. 25 Entretanto, segundo Farias, entre os escravos
presos por frequentarem Zungus, 48% eram mulheres, e entre livres e libertos, 44% eram do sexo
feminino. 26
Os anúncios de jornais são bastante ricos para indicar a grande presença das mulheres nestes
locais. No dia 4 de julho de 1867, por exemplo, o Jornal do Commercio publicou em sua seção de
prisões a detenção em um Zungu de 13 africanos, dos quais doze eram mulheres.
Este protagonismo feminino se dava, muito provavelmente, pelo fato das mulheres terem
mais facilidade em conseguir trabalho na produção e venda de alimentos, um meio bastante eficaz
de reunir em seu entorno negros em casas coletivas. Além disso, na cidade, as mulheres conseguiam
uma renda maior do que os homens como vendedoras de rua e como quitandeiras. "Esse nicho
ocupacional pode ter sido vital para o estabelecimento do papel de liderança das mulheres dentro das
casas"27, afinal, essa ocupação era o que, possivelmente, lhes permitia juntar dinheiro para alugar os
locais que seriam usados como Casas de Zungu. É o caso anunciado em uma nota de jornal de 1875:

Tal casa, tal senhorio, tal inquilino. Na casa n.11 da rua do Cotovello, denominado
zungú, deu-se anteontem, às 6 horas da tarde, grande desordem entre o dono do dito
e a inquilina, Maria Joanna da Gloria, que levou uma meia dúzia de bordoadas. 28

É relevante mencionar uma última hipótese acerca das Casas de Zungu que não deve ser de
todo descartada: sua utilização como espaço de práticas sexuais. Farias menciona um português, João

24 FARIAS et al, 2006, p. 87.


25 KARASCH, 2000, p. 71.
26 FARIAS et al, 2006, p. 93.
27 FARIAS et al, 2006, p. 94.
28 Diário do Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 1875. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

469
Manuel de Araújo, que estava "em orgia" num Zungu localizado no Campo de Santana num
momento em que ocorreu uma batida policial. 29 Não é possível com isso afirmar que existia uma
rede envolvendo garotas contratadas como prostitutas, no entanto, uma nota de jornal um tanto
cômica pode dar pistas, sim, de que naqueles espaços, ocorria algo relacionado a práticas sexuais.

Cousas de amor. A crioula Anna Maria Rosa da Conceição, passando anteontem à


tarde pelo Campo da Aclamação, viu sair, de uma casa denominada zungú, o seu
Thiago Cavalcanti do Livramento. Não se pode dizer que ela ficou rubra de cólera;
o que se pode asseverar é que subiu-lhe a mostarda ao nariz, e a prova disso está na
luta que se travou em seguida ente os dois e a grossa pancadaria que não se fez
esperar. Foi nessa ocasião que apareceram duas praças do exército, que os prendeu
e levou-os à presença do chefe de polícia.30

Uma outra nota de jornal, publicada no Correio Mercantil, menciona atos que "ferem a
decência e a moralidade", ao menos, do ponto de vista de quem escreveu o texto:

Avise ao inspetor da rua estreita de São Joaquim que existe um verdadeiro zungu,
em que constantemente entram pretos e pretas para praticarem atos que ferem a
decência e moralidade das famílias que ficam próximas a esta casa.31

Mais uma notícia publicada no Correio Mercantil pode indicar que os zungus estivessem
sendo usados como espaços de práticas sexuais.

O Dr. subdelegado do 1º Distrito da Freguesia do Sacramento, acompanhado de três


inspetores de quarteirão e do tenente comandante do posto de urbanos respectivo
com algumas praças, prendeu anteontem à noite 13 indivíduos vagabundos e ébrios,
e entre estes, seis mulheres moradoras em um zungu da rua de Gonçalves Dias,
próximo ao largo da Carioca. Costumavam aqueles indivíduos reunir-se à noite às
portas das tabernas, fazendo tumultos e proferindo palavras ofensivas da moral. Isto
deu causa aquela diligência.32

Por que a notícia destaca que apenas as mulheres viviam em uma Casa de Zungu e estavam
ligadas a “vagabundos”? No jornal “O escorpião”, uma nota pede ao inspetor da Travessa de Santa
Rita que tome providências acerca de “pretas minas que moram nessa travessa, que fazem da casa
um perfeito zungu. Os moradores pedem a S.S. que a bem da moralidade pública faça alguma
coisa”.33
É bem verdade que o termo zungu estava associado à baderna e desordem; no entanto, a
ênfase ao fato de mulheres ocuparem um espaço e realizarem ações indefinidas que ferem a
moralidade pública pode ser um indício de que tais ações estivessem associadas a práticas sexuais.

29 FARIAS et al, 2006, p. 101.


30 Diário do Rio de Janeiro, 23 de abril de 1876. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
31 Correio Mercantil, 27 de outubro de 1851. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
32 Correio Mercantil, 11 de junho de 1868. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
33 O escorpião, 7 de fevereiro de 1863. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

470
Faltam dados para comprovar a utilização dessas casas como espaço de prostituição, no entanto, a
teoria não deve ser totalmente descartada. Se havia qualquer relação com práticas sexuais, esta era
uma funcionalidade a mais destes ambientes.
Fato é que muitas mulheres usavam os chamados Zungus para fins diversos. Elas poderiam
estar apenas interessadas em ganhar dinheiro utilizando estes espaços, mas poderiam também ser
parte de algo maior, como uma malha de apoio do trabalhador negro urbano; nesse caso, sua
participação poderia ser através do provimento de alimento e moradia (mesmo que provisória) ao
trabalhador. Talvez, as mulheres utilizassem os Zungus como locais de práticas religiosas ou talvez,
elas, de fato, fizessem parte de uma rede de prostituição.
A definição exata das Casas de Zungu ainda é uma interrogação, mas é certo que
incomodavam a elite senhorial por serem ambientes de sociabilidade negra, abrigo de fugidos e
espaços considerados de desordem pela classe alta. Além disso, é certo que, nesses locais, as
mulheres eram personagens centrais e vitais, o que provavelmente incomodava uma sociedade que
era não apenas escravista, mas também patriarcal.
O que tentei mostrar neste trabalho foi a força das mulheres negras que viveram presas em
uma sociedade escravista e que, apesar da opressão e submissão, lutaram por liberdades – de
diferentes formas – tornando-se, assim, personagens importantes da História. Mais do isso,
seriam essas mulheres protagonistas? E se estivessem constantemente a desafiar, mesmo que de
forma inconsciente, a instituição escravista extremamente patriarcal estabelecida no Brasil e, nesse
caso especificamente, no Rio de Janeiro oitocentista?
Pelos papéis que assumiram entre os negros que viviam no Rio de Janeiro, podemos supor
que não eram poucas as mulheres negras que se esforçaram para conquistar autonomia, respeito,
independência e a tão sonhada liberdade. De um jeito bastante particular, conseguiram construir uma
rede de contatos e solidariedade que se edificou e solidificou a partir de espaços de convivência e
ajuda mútua de africanos e crioulos, como as Casas de Zungu. Não seria esta ação parte de um
matriarcado negro e velado em um espaço urbano extremamente patriarcal? Esta é apenas uma
suposição, mas fica aqui a "semente plantada" para que o tema possa ser aprofundado em pesquisas
futuras.

471
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473
O Rio saúda São Paulo:
representações da capitalidade em O petróleo é nosso! (Watson Macedo, 1954)1

Carlos Eduardo Pinto de Pinto2

Resumo: Na chanchada O petróleo é nosso (Watson Macedo, 1954) o Rio de Janeiro é representado,
como de praxe, através de cenários e números musicais que enfatizam o cosmopolitismo,
característica marcante de sua capitalidade. Este conceito se refere à capacidade de uma urbe (capital
ou não) em representar o todo da nação. O diferencial da fita é a homenagem a São Paulo, no ano da
celebração de seu IV Centenário. Na letra da canção “Parabéns, São Paulo”, executada por Emilinha
Borba, fica patente a ascensão da capitalidade da cidade “vizinha”, reconhecida pelo “amigo’ Rio de
Janeiro. A despeito de tal reverência, que faz pensar em uma convivência pacífica, é possível
decodificar elementos visuais que apontam para as tensões subjacentes a uma disputa pela
capitalidade.

Palavras-chave: chanchadas; Rio de Janeiro; capitalidade

Abstract: In Watson Macedo’s O petróleo é nosso (1954), Rio de Janeiro is represented – as usual
in the genre “chanchada” - through scenarios and musical numbers that emphasize cosmopolitanism,
a striking feature of its capitality. The concept of capitality refers to the capacity of a city (capital or
otherwise) to represent the whole of the nation. The movie stands out due to its homage to São Paulo,
in the year of the city’s IV Centenary. In the lyrics of the song "Parabéns, São Paulo", performed by
Emilinha Borba, the capitalilty of the "neighboring" city, recognized by the "friend" Rio de Janeiro,
is evident. Despite such a reverence, which makes one think of a peaceful coexistence, it is possible
to decode visual elements that point to the tensions underlining the dispute for the capitality.

Keywords: chanchadas; Rio de Janeiro; capitality

Esta comunicação é fruto da pesquisa (Quase) Sem perder a majestade: a produção de uma
história pública sobre o Rio de Janeiro em filmusicais e chanchadas entre o Estado Novo e a
inauguração de Brasília, desenvolvida no Núcleo de Estudos sobre Biografia, Ensino de História e
Subjetividades (Nubhes), no Departamento de História da Uerj. A pesquisa parte da premissa de que
os dois gêneros cinematográficos abordados, de forte apelo popular, funcionaram como vetores de
criação de um imaginário sobre o Rio de Janeiro. Através deles, algumas dimensões da história da
cidade foram construídas publicamente através de paisagens, personagens e canções que tematizam
o ethos carioca. Nesse sentido, os filmes não seriam divulgadores de um saber acadêmico, mas
criadores de outros saberes – bem como formadores de subjetividades – não raro em consonância
com políticas culturais de âmbito nacional e local. Os resultados apresentados aqui são parciais,

1 A pesquisa foi contemplada com Bolsa Faperj de Iniciação Científica no segundo semestre de 2016.
Bolsista: Letícia Fonseca Araujo Souza. Conta, ainda, com a participação voluntária de Leila Gibin.
2 Doutor em História, professor do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas
(IFCH) da UERJ. Email: dudachacon@gmail.com

474
concentrados ainda na análise fílmica, mas sem contar com levantamento completo de dados sobre
a produção e recepção, a ser obtidos em fases posteriores da pesquisa.
Os filmusicais (contração de “filmes musicais”) foram criados pelas produtoras Cinédia
(1930, fundada por Adhemar Gonzaga) e Sonofilmes (1937, por Alberto Byington Jr. e Wallace
Downey). As chanchadas, por sua vez, foram criadas pela Atlântida (1941, fundada por Moacyr
Fenelon, José Carlos Burle e Alinor Azevedo), mas produzidas também pelo estúdio Herbert Richers
(1952), que se manteria ativo até os anos 1960, e, esporadicamente, por outros. As origens da
denominação “chanchada” são nebulosas, sendo uma das hipóteses a apropriação de um termo usado
no teatro de revistas – “chancho”, sinônimo de porcaria, sujeira –, para fazer referência à baixa
qualidade técnica dos filmes3.

Filmusicais e chanchadas possuíam pontos em comum: se sustentavam sobre uma diegese


(história narrada) simples, atravessada por gags de comediantes e entremeada por performances
musicais e coreográficas pouco conectadas com o enredo principal. Além disso, ambos mantiveram
estreitos liames com o carnaval carioca, numa inspiração mútua. As chanchadas se diferenciavam de
seu congênere pelo seguimento de uma “fórmula” que contrapunha vilões caricatos a um casal de
mocinhos, ajudados por personagens de boa índole, mas ineptos (geralmente, encarnados por duplas
de comediantes). A reforçar essa padronização, os personagens eram quase sempre vividos pelos
mesmos atores, numa espécie de star system mantido pela Atlântida, principal produtora do gênero
(mais system que star, bem entendido, já que os modestos capitais da empresa não poderiam sustentar
nenhum glamour).

Todos os estúdios listados pretenderam, no início de suas trajetórias, fazer investimentos


sofisticados de construção de um “cinema nacional de qualidade”, o que demonstra estarem afinados
com as políticas culturais do período. Cada um a seu tempo, contudo, acabou optando por filmes
baratos que correspondessem às preferências populares. De modo geral, as comédias musicais não
produziram fortunas – nem foram valorizadas esteticamente, como afirmado –, mas ocuparam um
papel proeminente na produção cinematográfica nacional:

Embora, como via de saída frente à competição estrangeira ou enquanto proposta


estética, esse rumo tenha sido combatido durante muitos e muitos anos, não restam
dúvidas de que, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, a união entre o cinema e a música
brasileira, identificada para sempre com o cinema que se fez no Rio de Janeiro,

3 AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Cinemateca
brasileira/Cia. das Letras, 1989. p. 17.

475
possibilitou a sobrevivência e garantiu a permanência do cinema brasileiro nas telas
do país4.

As relações das chanchadas com o Rio de Janeiro nos anos 1950

O período apresenta alguns traços gerais relacionados com as chanchadas, seja porque são
representados por elas, seja por fazerem parte do conjunto de elementos que vão contribuir para o
desgaste e extinção do gênero. Dentre eles, destacam-se a emergência da Guerra Fria e o alinhamento
do Brasil com os EUA, durante o governo Dutra (1945-1950); o nacional-desenvolvimentismo,
expressivo no segundo governo de Vargas (1951-1954) e na administração de JK (1955-1960); a
emergência de outras cinematografias e novos regimes de visualidade 5; a concorrência de São Paulo
pela capitalidade e a construção e inauguração de Brasília, a nova capital.

Como indicado, a relação das chanchadas com o Rio é estreita, o que faz com que a oscilação
na capitalidade carioca seja tematizada por parte da filmografia. Não que os filmes sejam “registros”
deste momento – o que seria uma percepção limitada de seu potencial –, mas agentes da
reconfiguração por que passava a cidade. O filme analisado neste trabalho, por exemplo, empreende
um esforço de reforçar a capitalidade do Rio frente a São Paulo, um “adversário” mais ativo que
Brasília na primeira metade da década, pelo motivo muito simples de a nova capital não constar da
pauta de nenhum mandato anterior a JK no período enfocado. A despeito dessa empreitada, contudo,
o que parece ficar mais evidente é mesmo o decréscimo da capitalidade carioca.

Os autores que pensaram as comédias musicais no pós-1945 não deixaram de perceber essa
ligação entre o gênero e a cidade, como assinala Miguel Chaia: “A chanchada não pretende tratar do
mundo rural, que só se faz presente na sua relação com a sociedade urbana [...] caracterizada pelo
movimento, rebuliço, diversão, centrada no mundo artístico”6. É preciso enfatizar, contudo, que o

4 VIEIRA, João Luiz. A chanchada e o cinema carioca (1930-1955). In: RAMOS, Fernão (Org.). História
do cinema brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 141.
5 Em São Paulo, a fundação da Cia. Vera Cruz, procurando realizar um cinema “sério”, com qualidade
técnica nos moldes hollywoodianos, reacendeu os debates em torno de um cinema brasileiro “de qualidade”, o que
reforçou a resistência da crítica em relação às comédias musicais cariocas. No Rio, a realização de Rio, 40 graus (Nelson
P. dos Santos, 1955) e a emergência do cinema moderno brasileiro também aumentariam o desprestígio das comédias
musicais. Mais no fim da década, o aumento da popularidade da TV atrairia muitos diretores, atores e técnicos das
chanchadas, no momento em que o gênero começava a se desgastar.
6 CHAIA, Miguel W. O tostão furado: um estudo sobre a chanchada. 1980. 138 f. Dissertação (mestrado
em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. p.
54.

476
autor faz referência a um universo urbano genérico, sem se ater às especificidades da capital.
Rosângela Dias7, apesar de mais atenta ao fato de se tratar da capital, acaba por endossar a perspectiva
de Chaia, interpretando a onipresença do Rio como uma das etapas da representação dos “homens
simples” – nas telas e por trás delas, como produtores – em tensão com a capital e seus códigos
sociais.

A autora trabalha exclusivamente com a produção da década de 1950, defendendo que as


chanchadas seriam parte da “visão de mundo” das classes populares. Os filmes, seguindo uma lógica
carnavalesca de inversões, seriam uma forma de manifestação às avessas da realidade social das
classes menos favorecidas. Logo, a circulação por espaços excludentes da capital, como hotéis e
boates, permitiria, simbolicamente, o acesso a eles – e a demonstração, pela lógica da inversão, de
que tal acesso não era possível fora dos filmes. João Luiz Vieira 8 , no esforço de definição das
chanchadas, também enfatiza a lógica das inversões carnavalescas, analisadas através das paródias
de filmes hollywoodianos ou nas letras de algumas marchinhas de Carnaval – produzidas para o rádio
e executadas nos filmes. Sérgio Augusto9 se coaduna com esta perspectiva, defendendo que por estes
e outros meios – como as piadas de duplo sentido (político) inseridas nos roteiros – a crítica social
era possível. O que esses autores não fazem, apesar de se mostrarem sensíveis à representação da
capital nos filmes, é a ligação entre os elementos elencados – carnaval, marchinhas, inversões e piadas
– ao ethos carioca.

Esta lacuna tem sua razão, já que tais estudos se inserem num movimento de revisão do
conceito de populismo10 – talvez não no caso de Augusto, que escreve fora do âmbito acadêmico.
Bastante usado para se referir aos estilos de governo comumente adotados entre os anos 1930 e 1964,
o conceito estava associado, em estudos anteriores aos anos 1980, à “apatia” ou à “cooptação” das
massas. A partir de então, essa ideia passa por severo escrutínio, como assinalou Angela de Castro
Gomes11, colocando em xeque a noção de “manipulação”. É por este caminho que tais estudos sobre
cinema seguem, como se evidencia nas palavras de Rosângela Dias: “[por meio das chanchadas] as
classes populares, ou massas urbanas, criaram um discurso próprio que se opunha a essas políticas

7 DIAS, Rosângela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares
na década de 50. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.
8 VIEIRA, João Luiz. op. cit.
9 AUGUSTO, Sérgio. op. cit.

10 FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.
11 GOMES, Angela de Castro. A construção do homem novo: O trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA,
Lúcia Lippi de; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela Maria Castro (Orgs.). Estado Novo: ideologia e poder.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

477
dominantes” 12 . Logo, na “cruzada” contra o conceito de populismo, menos que compreender a
representação do Rio, os trabalhos se interessavam pela representatividade das massas.

Embora louváveis, deve-se apontar as fragilidades de tais esforços no que se refere a uma
abordagem cuidadosa da complexidade da criação. Afinal, não basta que um produto seja realizado
por e para “homens simples” para que se configure num ato de resistência. Ao fim, é necessário
escapar ao perigo da dicotomia: nem se ater à ideia de dirigismo, nem reforçar a leitura das comédias
musicais como puros atos de resistência. Em busca de um equilíbrio entre as duas perspectivas, mais
adequado seria recorrer ao conceito de circularidade 13 . Com isso, menos que a adequação ou os
embates entre as políticas culturais e o processo de criação, seria possível perceber seus pontos de
contato e tensão.

A disputa pela capitalidade entre Rio e São Paulo

O petróleo é nosso não é um filme da Atlântida 14, o estúdio que criou o gênero chanchada,
mas foi produzido e dirigido por um dos profissionais que ajudou a burilar o gênero: Watson Macedo,
que nesse momento investia em produções próprias. Como a maioria das chanchadas, foi realizado
em preto e branco. O título O petróleo é nosso faz referência à campanha nacionalista pela exploração
estatal do petróleo que, embora anterior, seria capitalizada por Getúlio Vargas em seu governo
democrático, resultando na criação da Petrobrás em 1953 – um ano antes da estreia do filme.
Contudo, a sinopse não dialoga com a campanha nem com a empresa, apenas dedicando-se a
acompanhar uma família interiorana, do estado de Goiás – o casal formado por Dona Perpétua
(Violeta Ferraz) e Pituca (idem) e sua filha Marisa (Adelaide Chiozzo) –, desconfiada de ter petróleo
em suas terras, que vem para o Rio para ter certeza da descoberta.
Na capital, os três se envolvem com uma família da alta sociedade – o empresário Guimarães
(Sérgio de Oliveira), a esposa (Heloisa Helena) e o filho, Silvio (John Herbert) –, que deseja lhes dar
um golpe. O plano consiste em convencê-los da inexistência de petróleo em suas terras para que as
mesmas fossem vendidas a Guimarães. Até o fim, em que os golpistas são desmascarados e a

12 DIAS, Rosangela. op. cit. p. 102.


13 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
14 A cópia utilizada para a análise foi obtida no site Youtube.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n634nAkNTEs. Acesso em: 12 set 2017.

478
presença do petróleo confirmada, os “caipiras” são motivo para uma série de situações cômicas
envolvendo a falta de familiaridade com a modernidade e o cosmopolitismo da capital.
Como se depreende da descrição acima, não se trata de um filme explicitamente político.
Além do título, que poderia propiciar um debate sobre o nacional-desenvolvimentismo, mas não o
faz, ocorre uma discreta imitação de Getúlio Vargas realizada pela protagonista, Violeta Ferraz. No
momento em que sua personagem ensaia o anúncio da confirmação da presença de petróleo em suas
terras, a atriz assume a indefectível entonação utilizada pelo presidente em seus discursos. No
entanto, como no caso do título, a política aparece apenas como o referencial que garante a
compreensão da piada, mas não é o tema principal.
Todavia, a constatação acima não deve levar à falsa conclusão de que o filme seja
despolitizado. Sobretudo no que se refere à representação do Rio de Janeiro, diversos elementos
atinentes ao imaginário cunhado pelo Estado Novo para a então capital do Brasil são reforçados. E
isso a despeito da distância de quase dez anos em relação ao fim do regime autoritário liderado por
Vargas. Vale notar que, diferente da política institucional, que pode de fato mudar radicalmente
através da troca de gestões, as políticas culturais tendem a ter duração mais longa. O esforço de
recriação do imaginário nacional realizado pelo Estado Novo através de práticas diversas
(propaganda política, censura, produção artística, educação) teve na reelaboração da capitalidade do
Rio um de seus epicentros, fazendo com que a cultura local fosse divulgada como nacional 15. Desse
modo, a imagem da capital do Estado Novo não desapareceria por conta das inflexões políticas,
convivendo ainda alguns anos com outras possibilidades de representação.
A hipótese acima é corroborada pela ênfase que o filme faz no cosmopolitismo e modernidade
da cidade, tanto no principal cenário, o Hotel Glória – um dos mais prestigiados do Rio, depois do
Copacabana Palace – quanto nos diálogos, que reforçam o epíteto de “Cidade Maravilhosa” e fazem
alusões a Copacabana e suas boates. Tais características, contudo, não estão dissociadas de certo
exotismo, com ênfase na monumentalidade da natureza. Essa convivência entre modernidade e
exotismo foi percebida por Bianca Freire-Medeiros em pesquisa sobre a representação do Rio por
Hollywood, que, como a autora aponta, “não é tão distante da capital que os próprios brasileiros
tentavam inventar à época16”. Há também uma parte do filme ambientada na Lapa, evidenciando o
caráter boêmio do bairro, sobretudo através do “malandro” inofensivo à Zé Carioca – para fazer mais

15 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura urbana no Rio de Janeiro. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Org).
Rio de Janeiro: uma cidade na História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 144

16 FREIRE-MEDEIROS, Bianca. O Rio de Janeiro que Hollywood inventou. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005. p. 59

479
uma referência ao cinema norte-americano, já que o personagem é criação de Walt Disney. O
malandro é um dos agentes da tentativa de engodo a Dona Perpétua, fazendo-se passar por um
especialista francês em petróleo. Sua boa índole, contudo, se confirma no fim, quando ele se
arrepende de ter enganado a senhora e revela a farsa.
A síntese dos atributos apontados acima pode ser encontrada em um número musical, cujo
cenário é o Rio, realizado na boate do Hotel Glória. O samba “Graças a Deus” (Klécius Caldas e
Armando Cavalcanti), interpretado por Linda Batista, não faz qualquer referência à capital,
dedicando-se a narrar a história de um eu lírico que pede perdão à pessoa amada após reconhecer o
próprio erro (provavelmente, uma traição). Causa estranheza a escolha da cidade para figurar como
imagem de fundo numa apresentação que não a tem como assunto principal. Mas a busca por um
nexo entre a canção e o cenário é pertinente, uma vez que todos os outros números musicais do filme
que contam com pano de fundo e objetos de cena apresentam ligação com o que é tematizado pelas
letras. Apesar de isolados em relação à trama – afinal, sua única justificativa diegética é a visita dos
protagonistas a boates – os números musicais apresentam coerência interna.
Uma possibilidade de interpretação reside no fato de se tratar de um samba, já que o ritmo
foi, desde o Estado Novo, associado ao Rio. Desse modo, independente do assunto tratado pela
canção, o seu ritmo justificaria a referência às imagens da cidade. Contudo, há também elementos
extra-fílmicos que podem ter motivado tal escolha. Conforme abordado acima, o Rio de Janeiro era
o cenário da maioria das chanchadas. Mais do que apenas localizarem as tramas na capital, os filmes
reforçavam ou reelaboravam atributos do ethos carioca, como as praias e o Carnaval. Tendo sido
lançado em julho17 e, por isso, sem muitos números carnavalescos, O petróleo é nosso pode ter usado
esta performance como meio de manter o compromisso do gênero com dada representação da
capitalidade. Tal representação é o foco da análise que realizo a seguir.
Linda Batista está disposta no centro do palco, cercada pelos músicos e tendo a sua frente,
alguns degraus abaixo, dançarinas desenvolvendo uma coreografia com o manuseio de pandeiros. A
câmera realiza movimentos de zoom in e out18, de modo a oscilar entre a expressão facial da cantora
e o conjunto da performance, mas também há cortes que variam a angulação da câmera, sobretudo
para exibir o número a partir do alto, em plngée19. Por vezes, a montagem paralela apresenta os
personagens em suas mesas entabulando diálogos curtos, ocasiões em que o som referente à
apresentação musical tem seu volume baixado, ficando bastante discreto.

17 Cf. ficha do filme no catálogo Filmografia brasileira, da Cinemateca brasileira. Disponível em:
<http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/>. Acesso em: 12 set 2017.
18 Movimento das lentes possibilitando a aproximação ou o afastamento de um detalhe da cena.
19 A câmera localiza-se no alto, voltada para baixo. Plongée é “mergulhada”, em francês.

480
Atrás da cantora e dos músicos, um pano de cena apresenta o Pão de Açúcar no alto, à direita,
de onde parte o calçadão de Copacabana atravessando o cenário de alto a baixo, com um paredão de
edifícios do lado esquerdo e o mar, do lado direito. Linda Batista usa vestido de gala, em contraste
com os músicos e as dançarinas, com figurinos que rescendem a tropicalidade. Para os homens,
camisetas estampadas, cordões floridos e chapéus panamá; para as moças, vestidos também
estampados, deixando as barrigas e as pernas à mostra, e flores nos cabelos. O calçadão de
Copacabana está igualmente presente no chão do palco, sobre o qual se espalham mesinhas de
botequim, onde estão os músicos (alguns, de pé). A despeito da fotografia em p&b, é possível
imaginar os figurinos bastante coloridos, talvez por lembrarem dado estilo hollywoodiano de
representação dos Trópicos, realizada em cores.
Ao fim, a impressão é de uma cidade que, apesar de moderna – efeito causado pela
verticalização dos edifícios na orla de Copacabana –, está submetida à monumentalidade da natureza,
representada pelo mar e pelo Pão de Açúcar. O Rio é um balneário com vocação boêmia, como se
percebe pelas indumentárias de músicos e dançarinas e pelas mesinhas de botequim sobre as quais
não faltam as garrafas de cerveja que os músicos simulam beber.
Em contraste com esta representação da capital, São Paulo surge, ao fim do filme, como uma
cidade totalmente moderna, sem disputa com a monumentalidade da natureza. O número musical
“Parabéns, São Paulo 20
” (Rutinaldo), executado por Emilinha Borba, é justificado extra-
diegeticamente pela celebração de seu IV Centenário em 1954 21 . Um bolo de aniversário
cenográfico, de grandes dimensões, está disposto no centro do palco 22, em torno do qual se espalham
pares de dançarinos vestidos seguindo os códigos de gala. Ao fundo, um pano de cena reproduz o
skyline verticalizado da cidade. Emilinha Borba entra em cena à frente desse conjunto, começando a
interpretar a letra, que, diferente de “Graças a Deus”, está completamente conectada com o cenário:
Oh, São Paulo dos cafezais/ Teu nome é símbolo de paz/ Teu povo é forte e viril/
Eu te mando meus parabéns/ Por mais 100 anos que tu tens, vividos para o Brasil/
São Paulo, gigante nobre do planalto/ Tu cada vez falas mais alto no coração do
brasileiro/ São Paulo, de braços dados estou contigo/ Te felicita o grande amigo,
que é o Rio de Janeiro/ São Paulo, parabéns!/ São Paulo, parabéns!!! 23

A letra, simples, é objetiva ao louvar a ascensão da capitalidade de São Paulo, referenciada no seu
poder econômico (“cafezais”, “gigante nobre”) e na representatividade nacional (“cada vez falas

20 Utilizo o título disponibilizado nos créditos do filme, mas a canção também pode ser encontrada como
“Parabéns a São Paulo”.
21 A aparição da cidade nas chanchadas é rara, embora o estado de São Paulo sirva de referência para a
origem de alguns “caipiras”, o que não é o caso desta fita, já que a família protagonista vem de Goiás.
22 Não se trata de um patamar, como no número analisado acima. A cena se desenrola no chão do estúdio,
local onde, no outro número, estavam dispostas as dançarinas.
23 A letra foi transcrita a partir da audição do número musical apresentado na cópia do filme.

481
mais alto no coração do brasileiro) e declarar os votos de amizade da capital do país. Essa leitura faz
sentido na diegese e fora dela: a história se passa no Rio e é desta cidade que Emilinha Borba entoa
a canção; além disso, o filme foi produzido no Rio, fazendo parte de um gênero eminentemente
carioca. De algum modo, é uma homenagem de uma cidade a outra, ambas detentoras de
capitalidade, sem que haja qualquer menção a uma rivalidade.
A abordagem do modo contrastante como as duas cidades são representadas, contudo, permite
perceber certo descompasso do Rio em relação a alguns elementos valorizados no exercício da
capitalidade na década de 1950. Nesse sentido, é fundamental perceber que o tema “cidade” era, neste
momento, um dos vetores de discussões multidisciplinares internacionais. Fosse pela necessidade de
reconstrução da Europa após a II Guerra Mundial (1939-1945), fosse devido ao processo de
urbanização crescente dos países do então denominado Terceiro Mundo, o momento se mostrava
propício à construção ou reformulação de cidades. Evidentemente, se fazia patente o questionamento
sobre qual seria a fisionomia e função das novas – ou renovadas – urbes. Neste contexto, o
modernismo desempenhou papel central, funcionado como estilo urbanístico e arquitetônico capaz
de representar a inserção no futuro e a capacidade administrativa 24.
Embora fosse uma das primeiras cidades da América Latina a possuir um edifício modernista
(o Palácio Capanema, sede do então Ministério da Educação e Saúde), o Rio não vinha, ao longo da
década de 1950, se notabilizando pelo investimento arquitetônico e urbanístico. São Paulo, ao
contrário, vinha ratificar, através da linguagem modernista de muitos dos seus espaços urbanos 25, o
processo ascendente de modernização por que vinha passando. A inauguração do Parque do
Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer, obra realizada com o objetivo de sediar as celebrações do
aniversário da cidade, veio se unir a uma série de investimentos que faziam com que São Paulo se
apresentasse como uma metrópole moderna. Entre outros, vale citar o Teatro Brasileiro de Comédia,
a Cia Cinematográfica Vera Cruz – que, em concorrência com as chanchadas, pretendia produzir um
cinema “sério” em moldes industriais –, a TV Tupi, o Museu de Artes de São Paulo (MASP), o
Museu de Arte Moderna (MAM) e a Bienal de Artes de São Paulo.
O Rio, por sua vez, ao longo da década passara por quatro administrações malsucedidas em
dar conta dos entraves urbanísticos26 advindos do crescimento desordenado, apesar de contarem com

24 CAVALCANTI, Lauro. Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-
1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006.
25 Por estar baseado nos princípios da funcionalidade, o modernismo servia ao reforço das ideias de
ordenação e racionalidade, consideradas características fortes da sociedade paulista
26 Tais necessidades geravam blagues de toda ordem, como a realizada na letra de Vagalume (Vítor Simon
e Fernando Martins, 1954), marchinha de Carnaval popular ainda hoje: “Rio de Janeiro/ Cidade que nos seduz/ De dia
falta água/ De noite falta luz”.

482
verbas vultosas 27 . Além disso, as favelas – que não aparecem no filme, mas faziam parte do
imaginário da capital – eram simultaneamente fonte de orgulho (por serem centros geradores de
elementos basais da cultura carioca, como o samba) e de vergonha, por se configurarem em um
déficit urbanístico indisfarçável, diferente das periferias de outras cidades, que ficavam fora do
perímetro urbano (e, não raro, do imaginário).
Vale reforçar que os aspectos problemáticos apontados acima não são evidenciados pelo
filme. Contudo, a opção por perpetuar a imagem de um balneário eivado de tropicalidade, como
cunhado pelo Estado Novo, cria um descompasso do Rio em relação a São Paulo. Mesmo que o
modernismo ainda não apareça no skyline representado no pano de cena, a verticalização absoluta
(sem a concorrência da monumentalidade da natureza, como no caso carioca) reforça a ideia de
modernidade para o caso de São Paulo. Ainda, a elegância contida nas roupas de gala dos dançarinos,
ainda que justificada digeticamente pela celebração do aniversário da cidade, aprofunda o contraste
com o Rio, em que as dançarinas são banhistas e os músicos, boêmios.
Para dimensionar a importância desse contraste, seria interessante lançar um olhar rápido
para o futuro do filme, mais especificamente para o ano de 1957, quando a construção da nova capital
federal, Brasília, começaria a sair do papel. Como no caso de São Paulo, o modernismo urbanístico
e arquitetônico foi usado como elemento retórico de sua capitalidade. Por outro lado, um dos
argumentos utilizados para justificar a transferência da capital seria justamente a incapacidade do
Rio em acompanhar o processo de modernização por que passava o país 28. Não seria exagerado,
portanto, apostar que a aceitação desse discurso foi facilitada pelo imaginário urbano que O petróleo
é nosso e outras chanchadas ajudaram a consolidar.

Bibliografia

AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Cinemateca
brasileira/Cia. das Letras, 1989.

27 PEREZ, Maurício Dominguez. Lacerda na Guanabara: a reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960.
Rio de Janeiro: Odisseia Editorial, 2007. Segundo o autor, a receita da capital era a terceira do país, perdendo apenas
para a Federação e para o estado de São Paulo.
28 MOTTA, Marly. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de Janeiro (1960-75).
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

483
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura
(1930-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006.

CHAIA, Miguel W. O tostão furado: um estudo sobre a chanchada. 1980. 138 f. Dissertação
(mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1980.

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um conceito”. In: FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
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(Org). Rio de Janeiro: uma cidade na História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

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História do cinema brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

484
O Ensino de História da África e dos Africanos no Brasil

Caroline Buiz Cobas Costas*

Resumo: A dissertação desenvolvida para o Programa de Pós-Graduação em Memória e Acervos da


Fundação Casa de Rui Barbosa discutirá a questão de estímulo dos professores em desenvolverem o
próprio material didático a partir de documentos de arquivo e também a questão de acesso a esses
documentos em instituições de custódia, tendo como estudo de caso o Museu Histórico Nacional –
especificamente o setor de Arquivo Histórico, que desenvolveu um instrumento de pesquisa em 1988,
denominado Catálogo da Documentação referente ao Negro no Brasil, século XVII ao XX. Será
apresentado aqui uma crítica sobre a impossibilidade de acesso à informação e aos documentos em
instituições de custódia, apontando para uma falha do Estado (instituições públicas) e de particulares
(empresas privadas e pesquisadores) na disponibilização de seus documentos.

Palavras-chave: História e cultura da África e dos afro-brasileiros; Educação Básica; Museu


Histórico Nacional; Documentos Arquivísticos

Abstract: The dissertation developed for the Post-Graduation Program in Memory and Collections
of the Casa de Rui Barbosa Foundation will discuss the issue of encouraging teachers to develop their
own didactic material from archival documents and also the issue of access to these documents in
institutions of custody, having as a case study the National Historical Museum - specifically the
Historical Archive sector, which developed a research instrument in 1988, called Documentation
Catalog for the Negro in Brazil, from the XVII to the XX century. A criticism will be presented here
about the impossibility of access to information and documents in custody institutions, pointing to a
failure of the State (public institutions) and individuals (private companies and researchers) to make
their documents available.

Keywords: History and culture of Africa and Afro-Brazilians; Basic education; National Historical
Museum; Archival Documents

1 INTRODUÇÃO

A dissertação desenvolvida para o Programa de Pós-Graduação em Memória e Acervos da


Fundação Casa de Rui Barbosa discutirá a questão de estímulo dos professores em desenvolverem o
próprio material didático a partir de documentos de arquivo e também a questão de acesso a esses
documentos em instituições de custódia, tendo como estudo de caso o Museu Histórico Nacional –
especificamente o setor de Arquivo Histórico. O setor supracitado desenvolveu um instrumento de

1 Formada em lbacharel e licenciatura em História (PUC-Rio) e em bacharel em Arquivologia (UNIRIO);


especialização em História do Brasil (IUPERJ). Mestranda em Memória e Acervos, do Programa de Pós-Graduação em
Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa, e em Ciência da Informação, do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Informação, IBICT/UFRJ. Contato: karolkostas@gmail.com.

485
pesquisa em 1988, denominado Catálogo da Documentação referente ao Negro no Brasil, século
XVII ao XX, no qual são listados e descritos unitariamente documentos com o intuito de divulgar
seu acervo sobre o negro no Brasil.
Será apresentado aqui uma crítica sobre a impossibilidade de acesso à informação e aos
documentos em instituições de custódia, apontando para uma falha do Estado (instituições públicas)
e de particulares (empresas privadas e pesquisadores) na disponibilização de seus documentos. Essa
impossibilidade pode estar ligada a ausência de projetos e políticas de memórias nas instituições.
Meu intuito, ou meu objetivo geral, é, com a análise da obra citada por meio de duas teorias distintas
e complementares, apresentar como o catálogo pode auxiliar as atividades do arquivista e do
historiador de construir instrumentos que sistematizem informações voltadas para os pesquisadores
sobre temas específicos e também como esses profissionais poderão ajudar os professores de História
na exposição e problematização das informações sobre a História da África e dos africanos no Brasil.
Um segundo objetivo é o de buscar relacionar a organização da documentação e da informação com
o ato da pesquisa (especificamente feita pelo historiador) e também com a prática do ensino de
História.
A escrita desta dissertação se aproxima da ideia de Boaventura Santos de se afastar do objeto
para poder escrever – meu afastamento pode ser visto na questão de que não estou efetivamente
dentro de sala de aula, exercendo o magistério em História, apesar de ter uma formação em
licenciatura, porém minha proximidade esteve baseada em minha dupla formação: historiadora e
arquivista. Foi trabalhando com documentos arquivísticos que surgiram as inquietações sobre a área
de docência e dos materiais didáticos.
Partindo dessas duas possibilidades de análises, a História e a Arquivologia apresentam
elementos distintos sobre questões relativas à memória e ao acesso à informação, que poderão
auxiliar na construção da memória dos negros no Brasil. Este trabalho é uma tentativa de apresentar
um olhar sobre esses elementos a partir da formação que tive como historiadora e como arquivista e
também apresentar alguns pontos de contato entre essas duas áreas (interdisciplinaridade) e a
aplicabilidade desses elementos na construção da memória dos negros no Brasil.
Minha análise se baseará em experiências de professores atuantes de História através de
estudos de casos, de como veio ocorrendo, nos últimos anos, realmente a aplicação das leis nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003 e nº 11.645, de 10 de março de
2008, todas abordando o ensino de História da África e dos africanos no Brasil (SANTOS, 1988, p.
41). Os estudos de casos envolveram o acompanhamento de profissionais de História conhecidos da
autora deste trabalho, que trabalham em diferentes ciclos da Educação Básica (segundo ciclo do

486
Ensino Fundamental – do 6º ao 9º anos – e Ensino Médio) no estado do Rio de Janeiro, nas esferas
pública e privadas, observando por meio de entrevistas e visitas às escolas.
O recorte ao estado do Rio de Janeiro leva em consideração o que aponta Boaventura Santos
(1988, p. 56), para o qual escrever é importante conhecer bem o contexto social em que irá trabalhar,
diminuindo os riscos de erros e problemas durante e após a pesquisa em campo. A região
metropolitana do Rio de Janeiro será o principal foco do recorte, podendo aparecer outros municípios
fluminenses de acordo com a demanda da pesquisa.
As leis supracitadas incluíram o ensino de história e cultura da África, afro-brasileira e
indígena no currículo da educação básica e superior, estabelecendo diretrizes e bases para que os
estabelecimentos educacionais possam trabalhar, com os alunos, questões relacionadas à formação
da população brasileira e africana, dentro do contexto da história mundial sem se basear no
eurocentrismo, dentre outros tópicos. História e educação artística são as principais disciplinas
escolares para o ensino de História e Cultura da África, porém outras poderão complementar o
trabalho desenvolvido, como literatura, geografia e educação física, por exemplo.
Podemos ver um exemplo prático das leis na reportagem do Jornal Extra, intitulada
Professora inclui danças africanas em grade curricular de escola pública e transforma comunidade,
na qual a professora Vanessa Guimarães, da Escola Municipal Anísio Spínola Teixeira (localizada
no bairro Corte Oito, em Duque de Caxias/RJ), ensina jogos e danças africanas como uma forma de
materializar “uma representação positiva da raça negra e romper o limite da imagem do negro
açoitado dos livros didáticos” (Extra, 2017). O trabalho realizado contribuiu para melhorar as
relações interpessoais dos alunos, estimulando o respeito por intermédio do trabalho em equipe, além
de desenvolver aspectos cognitivos, sócio-afetivos, psicomotores e culturais.
A presente análise tentará mostrar possíveis descontinuidades entre a legislação até então
vigente e a realidade de sala de aula, experimentando a ideia de Kierkegaard (1834-45 APUD
SANTOS, 1988, p. 45) de ser objetivo consigo próprio e subjetivo com os outros – neste caso,
objetivo com a pesquisa e subjetivo com as experiências alheias. Segundo Santos, a construção dos
temas de pesquisa contém duas principais facetas: a faceta do tempo se refere à diferenciação do
conhecimento escrito, baseada na distância temporal entre sujeito e objeto, necessitando assim da
intensidade do conhecimento instantâneo; a faceta da ignorância se refere a ter um certo
desconhecimento sobre o objeto para poder escrever sobre ele e sobre esse desconhecimento; e a
faceta da perspectiva trata acerca de escrever à margem do objeto para poder descrevê-lo.
O trabalho com os registros de arquivos pode ser comparado com o exercício de recuperação
da realidade. Os documentos arquivísticos citados no catálogo desenvolvido pelo Museu Histórico
Nacional tem a possibilidade de recriar parcialmente o contexto social dos africanos no Brasil. Como

487
escreve Lopes, “o brilho de um gesto retido na memória tem o poder de lançar luzes na compreensão
de um passado, que se transforma em presente e se projeta no futuro” (LOPES, 1994, p. 11).

2 QUESTÕES MOBILIZADORAS: DOCUMENTOS, ENSINO, CULTURA E MEMÓRIA

Os documentos de arquivo apresentam elementos de uma cultura urbana desenvolvida ao


longo do período da escravidão ou ainda baseada nesse tipo de trabalho forçado. O trabalho escravo
envolveu múltiplas identidades africanas, que se reinventaram no Brasil e construíram a identidade
brasileira.
A homogeneização cultural que estaria ocorrendo nas cidades brasileiras não atingiu todas as
camadas sociais da mesma forma nem ao menos está distribuída com uniformidade nas áreas de
envolvimento social. Quanto maior as desigualdades econômicas, mais atuantes e marcantes seriam
as diferenças culturais2.
Muniz Sodré escreveu sobre a conceituação de cultura e suas diferentes definições,
genealogias e efeitos de poder no Ocidente no livro A verdade seduzida, contrapondo-se às
estratégias de sedução, resultados de uma lógica de mito e acionadas pela cultura negro-brasileira.
Os diferentes significados de cultura atuam como instrumentos das modernas relações de poder,
inseridas na ordem tecnoeconômica e nos regimes políticos – o domínio cultural pode ser visto
atualmente como o mais dinâmico da civilização ocidental, do ponto de vista sociológico.
Os significados usuais de cultura variam entre um todo e uma prática parcelada em torno de
uma unidade de coerência. A palavra cultura tem relação com as práticas de organização simbólica,
de produção social de sentido e de relacionamento com o real, independente do discurso
antropológico, determinando o que pode ser considerado fato cultural e situando, simultaneamente,
os fatos admissíveis em suas posições contraditórias dentro e fora do campo demarcado pela estrutura
– campo este demarcado por atos obrigatórios de uma regime simbólico determinado.
Sodré expõe a diferenciação de educação e cultura no século XIX, aproximando-se de Pierre
Bourdieu no texto Notas sobre educação. No texto de Sodré (2005, p. 21), educação significa “o
treinamento individual na direção de uma meta civilizada”, enquanto cultura é “um ideal de

2 Milena da Silveira Pereira abordou a formação cultural da população brasileira a partir da


criação de associações literárias durante o século XIX no livro A crítica que fez história: as associações literárias no
Oitocentos, centrando-se principalmente na crítica literária do período, devido “a sua importância para os caminhos que
foram senso delineados e perseguidos na constituição dos campos de saber e das formas de pensar o todo chamado Brasil”
(PEREIRA, 2015, p. 9).

488
aperfeiçoamento humano, da mesma maneira que o caminho para estabelecimento de relações
sociais satisfatórias”.
Pierre Bourdieu apontou, no capítulo A escola conservadora: as desigualdades frente à
escola e à cultura, que o sistema escolar pode ser um fator eficaz de conservação social por
aparentemente legitimar as desigualdades sociais, validar a herança cultural e considerar o dom
social como natural. As desigualdades são percerbidas durante os anos escolares, no aprendizados
dos alunos até a entrada no ensino superior, quando os alunos de classes mais altas tem maiores
chances de avanço, em comparação às outras classes sociais. A escola contribui na legitimação e
perpetuação das desigualdades no contexto caracterizado por Bourdieu ao relacionar o sucesso na
vida escolar à posição do indivíduo na hierarquia social, realizando uma seleção sob o indício de
equidade formal.
O privilégio cultural é observado na transmissão indireta de pais para filhos de capital
cultural, definindo, por exemplo, os comportamentos diante desse capital cultural e da instituição
escolar. O êxito das crianças na escola está diretamente relacionada à herança cultural recebida dos
familiares (pais, avós e/ou outros familiares ligados à educação das crianças) e à residência familiar
– como descreve Bourdieu (2012, p. 42): “[...] a ação do meio familiar sobre o êxito escolar é quase
exclusivamente cultural […] é o nível cultural global do grupo familiar que mantém a relação mais
estreita com o êxito escolar da criança.”.
A vida escolar deveria ser estudada de forma mais precisa, segundo o autor, levando em
consideração variáveis relacionadas à cultura e às características demográficas do grupo familiar,
porém essas variáveis não demonstram o conteúdo e os caminhos de transmissão da cultura. O
ambiente escolar difere-se de acordo com o investimento feito na educação e cultura pelas camadas
sociais – no estudo de Pierre Bourdieu, as camadas populares estudariam em colégios de ensino
geral, enquanto as camadas mais ricas, em liceus, mostrando que as instituições escolares recriam a
lógica do ambiente familiar.
A língua falada é uma ferramenta importante no estudo sobre o ambiente escolar, devido às
disparidades presentes a partir do meio familiar e que permance ao longo das séries, apresentando o
vocabulário e a sintaxe assimilados pelos alunos. O grupo em que os alunos estão inseridos
influenciam diretamente na aprendizagem, nos ideais e nos atos do mesmo no ambiente escolar,
sendo mais ou menos estimulados pelas ações dos professores em sala de aula, tanto nas instituições
escolares como nas universitárias, julgando seus alunos pelas escalas de valores das classes
privilegiadas, o que aumenta as diferenças sociais em salas de aula.

489
[…] Não há indício algum de pertencimento social, nem mesmo a postura corporal
ou a indumentária, o estilo de expressão ou o sotaque, que não sejam objeto de
'pequenas percepções' de classe e que não contribuam para orientar – mais
frequentemente de maneira inconsciente – o julgamento dos mestres. […]3

[…] os professores partem da hipótese de que existe, entre o ensinante e o ensinado,


uma comunidade linguística e de cultura, uma cumplicidade prévia nos valores, o
que só ocorre quando o sistema escolar está lidando com seus próprios herdeiros.
[…] Além de um léxico e de uma sintaxe, cada indivíduo herda, de seu meio, uma
certa atitude em relação às palavras e ao seu uso que o prepara mais ou menos para
os jogos escolares [...]4

O ambiente familiar também apresenta os valores das pessoas ali presente e das instituições
que atendem cada camada social, influenciando as escolhas e as atitudes de pais e filhos em relação
ao destino destes, excluindo os desejos pelo impossível. As camadas de transição (classe média)
adotaram com mais ênfase os valores escolares devido às chances maiores de satisfazer as
expectativas de ascensão, confundindo os valores de crescimento social com os de prestígio cultural.

De maneira geral, as crianças e suas famílias se orientam sempre em referência às


forças que as determinam. […] Em outros termos, a estrutura das oportunidades
objetivas de ascensão social e, mais precisamente, das oportunidades de ascensão
pela escola condicionam as atitudes frente à escola e à ascensão pela escola […] e
isso por intermédio de esperanças subjetivas […], que não são senão as
oportunidades objetivas intuitivamente apreendidas e progressivamente
interiorizadas.5

A continuidade dos alunos na escola depende das atitudes e condutas acima descritas,
combinadas ao capital cultural, sendo estas (atitudes e capital cultural) os critérios de seleção das
crianças, principalmente de classes médias e populares, a partir dos primeiros anos de escolaridade.
O êxito nos anos iniciais podem aumentar as oportunidades de êxito dos alunos no ensino superior,
retomando aqui a questão da preservação das desigualdades em todos os níveis de educação.
No capítulo intitulado Os três estados do capital cultura, Pierre Bourdieu retoma o conceito
de capital cultural como “uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho
escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais” (BOURDIEU, 2012, p. 73), seguido
de uma análise sobre a rentabilidade das despesas com educação para a sociedade ou para a
produtividade nacional a partir da visão de economistas sobre a lucratividade deste atividade.
Muniz Sodré apresenta as mudanças de sentidos que a noção de cultura ganha durante os
séculos, citando os principais autores que tratam o assunto. Após o romantismo, cultura esteve ligada

3 BOURDIEU, 2012, p. 55.


4 IBID, p. 55-56.
5 IBID., p. 49.

490
aos conceitos das classes dirigentes e de realidade superior – a cultura estaria ligada à organização
de grupos superiores, desintegrando a ideia de comunidade, estabelecendo padrões elevados de
experiência significativa de condição humana. Essa diferenciação de experiências entre diferentes
grupos também é abordado por Pierre Bourdieu, pelo viés da educação: a cultura apareceria como
algo aprendido pelos indivíduos no ambiente familiar antes de ingressarem no ambiente escolar e
universitário, diferenciando-os neste último ambiente em níveis sociais.
O termo cultura se ajusta melhor ao objeto de conhecimento antropológico por acentuar os
significados de limites grupais, de diferenças civilizatórias e de culturalização. Neste termo, ainda é
visto o significado de civilização no contexto do discurso antropológico-evolucionista por apresentar
diferentes fases de um mesmo processo de transformação desenvolvida pela civilização ocidental.
A universalização reduz as diferenças a um mesmo valor, racionalizando o conceito de homem e
inaugurando o racismo doutrinário no século XIX. Até então, o racismo estava justificado por
motivos religiosos, econômicos ou políticos. A palavra racismo começou a ser empregada no século
XIX como “consequência de um conceito de cultura fundado na visão indiferenciada do humano”
(SODRÉ, 2005, p. 27-28); porém também nasceu da igualdade admitida na abstração universalista
do conceito de ser humano, como observado por D. H. Lawrence, que disse ter apenas o
reconhecimento da presença do outro, sem comparações.
Muniz Sodré chama atenção para a linguagem mais refinada da lei da universalização, com a
etnologia sendo aplicada em duas situações: com base psicológica, estendendo a validade conceitual
do inconsciente a todas as culturas imaginárias, ou a mecanização das sociedades ao analisar com
precisão seus mitos, ritos e regras de parentesco.
O conhecimento da diversidade e da diferença nas relações intergrupais e nas relações
internas das sociedades humanas leva ao conhecimento de sentido, podendo ultrapassar as tentativas
de determinação absoluta da identidade, destruindo os termos de significação e destruindo os valores
de representação.
Um agrupamento humano fixa sua identidade a partir de uma figuração lógica do processo
de simbolização envolvendo três estados (não tendo sucessão cronológica entre eles): anomia
(diversidade sem leis, com ausência de liberdade em grupos sem identidade), heterononomia (o
grupo estabelece distinções como unidade estruturada, mas ainda dependendo de normas e limites
de fora), e autonomia (diferenciação feita a partir do próprio grupo, construindo a própria identidade
e normas particulares).
Os processos culturais em todo mundo são plurais e abertos à trocas com outras culturas,
sendo heterogêneos nos jogos, nas lutas, nas aproximações e nas ambiguidades. As diversidades
culturais ocorrem por meio a diversidade dos espaços globais da ideologia, estabelecendo diferentes

491
valores para a atividade simbólica. A diferença na cultura é vista também no regime de sentido, na
distribuição simbólica, nos sistemas de produção e em outras esferas da sociedade.
A formação da sociedade brasileira começou no século XVI com um processo de
agrupamento de elementos americanos (indígenas), europeus (portuguesas principalmente) e
africanos (negros trazidos principalmente da costa ocidental da África), ocupando um grande
território a se conquistar. Esse agrupamento esteve presente também no campo ideológico cristão do
colonizador, no qual pode ser observado organizações hierárquicas, formas religiosas, concepções
estéticas, relações míticas, músicas, costumes e ritos.
A representação do outro na verdade do Ocidente pode envolver o discurso revolucionário e
o discurso racista, dividindo os grupos humanos em bem e mal a partir de um equivalente geral
(valor) das operações de sentido. Porém, é importante considerar a perspectiva simbólica registrada
na diferença cultural, pensando as formas de reversibilidade, externos ao modelo histórico do
Ocidente.
Na África, os professores ensinam, nas escolas, pensamentos de brancos, confrontando-se
com a aguçada consciência de si por parte dos africanos, em um provável contexto militante político.
Como descreve Muniz Sodré (2005, p.127), os africanos sabem que sua magia é diferente da magis
dos europeus.
O desenvolvimento de uma identidade nacional brasileira ocorreu paralelamente à construção
do conceito de nação brasileira, ambas influenciadas pelo iluminismo. Como aponta Manoel
Guimarães, esses conceitos foram delineados após a implementação do Estado Nacional nos séculos
XVIII e XIX, materializada pela criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em
1838. Porém sua elaboração em uma sociedade marcada por trabalho escravista e indígena enfrentou
dificuldades diante dessas especificidades.
A identidade brasileira passou por um momento de forte crise no período da Primeira
República no país, após passar pela abolição da escravatura e fim do regime imperial, opondo os
conceitos de modernidade e nação. Imaginava-se criar uma imagem para a Europa de que a
população brasileira poderia ser um exemplo de civilização nos trópicos, principalmente na capital
federal – esta “devia ser o espelho do país moderno para inglês ver, e para isso se vestiu com novas
roupas e desfilou sua saúde sanitizada” (LOPES, 1994, p. 13).
De acordo com Vinicius Netto, a definição de identidade engloba um movimento de
reapropriação progressiva, buscando similaridades entre alguns indivíduos ao mesmo tempo em que
busca-se diferenças com outros, criando consequentemente avaliações e categorias relacionadas às
identidades atribuídas aos outros, atribuindo desigualdades na identificação de si e dos outros. A

492
ausência de interação entre os grupos diferentes socialmente (restrição de interações) estimula a
segregação no interior da sociedade.
Para Helena Pinto, a identidade é um valor inseparável de patrimônio, em um sentido de
múltiplas perspectivas. O patrimônio é um fator identitário de uma comunidade, por ser expressão
de sua cultura, especificidades e convergências. A relação entre identidade e patrimônio,
principalmente a identidade nacional e o patrimônio cultural, é evidenciada pela “tomada de
consciência de que ambas se organizaram em torno da questão das relações com o lugar e o tempo”.
O ensino sistemático da História auxilia na aprofundação e reorientação da identidade social
por meio da apropriação da aprendizagem pelos alunos. A escola é um dos meios de orientação
temporal, junto com o meio familiar e cultural, para o desenvolvimento de uma consciência histórica
e apropriação simbólica do real a partir dos sentimentos de pertencimento. Complementando o
ensino sistemático, Pinto aponta para o uso de estratégias de educação envolvendo experiências com
significados, tido como fundamentais para o desenvolvimento do pensamento histórico dos alunos.
Fugindo da dicotomia elite-povo presente no início da República, outros grupos sociais
construíam identidades alternativas e projetavam imagens diversas. Estrangeiros, minorias e
movimentos sociais participaram ativamente da construção de uma identidade híbrida, tipicamente
brasileira.
Elio Flores aponta, em artigo intitulado Com a devida permissão: cultura jurídica, tradição
escolar e ações afirmativas em processo, que as identidades étnicas brasileiras estão passando por
um lento processo de reconstrução a partir da Constituição de 1988, na qual há o registro de
criminalização do racismo no Brasil.
De uma forma geral, em outro artigo de Boaventura Santos (1997, p. 13), o autor desenvolve
“um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos
no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de
identidades, por outro”, com o intuito de “justificar uma política progressista de direitos humanos
com âmbito global e com legitimidade local”.
Idealizar os direitos humanos como universais, para Boaventura, seria considerá-los como
um instrumento de choque de civilizações, principalmente entre Ocidente e Oriente, sendo o ideal
reconceitualizar os direitos humanos como multiculturais. Na prática, não há universalidade nos
direitos humanos, tendo a identificação de quatro regimes internacionais de aplicação: europeu, inter-
americano, africano e asiático, porém a cultura ocidental é a única que considera os direitos humanos
como universais, aplicando o imperialismo cultural e o epistemicídio 6 em outras culturas.

6 De acorodo com Manuel Tavares, epistemicídio significa “destruição de algumas formas de


saber locais, à inferiorização de outros, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de

493
Inúmeras pessoas e ONG's pelo mundo lutam pelos direitos humanos, voltados para a defesa
de classes sociais e grupos oprimidos, vítimas de Estados capitalistas autoritários – o Brasil oferece
muitos exemplos de ações dos direitos humanos para os grupos citados.
O diálogo intercultural envolve trocas entre diferentes saberes e entre diferentes culturas, com
inúmeros sentidos. Boaventura Santos (1997, p. 23) assim descreve: “Compreender determinada
cultura a partir dos topoi7 de outra cultura pode revelar-se muito difícil, se não mesmo impossível”,
suscitando a dúvida de como compreender a cultura africana sem aplicar a cultura brasileira como
critério de análise.
Para ter apropriação e absorção pelo contexto cultural local, na área de direitos humanos e da
dignidade humana, é importante para Boaventura ter um diálogo intercultural e uma hermenêutica
diatópica. Esta última tem, por objetivo, aumentar a consciência de incompletude recíproca por meio
de diálogo entre duas ou mais culturas e requer um tipo de conhecimento e um processo diferente de
criação do conhecimento, exigindo uma produção de conhecimento coletiva, interativa,
intersubjetiva e em rede.
Em paralelo à análise sobre direitos humanos de Boaventura Santos, Elio Flores desenvolve
um debate sobre ações afirmativas ligadas à educação de negros afro-descendentes. Para Flores
(2006, p. 13):

[…] A ação do direito afirmativo visa a, justamente, corrigir anomalias no corpo


social, reconhecer mecanismos positivos de distribuição de renda e de justiça e, não
menos importante, reconhecer que o acesso tradicional à universidade, o duvidoso
vestibular pago, não tem nada de meritocrático. Pelo contrário, o vestibular […] não
passa de uma fraude acadêmica. [...]

De acordo com Flores (2006, p. 16), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
apontam para reflexões sobre políticas de reparações e de reconhecimento e valorização de ações
públicas afirmativas, mostranto a importante relação entre justiça e educação a partir da consciência
política e histórica da diversidade, do fortalecimento de identidades e de direitos e de ações
educativas de combate ao racismo e à discriminações.
O Estado teria um papel ativo na promoção da igualdade material, como aborda Flores (2006,
p. 18), com posturas e políticas de usufruto de direitos, assegurando a materialidade da justiça. Soma-

perspectivas presente na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas”.
7 Topoi, para Santos (1997, p. 23), “são lugares comuns retóricos mais abrangentes de
determinada cultura”.

494
se aqui o papel do Estado em dar acesso as suas informações e documentos, como dito no início
deste capítulo.

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Acesso em: 3 out. 2017.

______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
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educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em:
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495
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SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 3. ed. 168p.

496
“Força através do envolvimento”:
o caso da Terceira Onda e o ensino de história do Fascismo (1967)

Caroline de Alencar Barbosa1

Resumo: Nesta pesquisa, em estágio inicial, buscamos compreender um caso ocorrido em 1967, em
Palo Alto, Califórnia, denominado de The Third Wave (A Terceira Onda) que consistiu em uma
simulação feita entre alunos dos segundo, terceiro e sexto períodos da Cubberley Senior High School
na disciplina de História do Mundo Contemporâneo, ministrada pelo professor Ron Jones (1941-).
Pretendeu através dela mostrar aos alunos a capacidade de persuasão de um grande líder ao educar
as massas para a disciplina, o seguimento de uma ideologia e a obediência. O objetivo é analisar a
experiência de Palo Alto através das notícias produzidas pelos alunos que estudavam na escola
durante o acontecimento a partir do jornal The Catamount. A relevância deste trabalho consiste em
discutir a ressurgência dos fascismos e acerca da intolerância no cotidiano escolar, temas
relacionados ao ensino de história.

Palavras-chave: Educação. Fascismo. Terceira Onda.

Abstract: In this initial research, we sought to understand a 1967 case in Palo Alto, California, called
The Third Wave, which consisted of a simulation between Cubberley Senior Second, Third and Sixth
Period students School in the discipline of Contemporary World History, taught by Professor Ron
Jones (1941-). Through it he intended to show students the persuasiveness of a great leader by
educating the masses to discipline, to follow an ideology, and to obey. The objective is to analyze
the experience of Palo Alto through the news produced by the students who studied at the school
during the event from The Catamount newspaper. The relevance of this work is to discuss the
resurgence of fascism and about intolerance in daily school, issues related to the teaching of history.

Keywords: Education. Fascism. Third Wave.

Introdução

Esta pesquisa tem como objetivo estudar o movimento da Terceira Onda, criado pelo
professor de História do Mundo Contemporâneo Ron Jones na escola norte-americana Cubberley
Senior High School, localizada em Palo Alto, Califórnia, entre 1967-1968. Denominado The Third
Wave (A Terceira Onda) consistiu em um experimento desenvolvido durante as aulas referentes à
Alemanha nazista com o objetivo de demonstrar como a população alemã nos anos do Terceiro Reich
(1933-1945), liderado por Adolf Hitler (1889-1945), aderiu à ideologia fascista.

1 Graduada em História na Universidade Federal de Sergipe (DHI/UFS). Mestranda no


Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UFS) sob a orientação do Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard.
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. E-mail: caroline@getempo.org

497
Dessa forma, a proposta visava demonstrar a forma pela qual o Partido Nazista, liderado por
Adolf Hitler conseguiu mobilizar a população durante os anos de governo do Terceiro Reich, no
contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). No período do Terceiro Reich, segundo Lenharo
(2006), todas as ocasiões eram motivo de agrupamento das massas na rua e seu envolvimento
político. A grande cartada da organização nazista eram os espetáculos que transformavam a grande
população em peça primordial dessa organização.
“Os emblemas da águia e da cruz gamada, dispostos nas braçadeiras, nas bandeiras
e nos estandartes, funcionavam como marcas de identificação. O símbolo mágico
da suástica de conhecida ancestralidade, uma espécie de cruz em movimento,
sugeria a energia, a luz, o caminho da perfeição como a trajetória do Sol em sua rota
(...). A cruz gamada portava um símbolo sexual que havia tomado historicamente
diferentes significações; suas linhas demonstram figuras enlaçadas, simulando um
ato sexual- daí seu poder de excitação sobre as camadas profundas e inconscientes
do psiquismo...” (LENHARO, 2006, p.40).

Sendo assim, discutiremos o movimento da Terceira Onda onde jovens estudantes tomaram
para si posturas de caráter autoritário, desenvolveram símbolos, saudações e seguiram normas de
conduta dentro e fora da sala de aula. No primeiro dia o professor Jones atribuiu a todos uma tarefa
a ser concluída naquele dia. Alguns eram para memorizar os nomes e endereços de todos no grupo;
Outros eram fazer bandeiras da terceira onda, braçadeiras e cartões de membro (WEINFIELD, 1991).
Objetivamos identificar como esta experiência pedagógica, interferiu no posicionamento
ideológico e prático dos discentes em torno do Fascismo. Através do periódico estudantil The
Catamount produzido pelos alunos levantamos alguns questionamentos: De que forma a experiência
foi vivenciada pelos alunos? Os mesmos tinham a clara noção do que se configurou o nazismo?
Como se caracterizava essa juventude americana no ano de 1967?
Neste sentido, este estudo se justifica ao pensar a escola como um ambiente de
conscientização e formação de opinião contra a barbárie e o extremismo político. Portanto, a
relevância deste trabalho consiste em, através do estudo do caso da Terceira Onda, discutir a presença
e a influência da ressurgência dos fascismos e do reforço do discurso da intolerância no cotidiano
escolar, temas relacionados ao ensino de história.

O conceito de Fascismo e o nazismo

Segundo o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva (2015) baseia-se em movimentos


de extrema-direita com apego às tradições nacionais, a um líder de personalidade autoritária, além

498
da adoção de uma teoria de conspiração voltada para um inimigo comum, a exemplo dos judeus na
Alemanha. O agir político fascista pode ser compreendido como a reprodução de um sentimento de
superioridade que promove a construção de identidade nacional comum.

Embora o fascismo se dedique à defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada
conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação) ao reunir a pequena-burguesia e os
desempregados assustados com a crise ou decepcionados com a impotência da revolução socialista,
em si ele não é fundamentalmente ideológico. Apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição
violenta do mito, que exige a participação em uma comunidade definida por pseudovalores: a raça,
o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. (DEBORD, 1997, p.75).
Entendemos através de De Grand (2005) que a ideologia racial nazista e o modo do Fürher
de dirigir o Estado, tornaram o regime da Alemanha mais dinâmico, radical e instável. Aplicaram o
princípio da raça ao mundo da cultura, ciência, relações econômicas e sociais com efeitos
devastadores. É dentro desta perspectiva que buscamos compreender os motivos pelos quais alunos
inseridos em um contexto diferente ao da Alemanha nazista e da Segunda Guerra Mundial aderiram
às posturas de caráter fascista.
Após essa delimitação do objeto a ser estudado, entendemos que todo trabalho científico
pressupõe validade de regras em teoria e metodologia (Weber, 1993). Durante a análise das fontes
devemos entender que uma das preocupações essenciais ao se trabalhar a partir da perspectiva
histórica é de não limitar os acontecimentos às ações e esquecer as ideologias e mentalidades
motivadoras para tal fato (BLOCH, 2011).

Procedimentos de pesquisa

Esta pesquisa partirá do levantamento das edições do jornal The Catamount, que estão
disponíveis para consulta e download em formato PDF no site The Wave
(http://www.thewavehome.com/) gerido e supervisionado pelos participantes originais do
movimento Terceira Onda. Essas fontes serão coletadas, catalogadas e arquivadas em um banco de
dados que facilite o acesso do pesquisador às principais fontes de pesquisa caso o site seja retirado
de circulação (MAYNARD, 2011).

499
Esta pesquisa deve analisar o que o periódico The Catamount apresenta sobre o envolvimento
dos alunos na simulação, caso identifique-se uma movimentação de caráter fascista, buscamos
entender como ela pode ter ocorrido em um contexto que não pertencia à Segunda Guerra Mundial.
Para examinar as fontes acompanhamos Marc Bloch ao entendermos que o historiador deve
possuir todas as técnicas necessárias à sua investigação, deve dominar todos os elementos que
compõem sua pesquisa, o que Bloch denominou de “multiplicidade de competências” (2001, p. 81).
Também compreendemos a importância para a pesquisa acadêmica de um banco de dados,
do recolhimento de documentos que complementem as pesquisas. A pesquisa qualitativa, na qual
esta se insere, possui dados de análise, que necessitam de classificação e ordenação, além de
aprofundamento teórico para a produção de resultados. Isso irá conferir legitimidade ao estudo
(teoria+empiria) em torno de um objeto, problema ou questão (DUARTE, 2002).
Ao selecionar um periódico como fonte de pesquisa compreendemos que “a escolha de um
jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como
instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social” (CAPELATO; PRADO,
2005). A análise dos editoriais, por exemplo, evidencia a atuação do periódico como porta-voz de
um determinado grupo, nesse caso, os estudantes.
Estudos assim exigem larga pesquisa, domínio de ampla bibliografia e rigor conceitual pelos
procedimentos teórico-metodológicos adotados no tratamento das fontes. No caso desta pesquisa
também devemos considerar o papel da imprensa na disseminação de ideologias de pretensões
totalitárias presentes nas preocupações e debates contemporâneos.
Segundo (LUCA, 2005), ao trabalhar com periódicos alguns procedimentos base devem ser
adotados pelo pesquisador: 1) encontrar as fontes e construir uma série; 2) localizar as publicações
na História da Imprensa; 3) observar as características de ordem material (periodicidade, impressão,
papel, uso/ ausência de iconografia e de publicidade; 4) observar a forma de organização interna do
conteúdo; 5) elencar o grupo responsável pela publicação; 6) listar os principais colaboradores; 7)
apresentar o público ao qual se destinava; 8) identificar as fontes; 9) analisar o material de acordo
com a problemática escolhida. Esse processo metodológico norteará o desenvolvimento desta
pesquisa.
Para complementarmos nossa documentação utilizaremos o material adicional para a
discussão presente nas subseções da página que compreendem documentários, artigos entrevistas
com o professor Ron Jones que criou e desenvolveu o experimento da Terceira Onda, sugestões de
categorias para análise em sala de aula tomando como ponto de partida o estudo desse movimento,
além do acervo de documentos originais disponíveis.

500
Outro recurso que deverá ser utilizado durante a pesquisa será um livro de caráter
memorialístico produzido por uma das professoras que lecionaram na escola Cubberley Senior High
School no período proposto neste projeto intitulado Hassling (traduzindo ao português podemos
entender como uma “disputa desordenada”) com o objetivo de adquirir o maior número de
informações possíveis a respeito deste tema.

Considerações finais

A aproximação de história e ciência se deve ao fato dela precisar de métodos próprios que
devem ser ensinados. Sem documento, não há história já afirmavam Langlois e Signobos. O mesmo
só passa a ser considerados como tal a partir do momento que possa fornecer ao historiador as
informações que ele necessita. Para isso se faz presente uma análise minuciosa do que será utilizado
e o que será descartado a fim de compreender os fatos e lançar mão dos artifícios corretos para se
reproduzir um conhecimento histórico. A história deve apurar os mitos, a imaginação a fim de
descobrir embutidos nos mesmos as crenças do homem (GOFF, 1990).
Sendo assim, pretendemos analisar o cotidiano escolar e de que maneira ele foi alterado pela
Terceira Onda, observando a repercussão do experimento, as formas de intolerância praticadas pelos
seus integrantes e os desdobramentos desses atos que chamaram a atenção pelo seu desenvolvimento,
como no caso do psicólogo Philip Zimbardo, da Universidade de Stanford, cuja famosa experiência
prisioneira vários anos depois resultou em estudantes universitários que caíram em sadismo e
eventual ruptura emocional depois de ter sido atribuído o papel de guarda na prisão. Segundo ele,
"As situações exercem muito mais influência sobre o comportamento humano do que as pessoas
reconhecem” (WEINFIELD,1991) (tradução nossa).
Portanto, esta pesquisa justifica-se, pois, o ambiente escolar caracteriza-se como um espaço
de convivência de indivíduos plurais e com características físicas e psicológicas que os diferem entre
si. Nesse caso, o papel do educador aparece no sentido de fornecer caminhos para o respeito e a
tolerância entre os discentes, além de aprimorar os conhecimentos técnicos, críticos e do mundo.
Pretende-se a partir disso realizar uma discussão em torno da escola enquanto um ambiente de
conscientização e formação de opinião contra práticas de intolerância e de formação intelectual,
social e crítica.

501
Bibliografia

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001.
DE GRAND, Alexander J. Itália fascista e Alemanha nazista. São Paulo: Madras, 2005.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo/ Guy Debord; tradução Estela dos Santos Abreu. – Rio
de Janeiro: Contraponto, 1997.
DUARTE, R. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cadernos de Pesquisa,
n.15, p. 139-154, março/2002. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em 24/04/2017.
GOFF, Jacques Le. História e Memória. Campinas. SP Editora da UNICAMP, 1990. (Coleção
Repertórios).
LUCA, Tânia Regina de,. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. Fontes históricas. org.
PINSKY, Carla Bassanezi. - São Paulo: Contexto, 2005. p. 112-153.
MAYNARD, Dilton; SILVA, Marcos. E-storia. Revista Eletrônica História Hoje, v. 1, no 2, 2012,
p.249-252. Disponível em: <http://rhhj.anpuh.org/ojs/index.php/RHHJ/article/view/9>. Acesso em
24 de setembro de 2016.
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Aprender história pela internet. In: Anais do XXV Simpósio
Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009 p. 1-8. Disponível em:
http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.1399.pdf. Acesso em 26 de
setembro de 2016.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Enciclopédia de guerras e revoluções: vol II: 1919-1945: a
época dos fascismos, das ditaduras e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)./ Francisco Silva. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2015.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. 9º ed., Tradução: Leonidas Hegenberg e Octany
Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1993.
Fontes
WEINFIELD, Leslie. The Wave Home. Penusila Magazine, São Francisco, 1991. Disponível em:
http://www.thewavehome.com/1991_The-Wave_article.htm. Acesso em 05.01.2017.
Sites Consultados
The Wave Home- http://www.thewavehome.com/

502
Protagonismo negro no rádio dos anos 1930 e 19401

Caroline Moreira Vieira Dantas2

Resumo: Nascido no final do século XIX, o cantor, compositor e violinista Patricio Teixeira
vivenciou diversas mudanças no campo artístico-profissional da cidade do Rio de Janeiro, incluindo
a gravação de músicas em disco e a participação na radiofonia. O artista foi um dos primeiros
cantores negros a atuar no rádio, sendo exclusivo da emissora Mayrink Veiga. Com uma trajetória
profissional duradoura e estável, sua experiência é relevante para investigar o contexto histórico e as
percepções construídas sobre os artistas negros. Além disso, sua inserção na radiofonia demarca a
presença negra em um ambiente cultural eminentemente branco, apontando para seu protagonismo
e sua luta pela cidadania.

Palavras-chave: Patricio Teixeira. Radiofonia. Protagonismo negro.

Abstract: Born in the late 19th century, the singer, composer and violinist Patricio Teixeira
experienced several changes in the artistic-professional field of the city of Rio de Janeiro, including
the recording of songs on disc and participation in radiophony. The artist was one of the first black
singers to perform in the radio, being exclusive of the transmitter Mayrink Veiga. With a long and
stable professional trajectory, his experience is relevant to investigate the historical context and the
perceptions elaborated on black artists. Moreover, its insertion in the radiophony marks the black
presence in an eminently white cultural background, pointing out to its protagonism and its fight for
citizenship.

Keywords: Patrício Teixeira. Radio. Black protagonism.

A análise sobre as relações entre músicos negros e a fonografia na cidade do Rio de Janeiro
nas primeiras décadas do século XX revelou questões importantes para a compreensão desse ramo
comercial, o contexto de produção, divulgação e comercialização de discos, músicas e aparelhos
sonoros. Por meio das músicas, os artistas angariavam reconhecimento artístico e profissional,
3
expressando sua visão religiosa, política, cultural e social.
Este período caracterizou-se pela formação da indústria fonográfica com a instalação da Casa
Edison no Rio de Janeiro, referente à fase mecânica da fabricação de discos. Desde o início do século,
a fonografia já mostrava envergadura no processo de produção e comercialização, com significativa
quantidade de discos de gêneros populares tendo como alvo um mercado consumidor que se

1 O presente artigo reúne algumas reflexões da pesquisa de doutoramento em curso.


2 Doutoranda em História Social pela UERJ/FFP/CAPES. Email: carolinemvieira@ig.com.br
3 VIEIRA, C. M. “Ninguém escapa do feitiço: música popular carioca, afro-religiosidades e o mundo da
fonografia” (1902-1927). Dissertação de Mestrado em História. Faculdade de Formação de professores da UERJ, São
Gonçalo, 2010.

503
formava. Um universo musical consagrado pelo gosto popular, que era um excelente negócio para
as empresas, e, por outro lado, uma oportunidade para músicos de origem popular. 4
Com a introdução da fase elétrica a partir de 1927, ocorreram melhorias técnicas na gravação,
cuja principal foi o uso do microfone 5, acompanhadas de outras mudanças, compondo um novo
cenário musical. A década de 1920 representou a consolidação da fonografia no Rio de Janeiro. Em
particular, o final desta década guarda características próprias na produção de discos, representando
um incremento na quantidade e na qualidade das gravações, o que permitia uma melhor audição.
Significou também um momento de definição de identidades profissionais na carreira artística.
A partir desta década, ocorreram também aproximações entre as musicalidades populares e a
radiofonia, o que conferiu impulso à fonografia e à carreira de alguns músicos, em especial, cantores.
A rádio transmissão iniciou suas atividades no Rio de Janeiro nos anos de 1920, crescendo ao longo
da década de 1930 e alcançando seu auge nos anos 1940 e 1950.6 Agiu como difusor de músicas e
informações, representando uma ampliação do mercado de trabalho para músicos e um aumento do
número de ouvintes de gêneros musicais populares. Assim, houve grande influência do rádio sobre
o fenômeno das músicas populares, colaborando para sua divulgação. A partir de então, se constroem
novos entendimentos e relacionamentos mais intensos dos músicos com este meio de comunicação
de massa, consolidando a carreira musical. Contudo, essa influência do rádio sobre a musicalidade
popular não foi suficientemente analisada a partir do ponto de vista dos sujeitos envolvidos
diretamente nesse processo.
Há uma ligação estreita entre a fonografia e o rádio, pois, se por um lado, este ampliou o raio
de alcance de músicas, colaborando para divulgação de discos e tornando conhecidos os artistas,
principalmente os cantores; por sua vez, a fonografia foi fundamental para o sucesso do rádio. Esses
vínculos podem ser evidenciados no trânsito de músicos entre esses dois campos de atuação. Há um
paralelismo entre o período de consolidação da fonografia e a formação e o desenvolvimento do
rádio no Rio de Janeiro, cujo sucesso esteve amparado nos gêneros musicais populares. Nesse
ínterim, a fonografia colaborou desde o início do século XX para a expansão do interesse social pela
música de origem popular em diferentes espaços, mas é importante ratificar que sua ação foi
catalisadora da relevância já existente dessas sonoridades.

4 A constituição desse setor musical contava com a popularidade alcançada pelos músicos antes de se
relacionarem com a fonografia, uma vez que cantavam em bares, teatros e outros espaços da cidade. Entre 1902 e 1927
foram gravados aproximadamente sete mil discos, metade destes pela Casa Edison/Odeon. No período da fase elétrica
há cerca de 28 mil discos brasileiros, entre 1927 e 1964. Neste período, a gravadora Odeon passou a produzir uma média
de 150 lançamentos por ano. FRANCESCHI, Humberto. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002,
pp.198-208.
5 Ibidem, p.208.
6 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura Brasileira e Indústria Cultural. 5ª edição. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 38.

504
A fonografia já vinha se relacionando com as musicalidades populares no Rio de Janeiro
desde o início do século. Enquanto mecanismo de gravação de música possibilitou a ampliação da
circulação social deste produto cultural, fazendo com que a música e os músicos se tornassem mais
conhecidos. Deste modo, o desenvolvimento do rádio ao longo da década de 1920 e sua consolidação
a partir da década de 1930 foram favorecidos pela amplitude que os gêneros musicais populares
alcançaram com a gravação em disco. Nesse sentido, há um esforço de aproximação entre fonografia
e radiofonia, analisando os dois campos como possibilidades de atuação para músicos.
Foi neste cenário cultural que surgiu a figura de Patrício Teixeira, cantor, compositor e
violinista, que gravou centenas de músicas em disco entre as décadas de 1920 e 1950; e atuou de
forma emblemática na radiofonia desde os seus primórdios. Passou por diversas estações e
permaneceu por cerca de três décadas na rádio Mayrink Veiga, como cantor contratado e exclusivo.
Também teve contratos assinados com a Odeon e a Victor, principais gravadoras de disco do período,
com passagens pela Parlophon e pela Columbia.
A partir da sua trajetória é possível investigar não apenas a sua experiência enquanto cantor
com atuação profissional na fonografia e no rádio, mas analisar as relações sociais construídas no
campo artístico-profissional, demarcando suas identidades e seu protagonismo negro. Assim como
revela sua determinação pela construção de uma carreira artística, por ascensão social e pela
conquista da cidadania naquele contexto histórico de exclusão, marginalização, hierarquizações e
preconceitos raciais.
Patricio foi muito marcante nos primórdios da carreira de cantor profissional de gêneros
musicais populares, e suas vivências enquanto homem negro foram significativas para a
compreensão das representações negras e conflitos raciais no ramo dos entretenimentos culturais,
em particular, na radiofonia.
Apesar de ter atuado como músico no carnaval, no teatro e como professor de canto e violão,
o destaque profissional de Patrício aconteceu nas áreas da fonografia e do rádio, onde ganhou fama
e sucesso. No depoimento que o músico concedeu ao Museu da Imagem e do Som na década de
1960, contou que nasceu na Rua Senador Eusébio, na antiga Praça Onze, em 1893. Não conheceu os
pais e foi criado por uma família. Suas primeiras manifestações musicais se deram ainda quando era
um menino, tocando violão e cantando. Foi mestre de canto em um cordão carnavalesco chamado
Triunfo das Ondas do Mar. Sua vida artística se iniciou fazendo serenatas no bairro de Vila Isabel e

505
na região da Praça Onze, sendo muito próximo de Pixinguinha, Donga, João Pernambucano e Catulo
da Paixão Cearense, de quem gravou muitas composições. 7
Segundo seus próprios relatos, sua primeira apresentação profissional aconteceu num clube
na cidade de Petrópolis na região serrana do Rio de Janeiro na década de 1920. Chegou a cantar
também no teatro. Fez excursões por alguns estados do Brasil como São Paulo. Rejeitou algumas
oportunidades de ir para o exterior. Terminou sua carreira na fonografia e no rádio na década de
1950. A partir desse momento, declarou que se dedicou ao trabalho de professor de violão e canto:
“Eu já dava umas aulas, dava pra viver”. 8
A investigação de fontes jornalísticas sobre a trajetória de Patrício Teixeira levantou
problematizações com relação à atuação de músicos negros na radiofonia. O rádio foi um importante
meio de divulgação dos repertórios populares, englobando diversos gêneros e temáticas, mas também
espaço de socialização, revelando tensões raciais no meio artístico. Além disso, foi possível também
observar como as identidades culturais negras eram representadas naqueles espaços.
Deste modo, sua experiência profissional descortinou representações raciais depreciativas e
preconceituosas sobre um artista negro. Levando em consideração o contexto de pós-abolição da
escravidão, qual seria o lugar a ser ocupado pelos negros na sociedade brasileira? A história de
Patrício, assim como de muitos outros homens e mulheres negras, está inserida nessa problemática.
O campo artístico-cultural fora uma possibilidade de inserção profissional para músicos negros,
sendo as empresas fonográficas e as emissoras de rádio, espaços ativos de atuação, mas não
excluindo hierarquizações e preconceitos raciais, mesmo diante do sucesso artístico. À luz dessas
questões, a trajetória de Patrício é muito rica de reflexões no campo social, cultural e racial no Rio
de Janeiro do período.
Além disso, a atuação profissional de Patrício Teixeira colabora na formação dos contornos
do ofício de músico, em especial, cantor, violinista e professor de violão. Por isso, sua carreira
colaborou decisivamente para a construção da profissão.
Com uma vida profissional bastante extensa e estável, o cantor gravou centenas de músicas,
algumas de sua autoria, e interpretou muitas outras nas emissoras de rádio por onde passou. Estas
canções podem servir como uma amostra de gêneros e temáticas que faziam sucesso no Rio de
Janeiro, refletindo preferências dos ouvintes no campo musical. O “seresteiro incorrigível”, alcunha
que recebeu no meio radiofônico, cantou vários gêneros musicais, abordando diversas temáticas.
Entre os gêneros constavam modinhas, valsas, emboladas, toadas sertanejas, lundus, maxixes e

7 Na ocasião da entrevista, o músico tinha setenta e três anos. Nasceu em 17/03/1893 e faleceu em
09/10/1972 no Rio de Janeiro. Depoimento de Patrício Teixeira Chaves ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro
em 01/12/1966.
8 Idem.

506
sambas. Quanto às temáticas, ressaltam-se músicas que mencionam relações amorosas, hierarquias
sociais e raciais, relações entre brancos e negros, religiosidades e canções bucólicas de elogio ao
universo rural.
Ao cantar Patricio Teixeira colocava em evidência percepções e subjetividades, expressando
ideias e visões de mundo por meio da linguagem musical, indicando que não estava alheio ao seu
entorno social. Sua presença nos ambientes culturais, cantando e tocando em teatros, cassinos,
estúdios fonográficos e radiofônicos, assim como nas páginas da imprensa, revelam sua identidade
negra.
A história profissional deste artista pode ser entendida como uma oportunidade de olhar uma
experiência artístico-cultural bem-sucedida de um músico negro em termos de estabilidade,
durabilidade e sucesso na carreira, tendo perpassado as duas mais promissoras esferas de atuação
para músicos, a fonografia e o rádio. O sucesso enquanto cantor e o reconhecimento social das suas
habilidades artísticas, como revelam os periódicos, também justificam a escolha deste músico como
uma janela para a compreensão de relações sociais e culturais naquele contexto histórico.
Sua experiência como cantor pode ainda ser vista como uma tentativa de inserção profissional
para um músico negro, diante das hierarquizações raciais construídas historicamente na sociedade
brasileira, indicando seu protagonismo. O sucesso artístico não eliminou as situações de preconceito
racial a que fora submetido ao longo da sua carreira, como por exemplo, a referência a ele como “a
voz branca de brasileiro” encontrada na imprensa. 9
Diante do contexto histórico das primeiras décadas do século XX, o uso da expressão “voz
branca” carrega conotações raciais evidentes. O seu uso poderia inclusive sugerir um salvo-conduto
ao cantor negro, garantindo o seu trânsito no meio artístico. A justificativa para sua atuação no rádio
pode estar associada justamente a suas características vocais “brancas”, pois não eram muitos
cantores negros contratados pelas rádios nos seus primórdios.
Para além das representações divulgadas sobre o músico, a partir das entrevistas que
concedeu é possível analisar como ele mesmo se identificava e que imagem de si ele desejava
construir, percebendo o que é posto em destaque e o que é silenciado. Observando essas percepções,
projetamos as imagens de Patrício em relação a sua identidade negra. Há indícios de que ele se
reconhece socialmente como negro e compreende as restrições sociais estabelecidas por critérios
raciais. Os indícios dessas suposições são evidenciados na reportagem da revista O Malho em 1933:
“Patricio Teixeira, o querido cantor, anda furioso com todos os que votam ‘em branco’ no concurso
para Príncipe do ‘broadcasting’ instituído pela ‘A Hora’!” [grifos do original] 10

9 Revista O Malho, edição nº 124, seção Broadcasting, 17 de outubro de 1935, p.6.


10 Revista O Malho, 28/12/1933, p.8.

507
Era comum os jornais e as revistas realizarem concursos para que o público ouvinte de rádio
escolhesse seus artistas preferidos. Assim, a citação acima narra a suposta reclamação do cantor
Patricio Teixeira em relação a um desses pleitos, organizado pelo periódico A Hora. Analisando o
trecho, chama atenção o uso das aspas colocando em destaque a expressão “em branco”, provocando,
talvez propositalmente, um duplo sentido na compreensão de quem lesse essa nota da revista escrita
por um jornalista anônimo. A expressão poderia sugerir que os eleitores não estivessem optando por
nenhum dos candidatos ao título de príncipe do rádio. Todavia, certamente, não era nessa acepção
que o sinal gráfico estaria sendo empregado. O uso das aspas, nesse caso, estaria denotando ironia
à situação descrita. Não perdendo de vista o contexto social, é fácil concluir que se tratava de uma
queixa quanto à preferência do público pela escolha de artistas brancos, em detrimento de negros,
tal como Patricio Teixeira.
Apesar do seu sucesso, evidenciado nos periódicos, o cantor parece compreender os limites
sociais demarcados para artistas negros, indicando que o seu lugar na sociedade está condicionado a
hierarquias raciais, portanto, passível de preconceito e discriminação. Entretanto, aparentemente, o
músico não aciona a sua identidade negra constantemente. Parece mobilizar outras identidades em
busca de aceitação social, como cantor de serestas e de música folclórica: “Fui o primeiro a cantar
no rádio coisas regionais, ao violão”.11
Desta forma, Patricio marcava sua presença na radiofonia, cantando percepções da realidade cultural
e social. Sua presença nesse setor cultural, ocupado fundamentalmente por músicos brancos nos
primeiros tempos, apontava para seu protagonismo, construindo novas possibilidades de exercer a
cidadania, alcançando sucesso e prestígio social por meio do seu talento musical e ascendendo
socialmente.12
Sob à luz da musicalidade de Patricio Teixeira, e de outros artistas negros, que vivenciaram
conflitos sociais e raciais das primeiras décadas republicanas, concordamos com a ideia de que há
possibilidades de encontros entre política e cultura, haja vista as novas perspectivas em torno da
História Política e da História Cultural, permitindo reflexões sobre sentidos políticos nos
comportamentos populares e no caso específico, nas suas expressões musicais. De acordo com estas
novas abordagens, as ações políticas dos sujeitos e as suas percepções sobre a sociedade em que

11 Gazeta de Notícias, 20/02/1935, p.12.


12 Se alargarmos os sentidos do conceito de cidadania, outros caminhos de análise são possíveis para
comprovar o seu exercício por meio da arte. Cf: MARZANO, Andréa; ABREU, Martha. “Entre palcos e músicas:
caminhos de cidadania no início da República.” In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das.
(orgs.). Repensando o Brasil dos Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009,
pp.121-150.

508
vivem demonstram expressões de cidadania 13 e conferiam um protagonismo em suas trajetórias
artísticas.

Considerações finais

O mercado musical fonográfico prosperou ao som de gêneros populares, sendo preponderante


a ação dos músicos nesse processo. Assim, essa premissa colabora para afastar o discurso pautado
na passividade, pois vários músicos buscavam caminhos possíveis dentro da realidade social
excludente e hierarquizada, aproveitando as oportunidades abertas.
O alcance e a circulação social da música foram ampliados com a instalação do sistema de
radiofonia no Rio de Janeiro ao longo da década de 1920, favorecido pelo fato da fonografia ter
aberto um campo de atuação artístico-cultural. Desta forma, contribuiu de forma fundamental para
o sucesso do rádio a partir dos anos 1930, que teve os gêneros musicais populares como carro-chefe.
Estes dois campos de atuação colaboraram para a expansão do interesse social pelas músicas
populares, fazendo com que as músicas e os músicos se tornassem mais conhecidos. Além de
favorecerem a construção e a consolidação da carreira profissional de músico: instrumentistas,
orquestradores, compositores e principalmente cantores.
Os músicos negros vivenciaram as transformações e as novidades no mundo dos
entretenimentos culturais como oportunidades de se inserir profissionalmente, mesmo com todas as
dificuldades subjacentes a uma sociedade desigual e racista. Assim, a profissionalização foi crucial
para demarcar o lugar das identidades culturais negras no campo cultural e artístico brasileiro,
divulgando suas habilidades artísticas, cantando o seu cotidiano, suas identidades e seus vínculos de
pertencimento.
A experiência do cantor Patrício Teixeira na fonografia e no rádio conferiu visibilidade às
identidades culturais negras. Além disso, seu papel foi fundamental no processo de
profissionalização da carreira de músico, sendo um importante protagonista em torno dessas
questões. Patrício se inseriu no mundo dos entretenimentos culturais, demarcando sua presença como
um cantor negro que conviveu e lidou com uma sociedade que prestigiava a sua voz e o seu talento,
mas discriminava a população negra.

13 ABREU, Martha. “Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para a
pesquisa e o ensino de História”. In: SOIHET, R.; Bicalho, M.F. e GOUVÊA, M.F. (orgs.). Culturas políticas. Ensaios
de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, 2005, pp. 409-423.

509
Se por um lado, ocorria um processo de valorização social da sua música, por outro, os
mecanismos sociais de discriminação racial direcionados à população negra eram evidenciados nas
relações tecidas no campo artístico-profissional, mesmo diante do seu sucesso artístico. Assim, a
experiência deste artista é muito rica para pensar conflitos, tensões e ambiguidades nas relações
tecidas com as identidades culturais negras e com os músicos negros.

Referências bibliográficas:

ABREU, Martha. “Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para
a pesquisa e o ensino de História”. In: Soihet, R.; Bicalho, M.F. e Gouvêa, M.F. (orgs.). Culturas
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511
Da concretude à abstração:
uma experiência de potencialização do aprendizado do conceito de tempo

Caroline Trapp de Queiroz1

Resumo: Esse artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre a construção do conceito de
tempo a partir dos resultados de uma pesquisa de mestrado que se propôs a conhecer que sentidos as
crianças lhe atribuem. Destaca-se especificamente como a operacionalização de uma variedade de
marcadores temporais distintos (relógios, calendários, linhas do tempo, etc.), no interior do campo
de pesquisa, potencializou o entendimento das concepções de tempo como criações plurais e
multifacetadas, pactuadas de acordo com as singulares demandas das coletividades humanas. Dessa
forma, aponta-se para a importância do contato com a multiplicidade de narrativas que disputam os
sentidos na construção do conhecimento para o aprendizado dos conceitos, tanto em seus
significados, quanto na apreensão da historicidade que lhe é própria.

Palavras-chave: Conceitos; Tempo; Infância.

Abstract: This article aims to present a reflection on the construction about concept of time by the
results of a master's research that proposed to know what meanings children attribute to it. It stands
out specifically how the operationalization of a variety of distinct time markers (such as clocks,
calendars, timelines, etc.) within the research field has potentiated the understanding of time
conceptions as plural and multifaceted creations built according the unique demands of different
human collectivities. Thus, it is pointed out to the importance of the contact with the multiplicity of
narratives that dispute the senses in the construction of the knowledge for learning of concepts in
their meaning as well as the apprehension of his own historicity.

Keywords: Concepts; Time; Childhood.

Chegando na pesquisa...

Esse artigo surge da reflexão quanto aos processos de uma pesquisa que desenvolvi a nível
de mestrado (QUEIROZ, 2016). Nela, a proposta foi colocar em discussão com crianças o conceito
de tempo. O objetivo era justamente lançar o tema e ver quais caminhos seriam abertos a partir das
narrativas trazidas pelas crianças, muito movida pela observação de que, enquanto sociedade, nos
sentimos mais à vontade para ensinar a elas o que o tempo é – ou deve ser – do que para pensar junto
delas o que ele pode ser – ou já o é, de fato, em suas significações de mundo. Essa foi uma constatação
corroborada na montagem do “estado da arte” dos estudos que investigam as relações entre infância
e tempo.

1 Doutoranda – ProPEd/UERJ. E-mail: trapp.queiroz@gmail.com

512
Na tentativa de mapear que estudos existiam acerca da temática, fiz uma busca em algumas
plataformas de pesquisa (como Google Acadêmico, Portal Scielo e Portal de Periódicos CAPES) a
partir das palavras-chave “criança”, “tempo”, “infância” e “temporalidade”. Nessa busca, textos de
diversas áreas foram consultados. Especificamente na área da Educação, observei que a maior parte
dos textos se voltava a análises psicológicas ou sociais, levando em consideração tanto o caráter
individual da compreensão temporal, quanto o caráter relacional que possibilita à criança se inserir
na lógica organizacional de determinada cultura.
Em alguns desses estudos, falou-se com os professores sobre as concepções de tempo que
eles percebiam que as crianças tinham. A partir dessas falas, considerou-se o que era tempo para
essas crianças e como elas o apreendiam. Essas pesquisas permitem problematizar a dúvida que paira
quanto à capacidade de estabelecer, com as crianças, um diálogo sincero sobre o tempo – quase
sempre por acreditarmos, de modo geral, que o tema é de uma complexidade impossibilitante a elas.
Que esse paradoxo diz das concepções de infância que temos, mesmo sem saber – ou reconhecer? E
das concepções de pesquisa e ciência? Será que ensinar é mais fácil que indagar? E ensinar a indagar,
é possível?
De todo modo, houve também, dentre esses estudos, quem partiu especificamente em busca
da fala da criança em relação ao tempo. No entanto, o objetivo era claro: o de formular metodologias
de ensino que facilitassem o aprendizado da concepção culturalmente partilhada de tempo. Assim, a
fim de tornar mais “fluente” a compreensão cultural de tempo que partilhamos em nossa sociedade,
verificava-se onde estavam as linhas de raciocínio que conduziam as crianças a medições, expressões
e contagens julgadas incorretas para, então, desviar de tais erros e ensinar o tempo de maneira
“correta”. Isso foi observado tanto na área da Educação, quanto na do Ensino de História.
Minha ideia foi, portanto, empreender uma pesquisa que se aproximasse do conceito de
tempo a partir das falas das próprias crianças, no intuito de conhecer e colocar em discussão suas
significações. Os encontros, quatro no total, foram realizados entre agosto de 2014 e novembro de
2015 nas áreas comuns de um condomínio localizado na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro,
onde essas crianças moravam no período em que a pesquisa se desenrolou. Dela participaram quinze
crianças entre 7 e 14 anos de idade.
Como metodologia, fez-se a opção pelo diálogo, compreendido a partir da teoria do filósofo
russo Bakhtin (2011), que sustenta a ideia de linguagem como um ato, em que os sujeitos envolvidos
afetam-se mutuamente. Na pesquisa, o diálogo foi provocado a partir do uso de recursos materiais,
como imagens e objetos, e imateriais, como a elaboração de perguntas, de situações hipotéticas e o
uso da imaginação para suscitar deslocamentos no espaço e no tempo. Vale destacar que a proposta
para as conversas não foi fornecer uma resposta capaz de dar conta das muitas questões que

513
envolvem a reflexão sobre o tempo, mas sim compartilhar com as crianças as perguntas possíveis de
se fazer no interior desse diálogo.

A pesquisa chegando até mim...

A proposta inicial era chegar no campo de pesquisa, logo no primeiro encontro, jogando a
pergunta “o que é tempo para você?” direto e reto. Nessa ocasião, falei com oito crianças
individualmente. Como presumido, imaginava que as respostas dadas girariam em torno de
perspectivas imaginativas e até poéticas. No entanto, das oito crianças, sete responderam que tempo
era relógio – ou algo que lhe equivalia, como números, horas, etc.:
Bruno (9): Segundo, minuto, hora e milésimo.
*
João Vitor (12): Tempo é... clima, estação do ano, assim...
[Ao ser questionado sobre como ele perguntaria sobre o tempo, caso fizesse uma
pesquisa como a minha, ele traz a lógica do relógio para a conversa, afirmando que
minha forma de perguntar se referia ao relógio e não à estação do ano.]
*
Cadu (10): Hora.
*
Bernardo (9): Tempo pra mim são horas.
*
Guilherme (8): Tempo... relógio.
*
Caduzinho (8): Pra mim tempo é assim... quando é três horas e aí vai, passa uma
hora e aí vai pra duas horas. Pra mim... e também minutos, também pode ir pra
minuto 25 que aí espera um pouquinho e aí vai pro 26.
*
Marcos Vinicius (9): Tempo é a hora do relógio que diz a hora pra gente.

Essas falas me tiraram o chão, pois embora entendesse que a infância se situa no mundo social
e cultural, e que crianças e adultos partilham códigos comuns, quando inseridas numa mesma cultura,
não imaginei que o tempo cronológico fosse já tão marcante em sua concepção, se não empírica, ao
menos naquilo que as crianças reconheciam do tempo como definição, como teoria e filosofia.
Foi a partir desse encontro que a pesquisa teve início como questão que me convocou a olhar
para a necessidade da pactuação da ideia de tempo, no que se refere à vida em sociedade e à sua
operacionalização no cotidiano. Esse foi um achado possível somente devido ao percurso de
pesquisa, um achado que constitui e perpassa todas as decisões tomadas posteriormente, o que o
torna um dos maiores redirecionadores da minha percepção quanto à pesquisa como um todo, desde
à redefinição metodológica até a busca por novos parâmetros teóricos.

514
Refletindo sobre o processo de pactuação dos instrumentos de medida do tempo, é
interessante destacar que os instrumentos simbólicos que Elias (1998, p. 156) chama de artificiais,
tais como o calendário e o relógio, apesar de terem sido criados pela humanidade a partir da
observação à natureza, estão tão arraigados em nossa mentalidade que acabamos por “abandonar os
referenciais dos quais se originaram devido à noção de que esses símbolos nos bastam”. Dessa forma,
o relógio, algo criado para medir o tempo, acaba definindo o que ele é em essência. É nessa medida
que acabamos por nos distanciar da história “das sucessões de etapas através das quais [nossos]
ancestrais encontraram a solução”, o que indica um afastamento da compreensão sobre nós mesmos,
pois nosso patrimônio de conhecimentos se torna desconhecido.
Embora essa espécie de naturalização seja recorrente e importante, Elias (1998, p. 15) destaca
a necessidade de que se compreenda a relação existente entre “o processo físico que está na base de
qualquer instrumento de medição de tempo – por exemplo, um mecanismo de relojoaria – e sua
função social de indicador de hora”. Isso significa compreender que o relógio envolve uma rede de
relações que reúne sequências de caráter individual, social e também física. Assim, pode-se lê-lo
como um instrumento que mede algo que existe em si, o tempo, mas que só tem significado no
interior de uma comunidade que lhe confere sentido, a sociedade.
É justamente no seio da sociedade que símbolos, noções e conceitos são solidificados, o que
pressupõe um longo processo de aprendizado. Esse processo tem por mote a interiorização de ideias
que passamos a vivenciar como sendo parte da nossa identidade, “do nosso próprio eu” (ELIAS,
1998, p. 14). É quando esse processo de naturalização da ideia de tempo começa a encerrar a
concepção temporal em si mesma – por não explicitar que haja outras ideias circulando pelo mundo
– que Elias (1998, p. 112) alerta sobre a possibilidade de estranhamento e mesmo desqualificação de
outras lógicas temporais, inscritas em outras culturas, pois acaba-se supondo que a noção de tempo
é a mesma para todos. Daí a necessidade de colocar essas concepções em discussão, promovendo a
percepção sobre a pluralidade de visões possíveis.
Levando em consideração que o tempo é uma ideia culturalmente construída e que a
experiência de ser sociedade e partilhar códigos sociais é relativa e muito variada, a principal questão
que passou a se colocar para mim quanto ao diálogo que tecemos com as crianças sobre o tempo
reside nesse silenciamento, tantas vezes inconsciente, para a pluralidade, silenciamento que
possibilita a construção de uma ideia uníssona de tempo que acaba cegando para o outro. Em meio
a tanta diversidade, começava a fazer sentido pensar que o conceito de tempo precisava ser dialogado
em suas múltiplas facetas, apropriações e construções – o que não significava abdicar do aprendizado
da forma como, enquanto sociedade, nos organizamos.

515
Ao traçar essa crítica quanto à concepção de tempo como processo de aprendizagem – que é
da ordem da vida –, um grande desafio se colocou no horizonte de minhas expectativas: como
construir com as crianças formas de problematização que permitissem pensar o tempo para além de
uma ideia única e marcadamente cronológica? Como provoca-las a pensar que o tempo não era
apenas relógio? Que sentidos elas dariam ao tempo a partir desse processo de construção e
desconstrução?

Notas sobre a experiência vivida no campo de pesquisa e a operacionalização dos conceitos

A partir do mergulho no campo, das inquietudes provocadas pelas respostas das crianças, e
diante da necessidade de colocar o conceito em discussão, fomentando reflexões e construindo, com
elas, formas de problematização que possibilitassem pensa-lo como pluralidade e em múltiplos
sentidos, comecei a buscar estratégias que possibilitassem trazer outros teores à reflexão acerca do
tempo.
Como a metodologia do campo de pesquisa é sempre uma escolha, optei por materializar a
questão do tempo justamente selecionando uma variedade do objeto que teve mais significado para
as crianças quanto ao que o tempo supostamente seria: o relógio. Assim, a ideia foi partir da
concretude de diferentes relógios, buscando expandir a compreensão em relação às diversas
concepções de tempo possíveis.
Levei nove relógios para o encontro. Minha intenção era que, a partir deles, as crianças
pudessem ser instigadas no caminho da problematização da própria ideia de tempo, entendendo que
outras formas de pensamento eram possíveis – e que não havia “certo” ou “errado”. A ideia era
também que os diferentes relógios pudessem reatar o laço que nos uniu nos encontros até ali, o do
diálogo, expressando que eu estava nele por inteiro.

516
Figura 1 – Relógios expostos sobre a mesa

Da esquerda para a direita: relógio de água (clepsidra) feito com garrafa pet, relógio de pêndulo, relógio de pulso,
relógio de sol, relógio de parede, relógio de areia (ampulheta), relógio digital de mesa, relógio de bolso, relógio
analógico de mesa.

Dispus os relógios numa mesa, organizando uma espécie de exposição, na qual havia relógios
de sol, de água (clepsidra), de areia (ampulheta),2 de pêndulo, de bolso, de mesa, de pulso, analógico
e, finalmente, digital. Conforme explicitado, o objetivo foi provocar a reflexão sobre a pluralidade
do objeto relógio, puxando, daí em diante, a conversa sobre a pluralidade da ideia de tempo. Nesse
diálogo, busquei destacar o fato de que cada sociedade criava formas de medir o tempo que melhor
respondessem às suas demandas, ao longo da história da humanidade. Esse esforço de historicização
do conceito de tempo encontra a provocação que nos faz Prost (2012, p. 128) quanto à necessária
recusa a trata-los “como coisas”.
Essa recusa pressupõe transcender a simples definição dos diversos significados de tempo,
caminhando em direção à compreensão de que essa é uma concepção – como tantas outras – que se
constrói, de acordo com Bezerra (2009, p. 45), “pelas necessidades concretas das sociedades,
historicamente situadas, [dando sentido a] um conjunto complexo de vivências humanas”. Nesse
sentido, é importante lembrar que os conceitos não bastam para a vida, ou seja, os processos
históricos e a realidade social sempre transcendem, não sendo por eles conformados. No entanto,
como destaca Prost (2012, p. 126), “o resultado [desse esforço] não é desprezível: a conceitualização
consegue ordenar, de alguma forma, a realidade, apesar de ser uma ordem imperfeita, incompleta,
desigual”.
Foi justamente pensando na ordenação dos sentidos que foram aparecendo no campo que
parti para o movimento da imaginação, valendo-me dos recursos imateriais que permitiram realizar
deslocamentos no tempo e no espaço. Assim, nesse encontro, levei duas situações que tinham por

2 Segundo Chiquetto (1996, p. 05), por ser muito abrasiva, provocando o alargamento e consequente
desregulagem da ampulheta, a areia foi substituída por pó de casca de ovo, que melhor se adequou ao dispositivo.

517
objetivo suscitar outras reflexões: a primeira relacionada à observação dos relógios que havia levado.
Todos eles encontravam-se parados, sem pilha, o que propositadamente fiz para lançar a questão: “e
se o relógio parasse? O que aconteceria?”; a segunda situação dizia respeito ao fato de que, em
Mercúrio, um dia equivale a 58 dias e meio – para nós aqui da Terra –, e de que lá não havia relógio.
A partir dessa provocação, perguntei: “como a gente contaria o tempo sem o relógio?”.

Alguns achados

A partir dessas provocações, algumas questões começaram a se tornar evidentes no campo


de pesquisa, quanto às concepções que as crianças estavam construindo sobre o tempo. Destaco aqui
especificamente reflexões que ajudam a perceber como a concretude do relógio permitiu às crianças
construir um conceito de tempo abstrato que transcendeu o objeto. Essas reflexões foram
descortinando para mim, posteriormente, no momento de leitura do material do campo de pesquisa,
a compreensão de que as crianças estavam se aproximando das discussões que historicamente os
filósofos delinearam em suas considerações sobre o conceito de tempo. Esse se tratou, para mim, de
um salto qualitativo de entendimento em relação à pesquisa como um todo, entendimento que só foi
possível em sua integralidade no momento posterior ao campo e mesmo à conclusão da pesquisa.
Para apresenta-lo ao leitor, opto por trazer uma dessas perspectivas filosóficas, realizando um
breve desvio a fim de contextualiza-la nesse artigo. Aristóteles, filósofo grego do século IV a.C., em
suas reflexões, topa com o paradoxo de um tempo que não é o movimento per se, mas do qual o
movimento é uma das condições (DOSSE, 2012, p. 148). Embora o movimento não coincida com o
tempo, é necessário destacar que, para o filósofo, há certa dependência recíproca entre eles. Essa
dependência é expressa por ele a partir da ideia de que “não apenas medimos o movimento pelo
tempo, mas também o tempo pelo movimento, porque eles se definem um ao outro. O tempo marca
o movimento, visto que é seu número, e o movimento marca o tempo” (ARISTÓTELES apud
WHITROW, 1993, p. 57).
Nesse sentido, o que alicerça a visão aristotélica de tempo é a percepção, ou seja, aquilo que
se apreende e se organiza sobre o tempo a partir de nosso olhar. Sendo dependente do movimento,
do deslocamento e da mudança, que atestam sua existência, o tempo, como Aristóteles o formula,
depende também de uma alma, uma consciência que, ao perceber a mudança, lhe numere e lhe meça.
Para Reis (1994), a questão da alma tem lugar central para se compreender as construções filosóficas
quanto ao tempo. De acordo com o autor, dependendo do lugar ocupado pela alma na relação com o

518
tempo, têm-se uma interpretação objetivista ou uma interpretação subjetivista, perspectivas cuja
distinção, a partir da modernidade, toma as discussões sobre o tempo, segundo o filósofo Fernando
Rey Puente (2010).
Em Aristóteles, se o movimento não depende necessariamente da alma, existindo fora dela,
o tempo, por sua vez, como percepção, ou seja, como o que é numerável, só pode existir a partir dela.
É nesse sentido que, conforme Schöpke (2009), o filósofo compreende que o tempo não passa e nem
é um ser em si, pois pertence à estrutura do mundo e à natureza das coisas. Assim, embora a
determinação do tempo dependa dessa alma, sua existência é atributo do movimento, que está na
natureza, que age sobre todas as coisas e que permanece numerável, mesmo que não haja quem o
numere. “O movimento não necessita da alma para existir, e basta para fazer o tempo existir”
(ARISTÓTELES apud COMTE-SPONVILLE, 2000, p. 29).
A concepção de um tempo que existe independente do homem, mas que dele depende para
ser mensurado, para tornar-se perspectiva, apareceu nos diálogos com as crianças, no interior da
pesquisa,
Caroline (pesquisadora): Agora assim, se vocês perceberem, nenhum dos relógios
[expostos sobre a mesa] tá com a hora certa, desses daqui. Nenhum...
[As crianças olham atentamente cada relógio]
Caroline: Tá vendo? Tipo, aqui tá 6 e meia, aqui tá 2 e pouca…
Ryan (10): 3 e 26 aquele.
Caroline: Pois é, nenhum deles tá com a hora certa. Esse aqui tá 3 e pouca…
Bernardo (10): E são que horas?
Vitor Hugo (12): 4 e 19.
Caroline: Então, a minha pergunta é a seguinte, e se o relógio parasse?
Bernardo (10): A gente… a gente....
Caroline: Como é que a gente ia marcar o tempo?
Marcos (9): Pela água…. aquele negócio de água.
Bernardo (10): Com relógio solar.
Cadu (11): Pelo relógio de água, da garrafa.
Caroline: Pelo relógio de água, da garrafa?
Cadu (11): É!
Bernardo (10): Pelo sol.
Caroline: Pelo sol…
Bernardo (10): Pelo sol, pra saber a hora, pela pedra depois…
Vitor Hugo (12): Pela pedra?

No trecho destacado, bem como no decorrer do diálogo, as crianças deixam claro que, ainda
que o relógio pare, ou seja, ainda que a alma não esteja numerando o tempo por meio desse
instrumento, ele continua existindo e permanece numerável, isto é, em movimento, passível de ser
contado. Essa percepção comunga com a de Aristóteles, para quem o movimento segue
continuamente, independente da ação da alma, marcando o próprio devir (SCHÖPKE, 2009).
Outra questão importante, presente nas respostas das crianças, é a menção à observação da
natureza (especificamente em relação aos movimentos dos corpos celestes, como a lua, o sol, as

519
estrelas) como caminho indicado para a contagem do tempo, no caso de o relógio parar ou mesmo
num contexto em que ele inexiste, como na provocação sobre marcar o tempo em Mercúrio.
Essa diferenciação que as crianças fazem entre o tempo, como aquilo que existe per se, e o
relógio, como o que conseguimos organizar desse tempo por meio de mecanismos de medida, é
importante especialmente por conta da relação imediata que a maior parte das crianças fez entre os
dois, afirmando, inclusive, que um constituía o outro – no encontro em que pergunto diretamente “o
que é tempo para você?”. Ao serem provocadas a pensar a inexistência do instrumento de medida,
elas ponderam que, na realidade, um não é o outro, ainda que a relação que mantenham seja de
entrelaçamento,
Caroline (pesquisadora): E aí? Imagina assim, tipo, pô, a gente tá perdido, a gente
tá num mundo, sei lá, de sombras…
Vitor Hugo (12): Uma bussola?
Caroline: Não existe sol, não existe relógio… e agora? Você tá num mundo de
sombras…
[...]
Cadu (11): Cria um relógio.
Ryan (10): Cria um relógio digital.
Bernardo (10): Cria um relógio! Ué, vai aprimorando as técnicas.
Cadu (11): É só ter inteligência.
Vitor Hugo (12): Aí você vai aprimorando seu relógio.
Caroline: É, só ter inteligência! Pra marcar o tempo.
[...]
Bernardo (10): A minha ideia é, fazer um relógio, fazer um relógio provisório… tu
só vai precisar…
Caroline: Como?
Bernardo (10): Com 12 pontos assim, aí cada um, AM, PM, daí vai ter uma setinha
assim…
Caroline: E o que que vai fazer a seta andar?
Vitor Hugo (12): Eu sei! Eu sei!
Marcos (9): Com o vento… o vento…
Bernardo (10): Aí ele sopra.
Caroline: Ah, o vento ia soprar a ponteira pra ela rodar?
Bernardo (10): Uma seta, de um material muito leve, um exemplo, folha.
Cadu (11): Mas daí a gente nunca ia saber se a hora tava certa.
Caroline: E como é que a gente sabe que a hora que tá no relógio tá certa?
[...]
Bernardo (10): Mas na situação que você falou, a gente ia criar nosso próprio
horário. Então… então… então, a hora sempre ia estar certa. A gente ia criar nosso
horário.

Esses diálogos permitem pensar que, para essas crianças, o tempo ganhou outros sentidos que
não apenas circunscritos à dimensão que se apreende com o relógio. Assim, embora elas tenham
afirmado que tempo era relógio, quase que unanimemente, o fato de tecerem, na narrativa e a partir
da provocação posta, a possibilidade de criar um relógio e um horário próprio, sugere que, para elas,
esse é um tempo que continua existindo, independente de haver qualquer instrumento mensurando e
organizando seu ritmo.

520
Essa reflexão, que gira em torno da criação de um horário, também levanta a questão das
pactuações, suscitando que esse é um entendimento já percebido, por essas crianças, como
convenção social. Essa percepção do horário como uma criação é importante porque é responsável
pela abertura da possibilidade de pensar a pluralidade das percepções de tempo a partir da pluralidade
dos modos de medi-lo. Nesse sentido, a compreensão de que outras sociedades têm modos de
organizar e entender o tempo que se distinguem dos nossos, mas que respeitam suas necessidades e
percepções de mundo, surgiu no campo de pesquisa como uma construção coletiva de conhecimento
sobre os modos como esse outro – que é diferente de mim – deve ser legitimado.

O que isso pode nos dizer sobre o aprendizado dos conceitos?

Esse artigo buscou apresentar uma reflexão sobre a construção do conceito de tempo por
crianças que participaram de uma pesquisa de mestrado. A partir de algumas das estratégias
utilizadas no campo, tentei dar ênfase à importância do contato com a multiplicidade de narrativas
que disputam os sentidos na construção do conhecimento para o aprendizado dos conceitos, tanto
em seus significados, quanto na apreensão da historicidade que lhe é própria.
Para isso, a operacionalização de uma variedade de marcadores temporais distintos se revelou
potencializadora do entendimento das concepções de tempo como criações plurais e multifacetadas,
pactuadas de acordo com as singulares demandas das coletividades humanas. Uma chave que
permitiu chegar a esse entendimento foi a necessária coesão entre forma e conteúdo, ou seja, entre o
que eu quis suscitar e os modos como empreendi esforços para isso. No caso do campo de pesquisa,
a resposta foi partir dos diferentes relógios em direção às diferentes concepções de tempo.
Entendo que as discussões nascidas foram possibilitadas justamente pelo esforço de tornar
concreto um conceito de pura abstração – movimento necessário no diálogo com crianças. Nesse
sentido, reitero a importância de recursos como relógios, calendários e linhas do tempo como forma
de dar materialidade e tornar visíveis percepções fundamentais na construção da compreensão de
uma lógica temporal, tais quais, sucessão, ruptura, continuidade, etc. O trabalho implicado com esse
tipo de concretude, que busca a abstração como transcendência de reflexões nascidas da
materialidade, pode encontrar eco nos objetivos de ensino e aprendizagem da História, para a qual
“o tempo é princípio e é fim” (BOSCHI, 2007, p. 42).
Por meio desse movimento, foi possível traçar paralelos entre os diálogos tecidos nos
encontros com as crianças e a concepção aristotélica de tempo. Tal visão considera a existência do

521
tempo independente do ato humano no mundo, ou seja: ele existe em si mesmo. No entanto, há um
entrelaçamento entre esse “ser” do tempo e o modo como com ele nos relacionamos – a partir dos
parâmetros de medida, que criam percepções apreensíveis somente por meio da nossa perspectiva de
visada.
Dessa forma, concluo destacando a aproximação encontrada entre as reflexões das crianças
e as de Aristóteles, reiterando que ainda que filósofos e crianças falem do tempo de modos distintos
e, nesse caso, de contextos históricos e geográficos singulares, essa proximidade narrativa dos modos
de construir uma reflexão sobre o tempo corrobora a ideia de que as crianças estão atentas ao que as
cerca, pensando essas questões todas, ainda que suas elaborações partam de um lugar social
específico, se diferenciando daquelas engendradas por teóricos com anos de estudos. De todo modo,
apesar do que as separa, a percepção envolvida nessas criações parece dialogar enquanto questão
que nos acompanha ao longo da história da humanidade.

Referências Bibliográficas:

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Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1993.

523
Pictorialismo e romantismo, fotografia e literatura

Autor: Catia Silva Herzog


Doutoranda em História Social/UERJ
herzogcatia@gmail.com
Apoio financeiro: CAPES

Resumo:
Nosso propósito neste trabalho é observar a pregnância de uma tradição pictorialista romântica na
fotografia brasileira, seu papel na construção da imagem da nação e sua sobrevivência, técnica e/ou
estética na produção fotográfica contemporânea. Tomamos a literatura de folhetim, especialmente
na sua vertente romântica, como um meio que promove um ambiente propício para o surgimento da
fotografia pictorialista. Neste contexto, a fotografia assimila a industrialização e a modernização da
sociedade, inicia o debate estético que envolve sua prática, atua na construção da imagem da
modernidade brasileira e garante a sobrevivência de preceitos estéticos herdados da pintura do
século XIX.
Palavras-chave: Pictorialismo, fotografia e literatura

Abstract:
Our purpose in this work is to observe the pregnancy of a pictorialistic romantic tradition in
brazilian’s photography, its role building the image of the nation and its survival , technical and
aesthetical, at the contemporary photography’s production. We took the feuilletonistic literature,
especially in its romantic streak, as a mean to promote an adequate environment for the
development of the pictorial (or impressionist) photography. In this sense, the photography
assimilates the industrialization and modernization of the society, starts the aesthetical debate that
its practice involves and contributes to build the nation’s image and guarantees the survival of
aesthetical principles, a heritage from the XIX century’s paintings.
Key-words: Pictorialism, photography and literature

524
“A literatura estragou tuas melhores horas de amor1”
CDA

O verso do poema Elegia 1938, de Carlos Drummond, nos oferece uma ideia inicial
sobre o sentido desta pesquisa: como a literatura, com suas imagens do amor romântico e sua
capacidade de nos fazer pensar de forma aprofundada e distinta do pensamento científico-
argumentativo, pode estragar os melhores momentos da vida - em que o “sentido” (sensação,
sentimento) é mais importante que o próprio pensamento onde se encontra enraizado. A
literatura colabora diretamente na construção de uma imagem visual do mundo que pode, por
sua vez, alcançar a esfera política, como foi o caso do romantismo e da construção da ideia de
nação brasileira.
A partir do romance de folhetim, tentaremos observar a pregnância de uma tradição
pictorialista romântica na fotografia brasileira, seu papel na construção da imagem da nação e
sua sobrevivência, técnica e/ou estética na produção fotográfica contemporânea. Em outros
termos, trata-se de pensar a literatura de folhetim, especialmente na sua vertente romântica,
como um meio que promove um ambiente propício para o surgimento da fotografia
pictorialista.
O movimento pictorialista anedótico 2, de orientação academicista 3, ocorreu em fins do
século XIX, em grande parte da Europa, paralelamente ao barateamento da produção
fotográfica e ao auge de sua industrialização. Neste período, a fotografia pictorialista se
utilizou de inúmeras experiências técnicas, dentre as quais se destacavam o bromóleo 4 , as
viragens5, a goma bicromatada6, a sobreposição de negativos e o flou7 para fazer frente à sua
crescente industrialização. Estas técnicas geravam imagens com leves colorações ou com
altíssimo contraste em preto e branco, causando a impressão de pinturas ou desenhos
aparentemente liberados do realismo naturalista da fotografia, tal como era exercida por

1
ANDRADE, Carlos Drummond de. “A literatura estragou tuas melhores horas de amor” é um verso do poema
“Elegia 1938”.
2
No artigo “Principiantes”, de Nogueira Borges, o fotógrafo se aproxima da classificação de Jean-Claude Lemagny da
fotografia em anedótica, documentária e artística. Ver Revista Photogramma, Núm. 04, 1926, pp.10-14.
3
Sônia Gomes Pereira acredita que, na história da arte, tradicionalmente o academicismo se refere à produção artística
do século XIX. A historiadora da arte ressalta, porém, que no caso brasileiro, o sistema acadêmico não adota apenas o
neoclassicismo como modelo, mas também o romantismo, o realismo, o impressionismo e o simbolismo. In: PEREIRA,
Sônia Gomes. “Arte brasileira no século XIX”. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. p.17.
4
Processo de pigmentação de fotografias.
5
Alteração cromática da imagem em preto e branco; a mais comum é a viragem para a tonalidade sépia que confere às
fotos uma aparência de antiguidade.
6
Processo de pigmentação de fotografias a partir do uso de goma arábica.
7
Efeito de difusão da fotografia, que provoca uma ligeira perda de nitidez. Maria Teresa Bandeira de Mello propôs um
glossário destas técnicas fotográficas em: MELLO, Maria Teresa Bandeira de. Arte e fotografia: o movimento
pictorialista no Brasil. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1988, p. 200.

525
aqueles que se ocupavam do registro de eventos políticos, sociais e científicos – os “batedores
de chapa”. Os fotógrafos pictorialistas, livres de imposições econômicas 8 , eram, em geral,
oriundos de associações, grupos e clubes de amadores 9 de fotografia e, através destes
processos técnicos pré-industriais, procuravam dotar a fotografia de um caráter artesanal ou
artístico, revestindo sua prática de valores provenientes da pintura e, muitas vezes,
transformando a cópia fotográfica em obra única.
A questão da fotografia como arte, que subjaz ao programa pictorialista, se manifestou
de forma explícita na produção fotoclubista. Esta pode ser pesquisada, em grande parte,
através da revista Photogramma – publicação oficial do Photo Club Brasileiro, editada no Rio
de Janeiro entre 1926 e 1931. Como publicação oficial do Photo Club Brasileiro, “ao longo de
sua existência, a Revista Photogramma deixa entrever tensões, contradições e rupturas no
interior do movimento pictorialista” 10 no Brasil. É digno de nota, por exemplo, que apesar do
seu desprezo pelos “batedores de chapa”, os fotógrafos pictorialistas não deixaram de utilizar
a imprensa, sob a forma da revista Photogramma,como principal veículo de divulgação das
suas ideias e debates.
Em seu prefácio ao livro A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-
culturais para a história do Renascimento europeu11, Gertrud Bing afirma que Aby Warburg
procurava “investigar a complementação recíproca de documentos pictóricos e literários, entre
artista e comitente, o entrelaçamento entre obra de arte e ambiente social e sua finalidade
prática como objeto individual” 12. Na descrição dos propósitos de Warburg, Bing continua:
“Ele já não inclui mais em sua análise somente os produtos da grande arte, mas também
documentos pictóricos mais remotos e esteticamente irrelevantes” 13.
Esta irrelevância estética tão relevante aos estudos de Warburg também se manifesta em
nossa relação com o pictorialismo romântico: em geral, na leitura e absorção do movimento,
feita por críticos, historiadores da arte e artistas, estes ressaltam apenas a pobreza estética e o
elitismo dos fotógrafos pictorialistas sem, contudo, observar a riqueza de informações
presente no trabalho e meios de produção destes últimos.

8
Classificados por autores como Helouise Costa e Michel Poivert como membros da elite, aqui nos referimos àqueles
que podiam prescindir da fotografia como modo de subsistência. COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A
Fotografia Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995.
9
Vale ressaltar que a categoria de amador da fotografia se refere aqui ao praticante especializado e amante da
fotografia.
10
MELLO, Op. Cit., p. 75.
11
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do
Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
12
BING, Gertrude. In: WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a
história do Renascimento europeu. Op. Cit., p. xli.
13
Idem.

526
Desta forma, procuraremos percorrer o pictorialismo brasileiro através de uma fonte – a
revista Photogramma - que reúne imagens, estudos e modelos técnicos, resultados de
concursos fotográficos, anúncios comerciais, críticas e crônicas, indicadores de fornecedores
de material fotográfico e debates estéticos.
Ainda que o período de publicação da revista Photogramma seja de 1926 a 1931, ela dá
visibilidade, tardiamente, a Belle Époque brasileira, vivida no Rio de Janeiro da virada do
século com a reforma urbana de Pereira Passos. Segundo Michel Poivert, o “estilo
pictorialista parece contribuir para o mito da Belle Époque”14.
O movimento pictorialista, tal como apresentado na revista, revela não apenas
características que marcaram o pictorialismo na França e outros países. Michel Poivert 15
descreve do seguinte modo movimento na França:
“sintoma da passagem do modelo de uma sociedade de sábios para uma sociedade
de ‘clubes’, as associações fotográficas participaram de um largo movimento em
favos de uma prática amadora das artes. As hostes de fotógrafos formaram, junto
com outras mil atividades, entre as quais o esporte é ainda hoje a mais visível, uma
sociedade cujo denominador comum é a militância cultural que se reforçou com a
expansão do tempo de lazer. Na França, no início do século XX, era possível
encontrar nada menos que 78 sociedades fotográficas nas províncias, que eram
lugares de ensino mútuo, onde a prática da excursão completava de forma lúdica os
exercícios de laboratório.”

A orientação e as atividades promovidas pelo Photo Club Brasileiro e documentadas em


sua publicação denotam a afinidade com o que era feito na França anos antes. Assim, o
pictorialismo brasileiro é tardio, e talvez anacrônico em relação ao movimento na Europa.
Acreditamos que este anacronismo deve ser explorado nos estudos sobre este movimento.
16
Em Arte Brasileira no Século XIX , Sônia Gomes Pereira observa como,
tradicionalmente, a história e a crítica de arte procuram dispor os fatos e os eventos em uma
ordem cronológica linear, sem contar a interpenetração ou convivência entre estilos e
movimentos artísticos. Por isto, a historiadora buscou evidenciar a longa duração de alguns
movimentos artísticos e sua convivência em diferentes momentos do século XIX, o que se
torna mais um argumento em favor da ideia da sobrevivência de fórmulas românticas na
produção artística contemporânea.
A consideração da convivência entre diferentes estilos artísticos nos permite lidar com o
anacronismo desta proposta de associação entre literatura, romantismo e fotografia: apenas
considerando o anacronismo é possível estabelecer esta relação.

14
POIVERT, Michel. A fotografia francesa em 1900: o fracasso do pictorialismo. Revista ArtCultura, Uberlândia, v.10,
n.16, jan. – jun, 2008. p. 10.
15
Idem, p. 11.
16
PEREIRA, Sônia Gomes. “Arte brasileira no século XIX”. Op. Cit.

527
Segundo Nicole Loraux17, em seu “Elogio do Anacronismo”,
o anacronismo é o pesadelo do historiador, o pecado capital contra o método, do
qual basta apenas o nome para constituir uma acusação, a acusação - em suma – de
não ser historiador, já que se maneja o tempo e os tempos de maneira errônea.
Assim, o historiador em geral evita cuidadosamente importar noções que sua época
de referência supostamente não conheceu, e evita mais ainda proceder a
comparações – por príncipio indevidas – entre duas conjunturas separadas por
séculos. Mas, com isso, o historiador corre inevitavelmente o risco de ser entravado
, impedido de audácia, ao contrário do antropólogo que, em condições análogas,
recorre sem perturbação de consciência à prática da analogia.

Leroux propõe um “uso controlado do anacronismo” que supõe assumir seu risco, “com
a condição de que seja com inteiro conhecimento de causa e escolhendo-lhe as
modalidades”18.
Pode-se observar também que o momento de industrialização da fotografia (e de abalo
da aura da obra de arte) corresponde em que o pictorialismo se consolida como movimento.
Para Walter Benjamin, o advento da fotografia promove um abalo naquilo que distinguia a
obra de arte dos objetos cotidianos, sua “aura”. Segundo Benjamin, a reprodutibilidade
técnica, que subverte conceitos tradicionais como “criatividade e gênio, validade eterna e
estilo, forma e conteúdo” 19 , determina uma mudança definitiva na percepção da arte: a
industrialização da fotografia possibilita a aproximação das massas da obra de arte, abalando
o valor de culto que tradicionalmente lhe conferia sua aura: “fazer as coisas ficarem próximas
é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o
caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade técnica”. 20
Ademais, da mesma forma que o movimento pictorialista do século XIX se constituiu
como uma reação ao desenvolvimento técnico e industrial da fotografia, a prática fotográfica
contemporânea também demonstra uma reação à disseminação massificada da fotografia
digital, que se manifesta no hibridismo das linguagens artísticas, na rejeição parcial ou
completa das novas tecnologias e na reação “romântico-pictórica” dos artistas fotógrafos, que
procuram recuperar a aura artística destruída pela alta tecnologia e se refugiam no terreno das
técnicas artesanais.

17
LOREAUX, Nicole. “Elogio do anacronismo”. In: Tempo e História. NOVAES, Adauto (org). São Paulo:
Companhia das Letras: Secretaria Municipal da Cultura, 1992. p. 57.
18
Idem, p.58.
19
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e Ténica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 166.
20
Idem, p. 170.

528
Sócio-fundador e um dos principais colaboradores da revista Photogramma, Guerra
Duval, no volume nove da revista de abril de 1927, no artigo “Simplificação ou Complicação”
se exprime da seguinte maneira, em relação ao desenvolvimento tecnológico 21:
Que saudades têm os velhos amadores, - como eu -, daquele tempo longínquo em
que só conheciam uma chapa e dois ou três papéis, de sorte que sabiam com
segurança tudo o que eles podiam dar.
Graças à multiplicidade dos novos meios a nossa disposição e aperfeiçoamentos do
material, nosso trabalho deveria apresentar qualidades de técnica mais perfeita;
mas realmente apresentam?

Na contramão do desenvolvimento tecnológico, o pictorialismo com suas encenações,


hibridismos e empréstimos feitos à pintura, anuncia a relativização do caráter de
verossimilhança da fotografia e da sua concepção documental. O pictorialismo anedótico 22 se
revela um movimento reativo aos avanços tecnológicos, isto é, à naturalização da técnica,
conquistada graças à facilidade de operação da câmera e à popularização da prática
fotográfica. Quando a técnica ameaça sair de seu controle, a fotografia cria estes grupos
refratários ao desenvolvimento tecnológico e nostálgicos de um passado supostamente
estável. O pictorialismo é, portanto, sintoma e reação à modernidade, mesmo quando esta
última se mostra incipiente e artificializada, como no caso brasileiro. O fotógrafo pictorialista
tradicional, do tipo anedótico ou romântico, valoriza, acima de tudo, a subjetividade do artista
entrevista na imagem fotográfica, em detrimento da suposta objetividade da imagem técnica.
A possibilidade de lidar com a fotografia da mesma forma que com a arte, se solidificou de tal
maneira que hoje a fotografia reproduz no mercado de arte preocupações em relação ao tema,
à assinatura e à tiragem da obra.
Os fotoclubistas utilizaram a revista Photogramma para divulgar suas atividades e
preceitos. Dentre suas atividades, destacamos as excursões fotográficas realizadas pelo grupo
a diferentes lugares e eventos, como a ida à represa dos ciganos ou à Ilha de Paquetá. Estes
passeios e encontros resultavam em concursos fotográficos que dão testemunho da aparência
dos diferentes lugares que retrataram e como eles viram estes lugares.
Através de sua revista, os pictorialistas consolidaram um grupo definido do Photo Club,
que realizava atividades e encontros de forma sistemática e que produziu uma imagem da
cidade e dos seus costumes à época. Este grupo encontrou na imprensa uma forma de divulgar
e estabelecer seus padrões estéticos, da mesma forma que, anos antes, a literatura havia se
popularizado com o formato do folhetim. A relação que se estabelece entre literatura e

21
DUVAL, Guerra Fernando. “Simplificação ou Complicação”, revista Photogramma, Núm. 09, Rio de Janeiro, 1927.
22
Maria Teresa Bandeira de Mello sugere a diferenciação empregada por Jean Claude Lemagny, entre pictorialismo
anedótico e pictorialismo da forma, que corresponderia à nossa divisão entre intervencionistas e puristas. In: MELLO,
Op. Cit., p. 45.

529
imprensa a partir da popularização do romance de folhetim no século XIX é uma relação
similar a que a fotografia, no início da imprensa ilustrada, estabelece com a pintura.
A produção fotográfica da revista Photogramma, assim como o seu discurso acerca da
fotografia, é tributária de uma visão da história que progride e é pautada pela cientificidade
dos métodos usados pelo historiador. Assim, o pictorialismo confunde técnica e estética 23 e
atribui ao domínio e à experimentação técnica a garantia de obtenção de resultados estéticos
não apenas positivos, mas representativos da cultura visual e da história da arte brasileira.
Neste contexto, membros e colaboradores da equipe editorial da revista Photogramma
estavam bastante conscientes do suposto papel “civilizatório” do “bom gosto” difundido e
determinado pela publicação. A revista Photogramma pretendia estabelecer os padrões de
qualidade da produção fotográfica através da valorização de imagens emblemáticas ou
extraordinárias que funcionassem como modelo para a realização de melhores fotografias e
fossem úteis para o cultivo do bom gosto. Seguindo um modelo moderno, porém
reacionário 24 , seu propósito editorial era o de estabelecer a ordem em um ambiente que
derivava ora para a adequação e o “bom gosto” da pintura, ora em direção à banalidade ou
superficialidade da imagem técnica. Com a revista, curiosamente, instaurava-se e também se
assegurava o progresso da fotografia no Brasil: uma posição mais eminente na arte e na
sociedade, a hierarquização na própria profissão de fotógrafo, a definição dos padrões de
qualidade da imagem, enfim, a ordem, contida nos discursos verbais e visuais da publicação.
Daí a necessidade de seu estudo sistemático: a história da cultura no Brasil pode se beneficiar
de um aprofundamento da discussão sobre o pictorialismo e sua permanência na tradição
estética da fotografia, sobretudo ao considerar a importância que estes padrões técnicos e
estéticos da revista adquiriram na construção da imagem do país.
Em seu primeiro número, publicado em julho de 1926, na primeira página, uma
apresentação anuncia os propósitos da revista: “incentivar a difusão da fotografia.” 25
A apresentação segue26:
Para isto ela ajudará os principiantes com conselhos e exemplos, defenderá os
interesses Moraes e materiais dos amadores e profissionais, tral-os-á ao corrente de
todos os estudos, descobertas e novidades, auxilial-os-á com a lição de ilustrações e
artigos de técnica e estética, de modo que os que começam possam aperfeiçoar-se,
evoluir de simples batedores de chapa a amadores da fotografia pictorial, isto é, a

23
POIVERT, Michel. “A fotografia francesa em 1900: o fracasso do pictorialismo”. Revista ArtCultura, Uberlândia,
v.10, n.16, p. 10, jan. – jun, 2008. p. 10.
24
Aqui vale observar a noção de que o modernismo no Brasil estava profundamente atrelado às tradições culturais e ao
movimento romântico, ao qual, entretanto, se opunha ferozmente.
25
Revista Photogramma, Núm. 01, Rio de Janeiro, 1926, p. 01 - 02.
26
Idem.

530
artistas conscientes que, para exprimir suas emoções, usam a fotografia em vez de
carvão, como os desenhistas, ou pincéis e tintas, como os pintores.
O texto é encerrado de modo a não deixar dúvidas sobre os objetivos da publicação:
“com tal programa e sem intuito comercial de lucro, nasce a PHOTOGRAPHIA para ser
paladina altruística de um nobre ideal.” 27

Quando a revista Photogramma se extinguiu, em 1936, as atividades e concursos do


Photo Club Brasileiro passaram a ser publicados na imprensa local, fortalecendo a
colaboração entre fotoamadores e fotojornalistas. Desta forma, a questão do pictorialismo
atravessou diferentes momentos e sua investigação ultrapassa o debate estético do período em
que a revista foi publicada28:

(...) o noticiário do fotoclube passou a ser veiculado em diferentes jornais e revistas


do Rio de Janeiro, tais como: O Globo, Beira-Mar, Revista da Semana, Careta, O
Cruzeiro e Revista de Copacabana. Além da divulgação das atividades do Photo
Club Brasileiro, esses órgãos da imprensa contavam com a colaboração de vários
associados do fotoclube para a ilustração de suas páginas.

Esta colaboração se estabeleceu especialmente na revista O Cruzeiro, veículo fundador


da história da fotografia de imprensa no Brasil 29 e, de acordo com Ana Maria Mauad,
fundamental no processo de constituição da identidade cultural brasileira 30.

A revista O Cruzeiro promove concursos de fotografia. No primeiro deles, no júri,


estavam as figuras de Guerra Duval e Sylvio Bevilacqua, sócios fundadores do Photo Club
Brasileiro. Os temas dos concursos, assim como aqueles da revista Photogramma, ofereciam
um panorama dos costumes, paisagens, vestuário, personalidades, cidadãos comuns, idosos e
moças, “trechos velhos da cidade”, hábitos, profissões e modos da sociedade brasileira.

Como publicação oficial do Photo Club Brasileiro, a revista Photogramma apresenta as


fotografias segundo temas e gêneros: fotografias humorísticas, interiores de igrejas, paisagens,
“a moça de nossos dias”, banhos de mar, vestuário, “atitudes da moça moderna”, “costumes e
traços regionais”, “trechos da cidade”, carnaval, negros, estudos de nu e estudos de mãos,
mundo do trabalho, “a beleza do sorriso feminino”, etc. Muitas destas imagens foram

27
Idem.
28
MELLO, Op. Cit., p. 72.
29
No início da década de 60 a tiragem da revista O Cruzeiro alcançou a tiragem de 720.000 exemplares. In:
PEREGRINO, Nadja. “O Cruzeiro”: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991.
30
MAUAD, Ana Maria. “O Olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da cultura visual”. In:
ArtCultura, V. 10, Nº 16, Jan.- Jun. 2008. Bandeira de Mello observa o papel que a cidade do Rio de Janeiro, então
capital federal, tem na construção da própria ideia de nação brasileira. In: MELLO, Op. Cit., p. 66.

531
publicadas na revista. A diversidade das classificações nos permite “visualizar” um panorama
dinâmico da sociedade da época.

Outra característica é o registro das excursões do clube ou de eventos de outras


associações como o Centro Excursionista Brasileiro: ao cais do Pharoux, à Represa dos
Ciganos, a Paquetá, e outros pontos da cidade. Estes passeios fotográficos, os respectivos
pontos de vista que refletem e o mapa da cidade que criam, colaboram na construção do
imaginário da sociedade carioca.

Além das imagens, muitos artigos publicados, ainda que estritamente técnicos, revelam
uma inesperada verve literária para um periódico que trata a arte em termos “científicos” 31:

Observae, n’uma vasta planicie soalheira, um renque de mangueiras frondosas. As


que se acham mais perto apresentam, nas partes tocadas pela sombra, o verde
escuro da folhagem viçosa de um tom muito carregado; mas a superfície lustrosa
das folhas, directamente batidas pelo sol, faíscam, repectindo-o em mil pontos
luminosos.
As primeiras árvores mostram violentas oposições de luz e sombra, ligadas por
opulenta escala de graduações intermediarias.
Depois, pousae o olhar alguns metros adeante, numa outra arvore e, a não ser
nestes dias transparentes em que não sopra a mais leve brisa e, na atmosphera
secca, não ha humidade alguma, vel-a-eis sem as notas extremas de luz refulgenta e
de negror profundo.
Se analysardes bem, notareis que os matizes sombrios perderam sua energia mais
accentuadamente que os brancos.
Levantae de novo o olhar e fixae-o ainda mais longe: percebereis, nas mangueiras
ainda mais afastadas, o phenomeno da attenuação das oposições dos valores cada
vez mais marcado.

O texto acima, assinado por Guerra Duval discorre sobre as possibilidades da fotografia
aérea e o autor dá dicas e conselhos que evitariam falhas na qualidade do negativo
fotográfico.
Nesta passagem, em um artigo sobre fotografia de férias, Guerra Duval realça a
singularidade e exuberância da paisagem brasileira 32:
(...) como um dos grandes encantos da paisagem brasileira, fartamente banhada de
sol, é a deslumbrante symphonia das cores, sua transcripção photographica, para
aquelles que o sabem fazer em valores justos , ou por falta de technica ou por má
educação ou por defeito de visão, é sempre um desapontamento.

31
DUVAL, Guerra F. “Variações sobre perspectiva aérea”. Revista Photogramma, vol.04, Rio de Janeiro, 30 de
outubro de 1926, p. 01.
32
DUVAL, Fernando Guerra. “Fotografia de férias”. Revista Photogramma, Num. 06, Rio de Janeiro, 1926, p. 20.

532
Este caráter literário que alguns articulistas adotam, apesar da proposta tecno-científica
da revista, fica evidente na série de artigos intitulada “À Luz da Lanterna Vermelha”, já em
sua epígrafe33:
A série A Luz da lanterna vermelha tratará de todos os assuntos que interessam aos
fotógrafos amadores, tanto principiantes como pictoriailstas, mas, para fugir do
tom dogmático, sempre antipático, fal-o-á em forma de diálogo.

O primeiro artigo da série, cujo argumento se desenvolve a partir do encontro de três


amigos no Photo Cine Club, é assinado por G. Duvalfer, provavelmente um pseudônimo de
Fernando Guerra Duval. Os artigos seguintes são assinados pelas iniciais FGD.
Possivelmente, a assinatura de um artigo publicado na revista, de G. Dav Aul, é também um
truque que Duval faz com seu nome. Observamos aqui o distanciamento de Duval, assinando
com um pseudônimo, do purismo de Friedmann em sua capacidade de ficcionalizar os fatos
técnicos. Também é o caso dos artigos assinados por Orienrak (possivelmente Carneiro, o
diretor técnico da revista, assinado ao contrário). Outro caso interessante é o de uma coluna
assinada por XYZ e o de uma Consideranda 34 assinada por O Ranzinza.
Da mesma forma que a verve literária sobressai nos textos publicados, também o faz nas
imagens.
O debate sobre a fotografia na revista Photogramma, considerando-se o contexto em
que ocorreu, as condições da prática fotográfica à época e o momento histórico e político da
sociedade brasileira, abre o caminho para a reflexão sobre questões como a representação da
cidade e de seus habitantes e sobre uma construção da imagem do Rio de Janeiro que enaltece
a exuberância da paisagem, elegendo-a como emblema da cultura brasileira. Neste percurso,
sobressai a relação entre fotografia e história e a ideia da sobrevivência de fórmulas estéticas
nas produções artísticas contemporâneas. Assim se poderia compor este atlas que tenta
desenhar o movimento, a desaparição, o ressurgimento de fórmulas – visuais e literárias – do
romantismo na cultura brasileira.

É desta maneira que o pictorialismo ultrapassa sua proposta estética inicial, se revela
como instrumento de estudo do imaginário visual da sociedade brasileira e também deve ser
apreendido à luz das formas híbridas adotadas pela arte e pela fotografia contemporâneas. Sua
popularidade, à época e na atualidade, pode ser compreendida à luz da sobrevivência de
tendências românticas na arte brasileira.

33
DUVAL, Fernando Guerra. “À Luz da Lanterna Vermelha”. Revista Photogramma, Num.06, Rio de Janeiro, 1926, p.
04 – 06.
34
Coluna em que era feita a crítica das imagens publicadas e das fotografias enviadas pelos leitores.

533
Contudo, pode-se especular que o êxito do pictorialismo ocorreu pelo fato deste
encontrar um terreno propício para seu desenvolvimento: da mesma forma que, em meados do
século XIX, o romantismo contribuiu, através da literatura, para a construção de uma imagem
da nação brasileira, o pictorialismo reforçou esta construção em seu papel conciliatório entre a
modernidade e a tradição. A mesma ambiguidade entre o elogio e a crítica da modernidade
materializada na imprensa, perpassa a literatura e a fotografia pictorialista.

A escolha do romantismo como fio condutor destas reflexões parte da premissa que o
modernismo no Brasil, conciliando tradição e modernidade técnica, sofreu forte influência do
romantismo, como afirma Sônia Gomes Pereira 35. A hipótese é a de que o romantismo, como
espírito do tempo e como gênero artístico ou literário, perpassa a cultura e a política brasileira
e encontra sua origem na tentativa de construção da ideia de nação no século XIX36. A análise
de imagens e documentos que ressaltam a sobrevivência de fórmulas românticas na produção
artística, fotográfica, cinematográfica e televisiva dos séculos XX e XXI, no confronto com
romances de folhetim e fotografias pictorialistas, possibilita explicitar a contribuição de
ambos na construção do imaginário e da identidade nacional, assim como a sobrevivência de
preceitos do romantismo na prática fotográfica brasileira contemporânea.
O romantismo, agora mais como “espírito do tempo” do que como gênero artístico-
literário, foi escolhido aqui, em detrimento de outros estilos que o pictorialismo absorveu, por
sua relação com o cientificismo e a ideia de revolução - ambas, de certa forma, presentes na
fotografia: a relação entre a técnica e a subjetividade do artista e seu potencial revolucionário
como manifestação artística e instrumento político. Também foi considerada a contribuição
do romantismo, enquanto gênero artístico-literário, na construção da imagem da nação
brasileira.
Maria Helena Rouanet, em seu artigo Nacionalismo37, publicado no livro “Introdução
ao Romantismo” ressalta a “estreita relação existente entre movimento artístico e a questão da
nacionalidade”, assim como a “coincidência cronológica entre o surgimento da chamada
Escola Romântica e a independência política do país”. Rouanet assinala que a ideia de nação
data do século XIX e envolve tanto um sentimento de pertencimento quanto a consciência de
participação em uma determinada cultura ou nação.

35
PEREIRA, Sônia Gomes. “Arte brasileira no século XIX”. Op. Cit..
36
Idem.
37
ROUANET, Maria Helena. “Nacionalismo”. In: JOBIM, José Luís (org). Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro:
EDUERJ, 1999. p. 9.

534
O romantismo no Brasil revela aspectos de uma sociedade recentemente independente,
marcada pelo positivismo e voltada para a construção de uma identidade nacional, cuja
singularidade se revelaria na natureza exuberante. Márcia Naxamara 38 aponta para uma
sensibilidade romântica que ultrapassa de longe os limites de sua definição como
escola literária retida em marcos cronológicos precisos, como algo que permanece ,
marcando, ainda hoje, os delineamentos da cultura ocidental (...). E que foi sob
esse signo (...) que se elaboraram as primeiras representações sobre o Brasil e que
construiu e constituiu a sua história

Some-se a isso o desenvolvimento da imprensa e a necessidade de edificação de uma


narrativa e um imaginário comum aos brasileiros.
Segundo Rouanet,
a própria ideia de nacionalidade – e mais que isso – o fato de que indivíduos de
grupos distintos sintam-se como parte integrante de um grupo de iguais – é o
resultado de todo um processo de formação, ou seja, de construção. E esta
construção se fez, e continua a se fazer, através de diversos instrumentos
socioculturais.

Considerando o Rio de Janeiro como capital e símbolo da nação brasileira, podemos


observar a importância da produção artística e literária carioca na formação da imagem do
Brasil. Dos romances que foram publicados sob a forma do folhetim, os de Machado de Assis
estão entre os mais recentemente revisitados sob a forma de séries televisivas, novelas e
filmes. Dentre várias, destacamos a adaptação para a televisão de títulos de sua fase
considerada romântica: Helena foi filmado como novela em 1952, em 1975 e 1987 e Iaiá
Garcia em 1982.
No contexto de meados do século XIX, segundo Marlyse Meyer39,
não é de espantar, no Brasil e na América Latina, “onde a desgraça pouca é
bobagem”, a popularização de um gênero romanesco que, além de cativar
auditórios e leitores pelas engenhosas tramas, tematizava sub-condições de vida e
exacerbadas relações pessoais e familiares. Desenvolvia um paroxismo de
situações e sentimentos mal canalizados por uma mensagem conservadora que se
desejava conciliadora mas não apagava totalmente seu valor de denúncia e
cultivava uma forma de sobressalto narrativo a mimetizar o sobressalto do vivido,
amenizando-o pela magia da ficção.

Tal ambiguidade, produto desta mimetização e amenização do vivido característica do


romance de folhetim, atravessa a prática fotográfica e se manifesta no debate estético
promovido pelo pictorialismo com a mesma “mensagem conservadora”, mas que indica
também, ainda que pelo seu aspecto reativo, a modernidade técnica da sociedade carioca da

38
NAXAMARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica. em busca de um sentido explicativo
para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. p. 297.
39
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 383.

535
década de 1920. Reconhecer discursos explícitos e implícitos nas imagens fotográficas, assim
como imagens literárias presentes nas imagens, supõe a análise de distintos materiais, além
das fotografias e dos discursos propriamente ditos. Assim, procuramos utilizar imagens
literárias presentes no romance A Moreninha40, lançado no formato de folhetim em 1844,
com o intuito de promover uma comparação extravagante, e por isso mesmo rica, entre a
literatura e a fotografia.
Dentre outras obras literárias, destacamos A Moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo, publicado em 1844, como modo de encadear as distintas versões e imagens do
mesmo romance. A Moreninha tem sua primeira versão filmada em 1915; em 1945, foi feita
uma versão não finalizada do romance e a Rede Globo, em 1965, exibiu uma versão para a
televisão em formato seriado. Entre 1975 e 1976, a mesma emissora exibiu uma nova versão
da novela41.
A imensa popularidade que o romance alcançou à época de sua publicação em um país
em que grande parte da população era analfabeta, como ressalta Marlyse Meyer, se dava
também através das oitivas do romance 42.
Ana Reis 43 destaca que seu autor, Macedo,
(...) obteve reconhecimento e prestígio ao publicar A Morenhinha, (...) reproduzia
com singela fidelidade, no plano da imaginação, a sociedade que todos conheciam
no plano da realidade, mas não deixava de despertar a curiosidade do público leitor
brasileiro por si mesmo e pela maneira de viver vigente e, veio ainda a responder à
expectativa dos leitores da época pelo surgimento de um romance genuinamente
brasileiro.

Considerando a observação de Meyer sobre as oitivas, talvez se deva relativizar o modo


como Reis menciona a “singela fidelidade” da “sociedade que todos conheciam no plano da
realidade”. Os personagens que compõem o grupo envolvido na trama do romance são
estudantes financeiramente remediados. Os escravos e mulheres são tratados de forma
condescendente e estereotipada. É importante ressaltar, entretanto, a importância do romance
que, ainda para Reis, iniciou um movimento “particularmente decisivo para a literatura

40
MACEDO, Joaquim Manuel. A Moreninha. O Globo. s/d.
41
FILHO, Flavi Ferreira Lisboa, MENEZES, Darciele Paula Marques e JUNIOR, Marcos Junges Panciera.
“Identificações literárias em telenovela: algumas observações”. In:
http://w3.ufsm.br/estudosculturais/arquivos/capitulos-
livro/IDENTIFICA%C3%87%C3%95ES%20LITER%C3%81RIAS%20EM%20TELENOVELA.pdf Acesso em 10 de
junho de 2017.
42
MEYER, Marlyse. Op. Cit., p. 14.
43
REIS, Ana Lúcia Silva Resende de Andrade. “O romande de folhetim no Brasil do século XIX – modelos e
inovações”. Disponível em: www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/abralic/textos/ana_reis.do Acesso em 20
de março de 2017.

536
brasileira, que buscava construir sua identidade própria e se firmar como arte autônoma e
valorizável de uma nação recém independente”. 44
Curiosamente, em termos de popularidade, romances como a Escrava Isaura 45 , de
Bernardo Guimarães e a própria A Moreninha alcançaram tamanho êxito que reprises destas
novelas podem ser vistas ainda hoje em canais de televisão aberta, a cabo ou na internet.
Ana Reis observa que Macedo louvou, através de Carolina, a Moreninha, a beleza
brasileira em detrimento “do modelo de beleza importado da Europa”46, das moças de cabelo
claro e tez pálida. Talvez a mesma reflexão possa ser aplicada à Escrava Isaura, mulher
branca, mas fruto da miscigenação e mais ainda, de um possível projeto de
“embranquecimento” da sociedade brasileira.
Marlyse Meyer destaca a presença das mulheres, na literatura da época, não apenas na
condição de leitoras de romances e novelas, mas como também de editoras e colaboradoras
dos folhetins47, por isto, talvez a construção do modelo da beleza típica feminina brasileira
também se manifeste e legitime através destas representações literárias.
A uma imagem verbal deste romance, descrevendo a beleza de um grupo de mulheres,
podemos associar uma série de retratos pictorialistas que se encaixam esta passagem, quase a
ilustrando.

Aqui destacamos o trecho em que um dos personagens declara como objeto de sua
paixão “a todas as senhoras, resumidas num só ente ideal. À custa dos belos olhos duma, das
lindas madeixas doutra, do colo de alabastro desta, do talhe elegante daquela, eu formei o meu
belo ideal, a quem tributo o amor mais constante”. Nas três imagens encenadas ou trucadas de
mulheres, feitas por Julia Margareth Cameron, Adolph de Meyer, Robert Demachy, Edward
Steichen podemos visualizar o mesmo tipo de idealização da beleza feminina, com as
imperfeições das modelos ocultas pelo retoque fotográfico.
Ao pensarmos no quanto o sentido de identidade brasileira está associado, segundo
Márcia Naxamara48, à beleza natural do país, buscamos na Moreninha imagens literárias que
dessem conta da paisagem do Rio de Janeiro em 1844. Contudo, a Moreninha, como
romance urbano e inicial da literatura romântica de folhetim, não ressalta ainda o entorno, e o
nome do lugar onde ocorre a maior parte do enredo, permanece, ainda que “reconhecível”,
oculto. Macedo detém seu foco na construção, mesmo que algo superficial, dos personagens e

44
Idem.
45
GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. O Globo. s/d.
46
REIS, Ana. Op. Cit.
47
MEYER, Marlyse. Op. Cit., p. 298/299.
48
NAXAMARA, Márcia. Op. Cit.

537
no desenvolvimento da estória de amor. É o início do romantismo no Brasil e o amor
romântico é o tema central da trama.
Vale ressaltar, entretanto, a relação de Joaquim Manuel de Macedo com a cidade,
explícita em seu Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 49 , editado sob a forma de
folhetim no Jornal do Commercio. Macedo faz um percurso histórico e literário pela cidade
do Rio de Janeiro, através dos seus lugares mais emblemáticos à época e, segundo Wilson
Bueno no prefácio da edição de 2004, “a nos revelar, já àquele tempo, o país oculto e
miseravelmente cruel, baixo e a máscara de uma cordialidade que era – e continua sendo – a
alta marca de nossa impostura.”50
Através dos veículos de imprensa, sob a forma do folhetim, o romance A Moreninha se
popularizou, assim como a localidade em que supostamente se desenrolaram os
acontecimentos: a ilha de Paquetá no Rio de Janeiro. A Moreninha se manteve presente no
imaginário brasileiro até pelo menos 1970, década da sua produção como filme.
Partir d’A Moreninha representa a opção por desvendar, em um dos romances mais
populares e emblemáticos (ainda que alguns possam considerar insípido ou superficial) da
literatura brasileira, a sobrevivência de uma tradição romântica que também se consolida
através do movimento pictorialista; daí a legitimidade do confronto de imagens literárias da
época com as imagens pictorialistas. O imaginário carioca ficou impregnado de tal maneira
com a estória de amor entre Augusto e Carolina que ainda hoje, se pode visitar na Ilha de
Paquetá a Pedra da Moreninha, mesmo que o romance e seus personagens sejam
absolutamente ficcionais e o autor, em momento algum da narrativa, esclareça o nome da
ilhota na Baia de Guanabara, cenário da trama.
Os fotoclubistas promoveram, em julho de 1927, por ocasião da comemoração de um
ano de existência da revista Photogramma, uma excursão à Ilha de Paquetá. O relato que o
diretor técnico do Photo Club, Orienrak, faz da ansiedade de um dos fotoclubistas – Nogueira
Borges – revela o quanto o romance impregnou o imaginário de gerações, inclusive a dos
pictorialistas51:
Enquanto isto, o Nogueira Borges, nervoso, impaciente, passos largos, gesticula,
tentando acreditar que estava fazendo a digestão, mas quem o conhece vê logo que
estava roxo para ver “A Moreninha” (a de Macedo) e receia que não haja tempo
suficiente.

49
MACEDO, Joaquim Manuel Ferreira de. “Um Passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. São Paulo: Editora Planeta do
Brasil: Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
50
BUENO, Wilson. In: Macedo, Joaquim Manuel Ferreira de. “Um Passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. Op. Cit.,
p. 08.
51
ORIENRAK. Paquetá. Revista Photogramma, Num. 13, Rio de Janeiro, 1927, p. 14 e 15.

538
Mais adiante, Orienrak declara 52:
Paquetá conquanto tenha bellos assumptos para photografia não entusiasmou as
nossas Kodaks, e por isso rumamos logo para a tal pedra da “Moreninha”, e quando
lá chegamos já o nosso professor apontando uma pedra pontiaguda, dizia em voz
alta – “Foi aqui que sentou a Moreninha!!”

Esta descrição que Orienrak faz de Nogueira Borges, um dos sócios fundadores da
revista, e do professor, provavelmente o encarregado de ministrar os cursos do Photo Club,
fornece uma ideia parcial do universo cultural dos fotógrafos deste grupo específico da
sociedade carioca da segunda metade da década de 1920, sua relação com a literatura, a
memória e a imagem, a arte e a cidade.
Assim, através da literatura romântica, do sentimento de nacionalidade que a
acompanha e das imagens fotográficas do pictorialismo, podemos tentar traçar o contorno de
uma história de idas e vindas, de empréstimos, reconhecendo a sociedade carioca deste
período, sua inscrição no quadro de uma modernidade técnica e a sobrevivência ou retorno de
seus modelos estéticos na fotografia brasileira contemporânea.
No contexto dos anos vinte do século XX no Brasil, a fotografia assimilou a
industrialização e a modernização da sociedade, iniciou o debate estético que envolvia sua
prática, atuou na construção da imagem da modernidade 53 e garantiu a sobrevivência de
preceitos estéticos herdados da pintura do século XIX.
Seu ressurgimento nas práticas artísticas contemporâneas reafirma a atualidade do
pictorialismo: da mesma forma que a literatura de folhetim se reinventou pelo do cinema,
fotonovelas, radio e telenovelas, o pictorialismo atravessou o século XX no Brasil.
Atualmente, se pode observar a sobrevivência desta prática fotográfica, própria do
início do século XX, no universo digital do século XXI. A presença de traços pictorialistas
românticos na produção fotográfica contemporânea brasileira aponta para o caráter
emblemático que tanto o romantismo quanto o pictorialismo, em literatura e na fotografia,
adotou no Brasil.

52
Idem, p. 15. Um exemplo emblemático desta confusão entre ficção e realidade é o do Castelo de If, na França, que até
hoje é visitado por turistas que anseiam por conhecer o lugar onde Edmond Dantés, personagem fictício do romance O
Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, teria vivido preso. O romance de Dumas também foi publicado no
formato de literatura de folhetim.
53
A fotografia pictorialista atuou na construção da imagem nacional brasileira por meio da colaboração entre
fotoclubistas e imprensa.

539
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542
O Movimento Armorial e a construção de uma identidade musical na ditadura civil-militar

Cecilia Maria Gomes Pires1

Resumo: Neste presente trabalho gostaria de apresentar o desenvolvimento de pesquisa em curso no


âmbito do doutorado em História Música e Sociedade na EHESS/França. A tese propõe uma
discussão sobre a construção de uma identidade musical em Pernambuco, através do Movimento
Armorial criado por Ariano Suassuna durante a ditadura civil-militar. Essa pesquisa nasceu da
constatação da ausência de uma discussão aprofundada sobre este tema. A partir de documentos
analisados, vimos que em um momento de forte repressão, a censura parece passar ao lado do
Armorial. Propomos neste trabalho abrir este debate de forma interdisciplinar, cruzando essas
abordagens em torno da relação entre música e história para compreender as particularidades do
Movimento Armorial pondo em destaque este evento histórico e suas consequências no pensamento
musical Pernambucano.

Palavras-chave: música, armorial, Ariano Suassuna

Abstract: In this present work I would like to present the ongoing research development under the
PhD in Music History and Society at EHESS / France. The thesis proposes a discussion about the
construction of a musical identity in Pernambuco, through the Armorial Movement created by Ariano
Suassuna during the civil-military dictatorship. This research was born from the absence of an in-
depth discussion on this topic. From the analyzed documents, we saw that in a moment of strong
repression, the censorship seems to neglects the Armorial. We propose in this work to open this debate
in an interdisciplinary way, crossing these approaches around the relationship between music and
history to understand the particularities of the Armorial Movement, highlighting this historical event
and its consequences in the musical thought in Pernambuco.

Keywords: music, armorial, Ariano Suassuna

Introdução

O Movimento Armorial foi um movimento artístico criado e dirigido pelo escritor e


dramaturgo Ariano Suassuna na década de 1970 em Recife-PE, com a participação de vários artistas.
Num momento em que os movimentos do Cinema Novo e do Tropicalismo estavam agitando o eixo
São Paulo – Salvador, em Pernambuco nasce um movimento multicultural com uma expressão
artística muito ampla em vários campos, com uma nova proposta. Talvez possamos dizer que esse
movimento foi de certa forma um movimento institucional e é aí que ele se destaca, porque aparece
no quadro do Governo Estado de Pernambuco através do Conservatório de Música, com a Orquestra
Armorial e no âmbito do Governo Federal por sua inserção na Universidade Federal de Pernambuco

1 Doutoranda pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales – Paris.

543
(UFPE), no Departamento de Extensão Cultural, onde professores universitários e estudantes tentam
estabelecer um vínculo entre cultura erudita e cultura popular.
Este Movimento tinha como proposição principal a ideia de criar uma arte nacional na região
do Nordeste tendo como fundamento básico elementos dos mais diversos da cultura popular. Este
movimento tinha como objetivo criar uma identidade nordestina erudita, utilizando como principal
fonte a cultura popular advinda do sertão. Este era fundamentado também em algumas características
da idade média européia, dos feudos e castelos medievais, que foi um momento histórico durante o
qual as famílias nobres se distinguiam por seus brasões. Podemos constatar que desta forma existia
no discurso uma espécie de anacronismo estético e cultural, uma vez que no Brasil não existiu idade
média propriamente dita. Entretanto, certamente consciente de tal invenção, no sentido dado pelo
historiador Eric Hobsbawm2, Ariano Suassuna recorrendo a esse passado imaginário, pontua que o
nome “armorial” foi atribuído ao movimento em razão do “conjunto de emblemas, brasões, bandeiras
e insígnias de um povo”. Segundo Suassuna, a heráldica seria uma arte tão popular quanto qualquer
outra e o nome adotado, a saber, Armorial, sugeriria o desejo de estabelecer uma ligação, mesmo que
imaginária, com essas heráldicas das raízes e das origens culturais brasileiras 3. Por fim, é importante
observar que o movimento armorial abrange várias manifestações artísticas, como por exemplo
literatura, teatro, pintura, tapeçaria, escultura e dança. No entanto, dentre todas as artes, a música foi
a que mais se desenvolveu e a que conseguiu obter maior repercussão local e nacional. É interessante
observar que o escritor, apesar de não possuir uma formação musical, tinha ideias bem definidas de
uma sonoridade imaginária que ele queria colocar em prática.

Política institucional

O primeiro objetivo e hipótese deste trabalho é o de investigar os posicionamentos políticos


da música no Movimento Armorial, visto que o tradicionalismo sugerido por tal movimento parece
poder se associar, ao menos em parte, aos ideais do regime militar então vigente. No artigo “Musique
populaire et dictature militaire au Brésil : dynamiques contestataires et logiques de marché (1964-

2 HOBSBAWM E. J et RANGER T. O, A invenção das tradições, São Paulo, edições Saraiva de bolso, 2012.
3 SUASSUNA Ariano, « O Movimento Armorial », Separata da Revista Pernambucana de Desenvolvimento, 4,
1977, p. 39-64, p. 39-64.

544
1985)” 4 , os historiadores Anaïs Fléchet e Marcos Napolitano discutem a repressão e o
desenvolvimento de uma política cultural para garantir a propaganda do regime militar, iniciativa que
provinha da instrumentalização política das manifestações populares com o propósito de valorizar o
“progresso” do país na época. Isso nos fornece algumas pistas de trabalho, o que essas pistas têm
sugerido, é que em um momento de forte repressão, a censura parece passar ao lado do Armorial.
Nós colocamos em evidência aqui, dentre os recortes de jornal encontrados nos arquivos da
Orquestra Armorial, o concerto de Abril de 1971, onde o grupo faz um concerto privado para o
presidente ditador Emílio Garrastazu Médici, no Grande Hotel à Recife. O cotidiano Jornal do
Commercio descreveu o que aconteceu durante o jantar de recepção do presidente, incluindo os
pedidos de financiamento (cedidos), a apresentação da nova estética por Ariano Suassuna e o
repertório tocado pela orquestra. Neste arquivo encontramos também críticas musicais dos principais
jornais do Rio de Janeiro dizendo que todas as subvenções do governo, da ufpe e do conselho federal
de cultura eram merecidas, entre outros5. Tais discussões fazem eco com o que o musicólogo Esteban
Buch discute em suas obras a respeito de uma política cultural institucionalizada durante o período
de repressão na ditadura argentina, além de discutir o que seria uma paisagem sonora nesse contexto 6.
Em 1969, Suassuna é nomeado como diretor do Departamento de Extensão cultural da UFPE,
após sua participação no seio do DEC, Suassuna foi nomeado secretário municipal de cultura da
cidade do Recife na gestão do prefeito Antônio de Farias (nomeado pelo governo militar entre 1975-
1979). Em seguida ele será secretário estadual de cultura no governo de Miguel de Arraes (eleito pelo
período de 1987-1990). Mesmo durante duas gestões de orientações políticas diferentes, a primeira
de direita e a outra de esquerda, Suassuna tentou guardar seu posicionamento em relação à gestão
cultural. Como ele não era político de formação, ele pediu para ambos gestores a liberdade para agir
no cargo à sua maneira. No entanto, é importante observar que se por um lado, Antônio de Farias
pertencia ao partido Arena, partido que era a base de apoio da ditadura no seio do parlamento, por
outro lado, Miguel Arraes, que ficou 20 anos exilado do Brasil na França e na Argélia, era presidente
do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Durante um pequeno lapso de tempo, dez anos, Suassuna
ocupou cargos importante nos dois governos, de certa maneira, institucionalizando o Movimento
Armorial. Além disso, é importante observar que o escritor não nomeia nenhum político para trabalhar
com ele, mas sim diversos músicos, uma bailarina e um mestre de maracatu é que foram escolhidos
para ajudá-lo nestes cargos. Finalmente, além dessas contradições, nos parece que o cargo de

4 FLECHET Anaïs et NAPOLITANO Marcos, « Musique populaire et dictature militaire au Brésil : dynamiques
contestataires et logiques de marché (1964-1985) », Nuevo mundo mundos nuevos, 11 juin 2015,
http://nuevomundo.revues.org/68081.
5 Jornal do Brasil 04 de junho de 1971.
6 BUCH Esteban, Trauermarsch : l’orchestre de Paris dans l’Argentine de la dictature, Paris, Seuil, 2016.

545
secretário caiu como uma luva e possibilitou a desculpa para Suassuna promover em todo o país suas
palestras sobre a cultura brasileira-nordestina, conhecidas como aulas-espetáculo.

Identidade e estética

Um outro ponto importante da nossa pesquisa concerne o estudo em torno da identidade e


estética musical da região do Nordeste. De acordo com o sociólogo Durval Muniz de Albuquerque
Júnior 7 , a construção desta identidade foi colocada em destaque pela primeira vez graças ao
compositor Luiz Gonzaga ainda nos anos 1940. Um primeiro olhar na obra de Gonzaga nos permite
constatar que o cantor fazia propagandas para governos da sua época. Em algumas canções, como
por exemplo a canção Nordeste pra Frente (1968), ele valoriza programas de desenvolvimento da
região promovidos pelo Estado. No entanto é verdade que, além da insistência em se afirmar como
monarquista, Suassuna não tinha posicionamentos políticos claros, o que na época lhe permitiu situar-
se, como visto acima, tanto de um lado como de outro. Embora, não deixe de ser verdade que de
acordo com as diferentes circunstância de cada momento. Seus esforços são de certa forma similares
aos de Gonzaga no processo de construção de uma identidade musical da região.
As obras de Ariano Suassuna reúne elementos de diferentes movimentos literários como o
simbolismo, o barroco e a literatura de cordel. No livro Almanaque Armorial, Suassuna Considerando
sua ligação muito forte com a literatura de cordel, sua obra, na história da literatura brasileira, foi
posta ao lado de escritores como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos como pertencente à fase da
literatura conhecida como Regionalismo. Regionalismo este, conceitualizado pelo escritor e
sociólogo Gilberto Freyre. Suassuna conta que, após uma conferência de Freyre, elaborou a ideia de
que a cultura do Nordeste ocupava uma posição estratégica na construção de uma identidade nacional.
Segundo Suassuna, na escrita “o universal só pode ser alcançado através do regional”8. A alternativa
encontrada pelo autor foi a de se tornar regionalista, no entanto ele procurou universalizar e preencher
com um certo sentido global tudo o que ele escrevia para não correr o risco de ficar restrito somente
à uma compreensão local. Os conceitos de regionalismo empregados por Freyre, no que diz respeito
ao Nordeste, tornaram Recife uma referência cultural e intelectual importante; trata-se de um lugar

7 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de, A invenção do Nordeste e outras artes, 5a ed., São Paulo, Cortez
Editora, 2012.
8 SUASSUNA Ariano et NEWTON JÚNIOR Carlos, Almanaque armorial, Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
2008.

546
onde, a partir deste momento, os artistas procuram sempre uma cultura enraizada. Suassuna, seguindo
os passos do sociólogo, tenta definir os elementos que compõem a cultura brasileira ligada à busca
da identidade nacional. Essa pesquisa se associa a invenção de uma certa identidade da cultura
popular enquanto elemento pertencente ao nacionalismo brasileiro. Por fim, Suassuna tornou-se uma
figura importante em todo o Brasil, não somente pela sua obra, que é muito valorizada, mas também
pelo seu posicionamento artístico e político. Este movimento quis tentar transformar eventuais
“preconceitos socioculturais” recorrentes a respeito da região do Nordeste de forma a apresentar sua
música no Sul e Sudeste do país. Ao final, tínhamos um paradoxo: era um movimento originário de
um só Estado, Pernambuco, tentando apresentar uma cultura característica de toda uma região, o
nordeste, no conjunto de um país continental.
Uma outra questão está em torno da relação do Movimento Armorial com a cultura popular
de uma forma geral. Uma pista nos foi dada pela pesquisadora Idelette Santos, quando ela menciona
a influência que certos movimentos culturais de Pernambuco exerceram sob Suassuna. Um desses
movimentos foi o Movimento de Cultura Popular (MCP), dirigido por Paulo Freire. Em 1964, devido
ao golpe militar, o MCP (vínculo com a ufpe) e sua sede foram destruídos e seus participantes foram
perseguidos pela ditadura militar. Seis anos mais tarde, Ariano Suassuna apresenta o Movimento
Armorial que tem como base conceitos similares aos do MCP, referentes à utilização da cultura
popular. Por outro lado, o movimento liderado por Ariano Suassuna durou dez anos e se beneficiou
dos apoios do governo durante e depois da ditadura.

Música armorial

Outra questão que propomos investigar é a relação da música armorial como principal
expressão artística do Movimento. A Música Armorial desempenha um papel fundamental e
determinante no movimento. A pesquisadora Idelette Muzart Fonseca dos Santos fala em seu livro
que a música do movimento foi a arte que evoluiu mais rapidamente. Por um lado, a história de uma
música armorial nos parece ainda não ter uma presença significativa na literatura musical brasileira,
ao Movimento de uma abordagem histórica da sua música, tanto em obras sobre a música popular
brasileira, quanto sobre música erudita brasileira, como por exemplo nos livros de José Ramos
Tinhorão e Vasco Mariz.

547
Esta é uma estética onde todos os compositores implicados possuem uma formação musical
erudita e tinham ligações com a universidade ou o conservatório, o que nos dá uma outra perspectiva
de uma música que se reclama como popular, mas que carrega um caráter erudito em seus principais
atores. Assim, pretendemos também colocar em destaque a música do movimento armorial através
do ponto de vista musical dos músicos participantes que conceitualizam e criaram essa música. No
que diz respeito à sua recepção, a partir das pesquisas realizadas anteriormente, podemos dizer que a
estética musical armorial não foi bem aceita no meio musical pernambucano. Entretanto, ao mesmo
tempo, o armorial também teve uma boa aceitação na imprensa que por sua vez, nos fala de uma boa
recepção do público. Essa questão abre um leque de debates sobre o lugar da música armorial no
contexto artístico local. Por fim, utilizando uma perspectiva comparativa, nos parece importante
discutir a cena musical da época no Brasil, sobretudo em Pernambuco. Temos como elemento
comparativo o movimento Tropicalista, que teve um espaço importante no momento cultural
brasileiro dos anos 1970, como arte engajada. Esse movimento foi bastante expressivo em
Pernambuco, com a figura de Jomard Muniz de Brito, inclusive com críticas e debates ligados
diretamente à Ariano Suassuna e seu Movimento.
Zoca Madureira, compositor e violonista escreveu no encarte do primeiro álbum do Quinteto
Armorial suas ideias sobre a concepção da música armorial. No texto, ele explica que o objetivo era
de estudar a música brasileira, particularmente esta que é feita no nordeste, utilizando seus sistemas
rítmicos e harmônicos para criar uma música inovadora. O compositor observa que é possível que o
nordeste seja a região do Brasil que, excluindo o período da colonização, tenha recebido menos
influências externas, segundo ele, não tinha influências da música norte americana e era o lugar mais
rústico do país. Os elementos externos que restaram, foram absorvidos e reinterpretados pelo próprio
povo. Outros elementos foram recolhidos e agregados pelo inconsciente coletivo. Como explica
Mário de Andrade no Ensaio sobre música brasileira, texto que foi muito estudado para o
desenvolvimento dessa estética musical. Para a concepção da estética armorial no Quinteto, Zoca
Madureira teve como principal referência os estudos de música nacionalista, reafirmando as
“afinidades com a visão utópica do nacional-popular, popularizada nos anos 60 inicialmente pelo
Movimento de Cultura Popular (MCP)”9.
Em entrevista concedida em 2015, para pesquisa de campo, Antônio Madureira explicou que
quando eles estavam pensando o caso da música armorial, eles perceberam que não existia somente
a música clássica europeia, mas existia também a música clássica chinesa, indiana, enfim, que existem
outras representações musicais tão sutis e complexas quanto a linguagem da música clássica europeia.

9 BRITO, Antonio de Padua de Lima, « Ariano Suassuna e o regime militar : a cultura popular como questao de
soberania nacional » artigo para revista Tematicas, Campinas, SP, 19, p. 119-142 jan-dez 2011.

548
A ideia que ele teve foi de fazer uma música clássica que vinha da matriz da música brasileira: a
música indígena, ibérica e a de origem negra que estão vivas na região nordeste. Madureira diz que
eles queriam fazer uma música própria para colocar a música brasileira em evidência, impedindo a
degradação da tradição pelos meios de comunicação e indústrias fonográficas.
A música armorial teve um papel importante enquanto símbolo do ressurgimento da cultura
popular nordestina, cultura esta que estava em grande parte esquecida tanto em nível nacional quanto
em sua própria região. Este movimento quis tentar transformar eventuais “preconceitos
socioculturais” recorrentes a respeito da região do Nordeste de forma a apresentar sua música no Sul
e Sudeste do país. Ao final, tínhamos um movimento originário de um só Estado, Pernambuco,
tentando apresentar uma cultura característica de toda uma região no conjunto de um país continental.
A partir dessas hipóteses, durante a pesquisa de campo que está em curso em Recife e no Rio
de Janeiro, tivemos acesso à diversos documentos que poderiam enriquecer esse presente artigo, mas
a análise dos dados não pôde ser concluída antes da publicação do presente artigo.

Bibliografia

ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de, A invenção do Nordeste e outras artes, 5a ed., São Paulo,
Cortez Editora, 2012.

BRITO, Antonio de Padua de Lima, « Ariano Suassuna e o regime militar : a cultura popular como
questao de soberania nacional » artigo para revista Tematicas, Campinas, SP, 19, p. 119-142 jan-dez
2011.

BUCH Esteban, Trauermarsch : l’orchestre de Paris dans l’Argentine de la dictature, Paris, Seuil,
2016.

FLECHET Anaïs et NAPOLITANO Marcos, « Musique populaire et dictature militaire au Brésil :


dynamiques contestataires et logiques de marché (1964-1985) », Nuevo mundo mundos nuevos, 11
juin 2015, http://nuevomundo.revues.org/68081.

HOBSBAWM E. J et RANGER T. O, A invenção das tradições, São Paulo, edições Saraiva de bolso,
2012.

SANTOS Idelette Fonseca dos, Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento
Armorial, 2a. ed. rev., Campinas, SP, Brasil, Editora Unicamp, 2009.

549
SUASSUNA Ariano (éd.), Les Imaginaires, Paris, Union générale d’éditions, coll.« 10/18 ; 1063 »,
1976, p.47-78.

SUASSUNA Ariano et NEWTON JÚNIOR Carlos, Almanaque armorial, Rio de Janeiro, José Olympio
Editora, 2008.

550
Nem história, nem literatura:
a concepção literária de Sílvio Romero, o historiador literário (1851-1914)

Cícero João da Costa Filho1

Resumo: Sílvio Romero introduziu uma nova maneira de analisar os estudos literários no Brasil.
Influenciado pelos pressupostos do naturalismo europeu, extrapolou o conceito de literatura,
invadindo áreas como a sociologia, a política e o folclore. Preocupado com a singularidade brasileira,
tomou elementos como o meio, a raça, o momento histórico, os antecedentes históricos e o mestiço
para erigir sua História literária. Preterindo os quadros sintéticos esboçados pelos escritores
anteriores, preocupados com traços biográficos, Romero analisou a gênese literária a partir de um
quadro social amplo em que a Literatura era reflexo das transformações sociais. Sua Crítica literária
era uma Crítica sociológica donde o sentido dos fatores condicionantes que acabava por influenciar
o fenômeno literário. Desse modo, a Crítica literária para Sílvio, era um recurso metodológico a ser
aplicado aos mais variados ramos do saber.

Palavras-chave: literatura, sociedade, crítica literária.

Abstract: Romero introduced a new way of analyzing literary studies in Brazil. Influenced by
European assumptions of Naturalism, extrapolated the concept of literature, invading areas such as
sociology, politics and folklore. He concerned about the Brazilian singularity, as the elements selected
the race, the historical moment, the historical background and the mestizo race to erect its Literary
History. Neglecting the synthetic frames outlined by earlier writers, concerned with biographical
traits, Romero analyzed the literary genesis from a broad social context in which the literature was a
reflection of social changes. His literary criticism was a criticism of where the sociological sense of
the conditioning factors that would eventually influence the literary phenomenon. Thus the book
review for Silvio was a methodological resource to be applied to the most varied branches of
knowledge.

Key words: literature; society; literary criticism.

[...] Este livro deveria formar um só volume de umas 700 páginas neste formato e
tipo. Tal o plano primitivo. Começando a sair aos pedaços na Revista Brasileira,
aproveitando-se a composição para a impressão em separado, e havendo cessado de
aparecer a Revista, foi mister utilizar-se o que estava feito. É o que constitui o
primeiro volume, que hoje sai a público. O autor viu-se destarte, forçado a partir da
segunda época da nossa Literatura, deixando para o volume seguinte a continuação.
É uma grande macula com que será perdoada por todos aqueles que sabem das
dificuldades com que se luta em empresas dessas do Brasil.

1 Esta comunicação é uma pequena adaptação do meu primeiro capítulo da minha tese
defendida em 2013, publicada em livro, com o título Sílvio Romero: literatura, raça e política (1851-
1914), sob orientação do Prof. Marcos Silva. Sou pós doutorando, com pesquisa já entregue intitulada
Forças do Mal: os Prejuízos “raciais” da figura do judeu na Produção Integralista de Gustavo
Barroso (1933-1937), sob supervisão do mesmo professor, no Programa de História Social da
FFLCH/USP. E-mail de contato: cicerojoaofilho@gmail.com

551
Nada se dirá aqui sobre o intuito geral da obra. O leitor inteirar-se-á por si. Apenas
lembra-se que este ensaio não teve por alvo principal descobrir fatos novos, no
campo, aliás, pouco fértil da Literatura nacional, senão dar um sentido geral e teórico
aos factos já conhecidos”.
(Sílvio Romero. Introdução a Literatura Brasileira)

Sílvio Romero: historiador literário

Encontrar, dividir, selecionar, torna-se tarefa imprescindível para encontrarmos Sílvio


Romero historiador literário. O problema da investigação histórica assume fundamental importância
quando se trata de um polígrafo que, em sua literatura, colocava em pauta todos os problemas
concernentes aos destinos do país, como anota Nelson Werneck Sodré2 . Embora tenha escolhido
Sílvio a crítica literária como especialização, sabemos que este não ficou restrito a sua área: trazia,
por meio de sua história literária tudo que tivesse ligação com os problemas nacionais.
Mesmo se tratando de um historiador literário que fundamentou seu trabalho na crítica
naturalista a partir do evolucionismo e do darwinismo, Sílvio foge a toda e qualquer especialidade do
saber que hoje encontramos rigidamente demarcado, por uma razão muito óbvia: sua concepção
literária diferia da de outros críticos de sua época, como José Veríssimo e Machado de Assis 3, que
concebiam Literatura como arte literária. Esta foi a principal razão das polêmicas de Sílvio com estes
adversários, fazendo com que o escritor sergipano expandisse a Literatura para além do fenômeno
estritamente literário. Para o polígrafo, a Literatura tinha sempre relação direta com o que acontecia

2 SODRÉ, Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento


brasileiro. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1965.
3 O livro de Veríssimo não tratava de um simples acerto de contas com Sílvio, antes servia
para evidenciar a concepção literária do crítico sergipano e, por conseguinte, como o escritor
interpretava seu país salientando a concepção literária daquele. Para além do revide de José Veríssimo
ao ataque de Sílvio e João Ribeiro no Compêndio de História da Literatura Brasileira, onde o crítico
paraense se defende afirmando ser avesso à polêmica, razão “de cair na falta que censuro como um
dos nossos mais feios costumes asseguro que nunca fiz senão forçado e com profundo
aborrecimento”, as intrigas entre Sílvio e Veríssimo nos oferecem muito mais do que meros ataques:
mostram como os dois polígrafos concebiam literatura e qual o seu papel. Dizendo-se atacado por
Sílvio e João Ribeiro, afirmando que até então era amigo e até admirador pessoal daquele devido a
sua participação no desenvolvimento das letras pátrias, em Sobre alguns conceitos de Sílvio Romero,
escreve Veríssimo, “O Sr. Senhor Sílvio Romero é o mais completo tipo representativo, que eu
conheço. Nele se reúnem num acordo harmonioso, todas as nossas qualidades e defeitos. Os senões,
como os méritos da sua obra, que nas nossas letras é uma das mais volumosas, são a manifestação
sincera e ingênua da sua personalidade”. VERISSIMO, José. Sobre Alguns conceitos de Sílvio
Romero. In: Que é Literatura? e outros escritos. São Paulo: Lany, 2001.p.237

552
na sociedade e, ao conceber Literatura como reflexo das transformações sociais, analisava esta à luz
de influências do meio, da raça, dos antecedentes históricos e, acima de tudo, pela influência do
mestiço. Era o que denominava de fatores condicionantes. Rigidamente preso ao Determinismo, por
vezes admitindo que os fatores pudessem alterar as causas, trabalhava Sílvio com tudo que existisse
à vista, na elaboração de sua História literária.
Seu desejo maior era a elaboração de uma história literária brasileira, que tratasse de temas
concernentes as mais variadas questões do país, sobretudo, a formação do povo brasileiro, pois
acreditava na existência de um caráter nacional brasileiro; mas queixava-se da falta de documentos,
não apenas para este ou aquele assunto, como também para a elaboração de uma história da literatura
brasileira. Sabia Sílvio que o Brasil era retratado por escritores portugueses, franceses e não raras
vezes por ingleses, homens que viam a literatura brasileira como apêndice da literatura da mãe pátria,
a partir de um viés irreal, motivo das críticas do escritor sergipano. A boa ou a má Literatura, para
Sílvio, só tinha sentido na medida em que o escritor retratasse a situação do país; eis que surge seu
nacionalismo literário avassalador, em que poucos são os literatos que merecem sua aprovação, visto
que jamais contribuíram para a evolução da Literatura brasileira:

as pátrias letras, entre outras muitas lacunas, mostram bem claramente a grande falha
causada pela ausência de trabalhos históricos. Se não existe uma História universal
escrita por um brasileiro, se a nossa própria História política, social e econômica tem
sido apenas esboçada e foi mister que estrangeiros nos ensinassem a escrever; no
terreno da Literatura propriamente dita a pobreza nacional ostenta-se ainda maior”.
4

Os parâmetros que devemos submeter Sílvio são aqueles que integram a concepção literária
do escritor. Antes de tudo literária é para Sílvio toda emanação do espírito ou da inteligência humana,
esta é a lógica de sua farta produção e de seus constantes ataques com os mais destacados escritores
da época, como José Veríssimo e Machado de Assis, e figuras clássicas da literatura brasileira, como
Varnhagen e José de Alencar. Recorrendo a Antônio Candido tomamos conhecimento do modelo de
crítica de Romero, um polígrafo que nunca ficou no campo da critica literária, realizava sempre uma
crítica histórica ou social, era um homem de seu tempo. O maior objetivo de Sílvio era retratar o
Brasil real, daí buscar Sílvio um ambicioso plano de renovação mental e cultural da cultura brasileira,
conforme aponta Antonio Candido.
História da Literatura Brasileira é um quadro “naturalista” dos mais variados aspectos do
país. No primeiro volume, o autor focaliza os fatores condicionantes da Literatura brasileira, como o
meio, a raça, os antecedentes históricos e, sobretudo, a aparição do mestiço, considerado a

4 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1960. p.51

553
singularidade do país. Nesta obra veremos quais os elementos responsáveis pela formação da
psicologia nacional que, por sua vez, justificava a pobreza da literatura brasileira e a pobreza da
literatura pátria no quadro maior da literatura mundial. Aqui a relação entre os atributos morais e a
raça é estreita. As diversas interpretações da significativa contribuição de Sílvio, pela crítica, por
vezes, são injustas, pois o escritor concebia a literatura dentro de um complexo quadro social, político,
moral, econômico, ou melhor, todo o processo social era por si só literário para o escritor. O embaraço
do autor e que deve ser compreendido é sua ambição de entender a cultura brasileira a partir das
teorias que se agarrava como a última novidade em ciência e ao mesmo tempo abrir um leque para
um possível relativismo cultural.
Antes de tudo, torna-se mais fácil julgar o polêmico escritor da História da Literatura Brasileira
do que incorrer no sentido teórico que este atribuía à literatura brasileira. Para tal, é interessante
apontar questões relevantes e indispensáveis sobre Sílvio, situando-o se em seu momento histórico,
tanto com relação à crença num dos elementos da clássica tríade taineana como na “função social do
escritor”, para desvelar as singularidades de maior relevância de sua época, dentre estas a ideia de
caráter nacional. Isto nos leva a considerar questões relevantes para a compreensão da Literatura
empreendida por Sílvio. Embora viesse em seus quase quarenta anos de atividade literária a cometer
injustiças e contradições, como endeusar mestres racistas, reprovar e depois reconhecer homens como
Capistrano de Abreu, Machado de Assis, José Veríssimo, Euclides da Cunha, ou dirigir ásperas
críticas às diversas oligarquias que cobriam o país de norte a sul, cabe não perdermos de vista a
concepção que o escritor possuía de literatura. Sua Literatura, no sentido amplo em que a concebia,
deixa clara a maneira como via o Brasil, o que deveria ser mudado e quais os caminhos para o país
superar o atraso refletido nos mais variados campos. É por isto que o político, professor do Colégio
Pedro II e, depois, lente da renomada Faculdade de Direito do Recife causa tanta polêmica ao mesmo
tempo em que admiração, em função das ásperas críticas que ganharam força e se tornaram cada vez
mais evidentes, justamente devido a sua concepção literária.
Ao conceber a Literatura como produto do meio e da raça, Sílvio não apenas tentava conhecer
o Brasil, denunciando o que considerava ser de primeira ordem, como tratava de avaliar os polígrafos
anteriores, a partir de suas produções literárias, o que gerava um duplo movimento: primeiramente,
julgava uma obra literária a partir da representação social que esta embutia; em segundo lugar, não
concebia a produção literária sem ligação alguma com as transformações ocorridas na sociedade, que,
por sua vez, seria reflexo dessas transformações sociais. O anseio de Sílvio, segundo Antonio Candido
era julgar, realizar uma espécie de assepsia do atraso brasileiro a partir do conhecimento literário.

554
Com todos esses elementos em mão, pode repetir no Brasil a lição corrente na
Europa- que o fenômeno literário não era uma criação saída ex-sponte da cabeça do
escritor, fruto da razão e da vontade aplicadas ao sentimento, mas um produto,
formado pelo concurso da vontade humana e dos fatores externos que lhe indicavam
o caminho e lhe condicionavam as decisões. Pode, numa palavra, introduzir entre a
noção de determinismo literário, o escritor sendo fruto da cultura, e esta um produto
da raça, do meio, das tradições e das influências estrangeiras, submetida, como todos
os fenômenos do mundo, a lei geral e básica da evolução transformista. 5

Sílvio busca, destarte, em sua História da Literatura Brasileira, encontrar o caráter nacional
brasileiro. Para isso, incorreu numa ampla análise histórica, não deixando de adentrar aspectos
sociais, econômicos e políticos brasileiros. Erige esta história literária partindo de Scherer, para quem
duas são as maneiras de representação da Literatura: a primeira é pender para as considerações gerais,
buscando, por meio dos efeitos, as respectivas causas; a segunda é basear-se na análise específica dos
poetas e escritores. Sem documentação necessária para traçar a “História íntima, pitoresca, viva e
anedótica dos escritores do Brasil” 6, Sílvio optava por uma análise literária em que os fatores que
condicionavam o processo de criação textual eram da mais alta relevância, não existindo o fenômeno
literário em si mesmo, apenas os aspectos que condicionavam a Literatura de um país: “um
conhecimento, que se não generaliza, fica improfícuo e estéril, e, assim, a História pituresca deve
levar à História filosófica e naturalista”. 7
Não fazia sentido para Sílvio se a representação literária brasileira desse ou daquele autor não
se generalizasse. Com este método, queria Sílvio buscar um ponto de partida para consolidar o
elemento diferenciador da nossa História para assim criar a história brasileira. Como em outros
estudos, no campo da História literária, não podia ser diferente: munia-se do método crítico para dar
status de verdade a sua análise da História literária. Nessa perspectiva, tornava-se inevitável conhecer
a História do Brasil, a ação do colonizador, a ação do meio, das ideias estrangeiras, juntamente com
a influência de índios, negros e mestiços, eram esses os elementos condicionantes da criação literária.
Quais escritores figurariam, então, na História literária de Sílvio? Somente aqueles que
viveram, lutaram e morreram pelo Brasil. Sem sombra de dúvida, História da Literatura Brasileira
é a obra mestra de Romero porque trata de uma apaixonante empreitada pela busca do caráter
brasileiro, donde se faz indispensável a leitura dos inúmeros problemas nacionais do país, uma vez
que estes, na percepção do autor, tinham íntima ligação com a psicologia nacional. Nesta obra mestra,
buscava Sílvio analisar os elementos que determinavam o brasileiro, com ênfase na aclimação do

5 CANDIDO, Antonio. Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero. Tese de livre docência
apresentada a FFLCH, São Paulo, 1945. p. 156. Ainda do autor. Silvio Romero; teoria, Crítica e
História literária. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos; São Paulo: Edusp, 1978.
6 Ibidem. p. 55
7 Ibidem. p. 55

555
mestiço, por sua importância racial, sem a qual, o quadro “literário” brasileiro ficava sempre
incompleto. Dessa maneira, o bacharel discordou de diversos escritores, por escreverem galerias e
preterirem, a seu ver aspectos singulares da literatura do país. Afirmava que:

Não tratar-se-á de saber qual foi o primeiro brasileiro que escreveu uma poesia ou
um livro, e outras tantas questões impertinentes e ociosas. Nada se terá que ver com
alguns frades despreocupados ou ociosos que mataram o tempo a escrever versos
latinos, ou a publicar sensaborias em Roma. São Homens que nunca viveram na
consciência da pátria, não foram forças vivas ao seu serviço. Foram indiferentes na
vida e sê-lo-ão sempre na morte e no esquecimento. Não merecem uma justificativa
e ressurreição histórica. 8

A Literatura propugnada por Sílvio era uma Literatura que tratava dos aspectos sociais,
econômicos e políticos brasileiros. O apego de Sílvio ao Naturalismo da época e a utilização da Crítica
como instrumento de validação para seus argumentos são a demonstração cabal de sua busca pelo
que caracterizava o brasileiro em relação ao europeu. Estas questões integram sua concepção literária
como parâmetro de avaliação do imenso leque cultural de seu país. Para isso, Sílvio farejava a verdade
documental, reconhecia a erudição de Varnhagen, tateando a verdade histórica em busca de um ponto
de partida para suas análises. Conforme Bloch, “desde que nós não resignemos a registrar pura e
simplesmente o que dizem as nossas testemunhas, desde que entendemos forçá-las a falar, mesmo
contra sua vontade, impõe-se mais do que nunca um questionário. E é esta, efetivamente, a primeira
necessidade de qualquer investigação histórica bem conduzida”. 9
Homem preocupado com os mais variados ramos do conhecimento, donde a Crítica presidiria
os mais variados campos do saber, o Sílvio que queremos aqui elucidar mostra-se como um homem
de seu tempo, quando o naturalismo europeu era a palavra de ordem. Tal assertiva nos basta para
encararmos o pano de fundo de suas análises, num contexto acreditado por toda uma geração de
polígrafos, que, assim como a Biologia e a Mecânica, a História era possuidora de leis. O autor
buscava, então, historiar a Literatura brasileira, com base no princípio geral que fundamentava todos
os ramos do conhecimento: o princípio da evolução. Não adianta buscar em Sílvio aquilo que ele não
se propôs, muito menos elaborar perguntas fora de seu tempo e longe de suas preocupações.
Salientamos mais uma vez: Literatura para Sílvio era toda e qualquer manifestação da inteligência
humana!
Em Sílvio, a diferenciação entre História e Literatura é bastante tênue, é de vital importância
compreender que o escritor buscava encontrar o brasileiro, trazendo em sua História da Literatura

8 Ibidem. p. 55
9 BLOCH, Marc. Apologia a História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 78

556
Brasileira os mais ilustres escritores, das mais variadas áreas, que de uma forma ou de outra haviam
contribuído para o conhecimento do país. Almejava, assim, encontrar o gênio nacional, ou seja, o
povo, a vida brasileira, as manifestações das pessoas mais simples, enfim, o Brasil que estava por vir
depois do contato com o português. A questão literária em Sílvio tinha fundamentação histórico-racial
e só fazia sentido se adentrasse na formação do povo brasileiro e contribuísse para a formação deste,
o que parece ser um movimento dúbio. Para ele, “trata-se de saber se, na História literária de um
povo, devem entrar, como parte integrante desse povo, todos aqueles que dele se ocuparam” 10.
A paixão pelo Brasil advindo daí o forte caráter nacionalista é um instrumento por demais
relevante na compreensão da contribuição literária dos escritores avaliados por Sílvio, pois dela
surgem às reprovações aos vários escritores e suas respectivas obras, marcando um novo olhar na
história literária do país. Em sua História literária, jamais se separam o homem polêmico do homem
erudito, sempre amante das coisas simples, o patriota com espírito de província, o ilustrado folclorista
apaixonado pelas missas aos domingos e reisados em sua querida Lagarto, e acima de tudo, avulta o
desejo de libertação da História de um país que era retratado a partir dos escritores portugueses, a
literatura brasileira era mera apêndice da literatura portuguesa. Historiar a Literatura brasileira era
mostrar o Brasil e, para isso, não havia como deixar de lado os grandes acontecimentos de nossa
História pátria. Desse modo, argumentava que “o escritor que tivesse lutado para elevar o que
diferenciava o país com relação à antiga metrópole merecia os aplausos de Sílvio, mas “quem tiver
sido um mero imitador português, não teve ação, foi um tipo negativo”11
Seguindo as diretrizes do Naturalismo europeu, a História literária de Sílvio tinha a função de
esboçar o quadro racial, visto que “uma Literatura tem uma base, tem elementos e tem órgãos. A base
da nossa é o sentimento do brasileiro, como nação à parte, como produto étnico determinado”12. O
autor preteriu toda a História literária brasileira passada porque argumentava que esta tratava-se de
quadros isolados e deixava de lado o mestiço, o elemento genuinamente nacional. Iniciando sua
História literária desde o contato português com os povos “bárbaros”, sempre considerando a raça, o
escritor concluía que:

não sendo o fito deste livro a pretensão de ser uma História exaustiva da Literatura
brasileira, tendo só por alvo formular uma teoria geral de nossa intuição literária,
bem se compreenderá que nele não se agitem uns quantos problemas impertinentes,
tais como: qual o primeiro, ou os primeiros brasileiros que escreveram uma obra
qualquer, e outros semelhantes. Obrigado a tratar somente dos espíritos autonômicos

10 ROMERO, Sílvio. Estudos de Literatura Contemporânea. Rio de Janeiro: Imago; Aracaju;


Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 2002. p. 124
11 Ibidem. p.54
12 ROMERO, Sílvio. História da Literatura brasileira. Op. Cit. p. 374

557
e instigadores do pensamento nacional, nada tenho a falar sobre alguns enfastiados
que, se diz, escreveram aqui no primeiro século alguns versos latinos, ou coisas, da
laia semelhante, que se perderam. São quase todos tipos mortos, estéreis, inúteis.
Sufocados pelo culturanismo jesuítico, desprendidos da consciência nacional, para
cuja determinação nada contribuíram, passaram a vida a versejar sensaborias e não
tem o direito de figurar na História 13

Não sendo a Literatura brasileira a simples descrição da natureza do país, como pintaram os
escritores do romantismo, a simples descrição dos selvagens com seus costumes, dos cantos
indígenas, a persistência do elemento português, de todos os colonos emperrados, de todos os
governadores e de todos os reis da metrópole, concluía Sílvio que a Literatura “tem uma base, tem
elementos e tem órgãos. A base da nossa é o sentimento do brasileiro, como nação à parte, como
produto étnico determinado; os elementos são as tradições das três raças; os órgãos são os nossos
mais notáveis talentos, todos aqueles que sentiram como brasileiros”. 14

O brasileirismo e a atenção do escritor pelo genuinamente nacional, no caso, o mestiço, se


mostra em primeiro plano para o conhecimento do Brasil. Nessa ótica, o crítico avalia os prosadores
e poetas na formação da História literária nacional. É pela literatura que Sílvio buscará a participação
do negro e investigará sua contribuição. Utiliza-se de uma Filosofia da História para validar a
importância do mestiço brasileiro e sua História literária se transforma assim numa História da
formação do povo brasileiro, o que leva o ensaísta a avaliar quais os escritores que avaliaram a
contribuição de cada uma das raças, sobretudo, a do mestiço. Discorda de conhecidos formuladores
da literatura nacional, como Buckle, de Martius e de Varnhagen justamente porque tais escritores não
trataram, a seu ver, da formação racial brasileira. Com relação a Martius afirmava que

o famoso botanista, no escrito citado, dá apenas um conselho e faz uma enumeração


meramente exterior dos elementos que entraram em nossa população. Não os estuda;
não os aprecia em sua ação mútua; não os mostra fusionando-se e reagindo uns sobre
outros; não tenta a determinação nem ao menos vaga, do que devemos a cada um
dos três fatores principais de nossa nacionalidade em particular e a todos eles
conjuntamente. Deixa o que é fundamental na questão, em completo esquecimento
o ponto saliente do problema: o mestiço, sobre quem peculiarmente deveria insistir,
estudando, repetimos, o especial quinhão de cada fator e definindo o caráter do
resultado. 15

Não era outra a razão da discordância de Sílvio ao Visconde de Porto Seguro:

13 Ibidem. p. 359
14 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Op. Cit. p. 373
15 Ibidem. pp.16-17

558
De certo tempo a esta parte, é de notar a insistência com que se tem andado, com
evidente preocupação, a proclamar Varnhagen o criador da História da Literatura
brasileira!...Criador... Como e por quê? Se a própria História geral, Varnhagen não
a criou, como poderá ter criado a História da Literatura? Varnhagen não fez mais do
que, sem plano, sem sistema, sem doutrina, sem Filosofia, sem análise, sem síntese,
escrever meia dúzia de biografias destacadas de poetas e escritores e a introdução da
seleta a que pôs o nome de Florilégio da Poesia Brasileira: pouco mais fez do que
repetir Barbosa Machado, Januário Barbosa, Noberto Silva, Pereira da Silva e outros
mais. Varnhagen não tinha capacidade teórica e filosófica, e pouco além ia de
pesquisas puramente eruditas. Se fazer biografias e apurar datas e fatos anedóticos
fosse criar História literária, não haveria livro mais fraco em o gênero do que a
História da Literatura Inglesa – de Taine, porque ali o grande mestre nem faz
biografia, nem apura questiúnculas bibliográficas. 16

Concluía Romero que:

Não é verdade que Varnhagen tivesse, como alguns tem afirmado, precedido
Fernando Denis e Noberto Silva no tratar historicamente as coisas literárias
brasileiras. Neste particular são-lhe não só anteriores os escritos de Barbosa
Machado, Bouterweck, Sismondi, como os primeiros e decisivos de Fernando Denis,
Noberto Silva, não falando já nos de Januário Barbosa, Almeida Garret, Nunes
Ribeiro, Pereira da Silva, Gonçalves de Magalhães e outros.
Não é também verdade que tivesse, como igualmente se tem dito, sido o autor da
História Geral do Brasil quem primeiro tivesse contado o gentio entre os fatores de
nossa Literatura. Esteticamente, tinham-no feito antes dele algumas dúzias de poetas;
criticamente, todos os autores acima citados. Cumpre advertir, finalmente, que o
termo fator é mal empregado em relação a esses críticos e historiadores: estes
consideram sempre o índio mais como um assunto a ser tratado pela Poesia e pelo
romance do que com um fator da Literatura 17

Já sabendo da concepção literária de Sílvio, o que explica suas investidas nas mais variadas
áreas do saber, sua História literária repousa sobre a formação racial do brasileiro, advindo dai sua
contribuição como fecundo intérprete da cultura brasileira ao defender que essa História deveria
buscar as riquezas folclóricas existentes nas mais recônditas paragens brasileiras: não bastava ao
historiador literário falar do gênio criador em busca da musa ou da deusa da Arte, como faziam os
antecessores de Sílvio, que arrolavam simples Florilégios e Bosquejos. Influenciado pelo romantismo
alemão que gerou escritores como os irmãos Grimm, o gênio nacional era para Romero o que havia
de mais íntimo numa sociedade, era a base formadora de um país que se queria nação, nossa
singularidade era nosso meio diferenciador juntamente como nosso mestiço. Incutindo a ideia de
escritor e sua função social a Literatura deveria, assim, representar os elementos intrínsecos para a
gestação de um povo, num Brasil ainda não constituído de maneira homogênea, mas que Sílvio
sempre sonhou representar em sua História literária.

16 Ibidem. p.117
17 Ibidem. pp. 312-313

559
Literatura, para Romero, deveria servir de agente transformador, completamente diferente da
concepção literária do escritor preso à forma e ao estilo como fora o caso de Machado de Assis e José
Veríssimo. Sílvio não é o tipo de intelectual de gabinete, como foram Martius, Varnhagen e os
escritores viajantes a serviço de suas nações preocupados em esmiuçar o quadro da natureza,
dividindo e classificando as espécies, mas sim um escritor que adentra aos mais variados campos do
saber, dentre estes, o campo que arregimentasse o povo, porque este povo era de fundamental
importância na formação brasileira devido as suas tradições culturais.
Sílvio era um herderiano, acreditava na ideia de alma nacional, nesse momento o aspecto de
uma literatura nacional era parte ou a representação direta da identidade nacional. Com relação à
especificidade literária, a nação revelaria a singularidade nacional, sendo o escritor seu grande
artífice. Sua visão larga sobre literatura buscava encontrar o povo brasileiro, era hora de resgatar os
esquecidos da história brasileira. Dentre as tantas influências sofridas por Sílvio, Herder foi o escritor
que mais profundas marcas deixou. (ZILBERMAN, 1994; WEBER, 1997; THIESSE, 2000)
Romero buscou tenazmente a índole da Literatura brasileira confiando na importância do
povo, razão de seu interesse em avaliar a contribuição racial desse povo, para idealização de seu
projeto nacional. O escritor que tivesse lutado para elevar o que diferenciava o país em relação à
antiga metrópole merecia os aplausos de Sílvio, mas “quem tiver sido um mero imitador português,
não teve ação, foi um tipo negativo”. Era Sílvio um taineano, que pensava que a Literatura possuía
suas causas, sofria influências, bem ao modo de Sherer e Lanson; não foi menos positivista por
valorizar a importância das origens dos acontecimentos em suas narrações acerca da evolução dos
gêneros literários. Confiou em Schlegel devido ao paralelismo histórico das civilizações, no que
advogava que primeiro era preciso conhecer a Literatura ocidental para analisar a Literatura brasileira.
Dificultoso é querer entender como Sílvio analisava as mais variadas formas de manifestações
culturais sem este Método crítico18 , o que leva muitos de seus intérpretes a reduzir sua fecunda

18 É de fundamental importância compreender o artigo Da Crítica e sua exata Definição.


Romero sofrera influências de escritores como Renan, Taine, Lessing, Émile Zola, grandes
conhecedores da História universal e conhecedores da Crítica moderna, mas o bacharel não estava
preocupado com a mera apreciação Estética da Arte pela Arte. Não bastava para Sílvio conhecer a
gênese literária, acreditava que havia algo de impessoal marcado pelo momento da época refletindo
na criação. Tendo analisado os diversos modelos de Crítica aplicada aos diversos ramos do
conhecimento que continuavam presos à velha Retórica, Impregnado de tanto cientificismo, o modelo
de Crítica de Sílvio transcendeu os de seus mestres e foi determinista. Em todas as análises, amparava-
se nas leis, na lei máxima que é a evolução transformista para interpretar a cultura brasileira,
considerada por ele atrasada devido à pobreza material e ao analfabetismo dos 18 milhões de
habitantes. Fez Sílvio crítica sociológica e não literária, escreveu poemas fracos no início de sua
carreira, era um exímio conhecedor da História universal e enfrentou o drama da objetividade.
Conhecia bem os críticos das áreas da religião, da arte e, sobretudo, da “Crítica científica”, modelo
maior do que considerava ser a Crítica moderna. Passara o olhar pelas teorias do conhecimento - fosse

560
atividade literária em função de sua truculência como escritor, seu guerrear literário. Soma-se a isto
seu determinismo e suas contradições que torna a figura do escritor emblemática e singular. Quando
não é esta a imagem que se tem, logo aparece a afirmação de que o escritor sergipano foi um bom
historiador, muito mais sociólogo do que crítico literário, mas um péssimo poeta. Assim, exige-se de
Sílvio, conforme os padrões de análise de sua época e que ainda nos deixa marcas, que corrente se
liga o ensaísta, seja no campo filosófico ou literário. Esta questão só dificulta a análise de Sílvio
enquanto historiador literário, mas lembremos de que o próprio Sílvio agitou como nenhum escritor
de sua época as ideias científicas e lutou tenazmente para ser reconhecido como inaugurador do
Naturalismo no Brasil. O fato de ter sido um escritor que escolheu a crítica como a área mais
conveniente a sua personalidade, como ele próprio chega a afirmar no questionário a João do Rio,
não nos autoriza a reduzir a amplitude de sua contribuição literária pela influência que recebeu de
escritores racistas como Ammon, Lapouge, e, sobretudo, Gobineau. Se Sílvio mitigou seu
naturalismo como aponta Maria Rezende, por outro lado possibilitou relativizar o próprio relativismo
que adotara, o que faz de si uma figura ímpar, mas de fundamental importância na historiografia
brasileira. Cabe ao leitor compreender a não separação entre a História e Literatura e as nuances que
fundamentam a crítica de sua época, como o elemento racial que embutido na ideia de caráter nacional
dizia o grau de adiantamento da sociedade.
Todos esses aspectos derivavam de sua ampla visão literária e permitem atribuir ao escritor
uma face humanística, uma vez que elabora sua Literatura a partir da visão de conjunto organicista e
funcional (o que era comum na época), quando o Romantismo lançava a visão para a construção de
uma História literária, que propiciasse desvendar a importância do povo para formação das nações.
Dali em diante, como pontua Carpeaux (1959), há um alargamento de horizontes e Romero fora
profundamente influenciado por toda uma herança goethiana, de busca de uma alma nacional.
Romero trouxe ao cenário brasileiro de maneira contundente a importância da cultura popular,
dos menos favorecidos e prestigiados esquecidos pelas academias e grupos literários da Corte, porque
acreditava na relevância destes como ponto de partida para a compreensão do Brasil, para a formação
de seu projeto de nação e de um futuro melhor. Se os erros e as contradições são tão ressaltadas por
seus críticos, acompanhado pelo determinismo racial que tanto reduziu sua visão, tal ordem de coisas
não subtrai a importância que foi como intérprete brasileiro, historiador e crítico literário. Romero

o sensualismo-empirismo de Hume ou o criticismo Kantiano -, buscando o método mais seguro para


analisar o estágio de um Brasil miserável e coberto pelo cadinho de raças e sub-raças. Portador de um
conhecimento enciclopédico, não serviria para Romero uma Crítica que não revelasse os fatores ou
causas do atraso brasileiro e uma vez identificados esses problemas, buscou subtrair seu país do atraso
cultural e da situação de miséria.

561
abriu caminhos, tornou a leitura indispensável para escritores posteriores como Gilberto Freire,
Câmara Cascudo, Paulo Prado, Mario de Andrade, fomentando e acirrando os tempos ébrios do
modernismo brasileiro. Sem as compilações dos cantos e contos populares de Sílvio seguramente o
Brasil seria menos verde-amarelo!
Quando Sílvio criticava o indianismo tupiniquim, no início de sua trajetória intelectual,
criticava a priori a Corte como centro não apenas de centralização literária coberta de vespas, mas de
uma imagem de Brasil que não olhava as demais províncias do país, como por exemplo, o estado de
Sergipe, que o escritor chamava atenção para o esquecimento de uma terra de bons poetas e escritores.
Para Sílvio, a História literária, enquanto tal seria julgada pelo parâmetro da diferenciação nacional
mostrando o que diferenciava o Brasil de Portugal e outros países europeus, para só assim se falar em
uma literatura plenamente brasileira. Quanto mais um autor lutou, por meio de sua História literária,
pela diferenciação desta Literatura, mais contribuiu para sua formação e, como consequência, se
mostrou brasileiro. Por isso, um dos parâmetros de Sílvio na seleção de escritores brasileiros é a
paixão pelo Brasil. A História literária elaborada por Sílvio é a história da formação do Brasil e de
seu povo, o que o levou a analisar a literatura de grandes cronistas e viajantes, pois foram estes os
primeiros escritores que elaboraram uma representação do Brasil, visando o conhecimento deste.
São estes cronistas, principalmente, o jesuíta Anchieta, que Sílvio combate, haja vista que, em
suas obras, traça um quadro melancólico do território brasileiro. No entanto, ao criticar esses
primeiros cronistas apoia-se em alguns deles como Nóbrega, Aspicuelta, Navarro e Gandavo, no
combate à imagem melancólica de Anchieta, visando despertar a atenção para as diferenças entre
Brasil e Portugal, defendendo os colonos que habitavam a nova terra, juntamente com seus filhos
nascidos no Brasil, que viam com melhores olhos as belezas da terra.
Entretanto, para Sílvio o sentido teórico da literatura brasileira não é este, ainda que os novos
brasileiros tenham um melhor caráter com relação aos portugueses. O ponto nevrálgico para o escritor
é o surgimento do mestiço como elemento influenciador da cultura e da vida espiritual do país. A
seleção dos elementos que Sílvio levava em consideração para a constituição de sua História literária
passa irremediavelmente pelo viés etnográfico quando de sua empreitada modernizante num país
inferiorizado racialmente e culturalmente, não mais rural, e sim urbano e industrial. Típico de seu
pensamento e do personagem polêmico que foi, considerava que nunca algum escritor havia escrito
uma História do Brasil, considerando os reais elementos formadores dessa História.
Reprovando quase tudo que havia sido escrito sobre o Brasil, não sabia Sílvio por onde
começar, pois o que existia de trabalhos escritos acerca do país eram trabalhos de cunho corográfico,
biográfico, crônicas, histórias parciais, que não ofereciam um quadro completo de nossa história.

562
Diversos são os elementos considerados por Sílvio em sua análise literária, mas o pano de fundo é a
formação brasileira, visto que

os maiores ou menos gabos que nos merecem a terra e seus habitantes, já o dissemos,
as maiores ou menores censuras que lhes façamos, questão afinal do temperamento
de quem escreve ou da feição do tempo em que vive, não são um critério rigoroso e
completo de caracterização de nossa índole, como povo, em qualquer das esferas em
que nos tenhamos excercitado. 19

Somente trazendo a singularidade brasileira, no caso, o caráter nacional mestiço tanto no


campo da raça como da cultura é que Sílvio erige sua História literária que, para ele, só faz sentido
porque busca freneticamente mostrar nosso agente diferenciador. Era o mestiço o principal
elemento de nossa cultura, base da formação cultural do país, enfim, era a base de nossa História
literária. Muitas foram as Histórias literárias do país, juntamente com artigos esparsos, mas é
Gregório de Matos que merece os aplausos de Sílvio, porque “é a mais perfeita encarnação do
espírito brasileiro, com sua facécia fácil e pronta, seu desprendimento de fórmulas, seu desapego
aos grandes, seu riso irônico, sua superficialidade maleável, seu gênio não capaz de produzir novas
doutrinas, mas apto para desconfiar das pretensões do pedantismo europeu”. 20
Ressentia-se Silvio da ausência de trabalhos históricos, políticos e sociais, pois sua visão
21
elástica do fenômeno literário levava-o a afirmar a pobreza de nossas letras, já que escritores
nacionais e estrangeiros não trataram de retratar o Brasil, quando muito chegaram a falar do país com
os olhos voltados para Portugal, uma vez que pensaram a Literatura brasileira como “apêndice da
Literatura portuguesa”. Portanto, escritores como Ferdinand Wolf, Bouterweck, Sismondi, Denis e
Garret foram simples organizadores da História literária de Portugal, da qual, a História da Literatura
brasileira seria extensão. Com tamanha pobreza de obras que retratavam o Brasil como queria Sílvio,
concluía que “Denis foi o primeiro a fazer um quadro mais ou menos inteiro de nossa Literatura,
quadro sólido e incorreto, é certo, mas que se impõe, por estar no singular. E já lá vão bastantes anos
que o livro foi publicado, e até bem pouco era o compêndio oficial de nossos cursos!” 22
Assim, reiterava que nem os escritores portugueses, nem os escritores brasileiros traçaram um
quadro completo da História literária brasileira. Os portugueses escreveram sobre o Brasil a partir do
olhar lusitano, ao passo que os escritores nacionais apenas traçavam quadros isolados. Ao olhar de

19 ROMERO, Sílvio. Quadro Sintético da Evolução dos Gêneros na Literatura Brasileira. Porto:
Livraria Chardron, 1911. p.13
20 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Op. Cit. p. 365
21 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Ouro sobre azul, 2011.
22 Ibidem. p. 51

563
Sílvio, era indispensável, na representação da Literatura brasileira, identificar que o mestiço era o
elemento que diferenciava o Brasil e servia de símbolo para a formação da literatura nacional. As
Histórias do Brasil do momento resumiam-se a relatos de viagens, chegadas de donatários e capitães
mores, governadores, vice-reis, bispos e jesuítas. Faltava a História brasileira no qual figurasse “o
eterno sofredor, o eterno agitador, o eterno herói – o povo” 23. Arremata Sílvio que

o verdadeiro historiador do Brasil deveria ser bastante naturalista para no pórtico de


seu livro distender a descrição vasta, exata, verdadeira da terra nacional,
determinando-lhe as zonas, os climas, os aspectos, todos os cem modos diversos,
pelos quais os meios colaboram com os homens; deveria ser bastante etnologista
para compreender e amar as diversas raças, que levantaram n'este país as suas tendas
e agitaram à luz do sol brasileiro seus músculos de combatentes, travando a luta da
vida, a luta da civilização; para entendê-las em seus cantos, em suas aspirações;
deveria ser bastante filantropo e democrata para rir e chorar com o povo, segui-lo na
sua formação gradativa e suas transformações progressivas, assistir a geração do
nosso terceiro estado e da nossa burguesia, acompanhá-los na vida municipal, nas
agitações da vida política, nos anelos de liberdade; deveria ser bastante economista
para surpreender o povo no seu trabalho, tomar nas mãos os fios determinadores da
formação de nossa riqueza publica e particular, mostrando a irradiação d'esse pólipo
enormissimo — a escravidão —, polipo de nova espécie, fecundo, produtor, sugado
pelo parasitismo imenso e infamante, o grande crime da raça colonizadora, o grande
crime que tem feito, que ainda hoje faz, a nossa historia ser uma obra de privilegio e
iniqüidade; deveria ser bastante filósofo — para ter uma nítida ideia da cultura e dos
destinos humanos, compreender a formação das pátrias recentes, o advento d'essas
nações coloniais, mestiçadas, herdeiras de antigas glorias e antigos ideais, prestes a
transformar-se, urgidas por necessidades novas, deveria ser bastante erudito para
conhecer a fundo todos os fatos, todas as peripécias do passado nacional, deveria,
finalmente, ser bastante poeta para construir de tudo isto uma obra artística, viva,
palpitante de seiva e de entusiasmo. 24

Vale lembrar que todos os escritores anteriores a Sílvio não merecem crédito por parte do
crítico por ser a Literatura vigente, no Brasil, especulativa, fundada no mero traço biográfico, nas
anotações antológicas, cuja maior preocupação seria enaltecer o escritor. Os antecessores de Sílvio,
com exceção de Denis, - considerado o fundador da História literária brasileira -, escreviam seus
apêndices, antologias, parnasos, poesias, presos à visão de um Brasil como extensão da Literatura
realizada pelos escritores lusitanos, historiando o país a partir de um olhar português.
Reprovando nomes como Rocha Pita, Taques, Jaboatão, Madre de Deus, Southey, Abreu e
Lima, Macedo Soares, Francisco Lisboa, Candido Mendes, Joaquim Caetano da Silva, dentre outros,
reconhecia Sílvio que Varnhagem, embora tenha escrito a “História Geral do Brasil, livro notável

23 ROMERO, Sílvio. Novos estudos de literatura Contemporânea. Rio de Janeiro: Garnier, s.d.
p. 7
24 Ibidem. p. 7

564
pelas pesquisas que revela, pela erudição que desvenda” é “livro medíocre pela falta de crítica, pela
ausência de intuições teóricas, pela aspereza e mortificação do estilo”. 25

Considerações finais
O encontro26 entre a História e a Literatura em Sílvio, como em tantos outros escritores que
contribuíram para o conhecimento do Brasil foi determinante na confecção de uma História literária
brasileira. Com erros e acertos, contradições, infinitas polêmicas ao longo de seus quarenta anos de
atividade literária, montando sob uma estrutura naturalista, como era moda em sua época, Sílvio
procurou tenazmente conhecer o Brasil. Com um discurso antes de tudo histórico situado num
determinado momento de nossa história, imbricado pela busca literária, Sílvio incumbiu-se de
identificar o Brasil de sua época. Poderíamos usar a expressão textos de fundação, de Manoel Luiz
Salgado Guimarães, em que o historiador não vê separação entre a atividade literária e discurso
historiográfico.
Sílvio colocou problemas de ordem geral, que iam a seu ver, da nova maneira de interpretar o
Brasil até a apatia do caráter brasileiro. Salgado Guimarães analisa a formação dos discursos
historiográficos, de modo específico, o do Brasil oitocentista, imprescindível para confecção de um
discurso literário, sempre histórico e de estreita ligação com as classes dominantes. Reflexo de toda
uma estrutura econômica, por sua vez, ligada às classes dominantes, a escrita literária reflete a
sociedade do momento 27. A abordagem do historiador é relevante para pensarmos a importância
literária de Sílvio, quando sabemos que é de sua ampla visão literária que os inúmeros temas
brasileiros são abordados, que o escritor tanto analisou na descrição do Brasil “real”.
Romero elaborou sua História literária querendo conhecer a formação do povo brasileiro
orquestrada pela lei da Evolução e pela lei do mais forte. No fundo, buscou chamar atenção para a
diferença do Brasil, por meio da figura genuína do mestiço, acreditando que nossa literatura como as
literaturas já formadas, deveria expressar o estado emocional e intelectual das ideias e dos sentimentos

25 ROMERO, Sílvio. Estudos de literatura Contemporânea. (edição comemorativa). Rio de


Janeiro: Imago Editora; Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 2002. (1ºEd. 1884). p. 174
26 CHARTIER, Roger. Conferência proferida por Roger Chartier, em 5 de novembro de 1999,
no Salão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, que abriu o debate que se segue com João
Adolfo Hansen. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, pp. 197-216.
27 GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Uma história da história nacional: textos de fundação.
In: LIMA, Ivana Stolze; CARMO, Laura do (Org.). História social da língua nacional. Rio de Janeiro:
Edições Casa de Rui Barbosa, 2008. p. 399

565
de um povo. Conforme Sílvio nosso povo não era o índio, o negro, ou o português: era antes de tudo
a soma de todas estas parcelas atiradas ao cadinho de raças do Novo Mundo, no caso, o mestiço. 28

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28 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Op. Cit. p. 371

566
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_____Provocações e debates. Contribuições para o estudo do Brasil Social. Porto: Imprensa


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VERISSIMO, José. Que é Literatura? e outros escritos. São Paulo: Lany, 2001.

567
ATRAVESSOU O SAMBA: AS TRANSFORMAÇÕES URBANÍSTICAS NA CIDADE DO
RIO DE JANEIRO. Uma análise do bairro do Catumbi.
1
ALMEIDA, Cintia Oliveira de.

O presente trabalho pretende abordar as reformas urbanas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro nas
décadas de 1960 a 1984. Para isso, escolhemos como objeto de análise o bairro do Catumbi no intuito de
investigar como tais processos urbanísticos se constituíram no seu espaço buscando apreender suas causas e
consequências. A partir dos instrumentos teóricos e metodológicos da História Oral buscaremos analisar as
entrevistas coletadas com os moradores do bairro.
O trabalho será dividido em duas partes. Na primeira será apresentado um panorama das
transformações urbanísticas ocorridas no Rio Janeiro, entre as décadas de 1960 e 1984 e, que interferiram
diretamente na espacialidade do bairro do Catumbi, afetando as relações de sociabilidade compreendidas nas
suas localidades e, alterando o seu valor de uso. A segunda será destinada a expor os depoimentos recolhidos
de alguns dos moradores e moradoras, mais antigos do bairro. O propósito do uso da História Oral nesta
pesquisa é de constatar os impactos das transformações urbanas na vida daquelas pessoas. Os relatos são
cruciais, permitindo, assim, compreender o passado do bairro que resiste através da memória, mesmo que, a
todo o custo, o poder público tenha se esforçado para relegar ao bairro um lugar de esquecimento.
OS PROCESSOS DE SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL DO BAIRRO DO CATUMBI
“(...)Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do
Catumbi. (...)” (Assis, 2004, p. 12)
‘'Rio sombreado’’ ou ‘'Rio na Sombra’’ (Gerson, 2015), este é o significado, na língua Tupi, de
Catumbi. Um dos bairros mais antigos da época do Império. As terras que abrangem essa área e suas
redondezas foram doadas por Estácio de Sá aos jesuítas, ainda na época Colonial. (Nunes, 1978). A partir da
expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, em 1759, aos poucos as terras que lhes foram concedidas,
passaram a ser ocupadas permitindo assim os primeiros passos do povoamento de bairros cariocas como, por
exemplo, Catumbi e Tijuca (Fridman, 1999, p. 342).
Brasil Gerson em “A História das Ruas do Rio”, uma obra de grande valor para a história do Rio de
Janeiro, revela trechos da carta escrita pelo naturalista João Emanuel Pohl, vindo ao Brasil na comitiva da
Imperatriz Leopoldina, onde este mencionava que o bairro era um dos lugares mais insalubres da época. Tal
afirmação, pode-se dizer, está atrelada ao fato de que o bairro está assentado numa área alagadiça, cercado
de rios e mangue. Não obstante, a região era cercada por belas chácaras e casarões de grandes proprietários
de terra.
Como exemplo da grande extensão das terras, verifica-se a chácara de Dionísio Orieste, que foi
vendida à irmandade de S. Francisco de Paula (em 1851) para a construção do Cemitério que se encontra até
hoje no mesmo local de origem. Memoráveis enterros foram celebrados no cemitério do Catumbi, a
exemplo, o de Duque de Caxias e do músico, Catulo da Paixão Cearesnse. Havia também a chácara do Dr.
Francisco Alves da Cunha, o Barão do Catumbi, a dos Coqueiros de Francisco Xavier Pires, a do barão de
Canindé, entre outras muitas (Gerson, 2015).
Foram muitos os moradores abastados que ostentavam riqueza e prestígio à época Imperial. A casa
do jornalista e deputado Justianno da Rocha, era famosa pela arquitetura refinada e por celebrar grandes
bailes. Ao longo do tempo, com o aumento da população do Rio de Janeiro, era necessária a construção de

1
Pós-Graduanda do curso de especialização de Ensino de História da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, política e cultura
do colégio Pedro II. Cintia.oliveira18@gmail.com.

568
moradias e, para isso, era preciso abrir espaço. Foi assim que muitas chácaras foram retalhadas para a
abertura das ruas.
A partir do século XIX a cidade começa a assistir a divisão do espaço urbano em classes sociais. É
notório que uma parte da população com poder de mobilidade, passa a tomar os rumos da zona sul, em
especial Catete, Gloria e Botafogo. Todavia, as camadas com pouco poder aquisitivo iniciam, à medida que
são feitos os trabalhos de drenagem do Mangue e do Saco de São Diogo, o processo de ocupação da Cidade
Nova e, em consequência disso, os bairros vizinhos sofrem um processo de intensificação da sua ocupação.
(Abreu, 2013).
“A rapidez da ocupação dessa “Cidade Nova” foi tão intensa que, a partir de 1865, criou-se a
freguesia do Espírito Santo, que tinha jurisdição sobre os atuais bairros do Catumbi, Estácio, Rio
Comprido e parte de Santa Teresa, tendo sido desmembrada de terrenos pertencentes às freguesias de
Santo Antônio, Engenho Velho, Santana e São Cristóvão (...) Os vestígios deste tipo de ocupação são
visíveis até hoje nas áreas que conseguiram sobreviver às cirurgias urbanas. São prédios estreitos e
muito profundos, “onde a iluminação é feita através de claraboias e áreas internas, sempre de frente da
rua e colados uns aos outros.i”, em tudo revelando a preocupação de aproveitar intensamente o espaço
próximo ao centro, numa época em que, devido à inexistência de transportes coletivos rápidos, a
cidade praticamente andava a pé.” (Abreu, 2013, p. 41).
O bairro do Catumbi expressa, nos dias de hoje, as consequências dessas “cirurgias urbanas” que
marcaram o seu espaço provocando profundas alterações na sua forma-aparência e na forma-conteúdo2. De
Certo, a partir do século XIX o bairro sofre alterações no seu espaço devido às obras de drenagem e
aterramento do Mangue e do Saco São Diogo. Deste modo, a ocupação da região é intensificada, e o bairro
do Catumbi passa a servir de moradia à imigrantes, em principal italianos portugueses e espanhósis que eram
em geral pequenos comerciantes, e à trabalhadores assalariados, tornando-se um bairro de classe média
baixa. (Nunes, 1978).

O BAIRRO DE PASSAGEM
“Peguemos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nós sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração (…)
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas”
(Adoniran Barbosa.)
O surgimento maciço dos automóveis, a partir da década de 1950, como consequência da concetração
de renda das camadas médias cariocas, acarretou a criação de inúmeros projetos que visavam a construção
de vias que pudessem facilitar a mobilidade dessa classe. O Catumbi, bairro de localização privilegiada,
próximo ao centro da cidade, como também, da zona sul, ganhou um papel de destaque no que se refere às
reformas urbanas. O bairro foi transformado em grande corredor viário, para muitos dos seus moradores o
termo “bairro de passagem” define a representação atual do Catumbi no cenário carioca.
A construção do túnel Santa Bárbara, iniciada em 1948, uma das primeiras obras ocorridas no bairro
que seguiam os ditames do automóvel, teve sua inauguração em 1963, durante o Governo de Carlos Lacerda.
E, no entanto, para que as obras fossem inicidas diversas famílias foram desaprorpiadas (Mattos, 2005, p.
36). A respeito da intensificação do uso do automóvel, Debord em “A sociedade do espetáculo” dilucida
este processo: “A ditadura do automóvel, produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil, se

2
Os conceitos de Forma-aparência e forma conteúdo são desenvolvidos por Maurício Abreu em sua obra: A Evolução
Urbana do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: IPP, 2013.

569
enraizou no terreno com a dominação da auto-estrada, que desloca os centros antigos e comanda uma
dispersão sempre mais pronunciada” (Debord, 1997, p. 115).
“As necessidades de ampliação da malha viária da cidade em prol da redução do tempo do percurso
entre a zona sul e o centro (...) não estabeleceram um consenso com os moradores e frequentadores do
Catumbi e podem ser apontadas como as duas principais modificações estabelecidas neste bairro.ii”
O texto exprime a fragmentação ocorrida no espaço do Catumbi e revela que não existiu uma
conformidade dessas intensas transformações urbanas com seus moradores. E, de fato, a notícia das
desapropriações causou um grande descontentamento. Os moradores se orgnizaram para reivindicar o direito
de permanecerem no bairro Porém, o esforço não foi compensado na mesma proporção.
“(...) Como em todas as fases precedentes, esta expansão mais recente do processo urbano trouxe com
ela incríveis transformações no estilo de vida. A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria,
assim como a própria cidade, num mundo onde o consumismo, o turismo e a indústria da cultura e do
conhecimento se tornam os principais aspectos da economia política urbana. (...) O poder financeiro
apoiado pelo Estado força a desobstrução dos bairros pobres, em alguns casos, tomando posse
violentamente da terra ocupada por toda uma geração. A acumulação de capital através da atividade
imobiliária é incrementada, já que a terra é adquirida quase sem custo. (...) A urbanização, podemos
concluir, desempenhou um papel decisivo na absorção de capitais excedentes, em escala geográfica
sempre crescente, mas ao preço do explosivo processo de destruição criativa que tem desapropriado as
massas de qualquer direito à cidade.” (Harvey, 2012, pp. 81; 84-85).
Os processos de urbanização que assolaram o bairro do Catumbi também foram incorporados no
discurso modernizador. Defendendo que o bairro era, demasiadamente, deteriorado, feio e velho o que
justificava as intervenções urbanísticas em prol do desenvolvimento e progresso da região e da cidade. Em
“Quando a rua vira casa”, uma das poucas obras, porém de muito fôlego, que se preocupou em tomar como
objeto o Catumbi, expõe o descaso do poder público com o bairro.
“A base de estudo foi o bairro do Catumbi, eleito há mais de quinze anos pelo governo com o
assessoramento de importantes técnicos em urbanismo nacionais e internacionais, para sofrer um
processo radical de renovação urbana. Pode-se depreender desta escolha, portanto, que o bairro foi
julgado como não servindo mais, como sendo obsoleto. Tudo o que existia dentro dele, incluindo ruas,
casas, equipamentos urbanísticos, pessoas e suas atividades deveriam desaparecer para dar lugar as
estruturas e modos de vida mais modernos, e, naturalmente, a novos moradores que tivessem o
“status” adequado para consumi-las e praticá-los. Em suma, o Catumbi como modelo urbano era visto
como superado, carregado de negatividade e indesejado.” (Santos, 1985, pp. 8-9).
O bairro correu o risco de ser arrasado. Não obstante, hoje, ele ainda é tratado com indiferença pelas
autoridades públicas. O espaço, atual, do bairro reflete os resquícios do passado. Os escombros ainda
permanecem em seu território, mesmo que de forma simbólica. O bairro foi enxugado pela modernização
urbana que o sugou para o centro de um turbilhão. No governo de Lacerda (1960-1965) foi implementado o
projeto Doxiadis, criado pelo urbanista e arquiteto grego Constatino Doxiadis. Este plano havia sido
solicitado por Lacerda, quando este era governador do recém criado Estado da Guanabara.
“(...) Entre 1963 a 1965, foi desenvolvido pelo escritório grego Doxiadis Associates, para o então
Estado da Guanabara, a pedido de seu primeiro governador, Carlos Lacerda, um plano físico-
terriotorial para o Rio de Janeiro. Intitulado Plano de Desenvolvimento para o ano 2000, ficou mais
conhecido como Plano Doxiadis e representou também a possibilidade da ascensão política do
governador através da demonstração de confiabilidade, eficiência técnica, e do desenvolvimentismo
que pautou a ideologia do seu governo. O plano, objeto de marketing, seria o registro para o futuro da
competência política e administrativa daquele governo. A imagem de uma administração equilibrada
com base em um planejamento racional e pautado pela ideologia desenvolvimentista (1946 a 1964)
iria atrair empresários internos e externos. (...).” (Borges, 2007, p. 26).
Após o mandato de Carlos Lacerda, Negão de Lima assumiu o governo do estado do Rio de Janeiro.
Em sua administração foi criada a CEPE, Comissão Executiva de Projetos Específicos, mais tarde
trasformada em Superintendência Executiva (SEPE), responsável por coordenar o Plano de renovação
urbana da Cidade Nova. A ideia inicial era transfomar a região da Cidade Nova numa área voltada para a

570
habitação de uma classe média, defirentemente da população que ali residia. Com o decorrer do tempo, as
obras viárias foram acontecendo, assim como também as desapropriações (Nunes, 1978).
Os moradores do bairro, se organizaram em cooperativas para reinvindicarem o direito de
permanecer no Catumbi. Muitos moravam no bairro há anos, outros além de residirem mantinham algum
comércio ou trabalhavam nos comércios que existiam no bairro àquela época. O Catumbi era ocupado por
uma classe média baixa, existindo ainda pessoas de condições financeiras mais humildes. O poder público
adotava a estratégia de “cozinhar a banho maria” a população que esperava do Estado uma providência que
fosse, de fato, resolver os problemas de moradia que enfrentavam. Os moradores não eram, todavia,
contrários à renovação urbana, porém desejavam fazer parte dela, podendo usufrir de todos os seus
benefícios (Fridman, 1980, p. 79).
“A experiência do espaço urbano fundamenta a intuição de que rua é mais que vias, trilho ou caminho.
(...) Só em mapas, plantas e planos, ruas podem ser vistas apenas como meios de circulação entre dois
pontos distantes. (...) A expressão “alma da rua” significa um conjunto de veículos, transeuntes,
encontros, trabalhos, jogos, festas e devoções. (...) A par de caminhos, são locais onde a vida social
acontece ao ritmo do fluxo constante que mistura tudo.” (Santos, 1985, p. 24).
Entretanto, como tudo acaba em carnaval, No início da década de 1980 os moradores do Catumbi
recebem mais um “presente”: a construção, no bairro, de uma passarela designada aos desfiles das escolas de
samba e, para isso, haveria mais demolições (Nunes, 1978, p. 191).
“(...) Poucos anos depois, a facilidade de acesso à área pelos turistas e moradores da zona sul e Barra
da Tijuca, fez com que a rua Marquês de Sapucaí fosse escolhida para ser palco da construção do
Sambódromo. A referência ao passado da festa, dos blocos de carnaval e da alegria espontânea,
característicos dos moradores do Catumbi “pré-viaduto”, é inevitável. (...) No entanto não cabe o
comentário sobre o fato de que o carnaval dos ricos se assentou (literalmente) sobre um bairro de
passagem pobre, “favelado” e com alto índice de criminalidade. A festa, hoje, não faz parte do
Catumbi, mas acontece no Catumbi. O bairro virou um cenário montado para o carnaval e para a
circulação viária. Devemos, espetacularmente, fechar os olhos para os bastidores deste cenário.”iii
O texto acima descreve a espetacularização feita no espaço do bairro. Na grande maioria das vezes, o
Catumbi só é visto e lembrado nos noticiários da televisão e dos jornais quando do período em que ocorre o
carnaval, ou quando se referem à criminalidade e à violência na região. Essas são as referências as quais o
bairro é associado. Sobre a festa mencionada no fragmento acima, existe aí, mesmo que implícita duas ideias
diferentes sobre o sentido de festa. Para elucidar melhor essa distinção, Lefebvre possibilitou a comprensão
de que: “O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a festa
(que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, enormes
riquezas em objetos e em dinheiro)” (Lefebvre, 2012, p.12).
A festa, para Lefebvre, é o sentido que possibilita a apropriação da cidade, de forma improdutiva, ou
seja, sem que seja atribuído à festa o valor de mercadoria. A festa quando procede da relação metabólica
entre as pessoas e o espaço o qual elas povoam, não possui o mesmo significado quando incorporada a um
evento. Sendo assim, realmente, não há como relacionar o evento à festa. Dessa maneira, também não é
possível associar o evento do desfile das escolas de samba com o passado de festas e de samba do bairro
Catumbi. O samba foi atravessado pela lógica da mercadoria, onde tudo se transforma em espetáculo.
(Debord, 2012).
É interessante a percepção do que se tornou o bairro do Catumbi, na atualidade. O bairro teve seu
espaço retalhado por túneis, viadutos e pelo Sambódromo onde os seus habitantes vivem em meio aos
escombros do espaço que sobrou dessas intervenções.

O CATUMBI E SUAS REMINISCÊNCIAS


“A memória é uma ilha de edição”
(fragmento do poema Câmara de Ecos, de Wally Salomão)

571
Uma parte desta pesquisa foi reservada à História Oral. Tendo em vista a pequena quantidade de
materiais de estudo que abordam o bairro do Catumbi, conseguir organizar um arquivo, mesmo que
pequeno, de depoimentos de moradores e moradoras, principalmente os mais antigos, é de alguma
relevância.
Todavia, uma das poucas coisas que remetem ao passado recente do bairro e, que ainda permanecem
no seu espaço, além dos escombros, são as lembranças. Entretanto, para o uso desse mecanismo foi
necessário cuidado e rigor para evitar alguns ruídos no resultado deste empenho.
MEMÓRIAS DE UM PASSADO FESTIVO E MUSICAL. ENTRE OUTRAS RECORDAÇÕES.
“Se a memória é socialmente construída, é obvio que toda documentação também o é. Para mim não
há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador
aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a
fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal qual ela se
apresenta.” (Pollak, 1992, p. 8).
O primeiro entrevistado foi o Seu Lauro, morador do Catumbi há 82 anos, ele aceitou conceder uma
entrevista para esta pesquisa. Seu Lauro abriu as portas da casa que é de sua família, na Rua Carolina
Reidner, número 11, com muita simpatia e gentileza e foi naturalmente traçando uma linha cronológica que
permita captar informações que remontavam um cenário vivo de recordações e histórias do bairro. Seu
Lauro foi o primeiro diretor de bateria do bloco Bafo da Onça, um dos mais antigos da história do carnaval
do Rio de Janeiro.
Como foi que o Bafo da Onça surgiu?
“Aqui na Rua Carolina havia um bloco, o Bloco do Carolina, que eu, meus irmãos e uma garotada daqui que criamos.
Um dia, um grupo de bicheiros do bairro veio até a mim para pedir emprestado os nossos instrumentos, pois eles queriam criar um
bloco de carnaval. Eu respondi que não tínhamos como emprestar os instrumentos. Foi então que meu irmão deu a ideia de
tocarmos no bloco deles. Os bicheiros concordaram. De início o bloco se chamaria: Bloco das Cuecas, mas aí, um Português que
frequentava o botequim do Mulambo disse assim: - “O nome do bloco vai ser Bafo da Onça.”.

O Bafo da Onça, fundado em 1956, possui diversas versões com relação à origem da sua fundação.
Uma delas atribui ao carpinteiro Tião Maria o título de fundador do bloco (Diniz, 2010). Entretanto, no
depoimento acima, Seu Lauro narra que a iniciativa da criação desse Bloco de carnaval partiu de um grupo
de bicheiros que juntaram com os componentes do Bloco do Carolina. Não obstante, com relação à
importância do bloco para o carnaval carioca, não há discordâncias. Conforme afirmou Seu Lauro:
“O modo com que o bloco saía, e a organização era tudo muito bem feito. Foi ideia minha fazer com que as crianças e as
mulheres viessem na frente, a bateria no meio e os homens atrás. Era um bloco de família, de família mesmo! Vinham até famílias
de fora. O bloco era muito animado.”
A trajetória do Bafo foi uma das mais brilhantes que se conhece. (...) Do desfile na Praça Onze e na
Avenida Rio Branco, o bloco passou rapidamente a animar os clubes. (...) Praticamente todos os
clubes da cidade promoveram shows do Bafo da Onça. Sua fama ia se alastrando e o conceito de
bloco extremante organizado levou-o a ser convidado a frequentar os nobres salões. O Bafo foi a
primeira agremiação carnavalesca a se apresentar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. (...) Os
Sambas do Bafo da Onça faziam enorme sucesso nas rádios graças ao apoio de Sargentelli (...).
(Diniz, 2010, pp. 17-18).
Dando continuidade ao andamento da entrevista, as perguntas foram sendo feitas, de forma sutil,
porém, no entanto, surtidas de efeito.
Como o Senhor enxerga as mudanças urbanísticas, ocorridas no bairro?
“O túnel, em si, melhorou em algumas coisas e atrapalhou em outras. Só esse viaduto (...) esse movimento de carro aqui
nessa rua, não passava não! Abriram essa rua aqui. A Rua não ultrapassava a Emília Guimarães. Tinha as casas 1,3 e 5. Agora a 1
e a 3 não tem mais.”

572
E quanto às desapropriações, o Senhor se recorda?
“Cada um foi saindo aos poucos e muitos ficaram sem casa. A prefeitura não pagou até hoje. Aqui ia se fazer a Cidade
Nova. Muitos idosos tinham a casa como herança, aí vem o cara lá e tira tudo. Assim como foi esse túnel aqui da Frei Caneca,
todo mundo teve que sair, ninguém foi indenizado”.
Durante a conversa com o Seu Lauro, um barulho muito forte e incômodo vinha do terreno ao lado.
Trata-se de um terreno em que a prefeitura tomou posse e o utiliza como canteiro de obras. No entanto, além
do barulho quase ensurdecedor, a poeira que sai daquele local é tanta que a sobrinha do Seu Lauro tem que
passar um pano, úmido, no chão da casa várias vezes ao dia. Nota-se que as obras não são referentes ao
bairro. Os próprios moradores não possuem muitos detalhes sobre o tal terreno.
No meio da conversa, Seu Lauro nos revela um fato muito interessante:
“O meu falecido pai é o Betinho do bandolim, Adalberto Vieira Azevedo. Ele era um dos melhores bandolins que existiu.
Aqui onde nós estamos agora era farra todo sábado e ia até domingo de manhã. Vinha Pixinguinha, vinha Jacob do bandolim. Meu
pai era amigo desde criança do Pixinguinha, tinha um ano a mais que ele. A gente, eu e meus irmãos, ficávamos espiando pela
fresta da porta porque não podíamos ficar por perto. (...) O Catumbi já foi muito bom. O carnaval era muito animado. Tinha o
Bloco Pau no Burro, tinha o Vai Quem Quer, o Bafo da Onça, o Zapata (...). Muita coisa pra contar!”
A entrevista com o Seu Lauro foi muito agradável, era percebível a alegria com a qual ele relembrava
as histórias do passado. Todavia, era notório que os rumos tomados pelo bairro hoje incomodam este antigo
morador. A Rua em que ele viveu grande parte da sua vida e, hoje mora a sua irmã e outros parentes, foi
completamente modificada. Em quase toda a entrevista, Seu Lauro reclamava do barulho dos carros
buzinando na rua, e, principalmente, do terreno ao lado que é um canteiro de obras da Prefeitura. Não só o
barulho o incomodava, a falta de esclarecimento sobre aquele terreno é um desconforto para ele e para os
seus parentes.
A segunda entrevista foi feita com outro antigo morador do bairro, Seu Toninho. Figura muito
conhecida e ilustre do Catumbi. Morador do bairro, desde 1934, reside na mesma casa desde dois meses e
meio de vida, localizada na Rua Emília Guimarães, número 8. Filho de pai Português e mãe Brasileira, Seu
Toninho é um dos moradores mais antigos da “Rua dos Ciganos”, apelido o qual era dado à Rua Emília
Guimarães, pelo grande número de famílias Ciganas que moravam naquele lugar.
Como o senhor compreende o Catumbi, hoje?
“Construíram aqui um sambódromo que não serve de nada. Eu não posso sair do Catumbi no carnaval, seu eu for sair
tenho que levar uma conta de luz, um comprovante de que eu moro aqui. Isso é um absurdo! Eu moro aqui vai fazer 82 anos! O
Catumbi está jogado às traças, completamente diferente, até o modo de vida.”
E porque o bairro está jogado às traças?
“O desenvolvimento social de Catumbi foi nulo. As mudanças que fizeram não valem nada. (...) A construção do
sambódromo é que foi um atraso de vida para o Catumbi. Não beneficiou em nada o Catumbi. Metade do pessoal que foi
desapropriado lá, não viu dinheiro nenhum. (...) Eu quando era novo ia a pé pra tudo quanto é lugar. Aqui é um lugar muito bem
localizado, é aí que entra o olho grande.”
O Senhor se recorda de algum morador que foi desapropriado na época em que ocorreram as
transformações urbanísticas?
“Conheço. A casa que hoje é a loja de material de construções do Gabriel era do Seu Reis. Ele tinha duas casas nos
Coqueiros, ele morreu e não recebeu nada do Governo. Brigamos muito por Catumbi, eu briguei muito pelo Catumbi.
Espalhávamos panfleto para não desapropriarem o Catumbi. Chegou o Negrão de Lima e desapropriou quase tudo. Eu participei
do movimento do Catumbi. Eu, Pe. Mário e o falecido Damico. Inclusive o Pe. Mário foi em cana, na época do movimento.”
E como era o Catumbi antes das remoções?
“O Catumbi era muito bom! Tinha um circo, na Rua do Chichorro, chamado Olimeshe, tinha o cinema Catumbi, onde
hoje é o sambódromo. Quantas casas foram desapropriadas ali! Inclusive o pai da D. Lourdes tinha um botequim lá, ele foi
obrigado a sair. A prefeitura é esse negócio: chega, desapropria, e daí você fica com uma mão atrás e a outra na frente, sem
defesa.”
Como era o carnaval no bairro, antes da construção do sambódromo?

573
“Era melhor do que é hoje. Tinham três ranchos: Os caçadores de Veado, Os inocentes de Catumbi e o Unidos do Cunha”
Havia samba no catumbi?
“O Catumbi tinha muitos sambistas. Um dos primeiros sambas que saiu do Catumbi foi esse aqui”:
“Depois de tantos anos de silêncio:
Catumbi, volta ao cartaz.
Jamais esquecerei-me de ti Catumbi,
Terra de onde eu nasci.
No catumbi eu nasci e me criei
Conheci o meu amor
e com ele me casei
Lugar assim como esse
Eu nunca vi
Quem quiser ser feliz
Venha morar em Catumbi.”
“Um dos primeiros sambas que saiu daqui do Catumbi. Uns dizem que a autoiria é do Zeca, que vem ser tio do Lauro, se
eu não me engano.”
O que o Catumbi significa para você?
“Tudo! Aqui era quase uma família.”
E com essa frase de impacto a entrevista se deu por encerrada. É notório que há alguns pontos de
contato entre as falas do Seu Lauro e a do Seu Toninho. Ambos sentem falta do passado do bairro e se
descontentam com as consequências das transformações urbanas, refletidas no espaço do Catumbi.
Recordam, com nostalgia, um tempo que se passou.
A última entrevistada, Mirian de Almeida, 58 anos, moradora do bairro desde que nasceu. Residente
à Emília Guimarães, número 16. Entretanto morou mais de 25 anos na Rua Van Erven, número 34.
Como você enxerga a reurbanização ocorrida no bairro?
“O viaduto, praticamente, acabou com o Catumbi. O bairro ficou quase sem comércio e perdeu a sua característica de
bairro carnavalesco. (...) Ali no sambódromo tinha um cinema. (...) Havia todo o tipo de comércio aqui. Cinema, padarias,
correios, carvoaria. Tinha um parque de diversões, na Avenida Marquês da Sapucaí. Ali também morava o Tião Maria, do Bafo da
Onça, a casa dele foi demolida para a criação do sambódromo. Tinha loja de fazenda, loja de massa. Ficou desvalorizado o
Catumbi, porque com as demolições saiu boa parte do comércio. O Catumbi estacionou, não evoluiu. Foi um bairro que ficou de
passagem, aqui é um acesso de viadutos e túneis. Muitas moradias foram abaixo. A Rua Elione de Almeida e a Rua dos Coqueiros
praticamente acabaram. Essa “modernização” descaracterizou o bairro. Aqui era um bairro que tinha de tudo, era muito
movimentado tinha o carnaval tinha as festividades. Acho que se fizer uma enquete com as pessoas mais antigas do bairro, elas
vão dizer a mesma coisas. A gente não precisava sair do bairro para comprar as coisas tinha sapataria tinha loja de roupa, se você
quisesse dar um presente para alguém tinha aonde comprar. Não precisava pegar um ônibus para comprar um carretel de linha.
Hoje você tem que pegar um ônibus para comprar as coisas. Com as demolições muitos comerciantes foram embora do bairro. Se
as moradias fossem mantidas, o comércio voltava. Eu vejo bastante prejuízo. Até a Igreja N. Sra. da Conceição eles conseguiram
tirar do bairro. O bairro foi reduzido.”
E com relação às habitações que foram construídas no bairro. Qual a sua opinião?
“Até construírem esses prédios que hoje existem no bairro, demoraram muito tempo. As pessoas tiveram que sair das suas
moradias e quem não tinha pra onde ir teve que se virar do jeito que dava. Algumas pessoas foram indenizadas, mas a maioria não
foi. As pessoas não podiam esperar 10 anos para que o prédio ficasse pronto. Antes de desapropriarem já deveriam ter feito casas,
para que as pessoas não ficassem sem ter pra onde ir.”

574
Como você enxerga o carnaval no bairro?
“Só fazem alguma coisa pelo Catumbi na época do carnaval, aí botam calçamento, podam árvore, botam iluminação,
botam asfalto pra esconder os buracos. Nós aqui somos esquecidos o ano inteiro pelo Governo, só no carnaval que o bairro é
lembrado e, ainda assim, o carnaval aqui é só para turista. A apoteose não foi feita para o morador. O ingresso é caro!”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta pesquisa as evidências foram contundentes. Os processos de segregação socioespacial
ocorridos no bairro do Catumbi impôs a transformação do espaço, à posse da mercadoria e, junto dela,
vieram os interesses dos agentes que possuem o poderio econômico. As consequências das intervenções
urbanísticas são verificadas no descaso e no esquecimento, propositado, o qual o bairro foi entregue. É bem
comum que muitas pessoas sequer saibam da existência do Catumbi. O que é de certa forma incoerente,
tendo em vista a localização central do bairro, e todo o aparato cultural que ele carrega. O bairro tem em seu
espaço, o sambódromo, onde ocorre um dos grandes eventos que compõem a Cidade. Entretanto, existe um
vácuo entre a Apoteose do Samba e o bairro que cede lugar a ela. Este vácuo é causado pela
incompatibilidade entre os dois elementos. O bairro e o sambódromo não dialogam entre si, não mantém
uma relação. O sambódromo é um corpo estranho dentro do bairro do Catumbi. Todavia, o bairro foi
altamente destruído, fragmentado e segregado, para que nele fosse levantado o palco do “maior show da
terra”.

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SANTOS, C. N. F.; VOGEL, A. Quando a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. São
Paulo: Projeto, 1985.

NOTAS DE FIM

i
NORONHA SANTOS, Francisco Agenor. As Freguesias do Rio Antigo. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1965, p. 49.
ii
http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/ - Acessado em 12/07/2017.
iii
http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/ - Acessado em 28/11/2015

576
Saberes e fazeres docentes em ensino de História no contexto das políticas educacionais atuais

Cristiana de Lima Tomaz Abrantes1

Resumo: Pretendemos compreender como os professores de história, em uma instituição pública de


excelência no ensino médio, localizada no Rio de Janeiro, mobilizam seus saberes, socialmente
construídos, e, especialmente, que diálogos tecem com as políticas educacionais públicas, em
momentos da instituição de novas reformas educacionais. Em tempos de crescente controle do
Estado nos currículos educacionais no Brasil, cabe enfatizar que, pesquisas que focalizam os
professores e suas práticas podem contribuir para a construção de novos olhares no campo do ensino
da história escolar. Nessa direção, almejamos dar visibilidade social aos docentes de história e seus
saberes, em um momento de mudanças nas políticas educacionais.

Palavras-chave: história de vida de professores; reformas educativas; saberes e fazeres docentes.

Abstract: We intend to understand how the teachers of history, in a public institution of excellence
in high school, located in Rio de Janeiro, mobilize their knowledge, socially and, in particular, what
dialogue with public education policies, at the time of the institution of new educational reforms. In
times of increasing state control in educational curricula in Brazil, it should be emphasized that
research that focuses on teachers and their practices can contribute to the construction of new
perspectives in the field of teaching of school history. In this direction, we aim to give social visibility
to the teachers of history and their knowledge, at a time of changes in educational policies.

Keywords: life history of teachers; educational reforms; knowledge and teaching.

INTRODUÇÃO

Alguns estudiosos do campo do currículo têm apontado para o surgimento de significativas


mudanças no sistema educacional brasileiro, que se iniciam na segunda metade da década de 1990,
e visam o controle da prática docente, especialmente no currículo. Estas são justificadas por uma
equação que torna a qualidade dependente de controle. Mudanças essas oriundas de políticas
governamentais e que culminam com a atual Reforma do Ensino Médio e a BNCC 2.
Um currículo nacional tem por objetivo criar similaridades entre os indivíduos, sufocando
particularidades, individualidades, aspectos culturais e de identidades para a “produção” de um

1 Professora de história da Rede Estadual do Rio de Janeiro. Mestranda no Programa de Pós-Graduação


em Ensino de História – PPGEH – da UERJ, (PROFHISTÓRIA – Mestrado Profissional em Rede Nacional). Orientadora:
Profª. Dra. Maria Aparecida da Silva Cabral, Coorientadora: Profª. Dra. Helena Maria Marques Araújo. Email:
crisluabr@gmail.com.
2 BNCC – Base Nacional Comum Curricular

577
cidadão comum, com interesses comuns; e a não adequação do indivíduo ao esperado de um bom
cidadão, seria um problema de aprendizagem.
Nesse intuito, a pesquisa que estamos desenvolvendo no âmbito do Programa de Pós-
graduação em Ensino de História da UERJ pretende investigar de que modo os docentes de história
(re)significam seus fazeres e saberes, em um momento de incertezas nas políticas educacionais
nacionais, no qual tais propostas curriculares muitas vezes silenciam esses saberes. Levantando
conhecimentos de um currículo real em contraposição aos currículos prescritos. Segundo Goodson
(2007),

O projeto que recomendo respeita à reconceptualização da investigação educacional,


de modo a assegurar que a voz do professor seja ouvida, ouvida em voz alta e
articuladamente. A este respeito, a maneira mais plausível de avançar, penso eu, seria
começar por edificar as noções de “professor auto-regulador”, de “professor como
investigador” e de professor como um “profissional de competências alargadas”.
(GOODSON, 2007, p. 67).

O proposto será realizado com entrevistas aos professores de história do Ensino Médio
CAp/Uerj 3 objetivando compreender como os docentes pensam e falam sobre o conhecimento
histórico escolar. Para isso, faz-se necessário questionar sobre que narrativas constroem de seus
percursos profissionais? Com quais referenciais dialogam? Como se posicionam frente às atuais
reformas educacionais? E como elas poderão interferir sobre suas práticas?
Estabelecemos como recorte temporal entre 2012 e 2017, bem como elegemos uma
instituição escolar de referência para pensar tais questões. Foi a partir disso que conseguimos chegar
a seleção do CAp/Uerj por atender um critério de ser uma escola de referência, com professores
pesquisadores, em regime diferenciado de trabalho e práticas inovadoras, e evidente, por ser um
colégio de uma universidade.
Serão utilizadas as metodologias de história de vida e história oral. Buscaremos compreender
como os professores entrevistados lidam com seus saberes socialmente construídos em tempos de
crescente controle do Estado nos currículos educacionais no Brasil. Segundo Nóvoa, pesquisador
experiente na área de formação de professores, essa abordagem de trabalho possibilita um olhar mais
próximo das realidades educativas e do quotidiano dos professores.
Sou professora de História na escola pública do Rio de Janeiro desde 2007, e uma das
questões que tem me chamado à atenção, nessa minha trajetória profissional, é a forma como nós
professores temos lidado, em nosso cotidiano da sala de aula, com as diversas reformas educacionais
nos últimos anos.

3 CAp/UERJ – Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira

578
Podemos afirmar que a construção de um aparato rígido de controle acerca das práticas de
ensino por meio da construção de um rígido sistema de avaliação externa, associado à resolução do
fracasso escolar e à expectativa de melhoria dos índices de qualidade da educação, impacta, sim, o
trabalho dos professores. Ainda assim, a experiência da sala de aula nos capacita para afirmar que,
entre as prescrições e as práticas de ensino, há uma cultura profissional e escolar compartilhada por
professores, alunos e comunidade, que faz com que a escola seja uma instituição com uma
peculiaridade.

O LUGAR SOCIAL DO PROFESSOR

Segundo Certau (1982), a história é a combinação de um lugar social, de práticas científicas


e de uma escrita. A singularidade do lugar de onde se fala - no meu caso o chão da escola - e do
conhecimento que se executa numa investigação, saberes apreendidos com a reflexão sobre a prática,
é um lugar específico onde somente o historiador – aqui o professor de história - que o conhece de
maneira mais aprofundada, mais íntima, tem a experiência e a competência para tal.
De toda maneira, a pesquisa está circunscrita pelo lugar que define uma conexão do possível
e do impossível. Encarando-a apenas como um "dizer", acabar-se-ia por reintroduzir na história a
lenda, quer dizer, a substituição de um não-lugar ou de um lugar imaginário pela articulação do
discurso com um lugar social, Pelo contrário, a história se define inteira por uma relação da
linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo
impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala, seja à maneira do objeto outro (passado,
morto) do qual se fala. (CERTEAU, 1982, p. 69)
Assim, o professor de história da educação básica, enquanto também um pesquisador,
refletindo e analisando sua própria prática, tem um lugar social privilegiado de conhecimento do seu
ofício. Sua formação não é só academicamente construída, é também ao longo de sua carreira,
enriquecida no cotidiano da escola. Assim, saberes são produzidos, pois fazem conexão da teoria
com a prática e vice-versa, mesmo que em alguns momentos de forma intuitiva. Então, a vida
profissional do professor carrega em si mesmo grandes ensinamentos, experiências, saberes e
fazeres, numa mistura de vivência social dentro e fora da escola, com interferências políticas,
ideológicas, financeiras, governamentais, intelectuais.
Assim, a principal questão dessa pesquisa é: como os saberes e práticas dos docentes de
história do Ensino Médio se desenvolvem por suas experiências de vida, criando um currículo real,

579
dentro de um contexto político-social de mudança nas políticas públicas educacionais que visam um
currículo normativo a nível nacional?

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS ATUAIS

A partir das considerações tecidas por Elisabeth Macedo 4 , em seus trabalhos acerca da
construção de políticas curriculares educacionais, podemos constatar que desde a segunda metade
da década de 1990, os sistemas educacionais têm investido em estratégias de controle diversas no
que tange à prática docente.
Tais ações têm sido intensificadas na visão dessa autora, e são justificadas por uma equação
que torna a qualidade dependente de controle. Mudanças essas, que são oriundas de políticas
governamentais, que se iniciaram com a LDB 9394/96 5, os PCNs6 em 1997, Diretrizes Curriculares
para a Educação Fundamental (1998), Indagações Curriculares (MEC, 2010), Diretrizes Curriculares
para a Educação Básica (BRASIL, 2010), PNE7 (MEC, 2014), “Pátria Educadora” (BRASIL, 2015),
e que culminam com a atual Reforma do Ensino Médio e a BNNC (ainda em formulação, estando
na sua terceira versão). Tentando num Brasil tão imenso tanto no tamanho como na diversidade, nas
quais as diferenças regionais são muitas de um colorido cultural fantástico, criar estratégias de
construção de identidades comuns, que pressionam a diversidade.
Especificamente no que tange ao processo de construção de uma Base Nacional Comum
Curricular, a professora/pesquisadora na área de currículo, Carmen Gabriel, afirma:

Assiste-se a um movimento de apagamento dos aportes teóricos dos estudos de


currículo acumulados nas últimas três décadas, em nome da necessidade de
construção de um sistema nacional de educação. Trata-se de um movimento de
centralização curricular, na busca de uma cultura escolar comum, por meio de
estratégias que fortalecem os discursos de nação que a significam como antagônica
de pluralidade e diversidade. (GABRIEL, 2015, p. 294)

Nesse sentido, a partir da perspectiva dessa autora podemos inferir que, um currículo nacional
tem por objetivo criar similaridades entre os indivíduos, sufocando particularidades,
individualidades, aspectos culturais de grupos de minorias, aspectos de identidade, para a “produção”

4 Macedo Elizabeth. Base nacional curricular comum: a falsa oposição entre conhecimento para fazer
algo e conhecimento em si. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - RJ, Brasil, 2016.
5 LDB 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
6 PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais
7 PNE – Plano Nacional de Educação

580
de um cidadão comum, com interesses comuns; e a não adequação do indivíduo ao esperado de um
bom cidadão, seria um problema de aprendizagem.
Essa percepção faz com que a heterogeneidade seja apreendida exclusivamente como uma
questão de níveis distintos de aprendizagem em função da origem social, exigindo pedagogias
diferenciadas, expelindo para fora a cadeia equivalencial significantes que remetem a outras marcas
de pertencimento identitário. Um nacional naturalizado que não se discute, que não se recebe como
um lance entre outros no jogo da linguagem tende a ser um nacional que apaga e silencia as
diferenças culturais. E o movimento de fixação desse sentido particular de nacional está na origem
das críticas ao uso do significante comum mobilizado como o antagônico da pluralidade, da
diversidade, no texto da base curricular no Brasil. (GABRIEL, 2015, p. 293).
8
A apresentação de um quadro estatístico, medido pelo Ideb seguindo modelos
internacionais, de um baixo aproveitamento do Ensino Básico no Brasil, alimenta e fertiliza a
sensação de que a educação no Brasil é ruim e de baixa qualidade. Momentos de crise econômica,
como a que estamos vivendo, com aumento de desemprego, também alimenta a ideia de que nossos
profissionais são mal formados, ou seja, de que a educação realmente é um problema. Baseado nesse
imaginário, o governo apresenta as mudanças curriculares como uma receita mágica possível de
resolver todos os problemas da educação no país. Para Goodson “O currículo como prescrição
sustenta místicas importantes sobre estado, escolarização e sociedade. Mais especificamente, ele
sustenta a mística de que a especialização e o controle são inerentes ao governo central, às
burocracias educacionais e à comunidade universitária.” (Goodson, 2007, p. 243)
A reforma do Ensino Médio e a BNCC, como estão se apresentando, podem ao invés de
melhorar a educação no Brasil, acabar criando ainda mais diferenças, classificando como
intelectualmente fracos os indivíduos de origem social mais desfavorecida, marginalizados
economicamente e culturalmente, pois esses possuem capital cultural diferente do tido como ideal.
Assim, pode haver uma distância ainda maior entre os aceitos e os nãos aceitos, dentro de uma lógica
mercadológica como ganhadores e perdedores, aumentando a discriminação e a exclusão.

8 Segundo o portal: http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-educacao-basica/programas-e-acoes?id=180 ,


o Ideb é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, criado em 2007, pelo Instituto Nacional de Estudos e pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional e estabelecer metas para
a melhoria do ensino. O Ideb funciona como um indicador nacional que possibilita o monitoramento da qualidade da
Educação pela população por meio de dados concretos, com o qual a sociedade pode se mobilizar em busca de melhorias.
Para tanto, o Ideb é calculado a partir de dois componentes: a taxa de rendimento escolar (aprovação) e as médias de
desempenho nos exames aplicados pelo Inep. Os índices de aprovação são obtidos a partir do Censo Escolar, realizado
anualmente. As médias de desempenho utilizadas são as da Prova Brasil, para escolas e municípios, e do Sistema de
Avaliação da Educação Básica (Saeb), para os estados e o País, realizados a cada dois anos. As metas estabelecidas pelo
Ideb são diferenciadas para cada escola e rede de ensino, com o objetivo único de alcançar 6 pontos até 2022, média
correspondente ao sistema educacional dos países desenvolvidos.

581
CURRÍCULO

Para Circe Bittencourt (2004) a definição e delimitação das dimensões de currículos


existentes são: formal, real, oculto e avaliado.

Atualmente, a ideia de currículo é concebida em todas as suas dimensões,


distinguindo-se o currículo formal (ou pré-ativo ou normativo), criado pelo poder
estatal, o currículo real (ou interativo), corresponde ao que efetivamente é realizado
na sala de aula por professores e alunos, e o currículo oculto, constituído por ações
que impõem normas e comportamentos vividos nas escolas, mas sem registros
oficiais, tais como discriminações étnicas e sexuais, valorização do individualismo,
ausência ou valorização do trabalho coletivo, etc. Estudos recentes incluem ainda o
currículo avaliado, que se materializa pelas ações dos professores e das instituições
ao “medirem” o domínio dos conteúdos explícitos pelos alunos e incorpora valores
não apenas institucionais, mas também educacionais, como as habilidades técnicas
e práticas da cultura letrada. (BITTENCOURT, 2004, p. 104)

Então, a BNCC enquanto política de governo se apresenta como currículo formal, enquanto as
práticas e saberes docente como parte do currículo real. Para Circe Bittencourt o debate em torno
dos currículos funciona como um avanço envolvendo a relação de ensino aprendizagem.
As divergências sobre os conteúdos escolares ainda permeiam o cotidiano escolar ou
currículo real, assim como estão implícitas nas formulações dos currículos oficiais.
A importância dispensada ao debate vale a pena ressaltar, tem trazido avanços para
o estabelecimento de critérios de seleção de conteúdos, resultando em uma
concepção mais complexa, ao envolver a relação ensino-aprendizagem nesse
processo. (BITTENCOURT, 2004, p. 105)

Para Goodson (2007) as sociedades atuais são instáveis e de rápidas mudanças e um currículo
prescrito pode não atender as reais necessidades sociais e individuais.

Mais do que escrever novas prescrições para as escolas, um novo currículo ou novas
diretrizes para as reformas, elas precisam questionar a verdadeira validade das
prescrições predeterminadas em um mundo em mudança. Em resumo, precisamos
mudar de um currículo prescritivo para um currículo como identidade narrativa; de
uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem narrativa de
gerenciamento da vida. (GOODSON, 2007, p. 242)

Para esse autor existe uma certa “negociação” entre o currículo prescrito e o real, quando os
sujeitos envolvidos diretamente nos espaços escolares aceitam as regras estabelecidas pelas agências
de controle, podendo assim haver alguma autonomia.

582
É claro que existem “custos de cumplicidade” na aceitação do mito da prescrição;
esses custos envolvem, sobretudo e de várias maneiras, a aceitação de modelos
estabelecidos de relações de poder. Talvez o mais relevante seja que as pessoas
intimamente ligadas à construção social cotidiana do currículo e da escolarização, os
professores, sejam por isso efetivamente alijados do “discurso da escolarização”.
Para continuar a existir, seu poder cotidiano deve permanecer basicamente silencioso
e sem registros. Esse é, então, o preço da cumplicidade. Os vestígios do poder
cotidiano e da autonomia para as escolas e para os professores dependem de
continuar-se a acatar a mentira fundamental. (GOODSON, 2007, p. 242 e 243)

Um currículo, um plano de educação nunca é algo apenas técnico, científico, ele está sempre
ligado à cultura, faz parte da estratégia para a formação de mentalidade social, tem objetivos sociais,
forma os cidadãos de uma pátria. Conforme Apple,

A educação está intimamente ligada à política da cultura. O currículo nunca é apenas


um conjunto neutro de conhecimento, que de algum modo aparece nos textos e nas
salas de aula de uma nação. Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado
da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento
legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e
econômicas que organizam e desorganizam um povo. (2011, p. 59).

Desta forma, a estrutura educacional é campo de disputa, onde as elites são favorecidas, e governos
impõem seus planos ideológicos políticos e econômico:
O que conta como o conhecimento, a forma como ele se organiza, quem tem autoridade para
transmiti-lo, o que é considerado como evidência apropriada de aprendizagem e – não menos
importante – quem pode perguntar e responder a todas essas questões, tudo isso está diretamente
relacionado à maneira como domínio e subordinação são reproduzidos e alterados neta sociedade.
Sempre existe, pois, uma política do conhecimento oficial, uma política que exprime o conflito em
torno daquilo que alguns veem simplesmente como descrições neutras do mundo e outros, como
concepções de elite que privilegiam determinados grupos e marginalizam outros. (APPLE, 2011, p.
60).
Ainda segundo Circe Bittencourt as reformas que se iniciam no Brasil nos anos 90 não são
isoladas e seguem modelos implementados em outros países como Portugal, Espanha e países
membros do MERCOSUL, e seguem a uma lógica mercadológica: “O movimento de reformulações
curriculares dos anos 90 decorre da nova configuração mundial, que impõe um modelo econômico
para submeter todos os países à lógica do mercado. Uma lógica que cria novas formas de dominação
e de exclusão [...]” (BITTENCOURT, 2004, p. 101).

583
SABERES E FAZERES DOCENTES

Segundo Ana Maria Monteiro (2001), o processo que transforma o conhecimento do


professor em conteúdo a ser ensinado foi analisado durante muito tempo como uma racionalidade
técnica “buscando a eficácia através do controle científico da prática educacional, trabalhava com a
concepção de professor como um instrumento de transmissão de saberes produzidos por outros.”
(MONTEIRO, 2001, p. 122). Assim, cabia ao professor dominar conteúdos e técnicas de transmissão
(didática) para um bom aprendizado de seus alunos.
Ainda presente no imaginário e prática social de muitos educadores, esta concepção tem sido
questionada e criticada por aqueles que apontam a simplificação operada por este raciocínio que:
nega a subjetividade do professor como agente no processo educativo; ignora o fato de que a
atividade docente lida com, depende de e cria conhecimentos tácitos, pessoais e não sistemáticos que
só podem ser adquiridos através do contato com a prática; ignora os estudos culturais e sociológicos
que veem o currículo como terreno de criação simbólica e cultural; e que ignora, também, todo o
questionamento a que tem sido submetido o conhecimento científico nas últimas décadas.
(MONTEIRO, 2001, p. 122)
Para a autora, os professores que questionavam de forma radical os saberes escolares
disciplinares tidos como conservadores muitas vezes acabavam gerando sérias consequências aos
sujeitos que visavam libertar.
As pedagogias não-diretivas, “libertadoras”, que radicalmente assumiam o questionamento
dos saberes dominantes e valorizavam os saberes populares em nome da libertação ou emancipação
dos grupos dominados, muitas vezes levaram a um esvaziamento da dimensão cognitiva do ensino
que, em alguns casos, se restringiu a reproduzir o senso comum, com consequências perversas para
os grupos subalternos que pretendiam libertar. (MONTEIRO, 2001, p. 122)
Porém, esforços crescem por pesquisadores em educação para analisar novas questões que o
paradigma tecnicista não dá conta e criar assim maiores suportes técnicos para investigações.
Criaram, assim, o eixo “saber docente” analisando os saberes produzidos por aqueles que ensinam.
Nesse contexto, foi criada a categoria “saber docente”, que permite focalizar as relações dos
professores com os saberes que dominam para poder ensinar e aqueles que ensinam, sob uma nova
ótica, ou seja, mediadas por e criadoras de saberes práticos, que passam a ser considerados
fundamentais para a configuração da identidade e competência profissionais (Tardif, Lessard e
Lahaye, 1991; Perrenoud, 1993, 1999; Therrien, 1996; Tardif, 1999; Moreira, Lopes e Macedo,
1998). (MONTEIRO, 2001, p. 123)

584
Ana Maria Monteiro reconhece o avanço que a categoria “saber docente” traz para se entender
as ações dos professores, porém aponta para a necessidade de mais pesquisas que especifiquem
intimamente a relação dos docentes com os saberes que ensinam.

Acreditamos, no entanto, que mesmo esses trabalhos, que representam um avanço


significativo para a compreensão da especificidade da ação docente, ainda se
ressentem da ausência de pesquisas que direcionem seu foco de análise mais
diretamente sobre a relação dos professores com os saberes que ensinam, tarefa esta
que, certamente, demanda um esforço de especialistas das diferentes áreas de
conhecimento específico, em trabalhos individualizados e coletivos, que possam
melhor esclarecer essa relação tão valorizada pelos professores (principalmente
aqueles que atuam no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio)
e, ao mesmo tempo, tão ausente de seus comentários e conversas cotidianas e
profissionais. (MONTEIRO, 2001, p. 123)

Contudo, já existem pesquisadores que trabalham com a questão da experiência dentro de


uma abordagem mais plural, relacionando diversos saberes além do saber científico de referência
criando a categoria “conhecimento escolar”.
Por outro lado, pesquisadores preocupados com a especificidade da experiência educativa
escolar têm trabalhado com a categoria “conhecimento escolar”, referida como aquela que designa
um conhecimento com configuração cognitiva própria, relacionado mas diferente do saber científico
de referência, e que é criado a partir das necessidades e injunções do processo educativo, envolvendo
questões relativas à transposição didática, ao conhecimento de referência e cotidiano, bem como à
dimensão histórica e sociocultural numa perspectiva pluralista (Develay, 1995; Forquin, 1992;
Chevallard, 1991; Goodson, 1998; Lopes, 1999). (MONTEIRO, 2001, p. 123)
Ana Maria Monteiro apresenta Tardif, Lessard e Lahaye (1991) para apontar a pluralidade
do saber docente, que vai muito além do constituído academicamente,

Tardif, Lessard e Lahaye (1991) chamam a atenção para o fato de que o saber docente
é plural, estratégico e desvalorizado, constituindo-se em um amálgama, mais ou
menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional, dos saberes das
disciplinas, dos currículos e da experiência. Os primeiros têm sua origem na
contribuição que as ciências humanas oferecem à educação e nos saberes
pedagógicos (concepções sobre a prática educativa, arcabouço ideológico, algumas
formas de saber-fazer e algumas técnicas) (1991, p. 219). Os saberes das disciplinas
são aqueles difundidos e selecionados pela instituição universitária, correspondendo
aos vários campos de conhecimento; os saberes curriculares, os quais a instituição
escolar apresenta como aqueles a serem ensinados, resultado de um processo de
seleção cultural ou de transposição didática, como quer Chevallard. Os saberes da
experiência são os constituídos no exercício da prática cotidiana da profissão,
fundados no trabalho e no conhecimento do meio. “São saberes que brotam da
experiência e são por ela vã- Educação & Sociedade, ano XXII, nº 74, Abril/2001
131 lidados. Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e

585
de habilidades, de saber fazer e de saber ser.” (1991, p. 220). (MONTEIRO, 2001,
p. 130)

Esses saberes não provêm das instituições de formação ou dos currículos, esses saberes não
se encontram sistematizados no quadro de doutrinas ou teorias: eles são saberes práticos (e não da
prática: eles não se aplicam à prática para melhor conhecê-la, eles se integram a ela e são partes
constituintes dela enquanto prática docente) [...] são a cultura docente em ação. (1991, p. 228).
(MONTEIRO, 2001, p. 130)
Então, saberes docentes está intimamente ligado à formação e experiência profissional e
pessoal dos docentes, ou seja, suas histórias de vida como um importante elemento norteador das
práticas docentes no cotidiano escolar.

HISTÓRIA DE VIDA DOS PROFESSORES

Segundo Nóvoa (2007) “O movimento nasceu no universo pedagógico, numa amálgama de


vontades de produzir um outro tipo de conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do
quotidiano dos professores” (2007, p.19). Portanto, a pesquisa de histórias de vidas de docentes de
história do Ensino Médio faz-se necessária para se entender a formação cultural, social e política,
além da acadêmica como agentes formadores dos saberes e práticas docentes.
O autor agrupa nove tipos de estudos, que podem ser expandidas, mas que servem para a
compreensão dos aspectos dos objetos de análises: Objetivos essencialmente teóricos, relacionados
com a investigação versus pessoa (do professor); objetivos essencialmente teóricos, relacionados
com a investigação versus práticas (dos professores); objetivos essencialmente teóricos, relacionados
com a investigação versus profissão (de professor); objetivos essencialmente práticos, relacionados
com a formação versus pessoa (do professor; objetivos essencialmente práticos, relacionados com a
formação versus práticas (dos professores); objetivos essencialmente práticos, relacionados com a
formação versus profissão (de professor); objetivos essencialmente emancipatórios, relacionados
com a investigação-formação versus pessoa (do professor); objetivos essencialmente
emancipatórios, relacionados com a investigação-formação versus práticas (dos professores) e
objetivos essencialmente emancipatórios, relacionados com a investigação-formação versus
profissão (de professor).
Para se responder o problema central desta pesquisa, que visa compreender o posicionamento dos
professores de história do Ensino Médio num momento de mudanças nas políticas governamentais

586
a cerca do currículo formal nacional que não valoriza seus saberes e práticas formadas por
experiências ao longo de suas vidas profissionais e pessoais, o tipo de estudo mais adequado é o de:
objetivos essencialmente teóricos, relacionados com a investigação versus práticas (dos professores).

Manifestando também uma preocupação essencialmente investigativa, este tipo de


estudos procura compreender as práticas pedagógicas a partir das narrativas ou
descrições dos professores (Connely e Clandinin, 1987; Gudmundsdottir, 1991). Ivor
F. Goodson é um autor de referência neste domínio, pois grande parte dos trabalhos
que conduziu em torno das histórias de vida eram portadoras de uma reflexão
essencial sobre o desenvolvimento curricular (Ball e Goodson, 1988; Walker e
Goodson, 1991). (NÓVOA, 2007, p.21)

O professor da Educação Básica no Brasil tem pouca voz dentro de um cenário de


desvalorização docente, baixos salários, índices de avaliações externas, currículos formais
imperativos vindo de governos, donos de escolas, materiais didáticos etc. O atual momento político
que pretende grandes reformas no sistema educacional brasileiro, pouco ou nada tem considerado o
conhecimento desses profissionais. Ivor Goodson defende que é necessário dar voz ao professor,
pois esse produz diariamente em sua vida e na prática de sua profissão saberes reais do processo
educacional.
Nesse sentido, considerando o professor como:

um profissional com competências alargadas [...] É como se o professor fosse a sua


própria prática. Para os formadores de professores, esta especificidade de incidência
é compreensível, mas eu desejo provar que, numa perspectiva mais lata, poder-se-á
ir mais longe: não só em termos das nossas percepções, mas, fundamentalmente, no
modo como realimentamos as mudanças em relação ao conhecimento prático.
(GOODSON, 2007, p. 68)

Desta forma, a metodologia de história de vida será utilizada para que sendo inserida num
contexto social mais amplo, possa se perceber as contribuições e/ou anseios que os docentes de
História do Ensino Médio podem exercer em relação às políticas públicas educacionais atuais.
A história de vida é muito útil na compreensão de mudanças educacionais. Estudando as
histórias de vida dos professores, vemos como determinadas mudanças na educação, especialmente
reformas educacionais, entrecruzam-se com as vidas dos professores e com o senso de sua própria
missão. Muitas vezes, as mudanças e reformas educacionais são instituídas em total desafio, ou
ignorando o senso de vocação, missão e significado dos professores. Isso significa que tais reformas
costumam estar condenadas desde o início. Nesse sentido, uma compreensão mais apurada da

587
história de vida do professor tornará a mudança e a reforma educacional uma arte muito mais
sofisticada e com muito mais chances de êxito.9

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendo o objetivo do governo para a criação de um currículo nacional como uma


tentativa de homogeneizar não só o ensino, mas também a cultura e a identidade nacional.
Numa disputa de discursos por significações, pretendendo formar assim, o “cidadão de bem”
idealizado nacionalmente, suprimindo a diversidade cultural que existe em nosso país, e a política
como atos de poder que objetivam a formação social.
Um currículo não se deve ser produzido sem a contribuição direta de seus principais agentes
sociais diretos, que são alunos, professores, coordenadores pedagógicos, educacionais, famílias,
pesquisadores e especialistas de áreas disciplinares. Principalmente o professor da educação básica,
que está diariamente se equilibrando nos currículos, e criando saberes, junto com seus alunos, que
verdadeiramente são responsáveis pela construção de conhecimentos reais que podem contribuir para
uma melhor qualidade de vida de todos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

APPLE, Michael W. A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currículo


nacional? In: MOREIRA, Antônio Flávio; TADEU, Tomaz (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade.
12a ed., São Paulo – SP: Cortez, 2011. p. 71-106.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Conteúdos e métodos de ensino de História: breve


abordagem histórica. História nas atuais propostas curriculares. Ensino de História: fundamentos
e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 59-96.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história; tradução de Maria de Lourdes Menezes ;*revisão
técnica [de] Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

GABRIEL, Carmen Teresa. Quando “nacional” e “comum” adjetivam o currículo da escola


pública. Revista Retratos da Escola, v. 9, n. 17. Brasília – DF: jul/dez 2015. p. 283-297. Disponível
em <http//www.esforce.org.br>

9 A arte de contar a própria história. Entrevista de Ivor Goodson para a Revista Pátio nº 33/ 2017.
Disponível em: https://loja.grupoa.com.br/revista-patio/Edicao_do_Mes.aspx

588
GOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu
desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. 2ed. Porto
Editora: 2007. p. 63-78.

________. Currículo, narrativa e o futuro social. In: Revista Brasileira de Educação. V.12 n. 35.
Maio/Agosto, 2007.

MACEDO, Elizabeth. Base Nacional Curricular comum: a falsa oposição entre conhecimento para
fazer algo e conhecimento para fazer algo e conhecimento em si. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - RJ, Brasil, 2016.

MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores: entre saberes e práticas. Educação &
Sociedade, ano XXII, nº 74, Abril/2001.

NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. 2ed. Porto Editora: 2007.

589
Entre Textos E Imagens:
Representações Femininas Em Livros Didáticos De História 1

Cristiane da Silva Lima Martins 2

Resumo: Este trabalho tem por objetivo investigar as representações femininas nos livros didáticos
de História dos anos finais do Ensino Fundamental. A abordagem através da História das Mulheres
é de fundamental importância para refletirmos o papel da Educação na edificação de uma sociedade
mais igualitária. Esse estudo apresenta uma proposta para o Ensino de História com base na
necessidade de gerar discussões para suprir as lacunas referentes à História das Mulheres nos livros
didáticos de História. Dessa forma, o trabalho é uma tentativa, dentre outras possíveis, de inserir essa
discussão na constituição dos saberes escolar. Acrescenta-se a isso a importância de analisar o livro
didático, pois é através dessa ferramenta, na maioria das vezes, que a história é trazida a alunos e
alunas.

Palavras-Chave: Gênero; Livro Didático; Representação Feminina.

Abstract: This work aims to investigate the female representations in the textbooks of History of
the final years of Elementary School. The approach through the History of Women is of fundamental
importance to reflect the role of Education in building a more egalitarian society. This study presents
a proposal for Teaching History based on the need to generate discussions to fill the gaps regarding
the History of Women in History textbooks. In this way, the work is an attempt, among other
possible, to insert this discussion in the constitution of the school knowledge. Added to this is the
importance of analyzing the textbook, because it is through this tool, most of the time, that the story
is brought to students.

Keywords: Gender; Didactic Book; Feminine Representation.

INTRODUÇÃO

O debate sobre as relações de gênero é de valor primordial, pois interfere na elaboração do


arcabouço cultural de gerações, colaborando substancialmente no que se refere ás maneiras de
entender a sociedade e as relações que perpassam por ela. Nessa perspectiva, compreendendo o livro
didático como parte de uma sociedade, ou seja, é fruto desta, bem como, construtor, uma vez que, é
através dessa ferramenta, na maioria das vezes, que a história é trazida a alunos e alunas. Dessa
forma, existe uma forte influência das abordagens encontradas nos livros didáticos contribuindo para
a construção de representações e interpretações acerca do papel da mulher na sociedade, tendo em
vista que esses manuais estão diretamente envolvidos na formação dos sujeitos.

1 O artigo apresentado é parte da pesquisa que está em desenvolvimento no programa de Mestrado da


Universidade Estadual de Feira de Santana.
2 Mestranda em História - Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) - krislimamartins@bol.com.br

590
O trabalho tem por objetivo analisar as representações femininas veiculadas nos manuais
didáticos de História, com intuito de avaliar as abordagens sobre a participação da mulher na história
e o lugar social que essas mulheres ocupam nos conteúdos dos manuais didáticos. O livro didático é
um recurso bastante utilizado na sala de aula de fundamental importância no processo de ensino e
aprendizagem. Por isso a importância de analisar os conteúdos presentes nestes materiais, pois, estes,
podem interferir na construção de valores, propagar ideologias e representações.
Para tal, utilizar-se-á das relações de gênero como categoria de análise histórica, posto que,
o gênero está associado a um conjunto de papéis, crenças e normas que definem o que significa ser
homem ou ser mulher. Dessa forma, entender gênero como categoria de análise implica compreender
melhor as ligações culturais e sociais entre homens e mulheres, uma vez que esses elos são
constituídos socialmente. Assim, pensar o papel da mulher vai além da divisão das funções entre os
sexos. É preciso investigar como as relações se estabelecem e se legitimam. Os estudos de gênero se
constituem em um novo paradigma, à medida que se propõe ultrapassar as determinações biológicas
sobre o sexo. Segundo Scott (1995) o termo “gênero” é uma forma de indicar como as representações
culturais e sociais são construídas, definindo papéis adequados aos homens e mulheres.
Esse texto constrói-se a partir da análise de três livros didáticos de história do oitavo ano do
Ensino Fundamental, a saber: “História: sociedade & cidadania”, “Projeto Araribá” e “Estudar
História: Das origens do homem à era digital”, obras analisadas e selecionadas pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) nas edições de 2008, 2011 e 2014. O PNLD foi instaurado com
o Decreto nº 91.542, de 19/8/85, em 1993/1994, foi incorporado ao PNLD duas etapas de caráter
pedagógico: a avaliação e a orientação dos professores para a escolha dos livros. Pois, o Programa,
até então, se limitava a compra e a distribuição dos mesmos Nesse sentido a prática de avaliação dos
livros se configura como uma conquista no âmbito da qualidade da educação. Efetivamente, esse
processo inicia-se, em 1996 3 , neste ano avaliou os livros inscritos para o PNLD/1997. Esse
procedimento foi aperfeiçoado, sendo exercido até hoje 4

3 Quando foi implementada, a avaliação era realizada pela Secretaria de Ensino Fundamental (SEF), sob a
coordenação de equipes de professores universitários. No entanto, a partir de 2001, a avaliação tornou-se responsabilidade
de universidades públicas, sob a supervisão da Secretaria de Educação Básica (SEB). Nesse ano a SEF passou a ser
denominada de Secretaria de Educação Básica (SEB).
4 Antes de 1996, o PNLD não avaliava a qualidade pedagógica do material didático que adquiria. Existia um
conjunto de especificações técnicas feitas pelo Ministério da Educação (MEC) às editoras para que os livros fossem
inscritos no programa. Os títulos que atendessem a essas especificações técnicas eram organizados numa lista oficial e
oferecidos às escolas públicas para que fizessem as suas escolhas. A primeira avaliação pedagógica, em 1996, se orientou
por critérios de caráter conceitual (as obras deveriam ser isentas de erros ou de indução a erros) e política (deveriam ser
isentas de preconceito, discriminação, estereótipos e de proselitismo político e religioso). No ano de 1997, foram incluídos
os critérios classificatórios. Nesse período, as obras didáticas inscritas pelas editoras no Programa Nacional de Livros
Didáticos eram classificadas por menções (Recomendadas com Distinção-RD, Recomendadas-R, Recomendadas com
Ressalvas-RR; Não recomendadas-NR e Excluídas- EX). No PNLD/1998 foi inserida a categoria Recomendado com
Distinção e cada categoria passou a ser representada por estrelas: 3 estrelas (RD), 2 estrelas (R), 1 estrela (RR). O
PNLD/1999 atuou no segundo segmento do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries). Nesse ano, foi retirada a menção Não

591
A pesquisa se enquadra na História Cultural, pois se pretende inserir nas abordagens
historiográficas as experiências vividas pelas mulheres a partir de representações veiculadas em
livros didáticos de História. A História Cultural proporciona, portanto, a ampliação das fontes
históricas e por sua vez a variedade de abordagens dando suporte para novos estudos em áreas até
então inexploradas. Conforme José D’Assunção Barros (2005) entre os objetos estudados pela
História Cultural podemos citar a “cultura popular”, a ‘cultura letrada’, as ‘representações’, as
práticas discursivas partilhadas por diversos grupos sociais, os sistemas educativos, a mediação
cultural através de intelectuais, ou a quaisquer outros campos temáticos atravessados pela
polissêmica noção de “cultura”.
Nesse rol de novos procedimentos, o livro didático também é vista como fonte documental
na produção histórica. As narrativas didáticas constroem representações acerca da realidade. Através
da análise dessas narrativas, é possível conhecer as experiências, práticas sociais e hábitos que
circulam na sociedade em um determinado tempo. O conceito de representação utilizado nessa
pesquisa é o de Roger Chartier (1990), que entende as representações como práticas socialmente
construídas e sempre determinadas pelo interesse de um determinado grupo, que tenta impor a sua
concepção histórica. As estruturas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas, sejam
elas políticas, sociais ou discursivas, que constroem as suas figuras5. Nessa perspectiva, as mulheres
sempre foram vistas e representadas como um grupo subjugado ao homem.
Dessa forma, para que seja realizada tal abordagem, estruturar-se-á o presente trabalho em
dois momentos. No primeiro momento apresentaremos algumas discussões referentes ao livro
didático, visto nesse trabalho como importante objeto de pesquisa. Por fim, no segundo momento,
debateremos as imagens e discursos referentes às mulheres presentes nas abordagens didáticas.

Recomendado e a representação com estrelas continuou a ser utilizada, assim como, foi incluído nos critérios de exclusão,
um terceiro critério de cunho metodológico, cooperando para a escolha de livros com abordagens metodológicas que
favorecesse o desenvolvimento das competências cognitivas básicas – análises, compreensão, síntese. O PNLD/2001
contemplou a 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental. Os livros foram classificados em Recomendados, Recomendados
com Ressalvas, Recomendados com Distinção e Excluídos. A representação com estrelas continuou a ser utilizada. O
PNLD/2002 atendeu da 5ª a 8ª séries. Nesse ano, os livros também foram classificados em Recomendados, Recomendados
com Ressalvas, Recomendados com Distinção e Excluídos, permanecendo a representação com estrelas. No PNLD/2005,
a classificação dos livros didáticos por menções foi substituída por Aprovada e Excluída. As diferenças entre as coleções
aprovadas passou a ser expressa em resenhas avaliativas presentes nos Guias de Livros Didáticos. Mais sobre o processo
de avaliação do livro didático em: CARIE, Nayara Silva de. Avaliações de coleções didáticas de história de 5ª a 8ª série
do ensino fundamental: um contraste entre os critérios avaliativos dos professores e do programa nacional do livro
didático. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-Minas Gerais,
2008.
5 Sobre representações ver: CHARTIER, Roger. A história cultural entre praticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, Lisboa, PT: Difel, 1990.

592
O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA COMO OBJETO DE PESQUISA

O campo de pesquisa sobre o livro didático (LD) tem crescido no Brasil graças às
contribuições da Nova História, especialmente da Nova História Cultural, que proporcionou a
ampliação dos debates historiográficos e os avanços nas discussões teórico-metodológicas, inserindo
novas categorias sociais, fontes e objetos de pesquisa (BARROS, 2004). Nesse leque de fontes
proporcionado pela História Cultural, o LD, alcança o caráter de documento, podendo ser investigado
na tentativa de descontruir discursos, imagens e representações que permeiam o meio social.
Desde o século XIX que o livro didático está inserido no processo de construção de saberes
no sistema educacional brasileiro. Ele desempenha diversas funções por um lado, é visto como
depositório de conteúdos escolares. Por outro lado, como um importante veículo portador de
ideologias e de valores em uma determinada cultura. É essa gama de possibilidades que exprime e
potencializa esse instrumento como fonte de pesquisa histórica. Conforme Circe Bittencourt “a
complexidade da natureza desse produto cultural explica com maior precisão o predomínio que
exerce como material didático no processo de ensino e aprendizagem da disciplina, qualquer que
seja ela” (BITTENCOURT, 2006, p.72).
O livro didático também foi investigado por Kazumi Munakata (1997) que trouxe
contribuições valiosas quanto ao crescimento das pesquisas que utilizam esse documento como
fonte, a partir da segunda metade da década de 1970. Nesse período, a atenção das pesquisas estava
voltada para o estudo da produção propriamente dita do LD, incluindo aspectos técnicos de
editoração e impressão, embora, a crítica do “conteúdo” estivesse em crescimento. Munakata buscou
explicar a dimensão do mercado editorial no Brasil e seu vínculo com o Estado. Sua análise teve
como eixo as diferentes estratégias utilizadas pelas editoras para manter o controle comercial dos
manuais didáticos. Esse autor amplia as possibilidades de pesquisa desse material tal como podemos
analisar:

O texto não é apenas composto (tipograficamente) em tal ou qual fonte (tipo de letra),
segundo um certo estilo de diagramação; mais do que isso, o texto passa por uma
série de transformações, que suprimem capítulos, episódios ou divagações
consideradas supérfluas e simplificam frases; subdividem os textos criando novos
capítulos multiplicando os parágrafos, acrescentando títulos e resumos; por fim,
censuram as alusões tidas como blasfematórias ou sacrílegas, as descrições
consideradas licenciosas, os termos escatológicos ou inconvenientes. Essas
adaptações não seguem apenas a consciência moral e religiosa dos editores, mas são
também orientadas pela representação que ele tem das competências e das
expectativas culturais de leitores para quem o livro não é algo familiar.
(MUNAKATA, 1997, p.18)

593
As formas de intervenção determinada pela equipe editorial e autor de livros didáticos
(divisão de capítulos, parágrafos, notas, capa, ilustrações, diagramação etc.), a título de exemplo,
caracteriza um tipo de organização que tem como finalidade, entre outras, alcançar o sujeito leitor.
Considerando esses aspectos Chartier (1999) nos permite entender a intenção de editores e autores
de controlar a recepção e interpretação dos livros:

Compreender as razões e os efeitos dessa materialidade (por exemplo, em relação ao


livro impresso o formato: as disposições da paginação, o modo de dividir o texto, as
convenções que regem a sua representação tipográfica, etc.) remete necessariamente
ao controle que editores ou autores exercem sobre essas formas encarregadas de
exprimir uma intenção, de governar a recepção, de reprimir a interpretação.
(CHARTIER, 1999, p. 35)

Entretanto, isso não quer dizer que a recepção dar-se-á da forma que o editor ou o autor
pensou, visto que, o LD é um objeto de múltiplas leituras. As influências que o livro didático exerce
nos indivíduos não são idênticas, cada um utiliza-o de forma particular, dependendo da bagagem de
leituras e do lugar social em que o leitor se encontra, não obedece necessariamente às imposições
dos autores e editoras. (CHARTIER, 1990).
Alain Choppin (2002) também se empenhou em discussões que pudessem fomentar o LD
enquanto fonte de pesquisa. O autor esclarece que a partir de 1970 os historiadores começaram a
manifestar interesse pelas coleções escolares. O término da década testemunha essa tomada de
consciência com publicações enaltecendo esse material como fonte de pesquisa para historiadores
da Educação. Choppin elenca os fatores que contribuíram para o dinamismo nesse campo de
investigação, inscrevem-se, em primeiro lugar, os avanços ocorridos nos estudos em História da
Educação a partir de 1960; acrescenta-se, a isso, o progresso das técnicas de armazenamento e a
partir de 1980 o sistema de gerenciamento de base de dados que facilitou o acesso e tratamento de
grande quantidade de documentos. Ademais,

Por um lado, a onipresença dos livros escolares e o peso econômico que representa
esse setor na paisagem editorial destes dois últimos séculos; por outro lado, a
complexidade do manual escolar como produto cultural e editorial justificam
amplamente o interesse crescente que lhe destinam os historiadores, há mais de vinte
anos, no mundo inteiro. (CHOPPIN, 2002, p.23)

Esses aspectos convergem para que o livro didático suscite interesse entre os pesquisadores,
estes, empregam diferentes formas de investigação proporcionando um movimento na construção de
pesquisa sobre esse material. Ao selecionar o LD como objeto de investigação, procuramos
ultrapassar “o caráter todo poderoso do texto, e o seu poder de condicionamento sobre o leitor – o

594
que significa fazer desaparecer a leitura enquanto prática autônoma.” (CHARTIER, 1990, p. 121).
Pois, as relações que são estabelecidas entre os diferentes usuários com os livros são indefinidas e
variam de lugar para lugar.
Esta complexidade de questões que cerca a investigação viabiliza o uso do livro didático
como fonte de pesquisa e mostra sua capacidade de discussões e perspectivas variadas. É importante
compreender como esse objeto cultural constrói significados e representações diversas. Ao
considerar todas essas possibilidades de análises e caminhos a serem seguidos, Circe Bittencourt
notabiliza a importância desse documento da seguinte forma:

O papel do livro didático na vida escolar pode ser o de instrumento de reprodução


de ideologias e do saber oficial imposto por determinados setores do poder e pelo
Estado. É necessário enfatizar que o livro didático possui vários sujeitos em seu
processo de elaboração e passa pela intervenção de professores e alunos que realizam
práticas diferentes de leitura e de trabalhos escolar. Os usos que professores e alunos
fazem do livro didático são variados e podem transformar esse veículo ideológico e
fonte de lucro das editoras em instrumento de trabalho mais eficiente e adequado às
necessidades de um ensino autônomo (BITTENCOURT, 2006, p.73).

Os livros didáticos estão presentes na escola, nesta, são lidos e analisados. Todavia a
instituição escolar, como nos lembra Bittencourt (1993) pode ser vista como ambiente de reprodução
ideológica, também produz conhecimento e engloba resistências a projetos hegemônicos. Nessa
perspectiva, para além das relações entre autores, editores e Estado, presente na produção dos livros
didáticos, a autora acrescenta as práticas de leitura do LD feita pelos alunos e professores. Desse
modo, mesmo considerando que o livro didático se caracteriza como “veículo ideológico” existem
diferentes maneiras de utilizá-lo nas quais a prática do professor é crucial.
Ainda segundo Bittencourt (2006), ao se considerar o LD como um documento, ele passa a
ser investigado de acordo as determinações específicas da observação histórica e, desse modo, sendo
um objeto produzido em um determinado contexto, possibilita, por interferência do método do
historiador, uma leitura crítica de seus conteúdos e imagens. “Sua tendência é de ser um objeto
padronizado, com pouco espaço para textos originais, condicionando formatos e linguagens, com
interferências múltiplas em seu processo de elaboração associadas á lógica da mercantilização e das
formas de consumo” (BITTENCOURT, 2006, p. 73).

595
A HISTÓRIA DAS MULHERES NOS LIVROS DIDÁTICOS

A História das Mulheres vem conquistando seu espaço e ganhando um novo olhar por parte de
historiadores e historiadoras. O desenvolvimento desse novo campo pluraliza as formas de
investigação histórica e as mulheres alcançam à condição de objeto da História. Tal ampliação vem
possibilitar o protagonismo de mulheres como sujeitos políticos e participantes de mudanças sociais.

Para Moura, Rosemberg e Silva (2009) no Brasil as pesquisas na década de 1970 assinalaram
a mudança de paradigmas na apreensão das desigualdades sociais entre homens e mulheres,
destacando a educação como construtora dessas desigualdades. A partir de então os estereótipos
referentes aos gêneros que são vinculados ou produzidos pelos livros didáticos adentraram nas
produções acadêmicas e nos movimentos feministas.

Com o propósito de analisar como a História das Mulheres é apresentada nos livros didáticos,
investigaremos os seguintes livros didáticos: História: sociedade & cidadania do autor Alfredo
Boulos; Projeto Araribá e História: das cavernas ao terceiro milênio da autora Patrícia Ramos
Braick, todos do oitavo ano do Ensino Fundamental, utilizados entre os anos (2008 e 2014). Para
análise dos livros didáticos foram selecionados dois períodos da história: “A Revolução Francesa” e
“A Independência da Bahia”, esses temas possibilitam debater questões referentes à história das
mulheres, considerando-se, as ações das mulheres nos fatos citados.
O primeiro tema, “A Revolução Francesa”, no livro História: sociedade & cidadania, é
abordada no capítulo treze, as mulheres foram silenciadas ao longo do capítulo. O autor apenas fala
sobre sua participação, nesse evento histórico, em uma das questões da atividade, na qual, apresenta
uma imagem que retrata a participação da mulher na Revolução Francesa, como mostra a Figura 1,
e propõe ao aluno criar uma legenda explicativa. Entretanto, o autor não discute a participação da
mulher no decorrer do capítulo e na sessão de atividade sugere ao aluno explicar algo que o livro não
oferece suporte para análise.

596
Figura 1

Fonte: BOULOS, 2006, 8º ano, p. 149.

Conforme Morin (2009), imbuídas dos princípios de liberdade, justiça e igualdade contidos na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, as mulheres fundaram clubes políticos,
discursaram na Assembleia Nacional participaram das jornadas revolucionárias. Porém, a
importância do seu papel na Revolução Francesa foi negligenciada pela historiografia tradicional e
esta negligência é confirmada nos manuais didáticos de História. Partindo desse pressuposto, Souza
(2003) relata a intensidade com que as mulheres participaram da Revolução Francesa, rompendo
com uma filosofia e com os costumes de uma sociedade que as queriam reclusas ao lar, longe,
portanto, do cenário dos acontecimentos públicos. As mulheres francesas, assim como os homens,
desenvolveram ações revolucionárias foram levadas às barras dos tribunais, presas e guilhotinadas.

Em referência ao segundo tema, “A Independência da Bahia”, é abordada de forma bastante


resumida no capítulo dezessete, sob o título: O reinado de D. Pedro I: uma cidadania limitada. O
autor insere á atuação da mulher na narrativa didática de forma superficial e sem problematizações.
A única mulher citada, em todo capítulo, é Maria Quitéria, sua menção é feita no quadro “Leitura de
Imagem”, separado do corpo do texto, como mostra a Figura 2.

597
FIGURA 2 - Retrato de Maria Quitéria

Fonte: Boulos, 2006, 8º ano, p.199

Contudo, no texto principal, em nenhum momento pontua qualquer tipo de participação


feminina nesse fato histórico. Há mais informações sobre Maria Quitéria na seção apêndice, ao final
do livro. Não encontramos referência de outras mulheres que também participaram do processo de
Independência da Bahia6.
O segundo livro analisado Projeto Araribá, no capítulo sete, discute a “Revolução Francesa”,
em nenhum momento refere-se à participação da mulher nesse processo. Nesta perspectiva, quando
a obra deixa de abordar os vários sujeitos que fazem parte do processo histórico, contribui para a
construção de uma imagem em que a História é feita apenas por um deles, nesse caso, o homem
branco e da elite. A ideia transmitida pelo autor, e em especial no capítulo sobre a Revolução
Francesa, é de uma História homogênea omitindo outras faces da História.

Com relação ao segundo tema, “A Independência da Bahia”, o LD faz alusão a duas mulheres
conhecidas na época. A primeira, Maria Quitéria, apresentada mediante uma imagem, mas essa
imagem não é problematizada. O texto principal é composto apenas pela história dos homens, a
inserção da mulher nesse processo de luta pela independência aparece com mera ilustração.

6 Joana Angélica, Maria Felipa e outras mulheres que participaram das lutas pela Independência da Bahia, foram
negligenciadas.

598
FIGURA 3- Maria Quitéria

Fonte: Pojeto Araribá, 2007, 8º ano p.167.

A segunda mulher que aparece no texto didático referente ao processo de emancipação da


Bahia é a imperatriz D. Leopoldina, como mostra a Figura 4, seu relato aparece em um boxe à parte.

Figura 4- A imperatriz Leopoldina com os Filhos

Fonte: Projeto Araribá, 2007, 8º ano, p.170.

Nesse sentido, a simples inclusão de pequenos textos sobre as mulheres não significa
alteração importante na construção da História das mulheres. As poucas imagens, leitura
complementar e os pequenos boxes não buscam mudar a maneira de construir o conhecimento
histórico, são tão somente estratégias utilizadas pelas editoras com intuito de responder uma
demanda das novas discursões historiográficas e até mesmo social que cada vez mais dão ênfase ao
espaço conquistado pelas mulheres.

599
No terceiro livro História: das Cavernas ao terceiro milênio, no capítulo sete, referente à
“Revolução Francesa”, no tópico Cidadãs, mas nem tanto, a autora nos diz: “Nos primeiros anos da
revolução, a participação feminina foi aceita e até mesmo incentivada. Elas participaram ativamente
da vida política do país. Muitas fundaram clubes políticos, encabeçaram protestos e ações armadas
e até mesmo discursaram no Parlamento” (BRAICK, 2011, p. 123). Olympe de Gouges é citada no
texto principal para falar da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, um manifesta que
“reivindicava a igualdade de direitos entre homens e mulheres [...] baseava-se no argumento de que,
se as mulheres poderiam ser condenadas pela lei, também deveriam ter seus direitos garantidos por
ele” (BRAICK, 2011, p. 123). Constatamos a inclusão das mulheres nessa discussão, as
reivindicações das mulheres francesas durante a Revolução Francesa foram evidenciadas no texto
principal. O texto vem acompanhado da imagem abaixo:

FIGURA 5 – Gravura francesa do século XVIII

Fonte: BRAICK, 2011, 8ºANO, p, 123.

A imagem trata-se de uma gravura francesa do século XVIII, representa a marcha de cerca
de 7 mil mulheres de Paris ao Palácio de Versalhes, em 5 de outubro de 1789, para protestar contra
a falta de pão. Segundo Tânia Morin as mulheres estavam engajadas nas questões políticas e
envolvidas em decisões importantes referentes ao Congresso Nacional. “Assim, quando o rei
convocou os Estados Gerais em agosto de 1788, elas se fizeram presentes, lutando ao lado dos
homens e mobilizando a população para escolher bons representantes para a Assembleia
Constituinte” (MORIN, 2009, p.114).
O segundo tema, “Independência da Bahia”, aparece no capítulo dez, no subtítulo As guerras
de independência. Nesta, em um box Saiba mais, com um pequeno texto intitulado Uma mulher na
luta pela independência fala sobre a participação de Maria Quitéria:

600
Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853) juntou-se às tropas que defendiam a
independência do Brasil, na Bahia. Ela foi a primeira mulher a fazer parte,
oficialmente, de um unidade militar no Brasil. Em agosto de 1923, Maria Quitéria
recebeu de D. Pedro I a condecoração Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro.
(BRAICK, p. 179, 2011)

A representação das mulheres nos livros didáticos de História é de um papel político e social
secundário. Porém é preciso ressaltar que, em alguns livros didáticos, existe a tentativa de inserir
novos sujeitos, algumas melhores do que outras, mas o que se observa é que o homem branco e
abastado continua sendo o condutor e representante dos momentos históricos. Dessa forma,
considerando a importância do livro didático na esfera escolar e social, este acaba incutido
determinados valores para a manutenção das diferenças e hierarquias nas relações sociais entre
homens e mulheres. Diante das omissões sobre a participação das mulheres na História, os livros
didáticos reforçam a imagem da diferença e das desigualdades entre os gêneros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos poucos recortes que consta a presença da mulher, são passadas concepções fragmentadas,
e estes manuais permanecem distantes da realidade histórica. Dessa forma, os autores desses manuais
se distanciam das discussões historiográficas e das pesquisas acerca da temática. Diante dessa
ausência, cabe ao professor, no momento da aula, descontruir as diferenças entre os gêneros
presentes nestes manuais, apontar as deficiências e ampliar as possibilidades de estudo mostrando a
diversidade nos fatos históricos. A diversidade cultural está presente nos currículos, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) e suas proposições devem ser discutidas no ambiente escolar.

Os discursos escritos e os discursos inscritos nas imagens presentes nos livros didáticos de
História mostram a presença quase total do sexo masculino. Diante da análise, pode-se afirmar que
existe uma tendência destes manuais em legitimar uma única forma de representar as identidades
sexuais em que opõe o gênero feminino ao masculino.

A maioria das mulheres inseridas nas abordagens didáticas está confinada em boxes, à margem da
história. A mensagem que se passa com essa forma de representação é de que as mulheres estavam
presentes no processo histórico, mas sua participação não é merecedora de ocupar o texto principal
nos livros didáticos. Averiguou-se, neste estudo, que os livros didáticos de história, mostram poucas

601
personagens femininas presentes no processo histórico, as abordagens apresentadas são vagas, sem
problematizações e desconectadas do texto principal, não contemplam as lutas sociais e políticas das
mulheres.

REFERÊNCIAS

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Petrópolis-Rio de Janeiro: Vozes, 2004. 224p.

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603
Notas de viagem sobre o Panamá: A viagem de Paul Groussac em 1893

Daiana Pereira Neto1

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar as notas de viagem do autor franco-argentino Paul
Groussac sobre a Cidade do Panamá, decorrentes de sua viagem em 1893. Groussac visitou o Panamá
em um período de transição entre a intervenção francesa na construção do Canal do Panamá, o qual
não conseguiu concluir, e a maior presença norte-americana, país que assumiu o empreendimento.
Dessa maneira, sua visão do espaço é visivelmente marcada pela tensão entre estas duas esferas de
influência. Este trabalho se dedica a análise de um texto compreendido como literatura de viagem,
entendendo tal tipo de fonte como um meio para melhor compreender a sociedade visitada, mas
principalmente o próprio autor e a sociedade argentina, público para o qual o texto foi escrito, no
final do século XIX.

Palavras-chave: Paul Groussac, literatura de viagem, Panamá.

Abstract: This paper aims analyze the travel notes of French-Argentine author Paul Groussac about
the Panama City, arising from his trip in 1893. Groussac visited Panama in a period of transition
between the French intervention in the construction of the Panama Canal, which failed in accomplish
it, and the largest United States presence, which took over the venture. Thereby, his view of the place
is marked by the tension between these two spheres of influence. This work is dedicated to the
analysis of a text seen as travel literature, understanding this kind of source as a way to better
understand the city visited, but especially the author himself and the Argentine society, the target
audience to which the text is directed in the late nineteenth century.

Keywords: Paul Groussac, travel literature, Panama.

Introdução

Este trabalho analisa um relato de viagem do autor franco-argentino Paul Groussac, escrito
sobre sua viagem ao Panamá em 1893. O autor viajava como representante argentino para a
Exposição Universal de Chicago, em decorrência disso atravessou diversos países latino-americanos
antes de alcançar seu destino final, expedição que relatou em Del Plata al Niágara, publicado em
1897.
Considerando que o relato de uma viagem é marcado tanto pela subjetividade de quem o
escreve, quanto pela conjuntura na qual a viagem é empreendida, é necessário que o autor seja melhor
apresentado.

1 Doutoranda em História da Universidade Federal de Juiz de Fora com bolsa CAPES. Email:
daianapneto@gmail.com

604
Paul Groussac nasceu em Toulouse, França, em 15 de fevereiro de 1848, aos 17 anos partiu
para a Argentina, país onde viveu o restante de sua vida. O autor chegou ao país sem dominar a
língua espanhola, sem conhecidos e sem dinheiro. Mesmo assim, alcançou no decorrer de sua vida
uma posição de prestígio dentre a intelectualidade do país adotivo.
Groussac desembarcou em solo argentino em fevereiro de 1866, aos 18 anos, passou quase
um ano trabalhando em uma estância, experiência que se mostrou fundamental para sua formação e
que transparece em alguns de seus escritos. Somente em 1867, negando um pedido do pai que
desejava o regresso à França, retornou a Buenos Aires, tendo como desculpa para adiar a volta ao lar
paterno, aprender adequadamente o espanhol, pois este mesmo na Europa poderia se mostrar de
grande valia. Uma série de oportunidades adiaram seu retorno, que em definitivo nunca ocorreu. No
mesmo ano de 1867, conseguiu um cargo de professor no Colegio Modelo Del Sur, ao qual renunciou
rapidamente por não se adaptar ao trabalho letivo exigido pela instituição. Lecionar, no entanto,
também foi uma oportunidade de aperfeiçoar seus próprios conhecimentos, uma vez que o autor se
dedicou a numerosas leituras, o que continuou mesmo após abandonar a posição de professor na
escola e se empregar como tutor de uma abastada família.
Em 1871 escreveu seu primeiro trabalho em espanhol, publicado na Revista Argentina,
tratava da obra de Espronceda2, o texto chegou às mãos do então ministro Nicolás Avellaneda 3, que
o encaminhou ao Ministério de Instrução Pública, que convidou Groussac a conhecer Tucumán, onde
acabou por assumir um cargo de professor no Colégio Nacional, permanecendo na província por 11
anos, neste período assumiu o cargo de inspetor de educação, casou-se e iniciou sua família.
Regressou à França apenas em 1883, permanecendo em Paris por quase um ano. Em 1884 já
de volta a Argentina, estabeleceu-se em Buenos Aires, onde fundou junto a amigos influentes o
periódico Sud-América. Em 1885 foi nomeado para o cargo de diretor da Biblioteca Nacional, no
qual permaneceu até sua morte em 1929. Este cargo ofereceu uma série de oportunidades, a primeira
delas, e talvez a mais importante, foi a possibilidade de se dedicar quase por completo as atividades
intelectuais, o que era muito difícil para seus contemporâneos, os quais Groussac classificou como
literatos de ocasião.4 Também editou duas revistas de prestígio no país, La Biblioteca (1896-1898)
e os Anales de la Biblioteca (1900-1916), publicações que deram ao franco-argentino a possibilidade

2 Foi um poeta espanhol, viveu entre os anos de 1808-1842, sendo considerado o poeta mais
representativo do primeiro romantismo espanhol.
3 Foi ministro no governo de Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874), sucedendo-o como presidente
da República Argentina.
4 Groussac também se insere dentre estes literatos.

605
de atuar como um articulador cultural, selecionando alguns autores e tendências literárias e rejeitando
outros.5
Groussac empreendeu longas viagens durante sua vida, retornou a Europa em 1883, 1894,
1898, 1911 e 1925, viajou por diversos países latino-americanos e para os Estados Unidos em 1893,
experiências que foram fundamentais para sua formação. Dado o espaço deste texto, me deterei em
sua passagem pelo Panamá.

Um Franco-Argentino no Panamá

Uma certa tensão entre modernidade e tradição se estabelecem no relato de Groussac: o


elogio aos avanços técnicos, inclusive aos meios de transporte e de comunicação, coexiste com o
apego aos valores de uma aristocracia intelectual em vias de desaparecer. No Panamá são latentes os
choques com a grandeza das construções gigantescas - o canal-, naquele momento paradas devido à
crise da empreitada francesa.
A viagem que se inicia com a saída de Lima com destino o Panamá marca também o distanciamento
dos elementos familiares, dos amigos que o recebiam gentilmente, ou em suas palavras se tornavam
mais fracos os fios que o atavam a Buenos Aires:

Hasta Lima había llegado, adelgazándose más y más al estirarse, el hilo invisible que
me ata á Buenos Aires: no sólo encontraba donde quiera, en Chile y el Perú, una
propagación de afectos ó relaciones fáciles, sino que comprobaba personalmente la
irradiación directa de la tierra adoptiva. El hilo está roto. ¿Qué individualidad puedo
yo esperar, allí donde la Argentina parece mucho más desconocida y distante que en
París ó Londres? Tengo de ello una percepción inmediata, desde que piso la cubierta
del vapor Imperial que me lleva á Panamá. 6

Uma maior consciência de estar entrando na órbita onde a influência norte-americana se


estabelecia era cada vez mais forte. É interessante observar que, nessa passagem, torna-se mais fácil
para o autor assumir-se como francês, do que nos países visitados anteriormente, onde se relaciona
diretamente com amigos argentinos que vivem neles e o acolhem. É maior também a familiaridade
com Chile e Peru, países fronteiriços com a Argentina e com os quais o país adotivo compartilha

5 BRUNO, Paula. Paul Groussac. Un estratega intelectual. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica/UdeSA, 2005.

6 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. 104-
105.

606
muito mais elementos, tanto econômicos, culturais e históricos. A falta de conhecimento sobre a
Argentina no Panamá demonstra a meu ver, um distanciamento entre os próprios países latino-
americanos, que conhecem melhor as metrópoles europeias do que os novos países que se
consolidam como Estados nacionais. Esse desconhecimento mútuo se torna mais evidente nos países
visitados na América Central do que no interior da América do Sul, expressando-se de forma
marcante quando o autor escreve sobre a intelectualidade mexicana. 7
Suas observações sobre o Panamá transitam entre um patriotismo cometido em relação à
pátria francesa e seu empreendimento fracassado e a nova empreitada encabeçada pelos norte-
americanos para a conclusão das obras do canal que ligaria o Pacífico ao Atlântico. Sendo assim, na
visita ao Panamá é possível apreender sentimentos no que se refere à pátria mãe que sai derrotada.
A passagem pelo Panamá deixou mais evidente o contraste entre a natureza exuberante e a
intervenção humana no espaço. Ao adentrar solo panamenho, após sair de Quayaquil na Colômbia,
lugar marcado pela ação de um forte caudilho, Groussac cruzou uma baía que ele comparou em
beleza a Baía de Guanabara no Rio de Janeiro. O clima tropical ameno fez com que o autor
comparasse o espaço ao paraíso terrestre. Não deixa de ser interessante salientar que ainda em fins
do século XIX a metáfora do paraíso ainda se aplique a espaços americanos, considerados na época
dos grandes descobrimentos europeus como o paraíso primal, esse paraíso, porém já não permanecia
o mesmo.

La entrada de Panamá por el Pacífico es un encanto parece una reducción de la de


Río de Janeiro; sólo que aquí conviene llegar al alba, en tanto que la portentosa bahía
brasileña necesita del sol declinante para resplandecer en toda su gloria magnífica y
teatral.8

No Panamá o embate entre duas forças se torna claro, por um lado os franceses e por outro
os norte-americanos. Ou se formos mais fundo nos aproximando do discurso calibanesco, do qual
Groussac foi o precursor, será mais claro o embate entre os latinos e os norte-americanos. Nas
páginas de Groussac podemos observar um certo desapontamento em relação à falha francesa na
execução do projeto, mas logicamente uma decepção comedida, uma vez que, em 1893, não havia a
certeza que os norte-americanos efetivamente construiriam o Canal. Em suas notas de rodapé na
edição de 1925 de Del Plata al Niágara, um Groussac idoso relembra o leitor de tal ordem
cronológica e justifica suas observações feitas na viagem de 1893.

7 Se este desconhecimento mútuo é marcante nos países ibero-americanos em fins do século XIX, em
relação à América portuguesa esse distanciamento dos países vizinhos será ainda mais perceptível. No entanto, a
intelectualidade francesa será um referencial comum.
8 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p.
116.

607
Quando Groussac chega a estas paragens os norte-americanos já haviam assumido a área e a
reprojeção do Canal. O primeiro sinal dessa ocupação é essencialmente a língua. Os letreiros das
placas haviam substituído o francês pelo inglês e os norte-americanos pululavam em todas as
direções. O autor percebeu uma tensão muito clara, por um lado os franceses e de outro os
estadunidenses. Essa baliza comparativa França/Estados Unidos guiará em certa medida seus
apontamentos acerca do Panamá, que será um país cuja consolidação da identidade nacional será
ainda mais complexa devido à noção de “trasitismo”, 9 ou seja, um país de trânsito onde a maior parte
das pessoas se estabeleciam de forma passageira. Primeiro o Panamá pertenceu à Colômbia, depois
sofreu a forte influência francesa quando da primeira tentativa de se construir o Canal, logo em
seguida a intervenção norte-americana que o acompanhou até 31 de dezembro de 1999, quando a
administração do Canal foi passada as mãos do governo panamenho.
Groussac afirma ser evidente a presença das duas metrópoles como balizas de influência, sua
passagem pelo Panamá demonstra bem esta nova ocupação americana, partindo dos “escombros” da
empreitada francesa fracassada. Existe, porém, como parte fundamental do relato do franco-
argentino uma dicotomia mais clássica: a estabelecida entre a natureza e a cidade, ou em outras
palavras: entre o natural, a intervenção humana e a importação da civilização.
Sobre a cidade do Panamá escreveu:
Por su aspecto exterior, la ciudad no difiere mucho de las antiguas poblaciones
peruanas; pero, sobre el antiguo fondo colonial, se encuentra á cada paso el contacto
de las dos influencias rivales, yankee y francesa, que se han combatido ó
yuxtapuesto. Muchos avisos y muestras comerciales están en las tres lenguas. El
tramway eléctrico, el pavimento y las aceras de las calles centrales, la bonita plaza
de la Catedral – donde hacen buena vecindad el Grand Hotel, la Agencia del canal,
el Banco del judío Ehrmann y el obispado; el alumbrado público y hasta los
uniformes modernos de la policía: todos los adelantos materiales de la ciudad nueva
son regalos más ó menos directos de la opulenta Compañía. La era de las obras del
canal ha sido la edad de oro de esta provincia de Colombia, y, por rechazo, de todas
las otras. —El cochero negro que me hace dar mi primer vuelta de Panamá me toma
por un ingeniero, y me pregunta con vivo interés si los trabajos no volverán á seguir.
Le afirmo que sí ¡palabra de ingeniero! 10[grifos meus]

Podemos então perceber que mesmo que a empreitada francesa não tenha sido bem sucedida
é claro que os avanços civilizacionais que Groussac observa foram frutos de sua intervenção, ou seja,
o desenvolvimento panamenho se deveu a civilização europeia. O autor em diversas passagens se
dedica então a visitar essas construções e, principalmente, as obras paradas do Canal, descrevendo
com assombro a grandiosidade da empreitada.

9 RITTER, Luis Pulido. Modernidad en movimiento: transitismo, cosmopolitismo y transnacionalidad


en la ciudad letrada panameña. s/e: s/d. Disponível em: http://istmo.denison.edu/n21/articulos/4-
pulido_ritter_luis_modernidad_form.pdf Acesso em 24 de maio de 2017.
10 DPN p. 118.

608
O elemento que lhe causa maior comoção são as mortes dos milhares de trabalhadores
franceses que se aventuraram na construção. Estima-se que mais de 17 mil franceses morreram
durante esta etapa, o que também foi um dos pontos que justificaram o abandono das obras:
Diríase el campo mortuorio de una población entera. Y de todos estos epitafios
ingenuos y desconsolados, que ningún deudo lejano leerá jamás, de todos estos
nombres humildes de seres jóvenes, heridos casi en la misma fecha, se alza un
inmenso lamento sólo para mi alma perceptible, — sunt lacrymae rerum, —
acusando el rigor del destino y el crimen de los hombres.—Bien se que no eran
ciudadanos ejemplares, muchos de los terrajeros caídos en este suelo envenenado.
Pero con todo, encuentro harto dura la oración fúnebre colectiva que les dedicaban
algunos financistas repletos de París, al atribuir los estragos que ya no podían ocultar,
únicamente á la incuria, al libertinaje, á los excesos de los trabajadores. Me ocurre
—y tengo datos para ello— que todas las víctimas no fueron la espuma y escoria de
nuestra población, y que más de un jornalero llegó con mujer é hijos, impelido por
la honrada pobreza y el deseo de mejorar la suerte de los suyos. No son únicamente
vagabundos y mujeres perdidas los que duermen aquí, lejos de la aldea nativa, bajo
una humilde piedra de limosna, al lado del viejo de barba gris que primero
sucumbió. 11[grifos meus]

Os pântanos próximos nunca drenados foram para Groussac um dos pontos que
demonstraram a falha civilizacional, uma vez que em seu entender tal medida teria evitado a
contaminação de milhares de pessoas. A terra panamenha, até então retratada como o paraíso terreno,
neste ponto da narrativa se transforma em uma terra envenenada.
Ganha destaque em sua narrativa apenas os franceses mortos, não lhe provoca grandes
revoltas os milhares de negros jamaicanos soterrados de forma anônima nos túmulos improvisados
do canal, nem mesmo a dos chineses mortos, dos quais visita o cemitério, considerado cheios de “las
chucherías” chinesas. A passagem pelo Panamá, aliás, é mais uma oportunidade de visualizar a
presença do povo chinês no fim do século XIX nas Américas, uma presença tantas vezes relegada a
um segundo plano, mas que vale ser explorada, uma vez que traz a tona tantos choques culturais.
Na cidade do Panamá ocupa a maior parte dos passeios do autor as obras do canal. A grandeza
da empreitada provoca estupefação, mas ao mesmo tempo o abandono geral e o regresso dos animais
outrora desalojados demonstram para o franco-argentino que a intervenção francesa chegara ao fim.
Groussac não mostra ilusões sobre isso, para ele os erros já haviam começado no início das obras,
se contenta em afirmar que desde o início não foram refeitos os cálculos, medições e reprojetos
anteriores a ida de Lesseps para o Panamá. Tentaram construir um canal sem eclusas, o que
efetivamente se mostrou impossível após os cálculos que abriram espaço para a entrada norte-
americana no jogo sucessório:

11 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 120.

609
Las obras por el lago de Nicaragua han quedado interrumpidas, debido en parte á la
presión de las grandes compañías ferrocarrileras. Con todo y contra todo, se hará el
canal interoceánico, acaso en Nicaragua, más probablemente en Panamá. La
influencia de la enorme república es invencible en esta parte del continente. Sin
esfuerzo ni violencia, por la simple ley de la gravitación, se anexará á buen tiempo
las regiones útiles del Centro y «protegerá» las del Sud. Cogerá á Guatemala, Costa-
Rica, Cuba y el resto como peras maduras. 12[grifos meus]

Groussac ressalta aí a força norte-americana na América Central e do Sul em finais do século


XIX. Os Estados Unidos já haviam anexado parte do território mexicano e diplomaticamente
interferira na questão do Panamá que mostrava-se fundamental para seus interesses econômicos.
Efetivamente Groussac prenuncia o discurso calibanesco que atingiria boa parte da intelectualidade
latino-americana em finais do século XIX, sobretudo, no sul do continente, no qual emergiu o
arielismo, derivado da obra do uruguaio José Enrique Rodó. Tal discurso foi de forma definitiva
moldado pela guerra contra a Espanha em 1898 e a consequente tomada das últimas colônias
espanholas: Cuba, Porto Rico e Filipinas, a primeira grande intervenção norte-americana em
conflitos bélicos internacionais.13
A segunda parte da viagem de Groussac ainda em solo panamenho se destinou a travessia de
uma costa a outra, o autor deixou a cidade do Panamá e se dirigiu a Colón no outro extremo do
território. David Viñas afirma que a viagem de Groussac de trem pelos Estados Unidos tinha como
barreira o vidro, portanto, a viagem do que observa de longe, nesse aspecto concordo com Beatriz
Colombi quando afirma que na realidade o espaço do trem funciona muito mais como um espaço de
interação.14 No Panamá a condição da viagem de trem também será um espaço de conhecimento e
sociabilidade, o autor não só observa, ele interage, descreve o que vê, faz julgamentos.
Não somente o trem como também as embarcações se tornam no trabalho de Groussac espaço
de encontro e sociabilidade nos quais ele constrói boa parte de sua narrativa e sem os quais a mesma
teria se tornado superficial. Durante as longas travessias o espaço de confinamento do trem ou do
navio impulsiona a criação de laços e estratégias para suportar as longas travessias.
O traslado de trem no Panamá demonstra alguns pontos de fundamental importância para se
compreender a visão do personagem sobre a América de seu tempo, acredito ser importante ressaltar
que quando escrevo América, me refiro a todo o continente americano, assim como o fez o autor.
Essa viagem de trem aponta três pontos de especial atenção nos diários de viagem: a natureza
grandiosa, a intervenção europeia neste espaço e por fim as populações indígenas e negras.

12 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 122.
13 NETO, Daiana Pereira. (2013). De Paul Groussac a Richard Morse: Apropriações e releituras de A
Tempestade de Shakespeare. Dissertação de mestrado (129 p.). Programa de Pós Graduação em História, Universidade
Federal de Juiz de Fora.
14 COLOMBI, Beatriz (2002). Viajes y desplazamientos en el fin del siglo. Tese de doutorado (301 p.).
Facultad de Filosofia y Letras de la universidad de Buenos Aires.

610
Sobre o primeiro aspecto Groussac esbarra na velha noção da natureza grandiosa que aflora
nos trópicos, a exuberância de uma natureza, que como já havia afirmado anteriormente se assemelha
ao paraíso:
Es como una erupción frenética de árboles y lianas, de flores y follajes, que estalla
por doquier, en las faldas de los cerros, en las riberas del Ghagres y sus arroyos
tributarios, hasta en el balaste de la vía. Por momentos el tren se precipita por debajo
de unos arcos triunfales de ramajes entrelazados, de bóvedas tupidas y sombreadas
que despiden efluvios balsámicos, capitosos hasta dar vértigo. En el fondo de algunas
quebradas estrechas, la marea vegetal revienta en oleadas y remolinos de verdura,
evocando fantásticos aluviones de materia orgánica súbitamente germinada y
frondescente, como en la obra de los seis días[..]15

Um natureza estonteante que “¡tan imposible parece que esa flora exuberante haya brotado
por entero del suelo tropical!”. 16 Tal afirmação de Groussac perante uma natureza grandiosa remete
a tradicional disputa sobre o novo mundo e a questão da inferioridade americana, sendo a América
um continente novo, sua natureza também deveria se apresentar de forma inferior.
Essa natureza elementar que leva a imaginação por caminhos tortuosos é também relacionada
ao primitivo, ao bárbaro. A civilização é dessa forma um elemento só alcançado a partir dos avanços
tecnológicos, da intervenção humana, ou mais propriamente da incorporação e deglutição da
civilização europeia.

Considerações finais

Os relatos de viagem de Paul Groussac constituem valiosas fontes para pensarmos acerca das
peculiaridades das sociedades visitadas. Mais do que isto, são escritos que permitem termos acesso
a valores e projetos do autor e da sociedade para a qual o texto foi escrito.
Groussac atravessou o continente em um período no qual a presença norte-americana se fazia
cada vez mais forte. O caso do Panamá é uma mostra dessa maior intervenção e do poderio norte-
americano, a França, embora símbolo de civilização saía derrotada da empreitada. A publicação deste
relato apenas em 1897 deu ao livro uma notável recepção no contexto da Guerra Hispano-Americana
de 1898, que resultou para a Espanha na perda de suas últimas colônias, sendo o fim do outrora
gigante império espanhol.

15 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897.
16 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897.

611
Muitos outros aspectos podem ser resgatados do relato de Groussac e melhor esmiuçados.
Para o fim destas páginas, ressalto que um relato de viagem pode se mostrar um trabalho complexo,
uma vez que, ao mesmo tempo, que seu autor busca a objetividade e a honestidade, o texto é
visivelmente marcado pela subjetividade e pelo arcabouço de vida do narrador.

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612
A Repercussão Do Suicídio Do Presidente Getúlio Vargas E As Manifestações Populares:
O Agosto De 1954 Em Recife – PE1

Daniel Francisco da Silva 2

Resumo: O segundo Governo Vargas (1951-1954) foi caracterizado por muitas crises políticas e
pressões, sobretudo, da União Democrática Nacional, principal partido político opositor. A crise de
agosto de 1954 que culminou no seu suicídio em 24 de agosto, foi acompanhada de perto pela
imprensa e divulgada nacionalmente. O episódio do suicídio gerou uma grande comoção coletiva no
Brasil. Como atestam os estudos do professor Jorge Ferreira, Alzira Alves Abreu, Fernando Lattman
– Weltam. Nesse sentido, a pesquisa objetiva averiguar a partir das fontes jornalísticas a comoção
vivenciada e sentida pela população de um dos centros urbanos do Nordeste, Recife – PE. Para isso,
utilizamos como fonte o jornal Correio do Povo (da edição de nº 17 da terça-feira 24 de Agosto de
1954 até a edição de nº 23 da terça-feira 31 de agosto de 1954) que deu destaque a tais
acontecimentos, onde averiguou-se as manifestações populares de pesar em respeito ao suicídio do
presidente da República Getúlio Vargas ocorrido na cidade referida.

Palavras – Chaves: Suicídio de Getúlio Vargas, Imprensa, Manifestações Populares.

Abstract: The second Govern Vargas (1951-1954) was characterized for many political crises and
pressures, above all, of the Union National, main Democratic Party political opponent. The crisis of
August of 1954 that culminated in his suicide on August 24, it was accompanied closely by the press
and published nationally. The episode of the suicide generated a great collective commotion in
Brazil. As attests the Professor Jorge Ferreira's, Alzira Alves Abreu, Fernando Lattman - Weltam
studies. In that sense, the objective of the research is to discover, starting from the journalistic
sources, the commotion lived and felt by the population in one of the urban centers of the Northeast,
Recife – PE. For that, we used as source the newspaper Correio do Povo (of the edition of nº. 17 of
Tuesday August 24, 1954 to the edition of no. 23 of Tuesday August 31, 1954) that gave prominence
to such events, where it was discovered the popular manifestations of grief with respect to President
Getúlio Vargas's suicide happened in the referred city.

Key-Words: Suicide of Getúlio Vargas, Presses, Popular Manifestations.

1 – INTRODUÇÃO

O interesse em estudar o suicídio do Presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954,


surgiu por meio de uma atividade desenvolvida no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a

1 Artigo científico apresentado ao componente curricular Laboratório de História II, do Curso de


Licenciatura em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ensino Superior do Seridó, Campus
de Caicó, ministrado pelo Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo. Trabalho no qual, culminou em um Projeto de
pesquisa de Mestrado que desenvolvo atualmente no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES.
2 Graduado em História – Licenciatura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte –
CERES/Campus de Caicó. Mestrando em História Social pela PUC/SP. Bolsista CAPES. E-mail para contato: daniel-
silva-07@live.com

613
Docência (PIBID) na Escola Estadual Monsenhor Walfredo Gurgel, na cidade de Caicó – RN, onde
atuamos com os demais bolsistas. A intervenção foi aplicada no mês de setembro do ano de 2013,
tendo sido desenvolvida a partir de uma fotografia do cortejo do corpo do Presidente Getúlio Vargas
em direção ao Aeroporto Santos Dumont. Dessa forma, problematizamos junto com os educandos o
que a fotografia representava naquele período. Sendo assim, identificamo-nos, pois, é um assunto
com o qual temos grande aproximação, ligado à História Política.
Como base bibliográfica para realização da intervenção utilizamos o texto “O carnaval da
tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto”, de Jorge Ferreira, e o livro didático do 9º ano da
coletânea “História Sociedade e Cidadania”, do autor Alfredo Boulos Júnior. Ao término da
intervenção percebemos que o suicídio de Getúlio Vargas precisava ser pesquisado. Indagávamo-
nos, na ocasião, sobre o que os brasileiros estavam sentindo no dia 24 de agosto de 1954, ao
receberem a notícia do suicídio do Presidente Getúlio Vargas. Ao sair da intervenção, procuramos a
professora Jailma Maria de Lima coordenadora do PIBID que dialoga com questões do Brasil
Republicano em suas pesquisas.
A mesma foi de suma importância para que a ideia se transformasse em um projeto de
pesquisa, pois, nos apoiou e orientou-nos no que foi preciso, indicando uma vasta produção
historiográfica do tema a ser trabalhado, como por exemplo, o livro “Vargas e a crise dos anos 50”
sob a organização de Ângela de Castro Gomes, o livro do autor Jorge Ferreira “O imaginário
Trabalhista – Getulismo, PTB e cultura política popular”, o livro “O populismo e sua história debate
e crítica” organizado por Jorge Ferreira. Sendo assim, percebemos que o suicídio de Getúlio Vargas
ocasionou uma grande comoção coletiva no país. Como aponta o autor Jorge Ferreira no texto
intitulado “O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto”. Para isso, precisamos
compreendê-la no Nordeste brasileiro, especificamente em um dos seus maiores centros urbano
nordestino, Recife, capital do Pernambuco.
Na tentativa de obtermos mais informações sobre o suicídio de Getúlio Vargas em agosto de
1954, nos dirigimos até o Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano, na cidade do Recife para
pesquisarmos nos jornais que estão em seu banco de dados. Fizemos uma coleta de dados do jornal
Correio do Povo, da edição de nº 17 da (terça-feira) 24 de agosto de 1954 até a edição de nº 23 (terça-
feira) 31 de agosto de 1954. Esses dados coletados nos revelam uma série de acontecimentos na
cidade do Recife no período da morte de Getúlio Vargas, como por exemplo, o sentimento de perda,
que as pessoas estavam sentido, uma vez que a população foi para as ruas na cidade do Recife,
expondo sentimentos de pesar e de luto. Todavia, há poucos trabalhos escritos sobre esse período no
Brasil, especificamente referidos a cidade do Recife, temos conhecimento de um parágrafo do autor
Jorge Ferreira em o texto “O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto”.

614
Ângela de Castro Gomes e Francisco Falcon realizam análises, nesse sentido, sobre
conjunturas políticas do período. Para eles, a década de 1950 foi um período de crise politica pautada
na disputa pelo poder governamental do país. Dessa forma, o governo Vargas, vigente entre 1951-
1954, encontrava-se no cerne dos debates e tentativas de tomada de poder empreendidos pela
oposição o que culminou no suicídio do presidente Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954
(FALCON, 1997; GOMES, 1994).
Alzira Alves de Abreu e Fernando Lattman-Weltman, no capítulo “Fechando o cerco: a
imprensa e a crise de agosto de 1954”, presente no livro “Vargas e a crise dos anos 50” organizado
por Ângela de Castro Gomes, trazem a relação imprensa e crise de 1954, e como esta noticiava os
acontecimentos políticos. A partir da caracterização midiática em torno do Governo Vargas, é-nos
permitido refletir sobre o papel difusor da imprensa como ator político da oposição do mesmo.
(ABREU, LATTMAN-WELTMAN; 1994).
O suicídio do presidente Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954 pode ser vista por diferentes
ângulos, como expõe em seu livro “1954: um tiro no coração”, o autor Hélio Silva, apresenta a partir
de uma entrevista realizada com Alzira Vargas3, uma visão voltada para os acontecimentos ocorridos
no interior do Palácio do Catete, uma perspectiva direcionada a vida privada da família Vargas
(SILVA, 1978).
Já na abordagem do autor Jorge Ferreira no livro “O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura
política popular – 1945-1964” o suicídio do presidente Getúlio Vargas foi recebido pela população
brasileira em meio a protestos e grande comoção, repleto de acusações à oposição devido o
acontecimento. Percebemos, assim, uma linha de compreensão voltada para a população e como esta
recebeu a notícia do suicídio do Presidente Getúlio Vargas (FERREIRA, 2005). De acordo com a
defesa do autor Jorge Ferreira acerca do papel da comoção do suicídio de Getúlio Vargas mediante
a população brasileira, percebemos, que nas diversas regiões do país as pessoas se solidarizaram com
a notícia e saíram as ruas para prestarem suas homenagens, como também protestarem contra a
oposição.
Nesse sentido, a dissertação de mestrado “A repercussão do suicídio de Getúlio Vargas e o
processo de mitificação post-mortem no Jornal Correio do Povo de Porto Alegre” de autoria de
Bibiana Soldera Dias, percebemos como a repercussão do suicídio de Vargas foi recebida na cidade

3 Alzira Vargas do Amaral Peixoto, quando solteira era Alzira Sarmanha Vargas. Filha de Getúlio Vargas
nasceu em São Borja (RS) em 22 de novembro de 1914. Alzira Vargas foi uma das articuladoras do Partido Trabalhista
Brasileiro – PTB, fundado em maio de 1945. Após a volta de Getúlio Vargas. Alzira foi assessora do seu pai, vindo “a
exercer papel de relevo na crise- política de 1954, que culminou com o suicídio do presidente” Getúlio Vargas. Fonte:
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Disponível
em <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/alzira_vargas_do_amaral_peixoto >. Acesso em
21/11/2014 as 06hs22min.

615
de Porto Alegre e como a imprensa radialista divulgou a notícia ocasionando uma comoção nesse
estado o que nos permite notar esse ponto em comum com as diferentes localidades do Brasil.
A biografia “GETÚLIO 1945 – 1954 Da volta pela consagração popular ao suicídio”, escrita pelo
biógrafo e jornalista Lira Neto apresenta como o presidente Getúlio Vargas vivenciou e planejou a
volta ao Palácio do Catete. O biógrafo apresenta uma série de cartas trocadas entre Getúlio Vargas e
a filha Alzira Vargas, assim, nos apresentando com detalhes os últimos anos do presidente em sua
vida privada e familiar. Dessa forma, percebermos as lacunas existentes no referido tema, sobretudo,
no Nordeste brasileiro. Por isso, esse trabalho visa preencher algumas dessas lacunas na cidade de
Recife – PE.
O objetivo dessa pesquisa é averiguar, a partir das fontes jornalísticas a comoção vivenciada
e sentida pela população de um dos centros urbanos do Nordeste, Recife – PE, no que diz respeito
ao suicídio do presidente da República Getúlio Vargas ocorrido em 24 de agosto de 1954. Nosso
desígnio, com essas análises, é o de indagar acerca de como a população da cidade de Recife – PE
sentiu e reagiu frente à notícia do suicídio de Vargas expressando seu pesar.
Utilizamos como ferramenta metodológica para essa pesquisa a História do Discurso, cuja
abordagem nos permite analisar os textos dos documentos contidos no jornal Correio do Povo do
Recife – PE. Como aponta o autor José D’ Assunção Barros “o texto que se está sendo tomado [...]
como fonte é já aquilo que deve ser analisado, enquanto discurso de época a ser decifrado, a ser
compreendido, a ser questionado” (2011, p. 134-135). Nesse sentido, optamos por essa metodologia,
uma vez que, nos interessa entendermos como o suicídio do presidente Getúlio Vargas repercutiu na
sociedade e na imprensa pernambucana. Verificamos diferentes discursos sobre o acontecido. As
fontes utilizadas para essa pesquisa foram fontes históricas de tipologia jornalística. A imprensa será
utilizada como fonte principal, sobretudo, o jornal Correio do povo, pois, as opções políticas feitas
pelo jornal citado vai se refletir diretamente nas narrativas sobre a comoção popular com o suicídio
do presidente Getúlio Vargas. Para De Luca,

os jornais e as revistas podem ser utilizados como fonte de conhecimento para a


história seja para obter dados econômicos, seja para analisar aspectos da vida política
e social. O uso da imprensa periódica como fonte de pesquisa auxilia na
compreensão da paisagem urbana, das representações, dos valores sociais de sujeitos
de uma determinada época. (2005, p. 123)

Assim, os diversos grupos que se manifestaram em agosto de 1954 através dos sindicatos,
associações ou clubes de futebol tiveram suas falas evidenciadas ou não pelo jornal.
O estudo está situado no campo histórico da História Política, tendo em vista que essa
temática nos possibilita a compreender fatos políticos da sociedade dentre os quais o suicídio do

616
presidente Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. Assim, percebemos que a política está ligada
ao poder, como nos aponta o autor José D’ Assunção Barros

o que autoriza classificar um trabalho historiográfico dentro da História Política é


naturalmente o enfoque no “Poder”. Mas que tipo de poder? Pode-se privilegiar
desde o estudo do poder estatal até o estudo dos micropoderes que aparecem na vida
cotidiana (2011, p. 106-107).

Vale ressaltar que “Poder” é utilizado para entender a “velha” História Política, como também
na Nova História Política.
No decorrer dos últimos anos a inserção da Nova História Política está imersa na produção
acadêmica, tem mostrado mudanças na forma de encarar a História. René Rémond nesse sentido,
afirma que “A HISTÓRIA, cujo objeto princípio é observar as mudanças que afetam a sociedade, e
que tem por missão propor explicações para elas, não escapa ela própria à mudança. Existe, portanto,
uma história da história que carrega o rastro das transformações da sociedade e reflete as grandes
oscilações do movimento das ideias” (1996. p. 13). Assim, percebemos que a História Política,
enfrentou uma crise no decorrer da primeira metade do século XX, uma vez que, sobre, a mesma
incidiu um “esquecimento” nesse período, pois, não havia historiadores interessados em estudá-la.
Segundo René Rémond a História Política apresentava uma configuração diferente da qual estava
sendo proposta, pois, a história política só tinha olhos para as crises ministeriais, e privilegiando as
rupturas de continuidade, era a imagem do exemplo perfeito da história factual, totalmente ao
contrario da história ideal que estava sendo proposta naquele momento; assim, o termo
événemenntielle – era utilizado no mau sentido – que ficava na superfície das coisas e esquece-se de
vincular os acontecimentos profundos. (REMOND, 1996. p. 17). Assim, a História Política ao
privilegiar o particular, o nacional, privava-se da possibilidade de comparações no espaço e no
tempo, e interditavam-se as generalizações e sínteses capazes de se dar uma dimensão científica ao
trabalho do historiador.
A História Política segundo Pierre Rosavallon é a maneira em que uma sociedade compõe
suas representações políticas, na qual, os historiadores compõem interpretações fruto do seu tempo.
Onde grupos sociais ou países estão envolvidos para pensarem e desenvolverem suas ações, visando
uma melhoria no futuro de seus respectivos países. Assim, procura-se fazer uma história voltada para
as respostas das indagações de seus problemas, de acordo com a conjuntura politica vivenciada no
período. Assim, é a “história política na medida em que a esfera do político é o lugar da articulação
social e de sua representação” (1995, p. 16). Nesse sentido, a História Política nos possibilita um
diálogo com um fato histórico político, onde uma figura política esteve envolvida, o presidente da

617
República Getúlio Vargas. O governo Vargas (1951 - 1954) passava por uma crise política, que
culminou em seu suicídio, de modo que a população brasileira foi às ruas com um sentimento de
pesar e de revolta.
O conceito adotado para a discussão em nosso trabalho é cultura política. Esse conceito
passou por ressignificações no decorrer da sua trajetória, já que, nasceu na década de 1960 no campo
das Ciências Políticas. Para Daniel Cefaï, a cultura política está ligada às,

operações de alinhamento das maneiras de perceber, de agir e de julgar heterogêneas,


de articulações de modalidades do viver juntos nas representações da coletividade,
da justificação ou da denúncia de intervenções no espaço público, [...] das trocas de
argumentos sobre o sentido de eventos, de decisões ou de ações, confecções de bens
comuns e de bens políticos (CEFAÏ, 2001. p. 99 apud LIMA, 2010. p. 29).

Dessa forma, o nosso estudo apropriou-se do conceito acima, porque compreendemos que as
pessoas que estavam envolvidas nas manifestações populares de pesar e solidariedade são sujeitos
ativos das questões culturais de sua sociedade.
Sendo assim, esse trabalho será dividido em três tópicos; o primeiro tópico é “A comoção
das pessoas com a notícia do suicídio do presidente Getúlio Vargas”, aqui apresentamos como as
pessoas reagiram ao saber da notícia do, 24 de agosto de 1954. O segundo tópico intitulado “Os
sindicatos, autoridade políticas e o desportivo em luto”; apresentamos os discursos de homenagem
ao presidente Getúlio Vargas. O terceiro tópico “As manifestações de pesar em Recife – PE”, aqui
expomos os sentimentos e as manifestações durante a semana após o suicídio do presidente Getúlio
Vargas.

2 – A COMOÇÃO DAS PESSOAS COM A NOTÍCIA DO SUICÍDIO DO PRESIDENTE


GETÚLIO VARGAS

Getúlio Vargas passou por dificuldades desde o inicio da consolidação da candidatura para o
pleito de 1950. Uma vez que, a oposição não aceitara o seu nome para a Presidência da República.
A partir das eleições de 1950, Getúlio Vargas sentia a fúria dos seus opositores, assim, esses
opositores não mediam esforços para adjetivar de forma negativa o nome do candidato do Partido
Trabalhista Brasileiro, Getúlio Vargas. O Jornalista Carlos Lacerda apontava no pleito de 1950 que
Getúlio Vargas “não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não

618
deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo”. (HIPÓLITO, 2005, p.
160 apud LIMA, 2010, p. 122). Assim, ficou claro os ânimos do pleito de 1950.
Com a vitória das eleições de 1950 por meio do voto direto, Getúlio Vargas voltou ao Palácio
do Catete em Janeiro de 1951, tendo sido recebido com muita festa nas ruas do Rio de Janeiro. Logo
no início do segundo governo o mesmo já enfrentava a ira da oposição, como também, o Brasil
passava por crises no setor industrial e a economia não estava bem. O segundo governo Vargas
(1951-1954) iniciou com resistência da oposição, sobretudo, da União Democrática Nacional (UDN)
principal partido opositor a Getúlio Vargas, como também o jornalista Carlos Lacerda, proprietário
do jornal Tribuna da Imprensa.
Em meio a esse cenário a imprensa, especialmente o jornal Tribuna da Imprensa apresentava
matérias que adjetivava de forma negativa o presidente da República. Todavia, em meados de 1951
surgiu o periódico Última Hora, do jornalista Samuel Winer; um jornal que, mudaria a história da
imprensa brasileira: o vespertino apresentava um novo modelo de periódico, pois, trazia “o logotipo
estampado em azul, enquanto a concorrência seguia o padrão monocromático de letras pretas sobre
o papel branco” (LIRA NETO, 2014. p. 220). Esse jornal apresentava-se mais próximo ao governo
como nos apresenta o biógrafo Lira Neto: “era o único entre os grandes periódicos brasileiros a
publicar manchetes sistematicamente favoráveis ao governo federal”. Uma coluna específica, na
página 3, “O dia do presidente” [...] cobria a agenda de Getúlio e fornecia aos leitores notas
exclusivas sobre o expediente do Catete” (2014. p. 222).
Contudo, a criação do jornal Última Hora não isentou o desgaste do governo federal. Nesse
sentido, a união foi alvo de inúmeras reprovações, mas, a partir de 1954 as críticas aumentaram e a
crise política se configurou. Um dos fatores que levou à oposição criticar o governo era a forma
como o Ministério do Trabalho exercia sua função, tendo como titular da pasta o presidente do PTB,
João Goulart, pois, o mesmo estabeleceu uma ponte com os trabalhadores, negociando as
reivindicações da classe. O ministro conseguiu que o presidente Getúlio Vargas aumentasse o valor
do salário mínimo em cem por cento naquele ano. Com esse aumento, os ânimos da oposição
afloraram e criticaram a medida adotada pelo presidente. A crise política se intensificou depois do
atentado ao jornalista Carlos Lacerda em 05 de agosto de 1954 que matou o general Rubens Vaz na
Rua Tonelero em Copacabana. A partir desse atentado e com a comprovação de que Climério Euribes
de Almeida membro da guarda pessoal do presidente houve o acirramento dos ânimos da crise, o seu
principal opositor Carlos Lacerda, acusou o presidente Getúlio Vargas como o mandante do atentado:

na primeira página de seu jornal, Tribuna da Imprensa, com o título “O sangue de


um inocente”, Carlos Lacerda lembrou a medalha de herói do Correio Aéreo
Nacional e os quatro filhos do major manipulando sentimentalmente a imagem dos
“órfãos de guerra”. Sem esperar as investigações policiais, Lacerda declarou: “Mas,

619
perante Deus, acuso um só homem como responsável pelo crime. É o protetor dos
ladrões. Esse homem é Getúlio Vargas4”.

Nesse sentido, essa crise política no cenário nacional intensifica-se de forma que o governo
Vargas contraponha. Assim, o presidente Getúlio Vargas, participa de reuniões ministeriais e ordenou
que se fizesse uma investigação. Todavia, a pressão da oposição aumentou a cada dia do mês de
agosto de 1954 pedindo, a renúncia de Vargas. Sendo assim, após a reunião ministerial ocorrido no
Palácio do Catete na madrugada do dia 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas suicida-se no citado
edifício, na cidade do Rio de Janeiro. A população brasileira, ao saber da notícia sentiu o pesar de sua
morte. Em diversas cidades do país as pessoas foram às ruas para protestarem contra os “culpados”
do suicídio do presidente, sobretudo, Carlos Lacerda e a UDN. (FERREIRA, 2005; SILVA, 1978;
LIRA NETO, 2014).
Na manhã da terça feira, 24 de agosto de 1954, a imprensa noticiou o suicídio do presidente
Getúlio Vargas, expondo como esse acontecimento político repercutiu no país, destacando o pesar da
população brasileira nas mais variadas regiões da federação. Em Recife, as comoções ocorridas na
cidade entre os dias 24 e 31 de agosto noticiadas no periódico Correio do Povo. Para
compreendermos, essas comoções precisamos problematizar os sujeitos históricos desse fato. Vez
que, são de suma importância para entendermos esses dias de sentimento de luto.
O jornal em que pesquisamos é o “Correio do Povo”, periódico que nos possibilitou a
compreender o acontecimento político de 24 de agosto de 1954. Um fato que nos chamou atenção foi
à criação do jornal Correio do Povo em agosto de 1954, como nos apresenta Luiz do Nascimento em
seu livro História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954) vol. III “Diários do Recife 1901/1954”
publicado pela editora Imprensa Universitária no ano de 1967 na cidade de Recife. O autor em sua
obra nos expõe a história dos periódicos de Recife em uma coletânea de dez volumes, para este
trabalho utilizamos o Volume III, no qual, expõe à história do periódico “Correio do Povo”. Assim,
o mesmo era “matutino de orientação trabalhista, surgiu na arena do publicismo, precedido de intensa
propaganda, no dia 05 de agôsto de 1954, as principais paginas em côres no formato de 58 X 42.
Propriedade da Gráfica Correio do Povo Ltda” (NASCIMENTO, 1967. p. 429 – 430)5. Nascimento

4 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 5 de ago de 1954, primeira página apud apud FERREIRA 2005.
p. 172.
5 A equipe do jornal inicialmente era constituída assim, Diretor – presidente: Antônio de Barros de
Carvalho, Diretor – superintendente: Edgar Bezerra Leite; Gerente comercial: Adauto Barreto. A equipe do "batente"
ficou assim constituída: Diretor: Josimar Moreira de Melo; Diretor de redação: Carlos Luis de Andrade; Secretário:
Paulo Antunes; Sub secretário: Mucio Borges da Fonseca; Sub-secretário de oficina: Luis Garcez; Redatores — Newton
Farias e Jaime Campos; Repórteres: Alberto Campelo, Antônio Luis Lins de Barros, José Américo de Lima, Ronildo
Maia Leite, Stélio Goncalves, Adonias Moura e Abdias Cabral de Moura Filho; cronista social — Antônio Albino
Pinheiro; Cronistas do Interior: Artur Maciel e Jose Mendonga; Tradutores de telegramas: Jose Arruda Câmara e Itamar
Araújo; Encarregados da parte desportiva: Celio Tavares, Laudenor Pereira e João Cavalcanti; revisores: Democrito
Silveira, Ipemeri Cunha, Expedito Pinto, Jose Roberto de Araujo, José Adirson de Vasconcelos, Valdi Bezerra da Silveira
e Valdemir Tavares; Diagramador :Lonaldo de Andrade; Fotógrafos Valdir Santos Braga, Assis Araújo, Luna e Luis
Gueiros; Chefe de publicidade: Gil Sampaio; Corretor de anúncios: Hilton Sousa. A redação e a oficina localizaram-se
na rua Visconde de Goiana n° 377 e o escritório na sala 14, sobreloja, do Edificio Arnaldo Bastos, a Avenida Guararapes.
(NASCIMENTO, 1967. p. 430).

620
afirma que o jornal Correio do Povo, não pertencia a agremiações políticas e o mesmo tinha sido
fundado com recursos próprio. O objetivo do periódico era se tornar porta voz dos anseios populares
e refletir sobre os sentimentos e as necessidades das classes dos menos favorecidos. Nesse sentido, o
periódico lutava por uma justiça social efetiva. (1967.p. 432).
Assim, percebemos que o público do jornal Correio do Povo é o trabalhador, por isso, nas
matérias sobre o suicídio do presidente Getúlio Vargas ficou evidente a participação popular nas
entrevistas concedidas ao jornal. Nesse sentido, utilizamos o periódico para entender como foi à
repercussão do suicídio do presidente Getúlio Vargas na Cidade de Recife por meio dos seus
discursos.
A notícia do suicídio do presidente Getúlio Vargas chegara à capital do Pernambuco de
“surpresa” como em outras partes do país. O jornal Correio do Povo publicou na matéria da capa do
dia 24 de agosto de 1954 – Ano – I edição de nº 17, “GETÚLIO MORREU PARA LIBERTAR O
SEU POVO”. Percebemos a ênfase que o periódico dar ao suicídio que pegou os brasileiros e,
sobretudo os cidadãos recifenses sem esperar uma notícia como essa. Assim, o jornal que era de
caráter trabalhista foi às ruas para ouvir as pessoas e expor o que as mesmas estavam sentindo. Fez
uma série de entrevista, com populares do Recife, tendo destacado as comoções das pessoas, assim,
na edição de nº 17,

o operário João Valfrido Ribeiro quase não pôde falar de tão grande era a comoção
que se encontrava”. “O dr Getúlio para os pobres era o maior homem do mundo.
Ninguém antes dele tinha olhado para os operários. Foi ele que nos deu a Lei do
Trabalho, médicos e remédios de graças, nos Institutos, abono familiar os nossos
filhos e o salário mínimo que não nos deixou morrer de fome. “Era o amigo da
pobreza”6.

Assim, percebemos um discurso emocionado do cidadão que lembra as Leis trabalhistas


implantadas no primeiro governo Vargas, dessa forma, o discurso está associado a uma melhoria que
os trabalhadores obtiveram em seu governo passado, como também ao emocional do depoente.

3 – OS SINDICATOS, AUTORIDADES POLÍTICAS E O DESPORTIVO EM LUTO

6 Era o maior amigo da pobreza. Correio do Povo, Recife. p. 2, 24 de ago de 1954.

621
Na terça feira, 24 de agosto de 1954 as pessoas do Brasil apresentavam seus sentimentos de
dor e pesar nas cidades brasileiras. Na cidade de Recife não foi diferente. Diversos setores publicaram
notas a respeito do suicídio do presidente Getúlio Vargas, como também autoridades políticas
prestaram suas homenagens ao Chefe de Estado. Nosso objetivo é apresentar uma discussão acerca
das notas de luto publicadas pelos sindicatos das mais variadas repartições, como por exemplo,
Sindicatos dos Trabalhadores, da Indústria, de Calçados, dos Jornalistas, de Produtos Químicos, além
de autoridades políticas e partidárias como vereadores e os desportivos clubes de Recife (Náutico,
Santa Cruz, América e Auto Esporte). Realizando uma discussão, que permita-nos entender o teor
dessas notas publicadas pela imprensa pernambucana após o suicídio do presidente Getúlio Vargas.
Os Sindicatos procuraram a imprensa para divulgarem suas notas de pesar como o Sindicato
dos Calçados, no qual divulgou a seguinte nota:

A diretoria dos Sindicatos dos Trabalhadores na Indústria de Calçados do Recife,


interpretando o sentimento dos seus associados, resolveu decretar luto por 8 dias. No
mastro do Sindicato será hasteada a bandeira nacional a meio pau, até a próxima
terça feira7”.

Os Sindicatos de Produtos Químicos, a Associação Comercial de Pernambuco, a Federação


dos Industriários, a Federação do Comércio Varejista e a Federação do Comércio Atacadistas do
Recife, também decretaram luto de oito dias 8. A imprensa pernambucana também decretou oito dias
de luto ao presidente Getúlio Vargas, a exemplo dos periódicos “Diário de Pernambuco, A Folha da
Manhã e o Diário da Noite”9.
Assim como os Sindicatos, as autoridades políticas do Brasil, sobretudo, ligadas ao PTB
publicaram seus atos de pesar, como a autora Bibiana Dias aponta a mensagem redigida pelo
presidente do Partido, João Goulart,

... continuaremos (...) defendendo com mais ardor e mais idealismo a memória
inolvidável do maior dos brasileiros, sacrificando em holocausto à ordem e a
tranqüilidade pública. (...) porque o sangue inocente de Getúlio Vargas foi a
comunhão que nos uniu para sempre sob a mesma fé, abrindo-nos de par em par o
coração do povo brasileiro, que jamais conheceu em toda gloriosa história, exemplo
tão dignificante de renúncia e página tão formosa de amor à pátria. Cada gota de
sangue do nosso grande chefe será de fato a chama imortal a viver para sempre em
nossos corações. Nós a transmitiremos às gerações porvindouras para que
completem e aperfeiçoem a obra iniciada. Os trabalhadores estão órfãos (...) nós

7 No Sindicato dos Calçados. Correio do povo, Recife, p. 2, 25 ago. 1954.


8 Nas classes conservadoras; No sindicato dos Produtos Químicos. Correio do povo, Recife, p. 2, 25 ago.
1954.
9 Imprensa pernambucana em edições sucessivas. Correio do Povo, Recife, p. 2, 25 de ago. 1954.

622
juramos com as mãos postas sobre o corpo hirto do nosso grande chefe – cujo o
espírito nos guiará até a morte – fazemos do seu ideal, nosso ideal, das suas
declarações, nosso programa...10

Nesse sentido, os sentimentos de pesar e revolta do presidente do PTB ficam evidentes em


seu pronunciamento ao povo brasileiro, como também, o sentimento de dar continuidade aos projetos
de Getúlio Vargas, assim, percebemos um discurso emocional em nível nacional. Na manhã de 24 de
agosto, o jornal Correio do Povo, já noticiou o suicídio e, em suas páginas, destacou os sentimentos
de pesar e luto decretados por autoridades políticas da cidade de Recife, homenageando o presidente
que acabara de suicidar-se. “O Governo do Estado de Pernambuco em sinal de pesar pelo trágico
desaparecimento do presidente Getúlio Vargas resolveu decretar luto oficial por oito dias em todo o
Estado”11.
A imprensa destacou mensagens de solidariedades dos vereadores da bancada do PTB. Sérgio
Xavier, Wilson de Barros Leal e Antônio Batista de Sousa, assim expressaram: “A bancada do PTB
da Câmara Municipal do Recife mais uma vez telegrafou ao chefe da Nação e as Forças Armadas,
enviando sua solidariedade ao presidente Getúlio Vargas afirmando ainda que a constituição precisa
ser mantida”12. O PSD suspendeu a campanha13 em ato de pesar ao suicídio do presidente. “O partido
Socialista Brasileiro [...] está comunicando ao povo que resolveu suspender a todos os ato públicos
de propaganda da candidatura do jornalista Osório Borba associando-se ao pesar que domina o povo
brasileiro, pelo falecimento do presidente da República” 14
Percebemos que os sentimentos de pesar na cidade de Recife foram bastante divulgados pela
imprensa. Dessa forma, apresentando a notoriedade que o presidente Getúlio Vargas possuía
(possuí?) após o suicídio. Nesse sentido, o autor Jorge Ferreira apresenta-nos como o suicídio de
Vargas atingiu o sistema partidário brasileiro;

episódio dramático e traumático para a sociedade brasileira, a morte de Vargas


atingiu o sistema partidário com, pelo menos, dois significados: seus opositores,
sobretudo os liberais, que descreviam o ex – presidente como “ditador do Estado
Novo”, esperavam por futuras vitórias eleitorais sem a presença do “getulismo” os

10 SILVA, Hélio. 1950: um tiro no Coração – O Ciclo de Vargas. Porto Alegre: L & PM, 2004, p. 322
apud DIAS, Bibiana. A repercussão do suicídio de Getúlio Vargas e o processo de mistificação post-mortem no jornal
correio do povo de Porto Alegre. Porto Alegre: 2011 p. 106. O texto publicado em anexo no livro do autor Hélio Silva
“1954: um tiro no coração” “foi retirado do jornal O Radical de 28/08/1954, e tem o título de “Nota oficial do Partido
Trabalhista Brasileiro”“. Id. Ibid.

11 Luto Oficial por 8 dias em Pernambuco. Correio do povo, Recife, p. 2, 24 ago. 1954.
12 Vereadores e líderes sindicais prestam solidariedade a Vargas. Correio do povo, Recife, p. 2, 24 ago.
1954.
13 Eleições gerais no Brasil, Osório Borba foi eleito a suplente de Deputado Federal, na legenda
Movimento Popular Autonomista, ocupou uma cadeira na Câmara, por apenas dois meses em 1957. Disponível em
< http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/links/OsorioBorba.html> Acesso em: 21/11/2014 as 18hs48 min.
14 Suspendeu a campanha. Correio do povo, Recife, p. 2, 25 ago. 1954.

623
partidários de Vargas, tanto as lideranças quanto os eleitores, manifestavam
desorientação e desalento, privado que estavam de sua maior referência política.
Getúlio Vargas, até então, era maior que o PTB. Sem grandes líderes em nível
nacional e estadual, desprovidos de máquina partidária como as outras agremiações,
os petebistas tinham algo nada desprezível: o que, na época, era definido como
“getulismo”. Contudo, o partido não crescia limitado e cercado por uma liderança
incontestável, verdadeiro mito político vivo. Vargas, no entanto, já havia preparado
o futuro do PTB. Inicialmente, encaminhara sua própria sucessão, elevando João
Goulart a presidente do partido (FERREIRA, 2005. p. 204).

Desse modo, o suicídio de 24 de agosto de 1954 modificou o sistema político do país. Pois,
o segundo governo Vargas passara por uma crise, na qual, sua popularidade estava baixa e a oposição
estava criticando o governo. Após, o suicídio e com a com a vinculação da carta-testamento15, o
autor Jorge Ferreira aponta que o mesmo “livrou-se da imagem negativa que o descrevia como
“ditador do Estado Novo” e ganhou outra, a do “líder nacionalista e reformador social” (2005. p.
204). Dessa forma, Getúlio Vargas deixa contribuições significativas para a continuação dos seus
projetos, agora, na figura do presidente do PTB João Goulart.
Em meios às notas de pesar na cidade de Recife vale salientar aquelas expedidas pelos
desportistas da cidade, que expressaram suas homenagens. Assim, o jornal Correio do Povo
destacou:

Como não podia deixar de acontecer os esportes pernambucanos choraram a morte


do seu grande presidente e por suas vozes mais autorizadas declararam o pesar que
os domina. Todas as atividades foram paralisadas e tomando luto oficial por oito
dias, em todas as federações e clubes”16.

Os presidentes do Clube Náutico Capibaribe, do Santa Cruz, o América e do Auto Esporte


apresentaram suas notas de pesar paralisando as atividades previstas para a semana expondo
solidariedade ao presidente Getúlio Vargas. Assim,

o Presidente da Federação Pernambucana de Desportos [...] resolve tomar luto por


(8) dias prazo que conservará o pavilhão hasteado a meio pau [...] suspender a
realização do jogo que deveria travar no terminado que, mantidos as mesmas
autoridades, seja ele realizado na quarta-feira 10 de setembro vindouro [...]17.

Nesse sentido, os sentimentos de pesar e luto foram expressados pelos mais variados setores
da cidade de Recife , ocasionando mudanças na rotina de suas programações usuais, em função do
trágico acontecimento.

15 A carta-testamento deixada por Getúlio Vargas ao suicidar-se, segundo Lira Neto apresentava “a
autoimolação de Getúlio tornava um mártir e, para o imaginário coletivo nacional, um símbolo de resistência” (LIRA
NETO, 2014.p. 346).
16 O desporte em Funeral. Correio do povo, Recife, (número da página invisível). 25 ago. 1954.
17 Não haverá jogo. Correio do povo, Recife, (número da página invisível). 25 ago. 1954.

624
4 – AS MANIFESTAÇÕES DE PESAR EM RECIFE – PE

No decorrer da semana após o suicídio do presidente Getúlio Vargas as pessoas da cidade de


Recife foram ás ruas para homenagear – lo. E o jornal Correio do Povo noticiou os acontecimentos
durante a semana. Dessa forma, esse tópico tem como objetivo expor algumas das manifestações de
pesar que o periódico noticiou acerca do suicídio do presidente Getúlio Vargas. Nesse sentido,
analisamos os discursos das pessoas que o jornal publicou. Uma vez que, é de suma importância para
compreendermos os sentimentos de pesar e revolta que os cidadãos da cidade de Recife vivenciaram,
como as mais variadas cidades do Brasil. Dessa forma, percebemos que as emoções das pessoas
foram exorbitantes e uma pessoa chegou a óbito na cidade de Recife. Assim, na terça feira 24 de
agosto de 1954 o Correio do Povo noticiou que morreu um trabalhador recifense ao saber do suicídio
do presidente Getúlio Vargas,

ao ouvir pelo rádio a notícia, do suicídio do presidente Vargas, o trabalhador José


Florentino da Silva de 54 anos de idade, residente a rua dos Afogados foi cometido
de mal súbito [...] não resistira ele ao choque causado pela morte do chefe da nação
e amigo número um dos trabalhadores do povo brasileiro18.

Sendo assim, percebemos que o suicídio do presidente Getúlio Vargas comoveu às pessoas e
o quanto a população brasileira sofreu com a perda do presidente. Uma vez que foram pegas de
“surpresas” ao amanhecer daquela terça feira 24 de agosto de 1954. Assim, no discurso do Srº José
Carneiro de Albuquerque, presidente do Sesiano de casas amarela, fica evidente o sentimento de
pesar e de agradecimento ao presidente Getúlio Vargas,

recebi com profundo pesar, não podendo mesmo resistir a notícia, em caráter
extraordinário que acaba de enlutar toda a população brasileira. Confiando naqueles
que a estas horas sentem como eu a falta irreparável de um dos maiores brasileiros,
que foi o presidente Getúlio Vargas. Somente a ele devemos nós, os trabalhadores,
a criação de uma grande legislação trabalhista e a garantia das liberdades sindicais.
Ficou na lembrança dos trabalhadores brasileiros o legado eterno de sua obra social 19

Dessa forma, percebemos que no discurso de Albuquerque fica evidente o sentimento de


pesar e de agradecimento ao presidente Getúlio Vargas pelas conquistas que os trabalhadores

18 Morre de emoção um trabalhador brasileiro. Correio do Povo, Recife, p. 3. 24 ago. 1954.


19 Representantes de todas as classes lamentam o desaparecimento. Correio do povo, Recife. p. 3. 24 de
ago. 1954.

625
brasileiros adquiriram. Esse depoimento é um exemplo do que o jornal Correio do Povo publicou
durante a semana após o suicídio, pois, a mesma foi de manifestações de pesar na cidade de Recife.
Como o episódio da Avenida Guararapes, onde as pessoas estavam reunidas chorando a morte do
presidente Getúlio Vargas e chegou um defensor de Carlos Lacerda, a população exaltou-se e quase
o espanca:

[a] multidão estava aglomerada na praça da independência, no princípio da Avenida


Guararapes defronte ao edifício da “Sulacap” [...] o povo mostrava-se consternado.
A essa altura dos acontecimentos chegou na calçada do “Brahma chopp” dizendo-se
ter vindo do Rio de Janeiro, um cidadão desconhecido, aparentando seus cinquenta
anos de idade, trajado de azul marinho que iniciou um discurso defendendo o
jornalista Carlos Lacerda. Isso foi o bastante para que o povo se tivesse revoltado
contra as suas palavras, em grito de protestos. Alguns mais exaltados correram em
direção ao desconhecido, a fim de esmurra-lo [...].20

Logo, as manifestações populares na cidade de Recife ficam claras, pois, as pessoas estavam
dispostas, sobretudo, a corroborar no possível para não serem interrompidas as homenagens do
presidente Getúlio Vargas, como também não permitiram insultos ao presidente. Na terça feira 31
de agosto de 1954, quando completou sete dias do suicídio do presidente Getúlio Vargas a população
da cidade de Recife sai às ruas em uma grande passeata para homenageá-lo,

Partindo, do parque 13 de Maio, 100 mil pessoas, com velas nas mãos,
desfilaram lentamente, até a praça da independência. Em todos os rostos
estavam estampada à dor e o pesar. Mas, nas fisionomia dos que desfilavam,
não era notada somente a dor. Deixavam transparecer , ao mesmo tempo, um
grande sentimento de revolta [...]Não se ouvia uma vos. Apenas o rumor dos
sapatos no asfalto [...].21

Nesse sentido, percebemos que as manifestações tinha como objetivo homenagear o


presidente Getúlio Vargas. Dessa forma, os episódios narrados pelo jornal Correio do Povo nos
indicam que a população recifense também se apresentou no espaço público manifestando os seus
sentimentos pela morte do presidente. Para Prochasson,

emoção encontra seu equivalente no velho sentido da palavra paixão, que designa o
conjunto de movimentos afetivos, mais ou menos estáveis, engendrados pelo choque
de um estado individual com a análise de uma situação. Isto implica em duas
consequências importantes: as emoções não resultam de um encaminhamento
puramente individual, mas se inscrevem em uma perspectiva social e cultural; elas
não se opõem à cognição. (2005, p. 312).

20 Viva Getúlio! É o grito que parte do coração do povo. Correio do Povo, Recife. p. 2, 25 de ago. 1954.
21 Procissão Emocionante de Silêncio e de dor. Correio do povo, Recife. p. 7, 31 de ago. 1954.

626
Dessa forma, as emoções estão explícitas nas manifestações populares da cidade de Recife e o jornal
Correio do Povo apresenta-nos esses sentimentos que a população recifense vivenciou no agosto de
1954. Uma vez que, a população saiu às ruas para expor seus sentimentos pelo presidente Getúlio
Vargas que os deixou naquela manhã de 24 de agosto de 1954.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse artigo acompanhou as manifestações de pesar na cidade de Recife - PE durante uma


semana após o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Nesse sentido, observarmos que as pessoas da
cidade de Recife se mobilizaram das mais variadas formas possíveis, a exemplo, de notas publicadas
no jornal Correio do povo, expondo o seu pesar e as emoções que a população sentiu durante esta
semana. Passeatas, manifestações contra as pessoas que caluniavam a imagem do presidente Getúlio
Vargas foram fragmentos que expomos ao longo do artigo. Nossa pesquisa obteve êxito, pois,
conseguimos responder nossas indagações acerca das pessoas que participaram das manifestações
de pesar durante a semana após o 24 de agosto de 1954 em Recife – PE. Uma vez que, eram pessoas
das mais variadas repartições, como, jornalistas, trabalhadores, operários, presidentes de Sindicatos,
autoridades políticas, e presidentes de clubes de futebol do Recife. Atualmente na pesquisa em
desenvolvimento no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC/SP, trabalhamos com
os periódicos Correio do Povo, Diário da Noite, Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio,
com o objetivo de compreender a tragicidade e a comoção popular do suicídio de Getúlio Vargas por
meio da imprensa pernambucana. Assim, pretendemos contribuir para o fechamento de algumas
lacunas existente acerca desse tema apresentando uma contribuição para a historiografia republicana
brasileira.

6 – REFERÊNCIAS

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crise de agosto de 1954. In: GOMES, Ângela de Castro. (Org). Vargas e a Crise dos anos 50. Rio
de Janeiro – RJ: Relume Dumará, 1994.

D’ARAÚJO, Maria Celina. O segundo governo Vargas 1951 – 1954: democracia, partidos e crises
políticas. São Paulo – SP: Ática, 1992.

627
_______. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945 – 65. Rio de Janeiro – RJ: Editora da Fundação
Getúlio Vargas, 1996.

DIAS, Bibiana Sodré. A repercussão do suicídio de Getúlio Vargas e o processo de mistificação


post-mortem no jornal Correio do Povo de Porto Alegre. 2011. 150 f. Dissertação (Dissertação em
História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2011.

DE LUCA, Tânia Regina. História dos, nos, e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla. (Org).
Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo – SP: Contexto, 2008.

FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964.
Rio de Janeiro – RJ: Civilização Brasileira, 2005.

_______. O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto. In: GOMES, Ângela de Castro.
(Org). Vargas e a Crise dos anos 50. Rio de Janeiro – RJ: Relume Dumará, 1994. p. 61 – 96.

GOMES, Ângela de Castro (org). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro – RJ: Relume Dumará,
1994.

KUSCHNIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da Política: Cultura
Política e Antropologia da Política. In: Estudos Históricos. V. 24, 1999. p. 227-250.

LIMA, Jailma Maria de. Partidos, candidatos e eleitores: o Rio Grande do Norte em campanha
política (1945 – 1955). 2010. 310 f. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco (1821 – 1954). Recife – PE:
Imprensa Universitária, 1967. V. 3.

NETO, Lira. Getúlio: Da volta pela consagração popular ao suicídio (1945 – 1954). São Paulo.
Companhia das Letras, 2014.

PROCHASSON, Christophe. Emoções e Políticas: Primeiras aproximações. In: VARIA HISTÓRIA,


Belo Horizonte – BH, vol. 21, nº 34, p. 305 – 324 jul. 2005. RÉMOND, René. Uma História
Presente. In: RÉMOND, René (Org). Por uma História Política. Rio de Janeiro – RJ: Edufrj/ Editora
da Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 13 – 36.

ROSANVALLON, Pierre. Por uma História conceitual do Político. In: _____ . Revista Brasileira de
História. São Paulo, V. 15, nº 30, 1995. p. 9 – 22. SILVA, Hélio Ribeiro Da. Quarta Parte. In: _____.
O ciclo de Vargas 1954: um tiro no coração. ed. 72. Rio de Janeiro – RJ. Civilização brasileira, 1978.

628
Entre O Bem Coletivo E O Mercado: A Campanha Sanitária Na Inglaterra Do Fim Da
Revolução Industrial

Daniel Schneider Bastos1

Resumo: O trabalho aborda a questão da reforma sanitária promovida na Inglaterra ao final da


Revolução Industrial, tomando como fonte principal os inquéritos sobre o estado sanitário dos
centros urbanos realizados nas décadas de 1830 e 1840, sobretudo o de Edwin Chadwick publicado
em 1842. Destaca-se a relação entre a campanha sanitarista e o compromisso estabelecido por uma
nova intelectualidade orgânica representante da burguesia industrialista em adequar o conjunto social
às diretrizes impostas pelo novo modelo econômico, de sorte que as reformas urbanas e medidas
sanitárias deveriam, necessariamente, estar conectadas com os interesses da acumulação de capital
industrial.

Palavras chave: Revolução Industrial, Saúde Pública, Liberalismo, Inglaterra.

Abstract: The work addresses the issue of the sanitary reform promoted in England by the end of
the Industrial Revolution, taking as primary source the inquiries about the sanitary state of the urban
centres conducted in the 1830s and 1840s, mainly the one published by Edwin Chadwick in 1842. It
highlights the relation between the sanitary campaign and the commitment established by a new
organic intellectuality representative of the industrious bourgeoisie in adjusting the social set to the
guidelines imposed by the new economic model, so that the urban reforms and sanitary measures
should, necessarily, be connected with the interests of the industrial capital's accumulation.

Key-words: Industrial Revolution, Public Health, Liberalism, England.

A Inglaterra da Revolução Industrial, abrangendo a segunda metade do século XVIII e a


primeira metade do século seguinte, evoca imagens bastantes difundidas. O termo costuma trazer à
mente o retrato de cidades cinzentas, de vielas escuras, habitações precárias e caminhos pestilentos
entrecruzando os bairros operários. Parece haver consenso, ao se observar os relatos da época, de
que se trata de uma representação condizente com o estado dos grandes centros urbanos do período,
notadamente as cidades mais industrializadas ao norte e as partes mais populares da metrópole
londrina. Registros nesse sentido foram deixados em abundância por autores de variados
posicionamentos ideológicos, dos mais liberais aos radicais socialistas. O problema se agravou e
começou a ganhar espaço no debate público quando a Revolução Industrial já era um processo
relativamente avançado, destacando-se como um tema de grande urgência a partir dos anos 1830,
quando os trabalhos abordando essa questão ganham notoriedade. O percentual de ingleses residindo

1 Mestre em história pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (ano de
obtenção do título: 2017). Email: danielbastos@id.uff.br.

629
nas cidades só ultrapassou o número dos habitantes rurais na década de 1850, momento que a maioria
dos pesquisadores já entende a Revolução Industrial (mais precisamente aqui, a "Primeira Revolução
Industrial") como um processo encerrado. Mesmo nessa fase, o operariado representava uma parcela
minoritária da população trabalhadora, e a pequena e média oficina uma realidade de trabalho mais
comum do que a fábrica propriamente dita. Mas a urbanização e o sistema fabril, embora não fossem
onipresentes, atraíam enorme atenção. A questão sanitária das cidades, bem como outras mazelas
que ascenderam com a industrialização, eram fenômenos sociais a serem interpretados antes de
serem solucionados. Estabelecer consensos em torno dessas interpretações era um processo político,
dado que as conclusões daí extraídas invariavelmente seriam incorporadas a argumentação de grupos
contrários ou favoráveis ao avanço do capital industrial nos moldes em que este vinha se dando.
Ilustrarei essa afirmação com um exemplo concreto.
O estado sanitário das cidades se torna um assunto de grande interesse público no começo
dos anos 1830, com a epidemia de cólera que chega à Ilha em outubro de 1831 e se estende até os
últimos meses do ano seguinte. Deixando dezenas de milhares de mortos, a enfermidade destacou-
se por sua faceta social, castigando muito mais violentamente os bairros dos trabalhadores do que as
redondezas habitadas pela classe média e as elites. Era evidente que doença e pobreza estavam
interligados. Essa correlação é bastante explícita no relatório 2 publicado em 1832 pelo médico
Phillips James Kay-Shuttleworth, que nos anos anteriores havia trabalhado na cidade de Manchester
e agora divulgava suas impressões sobre a experiência. Ao descrever o estado dos operários da cidade
que estavam empregados na indústria dos fios e tecidos de algodão, comentando sobre sua condição
moral e fisiológica, sua rotina de trabalho e o modo como viviam, Kay tece um quadro sombrio. De
constituição adoentada e desmoralizados pela rotina de trabalho extenuante e a dieta empobrecida,
essas figuras desgraçadas regrediam a um estado de quase bestialidade, conformando-se em residir
em habitações precariamente construídas. Famílias inteiras viviam confinadas em um ou dois
cômodos, quando não em porões, frequentemente dividindo o imóvel com outras famílias
desafortunadas. As casas eram erguidas em fileiras, com cada residência colada às vizinhas pelas
laterais. As fileiras eram agrupadas de duas em duas, dado que os fundos das casas também serviam
de divisória para outras moradias. Vielas estreitas e não pavimentadas se intercalavam entra essas
filas duplas de habitações, pelas quais vêem-se dejetos, cadáveres de animais e toda sorte de lixo em
decomposição 3 . Embora a cólera seja citada diretamente uma única vez no documento 4 , ao se

2 KAY-SHUTTLEWORHT, J. P. The moral and physical condition of the working classes employed in the cotton
manufacture in Manchester. Londres: Harrison & Crosfield, 1832. Disponível em: <https://archive.org/
details/moralphysicalcon00kaysuoft>. Acesso em: 13 de abril de 2017.
3 Idem, p. 18-25.
4 Idem, p. 23.

630
comentar que as condições sanitárias encontradas na cidade tornavam o aparecimento da doença
naquela região algo inevitável, é reiterada ao longo de todo o texto a ideia de que o estado de coisas
que propicia a degradação moral dos trabalhadores é também aquele que favorece o surgimento das
moléstias. Kay alerta ao leitor para o fato de que, se tamanho quadro de degeneração se perpetuar, a
Ilha arrisca adentrar uma catástrofe civilizatória 5.
O ponto é que, embora o autor chegue a comentar sobre a implacável e repetitiva rotina de
trabalho industrial, que cultivava nos operários os hábitos rústicos e a apatia do intelecto e do
espírito 6 , Kay, na parte final do ensaio, dedica-se a absolver prontamente o sistema fabril e o
capitalismo de livre mercado da responsabilidade por todos os males observados. Ao contrário, é
ardorosamente defendido que esses dois elementos constituem, quando funcionando perfeitamente,
mecanismos indispensáveis para o progresso material, moral e intelectual da civilização. As causas
dos desequilíbrios observados devem ser, portanto, atribuídas aos fenômenos que atravancam a
concretização dessa panacéia liberal-industrialista:
“Acreditando que a tendência natural do comércio irrestrito é a de desenvolver
as energias da sociedade, de aumentar os confortos e luxos da vida e de elevar a
condição física de cada membro do corpo social, nós temos exposto, com uma mão
firme, apesar de amigável, a condição das ordens mais baixas conectadas com as
manufaturas desta cidade, porque concebemos que os males afetando elas resultam
de causas externas e acidentais. Um sistema que promove o avanço da civilização e
a difunde sobre o mundo – que promete manter a paz entre as nações, pelo
estabelecimento de uma lei internacional permanente, fundada nos benefícios da
associação comercial, não pode ser inconsistente com a felicidade da grande massa
das pessoas.7"
Quais seriam as "causas externas e acidentais" que se interpunham no caminho da indústria
e do mercado? Os principais culpados elencados são as restrições impostas sobre o livre comércio,
que apareciam na forma da Lei dos Pobres8, do protecionismo praticado na Ilha e no Continente, dos
resquícios de monopólios mercantilistas e na atuação dos sindicatos9. O resgate sanitário das cidades
deveria passar por medidas que incidissem sobre essas causas, deixando o laissez-faire desobstruído
para operar seus efeitos positivos.

5 Idem, p. 50-51.
6 Idem, p. 8.
7 Idem, p. 47, tradução livre, destaques mantidos do original.
8 As Leis dos Pobres representavam todos os códigos legislativos direcionados à administração dos pobres no
Reino, tendo sido concebidas através da compilação de estatutos referentes à pobreza instituídos pela Dinastia Tudor
(1485-1603), que foram organizados em um único código coeso entre 1597 e 1603. As leis determinavam que cada
paróquia ficava responsável pelo socorro dos pobres que lá estivessem estabelecidos, tendo autonomia administrativa
para cobrar impostos dos contribuintes locais com essa finalidade. Esse modelo angariou críticas crescentes conforme os
gastos destinados aos pobres ascenderam grandemente, o que serviu de justificativa para a instituição de um ato de emenda
em 1834, que introduziu mecanismos de centralização administrativa e medidas rigorosas visando conter as despesas. O
código reformado passou a ser conhecido como Nova Lei dos Pobres.
9 KAY-SHUTTLEWORHT, J. P. The moral and physical condition of the working classes employed in the cotton
manufacture in Manchester. Londres: Harrison & Crosfield, 1832, p. 49-55. Disponível em: <https://archive.org/
details/moralphysicalcon00kaysuoft>. Acesso em: 13 de abril de 2017.

631
O trabalho de Kay condensa perfeitamente as características do reformismo liberal que
emerge nos anos 1830. Mais precisamente após 1832, com a reforma eleitoral10 que abre espaço para
que a burguesia industrialista enfim obtenha assentos em bom número no Parlamento, inaugura-se
um período marcado por reformas legislativas que visam favorecer o capital industrial. Essa "fase
heróica" da burguesia persiste até 1846, com a revogação das Leis dos Cereais 11. Após esse período,
seu ímpeto de reformismo desacelera e é retomada uma via mais conciliatória com a nobreza
conservadora e sua imensa riqueza agrária, mas isso só ocorre após a conquista de avanços decisivos
da pauta política burguesa. Durante quatorze anos, setores burgueses associados à indústria
organizaram-se politicamente para reorientar as políticas do estado inglês em favor de seus
interesses, o que não se deu sem atrito com outras classes e seus respectivos projetos político-
econômicos. Historicamente submissa politicamente e culturalmente à fidalguia e aristocracia que
dominavam o capitalismo rural, com as quais havia firmado um duradouro pacto de dominação desde
o século XVII12, no qual as três partes concordavam em evitar enfrentamentos diretos entre si visando
a estabilidade da ordem capitalista na Inglaterra, a burguesia enfim sentia-se em posição de exigir
uma renegociação dos termos deste contrato. Isso só foi possível após um longo processo de
reorganização das fileiras do partido liberal (whig), que com o decorrer da Revolução Industrial
assumiu a coesão e delimitação programática necessárias para se constituir como um partido político
moderno de fato. Esse processo se dá por meio do desencadeamento de dinâmicas classistas com a
industrialização. O amadurecimento do partido liberal, que passa a se apresentar como um partido
da burguesia industrialista, é diretamente relacionado com o desenvolvimento da identidade desta
como uma classe autônoma e disposta a implementar sua própria agenda.
O passar das décadas da Revolução Industrial foi acompanhado pelo agravamento de diversas
questões sociais, entre as quais o estado sanitário das cidades se destacava. Em sintonia com esses
problemas, as tensões entre as classes se agravam até atingirem um ponto crítico nos anos 1830 e
1840, fase final dessa primeira etapa de industrialização. A transição para uma sociedade mais
industrializada implicou em identidades e aspirações classistas ressignificadas. O domínio político e

10 A reforma política de 1832 teve como principal objetivo redistribuir os assentos parlamentares em novas zonas
eleitorais. Ela retirou espaço de representação de antigas áreas rurais que elegiam um número desproporcionalmente alto
de representantes em relação aos eleitores locais, servindo como currais eleitorais para os proprietários rurais de
alinhamento conservador (os chamados "burgos podres"), e concedeu cadeiras no Parlamento para novas zonas urbanas
em crescimento.
11 Código protecionista que taxava pesadamente as importações de cereais, favorecendo os fazendeiros, que
podiam desfrutar de preços elevados para o alimento cultivado. Os empregadores de outros setores queixavam-se dessa
legislação, alegando que ela encarecia o preço da mão de obra por meio do encarecimento da comida.
12 A partir dos episódios revolucionários entre o início da Guerra Civil (1642) e a Restauração monárquica (1660),
os interesses capitalistas passam a comandar as orientações do Estado, mas sem que isso implique em uma sujeição da
nobreza à burguesia. Ao contrário, o contexto inglês se caracteriza por uma peculiar ordem capitalista na qual este último
grupo aceita longamente posição politicamente e culturalmente subalterna em relação aos primeiros. Conferir: HILL,
Christopher. O Século das Revoluções: 1603-1714. Tradução: Alzira Vieria Allegro. São Paulo: Unesp, 2012.

632
cultural da nobreza capitalista, e todo seu aparato de hegemonia social construído desde o século
XVII, havia se esgarçado com essa mudança e não dava mais conta de conter espíritos radicalistas13,
como se observava pela forte atuação sindical, a circulação renovada de impressos radicais e o
apogeu do movimento cartista14. Havia, nesse sentido, um "vácuo de hegemonia" a ser preenchido,
que para a burguesia industrialista era simultaneamente tentador e ameaçador. Por um lado, era um
espaço necessário para que esta se fortalecesse perante os poderes aristocráticos. Em contrapartida,
era um movimento que precisava ser articulado com cuidado, para não atiçar radicalismos
indesejados em uma conjuntura que já se mostrava demasiada incerta e turbulenta. Nesse contexto,
era indispensável para as pretensões da burguesia oferecer soluções práticas para as mazelas
socioeconômicas. A insalubridade urbana instigava tanto a intelectualidade conservadora
aristocrática quanto os representantes da classe trabalhadora organizada e seus simpatizantes na
classe média a desacreditarem as virtudes do sistema fabril. Vozes mais conservadoras viam nas
doenças e na imundície sinais inequívocos da imoralidade da economia urbana. Outras, mais
alinhadas ao sindicalismo operário, entendiam que tais males deveriam ser remediados pela
organização autônoma dos trabalhadores para reivindicar melhores condições de trabalho e
habitação. Cabia à burguesia se mobilizar para desfazer dentro da opinião pública essa associação.
Nesse sentido, Kay deve ser entendido como um dos primeiros a se destacar entre os muitos
intelectuais orgânicos que vem a público para conquistar o consenso necessário para viabilizar o
programa liberal-industrialista. Tomo emprestado o aparato conceitual gramsciano neste momento
para explicar o papel desempenhado por esses autores. Gramsci 15 entendia como intelectuais
orgânicos aqueles indivíduos que, por sua capacidade destacada de analisarem a conjuntura social e
identificar as aspirações de sua classe nesse contexto, bem como a posição que ela ocupa nesse jogo,
atuam como porta-vozes dos interesses de suas respectiva classe, conferindo a coesão e identidade
necessárias para desenvolverem pautas programáticas. O sucesso dessas pautas, inclusive aqueles
que se propõe a conduzir determinada classe à posição dominante, está condicionado à formação de
hegemonias, isto é, a sedução exercida por parte de uma classe sobre outros grupos, de forma que
estes venham a aderir ao seu projeto por meio da incorporação ao menos parcial de sua visão de

13 Para uma análise competente desse esgotamento da ordem estabelecida tradicionalmente pela nobreza fundiária
capitalista e seus desdobramentos para a vida política na Revolução Industrial, conferir: THOMPSON, E. P. “As
peculiaridades dos ingleses”. In: As peculiaridades dos ingleses – e outros artigos. Tradução: Antonio Luigi Negro.
Campinas: Unicamp, 2001.
14 O Cartismo era um movimento popular que coligava trabalhadores e setores de classe média que se organizavam
em torno de pautas políticas, sobretudo a extensão do direito ao voto e à candidatura para o Parlamento, demandando o
fim dos critérios censitários para tal. Recebia esse nome por sua estratégia de reivindicação, na qual uma carta com as
demandas da organização era apresentada ao poder público juntamente com a assinatura de milhões de britânicos. Seu
apogeu foi na década de 1840, decaindo em força no decênio seguinte.
15 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo.
Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 17-28

633
mundo, sua ideologia. A dominação na sociedade capitalista depende do consenso, mesmo entre os
dominados, de que o sistema político e econômico instituído deve ser aceitado, ao menos em algum
grau que viabilize sua manutenção. Os intelectuais orgânicos são responsáveis por encabeçar a
costura desse consenso (processo que, fique claro, não abdica de elementos de coerção violenta).
Trabalhos como o de Kay devem ser interpretados como parte importante dessa busca pelo consenso.
Se propõe um olhar analítico e científico sobre problemas sociais objetivos, de sorte que o
revestimento empírico do inquérito sirva para apresentar as opiniões subjetivas como um parecer
frio "neutro". A constatação de que o sistema fabril e o livre mercado devem ser incentivados como
forma de superar o problema de infra-estrutura e miséria observado nas cidades é, dessa forma,
vendida como verdade insuspeita, como se não fosse cunhada dentro de interesses classistas
específicos.
O reformismo burguês seguiu incidindo sobre variados aspectos da sociedade britânica. Mas
é na década de 1840 que a reforma sanitária começa a assumir contornos mais definidos, graças à
uma iniciativa individual. Edwin Chadwick, advogado e liberal convicto que já havia atuado com
grande destaque em comissões parlamentares sobre a Lei dos Pobres (e, de forma menos
protagonista, em investigações sobre a exploração de crianças e adolescentes nas fábricas de tecido),
decidira usar de seus próprios recursos para inquirir, com a ajuda de uns poucos colaboradores,
acerca da saúde do reino. O resultado frutificou em 1842 com a publicação de um dos mais famosos
relatórios do período. No trabalho, intitulado Report on an inquiry into the sanitary condition of the
laboring population of Great Britain16, Chadwick desenvolve o conceito de uma geografia urbana
da saúde, algo que já vinha sendo experimentado em obras anteriores. Esta abordagem tem como
base o fenômeno observado durante a epidemia de Cólera dez anos antes, quando se constatou que
as enfermidades se manifestavam com mais força onde habitava a pobreza. A primeira coisa a se
destacar é o modo como Chadwick entende que as epidemias surgem e se propagam. Como a maioria
dos indivíduos envolvidos nos debates sanitários de seu tempo, ele era um defensor da teoria
miasmática, na qual as moléstias se originam da decomposição de matéria putrefata, que exila gases
nocivos (os "miasmas") que contaminam os infelizes que estiverem expostos a eles. A hipótese
miasmática fazia contraponto a outra teoria, a do contágio, que contava nos anos 1840 com menos
adeptos. Nesta, as doenças seriam transmitidas de indivíduo para indivíduo, por agentes ainda não
claros para os estudiosos. Como sabemos hoje, a segunda corrente era a mais próxima da realidade,
mas não conseguia comprovar suas convicções pelo desconhecimento sobre os microorganismos

16 CHADWICK, E. Report on an inquiry into the sanitary condition of the laboring population of Great Britain.
Londres: William Clowes & Sons. 1842. Disponível em: <https://play.google.com/storebooks/details?id=lzK5
iitgFpUC&rdid=booklzK5iitgFpUC&rd ot=1>. Acesso em: 13 de setembro de 2015.

634
responsáveis pelo contágio entre os corpos. Os miasmas eram uma explicação mais intuitiva.
Tomemos a cólera como exemplo. Não se conseguia constatar, pelas limitações da época, o ciclo no
qual os doentes expelem as bactérias e que estas, por meio da água, atingem os sadios, numa
dinâmica que tende a acometer os que habitam a região e tem contato com o fornecimento de água
local. Parecia mais lógico supor que os doentes caíam de cama por conta de seu convívio continuado
com a imundície daquela comunidade e suas exalações malignas. É importante ressaltar que, embora
a cólera tenha atuado como um catalisador para o debate sanitário, no sentido de que foi sua chegada
fulminante que incentivou as investigações sobre a saúde coletiva, havia consciência de que a maior
mortalidade se dava por males endêmicos, sobretudo as afecções do aparelho respiratório e digestivo,
destacadamente a tuberculose pulmonar e a disenteria, mas também diversos tipos de febre,
especialmente tifóides. Todas essas doenças estavam associadas com condições locais de habitação
e trabalho, sendo também creditadas aos miasmas.
Partindo de premissas erradas, o pensamento miasmático, ardorosamente defendido por
Chadwick em contraponto ao contágio, levou-o de fato a algumas suposições corretas. Não havia
dúvida de que a infra-estrutura urbana deficiente favorecia os surtos epidêmicos e outras
enfermidades endêmicas, de sorte que reformas de engenharia eram urgentemente necessárias. Ainda
que a sujeira decomposta não fosse em si a responsável por exalar doenças, sua acumulação estava
diretamente ligada à problemas de saneamento, habitação, fornecimento de água, circulação de ar e
de pessoas nas vias públicas, entre outros elementos que incidem sobre a saúde coletiva. Em seu
inquérito, Chadwick discute os modelos mais adequados para a construção de esgotos 17 , como
instalar encanamentos domésticos para fornecimento sadio de água18, além de fornecer orientações
para o alargamento das vias e a construção de praças em espaços determinados para favorecer a
circulação de ar nas cidades 19 . Defende a construção de passeios públicos para que as classes
populares urbanas tivessem opções saudáveis para seus momentos de lazer 20. No âmbito privado,
recomenda que as casas fossem acompanhadas de jardins, concebidos como espaços recreativos
seguros para as crianças e evitando que estas procurassem os prazeres das ruas, onde estariam sujeitas
ao contato com más influências 21 . Chadwick baseia suas propostas não apenas em observação
empírica, mas também em longas conversas com médicos, engenheiros, autoridades locais e outros
profissionais que partilhavam de preocupações parecidas em relação à saúde moral e fisiológica das
classes populares. Há também recomendações para aprimorar os serviços públicos de limpeza já

17 Idem, p. 55, 326, 373-378 e 388-389.


18 Idem, p. 318-320.
19 Idem, p. 385-386.
20 Idem, p. 276-277.
21 Idem, p. 275-277.

635
existentes22. Não se pode chegar a dizer que essas medidas constituem um projeto efetivo de reforma
urbana. Com exceção da análise referente aos esgotos (que se mostram a preocupação mais imediata
do autor), não existe em geral grande clareza sobre como as obras devem se proceder ou quais
caminhos seguir para se contornar determinadas questões. A maior parte do trabalho se refere à
descrição dos males e dos problemas que vinham sendo encontrados na tentativa de solucioná-los.
Nada disso invalida a qualidade do material, que teve o mérito de reunir os tópicos principais sobre
os quais o esforço sanitário deveria se concentrar e antever dificuldades que seriam encontradas
nesse empreendimento. O estudo serviu de base para o trabalho de comissões parlamentares
posteriores que, dotadas de maiores recursos humanos e financeiros, foram capazes de desenvolver
melhor assuntos não comentados ou abordados apenas ligeiramente por Chadwick (como a calefação
das casas e as formas de evitar o acúmulo de umidade dentro destas), além de sugerirem propostas
mais concretas a serem implementadas. Todos esses avanços foram promovidos tendo como estrela
guia o combate a gases imaginados, mas tiveram consequências práticas positivas indiscutíveis.
A defesa da existência do miasma, isto é, o anticontagionismo, tinha, contudo, outros
propósitos menos claros. Aceitar que uma epidemia se espalhava pelo contato entre os indivíduos
implicava em impor restrições e vigilância à circulação de pessoas. E isso significava atravancar o
comércio internacional. Foi pelo descrédito dado à teoria do contágio que a imposição de quarentenas
aos tripulantes das embarcações que atracavam nos portos britânicos, juntamente com as cargas, foi
abandonado alguns anos após ter sido instituído como forma de evitar o retorno da cólera 23, que
havia chegado à Ilha em 1831 pelo porto de Sunderland e de lá se espalhado pelo país. Era uma
medida que gerava atrasos para o mercado. Os miasmas ofereciam menos incômodo para a
circulação do capital. Mas isso não significa que a reforma sanitária se daria sem atritos com a
riqueza privada. Ao contrário, o conflito com interesses particulares mostrou-se um problema
permanente para a campanha sanitarista de Chadwick. Isso se deve tanto à indisposição por parte de
proprietários com medidas inconvenientes para suas expectativas de lucro quanto à uma tradição
inglesa de conceder grande autonomia administrativa aos poderes locais paroquianos em questões
sociais importantes, que se acostumaram a entender intervenções em sua esfera de poder como um
sinal de autoritarismo e arbitrariedade mal vista. Chadwick já havia se deparado com o problema
ligado à esse segundo fator. Desde a década anterior, quando fora um dos idealizadores da reforma
nas políticas de socorro aos pobres que resultaram na instituição da Nova Lei dos Pobres em 1834,
ele vinha enfrentando a resistência de autoridades locais no esforço para centralizar a gestão das

22 Idem, p. 53.
23 Conferir: KEARNS, Gerry. “Private Property and Public Health Reform in England, 1830-1870”. In: Soc. Sci.
Med, vol. 26, nº 1, p. 187-199, 1988, p. 195. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/
0277953688900585>. Acesso em: 14 de setembro de 2017.

636
práticas assistencialistas. Chadwick sempre havia se apresentado como um defensor ardoroso da
centralização dos poderes, chegando a cunhar a anedota de que Lúcifer fora expulso dos Céus por
fazer oposição a este princípio 24. No caso da Lei dos Pobres, contudo, tratou-se de uma reforma
amplamente apoiada pelas burguesias urbanas. Dessa vez, seduzir o capital à apoiar a empreitada se
mostraria uma tarefa mais complexa.
Todo o trabalho de Chadwick contém um sentimento de frustração com a falta de cooperação
que as burguesias demonstram diante das iniciativas sanitárias. Resistem em contribuir
financeiramente com as obras, seja pela simples avareza ou pelo receio de que elas venham a se
tornar um inconveniente para os negócios locais. Há indisposição entre os proprietários de verem
essas obras em sua propriedade, entendendo que se trata de uma invasão do poder público sobre o
espaço privado25. É comum que proprietários prefiram se organizar entre eles para gerirem as obras
sem intervenção pública, mas o resultado é algo feito de maneira negligente, como é o caso de
esgotos que são construídos sem que se estabeleça conexões entre eles e as casas, tornando-os não
muito mais do que fossas inúteis26. O autor lamenta que a lei muitas vezes proteja o interesse privado
mesmo quando este se contrapõe ao bem público 27. Só parece haver boa vontade entre aqueles que
esperam tirar algum lucro pessoal com as reformas:
"Um oficial, quando perguntado sobre como que em um distrito onde a febre
estava abundante nada estava se fazendo sob a autoridade da lei, que autorizara sua
limpeza, replicou que o Comitê fizera precisamente as mesmas objeções que foram
feitas quando a cólera apareceu; quando foi proposto limpar o distrito, a resposta
feita ao Comitê foi que ‘eles não acreditavam que faria bem algum’: e aqueles entre
os oficiais que eram proprietários das terras dos imóveis de aluguel disseram, ‘Por
que deveríamos nós perturbar e afastar nossos inquilinos?’ e aqueles que eram
lojistas disseram, ‘Poe que deveríamos nós afugentar nossos clientes ao apresentar
nossa vizinhança como insalubre?’, consequentemente nada foi feito. 28"
Em outras passagens, a indignação de Chadwick com a atitude da burguesia urbana se dá pela
relação desta com as classes trabalhadores. Abundam em todas as grandes cidades os exemplos de
empreiteiros inescrupulosos que alugam terrenos por um intervalo de mais ou menos dez anos,
apenas para construir a maior quantidade possível de casebres precariamente edificados para alugá-
los para trabalhadores por um preço abusivo (as décadas finais da Revolução Industrial viram os
aluguéis urbanos aumentarem muito, colocando grande pressão econômica sobre os que dependiam
deles para ter um teto)29. Há exemplos de proprietários que retém água da chuva para vender aos

24 Idem, p. 194.
25 CHADWICK, E. Report on an inquiry into the sanitary condition of the laboring population of Great Britain.
Londres: William Clowes & Sons. 1842. Disponível em: <https://play.google.com/storebooks/details?id=lzK5
iitgFpUC&rdid=booklzK5iitgFpUC&rd ot=1>. Acesso em: 13 de setembro de 2015, p. 303-4.
26 Idem, p. 7.
27 Idem, p. 307.
28 Idem, p. 322, tradução livre.
29 Idem, p. 155-156.

637
inquilinos, sem se importarem com a completa ausência de fornecimentos sadios de água em seus
imóveis (era recorrente que as vizinhanças populares tivessem apenas umas poucas torneiras e
latrinas de uso comum, dado que sistemas de esgoto e água não se conectavam às residências) 30.
Existe visível falta de empatia em relação aos trabalhadores. As denúncias feitas por Chadwick
contra as explorações que a gente labutadora sofre na mão de agentes, comerciantes e proprietários
desonestos por vezes parecem beirar o radicalismo. Isso é mais notável no volume publicado em
1843 contendo os anexos referentes às práticas de enterros dos mortos nas cidades 31. Esse material
é recheado de relatos de famílias humildes sendo vilipendiadas por agentes funerários, que usam
todos os meios possíveis para encarecer ao máximo os funerais 32. Fala-se também dos empreiteiros
que estabelecem cemitérios de estrutura precária no meio das cidades para cobrar caro por jazigos
que muitas vezes não eram mais do que covas rasas 33 . Para coibir essas práticas insalubres e
desonestas, Chadwick defende a criação de grandes cemitérios nacionais fora dos limites urbanos34.
Mas Chadwick não era um radical. Era um liberal destacado na área de administração pública.
Seu retrato das classes populares expressava uma dualidade comum nos inquéritos do reformismo
liberal da época. Por um lado, reconhece que são explorados por interesses privados escusos e sofrem
com a ausência de oportunidades. Mas também emprega um moralismo hostil para responsabilizá-
los em boa medida por seu próprio sofrimento. São apresentados como devassos, convivendo em
lares desestruturados pelo alcoolismo e a promiscuidade sexual, nos quais as esposas precisam
revirar as carteiras dos maridos bêbados em busca do dinheiro que estes preferem gastar nos prazeres
obscenos, quando não estão elas mesmas, e os filhos, acompanhando os homens nas bebedeiras 35. É
verdade, contudo, que Chadwick não expressa o mesmo receio que muitos de seus pares liberais com
o potencial subversivo dos trabalhadores, chegando a ponderar que as demonstrações mais exaltadas
de organizações trabalhistas seriam algo próprio dos mais jovens, sendo pouco comum o
envolvimento de homens mais velhos 36. O radicalismo deve ser entendido, no olhar sanitarista do
século XIX, com uma derivação da deterioração da moral (assim como o alcoolismo, a perversão
sexual, a não-prática dos princípios cristãos, o crime, entre outros elementos entendidos como
distúrbios sociais), que por sua vez está intimamente associada com a saúde fisiológica do indivíduo.

30 Idem, p. 64-65.
31 CHADWICK, E. Report of the sanitary condition of the laboring population of Great Britain – a supplementary
report on the results of a special inquiry into the practice of interment in towns. Londres: 1843. Disponível em:
<https://archive.org/ details/reportonsanitary00chadrich>. Acesso em: 13 de setembro de 2015.
32 Idem, p. 46-55.
33 Idem, p. 134-138.
34 Idem, p. 102-103.
35 CHADWICK, E. Report on an inquiry into the sanitary condition of the laboring population of Great Britain.
Londres: William Clowes & Sons. 1842. Disponível em: <https://play.google.com/storebooks/details?id=lzK5
iitgFpUC&rdid=booklzK5iitgFpUC&rd ot=1>. Acesso em: 13 de setembro de 2015, p. 135 e 247-250.
36 Idem, p. 221.

638
A subversão, como o vício e a criminalidade, se portam como as doenças, emergindo onde há
carência de infra-estrutura e informação. No fundo, Chadwick entendia que se tratavam de boas
pessoas, aptas a abdicarem do caminho auto-destrutivo da insubordinação e abraçarem a via da
conciliação com a classe de empregadores, desde que recebessem alguns gestos de simpatia.
Menciona uma situação ilustrativa ocorrida em Manchester numa data não especificada quando, por
ocasião de uma visita agendada da jovem Rainha Vitória à cidade, os cartistas haviam organizado
uma manifestação. O comissário chefe da polícia pediu então ao prefeito para que este liberasse
naquela data a entrada no zoológico, no jardim botânico e no museu. As multidões, que jamais
haviam tido a oportunidade de adentrar esses espaços, lotaram as instalações, e os cartistas reuniram
apenas duas ou três centenas de manifestantes. Apenas cinco shillings de prejuízo ocorreram nos
locais visitados, e a cidade teve um dia de pouca ocorrência de bebedeiras para sua média 37.
A ideia de reconciliar as classes antagônicas de patrões e empregados como medida sanitária
era central para as pretensões hegemônicas burguesas. É por isso que Chadwick, assim como outros
autores liberais, embora denunciassem situações onde os trabalhadores eram desfavorecidos,
enfatizam que a saída passa pela reaproximação entre as partes e não o contrário. Há em seu relatório
menções à industrialistas que se preocupam com a saúde de seus funcionários, incentivando-os a
estabelecerem boas residências em sua propriedade 38, bem como de senhorios que oferecem alguma
ajuda financeira aos inquilinos que aceitarem abraçar alguns padrões mínimos de higiene e
manutenção das casas 39. A ideia que fica obviamente sugerida é a de que, nesta aliança, cabe à
burguesia guiar os trabalhadores pela mão no caminho da prosperidade, evitando que estes procurem
alternativas autônomas consideradas auto-destrutivas. O proletariado não possuí maturidade para
identificar e almejar seus próprios interesses de modo independente. Um outro inquérito de 1844,
redigido pelo jornalista liberal William Taylor à pedido do Parlamento, tratando de abordar o sistema
fabril de um modo geral, coloca o bem-estar dos operários diretamente como um interesse econômico
do patrão:
“Não há nada mais certo do que má saúde irá produzir mau trabalho, tanto
em quantidade quanto em qualidade. Seria ruinoso deliberar sobre as cláusulas
violadas em seus termos originais. O solo pode ser novamente arado, e a terra uma
segunda vez semeada; mas não há caso de fio re-torcido ou algodão re-tecido. Por
isso é o interesse direto do empregador fazer tudo em seu poder para preservar seus
operários da doença. [...] Ele está interessado em seus hábitos em formação de
limpeza, pois sua negligência da ablução necessária iria por a perder a produção de
suas mãos; e eu preciso dizer que limpeza pessoal é sempre condutora da preservação
da saúde [...] Nós encontramos, em muitas fábricas, operários cuja extensão da
continuidade em um mesmo emprego proveu que eles olhassem para seus mestres

37 Idem, p. 276-277.
38 Idem, 234-248.
39 Idem, p. 278.

639
com toda a confiança, senão com todo o afeto, dos antigos servos na antiga
criadagem; [...]40"
Por meio da defesa da conciliação entre proletariado e burguesia, apresentada como uma
questão de saúde pública, assegura-se que o esforço reformista não incentive críticas estruturais ao
modelo socioeconômico como gerador de desigualdades. A defesa estrutural do capitalismo fabril
se mostra como parecer científico e não como pregação ideológica (fator decisivo também para que
esta não mergulhasse de vez no conflito entre facções no Parlamento, onde seu destino seria incerto
e escaparia ao controle de seus idealizadores41). Esse compromisso assumido colocou homens como
Chadwick, que de fato possuíam vontade sincera de elevar a condição de vida da classe trabalhadora
(nos limites que não impusessem subversões na ordem política e econômica), em situação delicada.
Era evidente, como fica explicitado diversas vez, que o capital privado estava se colocando como
obstáculo ao bem público. Mas a reforma sanitária não poderia ser encarada como uma força exógena
ao livre mercado, ou isso poderia lhe conferir contornos de radicalismo. Precisava-se, por isso,
colocá-la como algo condizente com os princípios do laissez-faire, como chama atenção Kearns42
em artigo. A mera ausência de condições satisfatórias de higiene não justificava, por si só, a
intervenção de poderes públicos. Foi preciso convencer as classes médias de que essas situações
representavam uma violação de contratos estabelecidos. A prestação ineficiente de serviços, queixa
comum contra, por exemplo, as companhias de água, acusadas de oferecerem água de má qualidade
e por preços elevados, serviria de pretexto para uma regulação estatal. A reforma estaria, deste modo,
atuando como uma harmonizadora do livre mercado, intervindo onde havia competição imperfeita.
Serviços de fornecimento de água e saneamento eram comumente deixados à cargo de monopólios
locais de grupos privados. Os trustes dominavam os serviços públicos urbanos, com exceção de
cidades muito pequenas que não despertavam ambição das companhias. Pela ausência de
competição, essas empresas estavam em posição de praticar medidas abusivas com seus
consumidores. Dessa forma, poderia se alegar que, nesses casos, era claro que o livre mercado estava
sendo impedido de exercer seus efeitos reguladores, sendo necessário um agente público para
restabelecer as condições ideias para que isso ocorresse. Deveria se fazer distinção entre um plano
ideal, no qual o mercado é livre para operar em equilíbrio, e um plano real, maculado pela
especulação, monopólio e lucro excessivo 43.

40 TAYLOR, W. C. Factories and the Factory System. Londres: Palmer & Clayton, 1844. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books/about/Factories_and_the_Factory_System.html?id=dXs4AAAAMAAJ&redir_esc=
y>. Acesso em: 15 de abril de 2017.
41 Conferir: LEWIS, R. A. Edwin Chadwick and the Public Health Movement, 1832-1854. 1949. 675 f. Tese
(Doutorado em História). University of Birmingham, Birmingham, 1949, p. 206. Disponível em:
<http://etheses.bham.ac.uk/4589/1/Lewi s1949PhD1.pdf>. Acesso em: 11 de janeiro de 2017.
42 KEARNS, Gerry. “Private Property and Public Health Reform in England, 1830-1870”. In: Soc. Sci. Med, vol.
26, nº 1, p. 187-199, 1988.
43 Idem, p. 190-191.

640
Ainda segundo Kearns44, a reforma sanitária evocava um princípio extremamente precioso para a
economia clássica: a noção de um estado de equilíbrio onde indivíduo e coletividade se
reconciliavam. Por isso era importante também convencer a iniciativa privada de que arcar com os
investimentos em saúde eram viável economicamente e proporcionava aumento do lucro, fosse pelo
maior retorno financeiro de fato ou pela economia com despesas relativas à doença e insalubridade.
Aqui, novamente, a teoria miasmática serve a um propósito político. Ela se encaixa perfeitamente
em uma estratégia socioambiental de abordagem da saúde, articulando natureza, moral e mercado.
O miasma exala de espaços onde impera o descaso, como a criminalidade e ideologias tóxicas como
o cartismo e o socialismo, sugerindo uma relação causal imediata entre desequilíbrio natural
(consequentemente, também econômico, tendo em vista à associação feita à época entre os ciclos
naturais e de mercado) e a emergência de distúrbios de ordem fisiológica e social.
O trabalho de Chadwick lhe trouxe o reconhecimento que este sempre almejara. Incentivou
a formação de novos inquéritos parlamentares sobre o estado sanitário das cidades, que ratificaram
suas conclusões principais, e conduziram à aprovação em 1848 do Ato de Saúde Pública. Este
estabeleceu alguns padrões mínimos de higiene e infraestrutura para as cidades, como melhorar
esgotos, drenagem das casas, a obrigação de se prover água limpa e remoção do entulho e restos
orgânicos das vias públicas. O ato criou o Comitê Geral de Saúde, um órgão nacional para
administrar a aplicação das novas medidas, no qual Chadwick ocupou a posição de chefia que tanto
desejava em sua carreira pública. Mas desfrutaria desse auge por poucos anos. O retorno da cólera
em forma epidêmica na Ilha entre 1853 e 1854, embora em dimensões menos letais do que na
epidemia anterior, bastou para corroer seu prestígio, abrindo a possibilidade que os acionistas das
companhias de água, dos quais havia angariado antipatia por seus esforços para fiscalizar esse
serviço, utilizassem sua influência no Parlamento para lhe impor uma aposentadoria compulsória.
No mesmo ano, ainda em 1854, o médico John Snow, defensor da teoria do contágio, conseguiu
comprovar que a cólera se espalhava pelo contato com a água, ao mapear os casos da doença com o
fornecimento administrado pelas companhias, mesmo que ainda não se tivesse consciência de que
os responsáveis por isso eram microorganismos.
É correto inserir a reforma sanitária dentro de um contexto maior marcado pelo esforço para
se compreender o enigma do aumento da miséria humana em meio ao crescimento econômico
nacional, desafio para o qual cada facção política possuía suas próprias respostas e disputava o
espaço público para tornar sua interpretação um consenso. Por parte dos liberais, remediar o estado
de calamidade pública da saúde urbana era, para além de uma causa humanitária, uma necessidade

44 Idem, p. 195.

641
para tornar mais palatável a proposta de uma economia de livre mercado ligada ao sistema fabril,
afirmando que esta estrutura econômica não guardava relação causal com a tragédia sanitária e
desacreditando posicionamentos que enxergavam a relação entre ambos. A reforma se baseou tanto
na ideia de aprimoramento da infraestrutura urbana quanto na perspectiva de reequilibrar uma
sociedade marcada por tensões e antagonismos, propondo coibir determinadas práticas consideradas
anti-competitivas por parte das empresas que prestavam serviços públicos e, acima de tudo,
reconciliar empregados e empregadores, dentro da ideia de regeneração moral dos primeiros. Esse
objetivo cultural foi alcançado com sucesso. A passagem para a década de 1850 viu o desmanche do
movimento cartista e um recuo das posturas mais radicais entre os sindicatos. Isso envolve questões
complexas, mas que passam certamente pela cooptação de parte dos trabalhadores para a ideologia
das elites econômicas, que passam a votar nos dois partidos tradicionais da ala conservadora e
liberal 45 . A relativa estabilidade social que isso trouxe expressava um passo decisivo para a
consolidação do consenso almejado pelos liberais e seus intelectuais orgânicos, que vislumbravam
uma ordem segura para consolidar a dominação de seu projeto industrializante.

Referências bibliográficas:

CHADWICK, E. Report on an inquiry into the sanitary condition of the laboring population of Great
Britain. Londres: William Clowes & Sons. 1842. Disponível em: <https://play.
google.com/storebooks/details?id=lzK5iitgFpUC&rdid=booklzK5iitgFpUC&rdot=1>. Acesso em:
13 de setembro de 2015.

CHADWICK, E. Report of the sanitary condition of the laboring population of Great Britain – a
supplementary report on the results of a special inquiry into the practice of interment in towns.
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643
UM OLHAR DE ENCANTAMENTO: JESUS SUBJUGA O IMPERADOR ROMANO
ATRAVÉS DA MAGIA

A SIGHT OF SORCERY: JESUS SUBDUES THE ROMAN EMPEROR THROUGH THE


MAGIC

Daniel Soares Veiga


Doutorando do Programa de Pós-Graduação de História (PPGH) da UERJ
e-mail: danisoavei@bol.com.br

Resumo:O tema deste artigo consiste em explicar como a comunidade joanina conseguiu reverter o
quadro deprimente da crucificação de Jesus em um episódio vantajoso para ele, transformando a sua
humilhação perante o dominador romano em um acontecimento no qual Jesus, apelando para seus
poderes de mago, subtrai para si as prerrogativas do imperador romano, delas fazendo uso para
subjugar a figura do imperador.

Palavras-chave: Jesus, magia, dominação imperial.

Abstract:The subject of this paper consists in explain how the johannine community got to invert
the depressive view of Jesus’ crucifixion into profitable episode for him, changing his humiliation
in the presence of roman emperor into a happening that which Jesus, appealing to his sorcerer’s
powers, takes to himself the roman emperor’s perquisites, to make use them with purpose of
subdues the person of emperor.

Key-words: Jesus, magic, imperial domination.

644
Inicio esta publicação recordando aos leitores o fato normalmente ignorado ou minimizado
que a crucificação de Jesus resultou numa catarse que quase pôs em xeque a sobrevivência da
comunidade cristã e tinha tudo para impedir que Jesus fosse divinizado, pois seria difícil explicar
como Jesus, sendo deus, se sujeitaria a este opróbrio. Nas palavras de Helge Kvanvig: “O incidente
[a morte de Jesus] foi tão grave que ameaçou destruir qualquer teologia razoável”.1 Paulo de Tarso
expressou esse tabu muito bem quando ele disse que “Cristo tornou-se uma maldição por nós,
porque está escrito: ‘Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro’”. (Gal 3:13).

Podemos mesmo inferir que, pela interpretação da teologia joanina, Jesus se deixou
crucificar para provar a todos que ele não poderia ser morto; pelo menos não no sentido definitivo
do termo. Esta é a razão dele ter ressuscitado. Para os cristãos joaninos, Jesus não morreu em
virtude de uma fatalidade que se abateu sobre ele. Ele veio ao mundo já com a missão de ser
crucificado, e neste ponto eu acompanho a teoria de Tom Thatcher, para quem a narrativa da Paixão
em João tem como eixo condutor o tema da “inevitabilidade da morte”, o que pode ser aferido desta
perícope de Jo 12:27: “Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora
que eu vim”.

Tom Thatcher afirma que o evangelista joanino, constrangido, não podia negar o fato
insofismável de que Jesus morreu numa cruz. Por conseguinte, a única saída que restava a ele era
mudar o significado depreciativo que a crucificação tinha na escala de valores romano para
transformá-la num evento glorioso para Jesus.2

A favor desta interpretação contamos com a sentença inserida pelo evangelista no capítulo
19, no episódio em que Jesus é perfurado pela lança de um centurião romano: “Olharão (Ὄψονται)
para aquele que traspassaram”. (Jo 19:37).

O verbo empregado, “olharão” (Ὄψονται), é a declinação na 3ª. pessoa do plural do futuro


médio indicativo do verbo ὁράω, que pode ser traduzido como uma ação que está além do gesto
natural de enxergar, comumente traduzido como “βλεπω” e suas derivações. Podemos constatar isto
no relato da cura do cego de nascença, abordado anteriormente, nas várias passagens onde é dito
que o cego recuperou a visão.

1
- KVANVIG, Helge. The Son of Man in the Parables of Enoch., p.214.
2
- THATCHER, Tom. Greater than Caesar: christology and empire in the fourth gospel., p.102.

645
O cego foi, lavou-se e voltou vendo (Βλέπων).
(Jo 9:7).

Fui, lavei-me e recobrei a vista (ἀνέβλεψα).


(Jo 9:11).

Os fariseus perguntaram-lhe novamente como tinha


recobrado a vista (ἀνέβλεψα).
(Jo 9:15).

Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é


que agora ele vê? (βλέπει).
(Jo 9:19).

Uma coisa eu sei: é que eu era cego e agora vejo (βλέπω).


(Jo 9:25).

Desta feita, Ὄψονται tem o sentido de “olhar fixamente para alguém ou algo, de forma
hipnótica, até que o observador, de tanto contemplar a pessoa ou objeto que está à sua frente, seja
mentalmente induzido a compreender a natureza daquilo que ele observa; a ter uma ideia do que
está vendo”3. Nós poderíamos usar a expressão “ver através da mente” 4. Neste caso específico, a
ação de “ver através da mente” sugere a conotação de um “olhar de encantamento”, pelo que se
pressupõe que o observador encontra-se sob a influência mágica daquele que está diante dele e,
portanto, reduzido ao jugo da sua autoridade oriunda da sua magia sobre-humana, numa condição
de submissão e de reconhecimento da superioridade do seu contendor.

Devemos supor, pelo contexto, que o sujeito do verbo “olhar/contemplar” engloba todos
aqueles responsáveis pela execução de Jesus, os romanos e seu representante terreno: o imperador

3
- Não por acaso a palavra “ideia” vem da conjugação do verbo ὁράω no aoristo: ειδον. Considerando-se “ideia” como
uma imagem formada mentalmente, não era raro que tais imagens ocorressem durante os sonhos que, muito
frequentemente, eram adivinhatórios. Por isso, quando os gregos se preparavam para narrar os sonhos que tiveram, eles
introduziam a narrativa com a seguinte frase: “Eu vi (ειδον) um sonho”. Eram visões sobre o futuro e, portanto, faziam
parte do universo mágico da mitologia grega. Um dos seus maiores expoentes foi Tirésias que, apesar de cego
fisicamente, tinha o poder da visão (da previsão) sobre os acontecimentos vindouros. Uma das versões conta que este
dom só foi possível porque Zeus o concedeu. É um exemplo da ὁράω como uma prerrogativa concedida por uma
divindade suprema. Tal personagem é retratado na obra “Rei Édipo”, de Sófocles. Em um dado trecho da obra, o autor
narra a previsão feita por uma voz procedente de Delfos que, confirmando as profecias de Tirésias, vaticina sobre o
destino trágico de Édipo; nomeando-a de “voz oracular”, adjetivo derivado de ὁράω. (Sófocles. Rei Édipo. 463-472).
4
- Cf. Léxico do Novo Testamento Grego-Português. Tradução de Júlio P. T. Zabatiero., p.148.

646
de Roma. Ele que, por meio do seu braço armado, os soldados romanos, fez transpassaram Jesus
com a lança depois de o terem crucificado.

E o imperador, na sua condição de adversário do Jesus/Filho do Homem; será coagido no


dia do seu julgamento (segundo a crença escatológica cristã) a dirigir seu olhar para Jesus, a
reconhecer (hipnotizado), a ter uma “ideia” (ειδον) da sua “supremacia divina”. O imperador terá de
se defrontar com aquele a quem a lança romana atravessou; porém, mais do que isso, o soberano
verá que por detrás daquele ferido pela lança está a cruz na qual ele foi pregado e onde ele se
encontrava quando o pilum do soldado romano o transfixou.

Neste aspecto, a lança está indissociada à imagem da cruz. Nos termos do imaginário
joanino, o momento em que Jesus submete o imperador a julgamento coincide com o momento em
que o imperador, prostrado e indefeso, vê a figura do seu juiz se fundir com a imagem da cruz, que
fora outrora o instrumento de morte que expressava o seu poder terreno, mas que agora ele não pode
mais usar a seu favor.

O autor joanino extravasa novamente a sua ironia acutilante quando transmite o sentimento
de zombaria a qual o imperador é submetido. É como se o evangelista estivesse espicaçando o
imperador, dizendo: “Eis aqui o seu instrumento de poder. Só que agora você não mais o controla;
ao invés disso, agora é você quem se curva a ele!”

Pela ótica joanina, Jesus foi um mago tão poderoso que, mesmo pregado numa cruz, ele
ainda conseguia exercer o seu poder sobrenatural até sobre o imperador, a ponto de dominá-lo
mentalmente.

Retomando o estudo de Clifford Geertz, os conceitos que melhor exprimem a arte de


governar da sociedade balinesa, o Estado-Teatro, são os conceitos “dentro” (jero) e “fora” (jaba).
Buwana agung é o que está de fora do recinto imediato da alma, longe do centro da experiência, é
jaba. Buwana alit é o que está nele e na direção dele, é jero.

A imagética jaba/jero perpassa grande parte da estrutura social balinesa. Em Bali, os


plebeus são chamados jabas, os nobres são chamados jeros. As casas nobres são jeros. As linhas
dos filhos mais novos, numa lógica de “status decrescente”, “saem” (jaba) da linha central, a qual
permanece (jero) no centro da aldeia.5 O pátio de entrada do templo, onde os músicos e dançarinos
atuam é o jaba; o pátio traseiro, onde estão os altares e é prestada reverência, é o jero. O mesmo
padrão se verifica numa casa real ou nobre; portanto, a zona residencial mais interior do senhor de

5
- GEERTZ, Clifford. Negara: O Estado Teatro no século XIX., p.138.

647
uma dessas casas abrange um jero dentro de um jero – e o rei mesmo é um jero dentro desses jeros.
O resto do mundo é jaba para o jero de Bali. 6

Assim como o rei ou o senhor era transformado num ícone por uma cerimônia de Estado,
também o seu palácio, ou jero, era transformado num templo, um cenário para o ícone. As centenas
ou mesmo milhares de pessoas que ali acorriam em massa para participarem, iam porque o jero era
um pedaço de espaço santificado, um local apropriado para se confrontarem com os mistérios da
hierarquia. Era na residência do senhor, no “sítio onde ele se senta” (sic) que a doutrina do centro
exemplar se tornava socialmente real. 7

Geertz ainda nos informa que, dos espaços sagrados, os mais significativos eram o templo
da linha central real, o trono público do rei e os pavilhões para a exposição dos cadáveres reais,
onde os balineses iam dar a última olhada no corpo do rei, antes da sua cremação. 8 Em suma, o
cadáver do rei estava inserido no jero que, metaforicamente, simbolizava o centro, o “umbigo” do
mundo; o que o tornava especial. Geertz traça uma analogia que nos auxilia a compreender a
dicotomia entre o jero (o espaço mais sagrado) e o jaba (o espaço mais distante do centro e, por isso
mesmo, menos puro). Na visão do autor, o dualismo jaba/jero estava para os balineses como “a
circunferência para o centro do círculo, a palavra para o significado, o gesto para o sentimento, o
som para a música, a casca do coco para o leite do coco”.9

A justificativa da originalidade da minha tese reside na hipótese de que a teatralidade da


divinização do imperador inspirou a teatralidade da divinização de Jesus, isto é, transformou o
momento da sua morte num evento sobrenatural, onde Jesus assumiria de vez (na mente dos cristãos
joaninos) a sua natureza divina. Eu, porém, redimensiono o ponto axial da minha tese para teorizar
que a comunidade joanina usou da teatralização da morte de Jesus para “desteatralizar” e, com isso,
“desdivinizar” o imperador porque o retira do seu jero e o transfere para a periferia, a circunscrição
espacial mais distanciada do seu centro de sacralidade, um local de impureza, que corresponde ao
jaba balinês! Com esta estratégia, o evangelista derrota a autoridade imperial no seu próprio jogo,
ou melhor, ele a derrota utilizando as regras do seu próprio jogo!

Este deslocamento da figura do imperador é reiterado no episódio da prisão de Jesus no


Getsêmani, em Jo 18:1-3:

6
- Ibid., p.138.
7
- Ibid., p.139, 142.
8
- Ibid., p.144-145.
9
- Ibid., p.138.

648
Tendo dito isso, Jesus foi com seus discípulos para o outro lado da torrente
do Cedrom. Havia ali um jardim, onde Jesus entrou com seus discípulos. Ora,
Judas, que o estava traindo, conhecia também esse lugar, porque, frequentemente,
Jesus e seus discípulos aí se reuniam. Judas, então, levando a coorte [um
destacamento da guarnição romana] e guardas destacados pelos chefes dos
sacerdotes e pelos fariseus, aí chega, com lanternas, archotes e armas.10

Lemos neste trecho que um destacamento de soldados romanos (representando o poder


imperial romano) se dirige até onde Jesus se encontra. Numa interpretação hermenêutica, Jesus está
(em uma cena eivada de alegoria) forçando as autoridades romanas a se encaminhar até ele,
alterando a noção de centro de gravidade do poder romano. Tal inversão fica mais evidente na
passagem de Jo 18:6, onde os soldados se prostram aterrorizados diante de Jesus, como se
estivessem reconhecendo a sua autoridade que, naquele instante, parece desfrutar de uma magnitude
superior àquela do imperador, a única a quem os soldados romanos deveriam, na vida real,
reconhecer: “Quando Jesus lhes disse ‘Sou eu’, recuaram e caíram por terra”. (Jo 18:6).

Não podemos deixar de apontar para uma discrepância do relato da prisão de Jesus nos
sinópticos. Nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, em momento algum é mencionada uma
coorte romana. Quem efetua a prisão são os chefes dos sacerdotes e os guardas do templo: Mc
14:43, Mt 26:47 e Lc 22:52.

Todavia, caberia nos indagarmos: teria algum acontecimento da vida real inspirado esta
ressignificação simbólica operada pelo discurso joanino? Há uma boa possibilidade de que um
evento dramático tenha, de fato, causado uma forte impressão entre os seguidores de Jesus. E este
evento estaria relacionado à damnatio memoriae11 sofrida pelo imperador Gaio Calígula (37-41

10
- Eis a versão grega do texto:
Ταῦτα εἰπὼν Ἰησοῦς ἐξῆλθεν σὺν τοῖς μαθηταῖς αὐτοῦ πέραν τοῦ χειμάρρου τοῦ Κέδρων, ὅπου ἦν κῆπος, εἰς
ὃν εἰσῆλθεν αὐτὸς καὶ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ. ᾔδει δὲ καὶ Ἰούδας ὁ παραδιδοὺς αὐτὸντὸν τόπον, ὅτι πολλάκις συν
ήχθη Ἰησοῦς ἐκεῖ μετὰ τῶν μαθητῶν αὐτοῦ. ὁ οὖν Ἰούδας λαβὼν τὴνσπεῖραν καὶ ἐκ τῶν ἀρχιερέων καὶ ἐκ τῶ
ν Φαρισαίων ὑπηρέτας ἔρχεται ἐκεῖ μετὰ φανῶν καὶ λαμ πάδωνκαὶ ὅπλων.

11
- A destruição das imagens imperiais era admissível no contexto romano e tinha por objetivo levar à supressão da
história aqueles que, por seu caráter ou gestos infames, deviam ser esquecidos. A destruição das imagens, mais do que
admissível, era algo previsto pela legislação romana com o nome de damnatio memoriae (a danação ou maldição da
memória). A destruição da memória de um indivíduo era uma penalidade infligida, sobretudo, aos traidores, tiranos ou
quaisquer outros que se tornassem inimigos de Roma, pois considerava-se que um homem que traía sua comunidade ou
agia contra sua estabilidade era indigno do seu status de cidadão e, portanto, desmerecedor da honra de ser lembrado
como membro da civitas após sua morte. Cf. SILVA, Érica Cristhyane Morais da. A importância político-cultural do
Levante das Estátuas nas Homilias sobre as Estátuas de João Crisóstomo. SP: Tese de Doutorado (Unesp), 2009, pp.
697-714. In: (www.scielo.br/pdf/his/v28n1/24.pdf).

649
d.C.). O historiador romano Díon Cássio, em sua História Romana, descreve as ações de Calígula
na sua tentativa de se autodivinizar em vida e sua obsessão em se comparar ao deus Júpiter.

Díon Cássio relata que Calígula construiu para si dois templos na cidade de Roma, e um
deles foi erguido anexo ao templo de Júpiter na colina Capitolina, como se ele fosse uma
continuidade do templo de Júpiter. Não satisfeito, ele ordenou que se erigisse outro templo no
Palatino e que se transferisse para lá a estátua do Zeus Olímpico após ela ser remodelada para se
assemelhar a ele. O autor prossegue afirmando que Calígula, além de fazer com que suas estátuas
fossem esculpidas a fim de identificá-lo com Júpiter, designou a sua esposa Cesônia, seu tio
Cláudio e outras pessoas eminentes para atuarem como sacerdotes no culto a sua divindade. (Díon
Cássio. História Romana. 59.28.2-3,5).

Entretanto, devido a sua tirania e aos excessos perpetrados por ele durante o seu governo,
Calígula terminou por ser assassinado e o senado decretou uma damnatio memoriae sobre ele,
anulando definitivamente sua divinização. Todas as esculturas e inscrições que exibissem sua
imagem ou registrassem seu nome deveriam ser prontamente destruídas.

Agora ele [Calígula] era rejeitado por aqueles que estavam acostumados a
reverenciá-lo mesmo quando ele estava ausente, e ele tornou-se uma vítima
sacrifical nas mãos daqueles que estavam habituados a falar e a escrever dele como
“Júpiter” e “deus”. Suas estátuas e suas imagens foram derrubadas dos seus
pedestais e arrastadas [para fora dos templos] para que o povo em particular se
recordasse do sofrimento que ele tinha suportado. (grifo meu)

(Díon Cássio. História Romana. 59.30.1)

A remoção das estátuas de Calígula dos templos significava que ele tinha sido removido do
seu lugar de sacralidade, do seu “jero”, perdendo com isso a sua própria condição de divindade.
Para os judeus que viriam a formar a comunidade jonanina, a “desdivinização” de Calígula pode ter
fomentado nas suas mentes a ideia de que mesmo o imperador de Roma era passível de perder a sua
aura sobrenatural e, por conseguinte, o poder que dela adviria. A diferença é que para eles seria
Jesus, e não o senado romano, o responsável pela façanha de subtrair a divindade imperial;
enquanto autoproclamava a sua.

Evidentemente, surge a questão sobre como poderíamos ter certeza de que foi precisamente
a damnatio memoriae de Calígula a responsável direta por inspirar a ideia de que Jesus era capaz de
suprimir a divindade do imperador, destruindo, por este meio, a sua pessoa? A resposta para tal

650
pergunta parece repousar no relato de Josefo acerca da tentativa de Calígula de instaurar à força
uma estátua sua como Júpiter dentro do templo de Jerusalém, ameaçando os judeus com uma guerra
caso sua ordem fosse desacatada.

A reação dos judeus diante do plano de Calígula fez com que milhares deles abandonassem
o cultivo de suas messes e acorressem a Petrônio – o oficial romano designado para a execução da
tarefa, que havia estacionado com suas tropas em Tiberíades –, arriscando-se não só a comprometer
o pagamento dos tributos em espécie, como podendo também ocasionar uma onda de fome devido à
carência de alimentos e contribuindo, consequentemente, para o recrudescimento das maltas de
salteadores que assolavam as vilas e cidades do interior.

Petrônio escreveria para Gaio [Calígula] que os judeus nutriam uma aversão
insuperável à recepção da estátua (...) eles deixaram o cultivo das suas glebas; e
[embora] eles não estivessem dispostos a ir à guerra (...) eles estavam preparados
para morrer de bom grado a permitir a transgressão das suas leis. E com as terras
continuando incultas, o número de assaltantes aumentaria, e não haveria
possibilidade deles pagarem seus tributos. (...) Ele [Petrônio] pensou em quão
horrível era para ele ser escravo da loucura de Gaio a ponto de assassinar dez mil
homens ou mais, apenas por causa da sua disposição religiosa em tornar-se deus
(...)

(Josefo. Antiguidades Judaicas. 18.8.4)

Para alívio dos judeus, Calígula foi assassinado antes que a sua vontade fosse concretizada.
Podemos apenas imaginar o nível do desespero sentido pelos judeus diante da ameaça palpável de
uma guerra iminente contra Roma e da comoção que o episódio deve ter causado no seio da
população. Tamanha deve ter sido a cólera dos judeus (ou de uma parcela considerável deles) pela
figura imperial de Calígula, que a sua morte e a destruição das suas imagens – com suas estátuas
sendo profanadas e arrastadas pelas ruas – pode perfeitamente ter alimentado o imaginário daqueles
judeus seguidores de Jesus (que constituiriam o embrião da comunidade joanina), com Jesus se
“vingando” e “desdivinizando” o portador máximo do poder imperial, fazendo com que o destino
trágico de Calígula se sobrepusesse ao de Tibério. 12

Quanto a ideia de deslocamento do poder romano do seu eixo de gravidade, fazendo-o se


mover na direção de Jesus, e não o contrário; ela ultrapassa a simples abstração teórica e se reveste
de uma concretude se entendermos que o discurso joanino é modelado pela forma como a

12
- O lapso de tempo decorrido entre a crucificação de Jesus, no reinado de Tibério, e a damnatio memoriae de Calígula
foi muito curto, de apenas uma década, estimando-se que Jesus foi executado no início dos anos trinta.

651
comunidade joanina se articulava organicamente. Neste ponto, estou partindo do princípio de que a
célula joanina assumiu a estrutura organizacional de uma seita.

O historiador Sérgio da Mata (2008) publicou um artigo onde ele define o conceito de seita
embasado na concepção do sociólogo e filósofo da religião, o alemão Ernest Troeltsch (um dos
pioneiros a conceituar o termo seita). Neste estudo, ele classificou seitas como organizações
religiosas encerradas em si mesmas, cujo pilar central é a crença de que a salvação dos seus
membros somente pode ser obtida por meio de uma sujeição plena e total do ser à sua fé individual.
Este estado de submissão plena à fé ocorre não só à revelia das forças atrativas do mundo exterior,
mas na contracorrente destas mesmas forças, tidas como desviantes de caráter. Por isto que as seitas
tendem à intolerância frente aos incrédulos. Seus neófitos se nutrem da certeza de que eles sofreram
no seu âmago uma conversão que é fruto de uma “experiência verdadeira” das tradições autênticas
da sua religião de origem. E eles crêem que suas condutas de vida são em tudo condizentes com o
sentimento desta “vivência verdadeira”. Sérgio da Mata acompanha o pensamento de Ernest
Troeltsch, qual seja, de que os sectários se vêem normalmente como uma “elite religiosa” (sic).13

Esta autopercepção dos sectários como sendo uma elite no âmbito do sagrado desperta neles
a propensão a subverter a dialética da dicotomia “dominador/dominado” dentro da sociedade; posto
que, ao se autoperceberem como “elite”; a consequência desta autopercepção é a apropriação dos
dispositivos sociais e políticos que lhe são exógenos. Esta apropriação os permite redirecionar o
capital simbólico que garante a hegemonia das instituições no seio da sociedade.

Conclusão:

Em síntese, ao invés dos cristãos joaninos se sentirem como orbitando ao redor do poder
central do Estado; eles idealizaram o poder central do Estado orbitando ao redor deles, num desejo
latente de atuarem como potência centrífuga capaz de absorver todos os demais símbolos do poder
institucional em seu proveito.

Nisto se enquadra a abdução da figura do imperador (nas suas esferas política, religiosa e
militar); que olha atentamente para Jesus e que se move titeremente na direção de Jesus, como que
atraído por um ímã. Conjugando esta apreciação com o conceito de Estado-Teatro geertziano,
entendemos que a teatralização da morte de Jesus na cruz é maior do que a teatralização do funeral

13
- MATA, Sérgio da. “Religião e modernidade em Ernest Troeltsch”. In: www.temposoc@edu.usp.br, ISSN 0103-
2070, vol. 20, nº 2, p.246.

652
do imperador, ou nesse caso, somos levados a meditar que a cruz é mais gloriosa do que seu esquife
imperial que, consumado pelas chamas, deveria proporcionar ao imperador o status de deus.

Documentação Textual:

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Trad. de GIRAUDO, Tiago (5ª ed.). SP: Paulus, 1996.
CASSIUS DIO. Roman History LIX. Translated by THAYER, Bill. Loeb Classical
Library, vol. VII, (In: www.penelope.uchicago.edu), 1924.
JOSEPHUS. The Jewish Antiquities. Trans. by WHISTON, William. BN Publishing,
2010.

Dicionário:

ZABATIERO, Júlio P. T. Léxico do Novo Testamento Grego/Português. (Orgs. GIN


GRICH, Wilbur & DANKER, Frederick W.), 2ª ed., SP: Ed.Vida Nova, 1993.

Bibliografia:

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MATA, Sérgio da. Religião e modernidade em Ernest Troeltsch. In: www.temposoc
@edu.usp.br. ISSN: 0103-2070, vol. 20, nº. 2, 2008, pp.235-255.
SILVA, Érica Cristhyane Morais da. A importância político-cultural do Levante das
Estátuas nas Homilias sobre as Estátuas de João Crisóstomo. SP: Tese de Douto
rado (Unesp). 2009, pp. 697-714. (www.scielo.br/pdf/his/v28n1/24.pdf).

653
THATCHER, Tom. Greater than Caesar: Christology and empire in the fourth gospel.
Minneapolis: Fortress Press, 2009.

654
O comportamento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
diante da ditadura civil-militar

Daniela de Miranda dos Santos

Resumo: A presente proposta tem por objetivo apresentar o desenvolvimento da pesquisa de


mestrado cuja finalidade é compreender o comportamento do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) no período da ditadura civil-militar. Para isso, a ideia é ponderar a postura do
instituto a partir do golpe de 1964 e ao longo do regime instaurado, até o ano de 1979. A investigação,
nesse sentido, busca fugir da dicotomia “resistência e colaboração” e tenta entender o IHGB a partir
de uma realidade mais complexa, que envolve ambiguidades e ambivalências. Desse modo,
dialogando com estudos que procuram compreender o regime a partir das bases fornecidas pelas
agências da sociedade civil, a pesquisa se desenvolve com o intuito de esclarecer a composição e o
comportamento do IHGB durante o processo de legitimação e consolidação da ditadura civil-militar
no país.

Palavras-chave: IHGB; ditadura; comportamento

Abstract: The purpose of this proposal is to present the development of the master's research whose
purpose is to understand the behavior of the Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) in
the period of the civil-military dictatorship. For this, the idea is to consider the institute's position
from the 1964 coup and throughout the established regime until the year 1979. The research in this
sense seeks to escape the dichotomy "resistance and collaboration" and tries to understand the IHGB
from a more complex reality, which involves ambiguities and ambivalences. Thus, in a dialogue with
studies that seek to understand the regime from the bases provided by civil society agencies, the
research develops with the purpose of clarifying the composition and behavior of the IHGB during
the process of legitimizing and consolidating the civil-military dictatorship in the country.

Keywords: IHGB; dictatorship; behavior

Em 21 de outubro de 1964, através de uma sessão magna comemorativa, o Instituto Histórico


e Geográfico Brasileiro (IHGB) celebrava o seu 126º aniversário e empossava Humberto de Alencar
Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura civil-militar brasileira, ao cargo de presidente de
honra do Instituto. Esta solenidade conclamou o general seis meses após o golpe que destituiu João
Goulart da Presidência da República e que encerrou o regime democrático no Brasil. Na ocasião,
Pedro Calmon como orador proferiu em nome do IHGB e saudou Castelo Branco com as seguintes
palavras:

“Velha a casa que há cento e vinte e seis anos esclarece com ensinamento sábio o
pensamento brasileiro, ajudando a sustentar as transformações nacionais com sólidos
pilares da tradição. [...] Senhor Presidente Marechal Humberto de Alencar Castelo


1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, com
financiamento da Capes. E-mail: danielamiranda.ufjf@gmail.com

655
Branco, sendo esta a casa da tradição do Brasil, devo dizer por ela e em seu nome,
considere-a Vossa Excelência como sua Casa” (CALMON, 1964, p.286).

Para justificar a presença de Castelo Branco no Instituto, Calmon ressaltou suas aptidões,
virtudes e produções para o conhecimento histórico. Assim, assinala que o marechal é formado de
um temperamento enérgico de soldado que subiu por merecimento todos os postos da hierarquia,
confirmando na guerra as doutrinas hauridas na paz. Mestre da tática da Escola Militar e planejados
da vitória de Montesi, inclinou-se aos estudos históricos como uma consequência num imperativo
do espírito profissional. Afirma ainda que “ninguém como ele versou os problemas do alto comando
aliado na guerra contra a tríplice aliança e o Paraguaia”. Calmon deixa claro a admiração de Castelo
Branco pela figura de Duque de Caxias por representar a glória e a honra militar através do
cumprimento do dever, da paciência em tolerar fases críticas e por, no ímpeto das decisões, saber
escolher aquelas mais adequadas e, pelo seu amadurecimento de soluções científicas, não se
precipitar (CALMON, 1964, p. 286).
Castelo Branco, conforme ressalta Pedro Calmon, possui estudos sobre a batalha de Santa
Luzia. Além disso, ocupava, naquele contexto do golpe de 1964, a cadeira número 1 do Instituto de
História Militar, considerada academia “co-irmã” do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por
Calmon (Idem).
Como demonstra em seu discurso, o marechal sabe “harmonizar a ciência da guerra, o
pensamento filosófico e as letras educativas, conciliando a arte de dizer, a capacidade de realizar,
contando e fazendo história do Brasil” (Idem). Desse modo, “se hoje não o recebesse o Instituto
como o seu Presidente, recebê-lo-ia amanhã como um dos seus mais distintos consócios” (Ibidem,
p. 285).
Humberto de Alencar Castelo Branco, por sua vez, através de seu discurso, expressa seu
agradecimento e sua honradez com que recebe o título de presidente de honra do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Segundo ele, esse convívio lhe dará melhores condições para ser também
responsável pelo Patrimônio Histórico do Brasil. Em sua fala, defende ainda que a história militar
propicia valiosos elementos de observações e articula essa ideia para explicar inclusive o fato de
sempre haver no quadro social do IHGB grande numero de militares que buscam no passado
subsídios para os estudos de sua profissão (CASTELO BRANCO, 1964, 288).
Nesse sentido, sobre os seus estudos de história, evocados pelo orador do IHGB, o marechal
afirma que os realizou nos tempos de sua antiga vida de oficial das Forças Armadas. Sua intenção
era buscar na história novos ensinamentos e observações. Para isso, se aprofundou em fatos militares
e procurou situá-los no campo mais amplo do quadro político. Com os ensinamentos da História,
verificou que:

656
“[...] a formação de chefes à altura de suas graves responsabilidades não exclui,
antes aconselha, o estudo do comportamento de outros chefes em acontecimentos do
passado. Tudo, aliás, para retirar lições aplicadas à atualidade e ao futuro, jamais
para permanecer numa pura atitude contemplativa” (CASTELO BRANCO, 1964, p.
288).

Ao fim ao cabo, apesar de toda essa adulação, Pedro Calmon, ainda nesta ocasião, então
orador do IHGB, que convidou o Marechal Castelo Branco, em nome do Instituto, para integrar como
presidente honorário a instituição meses após o golpe, fez uma ressalva que merece ser explicitada:
neste mesmo discurso deixou claro que aquele não era o momento para avaliar a administração do
presidente, pois segundo ele:

“O julgamento do seu govêrno pertencerá à posteridade. Darnos-à ela a perspectiva


indispensável à serena sentença do historiador, que repara com documento a
injustiça, completa com a informação a narrativa, descreve com imparcialidade o
fato, interpreta com a confissão a consciência e ajuíza com a verdade o
comportamento, desagravando a honra, premiando o mérito, destacando as
qualidades, indicando os serviços em seu honesto ofício de substituir pelo definitivo
o provisório [...]” (CALMON, 1964, p.284).

O Instituto homenageou o dirigente do país naquela ocasião, sobretudo tendo em vista o


cidadão “investido numa hora grave da existência nacional do difícil encargo de governá-lo com
equilíbrio e autoridade” (Idem), como destacado por Pedro Calmon. Por isso, o IHGB “quis realçar
as virtudes do militar irrepreensível que numa encruzilhada da história comandou o reerguimento da
pátria” (Idem). Ao mesmo tempo, a instituição se salvaguardou do que poderia ser o seu governo no
futuro, delegando para as gerações posteriores e para a História a tarefa de examinar efetivamente
os resultados do seu governo. Dessa forma, de alguma maneira, este episódio retrata a conjuntura de
instabilidade, falta de certezas e ambiguidades que marcou o período pós golpe de 1964.
A sessão transcorreu como de praxe: o novo presidente honorário prestou juramento sob o
retrato do Imperador D. Pedro II, e em deferência os sócios do IHGB presentes na cerimônia
receberam Castelo Branco, recém-nomeado à presidência da República em um processo derivado de
um golpe de Estado, em sua Casa2.
Esse episódio torna-se significativo, pois suscita a reflexão sobre a adesão e a euforia com
que o golpe fora recebido por segmentos da sociedade brasileira. Dias após a tomada do poder pelos

2 Estavam presentes na cerimônia: o Presidente da República Castelo Branco; Marechal Juarez Távora, Ministro
da Viação; General Costa e Silva, Ministro da Guerra; Ministro Luiz Vianna Filho, Chefe da Casa Civil; Ministro da
Marinha, Almirante Melo Baptista; Ministro da Agricultura, Hugo de Almeida Leme; Ministro da Aeronáutica,
Brigadeiro Levaniêre Wanderley, bem como o Presidente do IHGB, José Carlos de Macedo Soares e alguns sócios do
Instituto.

657
militares, parte da população das principais cidades da região sudeste do país festejaram
(FERREIRA; GOMES, 2014, p. 16), assim como setores do IHGB, que de forma solene
recepcionaram o primeiro presidente da ditadura civil-militar3. Reconhecer esta forma de recepção
é fundamental, bem como atentar para a heterogeneidade coexistente e as expectativas distintas dos
sujeitos no momento da inauguração do regime. Nesse espectro de incertezas diante do novo, houve
aplausos, oposições, resistências, “ziguezagues”, indecisões, ambiguidades e ambivalências (REIS
FILHO, 2013).
Certo é que a ditadura não se manteve por todos esses anos sem razão. Para compreender sua
longa duração, é preciso ultrapassar as lentes analíticas que encaram o período apenas à luz das
resistências e da violência praticada pelo Estado. Os ditadores, torturadores, os censores, todos
aqueles que participaram, de alguma forma do sistema repressivo que se instalou no país, não são
“externos” à sociedade, mas pertencem a ela e, portanto, carregam consigo princípios, valores,
subjetividades que estão presentes na própria sociedade. O torturador é a imagem e semelhança de
muitos homens e mulheres. Não é uma figura completamente alheia. Como assinala Denise
Rollemberg e Samantha Quadrat, “enquanto estivermos procurando torturadores sem rostos
humanos, longe estaremos de compreender a barbárie como a criação de homens e mulheres, gestada
em nosso meio” (ROLLEMBERG; QUADRAT, 2011, p. 13).
Entretanto, o fato de segmentos da população terem aceito e comemorado o golpe, bem como
terem proporcionado, de alguma forma, sustentação a esse regime, não significa que apoiaram
plenamente as ideias e práticas firmadas, como a tortura. Não significa também que tenham se
comportado de forma homogênea e sem contradições. O que se procura mostrar é que a cultura
política, os valores e as referências marcam as escolhas dos indivíduos, encaminhando relações de
consenso e consentimento, assim como o sentimento de identificação com as propostas autoritárias
(Idem, p. 14).
Levando em conta esta perspectiva, é fundamental evitar narrativas teleológicas e considerar
que os atores sociais não sabiam o que iria acontecer nos anos posteriores ao golpe de 1964. As
dúvidas e as incertezas acerca o futuro do país pairavam sobre todos. Nem mesmo os militares
possuíam um projeto de governo bem definido, segundo algumas interpretações, como a de Celso
Castro (2012). Dessa forma, não havia uma organização clara entre os militares golpistas sobre o
futuro do projeto que estava em curso. O que se tinha como perspectiva inicial era a realização de
uma “limpeza” nas instituições. Nesse sentido argumentam Jorge Ferreira e Ângela de Castro
Gomes:

3 Dentro do IHGB a decisão foi unanimemente aprovada em plenário.

658
“Quer dizer, aqueles que aplaudiam e festejavam a vitória da “revolução pela ordem”
não tinham como saber o que sucederia nos anos seguintes. Seus aplausos, naquele
momento, não devem ser confundidos com apoio a um regime autoritário, violento
e ditatorial que perduraria até 1979, quando foi votada a lei da Anistia. Isso vale para
muita gente que fez festas nas ruas. Vale também para diversos políticos, que
julgavam não só participar, mas até comandar a “revolução” (FERREIRA; GOMES,
2014, p. 17) ”.

A partir destas perspectivas, Daniel Aarão Reis Filho e Denise Rollemberg procuraram
enfatizar o papel desempenhado por setores civis no contexto do golpe de 1964 e para a sustentação
do regime que se seguiu. Conforme destacado por Daniel Aarão Reis Filho, a ditadura não foi “uma
chapa de metal pesado, caída sobre vontades e pensamentos que aspiravam à liberdade” (REIS
FILHO, 2014, p. 8), pois se tivesse sido, como explicar as razões de o projeto da ditadura não ter
sido imediatamente derrotado após o golpe de 1964 (REIS FILHO, 2005, p. 10)? Ao contrário, a
ditadura venceu e permaneceu por longos anos. Ela se tornou vitoriosa, em grande medida, devido
ao apoio de diversos setores da sociedade, como ratificam alguns trabalhos recentes ao revelarem
que houve certo alinhamento de setores da população, empresários, intelectuais e políticos com os
planos da ditadura.
O livro Ditadura militar, esquerdas e sociedade de Daniel Aarão Reis publicado no início
dos anos 2000 causou relevante impacto nos rumos dos estudos sobre o período autoritário brasileiro
e ganhou traços cada vez mais consistentes com o aparecimento de várias pesquisas seguindo essa
linha. Assim, várias associações e instituições se tornaram objetos de investigação no período da
ditadura4, como a CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (SERBIN, 2001), a OAB,
Ordem dos Advogados do Brasil (ROLLEMBERG, 2008), a ABI, Associação Brasileira de Imprensa
(ROLLEMBERG, 2011), o CFC, Conselho Federal de Cultura (MAIA, 2012), os programas de pós-
graduação e a CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (BARBOSA,
2013), a ABL, Academia Brasileira de Letras (CUNHA, 2014; 2017), o Tribunal Regional do
Trabalho (SILVA, 2015). Além desses estudos, outros também se destacam ao propor uma
investigação nas relações entre o regime e a sociedade, como é o caso da pesquisa que se dedica a
analisar as comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil no ano de 1972
(CORDEIRO, 2012).
Conforme destaca Diogo Cunha (2014), em virtude de pesquisas desenvolvidas nas últimas
décadas sobre indivíduos, grupos e instituições diversas – possibilitadas pela liberação de fontes
sobre o período e consolidação do regime democrático – desfrutamos hoje de uma compreensão

4 Daniel Aarão Reis Filho atenta-nos para o fato de que várias instituições estão sendo e podem se tornar objetos
de estudo em seu artigo: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos. vol. 23, nº
45. Rio de Janeiro, janeiro-junho de 2010. p. 171-186.

659
alargada do regime civil-militar e dos fundamentos do autoritarismo brasileiro. Além disso, Cunha
acertadamente ressalta que se priorizou em pesquisas um determinado tipo de intelectual, de
esquerda, enquanto o intelectual conservador dos anos de 1960 e 1970 permanece marginalizado.
Em diálogo com este trabalho e procurando inserir-se nestas lacunas, interessa-nos atentar inclusive
para a própria composição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Por isso a pesquisa tem como um dos objetivos compreender quem eram os indivíduos que
integravam a direção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no período da ditadura civil-
militar, sujeitos estes congregados em torno de uma instituição tradicional e pertencentes à elite
cultural da sociedade brasileira da época. A pesquisa sobre as elites colabora para o estudo de grupos
de indivíduos que ocupam posições-chave na sociedade, dispõem de poderes, privilégios e
influências e sua análise permite a compreensão de atores situados no topo da hierarquia social, a
complexidade de suas relações e seus laços com setores da sociedade (HEINZ, 2006, p. 8).
O grupo coletado, nesse sentindo, refere-se à trajetória de dezesseis membros, que são aqueles
que tomaram as rédeas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no período delimitado – 1964
a 1979. Dessa forma, foram arrolados personagens que se destacaram no cenário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro ocupando postos chaves na estrutura da instituição e que, por esse
motivo, interviram nos rumos dela.
Compõem esse grupo diretor (presidente, vice-presidentes, secretários, orador e tesoureiro) ao
longo do período recortado dezesseis pessoas. Eram eles em ordem alfabética: Américo Jacobina
Lacombe, Antônio Camillo de Oliveira, Arthur César Ferreira Reis, Carlos da Silveira Carneiro,
Enéas Martins Filho, Fernando Monteiro, Haroldo Teixeira Valladão, Henrique Carneiro Leão
Teixeira Filho, Joaquim de Sousa Leão Filho, José Antônio Soares de Sousa, José Carlos de Macedo
Soares, José Wanderley de Araujo Pinho, Manuel Xavier de Vasconcellos Pedrosa, Pedro Calmon
Moniz de Bittencourt, Rodrigo Octávio de Langgaard Menezes Filho e Virgílio Corrêa Filho. Com
destaque para os presidentes, que foram José Carlos de Macedo Soares até o ano de 1967 e Pedro
Calmon Moniz de Bittencourt, que o substituiu após o seu falecimento a partir de 1968, permanecendo
até o ano de 1985, ano também de seu falecimento.
É notável que a diretoria do IHGB entre os anos de 1964 e 1979 – universo de 16 pessoas -
foi composta de sujeitos que cuja quase totalidade alcançou estudo superior regular, inteirando
81,25% do conjunto de indivíduos da pesquisa. Três deles, que representam 18,75%, ao que parece
não se diplomaram. No entanto, tiveram suas carreiras bem-sucedidas. É o caso de José Antônio
Soares de Sousa, que era funcionário público do Estado do Rio de Janeiro; Fernando Monteiro,
funcionário do Banco do Brasil que galgou degraus na carreira e chefiou o gabinete do Diretor da
Carteira de Crédito Agrícola e Industrial e Carlos da Silveira, militar que dedicou sua vida à Marinha.

660
No que tange à formação do grupo estudado, o levantamento realizado indica a preponderância de
indivíduos que cursaram a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais – 62,5% deles. Dois deles se
formaram em Engenharia Civil e um em Medicina.
Chama a atenção o fato de dois engenheiros, um médico e um militar estarem compondo a
direção do IHGB. De todo modo, eles foram admitidos no Instituto primeiramente como sócios
efetivos por possuírem número significativo de obras ou escritos na área. Esse fato pode ser
esclarecido pelo número escasso de cursos superiores no país, sendo que boa parte deles eram
voltados para essas três áreas: Direito, Engenharia Civil e Medicina.
Esses sócios se graduaram entre os anos de 1900 e 1930, e nesse momento não havia
distinções disciplinares tão nítidas no Brasil – até os anos 30. Assim, o que se via era uma ausência
de faculdades destinadas à formação de profissionais na área de história e outras. Dessa forma, o
ofício de historiador era executado por uma categoria mais abrangente de intelectuais: no geral, a
dos homens de letras (GOMES, 1999, p. 38).
A maioria frequentou as tradicionais Faculdades do Rio de Janeiro. Apenas Antônio Camillo
de Oliveira, José Carlos de Macedo Soares e José Wanderley de Araújo Pinho, concluíram seus
cursos de Direito na Faculdade de Belo Horizonte, Faculdade de São Paulo e Faculdade da Bahia.
Em um contexto ainda de profissionalização da formação de professores de história, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) possui importância especial por ser palco de
debates sobre o que era e o que devia ser a história (GOMES, 2009). Conforme assinala Arno
Wehling (2007) a partir dos anos de 1930 no Brasil foi sendo realizada a profissionalização da
formação em história. Posteriormente, nos anos 60, a pós-graduação foi institucionalizada no país
em diversas áreas, incluindo a história. O professor universitário passou atuar não só na atividade
docente, como também na pesquisa. O modelo associava docência e investigação. Aproximadamente
trinta anos depois a produção historiográfica brasileira se concentrou nos programas de pós-
graduação das universidades. Alguns espaços foram preenchidos por instituições especificamente
voltadas para a pesquisa, como a Casa Rui Barbosa, Fundação Oswaldo Cruz e CPDOC, por exemplo
(WEHLING, 2007, p. 9-10).
Além disso, torna-se importante destacar que a reforma realizada no ensino em 1931 por
Francisco Campos deu corpo à Universidade no país com a implementação de faculdades de
filosofia, que passavam a oferecer vários cursos, inclusive o de História. As ciências sociais
receberam maior atenção e deram início a um processo de formação de cursos específicos na área
das ciências humanas. Foi um processo gradativo, que reuniu resultados a longo prazo” (IGLESIAS,
1992 apud SOUSA, 2009, p. 25-26).

661
Tudo isso foi ocorrendo gradualmente. Por esse motivo, ainda no período da ditadura civil-
militar os historiadores eram intelectuais com diversas formações, que possuíam interesse em
diálogos disciplinares, mas com um desejo ainda de afirmar uma identidade para o seu saber. A
maior parte destes intelectuais eram formados nas faculdades de Direito. Eram praticantes do
jornalismo e do magistério, sendo professores de muitas disciplinas, como língua pátria, filosofia,
história do Brasil e universal (GOMES, 1999, p. 10). A história para eles possuía uma “missão” de
fazer conhecer o “passado comum” de uma nação e despertar o amor à pátria de seus cidadãos. Dessa
forma, Ângela de Castro Gomes demonstra que historiadores – homens de letras – discutiram sobre
modelos de ciência e cientificidade da história e que, para além disto, esses homens possuíam
também uma prática de escrita voltada para os compêndios escolares, livros de literatura infantil,
com evidentes fins pedagógicos (Ibidem, p. 11).
Desse modo, a pesquisa histórica era um esforço dos homens da “república das letras”
paralela à sua atividade principal, de professor secundário, comerciante, diplomata, advogado,
militar ou engenheiro. Foram esses sujeitos que moldaram a compreensão da História do Brasil
vigente por muito tempo. Mesmo com outras funções, exerciam a pesquisa histórica. “Não era para
eles uma obrigação funcional o exercício da investigação; ela era uma aventura do espírito”
(WEHLING, 2007, p. 9). Enquanto na Europa o processo de escrita e disciplinarização da história
há muito era realizado no ambiente universitário, no Brasil, esta tarefa ficou preservada dentro dos
muros das academias e, dessa forma, passava pela teia das relações pessoais e sociais
(GUIMARÃES, 1988, p. 9).
Portanto, ainda nesse momento inicial da ditadura eram “historiadores, em tese, todos aqueles
que produziram na área dos ‘estudos históricos’, havendo um esforço de distinção tanto da filosofia
e da literatura lato sensu, quanto do que se chama de estudos políticos sociais. [...]” (GOMES, 1999,
p. 37). O campo intelectual ainda não era totalmente compartimentado institucional e
profissionalmente, assim os historiadores acumulavam outras especialidades e eram com frequência
poetas, romancistas, juristas e praticamente todos, jornalistas militantes (Ibidem, p 38).
A partir do exposto, para compreender a deposição de João Goulart em 1964, a permanência
dos militares no poder e os fundamentos da ditadura, é imprescindível atentar para as complexas
discussões que abordam as relações que se estabeleceram entre o regime e a sociedade, bem como a
análise do processo histórico do período levando em conta a diversidade dos sujeitos, das instituições
e a multiplicidade de concepções, projetos e ideologias em disputa. Dessa forma, o que se procura é
realizar uma essencial complexificação dessas relações em busca de uma compreensão do período
mais próxima à realidade e entender as razões de o caminho autoritário ter sido uma opção escolhida

662
e aceita, distanciando-se, portanto, de uma leitura romantizada, segundo a qual a sociedade como um
todo foi vítima dos militares.
Isso não significa dizer que todos os civis colaboraram com a presença dos militares no
controle do poder Executivo e nesse momento autoritário do país, mas sim ressaltar a relação muitas
vezes ambígua entre civis e militares gerando em alguns momentos uma relação de proximidade e
de legitimidade e, em outros, uma evidente oposição (MAIA, 2012). Fato é que não podemos ignorar
o conjunto de trabalhos recentes que assinalam o alinhamento de intelectuais, políticos e de setores
da população com os projetos da ditadura, como já citado no corpo deste texto. É, portanto, com o
intuito de inserir-se nesse debate, esclarecer as informações sobre a ditadura no Brasil e de colaborar
com as lacunas sobre o período, que a presente pesquisa se dispõe investigar a forma como membros
da direção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, se portaram durante o golpe de
1964 e no decorrer da ditadura que se seguiu.

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Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, v. 265, 1964, p. 287-
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665
O sujeito lacaniano na filosofia da história

Danieli Machado Bezerra1

Resumo: Neste artigo elaboramos uma discussão em torno do modo de produção do significante e
de como ele opera na teoria lacaniana. É necessário estabelecer o que é a linguagem como articulação
do significante a partir de uma compreensão lacaniana sobre a linguística. Depois, articulamos
possibilidades argumentativas do ensino de Jacques Lacan com a historiografia e a filosofia da
história.

Palavras-chave: Psicanálise, Historiografia, Teoria da História.

Abstract: In this article we elaborate a discussion about the mode of production of the signifier and
how it operates in Lacanian theory. It is necessary to establish what language is as the articulation of
the signifier from a Lacanian understanding of linguistics. Then, we articulate argumentative
possibilities of the teaching of Jacques Lacan with the historiography and the philosophy of history.

Keywords: Psychoanalysis, Historiography, Theory of History.

Em Meu Ensino (2005/2005) Lacan mostra que a sua transmissão da Psicanálise lida com a
linguagem desde o início quando ele propõe a fazer uma releitura da obra freudiana. Concorda com
Heidegger [1889-1976] quando afirma que o “o homem habita a linguagem” 2 . Ele pensa com
Heidegger [1889-1976] que formula a teoria do Dasein. Essa discussão foi difundida anteriormente
em uma articulação com a teoria da História dos Conceitos de Koselleck no primeiro capítulo.

A frase “o homem habita a linguagem” aponta para a questão sobre a linguagem existir mesmo
antes de o homem ser, ou seja, de o homem ser constituído por ela, de ser invadido por ela. Para
Lacan (2005/2006), o homem nasce na linguagem precisamente como nasce no mundo, como também
nasce pela linguagem. Isso é a origem para ele; enxerga que sua percepção original sobre as primeiras
obras de Freud indica-nos para uma observação até então desconhecida:

Ninguém antes de mim parece ter dado importância ao fato de que, nos primeiros livros de
Freud – os livros fundamentais, sobre os sonhos, sobre o que chamamos de psicopatologia da vida
cotidiana, sobre o chiste -, encontramos um fato comum, proveniente dos tropeços da fala, furos no
discurso, jogos de palavras, trocadilhos e equívocos. É isso que vem em apoio às primeiras

1 Universidade Federal Fluminense. Email: danielimachado@id.uff.br


2 No livro, A caminho da linguagem [1959/2003], Heidegger afirma que o homem encontra na
linguagem sua morada e possui a essência originária sobre a verdade que dá sentido ao homem. Martin Heiddeger aponta
aproximações existentes entre o pensamento, a linguagem e a realidade.

666
interpretações e descobertas inaugurais sobre aquilo de que se trata na experiência psicanalítica, no
campo por ela determinado. Abram em qualquer página o livro sobre o sonho, que veio primeiro,
vocês só verão falar de coisas que envolvem palavras (p. 38).

Essa questão em torno da linguagem torna-se o primeiro passo para o que Lacan vai elaborar
acerca de sua teoria sobre o inconsciente a partir de sua releitura de Freud; ele formula a relação do
inconsciente e a linguagem e inicia uma investigação sobre os pormenores inerentes à língua através
de questionamentos sobre a função que ela exerce no sujeito e assim, inaugura sua construção teórica
sobre o significante.

Ao longo de sua obra, Jacques Lacan (1966/1998) afirma que o “inconsciente é estruturado
como uma linguagem”, ele diz que quando afirma isso é “para tentar restituir a verdadeira função a
tudo o que se estrutura sob a égide freudiana, e isso já nos permite vislumbrar a um passo. É porque
na linguagem, como todos podem perceber, é que há verdade” (p. 38).

O que é o inconsciente? Ele se manifesta com a linguagem é isso que Freud reconhece em sua
teoria, é nisso que fundamenta todo o discurso psicanalítico. Freud traduz o inconsciente onde
ninguém ousou fazê-lo, no ponto radical do sintoma histérico cuja natureza é da ordem do decifrável,

onde o sintoma só é representado no inconsciente caso se entregue à função daquilo que se


traduz” (LACAN, [2005], 2005, p. 561). No texto Radiofania [1970/1966/1998] alguém pergunta a
Lacan: “Nos Escritos [1966], o senhor afirma que Freud antecipa, sem se dar conta disso, as pesquisas
de Saussure e as do Círculo de Praga. Poderia explicar-se a respeito disso?” (LACAN, [2001], 2003,
p. 402). Lacan responde que ambos, Saussure e o Círculo de Praga, não possuem nada em comum
com sua teoria. A linguística e o Círculo de Praga edificam-se através de um corte ou barra colocada
entre o significado e o significante. Na obra de Lacan, essa concepção é mostrada através do algoritmo

. Saussure e o Círculo de Praga assentam-se na premissa sobre o significado, ou seja, estabelece


uma compreensão sobre um determinado objeto a partir do que seja uma palavra e o que é definido
sobre ela. Uma leitura correta sobre o algoritmo é discorrermos que o significante está sobre o
significado. Esse sobre ou barra que separa os dois elementos devemos a Ferdinand de Saussure que

redigiu esse signo assim representado .

Saussure faz-nos pensar as diferenças entre o significante e o significado e Lacan retoma essa
concepção desenhada pelo algoritmo saussuriano e elabora uma leitura a partir do inconsciente

667
freudiano e que é inexistente em Ferdinand de Saussure. Lacan inverte a fórmula saussuriana e traz
para seu o ensino a concepção sobre o significante a partir de uma leitura que faz avançar o que
Saussure não conseguiu ir adiante. Para Jacques Lacan, Freud antecipa o que Saussure refletiu ao
abordar sua teoria sobre a metáfora e a metonímia que será discutida mais adiante. Essa fórmula

revela a articulação entre o significado e o significante, entre os dois S e s, há a barra, . A barra


suporta a escrita, ela dá oportunidade para que haja a produção do escrito. Se não existisse a barra
não haveria a articulação discursiva entre o significante e o significado. A barra fura o discurso. A
barra evita que a gente fale desmedidamente como papagaios (LACAN, [1975], 2008, p. 40).

Para Lacan, Freud antecipou Saussure quando trata da metáfora e da metonímia. Saussure não
destaca as questões acerca do inconsciente porque não é analista, “não torna públicos os anagramas
que decifrou na poesia natural, é porque estes aniquilam a literatura universitária” (LACAN, [2001],
2003, p. 402). Ao longo da explanação em torno do que concebemos sobre o que é o significante para
a teoria lacaniana, enfocamos aqui, seis aspectos da operação significante que consideramos
importante destacar, são essas as características: primeira, a questão da supremacia do significante
em relação ao significado; segunda, o significante é uma unidade que simboliza ausência; terceira, o
significante opera segundo as leis da cadeia significante; quarta, o significante desfila na cadeia dos
significantes; a quinta característica; o significante tem o caráter de duplicidade quando opera na
cadeia dos significantes e, por fim, a sexta característica; o significante produz neologismo.

No que diz respeito à primeira característica, que é a supremacia do significante em relação


ao significado, remetemo-nos à descoberta de Freud ao elaborar a Psicanálise a partir de sua teoria
sobre o recalque, e que Lacan, interpretando Freud, vê que o psicanalista alemão desvenda um
fenômeno que estrutura e revela a verdade subjacente ao diálogo do sujeito pela via do inconsciente.
Com essa concepção sobre a teoria do recalque, e esse será representado no algoritmo lacaniano como
a barra que fura a operação existente entre o significante e o significado, temos uma novidade para
uma compreensão aos estudos sobre o sujeito. É necessário ir a Freud e ver como ele concebe a ideia
de condensação e de deslocamento para compreender o pensamento de Lacan. Sigmund Freud elabora
sua técnica terapêutica sobre A Interpretação dos sonhos (1901/1992) e propõe no capítulo intitulado
O trabalho dos sonhos, uma orientação de como deve ser realizado esse desenredamento do sonho
que passa a tornar-se material analítico. Esses dois elementos presentes nos sonhos serão
fundamentais para a construção da técnica psicanalítica e contribuirão para uma investigação acerca
dos fenômenos oníricos existentes no inconsciente e contribuem o entendimento de Lacan para o que
ele passa a construir a teoria sobre o significante e como ela se estabelece no inconsciente do sujeito.
O Sonho da monografia botânica (1901/1992) é um exemplo que ajuda-nos a compreender o

668
fenômeno da condensação cujo conteúdo onírico é descrito dessa maneira por Freud: “Tengo escrita
una monografia sobre una variedad (indeterminada) de planta. El libro yace frente a mí, y estoy
hojeando una lámina en colores doblada. Acompanha al ejemplar um espécimen desecado de la
planta” (FREUD, [1901],1992, p. 290). Esse sonho revela-nos o processo de condensação onírico que
o inconsciente estabelece no sujeito. O deslocamento que é outro mecanismo descrito por Freud
revela-nos elementos latentes que estão presentes nos conteúdos oníricos e que nem sempre são
possíveis de serem vistos através de uma primeira observação. Esse mecanismo identifica que nem
sempre os elementos presentes nos sonhos estão diretamente relacionados a eles e revelam-nos
conteúdos ocultos; cabe ao psicanalista ao desenredar o sonho descobrir quais são esses conteúdos.
Veremos adiante com o exemplo do sonho em Psicopatologia da vida cotidiana (1901/1992). Jacques
Lacan, em seu Seminário V: Sobre as formações do inconsciente (1957-1958/1998/1999), apropria-
se da operação que Freud nomeou de condensação e de deslocamento e os define respectivamente de
metáfora e metonímia. Antes disso é necessário que façamos uma compreensão histórica sobre essa
operação e de como Lacan elabora essa assertiva em sua teoria.

O exemplo de um sonho de Freud descrito em Psicopatologia da vida cotidiana (1901/1992)


elucida essa questão. Freud quando fez uma viagem à Bósnia-Herzegovina, falando com alguém, ele
esquece o nome Signorelli que lhe escapa à memoria, e assim, outros nomes apresentam-se,
inconscientemente, a ele: Botticelli, Boltraffio, Trafoi. Aqui vemos apresentar-se o mecanismo de
fuga de nome. Para Lacan, Signorelli e a sequencia de nomes pronunciados são “palavras
equivalentes, traduções umas das outras, metáfrases se quiserem, que a palavra está ligada à morte
recalcada, recusada por Freud” (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 272). Signorelli aponta para as
palavras Signor e Herr, e Trafoi e Boltraffio, é a metonímia no deslizamento entre Herzegovina e
Bósnia (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 272). Para Lacan (1955-1956/2002), Freud encontra a
linguagem “em sua prática médica, quando se deparou nesse campo em que são vistos os mecanismos
da linguagem dominar e organizar sem o conhecimento do sujeito, fora do seu eu consciente, a
construção de certos distúrbios que se chamam neuróticos” (p. 255). Aqui vemos que o nome
Signorelli aponta para a discussão em torno do recalcado que retorna e repete-se na letra enunciada,
ou seja, há um conteúdo guardado na lembrança de Freud que revela uma situação anterior por ele
privilegiada e que retoma algo que é articulado como novidade em uma situação atual.

Lacan questiona e põe em relevo a teoria linguística quando argumenta que sua teoria sobre
o significante trata de uma compreensão divergente porque o significante não designa-se a si mesmo
como ocorre com o vocábulo ou com a palavra na teoria da História do Conceito. O significante
sustenta-se porque está sempre remetido a outro significante. O significante representa um sujeito

669
para outro significante que constitui a cadeia dos significantes e a letra passa a ser o suporte material
que o discurso empresta da linguagem e com ela revela os elementos inconscientes que apresentam-
se na fala através da repetição que sustenta a cadeia do discurso do sujeito.

Para a Psicanálise lacaniana o sentido insiste incessantemente na cadeia dos significantes e


não leva o discurso do sujeito para o contexto da significação. Para Lacan, a concepção de Saussure
sobre a cadeia discursiva é linear e torna-se possível através da emissão horizontal em que ela
inscreve-se em nossa linguagem tonando-a insuficiente. Mas, para ele, essa concepção é limitada. O
exemplo com a frase “Pedro surra Paulo” é diferente quando a invertemos, ou seja, “Paulo surra
Pedro” não significa que “Pedro surra Paulo”. Saussure apresenta que a cadeia do discurso por ele
refletida só é orientada no tempo, “sendo até tomada como fator significante em todas as línguas em
que “[Pedro surra Paulo]” reverte seu tempo ao inverter termos” (LACAN, [1966], 1998, p. 506).

Ainda sobre o algoritmo que revela a barra existente entre o significante e o significado,
vemos no exemplo dado, as crianças na estação do trem, que a estrutura do significante não mostra

tratar-se de significação. No algoritmo o significante possui a função de só poder revelar uma


estrutura de significante nessa transferência onde um significante remete-se para outro significante.
A estrutura do significante indica que ele é articulado a partir de uma unidade e nela ele se compõe
de letras que fornecem elementos pertencentes segundo as leis de uma ordem fechada, que está
presente na cadeia dos significantes (LACAN, [1966], 1998, p. 505).

O segundo aspecto em torno da teoria do significante que chama-nos a atenção é a


característica que o significante, apontada por Lacan, possui, descrita em seus vários artigos
compilados nos Escritos [1966/1998], é que, ele, o significante é unidade que simboliza uma
ausência. Com o exemplo da Carta Roubada, [1844/2007] um conto de Edgar Alan Poe, Jacques
Lacan analisa que as palavras carta e letra, escritas em francês com a mesma palavra, letter, mostram
que ambas são escritas da mesma maneira, são idênticas e “é por isso que não podemos dizer da
carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela deva estar ou não estar em algum lugar”
(LACAN, [1966], 1998, p. 27) mostrando-nos o enigma presente no conto, e essa brincadeira com a
letra revelando o significante no conto de Poe, Lacan conclui que só se pode falar sobre algo que falta
quando esse algo muda de lugar. A palavra letter (pode significar carta e letra) que no caso da Carta
Roubada [1844/2007] mostra-nos a que a palavra muda o significante, pois a palavra letter nos dá
dois significantes, carta e letra, um no lugar do outro amarrado na cadeia dos significantes.

O terceiro aspecto levantado nessa tese, é que o significante opera segundo as leis da cadeia
dos significantes e, Lacan usa a seguinte metáfora para elucidar essa característica: “anéis cujo colar

670
se fecha no anel de um outro colar feito de anéis” (LACAN, [1966], 1998, p. 505) Trata-se de um
emaranhado existente dentro da cadeia simbólica que leva a produção de outro e mais outro
significante. (LACAN, [1966], 1998, p. 505). O significante mantém-se como condição de uma
operação que constitui-se em uma cadeia e é nessa cadeia que ele faz-se presente a partir de uma
ausência. A cadeia dos significantes torna a condição do significante possível e é nela que ele subsiste
(LACAN, [1966], 1998, p. 665). A representação algoritma lacaniana dessa afirmação é a fómula
S1→S2 cuja indicação remete-nos que um significante inicial, S1, levano-nos a um outro significante,
S2. O significante da teoria lacaniana vai na contramão do discurso da linguística, ele representa um
sujeito para outro significante. O significante desfila na cadeia dos significantes. Portanto, vemos a
insurgência da quarta característica do significante. Essa característica revela que ele garante a
coerência teórica do conjunto como conjunto representado na fórmula S1→S2 (LACAN, [1966],
1998, p. 416). O significante desfila na cadeia pela ordem simbólica.

Lacan questiona que no nível do significante, por exemplo, quando Schreber fala de
Nervenanhang, da adjunção de termos, Schreber afirma que essa palavra foi dita a ele pelas almas
examinadas ou pelos raios divinos (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 43). A significação está presente
no texto de Schreber, cujo artigo mostra o caso da psicose analisada por Freud, e nela vemos que a
palavra pesa sobre si mesma. O estudo do delírio de Schreber mostra-nos uma nova perspectiva de
compreensão sobre o fenômeno da linguagem na Psicanálise ao examinar a língua fundamental na
qual ele foi introduzido por sua experiência. A palavra domina a situação delirante e real da estrutura
da psicose estudada por Freud.

O significante em seu modo de operação possibilita o surgimento para a existência de outro


significante dentro da cadeia dos significantes, com ele não há sentido do sentido, pois Lacan
(1966/1998) constata que “o texto mais carregado de sentido se desfaz, nessa análise, em bagatelas
insignificantes, só resistindo a ela os algoritmos matemáticos, os quais, como seria de se esperar, são
sem sentido algum” (p. 501). A linguagem de que trata Lacan opera na ambiguidade e, na maior parte
do tempo, não sabemos nada sobre o que estamos falando. “Quando alguém diz que a palavra me
foge, por exemplo, supõe em primeiro lugar que a palavra esteja ali” (LACAN, [1955-1956], 2002,
p. 138). Não sabemos sobre o que falamos porque o inconsciente age ali, o tempo todo. Nessa trama
proferida pelo discurso falante, a rede dos significantes desempenha “um papel tão grande quanto o
significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental” (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 140).

A quinta característica do significante que nos chama a atenção é o aspecto de duplicidade


que está presente na operação significante. Em Freud há duplicidade, ou ao menos dois conflitos que
configuram-se em um conflito atual que faz menção a outro conflito antigo causando o sintoma. “Sem

671
a duplicidade fundamental do significante e do significado, não há determinismo psicanalítico
concebível”, não há sintoma (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 140). O funcionamento do sintoma
revela-nos que o material significante que se liga ao conflito antigo é “conservado no inconsciente
enquanto significante em potencial, significante virtual, para ser tomado no significado do conflito
atual e servir-lhe de linguagem, isto é, de sintoma” (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 140). O
significante possui leis próprias, difíceis de serem isoladas e independe do significado e da
significação. O significante é constituído através de um “despertar da duplicidade oculta do segundo
pela ambiguidade manifesta do primeiro” (LACAN, [1966], 1998, p. 542). Vemos que o significante,
a partir dessa compreensão, trata-se de uma operação com a qual a deciframento produz algo novo.
Nessa produção, o inconsciente estrutura-se através da linguagem que funciona segundo as leis
presentes na cadeia dos significantes (LACAN, [1966], 1998, p. 600). Esse algo novo produzido surge
a partir de uma menção sobre algo antigo em relação ao que estar por vir através de uma operação
repetitiva presente na cadeia dos significantes.

O sexto aspecto presente na operação significante é a produção de neologismo. Em Freud


(1901/1992) com o sonho do Autodidasker percebemos que o significante determina o sonho. Essa
palavra Autodidasker é um neologismo que encontramos Askel e outras recordações de Freud. Para
Lacan, a forma da palavra orienta-nos para a interpretação porque encontramos Alex, o irmão de
Freud, pela via da fonética e do verbo de maneira modificada. Além disso, Freud se lembra da leitura
do romance de Émile Zola – A Obra (L’oeuvre) [1886] no qual surge o personagem com o nome de
Sandoz. Freud reconstrói, faz de Sandoz a partir de Aloz, anagrama de seu nome. Al, início de
Alexandre pela segunda sílaba sand. Nessa linha de interpretação do sonho, Freud remete-nos à
questão sobre a formação do sintoma. O sujeito fica implicado na linguagem significante que o faz
operar dentro da cadeia dos significantes.

A linguagem para a Filosofia estruturalista saussuriana é impregnada da função do ser. O


conceito de massa amorfa que Saussure classifica, não é nada menos do que “massa sentimental da
corrente do discurso, massa confusa em que as unidades aparecem, ilhotas, uma imagem, um objeto,
um sentimento, um grito, um apelo” (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 297). Os modos de abordagem
dos linguistas são diversos. Saussure define uma correlação entre o significado e o significante
através do fonema e a Psicanálise aponta a letra como aquilo que constitui a operação do significante.

Compreender sobre o significante em Lacan orienta-nos para uma questão acerca do sujeito e
sua função na linguagem. Para Lacan essa função é dupla porque temos um sujeito que é o sujeito do
enunciado e o sujeito da enunciação, Lacan (2005/ 2006) sinaliza:

672
Eu [Je] quer dizer aquele que está falando agora no momento em que digo eu. Mas o sujeito
nem sempre é o sujeito do enunciado, pois nem todos os enunciados contêm eu. Mesmo quando não
existe eu, mesmo quando vocês dizem “está chovendo”, há um sujeito da enunciação, há um sujeito
mesmo que não seja perceptível na frase. Tudo isso permite representar muitas coisas. O sujeito que
nos interessa – sujeito não na medida em que faz o discurso, mas em que é feito por ele, e inclusive
feito como um rato – é o sujeito da enunciação. (...) é uma definição do que é designado como
“elemento” na linguagem. Isso sempre foi designado como “elemento”, mesmo em grego. Os estóicos
chamaram-no de “significante”. (p. 45).

O sujeito dispõe do material significante que é a sua “língua, materna ou não, e dela se serve
para fazer passar no real significações” (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 78). Essa postura da
Psicanálise é divergente da que encontramos em Koselleck, cujo conceito é tomado pela significação
com a intenção de expô-lo através de indagações sobre a sua origem e como este passou pelo
processo de teorização. Koselleck (1992) afirma: “Todo conceito é não apenas efetivo enquanto
fenômeno linguístico; ele é também indicativo, imediatamente indicativo, de algo que se situa para
além da língua”, como já (p. 135). Essa percepção é semelhante ao que ocorre no universo da
objetividade científica, no qual o sujeito “se perde sempre de vista, e acima de tudo comunicável,
ele se encarna nas comunicações científicas” (LACAN, [1955-1956], 2002, p. 78).

Bibliografia:

FREUD, Sigmund. Obras Completas. Tradução José Luis Etcheverry, 2.edição. Buenos Aires:
Amorrortu, 1992.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Tradução Betty Milan, 2. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
________. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
________. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Tradução Vera Ribeiro, 1.ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1999.
________. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução M D Magno,
2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
________. O Seminário, livro 16: De um outro ao outro. Tradução Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

673
________. O Séminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução Ari Roitman, Rio de Janeiro: Jorge zahar
Editor, [1969-70] 1992.
________. O Seminário, livro 20: ... Mais ainda. Tradução M D Magno, 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

________. Escritos. Tradução Vera Ribeiro, 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, [1966], 1998.
________. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro, 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
________. Meu ensino. Tradução André telles, 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

674
Atividade Baleeira no RJ:
causas do fracasso nas épocas colonial e contemporânea

Danilo Augusto Ricco1

Resumo: Quando pensamos em caça de baleias, enxergarmos o Brasil com uma das maiores vozes
contra tal atividade, porém, esquecemos do papel desempenhado pelo país na caça e na redução do
número de baleias em todo Atlântico Sul. Desde o Século XVII o Brasil era um dos principais
campos de caça de cetáceos e, durante o Século XX, tornou-se um dos maiores caçadores de baleias,
sendo apenas superado por Japão e União Soviética. Desde o início da atividade, a costa fluminense
foi um dos principais polos baleeiros do Brasil, porém, pouco se estudou sobre caça de baleias em
águas fluminenses. Esse trabalho pretende lançar luz não apenas sobre as armações que atuaram nos
Séculos XVII e XVIII, mas também sobre o curto e desconhecido empreendimento baleeiro japonês
desenvolvido em Cabo Frio entre os anos de 1960 e 1963, investigando os fatores que levaram ao
fracasso de tais empreendimentos.

Palavras-chave: Caça de Baleias. Cabo Frio. Rio de Janeiro.

Abstract: When we think about whaling, Brazil is seen as one of the significant countries against
the activity. But we forget the countrie’s role on the hunting and drecrease of numbers of whales in
the Southern Atlantic waters. Since the 17th Century, Brazil was one of the main whaling areas and,
across the 20th century, it became one of biggest whaling countries, being only surpassed by Japan
and Soviet Union. From the beginning, the Fluminense coast was one of the major zones of the
Brazilian whaling economy, but, like the whole activity in Brazil, there are few studies about it. This
paper intends to shed light not only on the whale hunting of the 17 th and the 18th centuries, but also
on the short lived and almost unknown Japanese whaling station that operated in the city of Cabo
Frio between the years of 1960 and 1963, ascertaining the factors that led to the failure of such
ventures.

Keyword: Whaling. Cabo Frio. Rio de Janeiro.

Apesar dos inúmeros trabalhos abordando os aspectos políticos, econômicos e culturais que
envolvem o período Colonial brasileiro, poucos são as produções acadêmicas que abordam os
aspectos ambientais do período. Quando o tema é a atividade baleeira o deserto de trabalhos é ainda
maior, com poucos trabalhos publicados e atuais, como é o caso do livro “A Baleia no Brasil
Colonial”, obra da historiadora Myriam Ellis e que completará meio século de publicação em 2018,
sem nunca ter sido reeditado.
Apesar do trabalho pioneiro de Ellis ser da área de história econômica, tal obra é uma
referência para historiadores ambientais que queiram estudar a atividade baleeira no Brasil, tema tão
pouco abordado e discutido nos dias de hoje.

1 Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense.

675
Para além da atividade no período Colonial, o Brasil viu uma intensa atividade baleeira no
Século XX, ressurgida da malfadada tentativa de manutenção da caça de baleias durante o Século
XIX. A incumbência da reconstrução da indústria no Brasil partiu, em um primeiro momento, da
iniciativa de holandeses e noruegueses para, depois, serem substituídos pelo capital japonês.
Durante a Colônia, a atividade se desenvolveu em quatro regiões distintas do país. As
primeiras armações foram erguidas ainda no Século XVII, durante o período da União Ibérica e, por
isso, teve como pioneiros no Brasil os bascos, que dominavam a atividade na Europa. Suas primeiras
instalações foram erguidas no litoral baiano, dentro das águas abrigadas da Baía de Todos os Santos,
onde muitas baleias se reuniam em suas águas para dar a luz a suas crias.
O século subsequente viu, não só o apogeu da atividade no Brasil, como também a periódica
construção de novas armações cada vez mais ao sul da costa brasileira. Primeiro no litoral do Rio de
Janeiro, com armações nas praias de, hoje, Niterói, de uma ilha ainda desconhecida, porém,
provavelmente a Ilha de Gipóia, na Baía da Ilha Grande e também na costa de Cabo Frio.
Posteriormente, surgiram armações em São Paulo: em São Sebastião, Bertioga e também em
Cananéia. Por fim, surgiram também armações na costa de Santa Catarina, provavelmente as mais
bem estudadas deste período.
Durante o Século XX, com o ressurgimento da indústria, três foram os locais de armação no
Brasil: Costinha, na Paraíba; Cabo Frio, no Rio de Janeiro; e Imbituba, em Santa Catarina. É
interessante notar que as duas últimas localidades já possuíram armações em séculos anteriores.
Em se tratando de Rio de Janeiro, poucos são os trabalhos que abordam a atividade no estado,
especialmente o período mais recente, de 1960 a 1963, que, mesmo que breve em duração, merece
atenção devido ao conturbado período político-baleeiro em que o Brasil se encontrava. Este trabalho
visa, assim, abordar a atividade baleeira no litoral fluminense, a fim de lançar luz sobre as motivações
de seu apogeu e declínio nos períodos Colonial e do Pós-Guerra.

As primeiras armações brasileiras

O início da atividade baleeira no Brasil se deu durante o período de União Ibérica, quando
Portugal e Espanha se encontravam sob o reinado de Felipe III da Espanha. A Espanha era a época
o lar de uma lucrativa indústria baleeira, ativa na região do Golfo da Biscaia e operado por baleeiros
bascos.

676
A atividade baleeira na região data do Século XI, quando bascos aprenderam técnicas básicas
de caça de baleias com Normandos, que já utilizavam do óleo de cetáceos no Século IX. Os primeiros
registros da atividade, datada de 1059, porém, são de origem basca francesa, isto é, da costa da região
da Gasconha2. Os primeiros registros de caça de baleias na Espanha datam de 60 anos depois, em
11503.
A atividade, a princípio, se desenvolveu com a coleta de gordura para obtenção de óleo a
partir de baleias, em sua maioria baleias-francas e cachalotes, que encalhavam ao longo da costa.
Entretanto, tão logo quanto possível, os bascos avançaram para caça litorânea utilizando botes e
arpões.
Os usos dados as baleias pelos bascos eram vários. Seu óleo era empregado para iluminação,
enquanto sua carne era vendida em mercados de peixe ao longo de todo o Golfo da Biscaia. O
primeiro registro da atividade na região se confirma através de um documento tratando a da
regulamentação do comércio de carne de baleias na cidade de Bayonne 4.
Conforme a atividade se desenvolvia na região até chegar a seu auge, por volta do Século
XVII, quando a população de baleias da região começa a diminuir de forma gradual e vagarosa.
Diante deste quadro e da busca por maiores rendimentos, os bascos passaram a expandir suas zonas
de caça, passando a se afastar para cada vez mais longe da costa e rumando cada vez mais ao norte
e ao oeste, alcançando as águas da Terra Nova, Groenlândia e de Svalbard. Durante tais expedições,
os baleeiros acabaram por desenvolver técnicas de corte e de obtenção de óleo das baleias ainda em
alto-mar, iniciando assim a prática pelágica da atividade baleeira.
E interessante notar que, como nos mostra Aguilar, a diminuição dos números de cetáceos
não está diretamente relacionado a expansão da atividade para novas zonas de caça 5. Os baleeiros
bascos não só já possuíam certa tendência de diversificarem suas zonas de caça, como também o
capital empregado na caça nas águas do Mar da Cantábria diferia em origem do capital aplicado nas
expedições aos mares do norte e os da costa norte-americana. Embora as últimas atividades em costa
francesa tenham se encerrado ainda no Século XVII, as atividades espanholas não apenas estavam
em seu auge, como durariam até o Século XIX.

2 AGUILAR, Alex. Chimán: La pesca ballenera moderna en la península Ibérica.


Barcelona: Edicions Universitat Barcelona, 2013. p. 21.
3 AGUILAR, Alex. A Review of Old Basque Whaling and its Effect on the Right
Whales (Eubalaena glacialis) of the North. In: BROWNELL JUNIOR, Robert L.; BEST, Peter B.; PRESCOTT, John
H. (Ed.). Right Whales: Past and Present Status. Cambridge: International Whaling Commission, 1986. p. 191-199.
(Reports of the International Whaling Commission Special Issue 10). p. 192.
4 Ibid.
5 Ibid.

677
Porém, foi nesse contexto, aliado a total escassez de bens de necessidade básica, como o óleo de
baleia ou, como se referiam a época, o azeite de peixe, em especial na capital colônia do Brasil, a
cidade de Salvador, é que se desenvolveu a atividade baleeira em águas brasileiras. Como esperado,
as primeiras armações foram instaladas na Baía de Todos os Santos, cujas águas não apenas
banhavam a cidade Salvador, como também eram ricas em baleias durante os meses de inverno no
hemisfério sul.
Em 9 de agosto de 1602, foi autorizado por Felipe III alvará que concedia o privilégio para o
estabelecimento de armação e de caça de baleias a partir do dia de São João daquele mesmo ano e
com o prazo de dez anos, sendo findo ao dia São João de 16126. O alvará fora concedido a dois
indivíduos provenientes da cidade basca de Bilbao. Eram eles o Capitão de origem basca, Pero de
Urecha, e seu sócio, Julião Miguel ou Julien Michel, francês de Nantes que, apesar da nacionalidade,
acabou por ser benquisto na Corte espanhola, o que permitiu suas visitas ao Brasil.
Não se sabe ao certo a localização da primeira armação instalada em solo brasileiro. O que
se sabe é que o óleo obtido deveria ser majoritariamente remetido às necessidades da cidade de
Salvador, enquanto o sobressalente deveria ser levado diretamente a Portugal. É bem possível que
Urecha e Miguel tenham utilizado armações provisórias, da mesma forma como os bascos
procederam em suas atividades ao longo das costas da Terra Nova e de Labrador.
Todos os anos, até 1612, cerca de dois ou três navios zarpavam da Espanha rumo ao Brasil para
obterem óleo e barbas de baleia. Porém, sua mais importante função era difundir, isto é, qualificar a
população da colônia nas técnicas baleeiras.
Não demorou parar que os colonos dominassem as técnicas não apenas da caça das baleias,
como também a de obtenção do óleo. De acordo com Ellis 7, já em 1603 os colonos já desenvolviam
atividade relacionada a indústria baleeira, o que fica claro ao se constatar a queda do preço da pipa
de óleo.
Porém, os conflitos entre bascos e brasileiros tiveram seu ápice em 1609, quando Urecha
iniciou uma contenda contra o pescador Antônio Fernandes da Mata, natural da Colônia. Urecha
tentou garantir ao seu empreendimento o monopólio sobre a caça de baleias, porém, derrotado,
Urecha foi obrigado a aceitar a concorrência de colonos.
Presume-se que, em decorrência da derrota e da não garantia da exclusividade, optaram
Urecha e Miguel por não renovar o alvará de caça. Porém, os motivos para a não garantia de

6 ELLIS, Myriam. Aspectos da Pesca da Baleia no Brasil Colonial: Notas prévias de


um trabalho em preparo. Revista de História, São Paulo, v. 15, n. 32, p.415-462, out./dez. 1957. pp. 428-430.
7 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1968. p.
36.

678
exclusividade por parte da Coroa ainda carecem de estudos mais aprofundados, tendo em vista que
pouco depois seria estabelecido o monopólio real.
Tão logo os bascos se retiraram, a população da Colônia assumira o papel de caça e
processamento de baleias. Já em 1612, uma armação de propriedade de Antônio Machado de
Vasconcelos operava a partir da Ponta de Itaparica, localizada na ilha de mesmo nome. Antes dela,
há registros do estabelecimento de uma armação na Ponta da Cruz, também na Ilha de Itaparica,
porém pouco se pode precisar sobre ela, é possível que esta tenha sido o local onde os bascos
estabeleciam suas armações provisórias.
A Ilha de Itaparica logo se tornou o centro da indústria de armações na Bahia. Em 1614 uma
nova armação foi estabelecida na ilha, mais uma vez na Ponta da Cruz. Este último empreendimento,
porém, teve um destino aquém do esperado por seus sócios fundadores e proprietários, Pedro
Caiscais de Abreu e Lourenço Mendes Pinheiro, pois, tão logo a armação se estabeleceu na
localidade, a Coroa impôs o monopólio real sobre a atividade 8.
Com o estabelecimento do monopólio, a atividade só poderia ser exercida por aquele que
arrendasse da Coroa o direito de exercê-la. O primeiro a arrendá-la foi Antônio da Costa9. Porém, é
interessante notar que o estabelecimento do monopólio foi de encontro ao interesse dos colonos, que
viram durante o curto período de caça não-monopolizada o preço do óleo de baleia cair em mais de
100 réis.
Mesmo com o monopólio, a caça de baleias acabou se difundindo pelo litoral da Bahia, com
armações operando em Salvador, nas praias de Pedra Furada, Pituba, Rio Vermelho e Itapuã. Além
da região da Baía de Todos os Santos, surgiram armações na Praia do Forte, 70 km ao norte, e em
Caravelas, no sul do litoral da Bahia 10.
A atividade baleeira se desenvolveu na Bahia durante toda o Século XVII e durante metade
do Século XVIII, quando as armações baianas começaram a entrar em declínio. De acordo com Ellis,
os rendimentos muitas vezes não era suficientes para cobrirem o total gasto nas operações. Embora
muitas vezes se caçassem 120 a 130 baleias por ano, bastavam a caça de apenas 60 e 70 para que as

8 CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Caçadores de Baleia: armações,


arpoadores, atravessadores e outros sujeitos envolvidos nos negócios do cetáceo no Brasil. São Paulo: Annablume,
2009. pp. 34-35.
9 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1968. p.
35-37.
10 EDMUNDSON, William; HART, Ian. A História da Caça de Baleias no Brasil:
De peixe real a iguaria japonesa. Barueri: Disal Editora, 2014. p. 38.

679
operações se tornassem deficitárias11. A entrada do Século XIX trouxe o fim do monopólio real e,
junto a isso, o gradual encerramento das atividades baleeiras em águas baianas.

As armações fluminenses do período colonial

Embora as armações baianas ainda não estivessem em declínio, já na segunda década do


Século XVII se estabelecia a primeira armação na Capitania do Rio de Janeiro e das pescarias do
Sul, de acordo com os trabalhos do Monsenhor Pizarro, nas águas da Baía da Guanabara. Embora
não se saiba ao certo sua localização, pois Pizarro não a cita, é possível que a armação tenha se
estabelecido na Ilha das Baleias, que posteriormente passou a se chamar Ilha do Mocanguê, na cidade
que hoje é Niterói12.
O que se sabe é que, em meados do Século XVIII a armação foi arrendada por Brás de Pina
e depois transferida para uma das extremidades da Enseada da Praia Grande, hoje conhecida como
Ponta da Armação, aos pés do morro que também ganhou a alcunha de “da Armação”. Foi nesta
época que ganhou o nome de Armação de São Domingos13.
Com a descoberta de ouro nas Minas Gerais, a Armação de São Domingos passou a ter
problemas com o trafego naval na Baía da Guanabara, pois os muitos navios que ali transitavam ou
vinham a baixar âncoras afugentavam os cetáceos da região. Ainda no Século XVIII, a Armação de
São Domingos mudou de localização mais uma vez, situando-se então do outro lado da Enseada da
Praia Grande, no bairro que hoje leva o nome de São Domingos.
Antes que o problema de afugentamento das baleias da Baía da Guanabara se tornasse em um
problema de abastecimento para a cidade do Rio de Janeiro e as zonas de mineração, as áreas de
pescaria do Sul tomaram dois rumos em um primeiro momento: surgiram duas novas armações no
litoral da Capitania, uma na Ilha Grande e outra em Cabo Frio; e a abertura de armações mais ao sul,
nos litorais paulista e catarinense 14.
Em Cabo Frio, apesar da área já ser considerada uma das zonas de pescarias do Norte, foi a
segunda armação a ser construída no litoral fluminense, em 1740, então pelo contratante do

11 CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Caçadores de Baleia: armações,


arpoadores, atravessadores e outros sujeitos envolvidos nos negócios do cetáceo no Brasil. São Paulo: Annablume,
2009. p. 79.
12 DIAS, Camila Baptista. A pesca da baleia no Brasil Colonial: Contratos e
Contratadores do Rio de Janeiro no século XVII. 2010. 145 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2010. pp. 72-74.
13 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1968.
pp. 46-48.
14 Ibid, p. 46-48.

680
monopólio régio, Brás de Pina. Teve uma vida mais breve que as demais, tendo sido desativada 30
anos depois, por volta de 1770, devido à baixa lucratividade.
Apesar da curta duração se comparada às demais armações no litoral da Capitania, seu legado
persiste até hoje. Sua antiga localização recebe hoje o nome de Armação de Búzios.
Há indícios de que também tenha existido uma armação baleeira na cidade de Angra dos Reis.
Na Ilha da Gipóia, existe uma praia chamada de Praia da Armação, além de uma Ponta dos Ossos,
topônimos que indicam a presença de armações em algum momento. De acordo com Ellis, este teria
sido mais um empreendimento de Brás de Pina, pois há documentos que comprovam que este tenha
estabelecido uma armação na Baía da Ilha Grande, porém estes indicam a Ilha Grande como sua
localização.15
Como em toda a costa brasileira, as capturas de baleia no litoral fluminense floresceram ao
longo do Século XVIII. Para efeito de comparação, enquanto o arrendamento das armações de todo
o Brasil no ano de 1765, excetuando-se as do Rio de Janeiro, custavam a quantia de 19.200$000 réis,
as armações do Rio de Janeiro sozinhas valiam o mesmo 16. A partir disso, nos é possível supor que
as armações fluminenses possuíam a maior produtividade.
Entretanto, as duas últimas décadas do Século XVIII, a última em especial, viram o negócio
baleeiro entrar em decadência. Vários foram os fatores que contribuíram para isto, indo desde
técnicas defasadas na extração do óleo e das barbas até a concorrência externa.
As técnicas utilizadas para a obtenção de óleo eram não apenas obsoletas, como também
aplicadas de forma errônea. Não se aproveitavam todas as partes da baleia: sua carne não era
apreciada, o que fazia com que seu preço fosse baixíssimo. A própria gordura da baleia, fonte de
obtenção de óleo, era subaproveitada, pois não utilizavam todas as partes do animal para a obtenção
do óleo.
O processo de obtenção do óleo possuía diversas falhas que acabavam por diminuir a
qualidade do produto. Suas fornalhas eram mal construídas, sem a devida ventilação, fazendo com
que se usassem enormes quantias de madeira, sempre as de maior tamanho o que, muitas vezes,
causava com que o fogo crescesse de forma demasiada e acabava por queimar o óleo que se tentava
retirar. As quantias de madeira eram tão elevadas, que as armações necessitavam de áreas florestadas
de grande tamanho para sua atividade, o que demandava uma enorme quantia de mão de obra.
Contribuíam para o desperdício de óleo, através da sua queima, o uso de caldeiras de tamanho
pequeno para função. O tamanho das caldeiras não só contribuía para a queima do óleo, mas também

15 Ibid, p. 46-48.
16 ELLIS, Myriam. Aspectos da Pesca da Baleia no Brasil Colonial: Notas prévias de
um trabalho em preparo. Revista de História, São Paulo, v. 15, n. 32, p.415-462, out./dez. 1957. p. 449.

681
para o uso de um número muito maior do que o necessário. Assim, gastava-se muito mais com
madeira para manter as fornalhas acesas, com escravos para supervisionarem o processo de
cozinhamento da gordura, além de se gastar ainda mais para a obtenção de novas caldeiras.
Os fatores acima contribuíram para que o óleo de baleia fosse menos competitivo que os dos
demais países e, por conseguinte, para a derrocada dos lucros da atividade. Inglaterra e EUA
produziam óleo de qualidade bem superior ao brasileiro, sem nem mesmo ser necessário
atravessarem todo Atlântico, correndo o risco do produto estragar, algo que era comum ocorrer com
o óleo brasileiro. Somente eram apreciados na Europa as barbas de baleia brasileira, já que as
armações coloniais nunca dominaram a técnica de obtenção do espermacete dos cachalotes, apesar
das inúmeras tentativas.
Por fim, contribuiu para a derrocada das armações não apenas no litoral do Rio de Janeiro,
mas também de todo o Brasil, a diminuição das capturas de baleias. A isso contribuíram os métodos
de caça brasileiros e a atuação de armadores estrangeiros em águas brasileiras ou nas mais ao sul do
continente americano.
Como técnica de captura, os armadores visavam especialmente filhotes, pois estes, uma vez
arpoados, atraíam para próximo das embarcações suas mães, os verdadeiros alvos da empreitada.
Uma vez capturada a baleia adulta, os filhotes eram simplesmente descartados. Além do mais, os
equipamentos de baixa qualidade muitas vezes causavam a perda do animal arpoado, que acabava
por morrer sem ser capturado. Isso acabou contribuindo na diminuição do aporte de baleias nos
litorais brasileiros e também em diminuir o número de capturas bem-sucedidas.
Além do mais, somou-se às técnicas espoliativas a presença estrangeira em águas brasileiras
e nas mais ao sul do continente. Não só essa presença diminuiu o número de baleias que chegavam
ao Brasil por capturá-las antes de aproximarem das regiões baleeiras brasileiras, mas também por
possuírem técnicas mais avançadas de caça, além de também serem uma forma inicial de atividade
baleeira pelágica.
Tais fatores não passaram desapercebidos à época. Figuras de relevo da política brasileira e
portuguesa do período chegaram a manifestar-se sobre os problemas, como foi o caso de José
Bonifácio, porém, pouco foi feito.
O ano de 1801 viu o fim do monopólio sobre a caça de baleias, porém poucos foram os
atraídos a atividade e estes acabaram por falir. As antigas armações então, passaram ao controle Real,
o que resultou numa péssima administração e no sucateamento das instalações. Em meados do
Século XIX, já não se via a prática comercial em larga escala da caça de baleias no Brasil.

682
A atividade baleeira no Século XX

Ao se iniciar o Século XX, a atividade baleeira no Brasil era insignificante. Resumia-se a


poucas armações de pequeno porte, de prática quase artesanal e que pouco diferia da atividade
baleeira desenvolvida até o declínio baleeiro no Século XIX, espalhadas pelas costas dos estados de
Santa Catarina e Bahia. Usava-se ainda barcos as remo e arpões manuais.
Foi somente na segunda década do Século XX que a atividade baleeira moderna foi
introduzida no Brasil, através das mãos de dois irmãos ingleses, a companhia Duder & Brother 17. A
companhia de caça fora fundada por George Harvey Duder Sr, porém acabou sendo repassada para
dois de seus filhos, George Harvey Duder Jr. e Edward Pellew Wilson Duder, e sua sede ficava na
cidade de Salvador.
A companhia se aproveitou da proibição da caça de baleias na costa da Noruega para iniciar
suas operações no ramo baleeiro. A proibição foi causada pela gradativa escalada de embates entre
pescadores e baleeiros na região de Finmark, no norte da Noruega, onde os pecadores alegavam que
a atividade baleeira era diretamente responsável pelas consecutivas temporadas de pesca desastrosas,
levando a região a níveis elevados de pobreza e fome. Para os pescadores, a caça de baleias
afugentava os peixes da região, assim como suas presas 18.
A situação no norte da Noruega era agravada devido a problemas territoriais com a Rússia,
que era vista como uma ameaça pelo governo de Oslo. O embate enfim se degradou num embate
direto, com centenas de pescadores destruindo uma das muitas estações baleeiras da região 19. Para
apaziguar a situação, o governo aprovou o total banimento da caça de baleias no norte norueguês por
dez anos, uma pauta que há anos era defendida pelos pescadores da região.
Com as medidas tomadas na Noruega, o número de baleeiros desempregados aumentou, pois
pelo menos quatro empresas faliram 20 . Usando esse artifício, junto a incentivos do governo
brasileiro, que visava revitalizar a indústria pesqueira no país, a Duder & Brother pode importar não
apenas mão de obra norueguesa qualificada, como também pôde obter pelo menos um navio baleeiro.
Após um primeiro ano bem-sucedido da Duder & Brother, empresas norueguesas se viram
atraídas pela atividade ao largo da costa brasileira, porém, nenhuma delas alcançou uma década de

17 EDMUNDSON, William; HART, Ian. A História da Caça de Baleias no Brasil:


De peixe real a iguaria japonesa. Barueri: Disal Editora, 2014. p. p. 66-70
18 TØNNESSEN, Johan Nicolay; JOHNSEN, Arne Odd. The History of Modern
Whaling. Berkeley e Los Angeles: University Of California Press, 1982. p. p. 61-62.
19 Ibid. p. 66
20 Ibid. p. 67

683
duração, incluindo a pioneira Duder & Brother. O projeto mais bem-sucedido teria início um pouco
mais ao norte, no estado da Paraíba, através da Companhia de Pesca Norte do Brasil ou, como ficou
mais conhecida, COPESBRA.
Fundada em 1910 por Julius von Söhsten, filho de pai holandês e mãe brasileira, e pelos
sócios Joaquim Lima de Amorim e Antônio Mendes Fernandes Ribeiro, a COPESBRA tinha como
foco inicial a pesca de arrasto ao longo do litoral nordestino, assim como o transporte de cargas na
mesma região21. Foi somente em 1912 que a empresa direcionou a suas operações para a caça de
baleias.
Após uma viagem a Europa, von Söhsten utilizou procuradores noruegueses para dar início
as suas atividades baleeiras. Von Söhsten escolheu a Noruega pois o país era líder mundial na
atividade baleeira moderna, isto é, altamente mecanizada. A partir de contatos noruegueses, a
COPESBRA começou a adquirir conhecimento sobre a atividade, além de mandar encomendar um
navio baleeiro próprio a um estaleiro de Oslo, o navio se chamaria Dantas Barreto22.
A COPESBRA iniciou sua primeira temporada em 1912 utilizando um antigo veleiro
convertido em navio-fábrica, o Pernambuco 23 . O navio-fábrica operou por duas temporadas
brasileiras para COPESBRA, além de ter sido arrendado para uma temporada de caça em águas
antárticas. Em 1914, porém, a COPESBRA decidiu se desfazer do Pernambuco e passou a operar a
partir de uma estação costeira, no distrito de Costinha, da cidade Lucena.
Apesar das aparentes boas temporadas, Julius von Söhsten se desligou da empresa em algum
momento do biênio de 1928-29. A COPESBRA então passou a ser controlada pela Mendes, Lima &
Companhia, empresa dos outros dois sócios iniciais. Em 1957, a COPESBRA foi vendida a
japoneses.
Ao mesmo tempo em que os japoneses assumiam o controle das atividades na estação de
Costinha, outra empresa japonesa, a Taiyo Fishery, iniciava suas atividades no Brasil. Inicialmente,
a Taiyo obteve permissão para operar, a partir do ano de 1958, na atividade pesqueira, especialmente
na pesca de sardinha e atum 24 . Não coincidentemente, a primeira frota da empresa em águas
brasileiras consistiu em embarcações especializadas na pesca de atum e na pesca de arrasto.
Dois anos após iniciar suas operações no Brasil, a Taiyo obteve a permissão de caçar baleias
em litoral brasileiro. Suas operações seriam sediadas na cidade de Cabo Frio, onde a empresa

21 EDMUNDSON, William; HART, Ian. A História da Caça de Baleias no Brasil:


De peixe real a iguaria japonesa. Barueri: Disal Editora, 2014. p. 101
22 Ibid. p. p. 103-104.
23 Ibid.
24 Ibid. p. 165.

684
acreditava ter uma posição privilegiada em relação as correntes marítimas e a rotas migratórias das
baleias25.
Ao iniciar suas atividades em Cabo Frio, a Taiyo resolveu focar suas operações na
comercialização de carne de baleia fresca, seguindo num rumo contrário ao da COPESBRA, que
acabou por focar no comércio de charque de baleia. O público principal da empresa era o de
imigrantes japoneses residentes na região sudeste do país 26, que acabava de sair do período de maior
fluxo migratório nipônico por qual a região já passara. Apesar de um início que superou as
expectativas da empresa, o comércio de carne fresca não decolou.
O sucesso inicial se deu muito devido à publicidade involuntária que a imprensa da época
proporcionou a empresa27. O jornal Folha de S. Paulo publicou em mais de uma ocasião artigos sobre
a estação baleeira de Cabo Frio. Tais artigos acabaram por gerar furor na sociedade da região sudeste,
o que não só transformou a estação em um atrativo turístico, como também inflamou o mercado para
o consumo de carne de baleia.
O furor da novidade não durou muito e os estoques de carne começaram a se acumular nos
armazéns da empresa. Além do mais, as técnicas de armazenamento, transporte e comercialização
também não eram os adequados. Após apenas quatro anos de operação baleira, a Taiyo encerrou suas
operações no ramo de caça de baleias no Brasil.
Vários foram os fatores para o fracasso da atividade pesqueira pela segunda vez no litoral
fluminense, porém todos eles parecem ter um núcleo comum: a má administração. A direção da
empresa no Brasil teve enormes dificuldades de assimilar e entender o mercado consumidor e as
demandas trabalhistas da população brasileira e nipo-brasileira.
A opção pela carne fresca acabou por se mostrar um erro. Não só a empresa falhou em
entender as demandas por determinados cortes por parte da comunidade nipo-brasileira, como
também não entendeu os gostos da população brasileira. A comercialização também foi feita de
forma errônea, com um empacotamento que tornava a carne pouco apetitosa e também em
quantidades exageradas para as demandas de consumo.
Por fim, a empresa fracassou em suas obrigações trabalhistas. Logo em seu terceiro ano de
operação, a Taiyo enfrentou enormes problemas trabalhistas. A empresa não pagava os adicionais
de insalubridade e os adicionais de trabalho noturno corretamente: os atrasos eram frequentes 28 .

25 WATASE, Sadao. A Pesca da Baleia no Brasil. Boletim Geográfico, Rio de


Janeiro, v. 28, n. 212, p.12-36, set./out. 1969. p. p. 17-18.
26 EDMUNDSON, William; HART, Ian. A História da Caça de Baleias no Brasil:
De peixe real a iguaria japonesa. Barueri: Disal Editora, 2014. p. 168.
27 Ibid. p. 172
28 Ibid. p. 176

685
Além do mais, os salários eram considerados baixos. Assim, em seus dois últimos anos de operação,
a empresa enfrentou duas grandes greves, a última das quais selou seu destino no Brasil.

Conclusão

Ao olharmos as duas experiências baleeiras no estado do Rio de Janeiro, a despeito da grande


diferença de anos em que vigoraram, a má administração e as dificuldades de adaptarem ao mercado
em que estavam inseridas se mostram um ponto em comum entre elas.
Durante o período colonial, o monopólio real sobre a atividade fez com que elas não se
modernizasse e se tornasse dependente do mercado interno. Com a abertura dos portos
conjuntamente a chegada da família real, a produção brasileira, que já sofria em se manter ativa,
acabou por sucumbir com seus produtos de qualidade inferior aos produzidos por ingleses e
americanos.
Outro fator foi a não diversificação da produção e a incapacidade, ou a morosidade, pela
adesão de métodos mais modernos fizeram com que as armações fluminenses, assim como todas as
demais armações brasileiras, ficassem dependentes da comercialização do óleo de baleia, de
qualidade muito inferior em relação de seus concorrentes. Além do mais, a atuação de baleeiros
americanos e ingleses em águas mais ao sul e morosidade dos armadores brasileiros em
desenvolverem atividades pelágicas, acabou por tornar os números de baleias que chegavam a costa
colonial em quantias que tornavam inviáveis a continuidade das operações brasileiras.
Por fim, ao fim do monopólio real, as atividades de armação haviam se tornando tão pouco
lucrativa, que os antigos engenhos baleeiros acabaram por ficarem sob responsabilidade da Coroa,
que foi incapaz de administrá-los de forma adequada. Consequentemente, as armações acabaram por
se encontrar em péssimo estado de conservação, terminando com elas sendo abandonadas ou
vendidas para fins outros, que não a caça de baleias.
Quando olhamos para atividade moderna, isto é, a desenvolvida em Cabo Frio durante a
década de 1960, vemos que novamente a inação diante das adversidades e o total desrespeito aos
trabalhadores por parte da administração brasileira da Taiyo foram os principais responsáveis pelo
fracasso das operações.
A opção pela comercialização da carna fresca e não do charque de baleia foi o primeiro grande
erro. A empresa optou por focar quase toda sua produção neste mercado, enquanto negligenciava
atividades que demonstravam ter um interesse maior por parte do mercado consumidor brasileiro.

686
Enquanto a carne de baleia encalhava em seus armazéns, a procura por óleo de cachalote e farinha
de osso para adubo enfrentava dificuldade de obtenção, devido à incapacidade da empresa em suprir
a demanda.
A farinha de osso para adubo no Brasil era em quase toda sua totalidade importada e, junto a
isso, pesadamente taxada. A farinha produzida pela Taiyo, por sua vez, se via livre da taxa de 50%
sobre a importação e consequentemente era muito mais barata no mercado nacional.
O mesmo ocorria com o óleo de cachalote e seu espermacete, porém, somava-se a este fator
a localidade mais propícia para a captura de cachalotes do que em relação a Costinha. Dados
fornecidos a Comissão Baleeira Internacional (CBI) demonstram que, enquanto as duas estações
operaram ao mesmo tempo, a Taiyo pescou 13 vezes mais cachalotes que a operadora de Costinha.
Durante o ano de 1962, a Taiyo caçou 97 cachalotes, número que nunca chegou perto de ser atingido
tendo Costinha como base de operações ao longo de seus 32 anos de caça de cachalotes 29.
Os patrões da Taiyo no Brasil também demonstraram que não os interessava respeitar a
legislação trabalhista brasileira, tão pouco respeitaram seus empregados. Mesmo diante de uma greve
geral de operações na empresa no ano de 1962, os executivos da empresa se negavam a negociar
com seus empregados, na verdade, optavam por retalhar com a demissão de funcionários grevistas,
inclusive o presidente do sindicato de trabalhadores.
Por fim, a Taiyo não soube aproveitar o ambiente político-econômico em prol de suas
atividades. O período de início de suas operações se deu juntamente ao período do governo JK (1956-
1961) na presidência. Tal época significou a propensão do governo federal na atração de capital
externo aliado ao capital nacional para diversificação da economia brasileira. É até mesmo bastante
provável que tenha sido este o motivo que levou o Brasil a abandonar sua posição pró-CBI, isto é,
de uma maior regulamentação da atividade baleeira, e tenha optado por adotar uma posição de
afastamento da organização, que culminaria na sua retirada no ano de 1965.
Foram motivos que se encontram num núcleo comum que levaram as atividades baleeiras em
território fluminense fracassarem em períodos históricos tão distintos. Apesar do declínio total da
caça de baleia no Brasil durante o período colonial, o mesmo não se pode dizer do período
contemporâneo. Ao se proibir a caça de baleias em todo o globo no ano de 1982 e se ratificar tal lei
em território brasileiro em 1985, o Brasil era um dos maiores capturadores de cetáceos do mundo,
tendo capturado desde o início do levantamento estatístico um total mínimo de 21.990 baleias em
sua história30.

29 KISHIWADA, Hitoshi. A Pesca da Baleia no Brasil. Japão: Nichirei Corporation,


2004. p. p. 13-14
30 Ibid.

687
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689
A Organização Internacional do Trabalho e suas fontes de pesquisa histórica

Denilson Gomes Barbosa1

Resumo

Ao se aproximar do centenário da Organização Internacional do Trabalho, a ser celebrado


em 2019, os documentos, dados e publicações produzidos pela OIT tornaram-se muito mais
acessíveis após a criação do Century Project. Este projeto incentiva a pesquisa histórica através da
facilitação do acesso aos documentos e bases de dados que permitem a produção da história da
própria OIT, assim como a história da relação entre a Organização e os países membros. Além
disso, trata-se de um acervo documental com um alto nível de organização, que serve de modelo
para outros arquivos históricos. O acervo histórico da OIT é, certamente, uma combinação de
documentos históricos e muita tecnologia, uma vez que proporciona de forma prática e moderna,
suas informações para qualquer pesquisador, em qualquer parte do mundo.

Palavras-chave: OIT, história, fonte histórica

Abstract

In approaching the 100th anniversary of the International Labour Organization, to be


celebrated in 2019, the documents, data and publications produced by the ILO have become much
more accessible after the creation of the Century Project. This project encourages historical research
by facilitating access to documents and databases for the production of the ILO's own history, as
well as the history of the relationship between the Organization and the member states. In addition,
it is a documentary collection with a high level of organization, which serves as a model for other
historical archives. The ILO's historical heritage is, certainly, a combination of historical documents
and a lot of technology, since they provide information in a practical and modern way to any
researcher, anywhere in the world.

Keywords: ILO, history, historical sources

1
Doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora
(PPGH-UFJF), sob orientação da Profa. Dra. Valéria Marques Lobo. Bolsista CAPES.
Contato: denilsonbarbosa.history@gmail.com

690
Introdução

Em 2019 a Organização Internacional do Trabalho (OIT) comemora cem anos. Uma das
medidas para celebrar o centenário foi a criação de um projeto chamado Century Project, cujo
objetivo é ampliar e compartilhar o conhecimento da história da OIT. O projeto incentiva novas
pesquisas com o objetivo de complementar as tradicionais narrativas institucionais num momento
de crescente interesse acadêmico pela história transnacional, assim como da história das
organizações internacionais. O projeto pretende, também, expandir e incentivar trabalhos oriundos
de países em desenvolvimento.
Além disso, o Century Project busca especialmente promover jovens pesquisadores. A OIT
destaca que, nas atuais pesquisas incentivadas pelo projeto, pesquisadores de diferentes áreas como
história, ciência política, sociologia, direito e outros têm em comum uma perspectiva histórica sobre
a OIT. Para auxiliar os pesquisadores, o site do Century Project disponibiliza uma chamada para
pesquisadores compartilharem seus projetos em inglês, francês ou espanhol. Também é
disponibilizado um e-mail de contato para a obtenção de maiores informações. Para facilitar ainda
mais os estudos sobre a História da OIT, o projeto unificou em uma única página o acesso a todos
os documentos oficiais produzidos pela OIT, que serão tratados detalhadamente mais adiante em
metodologia e fontes.
Existe ainda uma página no site do projeto dedicada às pesquisas em andamento chamada
“Research in progress” que traz a lista com as pesquisas em desenvolvimento que abordam
diversos temas tais como análises do papel da OIT na construção da paz em conflitos,
industrialização, descolonização e globalização; o papel dos sindicatos e demais organizações
operárias; a ligação entre a OIT e as igrejas cristãs; o trabalho feminino; e o papel da OIT em países
como Argentina, Portugal, África do Sul, Estados Unidos, Índia, China, Indonésia e Brasil.
Este, certamente, é um momento bastante oportuno para o desenvolvimento de pesquisas
sobre a história da OIT. Tanto pela proximidade do aniversário de cem anos da organização em
2019, como pela marcante presença da instituição e seu padrões no Brasil e a cooperação da OIT
com novos projetos de pesquisa. Soma-se a isso, o perfil da instituição voltado para a conservação e
divulgação de suas fontes históricas. Certamente, seus arquivos são um grande exemplo de
tratamento adequado dedicado à conservação de documentos históricos.

691
Pesquisas sobre a OIT

A diversidade de documentos da OIT permite o desenvolvimento de pesquisas focados no


impacto da Organização nos países membros. Basicamente, é possível investigar o impacto da OIT
na legislação trabalhista de cada país, assim como o impacto das convenções na aplicação prática. O
estabelecimento de padrões internacionais nos países membros, faz com que os países tenham que
se adaptar, investir e garantir o cumprimento das normas, promovendo assim, mudanças internas
significativas no âmbito das relações de trabalho.

Para compreender o impacto dos padrões internacionais de trabalho, verifica-se dois tipos de
abordagens: a primeira seriam os trabalhos com uma abordagem mais ampla, que vão além da
dinâmica entre ratificação e aplicação prática na legislação interna. Normalmente partem do ponto
de vista da OIT, tomando os casos de determinados países como corroboração ou exemplificação
dos temas abordados. É muito comum, entre as publicações da OIT, trabalhos que traçam
perspectivas comparativas entre diferentes países em relação a um tema comum. São pesquisas,
baseadas nos dados e relatórios fornecidos pelos países, que analisam progressos e vicissitudes em
relação à implantação de alguma norma específica.
Estes trabalhos tratam em geral das questões práticas reportadas pelos governos no sentido
da aplicação de medidas e esforços para a adaptação interna às ratificações. Para a avaliação de tais
impactos, tecem uma complexa discussão envolvendo questões como, por exemplo, o diálogo com
a OIT; as medidas tomadas para adequação às leis, o impacto das medidas sob o ponto de vista
econômico e social, a resposta dada à OIT através de relatórios, as mudanças para os representantes
dos trabalhadores; os efeitos do aumento da proteção social, da liberdade de associação e do
processo de inspeção.
Um exemplo de pesquisa relevante, pois indica todos os caminhos metodológicos e as fontes
para a pesquisa sobre o impacto da OIT na seguridade social, é “A Organização Internacional do
Trabalho e o estado de bem estar social: efeitos institucionais sobre o gasto nacional com
seguridade.” (The International Labour Organization and the welfare State: institutional effects on
national welfare spending.) (STRANG; CHANG, 1993). Os autores estudam como padrões
internacionais são absorvidos e aplicados pelos governos tal como se fossem criações internas. Os
autores apontam, ainda, para as diferenças nos resultados de ratificações de acordo os tipos de
governo, por exemplo, governos de esquerda ou direita. Além disso, consideram a questão do
atraso, ou demora, dos resultados após as Ratificações.

692
Dentre outros exemplos de trabalhos temos: “Cinquenta anos de estabelecimento de padrões
pela Organização Internacional do Trabalho.” (Fifty years of standard-setting activities by the
International Labour Organization) escrito por Nicolas Valticos, publicado em 1969; “A influência
de padrões internacionais do trabalho: possibilidades e performance” (The influence of international
labour standards: possibilities and performance.) e “Procedimentos de Implementação da
Organização Internacional do Trabalho” (Implementation Procedures of the International Labor
Organization.) escritos por Ernest A. Landy, sendo o primeiro publicado em 1970 e o segundo em
1980. Somente os dois primeiros artigos citados foram publicados pelo periódico International
Labour Review, uma publicação da OIT, cujos detalhes serão tratados adiante.
A outra abordagem envolve publicações que, embora também tratem do impacto dos
padrões internacionais do trabalho, são específicos para os casos de determinados países, uma vez
que significam uma visão daquele país em particular. Geralmente tratam dos efeitos internos,
traçam uma perspectiva histórica, e, além de abordarem o impacto na aplicabilidade da lei, analisam
os efeitos socioeconômicos e políticos envolvidos no processo de ratificação de convenções da OIT.
A título de exemplo verifica-se os seguintes trabalhos: “A Influência dos Padrões da OIT na
Legislação Trabalhista da Índia” (The influence of ILO Standards on Indian Labour Legislation.),
de V. K R. Menon, publicado em 1956; “A Influência das Convenções Internacionais do Trabalho
na Legislação Suíça” (The Influence of International Labour Conventions on Swiss Legislation.) de
Alexandre Berenstein, publicado em 1958; “A Influência dos Padrões da OIT na Legislação
Norueguesa” (The influence of ILO Standards on Norwegian Legislation.) de Karl N. Dahl,
publicado em 1964; “A influência dos padrões das Convenções Internacionais do Trabalho na
Legislação da Tunísia” (The influence of International Labour Conventions on Tunisian
Legislation.) de Amor Abdeljaouad, publicado em 1965; “A Influência dos Padrões Internacionais
do Trabalho na Lei e Prática Irlandesa” (The Influence on Irish Law and Practise of International
Labour Standards.), de Maurice Cashiell, publicado em 1972; “A influência dos padrões da OIT na
Lei e Prática na República Federal da Alemanha” (The Influence of ILO Standards on Law and
Practise in the Federal Republic of Germany) De G. Schnorr, publicado em 1974; “A influência
dos padrões da OIT na Lei e Prática no Japão” (The Influence of ILO Standards on Law and
Practise in Japan.), de Tadashi Hanami, publicado em 1981; “A influência dos padrões da OIT na
Lei e Prática Sueca” (The Influence of ILO Standards on Swedish Law and Practice) de S.
LAGREGEN, publicado em 1986; e, finalmente, “A influência dos padrões da OIT na lei e prática
australiana” (The influence of ILO Standards on Australian Labour Law and Practise.) de C. E.
Landau, publicado em 1987.

693
Além das fontes primárias, a OIT disponibiliza, desde 1919, o periódico International
Labour Review que, em muitos casos, tem como autores acadêmicos com algum tipo de experiência
de trabalho com a OIT e que pertencem aos respectivos países estudados. Sobre o Brasil, existem 25
artigos publicados, mas nenhum deles utiliza a mesma abordagem citada nos textos acima, ou seja,
uma perspectiva histórica mais ampla sobre os impactos dos padrões internacionais de trabalho no
país. Normalmente, estão voltados para questões pontuais como imigração, ocupação de terras,
problemas de mão-de-obra, indígenas, trabalho urbano, desemprego, flexibilização nos anos 1990 e
seguridade social, dentre outros.
Quanto à seguridade social, dois artigos merecem destaque: “Problemas sociais e legislação
no Brasil” (Social Problems and Legislation in Brazil) de R. Paula Lopes, publicado em novembro
de 1941 e “Seguridade Social no Brasil” (Social Security in Brazil) de Moacyr Velloso Cardoso de
Oliveira, publicado em novembro de 1961. Ambos buscam traçar uma perspectiva histórica sobre
seguridade social no Brasil, e certamente, são dignos de uma releitura.
Sob o ponto de vista metodológico, estes trabalhos são de grande importância.
Primeiramente porque, como são na maioria das vezes escritos por pessoas ligadas à OIT, trazem
uma seleção de tópicos relevantes a serem estudados e como devem ser trabalhados em relação ao
contexto interno e externo. Em segundo lugar, mostram que o estudo do impacto da OIT sob uma
perspectiva histórica é relevante e constitui uma abordagem que pode ser aplicada à todos os países
membros da OIT. Finalmente, além de indicarem uma vasta bibliografia dedicada ao assunto,
utilizam como fonte os dados oficiais da OIT, ou seja, os mesmos que estão disponíveis para
qualquer pesquisador do meio acadêmico em geral.
No Brasil, a OIT é explorada basicamente pela área do direito. É possível verificar a
existência de diversos trabalhos cuja característica comum é a abordagem de aspectos técnicos
relativos à aplicação dos padrões internacionais, ou seja, dedicam-se à aplicação prática na lei,
assim como os diversos impactos no âmbito da legislação. Como exemplo, destacam-se as obras
“Direito Internacional do Trabalho” (SÜSSEKIND, 2000), “Convenções da OIT e outros tratados.”
(SÜSSEKIND , 2001) e “Instituições de direito do trabalho” (SÜSSEKIND , 2007).
Outros exemplos, na mesma linha de abordagem, seriam Ariosi (2004) em seu artigo “Os
efeitos das convenções e recomendações da OIT no Brasil”, Campos (2007) em “As convenções da
Organização Internacional do Trabalho e o Direito Brasileiro”, Ervolino (2011) e “A Influência da
Organização Internacional Do Trabalho na definição de padrões normativos no Brasil” e Meireles
(2011) com “As convenções da Organização Internacional do Trabalho sobre direitos humanos
fundamentais e seu status normativo.”

694
Outro trabalho relevante é a obra de Gunther (2013), “A OIT e o direito do trabalho no
Brasil.” A obra também se dedica aos mesmos aspectos de aplicação prática tratados aqui, mas
estão, assim como alguns dos demais trabalhos citados acima, conectados com o que foi discutido
anteriormente, ou seja, apontam para a questão da influência dos padrões internacionais dentro do
espaço interno.
Gunter (2013) destaca que a importância das normas da OIT para o magistrado do trabalho
está em conectar-se a uma área normativa internacional que detecta problemas e propõe soluções
globais. Assim, o Juiz do trabalho não deve somente resolver casos concretos, mas aprofundar-se no
conhecimento das questões trabalhistas tais como são vistas e resolvidas de forma global. Desta
forma, o juiz do trabalho torna-se um cidadão do mundo, partícipe dos problemas e das soluções
para as questões trabalhistas sob uma ótica global.
Pode-se perceber que os dados e a documentação da OIT permite uma série de pesquisas,
sobre diversos temas relacionados ao mundo do trabalho, sobre diversos países e, sobretudo, sobre
diversos períodos históricos. Além disso, sua excelente organização e facilidade de acesso,
certamente faz com que a OIT seja um exemplo do arquivo histórico ideal para o desenvolvimento
do trabalho do historiador.

Fontes e abordagens

Muitos documentos e publicações produzidos pela OIT já eram de livre acesso ao público
anteriormente à criação do Century Project, porém de forma pulverizada nas diversas páginas do
site. Todavia, o projeto facilitou o acesso direto à informações e recursos tais como todas as bases
de dados, as Convenções, as Recomendações, os relatórios e os artigos do periódico da OIT,
International Labour Review. As possíveis maneiras de abordar tais documentos serão tratadas
detalhadamente adiante. Segue abaixo uma lista com as principais bases de dados e documentos:

Bases de dados
• LABORDOC (Base de dados da biblioteca da OIT)
• LABORSTA (estatísticas ligadas a trabalho)
• NATLEX (legislação nacional sobre trabalho, seguridade social e direitos humanos)
• NORMLEX (padrões internacionais do trabalho da OIT e leis nacionais de trabalho e
seguridade social)

695
Documentos oficiais
• Conferência Internacional do Trabalho: Resoluções
• Conferência Internacional do Trabalho: Registros de Procedimentos
• Conferência Internacional do Trabalho: Relatórios do Diretor Geral
• Conferência Internacional do Trabalho: Relatório do Comitê de Especialistas sobre a
aplicação das Convenções e Recomendações
• Convenções da OIT: Série de documentos que descrevem o contexto histórico que motivou
a aprovação das convenções e os trabalhos preparatórios.
• Boletim oficial da OIT
• International Labour Review (todos os artigos de 1921 à 2014)

Todos os documentos e dados acima podem ser acessados diretamente no site da OIT.
Porém, quanto aos documentos da LABORDOC, existem diferentes formas para acessá-los. Se o
documento está disponível em formato eletrônico, basta abrir o documento, o que é o caso da
maioria deles. Todavia, alguns documentos só podem ser abertos por pessoal da OIT. Neste caso,
para aqueles que não pertencem à OIT, podem consultar uma biblioteca mais próxima (biblioteca de
Genebra ou dos escritórios regionais como o de Brasília), fazer o requerimento em uma biblioteca
conveniada (Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro por exemplo) ou fazer o requerimento por meio
de um empréstimo interbibliotecas. Basta fazer o cadastro de qualquer biblioteca pública e solicitar
o empréstimo. Este mesmo sistema é válido para as obras e documentos que estão disponibilizados
em formato impresso. Determinadas publicações também podem ser compradas através do site da
OIT, tanto em formato eletrônico, quanto impressos.
Uma documentação fundamental da OIT são seus relatórios. Existem os relatórios
elaborados por um comitê de especialistas e aqueles elaborados pela Conferência Internacional do
Trabalho que ocorre anualmente. Assim, a partir do momento em que um país ratifica uma
convenção, torna-se obrigatória a emissão regular de relatórios sobre as medidas tomadas para que a
mesma seja implementada. Tais documentos são examinados por um comitê de especialistas que foi
criado em 1926 diante do crescente número de relatórios. O papel do comitê é fornecer uma
avaliação técnica e imparcial do status da aplicação dos padrões internacionais de trabalho.
A cada dois anos, os governos devem submeter seus relatórios detalhando os passos que
foram tomados na implementação de qualquer das oito convenções fundamentais e das quatro
prioritárias, tanto na legislação quanto na prática. Com relação às demais convenções ratificadas, os
relatórios devem ser submetidos a cada 5 anos, com exceção daquelas que foram arquivadas e,
consequentemente, não mais supervisionadas. Os governos também são obrigados a submeter os

696
relatórios às respectivas representações dos empregadores e trabalhadores. Tais organizações,
também podem enviar comentários a respeito da aplicação das convenções diretamente para a OIT.
Quando o comitê de especialistas examina o processo de aplicação dos padrões
internacionais de trabalho são feitos dois tipos de comentários: as observações e os requerimentos
diretos. As observações contêm comentários sobre questões fundamentais, levantadas pela
aplicação de uma convenção específica por um determinado Estado e, são publicadas no relatório
anual do comitê. Os requerimentos diretos estão relacionados à questões mais técnicas ou ao
requerimento de informações mais detalhadas. Diferentemente das observações, os requerimentos
não são publicados nos relatórios, mas comunicados diretamente aos governos. Os requerimentos
diretos serão tratados especificamente mais adiante.
Os relatórios são divididos em três partes. A Parte I contém um Relatório Geral, que inclui
comentários sobre o respeito dos estados membros perante suas obrigações constitucionais e
destaques a partir de suas observações. A Parte II contém observações sobre a aplicação dos
padrões internacionais de trabalho e, finalmente, a Parte III contém uma avaliação geral.
O relatório é um documento de muita importância, pois é a partir dele que muitas decisões
são tomadas e o relatório da conferência é elaborado. O relatório anual é normalmente adotado em
dezembro e submetido à Conferência Internacional do Trabalho em junho do ano seguinte. Desta
forma, o relatório é examinado pelo comitê específico da conferência, que analisa a aplicação dos
padrões internacionais de trabalho. Tal comitê lança mão da estrutura tripartite e, assim, é composto
por representantes do governo, dos empregadores e dos trabalhadores.
Durante a conferência, ao analisar os relatórios, o comitê seleciona determinadas
observações para discussão. Neste caso, os governos referidos são convidados a se pronunciar
diante do comitê no sentido de oferecer informações mais detalhadas sobre a situação em questão.
Em muitos casos o comitê tece conclusões recomendando medidas específicas que ajudem os
governos a remediar um problema ou convidar a OIT para missões de assistência técnica. As
discussões e conclusões dos casos examinados são publicados nos relatórios da conferência,
podendo algumas delas, até mesmo, receber algum tipo de destaque.
Uma vez definido este processo de elaboração dos documentos, torna-se possível ater-se aos
aspectos metodológicos mais pragmáticos. Desta forma, no caso de uma pesquisa sobre o Brasil,
por exemplo, considerando os dois tipos de relatórios, o relatório elaborado pelo comitê de
especialistas e o relatório da conferência, pode-se identificar todos os momentos em que o país foi
citado. Também é possível levantar informações gerais sobre a aplicação dos padrões internacionais
no Brasil, concernentes a cada uma das convenções ratificadas. Outra possibilidade é a identificação
de todos os momentos em que o Brasil ganhou algum tipo de destaque na conferência, seja ele por

697
obter sucesso ou por apresentar algum tipo de dificuldade. Finalmente, é possível verificar qual a
atenção dada ao assunto e qual a sugestão apontada pela OIT. Além disso, verificar, também, o
andamento da mesma matéria nos relatórios dos anos posteriores.
Resumindo, é possível verificar as várias informações fornecidas pelo governo brasileiro,
além da possibilidade de análise do andamento do processo. Verificar o progresso, as propostas e as
soluções oferecidas pela OIT certamente ajudam a estabelecer mais precisamente como a OIT atuou
de forma direta ou indireta na formulação de políticas e no estabelecimento de práticas internas.
Além disso, estes processos, podem ser comparados e situados historicamente de acordo
com os diferentes regimes políticos e contextos econômicos que o Brasil enfrentou ao longo dos
anos. Como foi mostrado acima, o impacto da OIT pode variar de acordo com o tipo de governo ou
contexto econômico de cada país. Assim, é possível tecer uma discussão envolvendo os resultados
evidentes nos relatórios com os momentos de maior ou menor prosperidade econômica, maior ou
menor abertura à expansão de direitos trabalhistas, maior ou menor liberdade de ação e associação
sindical, assim como momentos de expansão das leis e medidas que implicam em ampliação da
seguridade social. Para isso, uma ampla revisão bibliográfica se faz necessária, a fim de comparar
as matérias mencionadas nos relatórios com determinados momentos históricos do país.
Além dos relatórios, os requerimentos diretos, que já foram mencionados anteriormente,
também podem ser utilizados na busca de informações mais técnicas ou mais detalhadas. Tais
requerimentos, podem ser acessados na base de dados NORMLEX, também disponível no site
oficial da OIT. Na busca em relação aos requerimentos diretos podem ser encontrados na base de
dados todos os 299 requerimentos feitos para o Brasil até então. Estes documentos, permitem a
identificação dos momentos em que foi requisitado do governo Brasileiro maiores informações ou
informadas questões mais técnicas.
É possível contar, ainda, com dados estatísticos. O departamento de estatística da OIT
disponibiliza o LABORSTA, que consiste em uma base de dados composta de informações,
fornecidos pelos governos, referentes aos seguintes temas: população economicamente ativa,
emprego, desemprego, horas de trabalho, salários, custo de trabalho, índice de preços ao
consumidor, acidentes de trabalho, greves, rendimentos e despesas, migração internacional do
trabalho, homens e mulheres na economia informal dentre outras estatísticas.
Segundo a OIT, estes dados estatísticos são importantes para o desenvolvimento e avaliação
de políticas e do progresso feito em rumo ao trabalho decente. Também são importantes como
ferramenta de informação e análise para ajudar na compreensão de problemas, explicação de ações
e na mobilização de interesses. Estas estatísticas ajudam a ilustrar melhor determinados momentos
históricos e são fundamentais para elaborar uma análise conjunta com as matérias trabalhadas nos

698
relatórios. Assim, é possível ilustrar em números, momentos anteriores e posteriores à ratificação de
convenções.
Existe uma outra base de dados estatísticos, porém voltada para um campo mais específica
que é a base de dados sobre seguridade social (Social Security Database). Nela são encontradas
informações coletadas diretamente dos governos através de requerimentos específicos da OIT e
outras instituições como por exemplo o Banco Mundial e a Organização Mundial da Saúde.
A Base de Dados de Seguridade Social (The Social Security Database), baseada no Custo da
Seguridade Social da OIT (the ILO Cost of Social Security) e na base de dados da Seguridade Social
Internacional (International Social Security Association database), oferece informações estatísticas
sobre programas de seguridade social em oito ramos clássicos da seguridade social tais como
doença, maternidade, idade, invalidez, morte, acidente de trabalho, desemprego e benefícios para a
família. A base de dados também oferece informações sobre o gasto com a seguridade social. Neste
último caso, as informações disponíveis sobre gastos com seguridade social no Brasil se limita ao
período entre 1960 e 1980. Os dados referentes aos demais anos, se necessários, devem ser
requeridos através de um e-mail informado no site.
A OIT justifica o desenvolvimento desta base de dados com três motivos, que podem ser
empregados nesta pesquisa com a mesma finalidade, uma vez filtrados e selecionados para o caso
do Brasil. O primeiro é que ela constitui um componente essencial como indicador socioeconômico
que reflete os princípios e modelos de proteção social. Assim, os números, as condicionantes e
outras características dos programas de seguridade social são vistas como elementos chave para a
construção de indicadores de seguridade. O segundo aspecto é que a base de dados oferece uma
visão geral da situação dos sistemas de seguridade social em todo o mundo, assim como uma
detalhada descrição dos mecanismos em que os programas operam. Finalmente, os dados também
servem como uma alternativa complementar enquanto fonte de informação para outras bases de
dados.
É importante destacar que todas as bases de dados e de documentos tratados aqui possuem
ferramentas de busca que permitem filtrar as informações desejadas de forma que permitam
pesquisas através de variáveis como como o país, assunto e período. Outras opções oferecidas pela
OIT seria a visita aos arquivos e Biblioteca na sua sede em Genebra ou no escritório da OIT em
Brasília.
Outra base de dados fundamental é a LABORDOC. Esta consiste em um catálogo eletrônico
definido pela OIT como o acesso à literatura do mundo do trabalho. Ela é produzida e mantida por
uma rede de 28 bibliotecas no mundo, sendo uma delas a biblioteca do escritório da OIT em
Brasília, e cobre todos os aspectos do mundo do trabalho, tais como desenvolvimento econômico e

699
social, direitos humanos e mudanças tecnológicas. A LABORDOC inclui todas as publicações da
OIT desde 1919, sejam elas produzidas em Genebra ou em outros países, publicadas
eletronicamente ou em formato impresso e, em todas as línguas.
Finalmente, a International Labour Review (ILR) é um periódico multidicisplinar voltado
para temas ligados ao trabalho e políticas sociais. O periódico aborda as áreas de conhecimento que
são de interesse da OIT, tais como emprego, mercado de trabalho, treinamento, seguridade social,
proteção social, direito do trabalho, instituições do trabalho e diálogo social. Todos os artigos, desde
a criação da revisa em 1921, estão disponíveis em formato eletrônico na página do Century Project.
A revista também dispõe de diversos artigos que analisam o papel e o impacto da OIT em
determinados países, análises comparativas entre diferentes países em relação à um tópico
especifico, assim como análises de progressos ou vicissitudes de situações enfrentadas pelos
governos ao implantar os padrões internacionais. Estes artigos, são de grande valia em termos
metodológicos para esta pesquisa, uma vez que servem como modelo de abordagem, tanto no
campo teórico como em relação ao uso das fontes, uma vez que utilizam principalmente os
documentos e dados da OIT tratados aqui.

Considerações Finais

Como foi discutido acima, pode-se perceber que a documentação da Organização


Internacional do Trabalho está totalmente organizada e disponível para pesquisas na área de
história, ou qualquer outra área afim. Entretanto, o estudo da Organização ainda é muito pouco
explorado, tanto internacionalmente, quanto no Brasil. Apesar da existência algumas pesquisas,
principalmente na área do direito, o tema ainda é muito pouco explorado, e certamente, tem um
grande potencial para gerar pesquisas no mundo do trabalho ou das relações sociais no Brasil e no
mundo.
Considerando as dificuldades que muitas pesquisas históricas enfrentam com relação à
organização, conservação e interpretação de documentos, a documentação que se encontra
disponível para pesquisa na OIT é, certamente, um campo que oferece bastante facilidade para ser
explorado. Esta organização da documentação mostra o compromisso da OIT com a preservação de
documentos e geração de conhecimento relativo ao mundo do trabalho.
Este trabalho pretende, portanto, contribuir para a divulgação desta importante
documentação histórica, assim como sugerir algumas abordagens básicas de forma a contribuir para
pesquisas futuras na área.

700
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702
Os registros de óbitos em Portugal e nas Minas Gerais: uma breve introdução sobre a
trajetória do documento e sua utilização pela historiografia

Denise Aparecida Sousa Duarte1

Resumo: O intuito do trabalho é apresentar algumas considerações acerca dos registros de óbitos
produzidos no Brasil (mais especificamente nas Minas Gerais) no período em que esses estavam sob
a jurisdição eclesiástica, e tentar compreender sua relação aos assentos portugueses e, em que medida,
esses foram herdeiros do modelo luso. A partir daí, traçamos uma breve história dos registros de
morte, salientamos as informações que esses continham, suas deficiências, dentre outros elementos
cujo reconhecimento é essencial para entender a maneira como esses podem ser utilizados nos estudos
históricos.

Palavras-chave: Registros de óbitos; Minas Gerais; Portugal.

Abstract: The purpose of the paper is to presents some considerations about the registration of deaths
produced in Brazil (more specifically at the state of Minas Gerais) during the period when they
were underneath of ecclesiastical jurisdiction, and to attempt to understand their relationship to
Portuguese seating and, to what extent, these were heirs of the Portuguese standard. From there, we
trace a brief history of death registres, emphasizing the information they contains, their deficiencies,
and other elements whose the recognition is essential to understanding how they can be used in
historical studies.

Keywords: Registration of deaths; Minas Gerais; Portugal.

Introdução
Os registros de óbitos produzidos e sob a guarda da instituição eclesiástica são amplamente
utilizados em estudos que priorizam as análises de grandes séries documentais, geralmente
combinados a outras fontes passíveis de exploração serial, como registros de matrimônio e batismos.
Isolados, os registros de óbitos são considerados de pouca valia para os estudos da história da família
ou das sociedades (em que são comumente utilizados), pois, esses assentos trazem em si poucas
informações sobre os indivíduos nos quais se referem.
Nos estudos sobre as práticas frente à morte, por exemplo, Michel Vovelle delimita dois
aspectos que podem ser ressaltados nas investigações, “a morte vivida”, isto é, o fato concreto da
morte, em seus parâmetros quantitativos, demarcando o peso da mortalidade, que se inscreve “nas
curvas de um gráfico”, como delimita o autor, e a “morte sofrida”, que trata dos discursos
relacionados ao fim da vida, os gestos e os rituais que acompanham a doença, a morte e a concepção
de Além (VOVELLE, 1996, pp.13-14). No caso de estudos que ressaltam essa última perspectiva, os
registros de óbitos são geralmente combinados com os testamentos, uma vez que esses trazem

1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História/UFMG. Bolsita Capes. Email:


ddenao@yahoo.com.br

703
informações mais detalhadas dos anseios dos testadores no fim de sua vida e, no que se refere ao
ritual religioso, os assentos de óbitos vêm somente para confirmar a realização dos procedimentos
pré-determinados pelos testadores.
A escassez de informações sobre o falecido não retira, contudo, a importância desses registros
para as análises da história das sociedades, pois, alguns dos mortos do passado têm apenas esse
assento como inscrição do fim de sua vida, como os mais pobres, as crianças, os escravos que, apesar
de algumas exceções no caso dos pobres e escravos, não podiam testar.
A marca da religião sobre os assentos de óbitos provenientes do passado é evidente, uma vez
que a igreja delimitava os rituais religiosos que deveriam ser realizados pelos mortos, e esses registros
eram os documentos que relatavam a ocorrência (ou não) de certos aspectos das cerimônias, o que
faz com que esses sejam importantes fontes para o estudo da história religiosa. O foco aqui será,
portanto, fazer uma breve análise da história dessa fonte e suas disposições religiosas em Portugal e
no Brasil (mais especificamente o de Minas Gerais), desde aquela que consideramos ser a primeira
determinação da Igreja Católica no território português sobre a elaboração desses assentos no ano de
1538, até a retirada da responsabilidade da jurisdição eclesiástica sobre a feitura e guarda dessa
documentação no Brasil, no ano de 1890.

Os registros paroquiais

Os registros paroquiais (óbitos, casamentos e batismos) são de extrema importância para o


conhecimento das sociedades do passado, como já foi dito. Como o encargo da feitura foi dado à
Igreja Católica – uma vez que a instituição tinha a incumbência de realizar os sacramentos ali
discriminados – esses documentos traziam as informações da vida religiosa dos fiéis, mas também
sobre sua vida familiar, sendo uma importante fonte de informação a esse respeito para os
historiadores.
Assim como descreveu Norberta Amorim, ao propor uma metodologia para a reconstituição
de paróquias portuguesas, os registros paroquiais (de óbitos, casamentos e batismos), com raras
exceções, se tornam sistemáticos a partir da segunda metade do século XVI, principalmente após a
sessão de 1563 do Concílio de Trento. Mas, até o último quartel do século XVII, a autora observa que
a identificação dos indivíduos era escassa, o que prejudicaria a análise dos comportamentos
demográficos, conjuntura que somente ia ser modificada nas últimas décadas do século XVIII, em

704
que os registros de casamentos e batismos passaram a possuir elementos satisfatórios para a
identificação dos indivíduos. No que diz respeito à análise de índices de mortalidade, entretanto,
com variações muito marcadas de diocese para diocese, os registros de óbitos
portugueses, mesmo ao longo do século XVIII, podem sofrer de sub-registro
sistemático da mortalidade infantil e de insuficientes elementos de identificação para
a população adulta (AMORIM, 1991, P.80).

Os registros de óbito (e também os de batismos e matrimônios) permaneceram sob a


responsabilidade da instância religiosa durante um longo período na Europa e nas terras brasileiras.
A demarcação inicial da constituição dessa documentação, contudo, é difícil de ser precisada. No
caso português, as Constituições do Arcebispado de Braga, datada de 1538, previam a elaboração de
um livro por parte de cada igreja do arcebispado para que fossem escritos os registros de batismo e
os de óbitos dos fiéis. O texto ordenava que dentro de trinta dias após a sua publicação todas as igrejas
deveriam ter um livro, no qual seriam assentados
em uma parte dele escrevera o próprio nome do clérigo que batizar a criatura
dizendo. Eu [foam] Cura. E logo o dia mês ano. O nome da criatura que batizar: de
seu pai e mãe sendo havidos por marido e mulher: os nomes dos padrinhos e
madrinhas: lugar onde são moradores (...). Ficará a outro tanto em branco para se
assentar a crisma como se dirá no título seguinte. E é outra parte do dito livro
escreverá o que os que falecerem de sua paróquia: o dia mês ano: e quem deixara por
testamenteiros (ARQUIDIOCESE DE BRAGA, 1538, f.III-IV).

A mesma determinação encontra-se nas Constituições do Arcebispado de Lisboa


(ARQUIDIOCESE DE LISBOA, 1588,f.6), datada de 1588, provavelmente em uma reprodução da
legislação religiosa de Braga que tratava dos batismos.
Aparentemente, essa regulamentação foi cumprida em Portugal. Podemos encontrar
assentos de óbitos mesmo em outras regiões portuguesas, como no ano de 1559 na freguesia de São
João da Santa Cruz de Coimbra, com acréscimos ao que foi definido pelas Constituições.

AUC.
Registro de óbito da filha de Gonçalo Mascarenhas. Livros de registros de óbitos da Freguesia de São João da Cruz.
Paróquia de Santa Cruz, PT/AUC/PAR/CBR17/004/0001 - 1558-1706. COIMBRA. 23 NOV. 1559. f. 6v.2

2 Aos 23 dias do mês de novembro de [15]59faleceu a filha de Gonçalo Mascarenhas. Jaz em Santa Cruz a par da pia
de batizar [...] no cabo dos bancos por faz mês ano.

705
Além do registro da data do falecimento – “aos 23 dias do mês de novembro de [15]59” –
encontramos o nome do pai da falecida, Gonçalo Macharenhas, sendo ela assinalada somente por sua
filha, além do local de seu sepultamento, indicado como na pia de batizar (AUC. Registro de óbito
da filha de Gonçalo Mascarenhas. Livros de registros de óbitos da Freguesia de São João da Cruz.
Paróquia de Santa Cruz, PT/AUC/PAR/CBR17/004/0001 - 1558-1706. COIMBRA. 23 NOV. 1559.
f. 6v). O registro não apresenta, contudo, mais esclarecimentos a respeito da falecida, como sua idade.
Outros assentos encontrados nesse livro seguem o mesmo padrão ao longo do tempo,
como no caso de Manoel, filho de Afonso Jeronimo, falecido aos 11 dias do mês de setembro de 1598
(data posterior ao encerramento do Concílio de Trento), sendo enterrado na mesma igreja. O registro
indica, no entanto, uma observação na inscrição “fez o que pode”, que possivelmente se trata dos
esforços feitos pelos demais para que não viesse a falecer ou mesmo o esforço da parte do falecido
ou de seu pároco quanto ao recebimento dos sacramentos e demais atitudes esperadas frente à morte.
Mais uma vez pelas informações ali contidas, não conseguimos maiores informações sobre o falecido
(AUC. Registro de óbito de Manoel. Livros de registros de óbitos da Freguesia de São João da Cruz.
Paróquia de Santa Cruz, PT/AUC/PAR/CBR17/004/0001 - 1558-1706. COIMBRA. 11 SET. 1598.
f. 24).

AUC. Registro de óbito de Manoel. Livros de registros de óbitos da Freguesia de São João da Cruz. Paróquia de Santa Cruz,
PT/AUC/PAR/CBR17/004/0001 - 1558-1706. COIMBRA. 11 SET. 1598. f. 24.3

O Concílio de Trento não expôs prescrições a respeito dos registros de óbitos. Entre
os cânones do Concílio encontra-se, por exemplo, a disposição para que os registros de matrimônios
fossem feitos pelo pároco4 e, assim como relatou Maria Luiza Marcílio, somente depois de passado
o Concílio que a instituição eclesiástica se deu conta da necessidade de que as mortes dos fiéis
também deveriam ser registradas (MARCÍLIO, 2004, p.14). Tal aspecto não correspondeu, contudo,

3 Setembro 98 – Manoel filho de Domingos Afonso e Jeronima fregueses desta freguesia faleceu aos onze dias de
setembro de 98. Está enterrado nesta igreja. (lateral direita: Manoel, fez o que pode).
4 “Terá o pároco um livro, no qual escreverá os nomes dos esposos, e das testemunhas, e o dia, e o lugar, em que o
matrimônio se contrahe, cujo livro se guardará em seu poder com cuidado” (IGREJA CATOLICA, 1791, pp.235-237).

706
a uma renúncia à elaboração desses registros. A supressão de alguma informação através dos cânones
talvez tenha ocorrido pelo fato de que a feitura desses assentos já fosse algo presente na concepção
dos religiosos, ainda que possamos pensar que em alguns locais a implementação desses livros de
registros fosse menosprezada.
Mas, com o passar do tempo, algumas ocorrências apresentadas nos livros de óbitos
trazem tais assentos aperfeiçoados. Esse foi o caso do registro de Sebastião da Cruz, falecido aos 14
dias de Abril de 1661, descrito como irmão do marquês. Seu registro conta que ele recebeu todos os
sacramentos, foi enterrado na Igreja de São João abaixo do púlpito (AUC. Registro de óbito de
Sebastião da Cruz. Livros de registros de óbitos da Freguesia de São João da Cruz. Paróquia de Santa
Cruz, PT/AUC/PAR/CBR17/004/0001 - 1558-1706. COIMBRA. 14 ABR. 1661. f. 100).

AUC. Registro de óbito de Sebastião da Cruz. Livros de registros de óbitos da Freguesia de São João da Cruz. Paróquia de
Santa Cruz, PT/AUC/PAR/CBR17/004/0001 - 1558-1706. COIMBRA. 14 ABR. 1661. f. 100.5

Na América portuguesa, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, apesar de


estarem submetidas aos cânones do Concílio Tridentino, marca entre seus títulos a necessidade da
elaboração dos três registros paroquiais que assinalavam o recebimento dos sacramentos pelos
colonos. Isso se deve ao fato de que, possivelmente, nessa região a reafirmação desse tema fosse
necessária aos sacerdotes espalhados pelas áreas longínquas dos novos territórios, o que contribuía
para certo relaxamento das suas funções. No caso dos óbitos, o título XLIX a legislação eclesiástica
informava aos religiosos “Como se hão de fazer os assentos dos defuntos”, e indica que nas “igrejas
paroquiais haja um livro, em que se assentem os nomes dos que morrerem, e cada um dos Párocos de
nosso Arcebispado no dia me que o defunto falecer, ou mais tardar dos três primeiros seguintes, faça
no dito livro o assento de seu falecimento” (VIDE, 1853, Livro Quarto, Título XLIX, § 831). E
prossegue orientando como os assentos deveriam ser elaborados:
Aos tantos dias de tal mês, e de tal ano faleceu da vida presente N. Sacerdote
Diácono, ou Subdiácono; ou N. marido, ou mulher de N. ou viúvo, ou viúva de N.,
ou filho, ou filha de N., de lugar de N., freguês desta, ou de tal Igreja, ou forasteiro,
de idade de tantos anos, (se comodamente se puder saber) com todos, ou tal

5 Aos 14 dias de 1661, levou Deus a Sebastião da Cruz estudante irmão do marquês morreu com todos os sacramentos
foi enterrado na igreja de São João por baixo dos púlpitos e por verdade fiz este que assinei era ut supra. O Padre Cura Manoel
da Cruz da Silva.

707
sacramento, ou sem eles: foi sepultado nesta, ou em tal igreja: fez testamento, em
que deixou se dissessem tantas missas por sua alma, e que se fizessem tantos ofícios;
ou morreu ab intestado, ou era notoriamente pobre, e por tanto se lhe fez o enterro
sem se lhe levar esmola (VIDE, 1853, Livro Quarto, Título XLIX, § 831).

A legislação indica ainda que os visitadores deveriam analisar esses livros e se neles os
registros encontrados estavam de acordo com o que foi determinado.
Na prática, em alguns registros constavam elementos que vão além dos indicados pelas
Constituições, de forma a marcar que o sacerdote não foi negligente com o falecido. Isso se deve
provavelmente ao fato de que, através dos testamentos, os homens definiram outros pontos também
considerados importantes para serem cumpridos quando morressem, como ter o corpo envolto em
uma mortalha específica e ser acompanhado durante o cortejo, o que levava esses assentos a portarem
mais informações do que aquelas definidas pela legislação eclesiástica.
Nas Minas Gerais, muitos registros de óbitos possuíam diversas informações sobre o
falecido, como o assento de morte do Coronel Pedro da Fonseca e Magalhães, proveniente da Matriz
de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas, em que o vigário assinalou o nome de seus pais e o
de sua esposa, o recebimento dos sacramentos, sua origem, seu local de residência, o destino de seus
bens e o local do sepultamento na igreja.

APMNSCCA. Registro de óbito do Coronel Pedro da Fonseca de Magalhães. Livro de Registros de óbito da Matriz de Nossa
Senhora da Conceição de Catas Altas 1730, Nov.-1748, Dez. f.24. . Fonte: https://familysearch.org. Acesso em 19 de
outubro de 2016.6

6 Ao primeiro dia do mês de julho de 1731 faleceu ab intestado, e com o sacramento da penitência o Coronel Pedro
da Fonseca de Magalhães natural da freguesia de Santa Maria de Almacave do Bispado de Lamego, filho legítimo de Lourenço
Silva de Magalhães e Dona Brites da Fonseca, e casado com Dona Helena do Prado Cabral meu freguês e assistente em casa de
seu genro Tomé Fernandes do Vale, ficou com seus bens a sua dita mulher e sepultou-se dentro do cruzeiro desta matriz ao pé
do altar de Santo Antônio, de que fiz este assento era ut supra. O Vigário Domingos Luiz da Silva.

708
Mas nem todos os registros continham essa riqueza de detalhes, como no caso do assento de
óbito de Francisco Angola, no qual são priorizados somente os rituais efetuados pelo bem da alma do
escravo, mostrando que seu proprietário cumpriu com as suas obrigações, já que o encargo da morte
de escravos cabia a seus senhores. No assento encontramos informações sobre o recebimento dos
sacramentos e local de sepultamento.

APMNSCCA. Registro de óbito de Francisco Angola. Livro de Registros de óbito da Matriz de Nossa Senhora da Conceição
de Catas Altas 1770, Mar.-1772, Nov. f.5v. . Fonte: https://familysearch.org. Acesso em 19 de outubro de 2016.7

Outros registros apresentam os demais rituais religiosos relativos à morte e que eram
efetuados em favor da alma do morto, como o acompanhamento do corpo até a igreja onde seria
sepultado, como demarcado no registro de óbito de Jose Antonio de Eroza da Matriz de Nossa
Senhora do Pilar de São João Del Rei.

ADNSPSJDR. Registro de óbito de Jose Antonio de Eroza. Livro de Registros de óbito da Matriz de Nossa Senhora do
Pilar de São João Del Rei 1782, Ago.-1786, Jun. s/n . Fonte: https://familysearch.org. Acesso em 19 de outubro de
2016.8

7 Aos seis dias do mês de outubro de 1770 anos faleceu da vida presente com o sacramento da penitência somente
Francisco Angola escravo de Antonio de Freitas Caldas, foi sepultado no adro desta matriz de Nossa Senhora da Conceição de
Catas Altas de que fiz este assento. Era ut supra. O Vigário José Bernardo da Costa.
8 Aos vinte e um de dezembro de 1782 faleceu com todos os sacramentos Jose Antonio de [Eroza] solteiro: foi
encomendado, acompanhado e sepultado dentro desta matriz. Não fez testamento por ser pobre. O Coadjutor Joaquim Pinto da
Silveira.

709
O século XIX, que marca um processo de secularização da morte no Brasil segundo
alguns estudiosos, especialmente devido à proibição de sepultamentos dentro das igrejas e capelas
(baseada na teoria dos miasmas e com isso a consideração por parte da classe médica da presença
prejudicial dos mortos na proximidade dos vivos, assim como apresentado no estudo A morte é uma
festa de João Jose Reis, em que ele narra essa proibição a partir de 1836 na Bahia – o que gerou uma
revolta na região denominada cemiterada (REIS, 1991). Contudo, esse processo não coincide com
um afastamento entre as propostas da Igreja Católica e os costumes frente à morte. Os registros da
segunda metade desse século ainda indicam a presença de muitos rituais religiosos frente à morte, e
mesmo quando eles não foram efetuados, como no caso de Joaquim Pinheiro Lobo, que não recebeu
os sacramentos finais.

AEPNSCOP. Registro de óbito de Joaquim Pinheiro Lobo. Livro de Registros de óbito da Matriz de Nossa Senhora da
Conceição de Ouro Preto 1856, Set.-1881, Fev. s/n . Fonte: https://familysearch.org. Acesso em 19 de outubro de 2016.9

A importância da religião católica e seus ritos pode ser percebida, até mesmo, na indicação de
que os sacramentos não foram recebidos, pois, a ausência desses era algo a ser demarcado, uma vez
que ainda eram considerados indispensáveis para a salvação. Outro ponto pode, ainda, ser destacados
com relação a esses registros provenientes da Igreja Católica no decorrer dos séculos, como certo
descaso que acompanhou a feitura desses documentos, principalmente ligado a determinados
segmentos da sociedade, que por essa razão teriam assentos com mais ou menos informações.
O decreto N. 119-A, de 7 de janeiro de 1890, em seu artigo quarto, extingue o padroado
com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas (Decreto N. 119-A, 7 de Janeiro de 1890. Art.
4ᵒ). A documentação religiosa referente aos óbitos, desse modo, deveria passar para a jurisdição civil,
demarcando a separação entre Estado e Igreja. Segundo Maurício de Aquino, foi esse princípio que
“(...) sustentou as determinações de secularização dos cemitérios, reconhecimento estatal apenas do

9 Aos dez de setembro de 1870 faleceu de repente e por isso sem sacramentos Joaquim Pinheiro Lobo solteiro: foi
encomendado e sepultado na Matriz para constar faço este asento que assino. O Vigário João Ferreira de Carvalho.

710
casamento civil, liberdade de culto desde que respeitadas as leis republicanas, ensino laico na escola
pública, inelegibilidade de cidadãos não alistáveis, proibição de voto aos submetidos a juramento de
obediência, impedimento de subvenção de cultos ou obras religiosas da parte da União ou dos
Estados” (AQUINO, 2012, p.152).
Cabe a pergunta, contudo, se esse processo tem como resultado uma laicização dos
costumes frente à morte, cuja resposta considero ser negativa, pois, ainda que os registros de óbitos
não tenham mais como função principal delimitar o recebimento dos sacramentos finais e rituais
religiosos, não se conformando mais como uma fonte para o estudo da religiosidade de determinado
período, outras fontes indicam que a crença religiosa e a busca pela salvação ainda eram constantes
na vida das populações analisadas.

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711
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ABR. 1661. f. 100.

712
A "Célula Verde" de Espionagem no Brasil: os Integralistas e a Segunda Guerra

Diego Ramos1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo aprofundar as pesquisas em torno da figura do ex-
governador do estado do Rio de Janeiro, Raymundo Delmiriano Padilha. Partindo da sua formação
ainda na Ação Integralista Brasileira, chegaremos à denúncia de espionagem em favor dos nazistas
no período da Segunda Guerra Mundial. Focaremos no caso de espionagem promovida por grupos
alinhados com o Eixo no Brasil, como os integralistas, especificamente sobre o envolvimento da
figura de Raymundo Padilha. Nosso intuito nesta parte do trabalho é buscar novos elementos que
possam esclarecer a participação do representante de Plínio Salgado no Brasil em um esquema de
espionagem promovido por ex-integralistas associados a espiões do III Reich no país. Tais conexões
deram origem a uma sofisticada rede de espionagem a qual denominamos de “Célula Verde”.

Palavras-chave: espionagem – colaboracionismo – integralismo

Abstract: The present work aims to deepen the research around the figure of the former governor of
the state of Rio de Janeiro, Raymundo Delmiriano Padilha. From the formation of the “Ação
Integralista Brasileira”, we will reach the denunciation of espionage in favour of the nazis during the
period of World War II. We focus on the case of espionage promoted by groups aligned with the
Axis in Brazil, as the integralists, specifically about the involvement of the Raymundo Padilha figure.
Our intention in this part of the work is to seek new elements that may clarify the participation of
Plínio Salgado's representative in Brazil in a espionage scheme promoted by “ex-integralistas”
associated with spies of the Third Reich in the country. Such connections have given rise to a
sophisticated espionage network which we call "Green Cell"

Keywords: espionage – collaborationism – integralismo

1. Introdução
Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil lia e ouvia nas transmissões de rádio o desenrolar dos
fatos como uma verdadeira novela. Tal enredo ganhou ares emocionantes quando por aqui,
começavam questionamentos sobre qual lado o Brasil apoiaria, numa inevitável participação indireta
no conflito. Embora durante boa parte dos anos 1930 e início dos anos de 1940 o governo Vargas
optou por uma política de neutralidade, a aproximação com os regimes fascistas europeus era
evidente. Por outro lado, elementos do governo brasileiro com pensamento americanófilo, como
Osvaldo Aranha, manobravam constantemente para que adotássemos uma postura de aproximação
com os Estados Unidos. Na prática, mantínhamos um distanciamento estratégico de ambos os lados,
principalmente pela existência de acordos comerciais tratados tanto com o lado estadunidense (1935)

1 Mestre em História Social – UERJ/FFP. Doutorando pelo PPGHS/UERJ/FFP. Financiamento:


FAPERJ. Email: diegoramos.prof82@gmail.com

713
quanto com o lado alemão (1936).
Percebendo a gradativa passagem do Brasil para o lado dos Aliados, durante os anos de 1940,
formou-se no Brasil um importante e bem articulado grupo de espionagem em favor dos alemães
buscando contrabalancear a disputa. Contando com a força principal de elementos de origem
germânica residentes no Brasil (uns já enraizados há bastante tempo aqui, outros recém-chegados
para auxiliar no esforço de guerra), a rede ainda tinha como elementos colaborativos brasileiros
chamados “germanófilos” que acreditavam que uma aproximação com a Alemanha era mais
vantajosa por diversos motivos. A questão comercial, a admiração estratégica e militar ou
simplesmente uma negação ao imperialismo estadunidense fazia com que alemães residentes aqui e
brasileiros se envolvessem na formação de uma atuante rede de espionagem no país.
O grupo que mais se destacou no apoio aos alemães, devido a sua visão de mundo autoritária,
anticomunista, antiliberal e de caráter fascista foram os ex-membros da extinta Ação Integralista
Brasileira (AIB). Neste artigo buscaremos expor o funcionamento da rede de espionagem montada
pelos alemães e detalhar a participação de alguns brasileiros nesta guerra silenciosa. Nosso principal
foco será a atuação de Raymundo Delmiriano Padilha, homem de confiança do líder Plínio Salgado
no Brasil, e que participou significativamente de um episódio que o marcou para sempre em sua
futura carreira política. No entanto, procuraremos evidenciar ainda o funcionamento da rede de
espionagem que aqui funcionava contando com a participação dos ex-integralistas, a qual nos
referimos como “célula verde”.

2. Espionagem Alemã no Brasil Durante a Segunda Guerra Mundial

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito de proporções inéditas que ocorreu entre os de
1939 e 1945. Para autores como Eric Hobsbawn, tal conflito nada mais é do que uma continuidade
da Primeira Guerra (HOBSBAWN, 2011). Derrotada no conflito, a Alemanha foi talvez a nação que
mais tenha sofrido sanções após 1918. Culpabilizados pelos danos causados na guerra, os alemães se
encontravam em uma situação de caos político, econômico e social. Entendiam que as imposições do
Tratado de Versalhes foram deveras pesadas e possuíam um cunho humilhante e vingativo por parte,
principalmente, da França. É através dessa perspectiva que os alemães vão gestar as suas frustrações
e seu ódio contra os seus oponentes. Por um discurso baseado na dualidade "humilhação/vingança"
os fascistas alcançaram o poder já em 1934 (SILVA, 2011).
Numa Europa dividida entre a manutenção das imposições de Versalhes, os esforços para

714
evitarem um novo conflito e o desejo contido de evitarem a expansão socialista pelos países
fragilizados pelo conflito, as principais lideranças assistiram "apaziguadoramente" a construção de
um Estado fascista tanto na Itália, quanto na Alemanha. Um Estado que dentro de suas bases
ideológicas enxergava no expansionismo e na retomada de territórios perdidos ainda na Primeira
Guerra a solução para parte de seus problemas: a ocupação de territórios que abrigassem populações
germânicas foi um engodo para a conquista do continente e, de acordo com os planos para o futuro,
a formação de um reino "puro" e dominante do resto do mundo. Neste contexto, desenhou-se o a
Segunda Guerra Mundial (HOBSBAWN, 2011).
Com o início do conflito e a expansão dos tentáculos fascistas por praticamente toda Europa,
o projeto do governo alemão agora era o de garantir seus domínios pelos demais territórios do globo.
O Norte da África, a Ásia (contando com o apoio do governo fascista japonês) e a América
(HOBSBAWN, 2011). Para garantir êxito a tal projeto e, ainda promover a manutenção do poderio
sobre os territórios já conquistados, o governo fascista da Alemanha colocou em funcionamento uma
poderosa rede de informação e espionagem. Porém, na prática, a tal rede militar de informações em
princípio teve como atribuição central municiar a marinha e o exército sobre as principais
movimentações comerciais e militares que ocorriam no Oceano Atlântico, principalmente as
atividades desde a Costa Leste dos Estados Unidos, passando pelo Caribe e chegando ao Nordeste
brasileiro, entendido pelo governo alemão como local propício para um futuro desembarque de tropas
no continente americano, ou seja, o nordeste brasileiro serviria como "cabeça de ponte" para agilizar
as manobras militares de invasão vindas do norte da África (MOURA, 1991).
Utilizando como principal fonte a obra "Suástica Sobre o Brasil" de Stanley E. Hilton,
realizando o trabalho de conferência e checagem através da comparação com dados levantados no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,
buscaremos uma tentativa de reconstrução dos acontecimentos discretos, porém efervescentes que
dominaram o âmbito das relações diplomáticas entre Brasil, Estados Unidos e Alemanha e que
veremos, mais adiante, contou com a participação do ex-integralista Raimundo Padilha. O trabalho
de Hilton relata detalhadamente e com farta descrição de fontes primárias coletadas nos arquivos dos
governos estadunidense e brasileiro que durante a guerra grupos de espiões alemães agiram
deliberadamente dentro do território brasileiro, tanto nas grandes cidades como no interior, captando
informações políticas e comerciais, públicas ou secretas e enviando as mesmas através de rádios
transmissores que contactavam diretamente o III Reich alemão. Tais grupos contavam ainda com a
participação intensa de alguns brasileiros, em sua maioria, ligados ao integralismo.
Inicialmente, durante os anos 1930, agentes alemães vieram para o Brasil com dinheiro para
formar uma rede de informações que contava com duas frentes: a cooptação de informantes (sejam

715
eles germânicos, húngaros, portugueses e até mesmo brasileiros simpáticos à causa fascista) que se
infiltravam sempre em atividades ligadas aos ramos econômicos ou de informações e a criação de
bases para transmissão das informações obtidas (aluguel de casas, recebimento de equipamento,
compra de peças, contratação de pessoal de manutenção especializado). Era uma tarefa difícil, pois a
rede de informações crescia a cada dia, o que demandava o cuidado cada vez maior com o sigilo e a
disponibilidade de capitais para bancar toda a empreitada. Manter em funcionamento as estações
demandava um custo relativamente alto, constando na pauta de despesas além dos gastos acima, a
compra do silêncio de pessoas e autoridades (HILTON, 1977).
Uma vez construídas, as estações de radiotransmissão não representavam um facilitador como
aparentemente possa ser. A aparelhagem era cara, requeria manutenção constante e geralmente não
se encontravam peças com facilidade tendo que comumente se importarem componentes da própria
Alemanha. Eram poucos os técnicos confiáveis e vez ou outra eram necessárias mudanças às pressas
quando geravam-se suspeitas sobre as estações.
A principal atividade das estações de radiotransmissão era o envio de informações
privilegiadas referentes a movimentação de navios de carga ou militares, ingleses ou americanos, que
estivessem circulando pela costa brasileira. Outro alvo dos informantes eram as manobras militares
que, com a chegada dos anos de 1940, tornaram-se cada vez mais constantes no nordeste brasileiro,
principalmente operados pelos americanos. As fontes das informações iam basicamente das óbvias
publicações dos jornais brasileiros (consideradas como informações de relevância reduzida devido a
sua publicidade e censura do governo), relatos passados por funcionários dos portos (comprados com
o dinheiro de Berlim) e até mesmo a abertura de empresas de fachada para fazer a interceptação de
informações comerciais privilegiadas referentes aos navios atracados nos portos. Alguns métodos de
coletar informações eram inusitados como o exemplo de um português que por nascer em Goa e falar
hindu tornou-se tradutor para a polícia civil do Distrito Federal. Tal trânsito transformou o informante
numa peça importante, pois ao mesmo tempo em que era próximo de policiais simpáticos ao governo
alemão (garantindo assim algumas informações), conseguia dados de navios ingleses que tinham
tripulantes indianos, sendo uma demonstração da versatilidade dos agentes e da capacidade de
infiltração do Abwehr (HILTON, 1978: 41).
A deterioração das gerações entre Brasil e Alemanha e o amadurecimento da aproximação do
governo brasileiro e o governo americano (MOURA, 1991) fez com que a atividade dos espiões
sofresse um duro golpe. Após a prisão de alguns espiões nos Estados Unidos feitas pelo FBI, a
importância do funcionamento da seção brasileira da inteligência militar aumentou, pois eram
praticamente os únicos a enviarem informações provenientes da América para os alemães. No
entanto, a possibilidade da existência de espiões germânicos em nosso país era cada vez mais cogitada

716
pelas autoridades militares (brasileiras e americanas) e ainda mais divulgada nos meios de
comunicação. Nesse sentido, a observação a elementos suspeitos de colaborarem com "uma suposta
rede de espionagem" era um entrave que dificultaria a ação dos agentes.
Com esse novo quadro surgindo e a rápida aproximação entre Brasil e Estados Unidos, eram
cada vez mais comuns as demonstrações populares de descontentamento com o fascismo. Talvez, o
auge dessas demonstrações foram os protestos pelo afundamento de navios brasileiros por supostos
navios germânicos. Este fato coloca o Brasil na lista dos países antieixistas e o governo brasileiro,
incentivado pelo governo americano inicia suas demonstrações de sentimentos antinazistas pelo
Brasil. Neste cenário o trabalho dos agentes é cada vez mais dificultado. Em contrapartida é crescente
o alistamento voluntário de novos agentes simpáticos a causa alemã, motivados talvez pela
radicalização política que tomou conta do país após a declaração de guerra. Com o fechamento do
cerco em relação à atuação de elementos suspeitos colaboracionistas no Brasil, outros métodos de
envio de informação são experimentados como camuflar dados em fardos de algodão da
movimentação de navios ingleses ou o envio de desenhos dos aeroportos construídos no nordeste
pelos Estados Unidos (HILTON, 1977: 47). Mesmo com toda a dificuldade, é importante ressaltar
que os agentes buscavam sempre diversificar os seus métodos e promoverem grandes esforços em
favor do Eixo, pois a grande maioria trabalhava movida por um sentimento ideológico à causa
fascista. Por isso, além dos tradicionais agentes formados pela inteligência alemã, o conjunto de
informantes contava com marinheiros, militares, policiais, empresários e comerciantes que
colaboravam desde a forma mais complexa de colaboração (como abertura de empresas de fachada)
até formas mínimas como o caso da "Zeiss Ótica" que fotografou recortes de uma revista norte-
americana a fim de abastecer com informações o Reich. Logicamente, com os ânimos se acirrando
entre os Estados Unidos e a Alemanha, a guerra naval no Atlântico era cada vez mais acirrada e o
interesse pelas atividades navais era cada vez maior. A dificuldade imposta pela nova realidade da
guerra fazia com que a Alemanha aumentasse os seus esforços procurando novos agentes. Em
contrapartida, os que se alinhavam ideologicamente ao eixo externavam seu sentimento através de
maior dedicação na colaboração.
A colaboração de elementos de origem germânica no Brasil era relativamente pequena em
relação a quantidade de imigrantes que aqui residiam. Analisando por um lado, temos uma situação
que até mesmo era esperada, ou seja, cidadãos germânicos que direta ou indiretamente poderiam
colaborar com seu antigo país. No entanto, o mais curioso é quando começamos a perceber a
colaboração de brasileiros com os nazistas. Como já vimos a polícia carioca dispunha de membros
que colaboravam com informações que pudessem ajudar os elementos nazistas, como o caso do
português que trocava informações com a polícia ou ainda membros da polícia que removiam

717
processos dos arquivos e repassavam a terceiros. (HILTON, 1977: 79).

3. A Atuação dos Integralistas Durante a Segunda Guerra Mundial

Uma intensa atividade de espionagem, contra-espionagem, propaganda, sabotagem e


colaboracionismo se formou no Brasil fomentado por ex-integralistas que, frustrados pelas últimas
contendas com o governo Vargas e a ilegalidade da AIB, passaram a se dedicar às atividades ilegais
de apoio ao Reich. Não cabe nesse momento novamente um detalhamento do modus operandi dos
agentes, que vez ou outra, pouco se diferenciava das ações dos agentes alemães. Integralistas como
Álvaro da Costa e Souza, Valêncio Wurch Duarte, Túlio Régis do Nascimento, Gerardo Mello
Mourão, Oswaldo Rieffel França e ainda Raimundo Padilha atuaram de maneira significativa na
criação de uma rede que promovia uma verdadeira linha direta o “sigma e a suástica” (HILTON,
1977: 297).
Auxiliando mais diretamente ou com contribuições menores, os ex-integralistas atuaram de
maneira a colaborar com o esforço de guerra nazista. De todos os colaboradores, o mais notório foi
Túlio Régis do Nascimento. Capitão licenciado do exército brasileiro por problemas de saúde, “Túlio
era integralista exaltado e partidário feroz dos regimes totalitários” (HILTON, 1977: 298) e por
diversas vezes seus colegas testemunharam afirmações pró-germânicas vindas dele. Sua simpatia
pelos eixistas pode ser explicada pela sua adesão ao integralismo. Sua participação na rede de
espionagem germanófila foi provavelmente a mais direta e também conhecida dentre os inúmeros
brasileiros que auxiliaram o Reich. A atuação de Nascimento se iniciou de maneira voluntária e seu
papel deveria ser no sentido de conseguir novos brasileiros que atuassem junto ao levante de
informações. Ainda no início de sua carreira como espião, Túlio já havia sido interceptado em uma
missão: uma viagem aos Estados Unidos que o mesmo faria no intuito de captar informações
militares. O processo contra Túlio não foi avante nesse caso, pois o chefe da polícia carioca, Filinto
Muller, um elemento com simpatia germânica, procurou Régis Nascimento para repreendê-lo sobre
o seu vacilo e apenas fez uma oitiva e liberou o suspeito. Não ouve abertura de inquérito por parte de
Muller (HILTON, 1977: 301).
Percebendo a liberdade que possuía Túlio continuou a agir. Outro membro da rede de
informações foi Gerardo Mello Mourão. Jornalista com inspirações notoriamente germânicas,
integralista, tinha uma grande rede de contatos profissionais e consequentemente ideológicos com
membros dos serviços de notícias alemães. A atuação de Gerardo caminhava no mesmo sentido dos

718
outros agentes que era o de captar as informações e repassá-las a um agente alemão que faria a
transmissão das mesmas via rádio. Vale destacar que o manuseio de equipamento de
radiotransmissores na maioria das vezes ficava sobre o controle de alemães e a parte que cabia
geralmente aos brasileiros era a de manutenção do aparato.
A atuação desses agentes já constava da primeira metade dos anos 1940 e o grupo brasileiro
já não encontrava as mesmas condições favoráveis de coleta de informações e repasse das mesmas
para a mão dos eixistas. Embora com participações menores, Oswaldo Rieffel França e Valêncio
Wurch Duarte, (suas missões consistiam em transportar mensagens entre elementos brasileiros), estes
integralistas também compunham o núcleo de espionagem montado pelos ex-partidários do sigma,
uma verdadeira "célula verde" de espionagem nazista no Brasil.
No entanto de todos os integralistas relatados nos autos dos processos, quem mais nos chamou
a atenção foi Raimundo Padilha. Segundo homem da hierarquia integralista e o representante dos
interesses políticos de Plínio Salgado no Brasil. Além disso, Padilha se tornaria elemento político
importante no pós-guerra chegando a ocupar os cargos de deputado federal pelo Partido de
Representação Popular (PRP), pela União Democrática Nacional (UDN) e Aliança Nacional
Renovadora (ARENA), alcançando ainda o posto de governador do estado do Rio de Janeiro durante
a ditadura militar (CALIL, 2001). Por esse motivo, acreditamos ser de suma importância não só o
conhecimento do passado integralista dele que já foi explorado por Alexandre Oliveira em sua
dissertação de mestrado. Entendemos que a colaboração, mesmo que relutante, de Padilha com o eixo
associado ao seu passado integralista e a sua carreira vindoura na política brasileira fez com que ele
se torne uma peça interessante de análise sobre um questionamento que se sobressai neste caso: como
um brasileiro envolvido com acusações mal explicadas de colaboracionismo com as forças nazistas
chegou a ocupar cargos tão importantes em nossa república? E para contribuirmos com tal análise é
importante que possamos entender melhor o que possivelmente ocorreu quando Padilha, pela
primeira vez, foi contactado pelo grupo de Túlio Régis do Nascimento para que o mesmo colaborasse
em seu trabalho quinta-colunista.
De acordo com os testemunhos dados pelos elementos detidos à época e com o próprio
depoimento de Padilha, o esquema de espionagem envolvendo o mesmo tem origem com as ligações
entre Túlio Régis do Nascimento e Gerardo Melo Mourão. A relação entre esses dois elementos tinha
como objetivo inicial dar continuidade com os trabalhos de espionagem e sabotagem que já vinham
sendo realizados por Régis Nascimento. Como já havia ganhado a confiança das células alemãs aqui,
o ex-militar recebeu uma missão mais complexa, onde deveria providenciar o levantamento sobre a
construção de bases americanas no Rio Grande do Norte. Importante notarmos que tanto Régis
Nascimento, quanto Mello Mourão alegaram em seus depoimentos que o seu principal objetivo era

719
dificultar uma possível "conquista militar do Brasil pelos Estados Unidos", deixando claro com essa
fala suas visões nacionalistas naquele momento (HILTON, 1977: 308). O que, no entanto, é assaz
contraditório na medida em que sendo figuras pró-germânicas, certamente esperavam que as forças
alemãs em algum momento fizessem algum tipo de ação semelhante à dos americanos, ou seja, certa
hora os alemães também desembarcariam em solo brasileiro.
Como conterrâneo de Padilha e conhecido de outras datas, Mello Mourão procurou o
representante de Salgado no Brasil a fim de que este conseguisse alguém disposto a realizar a viagem
ao Rio Grande do Norte e tivesse a habilidade necessária para captar as informações. O plano era
relativamente simples de ser executado, embora as informações fossem de grande valor. Assim como
a recompensa oferecida a Padilha, que era de onze contos e quinhentos para as despesas da época e
"um armamento que consistiria em trezentas a mil metralhadoras de mão que seriam colocadas em
qualquer ponto da costa do Brasil que Padilha indicasse e trazidas por submarinos alemães"
(HILTON, 1977: 308 e ULTIMA HORA). Mediante a proposta, Padilha inicialmente não aceita a
oferta, mas, algum tempo depois, volta a procurar Mello Mourão com a opinião mudada. Nossa
hipótese ainda é a de que Padilha teria ido consultar Salgado sobre a permissão para a missão. De
acordo com o plano que foi executado, Padilha enviaria a Natal Carlos Astrogildo Correa, um oficial
da reserva de confiança que traz consigo informações sobre as bases e movimentação das tropas
americanas.
Em seu retorno do Nordeste, Correa entrega a Padilha um relatório detalhado do que consegue
de informações. No entanto, Padilha volta atrás, devolve o dinheiro a Mello Mourão e recusa-se a
mostrar o relatório para Túlio Régis. Até o momento, a pesquisa não consegue identificar o motivo
que levou Padilha a tomar tal decisão. O mais curioso, contudo, é que Padilha em outra oportunidade
deixa Mello Mourão ver o relatório e este, astutamente, copia as informações e repassa-as a Túlio
Régis, o que se configura, em nosso entendimento, algumas observações relevantes. O primeiro ponto
é o fato de que Raimundo Padilha aceitou, mesmo com relutância, a missão. Mesmo consciente de
todas as violações que estava cometendo, o integralista envia seu agente à missão, que retorna com
material produzido. Além disso, chama a atenção uma proposta de Túlio Régis que fez Padilha mudar
de ideia, quando os onze contos são oferecidos e a disposição das metralhadoras para os integralistas.
Na verdade, Padilha não aceita a missão com o primeiro argumento de Túlio, de que seria uma
empreitada para barrar os interesses estadunidenses no Brasil. Talvez Padilha tenha avaliado que o
risco e o custo eram altos e o retorno, relativamente pequeno. Mas a partir do momento em que foi
envolvida a questão da quantia e da disponibilização das armas, Padilha muda de ideia. Outro ponto
de inflexão no discurso de Padilha é que o material não foi entregue a Régis Nascimento. Ora, mas
do que adiantou o segredo em relação ao material se, depois, ele foi passado à Mello Mourão que o

720
repassou a Régis Nascimento? Ao fim e ao cabo, o material alcançou seu destino final. E sem
nenhuma contrapartida aparente, pois de acordo com Hilton, nos autos não constam detalhes sobre.
O desenrolar dos acontecimentos nos levam ao enfraquecimento das redes de espionagem
criadas no Brasil. Com a ajuda dos órgãos de inteligência dos Estados Unidos, agora aliados oficiais
do Brasil, um a um os espiões vão sendo identificados e presos o que, em alguns casos, leva a delações
provocando o desmantelamento das redes. Além disso, o governo brasileiro após assumir sua posição
na guerra começa a fiscalizar melhor a atuação de membros do governo que agiam em favor do eixo.
O desmantelamento da rede formada por Túlio Régis era cada vez mais iminente, com
membros da polícia vigiando os elementos e prontos para agirem no sentido de prender a célula espiã.
Os planos para o afundamento de um navio alemão preso pelas autoridades brasileiras deixou o grupo
ainda mais vulnerável, pois era necessária uma constante exposição dos agentes para a execução do
plano, que nunca chegou a ser executado. Gerardo Mello Mourão e Túlio Régis Nascimento foram
presos. Com isso foi mais fácil o desmonte do restante do grupo. Durante sua detenção, Raimundo
Padilha explicou que aceitou a proposta de Régis Nascimento e Mello Mourão para estar a par dos
planos dos elementos e, com isso poderia prevenir todos os integralistas sobre as intenções da dupla.
Com esta confusa explicação Raimundo Padilha foi liberado após seu depoimento por falta de provas.
Já Túlio Régis do Nascimento e Gerardo Mello Mourão receberiam tratamento diferenciado, pois
tendo uma quantidade muito maior de provas de sua atuação em favor do eixo e tendo uma rede de
contatos menos influente, não conseguem escapar das acusações e amarguraram anos de prisão e
processos penais HILTON, 1977: 310).
Certamente o depoimento de Padilha contendo a sua versão da história ficou bastante confuso.
Uma peça mínima do quebra cabeça pode estar no depoimento daquele que perpassou por todo o
processo como um coadjuvante, o tenente Carlos Astrogildo Correa. O tenente Correa foi o enviado
de Padilha ao Rio Grande do Norte e é o agente que traz consigo as informações sobre a
movimentação americana na região. No entanto o que quase passou despercebido foi o fato de Carlos
Astrogildo ter sido enviado ao nordeste depois de Plínio Salgado ter oferecido seus serviços a Berlim.
Ou seja, de acordo com Hilton (1977: 312) Padilha precisaria das informações de Correa para que
"pudesse escrever ao senhor Plínio Salgado a fim de esclarecer ao mesmo sobre o que se passava no
Brasil", mostrando assim um interesse maior de Padilha do que os onze contos e as trezentas
metralhadoras. Num exercício de especulação (devido ao estágio atual da pesquisa) o que talvez possa
ter feito Padilha mudar de ideia após a primeira proposta de Túlio Régis não estaria ligado ao que o
militar oferecia em troca, mas sim estivesse ligado a uma ordem de Plínio Salgado.
Todos os elementos citados anteriormente contavam algumas características comuns. Em
algum momento da vida estiveram ingressados nas fileiras integralistas. Não é abusivo concluirmos

721
que suas afinidades ideológicas, além de semelhantes, convergiam para a defesa do autoritarismo
fascista. Mas o que os notabilizou como eficientes informantes foi em primeiro lugar a sua admiração
germânica, e todo o ideário fascista quer era carregado com ela e, principalmente, a sua grande rede
de contatos, não só com elementos alemães, mas também com pessoas influentes em postos
profissionais nas empresas comerciais e jornalísticas privadas e também no funcionalismo público,
como o caso da polícia. Importante ressaltarmos que sem essas ferramentas possíveis através da rede
de contatos o trabalho dos espiões ficaria muito mais difícil. Por outro lado, percebemos o quanto foi
importante a participação destes “agentes indiretos e/ou anônimos”. Em certo sentido, seja motivado
por dinheiro ou ideologia, centenas desses agentes cooperaram no sentido de ajudar a Alemanha e
que, diretamente, prejudicaram diretamente o nosso esforço de guerra.

4. Os Desdobramentos do Fim da "Célula Verde"

No decorrer do ano de 1942 a célula integralista de cooperação com os nazistas já havia sido
desmantelada. As ações conjuntas entre a inteligência americana e os órgãos de polícia brasileiros
estavam cada vez mais ativos nas interceptações dos contatos entre elementos germânicos e
brasileiros com o Abwehr. Embora ainda resistentes com o funcionamento precário, cada vez menos
informações chegavam até Berlim. A intensidade da repressão a tais atividades ocorre após a entrada
do Brasil na guerra. Com a disseminação das notícias de interceptações de mensagem, localização de
radiotransmissores e prisão de colaboradores, um certo clima de histeria tomou conta da população a
partir da publicização das ações policiais. Muito comum também foram os boatos em torno de
possíveis atividades nazistas no Brasil como, por exemplo, o abastecimento de submarinos alemães
por ribeirinhos da costa do Pará (HILTON, 1977).
Enquanto isso os principais integralistas envolvidos no esquema de colaboração com os
nazistas vinham obtendo suas punições. Túlio Régis do Nascimento e Gerardo Mello Mourão foram
considerados inicialmente culpados e mantidos presos até seus julgamentos, onde foram condenados
a trinta anos cada um. Seus informantes, os também integralistas, Valêncio Duarte, Álvaro da Costa
e Souza e Oswaldo França receberam vinte e cinco anos de punição cada um. Com o fim da guerra e
a chegada dos anos de 1950 essas punições foram revertidas e somente Túlio Régis ainda é processado
levando o seu caso ao Supremo Tribunal Federal e conquistando sua absolvição (HILTON, 1977: 311
e ULTIMA HORA).
As prisões levavam a depoimentos, delações, descobertas de provas que colocavam outros

722
elementos em situações comprometedoras como inclusive elementos ligados a alta cúpula do governo
brasileiro que abastecia alguns espiões alemães com informações secretas. Outras acusações
versavam ainda sobre a venda de facilitações de fugas e o apagamento de provas, sendo que nestes
casos é difícil identificarmos se o interesse era apenas financeiro ou ideológico.
Curiosamente, ao contrário deles, Raimundo Padilha foi solto após prestar esclarecimentos
por falta de provas (HILTON, 1977: 311).

5. Referências Bibliográficas

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723
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

724
A Deficiência Na Transição Política Brasileira:
Do Autoritarismo A Uma Democracia Plena?

Dinoráh Lopes Rubim Almeida1

Resumo: A presente pesquisa, procura constatar que a transição política da ditadura militar brasileira
para a “democracia civil”, ocorrida oficialmente em 1985, foi marcada por uma política de
conciliação. Esse trabalho propõe discutir o processo da transição política negociada iniciada no
governo autoritário do General Ernesto Geisel e concretizada no governo do General João Baptista
Figueiredo.
Verificamos que o povo brasileiro passou pela transição, com um certo desencanto, pois a eleição
presidencial foi indireta, o presidente eleito Tancredo Neves, morreu antes de assumir, e o governo
foi entregue ao vice José Sarney, que era um preposto do regime militar. Não houve uma ruptura,
apenas uma passagem de poder consensual e pactuada entre as elites.

Palavras-chave: Autoritarismo. Democracia. Transição política.

Abstract: This research seeks to verify that the political transition of the Brazilian military
dictatorship to "civil democracy", officially held in 1985, was marked by a policy of conciliation.
This paper proposes to discuss the whole process of the negotiated political transition initiated in the
authoritarian government of General Ernesto Geisel and concretized in the government of General
João Baptista Figueiredo.
We verified that the Brazilian people went through the transition, with a certain disenchantment,
because the presidential election was indirect, the president-elect Tancredo Neves, died before
assuming, and the government was delivered to the deputy José Sarney, who was connected to of the
military regime. There was no rupture, only a passage of consensual and agreed power among the
elites.

Keywords: Authoritarianism. Democracy. Political transition.

1. O AUTORITARISMO

A ditadura militar que governou o Brasil por 21 anos (1964-1985) era regida por um governo
autoritário, que através mecanismos como os Atos Institucionais (AIs), destacando-se o AI-52, atuava

1 Doutoranda do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES). Orientador: Professor Dr. Pedro Ernesto Fagundes. E-mail: dinorahrubim@yahoo.com.br

2 Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva,
foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um
elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros, concedendo amplos poderes ao Executivo Federal, limitando os poderes
legislativo e judiciário, além de restringir vários direitos civis. Segundo seu texto, são mantidas a Constituição de 24 de
janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e
municípios sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo
de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm.>. Acesso em: 20 jul. 2017;
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5. Acesso em: 20 jul. 2017. Texto completo do AI-5 ver em:

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através de censura, prisões, fim do habeas corpus, cassações de mandatos, suspensão das eleições
diretas pra Presidente, governadores e prefeitos de capitais, criação do bipartidarismo (ARENA e
MDB), fechamento de associações sindicais, estudantis, entre outras medidas. O golpe civil militar
de 1964 (orquestrado pelos militares e diversos segmentos sociais), que retirou o presidente João
Goulart do poder, foi aplicado sob a desculpa de salvar o país da ameaça comunista, e manter a ordem.
Ao assumirem o poder, os militares deixaram claro que se alguém se manifestasse contra o governo,
poderia ser preso e interrogado pelos órgãos de repressão do governo. E muitas vezes, esses
interrogatórios acabavam em mortes ou desaparecimentos.
Muitas são as análises sobre o regime constituído pós-1964, porém entendemos que
autoritarismo seja a forma mais adequada de conceituá-lo. Observemos as definições de regimes
autoritários de Juan Linz:
Sistemas políticos com: pluralismo limitado, não responsável, sem ideologia
orientadora, mas com mentalidades distintas, sem mobilização política extensiva ou
intensiva, exceto em alguns pontos de seu desenvolvimento, e no qual um líder ou,
ocasionalmente um pequeno grupo exerce o poder dentro de limites formalmente
mal definidos, mas, na realidade, bem previsíveis (1980, p. 121).

No entanto, para aprimorar sua definição, Linz denomina de “regimes autoritários


burocrático-militares” para o caso do Brasil:
Regimes autoritários, onde uma coalização, na qual oficiais das Forças Armadas e
burocratas ocupam uma posição predominante, mas não detêm poder exclusivo,
estabelece o controle do governo excluindo ou incluindo outros grupos sem se
comprometer com uma ideologia específica, agindo pragmaticamente dentro dos
limites se sua mentalidade burocrática e sem criar ou permitir um partido único de
massa desempenhasse um papel dominante. (LINZ, 1980, p.149)

Não resta dúvida que o Brasil viveu entre 1964 a 1985 uma ditadura militar e
consequentemente autoritária; embora seja inegável a participação de burocratas e altos executivos
civis, é conhecido que a última palavra, em quaisquer assuntos governamentais, era dada pela alta
cúpula militar, por isso usamos a definição de “ditatura militar”, “regime ditatorial” ou “regime de
governo autoritário”. Eles, os militares, decidiam em última instância, os rumos educacional, social,
político e econômico da nação. Tanto que no processo de transição política brasileira, notamos o
rígido controle dos milicos até os mesmos passarem o poder para os civis e retornarem aos quartéis.

FICO, Carlos. Além do Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e da Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004,
p. 382-385

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2. A TRANSIÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA: CONCILIATÓRIA E SEM RUPTURAS

No caso brasileiro, o processo transitório foi desencadeando-se de forma lenta e gradual,


havendo avanços e recuos. Porém, a transição intensificou-se quando o presidente Geisel afastou o
Ministro do Exército, Silvio Frota (1977), que pretendia dar um golpe político em Geisel, e colocou
essa pasta sob a autoridade da Presidência da República; essa atitude era uma afronta a Linha Dura
(ala conservadora dos militares, que queria enrijecer o regime); além do mais, foi o único presidente
militar que conseguiu fazer o seu sucessor, o General João Baptista Figueiredo, que era seu ministro-
chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), mesmo contra toda a oposição da Linha Dura. Era
nítido o racha dentro das Forças Armadas, mesmo com o pedido do presidente para amenizarem as
torturas nos interrogatórios feitos pelos órgãos de segurança, houve duas mortes impactantes e de
grande repercussão popular, no DOI-CODI de São Paulo: o jornalista Vladmir Herzog (1975) e o
operário Manuel Fiel Filho (1976). O clima entre o governo Castelista (ala moderada dos militares)
de Geisel e a Linha Dura ficou bem turbulento, o presidente Geisel, que já havia solicitado ao
comando do II Exército que controlasse a atitude dos seus agentes, chegou à conclusão que essas
mortes eram um recado da Linha dura contra o processo de abertura. O Presidente resolveu agir e
demitiu o general Comandante do II Exército Ednardo D’Avila Mello em janeiro de 1976, procurando
amenizar os efeitos da repressão, atenuando suas ações.
Sem dúvidas, Geisel enfrentou todos os riscos dessa ruptura com os militares da Linha Dura
e levou o governo rumo a abertura totalmente conduzida e negociada com os civis, que seria
concretizado na administração do seu sucessor. Nessa altura a distensão não era mais sinônimo de
liberalização e institucionalização como em 1974 no início de seu mandato, mas sim de abertura
política consensuada entre os militares e a elite burocrata-econômica do país.
Para Motta (2009), o tema da conciliação pode ser explorado para caracterizar a cultura
política brasileira, mas não deve se restringir somente a ela:

(...) O enfoque pluralista não é incompatível com o uso de cultura política no


singular, aplicada a grupos nacionais. (...) Um tema que poderia ser explorado é o da
conciliação, para muitos traço marcante da cultura brasileira de modo geral, não
dizendo respeito apenas à política. (...) Evidentemente, a presença de tradição
conciliadora não basta para caracterizar uma cultura política. No caso brasileiro, há
outros temas a explorar, como os laços frágeis entre povo e cidadania, discussão já
clássica no pensamento político. Seria o caso de restringir a explicação à ação nefasta
das elites, responsáveis por fechar aos setores subalternos os espaços de participação
política, ou não haveria um pouco de auto-exclusão também? Outra questão a
merecer reflexões: a modesta participação popular na política institucional tem sido
pontuada por explosões de fúria e momentos de mobilização. (MOTTA, 2009: 29;
31-32)

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Defendemos que a distensão proposta pelo governo Geisel no início de seu mandato, tinha
caráter liberalizante, porém, não incluía inicialmente o projeto de redemocratização; a verdadeira
intenção era institucionalizar o regime. Não podemos cair no erro de exaltar a imagem de Geisel
como o herói da transição e abertura política, isso seria generalizar todo o seu governo e jogar no
esquecimento seus atos autoritários, como: cassação de mandatos, fechamento do Congresso
Nacional, censura, prisões e desaparecimento de pessoas, vigilância e repressão pelos órgãos ligados
ao Serviço Nacional de Informação (SNI), exercício do AI-5 (que só foi extinto próximo ao final do
seu mandato, em dezembro de 1978), a Lei Falcão, o Pacote de Abril (essas duas últimas em reação
a expressiva votação do MDB nas eleições de 1974). Portanto, seria negligente ignorar todos os atos
autoritários de Geisel e associá-lo apenas a abertura política.
Quando olhamos para alguns dados isoladamente, o saldo repressivo do governo
Geisel não autoriza falar em democracia ou mesmo em distensão: durante seu
governo houve 39 opositores desaparecidos e 42 mortos pela repressão. A censura à
imprensa, às artes e às diversões foi amplamente utilizada, abrandando-se somente
em meados de 1976; o Congresso foi fechado durante 15 dias. (NAPOLITANO,
2016, p.234)

O autor prossegue em seu comentário:

O processo de “distensão” e “abertura” era, sobretudo, um projeto de


institucionalização do regime. Como estadista de visão estratégica, Geisel sabia que
o aparato policialesco de repressão era insuficiente e arriscado para tutelar o sistema
político, sob o risco do governo isolar-se dele. Efetivamente, há uma agenda de
abertura, quando muito, só após 1977. Até então “abertura”, dentro da concepção
palaciana, era sinônimo de institucionalização da exceção, descompressão pontual,
restrita e tática e projeto estratégico de retirada para os quartéis sine die. A agenda
de transição iniciada em 1977 se reafirma em 1978, seguida da indicação oficial de
João Figueiredo para Presidência. Ou seja, a partir de então, já com a pressão das
ruas e do próprio sistema político (nesta ordem), é que a abertura se transforma em
um projeto de transição democrática, ainda que de longo prazo. (NAPOLITANO,
2016, p.234)

Em 1975, Geisel discursou em cadeia nacional, em resposta aos resultados eleitorais de 1974,
onde o MDB conseguiu expressiva votação: Senado Federal: MDB: 16 cadeiras; ARENA: 06
cadeiras; quanto a Câmara dos Deputados Federais, é perceptível um equilíbrio de parlamentares:
MDB:160 deputados; ARENA: 204 deputados. O resultado das eleições parlamentares de 1974,
revela quão grande foi o susto do governo. Diante disso, o governo precisava reagir:

Em 1º de agosto de 1975, o presidente foi à TV, em cadeia nacional, e proferiu o


discurso conhecido como “pá de cal”, redefinindo o sentido da “distensão”. Nele,
rejeitou o fim do AI-5, a revogação do Decreto-Lei nº 477, a revisão da Lei de
Segurança Nacional, a promulgação de uma anistia e redução das prerrogativas do
poder Executivo. (NAPOLITANO, 2016, p.247)

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Portanto, ficou nítido nesse pronunciamento de Geisel, uma parada com o tímido movimento
de distensão iniciado em 1974, ao rejeitar a revogação do Decreto nº 477, o fim do AI-5 e negar a
promulgação de uma lei de anistia, bem como a redução de algumas prerrogativas do Executivo ou
abrandar a Lei de Segurança Nacional. Sem dúvida, tais medidas demonstraram uma resposta do
governo aos resultados das urnas de 1974. A abertura poderia ocorrer, desde que controlada pelo
governo, que buscava uma distensão lenta e gradual, de acordo com seus interesses.
Dois exemplos de vitória da política de conciliação e a condução do processo de abertura pelos
militares, pode ser observado na promulgação da Lei de Anistia em agosto de 1979, que apesar de
toda a mobilização popular através de várias entidades sociais (chamada de resistência democrática),
o governo anistiou todos os torturadores. Não era a lei idealizada pelos movimentos sociais, já que
não contemplava os anseios sociais, pois isentava os militares dos crimes contra os direitos humanos,
e deixava de fora vários presos políticos, enquadrados em “crimes de sangue”. Sairiam impunes os
torturadores e seus superiores, nenhum militar seria julgado por crimes contra os direitos humanos;
era a garantia da salvaguarda que tanto os militares queriam no processo de abertura.
Assinada pelo último general-presidente, João Figueiredo, a lei [de anistia] foi
antecedida por uma campanha popular que se iniciou em 1975, a partir do reclamo
de mulheres e mães de exilados. A campanha assumiu um tom esperançoso, alastrou-
se pelo Brasil sob o lema “anistia ampla, geral e irrestrita”, mas o governo militar
via a questão sob outro ponto de vista: no contexto da abertura, a anistia deveria
servir para eximir os militares de responsabilidades quanto à repressão e permitir a
volta de lideranças políticas que, no Brasil, criariam novos partidos, enfraquecendo
o até então único partido de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
O projeto de lei foi enviado ao Congresso Nacional em 1979 e as negociações
parlamentares resultaram em um tipo de pacto, segundo o qual a anistia aos exilados
políticos era concedida em troca do perdão aos crimes da repressão. (FICO, 2013,
p.246)

Outros exemplo da vitória da abertura controlada pelos castrenses foi quando a campanha
“Diretas Já”, foi derrotada na votação parlamentar de 25 de abril de 1984, ou seja, a PEC nº 05/1983,
chamada de Emenda Dante de Oliveira, não passou, e as eleições presidenciais de 1985 seriam
indiretas. Portanto, todo o longínquo processo de abertura ocorreu no tempo e de acordo com o projeto
dos militares.
Falando sobre o processo de abertura e transição política, não podemos deixar de ressaltar a
discussão levantada pelo historiador Carlos Fico, e que concordamos e sustentamos, de que no Brasil
não se constituiu uma memória traumática a respeito da ditadura militar; e sim uma memória de
frustração, em especial por parte da esquerda, por não ter havido uma ruptura política e as devidas
punições aos agentes da repressão e aos seus superiores.

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O trauma diante da violência brutal do regime militar marca a transição argentina.
No caso do Brasil, os traços fundamentais de sua transição são a impunidade e a
frustração causadas pela ausência de julgamento dos militares e de ruptura com o
passado – que, por assim dizer, tornaram a transição inconclusa, em função da
conciliabilidade das elites políticas. Foi esse componente de frustração – diante da
anistia que perdoou os militares, da campanha pelas eleições diretas que fracassou,
enfim, da constatação de que os militares conduziram a transição como queriam –
que, de algum modo, estimulou as tímidas iniciativas de justiça de transição no Brasil
a partir da chegada ao poder dos governos presididos por pessoas que combateram a
ditadura, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
(FICO, 2013, p.248)

A justiça de transição que demorou 10 anos após o fim da ditadura, para timidamente iniciar-
se no Brasil, engloba as seguintes medidas: 1. A concessão de atestados de óbito para os mortos e
desaparecidos políticos (Lei nº 9.1403, de 04 de dezembro de 1995). 2. A abertura dos acervos
da ditadura militar (em consonância com a Lei de acesso à informação, Lei nº 12.5274, de 18 de
novembro de 2011, e o Decreto nº 7.7245, de 16 de maio de 2012); 3. A criação da Comissão da
Verdade (Lei nº 12.5286, de 18 de novembro de 2011), instalada oficialmente em 16 de maio de
2012, no governo da presidenta Dilma Vana Rousseff, com a finalidade de examinar e esclarecer as
graves violações de direitos humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de
outubro de 1988, data da promulgação da sétima Constituição brasileira, sem nenhum caráter
punitivo.
O Relatório Final da Comissão Nacional de Verdade 7 , foi entregue à Presidente Dilma
Rousseff em 10 de dezembro de 2014, dando por terminado os trabalhos dessa Comissão. No entanto,
várias Comissões da Verdade Estaduais e Universitárias continuam com seus trabalhos em aberto.
Portanto, o que chamamos de “justiça de transição”, aconteceu tardiamente do Brasil; e se
comparado a países vizinhos, como a Argentina, não percebemos grande interesse da sociedade
brasileira quanto a justiça de transição. Essa latência do povo brasileiro em relação a um passado tão
recente da sua história e que ainda hoje possui milhares de pessoas que viveram tal época, cria uma
questão intrigante: Por que, a maioria dos cidadãos não se envolvem ou dão importância a tão

3 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9140.htm>. Acesso em: 29 set. 2017.


4 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em: 29
set. 2017.
5 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Decreto/D7724.htm>. Acesso em:
29 set. 2017.
6 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm>. Acesso em: 29
set. 2017.
7 Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-
cnv> Acesso em: 29 set. 2017.

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relevante assunto de sua história? Por que a maioria da geração, que viveu esse período não se
envolve com o processo de justiça de transição? Por que a grande maioria da nova geração, que não
foi coetânea dessa época, não se interessa pelo tema?
Tal desinteresse pode ser motivado por alguns fatores, como: pelo menor uso de violência
explícita na ditadura brasileira (não sugerimos com isso, a ideia ridícula de que não houve violência);
pela assídua utilização da censura e da divulgação de propagandas que mostravam uma boa imagem
do governo militar, expressando segurança, ordem e desenvolvimento econômico e social. Também
o número de mortos e desaparecidos políticos foi extremamente inferior aos argentinos, considerada
a ditadura mais sanguinária da América. Na Argentina conta-se cerca de 30 mil mortos e
desaparecidos durante a ditadura militar (1976-1983), além das centenas dos filhos que foram tirados
de suas mães e entregues para adoção. No Brasil, segundo a Comissão Nacional da Verdade, foram
434 mortos e desaparecidos. Comparando a extensão da ditadura: 8 anos na Argentina e 21 anos no
Brasil; e o número populacional, que vem seguindo a média de o Brasil ter um índice demográfico
quatro vezes maior que a Argentina; esse número torna-se alarmante.
Enfatizo, porém, que não queremos com essa colocação causar a impressão de uma
minimização ou falta de reconhecimento do sofrimento dos torturados, as vidas perdidas em brutos
assassinatos e a dor dos familiares brasileiros. Procuramos apenas enfatizar que o impacto da
violência na Argentina foi mais forte e visível a sociedade, devido ao expressivo volume dos mortos
e desaparecidos, que acabou por comover a população que se voltou para uma justiça de transição
logo a após a ruptura política argentina, que teve como marco a Guerra das Malvinas, quando o
governo militar perdeu a posse das ilhas para o Reino Unido, em 1982, vindo a enfraquecer os
militares, que caíram do poder em 1983. Uma caso de ruptura nítida, ao contrário do Brasil, onde os
militares controlaram e passaram o poder aos civis, com acordos de isenção de seus crimes contra os
direitos humanos.
Percebemos que os militares brasileiros esforçavam-se para ocultar a repressão, procurando
alienar a grande maioria da população brasileira. Enquanto os assassinatos de populares em confronto
com a força de repressão do governo argentino, aconteciam até nas praças públicas, além do crescente
número de desaparecidos; no Brasil, as torturas e os assassinatos ocorriam nos porões da ditadura.
A luta armada na Argentina foi muito intensa e os confrontos dos militantes contra o governo
militar eram visíveis, enquanto no Brasil, ocorreu o contrário, o movimento da luta armada não teve
a proporção dos argentinos e eram, ao máximo, abafados pela censura. A propaganda de subversão e
de anticomunismo propagada pelo governo em torno dos contrários ao regime militar, era intensa,
levando parte da população a apoiar o governo e denunciar os “desordeiros” e os “subversivos”. Sem
tirar o mérito dos que decidiram pegar em armas para lutar contrapor-se ao governo, a conclusão que

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podemos chegar é de que a luta armada no Brasil não conseguiu atingir o seu objetivo de derrubar o
governo, e acabou por se tornar um meio de justificação dos militares para a permanência no poder,
a fim de manter a segurança e a ordem, protegendo o país da ameaça comunista.
Também devemos salientar que o Brasil logo após a volta dos militares aos quartéis e do poder
ser entregue de forma controlada e pacífica aos civis, o país viveu um período de silêncio, ao contrário
da Argentina, que sofreu uma drástica ruptura, seguida de julgamento e condenação de diversos
militares envolvidos no período ditatorial. As testemunhas falavam e eram ouvidas, criminosos contra
os direitos humanos, eram punidos. No Brasil, a justiça de transição serviu de esclarecimento e em
nenhum momento, houve qualquer punição aos crimes contra a violação dos direitos humanos.
Motivo de frustração por parte de familiares e alguns esquerdistas; mas sem acompanhamento de uma
indignação nacional.

3 A DEMOCRACIA PLENA?

É notório uma carência latente de uma democracia plena que atenda aos anseios da sociedade
brasileira. Porém, devemos ressaltar que a redemocratização é um processo, que requer mudanças na
sociedade:
A construção da democracia, não é uma decorrência natural do fim do autoritarismo
(...) as sociedades que saíram da ditadura e querem ser democráticas têm que se
transformar em alguns ou em vários sentidos para chegarem a ser democracias
modernas. (MOISÉS, 1990, p.119)

É indiscutível, porém, que a partir de 1978, começamos a notar uma política de distensão do
governo Geisel, porém, distensão está ligado a liberalização e não democratização, conforme a
citação abaixo:
A distensão proposta pelo presidente Geisel incluía várias medidas de liberalização,
mas a democratização que o país experimentou foi além, em extensão e rapidez, da
preconizada pelos seus mentores. Essa diferenciação entre liberalização e
democratização é importante e, nesse sentido, a contribuição de O’Donnell e
Schmitter é fundamental. Liberalização seria a proteção de indivíduos e grupos
contra o arbítrio do Estado ou de outros grupos. Como dizem aqueles autores, no
nível individual, essas garantias incluem elementos clássicos da tradição liberal: o
habeas-corpus; a inviolabilidade residencial e da correspondência; o direito de
defesa num tribunal justo e imparcial, de acordo com leis pré-estabelecidas; as
liberdades de imprensa, de expressão, de petição, de associação e assim por diante.
No nível grupar, esses direitos cobrem ainda garantias como as de que não haverá
punição contra expressões de dissídio e dissensão coletivos em relação a políticas
governamentais. A democratização mais elementar, por sua vez, implica na
possibilidade real de transferência de poder. As duas não são iguais: O México é um

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exemplo extremo, onde encontramos, ao longo de décadas, ampla liberalização, mas
uma democracia quase nula. A democratização, assim como a liberalização, são um
contínuo, ou seja, variam: no Brasil, a democratização é obviamente incompleta no
sentido de que a cidadania plena, conceito básico da democracia, está longe de ser
atingida por dezenas de milhões de brasileiros. (SOARES, 1995, p. 13)

Em nosso país, verificamos uma passagem da ditadura militar para um governo civil, através
de uma transição que foi negociada pelas elites do país. Diante disso, observamos que todo o sistema
posterior se organizou para atender aos anseios políticos e econômicos dessa elite, em detrimento aos
interesses e necessidades do povo. É notório que a democracia brasileira é incompleta, pois a
cidadania plena está longe de ser atingida por milhões de brasileiros. Podemos constatar, que a cultura
política autoritária e conciliatória ainda é a protagonista de nossa história política.
[...] foi uma transição política. Os líderes da oposição sabiam que só podiam passar
a um regime aberto com a cooperação dos militares. Poderia haver futuras tentativas
de reabrir a questão, especialmente por parte daqueles mais próximos das vítimas da
tortura. Mas por enquanto os políticos brasileiros receberam uma lição, para o
melhor ou o pior, sobre a arte da “conciliação.” (SKIDMORE, 1991, p.426)

A transição de poder dos militares para os civis, foi articulada para que ocorresse de maneira
pacífica, resultando numa negociação repleta de garantias e salvaguardas. A ideia de uma aliança para
uma abertura negociada e pacífica com os civis, desenrolou-se ao longo do governo do general Geisel,
surgindo a chamada “transição democrática” brasileira. Importante ressaltar que quando o processo
de transição política se encerra, com a posse de José Sarney em 1985 (devido a morte do presidente
eleito indiretamente de Tancredo Neves, anunciada em 21 de abril de 1985), não se inicia aí de
imediato a democracia tão sonhada pelos brasileiros. Para que isso aconteça depende de um processo
de mudança na cultura política, algo que obviamente trará profundas mudanças sociais.
Engana-se quem defende que essa redemocratização acontece de forma automática, isso não
passa de uma utopia. Percebemos que pode haver transição de poderes, sem haver uma plena e real
democratização do regime do governo, seja de ditadura militar para ditadura civil, ou de ditadura
militar para governos civis.
Constatamos que na transição política da ditadura militar brasileira para a “democracia civil”,
ocorrida oficialmente em 1985, é nítida a carência latente de uma democracia plena que atenda aos
anseios da sociedade. Em nosso país, verificamos uma passagem da ditadura militar para a
democracia civil, através de uma transição que foi negociada pelas elites do país. Diante disso,
observamos que todo o sistema posterior se organizou para atender aos anseios políticos e econômicos
dessa elite.
Segundo Safatle (2014, p. 36) “na contramão das democracias, o Brasil ignora seus crimes
contra a humanidade amparado em Lei de Anistia ilegal e ilegítima”. E ao analisarmos essa questão,

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esse fato antidemocrático agrava-se devido a Lei de Anistia no Brasil, ser perpetuada pela
“incapacidade de construir uma repulsa coletiva visível à ditadura”.
É obvio que a democracia brasileira é incompleta, pois a cidadania plena está longe de ser
atingida por milhões de brasileiros. Podemos constatar, que a cultura política autoritária e
conciliatória ainda é a protagonista de nossa história política. Para se atingir a democracia moderna,
é necessário que a sociedade passe por uma processo de transformação em sua cultura política, não
basta apenas o fim da ditadura, o fim da censura ou eleições diretas com sufrágio obrigatório, e
infelizmente, o Brasil está longe de ter uma real transformação em sua cultura política.
Após os militares se recolherem aos quartéis, e os civis assumirem o governo em março de
1985, através de eleições indiretas, houve a manutenção de uma política controladora, concedendo
algumas liberdades ao povo, sem permitir ao mesmo todos os direitos que teriam mediante uma
democracia dita moderna. O povo brasileiro passou pela transição, com um certo desencanto, pois a
eleição presidencial foi indireta, o presidente eleito Tancredo Neves, morreu antes de assumir, e o
governo foi entregue ao vice José Sarney, que era um preposto do regime militar. A euforia do Plano
Cruzado, logo deu lugar a uma decepcionante realidade mediante a crise econômica. O sonho
democrático brasileiro passava a dar lugar ao descrédito.
Como citado anteriormente, o autoritarismo e a presença dos militares, ainda é notória em
nossa sociedade. Os brasileiros vêem os militares como símbolo de autoridade e segurança, é uma
das instituições mais querida e respeitada pelos brasileiros. No caso de reforço na segurança pública,
a convocação do Exército é sempre vista com bons olhos pela grande maioria da população. Não é
de se estranhar que na Constituição de 1988 haja resquícios da ditadura, sem isso que seja questionado
pela população brasileira.
Mesmo nossas leis constitucionais continuaram permeadas pelo legado ditatorial. O
Brasil foi capaz de legalizar o golpe de Estado em sua Constituição de 1988. No
artigo 142, as Forças Armadas são descritas como “garantidoras dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” Ou seja,
poderemos ver situações nas quais, por exemplo, o presidente do Senado pede a
intervenção militar em garantia da lei (mas qual?, sob qual interpretação?) e da
ordem (social?, moral?, jurídica?) para legalizar constitucionalmente ações
arbitrárias. (SATAFALE, 2014, p.39)

Como uma democracia consolidada pode ter resquícios de autoritarismo de forma


institucionalizada? Há muito pra se lutar e conquistar na política brasileira, para que alcancemos um
Estado de Direito que realmente se aproxime dos anseios do povo, dando ao mesmo as condições
básicas de cidadania, e a vivencia de uma democracia plena. Por enquanto, continuamos vivendo uma
democracia anêmica, que está em marcha lenta e muitas vezes estagnada rumo a uma democratização
de fato. Os constantes escândalos de corrupção política, a falta de aplicação de recursos públicos em

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elementos básicos da sociedade, como saúde, segurança, educação e transporte, tem trazido um
desgosto popular e uma descrença no governo.
Se formos voltar ao conceito original de democracia oriundo da Grécia antiga: “um governo
que emana do povo, pelo povo e para o povo”, constataremos que o Brasil peca e não consegue
exercer um governo direcionado exclusivamente aos anseios populares.
Após essa visão sobre o autoritarismo e sobre uma democracia capenga que persiste na
atualidade brasileira, bem como, verificar que as forças armadas são queridas pelos brasileiros sem
ter passado por uma justiça de transição, com os julgamentos necessários; voltamos nosso olhar para
o período da ditadura militar e constatamos que a retirada dos militares do poder, logrou o êxito
esperado: saíram impunes, sem nenhum julgamento, mantiveram suas patentes e o respeito perante a
sociedade brasileira.
Sem dúvida, Ernesto Geisel, que acabou articulando a abertura conciliada, foi um presidente
complexo, de contradições, que trouxe uma nova dinâmica ao regime militar:
Anticomunista convicto, foi o primeiro a reconhecer o governo comunista de
Angola, em 1975. Mandatário de um regime acusado de ser braço do imperialismo
estadunidense, entrou em conflito com o “grande irmão do Norte” por conta do
acordo nuclear com a Alemanha e por causa dos direitos humanos. Abusou da
censura para controlar a oposição, mas patrocinou uma política cultural que
beneficiou muitos artistas que era notoriamente contra o regime. Essas políticas,
longe de serem expressões de um governo hesitante ou indefinido, inscrevem-se em
uma estratégia clara de reforçar a autoridade do Estado e, consequentemente, dotar
o regime e o governo de instrumentos para conduzir a transição para o governo civil
com mão de ferro. (NAPOLITANO, 2016, p.236)

Interessante frisar a afirmação de Napolitano, de que Geisel não foi um governo indefinido ou
hesitante, mas traçou uma estratégia de reforçar a autoridade do governo para o processo de transição.
Portanto, essas aparentes contradições, bem como, as demais medidas tomadas em seu mandato,
acabaram por fazer parte de um plano claro de condução à abertura lenta, gradual e segura.
Em reportagem recente dada ao jornal on line Carta Capital, através da Radio France
Internationale, a brasilianista Maud Chirio, afirmou “que a ideia de que a democracia brasileira está
consolidada é uma ilusão”. Disse que o Brasil tem muito que caminhar para amadurecer sua
democracia.
Tem uma narrativa sobre a chegada da República no Brasil segundo a qual, entre
recuos e conquistas, chegou-se à consolidação definitiva do sistema democrático na
Nova República. A primeira República foi um avanço, porém oligárquica, depois a
Constituição de 1934 abriu o caminho, com novos direitos obtidos pela Revolução
de 1930, e, assim, cada passo gerou mais conquistas. Eu acho que a Nova República
nasceu sob o argumento de que a democracia liberal venceu, mas isso foi um mito
fundador e definitivo, com o famoso “ditadura: nunca mais”. Chegamos ao sufrágio
universal, a uma democracia estável e dizemos “nunca mais” a golpes militares e
autoritarismos. Só que isso é um mito. Pensar que a Constituição de 1988 é perfeita,

735
que cria um sistema sólido, que as instituições brasileiras são profundamente
democráticas, tudo isso é fruto de uma narrativa que nos impede de ver a realidade.
O Judiciário é uma instituição extremamente conservadora. A classe política é de
homens com mais de 50 ou 60 anos, que se formou durante o regime militar e que
fazem parte de famílias que estão no poder há quase um século. Isso é a democracia
brasileira. Sendo assim, ela não pode estar totalmente estável, definitiva e perfeita.
Ela está progredindo, mas não está ganha. Nada está ganho: nem a laicidade do
Estado, nem o caráter civil da democracia, nem a Constituição e o respeito dela, nem
a confiança nas instituições judiciárias. (CHIRIO, 2017)

Temos que concordar, que uma democracia que realmente atenda aos anseios dos cidadãos
brasileiros, e nos faça confiar nas instituições governamentais, está longe de se consolidar em nosso
país.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa, dentro da abordagem da História do Tempo Presente e Culturas Políticas,


procura constatar que na transição política da ditadura militar brasileira para a “democracia civil”,
ocorrida oficialmente em 1985, é notório uma carência latente de uma democracia plena que atenda
aos anseios da sociedade. Em nosso país, verificamos uma passagem da ditadura militar para a o
governo civil, através de uma transição que foi negociada pelos militares com as elites do país. Diante
disso, observamos que todo o sistema posterior se organizou para atender aos anseios políticos e
econômicos dessa elite.
A ideia de uma aliança para uma abertura negociada e consensual com os civis, desenrolou-
se ao longo do governo Geisel e culminou em uma abertura pacífica, sem nenhuma ruptura. Devido
a isso, muitos resquícios de autoritarismo e conciliação continuam presentes no atual cenário da
política brasileira. Portanto, o Brasil continua mantendo sua cultura política autoritária e conciliatória;
e, enquanto essa postura cultural brasileira não mudar, não conseguiremos alcançar a democracia,
que de fato, tanto almejamos.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

736
FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia e o chamado “perdão aos torturadores”.
In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, n. 4, p. 318-333,
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Topoi, v. 14, p. 239-261, 2013.

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(SP): Papirus, 1995.

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consolidação democrática no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

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cnv> Acesso em: 29 set. 2017.

737
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em: 30 set.
2017.

738
A Base Nacional Comum Curricular como um território de disputas: entre as rupturas e
manutenções da tradição escolar

Diogo Alchorne Brazão 1

Resumo: Este trabalho apresenta análises prévias da pesquisa sobre a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), focando nas disputas referentes aos conteúdos da disciplina de História. A BNCC
foi um projeto do governo federal, cujo objetivo era homogeneizar o currículo escolar no Brasil.
Quando o currículo de História foi por essa exposto, ainda na primeira versão, ocorreram várias
críticas ao documento. A maior polêmica estaria relacionada aos conteúdos apresentados através de
seus objetivos. Logo, a primeira versão que apresentou uma ruptura com a história escolar tradicional
de característica eurocêntrica, causou inquietações em alguns grupos de historiadores. Analisaremos
tais críticas, e como elas influenciaram para a elaboração da segunda versão da BNCC, que se
caracterizou pelo retorno à história escolar da tradição. Para isso utilizaremos os conceitos de tradição
inventada de Hobsbawm e de tradição seletiva de Raymond Willians. Além de teóricos do currículo
escolar como Goodson e a teoria que nos ajudará para análise para avaliarmos as características
eurocêntricas na BNCC será a teoria decolonial que apresenta uma crítica ao eurocentrismo,
especialmente as teorias de Quijano que apresenta os seus conceitos de colonialidade do saber, do ser
e do poder, tais conceitos apresentam um arcabouço teórico para análise de nosso objeto de estudo.

Palavras-chave: Ensino de História, Currículo, Pensamento decolonial.

Abstract: This work presents previous analyzes of the research on the National Curricular Common
Base (BNCC), focusing on the disputes related to the contents of the History discipline. The BNCC
was a project of the federal government, whose objective was to homogenize the school curriculum
in Brazil. When the curriculum of History was by that exposed, still in the first version, several critics
occurred to the document. The biggest controversy would be related to the content presented through
its objectives. Therefore, the first version that presented a break with the traditional school history of
Eurocentric characteristic, caused some concerns in some groups of historians. We will analyze these
criticisms, and how they influenced the elaboration of the second version of the BNCC, which was
characterized by the return to the school history of the tradition. For this we will use the concepts of
Hobsbawm's invented tradition and Raymond Williams' selective tradition. In addition to school
curriculum theorists such as Goodson and the theory that will help us to analyze the Eurocentric
characteristics in the BNCC will be the decolonial theory that presents a critique of Eurocentrism,
especially the theories of Quijano that presents its concepts of coloniality of knowledge, being and
power, these concepts present a theoretical framework for the analysis of our object of study.

Keywords: Teaching History, Curriculum, Decolonial Thinking.

INTRODUÇÃO

1 Mestrando do PPGHS – UERJ/FFP sob a orientação da professora Helenice Rocha. Email:


diogoalchorne@gmail.com

739
A proposta para este ensaio é de analisar os componentes curriculares da disciplina de História
nos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, focando nas rupturas e permanências do
eurocentrismo 2 nos objetivos propostos na Base Nacional Comum Curricular e as disputas pela
permanência de conteúdos considerados tradicionais. Os documentos analisados serão a primeira
versão da BNCC e a segunda versão da BNCC, por se tratar das duas versões que geraram polêmica
entre a comunidade acadêmica e na mídia de grande circulação.
Segundo o MEC, a BNCC tem o objetivo de integrar o ensino em todo o Brasil, visto que os
currículos escolares existentes no país foram elaborados por estados e municípios. Como não há uma
unidade curricular em todo o país, o que ocorre é a manutenção das tradições de conteúdos que eram
propostos pelos livros didáticos. Além disso, alguns conteúdos geravam um distanciamento dos
alunos de regiões mais afastadas dos grandes centros por não haver uma identificação com os
conteúdos abordados em sala de aula, aumentando o desinteresse do aluno. A proposta do governo
federal com a BNCC era gerar um currículo nacional com propostas de conteúdos considerados
nacionais e conteúdos regionais, propiciando a formação de uma identidade regional e nacional.

DEBATE SOBRE A BNCC

Segundo Elizabeth Macedo 3, a discussão e defesa de uma base nacional curricular, remonta
aos anos de 1980, e confirma‐se através da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
em 1996, que consolida “uma demanda já existente por uma base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada. Na análise da autora, embora a lei não tenha indicado a necessidade de normatizações

2 O eurocentrismo é uma visão de mundo que tende a colocar a Europa (assim como sua cultura, seu
povo, suas línguas, etc.) como o elemento fundamental na constituição da sociedade moderna, sendo necessariamente a
protagonista da história do homem. Resumidamente, trata-se da ideia de que a Europa é o centro da cultura do mundo.
Acredita-se que grande parte da historiografia produzida no século XIX até meados do século XX assuma um contexto
eurocêntrico, mesmo aquela praticada fora da Europa. Jack Goody relata que a Europa encobre a história do mundo que
não seja europeu, e devido a isso, não tem interpretado bem sua própria história, pois impôs seus conceitos e períodos
históricos. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade
ocidental, de modo que essa superioridade, que se considerando a história como um todo não passa de conjuntural, pareça
pertencer essencialmente à cultura ocidental, a Europa controla a história do mundo desde o século XIX.
3 MACEDO, Elizabeth.Base Nacional Curricular Comum: Novas formas de sociabilidade produzindo
sentidos para educação. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 03 p.1530 - 1555 out./dez. 2014.

740
referentes a uma base nacional comum, surgiram algumas iniciativas em torno da discussão, como o
exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares Nacionais.
Segundo a autora, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) surgiram como uma proposta
para uma base comum curricular, mas o documento não obteve uma receptividade satisfatória pela
comunidade acadêmica, com o documento passando a ser um direcionador curricular.
Posteriormente ao PCN, foi criado em 2013 as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), que
são normas obrigatórias para a Educação Básica que orientam o planejamento curricular das escolas
e dos sistemas de ensino. Seguindo este processo em 2014, foi lançado o Plano Nacional da Educação
(PNE). O objetivo deste documento era apresentar metas para a melhoria da educação no Brasil.
Dentre as metas estavam presentes a seguinte:

Meta 2: universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população


de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por
cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de
vigência deste PNE.4

Com apresentação de tais metas, o Ministério da Educação (MEC) deu inicio no ano de 2015
ao processo de seleção do grupo de especialistas responsáveis pela elaboração do documento.
O governo responsável pelo início da confecção da BNCC foi o da presidenta Dilma Rousseff
(2011-2016). No momento da elaboração da Base, Renato Janine Ribeiro foi o ministro da educação
responsável pela organização da equipe destinada a elaborar a base curricular. A BNCC teve início
em junho de 2015, com a seleção da comissão de especialistas que totalizou 116 especialistas. Assim,
cada disciplina possuiu em média quatro especialistas.
Os membros da comissão de história foram divididos em grupos de quatro pessoas, contendo
dois professores universitários em cada. Os professores das redes públicas de educação básica foram
indicados por dois órgãos o UNDIME (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e o
CONSED (Conselho Nacional de Secretários de Educação). A divisão dos grupos foi feita por anos
iniciais do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental e ensino médio. A equipe de
História foi coordenada pela professora Claudia Regina Fonseca Miguel Ricci (UFMG), especialista
da área de ensino de História.
Cabe ressaltar, que este processo de seleção da comissão de história foi questionado entre os
pares, principalmente pela Associação Nacional de História (Anpuh), sobretudo por não ter sido
consultada na elaboração da comissão. Além destas críticas, ocorreram outros questionamentos sobre
o real interesse de alguns membros do ministério da educação que tiveram seus nomes vinculados a

4 BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2014.

741
grupos políticos e empresariais. Este cenário de disputas e insatisfações contribuiu para o maior
enfraquecimento da BNCC, no cenário político e acadêmico.
Os referenciais teóricos que contribuirão para as análises deste trabalho são os referentes a
memória, as teorias do currículo e o pensamento decolonial.
A construção de um currículo escolar nacional contribui para fortalecer uma identidade
nacional através do ensino. Para isso é dada uma atenção importante à disciplina de História, pois ela
pode contribuir para a formação da identidade nacional através da formação histórica das novas
gerações. Circe Bittencourt afirma que durante a república ocorreu uma maior preocupação em uma
formação nacionalista e patriótica 5.Com a necessidade de fomentar o patriotismo, a história ganha
um destaque pois tem um papel fundamental nesta proposta.
Carreteiro aponta que é parte da essência das escolas ibero-americanas a prática de atividades
histórico-patrióticas, que em alguns momentos ficam próximas de um doutrinamento. Podemos
observar o currículo de história como uma história oficial, uma proposta de conhecimento que mostre
a formação do Estado nacional.
Para Goodson, o currículo é construído através de um conflito social, em que é apresentado
um controle social através do currículo. Este controle social é provocado pelos conteúdos escolhidos
provocados especialmente pelas disparidades de classes das sociais, para ele o currículo é a invenção
de tradições. Ele utiliza o conceito criado por Hobsbawm de "tradição inventada", que seriam as
práticas e ritos que formulam certos valores que tendem a estabelecer uma continuidade com o
passado, esta tradição pode ser reinventada, mas parte de um ponto do passado 6. Para Hobsbawm
toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como
cimento da coesão grupal.
Segundo Hobsbawm:

A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente


nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das “tradições”,
inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se
referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O
“costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não
impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja
tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente.
Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção
do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na
história.7

5 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Historia:


Fundamentos e métodos.– São Paulo: Cortez, 2004. P 34.
6 GOODSON. Ivor F. Currículo: teoria e história. 14ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p17-27.
7 HOBSBAWM, Eric (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1984. p 10.

742
Portanto, a construção de um novo currículo está fundamentada nas tradições do passado. Se
um novo currículo apresentar uma grande ruptura com as tradições, tende a sofrer duras críticas, tanto
do meio acadêmico como da sociedade. Fato que ocorreu com a primeira versão da BNCC, que
propôs uma mudança nas estruturas da abordagem e da visão da história escolar, rompendo com o
pensamento eurocêntrico.
A tradição escolar da disciplina na escola é caracterizada pela divisão entre história geral e
história do Brasil, sendo que a segundo só é apresentada após uma ampla apresentação de conteúdos
de história geral, seguindo uma ordem cronológica, mas apresentando um recorte que destaca a
história europeia. Esta valorização da cultura europeia é mantida nos recortes referentes à história do
Brasil, privilegiando aqueles que se referem à presença do europeu no país, dando uma posição de
destaque à história relacionada à Europa e ao europeu, proporcionando assim uma posição de
inferioridade aos demais grupos étnicos.
Essa visão eurocentrada é uma abordagem tradicionalista na historiografia brasileira, que tem
a sua fundamentação nos primeiros trabalhos sobre a História do Brasil, como a obra de Francisco
Adolfo de Varnhagen, que entendia que a História do Brasil teve seu início com a presença do europeu
e via a atuação passiva do indígena e invisibilizava a presença do negro.
Varnhagen, em sua obra História Geral do Brasil, entedia que o Brasil foi uma "criação" do
Império português, desde a chegada de Pedro Álvares Cabral ao continente. Inicia-se uma breve
explicação do nome Brasil e o autor parte a descrever características do território e da fauna e da
flora. Ele destaca a sede do homem em ter novas conquistas.
A proposta de apresentação da História do Brasil segue uma forte influência da obra do
Visconde de Porto Seguro, visto que o mesmo destacou a questão da miscigenação no Brasil e a
relação das índias com os portugueses. Este ponto não é proposto nos objetivos da BNCC, a
abordagem seguinte é a mesma a participação dos jesuítas na colonização e catequese. Cabe salientar
que Varnhagen destacava de forma negativa a relação dos religiosos com os indígenas e a proteção
que lhes era dada, causando a escravidão africana. Apesar dele se mostrar contrário a escravidão
africana por ser violenta.
Varnhagen foi o grande responsável por apresentar uma característica que está presente até os
dias atuais no historiografia brasileira: a forte ligação com a cultura europeia. Os trabalhos apoiados
pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) possuíam uma valorização do europeu como
o grande responsável pela organização do Brasil. O IHGB fez parte de um projeto de governo de
elaborar uma história do Brasil e de criar uma identidade nacional, logo a elaboração de uma tradição
brasileira.

743
Existia a necessidade de criar uma identidade nacional e romper com a tradição portuguesa,
mas era necessário apresentar um "ponto de partida" para a elaboração de uma memória nacional, e
para isso era necessário valorizar o europeu pela formação da nova nação, como nos apresenta
Hobsbawm:

[...] é a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas


para fins bastante originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer
sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem
elaborada, composta de práticas e comunicações simbólicas. As vezes, as novas
tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas.8

Como podemos observar a historiografia brasileira elaborou e fomentou a História do Brasil


diretamente relacionada à cultura europeia e colocando os demais grupos em uma posição de
subalternidade e esquecimento.
Estas características eurocêntricas da História escolar são o que entendemos como tradição
escolar. Como vimos, ao longo do tempo a disciplina de História passou por transformações de acordo
com os movimentos políticos e sociais ocorridos no país, mas várias características foram mantidas,
dentre elas, a estrutura curricular. A divisão quadripartite de História Geral e tripartite em História do
Brasil, 9 seguindo uma ordem cronológica dos fatos e valorizando a História da Europa ocidental,
entendendo que a História do Brasil deve ser abordada seguindo uma ordem cronológica, isto é, após
uma longa apresentação da História europeia. Entendemos, então, que essa é a base da História da
tradição escolar.
O conceito de tradição seletiva de Raymond Williams faz-se necessário para entendermos o
processo de seleção dos conteúdos da tradição escolar:

Ele conclui que a cultura da tradição seletiva é um elemento de conexão entre


cultura vivida (cultura de uma época e de um lugar determinado) e a cultura de um
período (cultura de todo tipo). Primeiro, ele defende que toda educação realiza uma
combinação entre coisas que se enfatizam e outras que se omitem. A cultura seria,
nesse sentido, o objeto de e para a seleção. Ao mesmo tempo, ele diz que
corresponde a escolhas culturais fundamentais e, como tal, passa a ser o instrumento
gerador dessas mesmas escolhas. Estaria presente, portanto, a ambivalência desse
conceito: “seleção na cultura e seleção em função da cultura”. Nesse processo,

8 idem.p14.
9 A História geral com a sua divisão quadripartite se caracterizou com a divisão em história antiga, idade
média, história moderna e história contemporânea. Já a história do Brasil tem a divisão tripartite com período colonial,
período imperial e período republicano.

744
Williams questiona a lógica de condução da memória coletiva que permite ao
homem conservar vivos certos aspectos da herança do passado. 10

Marcus Taborda de Oliveira nos apresenta uma melhor definição de tradição seletiva:

[..] tradição seletiva [...] seria um processo seletivo bastante drástico daquilo que
foi, em uma determinada ambiência social, definido como algo digno de ser
perpetuado. Por motivos diversos, que incluem relações de poder político,
disponibilidade econômica e visibilidade cultural, mas também a clivagem
ideológica, determinadas orientações intelectuais se fixam na cultura e definem o
limite da circulação de ideias opostas ou contrárias, no seu tempo. 11

A educação tem um papel fundamental para efetivar a tradição seletiva, pois é com a educação
que ela era perpetuada por gerações. Tal seleção apresenta uma hegemonia de um grupo social que
seleciona o que é relevante e o que deve ser mantido e estudado, e ao mesmo tempo determina o que
deve ser esquecido e/ou negligenciado. Mello destaca que a tradição seletiva é um processo
hegemônico, mas que ele não é imposto autoritariamente, mas sim de forma ideológica vista como
algo de muito valor e por isso tais tradições são difíceis de ser desconstruídas. Portanto, entendemos
que o currículo da tradição escolar faz parte de uma tradição seletiva que valoriza a cultura europeia
e negligencia as demais.
Pollack e Candau trabalham o conceito de memória e desenvolvem a ideia do
lembrado/esquecido, isto é, uma história que é escrita e mantém suas hierarquias de memórias como
desenvolve Michel de Certeau. Pollack nos apresenta a ideia de que a memória é um local de disputas,
portanto podemos afirmar que existem grupos que disputam um poder hegemônico e quando o
conquistam são os responsáveis pela construção de uma memória oficial, colocando os demais grupos
em "esquecimento".
Seguindo essa lógica, podemos observar que, na construção da tradição histórica brasileira, o
grupo hegemônico foi o de origem europeia, por isso uma história sumariamente branca e que colocou
os negros, os indígenas e as mulheres em uma posição de esquecimento e/ou de subalternidade.

Dentro deste pensamento, Quijano vai propor o conceito de colonialidade do poder para se
referir à situação de perpetuação da cultura europeia. Esta seria uma estrutura de dominação que

10 MELLO, J.C. D. História da disciplina didática geral em uma escola de formação de professores: (re)
apropriação de discursos acadêmicos nos anos de 1980 e 1990. 2002. Dissertação de Mestrado – UFRJ. Rio de Janeiro,
setembro/2002. p 18-19.
11 OLIVEIRA, Marcus Aurélio Taborda de. Pensando a História da educação com Raymond Willians.
Educação e realidade, Porto Alegre, V. 39, n1. p268.

745
submeteu a América Latina, a África e a Ásia, a partir da sua conquista. O termo faz alusão à invasão
do imaginário do outro, ou seja, sua ocidentalização. Mais especificamente, diz respeito a um discurso
que se insere no mundo do colonizado, porém também se reproduz no lócus do colonizador. Nesse
sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e subalternizando-o, enquanto
reafirma o próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime os modos de produção de
conhecimento, os saberes,o mundo simbólico,as imagens do colonizado e impõe novos. Inicia-se,
então a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização epistêmica do outro não
europeu e a própria negação e o esquecimento (consciente ou planejado) de processos históricos não
europeus. Essa operação se realizou de várias formas, como a sedução pela cultura colonialista, o
fetichismo cultural que o europeu cria em torno de sua cultura, estimulando forte aspiração à cultura
europeia por parte dos sujeitos subalternizados. O eurocentrismo não é a perspectiva cognitiva
somente dos europeus, mas torna-se também do conjunto daqueles educados sob sua hegemonia.12
Portanto, podemos afirmar que a colonialidade do poder construiu a subalternidade do subalternizado.
Quijano fala também da colonialidade do saber, entendida como a repressão de outras formas
de produção de conhecimento não europeus, que nega o legado intelectual e histórico de povos
indígenas e africanos, reduzindo-os, por sua vez, à categoria de primitivos e irracionais, pois
pertencem à “outra raça”. Essa afirmação da hegemonia epistemológica da modernidade europeia,
que se traduz num racismo epistêmico ou, como afirma Grosfoguel sobre como a “epistemologia
eurocêntrica ocidental dominante, não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de
produção de pensamento crítico nem científico”13.
Seguindo esse mesmo pensamento Walter Mignolo vai afirmar que as ciências humanas,
legitimadas pelo Estado, cumpriram papel fundamental na invenção do outro. Além disso, segundo
esse mesmo autor, essas ciências, incluindo a História, criaram a noção de progresso. Com a ideia de
progresso, desse modo, se estabeleceu uma linha temporal em que a Europa aparecia como superior.14
Podemos observar tal afirmação ao analisarmos alguns objetivos apresentados na BNCC que
observam outras civilizações pela ótica europeia, isto é, pela ótica do dominador.
A colonialidade do ser, segundo os vários autores aqui expostos, que mais se explicita a força
dos conceitos vistos anteriormente. Catherine Walsh vai recordar as palavras de Frantz Fanon para
relacionar colonialismo à não existência:

12 QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y


América Latina. In: LAN- DER, E. (Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
Latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-277
13 GROSFOGUEL, Ramon. Dilemas dos estudos étnicos norte-
americanos: multiculturalismo identitário,colonização disciplinar e epistemologias decoloniais.In: Ciência e cultura.São
Paulo: v. 59, n. 2, p. 32-35, 2007.
14 MIGNOLO,Walter. Histórias Globais/projetos Locais.
Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p79.

746
Em virtude de ser uma negação sistemática da outra pessoa e uma determinação
furiosa para negar ao outro todos os atributos de humanidade, o colonialismo obriga
as pessoas que ele domina a perguntar-se: em realidade quem eu sou?15

A colonialidade do ser é pensada, portanto, como a negação de um estatuto humano para


africanos e indígenas, por exemplo, na história da modernidade colonial. Essa negação, segundo
Walsh, implanta problemas reais em torno da liberdade, do ser e da história do indivíduo
subalternizado por uma violência epistêmica.
Achille Mbembe afirma que o pensamento europeu sempre teve tendência para abordar a
identidade de uma forma mútua, vendo todos de um mesmo mundo , mas antes na visão do mesmo
sobre o mesmo, o europeu tenta ver o outro como um espelho, gerando um estranhamento ao
comparar outras culturas com a sua. Essa autocontemplação gera ao negro o mesmo significado para
o europeu, sendo atrelado à imagem de repulsa. 16
Podemos afirmar que o discurso europeu, ao longo da História, é um discurso da modernidade,
isto é, da colonialidade. Um discurso ligado às Ciências Sociais que contribui para desqualificar ou
negar qualquer outra forma de cultura ou representação que não fosse a oriunda da Europa.
Quando a primeira versão da BNCC de ciências humanas foi apresentada publicamente em
setembro de 2015, o seu texto base expunha o principal objetivo do novo currículo de história, que
era propor o reconhecimento de uma diversidade étnica e cultural, cujo objetivo era gerar nos alunos
um maior respeito às diversidades. Esta versão continha uma maior valorização da História do Brasil,
considerando as leis 10.639 e 11.645, dando destaque às culturas afro-brasileira e indígena, rompendo
com uma História eurocentrada.
Por conta destas características, a primeira versão foi criticada por grupos de historiadores
defensores de uma História eurocentrada, isto é, historiadores que entendem que o eixo fundamental
da História ocidental é a Europa e que a História do Brasil está atrelada a mesma. Além das críticas
apresentadas pelos historiadores defensores de uma História eurocentrada, outros grupos de
historiadores lançaram fortes críticas à primeira versão da BNCC, tais como os historiadores da área
de História Antiga e os medievalistas. A principal crítica feita por esses grupos de historiadores foi
quanto ao corte de conteúdos referentes a estas áreas, pois com a maior valorização da História do
Brasil os conteúdos de História Antiga e Medieval sofreram cortes, já que não existia a possibilidade
de manter os conteúdos da tradição e a inclusão de mais conteúdos pois o currículo ficaria

15 WALSH, Catherine.Interculturalidad Crítica/Pedagogia decolonial. In: Memórias del Seminário


Internacional “Diversidad, Interculturalidad y Construcción de Ciudad”, Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional 17-
19 de abril de 2007.
16 MBEMBE, Achille, Crítica da Razão Negra; Tradução Marta
Lança - Lisboa: Antígona, 2014. p 10-11.

747
extremamente inchado. Outra forte crítica foi quanto a proposta e as abordagens propostas na BNCC,
que apontaram para características políticas e ideologizadas.
A primeira versão da BNCC de História apresentava uma ruptura com a historiografia da
tradição escolar, dando um maior foco, especialmente no ensino médio, à História indígena, à História
da América, à História da África e à História dos afro-brasileiros. O 1º ano do ensino médio tinha
como proposta o foco nestas áreas como objetivos que podemos observar a contribuição dos
especialistas tais como:

CHHI1MOA008 Analisar a pluralidade de concepções históricas e cosmológicas de


povos africanos, europeus e indígenas [...]
CHHI1MOA009 Contextualizar processos históricos de surgimento das diversas
sociedades étnicas nos continentes africano e americano, em reinos, impérios,
confederações e civilizações [...]
CHHI1MOA013 Valorizar o protagonismo de ameríndios, africanos, afro-
brasileiros e imigrantes em diferentes eventos da Historia do Brasil.
CHHI1MOA014 Interpretar os movimentos sociais negros e quilombolas no Brasil
contemporâneo [...]
CHHI1MOA015 Respeitar e promover o respeito às presenças ameríndias, afro-
brasileiras e de outras etnias locais.17

A influência da formação dos especialistas voltada para questões étnicas sobre povos
indígenas e afro-brasileiros é um ponto a ser destacado e, consequentemente, estes teriam uma maior
atenção e dedicação em romper com o eurocentrismo. Os objetivos apresentados nos anos seguintes
apresentam a mesma preocupação de combater o preconceito e valorizar as culturas afro-brasileira e
ameríndia, além da europeia.
A primeira versão da BNCC de História não obteve uma avaliação positiva do público em
geral por motivos variados, como uma crítica geral ao documento que cria uma homogeneização da
História ou por dar um caráter oficial da História, entre outras críticas apresentadas. Porém, a crítica
mais enérgica foi com relação aos conteúdos selecionados pela equipe de especialistas que promoveu
uma ruptura com a História da tradição escolar que era caracterizada por ser eurocêntrica valorizando
a contribuição da matriz europeia na formação do Brasil, invisibilizando as matrizes indígena e
africana.
Cabe ressaltar que este trabalho tem por objetivo analisar as críticas refrentes aos conteúdos
propostos no componente curricular de História, especialmente as críticas feitas às rupturas com o
eurocentrismo.
O Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro fez o seguinte comentário sobre o componente
curricular de História:

17 BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília, DF: MEC, 2015.

748
"... o fato é que o documento de História tem falhas. Tanto assim que retardei sua
publicação e solicitei ao grupo que o elaborou que o refizesse. Mas eles mudaram
pouca coisa. Mesmo assim, com o enfático alerta de que não era um documento
oficial, acabei autorizando sua publicação. O que eu pensava para a base comum em
História era que ela tratasse da história do Brasil e do mundo, sendo que esta não se
deveria limitar ao Ocidente e seus precursores, mas incluir – desde a Antiguidade –
a Ásia, bem como a África e a América pré-colombiana. Primeiro de tudo, uma
história não eurocêntrica. Segundo, uma história que não se concentrasse, como era
costume muito, muito tempo atrás, nos reis e grandes homens, mas tratasse de tudo
o que a disciplina foi estudando nas últimas décadas – mentalidades, economia,
rebeliões, cultura. O documento entregue, porém, na sua primeira versão ignorava
quase por completo o que não fosse Brasil e África. Pedi que o revissem [...] Mesmo
assim, acabei aceitando que fosse publicada". 18

A seção do Rio de Janeiro da ANPUH, apresentou uma carta apontando sua opinião sobre a
primeira versão da BNCC de História:

Os estudos da pré e proto-histórias, assim como da Antiguidade e do Medievo – que


foram descartados como conteúdos curriculares relevantes - pesquisam as
movimentações populacionais entre os continentes, a circulação de ideias e objetos
pelo Atlântico, pelo Mediterrâneo, Oceano Índico e até o Mar da China, não podendo
ser confundidos com conteúdos eurocêntricos. Constituem campos fundamentais
para o estudo de experiências humanas diversas daquelas nas quais os alunos estão
inseridos, colocando em perspectiva uma história narrada como processo único e
linear. Portanto, não perpetuam visões eurocêntricas, mas ao contrário as
combatem. 19

Como vimos uma das críticas foi referente aos cortes de conteúdos considerados importantes
para os historiadores por apresentar uma cronologia. Porém, ao destacar fundamentalmente outras
culturas reconhecidas pelos europeus como "civilizados" e exemplos "evolução", temos apresentadas
características que desvalorizam a cultura indígena e africana.
Como havia sido divulgado pelo Ministério da Educação, a primeira versão da Base era
preliminar e estava propiciada a receber críticas e sugestões em seu portal, durante esse período a
área de Ciências Humanas recebeu 2.599.153 contribuições para mudanças e inclusões de conteúdos.
Segundo o MEC essas contribuições seriam avaliadas e poderiam ser aproveitadas na segunda versão
da BNCC.
Em maio de 2016, foi apresentada a segunda versão da BNCC. Neste momento o ministro da
educação era Aloizio Mercadante, que já havia sido ministro da educação entre 2012 e 2014. Nesta

18 Renato Janine Ribeiro. Currículo de história sem Tiradentes é criticado por ex-ministro. Disponível
em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/10/janine-diz-que-falta-de-repertorio-em-novo-curriculo-proposto-para-
historia.html. Acessado em: 29/05/2017.
19 ANPUH – Nota sobre a BNCC. Disponível em: http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-
55/noticias2/noticias-destaque/item/3140-nota-da-associacao-nacional-de-historia-sobre-a-base-nacional-comum-
curricular-bncc. Acessado em 03/07/2017.

749
segunda versão ocorreram mudanças importantes. A principal no conteúdo de História foi o retorno
à proposta de uma abordagem eurocentrada. Tal mudança propõe uma valorização da cultura europeia
em detrimento das demais culturas, colocando-as em posição de inferioridade, perpetuando a lógica
de superioridade da cultura oriunda da Europa.
Na elaboração da segunda versão da BNCC, um novo grupo de historiadores ligados a
ANPUH foram convidados para contribuir na construção da nova versão. Com essa anexação de
membros da associação de historiadores houve uma redução de críticas do grupo dos historiadores,
pois a segunda versão atendia e solucionava as críticas feitas pela maioria dos seus membros.
Nesta segunda versão a proposta do currículo de História apresentou uma divisão de
conteúdos20 diferente das propostas curriculares anteriormente apresentadas. Nela, os conteúdos de
História do Brasil estão limitados aos 7º e 8º anos do ensino fundamental e retornando apenas no
ensino médio 21 , porém no ensino médio os conteúdos de História tem início com os conteúdos
voltados ao período contemporâneo.
Apesar da proposta de limitar os conteúdos de História do Brasil aos 7º e 8º anos, os primeiros
conteúdos são de História Geral formulando uma construção cronológica dos fatos que levaram à
expansão marítima. Os primeiros objetivos referentes a História do Brasil são:

(EF07HI03) Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da America para


as populações ameríndias.
(EF07HI04) Compreender o processo de organização do domínio colonial nas
Américas portuguesa e espanhola.
(EF07HI05) Destacar a importância da ação missionária na America Ibérica,
percebendo a violência implícita na catequese. 22

A segunda versão da BNCC apresenta características parecidas com a abordagem feita por
Varnhagen. Nesta versão, os indígenas são pouco citados, quando os são está relacionado ao contato
deles com o europeu. E as propostas de conteúdos no qual o negro é o personagem de destaque está
relacionado exclusivamente à escravidão, mantendo uma lógica de subalternidade.
Com base nas análises sobre as duas primeiras versões da BNCC, podemos ter uma conclusão
parcial de que a primeira versão da BNCC apresentava uma ruptura com a História da tradição
escolar, apresentando um novo modelo valorizando o negro e o indígena, causando inúmeras
manifestações contrárias ao documento.

20 Os conteúdos que devem ser abordados são apresentados na forma de objetivos.


21 Sabemos que no ano de 2016 foi apresentada por medida provisória a reforma do ensino médio, sem qualquer
debate público, mas como o objeto de análise deste trabalho é a segunda versão da BNCC, foi feito o comentário sobre a
proposta de conteúdos da disciplina de História no ensino médio.
22 BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. 2ª Versão. Brasília, DF: MEC, 2016.

750
Por conta destas críticas, a segunda versão da BNCC apresentou um retorno à tradição, com
influência da historiografia clássica que colocava o europeu como protagonista da História do Brasil,
invisibilizando o negro e o indígena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos concluir, assim, que a primeira versão da BNCC de História apresentou uma ruptura
com a historiografia tradicional, promovendo uma insatisfação de determinados grupos que
valorizavam a tradição inventada no século XIX, a qual possui uma característica eurocêntrica. Como
nos aponta Hobsbawn, quando a ruptura com a tradição é muito grande, ela tende a não ser efetivada.

751
“O Asylo de Meninos Desvalidos: educação, higiene e trabalho nos arrabaldes do Rio de
Janeiro (1875-1889)”.

Eduardo Nunes Alvares Pavão 1

Resumo: O Asylo de meninos desvalidos, criado pelo decreto nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, foi
inaugurado no dia 14 de março de 1875 nos arrabaldes do município da corte. Além de se caracterizar
como uma instituição educacional, o internato emerge, no dizer de seus organizadores, como um
espaço de constituição de sujeitos "úteis a si, à família e à sociedade". Segundo o Decreto nº 5849 de
9 de janeiro de 1875, o estabelecimento era indicado para meninos órfãos e pobres, entre seis e doze
anos de idade. A partir dos relatórios dos diretores, decretos, ofícios e jornais da época, o presente
estudo instrumentalizado pelas “ferramentas” de Foucault, busca compreender a noção de “infância
desvalida”, a constituição do asilo e sua dinâmica de funcionamento marcada por relações de poder
até 1889.

Palavras-chaves: Asilo, infância desvalida, experimentação.

Abstract: The Asylo of helpless boys, created by decree nº 5532 of January 24, 1874, was
inaugurated on March 14, 1875 in the suburbs of the municipality of the court. In addition to being
characterized as an educational institution, the boarding school emerges, in the words of its
organizers, as a space for the constitution of subjects "useful to oneself, to the family and to society",
where inmates worked in workshops and were inspected by Faculty of Medicine of Rio de Janeiro,
by the police, journalists, politicians and teachers in physical exercises, classes and presentations of
the band. According to Decree nº 5849 of January 9, 1875, the establishment was indicated for
orphans and poor children, between six and twelve years of age. From the reports of the directors,
decrees, offices and newspapers of the time, the present study, instrumented by Foucault's "tools",
seeks to understand the notion of "helpless childhood", the constitution of asylum and its dynamics
of functioning marked by power relations until 1889.

Keywords: Asylum, helpless childhood, experimentation.

Situando o Asylo de Meninos Desvalidos

O Asylo de Meninos Desvalidos foi inaugurado em março de 1875 com a presença do


imperador, e diversas personalidades da corte. Situado na chácara adquirida da família Rudge em
1873 pelo ministério do Império, parecia não possuir as condições ideais de funcionamento como
instituição asilar de meninos entre os seis e os doze anos de idade, escola de primeiro grau e ensino
dos ofícios de alfaiate, sapateiro e marceneiro.
O ministro do Império João Alfredo Correa de Oliveira foi o diretor interino e entregou ao seu
conterrâneo o bacharel em Direito e ex-diretor da Casa de Correção de Recife, Rufino Augusto de

1 Doutor em História Política pela UERJ. Artigo elaborado sob a orientação da Professora Doutora Marilene
Rosa Nogueira da Silva. Apoio financeiro da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. E-mail:
enap2010@yahoo.com.br.

752
Almeida a direção do asilo. Além de ser pernambucano, e ter representado o Brasil na feira de
exposições de Viena, indícios apontam que a indicação do “amigo do conselheiro” para instituição
criada pelo governo imperial em Vila Isabel foi “costurada” durante o ano de 1874 nas
correspondências “solicitando um emprego na corte” e nos pedidos de audiência.
Inicialmente, foram admitidos treze meninos oriundos de famílias pobres, órfãos que
contavam com requerentes privilegiados na corte. O governo imperial objetivava transformar os
internos em trabalhadores, legitimamente casados, e com famílias “moralizadas”.
A educação moral fazia parte da estratégia de transformar os corpos desvalidos em corpos
“úteis a si, à família e à pátria”. Os pedidos encaminhados ao ministro do Império, ao imperador ou
ao diretor do internato destacavam a situação de abandono, carência e pobreza dos meninos.
Alguns autores escreveram sobre a moral na infância e na juventude e de como os meninos e
as meninas deveriam se comportar. Eles criticavam atitudes “inadequadas”, e, apresentavam como
“positivas” a fala “comedida” das meninas e os gestos “corteses” dos meninos. Entre eles o padre
Lopes Gama 2
que criticou “o nosso gosto por macaquear”, “a má-criação”, assim como o que
denominou a “boa educação” e o “bom moço”.
Segundo Gama (1996) “o egoísmo assenhoreou-se dos corações e a imoralidade apareceu em
toda a sua nueza”, para ele “nós infelizmente nascidos no meio de escravos africanos” éramos “pela
maior parte e quase inevitavelmente malcriados”. Pois, ”em outros tempos havia entre nós um
elemento que corrigia o mal até certo ponto, e este elemento era o temor de Deus, era a religião em
suma”. Mas “as doutrinas dos filosofantes, transpondo o Atlântico, se difundiram por todas as classes
da sociedade” e, assim “essa filha do céu tornou-se objeto de desprezo e foi arremessada à ínfima
plebe, como simples embuste para iludir aos idiotas, os nossos defeitos e vícios não tiveram mais
barreiras”. 3

Qual é hoje o menino de nove, dez anos, que já não toma seu charuto na presença do
próprio pai? Aos doze anos traz o bonezinho à bolina, e já namora com todo o garbo
e desempenho; pertence a inumeráveis sociedades todas acabadas em ina. Aos
catorze está casado, aos dezesseis tem umas suíças que fazem medo à gente (menos
às senhoritas); aos vinte anos calveja ou começa a encanecer, aos 25 tem gastrites,
enterites, bronquites, hepatites, colites, encefalites, e morre bem velho na idade de
trinta anos! 4

2 GAMA, Lopes. O carapuceiro: crônica de costumes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
3 GAMA, Lopes. O carapuceiro: Crônicas de costumes. In: MELLO, Evaldo Cabral de (org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 350.
4 Idem, p. 353.

753
Para Gama (1996), as leis só tinham “ação sobre o escravo, ou sobre o pobre inteiramente
desvalidos”, que, não encontrava quem o acolhesse e protegesse. 5
Já “o desordeiro, o faquista”
encontrava “padrinho a cada canto”, ao contrário de outras nações, onde havia “verdadeira
civilização”, onde a moral não existia “só nos livros e nas gazetas, o homicida profissional, o
malfeitor, o facinoroso” eram tidos “na conta de inimigos públicos, e como tais perseguidos por todos
os cidadãos honestos, por toda a gente” que tinha a perder. 6
Por fim destacou que era brasileiro “nato”, e que ninguém o teria por suspeito, quando assim
descrevia os “males da pátria”, que desejava “ver corrigidos e emendados”. No entanto quando
observava a preponderância, que entre nós tinha adquirido “os vícios”, quando via “encumeados,
ocupando cargos eminentes, cheios de honras e prestígios e ladrões soleníssimos, a assassinos, a
homens saturados de crimes horrorosos”, ao mesmo tempo em que viviam “no escuro e deslembrados
cidadãos honestos e virtuosos”, porque desconheciam “a tática da adulação, da impostura e da intriga,
quase que desespero do melhoramento moral do Brasil”. 7

Já em “a boa educação”, destacou que “educai honestamente os meninos (gritam os


professores da honestidade natural) e tereis homens honestos”.

Educação capaz de fazer homens de bem é a que algumas vezes dá um morigerado


artista, que previne o sol com o trabalho, e o trabalho com a assistência ao santo
sacrifício da missa; que exorta os filhos a toda a diligência não só por ganho, senão
por dever; que no desenfado das festas mistura o parco divertimento com o devoto
mas longo exercício da religião, sempre afastado além disto do ócio das praças e da
corrupção das tavernas. Educação apta para formar homens de bem é a que a seus
filhinhos dá o honrado mercador, fazendo-os sabedores da lealdade de seus ganhos;
que não vexa com avaras sutilezas aos agricultores; que não é menos solicito do
crédito das suas mercadorias que das suas balanças; que ensancha a esmola à
proporção que se lhe ensancha a riqueza; que se acerta mudar de estado, não muda
o coração, e continua a reverenciar os seus maiores; que procura no próprio
tratamento antes o cômodo que o fausto, e sempre convida a família a render graças
com humilde adoração ao Benfeitor Soberano. 8

Mas em “O que é ser bom moço”, chamou a atenção para “como estavam trocados os tempos”
e quanto espantoso era o progresso, em que caminhava o século XIX. Pois até então o mundo era
regido pelos velhos, mas diziam que ia muito mal. No entanto, naquele momento administrado por
jovens, e asseveravam-lhe “a fortiori” que ia uma maravilha, pois os talentos desabrochavam tão
presto e tão cedo que era de pasmar. Os meninos aos quatro anos entravam nas primeiras letras e em
virtude dos novos métodos de abreviar e simplificar tudo, aos sete anos passavam para o latim, o qual

5 Idem, p. 355.
6 Idem. Ibidem.
7 Idem, p. 354.
8 Idem, p. 414.

754
aprendiam ai em cerca de dois anos, tudo isso sem levar uma só palmatoada. Lógica, geometria,
retórica, geografia, cronologia e história, estudavam muito em um ano. O francês tomara o lugar do
latim, e o jovem de boa educação começava a aprender o francês desde que principiava a falar, e
ainda ignorava o padre-nosso e já sabia os verbos auxiliares e as quatro conjugações. Daí que, “se os
estatutos das nossas academias não exigissem para a matrícula a idade de quinze anos em diante, não
faltariam jovens matriculados com dez anos, e aos quinze anos ou dezesseis já bacharéis, doutores,
deputados e juízes disto, daquilo e daquilo outro”. 9
Segundo Costa (1983) “a higiene seguia de perto o espírito da época. O poder familiar foi
sistematicamente atacado por todos os ideólogos do Estado agrário nacional justamente por este
motivo”. 10 Daí que “na educação higiênica, a natureza da infração era no mais das vezes ignorada
pelo indivíduo”. 11 Com isso “os crimes contra o corpo e o espírito não tinham codificação explícita.
Variavam conforme os médicos e os educadores. Habitualmente dependiam de conhecimentos
científicos que as crianças ou outros adultos não tinham condições de dominar”. 12
Por conseguinte, “particularmente interessante é reparar que as experiências médicas sobre o
asseio corporal foram feitas antes de tudo – e com muito cuidado – nos hospitais, nas prisões, nos
hospícios, nos asilos e nos navios”. Com isso “estes territórios fechados eram também considerados
espaços habitados por seres ‘irresponsáveis’, como loucos, doentes ou criminosos”, daí que “por
causa desta irresponsabilidade, tais pessoas estavam desqualificadas o suficiente para serem objetos
desses ensaios de higiene corporal, cujos efeitos e riscos na época eram impossíveis avaliar”. Nisso
“a higienização dos loucos, dos presos, dos banidos, foi um passo na direção da implantação de uma
nova ordem”, na qual “os colégios tinham começado a sequestrar as crianças para, entre outras coisas,
ensinarem-nas a serem ‘limpas’ e para fazer delas instrumentos dóceis de reprodução e de
multiplicação da nova sensibilidade corporal”. 13
Já Revenin apontou “a não penalização da homossexualidade em troca da discrição dos
homossexuais, quer dizer, da sua invisibilidade, do seu não aparecimento na esfera pública”. 14

O ensino religioso constava dos currículos das instituições imperiais com horários, livros e
funcionários específicos para a sua aplicação. Tanto o Asylo de Meninos Desvalidos, quanto o
Instituto dos Meninos Cegos e o Instituto dos Meninos Surdos-Mudos tinha um capelão responsável
pelas cerimônias religiosas, o ensino do catecismo e aplicação de moral católica. Ao funcionário

9 Idem, p. 433.
10 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p.
193.
11 Idem. Ibidem.
12 Idem, p. 206.
13 RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999, p. 119.
14 REVENIN, Régis. Homossexualismo e virilidade. In: CORBIN, Alain (org.). História da virilidade.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 464.

755
vinculado ao ministério do Império eram pagos vencimentos menores que aos professores, mas
superiores aos dos mestres de ofícios.
A primeira missa foi divulgada pela imprensa, e pelas doações foi possível observar a
constituição da capela que passou a contar com pia batismal, uma pedra consagrada e toalha para as
cerimônias religiosas. Para celebrar a missa nos arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro o governo
imperial pagou o transporte do padre. Na capela do Asylo de Meninos Desvalidos se constituiu um
espaço sagrado e de difusão da moral católica nos arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro. Num espaço
adquirido pelo ministério do império para se instalar a Faculdade de Medicina se constituiu em um
espaço de assistência aos meninos desvalidos.
Casamentos, batizados, cerimônias fúnebres, primeira comunhão e festas religiosas foram
algumas das cerimônias realizadas na capela do Asylo de Meninos Desvalidos e os internos tocavam
instrumentos musicais, cantavam e auxiliavam nas tarefas. A banda de música do internato tocava
nas festas do calendário religioso e tinha a sua presença anunciada com bastante antecedência nos
impressos da corte.
Os catecismos utilizados para a educação religiosa passavam pela fiscalização do bispado e
sua aceitação representava prestígio para aquele que realizara a tradução e obtivera as graças da sua
publicação. O capelão do Instituto dos Meninos Cegos teve publicado um resumo da doutrina cristã.
Já um dos religiosos do Asylo de Meninos Desvalidos exerceu os ofícios no Colégio Pedro II, e um
segundo foi proprietário de uma escrava e um terceiro integrou o Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro (IHGB).
No entanto, compreender o Asylo de meninos desvalidos como um espaço de
experimentação nos arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro de 1875 a 1889 requer a investigação dos
demais enunciados na transformação dos “corpos desvalidos” em “corpos úteis”. O discurso médico
preconizava o ensino da ginástica e dos ofícios, o juiz de órfãos e ausentes da 2ª Vara enviava os
meninos apreendidos nas ruas pela polícia para fazendas no interior da província e os deputados e
senadores questionavam se era função do governo imperial ou das instituições privadas e associações
de classes darem assistência à população e atender os mendigos, pobres e “inválidos”.
Na segunda metade do século XIX foi criado o Instituto de Meninos Cegos, o Instituto de
Meninos Surdos/Mudos, o Asylo dos Inválidos, o Asylo de Mendicidade. Além da construção de
escolas de ensino primário de 1º e 2º grau no município da corte, acréscimos foram realizados no
Asylo de meninos desvalidos a fim de receber um maior número de meninos. A reforma de Couto
Ferraz de 1854 estabelecia a necessidade de se criar uma instituição para meninos desvalidos, no
entanto, isso ocorreu, somente, vinte e um anos depois. Indícios apontam que as crianças enviadas
para a guerra do Paraguai esvaziaram os arsenais da marinha e as instituições que atendiam os

756
meninos apreendidos nos centros urbanos pela polícia. A lei do Ventre Livre, ao declarar como livres
as crianças após 28 de setembro de 1871 foi acompanhada da criação do Juízo de órfãos e ausentes
da 2ª Vara e dos debates que encaminhamento dar às crianças nascidas após a aprovação do decreto.
“Embora o regulamento esteja dirigido ao município da Corte, zona de atuação direta do ministro do
Império, com que a respaldar a interpretação de que o dispositivo do Ato Adicional de 1834 não tinha
caráter privativo, mas concorrente”, isto é, “a Reforma Couto Ferraz contém normas alusivas,
também, à jurisdição das províncias”. Por conseguinte, “além do efeito-demonstração e do caráter de
modelo que, durante todo o Império, a legislação do município da Corte teve para as províncias, o
Regulamento de 1854 explicitamente buscava alcançar a instrução pública provincial”. 15

A estruturação do império brasileiro, a produção da legitimidade de governo de


forma a assegurar unidade territorial e desenvolver o imaginário de identidade
nacional, se fez, dentre outras ações, com base na produção de dados populacionais,
no sentido de conhecer o que se governa e justificar o estabelecimento das políticas
de ordenação social. A produção de dados e relatos sobre a infância esteve, portanto,
associada à escrita da nação. O enfoque discursivo da instrução pública é, nesse
aspecto, privilegiado para interrogarmos sobre a produção da infância como um
problema de governo. Tratamos, aqui, de uma infância em específico, qual seja, o
grupamento de crianças livres sob os cuidados de um adulto, pai ou responsável, e à
qual cabia a aplicação da lei da obrigatoriedade escolar. As crianças escravas eram
proibidas de frequentar aulas dos mestres públicos. 16

Considerações finais

Enfim que corpo “desvalido” era esse? Amado, odiado, ignorado, percebido de diversas
formas. Objeto de uma carga secular de conceitos e/ou preconceitos, de eufemismos, de sacralização,
de construções e desconstruções de olhares e sentidos circunscritos a um espectro, a uma aura de
sagrado e profano e afastando-se ou aproximando-se da esfera do divino ou do secular, do celestial
ou do terrestre, do permitido ou do proibido existiria? Não em um sistema binário, cartesiano,
dicotômico, maniqueísta, que não possibilitava outras formas de existência, de inserção, de
pertencimento, e que não dava conta das mudanças, transformações ocorridas no final do século XIX.
O objetivo não foi identificar a origem dos desvalidos, mas identificar a emergência das condições

15 SAVIANI, Dermeval [et al.] O legado educacional do “breve século XIX” brasileiro. Campinas, SP:
Autores Associados, 2006, p. 19.
16 VEIGA, Cynthia Greive. Cultura escrita e educação: representações de criança e imaginário de infância
– Brasil, século XIX. IN: LOPES, Alberto (org.). Para a compreensão histórica da infância. Belo Horizonte: Autêntica,
2007, p. 44.

757
de possibilidades do Asilo de meninos desvalidos como um espaço de experimentação nos arrabaldes
da cidade do Rio de Janeiro de 1875 a 1889.

758
759

Instituto Histórico de Duque de Caxias: fases de um projeto de escrita da cidade (1971-1996)

Eliana Santos da Silva Laurentino


Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP
Eliana2silva@yahoo.com.br
FAPERJ

Resumo: Identificar como o Instituto Histórico de Duque de Caxias, criado em 1971, tem em suas
produções historiográficas, contribuições, intervenções e impactos, diretos e indiretos, na região,
também exige um esforço metodologia de entendimento de suas fases. Assim, algumas chaves
analíticas auxiliam nesse momento de pesquisa, como: políticas de memória, cultura histórica e
memória coletiva. Assim, a partir de um conjunto de recortes de jornais sob o título: “Ação
Educativa e Cultural do Instituto Histórico de Duque de Caxias (1991-1996) – O Testemunho da
Imprensa”, que foram organizados e selecionados pela diretora do período, Glades Braga Figueira,
espera-se identificar algumas ações do realizadas pelo Instituto Histórico que indicam o significado
do passado acionados do passado acionados na instituição em uma de suas fases.
Palavras Chave: Instituto Histórico, Memória, Historiografia

Abstract: To identify how the Historical Institute of Duque de Caxias, created in 1971, has in its
historiographic productions, contributions, interventions and impacts, direct and indirect, in the
region, also requires an effort methodology of understanding its phases. Thus, some analytical keys
assist in this moment of research, such as memory politics, historical culture and collective
memory. Thus, from a set of newspaper clippings under the title: "Educational and Cultural Action
of the Historical Institute of Duque de Caxias (1991-1996) - The Testimony of the Press", which
were organized and selected by the director of the period, Glades Braga Figueira, it is hoped to
identify some actions done by the Historical Institute that indicate the meaning of the past triggered
from the past triggered in the institution in one of its phases.

Keywords: Historical Institute, Memory, Historiography

Considerações iniciais

A partir de um conjunto de recortes de jornais sob o título: “ Ação Educativa e Cultural no


Instituto Histórico de Duque de Caxias (1991- 1996) – O Testemunho da Imprensa”, que foram
selecionados e organizados pela diretora da instituição do período, Gladis Braga Figueira, espera-se
identificar algumas ações realizadas no Instituto Histórico que indicam os significados do passado
acionados na instituição. Assim, o objetivo é identificar as políticas de memória realizadas pelo
instituto, naquele período, e como esses dados favorecem o entendimento das fases de consolidação
do espaço.

759
760

Duque de Caxias é atualmente um dos municípios integrantes a Baixada Fluminense e está


dividida em quatro distritos: Duque de Caxias, Campos Elísios, Imbarie e Xérem. A Baixada
Fluminense pode ser defina como o conjunto de municípios localizados na região metropolitana da
atual Cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a classificação da FUNDREM (Fundação para o
Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro), a Baixada Fluminense é composta
pelos seguintes municípios: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford
Roxo, Queimados, Mesquita, Japeri.
É importante chamar atenção que o próprio conceito de Baixada Fluminense é polissêmico,
possuindo múltiplas definições. Dessa forma, “seu recorte se altera a partir do pesquisador, dos
objetos das instituições de pesquisa e dos órgãos públicos” 1. No que tange os recortes geográficos,
ora são incluídos determinados municípios, considerando a extensão entre o litoral e a Serra do
Mar, ora são excluídos outros, restringindo a região do entorno da Baía de Guanabara. Essas e
outras abordagens da definição geográfica não excluem os significados da apropriação dos homens
no espaço, ou seja, “(...) enquanto ‘espaço-tempo vivido’, o território é sempre múltiplo, ‘diverso e
complexo’”2, logo, entendemos que o espaço é socialmente produzido.
Nessa perspectiva, examinar como espaço institucionalizado contribui para a construção da
história do território é relevante. O vínculo direto a um lugar que representa a construção
historiográfica de uma “identidade nacional”, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB),
reforça o significado das consolidações de projetos de memórias na região.
O Brasil tem no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) um exemplo da relação
entre o poder e saber. Fundado em 1838, durante a consolidação do Estado brasileiro, o IHGB é
considerado o espaço que gerou os fundamentos para ao que se queria representar na história
nacional. Isso permite identificar o papel da escrita para a consolidação de um projeto
historiográfico. Gonçalves destaca que:

o padrão da escrita da história que o Instituto queria compor tinha como princípio
fundamental a inscrição do Brasil na epopeia da civilização, incluindo desse modo o
país recém independente na mesma trilha histórica dos países da Europa ocidental.
Sendo a História compreendida como a narração da obra intelectual da humanidade,
a prática historiográfica do Instituto buscava registrar na epopeia da civilização
ocidental um sentido único da trajetória histórica do Brasil que privilegiava a
legitimação da monarquia brasileira estabelecida pela Constituição de 1824. 3

1
SOUZA, Marlúcia Santos de.Escavando o Passado da Cidade – História Política da Cidade de Duque de Caxias.
Duque de Caxias: APPH-Clio, 2014. p.16
2
HAESBAERT, Rogério. Território e Multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia. Ano IX- No 17-2007.
p.19-45. p. 21.
3
GONÇALVES, Sergio Campos A escrita da história do Brasil: O pensamento Civilizador no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. In NICOLAZZI, Fernando, MELLO, Helena e ARAUJO, Valdei (Org.) Caderno de resumos &

760
761

O IHGB tem um papel de referência aos demais institutos do país, influenciando em projetos de
escrita e modelos de atuação. No caso da Baixada Fluminense, não é diferente, algumas pesquisas
sobre a escrita fluminense e sobre a própria Baixada Fluminense também reforçam como a escrita é
um instrumento legitimador de poder e de consolidação de projetos. O Instituto Histórico de Duque
de Caxias também é vinculado ao IHGB, e consta nos registros dos “institutos congêneres” 4,
municipais. Fato que implica em uma análise futura, mais detalhada, sobre suas fases de políticas de
memória, visto que sua existência atravessa diferentes temporalidades, desde fase do período
militar, a transição democrática e os momentos atuais. Desse modo, as ações do IH são entendidas,
nesse trabalho, como parte da construção do território, que não foram as mesmas ao longo do
tempo, implicando em escritas e ações distintas.

Instituto Histórico: Algumas fases


Algumas informações sobre a criação do Instituto Histórico de Duque de Caxias, auxiliam para
compreensão de suas fases. Ele foi criado em 1971 sob o governo do interventor militar Carlos
Marciano de Medeiros. O município de Duque de Caxias, considerado uma área de segurança
nacional em 1968, recebeu em 1971 o primeiro interventor militar, Francisco Estácio da Silva, que
no mesmo ano foi substituído por Carlos Marciano. No ano da institucionalização desse espaço
foram verificadas as consolidações do projeto de construção de uma identidade nacional, que
passaram não apenas pelos institutos, mas as academias de letras e as bibliotecas públicas.
O documento de 13 de abril de 1971, assinado pelo prefeito Francisco Estácio da Silva,
autorizou ao “Dr. Elias Lazaroni, diretor geral da secretaria, a tomar as necessárias providências
para a fundação e funcionamento do Museu Histórico Municipal” 5. Através de uma iniciativa dos
membros da Biblioteca José do Patrocínio, localizada na Câmara Municipal de Duque de Caxias,
observa-se algumas etapas do Instituto Histórico. Segundo o próprio prefeito, no documento de
autorização, a “escala para o movimento sociocultural e artístico dessa casa” foi a própria
Biblioteca. Contudo, o IH só entra em efetivo funcionamento em 1973. Tal acontecimento não teve
um documento preciso para ação, ou mesmo um registro para oficializar a nomenclatura de
“Instituto Histórico”, e não “Museu Histórico Municipal”. Contudo, essa ação foi manchete em
alguns jornais da cidade, como o “Jornal da Cidade” de 27/01/1973, que teve o destaque:

Anais do 4º Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro Preto:
EdUFOP, 2010. pp. 1-12. p. 2.
4
Ver sobre no site: /www.ihgb.org.br/ihgb/ Acesso (22/08/2016).
5
Autorização de 13 de abril de 1971 para a abertura do IH. Acervo Instituto Histórico Thomé Siqueira Barreto.

761
762

“ (...) a posse dos novos vereadores, porém, será precedida da inauguração do Instituto
Histórico, iniciativa do Legislativo Municipal, que pretende, reunindo documentos e
depoimentos, reconstituir a vida política e social do Município desde a sua origem”6.

O IHDC teve, durante muito tempo, nos seus quadros efetivos, funcionários ligados
diretamente aos cargos políticos. A primeira diretora foi Elaine Estácio da Silva, irmã do ex prefeito
da cidade, Francisco Estácio da Silva, que no período da criação do instituto ocupava a presidência
da câmara. Elaine teve Dalva Lazoroni como sucessora na direção, irmã de Elias Lazaroni, chefe
de gabinete no governo de Moacyr do Carmo, em 1966. Dalva ficou no cargo até 19867.
A década de 1970 em Duque de Caxias apresentou as articulações de poder no âmbito
cultural da cidade. Alexandre Marques8 estudou as políticas culturais elaboradas pelos governos
militares em Duque de Caxias entre 1950-1980 em sua dissertação de mestrado. O autor chama
atenção que também nessa década fora criada a Biblioteca José do Patrocínio (1970), o
Departamento de Educação e Cultura (1972) e o conselho Municipal de Cultura (1974). Esses
espaços se articulavam e eram ocupados por intelectuais ativos na produção de conhecimento na
cidade, como Dalva Lazaroni, inicialmente, na direção da Biblioteca; Hilda do Carmo Teixeira,
irmã de Moacyr do Carmo, na direção do Departamento de Educação e Cultura, que fora auxiliada
por Stélio Lacerda, entre outros.
Na década de 1980, uma resolução foi emitida e alterou a nomenclatura do espaço. O
presidente da Câmara do período, José dos Santos Callado, declarou que ficaria “denominado
Instituto Histórico Vereador Thomê Siqueira Barreto, o atual Instituto Histórico, órgão anexo
Câmara”. O nome foi uma homenagem ao vereador, falecido naquele ano, que era um antigo
comerciante do bairro Gramacho, pertencente ao segundo distrito de Duque de Caxias. Barreto teve
quatro mandatos como vereador na cidade e teria colaborado para a criação do Instituto Histórico9.
Nos anos de 1990 o prefeito de Duque de Caxias era Hydekel Meneses de Freitas Lima, atuando
no seu segundo mandato, compreendido entre janeiro de 1989 até setembro de 1990. Ele foi
substituído pelo seu vice, José Carlos Lacerda, que assumiu até dezembro de 1992. Anteriormente,
Hydekel esteve no cargo de prefeito, mas como interventor, de maio de 1982 até dezembro de 1984.
As ações e eventos promovidos pelo IH, no início dos anos de 1990, indicam reflexos das mudanças
e permanências no cenário político, social e cultural da região, considerando, especialmente, a
localização da sede do IH que é a Câmara Municipal de Duque de Caxias. As matérias

6
Jornal a Folha da Cidade, 27 de janeiro de 1973 In (AGUIAR, 2003).
7
MARQUES, Alexandre dos Santos. Militantes da Cultura em área periférica Duque de Caxias (1950-1980). 2005.
166f. Dissertação (Mestrado em História). Vassouras: USS.
8
Idem
9
AGUIAR, Sandra M. de. Instituto Histórico “Vereador Thomé Siqueira Barreto” uma História, um nome. Duque de
Caxias: Monografia pela FEUDUC, 2003. p 21

762
763

selecionadas, pela diretora, fazem referências aos presidentes da Câmara, aos indicativos de
candidatos no processo eleitoral, aos empresários de destaque na região, como o presidente da
CEDAE, considerando que o saneamento é uma questão cara à cidade, entre os destaques políticos
na região. Nesse sentido, o conjunto de reportagens agrupadas pela diretora do IH, na década de
1990, permite um olhar sobre os atos de memórias realizados, compreendendo os diferentes regimes
de historicidade que conferem uma determinada importância do passado.

“O Testemunho da Imprensa”
O título da documentação e a ênfase aos depoimentos da diretora do IH são indicativos de um
recurso de memória acionado para apresentar uma determinada fase da história da Instituição. A
memória passa a ser um objeto para consolidar visões de um determinado passado, a partir das
relações com o presente. O “testemunho da imprensa”, também é o testemunho da diretora, que, em
certa medida, foi entrevistada em quase todas as reportagens selecionadas.
Muitas atividades culturais foram promovidas por esses agentes no sentido de utilizar o passado
para legitimar suas ações presentes. O que constituiu em diferentes atos de memória realizados no
Instituto Histórico. Nessa perspectiva, Joël Candau em “memórias e amnésias coletivas” 10 oferece
reflexões interessantes para entender como as instituições se inserem e se apropriam das
comemorações como políticas de memória, ou seja, o que deve ser lembrado ou deve ser esquecido.
De acordo com os estudos biológicos o homem não vive confinado a sua cabeça, mas são seres
sociais, sendo afetados pela natureza coletiva. O conceito de “memória” merece ser historicizado,
considerando o deslocamento da questão da memória para além do ato individual. A obra de
Maurice Halbwachs11, oferece significativa contribuição para o debate ao falar em “memória
coletiva”. O autor não abandona o lugar do “lembrar” do indivíduo, o que ele faz é destacar como as
memórias individuais são articuladas. Para Halwaschs o indivíduo nunca se lembra sozinho, ele
volta para o passado, seu ou do outro a que pertence, recorrendo-se, mais ou menos, dos quadros
sociais em que vive.
Contudo, para Candau, Halbwachs teria forjado e imposto o conceito de memória coletiva.
Candau considera que a memória individual pode ser socialmente orientada, mas isso não significa
que seja, necessariamente, partilhada. O autor aponta algumas armadilhas que podemos incorrer ao
pensar que a partilha é garantida. Uma significa confundir as recordações memorizadas e as
manifestadas, visto que, o vivido torna-se diferente do recordado, e, por conseguinte, do narrado.

10
CANDAU, Joel. Memórias e Amnésias coletivas. In. CAUDAU, Joel. Antropologia da Memória. Instituo Piaget,
2005. p.83-122.
11
HALBWCHS. Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

763
764

Diferentes contextos podem estimular uma multiplicidade de narrativas sobre um mesmo


acontecimento.
Isso pode ser observado nas apropriações dos acontecimentos nacionais e/ou fluminenses que
são acionados, como dados considerados importantes, para a história local. As experiências do
passado da cidade de Duque de Caxias são ressignificadas, ou mesmo fortalecidas, diante dos
acontecimentos no âmbito fluminense ou nacional. Conforme os dados da seguinte matéria:

“O Instituto Histórico de Duque de Caxias organizou, no último dia de 15 de maio,


uma comemoração pelo fim do conceito de ‘município de Segurança Nacional’. A
data marcou o 6º aniversário da emenda constitucional 25/85, que restitui a
autonomia política dos municípios (...) Depois da sessão solene na Câmara de
Vereadores, foi aberta a exposição ‘O senador Luís Alves Lima e Silva’, com fotos e
documentos do Patrono da Cidade””12.

Para essa comemoração foi realizada uma exposição sob o título: “O senador Luís Alves de
Lima e Silva “13. Atividades que estavam articuladas aos momentos de comemorações da cidade
são associadas as lembranças, indicando o deveria ser compartilhado por todos. Nesse sentido, os
agentes do Instituto Histórico realizam meios e procedimentos que visam lembrar/esquecer o que
consideravam de importância para todos.
Essas operações desenvolvidas pelo instituto indicam uma inserção em uma perspectiva
nacional de fortalecimento de determinadas memórias. As práticas de seleção, valorização,
compartilhamento de determinados eventos do passado são parte das relações de poder que
objetivam promover uma cultura histórica local e regional. De acordo com Sanchez Costa14, a chave
da “cultura histórica” permite entender como valores e práticas são maneiras de significar algo com
diferentes formas e meios, diante de mecanismos que implicam nos “usos do passado”. Tais
práticas são possíveis de serem identificadas no conjunto de recortes de jornais sob o título: “Ação
Educativa e Cultural no Instituto Histórico de Duque de Caxias – 1991-1996 (Testemunho da
Imprensa) ”. As reportagens indicam uma seleção a partir da atuação da gestora, possivelmente,
como meio de fortalecer a importância de sua gestão para o espaço e reforçar a relevância dessa
instituição para a região, em especial no aspecto político.
São 22 notícias selecionadas de diferentes periódicos, e agrupadas com um texto de
apresentação da diretora do período, Gladis Braga Figueira 15. Esses dados indicam que além da

12
Recorte de uma nota no jornal, material que compõe a seleção da diretora do IHDC. Não contém o nome do
periódico, apenas consta o título da nota: Bairro em Bairro – junho 1991.
13
Luís Alves de Lima é o patrono da cidade e reaparece em outras exposições do IHDC.
14
COSTA. Fernando Sánchez. La Cultura Histórica. Uma aproximación diferente a la memória colectiva. In. Passado y
Memória. Revista de História Contemporânea, 8, 2009, pp267-286.
15
Essa documentação consta na seleção de documentos anexo da monografia de Sandra Aguiar (2003). Entretanto, não
há análise do material na monografia, e nem referência precisa da localização no acervo do IH. Isso sugere a

764
765

relevância dos periódicos para identificar as ações do IH ao longo do tempo, o uso desse
instrumento, a imprensa, também é parte da construção da história do IH e do que se deseja
representar para a região. A seleção dos artigos da imprensa são meios de fortalecimento da
memória dos próprios atos de memória realizados pelo IH. E, em certa medida, são uma análise, ou
um balanço, das fases da instituição. Como pode ser observado no trecho da apresentação:

Já no primeiro ano de existência, esta instituição, angariando mais de 5 mil peças, adotou a
mesma orientação imprimida por Gustavo Barroso ao Museu Histórico Nacional: para forjar
sentimentos cívicos nos indivíduos, privilegiava uma concepção ética e pedagógica da
História e, não, a busca da verdade sobre o passado. (Apresentação Gladis Braga).

O texto segue com dados sobre uma nova fase da Câmara Municipal, no qual, o presidente
da Câmara16, local sede do IH, teria adotado, em 1991, “recomendações da UNESCO e da
legislação federal”. Tais orientações, segundo o documento, entendem que a memória é viva, e que
o guardião dos bens culturais é o homem, que o faz através de suas tradições e laços familiares.
Nesse sentido, a diretora justifica que o IH passa por uma nova fase, e que a memória é dinâmica,
logo, o IH se preocupa em praticar ações culturais e educativas, ou seja, “um conjunto de
intervenções multidisciplinares que propicia à escola e à comunidade melhor conhecimento, maior
participação e uso mais adequado dos bens culturais, fortalecendo a identidade” 17. E o texto de
apresentação, de apenas uma página, encerra do seguinte modo: “ Os recortes de jornais e revistas
que seguem são o testemunho dos esforços realizados no período de 1991-1996 para revitalizar esta
instituição”.
Esse parece ser um novo momento do IH, como outras leituras sobre seu papel de atuação e
sua capacidade de articulação. Mas, cientes do quando as ações são importantes para o
“fortalecimento da identidade”, ou seja, os usos possíveis do passado para consolidar memórias
desejáveis. Assim, entre mais de 300 fotos e documentos diversos, foi inaugurada no dia 14 de
agosto de 1991 a amostra “ A expressão de Caxias”. A diretora Gladis Braga, em entrevista ao
jornal “A Folha da Cidade”, diz que: “está na hora de se mostrar que o cidadão anônimo vem
fazendo pelo progresso desses 442 quilômetros quadrados de chão fluminense” 18
. A matéria sob o
título “memória viva” contém informações que o evento apresenta a contribuição de empresários,
mães de famílias, políticos, “e até meninos de rua” para a construção do município. Isso indica
seleções e ações do IH, como parte da construção do território. A matéria, ainda destaca que entre

necessidade de investigação a qual material compõe tal seleção, se é parte de um relatório, ou um projeto da instituição.
Até o momento a documentação não foi localizada no acervo do IH.
16
Jorge Amorelli.
17
Pagina de apresentação- documento “Ação Educativa e Cultural no Instituto Histórico de Duque de Caxias 1991-
1996 Testemunho da Imprensa”. p.1.
18
Folha da Cidade 09/08//1991 -no 1894. Matéria “História viva”.

765
766

os convidados para a abertura do evento estaria o “Dr, Hildebrando de Goés, presidente da Cedae e
filho do pioneiro do saneamento da Baixada”, um importante empresário para os interesses políticos
da cidade.
Foram mais quatro notícias sobre essa exposição revelando motivações e leituras associadas
ao evento. Dentre elas, a diretora explica que desde a década de 1930 a cidade de Duque de Caxias
comera o aniversário de Lima e Silva, sendo esta uma das maiores festas cívicas da cidade,
solenidades com perfil militar. Contudo, Gladis complementa na matéria, que ao logo dos anos o
evento foi se configurando em “manifestações populares em torno das condições de vida ou mesmo
de protesto contra a supressão, em nome da segurança nacional, do direito do povo de eleger
diretamente os governantes. ” 19
Assim, a diretora segue afirmando no texto, que reconhece que o
IH precisa seguir a comunidade, e que a exposição tem um caráter didático, de acordo com as
“diretrizes do Programa de Ação Cultura e Educativa introduzido no Instituto”20.
Essa “estratégia” de ressignificação do evento, revela uma percepção de outra armadilha da
noção de memória partilhada, analisada por Candau21 . Consiste em induzir a existência de uma
memória partilhada a partir da constatação de atos de memória, como as comemorações ou
construções de museus. Tais atos podem delimitar uma memória decidida coletivamente, mas não o
acesso as suas representações. Nesse aspecto, as atividades desenvolvidas pelo IHDC indicam um
enquadramento dessa perspectiva de uso do passado. Os atos de memória, através das constantes
práticas de comemorações, em especial na década de 1990, momento destacado na documentação,
oferecem um interesse em forjar uma memória partilhada aos moradores da cidade de Duque de
Caxias, mas que também são ressignificadas com a mesma expectativa. O que pode até indicar uma
área de circulação das recordações, mas que não determina as vias que cada um vai seguir em suas
apropriações desses eventos.22
Em outra matéria, da “Folha da Cidade”, consta o nome de diferentes participantes na
inauguração do evento, enfatizando a relevância do IH e das ações para distintos setores da cidade.
Além do presidente da CEDAE, Hildebrando de Goes, também estiveram presentes: Dalva
Lazaroni, primeira diretora do Instituto Histórico, o secretário de desenvolvimento Social, Ruyter
Poubel23, a secretária de Educação, Solange Maria Amaral, o deputado Luis Novaes e “professores
que atuaram em Duque de Caxias nos últimos 50 anos” 24.

19
Jornal de Hoje 13/08/1991. Matéria “ Visão Geral- A terra e o povo”.
20
Idem.
21
CANDAU, Joel. Memórias e Amnésias coletivas. In. CAUDAU, Joel. Antropologia da Memória. Instituo Piaget,
2005. p.83-122.
22
Idem.
23
Também fundador do jorna “A Folha da Cidade”
24
Folha da Cidade- 16/08/1991. Matéria: Exposição conta história de Caxias no início do século”.

766
767

As reportagens do ano de 1992 apresentam outras atividades vinculadas a uma nova visão
do IH. Com um olhar para o futuro, como indica o título da manchete, o IH se organiza para realizar
um “chá no museu” com os vereadores e prefeito eleitos, que tomariam posse em 1993. A diretora
considera que o IH está em outra fase, na qual seria preciso que a cultura fosse ao encontro do povo
e não esperasse apenas visitas. Ela considerava, que os “seus deveres para com a Educação e a
Cultura são imensos, mas nenhum deles tem a dimensão do compromisso com o fortalecimento da
cidadania, assumindo como objetivo síntese da instituição”25.
A diretora elenca eventos, aponta novos conceitos de museu, outras posturas do IH e faz
balanços. Dentre as atividades do período estariam os seguintes eventos: “ A Terra pede água, por
ocasião da Eco 92”; “Criança -Poesia também faz literatura, em colaboração com os alunos da
Escola Municipal Visconde de Itaboraí”; a exposição “Venha, Veja e Vote, com participação de
grupo de escoteiros de Duque de Caxias e dos candidatos às eleições municipais”. Essas atividades
na reportagem são descritas, pela diretora, em oposição à definição de museu de Aurélio Buarque
de Holanda: “ lugar destinado à reunião e exibição de objetos antigos” 26
. Para Gladis, a fase que
estava sendo vivida era do “momento de levantar a verdadeira história política do Município e
projetor para o futuro a experiência do passado.”27
Ainda no ano de 1992, o IH se preparava para comemorar os 50 anos do município, e a
primeira atividade foi a gravação de uma entrevista com Elias Lazaroni, que ocupou uma cadeira da
câmara entre os anos de 1958/1962, como representante do PSB. Lazaroni disse de “sua satisfação
pelo fato do IH, que considera uma das maiores obras de sua vida, ter finalmente encontrado
caminho que havia traçado para ele (...) desenvolvendo projetos que mobilizam a população para a
utilização da História como ferramenta de construção do futuro”28. Além do depoimento de
Lazaroni, também estavam previstas as seguintes atividades: a publicação da história Política de
Duque de Caxias, a realização de “encontros para aperfeiçoamento de professores de História e
Lideranças Políticas”.
Essa reportagem fornece nomes e dados importantes para o entendimento da administração
do IH e de algumas alterações, dentre elas a criação da Associação dos Amigos do Instituto
Histórico. Formada pela diretora do IH, Gladis Braga Figueira, Barboza Leite, Stélio Lacerda,
Rogério Torres, Armando Valente, Guilherme Peres e Ana Lúcia Castro. Essa associação é
apresentada na documentação como uma “restruturação da entidade”, que passou a substituir o

25
Periódico sem identificação. Setembro de 1992. Título da matéria: Instituto Histórico atua agora com olhos no
futuro”.
26
Idem.
27
Idem.
28
Periódico não identificado. 30 de outubro de 1992 – p. 5. Título da matéria: Instituto Histórico já se prepara para
festejar 50 anos de Município”.

767
768

Antigo Conselho do Instituto, transformando seus integrantes: “Abelard Brayner, Ademar Constant,
Dalva Lazaroni de Moraes, Sylvio Goulart, Lais Costa Velho, e outros”, em “Beneméritos da
Amlhduc”29
Desse modo, Candau30, ainda auxilia no entendimento dos esforços de eventos associados as
comemorações. Ele considera que tais atos contribuem para uma representação do grupo e uma
pertença do grupo, como um todo homogêneo. Mas, que são parte de um conteúdo da narrativa que
pode ser associado a uma noção de memória coletiva, implicando em uma terceira armadilha, na
qual se considera que o que é dito, e/ou escrito abarca a memória coletiva. Os registros documentais
indicam caminhos da pesquisa, com nomes, datas e eventos, e, além disso, reforçam os cuidados de
análise com escritas e registros que se propõe construir uma certa memória coletiva.

Considerações Finais
A constituição do Instituto Histórico, fundado em 1971 - durante o período militar – que passa a
ocupar um lugar de referência para as pesquisas e para as produções de conhecimento da região,
também compõe parte da construção das identidades periféricas fluminense. Identificar as
mudanças ou as permanências de ações produzidas nesse espaço, a partir das alterações no cenário
político, especialmente, após a década de 1980, representam com a região foi se constituindo
baseada, também, nas relações entre o poder e o saber.
As comemorações, os eventos, as amostras realizadas no Instituto Histórico Thomé Siqueira
Barreto, e registradas nas páginas dos principais períodos da cidade, são reflexos da importância
dessa instituição. A seleção e a valorização desses registros pela diretora do Instituto Histórico
demarcam os significados que o passado imprimia para os agentes envolvidos nas construções e
consolidações de memórias.
O diálogo com as atuais políticas públicas através dos projetos desenvolvidos pelos intelectuais
que “ocupam” esse espaço. Quem são os agentes que estiveram diretamente ligados a esse espaço
e conseguiram produzir, publicar e divulgar suas visões de mundo sobre região? Quais são as
propostas dessas produções e a quem interessa? Como o IHDC se apresentava como um espaço de
vanguarda na região? Como se articula ou articulou com outros institutos da Baixada Fluminense?
Existiam contradições entre o “fazer histórico” da época de produção e as escritas realizadas? E
quais as propostas pedagógicas e culturais desses agentes, ao longo do tempo? Essas são algumas
questões que permeiam a presente pesquisa, que ganha novos contornos com a seleção de notícias,

29
idem
30
CANDAU, Joel. Memórias e Amnésias coletivas. In. CAUDAU, Joel. Antropologia da Memória. Instituo Piaget,
2005. p.83-122.

768
769

sob o título “Ação Educativa e Cultural no Instituto Histórico de Duque de Caxias (1991- 1996) –
O Testemunho da Imprensa”.

Bibliografia:

ALEXANDRE, Maria Lucia Bezerra da Silva. Um cenáculo de letrados: Sociabilidade, Imprensa e


Intelectuais a partir da Arcádia Iguassuana de Letras (AIL) (Nova Iguaçu, 1955-1970). Nova
Iguaçu, 2015. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
AGUIAR, Sandra M. de. Instituto Histórico “Vereador Thomé Siqueira Barreto” uma História, um
nome. Duque de Caxias: Monografia pela FEUDUC, 2003.
AMARO, Tania. Instituto Histórico: 40 anos de História. In Revista Pilares da História, edição
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AVELAR, Alexandre de Sá Avelar, GONÇALVES, Marcia de Almeida. Giro Linguístico e Escrita
da História nos séculos XX e XXI. In. Teoria e Historiografia: Debates Contemporâneos . Jundiaí:
Paço Editorial, 2015.
BRAZ, Antônio Augusto. De Merity a Duque de Caxias: encontro com a História da Cidade.
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CANDAU, Joel. Memórias e Amnésias coletivas. In. CAUDAU, Joel. Antropologia da Memória.
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771
Comunicação e práticas políticas no império português: notas de pesquisa sobre a
atuação da Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos no período do vice-
reinado do 2° marquês do Lavradio

Estevão Barbosa Damacena*

Resumo: A boa governabilidade no mundo ultramarino da monarquia pluricontinental portuguesa


dependia diretamente de uma eficiente comunicação entre seus mais variados órgãos político-
administrativos. O reino de Portugal estava separado de suas colônias pelas águas do Atlântico e do
Índico. As práticas políticas que envolviam reino e ultramar estavam conectadas às redes de
comunicação que cruzavam os oceanos com o objetivo principal de se manter a soberania régia sobre
seus domínios. Temos por objetivo neste trabalho discutir a importância do tema da comunicação
política nas práticas políticas do império português no século XVIII, tendo por base uma investigação
das correspondências oficiais trocadas entre a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios
Ultramarinos e o vice-rei do Estado do Brasil, o 2° marquês do Lavradio nos anos de sua
administração (1769-1779).

Palavras chave: Império Português; Vice-rei Marquês do Lavradio; Secretaria de Estado da Marinha
e Negócios Ultramarinos;

Abstract: An profit governance in the Overseas Portuguese Monarchy depended directly on an


efficient communication among its most varied political-administrative institutions. The Kingdom of
Portugal was separated from its colonies by the waters of the Atlantic and the Indian Ocean. Political
practices involving kingdom and overseas were connected to the communication networks that
crossed the oceans with the main objective of maintaining the royal sovereignty over their domains.
This paper’s aim is to discuss the importance of the topic of Political Communication in the Political
Practices of the Portuguese Empire in the 18th century, based on an investigation of the official
correspondence exchanged between the “Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos”
and the Viceroy of the State of Brazil, the 2nd Marquis of Lavradio in the years of his administration
(1769-1779).

Keywords: Portuguese Empire; Vice-rei Marquês do Lavradio; Secretaria de Estado da Marinha e


Negócios Ultramarinos;

I- Comunicar para agir: a comunicação política como o elo da soberania.

O reino de Portugal teve de aprender a lidar com dificuldades e limitações na manutenção de


sua soberania no diversos territórios ultramarinos anexados ao seu império desde a conquista de celta
em agosto de 1415. Dentre as dificuldades apresentadas, a que melhor caracterizava o período
moderno consistia nas distâncias geográficas entre os Estados que compunham este império
ultramarino. Como afirmam João Fragoso e Nuno Monteiro no livro Um Reino e suas Repúblicas no

772
Atlântico, “o rei, cabeça da monarquia, estava por definição ausente” e, sendo assim, dispunha de
“escassos meio para controlar seus territórios” além mar. 1
Há uma extensa discussão na historiografia sobre a configuração do poder exercido neste
Império. O fôlego das pesquisas nas ultimas décadas tem buscado novas abordagens sobre a relação
que foi arranjada entre o centro lusitano e suas conquistas, o que dentro do debate historiográfico
podemos enunciar como a relação centro-periferia. 2 Historiadores vêm se empenhando em se
desviarem de uma análise enrijecida, e simplificadora desta relação; suas conclusões estabelecem
problemas numa afirmação de que houve uma dicotomia entre metrópole-colônia no período
moderno. O que se percebe, todavia, é o fato de que a monarquia lusitana e suas mais longínquas
conquistas não tiveram como base de relação uma subserviência incondicional dos conquistados ou
um poder absoluto do conquistador. Pelo contrário, temos visto trabalhos que estabelecem como norte
o questionamento da noção de absolutismo monárquico no Império Português. Evidencia-se que o
poder no império era disputado, competido, e também compartilhado entre varias instâncias, não só
no reino, mas também no ultramar. 3
Não obstante, um problema que caracterizou esta relação do reino com seus territórios
ultramarinos foi a distância geográfica. A monarquia lusitana necessitava de uma organização, de
uma fluidez na comunicação para que as pontas dos fios que compunham essas redes de poder e
comércio presentes por todo o império, pudessem ser de fato conectadas.4
As práticas políticas desta relação só poderiam ser tramadas e executadas uma vez que a
comunicação fosse fomentada. Era a partir dela que os espaços de poder separados e difusos poderiam
adquirir uma coesão imperial. As reivindicações se materializavam em cartas, ofícios, instruções e
minutas, cujos conteúdos são os mais diversos, delineando assim as a relação multifacetada da coroa
com seus vassalos além-mar: pedido de mercês, conflitos de jurisdição, políticas coloniais, denúncias
de contrabando, sedição, estratégias de defesa, todo este mar de ordens vindas tanto de Lisboa, quanto
das conquistas, cruzavam os oceanos em forma de correspondências. Por isso, Antonio Manuel

1 * Aluno do curso de Mestrado em História pelo PPGH/UERJ . Pesquisa desempenhada com o auxílio da CAPES.
Email: estevaodamacena@gmail.com
FRAGOSO, João. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. (Orgs.) Um reino e suas repúblicas no atlântico. Comunicações
políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p.13

2 SHILS, Edward. Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992, pp.53-71.


3 GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português. In:
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes. Política e negócios no império português,
séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 181.
4 THOMAZ, Luiz Felipe. “Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no Século XVI”. In:
_________________. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, pp. 207-243.

773
Hespanha afirma que a construção da monarquia lusitana na época moderna teve por base um “oceano
de papeis”.5
Por parte da Coroa, o que se visava era um constante trabalho administrativo de suas
instituições no cumprimento das reais ordens. O objetivo era manter a soberania de sua majestade nas
rotas marítimas, assim como em espaços cujo controle territorial era importante do ponto de vista
religioso, político e econômico.6 Por outro lado, havia os poderes locais e os representantes do poder
régio nas conquistas. Estes indivíduos, frequentemente serviam como uma espécie de “termômetro
de realidade” para as ordens régias, pois era a partir das demandas e das informações locais que a
coroa poderia se articular e organizar as determinações que porventura interferiria na vida política do
ultramar. Seria razoável aqui inferirmos a ideia de que, para que os dois lados do atlântico pudessem
ser “vistos” e “ouvidos”, as instituições administrativas que compunham o jogo de poder nesta relação
do reino com a o mundo ultramarino deveriam ser responsáveis em bem comunicar, deviam exigir de
seus vassalos no real serviço que comunicassem tudo que se passava.
A soberania da autoridade régia perpassava diretamente pela ponta de uma pena; as
correspondências remetidas e recebidas pelos agentes régios no ultramar continham mais que letras,
frases e parágrafos. Estes pedaços de papel carregavam consigo um poder de conectar, aproximar
aquele que estava distante. Seu conteúdo ganhava corpo uma vez que seu destinatário entendesse o
que deveria ser feito. Por isso, entendemos que a soberania do poder régio perpassava diretamente
pela comunicação política .
É esse o pano de fundo de nossa pesquisa. Não há soberania e diálogo, tampouco negociação
entre os espaços de poder do Império Português sem que antes estas reivindicações não fossem
comunicadas. Como exemplo destas contingências e dilemas da administração no Império, temos por
investigação a comunicação política travada entre a Secretaria de Estado dos Domínios Ultramarinos
com o Vice-rei do Brasil, o 2° Marquês do Lavradio no período de 1769-1779. Administração esta
marcada por um verniz contextual de mudanças e reformas propostas pelo consulado pombalino, e
em segundo pela cidade do Rio de Janeiro àquela altura cumprir uma papel de extrema importância
política e econômica dentro do complexo atlântico.

5 HESPANHA apud BICALHO ; COSTA.”O conselho ultramarino e a emergência da secretaria de estado na


comunicação política entre reino e conquistas”. In: FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.
6 THOMAZ, Luiz Felipe. Op. cit, p.207-210

774
Notas de pesquisa da comunicação entre a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios
Ultramarinos e o Vice-rei Marquês do Lavradio (1769-1779)

Em suas funções práticas, tanto o Conselho Ultramarino, quanto a Secretaria de Estado da


Marinha e Domínios Ultramarinos, eram órgãos da monarquia portuguesa cuja missão era em se
especializar nos trâmites administrativos do ultramar. No caso do Conselho Ultramarino, criado em
1643 no contexto pós-restauração, seu funcionamento era plenamente consultivo. Sempre que surgia
uma demanda advinda dos domínios, era o referido Conselho responsável por prestar auxílio ao Rei,
para que este deliberasse sobre a matéria requerida. Grosso modo, a função do Conselho era elaborar
consultas como instrumento de auxilio da decisão do monarca. 7
A Secretaria de Estado da Marinha e Domínios ultramarinos surge no cenário político em
1736 também como órgão de auxilio ao monarca nos despachos concernente ao ultramar. Junto com
a referida Secretaria, também foram criadas duas outras mais: a Secretaria dos Negócios Estrangeiros,
e Secretaria de Estado dos Negócios Interiores do Reino. Maria Fernanda Baptista Bicalho analisa o
funcionamento delas e destaca a dificuldade de se medir o peso que de fato tinham nos despachos
régios. Diferente do Conselho, as Secretarias não tinham funções consultivas. Embora os despachos
fossem régios, os secretários tinham a regalia de assinarem em nome do Rei. 8
Não obstante, as Secretarias só viriam a ter um maior protagonismo na segunda metade do
XVIII, devido aos ímpetos mais centralizadores de Sebastião de Carvalho. As consultas das Juntas e
Conselhos agora passariam a ser direcionadas aos secretários, sendo estes responsáveis em auxiliar o
Rei na tomada de suas decisões.
Sobre a Secretaria da Marinha e Domínios Ultramarinos, a que mais de perto nos interessa,
sua criação não era para substituir o Conselho Ultramarino. Entretanto, progressivamente o referido
Conselho viu-se em diminuição do número de suas atribuições, uma vez que a Secretaria centralizou
a recepção da esmagadora maioria das correspondências advindas dos domínios ultramarinos, como
fica explicitado através dos dados da Tabela 1. 9

7 BICALHO,Maria Fernanda Baptista; COSTA, André “O conselho ultramarino e a emergência da secretaria de


estado na comunicação política entre reino e conquistas”. In: FRAGOSO, João. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. Cit.,
p.151.
8 BICALHO,Maria Fernanda Baptista; COSTA, André, Op.Cit., p.140.
9 Idem, p.151

775
Tabela 1. Receptores no reino das correspondências enviada das conquistas

Por mais que no período pombalino fique notória a concentração das correspondências
advindas das conquistas pelas Secretarias, temos parcimônia em afirmar que esta configuração
política encontra ressonância numa nova ordem, baseada já num tipo de governo ministerial tal como
Bicalho salienta. Pela documentação fica extremamente difícil sabermos até que ponto Martinho de
Melo e Castro foi de fato independente nos despachos e decisões que a ele eram requeridas através
das demandas de Lavradio.
No Gráfico 2 apresentamos o levantamento quantitativo de todas as correspondências oficiais
que a Secretaria de Estado dos domínios ultramarinos recebeu e enviou ao vice-rei do Lavradio no
tempo que este esteve à frente da capitania Fluminense (1769-1779), correspondências estas contidas
no Arquivo histórico ultramarino.

Gráfico 2- Total de correspondências remetidas e enviadas pela Secretaria de Estado dos Domínios
Ultramarinos com o Vice-rei Marquês do Lavradio no período de 1769-1779

168 168
200
150
100 31 31
50
0

Lavradio Secretaria de
Estado
Enviadas Recebidas

Os dados chamam a atenção para um problema. Há uma disparidade imensa dos números de
emissão e recepção feitas pela Secretaria. Ela muito mais recebeu correspondências do vice-rei, do
que propriamente lhe enviou. Não custa lembrar o fato de que trinta e uma correspondências oficiais
enviadas por Martinho de Melo e Castro ao Vice-Rei Marquês do Lavradio é um numero levantando

776
a partir do AHU. Podem haver mais documentos que o arquivo não tenha noticiado. Neste sentido,
não podemos afirmar categoricamente que em dez anos, a secretaria tenha enviado apenas trinta e
uma cartas o vice-rei. Podem haver mais.
Mas independente disto, trinta e uma é um número baixo. Dado o contexto posterior da guerra
de sete anos (1756-1763) ser de conflitos nas fronteias ao sul com os castelhanos, além de uma grande
ameaça de perda da soberania de Colônia do Sacramento, Rio Grande de São Pedro e também Santa
Catarina, era de se esperar uma atitude mais ativa do centro na busca de distensão deste conflito.
Atitude esta que não encontra ressonância na quantificação de apenas trinta e uma carta. Uma hipótese
que levamos adiante na interpretação destes números aponta para uma possível autonomia do vice-
rei na administração daquele Estado. Talvez Lisboa aqui tenha muito pouco interferido no jogo
político colonial, uma vez que confiava em seu vassalo além mar na condução do bom governo.
Até aqui tentamos esboçar um panorama geral dos temas e problemas que envolvem e
instigam nossa pesquisa. Ainda estamos num inicio de trabalho investigativo, e consequentemente
isto nos impossibilita aqui de uma empiria mais sofisticada e de maior fôlego conclusivo. Intentamos
nos próximos trabalhos trazer mais respostas a estes problemas encontrados em um período tão
complexo do império português que é o Século XVIII, em especial a segunda metade realçando e
sublinhado pela ascensão das políticas mais incisivas propostas por Sebastião de Carvalho e os
estadistas à sua volta.

Bibliografia:

BICALHO, Maria Fernanda Baptista; COSTA, André “O Conselho Ultramarino e a emergência da


Secretaria de Estado na comunicação política entre reino e conquistas”. In: FRAGOSO, João.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. (Orgs.) Um reino e suas repúblicas no atlântico. Comunicações
políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017.

FRAGOSO, João. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. (Orgs.) Um reino e suas repúblicas no atlântico.
Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017.

GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo


português. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes. Política e
negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.

THOMAZ, Luiz Felipe. “Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no Século XVI”. In:
_________________. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, pp. 207-243.

SHILS, Edward. Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992, pp.53-71.

777
História Ambiental com alunos da Maré e da Ilha do Governador:
Perspectivas de estudantes do ensino básico

Fabiano Cabral de Lima1

Resumo: No ano de 2015 foi proposto para licenciandos do curso de História da UFRJ, que eles
elaborassem linhas do tempo interativas online, com recortes dentro da História do Rio de Janeiro,
como propostas didáticas a serem aplicadas para alunos do ensino básico. Uma das propostas foi uma
linha do tempo baseada em Prezi, sobre a História Ambiental da Ilha D'Agua, localizada na Baia de
Guanabara. A Ilha sofreu transformações, assim como a baía durante o tempo, resultantes da
urbanização. Promover essa sequência didática com alunos da Maré e da Ilha do Governador, e
possibilitou um diálogo com a história local e reflexões sobre a sustentabilidade. Os alunos
produziram redações com soluções sustentáveis ao meio ambiente em que vivem. O debate sobre o
meio ambiente entra em voga em momento em que a lei sobre a Educação Ambiental foi alterada na
LDB.

Palavras chave: Prática de ensino, Sustentabilidade ambiental, Interdisciplinaridade

Abstract: In 2015, it was proposed for students of History of UFRJ an exercise for them to elaborate
interactive online timelines, with cuts on the teaching of History of Rio de Janeiro. These proposals
were intended to be applied in the classroons. One of the proposals was elaborated in a timeline
format, based on Prezi, on the Environmental History of Ilha D'Agua, located in Guanabara Bay. This
island underwent environmental transformations, as well as the bay during the time, like results of
the urbanization. Promoting this didactic sequence with students from Maré and Ilha do Governador
enables a dialogue with local history and as a result we obtain reflections on environmental
sustainability. Students produced essays with solutions for preservation using sustainability within
the environment in which they live. The debate on the environment comes into play at a time when
the Law on Education has been changed.

Keywords: teaching practice, environmental sustainability, Interdisciplinarity

1. Introdução

Foi realizado no ano de 2015 uma proposta de pesquisa aos alunos de Didática Especial e
Prática de Ensino, do curso de Licenciatura em História, da UFRJ (COSTA et Al., 2016 2; LIMA,
20163). Este trabalho constava em recortes dentro da História do Rio de Janeiro, em formato de linha
do tempo interativa digital.

1 Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: fabianokbral@gmail.com


2 COSTA et Al. Excogitando a proposta de linha do tempo interativa no ensino de história: o caso da
Ilha d'Água e seus diálogos com as Histórias Ambiental, Patrimonial e Local. Poder e Cultura, v. 3, p. 268-292, 2016.
3 LIMA, F.C. Empregando a proposta de linha do tempo interativa no ensino interdisciplinar - A
urbanização e o meio ambiente: perspectivas e expectativas sobre a baía de Guanabara. Educação Básica Revista, v. 2, p.
121-130, 2016.

778
Um dos trabalhos foi proposto em Prezi4 numa sequência didática sobre Historia Ambiental,
aonde os alunos propuseram uma história local da Ilha D’água, localizada na Baia de Guanabara.
A Ilha D’água sofreu transformações na sua paisagem, desde que ela foi cedida para a
Petrobrás ainda nos anos 50, assim como a paisagem da Baia de Guanabara, que conforme o tempo,
também foi alterada, com a instalação de indústrias e também sofrendo consequências do crescimento
urbano das cidades em seu entorno.
Utilizando esta sequência em sala de aula de forma didática com estudantes da Maré, os fazem
refletir e ter consciência ambiental sobre a preservação da Baia de Guanabara, e sobre a educação
ambiental.
A Ilha do Governador e o Complexo da Maré são espaços geográficos que costeiam a Baía de
Guanabara, e por muito tempo, alguns moradores dos locais foram dependentes, inclusive, da prática
da pesca na Baía de Guanabara. A poluição da Baía foi impactante de forma negativa na economia
das regiões e este impacto foi resultado da ocupação industrial e também do aumento da densidade
populacional nestas regiões, conforme discute SEDREZ (2004)5 e FERREIRA (2011)6.
Refletir sobre os espaço geográfico e ambiental através de mapas, fotos e reportagens de
jornais que compõem o Prezi, faz com que os alunos reflitam sobre a preservação do meio ambiente
e a sustentabilidade, utilizando os espaços sociais com um mínimo de impacto possível ao meio
ambiente, além de aprenderem uma referência histórica sobre o local.
Esta aula foi realizada com professores de Português, História e Geografia, com alunos do
ensino fundamental II e Médio, de escolas públicas e privadas, localizadas na Maré e Ilha do
Governador. Na Maré: Estudantes ingressos em um preparatório de um curso privado localizado na
Maré; Na Ilha: Ingressos em um preparatório de um curso privado localizado na Ilha do Governador.
O Experimento foi feito entre os anos de 2016 e 2017.
Após a aula com o Prezi em sala de aula, estudantes do ensino fundamental II e Médio,
escreveram redações dissertativas e argumentativas, aonde os professores mediaram a escrita, e
ajudaram os alunos a construírem opiniões próprias mostrando as suas conclusões e soluções para
sustentabilidade e preservação ambiental da Baía. A seguir, faremos uma análise de amostras de
produções em texto de redação elaboradas pelos estudantes. As produções originais, manuscritas
foram preservadas pela pesquisa, portanto e mostraremos aqui uma transcrição dessas produções.

4 Prezi. https://prezi.com/iay-ohkqvtbt/untitled-prezi/?utm_campaign=share&utm_medium=copy.
Acessos em 12 de agostode 2017
5 SEDREZ, Lise. The Bay of All Beauties: State and Environment in Guanabara Bay, Rio de Janeiro,
Brazil, 1875-1975. Tese de doutorado. Universidade de Stanford, 2004, p. 30.
6 FERREIRA, J. A..A Precarização da pesca artesanal e reprodução do espaço na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro (RMRJ). Revista Geográfica de América Central. Número Especial. 2011.

779
2. Análise das Produções dos Estudantes da Maré:

Analisamos aqui a transcrição do que foi produzido pelos estudantes da Maré. As identidades
dos estudantes também foram preservadas.

“A poluição é causada pelo petróleo. O Petróleo foi jogado pelos canos que foram
destruídos o meio ambiente. O Petróleo vazou e matou os peixes. Os Pescadores
perderam o emprego. A Construção de canos mais resistentes poderiam evitar
vazamentos”. (Estudante A, texto de redação)

Estudante “A”, tem 12 anos de idade, e cursa o sexto ano do Ensino Fundamental em Escola
Privada. Em seu texto foi problematizada a manutenção dos dutos que levam petróleo da Reduc
(Refinaria Duque de Caxias) até a Ilha D’Água. Observamos que Estudante A se atentou ao problema
dos vazamentos de petróleo que ocorreram no passado na Baía de Guanabara, e que é exemplificado
no Prezi.

“Impedindo construções de indústrias, bairros em volta das praias da baía de


Guanabara, criando leis para evitar a poluição e tornando medidas para melhorar a
vida das pessoas que frequentam as praias, melhorar as pescas.” (Estudante B, texto
de redação)

Estudante “B” tem 15 anos de idade, e cursa o nono ano do Ensino fundamental em Escola
pública municipal. Estudante B se atentou ao problema ambiental da poluição de praias e da água da
Baía de Guanabara, que causa prejuízo para pescadores e afasta banhistas.

“Podemos também ter uma solução para a despoluição, como exemplo, menos lixo.
A Petrobrás devia também ajudar na despoluição, pois querendo ou não causaram
isso.” (Estudante C, texto de redação)

Estudante “c”, 16 anos de idade, cursa o Primeiro ano do Ensino Médio, e estuda em Escola
Pública Estadual. “Estudante C” responsabiliza a Petrobrás por parte da poluição da Baía de
Guanabara, e também critica o lixo que é jogado na baía.

780
3. Análise das produções de Estudantes da Ilha do Governador:

Analisamos aqui a transcrição do que foi produzido pelos estudantes da Ilha do Governador.
Análises também foram realizadas em LIMA (2016). As identidades dos estudantes também foram
preservadas.

“Bom, não basta apenas criticar, temos que de alguma forma ajudar a nossa “cidade
maravilhosa”, com soluções simples e eficientes, o que será um desafio. Para uma
cidade limpa e saudável, precisamos, antes de projetos e essas coisas que todos
acham que funcionam, de uma população consciente, se evidenciássemos ainda mais
essa questão da população, já seria um ótimo início, assim afetaríamos uma boa parte
da população; trabalhos comunitários envolvendo a população seria uma ótima ideia,
afinal, não é só a periferia que tem que se dedicar a cidade.” (Estudante 1, texto de
redação).

Estudante “1” tem 14 anos de idade, cursa o nono ano do Ensino Fundamental em Escola
Privada. Na conclusão de Estudante 1, o trabalho comunitário para a conscientização pode ser uma
das soluções para aliar a urbanização e o meio ambiente de forma saudável.

“Podemos ver então, que o caso da Baía de Guanabara ainda demorará para ser
resolvido. As consequências geradas pela urbanização descontrolada ainda irão
persuadir durante muito tempo, mesmo que uma decisão seja tomada agora.”
(Estudante 2, texto de redação).

Estudante “2” tem 14 anos de idade, cursa o nono ano do Ensino Fundamental em Escola
Privada. Estudante 2 mostra que ações imediatas não geram um impacto imediato na situação da Baía
de Guanabara, e que ações não tomadas agora, terão impactos no futuro.

“Por isso devemos repensar mais sobre esse processo de Globalização, pois temos
que nos conscientizar para que o processo de globalização seja benéfico tanto para o
ser humano, quanto para o meio ambiente, pois é importante também manter o
equilíbrio no planeta terra.” (Estudante 3, texto de redação).

Estudante “3” tem 14 anos de idade, e cursa o nono ano do Ensino Fundamental em Escola
Privada. Estudante 3 mostra uma preocupação com a Globalização no sentido da industrialização
sustentável, e isso afeta o meio ambiente da Baia de Guanabara.

781
4. Conclusões

A linha do tempo em Prezi, foi apropriada pelos estudantes dos cursos e debatida. Em seus
textos de redação, estudantes mostraram absorção do conteúdo de aula abordando o problema
ambiental da Baía de Guanabara.
O fator que chamou a atenção nos textos é a preocupação sobre as indústrias químicas na baía
e os acidentes ocorridos ao longo do tempo, sendo resultantes da globalização e do crescente mercado
industrial de forma não sustentável, produzindo lixo ou acidentes químicos presentes de forma
majoritária nos textos.
Os estudantes tiveram contato com a História Local, que de acordo com COSTA et Al.
(2016)7: “(...) sem a compreensão da história local, daquilo que lhe toca de forma mais próxima, o
aluno terá maior dificuldade na contextualização de eventos mais longínquos, ainda que o afetem se
considerados na sua temporalidade.” Neste trecho, os autores demonstram a necessidade de diálogo
dos alunos com a história local para que os mesmos compreendam o presente que eles vivenciam, na
problematização da sua sociedade, ou local que os mesmos habituam.
O debate sobre o meio ambiente é realizado em disciplinas escolares de forma interdisciplinar,
utilizado contextos e recortes próprios em comum entre disciplinas, e era uma demanda da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, e que atualmente está em debate para inclusão na Base Nacional
Comum Curricular.
O estudo sobre o meio ambiente em escolas públicas foi debatido por MEDEIROS, RIBEIRA
e FERREIRA (2011)8, e as autoras debatem que a educação ambiental deve ser um exercício para a
cidadania, e que este tema deve estar em conexão entre escolas e comunidades em prol da mudança
do comportamento humano.
É importante destacar que os artigos da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) que
discutem educação ambiental no ensino básico foi excluída na última atualização em 2017, e incluído
nos debates sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

7 COSTA et Al. Excogitando a proposta de linha do tempo interativa no ensino de história: o caso da
Ilha d'Água e seus diálogos com as Histórias Ambiental, Patrimonial e Local. Poder e Cultura, v. 3, p. 268-292, 2016.

8 M.C.S. MEDEIROS.; RIBEIRO, M. C. M. ; FERREIRA, C. M. A. . Meio Ambiente e educação


ambiental nas escolas públicas.. Âmbito Jurídico, v. 92, p. 62-72, 2011.

782
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783
METRÔ - LINHA 2: ensino de história local e o resgate da memória escolar como
estratégias para a educação patrimonial de alunos do subúrbio carioca de Irajá

Fábio de Jesus de Carvalho 1

Resumo: Este trabalho tem como tema o ensino de história local e os usos da memória da escola
como estratégias para a educação patrimonial de alunos do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.
Essa pesquisa terá como espaço uma escola municipal situada no bairro de classe média-baixa do
subúrbio carioca de Irajá. Os alunos participantes são alguns dos matriculados no 7º ano e 9º ano
desta instituição no ano letivo de 2017.

Palavras- chave: história local - museu escolar – patrimônio cultural

Abstract: This work has as its theme the teaching of local history and the uses of school memory as
strategies for the heritage education of students from the suburbs of the city of Rio de Janeiro. This
research will take place in a municipal school located in a Rio de Janeiro middle class suburb called
Irajá. Participating students are some of those enrolled in the 7th and 9th years of this institution in
the 2017 academic year.

Keywords: local history - school museum - cultural heritage

INTRODUÇÃO

Ser professor de História no ensino básico é um enorme desafio. No ensino público, meu
campo de atuação, há especificidades que tornam cada vez mais complicada a tarefa de lecionar. Os
problemas mais agudos, a meu ver, são a precarização dos ambientes escolares e a desvalorização da
carreira docente. Ainda, ao som do atual mantra da crise econômica, cada vez mais e mais recursos,
são retirados de serviços essenciais como a educação.
Somando-se a tudo isso, ainda temos o crescimento de grupos reacionários que, ao que parece,
elegeram os professores de História como inimigos através de projetos como o “Escola Sem Partido”,
por exemplo, que tentam transformar o ensino em uma “monocultura de ideias” tornando o solo do
aprendizado infértil para o debate, para o diverso, para o contraditório.
Estes são os desafios que qualquer “historiador-educador”, para usar a expressão da professora
Selva Guimarães, enfrenta quando se propõe a um ensino de História com vistas a um horizonte
democrático. Não mais a História do século XIX. Aquela centrada somente nas grandes narrativas, a
dos grandes homens e grandes feitos, ainda sobrevivente em muitas salas de aula. Esta se mostra

1 Mestrando do programa ProfHistória – UERJ sob a orientação do Prof. Dr. Daniel Pinha Silva. Bolsista
CAPES. E-mail: fabiuoliveira6@gmail.com

784
antagônica ao propósito de consolidar a democracia, pois a História oitocentista estava focada no
binômio nação/verdade em lugar de alteridade e pluralidade. A nova proposta de produção
historiográfica e de ensino de História é ver este campo do conhecimento como um lugar de produção
de múltiplas narrativas em lugar da narrativa única e frisar o conhecimento histórico como campo das
“possibilidades diversas de realização humana” (ABREU& RANGEL, 2015, p.9). Ou seja. Um
ensino de história que possa fazer os alunos se sentirem parte dela. Um lugar onde possam se enxergar
e enxergar os seus como personagens históricos.
Acredito eu que este trabalho tem uma meta explicitamente política quando se propõe a traçar
uma estratégia de ensino que valorize uma parte da cidade desvalorizada pelo poder público e por
boa parte da própria população, que absorveu o discurso negativo tão colado à palavra “subúrbio” em
nossa cidade.

DESENVOLVIMENTO:

Esta comunicação surge de um projeto, ainda em desenvolvimento, que tem espaço na Escola
Municipal Mendes Viana, localizada no subúrbio carioca de Irajá, bairro de classe média-baixa da
zona norte do Rio de Janeiro. O referido projeto tem como participantes alunos do 7° e 9° ano do
ensino fundamental participantes do “Clube de História”. Este grupo é formado pelos alunos
participantes da oficina de Patrimônio Cultural do programa MAIS EDUCAÇÃO do ano letivo de
2017.
A escola foi fundada em 1º de setembro de 1966. Quanto ao seu prédio, ele é do tipo
“caixote”. Este é o nome pelo qual ficaram conhecidas as escolas construídas pela cidade, nos anos
1960, a partir do projeto do arquiteto Francisco Bologna. O arquiteto era responsável pelo
Departamento de Prédios e Aparelhamento Escolar (DPAE) da Secretaria de Educação. A escola foi
inaugurada no governo Negrão de Lima mas estava dentre os projetos do governante anterior do
Estado da Guanabara, Carlos Lacerda.
A ideia das “escolas-caixote” era a educação de massa: formar o máximo de pessoas com o
menor gasto possível. Utilizaram-se elementos pré-fabricados num estilo de vigas aparentes e
envernizadas além de tijolos expostos. Este padrão de escola possuí três pavimentos, onde existem
dez salas e um pátio interno que serve, também, como refeitório. Este projeto se adequava à
concepção educacional do regime militar de ampliação do ensino primário. (PIMENTEL, 2014)

785
Nos dias atuais, a unidade escolar já não conta com o primeiro segmento do ensino
fundamental. Pelos dados do censo escolar de 2015 são 527 alunos matriculados do 6º ao 9º ano do
ensino fundamental. O corpo docente conta com 23 membros. Boa parte dos alunos atendidos são
oriundos da comunidade do Para Pedro.
Ainda, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação (SME/RJ) de 2015, os alunos se
declaram pardos 52,9%, pretos 12,5% e 31,9% brancos. A respeito da escolaridade dos responsáveis,
a maioria (41,77%) possui o ensino fundamental completo. De maneira geral, em termos
socioeconômicos, os alunos indicaram ter acesso a bens elementares como quartos e banheiros em
casa, assim como bens suplementares como aparelhos de DVD, computador, acesso à internet, TV
por assinatura e renda familiar mensal entre 5 e 7 salários mínimos 2.
O patrono da escola é Francisco Furtado Mendes Vianna, um professor que se destacou nas
primeiras décadas do século XX. Nascido em 1876 e falecido em 1935. Formou-se pela Escola
Normal de São Paulo em 1895 e exerceu diversos cargos ligados à educação. Entre 1919 e 1935 foi
instrutor de ensino secundário no Rio de Janeiro, então capital federal. Se destacou também na
produção de livros didáticos. Sua obra máxima foi a série “Leituras Infantis”, que teve grande
circulação entre 1912 e 1960 em diversos estados como: S. Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso,
Espírito Santo, Paraná, Pará, Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Santa Cataria e Rio Grande do Sul.
(ORIANI, 2015)
As informações acima citadas, que hoje são muitas sobre a unidade escolar, eram
desconhecidas tanto dos alunos quanto de funcionários atuais da escola apenas alguns meses atrás.
Outras informações eram fragmentadas e incertas. Este fato começou a mudar a partir da data de
aniversário de fundação da escola que, em 2016, completou 50 anos. No processo de juntar as
memórias para a construção de uma comemoração, vimos que a tarefa era mais complicada do que
parecia.
Nem mesmo no Centro de Referência da Educação Pública da Cidade do Rio de Janeiro
(CREP) havia informações no acervo sobre nossa unidade escolar. Só tínhamos as datas dos diários
oficiais em que constavam a fundação e o repasse da unidade do estado da Guanabara para o
município do Rio de Janeiro nos tempos da fusão. Duas ou três fotos de nossa fachada e quadra, sem
data certa, mas que pareciam ser de fins dos anos 1990 e início dos anos de 2000. Além disso, a
informação do nome completo de nosso patrono “Francisco Furtado Mendes Viana”, que só então
descobrimos quem era. Achávamos, àquela data, que nosso patrono era “Godofredo Mendes Viana”,
advogado maranhense. Informação errônea que, inclusive, era reproduzida no blog da escola.

2 Dados disponíveis em Latitude – educação georeferenciada disponível em:


http://www.latitude.org.br/escola/33074585/ (acesso em 09/09/2017)

786
O desenvolvimento desta investigação, que está sendo base para a construção de minha
dissertação de mestrado, vem de um significativo esforço. Nossa instituição se localiza em um lugar
de passagem, a Estrada de Colégio. No processo de ir e vir entre os bairros de Colégio e Irajá rumo à
outros locais, visando tomar o metrô, a avenida Martin Luther King ou, então, a Avenida Brasil, no
vai e vem apressado do dia-a-dia da maioria das pessoas, acabou se tornando uma escola invisível.
Sofre de estigmas tão cariocas de ser “favelada” e “suburbana”. Lugares em que, não é raro, os atores
sociais imaginam não existir uma história que valha a pena ser contada, valorizada e muito menos
preservada.
Sobre isso, aluna V., 14 anos, soltou a seguinte frase em uma aula: “Professor, perguntei pro
meu avô sobre como tinha sido a Ditadura aqui. Ele disse que isso aconteceu lá embaixo, na cidade.
Aqui ficou tudo normal”. A afirmativa dessa aluna nos levou a diversas reflexões. Mas, das diversas
e ricas reflexões que vieram, a partir da fala dessa menina, a que chamou a atenção foi o fato de que
o discurso de seu avô coloca o subúrbio como lugar descolado da cidade. O avô não nega a existência
da Ditadura, como muitos hoje, diz que ela existiu sim, porém teve outro espaço como palco: a cidade.
Enxergo aí a dicotomia subúrbio /cidade que no Rio de Janeiro ganha ares de divisão que vai
muito além da simples geografia. Esta visão de um subúrbio descolado da cidade me fez visitar os
estudos de Maurício de Abreu e seu clássico livro dos anos de 1980, “Evolução Urbana do Rio de
Janeiro”. O autor faz um apanhado histórico dos caminhos que a cidade tomou ao longo de sua
evolução urbana, demonstrando que a constituição do subúrbio conforme o conhecemos hoje foi fruto
de escolhas políticas e econômicas ao longo da História de nossa cidade.
O trabalho de Nélson da Nobrega Fernandes, “O rapto ideológico da categoria subúrbio- Rio
de Janeiro (1858-1945)”, aponta o início do século XX como o momento onde o vocábulo subúrbio
mudou seu significado de um local simplesmente nos arrabaldes da cidade (centro) para o significado,
propriamente carioca, de bairros ferroviários ocupados pelas classes subalternas. Com esta nova
definição vem à reboque, segundo o autor, a noção de precariedade, violência, mau-gosto, ou seja,
as visões pejorativas/negativas que se têm de subúrbio em nossa “cidade partida” como a expressão
cunhada pelo jornalista Zuenir Ventura através de seu livro homônimo.
Utilizo o ensino da história local para mostrar aos discentes que sua localidade tem sim uma
história que merece ser ouvida e, claro, trazida para a sala de aula sendo, assim, problematizada.
Procuro trazer à tona uma localidade que vai além da narrativa da violência urbana ou carência de
equipamentos públicos de lazer, cultura, saúde ou educação. Procuro discutir em sala a ideia de
subúrbio como “refúgio dos infelizes” cunhada por Lima Barreto.
Tomo a história local como uma ferramenta de trabalho por entender que ela tem enorme
potencial em sala de uma, pois pode:

787
“Facilitar a estruturação do pensamento histórico e de lhes fornecer um quadro de
referências que os ajude a tomar consciência do lugar que ocupam no processo de evolução espácio-
temporal das comunidades local e nacional”. (Manique, Proença, 1994, p.5 apud CAIMI, 2010,
p.69)
E o que estamos definindo como local? Com o avanço da tecnologia, dos transportes o sentido
meramente administrativo, pensado por GOUBERT (1988) para definir a história local já não basta.
A globalização veio ampliar ainda mais esta visão do local o que, também, acaba por uma necessidade
de maior reflexão sobre esse conceito.
Para o desenvolvimento deste trabalho acredito que o pensamento de BOURDIN (2001) é
mais condizente. Para sociólogo francês, o objeto local é um elemento complexo para pensar o social.
O autor chama a atenção de que a localidade construída tem um enfoque antropológico. O espaço
onde os sujeitos constroem suas relações. Há uma perspectiva de que o local não é fixo mas de
fronteiras mais fluidas. Estudar este espaço é observar as relações sociais constituídas nele. Enfim, a
localidade é uma construção social.
Observando as orientações curriculares municipais percebe-se que a disciplina de História
passa a fazer parte, de maneira mais explícita, da grade curricular a partir do 4º ano. Se determinam
aí os primeiros objetivos, conteúdos e habilidades deste ensino. Preocupa-se que o aluno seja levado
a pensar nas ações coletivas, relações de trabalho através das vivências no bairro, assim com a
diversidade étnica. Tudo conforme o sugerido nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
A história da cidade passa a ser mais explorada a partir do 5º ano. Uma das habilidades
esperadas que o aluno adquira no 1º bimestre deste ano letivo é que seja capaz de:
“(...) compreender, através da história da cidade e/ou do estado, o momento da chegada e as
formas de dominação dos portugueses durante o período de colonização” (RIO DE JANEIRO, 2016)
É ainda neste ano de escolaridade que a cidade aparece como espaço para que o aluno
apreenda conceitos mais complexos como as identidades carioca e brasileira, desigualdade social,
como forma de percepção de mudanças e permanências dentre outros conceitos.
No segundo segmento, a história local é assunto mais econômico. Explícito apenas no 8º ano
no contexto das mudanças provocadas durante o período joanino (1808-1821) na então colônia, mais
tarde, Reino Unido. E no 9º ano falando da Belle Époque.
Isso nos faz refletir que não é toda a cidade que se reflete durante este período a partir das
escolhas feitas pelas Orientações Curriculares propostas pela Secretaria Municipal de Educação do
Rio. O foco acaba sendo o centro e a zona sul da cidade. Os subúrbios não. COSTA (2015) refletindo
sobre o bairro de Água Santa nos faz refletir sobre a situação de outros subúrbios:

788
“Neste papel memorial, desempenhado pelo Rio de centro do Brasil e guardião da
perspectiva nacional, claramente a memória suburbana como parte constituinte da
cidade e da nação perde a disputa da memória construída e propagada nos meios
culturais e acadêmicos, instituída nos livros didáticos e até mesmo na percepção de
alguns moradores destes subúrbios, como Água Santa, que, desde a sua “descoberta”
até os dias atuais, permanece esquecido e desconhecido para seus próprios
habitantes, sendo poucos os que sabem sua história e origem.” (p.4)

Uma das formas de valorizar a história local foi promover aulas de campo na Igreja de Nossa
Senhora da Apresentação do Irajá. Esta igreja é um ponto de referência para as pessoas do bairro. O
templo é uma construção em pedra e cal datada da primeira metade do século XVII, ano de 1613,
data que se encontra em seu frontispício. Sendo um bem tombado na localidade, através do decreto
12.654, de 28/1/1994, segundo o “Guia do Patrimônio Cultural Carioca”.
Os resultados das visitas foram trazendo maior interesse dos alunos e neste ano letivo de 2017,
conseguimos trazer a oficina do programa MAIS EDUCAÇÃO e passamos a pensar o Patrimônio
Cultural como um lugar de disputas. Afinal, como nos diz CHAGAS (2009), “o poder é semeador e
promotor de memórias e esquecimentos” (p. 44). A partir daí podemos refletir sobre porque não
pensar nossa escola como algo a ser preservado? Por que não inventariar seus bens? Passamos a
utilizar o dito arquivo morto da escola como lugar de investigação histórica.
A partir do Mais Educação partimos para a análise e construção de nosso patrimônio cultural
escolar. FERRARI & CARMINATI (2016) explicam que o patrimônio cultural escolar está
relacionado “a modos de sociabilidade vividos nas instituições da formação básica, que emerge de
uma cultura compartilhada, passando a ser patrimônio comum” (p.681). Sendo assim é relevante
que se recupere e problematize essa herança.
Aos poucos a Mendes Viana está desenvolvendo um museu escolar. Este espaço pedagógico
tem definição diversa como nos diz SELANO(2016) com base na tese de doutorado da historiadora
Vania Maria Siqueira Alves:
“Não há, portanto, um modelo de museu escolar, muito menos critérios
estabelecidos, sendo encontrados museus que são constituídos a partir do processo
de criação, natureza, missão e tipos de coleções. Mesmo diante da diversidade
apresentada pelos museus escolares, é importante destacar a ação educativa como
primordial aos museus escolares e, não somente as atividades pedagógicas devem
ser desenvolvidas nesses locais, mas deve-se atentar para todas as funções do museu
(preservação, comunicação, documentação e pesquisa) e sua relação com o processo
de aprendizagem” (p.39).

789
Se o patrimônio cultural escolar pode abranger tanto a produção material quanto imaterial da
escola pode auxiliar os educandos a fazerem reflexões acerca do tempo presente FERRARI &
CARMINATI (2016).
Definir o que fazer, sob que parâmetros e como fazer são parte do processo de
amadurecimento de um trabalho científico. Ainda estou construindo tudo isso. Mas, de maneira
preliminar, posso dizer que a pesquisa até aqui apresentada se dá convidando o aluno para o campo.
Buscando informações junto aos familiares e membros da comunidade.
“A experiência no estudo da história do lugar faz com que os alunos vejam os mais
idosos, na família e na comunidade ao se dirigirem a eles para conhecer aspectos da
história local recente, ou das últimas sete/oito décadas, também como memórias
vivas do passado (Bosi, 1987; Prins, 1997), que se perdem sem registro, no caso aqui
entre as camadas pobres e trabalhadoras dominantes no subúrbio carioca.”
(SANTOS, 2002, p.113)

Nossa pesquisa será qualitativa. Terá como objetivo a construção de um memorial virtual
para a Escola Municipal Mendes Viana com informações relativas ao bairro e à escola. A ideia é fazer
com que os alunos contribuam para a construção deste que será o nosso produto. Estamos utilizando
como método a pesquisa-ação. Método esse muito utilizado em pesquisas de caráter pedagógico:
“É importante que se reconheça a pesquisa-ação como um dos inúmeros tipos de
investigação-ação, que é um termo genérico para qualquer processo que siga um
ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da
prática e investigar a respeito dela. Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-
se uma mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais, no correr do
processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação”. (TRIPP, 2005,
pp. 444-445)

Acredito que esta seja a melhor metodologia para a proposta deste mestrado profissional, pois
permite uma intervenção no campo de trabalho baseada em uma reflexão teórica. Esta metodologia
permite também que docente e discentes trabalhem juntos trazendo alguma mudança para o cotidiano
escolar.

CONCLUSÃO:

Com a pesquisa, ainda em andamento, podemos perceber que os alunos participantes se


mostram bastante engajados com as atividades propostas e que alguns alunos do 9º ano, a princípio
não incluídos no projeto, demonstram interesse em participar como monitores. Há uma maior

790
proximidade entre ex-alunos de diversas épocas e a escola. Além de termos conseguido voltar com
algumas práticas antigas da escola como “Desfile Cívico” com formação de uma banda de fanfarra,
criação de um símbolo para as comemorações do cinquentenário da escola e a festa junina. Há
também uma proximidade com um grupo local de memorialistas 3, que atende pelo nome de Instituto
Histórico e Geográfico da Baixada de Irajá (IHGBI), que ajudou na promoção de uma exposição
sobre os 400 anos de Irajá na escola com seu acervo fotográfico. A exposição foi aberta à comunidade.
Tendo em vista o caminhar da investigação até o momento, acreditamos que estamos obtendo
êxito no resgate da autoestima, sentimento de pertencimento e identidade dos discentes participantes
para com seu bairro e a escola.

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3 Pessoas interessadas pela preservação da memória do bairro sem necessariamente ter formação em
História. O Rio teve memorialistas famosos como Vivaldo Coaracy (1882-1967), Luiz Edmundo (1878-1961) dentre
outros.

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Latitude – educação georreferenciada – informações sobre escolas e CREs do Rio


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História, imprensa e poder: Folha de S. Paulo e O Globo como atores políticos nas eleições
presidenciais de 1994 e 1998

Fabrício Ferreira de Medeiros1

Resumo: Nos anos 1990, muito se questionou acerca do modelo de desenvolvimento a ser adotado
no Brasil. Defendendo um Estado menos intervencionista, surgiram atores políticos engajados na
construção de um projeto político (neo)liberal, a partir do qual se propunha que o mercado passasse
a ser a instância de organização social por excelência. Nesse sentido, propõe-se discutir a atuação
política dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, tendo como cenário as eleições presidenciais de
1994 e 1998. Considerando os periódicos enquanto atores políticos, sugere-se que a Folha e O Globo
não somente protagonizaram os debates públicos de então, como, inclusive, buscaram difundir um
projeto político próprio, assentado no neoliberalismo e expresso na defesa de reformas estruturais
(previdenciária, trabalhista, tributária e administrativa), bem como em um programa sistemático de
desestatização.

Palavras-chave: atores políticos; periódicos; neoliberalismo.

Abstract: In the years of 1990 a lot was questioned about the development model to be adopted in
Brazil. Defending a less interventionist government, political actors emerged engaged in the
construction of a (neo)liberalistic political project, from which was proposed the Market as a social
institution by excellence. In this way, it is proposed to discuss the political action of newspapers
Folha de São Paulo and O Globo, having as background the presidential elections of 1994 and 1998.
Considering those press as political actors, it is suggested that Folha de São Paulo and O Globo not
only were the protagonists of public debate, as they also tried to disseminate their own political project
based on neoliberalism exposed in the defense of structural reforms (social security, labor, tributary
and administrative), as well a systematic program of privatization.

Key words: political actors; press; neoliberalism.

Considerações iniciais

Durante muito tempo, os historiadores retiveram desconfianças em relação à imprensa, em


geral, e ao jornal, em particular. Permeada de debates apaixonados, expressão de partidarismos,
doutrinas ou mesmo de interesses de classe, essa fonte foi relegada a uma completa marginalização
historiográfica, a qual resultava da própria concepção da História e da noção de documento. De todo
modo, a partir dos anos 1970, a escrita da História passou por uma série de questionamentos e
reformulações, os quais ajudaram a promover o jornal enquanto objeto de estudo.

1 Mestrando em História – PPGH-UERJ. Email: fabricio.f.medeiros@hotmail.com

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Com esse movimento de ordem epistemológica, buscou-se compreender o protagonismo dos
periódicos em momentos distintos da história política brasileira. E dentre os recortes temporais, é
possível afirmar que os anos 1990 têm recebido uma atenção especial. Marcado, entre outras coisas,
pelos processos de liberalização política (democratização) e liberalização econômica
(neoliberalização), o período que se inicia com a ascensão de Fernando Collor de Mello à presidência
da República (1990) e ganha contornos mais definidos com a era Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) se constitui em um dos cenários mais recorrentes nas análises relativas à atuação política da
imprensa no Brasil.
Bem pensadas as coisas, este trabalho, ainda que de maneira introdutória, tem por objetivo
principal lançar luz sobre a atuação política dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, nos cenários
que envolvem as eleições presidenciais de 1994 e 1998, buscando apontar determinados elementos
que caracterizam o pensamento político desses periódicos, analisados, principalmente, a partir de seus
editoriais. 2 Além disso, vale ressaltar que as considerações aqui discriminadas são resultado de uma
pesquisa (de dissertação de mestrado) em desenvolvimento junto ao professor Ricardo Mendes, no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

1. O jornal como objeto de estudo e ator político

O jornal enquanto objeto de estudo

Diversos pesquisadores já salientaram que a consideração do jornal como objeto de estudo é


fato relativamente recente no campo historiográfico. Em geral, afirma-se que a ausência de estudos
sobre a imprensa, não como fonte apenas, mas principalmente como objeto privilegiado de análise,
está associada a certa tradição da historiografia (a chamada escola metódica ou positivista), colocada
como um dos principais paradigmas da disciplina no século XIX, no Ocidente, mas que também
deitou raízes no século XX. Pautados por uma recusa deliberada da subjetividade das fontes e do
próprio pesquisador, os historiadores herdeiros de Ranke, Langlois e Seignobos acreditavam que, por
meio da análise do documento, seria possível alcançar a “verdade dos fatos” (CAPELATO, 2015;
LUCA, 2011; ABREU, 2008). Consequentemente, os jornais, associados ao tempo presente, a

2 A definição do editorial como conteúdo privilegiado de análise se fundamenta na percepção de que é


por meio dele que o jornal expressa sua opinião - leia-se opinião do proprietário do mesmo - de maneira formal. Cf. Maria
Helena Capelato (2015).

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interesses particularistas, partidarismos, paixões e ideologias, lhes pareciam pouco confiáveis, não
merecendo o estatuto de fonte histórica (LUCA, 2008).
Aliás, mesmo com os ataques operados pelos pesquisadores reunidos sob o movimento dos
Annales (1929-) contra a historiografia do século XIX e seus postulados, manteve-se a desconfiança,
entre os historiadores, em relação ao jornal como objeto de estudo, na medida em que os periódicos
foram associados a uma série de questões contra as quais os Annales se opuseram, ou, ao menos, não
deram a devida importância, quais sejam: a história política, vista sob a perspectiva da escola
metódica; o tempo presente e a narrativa, relacionados à história política tradicional. Contra a história
política, tal como praticada até as primeiras décadas do século XX, uma série de historiadores
passaram a pensar a História em termos de um tempo mais longo, em atores coletivos e não mais em
indivíduos, em estruturas sociais e econômicas, e não mais em fatos e fenômenos de ordem política,
deixando de perceber, porém, como salientou Jacques Julliard (1995), que o problema da história
política era metodológico e não de sua natureza.
Seja como for, a partir dos anos 1970, com a terceira geração dos Annales, a historiografia
sofreu transformações significativas, expressas em um nítido “alargamento do campo de preocupação
dos historiadores”, como concluiu Tania Regina de Luca (2008, p. 113). Em um movimento
multipolar, originário de direções e correntes historiográficas distintas, mas que encontrou na França
e nos Annales um canal significativo de expressão, operou-se a reabilitação e a renovação da história
política (RÉMOND, 2003; FALCON, 1997); bem como um maior interesse pelo contemporâneo,
com o surgimento da história do tempo presente (BÉDARIDA, 1998; ROUSSO, 2016); um diálogo
produtivo entre historiadores e jornalistas (RIOUX, 1999); o retorno e a resignificação da narrativa
(STONE, 1979); e, principalmente, a mutação da noção de documento, que deixou de ser visto sob o
prisma da neutralidade e passou a ser analisado ele mesmo enquanto um produto e uma construção
social (DUMOULIN, 1993).
Resultado, embora não único, destas transformações de perspectiva na escrita da História, o
jornal saiu da margem da produção histórica e se constituiu como objeto de estudo (LUCA, 2008;
CAPELATO, 2015). A partir da análise da imprensa, Maria Helena Capelato argumenta que é
possível “acompanhar o percurso dos homens através dos tempos” (1988, p. 13) e “compreender
como viveram os indivíduos de outras épocas, não só os ‘ilustres’, mas também os sujeitos anônimos”
(2015, p. 115). Para Ana Maria de Almeida Camargo, o jornal, enquanto fonte, permite examinar a
“consciência que os homens têm de sua época e de seus problemas”, devendo-se considerar que ao
historiador não cabe somente estudar a realidade em si, mas inclusive “o que se pensa sôbre ela”
(1971, p. 225). Mas, além disso, cabe avaliar o peso ou importância da imprensa e do jornal, em
especial, nas disputas políticas de determinado período histórico, na medida em que os jornais não

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somente surgem historicamente ligados a questões políticas (e econômicas), como contribuem em
boa parte para a configuração das estratégias de luta pelo exercício do poder, como observou Nelson
Werneck Sodré (1966).

O jornal como ator político

Nesse trabalho, consideramos o jornal como ator político, categoria na qual incluímos a Folha
de S. Paulo e O Globo. No Brasil, ao menos, o jornal é visto desta forma praticamente na mesma
medida em que é considerado um objeto de estudo. Exemplos dessa perspectiva teórica podem ser
dados pelos trabalhos pioneiros de Capelato, em sua dissertação de mestrado, O pensamento liberal
de O Estado de S. Paulo (1927-1932), defendida em 1974, e sua tese de doutorado, Os Intérpretes
das Luzes: Liberalismo e Imprensa Paulista (1920-1945), defendida doze anos depois, em 1986,
ambos sob a orientação de Carlos Guilherme Mota. A partir desses estudos que privilegiam a atuação
política da chamada grande imprensa paulista de corte liberal, entre os anos de 1920 e 1945, a
historiadora mostra que o jornal participa ativamente dos debates públicos, dos conflitos e das lutas
políticas de determinado período histórico, buscando mobilizar a sociedade em favor de uma causa
específica e contribuindo com a configuração das tendências de opinião pública. 3
Nesse meio tempo, Capelato, em uma parceria com seu ex-orientador, Mota, se dedica ainda
a escrever um livro no qual busca realizar uma leitura da história e dos posicionamentos políticos da
Folha de S. Paulo, ao mesmo tempo em que se pretende relacionar a atuação do jornal paulista ao
contexto histórico do período que vai de 1921, marco de fundação da Folha da Noite, um dos
primeiros jornais do atual Grupo Folha, até o ano de 1981, quando da publicação da História da Folha
de S. Paulo. Por meio de um levantamento exaustivo de fontes, os historiadores conseguem mostrar
que a atuação política do jornal paulista não se deu de maneira uniforme no tempo e sem discrepâncias
mesmo no que se refere aos interesses daqueles grupos sociais os quais desejava representar. Menos
do que mero instrumento de uma elite dominante, a Folha de S. Paulo é vista como um veículo de
intervenção social e política, o qual detém certa autonomia, não se subordinando aos interesses de
grupos frente aos quais nutre maior afinidade em determinado período histórico (MOTA;
CAPELATO, 1981).

3 Sobre o conceito de opinião pública, cf. Jean-Jacques Becker (2003) e Nicola Matteucci (1998).

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Em estudo posterior, o pesquisador e professor uruguaio Héctor Borrat, falecido em 2014, se
dedica a ler o jornal como ator político, que, ao mesmo tempo, influencia e é influenciado pelo campo
político4 no qual se insere, posicionando-se, em graus variados de definição, acerca de um conjunto
específico de relações de conflito. Em suas palavras,
Si por actor político se entiende todo actor colectivo o individual capaz de afectar el
proceso de toma de decisiones en el sistema político, el periódico independiente de
información general ha de ser considerado como un verdadero actor político. Su
ámbito de actuación es el de la influencia, no el de la conquista del poder
institucional o la permanencia en él. El periódico pone en acción su capacidad para
afectar el comportamiento de cienos actores en un sentido favorable a sus propios
intereses: influye sobre el gobierno, pero también sobre los partidos políticos, los
grupos de interés, los movimientos sociales, los componentes de su audiencia. Y al
mismo tiempo que ejerce su influencia, es objeto de la influencia de los otros, que
alcanza una carga de coerción decisiva cuando esos otros son los titulares del poder
político (BORRAT, 1989, p. 67).

A noção de ator político aplicada ao jornal por Borrat e delineada, de maneira empírica, por
Mota e Capelato é a mais próxima daquilo que propomos para se pensar a atuação da imprensa na
perspectiva da história política. Em outros trabalhos, a exemplo de Francisco Fonseca (1994) e
Rodrigo Carvalho (2006),5 recorre-se ao conceito gramsciano de Aparelhos Privados de Hegemonia
(APH), no sentido de dar visibilidade ao sentido político e ideológico presente na imprensa. Porém,
em vários momentos, particularmente em Carvalho (2006), o jornal aparece subordinado a interesses
de classe, entenda-se, da classe dominante. Ora a Folha de S. Paulo e O Globo, periódicos
considerados na pesquisa do autor no recorte dos governos FHC (1995-2002), são reconhecidos em
sua relativa autonomia de atuação, que se faz “acima dos partidos” e em relação a “seus próprios
interesses” (CARVALHO, 2006, p. 234), ora essa autonomia é negada quase que por completo, a
partir de uma leitura rígida de Gramsci e Althusser, teóricos para os quais “os jornais são instrumentos
fundamentais a serviço da classe dominante para se buscar a hegemonia na sociedade” e o “exercício
do poder” (CARVALHO, 2006, p. 233 e 234).
Em nosso entendimento, o compartilhamento de interesses entre um dado jornal e
determinado grupo, classe, partido ou governo não implica, necessariamente, na subordinação do

4 Na definição de Pierre Bourdieu, o campo político é um espaço social relativamente autônomo, no qual
“se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas,
análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de
‘consumidores’, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do
lugar de produção” (BOURDIEU, 2012, p. 164).
5 Na pesquisa de Carvalho, compreendemos que as referências teóricas se tornam mais problemáticas,
pois o autor mobiliza, além dos APH de Gramsci, a noção de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), lançada por Luis
Althusser, o que reforça ainda mais o caráter funcionalista da atuação política do jornal (como instrumento a serviço da
classe dominante) e subtrai, em grau significativo, sua autonomia, embora esta também deva ser pensada em termos
relativos. Vale dizer que em trabalho anterior (MEDEIROS, 2015), sobre a atuação política d’O Globo na eleição
presidencial de 1994, utilizamos os APH como referência teórica, alternando só em seguida nossa perspectiva de análise.

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veículo de comunicação aquele ator outro, mas sim em uma afinidade de interesses, que pode (e tem
tendência a) ser variável no tempo, isto é, mais ou menos duradoura, um leitura, aliás, que foi proposta
por Borrat (1989).6 Em outras palavras, dizer que o jornal x apoiou o governo y e/ou a classe z de
modo a instrumentalizar as ações destes não oferece uma compreensão satisfatória acerca da atuação
política daquele jornal, na medida em que ele deixa de ser sujeito, passando a ser mero agente passivo-
funcional sob determinada correlação de forças, que tem sua expressão fundamental em termos de
tensões entre classes sociais (a partir de uma leitura marxista). Minimiza-se a qualidade de objeto de
estudo pertencente ao jornal para encará-lo como apêndice, embora importante no processo de luta
por hegemonia, da luta de classes. Ao contrário dessa perspectiva teórica, portanto, defendemos a
categoria de ator político para o jornal, mas reconhecendo sua relativa autonomia diante de suas
intervenções no debate público, consequentemente, no campo político e em relação às posições
ocupadas pelos indivíduos, grupos e partidos nele inseridos (ou marginalizados).

2. O político na perspectiva da Folha de S. Paulo e d’O Globo, 1994 e 1998

Estudos sobre o pensamento político da FSP e d’OG nos anos 1990

Os estudos relativos à atuação política dos jornais Folha de S. Paulo (FSP) e O Globo (OG)
nos anos 1990 podem ser agrupados, não exclusivamente, entre: 1) os trabalhos de caráter mais geral,
voltados para a grande imprensa nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro; 2) estudos específicos
sobre a FSP e OG; e 3) produções parciais, que ora se limitam a um ou outro jornal de forma isolada.
Além disso, e até onde temos conhecimento, as análises acerca da imprensa no período em questão
têm privilegiado sua atuação em contextos eleitorais, notadamente 1989, 1994 e 1998, mas também,
predominantemente, a questão do neoliberalismo e de que maneira, especificamente, os jornais (e
revistas) têm contribuído para a difusão dessa ideologia.
Seria possível falar em uma historiografia acerca do tema ora discutido? Dificilmente. Em
levantamento sistemático de teses, dissertações e artigos desenvolvidos tendo como objeto a relação
entre mídia e eleições, Leandro Colling (2006) demonstra que há uma predominância da área de
Comunicação, seguida pela Ciência Política e pelas Ciências Sociais, sendo o jornalismo o campo

6 Nas palavras do autor, “[...] cada periódico independiente puede perfilarse como más afín o cercano a
cierta ideología o a cierto partido. Pero reconocer afinidades y cercanias no es señalar una coincidencia plena o una alianza
estable” (BORRAT, 1989, p. 76).
Ainda “nessa perspectiva, situa-se o cuidado de não lidar com caracterizações generalizantes – tal jornal é liberal-
conservador, o outro é populista – construindo categorias estáticas que atravessam toda a história de uma determinada
publicação [...]” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 264).

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privilegiado pelos especialistas. Em sua pesquisa, não é verificada nenhuma ocorrência para a
História. De todo modo, ainda que poucos, existem estudos realizados por historiadores, que não se
limitam à atuação dos jornais em período eleitoral.
Fonseca, por exemplo, em sua tese de doutorado em História Social, defendida em 2001 sob
a orientação de Maria Helena Capelato, faz uma análise consistente acerca da atuação política e
ideológica da grande imprensa (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e o Jornal do
Brasil) no período em que teve “desfecho” a transição democrática, qual seja, de 1985 a 1994.
Retomando e ampliando sua pesquisa de mestrado (FONSECA, 1994), na qual o recorte é mais
restrito (de 1984 a 1987), o autor volta a defender a tese de que desde meados dos anos 1980 a
imprensa, agora representada pelos jornais mais influentes de São Paulo e Rio de Janeiro, esteve
engajada na introdução da agenda neoliberal no Brasil, buscando, por meio de estratégias de
vulgarização de determinados temas apresentados em seus editoriais, difundir e tornar hegemônica a
precedência do mercado sobre o Estado, consequentemente, da esfera privada sobre a esfera pública.
A exemplo de outros autores, Fonseca (2001) identifica na defesa da liberalização econômica, da
privatização (ou desestatização) e na proposta de desregulamentação, por parte daqueles periódicos,
a adesão ao projeto político neoliberal, conservador e autoritário e, portanto, o sentido ideológico de
sua atuação política. Sua pesquisa poderia ser inserida no primeiro grupo de estudos apresentados
mais acima.
Ainda nesse grupo, que privilegia o marco da grande imprensa como objeto de análise e recai
sobre um conjunto mais amplo de jornais, podemos citar a pesquisa, oriunda de uma dissertação de
mestrado em Comunicação, defendida por Carlos Sávio Gomes Teixeira, também em 2001. 7
Analisando os editoriais dos mesmos jornais considerados por Fonseca (2001), Teixeira (2001)
examina o posicionamento político da grande imprensa nas eleições presidenciais de 1994 e 1998,
chegando à conclusão de que em ambas as oportunidades houve um apoio significativo e consensual
à vitória de Fernando Henrique Cardoso (FHC) por parte de todos os jornais pesquisados. Se
utilizando da metodologia da análise de conteúdo, bem como se apoiando no conceito de ideologia,
o autor está mais preocupado em evidenciar o referido apoio político ao candidato do Partido da
Social Democracia Brasileira do que propriamente em explicar o pensamento e a atuação política
daqueles periódicos. De certo modo, suas conclusões se aproximam da interpretação de Fonseca: o
neoliberalismo mais uma vez é colocado como elemento norteador da atuação política da grande
imprensa. Contudo, o “como”, ou melhor, as evidências empíricas e a história dos jornais ficam no
esquecimento, sendo necessário dizer que o próprio autor reconhece os limites de sua pesquisa:

7 Gostaria de agradecer ao autor que teve a generosidade de compartilhar conosco sua pesquisa, a qual
não se encontrava disponível na internet, ao menos, até os primeiros meses do ano de 2017.

800
Saber como cada jornal construiu sua própria versão relativa ao apoio/oposição aos
planos econômicos, assim como sistematizaram suas argumentações relativas ao
apoio/oposição ao candidato do PT, comparando uns com outros, só poderia ser
devidamente encaminhado por um outro trabalho além dos limites que aqui se impôs
(TEIXEIRA, 2001, p. 100).

Em um segundo grupo de estudos relativos à atuação política da Folha e d’O Globo,


destacamos a dissertação de mestrado, também na área de Comunicação, defendida em 2006 por
Rodrigo Carvalho. Através da mesma, o autor faz uma análise dos editoriais da FSP e d’OG, entre os
anos de 1995 e 2002, no intuito de verificar como esses periódicos se posicionaram durante o governo
FHC, mas também com o objetivo de realizar um mapeamento do pensamento político daqueles
jornais. Partindo de uma perspectiva teórica marxista, na qual tem peso significativo as noções de
APH e Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE),8 portanto, o pensamento de Gramsci e Althusser,
respectivamente, Carvalho (2006) organiza sua análise por meio de três eixos temáticos: 1) político,
que reúne grupos de apoio e oposição ao governo, os movimentos sociais, especialmente aqueles à
esquerda, e os debates e posicionamentos no que se refere à reeleição; 2) econômico, agrupando a
questão da estabilização econômica, a inflação, a dívida pública etc.; e 3) ideológico, expresso nos
debates de então, porém, mais dedicado ao neoliberalismo.
No plano político, Carvalho observa que tanto a FSP quanto OG fizeram críticas sólidas aos
movimentos sociais e aos partidos de oposição a FHC, caracterizados “como radicais e sem
compromisso com a estabilidade política, sem projeto para o país, recorrentes à desordem [...]”
(CARVALHO, 2006, p. 129). Ambos os jornais estiveram comprometidos com a desqualificação, a
priori, de projetos políticos de esquerda, o que implica dizer que a um só tempo recusavam o debate
político e colocavam o projeto neoliberal como o único possível naquele momento. Segundo
Carvalho, no que tange particularmente ao pensamento político da Folha, a esquerda “não tinha
autoridade política nem projeto de governo para mudar os rumos do país” (2006, p. 153). No campo
econômico, esses jornais estavam, afirma o autor, engajados na defesa: da estabilização econômica,
irmanados sob o Plano Real; das privatizações, o que se refletia em ataques frontais às empresas
públicas e, em particular, aos bancos estaduais; da reforma administrativa, expressa na aprovação da
Lei de Responsabilidade Fiscal; e do livre mercado. Também somaram forças na crítica aos

8 Em nossa perspectiva, o referencial teórico é um dos principais problemas da análise de Carvalho


acerca da atuação política da grande imprensa. Cf. críticas desenvolvidas anteriormente nesse mesmo trabalho. Além
disso, as conclusões que o autor apresenta no que se refere ao pensamento político da FSP e d’OG, em nosso
entendimento, apesar de serem coerentes com o que viemos pesquisando, não estão fundamentadas satisfatoriamente em
termos empíricos, sendo relativamente reduzido o número de editoriais citados ao longo do texto daquele autor. Uma
hipótese para explicar essa limitação poderia ser formulada tendo em vista que Carvalho não possui formação em História,
mas sim em Comunicação (2006) – posteriormente em Ciência Política (2016) -, não se colocando o levantamento e a
análise de fontes como um critério muito significativo em sua pesquisa, apesar de atender, em parte, a tais procedimentos.

801
monopólios estatais, casos do petróleo, das telecomunicações e do setor elétrico; na atribuição de
responsabilidades pela crise econômica de 1998 única e exclusivamente a fatores externos, quando
não a própria instabilidade política criada pelas eleições etc. Em relação aos debates ideológicos,
Carvalho salienta que a atuação da FSP e d’OG girou em torno de críticas à legislação trabalhista e à
previdência social, bem como a própria noção de Welfare State. Ao contrário, defendia-se o
enxugamento do Estado, a subtração de suas responsabilidades e da intervenção na economia, mas
também a eliminação de encargos sociais em relação aos empregadores. Porém, afirma que apesar
dos periódicos contribuírem significativamente para a difusão do neoliberalismo no Brasil, em
determinados momentos, estes não deixaram de fazer críticas ao modelo de desenvolvimento
apresentado com o Consenso de Washington (o que foi mais evidente no caso da FSP, no segundo
mandato presidencial de FHC), haja vista o reconhecimento de certos desequilíbrios por ele
provocados. Ainda assim, ambos os periódicos não reconhecem o neoliberalismo como uma
realidade, quer seja a nível nacional, com FHC (1995-2002), quer seja a nível internacional.
Carvalho chega a conclusões muito semelhantes aquelas apresentadas por Fonseca, salvo as
distintas abordagens e recortes. Apesar de desenvolver uma análise fluída, que ora reconhece a
autonomia do jornal, ora lhe trata como instrumento da luta de classes, o autor acaba lhe atribuindo
uma preeminência funcionalista como agente difusor do neoliberalismo, apoiador do governo FHC,
da classe dominante e, principalmente, do próprio sistema capitalista.
Os argumentos, a luta de idéias travadas pelos jornais, está diretamente ligados à
preservação do modo de produção dominantes, à estrutura de funcionamento social
de exploração de classe. A posição diante das privatizações e abertura da economia
nacional está ligada aos grupos econômicos oligopolizados nacionais e estrangeiros;
a crítica à crítica da propriedade privada é essencial para a manutenção do sistema,
sem a menor dúvida para os jornais; as explicações do nosso atraso social e a falsa
consternação contra a miséria estão ligados ao pressuposto que qualquer mudança
deva preservar os privilégios de classe (CARVALHO, 2006, p. 248-249).

Em uma terceira corrente de estudos, podemos situar a tese de doutorado em História,


defendida por João Braga Arêas, em 2012, na qual o historiador se propõe a compreender a
importância política e ideológica do jornal OG na construção de um amplo consenso em torno do
neoliberalismo, entre os anos de 1989, com a eleição de Fernando Collor, e 2002, concluída a era
FHC. Apesar de analisar OG nas eleições presidenciais de 1989 e 2002, Arêas está mais interessado
na questão do neoliberalismo, que no seu entendimento, se expressava, em boa medida, através da
defesa sistemática das privatizações. Tendo esse tema como eixo de sua pesquisa, o historiador
examina de que forma o jornal se colocou frente a seus opositores. Em uma leitura gramsciana,
semelhante aquelas até aqui delineadas, na pesquisa deste autor, “O Globo é considerado um ‘partido’

802
de diferentes frações das classes dominantes, em especial daquelas vinculadas ao capital financeiro e
às multinacionais” (ARÊAS, 2012, p. 41). De tal perspectiva teórica sustenta-se a seguinte conclusão:
O partido O Globo procurou tornar hegemônicos os valores neoliberais (como a
crença na ‘eficiência do mercado’), de modo a unificar as diferentes frações dos
grupos sociais dominantes – ou, ao menos, atenuar suas divergências internas – além
de obter adesão das classes sociais subalternas (ARÊAS, 2012, p. 41).

Seja como for, o trabalho de Arêas oferece uma série de subsídios para pensar a atuação
política da imprensa e, em particular, d’OG nos anos 1990, recuperando a dimensão histórica desse
objeto de estudo – inclusive, resgatando sua participação na ditadura militar -, inserindo o mesmo em
uma duração mais longa, buscando situá-lo no conjunto de veículos e produtos do Grupo Globo etc.
A partir desta abordagem, o pesquisador mostra o quão opositor OG foi aos movimentos sociais, em
momentos distintos da sua história, bem como apoiou uma noção limitada e elitista de democracia,
não apenas no início da ditadura militar, mas também no contexto do movimento Diretas Já e nos
anos 1990. Levantando uma gama de expressões e termos utilizados pelo jornal para caracterizar e
representar de maneira extremamente negativa o principal partido da oposição (o Partido dos
Trabalhadores, PT) ao governo no período tratado, Arêas mostra como OG tentou desqualificar as
críticas ao neoliberalismo e, mais do que isso, criminalizar o partido que tinha as melhores condições
políticas de implantar um projeto alternativo e de esquerda. Segundo o autor, eram estas as expressões
mobilizadas pelo veículo da família Marinho no intuito de desqualificar a oposição a FHC:
[...] horas, extremistas, fanáticos, xiitas, radicalismo, totalitarismo, ditadura,
fascistas, Hitler, censura, algema, patrulhamento, assalto, selvagem, hostilizar,
incitar, invadir, arrombar, rasgar, destruir, socos, pauladas, enfurecidos, lobo,
velho, contramão, obsoleto, falido, caos, calote, dentre outras (ARÊAS, 2012, p.
128; ênfase do autor).

Ao construir essa imagem do PT, adverte, o jornal OG não só criminalizava o partido,


desconsiderando a perseguição sofrida por seus membros e militantes ao longo do regime militar
(1964-1985), como também se isentava do apoio oferecido aquele regime (ARÊAS, 2012),
evidenciado empiricamente pelo próprio Arêas.

Notas iniciais sobre uma leitura da FSP e d’OG como atores políticos, em 1994 e 1998

Como é possível observar através dos estudos citados, a FSP e OG, ao longo dos anos 1990,
participaram ativamente dos debates políticos, buscando difundir sua própria visão de mundo,
elaborar diagnósticos acerca dos problemas a serem enfrentados pelos governantes, delimitar

803
propostas políticas no seu respectivo campo e tornar hegemônico ou dominante um projeto específico:
o neoliberal. Mas, além disso, a liberalização política que estava em pauta desde os anos 1970,
ganhando força nos anos 1980, também permeia a conjuntura política da década seguinte, embora
não ganhe ênfase significativa nos editoriais da grande imprensa. Na verdade, como sugere Colling
(2006), no que tange aos estudos sobre mídia e eleições na Nova República, e no que temos percebido
por meio da análise empírica, a dimensão política fica em clara desvantagem em relação ao
econômico nos editoriais da FSP e d’OG.
Na realidade, os editoriais desses periódicos têm dado uma saliência claramente favorável a
fatores econômicos, em detrimento do tratamento de questões políticas, o que pode ser explicado,
hipoteticamente: 1) pela defesa do neoliberalismo como ideologia e modelo de desenvolvimento, o
qual preconiza o protagonismo do mercado e da esfera privada, em detrimento do político e da esfera
pública; 2) pelo impacto, em certo grau, generalizado, da crise inflacionária que adentra a primeira
metade dos anos 1990, sustentando, contra o mal a ser combatido, em boa dose, a defesa do Plano
Real e da estabilização econômica; e também 3) devido a uma operação, consciente ou não, por parte
dos proprietários e demais responsáveis pela opinião da FSP e d’OG, de despolitização de temas e
questões essencialmente políticas, a exemplo da reforma constitucional (da previdência, trabalhista,
tributária etc.). Nesse sentido, a despolitização, veiculada pela imprensa por meio de seus editoriais,
assumiria o limite de não se discutir, por exemplo, a participação política, ou seja, a cidadania, mesmo
em períodos eleitorais.
Ao que temos encontrado nas fontes, é possível sustentar as três hipóteses apresentadas
anteriormente, sendo a primeira e a terceira de ordem ideológica, a segunda de ordem material.
Partindo de uma perspectiva teórica segundo a qual a atuação política do jornal se desenvolve, em
boa medida, por meio dos mecanismos de agendamento e enquadramento9 de determinados temas
que deverão permitir a configuração de uma tendência dominante entre as distintas correntes de
opinião pública, considera-se que a atuação política dos periódicos não se faz apenas através daqueles
temas que merecem destaque, mas também por meio de silenciamentos e exclusões. Para Robert
Entman (1993), o trabalho de enquadramento da realidade social desenvolvido pela mídia implica
saliência, visibilidade, seleção e interpretação, mas também exclusão e silenciamento, soluções para
determinados problemas vividos em sociedade e a ausência de dimensionamento de propostas
alternativas.
Enquadrar a reforma da previdência em termos estritamente técnicos (fontes de
financiamento) e biológicos (ciclo da vida), como fez a FSP em editorial publicado em 5 de maio de

9 Adotamos a definição de agendamento e enquadramento apresentada por Maxwell Mc Combs (2009)


e Robert Entman (1993).

804
1994 (Espada de Dâmocles), pode implicar em uma estratégia tanto de despolitização da questão
como também de exclusão de alternativas ao problema, pensado, unicamente, a partir do
envelhecimento da população brasileira e da falta de condições de o Estado arcar com o descompasso
entre o número de trabalhadores beneficiados pela previdência, em ascendência, e o número de
trabalhadores que contribuem com a mesma, em declínio. Aliás, uma estratégia retórica que se repete
com frequência significativa nos dias de hoje e no que se refere a temas, questões e problemas
semelhantes aqueles discutidos nos anos 1990.
Por outro lado, pode se considerar o enquadramento que OG faz da privatização, em editorial
de 21 de setembro de 1994 (Agenda para o presente). Nele, a privatização – ou desestatização, como
é citada em vários editoriais – não é defendida pelo jornal apenas como uma possibilidade, mas sim
como uma condição sine qua non no que se refere às “condições de cumprir quaisquer compromissos
assumidos durante a campanha eleitoral”. Tratando o problema em termos puramente econômicos,
como uma transferência de custos de manutenção entre setor público e privado, a ser apoiada, ainda,
pelo incremento de impostos das empresas privatizadas, o periódico carioca despolitiza o debate e, a
exemplo do que faz em outras oportunidades, nisso se assemelhando a FSP, trata da privatização
como um fenômeno que irá, em sua avaliação, beneficiar a todos indistintamente, sejam
empregadores, empregados e consumidores. Generaliza-se interesses particulares, eliminando-se,
retoricamente, as contradições inerentes aos efeitos das privatizações, ao se vulgarizar a apresentação
do tema em questão. Vale dizer que ambos os jornais, em seu pensamento político, tratam a sociedade
mais como um conjunto de consumidores do que propriamente como um agregado de cidadãos, fato
que sugere, mais uma vez, o viés economicizante e despolitizante frequentemente estampado nos
editoriais da FSP e d’OG.

Considerações finais

Nesse trabalho procuramos discutir questões teórico-metodológicas e de conteúdo relativas à


atuação política dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, nos cenários que envolvem as eleições
presidenciais de 1994 e 1998, buscando apontar determinados elementos que caracterizam o
pensamento político desses periódicos, analisados, principalmente, a partir de seus editoriais. Ao
resgatar a dimensão política da imprensa brasileira, pensada enquanto objeto de estudo, propomos
reconhecer sua autonomia que é relativa, dadas as relações que mantém com o Estado, na condição
de uma atividade oriunda de concessão pública e mais ou menos dependente de verbas publicitárias

805
e/ou de legislação específica, mas também ressaltada sua relação com os próprios anunciantes do
jornal, os quais permitem sua sobrevivência empresarial.
Tudo isso só mostra o quão complexa é a atuação política da imprensa e, em particular, dos
jornais, na medida em que estes veículos são instituições públicas e privadas, ao mesmo tempo. São
públicas porque se apresentam como intermediárias entre o Estado e a sociedade, mediadoras entre
os níveis público e privado e fiscalizadoras das autoridades. Mas, conforme os jornais se modernizam,
adquirem o status de empresa, e como tais, transformam-se em instituições privadas voltadas para o
lucro. Ainda assim, os jornais, ou melhor, seus proprietários, permanecem autodenominando-se
intérpretes e representantes da opinião pública, uma estratégia política e ideológica que, como bem
observou Capelato, “permitiu que os donos de jornais justificassem suas opiniões e intervenções
políticas como representativas da ‘opinião pública’” (2015, p. 122).
Como indicamos, os jornais protagonizaram o campo político brasileiro nos anos 1990, se
posicionando acerca dos mais variados temas: legislação trabalhista, previdência social, inflação e
estabilização econômica, partidos e movimentos de oposição ao governo, crise econômica de 1998,
eleições presidenciais etc. No geral, foi possível apresentar um mapeamento do pensamento político
da FSP e d’OG, não apenas ao longo dos cenários de 1994 e 1998, mas também durante toda a década,
o que sugere uma atuação política consistente e engajada da parte dos periódicos mencionados.
Defendendo um novo modelo de desenvolvimento, o qual prioriza o mercado como instância
privilegiada de organização social, em detrimento do Estado, a FSP e OG atuaram politicamente e
mesmo empresarialmente, dado que possuíam interesses diretos nas privatizações e no fim do
monopólio estatal das telecomunicações etc. Segundo Fonseca (2001), a atuação desses periódicos
foi a um só tempo: política, ideológica e empresarial. Todavia, não concordamos com a perspectiva
marxista segundo a qual o jornal é tomado como instrumento da classe dominante. Sua afinidade a
determinado projeto político, governo, partido, classe, grupo e/ou líder político não implica,
necessariamente, submissão.
Ao contrário, temos sustentado, inclusive com base nos estudos de Fonseca sobre a grande
imprensa no pós-1984, que há evidências empíricas significativas que sugerem a existência de um
projeto político defendido por aqueles jornais de maneira relativamente autônoma. Nesse sentido,
menos do que se submeter ao governo FHC, a FSP e OG pautaram, em boa medida, suas ações,
difundiram uma tendência particular da opinião pública, através dos mecanismos de agendamento e
enquadramento, a qual contribuiu com o resultado das eleições que levaram o candidato tucano ao
poder e o mantiveram na chefia do Executivo, em 1994 e 1998, mas também o fizeram considerando
seus próprios interesses e de forma precedente a eleição de 1994.

806
A defesa insistente, por parte daqueles periódicos, no que tange à precedência do mercado
sobre o Estado, das privatizações, da estabilização econômica, as críticas à legislação trabalhista, a
defesa do livre mercado e da abertura ao capital estrangeiro etc. não são elementos característicos da
atuação política da FSP e d’OG apenas nos anos 1990, mas também se fazem presentes em sua
intervenção no debate público desde, pelo menos, meados dos anos 1980. E mesmo no período em
que se consolida uma agenda neoliberal, entre Collor (1990-1992) e FHC (1995-2002), menos do que
se constituir enquanto um poder submetido ao governo, os jornais da grande imprensa se
apresentaram como instâncias de poder relativamente autônomas, capazes de pressionar e criticar até
mesmo aqueles atores afinados com suas ideias e valores. Portanto, perceber o jornal como ator
político implica, necessariamente, em identificar suas vinculações sociais e econômicas, restituir suas
relações políticas em dado campo, recuperar sua visão sobre os conflitos e questões polarizadoras,
mas sempre considerando que sua atuação não resulta de uma simples relação funcionalista e
instrumentalizante da luta de classes, como quer a análise marxista, e sim de uma teia complexa que
envolve afinidades e compartilhamento de interesses não absolutos, apoio circunstancial e não,
necessariamente, consistente ao longo do tempo e das conjunturas.

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809
O COTIDIANO DO DISTRITO FEDERAL DURANTE A GUERRA DE 1932

Felipe Castanho Ribeiro 1

Resumo: O presente trabalho propõe-se a analisar através de boatos o cotidiano do Distrito Federal
durante a Guerra de 1932, mais conhecida como Revolução Constitucionalista de 1932. Defendemos
que o referido conflito se insere numa perspectiva maior que a de uma guerra regional, tratando-se,
portanto, de uma guerra civil e nacional. É inserido neste contexto, que abordamos o cotidiano da
capital do país durante os 85 dias de duração da guerra. Enfatizamos assim, a mobilização do Governo
Provisório no Rio de Janeiro com o intuito de assegurar a sua vitória diante do movimento militar
irrompido no estado de São Paulo. A capital do país serviu como uma vitrine para o resto da nação
e, ciente deste fato, o Governo Provisório precisou garantir a manutenção da ordem, conquistar o
apoio da população carioca e consequentemente auferir a sua legitimação.

Palavras-Chave: Guerra de 1932. Distrito Federal. Boatos.

Abstract: The present work intends to analyze, through rumors, the everyday life of the Federal
District during the war of 1932, better known as the Constitutionalist revolution of 1932. We argue
that this conflict is part of a larger perspective than a regional war, the case, therefore, of a civil war.
Is inserted in this context, that we address the everyday life of the capital of the country during the
85 days of duration of the war. We emphasize as well, the mobilization of the provisional Government
in Rio de Janeiro in order to ensure your victory before the military movement appearing in the State
of São Paulo in Brazil. The capital served as a showcase for the rest of the nation and, aware of this
fact, the provisional Government had to ensure the maintenance of order, to win the support of the
population and consequently obtain the your legitimacy.

Keywords: War of 1932. Distrito Federal. Rumors.

- A Guerra de 1932

O presente trabalho tem como objetivo principal analisar o cotidiano do Distrito Federal
durante a Guerra de 1932 através dos boatos que circulavam na cidade. A despeito da terminologia
que define este conflito, sabemos que o modo como nos referimos a um determinado evento histórico
pode influenciar ou até mesmo modelar a nossa concepção histórica. Neste sentido, o nome do
movimento eclodido em 1932 no estado de São Paulo, pode variar de acordo com o posicionamento
historiográfico dos autores que se debruçam sobre o tema, no entanto, este ficou conhecido
historicamente como Revolução Constitucionalista de 1932. Em nossa concepção, a definição correta
para este evento é a de uma guerra civil, não apenas por conta da projeção do conflito como pela
própria definição do termo. Segundo o Dicionário de Política, guerra civil é a guerra quando

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil (PPGHB) da Universidade Salgado


de Oliveira (UNIVERSO). E-mail: fe.castanho@gmail.com

810
conduzida por cidadãos de um mesmo Estado2. Já para Héctor Luís Saint-Pierre, a guerra civil se
desenvolve em uma unidade decisória, como manifestação extrema de uma pluralidade política 3.
Defendemos que, durante a Guerra de 1932, o Governo Provisório precisou constituir a
mobilização de um front interno que visava a mobilização total da sociedade para apoiá-lo4. Nesta
ótica, mobilização, legitimação e o apoio da sociedade carioca eram fundamentais para o governo,
principalmente por se tratar da capital do país. Sendo assim, movimentos contrários ao governo eram
indesejados e precisavam ser reprimidos pelo perigo que representavam. Não se tratava apenas do
controle da ordem, mas de demonstrar a coesão e apoio da população do Distrito Federal ao Governo
Provisório.

- Guerra de boatos no cotidiano do Distrito Federal

Em 7 de setembro de 1932, o jornal O Radical publicou que:

Este anno, a cidade, infelizmente, não terá o espetaculo de uma parada militar, no
dia festivo que hoje passa. As bandeiras penderão melancolicamente das fachadas,
sobre as ruas tristes e desertas de onde a vida habitual terá fugido. O dia apenas será
mareado pelo número vermelho das folhinhas. Dia monótono e sem côr no rythmo
nervoso da cidade. 5

O jornal prosseguiu e afirmou que:

todos os soldados do Brasil estão, a esta hora, nas trincheiras, attendendo ao appello
da Nação ameaçada em sua unidade. Todas as armas estão empenhadas na defesa do
ideal de outubro, visado pelo golpe de aventura dos politiqueiros decahidos. 6

No entanto, a parada militar acabou acontecendo e apesar da gravidade do momento e da


matéria realizada pelo O Radical, ficou ao encargo da Marinha cumprir esta missão. Na edição do dia
8 de setembro, o jornal afirmou que a:

2 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política.


Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 572.
3 SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A política armada: Fundamentos da guerra revolucionária. São Paulo:
Editora Unesp, 2000, p. 34.
4 Conceito retirado da obra de CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem Guerra: A mobilização e o
cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial: Editora da Universidade de
São Paulo, 2000, p. 15.
5 O Radical, RJ, 07/09/1932.
6 O Radical, RJ, 07/09/1932.

811
passagem da grande data nacional da independencia serviu de pretexto para que o
governo désse hontem uma prova publica de tranquilidade e força. No momento
exacto em que a offensiva do boato procurava inquietar a população carioca com a
difusão insensiva de boatos alarmantes, o ministro da Marinha para commemorar o
110º anniversario da nossa emancipação politica, determinava um brilhante desfile
do Regimento Naval pela cidade, com evoluções de uma esquadrilha de hydro-
aviões sobre a estatua de Pedro I. 7

Segundo o jornal, a realização da comemoração acontecia num momento importante em que


“a offensiva do boato procurava inquietar a população carioca com a difusão intensiva de boatos
alarmantes”. Sobre este aspecto, inúmeros boatos circularam pela capital do país durante o conflito.
Neste sentido, Stanley Hilton narrou um episódio demonstrando como estes poderiam interferir na
manutenção da ordem da cidade. Na ocasião, o plano foi disseminar boatos de que um corpo da
Polícia Militar, juntamente com unidades da Marinha, pretendia se sublevar no dia 22 de agosto. Feito
isso, no dia 22, bombas explodiram em diversos pontos da cidade e o acontecimento levou à
aglomeração do povo em frente aos Ministérios da Marinha e do Exército, que haviam sido fechados
e a segurança reforçada8. O episódio narrado por Hilton demonstra que os boatos poderiam causar
graves perturbações da ordem na capital, o que poderia, possivelmente, animar simpatizantes do
movimento debelado em São Paulo no Rio de Janeiro.
No Distrito Federal, O Radical combateu intensamente os boatos e desde o início do conflito
realizava intensa campanha contra eles. Para tanto, tratava-os como assevera sua definição clássica:
inverídicos, inofensivos na sua grande maioria e fruto da imaginação fértil do povo. A imprensa aliada
considerava alguns deles nocivos, no entanto, dizia que estes ocorriam sem maiores repercussões. Na
coluna do diário intitulada A desmoralização do boato, o periódico afirmava que:

Evitando adoptar qualquer medida systematica de repressão ao boato, a policia


revelou uma maliciosa fidura. Além de permitir que o povo se divertisse com um
dos sports mais econômicos e inoffensivos do momento – que é esse de inventar e
divulgar mentiras – as autoridades policiaes deram um golpe de morte no próprio
boato, desmoralizando-o. E o phenomeno se comprehende e explica sem dificuldade.
Sendo a divulgação do boato uma coisa permitida a toda gente, os boateiros, com a
imaginação em effervescencia, inventaram logo nos primeiros momentos da sedição
de São Paulo, os boatos mais descabellados. Com o correr dos dias os factos se foram
encarregando naturalmente de desmentir as balelas ingênuas. Mas, os boateiros, que
já haviam inventado tudo o que podiam, com a sua capacidade criadora literalmente
exgotada, cahiram na repetição. Plagiando-se a si mesmos, começaram a reeditar as
mesmissimas noticias que haviam espalhado quinze dias atraz. Resultado: a opinião
publica torceu-lhes o nariz, ironica e descrente. O boato estava irremediavelmente

7 O Radical, RJ, 08/09/1932.


8 HILTON, Stanley. A guerra civil brasileira: história da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 304.

812
desmoralizado! E assim se exgotou, dentro de quinze dias, por excesso de liberdade,
a capacidade boatogenica dessa gente... 9

Para o jornal, tratava-se de um esporte de prática inofensiva e econômica e o seu advento


servia para o entretenimento do povo. O periódico prosseguiu dizendo que a polícia havia conseguido
vencê-lo através da sua desmoralização. Segundo a matéria, assim que rebentou o conflito em São
Paulo, inúmeros boatos dos mais “descabellados” foram criados, com o passar do tempo e a não
confirmação destes, foram sendo desmentidos. Eles teriam caído na repetição por conta da limitação
de criatividade dos boateiros. No fim, teria sido exatamente o fato de terem circulado com tanto
liberdade pela cidade que fez com que a capacidade de produzi-los se esgotasse. Entretanto, devemos
salientar que a atuação do O Radical no sentido de combater os boatos minimizando-os, poderia ter
um efeito indesejado que era o de propagá-los mais ainda, tendo em vista a constância com que o
jornal abordava o assunto.
Fez parte da estratégia do Governo Provisório combater os boatos desvalorizando-os,
tratando-os como um passatempo inofensivo. Este posicionamento foi adotado desde o início do
conflito e ficou bem claro com a matéria publicada pelo Correio da Manhã no dia 13 de julho, quatro
dias após ser deflagrada a guerra. O jornal dizia que:

As antes-salas do palacio Guanabara nessas ultimas noites têm sido ponto de reunião
dos politicos e militares. Commentam-se as noticias que chegam de toda parte. Por
vezes o sr. Getulio toma parte nas palestras. Numa dessas foi elle abordado por um
grupo que indagou: ‘Por que não determina o senhor que se aja energicamente contra
os boateiros?’ E o dictador sorrindo: ‘Da policia já me falaram sobre a necessidade
de uma medida repressiva ao boato. Sou contrario. O povo gosta do boato. Sente
prazer em conhecer e transmitir a outrem o boato que sabe de antemão mentiroso.
Mas mesmo assim, isso lhe dá prazer. Ora, nessa hora de tão pouco prazer, mesmo
como chefe de um governo discricionário, terei o direito de tirar ao povo um prazer
que nada custa? Creio que não...’”10

Diante das inúmeras reuniões necessárias para cessar a guerra que acontecia no país, Getúlio
Vargas foi indagado do porquê de não tomar nenhuma atitude para repreender os boateiros da cidade,
o líder do governo chegou a reconhecer que a própria polícia já havia sugerido atitudes contra estes.
No entanto, Vargas era contra a adoção de medidas que repreendessem os boateiros, pois se tratava
de um passatempo prazeroso em um momento difícil para a população. Mas o próprio presidente
demonstrava apreensão em meio a tantos boatos contrários ao governo e no dia 22 de agosto anotou
em seu diário “É preciso ter o espírito muito resistente a todos estes boatos e nervosismos para se

9 O Radical, RJ, 21/07/1932.


10 Correio da Manhã, RJ, 13/07/1932.

813
impressionar”11. Ainda devemos observar que da entrevista de Getúlio Vargas ao seu registro no seu
diário íntimo, temos o espaço de um mês, o que demonstra como os boatos vão ganhando força e
impacto.
No entanto, o Governo Provisório e o jornal O Radical, passaram a contar com um
adversário de peso a partir do dia 2 de setembro. Isto porque o jornal A Manha, começou a publicar
uma coluna intitulada O Boateiro. O jornal era publicado semanalmente e pertencia ao irreverente
jornalista Aparício Torelli, que ficou mais conhecido pelo pseudônimo Barão de Itararé, em alusão à
batalha que não aconteceu na revolução de 193012. O surgimento desta coluna seria explicado pelo
jornal. No dia 2 de setembro, o semanário publicou que:

É com o maximo pezar e o maior constrangimento moral que inauguramos os


trabalhos desta folha, vendo-nos na dura contingencia e em face do indeclinável
dever de atacar de rijo a indecente imprensa nacional, a quem saudamos com
fraternal carinho. Não se pode negar nem obscurecer o que já é do conhecimento
publico. Os nossos prezados e ignobeis colegas de tostão, desde que irrompeu o
movimento sedicioso de São Paulo, estão revelando uma profunda desídia, para não
dizer um mutismo criminoso. É deante deste facto inominavel que erguemos o nosso
protesto e registramos a nossa repulsa, sob pena de incidirmos, também nós, nos
mesmos anathemas e nas mesmas recriminações da opinião sensata do paiz. 13

Para o jornal, a imprensa nacional não estava contemplando as notícias contrárias ao Governo
Provisório e que a principal função da coluna O Boateiro era torná-las públicas. Acreditamos que a
nova coluna do A Manha foi uma estratégia deliberada do jornal para conseguir noticiar movimentos
contrários ao governo de Getúlio Vargas durante a Guerra de 1932. Sobre a égide do nome O
Boateiro, o jornal poderia, teoricamente, publicar notícias sem que fosse questionado. A postura
pública de Getúlio Vargas e do próprio jornal O Radical de afirmar que os boatos eram inofensivos,
deve ter censurado a própria repressão no caso da coluna O Boateiro. Mais ainda, se a repressão ao
jornal ficasse evidente desde o primeiro momento, iria contradizer a postura de minimizar o conflito
e que o governo vinha adotando na capital do país. O jornal A Manha soube explorar este fato e
durante a curta existência da coluna O Boateiro, de 2 à 23 setembro, mesclou fatos com boatos. Este
recurso foi utilizado desde a primeira edição. Nesta, o jornal explicou que:

11 VARGAS, Getúlio. Diário, Volume I (1930-1936). São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1995, p. 125.
12 Segundo o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB), produzido pelo Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), doravante citado como DHBB/CPDOC, Aparício Torelli
nasceu em São Leopoldo no Rio Grande do Sul em 1895. Foi jornalista, membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL)
e eleito vereador do Distrito Federal pelo PCB em janeiro de 1947. Logo após a sua eleição, o jornalista teria seu mandato
cassado com a suspensão da legenda do PCB. In verbete: Aparício Torelli, DHBB/CPDOC, s/p.
13 A Manha, RJ, 02/09/1932.

814
Si as forças dictatoriaes aprisionam em Bury um batalhão inteiro dos rebeldes, a
imprensa local se embandeira em arco e abre columnas para decantar o notavel feito
d’armas; si as tropas legaes avançam sobre o Tunnel, as folhas cariocas
espetaculosamente se derramam em elogios aos heroes; si o general João Francisco,
deixando Ourinhos à esquerda, atravessa, a nado, com seu adextrado piquete de
lanceiros o Paranapanema, envolvendo e desbaratando o inimigo pela frente e pelos
flancos, as colunmas dos jornaes sensacionalistas desdobram-se, em letras garrafaes,
cantando em prosa e verso a epopéa joãofranciscana do famoso caudilho do Caty.
Entretanto, do que se passa do lado de lá nada sabemos e tudo ignora a opinião
publica, em virtude do silencio propositado dessa imprensa unilateral, facciosa e
parcial, à qual saudamos com effusão e sympathia. Porque essas gazetas, que vivem
arrotando uma fementida neutralidade, não noticiam tambem a prisão do general
Valdomiro Lima, que a estas horas deverá estar sendo conduzido, fortemente
escoltado, para a capital paulista, por um numeroso contingente sob as ordens do
coronel Taborda? Por que esses mesmos falsos arautos da opinião nacional, que
alardeiam, a cada passo, uma fingida imparcialidade, não estampam a noticia
verídica e insophismavel da proclamação da Segunda Republica de Piratiny, no Rio
Grande do Sul, em cuja séde do governo, em Santa Maria da Bocca do Monte,
pontifica a figura egregia, benemerita e venravel que é o augusto dr. Antonio Borges
de Medeiros. Por que silenciam, para esconder, a fuga precipitada para a Argentina
do general Flores da Cunha? Por que não falam da deposição do tenente Juracy
Magalhães? Por que não se referem á sublevação da esquadra no Alto Amazonas?
Por que não noticiam a retomada de Queluz, pelas forças paulistas? Por que não
vehiculam a informação da recente reconquista de Itararé pelos rebeldes? Pois é
justamente para noticiar amplamente esses factos notorios e irrefutaveis que aqui
estamos na estacada, terçando armas e manejando a pena, na retranca dos linotypos.
É para dar, corajosamente, sem reticencias covardes nem vacillações pusilanimes, o
relato authentico dos acontecimentos, que exprimem a verdade do presente
momento, que aqui estamos, serenos e impertubaveis, firme e convictos, para
preencher esta lamentavel lacuna. Os que tiverem coragem que nos acompanhem.
N. da R. – Si o leitor fõr bom patriota, tire cópias e passe adiante, aos amigos e
conhecidos. 14

Neste trecho, podemos observar que O Boateiro mencionou as notícias sobre a campanha do
Governo Provisório. No entanto, quando se tratou de movimento contrário ao governo, a coluna
mesclou boatos com fatos. Neste caso, os boatos seriam: a prisão do general Valdomiro Lima; a fuga
do interventor Flores da Cunha; a deposição do tenente Juracy Magalhães; a retomada das cidades de
Queluz e Itararé. Em contrapartida, as notícias seriam: o levante no Alto do Amazonas - trata-se do
levante do Forte de Óbidos; e o levante realizado por Borges de Medeiros no Rio Grande do Sul. Ao
confundir propositalmente fatos com boatos, a redação do A manha15 flexibilizou a sua definição
sobre o que era real e o que era fictício. Esta confusão, além de compreender o raciocínio humorístico

14 A Manha, RJ, 02/09/1932.


15 Segundo o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, a maioria dos textos publicados eram de autoria
do Aparício Torelli. Nas palavras do Dicionário, Torelli: “(...) em uma primeira fase do jornal assinava, como diretor-
presidente, sob o pseudônimo de Apporely. Entre muitos outros pseudônimos, figuravam em suas colunas alguns
escritores conhecidos como Manuel Bandeira, Henrique Pongetti e Mendes Fradique.” In verbete: A Manha,
DHBB/CPDOC, s/p.

815
do jornal, também devia servir para a censura. Para esta, tudo que saia na coluna O Boateiro, era
sempre boato.
Ainda que a estratégia do governo para com os boatos fosse de minimizá-los publicamente, o
potencial de perturbação da ordem deste incomodava. Neste sentido, há de se questionar como era
possível que A Manha circulasse após a publicação do O Boateiro mesmo com o estabelecimento da
censura desde o início do conflito. Diante do seu potencial de mobilização e de formação da opinião
pública, a sua propagação com certeza era indesejada pelo governo do Distrito Federal. Sendo assim,
a circulação de um jornal com uma coluna intitulada O Boateiro com certeza não deveria ser bem
vista pela censura. Neste sentido, defendemos que o jornal sofreu a censura do Governo Provisório.
Entretanto, a censura não evitou a primeira circulação da coluna O Boateiro, que é, de todas as 4
edições, a mais política e perigosa para o governo. Como constatamos nas duas citações anteriores, o
jornal falava abertamente de boatos contrários ao governo, além de realizar pesada crítica sobre a
parcialidade da imprensa nacional. Esta hipótese, leva em considerações alguns fatores. Em primeiro
lugar, o Barão de Itararé foi preso logo após a publicação do O Boateiro, no dia 2 de setembro. O
próprio jornal noticiaria na edição seguinte, dia 9 de setembro, que Torelli havia sido preso e solto
posteriormente. O semanário publicou esta notícia na coluna O Boateiro e não na primeira página ou
em qualquer outra seção do jornal. Dessa forma, A Manha procurou vincular a prisão de Itararé ao
motivo. Ainda sobre a sua prisão, antes de ser solto, segundo o semanário, as autoridades advertiram
o jornalista para que tomasse cuidado com a sua “linguinha de prata”16. Além disso, devemos ressaltar
que, desde o início da guerra, o jornal A Manha já tinha publicado 6 edições sem nenhum tipo de
censura ou prisão. Outro fator que reforça a nossa hipótese, é que após a primeira edição do O
Boateiro, as matérias e críticas amenizaram, a ponto de algumas nem mais abordarem os boatos e
parecerem mais uma continuidade do jornal.
Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, ao trabalhar com a relação entre intelectuais e o Estado
na década de 1930 e início de 1940, utiliza a ideia de “liberdade de fachada” e que acreditamos se
aplicar a aparente contradição de prender Aparício Torelli e permitir a publicação do O Boateiro por
mais algumas edições. Andreucci afirma que a captação de “determinados intelectuais funcionava
também como uma espécie de propaganda oficial, criando uma liberdade de ‘fachada’, situação que
contribuía para referendar o processo de legitimação do regime” 17.
No que diz respeito ao O Radical, a ironia com que tratava os boatos procurou minimizar os
seus efeitos diante da população da capital, que deveria menosprezá-los, não leva-los a sério. Apesar

16 A Manha, RJ, 09/09/1932.


17 ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O risco das idéias: intelectuais e a Polícia Política (1930-
1945). São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2006, p. 46.

816
da estratégia adotada pelo O Radical os boatos não cessavam na cidade, o que levou o jornal a uma
verdadeira campanha contra eles, na sua grande maioria sempre combatendo-os com ironia:

D. Boato ainda não esmoreceu. Vive artificialmente, mas consegue ainda os balões
de oxigenio do publico que nelle vê um simile curioso de diversão, uma espécie de
carnaval. No P.C. da Cinelandia o movimento continúa.
-Sabes, o Neves avisa que a victoria é para breve.
- Mas com tantas derrotas!
O rapaz melifluo, os olhos mortos, exhausto de esperar á noite, a ligação para o radio
paulista, desanima.
Não pegou.
Nem podia vingar.
O povo não leva mais em conta as “blagues” do substituto eventual de Zé Pereira, o
representante de Momo aqui na capital carioca. D. Boato agóra não inspira mais
boletins. Está a desistir do Radio. Anda macambusio, melancólico. Meditativo. É
que o chefe de Policia acabou com os seus “palpites”. Com a resolução da policia
dar passagem aos que desejassem lutar na frente paulista. D. Boato que espalhara
estar a cidade cheia de admiradores da “coragem cívica paulista”, verificou,
constrangido, a mentira da sua pilheria. Nem elle mesmo embarcou. E O P.C do
patusco anda assim sem prestígio. D. Boato ficou arrolhado dentro do vidro.
Coitado!18

O jornal desqualificou o boato e reconheceu que ainda não havia esmorecido, o que mostra
como essa onda de informações que circulava fora das redes legais era forte e ampla, além de popular.
Entretanto, a sua sobrevivência se dava porque a população o achava divertido, uma espécie de
carnaval. Assim, “D. Boato”, representante maior deste carnaval, se encontrava triste porque o povo
não lhe concedia mais a atenção inicial e por isso não inspirava mais boletins, o que é, de certo modo,
desmentido pela insistência do próprio jornal em dizer que eles estavam esmorecendo. O estado de
espírito de “D. Boato” se explicava por conta de um comunicado expedido dias antes pelo coronel
João Alberto. Neste, o chefe de polícia do Distrito Federal prometia facilitar no domingo, 31 de julho
de 1932, a ida de elementos que desejavam lutar por São Paulo 19. O Correio da Manhã também
divulgou a nota, esta dizia que:

Chegaram ao conhecimento da Policia os rumores de uma agitação de estudantes a


realizar-se dentro de poucos dias. Embora estejamos convencidos de que os referidos
rumores não passem de boatos espalhados por indivíduos que procuram explorar, na
sombra, a situação politica do momento, acha-se esta chefatura no dever de levar á
população do Rio de Janeiro a certeza da manutenção da ordem na sua mais absoluta
segurança. Não querendo, no entanto, esta chefia impedir que elementos convictos
de suas idéas possam defendel-as no campo da luta, previne que, a partir das 10 horas
de domingo, será facilitada uma conducção áquelles mais dignos, que desejem
correr, em S. Paulo, os mesmos riscos de seus companheiros em armas. Fóra disto,
a Policia tratará sem distincção, como simples arruaceiros e, portanto, com o maximo

18 O Radical, RJ, 05/08/1932.


19 O Radical, RJ, 30/07/1932.

817
rigor e energia todos aquelles que procurarem perturbar a ordem publica, que será
mantida á custa de quaesquer sacrifícios. 20

Através da nota emitida pelo chefe de polícia, fica clara a capacidade de mobilização do boato
nos dispositivos de ordem do governo. Diante dos “rumores” de um movimento que seria realizado
por estudantes, e que a polícia tinha a convicção de se tratarem de boatos, a chefatura policial decidiu
agir preventivamente, facilitando uma condução para indivíduos que desejassem lutar em São Paulo
contra o Governo Provisório. Certamente a polícia do Distrito Federal sabia que em alguns casos
estas informações não eram meros boatos, o que justifica a sua postura de cautela. No entanto, ao
denominar estes movimentos de contestação como boatos, procurou desqualificar estas informações,
desestimulando qualquer ato que pudesse perturbar a ordem.
Além dos boatos serem propagados por estações de rádio paulistas, também se espalhavam
através dos opositores do Governo Provisório, que atuavam em locais públicos de grande circulação.
No dia 9 de agosto, O Radical voltou a combate-los, dessa vez em situação mais alarmante:

Voltamos, hoje, a affirmar que, na Central do Brasil, elementos reaccionarios fazem


verdadeiros “meetings” contra as autoridades constituídas, dentro das proprias
dependências daquella repartição. São elementos isolados e que, por isso mesmo, se
nos affiguram passiveis de um correctivo, mesmo porque, para atingirem o objectivo
visado, que outro não é se não o de despirtar a opinião geral, os reaccionarios dão
curso aos boatos mais alarmantes. Faz-se mister, affirmamos uma medida urgente e
definitiva, por isso mesmo que a maioria esmagadora do funcionalismo daquella
repartição está empenhada em collaborar na obra de consolidação dos principios
revolucionarios. 21

Neste momento, eles surgem de elementos específicos e contrários ao governo. Aqui também
surge uma definição para o que o jornal considerava boato: notícias que eram propagadas pelos
opositores do Governo Provisório no Distrito Federal. Neste caso, o jornal defende a adoção de
medidas repreensivas, pois, apesar de tratar-se de elementos isolados, eles espalham boatos
alarmantes visando despertar o que o jornal chama de opinião geral. Nesta matéria, fica evidente que
o jornal, ao contrário do que havia afirmado anteriormente, reconhece que estes não eram inofensivos,
já que um dos motivos para recomendarem a adoção de medidas corretivas seja o fato de darem curso
aos boatos. Também é surpreendente que a sua disseminação ocorreu na Central do Brasil que se
encontrava ocupada militarmente desde o dia 11 de julho.
A disseminação dos boatos na cidade fazia parte de uma estratégia deliberada pelos opositores
do Governo Provisório para desestabilizar a capital do país. Neste sentido, conseguimos reconstituir

20 Correio da Manhã, RJ, 30/07/1932.


21 O Radical, RJ, 09/08/1932.

818
parte do modus operandi dos boateiros na cidade através da obra do jornalista e opositor do Governo
Provisório, Sertório de Castro.
A ampla maioria dos boatos elencados por Sertório de Castro eram contra o Governo
Provisório e diziam respeito à adesão do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais ao movimento liderado
por São Paulo. É neste sentido que o autor anotou, no dia 11 de julho de 1932, a seguinte indagação:
“Atitude do Rio Grande? E a de Minas? Conjecturas, fantasias, campo onde proliferava o boato sem
freios e sem limitações” 22. Os boatos sobre as supostas adesões de Minas Gerais e do Rio Grande do
Sul ao lado de São Paulo possuíam uma clara relação com o fato de terem se constituído frentes únicas
de oposição ao Governo Provisório nestes estados. No dia 12 de julho a possibilidade ainda era
aventada e Castro anotou no seu diário:

Corriam rumores insistentes a respeito do triangulo e do sul de Minas. A tropa federal


aquartelada em algumas cidades – e citavam-se Tres Corações, Pouso Alegre, e
depois Itajubá – havia se recusado a partir, e fizera causa commum com a revolução.
O triangulo estava convulsionado. Falava-se numa columna que descia de Goyaz
naquella direcção. [...] Grande regozijo nas rodas constitucionalistas que se formam
no trecho iluminado das calçadas dos grandes cafés. A noticia circulou celere. “O
Rio Grande está comnosco!”23

O jornal A Manha também fomentou e publicou os boatos a respeito da posição do Rio


Grande do Sul. No dia 09 de setembro, O Boateiro de maneira irônica abordou o assunto e afirmou
que:

É de inteira calma a situação no Rio Grande do Sul. Ao contrario do que vêm


affirmando certos orgãos tendenciosos desta capital, nada de anormal tem occorrido
naquella prospera região meridional. Nem o sr. João Neves se encontra em São Paulo
nem o sr. Raul Pilla no Uruguay. O sr. Borges de Medeiros, da mesma forma, que se
propalava estar homisiado numa fazendo proxima de S. Sepé, encontra-se
actualmente em Porto Alegre, vivo e são de lombo.24

Novamente, a coluna do jornal humorístico recorreu a estratégia de mesclar fatos a boatos. No


entanto, nessa matéria, o jornal adotou uma postura diferente. Ao invés de afirmar estes últimos, os
desmentiu. Dessa forma, O Boateiro invertia a situação, de modo que a situação de calma do Rio
Grande do Sul passou a ser boato. De maneira irreverente e com humor, O Boateiro publicava boatos
e fatos da Guerra de 1932. Do mesmo modo, disseminava informações que obviamente eram
prejudiciais ao Governo Provisório e deviam influenciar no cotidiano da população do Rio de Janeiro.

22 CASTRO, Sertório de. Diario de um combatente desarmado (a revolução de Sâo Paulo vista e
apreciada do Rio de Janeiro). São Paulo: Livraria José Olympio, 1934, p. 42.
23 Ibidem, p. 49.
24 A Manha, RJ, 09/09/1932.

819
Havia o rumor na cidade sobre uma possível vitória dos paulistas e O Boateiro explorou este fato.
Em matéria do dia 9 de setembro, a coluna iludia o leitor com uma matéria intitulada A marcha
paulista sobre o Rio. Ao ler atentamente a matéria, o indivíduo identificaria a brincadeira do jornal,
pois a marcha dos cerca de 15.000 voluntários paulistas era sobre o “Rio Ypyranga” e não o Rio de
Janeiro. Matérias como esta faziam parte do estilo jornalístico do A Manha, de modo que o seu leitor
devia estar habituado. No entanto, o que devemos aqui observar é a direção que estas matérias
tomaram durante o conflito e que, possivelmente, representavam o estado de espírito dos jornalistas
e talvez da própria população. Se insere neste raciocínio os boatos divulgados pela coluna no dia 2
de setembro, em que o semanário afirmava terem sido feridos o “sr. G. Tulio Vargas”, pelo descuido
de um barbeiro que o cortou com uma navalha e o general Waldomiro Lima que, após ser atingido
por uma granada de mão no pé, passou a encobrir o fato não mais tirando o sapato 25.
Não obstante, a seção O Boateiro também abordou a situação do movimento liderado
pelo ex-presidente Arthur Bernardes, em Minas Gerais. No dia 16 de setembro, a coluna publicou
que:

Confirma-se integralmente os rumores que, ha dias, vem sendo propalados, acerca


de qualquer anormalidade que se viria verificando no Estado de Estado de Minas
Geraes. Por intermedio de pessoa séria, absolutamente insuspeita, casada com um
cunhado do secretario particular de uma alta personalidade montanhesa, e, portanto,
magnificamente informada dos factos, podemos asseverar que o sr. Arthur Bernardes
encontra-se, de facto, á frente da Policia Mineira, em logar que não nos quiz revelar.
Por outro conducto, aliás oficial, tivemos a confirmação integral dessa noticia. O sr.
Arthur Bernardes está, realmente, á frente da Policia Mineira, e, portanto, a Policia
Mineira anda atrás dele. 26

Os rumores que circulavam sobre a situação do Rio Grande Sul e de Minas Gerais tocavam
num ponto fundamental para o Governo Provisório: a adesão dos dois maiores estados da Federação
ao movimento iniciado por São Paulo. Ambos os lados da guerra sabiam ser fundamental o apoio
destes estados para a respectiva vitória e, por isso, era importante garantir não só o seu apoio como
fazer a população saber de que lado estavam. O jornal A Manha acabou ampliando a
disseminação dos boatos, mas não que estes precisassem do auxílio daquele. O jornalista Sertório de
Castro nos apontou para um dos locais recorrentes onde os boateiros se reuniam para conversar sobre
os acontecimentos e disseminar os boatos, as cafeterias. Obviamente que isto se dava por se tratarem
de lugares públicos e de grande circulação. Esta prática parece ter sido um modus operandi entre os
boateiros, pois no Ceará os “cafés” também eram apontados como locais onde se propagavam essas

25 A Manha, RJ, 02/09/1932.


26 A Manha, RJ, 16/09/1932.

820
27
notícias . Castro ainda elencou que havia uma separação entre as cafeterias que possuíam
posicionamento a favor e contra o governo. Neste caso, o autor nomeou a região como:

O Itararé – aquella vasta faixa de calçada illuminada, cheia de mesinhas com cadeira
em torno, pregões de jornaleiros e de boatos, que fica entre o Café Bellas Artes e o
Café Nice – desanimado e triste. O Bellas Artes era o “quartel general dos outubristas
de farda e de casaco accusando as depressões produzidas pelo ambiente que envolvia
a dictadura e seus associados; o Nice, ponto preferido pelos reaccionarios e pelos
constitucionalistas noctambulos, entregue a quase abandono por effeitos do temor
do presidio fluctuante no fundo da bahia. 28

Sertório de Castro faz uma alusão à famosa batalha que não ocorreu na cidade de Itararé em
São Paulo durante a revolução de 1930. Naquela ocasião, o presidente Washington Luís foi deposto
antes que as tropas lideradas por Getúlio Vargas entrassem em confronto com as tropas federais e
com a Força Pública do estado de São Paulo, evitando assim, que o país entrasse numa guerra civil.
Castro diz que o Café Bellas Artes era ponto de encontro dos apoiadores do governo, enquanto o Café
Nice era frequentado por seus opositores, este último se encontrava vazio porque os seus
frequentadores temiam serem presos e levados para o navio prisão D. Pedro I 29 . O temor dos
frequentadores do Café Nice de serem presos também contradiz a postura adotada pelo Governo
Provisório na imprensa aliada de que não havia repressão aos boateiros
Da mesma forma que o jornalista Aparício Torelli, a prisão de Sertório de Castro, contradiz a
versão do governo de que a polícia não repreendia os boateiros. O jornalista, enquanto apoiador do
movimento de São Paulo, não apenas era receptor dos boatos, mas também um transmissor e, em
inúmeras passagens do seu diário, percebemos o seu papel de disseminador destas notícias. No dia
13 de julho, registrou que “Succediam-se as prisões, e todos quantos, na esphera de suas actividades,
cooperavamos com o ardor das nossas convicções – fosse levantando os ânimos abatidos pela
campanha dos entorpecentes officiaes, fosse organisando a necessaria contra-ofensiva dos boatos
[...]30”.
Para Sertório de Castro, havia uma verdadeira guerra de boatos e, assim como nos periódicos,
utilizava termos como ofensiva e contra ofensiva dos boatos. Ainda no dia 13, discorrendo sobre
novos rumores que envolviam a provável adesão do Rio Grande do Sul a São Paulo, o autor diria que
“Si nem tudo isto era rigorosamente verdadeiro, representava, pelo menos, uma represalia condigna

27 LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões provisórios: Legitimação, mobilização e alistamento para uma
guerra nacional (CEARÁ, 1932). 2009. 213 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará
– Fortaleza, p. 55.
28 CASTRO, Sertório de. Op. Cit,, p. 58.
29 É a isto que o autor se refere como “presidio fluctuante no fundo da bahia”. Durante a Guerra de 1932,
inúmeros presos políticos eram levados para esta prisão.
30 Grifo nosso. CASTRO, Sertório de. Op. Cit., p. 52.

821
aos boatos da mentira oficial”. O soldado a ser combatido pelo autor, neste sentido, era a imprensa
aliada que espalhava boatos frutos da “mentira oficial”. Na guerra de boatos, não bastava apenas
espalhar falsas informações contrárias ao Governo Provisório, também se fazia necessário não dar
créditos aos boatos do inimigo. Assim, quando os periódicos anunciaram que o governo havia tomado
o túnel da Mantiqueira31, o jornalista afirmou que se tratava de um comunicado falso, que na verdade,
as tropas federais haviam sido derrotadas e um batalhão mineiro inteiro foi dizimado e mais de 400
soldados presos32. Neste ponto, também conseguimos entender o que o autor qualificava como boato:
aquilo que era propagado pela imprensa aliada a favor do Governo Provisório.
Provavelmente o que o Governo mais temia nos boatos era a sua capacidade de mobilização
da população. Nas duas vezes em que esteve preso, Sertório de Castro narrou uma série de rumores
que chegavam até aos ouvidos dos prisioneiros, boatos parecidos com os que o jornalista convivia e
ajudava a propagar fora da prisão, como as supostas derrotas das tropas federais. Em uma ocasião, no
dia 8 de setembro, chegaram a noticiar a invasão do estado do Rio de janeiro sendo que as tropas já
se encontravam inclusive em Petrópolis a caminho da capital33. No dia 29 de setembro, o jornalista
afirmou que o dia amanhecia sob uma “influência depressiva” e que durante a noite providências
excepcionais foram tomadas, com vigilância dobrada e guarda reforçada. Segundo o autor, isso se
explicava porque:

[...] rumores de uma agitação na cidade, coincidindo com um comicio convocado


para a tarde de hoje, por meio de boletins clandestinos fartamente distribuidos,
carregavam de ameaças a atmosphera. Havia entre os prisioneiros, sem duvida,
alguns mais audazes que vinha se mostrando vivamente inquietos, entregando-se a
certos preparativos [...] Uma tentativa de sublevação? Sim. E havia armas
escondidas, e havia granadas de mão desde muito introduzidas no presidio, e havia
um plano ousadamente architetado que talvez fosse posto inopinadamente em
pratica.34

Para Sertório de Castro, boatos de agitações na cidade, que ocorreriam ao mesmo tempo em
que um comício convocado clandestinamente, haviam mobilizado uma parte dos presos a pensarem
na possibilidade de se sublevarem, estes teriam inclusive armas escondidas para confrontarem a
segurança do presídio.

31 Túnel que representa a divisa entre a cidade paulista de Cruzeiro e a cidade mineira de Passa Quatro.
Possuía valor estratégico durante a Guerra de 1932.
32 CASTRO, Sertório de. Op. Cit., p. 118.
33 CASTRO, Sertório de. Op. Cit., pp. 215-216.
34 Ibidem, p. 268.

822
- Consideração final

Defendemos que os boatos na capital representavam uma verdadeira ameaça ao governo e que
estes mobilizavam tanto o Governo Provisório quanto os setores oposicionistas na cidade. Neste
sentido, podemos observar que os boatos na cidade possuíam categorias diferentes. Para o Governo
Provisório, eram as informações propagadas pelos seus opositores. Sendo assim, poderiam ser
utilizados de duas formas: visando a difusão de ideias e a arregimentação de apoiadores; ou, a
perturbação da ordem, como no caso analisado por Hilton e mencionado no início deste tópico. Em
contrapartida, para os opositores do governo, identificamos que havia os boatos “oficiais”. Neste
caso, como nos aponta Sertório de Castro, tratava-se das informações disparadas pelo governo e das
matérias publicadas na imprensa aliada.

Fontes e Bibliografia

a) Acervo consultado
Biblioteca Nacional.

b) Fontes impressas: obras memorialísticas


CASTRO, Sertorio de. Diario de um combatente desarmado (a revolução de Sâo Paulo vista e
apreciada do Rio de Janeiro). São Paulo: Livraria José Olympio, 1934.
VARGAS, Getúlio. Diário, Volume I (1930-1936). São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1995.

c) Referência bibliográfica
AGUIAR, Odailton Aragão. O Barão de Itararé e seus Almanhaques - Os almanaques do jornal A
Manha. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo - São Paulo.
ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O risco das idéias: intelectuais e a Polícia Política
(1930-1945). São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2006.
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil – 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2007.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política.
Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932: a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, idéias malditas: o DEOPS e as minorias
silenciadas. São Paulo: Ateliê Editorial, PROIN – Projeto Integrado Arquivo do Estado/USP;
FAPESP, 2002.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci, KOSSOY, Boris (Organizadores). A imprensa confiscada pelo
DEOPS: 1924-1954. São Paulo: Ateliê Editorial: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.
CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem Guerra: A mobilização e o cotidiano em São Paulo durante
a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial: Editora da Universidade de São Paulo,
2000.

823
HILTON, Stanley. A guerra civil brasileira: história da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
JACOBUS, Rodrigo Maciel. Um nobre bufão no reino da grande imprensa: A construção do
personagem Barão de Itararé na paródia jornalística do semanário A Manha (1926-1935). 2010.
271 f. Dissertação (Mestrado em Comunição e Informação). Universidade Federal do Rio Grande do
Sul - Porto Alegre.
LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões provisórios: Legitimação, mobilização e alistamento para
uma guerra nacional (CEARÁ, 1932). 2009. 213 f. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza.
____________________. A Cidade e A Guerra: a campanha de mobilização e o cotidiano de
Fortaleza durante a Guerra de 1932. Mosaico, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, dez. 2009. ISSN 2176-8943.
Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/62782/61918>.
Acesso em: 11 Fev. 2017.
_____________________. Acordos firmados e estratégias debatidas: a troca de telegramas entre os
interventores do Norte e o Governo Provisório durante a Guerra de 1932. Mosaico, Rio de Janeiro,
v. 3, n. 5, p. 3 - 21, jun. 2011. ISSN 2176-8943. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/62795>. Acesso em: 22 Abr.
2017.
_____________________. Um vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as
interventorias do Norte e a Guerra de 1932. 2014. 321 f. Tese (Doutorado em História, Política e
Bens Culturais). Fundação Getúlio Vargas – Rio de Janeiro.
SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A política armada: Fundamentos da guerra revolucionária. São Paulo:
Editora Unesp, 2000.

824
Exposições: Memórias e Omissões

Fernanda Deminicis de Albuquerque 1

Resumo: O presente texto é uma pequena reflexão acerca das possíveis contribuições do design em
espaços museológicos, observando os estudos e usos que são feitos da cultura material em tais
ambientes, levando em consideração as relações entre diferentes partes que gravitam ao redor dos
museus, e a forma como se articulam a memória e as omissões que existem neste espaço.

Palavras-chave: museus, memória, design

Abstract: The present text is a small reflection about the possibles contributions of the design in
museological spaces, observing the studies and uses that are made of the material culture in such
environments, considering the relations between different parts that operate around museums, and
how the memory and the omissions that exist in this space are articulated.

Keywords: museuns, memory, design

Esta breve apresentação é baseada em um recorte da pesquisa em desenvolvimento de meu


mestrado, onde de forma sucinta, o problema identificado são as relações existentes entre museus, as
instituições mantenedoras do patrimônio histórico brasileiro, suas obras, objetos e exposições, o
espaço que ocupam e seus visitantes. Tais como todas as relações humanas, essas relações acima
enunciadas são complexas e multifacetadas, devendo ser observadas e estudadas dentro de seu
contexto histórico, social, político e econômico. Nesta conjuntura, procuro identificar a contribuição
que o Campo do Design2, pode oferecer ao espaço museológico e aos estudos e disposições que são
feitos da cultura material em tais ambientes.
Exposições, termo que se deriva do latim exponere, tem em sua origem na noção de por para
fora, entregar à sorte. Dessa maneira, uma exposição traz em seu cerne os sentidos que os seus
organizadores desejam fazer chegar ao público, sendo, portanto, um meio entre os objetos, sejam
estes de arte ou prosaicos, e o visitante. É justo nessa exposição que uma dada instituição encontra
uma forma de se comunicar, criando inclusive uma identidade própria para esses discursos,
entendidos aqui como a organização intencional de ideias que se apresentam de maneira a instilar
determinado raciocínio e sentimentos a quem a ele é submetido, e que quando se solidificam se
tornam fortes e dignificam a autoridade de quem fala a outrem. Podemos ainda levar em consideração
que expor objetos, que são compreendidos como bens culturais, legitimados por instituições

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de Artes e Design da Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Email: fernanda.deminicis@gmail.com
2 Aqui, a noção de Campo foi tomada de Pierre Bourdieu, cf. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2015.

825
competentes, é de certa forma afirmá-los como essenciais para uma determinada história, e portanto,
uma memória.
Ao tratar de museus, em especial os de caráter histórico, é relevante se destacar o papel da
memória e da história. Em seu trabalho, quando fala sobre a memória, Le Goff traz uma referência do
pensamento de Tomás de Aquino que, baseado em uma materialidade que se fundamentava em
Aristóteles, acreditava que para reter de forma adequada a memória, algo tão intangível e fugaz, ela
deveria estar associada a qualquer coisa sensível, que pudesse ser símbolo para ela. Ora, a partir do
momento que se liga tal memória aos objetos, passa a existir um conjunto de coisas materiais que têm
valor simbólico para uma coletividade, que será uma das grandes responsáveis pela criação e
valorização de um patrimônio cultural. Esses guardados ou arbitrários culturais, são capazes de manter
e fortalecer a união daquelas pessoas que os partilham, e que assim os expandem cotidianamente ao
logo dos tempos.3 No que se aludi aos resquícios materiais do passado que chegam até nosso presente,
cito que estes "são [...] produtos de uma operação seletiva que traduz o controle sobre as informações
que a sociedade exerce sobre si mesma." 4

Elementarmente, então, trazendo tal argumento para os museus, podemos pensá-los como
reflexos do que uma sociedade construiu e atribuiu valor. Mais especificamente tratando, ter controle
e gerência sobre dado patrimônio cultural histórico faz também com que as instituições tenham
domínio não só da memória que lhes cabe, como também dos silêncios que lhes são pertinentes, sendo
interessante observar que o conteúdo selecionado a ser exibido, bem como o discurso que sua
proposta museal irá formar é capaz de retratá-la, ainda que de forma tácita, não sendo clara ou direta.
Assim, circuitos expositivos trazem artifícios planejados, combinando objetos, imagens e
textos, repletos de representação de valor simbólico, que unem conteúdo expressivo de informação
com estímulos sensoriais que se propõem a fazer sentido ao visitante, versando sobre determinados
racontos e omitindo tantos mais, de forma a atingir objetivos e suprir demandas das instituições que
os criam e sustentam, sendo fulcral que sejam apreciados de forma atenta e crítica.
Ao refletirmos melhor sobre os objetos, podemos perceber que eles são capazes de se
disfarçar, escondendo em si muitas especificidades que não podemos ver se o observarmos de forma
simplória. Eles camuflam suas intenções de criação, seus métodos produtivos, o modo de trabalho
pelo qual se originou, o emprego de seu uso, as formas pelas quais se ressignificou em diferentes
espaços, e o seu real valor sem suas máscaras simbólicas.

3 LE GOFF, Jacques. História e Memória, Livro II: Memória. Lisboa: Editora Edições 70, 2000.
4 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura,
Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan.-jun. 2006, p. 5.

826
Observando então a forma como se monta uma exposição e seu respectivo discurso, não se
pode deixar de lado que, por trás de toda sua criação há pessoas que conscientemente trabalham
tecendo narrativas, sugerindo recortes e argumentos, dispondo de objetos calculadamente selecionados
e arrumados de forma não arbitrária. Nada, por certo, é exibido sem um pensamento prévio ou objetivo
traçado que se almeja alcançar. Da iluminação às cores, às vitrines, aos textos, ao percurso bem
demarcado, ou até mesmo um caminho que se mostre livre ao visitante. Desde que os museus passaram
de “dépôts” para se tornarem “expôts”5 (e aqui, em uma origem na tradição do antiquariado, faço uma
referência a passagem dos gabinetes de curiosidade, para os museus nos moldes como hoje os
conhecemos), não há como se pensar suas exibições sem considerar as intenções e o manejo dos
objetos que o museu possui em sua guarda.
Assim, é imprescindível se compreender que os objetos e produtos variados da cultura
material, sejam eles triviais ou de arte, tridimensionais ou não, não emitem por si só os seus
significados e nem são passíveis de serem “lidos” como uma espécie de texto. Sendo a sociedade uma
coletividade, produtora de significados e de crenças, se entende que esta inculca e molda
coercitivamente um habitus, ou seja, a forma como cada indivíduo percebe o seu entorno, de acordo
com inúmeros interesses coletivos - os determinismos sociais - que geralmente são ocultos. Dessa
forma, não poderiam os objetos criados pela sociedade emitir sentidos, e sim nós, enquanto
pertencentes e partícipes dessa cultura, partilhando dos mesmos códigos e tempo histórico,
projetamos esses sentidos, significados e simbolismos nos mesmos. Isso é muito claro no pensamento
de Didi-Huberman 6 , quando ele diz que não “percebemos” as coisas do mundo, mas sim as
“reconhecemos”. Ora, podemos então inferir que o olhar precisa ser condicionado e treinado para ver
aquilo que se deseja mostrar. Não há um olhar neutro ou gratuito, sem um porquê.
Enunciadas essas questões, outro aspecto interessante de se abordar é que o design pode, e é,
usado por interesses políticos para criar a noção de pertencimento, e ser artifício que, no caso dos
museus, pode facilitar este reconhecimento desejado, criando um ambiente que seja mais confortável
e aprazível ao visitante. Nesse ponto, é interessante mencionar a referência de Forty, que destaca com
propriedade que o design nunca é empregado de forma ingênua, exemplificando, ainda que de forma
anacrônica, que “impérios, exércitos, marinhas, ordens religiosas e empresas modernas, todos usaram
design para transmitir ideias sobre o que são [e o que projetam], tanto para o público interno como
para o mundo exterior”.7 Em contraponto, o design pode também, dependendo da proposta, moldar

5 Termos utilizados por Dominique Poulot, cf. POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2013, p. 27.
6 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
7 FORTY, Adrian. Objetos de desejo - design e sociedade desde 1750. São Paulo, Editora Cosac & Naify,
2013, p. 301.

827
recinto de provocação e incômodo, em uma tentativa de impelir um movimento ou posicionamento
crítico no visitante. Há ainda aqui uma ressalva, o designer pode sim reproduzir noções, mas é
importante se observar que nem sempre é eficaz em suas intenções, ressaltando aqui que a concepção
de que o designer resolve problemas é um postulado mítico desta categoria.
Com todo o supracitado, chego ao meu objetivo, que é discutir a partir de uma análise, as
formas de inserção do design nos museus, muito além da óbvia e epidérmica conhecida criação de
material de divulgação, identidades visuais e outros materiais secundários de apoio às exposições,
reforçando a importância do estudo minucioso da cultura material e da sociedade que gravita em seu
entorno. As imagens e os objetos são poderosas fontes de pesquisa ainda pouco exploradas. Deve-se
ressaltar a importância dos museus, enquanto instituições de posse de uma larga gama de bens
patrimoniais, de investir e fomentar a pesquisa, buscando validar o uso das imagens e objetos como
fonte histórica8, demonstrando a riqueza que podem oferecer a diversas áreas do saber, justo porque
refletem a infindável capacidade e diversidade das sociedades, com suas complexas estruturas, em
produzir material sensível.

Referências bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2015.

______________________. A produção da crença: Contribuição para uma economia de bens


simbólicos. Porto Alegre: Editora Zouk. 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.

______________________. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura,
Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan.-jun. 2006, p. 5.

LE GOFF, Jacques. História e Memória, Livro II: Memória. Lisboa: Editora Edições 70, 2000.

POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.

8 DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.

828
Exploração científica, imperialismo e literatura de viagem: a narrativa sobre africanos em
“De Angola à Contra-costa” (1884-1886)1

Fernando Henrique de Almeida Lima 2

Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar alguns elementos para analisar a narrativa sobre
africanos presentes na obra “De Angola à Contra-Costa”, publicada em 1886 pelos oficiais da Armada
Portuguesa Hermenegildo Carlos de Brito Capelo e Roberto Ivens. Neste relato, os autores narram a
expedição que cruzou a África Central, de Angola a Moçambique, entre 1884 e 1885. A partir dos
conceitos de “transculturação” e de “zona de contato” – como formulados por Mary Louise Pratt – e
de contribuições de autores como Edward Said e Alexsander Gebara, apontamos o caráter relacional
da produção de conhecimento na zona de contato. Deste modo, analisando as imagens produzidas
sobre os africanos na obra e as relações entre eles e os exploradores, consideramos ser possível não
só perceber as representações sobre os africanos, como também suas agências e resistências no
contexto da expansão imperialista europeia.

Palavras-chave: Literatura de viagem; África Central; relações afro-europeias

Abstract: This text aims to present some elements to analyze the narrative about Africans in the book
“De Angola à Contra-costa”, written by Hermenegildo Carlos de Brito Capelo e Roberto Ivens,
officers of the Portuguese Navy, published in 1886. In this book, the authors narrate the expedition
that crossed Central Africa from Angola to Mozambique between 1884 and 1885. Taking into
consideration the concepts of “transculturation” and “contact zone” – as formulated by Mary Louise
Pratt – and the contributions of authors such as Edward Said and Alexsander Gebara, this text
indicates the relational character of the knowledge production in the contact zone. Thus, analyzing
the images about Africans produced in the narrative and the relations between the Africans and the
explorers, we consider to be possible not only to perceive the representations about Africans, but also
their agencies and resistances in the context of the European imperialist expansion.

Keywords: Literature of travel; Central Africa; afro-european relations

A literatura de viagem como fonte historiográfica

A mobilização da literatura de viagem como fonte documental para a história da África passou
por momentos distintos. Diante de uma suposta escassez de outras fontes, até meados do século XX,
os relatos de viajantes que passaram pelo continente africano foram considerados fontes privilegiadas,
por registrarem informações colhidas por “testemunhas oculares”, o que lhes garantiria maior
confiabilidade 3 . Deste modo, este tipo de documentação era mobilizado como forma de obter

1 Este trabalho é parte da pesquisa de conclusão de curso em desenvolvimento no Instituto de História da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Profª. Drª. Mônica Lima e Souza (LEÁFRICA).
2 Graduando em História – Instituto de História/UFRJ. Membro do LEÁFRICA. E-mail: fhlima94@outlook.com
3 Hoje, já se estabeleceu a necessidade de se criticar também as fontes produzidas por testemunhas oculares. Além
disso, como se sabe, não era raro que viajantes descrevessem lugares, cenas e povos que jamais haviam visto
pessoalmente.

829
informações diretas sobre dada realidade histórica, sem maiores preocupações metodológicas 4. Desde
então, o status de “objetividade” antes conferido às narrativas produzidas por viajantes tem sido
relativizado, evidenciando-se as distorções presentes nessas narrativas, decorrentes de esquemas de
percepção europeus. No limite, algumas vezes se colocou a pertinência do uso dessas fontes para a
história da África em xeque, pois, entendendo-as como discursos essencialmente europeus,
condicionados apenas por filtros culturais e esquemas de percepção do viajante, elas não permitiriam
mais do que o estudo da história política, intelectual e cultural da Europa.
Alguns estudos, entretanto, têm questionado a ideia de que o conteúdo das representações
ocidentais sobre o “Outro” seria essencialmente europeu5. Nesta perspectiva, o trabalho de Mary
Louise Pratt em “Os olhos do império”6 é um importante referencial. A partir da noção de “zona de
contato”, a autora compreende a literatura de viagem como fruto das dinâmicas e das tensões do
contato entre viajantes e “visitados” – ainda que este contato fosse marcado por relações assimétricas
de poder. Revisitando o conceito de transculturação, Pratt nos convida a compreendê-lo como um
fenômeno que opera não só na direção da metrópole para a colônia e do colonizador para o
colonizado, mas também da colônia para a metrópole, e do colonizado para o colonizador. Assim, a
autora indica uma questão fundamental para entender as representações sobre sujeitos não-europeus,
instigando-nos a refletir em que medida elas “teriam sido moldadas por estes últimos, através da
construção de si próprios e de seu ambiente, tal como eles os apresentam aos europeus?” 7. Para além
de um enfoque exclusivo nos viajantes, esta perspectiva aponta para a necessidade de se considerar a
interação entre eles e os sujeitos com os quais eles encontraram e se relacionaram.
Como ressaltou Alexsander Gebara em seu trabalho sobre a obra do inglês Richard Burton,
destacar a dimensão da interação para compreender o discurso colonial não significa ignorar a
dimensão da violência e o etnocentrismo que o permeiam 8. Mas, para além de constatar o processo
de violência epistemológica, esta abordagem nos permite trazer à tona histórias de resistência, nas
quais os africanos exercem um papel de agência, contribuindo ativamente para a construção do
conhecimento antes considerado puramente Ocidental e interferindo na construção da imagem da
África e de si mesmos.

(...) não se trata de ‘recuperar’ vozes nativas ou subalternas nos textos de Burton,
mas analisá-los como constituídos dentro de um processo histórico no qual as
agências e resistências dos não europeus são parte importante.

4 CORREA, 2008. p. 11.


5 GEBARA, 2006.
6 PRATT, 1999.
7 Ibidem. p. 31.
8 GEBARA, 2010. p.17.

830
Ao utilizar este enfoque, a análise do discurso colonial ganha outros contornos. Não
mais se limita a demonstrar a violência epistemológica exercida sobre os não
europeus, mas ao fazer isto, recupera as experiências de embates, resistências e
colaborações oriundas do contato cultural e material que criam as necessidades de
representações que constituem o próprio discurso colonial. 9

Na mesma direção, a historiadora Elaine Ribeiro, em estudo sobre os trabalhadores envolvidos


na expedição liderada por Henrique de Carvalho à Lunda, reafirmou a pertinência da literatura de
viagem como fonte historiográfica, “por permitir a busca, além de suas representações, dos papéis
históricos de pessoas que, embora com presença ostensiva, foram ao longo do tempo socialmente
desvalorizadas [...]”10.
Portanto, distanciando-nos daqueles que consideraram a literatura de viagem como mera ficção,
como também daqueles que a trataram como reflexo do real, a consideramos como um importante
recurso, na medida em que possibilita aprofundar o entendimento da dinâmica das relações entre
africanos e europeus, evidenciando as agências, as resistências e os papeis desempenhados por
africanos diante dessa relação e da expansão imperialista europeia.
É nesta perspectiva de trabalho que desenvolvemos a análise das representações sobre os
africanos em “De Angola à Contra-costa”11, publicada em 1886, de autoria dos oficiais da Armada
Real Portuguesa Hermenegildo Carlos de Brito Capelo e Roberto Ivens. Nesta obra, ao longo de 938
páginas, distribuídas em dois volumes, os exploradores narram a expedição que, entre janeiro de 1884
e setembro de 1885, cruzou o continente africano da costa ocidental à costa oriental, partindo de Porto
Pinda, no sul de Angola, até Quelimane, em Moçambique.

9 Ibidem. p.16.
10 RIBEIRO, 2013. p. 40.
11 CAPELLO, Hermenegildo; IVENS, Roberto. De Angola à Contra-Costa: descripção de uma viagem atravez do
continente africano comprehendendo narrativas diversas, aventuras e importantes descobertas entre as quaes figuram a
das origens do Lualaba, caminho entre as duas costas, visita ás terras da Garanganja, Katanga e ao curso do Luapula, bem
como a descida do Zambeze, do Choa ao oceano. Lisboa: Imprensa Nacional, 1886. 2v.

831
Mapa percursos das expedições de Capelo e Ivens

Fonte: TAQUELIM, 2008. p. 89.

Explorações geográficas europeias na África Central

Os trabalhos de Edward W. Said 12 e de Mary Louise Pratt13 demonstraram a relação profunda


entre a produção da literatura de viagem e a dominação imperialista europeia sobre outras regiões do
mundo e suas populações. Como argumentou Said, o imperialismo também se caracterizou como um
empreendimento cultural, para além de um fenômeno puramente econômico e político 14. A cultura,
que para Said abrange tanto os saberes populares quanto disciplinas acadêmicas15, sustentou as ações
imperialistas, arregimentando interesses e dando-lhe coerência e sentido, na medida em que produziu
a noção de que certos territórios e povos precisavam ser dominados 16. Afinal, como observou Said –
parafraseando Joseph Conrad – “o empreendimento imperial depende da idéia de possuir um
império” 17 . Neste sentido, tem destaque o papel desempenhado pela literatura de viagem em
contribuir para engajar o público europeu mais amplo nos empreendimentos imperialistas 18.
Deste modo, ao longo do século XIX, lançaram-se inúmeras expedições de exploração
geográfica ao interior do continente africano, dedicadas a descobrir e mapear as regiões ainda
desconhecidas pela Europa. A partir delas, produziram-se muitos relatos de viagem, que foram

12 SAID, 2007. Idem, 2011.


13 PRATT, 1999.
14 SAID, 2011. p. 44.
15 Ibidem. p. 12.
16 Ibidem, p. 40-44.
17 Ibidem, p. 42. Grifos do autor.
18 Ibidem, p. 28.

832
responsáveis por apresentar e construir imagens sobre o continente africano para o europeu comum,
visto que, em uma época anterior ao fenômeno do turismo de massa, as narrativas de viajantes
europeus eram a única possibilidade de conhecimento sobre outras regiões do planeta para a maioria
da população europeia.
Os portugueses tinham ficado praticamente alheios a esse movimento geográfico durante o
início do século XIX. O último esforço português de travessia da África Central de uma costa à outra
havia sido efetuada pelos pombeiros africanos Pedro João Baptista e Amaro José. Apesar de bem
sucedida, a longa travessia de Baptista e José – realizada entre 1802 e 1814 – acabou por reforçar a
frustração portuguesa frente aos obstáculos e às dificuldades em penetrar o interior do continente. Em
outros países europeus, a tendência era o oposto. Formavam-se as sociedades geográficas –
associações científicas que tiveram papel fundamental na organização de viagens de exploração do
continente. A exígua atividade portuguesa na exploração geográfica do continente africano, quando
comparada a outros países europeus – para o que contribuíram significativamente as agitações
políticas que marcaram Portugal até a metade do século XIX – seria revertida somente a partir de
1875. Nesta altura, a África Central tornava-se o centro dos interesses europeus, principalmente a
bacia do rio Congo. Com a maturação de projetos imperialistas, a partir de 1870, as viagens à África
se intensificaram de tal modo que Wesseling compara o interesse europeu em relação ao continente
africano à empolgação em torno da corrida à lua em 1960 19.
As viagens do médico, missionário e explorador britânico David Livingstone – um dos mais
celebrados exploradores europeus – foram fundamentais em direcionar o foco das viagens de
exploração para a África Central20. Dentre elas, a mais famosa foi sua travessia partindo de Luanda,
na costa ocidental, até Quelimane, na costa oriental – realizada entre 1853 e 1856. Em suas últimas
viagens, Livingstone dedicou-se a descobrir a nascente do Nilo, tendo permanecido por muitos anos
na região dos Grandes Lagos buscando desvendar este que era um mistério para a ciência europeia.
Em uma delas, em 1871, percorrera o curso do Lualaba, que acreditava ser uma continuação do Nilo,
sendo ele na verdade a nascente ocidental do rio Congo. Ele morreria antes de descobrir a verdadeira
nascente do Nilo, mas suas viagens acabariam por intensificar o interesse dos exploradores pela
África Central21.
Em 1873, o também britânico Verney Lovett Cameron foi enviado ao continente africano pela
Royal Geographical Society, tendo sido instruído a assistir Livingstone 22. Livingstone acabaria por
morrer naquele ano, antes mesmo de Cameron o encontrar. Com a morte do grande explorador e

19 WESSELING, 2008. p. 92.


20 Ibidem. p. 93.
21 WESSELING, 2008. p. 93.
22 CASADA, 1975. p. 207

833
missionário, o objeto da viagem de busca de Cameron já não mais existia. Assim, decidido a
completar as descobertas de Livingstone, Cameron terminaria por ser o primeiro explorador europeu
a realizar a viagem transcontinental da costa oriental à costa ocidental – no sentido inverso da
travessia realizada por Livingstone. A travessia durou 2 anos e meio, percorrendo um trajeto a partir
de Bagamoyo até Catumbela. Mesmo não conseguindo acompanhar todo o curso do Lualaba e do
Congo, convencera-se da ligação entre os dois rios, descartando a possibilidade de o Nilo ter origem
no Lualaba23.
O explorador que continuou o trabalho de Livingstone e de Cameron, pondo fim às
especulações sobre o Lualaba, foi Henry Morton Stanley. Stanley, também britânico, mas crescido
nos Estados Unidos, foi alçado à fama ao realizar uma expedição em busca de Livingstone em 1870,
uma vez que já não se tinham notícias do famoso explorador há algum tempo. Bem sucedido nesta
empreitada, Stanley o encontrou em novembro de 1871. Stanley continuaria sua carreira de
explorador do continente africano, partindo em uma nova expedição em 1874. Nesta viagem, que
durou até 1877, Stanley se tornou o primeiro explorador a percorrer e mapear todo o curso do rio
Congo, desvendando para a Europa um dos maiores mistérios em relação ao conhecimento europeu
da geografia do continente africano, e o mais famoso explorador de seu tempo. Sua viagem revelou
que o rio Congo era navegável a partir do lago que batizou com o seu próprio nome (hoje, Lago
Malebo), possibilitando um acesso ao interior da África Central. O livro em que narra esta viagem –
Through the Dark Continent – , publicado em 1878, foi um sucesso editorial internacional 24.
As descobertas de Stanley tiveram enorme impacto na história da África Central. Se antes o
interesse europeu pela bacia do Congo era, em geral, bastante tímido – devido à dificuldade de acesso
para além do estuário e à resistência imposta pelas populações locais 25, o que mantinha o interesse
europeu centrado em outras bacias do continente, principalmente na do Níger e na do Nilo – a partir
delas a bacia do Congo se tornaria central na diplomacia europeia, em um processo que culminaria,
mais tarde, na realização da Conferência de Berlim, entre os anos de 1884 e 1885.
Essa intensa movimentação de exploradores deixou em alerta setores da sociedade portuguesa,
que viram com certa desconfiança a atenção dedicada à África Central por sociedades geográficas e
governos estrangeiros, principalmente pelas frequentes declarações hostis destes viajantes em relação
aos portugueses. Este sentimento foi um dos motores para a fundação, em 1875, da Sociedade de
Geografia de Lisboa – organização particular aos moldes das sociedades geográficas já existentes em
outros países da Europa. No mesmo sentido, instituiu-se, no ano seguinte, a Comissão Central

23 WESSELING, 2008. p. 93.


24 Ibidem, p. 93-95.
25 BRUNSCHWIG, 2015. p. 28

834
Permanente de Geografia (CCPG), órgão oficial vinculado ao Ministério da Marinha e Ultramar.
Ainda em 1876, sob a liderança do rei da Bélgica Leopoldo II, organizou-se a chamada Conferência
Geográfica de Bruxelas, com o mote humanitário do combate ao tráfico de escravos e de levar a
civilização ao continente africano. Nela discutiu-se o estabelecimento de bases operacionais no
continente, que serviriam para reunir informações sobre as regiões do interior e seus povos, além de
operar como ponto de hospedagem aos viajantes e como “centros de civilização” 26 . Além disso,
fundou-se a Associação Internacional Africana, que pretendia reunir esforços para operar neste
sentido. A exclusão de Portugal, que não fora convidado a participar da conferência, aumentou o
sentimento entre os portugueses de ameaça em relação aos seus próprios interesses em África.
Nesse contexto, a SGL e a CCPG pressionaram o governo português a lançar-se no movimento
de explorações geográficas do continente africano e atuaram ativamente na elaboração e organização
da expedição portuguesa de 1877, para a qual foram nomeados Hermenegildo Carlos de Brito Capelo,
Roberto Ivens e Alexandre de Serpa Pinto. Deste modo, tendo percorrido o interior de Angola entre
1877 e 1880, Capelo e Ivens realizaram sua primeira viagem de exploração, alçando-os à fama.

Capelo e Ivens: militares da Armada portuguesa em viagem pela África

Hermenegildo Carlos de Brito Capelo nasceu no ano de 1841, em Palmela – Portugal, filho do
major Félix António Gomes Capelo e de Guilhermina Amália de Brito Capelo. Iniciou sua carreira
na Armada Real Portuguesa em 1855. Em 1860, embarcou na Corveta Estefânia em direção à Angola.
Regressou à Lisboa em 1863, sendo promovido a Segundo Tenente no ano seguinte. Entre 1864 e
1869, foi enviado outras duas vezes para Angola. Em 1869, partiu para Moçambique, e de lá para
Cabo Verde. Retornou à Lisboa em 1870, partindo no ano seguinte para a Guiné, em uma expedição
que tinha por objetivo auxiliar as forças portuguesas naquela região, então em guerra com os
chamados pepéis. Nessa ocasião, comandou o Forte D. Luís. Em 1872, voltou uma vez mais a Lisboa,
mas logo partiu novamente, desta vez em direção à China, de onde retornou somente em 1876. No
Couraçado Vasco da Gama, visitaria ainda a Inglaterra. Em 1877, foi nomeado para integrar a
expedição portuguesa à África Central, junto com Roberto Ivens e Alexandre de Serpa Pinto 27.

26 WESSELING, 2008. p. 98-100.


27 GRANDE..., 1935. v. 5. p. 803-804.

835
Roberto Ivens nasceu em Ponta Delgada – Açores, em 1850, filho do inglês Robert
Breakspeare Ivens e da portuguesa Margarida Júlia de Medeiros Castelo Branco. Com 17 anos de
idade, assentou praça como Aspirante Extraordinário na Armada. Em 1871, foi admitido na Escola
Prática de Artilharia Naval e em setembro deste mesmo ano partiu para a Índia na Corveta Estefânia,
onde foi feito Guarda Marinha. Em 1872, teve seus primeiros contatos com Angola. Em 1875, fez
exames para Segundo Tenente e em abril do mesmo ano seguiu em missão para S. Tomé e Príncipe,
e de lá para portos da América do Sul. Regressou a Portugal em abril de 1876, partindo no mesmo
mês em direção a Filadélfia, nos Estados Unidos. Ao retornar à Lisboa, candidatou-se para fazer parte
da expedição à África que então se organizava. Enquanto a expedição não se iniciava, prestou serviço
na estação naval de Angola.28
Em 11 de Maio de 1877, Capelo e Ivens foram então nomeados para integrar e dirigir a
Expedição Portuguesa à África Central, junto com Alexandre de Serpa Pinto, com instruções de
investigar, principalmente, as relações do rio Cuango com o Zaire e com os territórios portugueses
da costa ocidental. Além disso, deveriam estudar as origens do Cunene e do Zambeze. Parte destes
objetivos foi frustrada por Stanley, que percorrera todo o curso do Congo. Assim, abandonando o
plano de iniciar a expedição pelo norte, partiram de Benguela. Quando atingiram o Bié, na hinterland
de Benguela, a expedição se dividiu em duas. A separação da expedição foi resultado de divergências
entre os exploradores em relação às instruções recebidas em Portugal. Essas divergências refletiam
um conflito presente já durante a organização da expedição na metrópole, polarizado por Luciano
Cordeiro e José Júlio Rodrigues. Enquanto Cordeiro defendeu a ideia de uma expedição de travessia,
Rodrigues mantinha-se firme na concepção de uma expedição ao interior de Angola, que pudesse
reforçar as posições já estabelecidas. A primeira viagem de Capelo e Ivens, portanto, se manteria fiel
à ideia de José Júlio Rodrigues, enquanto Serpa Pinto acabaria por tentar realizar os planos de Luciano
Cordeiro. Assim, Capelo e Ivens seguiram para o norte, enquanto Serpa Pinto tentaria realizar a
travessia do continente africano até Moçambique. Ambas as viagens não alcançaram inteiramente os
objetivos esperados, muito embora tenham sido recebidas como sucessos em Portugal. Serpa Pinto,
embora tenha realizado uma viagem de travessia, jamais chegou a Moçambique, terminando-a muito
mais ao sul, em Durban, em 187929. Por sua vez, Capelo e Ivens não completariam o objetivo de
explorar o Zaire, retrocedendo até Luanda, aonde chegaram em 1880. Em 1881, o relato da viagem
de Serpa Pinto foi publicado pela primeira vez em Londres, pelos editores Sampson Low, Marston,
Searle, & Rivington. A edição em português, “Como Atravessei a África”, foi publicada no mesmo
ano, pelos mesmos editores. Também em 1881, foi publicado pela Imprensa Nacional de Portugal o

28 TAQUELIM, 2008. p. 24-28.


29 MENDES, 1982. p.18-25.

836
livro “De Benguella às Terras de Iácca”, no qual Capelo e Ivens narraram sua viagem. No ano
seguinte, o livro ganharia uma edição em inglês, publicada em Londres pelos mesmos editores de
Serpa Pinto.
Entre o fim da década de 1970 e o início da década de 1880, novas explorações continuavam a
ser organizadas por outros países da Europa. Em dezembro de 1879, o italiano Pierre Savorgnan
Brazza, naturalizado francês, partiu para o Congo em missão para o comitê francês da Associação
Internacional Africana. As instruções definiam como objetivos o estabelecimento de duas bases que
funcionariam, em princípio, como pontos de hospedagem para explorações científicas, para a
propagação do cristianismo e para o combate ao tráfico de escravos 30. Entretanto, Brazza iria muito
além das instruções recebidas. Agindo por iniciativa própria, estabeleceu tratados com chefes
africanos da região em torno do Congo, através dos quais estes teriam cedido à França a soberania
sobre o território 31. Brazza conseguiu manter estas atividades ocultas até dezembro de 1881, quando
as autoridades francesas tomaram conhecimento do que realmente se passava. Sua iniciativa acabaria
sendo bem recebida pelos entusiastas colonialistas franceses, e em 1882 a Câmara francesa finalmente
ratificou os tratados firmados por Brazza com chefes africanos. A estratégia de travar tratados com
governantes locais se tornaria comum durante a corrida europeia por territórios em África. Stanley –
que a esta altura trabalhava secretamente para Leopoldo, embora publicamente se considerasse que
ele atuava em nome da Associação Internacional Africana – também firmaria vários destes tratados:
ao todo, teriam sido entre 400 e 500, segundo Wesseling 32.
Deste modo, os interesses europeus pelo controle de territórios em África se tornavam cada vez
mais evidentes, à medida que se revelavam objetivos abertamente políticos de expedições em
princípio dedicadas ao “progresso da ciência” e à ação “humanitária”. O clima de desconfiança
crescia entre os portugueses, que temiam perder regiões que consideravam suas ou que ainda estariam
passíveis de ocupação33. Em 1882, o jornal português O Occidente, por ocasião da passagem de
Stanley por Lisboa, alertava para a necessidade de “olhar attentamente para os assumptos d’Africa”:

Se não tratarmos d’isto, se não fizermos um exforço, dentro em pouco nos veremos
cercados na Africa, não só por inglezes, mas por francezes, belgas, allemães e
italianos, e depois de vermos passar as riquezas que podiam ser nossas, para as mãos
d’elles, choraremos, como se diz, na cama, que é parte quente. 34

30 WESSELING, 2008. p. 107. Como o próprio autor enfatiza, é necessário questionar em que condições os
africanos os firmaram e como interpretaram esse gesto.
31 Ibidem, p. 108.
32 Ibidem. p. 109.
33 AMARAL, 1985. p. 150.
34 HENRIQUE..., 1882.

837
Assim, em 1883, inicia-se a organização de uma segunda expedição de Capelo e Ivens. Nesse
contexto de acirramento de disputas e tensões, era de grande interesse político realizar um
levantamento cartográfico das regiões pretendidas por Portugal em África. Deste modo, com a missão
de construir um Atlas Geral de todas as colônias, foi criada em 1883 a Comissão de Cartografia, da
qual Capelo e Ivens foram nomeados membros. Como resultado da primeira viagem dos
exploradores, ficaram ainda mais evidentes as muitas lacunas em relação à carta de Angola. Portanto,
a Comissão orientava ao governo, pelo ofício de 5 de novembro de 1883, a mandar uma nova
expedição para estudar os sertões de Angola e sua hidrografia, além do curso do Zaire 35 . Pela
experiência adquirida na viagem anterior, Capelo e Ivens seriam escolhidos para tal tarefa, sendo
nomeados por portaria daquele mesmo dia para

procederem, na província de Angola, aos reconhecimentos e explorações necessárias


para se reconstruir a carta geral desta província e das regiões que a ela se avizinham,
corrigindo-se, ampliando-se ou preenchendo-se, nas suas lacunas, a primeira edição
da mesma carta em via de publicação36

A estas instruções, o então recém-empossado Ministro da Marinha e Ultramar, Pinheiro Chagas,


acrescentou a necessidade de estudar quais seriam os melhores pontos para estabelecer as chamadas
“estações civilizadoras” 37 . Ele também dava poderes ao governador-geral de Angola, Francisco
Joaquim Ferreira do Amaral, para modificar as instruções que os exploradores levavam de Portugal.
Diante da preocupação em torno da definição da fronteira sul e leste de Angola em relação aos
domínios alemães, Amaral acabaria por instruir, em março de 1884, os oficiais a explorarem as áreas
nestas direções. A exploração do Zaire foi descartada, tendo em vista os problemas diplomáticos em
torno do tratado anglo-português recém-assinado. Além disso, dentre outros pontos, indicava-se o
objetivo de firmar tratados com soberanos locais, de convencê-los de que “o protectorado de Portugal
era brando” e de “procurar bom entendimento com os alemães”. 38 Note-se, como a historiografia já
apontou39, que ao contrário do que narraram no relato da viagem, a travessia de costa a costa não era
um objetivo definido à partida, mas decorreu de uma decisão tomada no curso da expedição. Com
essa decisão, Capelo e Ivens buscaram assegurar a Portugal o antigo sonho de união das colônias de
Angola e Moçambique em um só território, como seria apresentado no famoso “mapa cor-de-rosa”.
Apesar do desvio das instruções recebidas, Capelo e Ivens seriam recebidos com grande aclamação
pelo governo português, pelos intelectuais colonialistas entusiastas e pela população portuguesa em

35 MENDES, 1982. p. 32-33.


36 Ibidem, p. 33.
37 MENDES, 1982. p. 33.
38 AMARAL, 1985. p.140-141.
39 Cf. MENDES, 1982; AMARAL, 1985; SANTOS, 1987.

838
geral, despertando um sentimento nacionalista generalizado. Em Lisboa, foram recebidos pelo rei D.
Luís em pessoa. Sessões solenes também foram realizadas em sua homenagem em sociedades
científicas de vários países da Europa e mesmo no Brasil. Em 1886, o relato da viagem foi publicado
pela primeira vez40, tornando-se uma das mais conhecidas obras da literatura portuguesa de viagem
sobre África.

As representações sobre os africanos

A partir da abordagem teórico-metodológica explicitada anteriormente, consideramos que a


narrativa sobre África e africanos presentes na obra “De Angola à Contra-costa”, de Hermenegildo
Capelo e Roberto Ivens, constrói-se a partir de três eixos principais, que se articulam no discurso: I)
a dinâmica interativa do contato entre os exploradores e os africanos, tanto aqueles que integravam a
caravana como os que encontraram ao longo da viagem; II) os objetivos imperiais presentes no
discurso dos autores III) as teorias raciais do final do século XIX e os aparatos descritivos da história
natural. Dado o limite deste trabalho, apresentaremos estes elementos em linhas gerais, demonstrando
como eles se apresentam na obra em momentos específicos.
Os objetivos imperiais presentes no discurso dos autores ficam evidentes em sua tentativa de
defender o que seria o “esforço civilizador” de Portugal em África. Já nos capítulos introdutórios 41,
que antecedem a narrativa da viagem propriamente dita, Capelo e Ivens evocam o pioneirismo dos
portugueses no “descobrimento” do continente e enfatizam as relações históricas entre Portugal e
África. Entretanto, o discurso dos exploradores não se limita a defender os “direitos históricos” de
Portugal no continente africano, cuja legitimidade já havia sido negada pela Conferência de Berlim,
que estabelecera o princípio da “ocupação efetiva” como uma das condições para futuras
reivindicações de territórios na costa da África. Apropriando-se da retórica de “humanitarismo” então
em voga, o discurso de Capelo e Ivens busca construir a ideia de que Portugal estaria, há muito mais
tempo do que outros países europeus, empenhado em “civilizar” a África: “O desejo de plantar
definitivamente o estandarte da civilisação no solo da Africa central, palavras da arenga real na

40 Além da grande repercussão que alcançou na sua primeira publicação em 1886, “De Angola à Contra-costa”
foi reeditada em Portugal pelo menos outras três vezes, em 1968, 1978 e 1998, pela editora Europa-América.
41 Os capítulos referidos intitulam-se “Esboço Histórico”, “O Congo” e “História Política do Congo”.

839
conferencia de Bruxellas, se era o pensamento da Bélgica, era também o anceio de ha muito em
Portugal; (...)”42. Desta maneira, não só expressavam a frustração na reivindicação portuguesa da
região das margens do Congo, mas buscavam legitimar as pretensões portuguesas na África Central,
então reorientadas para uma tentativa de unir os territórios de Angola e Moçambique.
O objetivo de contribuir neste sentido, não só pela legitimação, mas também em termos mais
práticos, fica explicitado ao declararem o objetivo principal da expedição: “(...) o nosso plano era
principalmente estudar e esclarecer em definitivo toda a zona central da nossa provincia angolo-
moçambicana, calculando até que ponto os férteis sertões que a constituem poderiam encontrar no
Zambeze uma saída para os seus productos.”43. No trecho, a ligação entre Angola e Moçambique e a
soberania de Portugal sobre esta região são dadas como uma realidade. O discurso opera como uma
forma de apropriação do espaço, “entre a ordem da realidade e a ordem da ficção ou do ‘desejo’” 44,
projetando um sentimento de posse. Com efeito, sem nenhum tipo de constrangimento, deixam clara
a maneira como percebiam seu papel no empreendimento imperialista. Neste sentido, a epígrafe
escolhida para abrir o capítulo “Chella Arriba” é reveladora: “O explorador é o percursor do colono;
e o colono o humano instrumento empregado nessa fabrica — a maior e mais difficil das emprezas
— a de civilisar o mundo”45.
A ideia de que caberia ao europeu levar a civilização e o progresso à África encontrou
fundamentação científica nas teorias raciais do século XIX, que constituem outro elemento que
condicionou a representação dos africanos na obra de Capelo e Ivens. O modelo evolucionista de
Darwin, elaborado em A Origem das Espécies, obra publicada em 1859, constituía uma espécie de
paradigma de época, sendo apropriado e aplicado a várias disciplinas sociais 46. O darwinismo social,
como foi chamada tal aplicação da teoria de Darwin, baseava-se em três princípios básicos: a
afirmação da existência de raças humanas, distantes entre si como o cavalo do asno, e a condenação
do cruzamento delas; a sobreposição entre características físicas e morais, “determinando que a
divisão do mundo entre raças corresponderia a uma divisão do mundo entre culturas”; e a
preponderância do fator “rácico-cultural” no comportamento do sujeito, reduzido a uma somatória
das características físicas e morais atribuídas a raça a que pertencia 47 . Desta maneira, as raças
humanas eram hierarquizadas em graus evolutivos distintos, que iam da selvageria – estágio no qual
se encontrariam os africanos e os indígenas das Américas, chamados também de “povos primitivos”,

42 CAPELLO; IVENS. 1886. v.1. p.33. Grifo dos autores


43 Ibidem. p. 63. Grifo nosso.
44 HORTA, 2005. p. 3
45 CAPELLO; IVENS. 1886. v.1. p. 135. O trecho é de autoria de S. W. Baker.
46 SCHWARCZ, 1993. p. 72.
47 SCHWARCZ, 1993. p. 78.

840
na infância da evolução - à civilização, estágio mais avançado, característico dos europeus brancos48.
Essas ideias orientaram o olhar e a atitude dos viajantes sobre os africanos, e consequentemente as
maneiras pelas quais os representaram na obra analisada nesta pesquisa. De fato, eles próprios se
dedicaram a algumas considerações etnológicas, classificando e hierarquizando os povos africanos,
do mais degradado – os bosquímanos (“bushmen”), que constituíam “o último grau da escala
etnológica” da África49 - ao mais próximo da perfectibilidade, ou, visto de outra forma, ao menos
degradado – o “ramo semitico” da raça branca, que seria a transição do ramo ariano da raça branca
para os negróides50.
O projeto totalizante de sistematizar a natureza a partir dos princípios e dos aparatos descritivos
da história natural, através do qual o espaço era apropriado e definido através do olhar perscrutador
do cientista, estendia-se à categorização dos povos nos termos das teorias raciais finisseculares. Deste
modo, Capelo e Ivens também se empenharam na tarefa de inventariar, classificar e hierarquizar os
povos africanos, descrevendo-os a partir do modelo da escrita etnográfica. A partir deste modelo,
classificam e comparam práticas culturais, crenças, formas de organização social e conhecimentos
tecnológicos, tendo como referencial a Europa “civilizada”. Assim, afirmam que os negros
encontram-se em “estado de moralidade inicial”, que se movem pela cobiça, que se caracterizam pela
perfídia e pelo gosto em enganar, que tem o espírito volúvel e vicioso e que não conhecem o dever e
a honra. Negam-lhe até a possibilidade de ter qualquer sentimento, ao afirmarem que “o negro é a
expressão embryonaria do sentimento”51.
As gravuras presentes na obra sobre alguns destes povos compõem esta narrativa e operam no
mesmo sentido. Através delas, representaram homens e mulheres de modo anônimo e
despersonalizado, identificando-os apenas como “typos” de determinada “tribu”, como se suas
características físicas e culturais correspondessem às características de todo um grupo 52 . Como
afirmou Beatrix Heintze, “este processo de anonimização das pessoas pela tipificação de estereótipos”
fazia parte da escrita etnográfica e “tinha por objetivo representar uma totalidade”. 53 Desta maneira,
negava-se a estes homens e mulheres sua subjetividade e humanidade, reduzindo-lhes a “exemplares”
de um grupo.
O terceiro elemento principal que destacamos para que se possam compreender as
representações presentes em “De Angola à Contra-costa” é a relação entre os africanos – tanto
aqueles que integravam a caravana como os que encontraram ao longo da viagem – e os exploradores.

48 Idem, 1996. p. 83.


49 CAPELLO; IVENS. 1886. v.2. p. 343.
50 Ibidem. p. 340.
51 CAPELLO; IVENS, 1986. v.1. p. 275-276.
52 MARTINS, 2015. p. 42.
53 HEINTZE, 2000. p. 112-113.

841
Como a historiografia tem evidenciado, havia uma relação de estreita dependência de viajantes
europeus em relação a carregadores, guias, informantes e intérpretes africanos. Neste sentido,
destaca-se o papel dos chamados luso-africanos. Este termo se refere a africanos que adotaram traços
culturais portugueses – como a língua, o modo de se vestir e aspectos do cristianismo – e tem um
sentido cultural e social, não devendo ser entendido como uma identidade étnica fixa 54. No século
XVIII, eram conhecidos como ambaquistas, por haver uma concentração significativa destes luso-
africanos no distrito de Ambaca, localizado na hinterland de Luanda, mas, ao longo do tempo, este
termo perdeu seu sentido geográfico. No início do século XIX, encontravam-se em núcleos
populacionais ao longo de toda a hinterland mais próxima da costa. Ao longo deste século, com a
expansão das redes comerciais para o leste do continente, engajaram-se cada vez mais no comércio
de longa distância, penetrando no interior do continente. 55 Muitos se estabeleceram em núcleos
populacionais do interior, atuando como conselheiros e intérpretes de chefes africanos nas
correspondências diplomáticas com as autoridades coloniais portuguesas56.
Por seu conhecimento de regiões do interior e de línguas locais, eram frequentemente
contratados por viajantes europeus. Eles prestavam seus serviços atuando como verdadeiros
tradutores transculturais57, intermediando o contato entre os europeus e outros nativos das regiões
visitadas, conduzindo negociações e aconselhando os viajantes sobre os protocolos locais e as formas
de presentear os chefes58. Por isso, Beatrix Heintze chama a atenção para o fato de que as informações
etnográficas e históricas presentes nas narrativas europeias sobre parte do interior do continente no
século XIX derivaram da intermediação operada por luso-africanos, o que resultava na incorporação
de suas visões sobre outros povos à narrativa 59. De fato, Capelo e Ivens evidenciam sua dependência
em relação aos intérpretes:

“De que lançar mão, pois, para fazer um estudo superficialmente ethnographico dos
povos por onde se decorre? Da lingua e de alguns usos e costumes mais ou menos
tradicionaes, espalhados entre elles, é a resposta. Acontece porém que ao explorador
é sempre difficil assenhorear-se da primeira, pelo pouco espaço de tempo de que
dispõe, e do seu desconhecimento vem o embaraço de poder aproveitar-se das
descripções sobre o modo de proceder do indigena, ficando assim á mercê de
interpretes, que tudo confundem e alteram.”60

54 Idem, 2011. p. 23.


55 Ibidem. p. 23-24.
56 HEINTZE, 2005. p. 192-193.
57 Idem, 2011. p. 20.
58 HEINTZE, 2011. p. 20.
59 Ibidem, p. 20-21.
60 CAPELLO; IVENS. 1886. v.1. p. 319.

842
Sendo em sua maioria externos às sociedades que reportavam, os luso-africanos também
olhavam para elas a partir de certas ideias preconcebidas e opiniões que detinham sobre elas,
incorporando suas visões e definições à narrativa sobre os povos que ajudaram a documentar. Como
destaca Heintze, essa visão estava frequentemente marcada por concepções e julgamentos absorvidos
dos europeus sobre estes povos61.
Os luso-africanos que se destacam na obra de Capelo e Ivens são Augusto Mupei e Antonio
Carlos Maria. Augusto Mupei era um africano nascido em Peonga, localidade entre o Humbe e o
Quiteve, no sul da atual Angola. Já havia acompanhado os exploradores em sua viagem anterior, e
desempenhou a função de cozinheiro. Augusto Carlos Maria, por sua vez, foi contratado na Huila,
para auxiliar os exploradores com “informações gentílicas”, uma vez que conhecia a língua do
Quipungo. Entretanto, também exerceu a função de caçador, atividade pela qual foi reconhecido por
ter salvado dez vezes a expedição da fome. Ele foi representado em tons extremamente positivos, o
que o destaca de todos os demais africanos que emergem na narrativa. Antônio é descrito como “a
pérola dos rapazes africanos", “estimável cavalheiro de não vulgar caracter” 62. Além disso, Antônio
e Mupei são representados em gravuras, mas estas se diferem daqueles de caráter etnográfico. Elas
não tem a função de representar um “exemplar” de uma “tribu”, mas de representá-los em episódios
do cotidiano da viagem e como indivíduos, apresentando seus nomes e fragmentos de suas histórias.
Se, por um lado, a distinção no modo como foram representados em relação a outros africanos
vai ao encontro dos objetivos de Capelo e Ivens em afirmar o “esforço civilizador português”, ela
também era resultado da maneira como estes homens buscaram ser vistos ao adotarem traços culturais
portugueses63. Suas contribuições, embora fossem muitas vezes ocultadas, foram essenciais para a
construção do relato, entendido como produto transcultural, no qual se reproduzem conflitos,
resistências e colaborações do contato entre africanos e europeus.

Considerações finais

Estas primeiras notas da pesquisa em curso indicam possibilidades de análise a partir da obra
“De Angola à Contra-costa” ainda não totalmente exploradas, embora ela seja, como dito, uma das
mais conhecidas da literatura de viagem portuguesa. A partir da abordagem teórico-metodológica

61 HEINTZE, 2011. p. 21.


62 CAPELLO; IVENS. 1886. v.1. p. 162-163.
63 OLIVEIRA; DINIZ, 2015. p. 16.

843
explicitada no início deste texto e dos elementos levantados, aqui apresentados em linhas gerais,
poderemos compreender os papéis desempenhados por africanos na construção deste relato e as
representações sobre eles presentes na obra. Conhecendo os meandros pelos quais foram produzidos,
poderemos nos inserir no esforço de desconstrução de estereótipos sobre a África e os africanos que
ainda se mantém no imaginário Ocidental, mesmo após o desmantelamento dos próprios impérios
coloniais que os produziram.

REFERÊNCIAS

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atravez do continente africano comprehendendo narrativas diversas, aventuras e importantes
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Dissertação (Mestrado em Desenho) – Faculdade de Belas-Artes - Universidade de Lisboa, Lisboa,
2008.

WESSELING, H. L. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). Trad. de Celina Brandt.
2ª edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Revan, 2008. 463 p.

846
Política externa como política pública: a Liga das Nações e o governo Bernardes

Filipe Queiroz de Campos1

Resumo: O objetivo desse trabalho é apresentar as razões de natureza política que levaram o governo
de Artur Bernardes a transformar a conquista de um assento permanente no Conselho da Liga das
Nações ao Brasil no principal projeto de política externa de seu governo e em um de seus principais
projetos de política interna. Analisaremos, também, os motivos que levaram esse mesmo governo a
retirar-se da Liga por conta própria. A atual produção historiográfica a respeito do assunto detém-se
aos estudos das Relações Internacionais em narrativas ainda muito factuais e pouco
problematizadoras a respeito do universo social e conceitual do objeto em questão. Nossa pesquisa
vem contribuir com novas perspectivas metodológicas e analíticas, propondo, por exemplo, a
aplicação da História dos Conceitos como importante metodologia para a pesquisa da Análise de
Política Externa.

Palavras-chave: Liga das Nações, Artur Bernardes, Política Pública, Política Externa.

Abstract: The aim of this paper is to present the political nature of the reasons which brought Artur
Bernardes to transform the conquer of a permanent place in the Council of the League of Nations as
the main goal of his foreign policy and also into one of the main objectives of his domestic policy.
We are going also to analyze the reasons that led Bernardes to take Brazil out from the League as an
end of this episode of diplomatic crises. The historiography henceforth has been concentrated in the
perspective of International Relations and due to it presenting a study more based in the facts than in
the analysis of the social and political problems entailed in the reality and historicity of that time. Our
research will contribute with new perspectives of methodology through History of Concepts and
Analysis of Foreign Policy.

Keywords: League of Nations, Artur Bernardes, Foreign Policy, Public Policy and Foreign Policy.

Breve histórico sobre Políticas Públicas

Nas últimas décadas registraram o ressurgimento da importância do campo de conhecimento


denominado políticas públicas. Na Europa, a área de política pública vai surgir como um
desdobramento dos trabalhos baseados em teorias explicativas sobre o papel do Estado e de uma das
mais importantes instituições do Estado - o governo -, produtor, por excelência, de políticas públicas.
Nos EUA, ao contrário, a área surge no mundo acadêmico sem estabelecer relações com as bases
teóricas sobre o papel do Estado, passando direto para a ênfase nos estudos sobre a ação dos governos.
Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja política pública. Mead 2 a define
como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas

1 Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.


2 MEAD, L. M. “Public Policy: Vision, Potential, Limits”, Policy Currents, Fevereiro: 1-4. 1995

847
e Lynn3, como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters4 segue
o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou
através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição de
política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”.3 A definição mais conhecida
continua sendo a de Laswell5, ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam responder
às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz. Pode-se, então, resumir política
pública como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em ação”
e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou
curso dessas ações (variável dependente).
Das diversas definições e modelos sobre políticas públicas, podemos extrair e sintetizar seus
elementos principais: A política pública permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o
que, de fato, faz. A política pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja
materializada através dos governos, e não necessariamente se restringe a participantes formais, já que
os informais são também importantes. A política pública é abrangente e não se limita a leis e regras.
A política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados. A política pública,
embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo prazo.
O campo de estudos de políticas públicas é amplo em variabilidades teóricas, mas, para nossa
pesquisa, adotamos a Política Pública e maneira mais generalista, não prendendo-nos a nenhuma
teoria específica, mas, sim, à perspectiva da política externa como uma política pública. Artur
Bernardes, transformou a conquista de um lugar permanente na Liga das Nações em verdadeira
Política Pública, ou seja, um objetivo de seu governo para que se alcançasse resultados que afetam
todo o país. Considerar a política externa como política pública, porém significa afirmar que a política
externa é, também, uma política de governo, e não apenas uma política de Estado, como a
historiografia majoritária nas Relações Internacionais aponta. Buscando esclarecer como as Relações
Internacionais vem delineando a política externa como política de Estado, veremos mais sobre a
questão política de Estado versus política de governo.

3 LYNNLynn, L. E. Designing Public Policy: A Casebook on the Role of Policy Analysis. Santa Monica, Calif.:
Goodyear. 1980
4 PETERS, B. G. The Politics of Bureaucracy. White Plains: Longman Publishers. 1995
5 LASWELLLaswell, H.D. Politics: Who Gets What, When, How. Cleveland, Meridian Books. 1936/1958

848
A política externa como Política Pública:

A política doméstica não era tão importante para os analistas de Política Externa até que se
emergiu a disciplina Análise de Política Externa (APE), uma subdisciplina nas Relações
Internacionais que se preocupa com a relevância dos indivíduos na tomada de decisões internacionais,
principalmente a partir dos estudos de Rosenau em Domestic Sources of Foreign Policy6, em que é
dito que fatores domésticos não são menos relevantes para a formulação da política externa do que o
próprio contexto internacional.
Antigas análises concentravam-se em explicar as decisões internacionais pelos conceitos de
interesse nacional e de política de Estado: Interesse nacional seria um aporte histórico de conceitos
como universalismo, pacifismo ou autonomia, e a política de Estado seria o modo imparcial e
independente de governos de se alcançar esse interesse nacional, assim a política externa estaria
imune a interesses pessoais e sociais de cada governo, por isso dificilmente era entendida como uma
política pública. Essa perspectiva evitou, por muito tempo, os estudos sobre a participação de
indivíduos e da imprensa na formulação da política externa. Ao assumirmos a política externa como
uma política pública, estamos reconhecendo que sua formulação e implementação se inserem na
dinâmica das escolhas de governo que, por sua vez, resultam de coalizões, barganhas, disputas que
expressam a própria dinâmica da política. Em Relações Internacionais, a subdisciplina que mais se
vale da abordagem da Política Externa como mais uma política pública é a Análise de Política
Externa. Essa disciplina data da década de 1950, mas, no Brasil, é uma novidade que vem se
consolidando em grande parte dos cursos de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais.
A Análise de Política Externa iniciou-se, principalmente, a partir do trabalho de Richard
Snyder, Henry Buck e Burton Sapain, Decision Making as a Approach to the Study of International
Politics 7 , 1954, trazendo a necessidade de valorização da subjetividade individual, cognitiva e
psicológica na tomada de decisões que envolve a política externa. Esse estudo desenvolveu-se a partir
do princípio de que a política externa é constituída por tomada de decisões e, portanto, o modo como
essas decisões são tomadas afeta o conteúdo da política externa.
Apesar dos esforços no sentido analítico da subjetividade, houve duas vertentes dos estudos
de Sknyder, a Comparative Foreign Policy com liderança intelectual de Rosenau, que visava alcançar
uma grande teoria da política externa capaz de explicar qualquer política externa, e isso seria feito ao

6 ROSENAU, James N. (ed.) Comparing Foreign Policies: Theories, Findings and Methods. Halsted
Press, 1974.
7 SNYDER, R., BRUCK, H. W. e SAPIN, B. Decision-Making as an Approach to the Study of
International Politics. Princeton: Princeton University Press, 1954.

849
analisar o comportamento típico de uma nação e suas relações costumeiras com as outras; essa teoria
chegou até mesmo aventar prever a política externa. A partir da década de 70, porém, já estava claro
que os estudos comparativos não poderiam chegar a lugar algum visto a clara impossibilidade de
tratar estudos das Ciências Humanas com métodos das Ciências Naturais. Na esteira dessa crítica,
iniciam-se estudos sobre Psicologia Social e Psicologia Cognitiva na formulação da política externa,
as perspectivas dos indivíduos e dos políticos, como buscou fazer Grahan Allison, em 1971, ao
analisar a Crise dos Mísseis em Cuba, verificando a importância da estrutura burocrática na
formulação da política externa.
Na construção da Análise de Política Externa, todas as teorias que buscaram explicar as
relações internacionais tiveram contribuições importantes. O realismo, com o neorrealismo de Keneth
Waltz, foi repensado pelo realismo neoclássico. O neorrealismo de Waltz, desenvolvido a partir de
1979, não admitia a importância da política interna e dos problemas domésticos ou ideológicos da
confecção da política internacional, pois essa seria balizada pela balança de poder e o equilíbrio de
forças internacionais; esse neorrealismo de Waltz fugiu, inclusive, das propostas originais de Hans
Morgenthau, pai da sistematização do pensamento realista que escreveu 1948, que, na verdade,
admitia até mesmo a importância do governante e da participação individual, pois também o indivíduo
governante pensaria em termos da busca pelo poder e da supremacia da política sob os ideias. As
ideias de Mongenthau foram retomadas na década de 1990, com Zakaria em 1998, por exemplo, a
partir do realismo neoclássico que seria mesmo um complemento teórico ao modelo macro de
interpretação de Waltz.
O liberalismo teve grande contribuição na aceitação da importância da política interna para as
Relações Internacionais, como ocorreu com a teoria da Interdependência Complexa de Keohane.
Autores do liberalismo como Levy, em 1989, buscaram até mesmo convencer que a importância da
política interna, para compreender a externa deveria ser uma espécie de lei das Relações
Internacionais.
O próprio Construtivismo, apesar de ser muito mais uma teoria social aplicada ao Foreign
Affairs que uma própria teoria das Relações Internacionais, contribui muito com a perspectiva de que
a maneira como as ideias são construídas e utilizadas é tão importante quanto a própria realidade
material. A APE e o Construtivismo, portanto, se apõem às teorias determinantes de explicação da
política internacional ambos colocando-se como estudiosos e analistas dessas relações, além disso
tanto Construtivismo quanto a APE dão forte enfoque da psicologia, percepções individuais e
construções de ideias por meio dos indivíduos, áreas até então não abordadas pelas teorias anteriores.
No Brasil, a APE desenvolveu-se conjuntamente com os próprios cursos de Relações
Internacionais principalmente a partir da década de 1970. Há trabalhos que buscam analisar a questão

850
cognitiva e psicológica por meio do paradigma da influência das ideias, no modelo convencional das
Ciências Sociais sobre o Pensamento Político como fez Silva 8 ao analisar as influências de ideias na
conformação da política externa brasileira durante a participação do Brasil na Liga das Nações. Há
também aqueles que buscam mais incisivamente trabalhar com o Construtivismo, como Saraiva e
Briceño Ruiz9, que analisaram as percepções de atores políticos domésticos no interior dos maiores
países membros do Mercosul a respeito do processo de integração, assim como as ideias presentes na
esfera pública de apoio ou de rejeição ao bloco. A partir do conceito de estruturas domésticas, de
Risse-Kapen, 1995, autores brasileiros passaram a estudar a papel da relação entre o Poder Executivo
e o Legislativo no desenvolvimento da Política Externa.
Ao considerarmos a política de governo e ações do Executivo como uma Política de Estado,
estamos desresponsabilizando as efêmeras vontades dos indivíduos sempre dotadas de razões
circunstanciais e históricas, para construir a sensação de que os atores da política externa são
imparciais por seguirem uma herança da tradição diplomática que os estaria sempre forçando seguir
o interesse geral da nação, e não o interesse dos indivíduos e dos governos passageiros. Buscar
entender a formação da política externa como política pública significa considerar que as políticas de
governo, e não uma incólume política de Estado seja o que realmente constrói a diplomacia ao longo
do tempo.
Mônica Salomón10 aponta que há, no Brasil grandes lacunas de trabalho na busca de avaliar a
Política Externa pela lógica da Análise de Política Externa: a questão da opinião pública como
influência na formulação da política externa, os estudos do líder e do indivíduo como um dos
principais atores na formulação da Política Externa. Um dos trabalhas mais recentes na historiografia
que visa analisar a formação da política externa por meio do estudo do indivíduo é o estudo de Paula
Vedoveli11. A autora analisa importância dos conceitos na formulação da tradição do Itamaraty e
como a tradição tornou-se uma espécie de herança histórica que serve de referência para legitimar
políticas de governo como imparciais e atemporais. A seguir, veremos como Vedoveli fez isso

8 SILVA, A. M. S. O Brasil no Continente e no Mundo: atores e imagens na política externa


brasileira contemporânea. Estudos Históricos, vol. 8, n. 15, p. 139–158, 1995.
9 SARAIVA, Miriam Gomes e BRICEÑO RUIZ, José, “Argentina, Brasil e Venezuela: as diferentes
percepções sobre a construção do Mercosul”. Revista Brasileira de Política Internacional, 2009,
vol. 52, n. 1, pp. 149–166.
10 SALOMÓN, Mónica; Pinheiro, Letícia. Análise de Política Externa e Política Externa Brasileira: trajetória,
desafios e possibilidades de um campo de estudos Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 56, núm. 1, 2013, pp.
40-59 Instituto Brasileiro de Relações Internacionais Brasília, Brasil.
11 VEDOVELI, PAULA. Continuidade e Mudança na História Intelectual Diplomática Brasileira:
Uma Análise da Construção da Tradição. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 2010.

851
Buscando demonstrar mais a respeito das teorias das Relações Internacionais e como buscar
uma abordagem mais problematizadora e menos factual, analisaremos a importância de conectar o
Construtivismo à História dos Conceitos.

Principais teorias das Relações Internacionais e um novo olhar sobre a historiografia

O positivista da historiografia acredita que ao se distanciar da realidade dos fatos, poderá


enxergá-los de maneira científica, entendendo leis e forças que legitimam o comportamento dos
homens, e que os “agentes” históricos representaram o verdadeiro espírito do povo, folkgeist, pois
foram, sozinhos, capazes de mudar o curso do destino; esses positivistas acreditam que os fatos sobre
o passado são exatos e objetivos de maneira fatalista e teleológica. Homens como Herder, Michellet,
Hegel ou Rank foram criticados pela historiografia da revista dos Annales como positivistas. Fundada
por Lucien Febvre e Marc Bloc, a tradição dos Annales demonstrou que o processo histórico não
apresenta leis rígidas e que a realidade humana é uma construção do próprio homem, a partir de uma
visão problematizadora das relações humanas.
Já os positivistas das Relações Internacionais são aqueles que, após a Primeira Guerra
Mundial, começaram a tentar entender o comportamento da realidade internacional por meio de
características que seriam imutáveis e intrínsecas a essa realidade. Em contraste com os positivistas,
os realistas acreditam que a realidade internacional é centrada no Estado, anárquica, e que a busca
pelo poder superpõe todas as ambições por cooperações e direitos comuns. Por sua vez, os liberais,
compreendem que a realidade das relações interacionais tornar-se-ia, cada vez mais, cooperativa,
democrática e interdependente por meio do comércio, por isso a busca pura pelo poder seria
progressivamente limitada pelo direito e pelos valores compartilhados. Após a Teoria Crítica das
Relações Internacionais, porém, surge a teoria construtivista, questionando a abordagem positivista,
ao apontar que a realidade internacional é uma construção social, e que as leis mais aparentemente
sólidas, como a da anarquia interacional, a balança de poder ou a securitização, são conceitos
subjetivos e compreensões coletivas inventadas e determinadas exatamente por aquilo que decidimos
fazer delas.
Conquanto haja diferenças conceituais, os positivistas da historiografia e aqueles das Relações
Internacionais têm algo em comum: a crença de que a realidade humana tem leis profundas e
tendências naturais, porquanto os pós-positivistas de ambas áreas demonstram, também, uma posição
semelhante: a realidade humana é uma construção que depende dos processos históricos e da

852
formação coletiva de conceitos que influenciam as visões de mundo. A realidade é, parafraseando
Alexander Wendt, o que fazemos dela.

A função da linguagem na produção da política e da realidade também é um ponto comum


àqueles que passaram a criticar os positivistas tanto na historiografia quanto na teoria de Relações
Internacionais. Principalmente, após o fim da Segunda Guerra Mundial, as ciências humanas
passaram a, progressivamente, preocuparem-se com a chamada tridimensionalidade da linguagem: o
fato de que a língua não apenas transmite e demonstra, como, também, cria a própria realidade uma
vez que certos fatos nunca poderiam ter existido sem ela. Essa nova preocupação com a linguagem
ficou conhecida como Linguistic Turn ou Virada Linguística.

A partir da Virada Linguística, todas as ciências humanas foram afetadas pela perspectiva
de que o real não depende exclusivamente das heranças culturais como se essas fossem leis. O
construtivismo, conhecido como terceira corrente na Teoria das Relações Internacionais, também
passou a entender que a realidade humana é uma construção, logo as relações internacionais não
são naturais, ne dotadas de leis insuperáveis. O Construtivismo não admite a antecedência
ontológica como um problema, ou seja, quem determina o outro, se o agente histórico ou se a
estrutura histórica. Essa vertente entende que agentes e estruturas são mutuamente constituídos, por
isso não é a busca pelo poder que determina o comportamento dos Estados, nem os Estados que
decidem, exclusivamente, a busca pelo poder como objetivo primordial, pois, na verdade, Estados
e as normas se constroem reciprocamente.
Dando continuidade ao processo histórico-linguístico de entender a realidade humana,
Reinhart Koselleck, na escola-metodológica alemã conhecida como Begriffsgeschichte, adotou, assim
como Skinner, a crítica à Escola de Cambridge Na busca de combater a simples transposição para o
passado de conceitos do presente, e o tratamento do pensamento como desconectado do contexto
sociolinguístico, Koselleck argumenta que a busca pelos significados de um significante revela os
conflitos políticos e sociais encobertos que podem ser revelados, por meio do horizonte conceitual e
pelo estudo dos usos linguísticos. A proposição leva-nos a perguntar: qualquer palavra pode ser um
conceito social e político? Para Koselleck, não. Os conceitos são aquelas palavras que provocam no
interlocutor um entendimento reflexivo, isso significa que essa palavra, assim que anunciada,
provocará associações com outras palavras do mesmo campo semântico 12São palavras que possuem

12 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição a semântica dos tempos históricos: Rio de Janeiro:
Contraponto; Editora PUC Rio, 2006. p. 135.

853
uma história de variações semânticas, como se fossem microteorias de si mesmas. As palavras podem
ser polissêmicas, mas conceitos são polissêmicos por definição.
Por conseguinte, está clara a importância da História dos Conceitos para a teoria das Relações
Internacionais. Skinner e Koselleck propõem um método condizente com a teoria do Construtivismo,
com as propostas da Escola de Copenhague e com a maioria dos trabalhos acadêmicos atuais no
campo das Relações Internacionais e da História. O Construtivismo é como uma filosofia, um estudo
ontológico ou uma meta-teoria, pois não oferece um método, mas uma discussão sobre a natureza da
realidade internacional. Enquanto o Construtivismo contribui com uma visão historicista da realidade
instigando-nos a descamar os conceitos e a própria política como construções humanas não
necessárias, a História dos Conceitos fornece-nos um método autônomo de pesquisa a partir da
mesma perspectiva. A História dos Conceitos, porém, não deve ser aplicada em partes. Muito pouco
se tem, ainda, referenciado os trabalhos de Koselleck na teoria das Relações Internacionais, mas
vários dos trabalhos que aplicam seu método de compreensão do mundo por meio dos conceitos, não
estão aplicando a História dos Conceitos em sua completude e, portanto, não atingem o que a
Begriffsgeschichte tem de mais importante: a compreensão da historicidade nas decisões humanas e
a revelação da visão de mundo dos agentes que produziram os conceitos.
Dessa maneira, podemos analisar, a seguir, a política externa de Bernardes como pública
eivada de desejos e ambições individuais e governamentais muito menos direcionadas para o bem
perene e coletivo do Estado, e muito mais direcionada ao sucesso de seu governo, uma política que
foi efetivada inicialmente da linguagem e é a análise da linguagem e dos conceitos que os oferece
pistas para investigar as verdadeiras intenções de Bernardes com tal política externa.

A política externa do governo Artur Bernardes na Liga das Nações

A Liga das Nações foi, até o momento de sua criação, a mais elaborada tentativa de organizar
pacificamente as relações internacionais a partir da perspectiva multilateral. Como assinala o
historiador Eric Hobsbawm13, se a Primeira Guerra Mundial demarca o colapso de conceitos políticos
próprios do século XIX, a Liga das Nações foi a tentativa de desenvolver uma nova ordem
internacional para o século XX. A Liga representou a primeira organização internacional a
oficialmente substituir as dinâmicas de poder tradicionais da geopolítica, fundadas desde o Congresso

13 HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1941-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p. 90.

854
de Viena, em 1815. Nesse Congresso, as potências monarquistas organizaram um equilíbrio de forças
baseado nos princípios do Antigo Regime; esse equilíbrio ficou conhecido como Concerto Europeu.
Ao final da Grande Guerra, porém, o “equilíbrio de poder” passou a ser identificado como parte das
políticas que levaram à Guerra. O presidente dos EUA, Woodrow Wilson, apresentou à Conferência
de Paz de Paris, em 1919, o projeto de uma nova ordem mundial, guiada pela transposição dos valores
e princípios do liberalismo político para o sistema internacional. Essa nova ordem seria materializada
por meio da Liga.
Com a Liga das Nações, o direito deveria prevalecer sobre o poder e a força, e os processos
democráticos sobre os aristocráticos, na condução das relações internacionais. O “equilíbrio de
poder” seria substituído por uma “comunidade de poder compartilhado 14”. A diplomacia secreta foi
considerada um dos elementos que mais contribuíra para a generalização da guerra de 191415. A partir
da década de 1920, portanto, de acordo com Mônica Herz 16, o conceito de multilateralismo foi um
dos elementos políticos mais representativos da nova realidade geopolítica engendrada pela
Conferência de Paris, favorecendo uma ordem baseada na publicidade dos atos internacionais.
Na década de 1920, se a sociedade internacional passava por mudanças estruturais, a
sociedade brasileira vivia o que Helena Lorenzo 17 chamou de “aceleração da história”, com a
emergência da classe operária, da militar e de camadas médias urbanas, bem como os efeitos da
Segunda Revolução Industrial. O fortalecimento do papel do Estado na solução da crise política e
econômica, tanto a internacional quanto a brasileira, foi uma constante nesse período. É neste
momento que o governo Arthur Bernardes desenvolve o plano de assegurar ao Brasil um assento
permanente no conselho da Liga das Nações como estratégia de política externa e interna. Durante o
governo de Epitácio Pessoa, o Brasil defendeu assento permanente no Conselho como uma “demanda
justa”, mas sem grandes pretensões. O governo Bernardes, porém, transformou a campanha em
verdadeira missão, usando o conceito de “direito natural”, para legitimar a candidatura do Brasil.
Nos Acordos de Locarno, feitos entre os membros permanentes da Liga, Grã-Bretanha,
França, Itália e Japão, a Alemanha ganhou prioridade como candidata a membro permanente,
sinalizando um perigo para a campanha de Bernardes. Diante da aprovação da Alemanha em
detrimento da do Brasil como membro permanente, este último retira-se voluntariamente do
Conselho, repudiando a atitude europeia e provocando uma crise diplomática, em 1926. A

14 SARAIVA, José Flávio Sombra. História das Relações Internacionais Contemporâneas . São Paulo: Saraiva,
2006. p. 45.
15 SARAIVA, José Flávio Sombra. História das Relações Internacionais Contemporâneas . São Paulo: Saraiva,
2006. p. 245.
16 HERZ, Mônica; HOFFMANN, Andréa Ribeiro. Organizações Internacionais. São Paulo:Elsevier, 2004. p.13
17 LORENZO, Helena Carvalho de. A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: UNESP,
1997.p.186.

855
candidatura brasileira iniciou-se em 1921, recebendo tratamento político nitidamente diferente no
governo Epitácio Pessoa (1919-1922), se comparada ao governo Bernardes (1922-1926). O veto
brasileiro à entrada da Alemanha na Liga ocorre em 7 de março de 1926, e esse ano também é o
último do governo Bernardes.
Entre os estudos mais recentes sobre o assunto, encontra-se o de Eugênio Vargas Garcia 18.
Utilizando a troca de correspondência entre Mello Franco, Félix Pacheco e Arthur Bernardes, Garcia
busca compreender a percepção desses tomadores de decisão. O autor considera que:
o excesso de confiança e o voluntarismo que caracterizam toda a campanha
[brasileira] desde 1923 remetem a um caso típico de misperception [má
interpretação] do governo de Artur Bernardes, que superestimou as possibilidades
de sucesso de sua aspiração, provavelmente iludido com as mensagens formais de
apoio cordial que recebia e confundindo ainda certas particularidades do protocolo
diplomático de uma organização multilateral com sinais de reconhecimento da
importância do país na comunidade de nações. 19

20
Stanley Hilton e Clodoaldo Bueno apontam, reiterando com a tese de Vargas, que o
principal motivo para a insistência de Bernardes em sua ousada política externa era de alcançar grande
apoio da opinião pública entorno da questão, pois assim poderia alançar mais legitimidade interna
diante da crise política que se vivia.
Ao estudarmos os jornais cariocas que se posicionaram a respeito da presença brasileira na
Liga, porém, não identificamos nenhuma pressão, nem satisfação interna diante da possibilidade de
o Brasil tornar-se membro permanente. Analisamos O Brasil, Correio da Manhã; A Folha; Gazeta
de Notícias; O Globo, O Imparcial; O Jornal; Jornal do Comercio; O Paiz e A Pátria, entre 1919 e
1926, presentes na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Na verdade, a pesquisa nos jornais
evidenciou-nos uma outra realidade: a opinião pública era contra a presença brasileira na Liga em sua
grande maioria e, inclusive, valia-se do assunto para criticar ainda mais o governo Bernardes. A
crítica à presença brasileira na Liga foi constante desde o governo de Epitácio Pessoa. Houve
contundente produção de opiniões contra os projetos dos dois governos quando o Brasil esteve na
Liga. Houve, inclusive a produção de dois livros, um de Assis Chateaubriand e outro de Macedo
Soares, Terra Desumana e O Brasil e a Sociedade das Nações, respectivamente. Ambos livre
lublicados em 1927, logo após o governo Bernardes trazendo como uma de suas principais críticas
ao governo todo o projeto insistente de alcançar o assento permanente na Liga. Sendo assim, em
busca encontrarmos uma explicação e estudo alternativo para as decisões de Bernardes, bem como
entendermos melhor o processo de decisão dos atores que coadunam política interna e externa,

18 GARCIA, Eugênio Vargas. (2000), O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926). Porto Alegre, Editora da UFRGS.
19 Id., p. 70.
20 HILTON, Stanley. Afrânio de Melo Franco e a diplomacia brasileira, 1917-1943. Revista brasileira de política
internacional, a. XXIX, n. 1, 1986, p. 15.

856
procuramos estudar mais atentamente os discursos de Bernardes, por meio do contextualismo
linguístimco de Skinner e da História dos Conceitos de Kosselleck, acreditando no Construtivismo,
ou seja, as Relações Internacionais é o que os atores fazem dela. Descreveremos de forma muito breve
o caminho que estamos seguindo na busca por essa nova alternativa de pesquisa para a crise
diplomática de 1926.
Em uma entrevista dada por Artur Bernardes em 1945 ele comenta o que pensa sobre as
revoltas que ocorreram no seu mandato e faz seu próprio julgamento sobre as alterações no plano
político-social:
A vida coletiva de uma nação representa, entretanto, uma continuidade no tempo, e
a história ensina que são sempre temerárias, fadadas a fracassos desastrosos, as
iniciativas tendentes a bruscas mutações, a alterações radicais, no plano político ou
social. [...] Destas só podem advir prejuízos ou retrocessos 21

Bernardes demonstra sempre entender a defesa das permanências sociais como melhor forma
de fazer política. Seus discursos muito se assemelham ao argumento típico das elites da retórica da
intransigência de que qualquer mudança de nada adiantará para a evolução e benefício da sociedade.
Na verdade, Bernardes apresentou desgosto pessoal para os “excessos de liberdade”, e o presidente
considerava a própria constituição de 1891 um excessivo documento de liberdade que não condizia
com a realidade brasileira. Pelas palavras do próprio presidente em sua mensagem presidencial em
1925:

(...) a mais imperial de nossas necessidade é de revisão de nossas leis orgânicas, a


começar pela Constituição (...) elaboradas foram quase todas essas leis em uma phase
de idealismo enthusiastico. (...) era natural que o desejo de realçar a superioridade
do regime republicano sob o monarchico corresponder para a votação de leis
excessivamente adeantadas, pouco adequadas a nosso paiz, à nossa raça, à nosso
índole. (...) a ordem que é o supremo bem. Colocou-se os interesses dos indivídos
acima dos da collectividade, impedindo o emprego de medidas salutares à existência
comum, como acontece com o inquietador problema da carestia e da desarrazoada
elevação de preços, e entregando-lhes riquezas que a Nação devia conservar para a
sua defesa, como as minas de ferro, petróleo e outras; concedeu aos estrangeiro todos
os direitos do cidadão brasileiro. (...) a Constituição reservou a pena de morte para
os tempos de guerras os interpretes entendem que tal disposição não se aplica à
guerra civil.22

Como poderia então, o mesmo presidente desses discursos ser o homem que defendia o Brasil
na Liga em nome na democracia e do direito dos mais fracos ou mesmo da importância dos indivíduos
na política. Bernardes, desde o início de sua carreira politica desgostava profundamente da

21 APM. Belo Horizonte, 1945. p. 8. (Cx. 01, AB-F, doc. 11).


22 BRASIL. (1890 a 1993). Mensagem Presidencial, publicado em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1317/000006.html. Disponibilidade: 16/10/2017.

857
constituição de 1891 bem como de todo o símbolo daquilo que acreditava ser excessivamente liberal.
Ao mesmo tempo não podemos afirmar que a insistência pessoal do presidente para um assento
permanente ao Brasil tenha sido para angariar apoio interno, pois pesquisamos largamente sobre a
opinião pública da época, revelando-nos essa sempre muito contra a política externa de Bernardes
para a Liga. Isso então gera-nos uma importante questão: não seria a perspectiva do homem Artur
Bernardes sobre o que é fazer política e o que certo e erro para se defender que teria realmente levado
o presidente a tamanha insistência? Tanto Bernardes como Félix Pacheco eram homens que
acreditavam na importância iminente de provocar o ufanismo e amor pela nação nos mais jovens
como forma de combater o que acreditavam ser o maior perigo ao futuro da nação: as excessivas
liberdades.
Bernardes e Pacheco desenvolveram um projeto para divulgar a grandeza do Brasil nas escolas
e pedir apoio dos mais jovens à causa brasileira na Liga. Bernardes via a falta de nacionalismo como
um enorme problema para o Brasil e mostrar o Brasil como país forte e líderes entre as mais poderosas
das nações poderia ser um enorme símbolo para que se unisse os jovens brasileiros em torno de uma
causa comum: a grandeza do Brasil. Bernardes não estava então preocupado com a opinião pública
de seu governo e por isso usaria a Liga para aliviar a pressão, parece-nos que, na verdade, a presença
do Brasil na Liga significava algo muito mais grandioso e importante que apenas uma tentativa de
melhorar o prestígio do governo. Para o presidente e o ministro das relações exteriores, a presença do
Brasil na Liga fazia parte de seu próprio projeto pessoal para a política no Brasil: provocar um novo
nacionalismo em torno da coletividade, do conservadorismo e da obediência, pois o Brasil seria uma
grande e poderosa nação firmada em torno de um líder firme e forte. Veja como Bernardes lidou com
a questão da educação:

Separados que foram o Estado e a Egreja, não foram cogitados serem substituídos
no ensino, de modo eficaz e obrigatório, a instrução religiosa pela educação moral,
elemento de felicidade, de progresso, de espirito de civismo para qualquer povo,
impõe-se, pois a necessidade de criação da educação moral das novas gerações23

Bernardes e Pacheco demonstraram tanta preocupação com as novas gerações que


direcionaram a propagando do Brasil na Liga, não aos jornais, em às elites, mas às escolas. Foram
criados, de acordo com Vargas Garcia, panfletos explicando a grandeza e importância do Brasil na
Liga aos mais jovens e distribuídos nas escolas.

23 BRASIL. (1890 a 1993). Mensagem Presidencial, publicado em


http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1317/000005.html. Disponibilidade: 16/10/2017.

858
Veja-se então que surge aqui uma nova possibilidade de pesquisa para explicarmos os
processos de formação da política externa e mais especificamente da política de Bernardes: os desejos
e crenças pessoas dos atores modificando os rumos e as decisões do que ficou entendido como
decisões do Brasil na Liga. Vemos que a força dos desejos de Bernardes na construção de uma cultura
política conservadora legitimada pela grandeza, pela força e pela violência. Tanto para Bernardes
quanto para Pacheco, o Brasil na Liga seria uma forma não necessariamente de fazer valer os projetos
da nova diplomacia de Wilson, mas, também ou principalmente, de provocar um inédito sentimento
cívico de obediência aos líderes e dotar seu governo de poder e força para esmagar tudo que ele
acreditar haver de pior na política: as excessivas liberdades.

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BRASIL. (1890 a 1993). Mensagem Presidencial, publicado em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1317/000005.html.
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860
Entre Tradição e Modernidade: o avanço Liberal em Portugal*

Flávia Rodrigues Bittencourt **

Resumo: Foi necessário quase meio século para que o liberalismo em Portugal se concretizasse
política e economicamente. Paulatinamente, entre crises e guerras que proporcionaram rupturas e
permanências, os princípios liberais se afirmaram primeiro no âmbito político, em forma de
monarquia constitucional, para depois se efetivarem como um programa de desenvolvimento
econômico. Um processo que resultou no distanciamento de classe cada vez mais intensificado e que
ultimava a ordem do Antigo Regime. Senso assim, esse período da história de Portugal oferece
subsídios para a reflexão de como as sociedades podem custar a aceitar e a empreender políticas mais
progressistas e inclusivas, pois as implicações para promover os ideais de igualdade e de liberdade
foram a custo da constante instabilidade e da marginalização da maioria da população.

Palavras-chave: Liberalismo; Conservadorismo; Política.

Abstract: It took almost half a century for liberalism in Portugal to be politically and economically
materialized. Gradually, between crises and wars that provided ruptures and permanencies, liberal
principles were first affirmed in the political sphere, in the form of a constitutional monarchy, and
then became effective as a program of economic development. A process that resulted in the
increasingly distancing amongst different social classes, which ended the order of the Old Regime.
Therefore, this period of the history of Portugal offers subsidies for the reflection of how societies
struggle to accept and undertake policies which are more progressive and inclusive, since the
implications to promote the ideals of equality and freedom could possibly equal constant instability
and marginalization of the majority of the population.

Keywords: Liberalism; Conservatism; Politics.

Marcado pelos ideais de igualdade e de liberdade propagados pela Revolução Francesa, o


oitocentos europeu caracterizou-se por incontáveis movimentos de revoltas e de revoluções que
tensionaram a ordem do Antigo Regime. Portugal, que se constituiu como uma das nações mais fiéis
ao regime absolutista, foi também exposto aos impactos das tendências progressistas. O encontro
entre as propostas de ruptura e o apego às tradições marcariam o turbulento século XIX português.
Após as invasões napoleônicas a partir de 1807, que motivou a partida da Corte para o Brasil,
ideais liberais inclusivos, como a igualdade, foram identificados por alguns setores da sociedade
portuguesa como resposta à crise político-econômica. As opiniões não eram unânimes e se dividiram
em duas correntes. Letrados progressistas identificavam os franceses como portadores das conquistas
liberalizantes, o que se contrapunha às opiniões de grupos conservadores, defensores de uma

1 Trabalho financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e


desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho.
2 Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Graduada (bacharelado e licenciatura)
em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Email: flaviabitt@usp.br

861
sociedade que assegurasse a supremacia da nobreza, do clero e que qualificavam os franceses como
inimigos, jacobinos e ateus.3
Os franceses foram derrotados com a ajuda britânica, iniciando, assim, a perseguição em
massa dos liberais. A intensa perseguição aos simpatizantes da causa progressista atribuiu uma
conotação antiliberal ao sentimento patriótico, ou seja, enquanto o patriotismo se alinhava ao
tradicionalismo, as ideias progressistas eram reconhecidas como antinacionais 4 . Entretanto, a
retaliação direcionada aos dissidentes favoreceu o aparecimento da prática clubista, meio de
organização informal que se iniciou com o movimento liberal e iria perdurar no movimento
republicano na segunda metade do século.
Com o apoio de D. João VI, os governantes conseguiram estabelecer a proibição de
associações secretas do tipo clubista, todavia, isso não impossibilitou a formação delas que, mesmo
com as repressões, mantinham ações revolucionárias. Assim foi o caso do Sinédrio que, fundado em
1818, impulsionou a Revolução de 1820. A organização em forma de clubismo atingia proporções
internacionais, ferramenta que desempenhou papel determinante para o liberalismo cosmopolita e
militante dos anos seguintes5.
No início do século, ainda era incipiente o pensamento crítico frente às novas determinantes
econômicas, sociais e políticas impostas pelas Revoluções Industrial e Francesa. Fatores históricos
como esses impactaram as mentalidades e, juntamente com o legado racionalista dos iluministas,
impuseram novas questões e aspirações que apontavam e possibilitavam um mundo melhor. O
Sinédrio compartilhava essa perspectiva recente, embora seja necessário colocar em termos suas
tendências burguesas e, no limite, diferenciar suas propostas daquelas que eram características das
revoluções liberais. Seus componentes eram comerciantes, mas também proprietários e militares
nobres. A burguesia portuguesa contava com uma classe média de proprietários rurais que não
aspiravam a mudança nos moldes franceses. Nesse sentido, com seu perfil nobiliárquico, os
integrantes do Sinédrio tinham por essência a aceitação de uma erudição assente num tipo de
liberalismo que não era propriamente econômico, mas que valorizava a leitura e o conhecimento de
livros estrangeiros que circulavam no ambiente universitário e nas lojas maçônicas, nesses termos é
que se pode qualificar como burguesa a revolução de 18206.
Nascia assim uma insurreição em que a teoria detinha a supremacia frente às questões e aos
problemas concretos da nação, tendência esta que encontrou sua expressão máxima no respaldo

3 SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Mira-Sintra: Europa-América, 1996. pp.
264-265.
4 Idem. Ibidem. pp.264-272.
5 VARGUES, Isabel Nobre. “O Processo de Formação do Primeiro Movimento Liberal: a Revolução de
1820”. In: MATTOSO, José. História de Portugal: O Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Estampa, 1998. p. 47.
6 SARAIVA, José Hermano. op. cit. pp. 278-279.

862
jurídico. O apego teórico iria deixar lacunas sociais, liberdade e igualdade que eram ali exaltadas não
atendiam grande parte da gente portuguesa, e essa dívida para com as questões de natureza social
continuaria abalando a ordem e possibilitaria a ascensão de propostas mais radicais, como as
republicanas, socialista e positivista, na década de 1870.
Em 1820, teve início a primeira Revolução Liberal que extinguiu o regime absolutista e
estabeleceu a monarquia constitucional como marco de uma nova era. Os integrantes do Sinédrio
articularam forças e iniciaram a revolução no Porto, ali se estabeleceu uma Junta Provisional.
Tentando combater a insurreição portuense, a Regência instalada em Lisboa tomou duas importantes
medidas, organizou militares no intuito de inibir o avanço revolucionário e convocou as Cortes para
15 de novembro. Na contramão às decisões tomadas pelos lisboenses, a Junta do Porto marchou rumo
a capital, todavia, o que poderia ter se desdobrado em uma guerra civil, acabou resultando na junção
pacífica entre os dois governos. Militares do Porto e de Lisboa aderiram à mesma causa e se uniram
na Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, criando também a Junta Provisional Preparatória
das Cortes. Abria-se assim o processo para a convocação das Cortes e com ele o debate
constitucional7.
Na Constituição sobressaía a soberania nacional por meio da eleição de representantes, a
nação teria que declarar a vontade coletiva e expressá-la em forma de lei; com apenas uma Câmara o
poder parlamentar exerceria a supremacia em detrimento do poder real, com mandato bienal e eleita
por voto universal e direto, excetuando-se frades, analfabetos e mulheres; enquanto o rei não poderia
intervir no regimento das Cortes8.
Inspirada nas constituições liberais, a Constituição portuguesa deu continuidade ao princípio
de soberania nacional em que predominava o poder parlamentar 9 . Os vintintas objetivavam a
concretização de uma Constituição que zelasse pelos direitos do homem e do cidadão; que garantisse
a liberdade e a igualdade na lei, contrapondo os privilégios senhoriais; e exaltavam a soberania
nacional e o governo representativo como meio de extinguir a autoridade régia. No entanto, essas
concepções poderiam se manifestar tanto no regime republicano como no monárquico, mas, cabe
ressaltar que após a Revolução Francesa se fortaleceu uma aversão à ideia republicana, sendo assim,
na década de 1820, o sentimento monárquico ainda era mantido e aplicável aos novos rumos
liberais10.

7 VARGUES, Isabel Nobre. op. cit. p. 52.


8 SARAIVA, José Hermano. op. cit. p. 281.
9 POSPÍŠILOVÁ, Martinha. A Luta entre os Liberais e Absolutistas na vida e obra de Almeida Garrett.
Brno – República Tcheca: Masarykova Univerzita, 2009. 58 f. Tese de Licenciatura, Faculdade de Letras – Departamento
de Línguas Românticas e Literatura – Língua e Literatura Portuguesa, Masarykova univerzita, Brno – República Tcheca,
2009. pp. 14-15.
10 SERRÃO. Joel. Da “Regeneração” à República. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 59.

863
Entretanto, essa nova sociedade pretendia se formar com base na racionalização, as garantias
destinadas aos indivíduos não suportariam a soberania como estava sendo proposta e o direito de
eleger e de ser eleito expressava bem esse desencontro dos ideais liberais. Se o direito à participação
nas eleições era restrito aos cidadãos que tinham seus bens garantidos por lei, o princípio excluiria
grande parte da sociedade, e como isso se justificava já que os ideais liberais de inclusão tendiam ao
cosmopolitismo?
Em 1820, religiosos, mendigos e criados não tinham direito de votar. Em 1822, a medida
excludente se estendia aos analfabetos (maioria dos homens adultos). Com base nos argumentos de
Charles de Montesquieu 11 (1689-1755) e de Benjamin Constant 12 (1767-1830), os vintistas
validavam a ideia de que só a educação poderia fazer com que desenvolvesse nos indivíduos o
sentimento de bem comum. As categorias listadas acima, juntamente com as mulheres, seriam seres
sociais suscetíveis de manipulação, ou seja, suas escolhas poderiam não ser condizentes com suas
próprias vontades, não tinham condições para uma vida autônoma e independente. Todavia, uma
educação de qualidade dependia de bens e de rendimentos necessários para que o indivíduo se
dedicasse à instrução, a relação entre instrução e propriedade era tão próxima que em 1826, a
educação foi substituída pelo rendimento para categorizar o cidadão e sua inserção na comunidade
política13. Nota-se, então, que o processo liberalizante, ao invés de promover a igualdade, estava
formalizando com novas prerrogativas a exclusão. A realidade portuguesa não era compatível com
os novos ideais, uma relação intratável nesse primeiro momento do século.
A moralidade igualitária estava sendo anunciada sem, no entanto, impactar em reformas
realmente inovadoras para a maioria dos portugueses e sem afetar a consciência “justa” dos
prenunciadores do bem comum. A base racional e jurídica estava sendo posta em prática, o que
provavelmente acarretava num sentimento de dever sendo cumprido com os credos doutrinários da
filosofia liberal. Contudo, as contradições do novo regime constitucional iriam permanecer e talvez
por isso a nova Constituição tenha sobrevivido tão pouco. Se por um lado a mudança não contemplava
a grande maioria que estava à mercê das decisões dessa elite erudita e que por isso se manteve
indiferente ao processo revolucionário, por outro afetava ainda setores mais tradicionais da sociedade
como o clero e a nobreza. Sem o apoio massivo das camadas populares seria difícil o regime liberal
se sustentar no poder.

11 Filósofo iluminista que formulou a teoria de separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário,
influenciando na elaboração de constituições de diferentes nações.
12 Defensor da liberdade, foi escritor e político, suas principais teorias eram sobre a organização do
Estado, o princípio da soberania e as noções de liberdade.
13 RAMOS, Rui. Para uma história política da cidadania. Análise Social. vol. XXXIX, 2004, pp. 547-
569, 2004. pp. 550-551.

864
Foi D. Miguel, terceiro filho de D. João VI, quem liderou a insurreição que pôs fim a primeira
experiência liberal em 1823, o golpe que ficou conhecido como Vila Francada aboliu as Cortes e a
Constituição. A predisposição em seguir um conservadorismo extremado, fez com que o infante fosse
exilado em Viena. No entanto, a morte de D. João VI não tardaria, o que iria dificultar ainda mais a
conquista da estabilidade política e faria com que uma figura importante que até aquele momento se
manteve ausente nos acontecimentos de Portugal participasse do cenário e dos desdobramentos daí
decorrentes. Com a morte do pai em 1826, o governo foi assumido pela regência que legitimou D.
Pedro IV, então imperador do Brasil, como rei. Tentando manter a recente independência do Brasil,
D. Pedro encontrou a seguinte solução para a paz entre os diferentes grupos políticos, outorgou a
Carta Constitucional e abdicou do trono português desde que sua filha de sete anos, D. Maria da
Glória, o assumisse, para tanto, quando alcançasse a maioridade, ela deveria se casar com o tio D.
Miguel. Nesse interim a regência estaria a cargo de D. Isabel Maria, quarta filha do falecido rei.
Numa perspectiva geral e de conciliação a Carta Constitucional de D. Pedro não era tão
progressista. Em comparação e diferentemente da Constituição de 1822, o texto estabelecia quatro
poderes, a Câmara dos Pares e dos Deputados comportariam o poder legislativo, a primeira era
constituída por número ilimitado de eleitos (hereditários) pelo rei com garantia vitalícia, os
integrantes da segunda tinham como critério a propriedade e o voto indireto; manteve-se o poder
executivo e o judiciário e foi acrescentado o poder moderador, por meio deste o rei designava a chefia
do Estado, convocava, adiava ou suspendia as Cortes, demitia os ministros e recusava as
promulgações dos parlamentares14.
A Carta, por mais que significasse uma medida conciliadora, reafirmava a monarquia frente
às decisões da nação que antes poderiam ser exercidas pelo viés democrático na ideia de
representatividade em uma única câmara. A Câmara dos Pares garantia ainda a setores marginalizados
na revolução liberal a retomada de poder, clero e nobreza se faziam presentes e ao seu exercício
caberia o conhecimento dos crimes da família real, de deputados, de ministros e de conselheiros do
Estado 15 . Nesses termos, retomava-se uma política protecionista ligada aos estamentos que
representavam o Antigo Regime e por isso pode-se afirmar que a Carta era mais conservadora do que
progressista.
O sentido progressista se mantinha pela constitucionalidade e pela noção de
representatividade, esta, porém, limitou-se nas eleições indiretas e censitárias, havia as eleições de
eleitores e de representantes. No processo censitário de propriedade, os que eram considerados

14 POSPÍŠILOVÁ, Martinha. op. cit. p. 20.


15 CANOTILHO, Joaquim Gomes. “As Constituições”. In: MATTOSO, José. História de Portugal: O
Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Estampa, 1998. pp. 131-132

865
cidadãos elegiam os eleitores da província nas assembleias paroquiais, estes por sua vez elegeriam os
representantes da Nação16.
D. Miguel aceitou o acordo e se propôs a jurar a Carta Constitucional, mas seu
conservadorismo encontrava apoio entre os absolutistas que o queriam no poder; os liberais estavam
ressentidos e insatisfeitos com a Carta; a perda do monopólio e a independência do Brasil feriam o
orgulho português e implicava, na prática, perdas significativas para a receita. Em 1828, a política
sofre, então, mais uma reviravolta, D. Miguel retorna e quando as Cortes se reuniram o
tradicionalismo sobressaiu, o infante foi aclamado rei absoluto. Tão logo a Carta foi abolida iniciou
o terror miguelista contra os liberais que foram obrigados a emigrar em massa para não serem presos,
mortos ou espoliados de seus bens 17. A Guerra Civil (1828-1834) estava anunciada, porém, com
novos contornos políticos, durante mais de uma década, além dos letrados e dos militares, a causa
liberalizante conseguiu novos adeptos. Entre os mais de 600 presos pela política miguelista estavam
comerciantes, pessoas com profissões populares como criados, alfaiates, ferreiros, barbeiros e
sapateiros, funcionários públicos, eclesiásticos e lavradores18.
D. Pedro finalmente renunciou a coroa brasileira e se juntou aos expatriados, uma aliança um
tanto controversa já que a Carta outorgada por ele, que após abdicar dos dois tronos ficou apenas com
o título de Duque de Bragança, mantinha princípios antidemocráticos enquanto os liberais seguiam
uma linha mais radical para fins de participação política. Todavia, para sustentar a ordem contra um
inimigo comum a aliança valeria a pena.
Para além dos domínios de seu irmão, o Duque organizou um governo independente,
primeiramente nos Açores para, em seguida, se estabelecer no Porto em 1832, onde reuniu uma
armada de 7.500 homens contra 80.000 de D. Miguel. Concentrados no perímetro portuense, o
pequeno exército conquistou o apoio da população que colaborou com trabalho, dinheiro e
aumentando o contingente de soldados, construindo, inclusive, fortificações. Acessível ao mar, a
região contribuía com o abastecimento de armas, mantimentos e com a chegada de novos homens
comprados ou recrutados na França e na Inglaterra19.
Mesmo com número diminuto, o exército de D. Pedro conseguiu se organizar de tal forma
que em 1833, tropas foram enviadas ao Algarve, região que fica mais ao sul de Portugal, enquanto o
Porto fica a noroeste. A estratégia era dispersar, mudar a atenção e as investidas das tropas miguelistas
na região do Porto. As províncias meridionais não estavam preparadas para a guerra, sendo assim, as
tropas liberais conseguiram chegar a Lisboa quase sem resistência em aproximadamente um mês. A

16 Idem. Ibidem. p. 132.


17 SERRÃO. Joel. Da “Regeneração” à República. op. cit. pp. 76-77.
18 SARAIVA, José Hermano. op. cit. pp. 287-288.
19 POSPÍŠILOVÁ, Martinha. op. cit. pp.23-24.

866
guerra ainda se prolongou por mais um ano após a conquista da capital, momento decisivo para a
perda progressiva dos absolutistas que se efetivou em 1834, enquanto D. Miguel foi punido com o
exílio 20.
Por fim D. Maria II assumiu o trono e a Carta passou a vigorar novamente, sua aplicabilidade,
juntamente com os decretos de Mouzinho da Silveira (1780-1849), resultaram em alguns avanços
significativos para a política liberal. Sem dúvida alguma, Mouzinho da Silveira foi um ator
determinante para a concretização do liberalismo português, esteve ao lado de D. Pedro que o nomeou
ministro da Fazenda e da Justiça em1832, ainda no governo independe 21. Os decretos de Mouzinho
priorizavam a liberdade econômica e, para garanti-la, embora tenha favorecido o mercado imobiliário
e com ele o aumento da produtividade, o legislador sacrificou parte expressiva dos privilégios
eclesiásticos. Alguns de seus decretos, por exemplo, aboliu o dízimo e promoveu a secularização de
alguns conventos em 1834, medida que iria se intensificar durante o século e na efetivação da
república22.
De início, o confisco das propriedades fomentou a venda imobiliária, ampliando o acesso
aquisitivo devido ao baixo custo. Entretanto, eram poucos os que poderiam arcar com o valor da
venda, sendo assim, o número de propriedades disponíveis era desproporcional ao número de
compradores, o resultado foi a consolidação da grande propriedade sem uma reforma agrária que
contemplasse os menos abastados, ocasionando um impacto social desfavorável nesse sentido. As
propriedades que não eram vendidas continuavam como bens nacionais e se constituíram em reservas
do governo em tempo de crise 23.
Modernizar a nação requeria fomentar novos valores, um processo árduo e demorado para os
portugueses, provavelmente por razões de mentalidade e de tradição. Novos valores nesse caso
implicava contrariar tradições arraigadas durante séculos, isso significava, por exemplo, se contrapor
a Igreja, as classes dominantes, ao sistema político-absolutista e ainda a três séculos de comodismo
econômico ocasionado pela relação metrópole-colônias que dificultava o desenvolvimento da
produção independente. A Revolução Industrial e a Francesa fizeram do modelo português obsoleto
e demandaram novas formas de organização.
Assim avançava o sistema capitalista em Portugal, as aspirações liberais em forma de
conceitos e de leis nos anos de 1820, construíram um ambiente e as condições propícias para o
desenvolvimento e a regulamentação da propriedade na década seguinte. Se inicialmente o
liberalismo debatia o acesso democrático por meio da participação cidadã na política, após a guerra

20 SARAIVA, José Hermano. op. cit. p. 289.


21 SERRÃO. Joel. Da “Regeneração” à República. op. cit. p. 93.
22 SARAIVA, José Hermano. op. cit . pp. 293-294.
23 Idem. Ibidem. pp. 293-294.

867
civil avançava numa lógica econômica que impactou a ordem social de maneira cada vez mais
intensificada. Essa deflagração nas contradições sociais tenderia a se agravar e seria motivo de
constantes questionamentos. A partir dessas condições e de outras tantas se entende, por exemplo, o
surgimento da mentalidade rebelde e dissidente da geração de 1870, em que o espírito democrático,
republicano e social, direcionado por um posicionamento crítico, iria influir como oposição ao
governo constitucional.
O curto período entre os sucessivos eventos históricos mostram que os ânimos e os projetos
políticos destinados à melhoria da situação do país eram constantes e incansáveis. Essa série de
eventos elucida como as políticas não davam conta da demanda de modernização, apesar de tardia,
ela se apresentava como um fator de abatimento, mas também de motivação. Essa dicotomia talvez
seja a principal razão da ausência de estabilidade que originou e foi consequência das inúmeras
tentativas de reformas. A intenção de promover melhorias era constantemente confrontada por
opiniões e movimentos contrários, dificultando ou mesmo não oferecendo tempo suficiente para que
as reformas pudessem apresentar resultados positivos. Foi assim com a constituição liberal que
vingou durante o curto período de 1822 a 1823 e com a Carta Constitucional entre os anos de 1826 e
1828. O direcionamento político em forma de partido também não estava suficientemente organizado,
dificultando, assim, um projeto político mais duradouro que favorecesse a estabilidade.
Após a vitória ante os absolutistas, eram duas as principais correntes do movimento
protopartidário na década de 1830, os moderados e os progressistas. Os moderados eram os Cartistas,
defendiam os princípios constitucionais outorgados por D. Pedro e os progressistas eram os
Constitucionalistas, mais radicais, almejavam o retorno do exercício da constituição vintista. Em
setembro de 1836, os constitucionalistas se revoltaram e a defesa do modelo inspirador vintista era
justificado por diferentes fatores políticos, econômicos e internacionais 24. O levante surtiu efeito e
logo a rainha cedeu ao movimento e as manifestações que aclamavam a Constituição de 1822, no dia
10 de setembro a Carta perdia o valor e em seu lugar assumia a Constituição liberal. Embora tenha
acatado as exigências dos setembristas, D. Maria II e os cartistas se mobilizaram contra a revolução
de setembro, apesar de inicialmente conceder as reivindicações dos radicais, a repressão começava a
se manifestar de forma violenta e no âmbito institucional quando partidários do movimento
revolucionário foram demitidos de cargos governativos 25.

24 Em agosto, a Espanha novamente restaurou a Constituição liberal de Cádis de 1812 por meio do Motim
da Granja (revolta de sargentos); em termos nacionais foram feitas novas eleições na sequência da dissolução das Câmara
dos Deputados, o que efetivou a vitória do Governo na Câmara; a dependência comercial em relação a Inglaterra favorecia
somente ao alto comércio nacional e estrangeiro, incomodando os progressistas de classes industriais como fabricantes,
artífices e operários.
25 SERRÃO. Joel. Da “Regeneração” à República. op. cit. pp. 108-109.

868
Na tentativa de minimizar as tensões e reproduzindo o exemplo de D. Pedro IV quando
outorgou a Carta em 1824, uma nova Constituição foi jurada em 1838, visando atender aos interesses
de cartistas e dos revolucionários setembristas. Entre os anos de 1836 e 1838, as revoltas davam
indícios de como as correntes políticas estavam sendo intensificadas. De 1822 até o final da década
de 1830, três Constituições foram promulgadas, refletindo a instabilidade geral que abatia os
governantes e setores descontentes, crise política que estava sendo acompanhada pelo agravante
econômico e que atingia principalmente os segmentos populares.
A nova Constituição manteve o sistema bicameral instituído pela Carta, porém, com alguns
ajustes já que o princípio da soberania popular era defendido pelos setembristas. O poder moderador
foi extinto, mantendo assim a repartição entre os três poderes, executivo, judiciário e legislativo.
Quanto ao legislativo, a medida que simbolizava as relações do Antigo Regime e que favorecia a
classe de nobres por meio de uma política protecionista em que o rei nomeava senadores com cargos
vitalícios e hereditários foi abolida da Câmara Alta, nesses termos, passou a valer o voto direto e o
exercício do representante passou a ser temporário26. Como uma sina, porém, a nova Constituição
vingou poucos anos.
Na década de 1840, o ideal revolucionário passou a dar lugar às políticas reformistas, esse
período foi importante uma vez que as instituições alcançaram a estabilidade necessária para
promover o avanço econômico e o progresso do país que marcariam os anos de 1850. António
Bernardo da Costa Cabral 27 , com o apoio de D. Maria, direcionou o golpe de Estado no Porto
derrubando a Constituição que havia jurado em 1838 e restaurando, em nome da ordem, a Carta
Constitucional em 1842.
Por meio de uma política centralizadora e de reformas no sistema tributário, o governo passou
a intervir demasiadamente nas autarquias, sua política reformista desagradava muitos, inclusive,
setores populares28. Com o retorno do voto censitário e durante a administração de Costa Cabral, o
objetivo do governo se pautou no desenvolvimento do país por meio da ordem. Assim, o liberalismo
teria que ser articulado com a questão nacional. A resultante desses esforços que visava também unir
as forças contrárias foi um programa sociopolítico que zelasse pela conservação e pela inovação
possíveis. Nesse sentido, o que se buscava era a “(...). Conservação do Império e das ‘boas’ tradições
sociais; inovação ao nível do Estado, cuja soberania passaria residir ‘em a Nação 29’”. Nesse momento,
o debate sobre a soberania que antes se configurava em polos opostos, entre o monarca e a população,
parecia conciliar-se no ideal nacional e no bordão da Regeneração. Sendo assim, o programa

26 SARAIVA, José Hermano. op. cit . pp. 301-302.


27 Foi um dos principais ministros que impulsionou o desenvolvimento econômico e material de Portugal.
28 SARAIVA, José Hermano. op. cit . pp. 303-304.
29 SERRÃO. Joel. Da “Regeneração” à República. op. cit. pp. 120-121.

869
regenerador priorizava reformas ou invés da revolução, reunindo nesse compromisso o antigo e o
novo30.
O governo de Costa Cabral resgatou um modelo que já havia se mostrado insuficiente para
acabar com as tensões políticas, a Carta Constitucional, mas foi além ao implantar um plano de
governo, um ideal regenerador/conciliatório que em curto prazo não conseguiu o propósito desejado,
porém, abriria espaço para a paz regeneradora na década seguinte. Se o ideal regenerador conquistou
relativa estabilidade no seio da comunidade política, a insatisfação popular, dada pela revolta Maria
da Fonte, irrompeu com forte peso contra a figura do ministro. Desta vez, porém, a sublevação
partiria, pela primeira vez, de camponeses, sobretudo de mulheres concentradas em Vieira do Minho
em 1846. As leis da saúde de 1845, proibiram o enterro nas igrejas, prática que era comum e que por
isso ocasionou constantes protestos. O que havia começado como protestos adquiriu perfil de revolta
e se estendeu para as demais regiões quando funcionários do governo faziam a relação dos bens para
o lançamento de impostos, a revolta tendia então para a generalização. Logo liberais, absolutistas e
mesmo os clérigos aderiram à causa popular contribuindo para que o movimento ganhasse cada vez
mais conteúdo político. Diante da mobilização o governo resolveu, em reunião presidida pela rainha,
pela demissão do governo de Costa Cabral que se exilou em Madrid, mas voltaria anos depois,
novamente, como estadista.
Interessante notar a importância da participação popular nos rumos institucionais. Até a Maria
da Fonte esse tipo de participação foi teorizada de forma insuficiente ou não havia sido reivindica por
nenhum dos grupos que reclamavam o poder administrativo, apesar de tardia e mesmo não sendo em
prol do direito democrático de participação, os camponeses se mobilizaram e deram sentido político
aos próprios grupos de oposição quando absolutistas, liberais e clérigos aderiram sua causa,
conquistando uma organização administrativa capaz de derrubar o próprio governo.
Além do mais, a revolta da Maria da Fonte exemplifica como os camponeses estavam aquém
dos debates institucionais de grupos que ansiavam o poder. Nesse sentido, a igualdade e a liberdade
defendidas pelos liberais transfiguravam-se em algo ininteligível e incompreensível para aqueles que
eram apegados às tradições mais simples do cotidiano, ligados às suas crenças e à sua sobrevivência.
Foi somente nesses termos, quando as medidas governativas afetaram diretamente a realidade das
condições de vida dos camponeses que os mesmos entenderam a necessidade de se levantar contra
um governo que os oprimia, portanto, para compreender a crise na década de 1840, é necessário
considerar essa importante e fundamental participação das camadas populares, para inclusive,

30 Idem. Ibidem. pp.120-121.

870
compreender os insucessos e o que faltava para a modernização portuguesa, tão complexa e de
concretização tão demorada.
Cansados do extremismo político que mais fizera gerar guerras e instabilidade ao país à custa
de pouco desenvolvimento político e econômico, uma nova ideia de governabilidade passou a
estabelecer novas diretrizes para um desenvolvimento mais preciso, a Regeneração. Transpassando
a tendência revolucionária que se baseava no sistema jurídico-constitucional e que em certo sentido
mostrou-se ineficiente como mediadora de interesses diversos, a reconciliação por meio da
regeneração acabava por canalizar as divergências políticas. Portanto, através do Ato Adicional de
1852, acentuava-se um viés um pouco mais democrático do que a Carta ao instituir a eleição direta
ao passo que permanecia o sistema censitário, mantendo como critério, além da fortuna, a “faculdade
de inteligência”, retomando, assim, o princípio iluminista defendido pelos vintistas. A pena de morte
por crime político também foi abolida e as Cortes, seguindo o exemplo de 1838, poderiam intervir
nos assuntos internacionais ao ratificar os tratados antes do rei31.
A paz constituída proporcionou o nascimento de partidos políticos mais próximos do sentido
moderno. Os incessantes traumas entre governo e oposição condicionaram a uma prática partidária
de rotativismo no poder sem grandes embates sobre questões político-sociais, pois a prioridade da
política portuguesa passou a ser um programa que zelasse majoritariamente pelo desenvolvimento
estrutural e econômico do país.
Nesse momento de estabilidade oportuna, as correntes políticas institucionalizaram suas
forças através do Partido Regenerador, que compreendia a tendência conservadora e os ideais cartistas
e o Partido Histórico, mais democrático e ligado aos setembristas, que depois se assumiria como
Partido Progressista. As duas frentes partidárias adotaram uma posição de centro, de compromisso
com a realeza, tratava-se de liberais dispostos a reconstruir economicamente Portugal32. Esse modelo
bipartidário de alternância no poder fazia parte da tentativa de reproduzir no sul europeu o equilíbrio
da disputa parlamentar vivenciada pelos ingleses. Para que este sistema funcionasse, o grupo que
detinha o poder deveria resistir à tentação de monopolizá-lo de forma perpétua e não poderia agir de
forma intolerante. Por tais razões a paz política e o progresso seriam conquistados em detrimento do
esfriamento ideológico, isso possibilitava o convívio e o governo conjunto de antigos rivais 33.
Entender a sociedade em suas diferentes concepções requer a explanação dos desdobramentos
políticos e econômicos que aos poucos cederam aos princípios liberais e que impactaram toda a
organização e a vida de um país, principalmente quando tais princípios encontraram meios propícios

31 CANOTILHO, Joaquim Gomes. op. cit. p. 138.


32 SARAIVA, José Hermano. op. cit . pp. 305-306.
33 RAMOS, Rui. A Formação da intelligentsia portuguesa (1860-1880). Análise Social, vol. XXVII, 483-
528, 1992. p. 484.

871
na Regeneração e se estabeleceram como principal programa de desenvolvimento. A ascensão de
uma elite política estava clara e quando se entende que uma elite, grupo ou facção detém o poder,
isso significa que o exercício da administração pública favorece poucos em detrimento de muitos. A
questão é saber como essas facções angariaram vantagens político-econômicas e foram protegidas
institucionalmente enquanto a maioria, excluída do processo desenvolvimentista, carecia de um
programa social mais justo.
O programa capitalista em Portugal foi direcionado para as políticas públicas. Com forte
investimento em obras que colaboraram com o rendimento necessário do Estado liberal e com o
aumento da produção, juntamente com o desenvolvimento do transporte. A finalidade era diminuir
as assimetrias regionais e facilitar a integração de Portugal com os demais países europeus através da
rede viária de estradas e de caminhos de ferro. No tocante ao aumento da receita do Estado, o governo
recorreu aos empréstimos estrangeiros e a reorganização da dívida pública. O Estado ainda
determinou o aumento da carga tributária de impostos diretos sobre os bens de consumo. Em 1855, o
apoio financeiro foi conquistado ao passar a imagem de acalmia e de desenvolvimento, ganhando
com isso credibilidade internacional34.
O banimento dos camponeses e de alguns segmentos populares no processo desencadeado
pelo confisco e venda das terras eclesiásticas iria ser agravado no período da Regeneração. O
aperfeiçoamento das vias de comunicação propiciou maior distanciamento das condições e das
relações sociais, pois favorecia o desenvolvimento comercial pautado na produção de riqueza
concentrada na terra e produzida pelos trabalhadores que ficavam ao dispor dessa produção. A
facilidade de comercialização demandou logo o aumento da produção que por sua vez necessitava
expandir as áreas de cultivo. Com isso, as terras que antes eram baldias passaram a ser cultivadas,
forçando a repartição de terras comunais para o setor privado que em 1867, foi regulamentada pelo
Código Civil, consagrando o direito de tapagem (vedação), abolindo a lei de propriedade comunal35.
Cabe lembrar que os ideais liberais precisou de quase meio século para se consolidar em
termos político-institucionais, durante o processo houve forte tensão entre os novos ideais propostos
e a ordem absolutista. Após o longo caminho da vitória política, talvez fosse mais eficaz aos interesses
liberais, em que pese sua aplicabilidade econômica, ou seja, o desenvolvimento capitalista, investir
nas condições reais do país. Provavelmente seria mais plausível reestruturar e reformular a produção
agrícola, visando um caminho menos duradouro e mais eficiente do que investir na produção
industrial, considerada um modelo novo de produção frente à prática de cultivo de terras, um costume

34 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “A Regeneração e o seu Significado”. In: MATTOSO, José.
História de Portugal: O Liberalismo. (1807-1890). Lisboa: Estampa, 1998. pp. 105.
35 SARAIVA, José Hermano. op. cit . pp. 311-312.

872
secular que necessitava apenas de poucos incentivos como a regulamentação das terras e a estrutura
necessária, podendo por isso gerar resultados num prazo mais curto.
Quem não estava na condição de proprietário tinha as condições de vida prejudicadas, pois,
antes da individualização das terras comunais, os que não eram proprietários usufruíam e atendiam
suas necessidades básicas nessas terras, poucos eram os produtos que precisavam ser comprados,
mesmo porque o salário dessa gente era em forma de mercadorias. Com os novos rumos econômico-
sociais, tais mercadorias passaram a ser comercializadas, restringindo, assim, o acesso a produtos de
primeira necessidade, ao passo que o trabalhador passou a receber em dinheiro. Apesar do aumento
salarial, o ganho do trabalhador não acompanhou a variedade e o aumento da necessidade de
consumo, isso significou um intenso distanciamento de classe, contrapondo à miséria crescente uma
burguesia cada vez mais ostensiva 36.
As medidas impopulares relativas ao aumento de impostos e a questão agrária foram
acompanhadas por um novo processo que alterou a demografia do campo e das cidades. A migração
constituía-se como necessária e fez parte do crescimento das cidades, impulsionada pela regeneração
que promovia a unificação e a estruturação do espaço econômico. Daí em diante novas formas de
manifestações sobressaíram, ao invés de descontentamentos restritos entre os grupos políticos que
perduraram na primeira metade do século, as manifestações de insatisfação começou a partir de
populares.
Na sequência, houve diversas revoltas e protestos, como a revolta pelo pão barato em 1856,
os protestos contrários às tributações de 1865 e de 1868 e o primeiro surto grevista de proporções
significativas na década de 1870. Todas essas sublevações populares foram baseadas no antagonismo
e no choque entre os interesses capitalistas e o surgimento de propostas que visavam a construção de
uma sociedade justa 37 . Nesse sentido, entende-se que os ideais de igualdade e de liberdade,
amplamente discutidos, não surtiram o efeito esperado para aqueles que não tinham poder aquisitivo
e nem o acesso à cidadania relativa ao direito político de participação. O produto dessa política e de
suas lacunas para com a sociedade transfigurou-se numa condição social em que as contradições
ficavam cada vez mais visíveis.
Com o êxodo rural em reação a esse processo, a cidade passou a ser a melhor alternativa para
o trabalhador que estava em busca de trabalho e de melhores condições de vida, embora a oferta de
emprego fosse consideravelmente menor do que a procura. As linhas de ferro, a construção de
estradas e mesmo a incipiente indústria ofertavam trabalho e absorviam uma parcela dos que estavam

36 Idem. Ibidem. pp. 315-316.


37 CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de outubro de 1910. Lisboa:
Editorial Notícias, 2000. pp. 13-14.

873
sendo marginalizados pelo progresso regenerador. Tinham-se, assim, as condições para a formação
de uma nova classe com diferentes hábitos e mentalidade. Entretanto, essa nova categoria social
estava em formação e compartilhava de um mundo recentemente estruturado, uma classe em transição
que aspirava compartilhar da cultura burguesa massivamente disseminada 38.
Em uma sociedade majoritariamente agrária se instalou, a muito custo, um programa
capitalista que minimizava o avanço industrial ao passo que aperfeiçoava um tipo de produção secular
ligada à prática do campesinato. Nesse mesmo processo a Regeneração geria o negócio público
objetivando o desenvolvimento pragmático e com a tutela do governo britânico em proveito de alguns
setores sociais que enriqueceram por meio da especulação comercial de importação/exportação,
estagnando o crescimento da burguesia industrial39. Outro agravante era a falta de escolaridade que,
consequentemente, implicava dificuldade no acesso à informação e, portanto, à conscientização.
As manifestações que marcaram as décadas de 1850 e de 1860 davam indícios de que algo
estava errado com o projeto político liberal, porém, pelas razões aqui apontadas não eram suficientes
para transcender o modelo governativo conquistado pela burguesia. Tanto assim que novamente
partiu da intelectualidade a iniciativa para teorizar e promover as mudanças necessárias para a maioria
das gentes de Portugal. Não por mero acaso, os intelectuais da geração de 1870, se apropriando do
cientificismo ligado ao socialismo e ao positivismo, pensaram de forma similar ao diagnosticar as
razões que fizeram de Portugal, com um império mundial, uma nação condenada à decadência.
À este diagnóstico, os letrados dessa geração escolheram a cultura como resposta. As relações
de produção e as formas de organização social típicas da Idade Média ganharam espaço em suas
abordagens. O foco era desmoralizar o governo formado pela elite que oprimia o povo, fosse ele
absolutista ou monárquico-constitucional. Nesse interim, o espírito republicano se contrapôs aos
modelos tradicionais de governo.
O republicanismo propôs novas abordagens e ressignificações. Se for considerado que a
tendência regeneradora esteve presente desde o início do século, com a crise de consciência e de
otimismo desencadeada pela partida da Corte, depois pelos embates constituintes em que diferentes
correntes gladiavam com o propósito de estabelecer a ordem, até que por fim se tornou o programa
oficial do governo, a busca pelo reavivamento nacional se manteve em todos esses eventos históricos.
E não seria diferente com a corrente republicana, ela se baseou também num passado glorioso em que
a concretização da República se faria mediante a vontade da consciência nacional em busca do
ressurgimento da pátria. Contudo, enquanto o vinstismo apelava para a Nação, de acordo com o
conceito de soberania que estava sendo adotado, o republicanismo se apegava ao povo, “a todo um

38 SARAIVA, José Hermano. op. cit. pp. 316-317.


39 CATROGA, Fernando. op. cit. p. 13

874
Povo40”. Sendo assim, o esfriamento ideológico das décadas de 1840 e de 1850, teria os dias contados
quando, novamente, jovens letrados problematizaram a questão social pelo viés republicano na
década de 1870.

Referências Bibliográficas

CANOTILHO, Joaquim Gomes. “As Constituições”. In: MATTOSO, José. História de Portugal: O
Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Estampa, 1998.

CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de outubro de 1910.


Lisboa: Editorial Notícias, 2000.

POSPÍŠILOVÁ, Martinha. A Luta entre os Liberais e Absolutistas na vida e obra de Almeida Garrett.
Brno – República Tcheca: Masarykova Univerzita, 2009. 58 f. Tese de Licenciatura, Faculdade de
Letras – Departamento de Línguas Românticas e Literatura – Língua e Literatura Portuguesa,
Masarykova univerzita, Brno – República Tcheca, 2009.

RAMOS, Rui. A Formação da intelligentsia portuguesa (1860-1880). Análise Social, vol. XXVII,
483-528, 1992.

_________. Para uma história política da cidadania. Análise Social. vol. XXXIX, 2004, pp. 547-
569, 2004.

RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “A Regeneração e o seu Significado”. In: MATTOSO, José.
História de Portugal: O Liberalismo. (1807-1890). Lisboa: Estampa, 1998.

SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Mira-Sintra: Europa-América, 1996.

SERRÃO. Joel. Da “Regeneração” à República. Lisboa: Livros Horizonte, 1990.

_________. Liberalismo, socialismo e republicanismo. Lisboa: livros Horizonte, 1979.

VARGUES, Isabel Nobre. “O Processo de Formação do Primeiro Movimento Liberal: a Revolução


de 1820”. In: MATTOSO, José. História de Portugal: O Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Estampa,
1998.

40 SERRÃO, Joel. Liberalismo, socialismo e republicanismo. Lisboa: livros Horizonte, 1979. p. 33.

875
A experiência do Partido dos Trabalhadores à frente da prefeitura de São Paulo (1989-1992)

Frederico Vieira Zgur 1

Resumo: Este trabalho visa, no contexto da virada dos anos 80 e 90, analisar a primeira experiência
do Partido dos Trabalhadores à frente do governo municipal de uma cidade com a envergadura de
São Paulo. Liderada pela então Deputada Luiza Erundina, a gestão se elegeu com o objetivo de
“inverter prioridades” da máquina pública, privilegiando os setores historicamente desfavorecidos da
sociedade, e associada às concepções de alargamento da participação popular e de acréscimo do teor
democrático na gestão pública. Discorrerei sobre projetos, lutas, avanços e decepções da gestão e do
partido, bem como sustentarei a hipótese de que esta experiência foi fundamentalmente influente para
uma mudança de concepções programáticas do PT ao longo dos anos 90.

Palavras-chave: Partidos dos Trabalhadores; Luiza Erundina; São Paulo.

Abstract: This work intends to, in the turn of the 80’s to the 90’s context, analyze the first experience
of the Worker’s Party (PT) ahead the municipal government of a city the size of São Paulo. Leaded
by the at the time congresswoman Luiza Erundina, the administration was elected with the goal to
“reverse priorities” of the public administration, giving privilege to the society’s least favoured
groups, while also associated with the conceptions of broadering popular participation and increasing
its democratic content. I’ll discourse about the projects, advances and disappointments that both the
party and the administration had, as well as will defend the hypothesis that this experience was
fundamentally influent for the programmatic changes that the Worker’s Party faced throughout the
90’s.

Key words: Worker’s Party; Luiza Erundina, São Paulo.

Introdução: o surgimento do Partidos dos Trabalhadores, os anos 70 e 80

O Partido dos Trabalhadores surge no ano de 1980, na esteira dos movimentos sindicalistas
da região do ABC paulista e de suas campanhas grevistas reinvidicando reposição salarial e melhores
condições de trabalho em finais dos anos 70.
Contudo, é possível traçar a genealogia do PT a pelo menos meados dos anos 70,
anteriormente aos grandes movimentos de greve. Para Eder Sader, quadro intelectual histórico do
partido, podemos associar as matrizes discursivas e mesmo sociológicas presentes no PT desde o
momento de sua fundação a pelo menos três grandes grupos, a saber: à Igreja Católica progressista;
ao marxismo de intelectuais e quadros egressos da luta armada; e ao Novo Sindicalismo (SADER,
1995).

1 Graduando em História (bacharelado e licenciatura plena) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Membro do Núcleo de Estudos de História, Memória e Ensino da Ditadura Militar (NEHMED-UERJ) e da Comunidade
de Estudos de Teoria da História da UERJ (COMUM-UERJ). (fredericozgur@hotmail.com)

876
As Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica foram responsáveis por um grande salto
quantitativo e qualitativo para a Igreja de viés progressista no Brasil. Em formato nucleado, as CEBs
tinham a vantagem de de fato aproximar a Igreja das pessoas, da base da sociedade, além de criar ou
resgatar relações de convívio social mais “tradicionais”, na comunidade, no bairro, etc., com o intuito
de discutir e agir sobre os problemas do grupo. As CEBs foram fundamentais para o PT e sua estrutura
organizativa de “núcleos” (de bairro, de trabalho, de local de estudo, entre outros), contribuindo para
sua expansão e enraizamento social ao longo dos anos 80. Para Lincoln Secco, "socialmente, a base
mais importante do PT depois dos operários de empresas multinacionais e do sindicalismo de
funcionários públicos foi, seguramente, a Igreja Católica" (SECCO, 2015. p. 44; 45).
Se numericamente os marxistas eram a matriz discursiva com menos representação no partido
à época de sua fundação, esses quadros intelectuais – muitos sobreviventes da luta armada e oriundos
de organizações clandestinas – contribuirão com importantes formulações teóricas para os
sindicalistas (SECCO, 2015. p. 48).
Contudo, sem dúvida a principal matriz formadora do PT é a do Novo Sindicalismo, que acaba
agregando as outras duas (o que será de vital importância na consolidação e amadurecimento
discursivo e ideológico do partido ao longo das décadas de 80 e 90). Se desde o Golpe civil-militar
de 1964 os sindicatos vinham perdendo sua função tanto pela repressão perpetrada pela Ditadura
Militar 2, como pela política salarial adotada por estes governos3, é somente na década de 70 que
sindicalistas da região do ABC paulista ensaiarão reverter esse quadro, começando uma renovação
sindical que ficará conhecida como “Novo Sindicalismo”.
Esse novo movimento de sindicalistas, gestado em um contexto em que reinvidicações
trabalhistas poderiam ser enquadradas como “subversão”, teve que construir paulatinamente uma
refinada estratégia discursiva legalista e negociacionista, que aliasse ao mesmo tempo a firmeza
reinvidicativa e o respeito à ordem e às autoridades. Dizia o editorial do jornal do sindicato dos
metalúrgicos de São Bernardo do Campo, assinado por seu presidente Paulo Vital, em 1974:
Não queremos nos contrapor ao Regime, Sistema Econômico ou às autoridades. O
que queremos é ver reconhecido o direito de podermos participar no processo de
desenvolvimento que a nação experimenta e do qual somos parte. Não queremos ser
meros espectadores ou omissos. (Ibidem)

2 Usa-se aqui as expressões “Golpe civil-militar” e “Ditadura Militar” por entender-se que enquanto o Golpe de
1964 que destituiu o presidente João Goulart foi aplicado com o apoio de setores civis (políticos, empresários, etc.), a
Ditadura Militar não só escanteou esses setores, como estes, mesmo que ainda presentes, não teriam poder de decisão
ou condução equânime ao dos militares.
3 “Pela Lei 4725 de 1965, os reajustes – que não poderiam se efetivar em intervalo menor que um ano – seriam
determinados com base no “salário real médio” dos 24 meses anteriores, com o acréscimo de uma taxa que
corresponderia ao “aumento da produtividade nacional” no ano anterior, sendo todos esses cálculos fornecidos pelo
governo.” (SADER, 1995. p. 179).

877
Tal semântica permitia operar pelas brechas deixadas para a atuação dos sindicatos. O discurso
mobilizava as bases de trabalhadores por reinvidicar uma causa considerada justa, a de melhorias
salariais e na qualidade das condições de trabalho; inserindo os reinvindicantes no corpo da nação e
no projeto de desenvolvimento nacional perpetrado pelos militares, e não ao confrotá-lo ou desafiá-
lo. A crítica era feita ao patrão, que auferia lucros inemagináveis enquanto os trabalhadores lutavam
por condições mínimas de subsistência; e não ao governo, ao sistema econômico ou “às autoridades”,
ao que desse qualquer margem para ser interpretado como “subversão”.
Esse tipo de semântica será fundamental na formação e atuação do partido ao longo dos anos,
bem como na formação política de seus principais quadros, incluindo-se aí Luiz Inácio ‘Lula’ da
Silva.

São Paulo: a experiência de governar a maior cidade do país

As eleições de 1988 significaram um dos momentos de maior amadurecimento para o Partido


dos Trabalhadores, tendo eleito 32 prefeitos e prefeitase vendo sua bancada de vereadores saltar de
179 para 992 representantes nacionalmente (SECCO, 2015. p. 129). Contudo, para além dos mais de
12 milhões de votos conquistados, o principal salto qualitativo para o partido foi a experiência de
finalmente4 estar à frente do executivo municipal de cidades com as mais diversas características e
problemáticas, dentre elas redutos importantes e estratégicos, como Santos (SP), Vitória (ES), Angra
dos Reis (RJ), Porto Alegre (RS), Campinas (SP), e a maior cidade da América do Sul, São Paulo
(SP). Era a oportunidade de mostrar que o Partido dos Trabalhadores não servia apenas para fazer
oposição. Que, chegando ao Executivo, seus governantes saberiam o que fazer para resolver os
problemas da população. Era o momento de “deixar de ser pedra e virar vidraça”.

As eleições de 88 em São Paulo começaram conturbadas para o PT antes mesmo das eleições
em si, com o processo de escolha interna de candidatos, como era praxe no partido até então (SADER,
1992. p. 16). Aparentemente, o caminho parecia livre para a escolha de Plínio de Arruda Sampaio

4 É sabido que tanto em 1982 quanto em 1985 o PT conquistou prefeituras como em Diadema (SP) e Fortaleza
(CE), respectivamente (SECCO, 2015. p. 53). Contudo, dada a experiência errática dessas gestões, com constantes
conflitos entre governo e partido, e a eventual expulsão desses governantes do PT, optou-se por não abordar essas
experiências no presente trabalho, por considerar que tais administrações não fazem parte do ciclo de gestões petistas
inovadoras inauguradas em 1989 que proponho analisar.

878
como candidato do partido à prefeitura da capital. Deputado constituinte, de perfil moderado, com
forte ligação com a Igreja Católica, era visto como advogado competente e administrador
experimentado. Plínio era o candidato da Articulação (corrente majoritária do partido) e das direções
partidárias (com o apoio de Lula e José Dirceu, inclusive), que enxergavam em seu perfil moderado
uma candidatura mais propensa a costurar alianças eleitorais mais amplas e a abarcar um eleitorado
médio tradicionalmente não-petista também mais volumoso (Ibidem, p. 104).

Entretanto, apoiada por setores minoritários mais à esquerda da estrutura partidária, lançava-
se candidata a então deputada estadual Luiza Erundina. Mulher, nordestina, assistente social,
vereadora eleita em 1982, e deputada estadual eleita com 35 mil votos em 86 (PATARRA, 1996. p.
26), Luiza Erundina possuia forte apoio nas bases do partido, bem como em movimentos sociais
ligados à luta por terra e moradia. De discurso e perfil mais inflamados, Erundina era de postura mais
radical, defendendo um maior teor de participatividade da população no governo e um movimentismo
da gestão para insuflar essa sociedade civil organizada.

No dia 12 de junho de 1988, após uma série de debates e cobertura inclusive da grande mídia,
com debate televisionado na TV Gazeta e divulgação dos locais de votação pela Folha de S. Paulo
(Ibidem, p. 180), ocorrem as prévias, e, contrariando a vontade e a análise dos dirigentes partidários
de que Plínio seria um candidato com mais chances de ganhar o pleito municipal, Luiza Erundina é
eleita a candidata do Partido dos Trabalhadores para disputar a prefeitura de São Paulo com 54,9%
dos votos (5044 votos), enquanto Plínio Sampaio seria sufragado por 3982 eleitores (43,3% dos
votos) e 168 (1,8%) anulariam ou votariam em branco, quorum considerado surpreendentemente
grande até pelos dirigentes partidários (Ibidem, p. 114; 115).

14 candidatos pleitearam o cargo de prefeito da maior capital do país naquele ano. Sem dúvida,
o mais cotado era o ex-deputado federal, ex-governador biônico e ex-prefeito biônico de São Paulo,
Paulo Maluf, candidato pelo Partido Democrático Social (PDS). João Leiva (PMDB) vinha em
segundo lugar contando com o apoio do governador Orestes Quércia, do mesmo partido. O recém-
fundado PSDB lança o também ex-governador Franco Montoro, seu quadro de maior destaque, que
adoentado, desiste da disputa e tem a candidatura encampada pelo deputado federal José Serra.
Finalmente, Erundina lança-se com o apoio da coligação “Partidos do Povo”, formada pelo PT, PCB
e PC do B.

A 11 dias da eleição, a Folha de S. Paulo divulga pesquisa DataFolha em que Maluf conta
com 28% das intenções de voto, Leiva 21% e Erundina 14%. No dia 8 de novembro, a uma semana
do pleito, nova pesquisa DataFolha mostra aumento da diferença entre Maluf e Leiva, com 28% e
19% das intenções de voto, respectivamente, enquanto Erundina se mantinha com 14%. Contudo, um

879
dia depois da divulgação da pesquisa da “Folha”, um acontecimento contribuiu para o crescimento
da candidata petista: a brutal repressão promovida pelo Exército à greve dos trabalhadores da
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, interior do Rio de Janeiro, vitimando
fatalmente três operários e ferindo outras dezenas. O episódio, conhecido como Massacre da CSN,
gerou comoção nacional e é interpretado como o motivador para o crescimento de diversos candidatos
do PT ligados ao movimento sindical às vésperas das eleições, entre eles Jacó Bittar (Campinas) e a
própria Luiza Erundina (COUTO, 1995. p. 118).

Finalmente, no dia 15 de novembro de 1988, para a surpresa de muitos (inclusive do próprio


PT), “O Brasil fica sabendo que São Paulo, uma das quatro maiores cidades do mundo, com 10
milhões de habitantes, tem, pela primeira vez na história, uma prefeita eleita.” (Ibidem, p. 28). Luiza
Erundina, 53 anos, com 1.534.547 votos (29,8% do total), derrotara Maluf, que obtivera 1.257.480
votos (24,4% do total, 277 mil votos a menos que a primeira colocada).

A surpresa talvez tenha sido tanta, que mesmo durante a festa de comemoração da vitória,
muitos quadros e dirigentes não compareceram. Apesar de incluir São Paulo na lista de cidades em
que o PT tinha chances reais de vencer, setores do partido (Articulação, direções, etc.) não se
entusiasmaram com a escolha de Erundinha em detrimento de Plínio nas prévias, não se envolvendo
ativamente durante boa parte da campanha, aproximando-se somente nas semanas finais, quando a
candidata demonstrava crescer nas pesquisas (KOWARICK; SINGER. 1993. p. 201). Esse
distanciamento geraria atritos posteriores entre partido e gestão, como veremos a seguir.

O desafio de ser governo: assumindo o poder da maior cidade do país

A inesperabilidade da vitória legou muito pouco tempo para comemorações e forçou os


petistas paulistanos a começarem a se organizar em caráter de urgência. Passada a euforia do sucesso,
o choque de realidade era duro: o quadro administrativo e financeiro do município era caótico, tendo
a política de grandes e onerosas obras viárias destinada a setores médios-altos da população
perpetrada pela gestão anterior legado uma herança sabotadora de “política de terra arrasada”,
perfilada no “Dossiê sobre a Administração Jânio Quadros”.

880
Equipamentos públicos deteriorados, estoques zerados, contratos vencidos sem prorrogação,
fornecedores não pagos, salários e tarifas de ônibus corroídos pela inflação e o maior déficit
orçamentário da história de São Paulo (126 bilhões de cruzeiros, equivalente a 45% da receita)
(COUTO, 1995. p. 119; SINGER, 1996. p. 37) eram só algumas das mazelas que a nova equipe
deveria enfrentar para colocar a casa em ordem e só assim começar a pensar em executar seu
programa político.

A inexperiência em governar, especialmente uma cidade dessa envergadura, tampouco


contribuia. Os eleitos possuiam um conjunto de princípios etéreos e abstratos que no geral envolviam
noções como “ampliamento da democracia”, “gestão participativa”, etc., sem uma maior definição
de metas administrativas e mecanismos práticos para enfrentar o estado de calamidade em que a
máquina pública se encontrava. (Idem, 1995. p. 120; 121). Para Emir Sader, muitas das prefeituras
petistas elegeram-se "sem ter desenhado previamente uma estratégia política de como enfrentar os
desafios de governos municipais, nem tampouco dispondo de um diagnóstico da situação de cada
uma dessas prefeituras e os problemas que sua gestão implicava." (SADER, 1992. p. 19). Contudo,
rapidamente a prática iria de encontro a teoria, e a necessidade de pragmatismo sobrepujaria, em um
primeiro momento, o idealismo inicial, gerando alguns dos conflitos anteriormente citados entre
gestão e partido, dos quais destrincharemos melhor agora.

O secretariado de primeiro escalão da prefeita Luiza Erundina seria composto por um quadro
de notáveis, muitos dos quais os melhores técnicos e intelectuais que haviam em suas respectivas
áreas. Nomes como: Paulo Freire (Educação); Marilena Chauí (Cultura); Paul Singer (Planejamento);
Ermínia Maricato (Habitação), Eduardo Jorge (Saúde) e Perseu Abramo (Comunicação), só para citar
alguns. Já os Administradores Regionais eram escolhidos entre candidatos apontados por órgãos
locais (Diretórios Zonais) do PT entre figuras representativas para as suas respectivas comunidades
(sindicalistas, lideranças de bairro, etc.) (Ibidem. p. 34). Visando a descentralização do governo e o
fortalecimentos das ARs – dialogando com a lógica de uma governo mais presente nas distintas
regiões da cidade, estando mais próximo da população; e de incentivar o engajamento dos cidadãos
na vida política de sua localidade –, Erundina reduziria de 33 para 20 o número de ARs herdadas pelo
governo anterior, muitas das quais existiam somente no papel (Ibidem. p. 30; 31).

Contudo, o não contetamento de setores do partido com a formação da equipe de governo


“gerou uma situação organizacional específica, qual seja, uma relação de externalidade entre a
direção partidária e o núcleo central do governo” (COUTO, 1996. p. 130). Os “petistas do partido”
atuariam sob a lógica própria da vida política partidária, preocupados em atender suas bases e suas
ideologias programáticas, usualmente mais radicais, ansiosas e à esquerda; enquanto os “petistas do

881
governo”, sendo diariamente confrotados com os desafios impostos pela realidade material e objetiva
da administração municipal precisam responder muito mais urgentemente à esta lógica própria do
gerir, ainda que permanecessem petistas de facto (Ibidem. p. 131). Esse descompasso, ou ainda, essa
dicotomia, colocará a gestão municipal em um verdadeiro isolacionismo 5 ao longo de seus primeiros
anos de governo, sendo acusados pelas bases e direções do partido, ávidos por atitudes mais políticas
e mais radicais, de administrativismo.

Mais do que uma simples disputa de poder entre alas do partido, a celeuma do
administrativismo mostra um descompasso entre as concepções políticas de distintos setores do PT
(nesse caso, não tanto entre correntes, mas sobretudo entre "técnicos/intelectuais/gestores" e
"políticos/dirigentes"), causada tanto pela inexperiência de governar quanto pela indefinição de certas
diretrizes políticas programáticas (lembremos que, ao final do primeiro ano de mandato em São
Paulo; portanto, data do documento supracitado do DM, o partido existia oficialmente há apenas dez
anos e havia tido poucas experiências de governança).

Na prática de gerir a prefeitura e enfrentar os desafios reais que lhes foram impostos, observa-
se no grupo dos "petistas do governo" uma movimentação ideológica e programática quase
subterrânea, de alteração de concepções táticas e estratégicas, e de superação da perspectiva ortodoxa
da “revolução em dois tempos” (acúmulo de forças e ruptura), que se manifesta no documento “Por
um PT renovado na Capital”, presente nas Teses para o Encontro Municipal/SP, de 1992:

“A partir das vitórias que obtivemos em 1988 em várias prefeituras, este ponto de
vista chegou a um impasse, pois tínhamos responsabilidades governantes em vários
dos principais municípios do país e nada na ordem institucional tinha se alterado.
[...] A maioria do partido, entretanto, foi compreendendo que havia um espaço da
luta pela distribuição de renda, por maior justiça social, pela democratização das
instituições e pela promoção da cidadania que ocorria especificamente na esfera do
município, sem prejuízo do trabalho de oposição aos governos conservadores.”
(COUTO, 1995. p. 185).

Movimento este que tende a ser similar às outras experiências de governança municipal e
estadual do PT nos anos 90. Não tenho capacidade de averiguar ou afirmar empiricamente a influência
ou a correlação direta desses fenômenos 6 ; contudo, essa dinâmica é muito parecida com a que
acontece com o PT à nível nacional, com as consecutivas derrotas de Lula ao candidatar-se à
presidente da República nos anos 90 e o progressivo distanciamento dos grupos dirigentes

5 Isolacionismo este, que principalmente ao largo do ano de 1989, será potencializado: ocorrerá por parte dos
governos estadual e federal (ambos do PMDB), por parte do partido, da oposição, da mídia e por conta das eleições para
presidente (KOWARICK; SINGER. 1993. p. 202).
6 Ou seja, se os atores à nível nacional (nomes como Lula, José Dirceu e José Genoíno) adotaram as
experiências empíricas locais ou se essa mudança se dá graças aos acúmulos pessoais de suas próprias trajetórias.

882
hegemônicos do partido de uma concepção "socialista" para cada vez mais abarcar um reformismo
de vieses sociais-democratas, ainda que notoriamente à esquerda, o que seria sacramentado
posteriormente com a "carta ao povo brasileiro"7 e a eleição de Lula à presidência, ambos em 20028.

Administrativamente, a crise começará a ser enfrentada antes mesmo da tomada de posse. A


futura prefeita, desde a notícia da eleição, tenta deixar claro as dificuldades que serão enfrentadas por
sua gestão: “Herdarei uma dívida muito grande, além do déficit social, e para todas essas batalhas
precisarei de apoio. No meu primeiro ano de governo, quase todo o Orçamento já está comprometido,
terei muito pouca margem de interferência.” (PATARRA, 1996. p. 29). Para o Jornal do Brasil, a
prefeita eleita fala sobre as expectativas em torno de sua gestão e tenta ser realista: “Não tenho ilusões.
Não vou poder atender a todas as expectativas, até porque há falsas expectativas. Por mais que a gente
tentasse não passar e não gerar esperança em demasia, para as massas elas existem.” 9

Em 24 de novembro de 1988, Erundina anuncia que está em preparação um plano de


emergência para os primeiros 100 dias de seu governo (Ibidem. p. 29). Como futuro Secretário de
Planejamento, ficaria a cargo de Paul Singer elaborar o plano. A função do Plano de Emergência ou
Plano dos 100 Dias era manter os serviços e a máquina pública municipal funcionando, evitando que
colapsassem, mesmo em meio ao caos.

Em finais de fevereiro, é publicado manifesto que avalia os primeiros 50 dias da gestão petista
à frente da prefeitura, onde a equipe ataca duramente grupos que, segundo eles, estariam sabotando
o trabalho da administração com árduas e infundadas críticas, especialmente na mídia (PATARRA,
1996. p. 44, 45).

Finalmente, em 9 de abril é divulgado o resultado do Plano de Emergência para a Cidade de


São Paulo, o Plano dos 100 dias. Entre os destaques, a ênfase de que “nenhum serviço de
responsabilidade da Prefeitura entrou em colapso e conseguiu-se afastar o perigo de que algo desta
natureza venha a acontecer.” (Ibidem. p. 48; 49).

7 Documento em que Lula sinaliza à burguesia nacional que não fará mudanças abruptas na política econômica
brasileira caso seja eleito.
8 Sobre isso, ver André Singer, “Os sentidos do lulismo”.
9 “Uma Marxista na terra do capital”. Jornal do Brasil. Caderno especial, p. 10. 20 de nov. de 1988.

883
Elaboração do Orçamento e inversão de prioridades

Mesmo antes da eleição, umas das principais pautas do PT sempre foi a inversão de
prioridades para com a gestão pública (ou seja, priorizar os setores historicamente marginalizados
em detrimento da classe historicamente beneficiada), bem como o intento de democratizar seus
processos de governança. A elaboração do Orçamento é um dos momentos mais importantes de
qualquer prefeitura, visto que é onde se definem prioridades para gastos e investimentos, podendo ser
considerado uma verdadeira manifestação de disputas de interesse e da luta de classes. As prefeituras
petistas de 89 almejavam não só recuperar o caráter democrático da elaboração do Orçamento (há
muito abandonado pelos governos ditatoriais, que impunham ao legislativo as determinações do
poder executivo), como também expandí-lo, incluindo setores da população que normalmente não
têm qualquer poder de decisão, concedendo-lhes voz para suas demandas.

Um primeiro passo para a elaboração do OP (orçamento-programa) é a previsão da receita


para o próximo exercício, o que implica definir a política tributária a ser adotada. No caso de uma
prefeitura, o IPTU (Imposto Pedrial e Territorial Urbano) e o ITBI (Imposto sobre Transmissão de
Bens Imóveis) eram os tributos que melhor poderiam ser reestruturados de acordo com a lógica
adotada pelos petistas de progressividade tributária (Ibidem, p. 111), isentando os contribuintes mais
pobres e aumentando a alíquota para imóveis de luxo, prédios de escritório e grandes terrenos sem
uso (o que significa, se aplicados esses recursos em áreas que beneficiem a população mais
precarizada, intensa distribuição de renda).

A outra face da elaboração da peça orçamentária é a previsão das despesas, e aqui, neste caso,
havia um grande exercício de democratização do processo decisório interno e externo à gestão.

As secretarias que tinham constituído conselhos municipais (Educação, Saúde,


Cultura) os convocavam para contribuir com a formulação do plano de ação do
exercício seguinte. As outras secretarias-fim auscultavam os movimentos e grupos
de interesse ligados a elas. As administrações regionais convocavam reuniões de
moradores por bairros ou conjunto de bairros, chamados de micro-regiões, e
formavam conselhos de representantes locais com a mesma finalidade. O processo
resultava num acúmulo de reinvindicações que naturalmente ultrapassava de longe
os limites de despesa proposto pela Sempla. (Ibidem. p. 113)

Em seguida, realizavam-se reuniões plenárias com as secretarias, visando elaborar uma


contraproposta ao que fora pedido anteriormente e objetivamente não poderia ser atendido. Cada
secretário e presidente de empresa defendia sua pasta, alegando o já exíguo volume de recursos
disponíveis e a vitalidade de seu setor para o sucesso da prefeitura e o bom atendimento da população.

884
Entretanto, por mais que suas defesas fossem legítimas, era imperativo cortar algo. Os secretários de
Finanças e Planejamento ficavam responsáveis por se reunir com cada um dos demais secretários e
suas equipes com o objeto de esmerar suas respectivas propostas, concedendo ao processo um sentido
de homogeneidade, tendo em vista que permitia a esses funcionários do alto escalão ter uma visão
geral de seu próprio governo, conscientes de que eram tratados todos da mesma maneira e do que
acontecia nas pastas geridas por seus colegas. O projeto era finalmente fechado para então ser enviado
para o aval popular.

Aqui se observa uma das características, experiências e aprendizados – ao meu ver – mais
marcantes das gestões petistas da virada dos anos 80 para 90: muito presente desde a gênese do partido
(e mesmo antes, com as CEBs e o Novo Sindicalismo), as concepções de “participação popular” e
“democracia participativa” deram a tônica ao discurso e ao ideário do Partido dos Trabalhadores ao
longo de sua primeira década. Em suas campanhas, programas de governo e mesmo ao assumir a
máquina pública, o partido sempre advogou a inclusão de setores historicamente relegados nos
processos de debate e decisão política. Contudo, acredito que as dificuldades, a complexidade; enfim,
a experiência de ser governo, operaram para que, discursivamente ou na prática, o Partido dos
Trabalhadores se afastasse de uma concepção de democracia participativa para adotar cada vez mais
a lógica de representação política institucional nos marcos e limites do Estado burguês e da
democracia representativa ao longo dos anos 90, como veremos a seguir.

A proposta orçamentária, depois de ter sido polida entre os secretários e demais órgãos de
governo, seria então encaminhada para apreciação e aprovação por parte da população, na forma de
plenárias populares. Essas plenárias tomavam a forma de “audiências públicas”, com a presença de
algum secretário ou representante municipal responsável por traduzir o emaranhado de cifras e
números da proposta orçamentária de forma didática para a população. Transcrevo aqui a descrição
do caráter dessas plenárias feita por Paul Singer pois ela é central para compreender as dificuldades
que teriam contribuído para o PT operar um movimento em sua concepção de participação
democrática:

O caráter das audiências variava bastante, conforme a região da cidade. Na periferia,


o público era numeroso, composto por homens, mulheres e crianças, estas
naturalmente irrequietas e barulhentas, crescendo em agitação a medida que a
assembleia se prolongava. A presença dos movimentos populares era forte:
manifestantes portando cartazes e faixas se postavam em lugares estratégicos do
auditório (geralmente em escolas municipais) e promoviam demonstrações ruidosas
de apoio às reinvindicações formuladas pelos seus porta-vozes quando usavam da
palavra. Também compareciam vereadores petistas ou de partidos aliados, que da
tribuna pronunciavam discursos políticos. O ambiente era um pouco de comício, em
que a oportunidade de participação era mais exaltada do que propriamente
aproveitada.

885
Nas regiões mais centrais da cidade, em que a maioria dos moradores pertencia a
grupos de renda acima da média, não havia quase movimentos populares atuantes, o
que dava às audiências caráter bem diferente: o público era menor, com grande
predominância de adultos, em sua maioria homens. Após as exposições do
administrador regional, que abria e dirigia os trabalhos, e dos secretários, as pessoas
que usavam da palavra tendiam a procurar esclarecimentos adicionais sobre as
questões envolvidas na proposta orçamentária e outras referentes à cidade como um
todo. (Ibidem. p. 120).
Mais do que questões meramente culturais que expliquem as problemáticas de ambos os perfis
das assembleias (dificuldade de sintetizar propostas encaminhativas com um grande e eufórico
público, falta de participação dos setores médios), há também razões objetivas: enquanto para os
recortes mais abastados não há uma maior dependência para com os serviços públicos, tendo em vista
que eles podem buscar esses serviços nas redes privadas; para os setores mais populares, a carência
por esses serviços era uma questão de subsistência imediata e concreta, e a disputa e conclamação
por estes beirava o desespero. (Ibidem. p. 120). Para Singer, “No que se refere à participação popular
propriamente na elaboração do plano de governo via orçamento, as audiências deixavam muito a
desejar.” (Ibidem. p. 120). Pretendia-se que a população pudesse contribuir com a definição de
prioridades para a cidade como um todo, no entanto, os imperativos materiais e imediatos levavam
esses membros da sociedade civil organizada a disputarem com outros grupos que sociologicamente
também integram uma “classe trabalhadora precarizada” de acordo com seus interesses e
necessidades setoriais e regionais (melhorias em seu bairro em detrimento de outros, reformas em um
determinado aparelho em detrimento de melhorias em outros tipos de serviço, etc.). Era preciso
transcender o local e o setorial, nas palavras de Luiza Erundina.

Singer conclui:

Agora, reanalisando o processo, suspeito que a participação se dava realmente no


processo de formulação da proposta, em seu início, quando secretários e
administradores regionais formulavam, em contato estreito com os movimentos
populares setoriais e locais ou regionais, suas propostas para o orçamento, lutando
depois para preservá-las ao máximo de cortes (Ibidem. p. 121).

Ou seja, havia participação popular, mas de maneira indireta.

Novamente, é difícil provar a relação de causa e efeito dos fenômenos (entendendo-se que
viradas programáticas tenderiam a vir de cima, de grandes quadros e dirigentes nacionais, inspirados
por experiências empíricas de governança), mas imagino que haja respaldo histórico para inferir que
essas primeiras experiências de implementar foros de participação popular em gestões petistas de
finais dos 80 e início dos 90 podem ao menos ter influenciado o paulatino enfoque do partido nas
disputas institucionais-eleitorais de consquista do Estado, se afastando, discursiva ou efetivamente,
cada vez mais de uma concepção de democracia radicalmente participativa, sem, no entanto,
abandonar completamente a defesa da necessidade de um aumento da participação popular na vida

886
politica, ainda que essa defesa se faça de maneira etérea ou calcada nos postulados de participação
assegurados por uma democracia liberal burguesa, cristalizada na Carta Constitucional de 1988.

O Projeto “Tarifa Zero” e a municipalização do transporte público

Talvez a pauta mais ousada e mais marcante de toda a gestão de Erundina tenha sido o projeto
da Tarifa Zero nos ônibus públicos municipais.

O principal argumento favorável à Tarifa Zero era de que se daria uma sensível distribuição
de renda caso se aplicasse um carga tributária mais pesada sobre os mais ricos e as empresas
capitalistas e se utilizasse essas receitas para financiar um serviço vital, que beneficia
transversalmente amplos setores da população, que consome parcela considerável do orçamento
familiar da classe trabalhadora e que, apesar do consequente acréscimo nos custos operacionais (com
a necessidade de aumento da frota por conta do número ascendente de passageiros, etc.), haveria
também algumas economias, como a redução paulatina no número de cobradores (que tenderiam a
serem reciclados em motoristas) e com gastos na área contábil. Sistemas de Tarifa Zero tendem a
dinamizar a vida e a economia das cidades, gerando fluxos intra-urbanos mais intensos, levando a
população a gastar o excedente economizado com passagens na economia local, além de democratizar
o acesso à cidade e aos seus aparelhos públicos, permitindo um uso mais uniforme destes por cidadãos
de diferentes áreas do município (especialmente das periferias) e evitando que a prefeitura tenha que
realizar maiores gastos levando esses serviços para todas as áreas da cidade.

Apesar da razoázel campanha e mobilização popular, o projeto de lei da tarifa zero fora
engavetado, bem como a verba destinada ao subsídio do transporte coletivo no OP-91 fora cortada.
Todavia, as alíquotas referentes ao IPTU foram elevadas, embora não tanto quanto o solicitado pelo
Executivo, graças a um racha no bloco oposicionista, motivado em parte pela pressão da opinião
pública.

Uma alternativa ao projeto de Tarifa Zero foi a proposta de municipalização do transporte


coletivo. À época, apenas 30% do sistema era operado pela CMTC, enquanto os outros 70% eram
subcontratados à 33 empresas privadas. O que ocorria era uma descompasso na rentabilidade do
transporte de passageiros por quilômetro percorrido, já que, em áreas mais centrais, os passageiros

887
tendem a realizar pequenos trajetos, e as linhas carregam várias vezes a sua lotação em uma única
viagem, devido à demanda; enquanto em áreas mais afastadas do centro, a maioria dos passageiros
permanece no veículo até a parada final, fazendo com que a linha transportasse no máximo uma vez
a sua capacidade total. O sistema de tarifa única adotado, em detrimento da cobrança de tarifa por
seções, era fixado acima do custo médio de operação das linhas da periferia, evitando que elas
falissem, mas, em contrapartida, auferiam sobrelucros notáveis às empresas que operam na área
central, em um sistema de subsídio cruzado em que o usuário da rede nas áreas centrais paga uma
parte do valor para manter as outras linhas.

Mas na aurora de 1991, o projeto foi retomado, e em maio deste ano, após árdua disputa, com
séria resistência das empresas permissionárias que detinham as áreas mais lucrativas em abrirem mão
dos seus privilégios, foi aprovada a lei 11.037, que regia a municipalização do transporte público na
cidade de São Paulo. No novo modelo, a prefeitura pagaria às empresas privadas o custo total do
serviço prestado de fato pela sua frota e pessoal, calculado da seguinte maneira: a) 80% do pagamento
em relação à distância percorrida; e b) somente 20% em relação ao número de passageiros
transportados. O percentual maior na quilometragem incentivava os empresários a aumentarem a
oferta de ônibus, mantendo maior quantidade de carros na rua, e evitando que superlotassem os
veículos, como era praticado anteriormente. Dessa maneira, a prefeitura tinha maior liberdade para
subsidiar a tarifa globalmente, o que não era possível no sistema anterior, tendo em vista que somente
a CMTC poderia ser subsidiada, enquanto as demais empresas eram remuneradas pela receita
tarifária. (Ibidem, p. 158). A luta pela municipalização do transporte público consumiu mais de três
quartos da gestão de Luiza Erundina, e foi muito provavelmente o seu maior embate e sua maior
vitória.

Finalmente, no dia do aniversário da cidade do último ano de mandato, a prefeita


pode entregar à cidade mil novos ônibus, que formaram gigantesco cortejo
anunciador de que talvez o pior problema para os moradores pobres de São Paulo
estivesse sendo solucionado. No final daquele ano, a frota total de ônibus em
operação havia passado de 8000 (nível em que permanecia há 15 anos) para 10300.
(Ibidem, p. 157).

Os resultados se fizeram notar rapidamente: a lotação média no horário de pico caiu de 10


para 6,67 passageiros por metro quadrado, e de 12 para menos de 7 na zona sul da cidade, onde o
problema era mais pungente. 43 novas linhas foram criadas nesse último ano de governo (18 no
primeiro semestre, 25 no último), diminuindo o tempo de espera por ônibus nos pontos da cidade.
(Ibidem, p. 157). Entretanto, o modelo não durou muito. O sucessor de Erundina, Paulo Maluf,
desmontou rapidamente o sistema de municipalização, tendo em vista os grupos e interesses que o
apoiavam e aos quais era atrelado orgânicamente.

888
Conclusão:

Nas eleições de 1992, o candidato do PT, Eduardo Suplicy, seria derrotado por Paulo Maluf,
o que significou um golpe mortal a muitas das políticas e à filosofia de gestão e governança
implementadas em São Paulo entre 89 e 92. Contudo, se considerarmos os esforços e a materialização
de uma série de políticas que visavam o alargamento da participação popular na experiência
democrática e a inversão de prioridades do uso da máquina pública de modo a governar
verdadeiramente para todos, podemos considerar a primeira experiência de gestão municipal petista
à frente da prefeitura de São Paulo não só como um exemplo de prática de governança progressista
responsável ou de foco tático-estratégico na conquista e gestão do poder local, mas também como
tendo sido um sucesso em sua derrota.

Bibliografia:

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Companhia das Letras, 2012.
SINGER, Paul. “Um governo de esquerda para todos: Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo
(1989-1992)”. São Paulo: Brasiliense, 1996.

889
Medo, Culpa e Morte: A Peste Negra e a Salvação Purgatorial
Fear, Guilt and Death: The Black Death and Purgatory Salvation

Gabriel Pires da Silva1

Resumo: O objetivo desse trabalho é problematizar a incidência da Peste Negra sobre a morte. O
ponto de partida para a análise é contrastar a morte familiarizada e naturalizada no momento anterior
à pestança a partir da leitura de Guilherme Marechal ou o melhor cavalheiro do mundo com a
desarticulação do teatro da morte na peste. Busca-se ainda, em paralelo à morte, analisar os
sentimentos de medo e culpa nesse contexto tendo o Purgatório como espaço de salvação futura e de
um imaginário que possibilita a interpretação do evento de 1348 dentro da escatologia.
Palavras-Chave: Peste Negra, Morte e Purgatório.

Abstract:The objective of this work is to discuss the relationship between the Black Plague and
death. The starting point for the analysis is to contrast the familiar and naturalized death previously
of the pestilence based on the reading of Guilherme Marechal or the world’s best gentleman with the
desarticulation of the plague’s death. It searches yet, paralleling to the death, to analise the fear and
guilty in this context having the Purgatory as a space of future salvation and an imaginary that makes
possible the interpretation of the XIV century event inside scatology.

Keywords: Black Plague, death e Purgatory.

INTRODUÇÃO:

Busca-se nesse trabalho analisar a morte em dois momentos. A morte de Guilherme Marechal2
como um retrato da boa morte e como personagem do teatro da morte em contraste com um segundo
momento dentro da relação entre homem e morte, momento essa da Peste Negra. A boa morte na
pestança é desarticula e o teatro é reorganizado, onde as peças desse cenário são novamente dispostas.
Se no momento que antecede a Peste a morte é familiar e naturalizada entre os homens, na incidência
de 1348 o fim da vida passa agora a ser uma personagem de transtorno e temor. Assim, nesse contexto
onde o óbito é uma constante, o Purgatório, que emerge em meio aos homens no século XII, oferece
um espaço dentro dos reinos do Além para a expiação dos pecados a partir de uma promessa de
salvação futura, o Paraíso. Não somente, o Purgatório oferece ainda uma interpretação para o referido
evento, o qual passa a ser tomado como estabelecido por Deus com a finalidade de eliminar os
pecados da humanidade e, a partir disso, leva-los aos Céus.

1
Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. (Piresvr95@hotmail.com)
2
DUBY, Georges. Guilherme Marechal: Ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1987.

890
A ARTE DO BEM MORRER

Em Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo3, Georges Duby discorre


sobre a morte princispeca. O autor desenvolve nesse trabalho uma analise da morte de Guilherme
Marechal, homem que em seu tempo destacou-se, sendo reconhecido entre as cortes da Inglaterra e
França, próximo de reis e casado com uma das mulheres de maior herança em seu tempo, assim,
homem de notoriedade, de posse e mando sobre grandes terras e homens, a partir disso, não poderia
tomar sua morte como exemplar para toda a população, visto sua posição e classe social. Assim, a
análise desse trabalho possibilita o conhecimento acerca da vida e morte da nobreza.
O que devemos pensar para esse momento é a familiaridade da morte. Um bom
exemplo para isso é o cemitério. Diferente de nossos dias, o cemitério confunde-se com a praça
pública, ambientes que tomamos como quase antagônicos, sendo nesse período um ambiente de
sociabilização. Como desenvolve Philippe Àries 4 , o cemitério nesse momento é um espaço de
interação social de ordem econômica, como trocas comerciais, de relações interpessoais, como
relações afetivas, e jurídicas, como julgamentos e leitura de sentenças. O homem, desta maneira, não
repele a morte por essa não possuir ainda um semblante que lhe causa pânico e angústia, mas que é
cândida e possibilita oportunidade de ingresso na pós-morte.
A morte é um momento da vida do cristão desse período que é aguardada, espera-se por ela,
se é sabido quando sua visita está próxima. O homem espera-a e enquanto aguarda ritualiza-a. A
morte é ponto nevrálgico, um período teatral, é ápice em que se renasce para uma nova vida, é instante
em que se decide o destino, em que pesasse suas ações, seus pecados, suas faltas, mas também seus
atos de valor. É nesse momento em que encontraremos o defunto valendo-se de seus laços de
solidariedade, laço esse que transpassará as relações sanguíneas ou não. E, seguindo o que fora dito
acima, a morte é familiar. Essa familiaridade da morte faz-se presente à medida que ela se manifesta
com antecedência ao sujeito que está a morrer que, no caso do Marechal são dois meses.
A ritualística que precede a morte, não bastando para o instante fatídico, requer uma
série de atos. O primeiro momento de morte, o primeiro ato, consiste no despojamento do corpo.
Renunciar-se-á ao corpo, as honrarias do mundo, aos deveres públicos, tudo o que poderia alongar a
estadia na terra, isto é, tudo o que poderia fazer com que se demorasse a chegar-se ao Paraíso, segundo
seu desejo; o homem, portanto, busca antecipar a própria morte.

3
Idem
4
ARIÈS, Philippe. O Homem diante da Morte. São Paulo. Editora Unesp, 2014.

891
A segunda cena desse ato consiste na divisão dos bens. Nesse momento, embora o agonizante
seja condutor da teatralidade esse se vê limitado pelas responsabilidades que pairam sobre a relação
entre morte e dinheiro, ora que deve transmiti-lo aos que lhe têm direito. O Marechal, o morto
princispeco, deve anunciar, dentro das regras da primogenitura, os desejos sobre sua fortuna e bens.
O próximo momento compõe-se pela entrega da alma. Anuncia suas vontades de forma pública,
confiando-as, ainda assim, a um texto escrito. Entre as partes que se divide, encontra-se ainda aquela
que é direcionada pelo moribundo aos clérigos. A finalidade dessa consideração no momento de
repartição dos bens consiste em beneficiar-se da oração desses homens para o momento de sua morte
e de sua influência sobre a misericórdia divina quando o morto for à Julgamento. É interessante notar
que, entre os séculos XII e XIII, o testamento é um ato religioso imposto pela Igreja e que, a isso
fazer, a mesma interfere na relação culpa e penitencia do sujeito, uma vez que a descrição de seus
desejos confere uma premissa para o enterro ou na igreja ou no cemitério.5 A Igreja, não somente,
como demonstra Cláudia Rodrigues6, à medida que um testamenteiro, para fins de seu ofício, vai de
encontro ao moribundo em seu leito de morte, o qual podemos tomar tal personagem como envolvido
por uma sensibilidade acentuada por sua proximidade com a morte e buscando agenciar benéficos
para o sua vida no Além-túmulo, promove nesse, em benefício à Igreja, partes de suas riquezas, o que
beneficiou-a sendo “um dos mecanismos principais do sustento financeiro do aparelho eclesiástico”7.
Outra forma que o moribundo encontrava como oportunidade de conquistar benefícios para sua
morte ainda vivo era a filiação a uma ordem monástica. No final do século XII muitos fidalgos
filiavam-se a essas ordens, porém, a integração era feita de fato apenas no momento em que a morte
estava à espreita. O artificio de vincular-se de forma plena no momento que precede a morte possui
a finalidade de conceder maior notoriedade ao defunto, isto é, dar-lhe maior valor e prestígio que o
coloque em consideração maior e em melhor qualidade quando for à julgamento; sendo feito no
momento da morte, no entanto, não requer a renuncia da vida social ou aos seus prazeres, como à
mulher, assim como faz Guilherme Marechal.
O Marechal, após longos dois meses em que a casa rejubila-se por conta do seu teatro
mortuário, de fato encontra a morte, e isso faz não sem um anuncio prévio, sem um eloquente
discurso: “Estou morrendo. Confio-vos todos a Deus. Não posso me defender da morte”8. O teatro,
no entanto, não é encerrado nesse momento em que a vida esvai-se. Como anunciado pelo próprio

5
Ibidem
6
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na Cristandade Ocidental. Revista Brasileira de História das Religiões.
N.15. Maringá. Disponível em: <http://dhi.uem.br/gtreligiao/html>. Acesso em: 01 set, 2017.
7
Idem
8
DUBY, Georges. Guilherme Marechal: Ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1987. p

892
Marechal em vida, se é feito um banquete, festeja-se, ora que, um bom morto há de dar banquete aos
pobres, diferente do que fizera Henrique II da Inglaterra, rei que não dera de comer em sua morte.
Conforme os usos, o Marechal agora na condição de morto preside um banquete de
encerramento, na posição de dono da casa, do senhor, que nunca inspira tanto amor como quando
distribui pão e vinho, além de roupas e esmolas. Ele dissera isso ao herdeiro: quer que cem pobres
sejam acolhidos e comam até se fartarem, Comam e bebam com ele. Ou melhor, por ele. Pois é bem
essa função que cabe a tais ágapes póstumas: a alma do morto precisa que os vivos orem por ela e
comilança posterior ao enterro pode ser vista como o salário dessas orações, talvez até mesmo, mais
profundamente, como o equivalente delas.
A presença do morto é mantida ainda que esse tenha encontrado o fim. Ao presidir o banquete,
no qual expressa-se o futuro, individual e cadavérico de todos os sujeitos. Reafirma a moral a dar ao
momento da morte uma aura de finitude em que o próximo estágio é a equação dos pecados no
momento do Julgamento Final, do qual sairá à sentença para o Além-túmulo. Ainda assim, mesmo
que nossa personagem seja expressão da boa morte e que tenha angariado orações de clérigos que
influenciaram a misericórdia divina, o mesmo deve ainda angariar outras formas de auxilio, o que se
faz através de uma relação e solidariedade entre vivos e mortos.

A MORTE DOMADA E O LUTO

Como projetamos com Guilherme Marechal, a boa morte, a morte de si mesmo, é


envolvida por interdições as quais conduzem o moribundo, a partir do momento em que esse toma
ciência de seu falecimento futuro, a ter uma relação para com esse evento de forma refinada e contida.
Não somente, a partir disso requer-se ainda uma série de atos que delongam-se para depois de seu
óbito, como o banquete oferecido aos pobres como forma da manifestação de sua riqueza, prestígio,
poder e ainda como forma de colher benefícios em caridade no momento de seu julgamento.
Se para o moribundo o seu ”processo mortuário” fora algo feito de forma tranquila, contida e
domada, se assim seguirmos Philippe Àries9, a morte era para o terceiro individuo fardo árduo, de
tamanho ímpeto que o assolava de tal forma que, visto não haver interdições de transgressão, levava
ao sobrevivente a reações um tanto surpreendentes quando comparada a morte domada. Quando
Roncesvales morre Carlos Magno “abraça o corpo, segura-o entre as mãos, desfalece sobre ele, a tal

9
ARIÈS, Philippe. O Homem diante da Morte. São Paulo. Editora Unesp, 2014.

893
ponto a angústia o oprime”10, levando-o ainda a sofrer um segundo desmaio. Morre-se de tristeza.
“Que cena histérica de todos esses valentes que choram, jogam-se por terra e desmaiam, arrancam a
barba e os cabelos, rasgam as vestes!”11. Essa outra personagem, além da morte e do morto, participa
do teatro da morte com uma tonalidade que foge a aura de tranquilidade e familiaridade que paira
sobre as outras duas. É de se ver que tal é marcado por um sentimento acalorado, uma angústia
sublime que o leva a um estado emocional e psicológico que abala suas estruturas, fazendo-o a
cometer atos de histeria. Os adjacentes, os que observam a encenação do luto, maravilham-se com o
reflexo do amor e do carinho. Era habitual que comportasse-se de tal maneira, mesmo que tais gestos
não fossem institucionalizados. Eram meios de apaziguar os sentimentos de exacerbada
preponderância que assolava o sobrevivente, dando a esse meio de sobrevivência pela perda.

A PESTE RECAI SOBRE A MORTE

“(…) uma peste entre homens de todas as condições, de qualquer idade e sexo, que
começavam a cuspir sangue e morriam alguns subitamente, alguns em dois ou três
dias, e outros demoravam mais a morrer. E aconteceu que que cuidasse do doente,
pegando a doença ou, infectado por aquela mesma corrupção, tornava-se
rapidamente doente e morria do mesmo modo; a muitos inchava a virilha, e a muitos
sob as axilas à direita e à esquerda, e a outros em outras partes do corpo, [de modo]
que se podia geralmente encontrar um inchaço singular em algum lugar do corpo
infectado”12.

O evento de 1348, que faz da Europa um campo de mortos, tem, por consequência disso, resultado
sobre diversos aspectos sociais, no entanto, no que nos interessa, a Peste Negra é responsável por
alterar a religiosidade, a escatologia e o ciclo natural da vida, o enterro dos pais pelos filhos. A partir
de Tamara Quirico13, que se dispõe a analisar tais transformações, os sujeitos tomam dois caminhos.
Os primeiros, extasiados por um sentimento de descrença, entregam-se aos prazeres da vida e a não
observação de dogmas e responsabilidades religiosas. Outros, porém, alienados por uma busca por
salvação, passam a compor formas de religiosidades coletivas, como as procissões, manifestações
essas que partem do prisma de uma compreensão de responsabilidade coletiva sobre a pestança.

10
Idem
11
Idem
12
VILLANI, M. Cronica. Con la continuazione di Filippo Villani, volume I (org. Giuseppe Porta). Parma:
Fondazione Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1995, p. 09. apud QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e Escatologia: os efeitos da
expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV. Disponível em <
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4217154.pdf.> Acesso em: 03 de agosto de 2017. p. 3
13
Referenciar aqui?

894
Devemos pontuar ainda que tais estados, de descrença e de ânsia sobre a salvação, são motivados
ainda por uma conjuntura em que muitos religiosos, homens que entregam-se ao ofício divino, são
assolados pela peste, o que intensifica uma sensação de insegurança e de temor, e interfere
diretamente nos ritos funerários que são empreitados por um clérigo, visto que na falta de grande
número desses, os sobreviventes encontram-se sobrecarregados.

Esses dois estados, onde um olhara para a salvação como algo inacessível e o outro
como algo que requer grande intensidade religiosa, será intensificada por uma
conjuntura em que assolará também religiosos, o que fara desses escassos e, entre os
que sobrevivem, sobrecarregados, o que interfere diretamente no exercício da
atividade religiosa. “[...] acontecia de dois padres que partiam com uma multidão
para enterrar alguém serem alcançados por três ou quatro [...] enquanto os padres
acreditavam ter um corpo para sepultar, descobriam-se com seis, oito ou mesmo
mais”14.

A morte não olhará para preceitos sociais, relações de classe, gênero ou idade, fazendo-se
incidir também sobre o ciclo natural da vida, o que seria o enterro dos pais pelos filhos. Um
interessante relato desse quadro é do cronista sienense Agnolo de Tura:

Eu, Agnolo di Tura, conhecido por il Grasso, enterrei meus cinco filhinhos com
minhas mãos (…); e não havia quem chorasse algum morto, uma vez que cada um
esperava a [própria] morte”. “Cronaca senese attribuita ad Agnolo di Tura del Grasso
detta La cronaca maggiore [1300-1351]”. 15

O homem deparar-se-á com a morte e isso ocasionará uma apatia perante a essa, visto que o
ciclo da vida fora alterado, enterrava-se os filhos, restando esperar apenas sua própria morte. Os
sentimentos de Agnolo podem piorar ainda se supormos haver a possibilidade desse ter enterrado
seus pais e esposa. Restava-lhe, portanto, esperar a morte. Em meio a tamanho caos o homem
encontrava-se sem esperanças, tanto de resistir à doença como a uma salvação pós-morte. A peste,
dessa forma, não imperava sobre o homem apenas em seu aspecto biológico e físico, a doença
propriamente dita, mas no psicológico desse sujeito, fazendo o apático quanto à vida e salvação. Em
meio a angústia, a dor e sofrimento, buscou-se manifestações de religiosidade coletiva, como já dito,
mas para tais meios interpretou-se antes o evento da pestança como estabelecido por Deus para a

14
QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e Escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV.
Paraíso, Purgatório e Inferno: a religiosidade na Idade Média Disponível em <
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4217154.pdf.> Acesso em: 03 de agosto de 2017.
15
LISINI, A. e IACOMETTI, F. (org.). Rerum Italicarum sciptores. Cronache senesi, XV, 6,1, 1931-37, p. 555 apud
QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e Escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV.
Disponível em < https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4217154.pdf.> Acesso em: 03 de agosto de 2017. p. 4

895
Purgação da sociedade, assim como demonstra Mario Jorge da Motta Bastos16, o que logo remonta a
uma noção de pecado coletivo, os quais seriam a usura, a sodomia e heresia.

PURGATÓRIO E PESTE NEGRA

No século XII encontramos, após um longo processo de germinação como analisado por Le
Goff17, a emersão do Purgatório como um espaço concreto entre os reinos do Além. Como demonstra
o autor, a sociedade da baixa Idade Média passa no correr desse século por um processo de
transformação, de ordem urbana, intelectual e religiosa. Há nesse momento a expansão de um
imaginário binário e antagônico, como Deus/Diabo, Inferno/Paraíso, para uma lógica ternária, do qual
esse terceiro lugar, como denomina Lutero, fará parte. No entanto, o mesmo não é produto dessas
transformações mentais, mas sim participante dessa transformação.
O pecado será reavaliado, o qual será interpretado a partir da ótica da ignorância,
passando a se buscar a intencionalidade do pecador. À culpa oriunda desses pecados é dada a
possibilidade de remissão pela contrição, que passa a estar no lugar do castigo, e pela confissão que
atuará na culpabilidade do indivíduo, tanto por retirar dele um ônus de pecados ao permitir expor tais
a outrem e por esse atuar diretamente na sua salvação através da possibilidade de absolvição ou
castigo que leve-o a esse fim.
Importante elemento que irá compor a lógica purgatorial e que faz parte dessa
transformação intelectual, moral e mental da baixa Idade Média, será a transformação das categorias
intelectuais compostas por Santo Agostinho, que pensa a humanidade em quatro grupos: os
totalmente maus, os medianamente maus, os totalmente bons e os medianamente bons. Nesse
momento, os dois grupos do centro, os medianos maus e bons, serão aproximados, o que será movido
por uma ânsia de justiça que estará acalorada nesse momento. Tem-se, assim, a composição de uma
mentalidade ternária, onde não somente os reinos do Além passarão ao número de três, mas como a
própria sociedade que estará agrupada em meio a nobres, clérigos e camponeses.18
Entre Inferno e Paraíso emerge agora o Purgatório. Esse espaço de Purgação, embora tenha
em seu fim o Paraíso, mantem ainda semelhança com o Inferno, ao manter penalizações como pelo
fogo, o qual passa a ser vinculado a expiação dos pecados e faltas que permitirão ascensão das almas

16
BASTOS, Mario Jorge da Motta. O Poder nos Tempos da Peste. Portugal – séculos XIV/XVI. Niterói. Editora da UFF,
2009.
17
LE GOFFE, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
18
Idem

896
aos reinos de Deus. Dessa forma, o Purgatório possibilita um maior fôlego ao cristão para a salvação
que antes se via em meio a dois caminhos. Não somente, a peste passa a ser interpretada como um
evento de purgação, tal que seria estabelecido por Deus a salvação de seus filhos e filhas

ENTRE O PECADO E A CULPA

A morte é momento de grande efervescência, portanto, a mesma remete a uma serie


de sentimentos, como quanto ao Julgamento, ao destino dado ao corpo após a morte e aos reinos do
Além. A morte é, dessa forma, medida de temor uma vez que remete á vida posterior o óbito e a tudo
o que isso interfere. Esses sentimentos, tendo base Quirico, são formados pelo medo do pós-morte,
do destino que se teria nas terras de além-túmulo e a culpa seria originária a partir do pecado que ter-
se-ia cometido em vida e, através de uma equação que se faria tendo base a quantidade e a qualidade
desses pecados.19
A chave para a compreensão das reações ao surto de peste parece, com efeito, residir não
apenas no medo da morte iminente, mas especialmente no sentimento de culpa que parece ter se
abatido sobre uma parcela considerável da população; esse sentimento, por sua vez, aumentaria
também o medo da morte. Medo e culpa, portanto, podem ser considerados como duas faces de uma
única moeda, unidas pelo receio do julgamento pos-mortem.
Dessa forma, a “boa morte” é perdida com a peste, ao menos incide com grande força sobre
as camadas médias e baixas:

Parentes [doentes] eram cuidados como se fossem cães. Jogavam a comida e a bebida
na cama e depois fugiam de casa. Finalmente, quando morriam, camponeses fortes
vinham das montanhas da Provença, miseráveis e pobres e sujos, chamados gavots
[coveiros]. Pelo menos, em troca de um bom pagamento, carregavam o corpo para o
sepultamento. Nenhum parente ou amigo mostrava preocupação com relação ao que
pudesse estar acontecendo. Nenhum padre vinha ouvir a confissão do moribundo ou
administrar-lhe os sacramentos.20

Vemos assim, um contraste entre uma morte domada21, que precede o momento da
grande mortandade do século XIV, com uma morte que nesse momento encontra-se fora do controle

19
QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e Escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV.
Paraíso, Purgatório e Inferno: a religiosidade na Idade Média Disponível em <
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4217154.pdf.> Acesso em: 03 de agosto de 2017.
20
Idem
21
ARIES, Philippe. História da Morte no Ocidente. Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012.

897
do sujeito que está a morrer. Um interessante material que levou-me a refletir sobre tal relação, é o
de Judith Herrera Cabello. Segundo a autora, a representação da morte passa por dois momentos
dentro da cristandade ocidental. Se na Alta Idade Média a morte é representada a partir de uma relação
teológica, como Herrera demonstra ao fazer uso do Códice de Uta, em que a personagem está aos pés
do Cristo Crucificado como uma figura patética e vulnerável, como um personagem “pequeno,
grotesco e de barba [...] débil perante Deus. [...] derrotada por um conceito de fé.”22 A mesma não
mais assim se encontrará na baixa Idade Média. A morte se levanta preenchida de força e poder, o
que decorre da mortandade do século XIV, desvencilhada do Cristo Vitorioso e não fazendo
distinções entre os sujeitos que ela penaliza. A morte então deixa de ser domada, perante o homem e
Deus, transformando-se em uma personagem de grande destaque a partir do século XIV.

CONCLUSÃO

A grande mortandade que assolou o continente Europeu fora responsável por


reorganizar a relação entre os personagens do teatro da morte. Se num primeiro momento, o qual
precede a pestança, encontro uma morte ritualizada e domada, como vimos sobre a representatividade
de Guilherme Marechal, momento esse que, segundo Judith Herrera seria período em que a morte
estaria personificada na forma de um ser bestial e peludo, fraca e submissa à vitória do Cristo
Crucificado, a peste traria uma reorganização de todo essa paisagem. A morte encontra-se livre dos
pés do Cristo, não mais subjugada a uma concepção de fé, como um segundo personagem de ordem
menor, a partir de 1348. Essa encontra-se agora livre de tal simbolismo, emergindo em meio ao caos
e colocando-se forte e como personagem principal em meio a homens e mulheres, jovens e idosos,
entre laicos e clérigos e entre ricos e pobres.
O Purgatório, que surge em meio aos homens no século XII em decorrência de grandes
transformações no cenário urbano, religioso e social, consiste em um ambiente que, apesar das dores
e dos sofrimentos do processo purgatorial, traz par ao homem a possibilidade de salvação, mesmo
esse sendo pecador. Não somente, será nesse terceiro lugar, que a sociedade da baixa Idade Média
terá o seu referencial ao compor uma interpretação do evento. Esse será tomado como instituído por
Deus com a finalidade de expiar os pecados, os quais serão interpretados a partir de uma leitura

22
HERRERA CABELLO, Judith. “La imagineria de la muerte em la Baja Edad Media”. Revista Historias del Orbis
Terrarrum, Anejos de Estudios Clásicos, Medievales y Renacentistas, ISSN 0718-7246, vol. 12, Santiago, 2016, pp.38-
61 p48

898
coletiva dos mesmos, para a salvação da humanidade. Deus é, dessa forma, visto como um se
benevolente e encoleirado para com a humanidade, visto que através da dor e do castigo busca a
salvação de seus filhos e filhas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. O Homem diante da Morte. São Paulo. Editora Unesp, 2014.
ARIES, Philippe. História da Morte no Ocidente. Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro:
Saraiva, 2012.
BASTOS, Mario Jorge da Motta. O Poder nos Tempos da Peste. Portugal – séculos XIV/XVI.
Niterói. Editora da UFF, 2009.
DUBY, Georges. Guilherme Marechal: Ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1987.
HERRERA CABELLO, Judith. “La imagineria de la muerte em la Baja Edad Media”. Revista
Historias del Orbis Terrarrum, Anejos de Estudios Clásicos, Medievales y Renacentistas, ISSN
0718-7246, vol. 12, Santiago, 2016, pp.38-61
LE GOFFE, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na Cristandade Ocidental. Revista Brasileira de História
das Religiões. N.15. Maringá. Disponível em: <http://dhi.uem.br/gtreligiao/html>. Acesso em: 01 set,
2017.
QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e Escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a
religiosidade do século XIV. Paraíso, Purgatório e Inferno: a religiosidade na Idade Média
Disponível em < https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4217154.pdf.> Acesso em: 03 de agosto
de 2017.

899
O ensino da História através da Lei 11.645 e o reconhecimento da identidade entre
estudantes de escolas públicas na zona oeste do Rio de Janeiro.

Gabriel Tirre Moreira1

Resumo: O trabalho tem como objeto de estudo a Lei 11.645/2008 que trata da obrigatoriedade do
estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena em escolas públicas e privadas nos anos do
ensino fundamental e médio. Para coleta de dados, foram aplicados dois questionários: um junto aos
professores de escolas municipais e estaduais, com o objetivo de identificar o conhecimento dos
docentes sobre o texto da lei; e junto aos alunos e alunas, foi aplicado outro questionário para
identificar se eles sentem-se pardos ou negros e pertencentes às etnias afrodescendentes ou indígenas.
A partir dos dados obtidos pode-se articular que a lei e a prática do ensino de História ainda caminham
separadas e, além disso, notar como a maioria os discentes não se reconhecem como afrodescendentes
e indígenas, embora número expressivo deles seja classificado socialmente como negro ou pardo.

Palavras-chave: A Lei 11.645/2008. Identidade étnica-racial. Reconhecimento.

Abstract: This present article objects the study of the Law 11.645/2008, from Brazil government,
wich talks about the obligation to study the history of Afro-Brazilian culture and indigenous in public
and private schools, from middle to high schoolers. Two questionnaires were applied: one to the
teachers from these schools were was possible to observe the knowledge from them about de
respective law; with the students another questionnaire was developed to identify if they consider
themselves as black or brown skin-colored and belonging to the Africa and/or indigenous
descendants. From those notes is was concluded that the respective law and the History taught in the
schools are walking separately and, beyond that, to notice how the students do not recognize
themselves as African and indigenous descendants even though they are socially classified as brown
or black skin-colored.

INTRODUÇÃO

A figura do docente surge para o Estado, para a sociedade e também para os alunos e alunas
como sendo capaz de superar os problemas de ordem estrutural (unidades escolares deterioradas, falta
de material didático, assim como a falta de mesas e cadeiras); de ordem individual (leva em
consideração os fatores históricos e sociais que afetam em seu comportamento); e de ordem
comunitária (relaciona o contexto e os espaço em que se desenvolvem as relações entre os
indivíduos). Sobre os docentes recai a responsabilidade de formar um cidadão condizente com as
regras de comportamento socialmente aceitas.
A garantia da liberdade precisa ser o aspecto central para o desenvolvimento e a escola pública
seria o espaço propicio para o jovem negro dialogar com seu entorno e se reconhecer como sujeito

1
Aluno de graduação do curso de Ciências Sociais da UERJ. E-mail: gabriel.tirre@gmail.com

900
social. O modelo da escola pública no município do Rio de Janeiro oferece programas de escolaridade
mínima e obrigatória (exigências nem sempre cumpridas) que por vezes limitam as liberdades
individuais.
A Lei 11.645 foi sancionada em 2008 pelo ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da
Silva foi criada para alterar a Lei de nº 10.639 de 2003. O novo texto tornava obrigatório o estudo da
história e cultura afro-brasileira e indígena com o intuito destacar a contribuição desses grupos para
a formação da população brasileira, resgatando suas lutas, elementos da cultura, aspectos econômicos
e políticos. Destinada aos docentes de História, Geografia, Arte e Português-Literatura, a Lei visa
resgatar aspectos dessas duas etnias e promover a igualdade étnico-racial.
A discussão do tema é pertinente uma vez que a existência da Lei de Diretrizes e Bases (LDB
9394/96) e a inclusão dos estudos sobre história e cultura africana (Lei 10.639/2003) não foram
elementos suficientes para que a formalidade da legislação ganhasse espaço nas salas de aula. A Lei
11.645/2008 tornou obrigatório o estudo sobre os povos indígenas, mas é necessário aprofundar o
debate e se perguntar: a) os docentes conhecem a lei e reconhecem sua necessidade?; b) há material
disponível nas escolas públicas que possibilite realizar estas discussões?; c) a lei é aplicada?; d) de
que forma os debates sobre povos negros e indígenas chegam aos estudantes?; e) os discentes sentem-
se reconhecidos como integrantes daqueles grupos étnicos-raciais?

METODOLOGIA

Com o objetivo de identificar o reconhecimento da Lei pelos docentes que atuam nas
disciplinas de História, Geografia, Língua Portuguesa-Literatura e Arte, estes foram questionados da
seguinte forma:
Questão 1- Você conhece a Lei 11.645 de 2008?
Questão 2- Como você aplica os estudos sobre povos africanos e povos indígenas
em suas contribuições para a formação da sociedade brasileira?
Questão 3- Seus alunos da escola pública, maioria de pardos e negros, reconhecem
as contribuições desses grupos étnicos para o seu cotidiano?

Embora o objetivo inicial da pesquisa seja tratar o ensino da disciplina de História, as


perguntas foram feitas com dezenove professores da rede pública (rede municipal e rede estadual de
ensino) de escolas localizadas na zona oeste do Rio de Janeiro. O questionário contou com a
participação de seis docentes de Língua Portuguesa-Literatura, sete docentes de Geografia e seis

901
docentes de História. A disciplina de Artes não é ministrada em todas as escolas, logo, nenhum
professor dessa área foi questionado.
Já com os alunos e alunas da Escola Municipal Marechal Pedro Cavalcanti, localizada no
bairro de Paciência – zona oeste do Rio de Janeiro, foi realizado um questionário com uma turma de
7º ano, uma de 8º ano e duas do 9º ano do ensino fundamental. Participaram do questionário 109
discentes e a eles e elas foi perguntado:
Questão 1- Você se considera... ( ) branco ( ) pardo ( ) negro ( ) indígena
Questão 1.1- Caso tenha afirmado ser negro ou pardo, aponte quais desses elementos
você considera uma forma de valorizar a cultura afrodescendente:
( ) a música pop ( ) o funk ( ) o samba ( ) o cabelo crespo
( ) a religião ( ) pela roupa ( ) cor da pele
Você já foi vítima de racismo? ( ) sim ( ) não
Questão 2- Você acha que seus professores de Português/Literatura, História e
Geografia conseguem discutir questões étnico-raciais (o valor do povo negro e
indígena na formação da sociedade brasileira) em sala de aula? ( ) sim ( ) não
A escola é um espaço onde se discute o racismo? ( ) nunca ( ) as vezes ( ) sempre

Dentro da mesma Escola foi obtido o número total de estudantes regularmente matriculados
em 19 de setembro do ano de 2017. Diante destas informações será possível relacionar o número de
alunos e alunas que se identificam com determinado grupo social comparando às descrições étnico-
raciais feitas no instante da matrícula do discente.

OS DESAFIOS EDUCACIONAIS

Longos são os debates no campo da Sociologia e da Pedagogia que tratam da escola como um
espaço justo e eficiente, capaz de permitir aos alunos e alunas oportunidades iguais. O modelo de
escola de massas, que embora tenha “elevado o nível de escolarização de toda a população e o número
dos que terminam o colegial tenha sido multiplicado por dez nos últimos cinquenta anos, as diferenças
entre os grupos não foram sensivelmente reduzidas nesse mesmo período” (Dubet, 2004).
A análise teórica sobre a escola meritocrática de massas na França em muito se assemelha ao
modelo educacional vigente no Brasil. A eficiência das escolas públicas brasileiras - a análise se
restringe a rede municipal e estadual do Rio de Janeiro - atinge majoritariamente as camadas mais
pobres da população em razão da obrigatoriedade do ensino de crianças a partir dos 4 (quatro) anos
de idade até 17 (dezessete) anos de idade. A Lei 12.796/2013 torna o ensino obrigatório, mas não
consegue mensurar a qualidade do ensino ofertado, tampouco a eficácia do que foi transmitido para
os alunos e alunas.

902
Está formado, portanto, um grande dilema: os alunos e alunas regularmente matriculados na
escola pública têm acesso a um ensino de qualidade que os possibilite concorrer em condições iguais
com indivíduos da mesma idade que estão diante de outras realidades? Nesse sentido, é valido pensar
que “o sistema justo, ou menos injusto, não é o que reduz as desigualdades entre os melhores e os
mais fracos, mas o que garante aquisições e competências vistas como elementares para os alunos
menos bons e menos favorecidos” (Dubet, 2004).
Retornando na história brasileira através dos levantamentos realizados pelo IBGE ao longo
dos últimos 50 anos é possível observar que “na população entre 12 e 15 anos, quase 90% dos jovens
que entraram no sistema educacional completaram 4 anos de estudo em 2010, ao passo que esta
proporção era de pouco mais de 20% em 1960” (Ribeiro, Ceneviva e de Brito, 2015). A análise dos
dados estatísticos permite identificar um aumento considerável no número de jovens que completam
o ensino fundamental, entretanto, a discussão aqui proposta é pensar se essa ampliação na oferta do
ensino está associada a garantia iguais de condições a todos os envolvidos. A ampliação percentual
do número de jovens matriculados não pode ser tratada como a melhor solução para pensar as
desigualdades e os desafios educacionais.
Outros fatores devem ser considerados quando se propõe uma discussão sobre o acesso
à escola, a permanência no ambiente escolar, a progressão no ensino e respeito da qualidade do ensino
ofertado, já que
os efeitos da escolaridade da mãe, da renda per capita familiar e de características
sociais do ambiente familiar evidenciam que nos últimos cinquenta anos a origem
social dos jovens brasileiros teve forte impacto na sua trajetória educacional, seja em
termos de acesso ou de progressão no sistema educacional. (Arretche, 2015).

As análises que podem ser feitas demonstram que houve ampliação no acesso ao ensino da
pré-escola, ensino fundamental e ensino médio, além da oferta de material didático, transporte e
alimentação. Os ganhos, nesse sentido, demonstram ser inegáveis. A Lei de Diretrizes e Bases foi
gradativamente sendo aplicada pelas esferas federal, estadual e municipal visando garantir condições
mínimas de escolaridade, entretanto, a necessidade de novas legislações demonstram que durante esse
percurso histórico a qualidade da educação ofertada aos alunos da rede pública não esteve condizente
com a ampliação das vagas.

A LEI 11.645 PELOS DOCENTES

903
A rede municipal do Rio de Janeiro possuía em julho de 2017 um total de 654.949 alunos
matriculados2, sendo 149.556 os alunos do 2º segmento (aqueles compreendidos entre o 6º e 9º anos
do ensino fundamental). Ainda de acordo com os números oficiais da Sercetaria Municipal de
Educação (SME), 269 escolas atendem esse total de alunos, o que resulta em aproximadamente 556
alunos por escola. As análises estatísticas quando confrontadas com os depoimentos dos professores
demonstram algumas peculiaridades que aqui receberão devida atenção.
Os docentes que responderam ao
Gráfico 1 - Conhecimento da
questionário proposto atuam na rede Lei 11.645/2008
municipal e também em escolas de outros
segmentos ou mesmo em outras redes. 16%
Sim
Conforme os dados indicam no Gráfico 1, o
21% Não
equivalente a 74% dos professores dizem 63% Parcialmente
conhecer a Lei em sua totalidade ou
parcialmente. Os números indicam um
aspecto positivo: mesmo diante de uma rotina desgastante em sala de aula, além do fato de precisarem
trabalhar em mais de uma escola, os docentes demonstraram conhecer a lei.
Dos dezenove professores que responderam ao questionário apenas três (equivalente a 15,7%
do total) citaram os livros didáticos, ou seja, a ampliação do número de vagas não resolve o problema
se os professores não tiverem acesso a livros didáticos onde possam fazer referências às questões
culturais, econômicas, sociais e políticas das populações negras e índias. Nesse sentido, “torna-se
necessário refletir até que ponto as culturas oriundas dos grupos subordinados na sociedade (...)
poderão vir a ser objeto de investigação e constituir-se na prática educativa dos professores”
(Munanga, 2005).
Dos professores que destacaram a importância do livro didático houve a preocupação de
indicar que o material que chega para os alunos e alunas da rede municipal precisa ser revisto, a fim
de que eventuais incoerências teóricas sejam alvo de reflexão junto aos discentes. A ausência ou o
pouco espaço nos livros didáticos às figuras negras ou indígenas dá origem ao fenômeno da
invisibilidade que por consequência pode produzir comportamentos de auto-rejeição e conduzir ao
não reconhecimento.
Nesse sentido, “o livro didático pode ser um veículo de expansão de estereótipos não
percebidos pelo professor” (Munanga, 2005) o que pode afirmar a ideologia do branqueamento, já
que o material oficial entregue aos jovens não destaca as contribuições desses povos e os indivíduos

2
Dados oficiais obtidos através da página oficial da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros>.

904
pardos, negros ou indígenas não se aproximam e não se reconhecem com nenhuma daquelas figuras
destacadas. Os estereótipos são produtores de preconceitos que por sua vez promovem a exclusão, a
estigmatização e a baixa autoestima do grupo estigmatizado.
Um segundo aspecto que merece destaque a partir das observações feitas pelos professores é
a adequação da Lei ao cotidiano dos alunos. Através dos relatos feitos pelos docentes foi possível
identificar que a preocupação restringe-se geralmente à transmissão do conteúdo de maneira teórica,
sem que a teoria se transforme em vivência ou que essa teoria seja notada pelos alunos de uma forma
mais prática.
Somente a partir do instante em que os professores adequarem o discurso a formas mais
adequadas aos contextos dos alunos que “poderemos partir para iniciativas concretas, desenvolvendo
projetos pedagógicos juntamente com a comunidade negra, com as ONG’s e com os movimentos
sociais” (Munanga, 2005). A prática de ensino que conduza os alunos e alunas afrodescendentes ou
indígenas a reflexões quanto ao seu espaço seu e papel na sociedade concretiza-se através de
culminâncias como Dia do Índio e Dia da Consciência Negra.
A realização de eventos com essas finalidades foi descrita por apenas três professores
(equivalente a 15,7% do total), o que significa que a transmissão do conhecimento pelos docentes
limita-se a exemplos em sala de aula. A organização de trabalhos em conjunto com outras disciplinas
possibilita novas experiências e oferece oportunidades, ampliando o saber dos alunos e alunas,
fazendo com que consigam enxergar as questões étnico-raciais como uma luta que não está apenas
na teoria da sala ou dos livros didáticos. Para os alunos brancos ou que não se sentem reconhecidos
como integrantes a estes grupos segregados, esta se torna uma oportunidade de refletir, discutir e
quebrar paradigmas.
Um terceiro aspecto que também precisa ser destacado é a atenção dada pelos docentes às
temáticas indígenas. Dos dezoito entrevistados, a metade fez referência as lutas e contribuições dos
povos indígenas para a formação da sociedade brasileira nos mais diferentes aspectos (social, cultural,
religioso, econômico, linguístico e racial). O que chama atenção diante deste número expressivo é
que nenhum dos professores diz tratar o tema dentro das disputas contemporâneas: as lutas por
demarcação de terras indígenas, por exemplo, não foi um tema destacado pelos docentes.
É preciso mais do que discussões teóricas a respeito das contribuições históricas desses grupos
étnico-raciais. Torna-se urgente adequar o discurso a realidade em que os alunos e as alunas estão
inseridos para que os problemas tornem-se reais, pois somente assim os discentes conseguirão
reconhecer que alguns daqueles problemas também interferem no seu cotidiano. Tanto assim é que,
quando os docentes foram questionados sobre o reconhecimento dos alunos e alunas sobre as
contribuições, todos disseram que os discentes não se reconhecem ou só conseguem associar-se às

905
temáticas após amplos debates. A teoria precisa estar associada aos trabalhos práticos para que o
senso comum seja ultrapassado.

O ENSINO DE HISTÓRIA

Debates étnico-raciais têm ganhado força nos recentes anos no meio acadêmico e através dos
movimentos sociais, principalmente quando se referem aos grupos afrodescendentes. A mobilização
em torno desse tema vem ganhando espaço (ainda insuficiente) gradativamente graças ao esforço dos
grupos mobilizados, mas os debates em torno da importância histórica dos indígenas são limitados.
A Lei 11.645 veio exatamente para incluir essa temática como obrigatória por que, conforme foi
possível identificar pelos depoimentos, os professores destacam apenas o processo de formação
social, os ataques de que foram alvos, a dominação europeia e as lendas.
Entre os professores de História que participaram do questionário foi possível identificar que,
entre eles, está nítido como o racismo se mantém presente em sala de aula e no espaço escolar. O
livro didático foi apontado como um dos problemas a ser contornado: em primeiro lugar porque a
escola recebe o material em um ano e este serve para os dois anos seguintes (o livro se deteriora ou
simplesmente some na mudança do ano letivo); depois porque o livro normalmente traz as figuras do
negro e do índio associadas (elementos subalternos) aos brancos; e por último porque o livro didático,
ainda muito atrelado ao ensino da História Ocidental, oferece poucos elementos de povos pré-
cabralianos ou africanos.
Quando os docentes foram questionados sobre a aplicabilidade da Lei junto aos estudantes,
alguns procuraram demonstrar conteúdo-domínio sobre o assunto ao descrever de forma minuciosa
em que instante e em qual série eles tratam dos temas étnico-raciais. Desarticular o conteúdo teórico
do livro não se mostra uma prática recorrente entre os docentes, uma vez que é através dos fatos
históricos que se pretende descrever e discutir o que é o racismo. Apenas uma professora disse ser
necessário não se restringir ao livro didático e tampouco ao tempo cronológico – algo comum nas
escolas de ensino fundamental.
Os docentes indicam que majoritariamente os alunos não conseguem se reconhecer como
pardos ou negros e isso se deve, segundo admitem, também a falta de preparação-formação acadêmica
para esse intuito. Além deste problema descrito, os docentes também apontam a influência que os
alunos sofrem do meio social (segundo indicam, afirmador deste discurso racista), do pouco tempo
disponível que tem para trabalhar temáticas complexas (mostra-se necessário uma continuidade no

906
estudo) associado ao currículo de História que exige do professor e dos discentes, além da própria
estrutura escolar que devido à precariedade de material dificulta reprodução de materiais para os
estudantes.
Os inúmeros problemas com os quais se deparam os estudantes (falta de material, defasagem
série-idade, falta de apoio familiar aos estudos e desinteresse) acabam somados à pouca
representatividade de questões étnico-raciais trabalhadas em sala de aula pelos professores de História
em uma escola parda-negra3. O ensino da disciplina de História não é capaz de apontar os equívocos
históricos contra essas raças, porque ela ainda se mantém crítica (no discurso) e muito pouco efetiva
(faltam projetos práticos). A aplicação de projetos ou culminância de discussões a respeito do tema
ampliaram os debates, mas teoria e práticas restringem-se à sala de aula e às aulas expositivas.

A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DOS ESTUDANTES

O questionário foi aplicado a 109 alunos e alunas da Escola Municipal Marechal Pedro
Cavalcanti, em Paciência: as questões foram respondidas após uma explicação breve quanto ao seu
objetivo, além de ter sido pedido aos estudantes que não conversassem durante o preenchimento das
respostas (era importante que demonstrassem sua opinião sobre o tema). A idade dos alunos varia
entre 12 e 16 anos, o que pode levar alguns a preencherem sem a necessária seriedade que o assunto
demanda.
Para efeito de análise dos dados, o questionário será divido em dois grupos: no Bloco 1 estão
as respostas de uma turma de 7º e uma turma de 8º ano, já no Bloco 2 estão as respostas de duas
turmas do 9º ano. Apesar das respostas se aproximarem, a Questão 1.1.b- Você já foi vítima de
racismo? pode levar a aproximações importantes.
Quando foram interrogados quanto a sua raça-etnia (Questão 1) os estudantes responderam
da seguinte maneira:
Gráfico 2- Você se considera...
(turma de 7º e 8º ano)
2%
Branco

23% 29% Pardo


Negro
46%
Indígena

3
Dados oficiais (set./2017) da Escola Municipal Marechal Pedro Cavalcanti identificaram que dos 978 estudantes 58%
foram declarados na matrícula como pardos; 26% como brancos; 9% não definidos; e 7% como negros.

907
Gráfico 3- Você se considera...
(turmas de 9º ano)
3% 12%
Branco
Pardo
39%
46% Negro
Indígena

A partir dos dados coletados pode-se notar que a maioria dos estudantes se reconhece como
pardo ou negro, demonstrando assim que as discussões teóricas afirmadas pelos professores se
mostrou relevante. Comparativamente aos dados oficiais da Escola é possível notar uma proximidade
entre os números de pardos, mas quanto ao número de negros uma disparidade se apresenta: entre os
109 estudantes que responderam ao questionário 31,1% se declararam como negros, enquanto na
ficha cadastral desses alunos e alunas, apenas 7% foram definidos como negros.
O reconhecimento étnico-racial dos estudantes como pertencentes aos grupos segregados
merece destaque, mas quando estes são questionados se já foram vítimas ou não de racismo (Questão
1.1) isso confirma o mito da democracia racial4 descrito por Florestan Fernandes quando afirma que
na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a
integração gradativa da ‘população de cor’, fecharam-se todas as portas que
poderiam colocar o negro e o mulato na área dos benefícios diretos do processo de
democratização dos direitos e garantias sociais. (...) Em nome de uma igualdade
perfeita no futuro, acorrentava-se o ‘homem de cor’ aos grilhões invisíveis de seu
passado, a uma condição subhumana de existência e uma disfarçada servidão eterna.
(Fernandes, 2008)

Nesse sentido, o mito da democracia racial5 é apontado por Fernandes como uma das formas
de explicar a integração do negro na sociedade e a resposta dos estudantes pode ser um elemento
importante para pensar como o mito foi “imposto de cima para baixo, como algo essencial à
respeitabilidade do brasileiro, ao funcionamento normal das instituições e ao equilíbrio da ordem
nacional, aquele mito acabou caracterizando a ideologia racial brasileira” (Fernandes, 2008).

4
Expressão usada por Florestan Fernandes para se referir as produções teóricas de final do XIX e início do XX que
tentavam explicar a formação do povo brasileiro a partir do encontro racial (branco, índio e negro) e a partir da
miscigenação elaborar uma identidade brasileira onde esses grupos vivem em estado de harmonia. Em Gilberto Freyre
pode-se identificar elementos formadores do mito, quando aponta que devido a falta de gente o português precisou se
misturar e isso formou um povo miscigenado “contra o que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas
preconceitos religiosos” (Freyre, 2006).

908
Gráfico 4- Vítima de racismo Gráfico 5- Vítima de racismo
(turma de 7º e 8º ano) (turmas de 9º ano)

22% Sim 40% Sim

78% Não 60% Não

Conforme indicam os gráficos acima, a maioria dos alunos e alunas responderam nunca terem
sido vítimas de racismo, entretanto, Durkheim aponta que “a pressão exercida pelo grupo social sobre
cada um de seus membros nãos permite aos indivíduos julgar com liberdade noções que a própria
sociedade elaborou, e em que colocou qualquer coisa de sua personalidade” (Durkheim apud
Rodrigues, 2000, p.202). A partir desta observação é possível compreender melhor as informações
apresentadas nos Gráficos 4 e 5: os estudantes vivem em um meio que os faz pensar que o racismo
não existe.
O que pode surgir como alento é o fato um número maior de estudantes do Bloco 2 terem
reconhecido ser vítima de racismo. Alunos e alunas de turmas do 9º ano (mais velhos) e teoricamente
mais críticos e politizados talvez tenham conseguido perceber que o racismo contra eles é diário, seja
no cotidiano ou dentro da escola. Quando responderam se os professores discutem as questões étnico-
raciais, 96 alunos e alunas (equivalente a 86% das respostas) afirmaram que os debates acontecem,
mas identificar o momento que as práticas racistas acontecem ainda é tarefa bastante árdua.
Ao mesmo tempo em que destacaram na Questão 2 que os professores discutem sobre
questões étnico-raciais sobre negros e índios, quando responderam a Questão 2.a, 88 estudantes
(equivalente a 81% das respostas) afirmaram que às vezes o tema é abordado. É possível compreender
da análise dessas duas respostas que a escola promove a discussão, mas limita-se à teoria (ninguém
destacou algum projeto que tenha realizado na escola ao longo do tempo de estudo no ensino
fundamental).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os caminhos seguidos pela educação brasileira mostram-se mais sinuosos a cada dia. Embora
não afete de maneira direta e imediata a educação pública ofertada no âmbito do município do Rio
de Janeiro, a Lei 13.415/2017 sancionada pelo presidente Michel Temer pode afetar os estudantes

909
brasileiros, uma vez que não obriga o ensino de disciplinas como arte, sociologia e filosofia no ensino
médio. Alterando o texto original da LDB essa legislação provavelmente irá contribuir para a
manutenção do mito da democracia racial.
Conforme já destacado, a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.645/2008 precisaram existir para que os
debates em torno do ensino da cultura e história de povos negros e indígenas fossem obrigatórios,
entretanto, com a sanção desta nova Lei e consequentemente a redução nos debates sociológicos e
filosóficos, estes temas continuarão à margem do conteúdo obrigatório e oficial promovido pelo
Estado6.
Outro elemento que merece grande destaque na Lei 13.415/2017 refere-se aqueles que terão
a incumbência de transmitir o conhecimento. A alteração do Artigo 44 da LDB trata dos profissionais
com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar
conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por
titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública
ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado. (Brasil, 2017)

A partir do momento em que a legislação não obriga que os docentes sejam devidamente
formados nas áreas de conhecimento que ministram aulas, isso permite pensar que profissionais
“afins” poderão exercer a mesma atividade. Desta forma, fica evidente a tentativa da Lei em garantir
um ensino básico e superficial, identificando as escolas “(...) enquanto instrumentos estruturados e
estruturantes de comunicação e de conhecimento que os <sistemas simbólicos> cumprem a sua
função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação” (Bourdier, 1989).
Os mesmos alunos e alunas que se disseram negros, pardos ou indígenas se identificaram
como pertencentes a essas raças-etnias, mas não conseguem enxergar diante de si as diversas maneiras
como o racismo se manifesta. A formulação teórica que afirmava ser o Brasil uma verdadeira
democracia racial tende a ganhar ainda mais força porque com menos debates a tendência é que haja
menos conscientização, menos identificação e por consequência menos reconhecimento dos
estudantes com as questões étnico-raciais.
Portanto, o papel da escola e dos professores em geral, e mais especificamente dos docentes
de História, torna-se cada vez mais difícil. As dificuldades que se apresentam são enormes, mas é
preciso adequação dos conteúdos à realidade dos alunos e alunas; é importante também ampliar os
debates e articulá-los aos movimentos sociais que fazem as demandas desses grupos segregados
manterem-se vivas; e é imprescindível que o ensino da História seja baseado na teoria, mas chegue à
prática, à vivência.

6
Segundo dados educacionais organizados pelo movimento Todos pela Educação as diferenças sociais, educacionais e
de oferta de trabalho ainda se mantém presentes no Brasil. Conforme indicam os dados a taxa de analfabetismo é de
11,2% entre os pretos; 11,1% entre os pardos; e 5% entre os brancos.

910
O cenário educacional, político e as realidades sociais estão postos, mas cabe aos atores sociais
envolvidos (escola, professores, estudantes negros e indígenas ou não, responsáveis, sociedade civil
e Estado) superar os obstáculos e tentar reduzir as diferenças entre as raças-etnias. A atuação de um
ou outro grupo de forma isolada promove críticas, debates, mas não resolve o problema em sua
estrutura.

REFERÊNCIAS

-BOURDIER, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989.


-BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dez. de 1996. Lei de Diretrizes e Bases. Brasília, DF, dez. 1996.
-BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de jan. de 2003. História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília, DF, jan.
2003.
-BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de mar. de 2008. História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Brasília, DF, mar. 2008.
-BRASIL. Lei nº 12.796, de 04 de abril de 2013. Brasília, DF, mar. 2008.
-BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Brasília, DF, fev. 2017.
-DA SILVA, Ana Célia. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA,
Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª edição revisada. Brasília: Ministério da
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
-DUBET, François. O que é uma escola justa? Cadernos de Pesquisa, v.34, n.123, p.539-555, set./dez.
2004.
-FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes – volume 1: Ensaio de
interpretação sociológica. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008.
-FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 51ª Ed. São Paulo: Global Editora, 2006.
-RIBEIRO, Carlos Costa; CENEVIVA, Ricardo; e DE BRITO, Murilo Alves. Estratificação
educacional entre jovens no Brasil: 1960 a 2010. In: ARRETCHE, Marta (org.). Trajetórias das
desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp,
CEM, 2015.
-RODRIGUES, José Albertino (org.). Émile Durkheim: Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Ática,
1993.
-SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO – SME. Educação em números, 2017. Disponível
em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros>. Acesso em 23/09/2017

911
A Era Meiji e a Resposta Nipônica ao Imperialismo Ocidental1

Gabriella Carvalho de Oliveira2

Resumo: O objetivo deste estudo, é propor uma análise acerca da importância da Era Meiji para a
construção do Japão moderno a partir da resposta nipônica dada ao imperialismo ocidental. Além
disso, busca-se compreender também as heranças deixadas pelo período ao Japão contemporâneo que
conhecemos em contínuo desenvolvimento. Por meio do estudo sistemático da historiografia, bem
como das fontes existentes para recorte temporal escolhido, esta análise se concentrará principalmente
nos aspectos da política interna e externa e socioeconômicos desde a era moderna até a formação do
Japão contemporâneo, assim como sua interação progressiva com o restante do mundo, seja com sua
parcela oriental ou ocidental.

Palavras-chave: Era Meiji; Política; Imperialismo.

Abstract: The aim of this study is to propose an analysis about the Meiji Era for the construction of
modern Japan from the Japanese response given to Western imperialism. In addition, we seek to
understand also the legacies left by the period to contemporary Japan, as we know, in continuous
development. Through the systematic study of historiography, as well as existing sources for
temporary clipping chosen, this analysis will focus mainly on aspects of internal and external policy
and economic since the modern era until the formation of the contemporary Japan, as well as your
progressive interaction with the rest of the world, either with your Eastern or Western portion.

Key-words: Meiji Era; Policy; Imperialism.

1. Introdução

Como seres humanos, tendemos a pensar que o mundo termina em nós mesmos. Desta forma,
tudo aquilo que é exótico e foge aos padrões de cada mundo criado individualmente, imediatamente
desperta grande curiosidade.
Quando se trata da parcela oriental do planeta, essa curiosidade se intensifica ainda mais. O
interesse pelo diferente nos motiva a desbravar cada vez mais profundamente o que nos intriga. Marco
Polo foi um dos pioneiros a registrar suas viagens à Ásia, descrevendo-a com grande fantasia, o que
ajudou a reforçar por muito tempo, uma imagem caricata do extremo oriente. A mesma lógica aos
dias de hoje se aplica, uma vez que os estereótipos orientais foram exaustivamente reforçados por

1
Trabalho apresentado na XII Semana de História Política – Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Outubro de 2017.
2
Graduanda em História pela Universidade de Brasília, e-mail: gabicarvalho79@gmail.com. Este trabalho foi
apoiado financeiramente pelo Departamento de História da Universidade de Brasília

912
relatos posteriores. Contudo, examinar o oriente de perto, se faz necessário, mostrando um outro lado
– mais próximo do real – do que realmente são e como se constituíram as culturas orientais, cada uma
com sua singularidade, é claro.
Desta forma, analisarei um dos períodos mais importantes da história do Japão, deixando de
lado os estereótipos e buscando alcançar certo nível de compreensão de como se deu o início do
período moderno no arquipélago nipônico, a partir da chegada dos ocidentais.
A partir da segunda metade do século XIX, a Europa enfrentava uma nova fase de
consolidação do capitalismo. Desta forma, essas nações europeias conquistavam e impunham seus
interesses, modo de vida e cultura aos países não europeus em todo o globo terrestre, sejam eles
orientais ou ocidentais. Tudo isso dentro do contexto imperialista e neocolonialista experimentado
pela Europa à época. Em resposta a eventos ocorridos em outras regiões da Ásia, principalmente na
China desde a Guerra do Ópio e também no próprio Japão, surge a Era Meiji como forma de
resistência à expansão econômica e política do imperialismo do ocidente. Uma série de reformas
estruturais foi feita, afetando os diversos estratos sociais e consequentemente, transformando
fortemente o império japonês.
O império nipônico que havia se fechado para o restante do mundo por mais de dois séculos
passou a reabrir-se a partir de 1853, de forma gradual pelas próximas duas décadas. O arquipélago,
deixou de lado o isolamento para nunca mais retomá-lo e de igual forma para nunca mais retirar-se
do papel de um dos protagonistas do mundo.
Sendo assim, a Era Meiji se constitui como o coração do período que transformou radical e
profundamente as estruturas de um império, construído sob os pilares de uma tradição milenar,
associados a um longo processo de estruturação de uma nova ordem social, econômica e política.

2. O imperialismo chega ao Extremo Oriente

A segunda parcela do século XIX, foi marcada fortemente pelo neocolonialismo empreendido
pela Europa, bem como pela consolidação do capitalismo e expansão do imperialismo, onde
testemunhamos a subjugação de regiões consideradas atrasadas, essencialmente dos continentes
Africano e Asiático. Tal período ficou conhecido pelo que Eric Hobsbawm define como a Era dos
Impérios.
O imperialismo por si só, caracterizava a repartição do mundo dentre o domínio das então
potências capitalistas, bem como a espoliação desses territórios. A Europa enxergou no oriente uma

913
nova possibilidade de mercado, pronto para atender às suas demandas por matéria-prima e mão-de-
obra bem como para receber a expansão e consolidação do capitalismo.
Um dos casos de dominação empreendidos pela Europa ao continente asiático e que nos cabe
analisar, é o caso da China dos Qing. Forçados pelo imperialismo a abrir seus mercados, a China
adentra um período de tentativas de resistência à dominação inglesa que por sua vez, atinge seu ápice
nas Guerras do Ópio, causadas pela tentativa de proibição do comércio do ópio por parte do governo
chinês, uma vez que a droga afetava a produção e consequentemente a economia do país. Essa
experiência de dominação, bem como a resistência chinesa foram fatores determinantes – mas não
exclusivos – para o esfacelamento do Império do Meio.
Com o fim da Primeira Guerra do Ópio, através do Tratado de Nanquim, a Grã-Bretanha
inaugura os chamados “tratados desiguais” obrigando a China a abrir-se plenamente ao ocidente. O
segundo tratado – o Tratado de Tanjin – veio após o fim da Segunda Guerra do Ópio, reforçando a
ideia de superioridade inglesa, fragmentando o poder chinês que já se encontrava relativamente fraco.
A partir daí as demais potências europeias passam a reivindicar as mesmas oportunidades que
foram dadas aos ingleses, incluindo o direito de extraterritorialidade garantido pelo tratado de
Nanquim. A China, incapaz de fazer frente às potências ocidentais, não vê outra alternativa a não ser
permitir cada vez mais a penetração ocidental em seu território. Sendo assim, o país adentra o século
XX, da pior forma possível, mergulhada em um quadro de insurreições populares e guerras civis que
se arrastaram desde meados do século XIX.
Embora não se possa atribuir o enfraquecimento da China apenas à invasão ocidental, este foi
fator determinante para “um desastre tão completo e destruidor que seria difícil descrevê-lo em sua
amplitude” (FAIRBANK&GOLDMAN, 1992), ainda segundo os autores “três temas dominaram a
experiência chinesa do século XIX – as rebeliões internas, a invasão estrangeira e os esforços da elite
dominante para controlar ambos e preservar sua dominação” ((FAIRBANK&GOLDMAN, 1992).

3. Pressões Internacionais

O período que antecede a modernidade Japonesa é frequentemente comparado ao feudalismo


europeu, onde dinastias detém a posse de terras ao passo que há camponeses em uma relação de
dependência senhorial. Até aqui o modelo dos shogunatos japoneses em quase nada difere do
feudalismo europeu, contudo, no caso japonês, um elemento fundamental nessa organização é a figura
do samurai, responsável por defender as terras de seu senhor (shogun).

914
A última dinastia – a dos Tokugawa – perseverou muito para conseguir a unificação do
território e consolidação de sua legitimidade. Esse período de legitimidade coincide com o período
de isolamento do Japão, estrangeiros passaram a ser proibidos de adentrar o território sob pena de
morte caso o fizessem. Assim, o Japão permaneceu fechado para o mundo por mais de dois séculos.
Na transição do século XVIII para o XIX, com a chegada do imperialismo ao extremo oriente,
principalmente na China, e os tratados desiguais assinados após as Guerras do Ópio a disputa das
potências pelos mercados orientais expandiu-se por toda a Ásia. Sendo assim, o arquipélago nipônico
não encontrou outra alternativa a não ser passar a se abrir para o ocidente de forma gradual com a
chegada das esquadras norte-americanas do Comodoro Perry.
Logo após a chegada dos ocidentais, o regime dos Shogunatos encontrou seu fim. À primeira
vista, faz-se parecer que a chegada do imperialismo deu fim à ordem antes existente, todavia, o regime
Tokugawa já se encontrava em crise anos antes do ultimado norte-americano para reabertura
comercial, sendo assim o último pingo d’água para que o copo transbordasse:

“O Japão já vinha passando por transformações envolvendo problemas de


arrecadação de impostos e revoltas camponesas. O regime do xogunato já estava
desgastado e passava por uma crise de sucessão, o que só se agravou com a chegada
da esquadra estadunidense. ” (CRÉ e col. 2011)

Após uma forte rebelião daqueles que estavam descontentes com o regime, o poder imperial foi
restaurado em 1868, dando início ao período que nos interessa, conhecido como a Era Meiji.

4. A Era Meiji Transforma o Japão

Com o desmoronamento do Shogunato e o assentamento do período Meiji, instaurou-se um


novo governo – imperial – que tinha objetivos bastante esclarecidos. O alastramento dos ocidentais
no país a esse ponto era irreversível e também não interessava ao governo Meiji que o pudesse ser
feito. Agora, mais do que nunca, o objetivo central era a modernização das estruturas econômicas,
políticas e sociais. Desta forma, o Japão viu no ocidente a janela de oportunidade necessária para
alcançar sua própria modernização. A ordem do dia se tornara a ocidentalização sistemática, para
alcançar a imprescindível transformação pela qual o Japão precisava passar. Eric Hobsbawm sintetiza
essa ideia de forma que para o autor “a força motriz era a ocidentalização. O Ocidente possuía
claramente o segredo do sucesso e, portanto, precisava ser imitado a todo custo” (HOBSBAWM,
2005).

915
Sendo assim, o período Meiji – de 1868 a 1912 – é constituído de um fato: a restituição dos poderes
do imperador. Conquanto, a restauração representou muito mais do que isso. De acordo com Célia
Sakurai:

“Trata-se de um profundo redimensionamento das forças sociais no cenário político-


econômico levado a cabo pela elite do país (grandes senhores capitalizados, grandes
negociantes, intelectuais e tecnocratas de famílias poderosas) a partir de uma
escolha: participar com alguma força no sistema capitalista. Assim, a ideia é criar
uma sociedade com condições para a inserção e competitividade no mercado
mundial”. (SAKURAI, 2016)

Um dos principais pontos reestruturados pelo período Meiji foi a própria figura do imperador.
Tal figura de poder sempre existiu e estava presente no Japão inclusive no período feudal, entretanto
sem nenhum poder político efetivo, os imperadores eram profundamente dependentes dos Shoguns.
Com a restauração dos poderes imperiais, sua nova representação passou a cumprir papel
determinante e central, onde apoiar a restauração era por consequência apoiar o imperador pois, ele
governava por direito divino e, portanto, sua vontade era incontestável e abençoada pelos ancestrais.
Agora, tudo passava a girar em torno do imperador e assim o período Meiji se construiu em torno de
sua figura, justificando todas as áreas de atuação da reestruturação por sua vontade incontestável
ainda que seu poder político na prática, continuasse não existindo. Célia Sakurai explica esse
processo:

“Antes e depois da Restauração suas funções não haviam mudado, ou seja, o


imperador não tinha nenhum poder executivo e continuava sendo muito mais um
símbolo que um personagem político. A diferença é que, depois de 1868, em torno
desse símbolo passa a girar a vida da nação japonesa. Esforços coletivos são feitos
em nome de sua glória, que se confunde com a do próprio Japão. ” (SAKURAI,
2016)

Logo após os acontecimentos de 1868 diversas missões foram enviadas ao ocidente, sem
caráter diplomático, mas sim, caráter exploratório onde coletavam-se dados a respeito da tecnologia
utilizada pelos ocidentais. O Japão preocupou-se em absorver toda a técnica que podia, contratou
diversos engenheiros norte-americanos e os demitia assim que dominavam a técnica. Dessa forma, o
Japão copiou a tecnologia ocidental, preocupando-se em serem capazes de reproduzi-la.
Outras mudanças vieram, no campo econômico, imediatamente as instituições feudais
deixaram de existir, sendo substituídas pela criação de prefeituras onde foram colocados novos
administradores, nomeados pelo governo. Nesse momento, o arrendamento de terras passa a ser
permitido, os daimio oferecem suas terras ao imperador.

916
Surge também o apoio a iniciativa privada, bem como a criação de um sistema bancário. Dessa forma,
os tributos antes pagos com grãos, passam a ser substituídos pelo pagamento de impostos, ou seja, os
tributos antes pagos aos daimio, agora, passam a serem pagos diretamente ao império, sob forma de
impostos. Esses impostos eram estipulados sob a expectativa de produção e não sob a produção real,
o que afetou significativamente a carga de trabalho dos camponeses.
Em um período de tempo relativamente curto, o Japão passa a incentivar o comércio e
desenvolver suas indústrias, criar infraestruturas que possibilitassem a expansão comercial como
portos, ferrovias e estaleiros, bem como organizar a economia num Estado central.
Já no campo da educação o governo percebeu que esta, seria ponto crucial para sua modernização,
pois uma população ignorante poderia atrapalhar as reformas que ainda viriam a seguir. Em seguida
foi instituída a educação compulsória, inspirada em métodos ocidentais, o que elevou as taxas de
alfabetização em quase 100%. Por outro lado, essa medida inicialmente causou grande aversão dos
camponeses pois não poderiam mais contar com os braços de seus filhos para ajudar na produção, o
que pesava ainda mais o fardo dos impostos que precisavam ser pagos.
A língua japonesa também foi unificada nesse período. Documentos e a própria educação
começaram a ser feitos em Katakana e não mais em Kanji como no período feudal.3
Nesse sentido, o Japão trabalhava cada vez mais para a unificação de seu império. Um dos
elementos criados nessa tentativa, foi dar permissão para que os camponeses utilizassem sobrenomes.
Dessa forma, a população passou a ser identificada pelo sobrenome de sua família, eliminando uma
das diferenças entre classes sociais.
Outra mudança determinada pelo império foi a criação de um exército nacional, de alistamento
obrigatório para todos os homens, o que mais uma vez, causou descontentamento dos camponeses
em relação ao número de braços que deixariam de ser empregados no campo em função do novo
formato militar.
Como em toda grande transformação, nem todos os lados foram agradados. O segmento mais
descontente com as transformações trazidas por Meiji eram os samurais, que perderam seus postos
de grande prestígio dentre a hierarquia antes existente. Com a reforma militar, o governo percebeu
que cerca de 30% de sua receita era gasta em função da manutenção dos privilégios econômicos dos
samurais, um serviço que naquela conjuntura e graças ao alistamento obrigatório, não tinha mais
utilidade. Sendo assim, os samurais – juntamente com os camponeses – passaram a fazer parte do
grupo descontente com o império. Seus privilégios foram revogados cerca de 10 anos após a

3
Kanji são os famosos ideogramas japoneses, que foram incorporados da língua chinesa. Já o Katakana é o alfabeto
mais utilizado para palavras de origem não japonesa, ou seja, palavras de origem ocidental, o que explica a difusão de
seu uso neste período.

917
instauração do governo Meiji, assim como foi instituída a proibição do uso dos elementos que os
identificavam; as famosas katanas (espadas) tiveram seu porte proibido, somado também a proibição
de suas tradicionais vestimentas e corte de cabelo, anulando “os últimos vestígios de separação e
distinção de status dos samurais como classe” (HOBSBAWM, 2005). Sob o pretexto da unificação e
igualdade, as revoltas dos samurais e dos camponeses foram duramente suprimidas.
A Reestruturação Meiji se pautou na ocidentalização e modernização sem a perda da tradição
japonesa milenar. Dessa forma, ainda que houvesse descontentamento com o que era imposto, a
grande maioria das ações do governo empreendidas nesse período acabaram mais tarde, sendo
apoiadas pela população. Nesse sentido, o nacionalismo cumpriu papel determinante na construção
do Japão moderno. Ele veio como força de unificação, em meio à invasão ocidental e ao medo de
serem por ela afetados em excesso, fomentando o orgulho da população baseada na singularidade da
história e dos elementos tradicionais desta cultura. Tal pensamento foi a chave para conseguir o apoio
necessário para empreender tantas reformas, onde parte alguma da vida japonesa deixou de ser
afetada.

5. O Expansionismo Territorial Nipônico

Desde o início do período Meiji a expansão do território era prevista como consequência da
ampliação da indústria e do comércio emergentes. Nem toda matéria-prima estava disponível para o
Japão em abundância. Assim sendo, o arquipélago japonês passou a retomar as relações,
historicamente pacificas, com seus vizinhos asiáticos – especialmente Coréia, abundante em carvão
e ferro e a China – já pensando em sua expansão territorial. Embora as ligações entre o arquipélago
japonês, a península coreana e a China tenham sido em sua maioria pacíficas, não impediu que o
Japão efetivamente travasse guerras sob o propósito expansionista.
Para os japoneses, a conquista da Coreia viria primeiro e logo em seguida, a da China. Anos
antes a China já sucumbira aos interesses do imperialismo ocidental e acabou perdendo Hong Kong
nas Guerras do Ópio, os ocidentais souberam aproveitar a fragilidade do império Qing, somado a isso
as revoltas acabaram por depauperar completamente o governo central do país.
Do ponto de vista das relações internacionais orientais, os interesses de três nações (Japão,
China e Rússia) convergiam em um só: a conquista da Coreia. O Japão deu um passo à frente na
tentativa de estabelecer comércio, tomando o exemplo ocidental e aproveitando-se da debilidade

918
governamental coreana, e já em 1875 assinou tratado comercial com a tão cobiçada Coreia,
convergindo com os interesses chineses. Isso significava:

“Assim, o modelo japonês de expansão territorial se decidiu por expandir-se


localmente na Ásia e alcançar diversos objetivos com apenas um movimento:
expulsar as potências europeias da região e conseguir maior estabilidade para sua
coesão territorial interna, também aumentando sua liberdade para mover-se na área
e aumentar seu território localmente sem comprometer sua coesão territorial como
no modelo inglês. ” (SHIMIZU, s.d)

Japão e China assinam firmam um acordo para evitar uma guerra pelo acontecido na Coreia,
mas o confronto torna-se inevitável, culminando na Guerra Sino-japonesa, que se iniciou em território
coreano, dez anos depois do acordo. Terminada a guerra com a vitória esmagadora do Japão, o mundo
despertou para o poderio japonês que de maneira alguma era esperado. A Guerra Sino-japonesa
mostrou ao mundo que o arquipélago nipônico não estava para brincadeira e vinha para conquistar
seu lugar em meio às potências ocidentais com verdadeiro afinco.
Uma guerra com do Japão com a China pelo domínio da Coreia era o elemento que faltava
para que a Rússia se sentisse ameaçada militarmente, principalmente pelo fato do Japão ter
conquistado parte da Manchúria, cujo parte do território se localizava na Rússia. Com medo da
ameaça da expansão japonesa, a Rússia se junta a Alemanha e França, formando uma frente de
intervenção – diplomaticamente – nas conquistas japonesas e com sucesso, obrigando o Japão a
retirar-se da região.
Embora o empreendimento diplomático tenha funcionado, o confronto entre Japão e Rússia
tornou-se também inevitável após negociações e acordos entre países orientais e ocidentais como
Grã-Bretanha e Estados Unidos terem fracassado. Mais uma vez, o Japão revela ao mundo sua
superioridade bélica, antes vista por todos com descrença absoluta, vencendo a Guerra Russo-
japonesa em 1905. A Rússia por sua vez, se viu obrigada pelos tratados de paz a retirar-se da
Manchúria bem como reconhecer a influência japonesa sobre a Coreia – o que mais tarde, em 1910,
levou a anexação do território coreano pelo Japão.
Ao fim da Era Meiji, sob o prisma das relações internacionais, o Japão deixou seu lugar de
inferioridade em relação às grandes potências ocidentais para encontrar seu próprio lugar em meio as
mesmas. O país travou guerras altamente significativas durante seu percurso para atingir seu objetivo
de expansão territorial e deixou marcas profundas por onde passou. Inegavelmente, o Japão assegurou
sua soberania na Ásia e passou a atuar em pé de igualdade diante das potências imperialistas
ocidentais no tabuleiro das relações internacionais, disputando áreas de influência, mercados e
acordos.

919
Pouco tempo depois, esses acontecimentos acabam por levar o Japão à Primeira Grande
Guerra, combatendo do lado vencedor. Com o fim da guerra e a assinatura do Tratado de Versalhes,
o ocidente ratifica a soberania japonesa construída ao logo da Era Meiji, ou seja, pode-se dizer que o
período Meiji lançou as bases para a consolidação de um Japão altamente militarizado e competitivo
no mercado internacional.

6. Considerações finais

Tendo em vista os aspectos apresentados pode-se dizer que ao fim e ao cabo, a Restauração
Meiji representou para o Japão muito mais do que um movimento político. Esta representou uma
verdadeira revolução, onde foi dado o pontapé inicial para o desenvolvimento japonês, um grande
passo na transição do feudalismo para a construção do Japão moderno.
Enquanto a Europa vivia suas primeiras fases de Revolução industrial, o arquipélago nipônico
fechou-se para o mundo, atrasando-se do ponto de vista industrial e tecnológico em relação às
potências europeias. Com a chegada do Comodoro Perry, o fim dos Shogunatos e a Reestruturação
Meiji, o que se observa é um movimento completamente novo na história de uma cultura milenar,
abrindo os olhos dos japoneses para a superioridade do ocidente. Diferentemente da que foi feito na
China, os japoneses se abrem ao ocidente diplomaticamente, profundamente interessados em
absorver ao máximo suas avançadas tecnologias e revertê-las para a construção da modernidade
japonesa.
Embora possamos dizer que o Japão manteve sua política de boa-vizinhança com os demais
países da Ásia durante a maior parcela de sua história, a chegada dos ocidentais, somadas ao
crescimento acelerado da recém-nascida indústria que o país apresentava, trouxe não somente novas
possibilidades de mercado como também novas oportunidades de dominação.
Embora a parcela ocidental do globo enxergasse o conjunto de ilhas com exotismo e com certa
descrença acerca da real capacidade de crescimento e expansão, o Japão passou a responder ao
imperialismo ocidental de igual para igual. Além de reestruturar toda a organização econômica e
social japonesa, a Era Meiji foi a dirigente da criação de um fenômeno político pouco esperado à
época: a criação de um novo tipo de imperialismo, um imperialismo próprio do oriente, em que o país
expandia seus horizontes juntamente com suas fronteiras e mostrava ao mundo que a dominação
ocidental, ali não se instalaria. Ao contrário, o Japão empreenderia seu próprio imperialismo,

920
conquistando a partir das Guerras Sino e Russo-japonesa sua hegemonia perante não somente a Ásia,
mas ao restante do mundo.
Desta forma, podemos considerar a própria Era Meiji como a resposta que o Japão encontrou
para fazer frente ao imperialismo ocidental, com uma série de reformas bem como a criação de um
novo tipo de imperialismo, utilizando um processo inverso de modernização, de fora para dentro e
das camadas sociais mais altas para as mais baixas.
Embora a Era Meiji tenha representado para o Japão uma revolução, sob o prisma das rupturas,
essa revolução não pode ser analisada a partir de uma perspectiva comparativa em relação aos
processos revolucionários ocorridos no ocidente, como a Revolução Francesa, por exemplo. Além do
fato de que cada processo histórico se constitui de uma singularidade e absolutamente nenhum deles
é igual a outro, há também o fato da Reestruturação, ter sido apoiada – primeiramente – pelas camadas
mais altas da sociedade, ao contrário do que se espera da maioria das rupturas e possibilitada pela
intervenção vinda do ocidente, ou seja, um movimento de fora para dentro da sociedade nipônica.
O Japão se abre ao mundo ao mesmo tempo em que se reestrutura internamente para emergir
e se consolidar em uma posição não mais de inferioridade em relação às potências europeias, mas sim
para assumir o papel de agente central de poder político no tabuleiro do mundo.
A Era Meiji, como vimos, se constitui de um fenômeno transformador das estruturas sociais,
econômicas e principalmente, políticas da sociedade nipônica. Esse processo – instalado a partir de
1868 – expôs múltiplos sujeitos e projetos de uma sociedade até pouco tempo completamente fechada
a ideias e possibilidades completamente inovadoras.
Ao fim do período feudal e início do Período Meiji, o Japão percebeu que somente o caminho
da modernização o levaria a uma posição, não de nação dominada, mas sim dominadora. Todos os
ocorridos mencionados e a formação do Japão moderno só foi possível graças a mescla elementos
ocidentais de inovação, sem deixar que a tradição japonesa se perdesse. Tudo isso, se constituiu fator
determinante para a inserção do Japão em uma nova realidade global.
Os estudos asiáticos possuem uma área relativamente nova no Brasil, com alguns poucos
pesquisadores e recursos limitados aplicados na área. Observa-se uma centralização dos estudos,
excessivamente focados na Europa, ajudando assim a reforçar o distanciamento entre o Brasil e a
Ásia. Outro obstáculo que se apresenta àquele que deseja se dedicar aos estudos asiáticos é a
dificuldade de obtenção de material e principalmente, fontes primárias em português ou inglês, a
maioria destes materiais se encontra – ainda – confinada em arquivos de diversos países e quando
estão online, sua maioria se encontra em japonês, sem tradução ao menos para o inglês, o que não
quer dizer que exemplos contrários não existam.

921
Embora estudar a Ásia seja atualmente um grande desafio, é preciso vencê-lo para ampliar e
reforçar os movimentos surgidos recentemente de descentralização da historiografia eurocêntrica e
assim, aproximar cada vez mais as parcelas orientais e ocidentais do planeta. Afinal, cada processo
histórico é único e cabe a nós, historiadores, empenharmos o máximo de nossos esforços para
compreendê-los em sua totalidade.

7. Referências Bibliográficas

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1977.
ARAÚJO, Rafael. “O Imperialismo e sua Atualidade na Análise do Sistema Capitalista
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https://seer.ufs.br/index.php/tempo/article/view/2702
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CRÉ, Kamilla G.C., SARRAFF, Luiza R.B. & LACERDA, Natália F.C. “O Japão na Era Meiji:
Quando o Distante se torna Próximo”. Núcleo de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal
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DEZEM, Rogério Akiti. Através do Olhar do ‘Outro’: Uma Breve Comparação Entre os Discursos
Diplomáticos Britânico e Lusitano Sobre o Japão no Período Final da Era Meiji. Osaka University
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FAIRBANK, John King; GOLDMAN, Merle. China: Uma Nova História. Porto Alegre: L&PM,
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____________, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1941-1991. São Paulo: Companhia das
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LIMA, Diogo Shimizu. “O expansionismo territorial nipônico”. São Paulo: Pontifícia Universidade
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MASIERO, Gllmar. “A history of japanese economic thought”. Rev. adm. empres., June 1993,
vol.33, no.3, p.126-128. ISSN 0034-7590. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/rae/v33n3/a11v33n3.pdf
OLIVEIRA, Henrique Altemani de; MASIERO, Gilmar. “Estudos Asiáticos no Brasil: Contexto e
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SAKURAI, Célia. Os Japoneses. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016.
SUZUKI, Tessa Morris. A History of Japanese Economic Thought. Londres: Routledge, 1989.

923
AS TICs NA PROMOÇÃO DA INTERAÇÃO ENTRE OS CIDADÃOS E O
PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL PÚBLICO DA CIDADE

Gabrielli Ciasca Veloso1


Andréa Cristina Trierweiller2

Resumo: Para que de fato exista interação entre os cidadãos e o patrimônio histórico-cultural público
da cidade, é necessário que se entenda a sua importância e seu acesso seja facilitado. Neste trabalho,
buscou-se apresentar o projeto “Promovendo a Integração de Professores e Alunos de Escolas de
Educação Básica da Rede Pública ao Patrimônio Histórico Digital do Município de Araranguá”, que
por meio de metodologia que adapta e combina conceitos como Educação Patrimonial (IPHAN) e
Gestão social, contando com o suporte das Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC, buscou
despertar o interesse de alunos da rede básica de ensino, ao acervo histórico da cidade, bem como
resgatar a sua identidade cultural individual e coletiva.

Introdução

Segundo Lemos (1981), “Preservar é manter vivo, mesmo que alterados, usos e costumes
populares”. A fim de contribuir com a conservação dos arquivos históricos sem privar o público de
sua exposição e ainda oportunizar uma maior disseminação do patrimônio público cultural, por meio
da facilitação de acesso proporcionada pelas ferramentas da internet, foi desenvolvida uma
metodologia baseada em diferentes conceitos, que combinados, incentivam o conhecimento,
reconhecimento e a consequente valorização do patrimônio público histórico-cultural da região, bem
como a inclusão digital dos indivíduos.
Esta metodologia embasa-se em três pilares fundamentais, a saber: Gestão Social; Estudos
Baseados em Prática (EBP) – Comunidades de práticas + Teoria da atividade cultural e histórica;
Educação Patrimonial (IPHAN); e as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como canal
de comunicação entre os atores envolvidos. Por meio desta metodologia, busca-se a disseminação e

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Informação e Comunicação (PPGTIC) da
Universidade federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: velosogabrielli@gmail.com
2
Professora doutora no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Informação e Comunicação (PPGTIC) da
Universidade federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: andrea.ct@ufsc.br

924
a preservação do patrimônio público cultural a fim de promover o resgate e manutenção da identidade
cultural individual e coletiva dos sujeitos. Sendo assim, a identificação do patrimônio estimulada e
desenvolvida a partir do ponto de vista do cidadão, acaba por influenciar o aumento do interesse pela
visitação aos ambientes de salva guarda do patrimônio histórico-cultural da região, como Arquivos
Históricos, Museus e Bibliotecas Públicas, uma vez que, mediante a identificação e reconhecimento
de si, de seus antepassados e demais personagens e fatos do contexto cultural e histórico do município,
almeja-se despertar o interesse e a responsabilidade dos indivíduos para com seu acervo público
cultural.

Desenvolvimento

O projeto “Promovendo a Integração de Professores e Alunos de Escolas de Educação Básica


da Rede Pública ao Patrimônio Histórico Digital do Município de Araranguá” teve origem por meio
da pesquisa de mestrado da acadêmica Gabrielli Ciasca Veloso, contando com a orientação da
Professora Doutora Andréa Cristina Trierweiller, e foi planejado em três fases. Primeiramente, criou-
se a metodologia por meio da adaptação e da combinação de conceitos interdisciplinares focados no
conhecimento e valorização do patrimônio cultural; em um segundo momento, buscou-se a
colaboração de professores da rede básica de educação que se interessaram pelo projeto e se
dispuseram a apresentá-lo nas suas escolas, contando com o apoio da direção, para aplicá-lo nas suas
turmas; e por fim, a divulgação dos trabalhos criados bem como a análise das consequências e
resultados deste projeto, sob a perspectiva dos alunos participantes.

A metodologia utilizada foi estruturada a partir da associação de conceitos, que combinados,


favorecem a recolha, a apreensão e a representação dos dados e informações referentes às fotografias
pertencentes ao Arquivo Histórico da cidade de Araranguá, que atualmente, encontram-se
digitalizadas em virtude de outro projeto, executado entre os anos de 2012 a 2014, denominado
Digitalização do Acervo do Arquivo Histórico do Município de Araranguá (VELOSO;
TRIERWEILLER; ESTEVES, 2017) e disponibilizadas virtualmente, no site Memórias Digitais de
Araranguá (disponível no link: http://labmidiaeinteratividade.ufsc.br/memoriasdigitais/tdigital/),
desenvolvido por Almeida e Cândido (2016).

925
Inicialmente, buscou-se a Educação Patrimonial, que se subdivide em quatro etapas
importantes: a observação, o registro, a exploração e a apropriação. Segundo Horta, Grunberg e
Monteiro (1999):

A Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita


ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do
universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este
processo leva ao reforço da auto-estima dos indivíduos e comunidades e à
valorização da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural.

Pois, a maneira mais eficaz de assegurar a defesa permanente do patrimônio de arte e de


história do país: é o da educação popular. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 1987, p. 64, apud
OLIVEIRA, 2011, p. 32).
Outro conceito fundamental é o de Gestão Social, que pode ser traduzido como um processo
dialógico e participativo de se trabalhar com grupos, que busca fomentar a autonomia, autogestão,
cooperativismo e protagonismo, bem como facilitar os processos grupais e individuais, a fim de
oportunizar ações coletivas em prol de um objetivo comum (FISCHER, 2007).
Combinado a estes dois conceitos, que trabalham a apreensão do conhecimento e a
organização em que essa apreensão se dá, envolve-se o conceito de Estudos Baseados em Prática
(EBP), que classifica o conhecimento em um processo social, humano, material, estético, emotivo e
ético, em que o conhecimento é construído a partir das práticas, em um processo que associa ao
knowing (conhecer) e ao doing (fazer) (BISPO, 2013).
A fim de definir um ambiente de colaboração e cooperação, agregou-se o conceito de
Comunidades de Prática, que surgem e crescem da interação entre competência e experiência pessoal
em um contexto de engajamento com uma prática comum. As práticas sustentam as comunidades e
os novos membros são admitidos em um processo de legitimação periférica. As práticas são
entendidas como estruturas (habitus) (BISPO, 2013).
Com o objetivo de desenhar o contexto que se deseja aproximar, incorporou-se o conceito de
Teoria da atividade cultural e histórica. Nesta abordagem, as atividades são culturalmente situadas e
mediadas pela linguagem e artefatos tecnológicos. As atividades são desenvolvidas em comunidades
e implicam em divisão do trabalho entre os membros. O trabalho orienta as práticas e as mudanças
dessas (BISPO, 2013).
E por fim, a ideia de “Wiki”: Uma ferramenta da internet, que oferece uma atmosfera
colaborativa entre os seus usuários, na produção de conteúdos de forma coletiva.
Contudo, com o objetivo de facilitar a aplicação desta metodologia, diferentes Tecnologias da
Informação e Comunicação foram utilizadas. Computadores, smartphones e tablets foram algumas

926
das plataformas utilizadas pelos alunos e pelos professores, em diferentes momentos do projeto. Na
sala de aula, os alunos foram apresentados à plataforma web, que abriga o acervo digitalizado, por
meio do computador. As pesquisas se deram em diferentes ambientes físicos como o Centro Cultural
da cidade, biblioteca, além de ambientes digitais, com base em ferramentas da internet, como sites de
indexação de conteúdo para busca por informações, e redes sociais para a comunicação entre o grupo
ou entre os alunos e os professores. E por fim, todo conteúdo produzido pelos alunos será
disponibilizado no site “Memórias Digitais”, onde estará acessível a partir de qualquer dispositivo,
que disponha de acesso à internet.
A metodologia, delimitada pelas quatro etapas da Educação Patrimonial (a observação, o
registro, a exploração e a apropriação), foi apresentada aos professores que desenvolveram o conteúdo
correspondente a cada disciplina, respeitando as etapas e conduzindo os alunos, que se interessaram
de concordaram em participar de forma voluntária, para a criação de legendas para as fotografias do
Arquivo Histórico, outrora digitalizadas.
As fotografias são classificadas e organizadas por pastas, que remetem ao assunto que elas
retratam. Sendo assim, cada professor, de cada disciplina, definiu uma pasta de trabalho, e os alunos,
individualmente, em duplas ou em trios, escolheram uma foto para ser seu objeto de pesquisa.
Os alunos poderiam buscar essas informações em diferentes meios, como em visita à
biblioteca pública, ao Arquivo Histórico da cidade, consulta a livros e demais materiais impressos,
na internet, e ainda, a partir de entrevista com indivíduos que conhecem a história da região, como
avós, tios e vizinhos, com o objetivo de levantar informações para compor, ao final, uma legenda para
as fotos pertencentes ao Arquivo Histórico da cidade, contando com a mediação dos professores de
diferentes disciplinas como geografia, história, filosofia, produção textual e artes.
Dessa forma, o interesse e a valorização deste patrimônio público cultural, bem como a sua
divulgação está sendo feita pelos próprios participantes do projeto, neste caso alunos de escolas de
ensino básico. Estes, que não por acaso foram o público alvo deste trabalho, uma vez que a escola é
um ambiente propício para a construção do conhecimento e seu compartilhamento. Enfim, além de
facilitar o acesso ao conhecimento da história da cidade e região, este projeto envolve familiares,
colegas e vizinhos, ligando-os ao patrimônio público cultural da cidade

927
Conclusão

O projeto “Promovendo a Integração de Professores e Alunos de Escolas de Educação Básica


da Rede Pública ao Patrimônio Histórico Digital do Município de Araranguá” ainda está em
execução. Os alunos já construíram a legenda, que se encontra em avaliação por uma banca de
professores, que busca garantir a veracidade e a coesão das mesmas. Ao final desta etapa, as legendas
serão disponibilizadas no site Memórias digitais, junto a cada fotografia correspondente, a fim de
auxiliar os próximos visitantes do site, que terão acesso à fotografia e ao conteúdo produzido.
Para fins de avaliação do projeto, será utilizada a técnica de Grupo Foco (KOTLER, 2000)
conduzida por meio de uma entrevista estruturada, a partir do qual será elaborado um questionário,
que será aplicado aos alunos, participantes do projeto, a fim de caracterizar a experiência vivida, bem
como avaliar os impactos internos e externos do projeto.

Considerações Finais

A possibilidade de vislumbrar a continuação do projeto de digitalização do acervo do arquivo


histórico do município de Araranguá, por meio do desenvolvimento e efetiva aplicação da
metodologia desenvolvida, permite afirmar que a preocupação e o envolvimento da universidade,
juntamente com a comunidade, por intermédio da escola, podem e devem ser um motor propulsor da
valorização, da disseminação e da preservação do patrimônio público cultural que conta a história da
cidade. As Tecnologias da Informação e Comunicação se fizeram presentes em todas as etapas do
projeto. Desde a digitalização, a disponibilização do acervo digitalizado, a busca na web por
informações, bem como a divulgação de todo o trabalho produzido, tiveram o suporte destas
ferramentas, que se bem utilizadas, são importantes aliadas à preservação do patrimônio público
cultural.
Por fim, por meio deste trabalho, buscou-se apresentar o projeto que incluiu diferentes atores
da comunidade escolar, como os alunos e professores da rede básica de ensino, os funcionários do
Centro Cultural de Araranguá, que é composto pelo Museu da cidade e pelo Arquivo Histórico, além
dos pesquisadores, apoiados pelas Tecnologias da Informação e Comunicação, no objetivo final de
provocar e impulsionar a conscientização da importância do acervo histórico-cultural público da
cidade.

928
Bibliografia:

ALMEIDA, Juliano Oliveira de; CÂNDIDO, Rafael. Memórias Digitais De Araranguá:


Desenvolvimento De Uma Aplicação Multimídia Para Web Do Museu Histórico De Araranguá.
2016. 91 f. TCC (Graduação) - Curso de Tecnologias da Informação e Comunicação, Campus
Araranguá, Universidade Federal de Santa Catarina, Araranguá, 2016. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/165335/TCC-JULIANO-RAFAEL-TIC-
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BISPO, Marcelo. Estudos Baseados em Prática: Conceitos, História e Perspectivas. Revista
Interdisciplinar de Gestão Social, Salvador, v. 2, n. 1, p.13-33, jan. 2013. Quadrimestral.
FISCHER, Tânia. O futuro da gestão. In: HSM Management. São Paulo: HSM, v.10, n. 64,
set./out.2007.Disponível em: http://liegs.cariri.ufc.br/index.php?option=com_
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HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia
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LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981.
OLIVEIRA, Cléo Alves Pinto. Educação Patrimonial no Iphan - Monografia (Especialização) Escola
Nacional de Administração Pública (ENAP). Brasília, 2011.
VELOSO, Gabrielli Ciasca; TRIERWEILLER, Andréa Cristina; ESTEVES, Paulo César Leite. As
TICs como suporte ao patrimônio público cultural: Projeto de Digitalização do Acervo do Arquivo
Histórico do Município de Araranguá-SC. Rdbci: Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da
Informação, [s.l.], v. 16, n. 1, p.1-14, 25 set. 2017. Universidade Estadual de Campinas.
http://dx.doi.org/10.20396/rdbci.v16i1.8648773.
KOTLER, Philip. Administração de Marketing: a edição do novo milênio. 10. ed. São Paulo:
Prentice-Hall, 2000. p. 764.

929
Izidro Borges Monteiro, a rede política oitocentista e a corrupção na Corte do Império
Brasileiro: A política por trás da violência de um Chefe de Polícia. (1851-1860)

George Andrade dos Santos. 1

Resumo: Izidro Borges Monteiro, chefe de polícia polêmico à sua época mas ainda desconhecido na
historiografia que trata de Brasil Império. Sua trajetória política e de serviço público teve início com
sua nomeação ao cargo de Juiz Municipal em 1851 em seguida nomeado a Chefe de Polícia da Corte,
cargo que exerceu sob uma mescla de desconfiança e enaltecimento pela sociedade da Corte.
Analisaremos sua atuação como Chefe de Polícia através das alianças nas quais o próprio personagem
fazia parte na política imperial. Discutiremos também como a violência cometida pela polícia na
Província do Rio de Janeiro e na Corte do Império era acobertada pela política e até onde conseguiam
engendrar e moldar toda a sociedade do Império.

Palavra-chave: História do Brasil. História do Brasil Império. História Política.

Abstract: Izidro Borges Monteiro, chief of police controversy to his time but still unknown in the
historiography that deals with Brazil Empire. His political and public service trajectory began with
his appointment to the position of Municipal Judge in 1851 and then appointed the Chief of Police of
the Court, a position he held under a mixture of mistrust and praise for the society of the Court. We
will analyze his role as Chief of Police through alliances in which the character himself was part of
imperial politics. We will also discuss how the violence committed by the police in the Province of
Rio de Janeiro and in the Court of the Empire was covered by politics and as far as they could
engender and shape the entire society of the Empire.

Keywords: History of Brazil. History of the Empire of Brazil. Political history.

1 – INTRODUÇÃO E O CENÁRIO SOCIOPOLÍTICA OITOCENTISTA

Não é novidade historiográfica que todas as sociedades modernas sofreram com a proliferação
do poder que o Estado impunha a todos os cidadãos, principalmente quando tratava-se do controle e
comando da vida de cada indivíduo. Cada nação desenvolveu mecanismos para tentar frear tamanho
poder e assim, gerando reações distintas e singulares entre as diversas populações e os modernos
órgãos de coerção. Tal movimento estava inserido nos séculos XVIII e XIX, momento este, que está
relacionado com o afloramento das ideologias Liberais, o que resultou na transição do exercício do
poder que antes era exercido pelas estruturas particulares para as instituições.2

1
Licenciatura Plena em História e cursando especialização em História do Brasil: Ensino e Pesquisa pela UNISUAN. E-
mail: andradegeorge84@hotmail.com.
2 As sociedades modernas se diferenciavam das outras formas de convívio social já existentes devido a sua
maneira díspar de interação, suas variações de aspectos em padrões particulares e em dois setores opostos: a sociedade
civil e o Estado. Sobre as relações entre as distintas sociedades e as indiferenças entre sociedade e Estado, ver Bobbio,
Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Editora UNB. Brasília. 10ª edição, 1997.

930
A História, embora hoje obtenha uma bibliografia muito vasta sobre a politica oitocentista,
teve anteriormente o campo da Historia Política renegada durante décadas pelos historiadores. O que
permitiu com que outras Ciências se tornassem contemporâneas a História quanto as discussões sobre
Política, pois tais Ciências apoderaram-se e conseguiram evoluir em suas pesquisas referentes ao
tema.3 Segundo António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, que retratam de forma ilustre as
redes clientelares do período colonial português na América, nos demonstrou como a política imperial
brasileira herdou uma estrutura basilar de correlação e permutação das intenções políticas e sociais
em um grupo bem restrito da sociedade, tendo visto, que para fazer parte do círculo político
oitocentista, não bastava a penas ser caudaloso mas também tinha que está inserido no restrito âmbito
político nacional4.
A grande desigualdade social no Império Brasileiro, que servia como combustível na geração
de conflitos e grandes embates políticos, contrastava-se entre uma população identificada não só pelo
poderio econômico e político, como também por toda uma cultura adquirida devido possibilidade de
estudos dentro e fora do Império, contra um imenso povaréu de “negros”, homens livres pobres e
pequenos comerciantes, ignorantes e vetados a quaisquer direitos, que viviam na penúria e
compunham uma grande massa de iletrados, no qual bastava um aparato policial eficaz para contê-
los. Dentro da própria Elite imperial destacava-se um grupo bastante restrito, os membros que
estavam inseridos naquele círculo detinham o poder das tomadas de decisões políticas, pois para fazer
parte de tal grupo não bastava ter uma vida financeira em abundância, mas teria que fazer parte de
todo um circuito de relações sociais e de interesses.
A instabilidade política na primeira metade do século XIX, engendrou um formato de gestão
política una no país, favoreceu uma rede de corrupção tanto na parte administrativa do Império quanto
nos poderes Legislativo, Judiciário e no Executivo. A difícil compreensão entre divergências
ideológicas dos homens ilustrados – que em sua maioria estavam inseridos na burocracia
administrativa – contra as convicções e a realidade política e econômica do poder local –
extremamente escravista e aristocrática. Somado ainda, as suas divergências internas, nos leva a um
dos principais embates políticos do oitocentos: de um lado os que comungavam da ideia de reformas
e adaptações, principalmente ao mercado externo que já nessa altura estava alicerçado nos moldes
capitalistas e do outro os que pretendiam manter os interesses econômicos da aristocracia escravista,
um modelo de produção economicamente arcaico e que acentuava a corrupção, o clientelismo e o

3 Tratando-se de Política Contemporânea, as pesquisas historiográficas mais importantes eram as francesas que
pautavam-se do Século XV ao XVII, para mais informações ver GOFF, Jacques Le. NORA, Pierre. História: Novas
Abordagens. Rio de Janeiro: Editora Livraria Francisco Alves, 1976. p. 184.
4 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (dir.)
História de Portugal. Quarto Volume, O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.

931
apadrinhamento, tanto local quanto nos altos cargos. Esta última ideologia político-econômica
dificilmente seria rompida, devido a sua importância como base de sustentação de todo o Império.
A Corte em 1850 diferenciava-se devido ao término do tráfico de escravos, que proporcionou
o desenvolvimento de atividades econômicas e uma diversificação de pessoas, ou grupos sociais de
economia média que exerciam diversas funções como: funcionários públicos de pequenos cargos,
funcionários de importação e exportação e negociantes, que se valiam da aproximação com a elite
socioeconômica da Corte, assim como o excessivo número de bacharéis naquele momento, o que
resultou em uma terrível corrida por empregos, tanto fora da vida pública quanto na estrutura
burocrática do Império, fato que só fez aumentar a corrupção na administração baseada no
favorecimento.
A corrupção e a disputa pelo controle do poder político entre as províncias e o poder central
possibilitava a acumulação de poderes, das instituições e de seus agentes públicos, acúmulo este, que
prontamente na segunda metade do século XIX eram usados a serviço das facções políticas para
conseguirem chegar ao poder político ou nele se perpetuarem. A instituição mais usada para esse fim
era a polícia, que resolvia todas necessidades existentes e os auxiliavam a alcançarem seus objetivos
no âmbito político. A dominação do aparelho estatal e consequentemente da polícia era um forte
indício de poder, além de controlar o espaço público e interferir diretamente nas vontades e desejos
da população, conseguiam acordos onde podia-se presentear aliados com cargos administrativos,
funções públicas, secretarias, eleger deputados, indicar senadores ou até mesmo castigar seus
inimigos políticos, para isto bastava está de posse dos aparelhos Estatais e corresponder a manutenção
dessa classe de políticos e aos interesses do Imperador.
A fusão dos interesses políticos com as condutas do Chefe de Polícia da Corte, que
determinava a maneira e o modo de agir da sociedade civil pobre e as relações cotidianas da Corte do
Império, revela-nos as formas pelas quais a população oitocentista sofriam com os diversos abusos
cometidos pela autoridade em questão, que em muitas das vezes acobertava arbitrariedades e crimes
dos agentes públicos ou de criminosos a serviço do mesmo. Tanto nos espaços públicos quanto nos
privados essas relações envolve dentre outras coisas a prática da corrupção estatal para atingir aos
desejos políticos, como também vincular o controle da polícia a égide dos anseios políticos.
O recorte temporal de tal analise corresponde aos anos de 1851 a 1860 e para isso analisamos
os periódicos de tais períodos, os quais noticiavam o envolvimento do até então Chefe de Polícia da
Corte Izidro Borges Monteiro, em atos de corrupções políticas, na prática de crimines e até mesmo
os elogios exaltados por parte da sociedade que gozaram de seus serviços prestados.

932
2-IZIDRO BORGES MONTEIRO

Em 1820, no meio rural da cidade do Rio de Janeiro marcado pela presença de chácaras,
mansões e solares na região, existia a Fábrica de Chitas, considerada uma das primeiras fábricas do
Brasil, a Fábrica - que na verdade apenas estampava tecidos vindos da Índia - se manteve em atividade
por apenas vinte anos, mas seu nome permaneceu por um século. Próximo, existia o Largo da Fábrica,
localizado entre dois caminhos: o Caminho do Andaraí Pequeno 5 e a Travessa do Andaraí, uma das
ruas mais antigas da região, aberta em 1820 era o caminho para chegar até a Fábrica, esta rua que
antes se chamou Rua da Fábrica das Chitas onde Izidro Borges Monteiro residia com sua família no
número 20.6
Izidro Borges Monteiro, o personagem que até hoje é desconhecido na historiografia, nasceu
na Província do Rio de Janeiro no dia 25 de Janeiro de 1825 graduou-se em Bacharel em Direito e
logo tornou-se proprietário de terras, capitalista, eleitor da “Freguezia” do Engenho Velho, filiando-
se a facção Conservadora, onde no início prestou serviços como presidente da comissão dos
moradores da Paróquia do Engelho Velho7, casou-se com a Sr ª. Augusta Rosa da Silva. Recebeu
diversos títulos, como o de Cavaleiro da Imperial Ordem de Cristo8, além de participar da direção de
outros estabelecimentos, como: Banco Rural; Hipotecário do Rio de Janeiro; Cassino Fluminense;
Sócio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional9; Sócio da Central de Colonização e Acionista
da Estrada de ferro D. Pedro II.
Sua trajetória política e de serviços público de Izidro Borges Monteiro teve início, sem muita
importância, com sua nomeação ao cargo de 1º suplente da 1ª delegacia de polícia da corte em 185010,
mas insere-se no meio social da corte devido a sua nomeação ao cargo de Juiz Municipal em 1851,

5 Atual rua Conde de Bonfim.


6 Atualmente a rua chama-se Desembargador Isidro, essa homenagem fora concedida ao pesquisado antes
mesmo de sua morte em 1890, que já levava seu nome.
Em 30 de Abril de 1911, o Largo da Fábrica das Chitas, se transformou na Praça Saens Peña, nome dado em
homenagem ao Presidente da Argentina.
7 Região hoje conhecida como Tijuca.
8 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). “PARTE OFFICIAL.” Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
fl. 1. 03 dez. 1854. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_04&pesq=Izidro%20Borges%20Monteiro>. Acesso
em: 03 ag. 2017.
9 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). “SOCIEDADES LIBERAES: SOCIEDADE AUXILIADORA
DA INDUSTRIA NACIONAL. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl. 2. 17 jan. 1857. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=Izidro%20Borges%20Monteiro>. Acesso
em: 03 ago. 2017.
10 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). “REPARTIÇÃO DA POLICIA”. Diario do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, fl. 2. 25 de fev. 1850. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=094170_01&pasta=ano 185&pesq=Izidro Borges Monteiro>.
Acessado em: 10 out. 2017.

933
onde destacou-se no cenário sociopolítico devido sua efetiva e importante atuação no notório caso do
Processo de Villa Nova do Minho. Logo após, fora promovido a Juiz de Direito e designado a Chefe
de Polícia da Corte, até seu acensão ao cargo Desembargador.

3 – A INSERÇÃO NA REDE POLÍTICA E SUAS ARBITRARIEDADES

O Sr. Izidro é sem duvida alguma o braço direito do governo. Além das muitas
attribuições que a lei lhe confere, além de muitas outras que por meio de uma vontade
tenaz e energia elle tem laboriosamente conquistado á nossa municipalidade a á
todos tribunaes de justiça civil, commercial, criminal, ecclesiastica, o bom do Sr.
Izidro já está de posse de muitas outras attribuições que o governo vai todos os dias
lhe delegando.
E' que nisto vai muito o carcter pessoal do funcionario. O governo comprehendeu
perfeitamente o homemzinho da policia, sondou-lhe o animo e enchergou nelle um
cavalheiro perfeitamente talhado para a corrupção reinante.
O governo quer entrar em alguma transacção tenebrosa, em algum pacto immoral ?
Vá ao Sr. Izidro, meu amigo, elle possui todas as instrucções, está perfeitamente
informado, e o que com elle tratar é o que o governo acceita.11

Os seguidos ministérios Conservador no poder narrado na obra de José Murilo de Carvalho 12,
será o ponto de partida para entendermos como Izidro fixou-se na política Imperial. Teve início com
o ministério Pedro de Araújo Lima – o Visconde de Olinda, em Setembro de 1848; passando para
José da Costa Carvalho – Visconde de Monte Alegre, em Outubro de 1849; Joaquim José Rodrigues
Torres em Maio de 1852 e chegando ao Ministério da Conciliação em Setembro de 1853, que teve
como chefe Honório Hermeto Leão, conhecido primeiramente como Visconde e depois como o
Marquês do Paraná. Esse Ministério teve como características principais a confiança e a colaboração,
só eram designados a cargos de importantes a aqueles que colaborassem com os ideários do governo,
ou seja, ao partido que estava no poder. Uma de suas propostas mais discutida foi a reforma eleitoral,
mais conhecida como a Lei dos Círculos, que daria poder ao governo de delimitar os círculos
eleitorais e assim possibilitando pessoas não capacitadas para ocuparem cargos públicos, dentre os
quais está o cargo de Chefe de Polícia.
Luís Alves de Lima e Silva – o Marques de Caxias, ficou a cargo da tal função em Setembro
de 1856. A nova eleição já baseada na nova lei dos Círculos, manteve a maioria Conservadora na

11 BNRJ. “A POLICIA DO SR. IZIDRO”. A Actualidade. Rio de Janeiro, fl.3. 19 mar. 1859.
Disponível:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=235296&PagFis=33&Pesq=A policia do dr.
Izidro>. Acessado em: 10 out. 2017.
12 CARVALHO, José Murilo De. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política
imperial. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

934
Câmara e um novo gabinete teve início em Maio 1857, que teve como presidente o conservador Pedro
da Araújo Lima – Marquês de Olinda. Mesmo com o ministério consistindo em uma mescla entre
Liberais e Conservadores e uma Câmara mais heterogênea e de discussões políticas mais acirradas,
os conservadores ainda eram a maioria e se impusera no Governo, gerou uma brusca distância entre
as duas facções políticas,
Em Dezembro de 1858 esteve sob o comando Antônio Paulino Limpo de Abreu – Visconde
de Abaeté e em Agosto de 1859, no de Ângelo Muniz da Silva Souza. Em 1860 os Liberais chegam
ao poder no Rio de Janeiro, o que estremeceu o panorama político nacional e para tentar controlar e
reagir a uma ameaça Liberal foi nomeado novamente o Marquês de Caxias em 1861, em substituição
a Silva Souza.
Os treze anos consecutivos de maioria Conservadora no controle dos gabinetes, anteriormente
descrito por nós, nos remete ao progresso da vida de Izidro Borges Monteiro, pois por ser filiado ao
Partido Conservador possibilitou a ascensão de sua carreira. Em 1848 no periódico Diário do RJ,
transcreve-se o fato de Cândido Borges Monteiro fora eleito a Câmara Municipal13, consta-se que o
referido sujeito era primo direto do pesquisado, além de ser médico particular do imperador 14. Em
1849 é candidato é eleito para a Assembleia Provincial 15 e passa a ser presidente da Câmara
interinamente e como sucessoriamente torna-se Deputado Provincial em 1850. O que nos chama
atenção nesses fatos é a sincronicidade em relação a posse de cargos entre os dois sujeitos
anteriormente mencionados por nós 16, em finais da década de cinquenta nos oitocentos Cândido é
eleito a Deputado Provincial e concomitantemente preside a Câmara, no início do ano posterior, mais
precisamente em 22 de Março de 1851, a figura de nossa pesquisa é nomeado como Juiz Municipal
da 1º Vara e Execução Criminal. Continuando os “coincidentes” fatos, na exata data de 10 de Abril
de 1857 quando da chegada de Cândido Borges Monteiro ao Senado 17, é publicado no periódico

13 BNRJ. “O DIARIO”. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl. 2. 26 ago. 1848. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=Candido%20Borges%20Monteiro>.
Acessado em: 03 ago. 2017.
14 BNRJ. “POST-CRIPTUM”. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl.4. 28 ago. 1848. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=Candido%20Borges%20Monteiro>.
Acessado em: 03 ago. 2017.
15 BNRJ. “ASSEMBLÉA LEGISLATIVA PROVINCIAL”. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl.2. 27
fev. 1850. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=Candido%20Borges%20Monteiro>.
Acessado em: 03 ago. 2017.
16 Exemplificaremos a política de favorecimento com a relação entre Izidro e seu primo direto Cândido Borges
Monteiro, um Médico Cirurgião também filiado ao Partido Conservador e que em 1833 acumulava funções de cirurgião
público e médico da Guarda Nacional, em 1842 foi reformado como médico do Exército e em 1847, demitido do cargo
médico cirurgião do 3º Batalhão da Guarda Nacional, iniciando uma longa trajetória política.
17 BNRJ. “ASSEMBLEA GERAL LEGISLATIVA” Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl.1. 2 maio 1857.
Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=Candido%20Borges%20Monteiro>.
Acessado em: 03 ago. 2017.

935
DIARIO DO RJ em sua edição de número 097 a confirmação da posse do novo Chefe de Polícia da
Corte18 “[….] tomarão posse dia 7 do corrente do cargo de Chefe de Polícia da Corte o Sr. Dr. Izidro
Borges Monteiro […].”
Logo no primeiro ano à frente do cargo, Izidro foi acusado pelo jornal Correio Mercantil, de
prender arbitrariamente dentro do Theatro Lyrico o negociante matriculado Sr. Antonio José Alves
Machado. Ambos estavam assistindo ao espetáculo de música, no qual muitos dos cantores eram
vítimas de vaias vindas da plateia, até que em um determinado momento, tomado de raiva, o
pesquisado interpelou a vítima e ordenou que a mesma fosse conduzida a sua presença em meios a
insultos como canalha e insolente. Sr. Machado logo informou ao Chefe de Polícia que não fazia parte
de tal ato que o importunou e ainda que se o tivesse feito, estaria no seu direito de fazer e que ainda,
mesmo sem ao menos saber com quem estava falando, tal autoridade estaria desrespeitando-lhe.
Tendo como resposta do Chefe de Polícia que o mesmo não conhecia nada e ninguém a altura da sua
posição e logo em seguida ordenou-lhe a prisão de Antonio.19.
O bilheteiro José Patrício Pires também fora uma de suas vítimas. Após uma calorosa
discussão com o Sr. Araújo Lima, - pai do então 3º delegado de polícia Dr. André Cordeiro de Araújo
Lima – devido ao não pagamento do bilhete de ônibus, quando da chegada do 3º Delegado ao local
do fato, o mesmo desfere ameaças ao Sr. José do tipo, no qual o levaria a prisão e perda do seu
emprego. Dias após, sem o devido procedimento legal para averiguar quem fora o culpado ou vítima,
o Chefe de Polícia Izidro Borges Monteiro prendeu de forma totalmente arbitrária encarcerou o
funcionário do ônibus, alegando que o mesmo fora desrespeitoso e ainda por não ter prestado a devida
reverência e homenagem ao Delegado de polícia.20
Através da figura de Izidro Borges Monteiro é possível analisar também, a arbitraria
acumulação de poderes obtidas pelas instituições e pelos seus agentes. As denúncias transcritas nos
jornais nos informam como o citado Chefe de Polícia excedia a todas as atribuições traçadas por lei
pertinentes ao seu cargo e assim não respeitando as garantias constitucionais dos cidadãos. Nessa
altura a Polícia não era mais uma instituição regida pelo Código do Processo Criminal e a conhecida

18 BNRJ. “CHRONICA DIARIA”. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl.1. 10 abr. 1857. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=Izidro%20Borges%20Monteiro>.
Acessado em: 03 ago. 2017.

19 BNRJ. “A POLICIA E AS PATEADAS”. O Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal. Rio de Janeiro, fl. 1.
26 nov. 1857. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=217280&PagFis=14062&Pesq=Izidro Borges Monteiro>.
Acessado em: 04 set. 2017.
20 BNRJ. “COMMUNICAÇÃO”. Diario do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fl.2. 8 abr 1858. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=094170_01&pasta=ano 185&pesq=Izidro Borges
Monteiro>. Acessado em: 10 out. 2017.

936
Lei 3 de Dezembro – que reformou o Código do Processo Criminal – e sim ao mando e desmando de
um só homem, tendo seus atos acobertados pela política vigente. Desse modo Izidro absorvia
atribuições das instituições protetoras das liberdades dos cidadãos, tendo supostamente a imprensa
como a única arma para deter tamanha arbitrariedade, os quais que denunciavam seus crimes.

[…] A policia entre nós tem tomado um vôo que espanta. Cumpre que a magistratura
vale cuidadosamente a fim de que as garantias constitucionaes dos cidadãos
brasileiros não sejam todos os dias victimas de novos ataques.
Quantos outros excessos, quantas outras prevaricações não commette todos os dias
a policia ? Quantros outros crimes não terá commettido o Sr. Cunha e todos os outros
agentes policiaes ?
Os dominios tenebrosos onde impera o Sr. Izidro encerram muitos, mysterios, muitos
crimes.
E´preciso devessar esse reino das trevas, e chamar esses pontentados rediculamente
enfatuados ao cumprimento da lei por meio da mais sévera repressão criminal.21

O Chefe de Polícia prendia e conservava em seus cárceres dias e meses os cidadãos sem
observar as normas condutoras, detinham moradores em suas casas como forma de cobrar dívidas
civis, atuava na partilha entre herdeiro ou entre sócios, era acusado da atuar em tribunal eclesiástico,
como também em juízo comercial. Os periódicos muitas das vezes de forma irônica, relacionava o
vínculo político que Izidro detinha e no qual o mesmo tirava aproveito do uso de suas funções: “[….]
Mas o governo ha de querer privar-se de um varão tão sabio, tão necessario como o sr. Izidro, genuino
delegado do governo da conciliação? O nosso bom intendente póde receiar alguma cousa do seu bom
amigo o Sr. Nabuco?”.22
Eram rotineiras as solicitações de destituição do Chefe de Polícia da Corte, sempre precedidas de denúncias de abusos do referido

funcionário:

E' com dôr que a côrte vê ser conservado como chefe de policia o Sr. Izidro Borges
Monteiro. A imprensa tem levado ao conhecimento do publico e governo actos por
demais escandalosos praticados por S.S., mas o governo, surdo aos clamores dos
habitantes desta grande e populosa cidade vai conservando esse homem, que por isso
mesmo julga-se necessario, e continua na carreira de seus desatinos a flagelar o povo.
Os actos do Sr. Izidro estão agravados de tal fórma na conciencia de todos que é
desnecessario lembra-los aqui; agora vamos acrescentar ás loucuras de S.S. mais um
acto de sua prepotencia; e para elle chamamos a attenção de Exm. Sr. ministro da
justiça para que faça justiça livrando-nos desse flagello.

21 BNRJ. “A PRONUNCIA DO DELEGADO DE POLICIA.” A Actualidade. Rio de Janeiro, fl.2. 5 Março 1859.
Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pesq=IzidroBorges
Monteiro&pasta=ano 1859>. Acessado em: 10 Outubro 2017.
22 BNRJ. “O SR. INTENDENTE DE POLICIA” A Actualidade. Rio de Janeiro, fl. 2. 12 Março 1859. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=235296&PagFis=23&Pesq=Izidro Borges Monteiro>.
Acessado em: 10 Outubro 2017.

937
A titulo de uma queixa pelo crime de roubo foi preso um indivíduo por um dos
subdelegados de nossa cidade; esse pobre homem ficou esquecido na corecção por
espaço de 6 mezes, sem que se lhe instaurasse o competente processo
Requereu elle então ordem de habeas-corpus ao Sr. juiz de direito da 2ª vara crime,
o juiz de direito concedeu-lh'a. A policia julgou-se offendida, e o Sr. chefe precisava
vingar-se do Sr. Dr. Juiz de direito que apresentado ao publico em sua ultima
correcção as mazellas da policia da côrte; e então no mesmo momento em que o
pobre infeliz ia ver-se livre de uma prisão arbitraria e injusta, o Sr. Izidro ao mesmo
tempo que se mandou dar ordem de soltura por virtude do habeas-corpus, ordenou
a prisão do homem á sua ordem !!! E assim se insulta o poder judiciario, e assim se
calca aos pés as regras de direito e de urbanidade, que o Sr. Izidro parece desconhecer
[…]
Se os abusos do Sr. Izidro não eram sufficientes, na opinião do governo, para demitti-
lo do cargo que tão mal exerce, julgamos que este facto que levamos ao
conhecimento do Sr. Muritiba é por si só sufficiente, para decretar-se a destituição
desse empregado que desconhece os seus deveres, destituição que o povo do Rio de
Janeiro ha muito tempo implora em altos brados. 23

Os abusos e as violações das leis tiveram continuidade no relato desse fato. O Juiz de Direito
no referido caso o Sr. Dr. Antonio Rodrigues da Cunha, recorreu ao tribunal da Relação no qual
unanimemente confirmou a sentença pronunciada por tal funcionário, mas, mesmo assim, o Chefe de
Polícia conservou o homem preso a sua ordem, desrespeitando a sentença de um Tribunal Superior.
A denúncia descrita no periódico termina com a indignação com os poderes públicos que nada fazem
a respeito das arbitrariedades de Izidro Borges de Monteiro e solicitam veemente sua destituição do
cargo, o que não ocorrera.
No dia 26 de Março é noticiado, munido de uma dura crítica, a saída de Nabuco de Araújo do
cargo de Ministro e Secretário dos Negócios da Justiça, devido seu envolvimento em um escândalo
na obtenção de apoio e adesão do Correio da Tarde ao ministério do qual fazia parte através de
quantias monetárias como sinal de pagamentos. Membros do Gabinete descontentes com Nabuco,
informaram que detinham recibos que comprovavam tais denúncias. Tal acusação somada as críticas
ao fato do mesmo ter decretado créditos suplementares para arcar com as despesas com a reforma da
Secretaria da Justiça e as necessidades da Polícia, foram o combustível para o desagrado de tal
personagem a cargo do Ministério. Exposto os fatos, soberanamente reprovada a atuação do Ministro
por parte de sua majestade, restando a Nabuco de Araújo a posição forçada de deixar seu cargo.
Segundo o periódico A Actualidade, a corrupção fora o motivo da destituição de Nabuco de
Araújo Filho de seu cargo: “O Sr. Nabuco cahiu, porque tentou corromper a imprensa, e a coróa

23 BNRJ. “COMMUNICADO.” A Actualidade. Rio de Janeiro, p.4. 25 Maio 1859. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=235296&PagFis=86&Pesq=Izidro Borges Monteiro>. Acesso
em: 03 Agosto 2017.

938
desapprovou semelhante acto.”24 O periódico por vezes relatava a palavra corrupção a degradante
política imperial, onde as ações do governo, a razão política e o interesse público foram substituídas
por uma prática de corrupção dentro do governo imperial25.
Mas o que nos remete ao fatídico caso de Nabuco é a proximidade dos dois agentes públicos,
o periódico A Actualidade relata que no caso de corrupção envolvendo o Ministro da Justiça Nabuco
de Araújo, o ex-redator do Correio da Tarde e o Chefe de Polícia Izidro Borges Monteiro, todos
envolvidos no suborno ao do Jornal Correio da Tarde para publicar matérias de apoio a tal ministério
e após a compra do mesmo Jornal, foram financiados com verbas do próprio Ministério da Justiça.
Na denúncia, Izidro Borges Monteiro era o figurante que entregara o dinheiro onde selava o acordo
entre Nabuco de Araújo e o antigo dono do jornal.26

4 – CONCLUSÃO

A historiografia e os periódicos pesquisados, a ilustração da situação comportamental


sociopolítica, a relação do poderio da polícia perante a sociedade e principalmente o campo das redes
governamentais na metade dos Oitocentos, confirmamos que o Chefe de Polícia da Corte Izidro
Borges Monteiro detinha todas as características para está inserido no circuito restrito da elite política
cortesã. Destacamos sua participação social representada nas diversas associações e a grupos de
influência sociais; segundo por ser um homem com estudos superiores e mais especificamente
Bacharel em Direito, que o diferenciava de outros bacharéis, pois naquele momento estava o Estado
sob forte influência dos militantes do Direito, já que sua burocracia estatal era composta de maioria
de operadores do Direito, inclusive no poder Executivo quanto no poder Legislativo e assim formando
um grupo distinto com gnose e preparação para conduzir a nação.
As exposições dos fatos demonstra-nos que assoberba de Izidro Borges de Monteiro, assim
como seus atos arbitrários e criminosos quanto Chefe de Polícia, estavam sob a égide dos anseios
políticos e assim podemos entender que as forças policiais eram e continuam sendo aparelhos de

24 BNRJ. “O FUTURO” A Actualidade. Rio de Janeiro, p.1. 12 de mar. 1859. disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=235296&PagFis=28&Pesq=Izidro Borges Monteiro>.
Acessado em: 10 out. 2017.
25 BNRJ. “A RETIRADA DO SR. NABUCO.” A Actualidade. Rio de Janeiro, fl.1. 26 mar, 1859. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=235296&PagFis=35&Pesq=Izidro Borges Monteiro>.
Acessado em: 10 out. 2017.
26 BNRJ. “A IMPRENSA E O GOVERNO”. A Actualidade. Rio de Janeiro, fl.1. 19 mar. 1859. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=235296&pesq=Izidro%20Borges%20Monteiro>. Acessado
em: 03 ago. 2017.

939
contendas entre as facções políticas que estão no cerne do poder. Observamos que o poder de coerção
sempre esteve as ordens e aos mandos dos interesses políticos e que muitas das vezes não permitia
que a instituição policial pudesse cumprir efetivamente sua função pública e social. Desse jeito, tanto
no século XIX como nos tempos atuais, os interesses políticos limitavam suas funções em duas
atuações, a primeira manter os pobres reclusos em áreas restritas ou em áreas longínquas e o segundo
cercear o direito as ruas e auxiliar de forma contundente aos anseios da alta sociedade e as aprovações
de medidas e leis nos parlamentos.

5– REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

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perspectiva. Revista Topoí, Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, v. 14, n. 26,
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CARVALHO, Carlos Delgado de. História da Cidade do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura – Divisão de Editoração, 1990. 125 p.

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política imperial. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 459 p.

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corte. Rio de janeiro: Zahar, 2001. 316 p.

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Janeiro: Ed. PUC Rio/Contratempo, 2016. 368 p.

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exercícios críticos. Curitiba: UFPR, 2010. p. 205 – 234.

940
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XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO,
José (dir). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa, s/d. p. 381-393.

941
“Lá não existe escuridão”:
representações literárias sobre Lagos em “A Paz Dura Pouco” de Chinua Achebe

Giovanni Garcia Mannarino1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as transformações sociais e culturais ocorridas no
processo de urbanização das cidades nigerianas, em especial Lagos, nos anos anteriores à conquista
da independência em 1960. Para isso, faremos uma análise a partir do romance “A Paz Dura Pouco”
de Chinua Achebe, um dos intelectuais mais renomados do país. A obra conta a história de Obi
Okonkwo, um estudante que, nascido no interior do país, migra para Inglaterra onde cursa a faculdade
e, a seguir, para a capital do seu país, Lagos, onde começa a trabalhar. Ao longo do romance, o
personagem produz uma série de representações acerca da cidade que vão de uma idealização positiva
em um primeiro momento à uma visão mais crítica com o passar do tempo.

Palavras-chave: Lagos; literatura nigeriana; Chinua Achebe.

Abstract: This work aims to analyze the social and cultural transformations that occurred in the
urbanization process of Nigerian cities, especially Lagos, in the years before the conquest of
independence in 1960. For this, we will analyze the novel "No longer at Ease" of Chinua Achebe,
one of the most renowned intellectuals in the country. The work tells the story of Obi Okonkwo, a
student born in the countryside of Nigeria, moved to England where he attends college and then to
the capital of his country, Lagos, where he begins to work. Throughout the novel, the character
produces a series of representations about the city ranging from a positive idealization at first to a
more critical vision with the passage of time.

Keywords: Lagos; Nigerian literature; Chinua Achebe.

Quando garoto, no vilarejo de Umuofia, Obi tinha ouvido suas primeiras histórias
sobre Lagos contadas por um soldado que veio da guerra para casa [...]‘Lá não existe
escuridão’, contou ele para seus ouvintes admirados. ‘Porque de noite a luz elétrica
brilha feito o sol e as pessoas vivem andando para lá e para cá, quer dizer, as pessoas
que querem andar. Se você não quiser andar, é só abanar a mão que carros de luxo
param logo para você.2

Durante muitos anos, a imagem que Obi Okonkwo tinha da cidade de Lagos era esta, formada
a partir das histórias que ele tinha ouvido de soldados durante a sua infância e, sua aldeia natal,
Umuofia, no sudeste da Nigéria. Estes militares eram heróis locais por terem lutado na Segunda
Guerra Mundial e por terem estado em lugares como a Abissínia, o Egito, a Palestina e outros nas

1
Mestrando no Programa de Pós-graduação em História da UERJ com o apoio da CAPES. Contato:
ggmannarino@gmail.com
2
ACHEBE, Chinua A paz dura pouco. Traduzido por Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 22-
23.

942
fileiras do exército inglês. Sua palavra, portanto, era repleta de autoridade e suas histórias tidas como
verdades absolutas.
Nem mesmo a primeira visita que o personagem fez a Lagos foi suficiente para desconstruir
essa caricatura sobre a capital nigeriana. Obi conhece a cidade apenas de passagem, por uma noite,
quando estava indo tomar um avião para a Inglaterra onde ele iria cursar a faculdade. Nesta ocasião,
Obi ficou hospedado na casa de um amigo da época da escola que havia se mudado para a capital há
alguns anos.
“Joseph tinha tanta coisa para contar para Obi em sua primeira noite em Lagos que já passava
das três horas quando foram dormir. Contou-lhe a respeito do cinema, dos salões de dança e das
reuniões políticas”3. Estas histórias contadas por seu amigo e a rapidez da estadia contribuem para
não modificar, inicialmente, a imagem que o jovem nigeriano tinha construído sobre Lagos. A cidade,
então, permaneceu estreitamente ligada à luz elétrica e automóveis.
Obi é o personagem principal do livro “A Paz Dura Pouco” (1960), de Chinua Achebe (1930-
2013). O autor é um dos mais renomados da Nigéria. Escrevendo no contexto das mobilizações
nacionalistas da década de 1950 e da independência do país em 1960, sua obra contribuiu para
resgatar o “poder de narrar”4 que até então estava nas mãos dos colonizadores britânicos. E não só
isso, os romances de Achebe oferecem como legado um conjunto de histórias para fomentar a
identidade e a construção da nação nigeriana que estavam em luta para se estabelecer naquele
contexto.
O livro “A Paz Dura Pouco”, é o segundo do autor, lançado em 1960. Dois anos antes ele
havia publicado seu romance mais conhecido, “O Mundo se despedaça” 5 (1958). A intenção de
Achebe era produzir um romance que contaria a história de três gerações da família Okonkwo
passando pelos principais acontecimentos da história do país, desde a chegada dos colonizadores,
passando pela dominação estrangeira consolidada, até a independência. O projeto, no entanto, se
tornou inviável e ele preferiu produzir um romance para cada uma das etapas.6
“A Paz Dura Pouco”, portanto, seria a terceira destas fases e conta a história do jovem
igbo/nigeriano Obi Okonkwo que estudou na Inglaterra e acabou de retornar a Lagos na Nigéria. Ao
chegar, ele consegue um emprego público e começa a se vê rodeado por uma série de ofertas de
propina. O jovem, que estava passando por problemas financeiros, depois de muito resistir, acaba
aceitando as ofertas, é flagrado e preso.

3
ACHEBE, 2013, p. 24.
4
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 11.
5
ACHEBE, Chinua, O Mundo se despedaça. Traduzido por Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
6
BONETTI, Kay. “An interview with Chinua Achebe”. The Missouri Review. Columbia: University of Missuri, v. 12, n.
1, 1989, p. 75.

943
O enredo é contato por um narrador em terceira pessoa e percorre a vida do jovem protagonista
desde sua infância até o momento em que ele está sendo julgado por corrupção. A sequência do livro,
no entanto, não é cronológica. A obra começa já com Obi no banco dos réus e a história vai sendo
contada, sendo usado, para isso, pelo narrador, diversos recuos no tempo para entendermos como ele
chegou até ali.
O livro é ambientado nos anos 1950, período pré-independência e o seu autor, mesmo antes
da libertação, já faz uma série de críticas aos rumos que o país estava percorrendo, principalmente
em relação à corrupção generalizada, personalismos e divisionismos que dificultavam a criação de
uma identidade nacional. Neste sentido, os escritores africanos foram os primeiros intelectuais a trazer
à tona, diante de um amplo público interno e externo do continente africano, as profundas questões
sobre a corrupção dentro de governos pós-coloniais e o grau de persistência da dominação externa.7
Lagos, no período onde o livro é escrito e ambientado, estava passando por um intenso
processo de urbanização. A cidade que tinha aproximadamente 42 mil habitantes em 1901 passa para
126 mil em 1931 e 675 mil em 1963 8 . Os habitantes do interior eram atraídos não só pelas
oportunidades de emprego, mas por todo um estilo urbana que propagava uma imagem de
modernidade, de convívio entre populações de diversas origens, de possibilidades de estudo nas
escolas ocidentais e de luxos como eletricidade e automóveis9.
Neste trabalho, pretendo analisar as representações que Chinua Achebe constrói sobre Lagos
a partir do personagem principal de seu romance. O meu argumento é que Obi representará essa
esperança nigeriana em relação à Lagos e à Nigéria no contexto da independência. Esta expectativa,
no entanto, vai sendo frustrada e a realidade miserável, corrupta e caótica da capital e do novo país
vão se tornando uma realidade para Obi e seus compatriotas fazendo com que a paz dure pouco.

Lagos em A Paz Dura Pouco

Quando retornou à Nigéria, Obi consegue um emprego em uma repartição público, um cargo
do primeiro escalão, tido como ‘cargo europeu’. Até aquele momento poucos nigerianos eram aceitos
na administração colonial inglesa nos cargos mais elevados. É apenas no final dos anos 1940 e início

7
COOPER, Frederick. “Conflito e Conexão: repensando a história colonial da África”. Anos 90. Porto Alegre: UFRGS,
v. 15, n. 27, 2008, p. 31.
8
ALUKO, S. A. “How Many Nigerians? An Analysis of Nigeria's Census Problems, 1901-63”. The Journal of Modern
African Studies. New York: Cambridge University Press, v. 3, n. 3, 1965, p. 374.
9
FALOLA, Toyin; HEATON, Matthew M. A History of Nigeria. London: Cambridge University Press, 2008, p. 155.

944
da década de 1950 que os britânicos iniciam um processo de abertura do regime e de uma lenta
transferência de poder para os nigerianos. É nesse contexto em que acontece o que ficou chamado de
nigerianização do serviço público10.
Não eram apenas os cargos que eram reservados para os colonizadores. Estes também criaram
em Lagos grandes bairros para abrigar os ingleses que no romance aparecem com o nome de ‘reservas
para europeus’. Neles, casas luxuosas e bem equipadas eram oferecidas para os membros da alta
hierarquia da administração colonial. Na reta final do período colonial e com o poder sendo aos
poucos transferidos para os nigerianos, cada vez mais nativos conseguiam residências nestas reservas,
principalmente os que conseguiam cargos de primeiro escalão. A partir do contexto pós-
independência, seriam as elites locais que habitariam nestes bairros.
A diferença entre estes bairros e o restante da capital era tão grande que Obi se surpreendia
pensando que Lagos tinha ‘duas cidades em uma só’11. Um destes bairros era Ikoyi, onde Obi vai
receber uma casa assim que é contratado para ocupar um ‘cargo europeu’ no serviço público. O bairro
era repleto de chalés e apartamentos luxuosos e tinha uma vasta vegetação muito bem tratada. 12 O
que chocava o jovem, no entanto, era o fato de que aquele bairro diferia totalmente do restante de
Lagos.
Divanize Carbonieri, em sua análise sobre outro romance nigeriano que toma Lagos como
cenário – GraceLand (2004), de Chris Abani -, afirma que as representações das favelas de Lagos e
de sua miséria são um questionamento da continuidade da colonialidade nos dias de hoje 13 . E
utilizando conceitos lançados por Fanon, argumenta que a Lagos possui uma ‘cidade do colonizador’
solidamente construída de ferro e pedra, iluminada e asfaltada e uma ‘cidade colonizada’, repleta de
lama14.
É justamente esta divisão que choca o protagonista de “A Paz Dura Pouco”. Segundo Obi, ir
da área continental de Lagos para Ikoyi era como ir de uma feira para um enterro. Enquanto a cidade
como um todo era barulhenta e tinha um trânsito caótico, Ikoyi era totalmente desprovida de ‘vida
comum’ e da pulsão natural da cidade. Nem mesmo taxis passavam ali já que era comum que os
moradores tivessem automóveis.15
A imagem que o personagem tinha construído de Lagos vai, aos poucos, se modificando. Obi
se dá conta de que a capital da colônia não era apenas um lugar repleto de luz elétrica, luxos e

10
FALOLA, Toyin; HEATON, Matthew M., 2008, p. 148.
11
ACHEBE, 2013, p. 28.
12
ACHEBE, 2013, p. 28.
13
CARBONIERI, Divanize. “Graceland e Cidade de Deus: subvertendo a colonialidade nas favelas de Lagos e Rio de
Janeiro”. Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v. 13, n. 2, p. 62-83, 2015, p. 62.
14
FANON apud CARBONIERI, 2015, p. 80.
15
ACHEBE, 2013, p. 110.

945
automóveis. Também era um espaço de contradições, desigualdade social, miséria, corrupção e
desordem. A partir dessa nova percepção, podemos entender como o personagem construído por
Achebe vai produzir uma série de representações sobre a cidade, diferentes daquelas iniciais e idílicas.
Uma das cenas do romance que retrata isso com muita exatidão é quando Obi acompanha sua
namorada Clara até a casa de sua costureira, que ficava em uma das favelas de Lagos. Enquanto
esperava, perto do carro, o jovem ficou observando o local e sua mente se lembrou das primeiras
impressões que ele tivera da cidade. Ele não conseguia imaginar como lugares como aquela favela
convivia “lado a lado com carros, luzes elétricas e garotas bem vestidas”16. Enquanto pensava isso,
ele sentiu um cheiro forte de carne podre vindo de uma vala próxima, que servia para escoar a água
da chuva. Era o cadáver de um cachorro que se deteriorava.17 A descrição da cena continua:

Do lado oposto ao da vala [...] havia uma barraca que vendia carne. Não tinha
nenhuma carne, nem vendedores de carne. Mas um homem que mexia numa
maquininha em cima de uma das mesas. Parecia uma máquina de costura, só que ele
estava moendo milho [...] Do outro lado da estrada, um garotinho enrolado num pano
vendia bolinhos de feijão ou acará, debaixo de um poste de iluminação. Sua tigela
estava em cima da terra e o menino parecia semiadormecido. Mas na verdade não
estava, pois assim que o homem quer recolhia as fezes deixadas nos penicos passou,
balançando sua vassoura e seu lampião antigo, e arrastando atrás de si nuvens de
putrefação, o menino rapidamente se pois de pé, com um pulo, e desatou a xingá-lo.
O homem brandiu a vassoura contra o menino, só que ele já tinha fugido com a tigela
de acará na cabeça. O homem que moía milho deu uma gargalhada [...]. O homem
que recolhia o conteúdo dos penicos sorriu e seguiu seu caminho, depois de exclamar
alguma coisa bem grosseira a respeito da mãe do garoto.18

Esse trecho é bastante significativo das impressões que o autor desejava passar para os seus
leitores de qual como era a cidade de Lagos do contexto da independência. Um cenário no qual fezes,
cadáveres e valas conviviam com os alimentos e as pessoas. Obi chega, então, a conclusão de que
“isto é Lagos, a Lagos de verdade”19, não aquela cidade que o jovem tinha imaginado em um primeiro
momento.
Quando estava em Londres, depois de ter passado alguns dias na capital onde tomaria um
avião para a Europa, Obi escreveu um poema, não especificamente sobre Lagos, mas sobre a Nigéria,
repleto de imagens idílicas sobre o seu país e que tinha versos como estes: “Como é doce ficar deitado
embaixo de uma árvore/ De tardinha e compartilhar o êxtase/ De pássaros alegres e de frágeis
borboletas [...]”.

16
ACHEBE, 2013, p. 25.
17
ACHEBE, 2013, p. 25.
18
ACHEBE, 2013, p. 26.
19
ACHEBE, 2013, p. 26.

946
Enquanto esperava Clara voltar da costureira e depois de ter observado toda aquelas cena na
favelas de Lagos, Obi se lembra deste poema, olha para o cachorro na vala, sorri e diz: “Já provei
carne pútrida como iguaria”. Fazendo referência a um poema de T. S. Eliot para acentuar o tom de
melancolia que o personagem assume ao tomar consciência da situação da cidade. E conclui: esse
poema sim é ‘muito mais adequado’ à realidade de Lagos.20
Não foi a primeira vez que Eliot aparece no romance. Um de seus poemas já havia ilustrado a
epígrafe do livro:

Voltamos para nossas moradas, estes Reinos,


Mas a paz dura pouco aqui, nos antigos domínios
Com um povo estrangeiro, aferrado a seus deuses.
Uma outra morte me deixaria feliz.21

Este trecho trás um tom que é muito marcante nos romances de Achebe, de mudança após o
encontro entre dois mundos22. O segundo verso é escolhido pelo autor, inclusive, para dar nome a seu
livro: A Paz Dura Pouco (No longer at Ease, no original em inglês). Sua intenção é mostrar que Obi,
seu protagonista, não estava mais a vontade em sua terra natal depois do retorno da Inglaterra. A
Nigéria não era aquele país que ele tinha idealizado e a percepção do caos local começa a se formar
na mente do jovem, principalmente a partir daquela noite na favela, enquanto esperava sua
namorada23.
Depois de reencontrar Clara eles tomam o carro para voltar para casa. O percurso até Ikoyi
também vai ser marcado por uma série de referências à cidade de Lagos: aqui o barulho, as ruas cheias
e o trânsito caótico serão os principais marcos. Enquanto saíam da favela, as ruas são descritas como
‘estreitas e superlotadas’. Logo depois elas ficam ‘barulhentas e cheias’. Era um sábado a noite e a
cidade estava repleta de grupos de dançarinos uniformizados e tocadores de tambores falantes. Obi,
então reduz a velocidade para passar por um “numeroso grupo de mulheres jovens em roupas de
damasco e de veludo, rodando os quadris na cintura como bilhas de rolamento bem lubrificadas”. Ao
diminuir a velocidade, um taxi que vinha logo atrás começa a buzinar e ultrapassa inclinando o corpo
pela janela para xingar Obi. Logo em seguida, um ciclista atravessou a rua sem olhar ou fazer qualquer
sinalização, forçando Obi a frear o veículo.24 Estas imagens vão reforçando a ideia de uma cidade
caótica, barulhenta e superlotada.

20
ACHEBE, 2013, p. 27.
21
ELIOT apud ACHEBE, 2013, p. 7.
22
PEREIRA, Fernanda Alencar. Literatura e política: a representação das elites pós-coloniais africanas em Chinua
Achebe e Pepetela. Belo Horizonte: UFMG, 2012. Tese (Doutorado em Estudos Literários), Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2012, p. 102.
23
PEREIRA, 2012, p. 103.
24
ACHEBE, 2013, p. 27.

947
A vida noturna e as opções de lazer de Lagos voltam a ser representadas por Achebe em ao
menos outras duas ocasiões. A primeira delas foi quando Obi leva Clara ao cinema. O jovem não
gostava muito de cinema, ainda mais dos filmes que a namorada gostava, que ele descrevia como
sendo de ‘orgias de matança’25, mas topou ir com ela naquela ocasião. Enquanto os personagens do
filme eram assassinados o narrador descreve como se comportavam os espectadores: “Na parte de
baixo da plateia, o público que pagava um shilling pelo ingresso participava ruidosamente da ação”26.
A partir disso, podemos inferir que espaços de lazer em Lagos colonial apresentavam algum
nível de segregação. Em Luanda, por exemplo, como nos mostra Washington Nascimento, existiam
salas de cinema voltadas para os ‘civilizados’ (brancos, crioulos e novos assimilados) e para os ‘não-
civilizados’ (‘indígenas’). A separação também poderia acontecer na divisão das cadeiras, quando a
entrada era permitida para diferentes grupos:

os “indígenas” ficavam nos bancos mais próximos à tela; logo atrás deles, nas
cadeiras, sentavam-se os crioulos empobrecidos ou os “novos assimilados”; e, nos
assentos mais modernos, muitas vezes estofados, ficavam crioulos mais ricos e os
portugueses. Para cada uma dessas seções, o valor do bilhete era diferente.27

Esta última realidade nos parece muito semelhante à representada por Chinua Achebe em seu
romance. No cinema, sentavam na parte baixa os espectadores que pagavam os ingressos mais baratos
e, sobre eles, é produzida uma visão bastante caricaturada sobre o seu comportamento, afirmando que
eles assistiam ao filme ‘participando ruidosamente da ação’, conotando sua suposta “selvageria”.
Em outra ocasião, Clara e Obi iram sair com Christopher, um amigo economista de Obi e sua
nova namorada, Bisi. Depois de debaterem um pouco decidiram o que fariam naquela noite para se
divertir. Entre ir ao cinema e sair para dançar, preferiram esta última. Obi, então, pega uma gravata
emprestada com o amigo. O apetrecho não era obrigatório no local que eles escolheram para ir, mas
ninguém em Lagos daquele período “queria ficar parecendo um boma, um garoto da roça”28.
Aqui o jogo de identidades aparece e as contradições entre campo e cidade em um contexto
de intenso êxodo rural ficam evidentes. Obi, mesmo sendo oriundo do interior da Nigéria, não quer
ficar parecendo um ‘garoto da roça’. Ainda mais que ele tinha vivenciado quatro anos no exterior e
isto contribuía para garantir a ele um diferencial de status em relação aos seus compatriotas.

25
ACHEBE, 2013, p. 29.
26
ACHEBE, 2013, p. 29.
27
NASCIMENTO, Washington Santos. “Pretos, do mato e elite letrada: os novos assimilados em Luanda (1940 - 1960)”.
In: SANTANA, Marise de; NASCIMENTO, Washington S.; FERREIRA, Edson D. (Org.). Etnicidade e trânsitos:
estudos sobre Bahia e Luanda. 1 ed. Jequié/BA - Rio de Janeiro/RJ, p. 145-242, 2017.
28
ACHEBE, 2013, p. 128.

948
Nesta passagem também devemos questionar quem em Lagos tinha condições financeiras de
bancar diversões como estas naquele período. Certamente não era um espaço possível a todos.
Podemos, então, questionar a passagem que diz “ninguém queria ficar parecendo um boma, um garoto
da roça”. Quem seria esse ninguém? Com certeza não toda a população de Lagos, muito
provavelmente a elite mais afortunada.
Outra temática presente nas representações que Achebe faz sobre Lagos é a
criminalidade. E esta vai além da corrupção, que será denunciada constantemente não apenas em “A
Paz Dura Pouco”, mas em grande parte da literatura nigeriana em língua inglesa. Também aparece
no romance cenas de criminalidade urbana. Nesta mesma noite em que Obi e seus amigos saíram para
dançar, Obi estacionou seu carro próximo ao clube onde acontecia a festa. Como as ruas estavam
muito lotadas, parou espremido entre dois outros carros e “meia dúzia de moleques maltrapilhos” se
aproximaram para se oferecerem para vigiar o carro 29. Não era hábito de Ob dar gorjetas para os
meninos – que ele chamava de ‘delinquentes juvenis’ – naquele tipo de ocasião, mas não falaria isso
para eles antes de voltarem. Quando retornaram da festa, o carro ainda estava lá, mas os meninos não.
A porta do carona estava aberta e uma quantidade significativa de dinheiro que estava no guarda-
luvas tinha sido roubada30.
Durante uma visita a seus familiares no interior da Nigéria, na região sudeste do país,
em uma cidade fictícia chamada Umuofia, Obi conversa com seus pais sobre como era a vida na
capital. O pai pergunta, então: “Como estava toda nossa gente em Lagos, quando você os deixou?”
31
. Obi responde que a cidade era “grande demais” e que poderiam percorrer grandes distâncias e
ainda “continuar dentro de Lagos”32. O pai concorda, mas arremata: “De fato, [...] mas em uma terra
estranha, a gente deve sempre ficar perto de nossos irmãos de etnia”33.
Neste trecho podemos observar como a cidade era comumente retratada pela sua
grandiosidade, algo inusitado para os habitantes do interior que não a conheciam. Nas décadas
seguintes após a independência, Lagos cresceria ainda mais sendo atingindo, hoje em dia, o posto de
uma das maiores metrópoles do mundo. Estima-se que a cidade cresceu atualmente para 13,5 milhões
de habitandes34.
Além do crescimento urbano, o trecho anterior nos permite perceber como era tensa a
convivências dos diferentes grupos etno-linguísticos na cidade de Lagos, a ponto do pai de Obi
orientá-lo a ficar próximo de ‘sua gente’ naquela ‘terra estranha’. Alguns autores defendem que este

29
ACHEBE, 2013, p. 129.
30
ACHEBE, 2013, p. 133.
31
ACHEBE, 2013, p. 150.
32
ACHEBE, 2013, p. 150.
33
ACHEBE, 2013, p. 151.
34
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Traduzido por Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 19.

949
senso de solidariedade - que era bastante restrito quando retratados nos primeiros romances nigerianos
– sofreu uma transformação nos romances contemporâneos. Lagos aparece hoje em dia como um
grande centro transcultural onde as influencias das diversas regiões da Nigéria e do mundo são
absorvidas pacificamente35.
A partir de todas estas representações construídas por Chinua Achebe em “A Paz Dura
Pouco” podemos concluir que a imagem de cidade que ele queria passar a seus leitores era de um
espaço caótico. O trânsito carregado, superlotada, uma estrutura decadente, criminalidade, barulho e
miséria aparecem ao longo de todo o romance. Aquela imagem idílica formada sobre Lagos por Obi
na sua infância vai, aos poucos, sendo desconstruída. Nosso argumento é de que este foi um
mecanismo utilizado pelo autor para representar o sonho com uma nação livre e melhor que os
nigerianos tinham ao planejar a independência, mas que vai se perdendo quando a realidade pós-
colonial chega trazendo uma série de dificuldades para a jovem nação.
Segundo Dunton, no início do século XXI Lagos se torna uma das cidades mais
ficcionalizadas do mundo, algo parecido com o que aconteceu com Paris e Londres no início do século
anterior. Diversos romances são produzidos tomando a cidade como cenário principal ou mesmo
como personagem. Exemplos dessa produção são “Graceland” (2004, de Chris Abani; “Roots in the
Sky” (2004), de Akin Adesokan; “Everything Good Will Come” (2005) DE Sefi Atta; “Walking with
shadows” (2006) de Jude Dibia e “Waiting for na Angel” (2002), de Helon Habila. Para o autor,
diversas continuidades podem ser identificada entre os primeiros romances a tomar Lagos como
cenário/personagem e estes: a hibridização da população, a economia informal, a falta de
infraestrutura ou seu colapso, a miséria, as atrações da vida noturna (pra quem pode bancá-la) e a
criminalidade, seja dos políticos corruptos ou dos ladrões36.
Apesar disso, Dunton argumenta que há uma diferença evidente entre os romances
escritos no contexto da independência e os contemporâneos. Aqueles tomariam a cidade como
cronistas ou comentaristas sociais. Já os romances mais modernos apresentariam o que o autor chama
de ‘entalpia’, uma energia pulsante que evidenciaria o caos, a desordem, a impessoalidade e o
descontrole urbano para fazer uma crítica social mais profunda denunciando o agravamento das
tensões vividas no ambiente urbano do início do novo milênio.
Em diversos momentos, portanto, os romancistas nigerianos vão escrever sobre Lagos
para fazer uma denúncia da situação social precária da cidade. Seja no contexto da independência ou
atualmente, os romances se tornam, portanto, importantes instrumentos para conhecermos melhor a

35
EZE, Chielozona. “Cosmopolitan and Solidarity: Negotiating Transculturality in Contemporany Nigerian Novels”.
English in Africa. Grahamstown: Rhodes University, v.32, n.1, 2005, p. 104.
36
DUNTON, Chris. “Entropy and energy: Lagos as City of Words”. Research in African Literatures. Bloomington:
Indiana University Press, v. 39, n. 2, 2008, p. 71.

950
realidade urbana do país. Como argumenta Onookome Okome: “Vivemos na era da cidade. A cidade
é tudo para nós - ela nos consome, e por esta razão a glorificamos”37.

Bibliografia

ACHEBE, Chinua A paz dura pouco. Traduzido por Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2013.
__________________. O Mundo se despedaça. Traduzido por Vera Queiroz da Costa e Silva. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ALUKO, S. A. “How Many Nigerians? An Analysis of Nigeria's Census Problems, 1901-63”. The
Journal of Modern African Studies. New York: Cambridge University Press, v. 3, n. 3, p. 371-392,
1965.
BONETTI, Kay. “An interview with Chinua Achebe”. The Missouri Review. Columbia: University
of Missuri, v. 12, n. 1, p. 61 – 83, 1989.
CARBONIERI, Divanize. “Graceland e Cidade de Deus: subvertendo a colonialidade nas favelas de
Lagos e Rio de Janeiro”. Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v. 13, n. 2, p. 62-83, 2015.
COOPER, Frederick. “Conflito e Conexão: repensando a história colonial da África”. Anos 90. Porto
Alegre: UFRGS, v. 15, n. 27, 2008.
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Traduzido por Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006.
DUNTON, Chris. “Entropy and energy: Lagos as City of Words”. Research in African Literatures.
Bloomington: Indiana University Press, v. 39, n. 2, p. 68-78, 2008.
EZE, Chielozona. “Cosmopolitan and Solidarity: Negotiating Transculturality in Contemporany
Nigerian Novels”. English in Africa. Grahamstown: Rhodes University, v.32, n.1, p. 99-112, 2005.
FALOLA, Toyin; HEATON, Matthew M. A History of Nigeria. London: Cambridge University
Press, 2008.
NASCIMENTO, Washington Santos. “Pretos, do mato e elite letrada: os novos assimilados em
Luanda (1940 - 1960)”. In: SANTANA, Marise de; NASCIMENTO, Washington S.; FERREIRA,
Edson D. (Org.). Etnicidade e trânsitos: estudos sobre Bahia e Luanda. 1 ed. Jequié/BA - Rio de
Janeiro/RJ, p. 145-242, 2017.
PEREIRA, Fernanda Alencar. Literatura e política: a representação das elites pós-coloniais
africanas em Chinua Achebe e Pepetela. Belo Horizonte: UFMG, 2012. Tese (Doutorado em Estudos
Literários), Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 2012.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

37
OKOME apud DAVIS, 2006, p. 13.

951
Dois pesos e duas medidas: a dinâmica "partidária" na primeira metade do Brasil Imperial

Glauber Miranda Florindo 1

Resumo: Nesta comunicação discutiremos as consequências trazidas, pelas ditas “Leis do Regresso”
- Lei de Reforma do Código de Processo Criminal, de 1841 - no que diz respeito à organização
judiciária. Consideramos que o Poder Judiciário era um importante lócus de exercício de poder, pois,
sob a égide da lei que a regulava anteriormente – Código do Processo Criminal de 1832 - as
nomeações dos cargos seriam feitas pelas entidades locais, o que fazia do judiciário mais um campo
de disputas políticas.

Palavras-chave: Poder Judiciário; Leis do Regresso; Estado Nacional.

Abstract: In this communication we discuss the consequences brought by the so-called "Law of
Return" - The Reform Law of the Criminal Procedure Code, 1841 - regarding the judiciary
organization. We believe that the judiciary was an important locus for the exercise of power, because,
under the duration of the law that was previously regulated - Criminal Procedure Code of 1832 - the
designations of the positions would be made by local entities, which made of the judiciary one more
field of political disputes.

Keywords: Judiciary; Law of return; National State.

É proposta deste trabalho analisar o modo como é organizado o Poder Judiciário a partir da
lei número 261, de 3 de dezembro de 1841 que o reforma. Temos como hipótese que a mudanças
ocorridas se justificam pela tentativa de dar maior centralidade á Coroa e garantir uma estrutura
segura para o processo de formação do Estado que se desenvolvia naquele período. Pensamos o Poder
Judiciário como um lócus de disputas políticas partidárias locais que nem sempre serviriam aos
desígnios da Coroa e, portanto, seria intento da Monarquia instituir uma maior estruturação sobre este
setor. Nesse sentido é nossa intenção ressaltar que o estudo acerca da organização judiciária, ocorrida
na primeira metade dos oitocentos, pelo prisma da temática da formação do Estado no Brasil pode
trazer á baila questões, como por exemplo, a dinâmica partidária do Império, a qual nós exploraremos
a partir deste item.
Em 1844 o vigário José Antônio Marinho ao escrever “Ao público”, capítulo que serve de
prefácio em seu livro: a História da revolução de 1842, diz:

O leitor imparcial se há de convencer em presença dos fatos, de que um verdadeiro


temor pelas liberdades públicas, suscitando nos ânimos de todos por uma cavilosa
política, dera causas aos movimentos políticos de 1842; que uma facção, que, para
fazê-la melhor conhecida, irei buscar em seu berço, e lhe acompanharei as

1
Doutorando pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Contato:
gmfhis@gmail.com.

952
tendências, a inimiga invariável de Liberdade do Brasil, se erguera ameaçadora em
18422.

Nesse fragmento que anuncia as intenções do autor, a de ir à defesa dos que defenderam as
ditas liberdades públicas no evento de 1842, uma palavra nos é cara: “facção.” Seja no livro escrito
pelo Cônego Marinho, seja nos autos dos inquéritos da dita Revolução de 1842 ou ainda nos relatórios
e discursos proferidos por ministros e deputados que travaram discussões acerca das leis de reforma
do Código de Processo Criminal e de interpretação do Ato Adicional, palavras como “partido” e
“facção” são comuns, mas qual o sentido exato em que são empregadas?
Neste item analisaremos a forma como a historiografia interpreta a idéia de partido e facção,
e intentaremos uma nova abordagem que tenta considerar novos atores, os quais teriam agido sob tais
vocábulos, para tanto tentaremos compreender o que os homens da primeira metade do XIX
entendiam por “partido” e “facção”.
José Murilo de Carvalho defende que somente a partir de 1837, em conseqüência da
descentralização trazida pelo Código de processo Criminal em 1832 e pelo Ato Adicional em 1834,
e também em decorrência das rebeliões durante a Regência, se poderia falar da existência de partidos
políticos no Brasil3. A partir de então surgiria dois partidos: o Conservador, liderado por Bernardo
Pereira de Vasconcelos que defendia as reformas das “leis de descentralização” através do que ele
intitulava como “regresso”. E o segundo partido, que defendia a descentralização, intitulado de
Liberal4.
Segundo o autor, apenas em 1864 foi elaborado o primeiro programa partidário, pelo partido
Progressista, porém até 1864, os programas dos partidos Liberal e Conservador só podem ser
inferidos, alega Carvalho, através dos discursos e programas governamentais de seus líderes,5 dessa
forma as divergências entre ambos são, quase em sua totalidade, acerca das tensões entre questões de
centralização e descentralização6.
Para entendermos a amplitude da discussão lançada por Carvalho, sobre o papel dos partidos
no que diz respeito à consolidação da ordem estatal, é importante considerar que os “matizes da
ordem”: padres, soldados e juízes, ou seja, os integrantes da elite burocrática imperial possuíam
alguns compromissos em comum: “O fortalecimento do estado, a visão nacional, a oposição ao
localismo, ao predomínio excessivo de grupos ou setores de classe”7.

2
MARINHO, José Antônio. História da Revolução de 1842. Brasília: Senado federal, 1978.
3
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem. A elite política imperial / Teatro de Sombras. A política
imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. P.204
4
Ibidem. P.204
5
Ibidem. P.205
6
Ibidem. P.206
7
Ibidem. P.194

953
Desse modo, na visão do autor, os partidos políticos representariam a amplitude da elite
imperial e até mesmo a clivagens advindas de uma elite não-burocrática (profissionais liberais)8.
Segundo Carvalho, se combinarmos as informações sobre programas e ideologias partidárias,
mais a origem social e regional dos componentes partidários com o debate acerca de questões como
a centralização e a escravidão, pode-se “tentar formular uma visão mais ampla da natureza e do
sentido do sistema partidário Imperial” 9. Talvez dessa forma talvez se torne possível compreender o
sentido da palavra “partido” político em meados do XIX.
José Murilo de Carvalho chama a atenção para a complexidade de uma sistematização que
abarque em cada partido uma característica social definidora. Dentre os conservadores e liberais
existiriam características em suas composições (origem social e espacial dos membros) e também no
que diz respeito à ideologia e comportamento que, segundo o autor, convergiam e divergiam
intrapartidárias e interpartidárias, o que muita das vezes causa uma confusão em delimitar limites
entre os dois principais partidos do Império10.
Uma vez atentos para tais riscos, cabe expormos alguns dados tratados pelo autor. Haveria
certo equilíbrio no que diz respeito à relação que se estabeleceria entre a filiação partidária e a origem
social dos ministros, alega Carvalho11·. Não haveria uma predominância de elementos vinculados à
posse de terra, esses se distribuiriam equanimente entre os partidos, elementos vinculados ao
comércio, ligeiramente se concentravam no partido Conservador. Haveria maior predominância de
burocratas entre os Conservadores e de profissionais liberais entre os Liberais de forma que ambos
os elementos se distribuiriam de forma equivalente a ocorrência de proprietários de terra em ambos
os partidos12.
Dessa forma, sintetiza J. M. de Carvalho: “(...) o grosso do Partido Conservador se compunha
de uma coalizão de burocratas e donos de terra, ao passo que o grosso do Partido Liberal se compunha
de uma coalizão de profissionais liberais e de donos de terra” 13.
Outra série de dados elencados pelo autor, diz sobre a origem provincial dos partidários. Os
conservadores eram, em sua maioria, advindos das províncias da Bahia, Rio de Janeiro e de
Pernambuco, enquanto os liberais se dividiam entre o resto das províncias, mas com uma maior
concentração nas províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio grande do Sul.14

8
Ibidem. P.224
9
CARVALHO, José Murilo de. Opus cit. P.219
10
Ibidem. P. 219
11
Ibidem. P. 212
12
Ibidem. P. 212
13
Ibidem. P. 212
14
Ibidem. P. 217

954
No que diz respeito à filiação partidária, Carvalho alega que o Rio de janeiro era
predominantemente conservador, enquanto a Bahia e Pernambuco se dividiam entre conservadores e
liberais e Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul era de predominância Liberal.15
Oriundos do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, os componentes do partido conservador,
em sua maioria, burocratas e comerciantes, teriam sido os principais responsáveis pelas investidas
que buscavam implementar uma política centralizadora. Tais atitudes se justificariam por esses
estados terem uma boa posição econômica, politica e administrativa durante a colônia, também pelo
fato de que nessas províncias teriam um número significativo de comerciantes voltados para
exportação e com uma tradição menos provinciana, e por fim pelo fato destas províncias terem sido
palco de revoltas regenciais, e por isso os políticos que as representavam teriam mais preocupação
com a ordem.16
A oposição, aos que defendiam uma maior centralização, vinha das províncias de São Paulo,
Rio grande do Sul e Minas Gerais, o comércio nestas províncias era voltado para o mercado interno,
havia menos pessoas com educação superior. 17 O Rio grande do Sul era contrario a politica tributaria
do Império, enquanto a oposição de São Paulo se sustentava sobre a tradição de poder local nas mãos
dos donos de terra. E completa Carvalho:

A oposição mineira provinha tanto da grande propriedade rural como da tradição de


liberalismo de seus velhos núcleos urbanos gerados pela economia mineradora. Até
o desenvolvimento maior da economia cafeeira em Minas, a corrente política
dominante no estado foi o liberalismo destas velhas cidades, cuja expressão máxima
foi Teófilo Ottoni.18

Em resumo, a posição de José Murilo de Carvalho a cerca da questão partidária no Império é


a de que os grupos que formariam os partidos, Liberal e Conservador, tiveram suas diferenças
delineadas, dentre outras coisas, por suas origens regionais e sociais.
Raymundo Faoro pensa a questão partidária do XIX no Brasil, de forma similar a José Murilo
de Carvalho: a partir das diferenças. Segundo o autor, com os surgimentos dos partidos de caráter
nacional de 1836 em diante, ocorreu uma mudança no aspecto tumultuado, mas a atuação desses se
dava em um sentido que partia das províncias para a Corte19.

15
Ibidem. P. 217
16
Ibidem. P. 220
17
Ibidem. P. 220
18
Ibidem. P. 221
19
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 2ª Edição. São Paulo: Editora
Globo, 2001. P. 439

955
Contra o esquema centrífugo operou o fortalecimento dos partidos nacionais,
coincidentemente valorizados com a reação centralizadora, que culminaria na Lei de
Interpretação (12 de maio de 1840) e na Lei de 3 de dezembro de 1841, que se
entrosam nas instruções eleitorais de 4 de maio de 1842. O Império centraliza-se,
denuncia Tavares Bastos, "nas mãos do Ministro da Justiça, generalíssimo da polícia,
dando-lhe por agentes um exército de funcionários hierárquicos, desde o presidente
de província e o chefe de polícia até o inspetor de quarteirão". O controle da Guarda
Nacional, em 1850, fecharia o círculo de domínio de cima para baixo.20

Com a centralização do Império, defende Faoro, os partidos se formam no centro sob os nomes
de Conservador e Liberal incorporando as facções locais e constantemente levando à frente as
“dissensões de família”21. Ou seja, para Faoro a criação dos partidos nacionais fez com que esses
ocultassem os vários partidos provinciais, mas não deixou, com isso, de representá-los de acordo com
os interesses dos grupos, os quais cada partidário representava. Dessa forma:

O quadro partidário toma a mesma denominação, em todo o Império, nome


preenchido por significações diferentes, ao sabor das particularidades locais. O
corpo partidário perde a identidade ideológica, num sistema nominalista, abrigando
interesses de ampla gama, não raro contraditório dentro da mesma província.22

Em contraponto a J. Murilo de Carvalho e R. Faoro, outros autores não vêm nos partidos
Conservador e Liberal diferenças além das ideológicas. É o caso de Caio Prado Júnior. Ao tratar dos
partidos que se articulariam após a Maioridade, o autor argumenta que todos teriam o mesmo caráter,
apesar de se autodenominarem como Conservador e Liberal, tais grupos não se diferenciariam mais
do que somente pelo nome, esse seria um motivo para o fato de, naquele período, de não se estranhar
a mudança de grupo por parte de algum partidário.23
Segundo Nestor Duarte, outro autor que se insere nessa linha de pensamento, o poder político
do senhoriato teria continuado no Império, ou seja, o poder era um monopólio da propriedade
senhorial, que seria conseqüentemente a principal constituidora da “classe política imperial” 24 ,
juntamente com outros segmentos da sociedade advindos de outras origens como padres e letrados,
que embora tivessem origens diferentes defendiam as mesmas empreitadas. 25

20
Ibidem. P.439
21
Ibidem. P.439
22
Ibidem. P.441 (grifo nosso)
23
PRADO JÚNIOR. Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense,
1957. P. 81.
24
DUARTE, Nestor. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional: Contribuição a Sociologia Brasileira.
Brasília: Ministério da Justiça, 1997. P 96
25
Ibidem. P.96

956
Os conflitos internos entre essa dita “classe politica imperial” se dariam exclusivamente no
campo da ideologia, na prática haveria um abismo entre o “pensamento que concebe e modela e
modela e a ação que o realiza”.26
Porém o autor chama a atenção para o fato de que esse idealismo, embora não posto em
prática, teria sido o primeiro esforço de tornar a política algo impessoal, teria sido o primeiro marco
definidor e diferenciador do nosso sentido político.27
Ainda nessa linha de pensadores que não percebem diferenças práticas entres os partidos
novecentistas, podemos citar também Vicente Licinio Cardoso, no seu livro À Margem da História
do Brasil, o autor alega que a única diferença entre os partidos no Império se deu ao redor das questões
do tráfico e do escravagismo, a partir de 1853 haveria uma confusão entre os partidos (Conciliação),
que sem programas perdem suas respectivas significações se reduzindo a apenas “partidos de governo
e oposição”28 .
É importante considerarmos que as análises dos autores citados acima dizem respeito somente
à Corte, o que faz com que surja a questão: Qual a relação dos partidos da Corte com os partidos nas
localidades? São interessantes, acerca da relação centro - localidade, as interpretações de Maria Isaura
pereira de Queiroz e Fernando Uricoechea que buscam entender essa dinâmica partidária levando em
consideração a relação do centro com as localidades.
Para Maria Isaura pereira de Queiroz a máxima do tempo do Império se fazia valer: “não há
nada de tão semelhante a um conservador quanto um liberal no poder”29. A autora explica que o
partido Conservador se formaria após o fim da Regência, quando, devido às exportações de café, o
Brasil viveria uma prosperidade econômica em que a paz e a ordem eras almejadas por parte dos
grandes cafeicultores, o partido Conservador seria resultado deste desejo.30
Já o partido Liberal se comporia de elementos distintos como “velhos liberais” que teriam
características conservadoras, mas estaria preso ao partido por lealdade e “liberais exaltados” que
proporiam ideias radicais para a realidade ex-colonial brasileira.31
No entanto, Maria Isaura Pereira de Queiroz, defende que quando o partido Liberal subia ao
poder os componentes conservadores nele freariam os impulsos radicais e utópicos. Isso devido o
“forte elemento rural” nele inserido: “Estes membros do partido Liberal tinham os caracteres
marcantes dos conservadores”.32

26
Ibidem. P.96
27
Ibidem. P.97
28
CARDOSO, Vicente Licinio. À Margem da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora nacional, 1933. P.173
29
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo:
Editora Alfa-Omega, 1976. P. 75
30
Ibidem. P.76
31
Ibidem. P.76
32
Ibidem. P.76

957
Enfim, para a autora:

Os partidos imperiais foram o manto sob o qual se escondeu a força dos chefes locais;
sua realidade como “partido político”, no sentido de arregimentação de pessoas em
torno de um programa ou de um ideal, não existiu; Liberais, Conservadores, as idéias
de seus membros não apresentavam diversidade palpável.33

Outra questão tratada pela autora é a articulação entre os partidos e os municípios, os


fazendeiros votariam de acordo com os seus interesses e independente de partidos, seria comum
dentro dos municípios as lideranças liberais se uniriam, em determinadas ocasiões, aos conservadores
em prol de interesses particulares. Os parlamentares também não votariam sob as “diretrizes” de seus
respectivos partidos, mas sim de acordo com os interesses dos grupos os quais cada qual
representaria.34
Já Fernando Uricoechea defende que a relação entre o centro e a localidade era permeada de
acordos, mesmo a partir de 1840 quando se intensificou o processo de centralização 35 . Os
“representantes do Estado” teriam a consciência da impossibilidade de se governar de maneira isolada
desconsiderando as lideranças locais, os motivos elencados por Uricoechea para tal impossibilidade
seriam: a ausência de profissionais qualificados para se instituir um sistema inteiramente burocrático
(o autor frisa a intensificação desta ausência na esfera do judiciário) e a falta de definições acerca das
atribuições de cada cargo36.
E complementa acerca dos acordos entre o centro e as localidades:

Esses pactos e negociações não eram estabelecidos apenas entre o clã local, o senhor
local e a burguesia local. Com a institucionalização progressiva da política de
partidos, que começou a ganhar impulso em meados do século, as próprias
províncias começaram a fazer pedidos de recursos ao estado em troca de apoio
eleitoral em franco augúrio dos posteriores pactos coronelistas37.

Deste modo, defende Fernando Uricoechea, o sistema político do centro se organizaria da


seguinte forma: as lideranças locais conseguiriam fazer com que suas necessidades fossem supridas
a partir do momento em que apoiassem o partido que viesse a se eleger na Corte38. A organização
política se caracterizaria, portanto, em um misto de relações de parentesco e faccionalismo39.

33
Ibidem. P.79
34
Ibidem. P.77
35
Ibidem. P.112
36
Ibidem. P.113
37
Ibidem. P.115
38
Ibidem. P.155
39
Ibidem. P.116

958
Em síntese, Uricoechea defende que embora a burocratização se instituísse, no decorrer de
meados do XIX, ela partia do Centro para as localidades, o que permitiu a ocorrência tanto de formas
patrimoniais como de formas burocráticas nessas localidades. Haveria, portanto um misto de formas
de dominação que envolvia elementos muito distintos do que se denominaria partidos políticos na
Corte, o autor não diferencia liberais e conservadores, em sua concepção a política de partidos
continuou a se basear no interesses da grande propriedade, os partidos seria importantes por serem
mediadores dos interesses dos senhores de terra no centro político40.
Segundo Ilmar Rohloff de Matos a elite brasileira se assentava sobre a grande propriedade e
a constituição partidária não fugiria dessa lógica estabelecida por laços matrimoniais entre as famílias
da grande agricultura, desse modo as divisões e diferenças entre partidos não ultrapassariam certos
limites já bem definidos por essas “dinastias Cafeeiras”.41 O autor também chama atenção para a
capacidade dessas famílias de cooptarem bacharéis, que não tinham sua origem na grande
propriedade, para as representarem.42
Entretanto o autor, diferentemente dos até agora tratados, vê a questão partidária em uma
perspectiva que vai além da origem dos partidários ou das estratégias e articulações que se davam
entre os partidos da Corte e as lideranças locais.
Deixando um pouco de lado as nomenclaturas “Liberal” e “Conservador”, Ilmar Rohloff de
Matos chama de “Saquaremas” o grupo afim da centralização do poder monárquico, e de “Luzias”
o grupo que defendia a descentralização.
Segundo o autor, deve-se entender a dinâmica partidária no Império de forma dialética e
hierarquizada:

A historiografia, contudo, ainda hoje parece não perceber assim. Ora insiste
unicamente na semelhança entre Luzias e Saquaremas; ora sublinha apenas a
diferença entre conservadores e liberais, quase sempre ignora a relação hierarquizada
que se estabeleceu entre ambos.43

Desse modo, Ilmar Rohloff de Mattos coloca que o objetivo dos partidos seriam monopolizar
as “faces do governo”44 (Casa e Estado, em linhas gerais: Casa = Região, patrimonialismo, lideranças
locais; Estado = Centro, burocratização, centralização do poder). Essa disputa, segundo autor, teria
sido ganha sempre pelos Saquaremas, não que os Luzias não tivessem tido gabinetes ou não tivessem

40
Ibidem. P.116
41
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. 4ª edição. Rio de Janeiro: Access
editora, 1999. P.63
42
Ibidem. P.63
43
Ibidem. P.122
44
Ibidem. P.124

959
participado do governo, mas sim por fracassarem com seu projeto de direção, por não terem, mesmo
quando presidiam gabinetes, interromper o projeto de direção Saquarema.45
Nas palavras do autor:

Afirmar que os Liberais não conseguem estar no governo do Estado significa afirmar
também – por meio de uma complementariedade que se constitui a partir da
consideração do Estado imperial consolidado – que os Saquaremas nele estão, assim
como os demais Conservadores que a estes se mantem unidos. Significa dizer ainda
mais: os Saquaremas para exercerem uma autoridade, isto é, para estar no governo
do Estado, devem estar no governo da Casa. E, efetivamente, o conseguiram.46

Uma vez o projeto de direção Saquarema ter sido vencedor, o autor propões uma nova forma
de se entender a política partidária no Império: levando em conta que haveria uma disputa entre as
classes senhoriais, representadas pelos Luzias,47 e o Governo, sobretudo, composto por Saquaremas,
Ilmar Rohloff de Mattos propõe pensar a Coroa como um Partido que buscaria consolidar o “poder
político público” e extinguir o “poder político privado”.48
Podemos separar os autores tratados acima em quatro grupos distintos, José Murilo de
Carvalho e Raymundo Faoro pensam a questão partidária levando em consideração a origem social,
econômica e regional dos partidários. Caio Prado Júnior, Nestor Duarte e Vicente Licinio Cardoso,
não percebem diferenças práticas entre os partidos do Império, para esses autores as diferenças não
ultrapassam o campo das ideologias. Já para Maria Isaura Pereira de Queiroz e Fernando Uricoechea
apesar de não existirem diferenças palpáveis entre os ditos partidos, haveria uma relação negociada
entre os grupos do governo central e os grupos locais. Por fim, o autor que mais destoa dos anteriores
é Ilmar Rohloff de Mattos, para o autor é importante perceber que entre os partidos no Império há via
mais que diferenças, havia uma hierarquia que fez com que o vencedores das disputas imprimissem
seu projeto de Estado no decorrer do Império de tal forma que o próprio governo poderia ser entendido
como um partido que iria contra os poderes políticos privados.
Após a exposição bibliográfica desenvolvida, retomaremos a questão proposta: o que os
homens da primeira metade do XIX entendiam por “partido” e “facção”? Segundo o dicionário de
Antonio de Moraes Silva, publicado no fim do século XVIII, em 1789:

PARTIDO, £ m. parcialidades partes, bando, facçáo y. g. „ lançou-se ao partido dos


bereges; os partidos de Cesar , e Catão. § / . Meio , expediente „ o melhor partido
que se pode tomar na guerra he , &c. § Entregar-se a partido a praça, i. e. com certas

45
Ibidem. P.146-147
46
Ibidem. P.147
47
Ibidem. P.154
48
Ibidem. P.159

960
condições. § Commeter partido, i. e. offerecer, propor meio de accommodaçáo na
demanda, ou guerra, concerto. § Fazer em seu partido , i. e. ser-lhe útil, e favorável
y. g. ,, faz em seu partido a valia , que tem como juiz. Eufir. 3. 2. § Estar de melhor
partido , i.e. de melhor condição, § Dar partido ao parceiro, he conceder lhe alguma
condição vantajosa , v. g. que ganhe com dez pontos, se o jogo he de ganhar com
mais de dez v. arrhas. § Tomar por partido, i. e. como meio de conseguir alguma
coisa. B. Elog. 1. § Servir a partida, i. e. por prêmio , paga. Castilho Elog. J. 282. „
servirão seus Reis a partido. § O interesse que se faz a quem ajustamos para algum
serviço. § Ter partido com alguém , ou para se medir, pelejar, jogar, brigar com
alguém , i. e. ter forças, meios , ou estar em condiçáo igual , ou não mui desigual„
dando batalha com peior partido , i. e. com menos soldados , com soldados menos
disciplinados , com desvantagem no lugar , & c, Vafconcellos Arte. § Cabeça de
partido, o Chefe de algum partido, ou bando.49

A idéia expressa pelo verbete de Moraes é de grupo, o qual se defende interesses, bando,
facção, o verbete não traz nenhuma menção à organização de caráter político em um sentido estático,
de defesa de idéias, ou de ideologias, pelo contrario, a formação de um partido se daria em prol de
uma vantagem a ser conquistada, sendo a escolha pelo partido, dependente dos interesses almejados.
Um dicionário mais recente, de 1832, de Luiz Maria da Silva Pinto, publicado em Ouro Preto,
Define “partido” como “Facção, bando. Meio, expediente. Condição, prêmio, paga, interesse.
Vantagem.” 50
Enquanto “facção” significaria: “parcialidade. Fig. Feito, empresa militar”. 51 No
dicionário de Silva Pinto o verbete tem um significado bem mais sucinto do que no de Moraes, e sem
nenhuma referência a uma organização partidária política ou coisa parecida.
Resta-nos analisar o uso prático da palavra “partido” no século XIX. Utilizaremos para isso
as discussões do Senado sobre os projetos de reforma do Código Criminal e do Código do Processo
Criminal, assim como alguns Relatórios do Ministério da Justiça.
Ambos os projetos de lei foram redigidos pelo então senador Bernardo Pereira de
Vasconcelos e versavam sobre medidas centralizadoras do poder monárquico. Na sessão de 16 de
junho de 1840 que tinha por oradores os senadores Monteiro Barros, Paula Albuquerque, Paraíso,
Holanda Cavalcanti, Vasconcelos, Almeida e Silva, e o Ministro da Justiça Paulino José Soares de
Souza que futuramente viria a ser o Visconde de Uruguai, se discutia a forma como seria posto em
discussões tais projetos.52
Na sua fala, o Ministro da Justiça, quando dizia da necessidade e da urgência que fazia
imprescindível a discussão dos projetos deu como uma das justificativas o seguinte:

49
SILVA, Antônio de Morais, 1755-1824; BLUTEAU, Rafael, Diccionario da lingua portugueza 1638-1734 .Lisboa:
Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. Tomo II. p. 163
50
PINTO, Luiz Maria da Silva, 1775-1869. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832.
P. 792
51
Ibidem. P. 500
52
ANAIS do Senado do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional/Imprensa Nacional, 1840, livro 3. P. 49
– 50. Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp

961
É indispensável pois que se cortem todos esses elementos de desordem e anarquia
que existem espalhados na nossa legislação penal e do processo, que se extirpem e
substituam por outras disposições. A maioridade de S. M. o imperador vai-se
aproximando. É, portanto, próprio da lealdade do Corpo Legislativo fazer com que
quando tome conta da direção dos Negócios se ache armado com os meios
necessários e indispensáveis para conter e domar as facções e as minorias turbulentas
que desde o ano de 1832 para cá principalmente, tem posto em agitação quase todos
os pontos do Império. É isto indispensável para que o seu governo se não
comprometa, e com ele a Monarquia por uma vez.53

Segundo o Ministro, a independência das localidades em elegerem seus representantes faria


da administração do Estado um misto “de homens de todos os lados, de todos os partidos”, tal fator
seria o responsável pela “falta de segurança individual e pública”, a causa desses problemas seriam
tão evidentes que algumas assembléias provinciais, como as de “Pernambuco, do Piauí, do Maranhão
e de São Paulo”, teriam elegido seus lideranças levando em consideração as nomeações do governo
central: “reconheceram que era indispensável a existência de uma autoridade, pela sua nomeação,
independente das influências e [das] pequenas facções das localidades”.54
No decorrer da discussão o Senador Antônio Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de
Albuquerque, indaga o Ministro da Justiça acerca de sua fala:

O nobre Ministro, na sua declaração de princípios, se é que declaração de princípios


se pode considerar o que ele disse, principiou reclamando a necessidade dessa lei
para conter as minorias turbulentas (...). Que coisa é minoria turbulenta? Será
composta de réus de polícia de empregados prevaricadores, de gabinetes privados ou
secretos? Que camarilha é essa? Que coisa é essa minoria turbulenta?55

O senador dá continuidade ao seu pronunciamento alegando que a “minoria é um elemento de


ordem do sistema constitucional” que tem por função dar direção aos negócios do país quando a
maioria se dissolve, em seguida, complementa dizendo que “minoria turbulenta” é a facção que toma
o poder e que sem levar em conta os interesses nacionais “quer impor lei aos brasileiros.” 56
Por fim, o Ministro da Justiça Paulino José Soares de Souza se justifica acerca do sentido em
que usou o termo “minorias turbulentas”, dizendo que não se referiu ao corpo legislativo, pois as
reformas não dizem respeito ao legislativo, e que o termo por ele empregado foi retirado de um

53
Ibidem. P.63
54
Ibidem. P.66
55
Ibidem. P.70
56
Ibidem. P.70

962
relatório do Ministério da Justiça de 183557. Desse modo o Ministro paulino conclui com as palavras
de seu antecessor Manoel Alves Branco58: “mais do que nunca, aparece a urgente necessidade de um
poder inacessível às intrigas locais, imparcial e forte, contra quem nada possam os chefes irregulares
de minorias turbulentas que aparecem por toda a parte.59”
No Relatório do Ministério da Justiça que o Ministro Paulino diz ter usado como base para
seu discurso, nele o então Ministro Manoel Alves Branco faz a seguinte declaração:

Com effeito, Senhores, mui útil he que sejão eleitos Representantes da Nação, que
venhão a esta Augusta Assembléa emitir os votos do povo, e prover às suas
necessidades; he este hum dogma político da maior importância para a publica
felicidade. Mas que essa Lei, expressão da vontade e necessidade de huma grande
maioria, venha a ser executada por delegados da maioria relativa de pequenos
círculos de ordinário dominados de paixões, e interesses estreitos; e que por
conseguinte não podem deixar de ser atentos as acções dos homens, que dirigem pelo
desejo da conservação, e pelo da reeleição, he o que me parece senão absurdo, ao
menos prejudicial em certo estado dos Povos.60

57
Na verdade o relatório a que se refere o Ministro Paulino diz respeito ao ano de 1834
58
BRASIL. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado á Assembléia Geral Legislativa na primeira
Sessão Ordinária de1835 pelo Ministro e Secretário de Estado Manoel Alves Branco. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1835. P.45
59
ANAIS do Senado do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional/Imprensa Nacional, 1840, livro 3. P.76.
Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp
60
BRASIL. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado á Assembléia Geral Legislativa na primeira
Sessão Ordinária de1835 pelo Ministro e Secretário de Estado Manoel Alves Branco. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1835. P.17-18

963
Manoel Alves Branco, como poder ser visto no fragmento, afirma que devido a legislação
descentralizada dar para as localidades a autonomia necessária pra nomear aos cargos locais, sem
que o governo central interferisse com indicações, isso geraria muitas das vezes uma dissonância,
pois seriam nomeados representantes de grupos que não representariam mais que seus próprios
interesses.
Com base nas fontes descritas acima podemos esboçar algumas conclusões. Através das
discussões do Senado é possível identificarmos três idéias distintas acerca do que seria “partido” ou
“facção”: 1) facção do governo; 2) facção da oposição; 3) facções locais. Sendo que essas diferenças
não se mostram somente de forma horizontal, mas também de forma vertical.
Primeiramente no âmbito do legislativo podemos inferir que a dinâmica se dá entre governo
(maioria) e oposição (minoria), embora a oposição não pactuasse com o gabinete ela se inseria no
corpo do governo, uma vez que a oposição subisse ao poder ela deixaria de ser a minoria ou então
se dissolvia, em tese, o governo só funcionaria em consonância a uma maioria no legislativo,
podemos indicar isso se observamos a discussão que se travou no Senado entre Holanda Cavalcanti
e Bernardo Pereira de Vasconcelos:

Eu não sei que as minorias tenham perturbado o País, e essas mesmas minorias se
têm tornado maiorias. Eu li um discurso61 do nobre ex-ministro [Bernardo Pereira de
Vasconcelos] em que dizia ter pertencido a oposição passada, qual era maioria... O
Sr. Vasconcelos: - Mas não era turbulenta. O Sr. Holanda: - Não, não era turbulenta;
mas mudou o sistema: É necessário não confundirmos, não darmos às coisas nomes
que elas não têm: a minoria tem seus direitos; e quando ela obra dentro dos seus
verdadeiros limites, quando prova ao País que a administração não desempenha seus
deveres, esta deve abandonar o posto.62

61
"Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, o poder era tudo: fui
liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito
comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia.
Como então quis, quero hoje servi-la quero salvá-la; e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa
que defendo, no dia dos seus perigos, de sua fraqueza; deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o sucesso
a compromete. Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o
despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e a defesa da
liberdade?…Os perigos da sociedade variam; o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político,
cego e imutável, servir no seu país?" (VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. Apud CUNHA, Euclides da. À Margem da
História, 6ª ed. Porto: Livraria Lello & Irmão Editores, 1946. P. 265.) Esse fragmento talvez seja parte do discurso a que
se refere o Senador Cavalcanti, embora não se tenha provas empíricas para comprovar que a autoria deste texto é de
Bernardo Pereira de Vasconcelos. C.f. CARVALHO, José Murilo de (org.). Bernardo Pereira de Vasconcelos. 1ª ed. São
Paulo: Editora 34, 1999. P.09
62
ANAIS do Senado do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional/Imprensa Nacional, 1840, livro 3. P.73.
Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp

964
Respondendo a Cavalcanti, Vasconcelos diz: “O que eu entendo é que à maioria pertence
governar; esta minha opinião é antiga: quando a minoria pode fazer-se maioria, eis aí a minoria
governando, porém já em maioria”63.
Mas outro aspecto dessa dinâmica transparece nas fontes, se na estância legislativa era
natural e até benéfico o governo, em sentido lato, ser composto por uma maioria governista e uma
minoria de oposição, em outras estâncias esse entendimento mudava de tom. Conforme vimos nos
debates, o Projeto de Reforma que estava sendo discutido teria como principal objetivo evitar que
os governos locais fossem compostos por grupos oposicionistas ao governo central. Isso se confirma
em 1841, um mês antes da votação e aprovação da Lei de Reforma do Código do Processo Criminal,
na ocasião o ministro da Justiça Paulino José faz um discurso na Câmara defendendo a aprovação
do projeto. O ministro faz uma enumeração sobre as deficiências da organização judiciária em vigor
até então. Um dos problemas por ele indicado é a influência do partidarismo.

Os juízes de paz, que a constituição parece haver querido reduzir às conciliações,


são de eleição popular. A nossa legislação atual depositou nas suas mãos toda a
autoridade criminal, e exclusivamente a arma das pronuncias, de todas a mais forte
é a mais terrível. As câmaras municipais eleitas os municípios, são as que propõem,
em lista tríplice, os juízes municipais, de órfãos e promotores, e organizam a lista de
jurados. Assim quase toda a justiça nasce e forma-se nos municípios por uma
maneira quase independente (...)64.

Sendo as nomeações feitas a partir das localidades, segundo o ministro, o partido político que
estava no governo faria com que se elegessem apenas partidários seus, e numa eventual troca de
bancada, haveria conflitos entre os poderes. Pois quando fossem feitas as nomeações que eram de
competência do Estado central, haveria má disposição por parte dos funcionários que tivessem sido
nomeados pelo governo anterior65.

Naquelas províncias de que acima falei [que fizeram uso de preferências partidárias
na nomeação], em cuja as eleições preponderou a opinião contraria, hão de encontrar
nos agentes forçados de policia de que tem de servi-se má vontade, indisposições,
obstáculos e mesmo hostilidade.66

Dessa forma, através da leitura das fontes exemplificadas acima, podemos sugerir que quando
se tratava do governo central a existência de grupos contrários ao grupo no governo pode ser

63
Ibidem. P. 78
64
BRASIL. Anais da Câmara do Srs. Deputados Quarto ano da quarta legislatura sessão de 1841. Rio de Janeiro:
Tipografia da Viúva Pinto & Filho, 1884, tomo III. P. 810
65
Ibidem. P.810
66
Ibidem. P.810

965
entendida como parte deste governo, enquanto que a medida que se distancia da Corte e os governos
se tornam locais se faz necessário a representação do governo central nas localidades ou do contrário
- o governo local sendo oposicionista ao governo central - esses grupos passam a ser entendidos como
minorias que defendem interesses que não são os do país. Não se encontra no decorrer dessas
discussões nenhuma declaração acerca dos ditos partidos “Conservador” e “Liberal”, embora
apareçam muitas expressões como “facções”, “minorias turbulentas” e “pequenos círculos”. Assim,
nos vemos diante de outra questão: a historiografia, grosso modo, estaria projetando para o início do
Império uma diferença que só viria a se estabelecer no final do XIX? As fontes nos sugerem que para
além desse famoso binômio partidário a existência de grupos de interesses que se articulavam no
poder do Estado era a normalidade, porém não podemos ir além dessas pequenas inferências, pois se
faz necessária uma pesquisa mais profunda acerca do assunto.

Referências

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968
“Reforma” do estado, educação e resistências: uma análise da educação pública no
estado do Rio de Janeiro

Graciella Fabrício da Silva

Resumo: Na década de 1990, a “reforma” do Estado foi apresentada pelos teóricos do neoliberalismo
como a salvação para os problemas dos serviços estatais. Passados mais de vinte anos da aplicação
do receituário neoliberal nas esferas federal, estadual e municipal, é possível medir, através da
utilização do referencial teórico marxista, os impactos dessa "reforma" nos serviços públicos, com
destaque para a educação. Para fins de análise, será avaliado o resultado concreto da aplicação do
receituário neoliberal na educação pública no estado do Rio de Janeiro, bem como as lutas dos
professores e estudantes da rede estadual fluminense contra o avanço dos interesses empresariais no
setor.

Palavras-chave: Educação; “Reforma” do Estado; Neoliberalismo.

Abstract: In the 1990’s, the reform of the state was presented by the “reform” of the State was
presented by the neoliberal theorists as the salvation to the problems of the public services. Passed
more than twenty years of the application of the neoliberal prescription in the federal, state and
municipal spheres of government, it is possible to measure, using the Marxist theory, the impacts of
such “reform” in the public services, with a special highlight upon the public education. To means of
analysis, will be evaluate the concrete results of the application of neoliberal politics in the public
education system of Rio de Janeiro state, as well as the teachers and students struggles against the
advance of the managerial interest in this branch.

Key words: Education; “Reform” of the State; Neoliberalism.

Um pouco de teoria: Estado, capitalismo, trabalho e educação

Antes de abordar a temática ora apresentada, algumas considerações devem ser feitas a
respeito da relação entre Estado, capitalismo, trabalho e educação. Para tanto, tomarei como
referência o arcabouço teórico e metodológico o materialismo histórico, desenvolvido por Karl Marx
no século XIX.
Embora Marx não tenha desenvolvido uma análise detalhada a respeito da educação, é
possível, a partir da utilização do método do materialismo histórico dialético desenvolvido por ele e
Friedrich Engels, tecer alguns comentários a respeito desse ramo de atividade nas sociedades
capitalistas. Como outras esferas produtivas na sociedade crivada pelo capital, a educação – apesar
de não estar diretamente inserida na esfera da produção material – também é geradora de mais-valor,


Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense. Professora da rede estadual de educação fluminense.
E-mail. ciellafs@yahoo.com.br.

969
uma vez que ela adquire a forma de mercadoria. Em função disso, a área educacional também é
transpassada pelos conflitos de classe que permeiam as relações de produção no âmbito do capital.
Ao explicar como a produção de mercadorias e as relações de trabalho pelas quais elas são produzidas
são geradoras de mais-valia, Marx, n’O Capital, lança luz sobre essas questões ao citar o trabalho dos
mestres-escola.

O trabalhador não produz para si, mas para o capital. Por isso, não é mais suficiente
que ele apenas produza. Ele tem de produzir mais – valia. Só é produtivo o
trabalhador que produz mais-valia para o capitalista, servindo assim à auto expansão
do capital. Utilizando um exemplo fora da esfera da produção material: um mestre-
escola é um trabalhador produtivo não só para desenvolver a mente das crianças,
mas também para enriquecer o dono da escola. Que este invista seu capital numa
fábrica de ensinar, em vez de numa de fazer salsicha, em nada modifica a situação.
O conceito de trabalho produtivo não compreende apenas a uma relação entre a
atividade e o efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma
relação de produção especificamente social, de origem histórica, que faz do
trabalhador o instrumento direto de criar mais-valia. [...] (MARX, 2009, p. 578)

Com o avanço do capital, os embates de classe presentes nas demais esferas produtivas
também perpassaram o campo da educação. Os profissionais da educação, organizados em sindicatos,
passaram a travar diversas lutas em torno de questões salariais e das suas condições de trabalho, em
contraposição direta aos interesses do patronato da área educacional. Estes, por sua vez, usaram o
aparato estatal para promover a expansão da exploração capitalista no setor. Assim, de grande
importância teórica é a contribuição de Antônio Gramsci para analisar a penetração dos interesses de
classe no âmbito do Estado. Segundo o pensador socialista italiano, o Estado é formado a partir da
relação entre o que ele denomina de sociedade política (Estado estrito senso, formado pelas
instituições políticas e o aparato militar) e sociedade civil. Nessa esfera é que se situa a produção e
reprodução do capital e onde se trava a luta de classes. A classe dominante nas sociedades capitalistas
(isto é, a burguesia), utiliza o que Gramsci chama “aparelhos privados de hegemonia” (imprensa,
educação, igrejas, etc.) para impor ao restante da sociedade o seu domínio. Esses aparelhos privados
de hegemonia são utilizados por ela para assegurar o consenso social necessário para manter a sua
dominação. Assim, de acordo com o pensamento gramsciano, a dominação burguesa se dá através da
combinação entre coerção e consenso.
Alguns exemplos da história contemporânea ajudam a visualizar melhor as reflexões
desenvolvidas no campo do pensamento marxista a respeito dessas questões. Passaremos, então, a
analisar como os apontamentos feitos por Marx e Gramsci ocorrem de forma prática, através da
observação do desenvolvimento capitalista a partir da década de 1970.

970
Neoliberalismo e “reforma” do Estado

O pensamento neoliberal remonta à década de 1970 e foi apresentado pelos seus teóricos como
a fórmula para enfrentar a crise capitalista, em clara contraposição ao Estado de Bem-Estar Social.
Friedrich A. Hayek e Milton Friedman estão entre os principais teóricos do neoliberalismo. De forma
sucinta, os seus ideólogos afirmavam que a intervenção estatal constituía uma ameaça à liberdade
individual. Ainda segundo essa perspectiva, apenas o livre-mercado afastaria os riscos à democracia
e à soberania individual que a intervenção estatal nas diversas esferas da atividade humana traria para
a sociedade. Apenas a competição, estimulada pelo livre-mercado, poderia trazer resultados benéficos
aos indivíduos. Para superar a crise do capital, seria necessário redefinir as atribuições do Estado, a
fim de reduzir ao máximo sua esfera de atuação e garantir a maximização dos lucros.
Montaño e Duriguetto (2011) explicam de forma precisa a diferença entre o modelo fordista-
keynesiano, que orientava o Estado de Bem-Estar Social, e o viés neoliberal:

É que o liberalismo keynesiano sustenta-se no fortalecimento da demanda, ou seja,


na capacidade de compra, de consumo da população, e isso é possível com o pleno
emprego e bons salários (ou complementos salariais do Estado) [...]. Enquanto isso,
o neoliberalismo, contrariamente, propõe o fortalecimento da oferta, reduzindo os
custos de produção, particularmente com a diminuição do valor da força de trabalho
(precarizando salários, direitos trabalhistas, serviços e políticas estatais); aqui, a
ênfase não está na ampliação da capacidade de consumo (para a produção em massa),
mas a diminuição dos custos e flexibilização da produção (no contexto da crise), e é
esse o motivo pelo qual a orientação neoliberal recai na defesa da “liberdade” do
mercado e a não participação (social) do Estado. (MONTAÑO; DURIGUETTO,
2011, p. 204)

Naquela década, os governos de Margareth Thatcher (Inglaterra), Ronald Reagan (Estados


Unidos) e Helmut Kohl (Alemanha) instituíram, em nível nacional, as premissas neoliberais em seus
respectivos países. Foi na América Latina, porém, que o neoliberalismo foi primeiramente
implementado. O Chile, sob a ditadura do general Augusto Pinochet, foi o pioneiro na aplicação das
políticas neoliberais.
Apesar das particularidades de cada país, passados mais de vinte anos de aplicação do
neoliberalismo é possível observar uma prática em comum que permeia a atuação do Estado em cada
localidade em que essa política foi instituído, assim como as consequências sociais advindas de sua
implementação. Apontado pelos teóricos neoliberais como o responsável pela crise capitalista, por
seu papel centralizador, o Estado tem uma função vital na promoção da descentralização tão
defendida pelo neoliberalismo, pois é através dele que são criados os mecanismos jurídicos, políticos
e econômicos para viabilizar a desregulamentação exigida pelos seus adeptos. Ou seja, a

971
descentralização é realizada, paradoxalmente, de forma centralizada, tendo no Estado o principal
agente de condução desse processo. Como afirma Gentilli (1996, p. 16), ocorre uma descentralização
centralizada e uma centralização descentralizada. Esse processo, portanto, acaba apenas promovendo
uma redefinição do papel do Estado, e não causando seu fim.
No Brasil, o projeto neoliberal avançou nas décadas de 1980 e 1990. Durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso teve início a chamada “reforma” do Estado. Institucionalmente, a
implementação dessa “reforma” ficou a cargo do Ministério da Administração e da Reforma do
Estado, dirigido por Luiz Carlos Bresser Pereira, responsável pela elaboração do Plano Diretor da
Reforma do Estado. A promoção desses ajustes tinha por base críticas genéricas ao Estado. Apontava-
se o Estado como naturalmente ineficaz, incapaz de gerir de forma adequada os serviços de interesse
público, como educação e saúde. Como aponta Virgínia Fontes, essas críticas eram veiculadas, por
exemplo, por ONGS que abrigavam demandas diversas (meio ambiente, miséria, gênero, etnia, etc.),
porém não apresentavam um recorte de classes claro.

[...] Atribuir todas as causas à incompetência genérica do Estado brasileiro permitia


ressaltar o novo foco – gerenciar de maneira privada, concorrencial e lucrativa
políticas públicas voltadas para a maioria da população. Incompetência e ineficácia
também imputadas aos funcionários públicos, acusados de deformações por estarem
distantes da concorrência do mercado de trabalho. Ainda que esse argumento fosse
brandido genericamente, voltava-se em especial para as empresas que os grandes
capitais procuravam abocanhar – as telecomunicações, siderúrgicas, educação, saúde
– e estimulavam um novo padrão de gerenciamento – de cunho agressivamente
competitivo, voltado para o imediato e rentável – para as políticas públicas.
(FONTES, 2010, p. 273)

Essas críticas vinham acompanhadas de avaliações que afirmavam que os problemas dos
serviços públicos foram reduzidos a problemas de uma má gestão dos recursos por parte do Estado.
Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a solução apresentada foi a
transferência desses serviços para a iniciativa privada, através da venda das empresas estatais de
diversos ramos. Nesse sentido, empresas como a Vale do Rio Doce e a Telebrás foram vendidas para
o capital privado.
A implementação dos preceitos neoliberais envolveu a aplicação de duas outras práticas: a
redução de recursos destinados aos serviços públicos estatais que não foram vendidos e o
estabelecimento de parcerias público-privadas em diversos setores dos serviços públicos, inclusive a
educação. A chamada Terceira Via estimulava a transferência para a sociedade civil a
responsabilidade pela gestão e pela oferta de serviços públicos. No entanto, a concepção de sociedade
civil na ótica da Terceira Via tem uma conotação diferente da concepção marxista. Para ela, os fatores
econômicos, relacionados ao modo de produção capitalista, e a luta de classes são negligenciados em

972
favor de uma visão que compreende a sociedade civil como o espaço do mercado, da competição e
da livre negociação. Estava em curso um processo de reconfiguração da dominação de classe
burguesa e da ampliação das bases de reprodução do capital. Nesse processo, entrou em cena uma
nova “pedagogia da hegemonia”, que, segundo Neves, tem como principal característica “assegurar
[que] o exercício da dominação de classe seja viabilizado por meio de processos educativos positivos”
(NEVES, 2010). Para tanto, a “reforma” do Estado envolveu a desqualificação dos instrumentos de
mobilização e de luta da classe trabalhadora. Através dos aparelhos privados de hegemonia burgueses,
sindicatos, greves e todas as demais formas de organização e de enfrentamento da classe trabalhadora
foram atacados, com o objetivo de enfraquecer toda e qualquer forma de resistência imposta pelos
trabalhadores à desregulamentação estatal em curso. Essa campanha de difamação, com vistas à
reduzir a resistência da classe trabalhadora aos ajustes neoliberais, foi acompanhada do recurso, por
parte dos governos encarregados de aplica-los, à coerção, através de forte repressão policial aos atos
e manifestações organizados por trabalhadores de diversas categorias profissionais, tanto do setor
público quanto do setor privado.
A alteração das funções do Estado capitalista foram definidas em uma série de acordos
internacionais, dos quais participaram chefes de governos e instituições como o Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional (FMI). Para a América Latina, a definição dos termos da aplicação
dos ajustes liberalizantes tem como principal referência o Consenso de Washington, instituído após
uma rodada de negociações realizada entre os organismos internacionais de financiamento
anteriormente citados, funcionários do governo estadunidense e representantes dos governos latino-
americanos. Dessas negociações, foi imposta uma série de “recomendações” aos países latino-
americanos devedores aos organismos de Bretton Woods. Exigia-se “disciplina fiscal”, “redução dos
gastos públicos”, “reforma tributária”, “desregulamentação das leis trabalhistas”, “abertura
comercial”, “juros de mercado”, “regime cambial de mercado”, entre outros pontos (MONTAÑO &
DURIGUETTO, 2011, p. 211).
Como aponta Leher (2003), a “reforma” do Estado sob o neoliberalismo tinha por finalidade
favorecer a expansão do capital às custas da redução de investimentos em serviços considerados não
estratégicos. Nesses setores, o lugar do Estado viria a ser ocupado por organizações não
governamentais (ONGs) ou organizações sociais (OSs). Assim, em vez de utilizar o Estado para
promover a ampliação e o fortalecimento do setor público, o aparato estatal foi utilizado para
desregulamentar a participação do Estado em determinadas áreas a fim de promover a expansão do
setor privado. Em outras palavras, o sucateamento dos serviços públicos foi promovido de forma
racional e consciente pelos formuladores da política econômica, promovendo, assim, a expansão do
setor privado às custas do setor público estatal. Isso equivale a dizer que a aplicação das políticas de

973
base neoliberais faz parte de um projeto de dominação de classe, visto que há uma nítida relação entre
os setores burgueses, nacionais e internacionais, na elaboração das políticas de ajuste neoliberal.
Houve, então, um avanço do controle empresarial do Estado a partir da aplicação dos ajustes
liberalizantes, em detrimento das reivindicações e das propostas construídas pelos trabalhadores e
pelas trabalhadoras da educação.
Se, por um lado, a aplicação dos ajustes neoliberais levou à maximização dos lucros dos
empresários, por outro teve resultados catastróficos para os trabalhadores, que tiveram seus
instrumentos de organização e de luta enfraquecidos pela intensa campanha de desqualificação, assim
como tiveram suas condições de vida e de trabalho cada vez mais precárias. As terceirizações e as
sucessivas retiradas de direitos promovidas pelas empresas junto aos Estados tiveram como
consequência o aumento do desemprego e a redução do poder de compra da classe trabalhadora. As
implicações foram ainda mais graves em países como o Brasil, onde mal chegou a se desenvolver um
Estado de bem estar social pleno como na Europa, por exemplo.
Os efeitos do neoliberalismo foram sentidos em todas os setores da produção capitalista, tendo
fortes impactos em praticamente todos os segmentos do serviço público. Isso pode ser observado nas
políticas públicas efetivadas nos níveis federal, estadual e municipal. Aqui, será destacada a
implementação das políticas neoliberais no âmbito da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e os
seus impactos.

Os impactos das políticas neoliberais na rede estadual fluminense de educação básica

A implantação dos ditames neoliberais na educação pública estadual no Rio de Janeiro foi
levada a cabo a partir da associação do governo estadual com setores empresariais, por meio de um
conjunto de políticas que abrangiam, inclusive, o campo pedagógico. Em 2012, foi instituído o
“currículo mínimo”, imposto a todas as escolas da rede, cujo cumprimento era monitorado por
mecanismos de inspeção por parte da SEEDUC, através do controle dos diários de classe das
professoras e dos professores e de uma avaliação externa, o SAERJ (Sistema de Avaliação do Estado
do Rio de Janeiro). Essas iniciativas compunham o chamado “Planejamento Estratégico” da
Secretaria, a qual incluía uma política de bonificação por resultados. Alguns pontos desse chamado

974
“Planejamento Estratégico” foram reunidos sob a sigla GIDE (Gestão Integrada da Escola). Segundo
material produzido pela Secretaria de Estado de Educação1,

A Gestão Integrada da Escola – GIDE – é um sistema de gestão que contempla os


aspectos estratégicos, políticos e gerenciais inerentes à área educacional com foco
em resultados. Tem como objetivo melhorar significativamente os indicadores da
Educação, tendo como referência as metas do IDEB estabelecidas pelo Ministério
da Educação.

A implementação do programa de educação da SEEDUC sob a batuta de Risolia foi resultado


de uma parceria entre a Secretaria e a empresa Falconi – Consultores de Resultados. A Falconi é uma
empresa privada que presta consultoria em ramos tão diversos como mineração, alimentação, papel
e celulose, saúde e educação. Com raízes que remontam à década de 1980, a empresa (que possui
ramificações internacionais, com escritórios nos Estados Unidos e no México) possui em seu quadro
dirigente representantes do capital financeiro nacional. Fazem parte do seu “Conselho de
Administração” Vicente Falconi Campos (sócio fundador da Falconi), Carlos Alberto Sucupira (sócio
fundador da 3G Capital) e Pedro Moreira Salles (presidente do Conselho Itaú-Unibanco). A
presidência da empresa é ocupada por Wilson Risolia Rodrigues e Viviane Isabela de Oliveira
Martins. Durante o governo Sérgio Cabral Filho, Wilson Risolia foi nomeado secretário de educação
da rede estadual fluminense. Foi durante o período em que Risolia esteve à frente da SEEDUC que
foi implementado o modelo de gestão educacional da Falconi, a GIDE.
Segundo a metodologia empresarial da Falconi, as falhas na educação pública não eram
ocasionadas pelo sucateamento e pela falta de recursos para o funcionamento das escolas, mas por
uma gestão deficiente, a qual seria corrigida através da aplicação de metodologias “mais eficientes”,
de caráter técnico, de administração do serviço público. A empresa estabelece como sua “crença” que
“Organizações mais eficientes em gestão constroem uma sociedade melhor”; sua missão é “Ajudar
as organizações a construir resultados excepcionais pelo aperfeiçoamento de seu sistema de gestão”;
a meritocracia e a “obstinação por resultados” figuram entre os seus valores 2. Essa ideologia foi
transposta para as escolas públicas estaduais a partir adoção das práticas acima mencionadas.
Assim, a implementação da política de bonificação por resultados tinha por base as críticas
outrora destacadas por Fontes e visava estimular a competitividade entre os professores, bem como
entre as escolas. Havia a crença de que, com a disputa entre as escolas, haveria uma melhora na
qualidade do ensino oferto nas escolas da rede estadual. Na prática, uma vez que as escolas atingissem
as metas estabelecidas pela secretaria, elas seriam “premiadas” com bônus em dinheiro, tanto para a

1
O material pode ser acessado em: http://download.rj.gov.br/documentos/10112/553225/DLFE-
37306.pdf/InformativoGIDE.pdf. Acesso em 08 de junho de 2016.
2
https://www.falconi.com/quem-somos/crenca-missao-sonho-e-valores/. Acesso em 17 de julho de 2017.

975
manutenção das unidades de ensino como para as/os profissionais ali lotadas/lotados. Porém, a
política de bonificação por resultados funcionou como fator de limitação de destinação, para as
unidades escolares, dos já escassos recursos destinados à educação. As escolas que não atingiam as
metas, desse modo, recebiam os recursos mínimos necessários ao seu funcionamento. A consequência
imediata dessas ações foi a imposição de dificuldades para o funcionamento das instituições
escolares, assim como o surgimento de desigualdades entre as unidades da rede.
Sobre essas diferenciações acima citadas, viu-se que as escolas premiadas eram consideradas
“escolas modelos”. Assim sendo, elas recebiam mais recursos se comparadas àquelas que não se
encaixavam nesse perfil. Assim, em vez de corrigir as distorções na rede escolar as políticas
neoliberais ampliaram o fosso dentro da própria rede estadual, além de aumentar a precarização já
existente. Turmas, turnos e até mesmo escolas inteiras foram fechadas em todo o estado por não
apresentarem resultados satisfatórios para os parâmetros estabelecidos pela gestão empresarial da
educação do estado. Segundo Nicholas Davies, entre 2006 e 2012 houve um encolhimento da rede
estadual de ensino do Rio de Janeiro:

[...] O número de matrículas estaduais caiu de 1.490.137, em 2006, para 973.666, em


2012, uma enorme queda de 516.471, ou -34,7%, o maior declínio percentual de
todas as redes públicas (estaduais e municipais) no Brasil. Em 2013, o número caiu
ainda mais, para menos de 800 mil, segundo os resultados preliminares [...] do
Censo. Coincidência ou não, a rede privada na educação básica cresceu 22,5%,
passando de 856.835, em 2006, para 1.049.908, em 2012, um aumento de 193.073,
o quarto maior acréscimo percentual da rede privada no Brasil. A responsabilidade
muito maior do governo estadual pela expansão da rede privada fica mais evidente
quando se constata que as redes municipais do Rio diminuíram 6% no período
(menos 103.986 matrículas), ao passo que a rede estadual caiu 34,7% (menos
516.471 matrículas).
O que é mais grave é que o Rio de Janeiro é o único Estado em que a rede privada
(1.049.908 matrículas) era, em 2012, maior da educação básica do quem qualquer
Estado. [...] no Brasil como um todo as redes estaduais eram em 2012 2 ½ maiores
do que as redes privadas. [...] (DAVIES, 2014)

O corte de recursos (ou a transferência de recursos públicos para o setor privado) se


materializava na forma de uma série de limitações para o pleno funcionamento das instituições de
ensino. Nas unidades escolares da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, as consequências dessa
ação são observadas em inúmeras situações, como a falta de profissionais de diversas áreas
(professores, inspetores, merendeiras, entre outros), de materiais didáticos (livros, caneta para quadro
branco, apagadores, xerox, papel, bola, computadores, etc.), de merenda e de infraestrutura adequada
(há escolas em que as aulas de Educação Física são realizadas em quadra descoberta; turmas com
mais de 40 alunos em salas que comportam 30; laboratórios de ciências fechados; falta de
climatização).

976
O Estado neoliberal é mínimo quando deve financiar a escola pública e máximo
quando define de forma centralizada o conhecimento oficial que deve circular pelos
estabelecimentos educacionais, quando estabelece mecanismos verticalizados e
antidemocráticos de avaliação do sistema e quando retira autonomia pedagógica às
instituições e aos atores coletivos da escola, entre eles, principalmente, aos
professores. Centralização e descentralização são as duas faces de uma mesma
moeda: a dinâmica autoritária que caracteriza as reformas educacionais
implementadas pelos governos neoliberais. (GENTILLI, 1996, p. 16).

Por fim, houve também restrição à participação da comunidade na elaboração das políticas
educacionais. Um dos princípios da gestão democrática da escola, a eleição para a direção das escolas
públicas da rede estadual de ensino, foi suprimido. A eleição para o cargo de direção escolar foi
substituída por um processo seletivo interno, a que se submetiam as professoras e os professores
interessados em ocupar o cargo. A supressão do processo eletivo para o cargo de direção afastou a
comunidade da participação efetiva no cotidiano escolar, tanto em termos de acompanhamento das
atividades desenvolvidas nas unidades de ensino, como também da possibilidade de elaboração de
políticas para as escolas. Além disso, estudantes, mães, pais, responsáveis, profissionais da educação
e demais setores da sociedade foram alijados do processo de formulação de políticas que dizem
respeito à educação pública, uma vez que as políticas desenhadas e aplicadas pelos referidos governos
são elaboradas e impostas por “gestores” com vínculos com a iniciativa privada.
Como explicam Vera Peroni, Regina Oliveira e Maria Fernandes, no lugar de uma gestão
democrática, questionadora e reveladora das contradições e desigualdades existentes na sociedade,
com vistas a promover a formação de cidadãos críticos e participativos e concretizada em ações como
eleições direta para a direção das escolas, foi instituído o modelo de gestão empresarial da escola.
Segundo as autoras,

A subsunção da gestão democrática à gestão gerencial [...] inverte essa lógica. A


reforma do Estado, na perspectiva de sua retração para as políticas sociais e,
particularmente, para a política educacional, destituiu a sociedade civil da
participação política no sentido republicano. O que se conclama desde então é uma
participação do tipo voluntariado, da ajuda mútua dos ‘amigos da escola’, enfim, das
parcerias, uma vez que nestas estão as bases daquilo que se denominou como a
participação pretendida pela terceira via e terceiro setor na lógica do público não-
estatal. Em tal lógica, o ensino está sendo destituído da pedagogia da contestação,
da transformação. Nesse lugar caberia agora a pedagogia da conformação e da
conciliação imposta pelo pensamento hegemônico. (PERONI; OLIVEIRA;
FERNANDES, 2009, p. 773.)

É importante salientar que a linha seguida pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de
Janeiro se baseava em modelos aplicados em outros países que também seguiram a cartilha neoliberal
na área da educação, como o Chile e os Estados Unidos. Apesar das particularidades do

977
desenvolvimento histórico de cada país, o resultado da aplicação do receituário neoliberal foi
semelhante em todas as situações investigadas (FREITAS, 2012).
Longe de representar algo inovador em termos de políticas educacionais no Brasil, o
neoliberalismo na educação continuou instrumentalizando a educação escolar para dar forma a um
determinado tipo de trabalhador exigido pela reconfiguração da produção capitalista contemporânea.
Assim, a escola mantém, sob o capital-imperialismo, a sua função de (re)produção do capital. Explica
Cêa, a respeito do papel da escola no modo de produção capitalista:

Com a afirmação histórica do modo de produção capitalista, a generalização de


estruturas formativas específicas e institucionalizadas aparece como uma
necessidade social, em função da natureza do trabalho e das relações sociais
capitalistas.
[...] com o estabelecimento daquelas relações, torna-se necessária uma estrutura
formativa própria, separada e anterior à inserção produtiva dos sujeitos no mundo do
trabalho. A partir do modo de produção capitalista, rompe-se a forma predominante
de aprendizagem das relações sociais a partir da convivência direta nas atividades
coletivas e no próprio espaço de trabalho, característica das sociedades pré-
capitalistas.
[...]
O estabelecimento das relações sociais de produção no capitalismo passa a exigir,
pelo seu alto grau de sociabilidade, mediações cada vez mais complexas e
socialmente determinadas. No interior dessas relações, a formação humana [...] tende
a ser reduzida à formação do ser social para o desempenho de suas funções na divisão
social do trabalho, determinada pelas relações capitalistas de produção. A educação,
então, passa a se voltar para a formação de homens já crivados pelo valor – expressão
do trabalho subsumido ao capital – e, portanto, marcados pela sua condição e lugar
naquela divisão. (CÊA, 2007, P. 33-4).

Essa ideologia do capital, aplicado à educação, traz consequências sérias e concretas para a
classe trabalhadora. Ela transfere para o trabalhador a responsabilidade sobre o seu futuro e, caso ele
não consiga trabalhar, é por incapacidade ou falta de interesse dele. Conforme assinala Frigotto “a
questão da desigualdade foi reduzida para uma questão de não-qualificação” (apud MOTTA, 2009)
e toda a responsabilidade recai sobre o trabalhador e sobre o desempenho da escola (MOTTA, 2009).
Esse quadro impôs aos integrantes da comunidade escolar (professoras, professores, estudantes, pais,
mães, etc.) a alienação do processo educativo, cada vez mais comandado e direcionado por uma elite
empresarial, ao mesmo tempo em que favorecia a expansão da rede privada.

978
Resistindo: As lutas dos profissionais da educação e a ocupação das escolas

A aplicação das políticas liberalizantes, porém, não foi aplicada com a anuência passiva dos
trabalhadores. Conforme apontado por Cêa, “a contradição estrutural do capitalismo vai também se
expressar no campo da educação formal, assim como as lutas entre o capital e o trabalho” (ibid, p.
35). Testemunhas do sucateamento no cotidiano do trabalho, essa categoria de trabalhadores
denunciou os impactos negativos da implementação do ajuste burguês no funcionamento da educação
pública. O impacto negativo da implementação das políticas neoliberais está na raiz da revolta de
profissionais da educação e estudantes. Entre 2008 e 2016, as/os profissionais da educação da rede
estadual de ensino realizaram, ao todo, cinco greves3. De modo geral, as reivindicações destas/destes
profissionais giravam em torno de melhorias salariais e melhores condições de trabalho, estando
também presentes, em suas reivindicações, o fim da GIDE e da política meritocrática. Em relação
às/aos estudantes, a insatisfação do corpo discente foi manifesta, inicialmente, através de boicotes ao
SAERJ. No ano de 2016, essa insatisfação discente se manifestou na forma de ocupação de mais de
70 escolas da rede estadual, espalhadas em mais de 20 cidades em todo o estado, além da ocupação
da sede da Secretaria de Educação do Estado (21 de maio e 30 de maio a 24 de junho) e de várias
coordenarias regionais de ensino.
As reivindicações dos profissionais da educação e estudantes se colocavam em franca
oposição às diretrizes ditadas pela Secretaria de Educação do Estado. Além da pauta salarial (no que
tange aos professores), havia também a demanda pela ampliação da carga horária de disciplinas como
Filosofia, Sociologia, Espanhol e Artes, o fim do SAERJ e do currículo mínimo, aumento do
investimento na infraestrutura das escolas, a realização de eleições diretas para a direção das escolas,
a ampliação do passe livre estudantil e a formação de grêmios livres. Organizações estudantis de
orientação socialista e anarquista levantaram bandeiras anticapitalistas, que também figuravam nas
escolas sob controle estudantil. Por isso, era comum encontrar nas escolas ocupadas dizeres como
“Somos os filhos da revolução” e estudantes críticos ao modelo de ensino vigente e que defendiam
um novo modelo de educação para uma nova sociedade.

Na escola [hoje você] é visto como um número, ou seja a nota [que você] tira, a
escola [que] tem maior índice de aprovados é mais bem vista e recebe mais, logo as
escolas que [não] tem uma estrutura boa para ensinar adequadamente, continua cada
vez mais sucateada e com um índice cada vez menor.
E não é só isso.

3
2009, 2011, 2013, 2014 e 2016. Fonte: Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação – SEPE. Disponível em:
http://www.seperj.org.br/noticias.php?pg=42&Busca=greve. Acesso em 16 de agosto de 2016.

979
O ensino médio inteiro é feito em cima do Enem, assim [que você] entra já sente a
pressão, os professores falam cada vez mais sobre ele e pro estudante parece [que
não] tem outra alternativa se não passar por ele, que a gente sabe que é um funil,
onde a maioria não consegue passar, principalmente vindo de escolas públicas que
[não] tem um ensino tão adequado.
E por fim [você] acaba sendo visto como mão de obra pro estado, [você] é ensinado
a obedecer a se encaixar nos padrões.
A escola [não] te ensina outras opções.
E no fim [você] acaba sendo visto como mercadoria, com um boletim de aprovado,
mas sem saber nada de útil sobre a sua formação pessoal, sobre a sociedade e sobre
ser uma pessoa melhor.
[Você] é visto como um futuro profissional, onde pode tentar ser médico e como a
maioria falhar miseravelmente ou aprender a apertar parafusos e receber qualquer
coisa por isso.” (Ludmilla Santos, ocupa Colégio Estadual Professor Renato
Azevedo – Cabo Frio)4

Dois projetos de educação e de sociedade estavam em disputa: de um lado, o da educação


alienada, voltada para a manutenção e reprodução do modo de produção capitalista (corporificado no
projeto de educação do estado do RJ e nos acordos entre a SEEDUC e os setores empresariais); de
outro, um projeto encampado por estudantes e uma série de trabalhadores de diferentes categorias
profissionais em defesa de uma educação crítica (elaborada no curso da luta de classes, que trazia
consigo um potencial de rompimento com o projeto de dominação burguesa).
Durante o período em que as escolas estavam ocupadas, houve o uso intensivo do aparato
estatal para enfraquecer o movimento e impedir o seu avanço. Houve intenso uso dos aparelhos
privados de hegemonia, principalmente a mídia corporativa, e do aparelho político estrito senso.
Nesse último caso, houve grande atuação burocrática pela Secretaria, que emitia comandos às
direções das escolas sobre como agir para evitar ocupações estudantis e, de certa forma, para também
dividir a comunidade escolar caso a escola fosse ocupada. Somando-se a isso, recorreu-se à força
policial para reprimir passeatas e forçar a desocupação de algumas escolas e da sede da Secretaria.
Todavia, após quatro meses, os estudantes obtiveram o comprometimento de atendimento das
pautas por parte do governo do estado. Houve a ampliação da carga horária das disciplinas de
Filosofia e Sociologia, o fim do SAERJ e do currículo mínimo, a destinação de uma quantia de 15
mil reais para as escolas ocupadas, a realização de eleição para a direção das escolas e a formação
dos grêmios. Embora conquistas pontuais, incapazes de derrubar o sistema capitalista por elas
mesmas, esses foram os ganhos possíveis dentro da correlação de forças no momento. Desse modo,
tais ações representaram mais um capítulo da luta da classe trabalhadora pela transformação social e
de resistência ao avanço do capital na área da educação.

4
Entrevista concedida em 6 de junho de 2017.

980
Conclusão

A implementação das políticas neoliberais tiveram como pano de fundo a crise estrutural do
capitalismo na década de 1970. As ações propostas nessa linha foram apresentadas como as únicas
saídas possíveis para a crise. Basicamente sustentadas a partir de críticas superficiais em relação ao
papel do Estado – que, segundo seus ideólogos deveria ser “mínimo” –, elas foram implementadas a
partir do próprio Estado, que, com seu aparato de coerção e de produção de consenso hegemônico,
implementou medidas com vistas à manutenção e ampliação das bases de dominação capitalista.
A implementação do receituário neoliberal teve como contrapartida a redução de
investimentos estatais nos serviços públicos, gerando precarização. Além disso, exigia-se a retirada
de direitos dos trabalhadores, o que acirrou a luta de classes, apesar da repressão policial às
manifestações organizadas pela classe trabalhadora e da difamação dos sindicatos.
No caso da educação pública no estado do Rio de Janeiro não foi diferente. O avanço
neoliberal nesta área foi marcado pelo corte de recursos, causando sucateamento da rede. Além disso,
a comunidade escolar, de um modo geral, foi afastada das instâncias de decisão e de gestão da vida
escolar. A gestão democrática das escolas públicas ligadas à Secretaria de Estado de Educação do
Rio de Janeiro foi substituída de forma arbitrária pela gestão empresarial da educação. Durante o
governo Sérgio Cabral Filho, esse modelo de gestão foi consolidado a partir da assinatura de um
contrato que colocou a administração da rede estadual fluminense nas mãos da Falconi – Consultores
de Resultados. Durante esse período, a SEEDUC foi dirigida por Wilson Risolia, economista e
membro do grupo Falconi. Risolia foi o responsável pela aplicação da metodologia da Falconi – que
tem entre seus quadros representantes do grande capital financeiro nacional – na secretaria. Essa
metodologia, conhecida como Gestão Integrada da Escola, consistia na aplicação de medidas com
vistas à estimular a competitividade entre as escolas da rede. Por meio de mecanismos como
avaliações externas (SAERJ), media-se o cumprimento, pelas escolas da rede, de metas pré-
estabelecidas pela secretaria. Dependendo do desempenho, as escolas receberiam mais ou menos
recursos.
Com isso, ficou em segundo plano as propostas elaboradas pelos trabalhadores e pelas
trabalhadoras da educação, que tiveram reajustes salariais mínimos. No lugar do pagamento de
salários justos e da maior destinação de verbas para as unidades escolares, priorizou-se o pagamento
de bônus apenas às escolas que seguissem à cartilha meritocrática à risca. Além disso, pouco foi feito
para melhorar a infraestrutura das escolas estaduais. Pelo contrário, a rede foi drasticamente

981
enxugada, através do fechamento de turmas, turnos e escolas, o que favoreceu o crescimento das
escolas privadas.
No entanto, professores e estudantes resistiram à aplicação dessas políticas. O ano letivo de
2016 foi marcado por uma das maiores e mais longas greves realizadas pelos trabalhadores da
educação, que foi seguida por uma onda de ocupações de escolas pelos estudantes. Havia uma
oposição clara entre as reivindicações de professores e estudantes e as propostas da Secretaria. Ao
final de quatro meses, embora não conseguisse obter o atendimento de toda a pauta reivindicatória, o
movimento conseguiu derrubar alguns pontos centrais da política implementada pela SEEDUC em
parceria com a empresa Falconi e assegurar o retorno da gestão escolar pela própria comunidade.

Bibliografia

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982
500 anos de Reforma Protestante: Os desafios contemporâneos dos evangélicos do Brasil

Guilherme Esteves Galvão Lopes1

Resumo: Em um ano marcado pelas comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante, este artigo
busca analisar os desafios contemporâneos do protestantismo brasileiro, como as relações entre igreja
e política, com destaque para a atuação da bancada evangélica no Congresso Nacional, e a crise
doutrinária e de identidade, em decorrência do avanço da Teologia da Prosperidade e do
neopentecostalismo.

Palavras-chave: Poder, Religião, Protestantismo.

Abstract: In a year marked by the celebrations of the 500th anniversary of the Protestant
Reformation, this article seeks to analyze the contemporary challenges of Brazilian Protestantism,
exemplified by the relationship between church and politics, with emphasis on the work of the
congressional parliamentary group in the National Congress, and the crisis of doctrine and identity,
as a result of the advancement of Prosperity Theology and Neo-Pentecostalism.

Key words: Power, Religion, Protestantism.

INTRODUÇÃO

No ano de 2017, são comemorados os 500 anos da Reforma Protestante: em 31 de outubro de


1517, Martinho Lutero afixou na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, o documento da
Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e a Eficácia das Indulgências, popularmente
conhecida como as 95 Teses. Lutero iniciou, assim, movimento de contestação ao catolicismo de
então, tendo como resposta do papado sua excomunhão, originando o protestantismo, que se espalhou
pela Europa e se consolidou em países como Suíça, Holanda, Escócia e Inglaterra.2
No Brasil, a presença protestante foi tomada de percalços em seus primórdios: a primeira
tentativa de estabelecimento foi em 1555, quando a missão chefiada por Nicolas Durand de
Villegagnon tentou instalar, na atual cidade do Rio de Janeiro, uma colônia chamada França
Antártica. No grupo de Villegagnon haviam huguenotes, como eram chamados os franceses adeptos
do reformador João Calvino. Os primeiros protestantes aqui presentes fizeram história: celebraram o
primeiro o culto das Américas, em 10 de março de 1557. Após desavenças com Villegagnon, que não
estava totalmente convencido das teses calvinistas, os huguenotes decidiram voltar para a França.

1
Guilherme Galvão Lopes é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (PPGH/UERJ). Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho. Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Lúcia Maria Bastos
Pereira das Neves. E-mail: guilhermegalvaolopes@gmail.com.
2
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012. p. 116.

983
No entanto, pelos riscos da viagem, retornaram, sendo confrontados pelo almirante francês.
Em resposta, escreveram a primeira confissão de fé protestante do continente: a Confesssio
Fluminensis, em 1558. Em seguida, três dos signatários do documento, Pierre Bourdon, Jean du
Bourdel e Mathieu Verneuil, foram executados.3 Por fim, os franceses foram derrotados e expulsos
da Ilha de Serigipe – atual Ilha de Villegagnon – em 1560.
A segunda tentativa ocorreu no século XVII, no período da ocupação holandesa no Nordeste
brasileiro, em empreendimento da Companhia das Índias Ocidentais liderado por Maurício de
Nassau. Ao permitir a liberdade de culto, Nassau, que era calvinista da Igreja Reformada Neerlandesa,
atraiu outros protestantes e também judeus, que fundaram no Recife a primeira sinagoga do continente
americano.4 De acordo com o historiador Alderi Souza de Matos, os holandeses organizaram “22
igrejas e congregações, dois presbitérios e um sínodo. As igrejas foram servidas por mais de 50
pastores (“predicantes”), além de pregadores auxiliares (“proponentes”) e outros oficiais”.5
O domínio holandês no Nordeste durou de 1630 a 1654, quando os neerlandeses assinaram
sua rendição, após duras derrotas, sendo a principal delas a Batalha dos Guararapes, entre 1648 e
1649. Foi apenas no início do século XIX, com o incentivo à imigração europeia ao Brasil, sobretudo
alemã e inglesa, que surgiram os grupos que dariam origem às primeiras denominações evangélicas
a nível nacional.
A partir de 1810, vieram anglicanos, luteranos, metodistas, congregacionais, presbiterianos,
batistas e adventistas. No entanto, o artigo 5º da Constituição do Império era bem claro quanto ao
status do catolicismo e à liberdade de culto: o catolicismo era a religião oficial, sendo permitido culto
doméstico para outras religiões, em locais sem forma exterior de templo. Tal rigidez criou
dificuldades para o crescimento evangélico no Brasil. O Censo de 1872 apontou que apenas 0,3% da
população brasileira, cerca de 30 mil indivíduos, eram não-católicos, sem especificar se eram judeus,
protestantes ou fiéis de outras religiões.6
Foi apenas com o advento da República, em 1889, que o Brasil experimentou legalmente a
liberdade de culto e, conforme a Constituição promulgada em 1891, foram autorizados o casamento
civil, cemitérios seculares e ensino público leigo. Em consequência, a Igreja Católica estreitou seus
laços com o Vaticano, ao passo que o regime republicano passou a encarar com simpatia o avanço do

3
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961.
4
SINAGOGA KAHAL ZUR ISRAEL. Histórico. Disponível em <http://www.kahalzurisrael.com>. Acesso em: 12 out.
2017.
5
MATOS, Alderi Souza de. Breve História do Protestantismo no Brasil. Disponível em
<http://www.mackenzie.br/6994.html?&L=0>. Acesso em: 10 out. 2017.
6
TERRA. A Religião dos Brasileiros. Disponível em <http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/a-religiao-dos-
brasileiros/>. Acesso em: 10 out. 2017.

984
protestantismo. No Censo de 1890, os evangélicos passaram a ser mencionados nas estatísticas
oficiais: 140 mil fiéis, cerca de 1% da população brasileira.7

AS DIFERENTES TENDÊNCIAS DO PROTESTANTISMO BRASILEIRO

Ao falarmos dos evangélicos no Brasil, julgamos extremamente necessário fazer a distinção


entre as diversas tendências e grupos presentes no seio deste segmento religioso: é senso comum
enxergá-los como se fossem todos iguais. É preciso esclarecer que o protestantismo, em geral, é
bastante heterogêneo, e no caso brasileiro, existem divisões e subdivisões extremamente relevantes,
e grupos discordantes entre si em questões teológicas, éticas, morais, sociais, políticas e litúrgicas.
Nossa primeira preocupação, neste sentido, é a conceituação do que é ser evangélico:

(...) O termo evangélico, na América Latina, recobre o campo religioso formado


pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante
europeia do século XVI. Designa tanto as igrejas protestantes históricas (Luterana,
Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) como as pentecostais
(Congregação Cristã no Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular,
Brasil Para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção, Universal do Reino de Deus etc.).8

Por conseguinte, diferentes pesquisadores têm aprofundado as investigações acerca das


tendências evangélicas do Brasil, como Paul Freston que, em sua pesquisa Protestantes e política no
Brasil, da Constituinte ao impeachment, utilizou classificação do Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (CEDI), de 1991, que dividiu os históricos entre protestantes de missão
e de migração, sendo os batistas, congregacionais, metodistas e presbiterianos agregados no primeiro
grupo, e anglicanos e luteranos no segundo. Uma categoria à parte foi criada: os adventistas, mórmons
e Testemunhas de Jeová são classificados como pseudo-protestantes.9
Apesar de o CEDI ter proposto também a distinção entre os grupos pentecostais, a
classificação mais adequada à presente pesquisa é a de Ricardo Mariano: Assembleia de Deus e
Congregação Cristã no Brasil são igrejas pentecostais clássicas; Igreja do Evangelho Quadrangular,

7
CPAD. Evangélicos, há 202 anos no Brasil. Disponível em <http://cpadnews.com.br/conteudo-
exclusivo/14160/evangelicos:-ha-202-anos-no-brasil.html>. Acesso em: 10 out. 2017.
8
Popularmente, os históricos são chamados de tradicionais. No entanto, para que não haja ambiguidade no uso do termo
tradicional, utilizaremos a designação histórica para nos referirmos a estas denominações. MARIANO, Ricardo.
Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 10.
9
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de
Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 37.

985
Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja de Nova Vida, Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para
Cristo e Igreja de Nova Vida, são deuteropentecostais.
A Igreja Universal do Reino de Deus inaugurou a linha neopentecostal, onde estão inseridas
também denominações como a Igreja Apostólica Renascer em Cristo e Igreja Cristo Vive, e mais
recentemente a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus.
Mariano divide o fenômeno do pentecostalismo brasileiro nestas três ondas cronológicas e
doutrinárias, tendo as igrejas históricas renovadas, ou simplesmente renovadas, com destaque para
a Convenção Batista Nacional, como uma linha à parte.10
Doutrinariamente, as igrejas históricas são herdeiras das tradições reformadas, caracterizadas
pela sólida tradição teológica, pela sobriedade do culto, por uma liturgia mais rígida e por serem mais
tendentes à pregação expositiva. Em muitas, não há espaço para louvores e ritmos contemporâneos,
nem para práticas como o exorcismo público. As pentecostais clássicas, surgidas aqui na década de
1910, têm como principal característica os dons espirituais (ou carismáticos), sintetizados no
fenômeno conhecido por “batismo no Espírito Santo”, com destaque para a glossolalia, ou “falar em
línguas estranhas”.11
No caso das deuteropentecostais, iniciadas principalmente entre as décadas de 1950 e 1960,
além de adotarem muitas características das pentecostais clássicas, havia espaço também para as
cruzadas de cura divina, onde fieis relatavam a cura instantânea de doenças e de problemas físicos.
Por último, estão os neopentecostais, presentes no Brasil a partir dos anos 1970 e 1980. A principal
base do neopentecostalismo está na Teologia da Prosperidade:

Chamamos de Teologia da Prosperidade o que nos EUA, local de sua origem, além
desse nome, é rotulado por seus críticos de Health and Wealth Gospel, Faith
Movement, Faith Prosperity Doctrines, Positive Confession entre outros. Reunindo
crenças sobre cura, prosperidade e poder da fé, essa doutrina surgiu na década de 40.
Mas só se constituiu como movimento doutrinário no decorrer dos anos 70, quando
encontrou guarida nos grupos evangélicos carismáticos dos EUA, pelos quais
adquiriu visibilidade e se difundiu para outras correntes cristãs.12

10
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 23-
49.
11
LOPES, Augustus Nicodemus. Polêmicas na Igreja: Doutrinas, práticas e movimentos que enfraquecem o
cristianismo. São Paulo: Mundo Cristão, 2015. p. 167-180.
12
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p.
149-151.

986
O CRESCIMENTO NO PERÍODO REPUBLICANO E O PENTECOSTALISMO
Diferentes pesquisadores enxergam a presença e o crescimento do protestantismo no Brasil
como um fenômeno republicano. Tal fato deve-se à enorme simpatia com que os republicanos e
liberais encaravam a presença evangélica no Brasil, chegando a incentivá-la, pelos motivos que o
jurista Rui Barbosa expôs ainda em 1880:

O protestantismo nasceu da liberdade da consciência individual, cuja consequência


política é a liberdade religiosa; do protestantismo é filha a instrução popular, que
constitui a grande característica, o principal instrumento e a necessidade vital da
civilização moderna [...]; ao protestantismo encontra-se associada, em toda a parte,
uma exuberância de prosperidade industrial, luxuriante e vigorosa como a vegetação
dos trópicos [...], em contraste com os países onde os processos de governo católicos,
aplicados em seu rigor, cansaram as almas, e esgotaram a energia moral do povo,
esse húmus da riqueza pública, como os métodos exaustivos da lavoura antiga
esterilizavam as mais belas regiões da terra.13

Neste sentido, o historiador Lyndon de Araújo Santos acrescenta que:

A propaganda protestante ajustava-se aos outros discursos correntes no período


como a modernidade, a civilização, a higienização, a ciência e a tecnologia. Esta
adesão fazia parte da estratégia de construir sentidos e identidades numa sociedade
sujeita a rápidas mudanças na direção da modernização e da urbanização. Estes
sentidos foram sendo estabelecidos e sedimentados no transcorrer do período
histórico da primeira República (1889-1930) e se estende até os nossos dias, não sem
alterações em seus paradigmas.14

Assim, constatamos que foi a partir da República, e especialmente após a Constituição de


1891 – que instituiu a liberdade religiosa –, que as igrejas e grupos protestantes encontraram ambiente
propício para seu crescimento e multiplicação, adquirindo gradativamente caráter nacional,
contribuindo desta forma para que diversas denominações e convenções evangélicas fossem
organizadas.
Reforça esta tese dois fatores importantes: o crescimento populacional evangélico e o aumento
do número de denominações. Até os anos 1920, por exemplo, além dos grupos históricos, estavam
presentes no Brasil apenas a Assembleia de Deus e a Congregação Cristã no Brasil. A partir dos anos
1950 e 1960, espalharam-se pelo país as cruzadas evangelísticas, em paralelo com a gradativa
inserção nos meios de comunicação, principalmente o rádio:

Durante os anos 60, 70 e 80 houve uma multiplicação no número de emissoras no


Brasil, especialmente em ondas médias e em frequência modulada. Também a

13
BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945. V. 7, T. 1.
p. 164.
14
SANTOS, Lyndon de Araújo. O Protestantismo no advento da República no Brasil - Discursos, estratégias e conflitos.
Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, nº 8, setembro de 2010, p. 8.

987
programação religiosa nas rádios passou a atrair as pequenas e médias igrejas
evangélicas, que não necessitavam de grandes recursos para manter os seus
programas locais. Às vezes bastava um voluntário ou o próprio pastor e um pacote
de discos evangélicos.15

Nas décadas de 1970 e 1980, foi a vez das denominações neopentecostais, como a Igreja
Universal do Reino de Deus e Igreja Internacional da Graça de Deus, que ajudaram a consolidar os
evangélicos no rádio, dando os primeiros passos rumo à televisão. No entanto, para Leonildo Silveira
Campos, “a inserção dos evangélicos na mídia televisiva brasileira sempre esbarrou no alto custo de
cada minuto na TV. Poucos programas evangélicos surgidos no final dos anos 60 no Brasil
conseguiram ficar no ar por muito tempo”.16
Foi a partir da Constituição de 1988 que os evangélicos adentraram e se consolidaram na
televisão brasileira, auxiliados pelas novas regras legais envolvendo as concessões de rádio e TV e
pelo crescente poderio político do segmento. Ainda em 1983, o pastor Nilson da Amaral Fanini
conquistou a concessão da TV Rio, projeto que veio a naufragar no início dos anos 1990. Seu canal,
no entanto, tornou-se filial da TV Record de São Paulo, adquirida em 1989 pela Igreja Universal do
Reino de Deus.
Atualmente, são incontáveis os espaços ocupados pelos evangélicos na mídia brasileira.
Destacam-se, além da Record, que possui programação comercial, a Igreja Internacional da Graça de
Deus, com a RIT; a Rede Gênesis, da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra; a Rede Gospel, da
Igreja Apostólica Renascer em Cristo; a Boas Novas, ligada à Assembleia de Deus (CGADB); além
da constante presença do pastor Silas Malafaia e dos apóstolos Agenor Duque e Valdemiro Santiago
em diferentes canais de televisão pelo país.
Não existem dados confiáveis relativos ao quantitativo de denominações evangélicas no
Brasil. Segundo O Globo, do mês de janeiro de 2010 até fevereiro de 2017, “67.951 entidades se
registraram na Receita Federal sob a rubrica de “organizações religiosas ou filosóficas”, uma média
de 25 por dia”, não havendo, no entanto, distinção entre as confissões religiosas registradas. A matéria
d’O Globo prossegue:

No Rio, dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), mostram


que há 21.333 CNPJs ativos de organizações religiosas. De janeiro de 2010 a
fevereiro deste ano, houve 9.670 registros. O estado campeão no período foi São
Paulo, com 17.052. Não há um cadastro único que apresente todas as igrejas em
atividade no país, portanto a verificação da abertura do CNPJ é o caminho mais

15
CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e televisiva. Revista USP,
São Paulo: USP, nº 61, p. 154, março/maio 2004.
16
CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e televisiva. Revista USP,
São Paulo: USP, nº 61, p. 159, março/maio 2004.

988
seguro. Mas, como o processo é autodeclaratório, a Receita ressalva não ser possível
assegurar que todos os cadastros são de organizações religiosas.17

De forma oficial, o Censo de 2010 aponta algumas das principais denominações evangélicas
brasileiras, que listamos a seguir:

Tabela 1 – As dez maiores denominações evangélicas do Brasil18


Membro Membr
Igreja s Igreja os

Assembleia de Deus 12.314.410 Igreja Adventista 1.561.071

Igreja Batista 3.723.853 Igreja Luterana 999.498


Congregação Cristã no
Brasil 2.289.634 Igreja Presbiteriana 921.209
Igreja Universal do Reino Igreja Pentecostal
de Deus 1.873.243 Deus é Amor 845.383
Igreja do Evangelho
Quadrangular 1.808.389 Igreja Cristã Maranata 356.021

O surgimento de novas igrejas, combinado às condições políticas e ao uso crescente dos meios
de comunicação, refletiu-se no crescimento dos evangélicos no Brasil. Se em 1890 eles eram apenas
143 mil indivíduos, em 2010 ultrapassavam os 42 milhões. Em 19 anos, entre os Censos de 1991 e
2010, a população brasileira experimentou crescimento de 29,83%. No mesmo período, os
evangélicos cresceram mais de 220%, 7 vezes maior que a proporção do crescimento populacional
do país.
Divulgada em 2016, pesquisa do Datafolha indicou que 29% dos brasileiros com mais de 16
anos são evangélicos, sendo os pentecostais a maioria, com 22%, e os históricos na outra ponta, com
7%.19 Projeções apontam que, em alguns anos, a maioria da população brasileira será evangélica:

(...) a grande novidade do século XXI é que o Brasil está deixando ser
majoritariamente Católico Apostólico Romano e, mantendo-se as atuais tendências,
deve passar por uma mudança de hegemonia religiosa nos próximos 20 ou 30 anos.
Entre os 10 maiores países do globo, isto deve acontecer somente no Brasil, que é
considerado o maior país católica do mundo e, provavelmente, deixará de sê-lo em
poucas décadas. O Brasil vai se tornar exemplo de um fenômeno raro, que é a
mudança na composição religiosa da população. E, como costuma acontecer na

17
O GLOBO. Desde 2010, uma nova organização religiosa surge por hora. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/brasil/desde-2010-uma-nova-organizacao-religiosa-surge-por-hora-
21114799#ixzz4vJt7wFc5>. Acesso em: 12 out. 2017.
18
Dados retirados dos resultados do Censo de 2010 do IBGE.
19
DATAFOLHA. 44% dos evangélicos são ex-católicos. Disponível em
<http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/12/1845231-44-dos-evangelicos-sao-ex-catolicos.shtml>.
Acesso em: 12 out. 2017.

989
história brasileira, deve ser uma mudança sem grandes rupturas, sem traumas ou
batalhas sangrentas.20

Tabela 2 – Taxas de crescimento populacional do Brasil (total x evangélicos) – 1872-201021


A População Ta População Ta % de
no brasileira xa % evangélica xa % evangélicos
1
872 9.930.478 - - - -
1 44,
890 14.333.915 34 143.743 - 1,00
1 21,
900 17.438.434 65 - - -
1 75,
920 30.635.605 67 - - -
1 34, 64
940 41.236.315 60 1.074.857 7,76 2,60
1 25, 62,
950 51.944.397 96 1.741.430 01 3,35
1 36, 62,
960 70.992.343 66 2.824.775 21 3,97
1 33, 70,
970 94.508.583 12 4.814.728 44 5,09
1 28, 63,
980 121.150.573 18 7.885.846 78 6,50
1 21, 67,
991 146.917.459 26 13.189.284 25 8,97
2 15, 98,
000 169.590.693 43 26.184.941 53 15,44
2 12, 61,
010 190.755.799 48 42.275.440 44 22,16

A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Em proporção semelhante ao crescimento populacional, verificamos também o aumento da


representação evangélica em instâncias de poder, já consolidada no Legislativo e crescente no
Executivo. Citamos, como maior exemplo, o fato de hoje a cidade do Rio de Janeiro, ter no seu

20
ALVES, José Eustáquio Diniz; BARROS, Luiz Felipe Walter; CAVENAGHI, Suzana. A dinâmica das filiações
religiosas no Brasil entre 2000 e 2010: diversificação e processo de mudança de hegemonia. REVER – Revista de Estudos
da Religião, São Paulo: PUC-SP, ano 12, nº 2, p. 147, jul/dez 2012.
21
Todos os dados demográficos foram retirados resultados dos Censos do IBGE.

990
comando Marcelo Crivella (PRB), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho
de seu fundador, o bispo Edir Macedo.
Em 2002, Anthony Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro, foi candidato a presidente da
República. Oito anos depois, foi a vez da ex-senadora Marina Silva concorrer ao cargo, pelo PV,
sendo derrotada ainda no 1º turno. Em 2014, Marina foi novamente derrotada, desta vez pelo PSB.
No entanto, conquistou um capital político de 22 milhões de votos. Nas mesmas eleições, o pastor
Everaldo Pereira (PSC), pertencente ao segundo mais importante grupo das Assembleias de Deus,
obteve 780 mil votos (0,75%), ficando em 5º lugar no pleito.
Mas nem sempre foi assim. Apenas nos anos 1930, mais especificamente nas eleições que
escolheram os constituintes de 1934, que os evangélicos se organizaram para eleger seus
representantes, sendo apenas um foi eleito: o pastor metodista Guaracy Silveira, por São Paulo. Anos
depois, veio o Estado Novo, que durou até 1945, sendo realizada nova Constituinte após seu término.
Para ela, novamente Guaracy Silveira foi o único evangélico eleito. Até 1982, a representação
evangélica na Câmara se manteria estável, nunca ultrapassando, entretanto, os 13 parlamentares
eleitos em 1974.

Tabela 3 – Deputados federais evangélicos eleitos por legislatura – 1946-2015


Legislat Eleit Crescime Legislat Eleit Crescime
ura os nto ura os nto
1946- 1983-
1951 1 - 1987 12 0,00%
1951- 1987-
1955 5 400,00% 1991 32 166,66%
1955- 1991-
1959 6 20,00% 1995 23 -28,12%
1959- 1995-
1963 7 16,66% 1999 32 39,13%
1963- 1999-
1967 10 42,85% 2003 51 59,37%
1967- 2003-
1971 12 20,00% 2007 59 15,68%
1971- 2007-
1975 9 25,00% 2011 32 -45,76%
1975- 2011-
1979 13 44,44% 2015 70 118,75%
1979- 2015-
1983 12 -7,69% 2019 74 5,71%

Apenas em 1986, nas eleições que escolheram os membros da Assembleia Nacional


Constituinte, que os evangélicos criaram grande mobilização para eleger seus representantes,

991
inaugurando assim o ingresso e o predomínio dos pentecostais até a atualidade, além do apoio
institucional das denominações e de uma articulação política consolidada do grupo. Entretanto, a
atuação evangélica na Constituinte foi voltada principalmente para as questões envolvendo as
mudanças legais para concessões e renovações de outorga de radiodifusão, tema de grande interesse
das igrejas e de grupos de comunicação voltados para os evangélicos, além do envolvimento em
debates sobre questões morais e comportamentais.
Tal enfoque comprometeu a participação dos evangélicos em outras importantes pautas da
Constituinte, exemplificada na ausência destes na Subcomissão de Tributos, Participação e
Distribuição das Receitas e na Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da
Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica, em contraposição à presença na Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso, que contou com oito parlamentares evangélicos.
Decaindo no número de eleitos em 1990, foi a partir do governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995-2003) que a bancada evangélica, com configuração semelhante à que conhecemos
hoje, recuperou-se e consolidou-se, saltando dos 32 eleitos em 1994 para os 74 escolhidos para a
Câmara dos Deputados em 2014 que, somados aos 3 senadores eleitos, formam a maior representação
evangélica da história do Congresso Nacional.

A CRISE DE IDENTIDADE: INSTITUCIONAL E DOUTRINÁRIA

Apontamos que o atual momento do protestantismo brasileiro é caracterizado por um período


de transição, decorrente, em primeiro lugar, da crise institucional que atinge o Estado e suas instâncias
e as entidades privadas, incluídas no meio delas as igrejas evangélicas. Em segundo lugar, o que
estimula tal transição é uma crise de identidade que tem como causa o imenso caos doutrinário, que
tem desafiado as igrejas históricas e os pentecostais e levado as igrejas neopentecostais para o centro
do cenário evangélico brasileiro.
Sobre a crise institucional, diversos pesquisadores têm se ocupado do tema, como Zygmunt
Bauman fala a seguir em relação às instituições políticas:

A decadência da política é causada e reforçada pela crise da agenda política. As


instituições amarram o poder de resolver os problemas à política. Ela seria capaz de
decidir que coisas precisariam ser feitas. Nossos antepassados conceberam uma
ordem que dependia dos serviços do Estado-nação. Mas essa ordem não é mais
adequada aos desafios postulados pela contínua globalização de nossa
interdependência. Com a separação do poder e da política, a gente se encontra na

992
dupla situação de poderes livres do controle político e da política que sofre
o déficit perpétuo do poder. Daí a crise de confiança nas instituições políticas, uma
vez que a política investiu nos parlamentos e nos partidos para construir a
democracia como atualmente a compreendemos. Mais e mais pessoas duvidam que
os políticos sejam capazes de cumprir suas promessas. Assim, elas procuram
desesperadamente veículos alternativos de decisão coletiva e ação, apesar de, até
agora, isso não ter representado uma alteração efetiva.22

O modelo tradicional das igrejas evangélicas brasileiras tem constantemente sido colocado
em xeque. Nas igrejas históricas, a crítica é dirigida à burocracia que envolve diversas instâncias
deliberativas: concílios, presbitérios, sínodos, colegiados, bispados, etc. No entendimento das novas
gerações, tal estruturação é extremamente rígida, ocasionando dificuldades no desenvolvimento
prático das atividades cotidianas, além das críticas à rigidez litúrgica.
No campo pentecostal, a dinâmica se diferencia um pouco. De um lado, algumas
denominações clássicas se organizam da mesma forma que a maioria das históricas: em convenções
ou confederações, com a organização de diversas autarquias ou secretarias para tratar dos mais
variados assuntos. No entanto, em muitas delas, e também em denominações deuteropentecostais, o
governo é familiar: o comando das igrejas é transmitido hereditariamente, até mesmo nas que se
organizam em órgãos colegiados.
No entanto, é a tendência neopentecostal que mais gera preocupações e inquietações no meio
evangélico. A cada ano, surgem inúmeras novas igrejas, sincréticas, com total ausência de coesão
doutrinária e sem vínculos com nenhuma convenção ou união de igrejas já existentes. Autointitulados
pastores, bispos e apóstolos criam verdadeiras corporações empresariais, investindo milhões de reais
em espaços nos meios de comunicação de massa.
O governo destas igrejas é, em sua maioria, autocrático: o líder máximo, geralmente baseado
em supostas revelações divinas, o exerce de forma incontestável, sem se subordinar a nenhum tipo
de instância ou colegiado. Os que contestam são perseguidos, restando a saída por decisão própria ou
a exclusão, ocasionando o surgimento de novas e incontáveis igrejas.
Diante deste quadro, surge um fenômeno importante: o dos desigrejados. Por muito tempo,
foi um tabu no meio evangélico a questão envolvendo os desviados, que se distinguiam entre os que
voltavam a ter uma vida secular, rejeitando principalmente a rigidez moral, e os que mantinham a
vida religiosa sem, no entanto, manter vínculos institucionais com qualquer igreja.
O último grupo, o dos desigrejados, é assim caracterizado: são fieis que mantém a prática da
oração, dedicam-se à leitura da Bíblia e de autores religiosos, alguns até organizam grupos e fazem
reuniões públicas sem, entretanto, constituir uma igreja no modelo tradicional, institucionalizada e

22
ÉPOCA. Zygmunt Bauman: "Vivemos o fim do futuro". Disponível em
<http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmunt-baumanb-vivemos-o-fim-do-futuro.html>. Acesso em: 10 out. 2017.

993
hierarquizada, rejeitando assim rótulos e titulações. Dessa forma, traduzem toda sua insatisfação com
os modelos organizacionais até então apresentados.
Em 2009, de acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, o número de
evangélicos sem vínculo havia alcançado 2,9% da população brasileira, contra 0,7% de 2003. A
revista IstoÉ, que divulgou os dados da pesquisa, relatou o surgimento de “uma nova categoria
religiosa, os evangélicos não praticantes”:

Se outrora o padre ou o pastor produziam sentido à vida das pessoas de muitas


comunidades, atualmente celebridades, empresários e esportistas, só para citar três
exemplos, dividem esse espaço com essas lideranças. Assim, muitas vezes, os fiéis
interpretam a sua trajetória e o mundo que os cerca de uma maneira pessoal, sem se
valer da orientação religiosa. Esse fenômeno, conhecido como secularização,
revelou o enfraquecimento da transmissão das tradições, implicou a proliferação de
igrejas e fez nascer a migração religiosa, uma prática presente até mesmo entre os
que se dizem sem religião (ateus, agnósticos e os que creem em algo, mas não
participam de nenhum grupo religioso).23

A mesma matéria relata também o trânsito de evangélicos entre as diferentes tendências,


históricas ou tradicionais, e o trânsito constante entre fieis das igrejas neopentecostais:

Em sua dissertação de mestrado sobre as motivações de gênero para o trânsito de


pentecostais para igrejas metodistas, defendida na Umesp, a psicóloga Patrícia
Cristina da Silva Souza Alves verificou, depois de entrevistar 193 protestantes
históricos, que 16,5% eram oriundos de igrejas pentecostais. Essa proporção era de
0,6% (27 vezes menor) em 1998, como consta no artigo “Trânsito religioso no
Brasil”, produzido pelos pesquisadores Paula Montero e Ronaldo de Almeida, do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Os neopentecostais, porém, possuem uma particularidade. Seus fiéis trocam de igreja
como quem descarta uma roupa velha: porque ela não serve mais. São a
homogeneização da oferta religiosa e a maior visibilidade de algumas denominações
que produzem esse efeito. “Esse grupo, antigamente, era o tal receptor universal de
fiéis, para onde iam todas as religiões. Hoje, a singularidade dele é o fato de receber
membros de outras neopentecostais”, diz Sandra [Duarte de Souza], da Umesp.

Por fim, verificamos o número de pessoas sem-religião na população brasileira: o Censo do


IBGE de 2010 apontou que 8% da população brasileira não era adepta de nenhuma religião, contra
7,4% do Censo de 2000. No mesmo período, os evangélicos pentecostais e neopentecostais cresceram
de 10,4% para 13,4%, os evangélicos históricos mantiveram-se em 4,1%, e os evangélicos não
determinados saltaram de 1% para 4,9%.

23
ISTOÉ. O novo retrato da fé no Brasil. Disponível em
<https://istoe.com.br/152980_O+NOVO+RETRATO+DA+FE+NO+BRASIL/>. Acesso em: 10 out. 2017.

994
A CRISE DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

A crise de identidade dos evangélicos brasileiros e a desconfiança nas instituições refletem-


se também na representação política. Citamos, neste caso, dois dos exemplos mais recentes: o
Escândalos dos Sanguessugas (ou Máfia das Ambulâncias), em 2006, e o processo de impeachment
da presidente Dilma Rousseff, em 2016.
O Escândalo dos Sanguessugas foi um esquema de corrupção envolvendo parlamentares nas
destinações de emendas visando a compra de ambulâncias por prefeituras municipais. No caso, o que
chamou atenção foi o número de evangélicos envolvidos no esquema: eles eram 25 dos 72 que
tiveram recomendação para abertura de processo disciplinar. A consequência direta do escândalo foi
a redução do tamanho da bancada: de 59 eleitos em 2002, ela foi reduzida quase pela metade, com
32 eleitos em 2006.24
O outro caso foi o que culminou na cassação da presidente Dilma Rousseff, em 2016, no
decorrer de seu segundo mandato. Liderada pelo deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara, a
bancada evangélica foi protagonista do processo de impeachment, que tinha como motivação as
pedaladas fiscais, que seriam remanejamentos ilegais dentro do orçamento da União visando falsos
superávits fiscais. Após a admissibilidade do processo contra a presidente ser aprovada no Senado
Federal, o vice-presidente Michel Temer, aliado de Eduardo Cunha, exerceu a presidência
interinamente.
Entretanto, Cunha foi um dos personagens principais no contexto da Operação Lava-Jato,
que apura esquemas de corrupção dentro da Petrobras. Alvo da operação no fim de 2015, o então
presidente da Câmara deu andamento aos pedidos de impeachment contra Dilma Rousseff em
retaliação à postura do PT no Conselho de Ética, que votou pela abertura de processo por quebra de
decoro parlamentar.
Eleito com o apoio dos evangélicos do estado do Rio de Janeiro, que em 2014 lhe confiaram
mais de 232 mil votos, Cunha
cedeu às pressões e renunciou ao cargo do presidente da Câmara em julho. Menos
de duas semanas após a cassação de Rousseff, Cunha foi cassado, pelo placar
esmagador de 450 a 10, após 335 dias do pedido, sendo considerado o processo mais
longo da história do Legislativo federal. Em 19 de outubro, foi preso

24
LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Por que os evangélicos não mudaram o Brasil? Análise histórica da atuação
evangélica no Congresso Nacional (1982-2006). XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH, Florianópolis, 2015.
Disponível em
<http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434399809_ARQUIVO_PorqueosevangelicosnaomudaramoBrasil
.pdf>. Acesso em: 12 out. 2017.

995
preventivamente pela Polícia Federal, devido às acusações provenientes da
Operação Lava-Jato.25

Michel Temer assumiu definitivamente a presidência da República em 31 de agosto de 2016,


quando o Senado aprovou a cassação de Dilma Rousseff. Em seguida, seu governo colocou em pauta
algumas de suas promessas, como as reformas previdenciária, trabalhista e política. Nesta, os
evangélicos tem sido acusados constantemente de fisiologismo e oportunismo, por defenderem o
distritão, sistema eleitoral que elegeria os deputados mais votados de cada estado, transformado em
distrito, dando fim ao sistema proporcional.
Entretanto, o sistema é considerado um sistema falho e antidemocrático, abrindo espaço para
abusos de poder político e econômico. Foi abandonado pelo Japão e é utilizado em apenas quatro
países do mundo, entre eles a Jordânia e o Afeganistão. Assim, a bancada evangélica teria interesse
no modelo pois, favorecidos pela mídia, seus candidatos teriam mais chances eleitorais, ampliando a
representação da bancada.26

CONCLUSÃO

Diante deste quadro, concluímos que, embora tenha crescido numericamente, o


protestantismo brasileiro não conseguiu, ainda, produzir transformações profundas na sociedade
brasileira. Esta preocupação é compartilhada por lideranças evangélicas expressivas, como o
reverendo Guilhermino Cunha, que foi pastor da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro: “Não basta
crescer só em números, mas também na vivência do Evangelho. O aumento dos evangélicos deveria
significar menos violência, menos presos, menos crianças abandonadas”.27
O exemplo disso é a inserção na política: ao invés de influenciarem o meio, foram
influenciados. O envolvimento de evangélicos em diversos escândalos de corrupção, em práticas
consideradas fisiológicas, em lobbies como o da indústria armamentista e em negociações obscuras,
como as que envolveram as concessões de rádio e televisão durante o governo José Sarney (1985-

25
LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Eduardo Cunha, a bancada evangélica e o impeachment de Dilma Rousseff. In:
Semana de História Política, XI, 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: PPGH/UERJ, 2017.
26
FOLHA. Evangélicos apostam em ‘distritão’ para ampliar bancada na Câmara. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1910522-evangelicos-apostam-em-distritao-para-ampliar-bancada-na-
camara.shtml>. Acesso em: 12 out. 2017.
27
EXTRA. Maioria da população da Baixada é de evangélicos. Seropédica lidera o ranking. Disponível em
https://extra.globo.com/noticias/rio/baixada-fluminense/maioria-da-populacao-da-baixada-de-evangelicos-seropedica-
lidera-ranking-5531876.html . Acesso em: 12 out. 2017.

996
1990), demonstram que a práxis política de muitos de seus representantes está em oposição ao
discurso, contribuindo diretamente para a crise do modelo evangélico brasileiro.
As formas de organização, que variam entre os extremos da completa burocracia à anomia
institucional, passando pelo autoritarismo espiritual, são contestadas tanto pelas antigas gerações,
decepcionadas com o reflexo destas estruturas na vida das igrejas, como pelas novas que, diante de
um mundo onde as mídias sociais e a velocidade das informações têm influenciado claramente a
cosmovisão, não se sentem contempladas pelas estruturas e modelos tradicionais.
Assim, a intenção deste artigo é alertar a sociedade brasileira, em especial os evangélicos,
para os rumos que o protestantismo brasileiro vem tomando. Tendo em vista a iminente hegemonia
evangélica dentro de algumas décadas, torna-se urgente a construção de modelos que prezem a
valorização do indivíduo, sem que aspectos da vida em comunidade, intrínseca ao cristianismo, sejam
esquecidos. Necessário é, também, que as lideranças evangélicas brasileiras reflitam sobre sua
atuação, levando em conta o essencial: o cristianismo puro e simples, que somados a um alto padrão
ético, à responsabilidade social e aos valores democráticos do Estado de direito, como a liberdade de
culto, conduzirão os evangélicos a outro patamar na história brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, José Eustáquio Diniz; BARROS, Luiz Felipe Walter; CAVENAGHI, Suzana. A dinâmica
das filiações religiosas no Brasil entre 2000 e 2010: diversificação e processo de mudança de
hegemonia. REVER – Revista de Estudos da Religião, São Paulo: PUC-SP, ano 12, nº 2, p. 147,
jul/dez 2012.
BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde,
1945. V. 7, T. 1. p. 164.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e
televisiva. Revista USP, São Paulo: USP, nº 61, p. 159, março/maio 2004.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012. p. 116.
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de
Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 37.
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961.
LOPES, Augustus Nicodemus. Polêmicas na Igreja: Doutrinas, práticas e movimentos que
enfraquecem o cristianismo. São Paulo: Mundo Cristão, 2015. p. 167-180.
LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Por que os evangélicos não mudaram o Brasil? Análise histórica
da atuação evangélica no Congresso Nacional (1982-2006). XXVII Simpósio Nacional de História,
ANPUH, Florianópolis, 2015.
_______. Eduardo Cunha, a bancada evangélica e o impeachment de Dilma Rousseff. In: Semana de
História Política, XI, 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: PPGH/UERJ, 2017.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo:
Loyola, 2012. p. 23-49.

997
SANTOS, Lyndon de Araújo. O Protestantismo no advento da República no Brasil - Discursos,
estratégias e conflitos. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, nº 8, setembro
de 2010, p. 8.

998
A MULHER E A ESCRITA LITERÁRIA: REFLEXÕES SOBRE A FIGURA
FEMININA NA SOCIEDADE INGLESA CONTIDAS NA OBRA “ORGULHO E
PRECONCEITO”
Hosana do Nascimento Ramôa 1

Resumo: Este trabalho é fruto de uma intensa pesquisa realizada para a monografia a ser entregue ao
final da graduação, sob a orientação da profa. Dra. Larissa Moreira Vianna no ano de 2016. Utilizando
a fértil relação entre História e Literatura, este trabalho propõe investigar como o romance pode conter
pistas e informações de uma época. Situada entre o fim do século XVIII e o início do século XIX,
nossa pesquisa é voltada para a representação do universo feminino na obra “Orgulho e Preconceito”.
Pertencente a um contexto mais amplo, as críticas da romancista aos valores, regras e normas
impostas às mulheres, encontravam-se rodeadas por mudanças estruturais que afetavam a todos os
indivíduos e seus relacionamentos de modo íntimo. Nosso objetivo é indagar como podemos
encontrar as referências a todas estas experiências vivenciadas e narradas.

Palavras-chave: História; Literatura; Jane Austen

Abstract: This work is the result of an intense research carried out for the monograph to be delivered
at the end of the graduation, under the guidance of Teacher Dr. Larissa Moreira Vianna in the year
2016. Using the fertile relationship between History and Literature, this work proposes to investigate
how the novel may contain clues and information of a period. Situated between the end of the
eighteenth century and the beginning of the nineteenth century, our research is focused on the
representation of the female universe in the book "Pride and Prejudice". Belonging to a broader
context, the novelist's criticisms of the values, rules and norms imposed on women were surrounded
by structural changes that affected all individuals and their relationships in an intimate way. Our goal
is to find out how we can find the references to all these lived and narrated experiences.

Key-words: History; Literature; Jane Austen

INTRODUÇÃO

É uma verdade universalmente reconhecida que Jane Austen viveu no meio rural inglês.
Inserida em um mundo em transformação, permeado pelas guerras napoleônicas, a pilhagem no Novo
Mundo e a Revolução Industrial, dentre outras modificações, a jovem escreveu basicamente sobre
questões e vivências das famílias de proprietários rurais ingleses.
Mais do que o desenrolar da trama em torno dos relacionamentos pessoais, Austen se ateve
no desenvolvimento da conduta pessoal 2. Ou seja, suas observações e anotações visavam descobrir,

1
Graduada em História e Mestranda em Educação na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do CDC e do LEH.
E-mail: hosana.nramoa@gmail.com.
2
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 191-192.

999
entender e questionar os padrões que orientavam o comportamento humano em determinadas
situações concretas. Além disso, temos que acrescentar sua preocupação com propriedades, rendas e
posição social, elementos indispensáveis em relacionamentos “projetados e formados” 3, que estavam
articulados a um processo de mudança e de mobilidade social, que afetava as famílias de proprietários
rurais.
O que nos leva a questionar: Quem eram esses proprietários de terra? Qual mudança estava
afetando esse contexto e essa comunidade agrária? E como isso foi retratado por Austen na obra
“Orgulho e Preconceito”?

O CONTEXTO RURAL INGLÊS: PERMANÊCIAS E TRANSFORMAÇÕES

Nas comunidades inglesas mais tradicionais, não necessariamente rurais, predominavam


forças de controle moral e social impostas pela própria sociedade 4 . Dentro desse contexto, em
meados do século XVIII, é possível vislumbrar uma “cultura letrada ou refinada” 5 em contraposição
a uma “cultura da gente do povo” 6.
Essa estrutura cultural alicerçava-se no paternalismo realista, que poderia implicar repressão,
indiferença 7 ou implicações de calor humano em relações que induzissem a noções de valor 8. Não
obstante, era um modelo de ordem social visto de cima9, que pressupunha que o prestígio social e a
cultura de um homem baseavam-se na hierarquia de sua classe 10.
Durante as primeiras décadas do século XVIII, a terra era o pilar de sustentação do poder e da
influência, representada pelo capitalismo agrário. Este foi o cenário para a circulação e dominação
dos proprietários de terra ou gentry, que eram famílias cuja distinção social era tida menos pelo
nascimento que pelos rendimentos, ou seja, “elas valem tantas mil libras por ano” 11.

3
Idem.
4
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. Revisão técnica:
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18.
5
THOMPSON, Edward Palmer. Os Românticos. A Inglaterra na Era Revolucionária. Tradução de Sérgio Moraes Rêgo
Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 14-15.
6
Idem.
7
Idem.
8
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. Revisão técnica:
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32.
9
Idem.
10
THOMPSON, Edward Palmer. Os Românticos. A Inglaterra na Era Revolucionária. Tradução de Sérgio Moraes Rêgo
Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 17.
11
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. Revisão técnica:
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32-33.

1000
Em uma sociedade marcada por posses e dinheiro, com um grupo social que valorizava os
rendimentos e que lucrava com atividades diversas, como cálculos de aluguéis e lucros sobre
investimentos de capital, anexações e cercamentos 12, era esperado que essa renda fosse investida.
Quase tudo poderia ter seu equivalente em dinheiro: “votos, direitos de propriedade nos burgos, a
imunidade dos cargos da paróquia ou do serviço das milícias, a liberdade dos burgos, os portões nas
terras comunais” 13, ou ainda, postos e cargos como “incumbências no Exército e as cadeiras no
Parlamento” 14.
Nesse corpo social dominante era comum a idealização do sedentarismo, como se esta fosse
a realidade de toda a comunidade rural. Em torno dessa ideia surgiu uma estrutura de valores, baseada,
principalmente, na identificação com as pessoas ao redor, em um apego ao lugar e a paisagem 15.
Como afirmamos anteriormente, havia uma distinção cultural em termos de prestígio social
que diferenciava a gentry da cultura do povo. Para Thompson, essa oposição entre gentry e “plebe”
se devia ao retorno das fortunas a terra, característica do capitalismo inglês, que resultou em uma
burguesia agrária. Raymond Williams complementa esse pensamento alegando que não chegou a
ocorrer nenhum confronto direto entre esses dois polos econômicos. O que existia, na verdade, era
uma hierarquia cada vez mais estratificada entre pequenos proprietários, grandes arrendatários,
pequenos e médios arrendatários, trabalhadores e artesãos com certos direitos sobre terras comunais
16
.
Burguesia agrária, a gentry também era, em termos políticos, uma aristocracia. De acordo com
Williams, o que a qualificava assim eram os títulos ou solares (antigos ou aparentemente antigos) que
vislumbravam uma ilusão de sociedade dirigida por obrigações e relações tradicionais entre as ordens
sociais 17.
Somado ao tradicionalismo desses títulos, a cultura refinada da gentry manifestava o
“simbolismo de sua hegemonia” 18, que representava um dos seus quatro meios de controle sobre “os
pobres” 19 . Esse termo foi cunhado pelos proprietários de terra e abrangia pequenos fazendeiros

12
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 104.
13
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. Revisão técnica:
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32-33.
14
Idem.
15
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 144.
16
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 105.
17
Ibidem, p. 104.
18
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. Revisão técnica:
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 70.
19
Ibidem, p. 26.

1001
independentes, pequenos camponeses, criados da fazenda e artesãos rurais. Ou seja, grande parte da
população trabalhadora, que merecia a generosidade e caridade da gentry.
Os costumes e hábitos sozinhos não garantiriam o domínio dos proprietários. Foi necessário
“um sistema de influência e promoção que mal comportava os pobres rejeitados, a majestade e o
terror da lei, o exercício local de favores e raridades” 20, que tornaram possível seu modo de vida.
O controle da classe dominante exercia-se plenamente numa hegemonia cultural, mas somente
secundariamente em uma expressão de poder econômico ou físico (militar). Podemos verificar tal
condição na relação entre dominante e dominado, que realizava-se de maneira indireta. Fisicamente,
a gentry afastava-se das relações com as pessoas das aldeias e das cidades. O trabalho dos “pobres”
era mediado pelos arrendatários, pelo comércio ou pela tributação 21.
Com a gentry cada vez mais distante, dentro de seus parques e mansões, os “plebeus” 22
também fechavam-se em suas atividades. Tal distanciamento aponta Edward Thompson, é o ponto
fraco do sistema patriarcal, uma vez que o domínio paternal não requer apenas a autoridade temporal,
mas também autoridade espiritual e psíquica.
Apesar de o controle social paternalista estar em vigor, o século XVIII foi uma fase de
23
transição . Nesse período é possível observar uma crescente independência de pequenos
empregadores e trabalhadores que estavam, pouco a pouco, diminuindo sua relação de clientela com
a gentry. Afastadas de seu domínio, a gentry considerava essas pessoas “ociosas e desordeiras” 24.
Não foi uma mudança instantânea ou fácil, mas permitiu o surgimento de “formas semilivres
de trabalho, o declínio da modalidade de morar no local de trabalho, a extinção final dos serviços
prestados em paga pelo arrendamento e o avanço do trabalho livre, móvel e assalariado” 25.
Desse modo deu-se início ao processo de transformação da Inglaterra rural, apoiado na noção
de propriedade rural absoluta. Esse modelo atribuía um dono a terra, e, para desenvolvê-la era
necessário trabalho, que era realizado pelo pobre trabalhador 26. O resultado disso lembra-nos Karl
Polanny foi que a “Revolução Agrícola antecedeu definitivamente à Revolução Industrial” 27.
Diante de questões de propriedade fundiária e de relações sociais e trabalhistas, a sociedade
inglesa viu desaparecer seu campesinato e surgir uma estrutura cada vez mais regular de arrendatários
e trabalhadores assalariados. Ou seja, gradativamente a produção passou a ser regulada por um

20
Ibidem, p. 70.
21
Ibidem, p. 47.
22
Ibidem, p. 50.
23
Ibidem, p. 42.
24
Idem.
25
Ibidem, p. 40.
26
Ibidem, p. 136.
27
POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens da nossa época. Tradução: Fanny Wrobel. 2 edição. Rio de
Janeiro: Campus, 2000, p. 115.

1002
28
mercado organizado . E isso somente foi possível graças à dominação contínua da burguesia
fundiária (gentry) que se aliou ao capital comercial e industrial 29.
“Às vésperas da maior Revolução Industrial da história, não surgiram quaisquer indícios ou
presságios – o capitalismo chegou sem se anunciar” 30. No final do século XVIII, temos na Inglaterra
uma sociedade capitalista organizada. Onde, o que acontecesse com o mercado, fosse na produção
agrícola ou industrial, afetava tanto a cidade, quanto o campo 31.
O desenvolvimento de uma indústria de máquinas inseriu a população inglesa em uma
economia planetária, uma movimentação excepcional, que segundo Polanyi, não estava nos planos
ingleses. Na verdade, a Inglaterra, durante certo tempo, vivia na expectativa de uma recessão do
comércio exterior, entretanto, a experiência inglesa sofreu significativas transformações.
O que temos, então, no século XIX é o resultado de um duplo movimento: de um lado, os
mercados difundiram-se por todo o globo e a quantidade de bens envolvidos alcançou proporções
gigantescas, de outro lado, toda uma rede de medidas e políticas, integradas em instituições, visavam
limitar a ação do mercado, com relação ao trabalho, a terra e ao dinheiro 32. No entanto, no final do
século, a população rural era maior do que a de todo o país um século antes. E mesmo diante de todas
as mudanças ocorridas, Williams defende que as “pessoas ainda viviam numa ordem rural capitalista:
uns poucos proprietários, muitos arrendatários e trabalhadores sem terra” 33.

ORGULHO E PRECONCEITO: ENTRE TRADIÇÕES E MUDANÇAS

Dentro desse período de mudanças que visivelmente afetaram toda a sociedade, a escrita de
Jane Austen, “com sua perspectiva de dentro das casas” 34, era bastante seletiva. Seus personagens
eram indivíduos selecionados que viviam dentro de uma dimensão social restrita. Dessa forma, a
autora, mesmo fazendo referência a sociedade rural inglesa, não abrangia sua totalidade.

28
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 104.
29
THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: NEGRO, Antonio
Luigi, SILVA Sergio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 204.
30
POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens da nossa época. Tradução: Fanny Wrobel. 2 edição. Rio de
Janeiro: Campus, 2000, p. 112.
31
Idem.
32
Ibidem, p. 98.
33
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 313.
34
Ibidem, p. 197.

1003
Pertencente a gentry, Austen escrevia sobre situações que lhe eram familiares. Por exemplo,
ela se expressava de maneira direta quando se referia às rendas que eram imediatamente utilizáveis,
mas não fazia menção em extensões de terra que precisavam ser trabalhadas 35. Ou seja, a terra era
encarada, essencialmente, como índice de renda e posição social, enquanto que o processo e o
trabalho que faziam dela um status, não apareciam em sua obra.
Em uma sociedade voltada para a aquisição e preocupada com a transmissão das riquezas, o
choque entre essa alta burguesia agrária e a mobilidade social de outros grupos, é nitidamente
perceptível em três momentos da obra “Orgulho e Preconceito”. No primeiro, durante uma conversa
entre o Sr. Darcy, Bingley e suas irmãs, fica evidente o distanciamento entre sua posição social e a
posição, dita inferior, dos tios advogado e comerciante de Jane Bennet:
- Tenho uma imensa estima por Jane Bennet, é realmente uma jovem adorável, e
desejo de todo o coração que faça um bom casamento. Mas, com um pai e uma mãe
daqueles, e com parentes tão vulgares, creio que será impossível.
- Acho que a ouvi dizer que o tio dela é advogado em Meryton.
- Sim, e elas têm outro tio, que mora perto de Cheapside.
[...]
- Mas é bastante lógico que diminua muito as probabilidades de se casarem com
homens de importância social – replicou Darcy 36.

O segundo trecho que explicita a discriminação moral e social, aparece na carta de Darcy a
Elizabeth. Apesar de o Sr. Bennet ter uma renda aceitável, a conduta de sua família é altamente
questionada por Darcy, além da situação da família da Sra. Bennet, anteriormente citada.
[...] A situação da família de sua mãe, embora pouco recomendável, não era nada em
comparação à total falta de decoro tão frequente e quase permanentemente
demonstrada por ela, por suas três irmãs mais novas e, às vezes, até por seu pai.
Perdoe-me, é angustiante ofendê-la. Mas entre seu constrangimento pelos defeitos
de seus parentes e o desprazer pela descrição dos mesmos, deixe-se consolar pelo
fato de que, por terem conseguido evitar sua parte nessa censura, é um elogio não
menos generalizado do que honroso que a senhorita e a sua irmã mais velha sempre
tenham demonstrado sensatez e caráter 37.

O terceiro momento em que a distinção social, baseada principalmente, em herança, fortuna e


titulação, fica evidente, é na visita de Lady Catherine de Bourgh a Elizabeth. Na conversa, a Sra. de
Bourgh questiona a moça sobre um possível noivado com seu sobrinho, que dadas as condições
sociais e familiares de ambos seria inviável.
- O noivado deles é de natureza especial. Desde a infância foram destinados um ao
outro. Era o maior desejo da mãe dele, bem como o meu. Planejamos essa união
enquanto ainda estavam no berço. E agora, quando o desejo de ambas as irmãs
poderia ser realizado com esse casamento, ele seria impedido por uma moça de

35
Ibidem, p. 195.
36
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição . Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 44-
45.
37
Ibidem, p. 205-206.

1004
nascimento inferior, sem qualquer importância na sociedade e totalmente estranha à
família!
[...]
- Não serei interrompida. Ouça-me em silêncio. Minha filha e meu sobrinho foram
feitos um para o outro. Ambos descendem pelo lado materno da mesma linhagem
nobre; e, pelo lado paterno, de famílias respeitáveis, honradas e antigas, embora sem
título. A fortunas de ambos os lados são magníficas. É voz unânime nas respectivas
famílias que estão destinados um ao outro. E quem pretende separá-los? As
pretensões ambiciosas de uma jovem sem família, relações ou fortuna. Isso deve ser
tolerado? Não deve ser e não será. Se pesasse seus próprios interesses, não desejaria
sair da esfera em que foi criada.
- Não acharia que o casamento com seu sobrinho me tiraria dessa esfera. Ele é um
cavalheiro; eu sou filha de um cavalheiro. Portanto, somos iguais.
- De fato. A senhorita é a filha de um cavalheiro. Mas quem era sua mãe? Quem são
seus tios e tias? Não pense que ignoro a situação deles 38.

Mesmo levantando questionamentos acerca das diversas estratificações dentro da burguesia


agrária, com relação aos grandes e pequenos proprietários de terras, e a ligação com a burguesia
citadina em desenvolvimento, Austen não compreendeu a parte trabalhadora da população rural.
Apesar de retratar em seus escritos problemas e experiências em voga em seu espaço
vivencial, “todo o seu discernimento é, por motivos compreensíveis, interno e excludente” 39
.A
crítica moral e social de Jane girava em torno do tema principal de suas obras: o casamento
apropriado, mas realizado principalmente, por amor.
Em seus romances, as mulheres não são “donas de atos mirabolantes ou exóticos, mas
representam pessoas comuns” 40
. Pessoas, como a própria Jane, as mulheres que conhecia e
pertenciam a sua esfera social. Trabalhando com cenas do cotidiano, a autora evidenciava as
preocupações com as questões de seu tempo e as pressões exercidas sobre os sujeitos,
particularmente, as mulheres.
As jovens tinham que se adequar ao regime moralista da época, evitando escândalos para si e
sua família. Dentro desse quadro, a principal obsessão social e familiar era preservar e proteger a
virgindade da moça solteira 41, que assim deveria se manter até o casamento.
Na obra de Austen, Lydia Bennet foge com o Sr. Wickham, entregando-se a ele 42, o que causa
a comoção de toda a família na tentativa de encontrá-los. Ao se casarem, eles redimem-se perante a

38
Ibidem, p. 357-359.
39
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 197.
40
OLIVEIRA, Marina Amaral. Orgulho & Preconceito: um estudo sobre o papel da mulher na sociedade da Inglaterra
provinciana do século XVIII. Universidade Federal de Sergipe. Disponível em: <
pergamum.bibliotecas.ufs.br/vinculos/000023/000023be.pdf>
41
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
Título original: Mon historie des femmes, p. 45.
42
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 279.

1005
sociedade, mas antes disso acontecer, temos as opiniões de Mary e do Sr. Collins sobre esse
“acontecimento dos mais desafortunados” 43:
- Por mais infeliz que este evento seja para Lydia, podemos aprender uma valorosa
lição: que a perda da virtude em uma mulher é irremissível, que um passo em falso
a envolve um uma ruína infinita, que sua reputação não é menos frágil do que a
beleza, e que não existe a cautela suficiente contra a indignidade do sexo oposto 44.

Em carta para o Sr. Bennet, o Sr. Collins deixa clara a rigidez das regras de conduta que
dominavam o meio rural inglês.
[...] Fique certo, meu caro senhor, de que a Sra. Collins e eu nos solidarizamos
sinceramente com o senhor e toda a sua respeitável família em seu atual sofrimento,
que deve ser dos mais profundos, pois provém de uma causa que nenhum tempo
pode apagar. Não faltarão argumentos de minha parte, que possam aliviá-lo de tão
grande infelicidade; ou que possam confortá-lo nessa circunstância, que deve ser, de
todas, a mais dura para o coração de um pai. A morte de sua filha teria sido uma
benção em comparação a isso 45.

Ensinada a seguir as normas de comportamento vigentes, a guardar-se e preparar-se para o


casamento, a moça ainda tinha que desenvolver determinadas habilidades para ser considerada
desejável. Dentre elas, podemos citar: conhecimentos básicos de geografia e história, línguas, música,
pintura, desenho, dança e bordado 46. Defendendo a aprendizagem de todas essas competências, a
Srta. Bingley em “Orgulho e Preconceito” explicita:
- Oh! Certamente – exclamou sua fiel aliada. – Nenhuma mulher pode ser realmente
considerada completa se não se elevar muito acima da média. Uma dama deve
possuir um vasto conhecimento de música, canto, desenho, dança e das línguas
modernas para merecer esse epíteto; além disso, é preciso que tenha algo em sua
maneira de nadar, no tom de voz e no modo de exprimir-se, ou só o merecerá pela
metade 47.

Na obra, temos a alusão ao uso do piano e ao canto por diversas vezes. Essa junção servia para
agradar às pessoas no recinto, fosse em um baile ou em uma pequena reunião, e, sempre era realizada
por uma mulher. No baile em Netherfield, Mary tocou e cantou para os convidados48 e em Rosings,
Elizabeth tocou para o pequeno grupo reunido na mansão de Lady Catherine 49.
Outro elemento mencionado em “Orgulho e Preconceito”, importante na vida das jovens
daquela época é a dança. Era nos bailes e através da dança que as moças poderiam conhecer e

43
Ibidem, p. 291.
44
Idem.
45
Ibidem, p. 299.
46
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>
47
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 48.
48
Ibidem, p. 111.
49
Ibidem, p. 181.

1006
50
conversar com outros rapazes . A relevância dessa atividade pode ser verificada na queixa de
Elizabeth na indisponibilidade do Sr. Darcy durante o primeiro baile em que estiveram juntos.
- Então o senhor saberá, mas prepare-se para algo terrível. Da primeira vez em que
o vi em Hertfordshire, o senhor deve saber, estávamos em um baile... E nesse baile,
o que o senhor acha que ele fez? Dançou apenas quatro vezes! Sinto muito causar-
lhe essa desilusão, mas é verdade. Ele dançou apenas quatro vezes, embora faltassem
cavalheiros; e tenho certeza absoluta de que mais de uma moça ficou sentada por
falta de par. Sr. Darcy, o senhor não pode negar o fato 51.

Além de frequentarem bailes e visitarem os amigos, as jovens tinham outras atividades


destinadas ao seu lazer, como jogos de cartas, fazer compras ou caminhadas. Em “Orgulho e
Preconceito”, Lizzie colocou em prática esses três exemplos de divertimento. Enquanto estava em
Netherfield participou de jogos com os Bingley e o Sr. Darcy 52, costumava ir a Meryton com certa
frequência para visitar as lojas 53, e, em sua estadia na casa de Charlotte em Kent, passeava pelo
parque sempre que podia 54.
Mas nem todas as moças podiam se vangloriar de ter acesso à aquisição dessas habilidades,
pois as diferenças sociais marcavam suas vidas. A jovem aristocrata aprendia esgrima, rudimentos de
latim e montava a cavalo. A burguesa, refinada nas artes do entretenimento, como o piano, era
educada pela mãe para as atividades domésticas. Mas a filha das classes populares tinha que trabalhar
desde muito cedo, geralmente, em serviços domésticos 55.
A família era a base de sustentação das jovens aristocratas e burguesas. Na ausência do pai
cabia ao irmão apoiar 56 e ajudar a irmã solteira, afinal a herança paterna era destinada ao filho
primogênito ou ao parente masculino mais próximo. Esse sistema foi criado para que a fortuna
permanecesse no nome da família por gerações, o que impedia que ela fosse dividida.
A questão da hereditariedade masculina é muito presente na obra de Jane Austen,
particularmente, o caso das irmãs Bennet. A maior preocupação da Sra. Bennet era arranjar bons
casamentos para as filhas, assegurando-lhes estabilidade e bem estar após o falecimento do pai. Sua
queixa baseia-se na transmissão do patrimônio do marido para o sobrinho, que deixaria suas filhas
sem nenhuma herança.

50
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>
51
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 182.
52
Ibidem, p. 45.
53
Ibidem, p. 81.
54
Ibidem, p. 189.
55
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
Título original: Mon historie des femmes, p. 46.
56
FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O Século XIX.
Tradução de Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Afrontamento, s/d, p. 390.

1007
- Oh, meu caro! Exclamou a Sra. Bennet –, não suporto ouvir isso. Por favor, não
fale nesse homem odiodo! Acho que é a coisa mais injusta deste mundo sua
propriedade ser arrebatada de suas próprias filhas; e lhe asseguro que, se eu fosse o
senhor, já teria tomado uma providência há muito tempo.
Jane e Elizabeth procuraram explicar à sua mãe o aspecto jurídico do caso. Já o
tinham tentado muitas vezes antes, mas este era um assunto que estava além do
alcance da razão para a Sra. Bennet; e ela continuava se queixando amargamente da
crueldade de arrancar o patrimônio de uma família com cinco moças em favor de um
homem para quem ninguém ligava 57.

Contudo, na sociedade rural inglesa, era o matrimônio que poderia oferecer segurança e
estabilidade financeira para as jovens solteiras. E é este o tema principal dos livros de Austen. Ela
inicia “Orgulho e Preconceito” apresentando o assunto em sua frase introdutória: “É uma verdade
universalmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor de boa fortuna, deve estar necessitado
de uma esposa” 58.
O casamento era antes a aquisição de uma identidade social do que uma fonte de felicidade
59
efetiva . Arranjado pelas famílias e atendendo a seus interesses particulares, representava uma
aliança. Para os pais a paixão era oposta as uniões duráveis formadoras de famílias estáveis 60.
Para contrair matrimônio era preciso seguir o protocolo dos costumes. Isso que dizer que a
família somente apresentava sua filha caçula à sociedade, permitindo-a frequentar bailes, depois que
a mais velha estivesse comprometida 61. Isso explica o espanto de Lady Catherine ao saber que as
irmãs mais novas de Elizabeth já estavam inseridas na sociedade, mesmo que ela e Jane ainda
estivessem solteiras.
[...] Alguma de suas irmãs mais novas já foi apresentada à sociedade, Srta. Bennet?
- Sim, senhor, todas.
- Todas? As cinco de uma vez? É muito estranho! E a senhorita é apenas a segunda!
As mais novas já frequentam a sociedade antes de as mais velhas estarem casadas!
Suas irmãs mais novas devem ser muito jovens 62.

Através de sua obra, Jane Austen contestou a condição da mulher no meio social. Utilizando
suas personagens femininas, ela deu voz aos questionamentos de sua época. A resposta de Elizabeth
a Sra. De Bourgh, demonstra a crítica da autora contra algumas das regras impostas as mulheres.

57
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 70-
71.
58
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 11.
59
FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O Século XIX.
Tradução de Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Afrontamento, s/d, p. 392.
60
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
Título original: Mon historie des femmes, p. 46.
61
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>
62
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 173-
174.

1008
- A mais nova ainda não fez dezesseis anos. Talvez seja um pouco cedo demais para
ela frequentar a sociedade. Mas na verdade, minha senhora, acho que seria uma
crueldade recusar-lhes sua parte de distrações e vida social só porque as mais velhas
não tiveram os meios ou a inclinação para se casar cedo. As últimas a nascer têm os
mesmos direitos aos prazeres da mocidade que as mais velhas. E trancá-las em casa
por um motivo como esse! Creio que não seria uma boa forma de promover a afeição
fraternal ou a delicadeza de sentimentos 63.

Como um acordo entre as famílias, o casamento visava aumentar as rendas e as propriedades


da gentry. Para aqueles que não tinham um rendimento considerável, o matrimônio era a oportunidade
para a ascensão social 64. Mas esse quadro começou a mudar, sobretudo, durante o século XIX, onde
lenta e gradativamente o casamento por amor passou a se expandir 65.
Esse processo que encontra seu apogeu no século XX teve o apoio de romancistas dos séculos
anteriores, nomeadamente George Sand e a própria Jane Austen. Na concepção de Perrot, o
casamento por amor, simbolizava a individualização de mulheres e homens e a modernidade do casal
66
. Com isso, os encantos femininos passaram a ser um capital. Além da beleza e da atração física, as
qualidades, os saberes e as habilidades também seriam apreciadas por suas utilidades ao marido 67.
Desse modo, um homem de posses, poderia desejar uma moça pobre, mas bela 68.
São exatamente essas duas versões do casamento que Austen explicita em sua obra 69. Em três
momentos ficamos diante da visão tradicional ou aristocrática que ainda permeava a sociedade. O
primeiro trecho que percebe o casamento como uma aliança entre famílias, encontra-se no protesto
de Lady Catherine a um possível noivado entre Elizabeth e Darcy.
[...] Minha filha e meu sobrinho foram feitos um para o outro. Ambos descendem
pelo lado materno da mesma linhagem nobre; e, pelo lado paterno, de famílias
respeitáveis, honradas e antigas, embora sem título. A fortunas de ambos os lados
são magníficas. É voz unânime nas respectivas famílias que estão destinados um ao
outro [...] 70.

63
Ibidem, p. 174.
64
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>
65
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
Título original: Mon historie des femmes, p. 47.
66
Idem.
67
FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O Século XIX.
Tradução de Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Afrontamento, s/d, p. 392.
68
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
Título original: Mon historie des femmes, p. 47.
69
OLIVEIRA, Marina Amaral. Orgulho & Preconceito: um estudo sobre o papel da mulher na sociedade da Inglaterra
provinciana do século XVIII. Universidade Federal de Sergipe. Disponível em:
<pergamum.bibliotecas.ufs.br/vinculos/000023/000023be.pdf> Acesso em: 19.01.2016
70
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição . Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 359.

1009
Preocupadas com a velhice, muitas mulheres enxergavam o matrimônio como o caminho para
a estabilidade financeira 71. Em outro momento da obra “Orgulho e Preconceito”, nos deparamos com
uma descrição objetiva das limitadas opções das mulheres em relação ao casamento, centradas na
figura de Charlotte Lucas.
- Eu sei o que você está sentindo – replicou Charlotte. – Está admirada porque o Sr.
Collins há tão pouco tempo ainda desejava se casar com você. Mas, quando tiver
tempo de pensar sobre o assunto, espero que aprove minha decisão. Bem sabe que
não sou romântica. Nunca fui. Desejo apenas um lar confortável; e, considerando o
caráter do Sr. Collins, suas relações e sua situação de vida, estou convencida de que
tenho tanta possibilidade de ser feliz quanto qualquer outra pessoa que se case 72.

O que a primeira vista poderia parecer ser uma preocupação exclusivamente feminina,
também afetava aos homens. Muitos não tinham uma renda suficiente para se manter, como era o
73
caso de Wickham , e acabavam encontrando no casamento uma saída para seus problemas
financeiros. Essa apreensão é representada na conversa entre Elizabeth e o coronel Fitzwilliam:
- Essas são perguntas pessoais, e talvez eu não possa dizer que tenha experimentado
muitas dificuldades de tal natureza. Mas em questões de maior importância é
possível que eu sofra com a falta de dinheiro. Os filhos mais novos não podem se
casar como desejam.
- A não ser que se apaixonem por mulheres ricas, o que, acredito, sempre acontece.
- A manutenção de nosso padrão de vida nos torna dependentes demais. E não há
muitos em minha classe que se podem se dar ao luxo de se casar sem considerar a
questão financeira 74.

A visão moderna e burguesa, que entendia o casamento como o direito de escolha do


indivíduo, é retratada na figura de Elizabeth Bennet. Ela rejeitou o pedido do Sr. Collins por se tratar
apenas de um arranjo familiar, sem sentimentos envolvidos de ambas as partes, mas que evitaria que
a herança de seu pai saísse das mãos das filhas. Contrariada pela insistência do clérigo, a moça
enfatizou sua posição, alegando que não assumiria um compromisso sem amor. Mais do que isso, ela
protestou para que sua opinião fosse respeitada,
[...] Asseguro-lhe que não sou uma dessas moças, se é que existem, que cometem a
ousadia de arriscar a própria felicidade confiando na possibilidade de um segundo
pedido. Minha recusa é absolutamente séria. O senhor não poderia me fazer feliz, e
estou convencida de que sou a última mulher do mundo capaz de fazer o senhor feliz
[...]
- Asseguro-lhe, senhor, que não tenho quaisquer pretensões a uma espécie de
elegância que consiste em atormentar um homem respeitável. Prefiro o elogio de ser
considerada sincera. Repito meu agradecimento pela grande honra de sua proposta,
mas é inteiramente impossível que a aceite. Meus sentimentos o impedem em todos
os aspectos. Posso ser mais clara? Não me veja como uma mulher elegante com a

71
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>
72
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição . Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 135.
73
Ibidem, p. 161.
74
Ibidem, p. 191.

1010
intenção de atormentá-lo, mas sim como uma criatura racional, dizendo a mais pura
verdade 75.

O casamento era a “união perfeita” 76 entre duas pessoas, e, que formava um laço entre ambas.
Ele é o “ápice do estado de mulher” 77, uma condição normal da grande maioria das mulheres. Mas o
matrimônio realizado por amor era, como define Perrot, “um golpe de sorte ou triunfo da virtude” 78,
e, a única opção honrosa para a mulher.
Austen escreveu sobre uma variedade de casamentos, que segundo Adriana Zardini poderia
ser dividida em três categorias. A primeira seria das uniões pouco compatíveis, mas bem sucedidas,
como a de Charlotte Lucas e o Sr. Collins e entre o Sr. e a Sra. Bennet. O segundo tipo abrangia o
casamente inadequado de Lydia Bennet e o Sr. Wickham. E por fim, os casamentos bem sucedidos
em “Orgulho e Preconceito” são os de Elizabeth Bennet e o Sr. Darcy e a união de Jane Bennet e o
79
Sr. Bingley . Dessa forma, Austen criou seus personagens e concedeu uma voz as mulheres,
questionando e refletindo sobre os valores e as obrigações da identidade feminina na sociedade de
sua época.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As preocupações de cada geração, sexo ou classe aparecem, inevitavelmente, em diversas


produções, e, com a literatura não seria diferente. Como o passado humano “não é um agregado de
histórias separadas, mas uma soma unitária do comportamento humano” 80, cada indivíduo, mesmo
com pensamentos e valores diferentes aos de sua época, se relacionava com outros pelo mercado,
pelas relações de poder e subordinação, pelos preceitos sociais, etc.
Na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX as relações de produção que vinham se modificando
em longo prazo receberam o baque da Revolução Industrial, condicionando os acontecimentos sociais

75
Ibidem, p. 117-119.
76
FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O Século XIX.
Tradução de Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Afrontamento, s/d, p. 61.
77
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2002.
Título original: Mon historie des femmes, p. 46.
78
Idem.
79
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>
80
THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser.
Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. Título original: The Poverty of Theory, p. 50-51.

1011
e atuando em conjunto com eles. Isso se refletiu no comportamento geracional, como mostrou Austen
com relação às práticas do casamento. Que conforme o limiar da experiência favoreceu a criação de
conflitos frente à divergência entre perspectivas tradicionais e modernas, que figuraram em “Orgulho
e Preconceito” na figura do casal Darcy e Elizabeth.
Austen retratou a vulnerabilidade de jovens que precisavam se adequar as regras de
comportamento. Carregando a responsabilidade de manter o bom nome das famílias e suas próprias
reputações 81, elas procuravam um matrimônio que lhes oferecesse uma estabilidade financeira, mas
que ao mesmo tempo, tivesse o amor como fator primordial. E mesmo que na realidade do período,
um final semelhante ao do romance fosse extremamente difícil, na trama de Jane Austen, o amor entre
os protagonistas conseguiu ser maior do que as barreiras do orgulho e preconceito da diferença social,
superando ainda, a privação feminina de poder e decisão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução Lúcio Cardoso. 2ª edição . Rio de Janeiro:
BestBolso, 2011.
FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O
Século XIX. Tradução de Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Afrontamento, s/d.
OLIVEIRA, Marina Amaral. Orgulho & Preconceito: um estudo sobre o papel da mulher na
sociedade da Inglaterra provinciana do século XVIII. Universidade Federal de Sergipe. Disponível
em: < pergamum.bibliotecas.ufs.br/vinculos/000023/000023be.pdf>
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2002. Título original: Mon historie des femmes.
POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens da nossa época. Tradução: Fanny Wrobel. 2
edição. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento
de Althusser. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. Título original: The
Poverty of Theory.

______________. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. Revisão técnica:
Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______________. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: NEGRO, Antonio
Luigi, SILVA Sergio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.

______________. Os Românticos. A Inglaterra na Era Revolucionária. Tradução de Sérgio Moraes


Rêgo Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo Henrique
Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

81
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane Austen Sociedade
do Brasil. Disponível em: <http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>

1012
ZARDINI, Adriana Sales. O universo feminino nas obras de Jane Austen. UFMG / JASBRA - Jane
Austen Sociedade do Brasil. Disponível em:
<http://150.164.100.248/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2017/17-
2/TEXTO%201%20ADRIANA.pdf>

1013
PERNALONGA VAI À GUERRA: A REPRESENTAÇÃO DO NAZISTA NO DESENHO
HERR MEETS HARE (1945)

Inajara Barbosa Paulo1

Resumo: O presente artigo traz uma análise discursiva de dois níveis: imagético e de soundtrack
(discurso e música), do curta de animação Herr meets hare, uma das obras com a temática da Segunda
Guerra produzidas pela Warner Bros. Studios. Com o estudo detalhado deste cartoon, tenciona-se
mostrar que a produção de desenhos animados, não só se encontrava plenamente engajada no esforço
de guerra, como foi primordial para a construção identitária do inimigo. Este é um objeto que carece
da atenção do historiador, haja vista a escassez de produções acadêmicas onde a fonte histórica é o
desenho animado. Esta animação, em especial, por estar compreendida num período de iminente
capitulação da Alemanha, também traz a presença de um novo inimigo, uma ameaça maior aos
valores ocidentais do que o já quase derrotado nazismo: o perigo soviético.

Palavras-chave: Segunda Guerra, desenhos animados, Looney Tunes, Warner Bros.

Abstract: This article presents a discursive analysis in two levels: imagery and soundtrack (speech
and music), about the short animation Herr meets hare, one of the works with a theme of the Second
War produced by Warner Bros. Studios. With the detailed study of this cartoon, it is intended to show
that the production of cartoons, it’s not just fully engaged with the war effort, but it was primordial
for the identity construction of the enemy. This is an object that lacks the attention of the historian,
given the scarcity of academic productions where the historical source is the cartoon. This animation,
in particular, being understood in a period of impending capitulation of Germany, also brings the
presence of a new enemy, a greater threat to the western values than the almost deffeated nazism: the
soviet peril.

Keywords: Second War, cartoon, Looney Tunes, Warner Bros.

Pernalonga atende o chamado: a Warner Bros. Na Segunda Guerra

Em um universo de grandes corporações que estão a consolidar Hollywood como uma


indústria cultural de proporções monstruosas, a Warner Bros foi uma empresa que se destacou por
sempre investir em novas tecnologias, como sincronização do som com imagem, o Vitaphone 2 ,
Technicolor3, entre outras. Além disto, entre o final dos anos 20 e meados dos anos 30, a Warner não

1 Mestranda em História: Arte, memória e narrativa da Universidade Federal do Paraná. E-mail:


inajara.barbosa@gmail.com
2 Vitaphone era o sistema de som feito para longa-metragens utilizado pela Warner Bros. E First National entre
1926 e 1931. No Vitaphone, a trilha sonora não era impressa na película. Era um disco acoplado a uma plataforma
giratória que se encaixava no motor do projetor do filme, e tocava simultaneamente com a projeção. Cf.=
VITAPHONE: cinematic sound system. Disponível em: <https://www.britannica.com/technology/Vitaphone>. Acesso
em: 14 maio 2017.
3 Technicolor é um processo de coloração dos filmes. Foi o segundo processo de cor mais utilizado em
Hollywood, só perdendo para o britânico Kinemacolor. Se tornou famoso por ser utilizado em filmes como O mágico
de Oz (1939), … E o vento levou (1939) e animações como Branca de neve e os sete anões (1937) e Fantasia

1014
se limitou ao papel de produzir filmes, comprou empresas de distribuição, redes de cinemas,
companhias de rádio, patentes e até uma empresa de litografia, transformando-se numa gigante dos
meios de comunicação e entretenimento.
Fundada por quatro irmãos judeus emigrados da Polônia – Harry, Albert, Sam e Jack – a
Warner galgou seu sucesso com os filmes do cachorro Rin Tin Tin e musicais que introduziram os
talkies4, como The Jazz Singer (1927), The Show of Shows (1929), Fifty Million Frenchmen (1931) e
42nd Street (1932) (SPERLING; MILLNER, 1998, p. 116)!!br0ken!!
Nos anos 30, com a recessão ainda consumindo a economia e sociedade americana, os
musicais coloridos e extravagantes entraram em declínio e a WB amargou vários fracassos de público.
Para fugir da crise, e com o novo incentivo do presidente F. D. Roosevelt para a economia e indústria
cinematográfica, investiu em um novo segmento que lhe consolidou como um dos maiores estúdios
de Hollywood: os filmes de gângster. Com roteiros mais sociais e realistas, que se preocupavam em
mostrar o crime organizado e a vida à margem da sociedade, a Warner emplacou sucessos de
bilheteria como Little Cesar (1931), The Public Enemy (1931) e Baby face (1931).
Com a implantação das regras de censura aos filmes de 1934, o estúdio passou a ter problemas
com a sua abordagem mais realista, e mais uma vez se viu forçada a mudar o foco de seus longas:
agora quem dava o tom das narrativas era o moralismo, através de melodramas, adaptações de livros
populares e filmes Swashbuckler5, todos protagonizados por estrelas de grande apelo popular, como
Bette Davis, Olivia de Havilland, Paul Muni e Errol Flynn (SPELLING; MILLNER, 1998, p.224).
Neste período também o estúdio começa os seus investimentos para ter sua própria divisão de
animação. Até 1933, a Warner comprava curtas de animação produzidos pelos ex alunos da Disney
Hugh Harman e Rudolf Ising, que eram encomendados através de Leon Schlesinger. Depois de uma
disputa contratual, os dois desenhistas romperam com o produtor e este fundou a Warner Bros
Cartoons, com uma nova equipe de diretores e animadores, como Bob Clampett, Friz Freleng, Tex
Avery e Chuck Jones. Desta equipe surgiram os personagens Gaguinho (1936), Patolino (1937) e
Pernalonga (1940) (BARRIER, 2003,p. 328).
A Warner Bros., no campo das animações, desponta nos anos 40 como uma antítese ao
universo hermeticamente controlado da Walt Disney, superando este em 1942 como a maior

(1940).Cf.= TECHNICOLOR. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Technicolor>. Acesso em: 14 maio


2017.
4 Talkies foi o apelido dado aos filmes falados em seu surgimento na segunda metade dos anos 20. Cf.= CHRIS
J, Mitchell. A concise history of the origins of cinema. New York: Amazon Digital Services, 2014. 16 p. Disponível
em:<https://books.google.com.br/books?id=o7UnAwAAQBAJ&printsec=frontcover&dq=history+of+cinema&hl=pt-
BR&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=history%20of%20cinema&f=false>. Acesso em: 14 maio 2017.
5 Swashbuckler é um termo da língua inglesa, surgido no século XV, designado às histórias de heróis de ação, do
estilo “capa e espada’, por exemplo, as histórias dos Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Cf.=
SWASHBUCKLER. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Swashbuckler>. Acesso em: 15 maio 2017.

1015
produtora de curtas animados dos Estados Unidos. Mas todo esse sucesso se deu por um motivo: a
entrada do país na Segunda Guerra e a liderança do estúdio como maior produtor de filmes sobre o
conflito (SANDLER, 1998, p. 7).
A empresa, fundada por judeus, já vinha de certa forma com a produção de filmes que
alertavam sobre o nazismo, de forma sutil pois temia as restrições do código de censura 6. Este seria
um esforço por parte de Harry Warner, que havia visitado a Alemanha em 1932 e presenciado a
crescente onda de antissemitismo que tomava conta do país com a ascensão de Aldof Hitler. Segundo
Jack Warner, tudo “começou” depois do assassinato do presidente de vendas da Warner na Alemanha,
Joe Kauffman, em 19367. No ano seguinte, a WB lançou o sucesso antigermânico The Life of Emile
Zola (1937). Entretanto as caracterizações do perigo nazista em produções da casa datam de 1933
com a animação do segmento Looney Tunes intitulada Bosko’s Picture Show, onde, numa parte que
parodiava um cinejornal, Hitler apareceu correndo e empunhado um machado atrás do comediante
Jimmy Durante8.
As animações do estúdio encabeçam o pioneirismo em retratar a ascensão do regime totalitário
alemão, mas também vão se prontificar a pedir para seus espectadores comprarem bônus de guerra,
a se alistarem, a praticar economia doméstica durante o racionamento e, acima de tudo, se colocar na
linha de frente, liderados pelo Pernalonga, para combater e derrotar o “grande inimigo da sociedade
ocidental”: o nazismo9 (BIRDWELL, 1999, p. 18).

Ele conhece a lebre: o desenho animado sob análise

O cinema e a animação são ambos frutos dos mesmos avanços tecnológicos. Criações geradas
da mesma necessidade, que remonta aos desenhos das paredes de cavernas do período neolítico de

6 Durante os anos trinta havia uma grande preocupação da diplomacia americana, principalmente em relação à
Europa, de demonstra uma posição de neutralidade em face aos acontecimentos do velho continente. Cf.= URWAND,
Ben. A colaboração: O pacto entre hollywood e o nazismo. 1. ed. São Paulo: Leya, 2013.
7 Apesar de Jack afirmar que o encerramento das atividades se deu em 1936, a Warner Bros já havia cessado as
operações em 1934, por ordem de Harry Warner, um ano depois de Hitler aprovar uma lei que restringia a entrada de
filmes americanos na Alemanha. Cf.= BIRDWELL, Michael E. Celulloid soldiers: Warner Bros.'s campaign against
nazism. 1. ed. New York: New York University Press, 1999.
8 Jimmy Durante foi um cantor, pianista, comediante e ator norte-americano. Foi um dos mais populares
comediantes americanos entre os anos 20 e 60. Cf.= JIMMY DURANTE. Disponível
em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jimmy_Durante>. Acesso em: 15 maio 2017.
9 As animações do período também irão se preocupar em retratar e combater os japoneses e o fascismo italiano.
Entretanto, as condições que levarão a tal atitude são mais por conta do ataque a Pearl Harbor e posterior declaração de
guerra as nações do Eixo do que motivações “pessoais”. Cf.= BIRDWELL, Michael E. Celulloid soldiers: Warner
Bros.'s campaign against nazism. 1. ed. New York: New York University Press, 1999.

1016
tentar criar representações em movimento de cenas cotidianas (BARRIER, 2003, p. 23). Pode-se dizer
que o cinema, principalmente antes da era digital, é nada mais nada menos que uma animação de
fotografias, postas em sequência em determinada velocidade para a criação da sensação de
movimento, criando assim uma “realidade” restrita ao campo visual, pois ao tentarmos tocá-la, só
encontramos o vazio entre o jogo de luzes e sombras de uma sala de cinema (METZ, 2004, p. 22).
Os desenhos animados, sejam eles curtas ou longas, não podem ser tratados como um
subgênero do cinema. Ambos são narrativas audiovisuais que dependem de dois elementos básicos:
o visual (fotografia, pintura ou CGI10) e o Soundtrack (mímica, letreiros de fala ou roteiro encenado,
música, ruídos e demais efeitos sonoros).
Entretanto, a animação, cronologicamente falando, antecede o surgimento do cinema, com o
surgimento dos primeiros brinquedos ópticos que simulavam a percepção de movimento. Os
brinquedos ópticos eram baseados na teoria defendida pelo médico inglês Peter Mark Roget. Teoria
fundamentada na idéia de permanência de uma imagem na retina por cerca de 1/20 a 1/5 segundos
após o seu desaparecimento do campo de visão, ou seja, uma fração de segundos em que a imagem
persiste na retina.11
Com o advento do cinematógrafo, invenção dos irmãos Lumiére, um resultado de
aperfeiçoamento de uma série de tecnologias anteriores, mas que deu a eles o mérito da invenção do
cinema. O cinema é uma expressão artística que se encontra entre a fotografia e o teatro (METZ,
2004, p. 26), já a animação, que também se expandiu nesta nova tecnologia, se encontra entre a pintura
e o teatro, dando origem aos trickfilms (filme de efeitos), cujo maior precursor foi o francês George
Méliès, que descobriu, em 1896, a técnica denominada de substituição por parada de ação (técnica
precursora do Stop Motion - que consiste em fotografar frame12 a frame). Entre as décadas de 1910 a
1930, o cinema de animação consolidava-se como “gênero cinematográfico” com características
próprias18, renunciando a sua origem de mero filme de efeito (JUNIOR, 2009, p. 14). O cinema de
animação trilhou seu caminho em paralelo com o cinema, desenvolvendo características narrativas
próprias e disponibilizando na indústria de entretenimento uma variedade de produções.

10 CGI ou Computer-generated imagery, são imagens criadas em 3D em computados para aplicação em filmes,
programas de computador, videogames ou animações. Tem a finalidade de criar cenários ou cenas impraticáveis ou
muito caras. Cf.= O QUE é CGI e computação gráfica?. Disponível em: <https://canaltech.com.br/o-que-
e/software/O-que-e-CGI-e-computacao-grafica/>. Acesso em: 14 maio 2017.
11 O médico Peter Mark Roget apresentou à Sociedade Real Britânica o artigo intitulado The persistence of vision
with regard to moving objects em 1824. No artigo, Roget defendia ainda que o olho humano combine imagens vistas
em seqüência em uma única - em movimento - se forem exibidas rapidamente, com regularidade e iluminação
adequada. A esse fenômeno foi dado o nome de persistência da visão ou persistência retiniana. In.: PERSISTENCE of
vision: how does animation work?. Disponível em: <https://www.futurelearn.com/courses/explore-
animation/0/steps/12222>. Acesso em: 01 ago. 2017.
12 Corresponde a cada um dos quadros (fotogramas) que compõem um filme ou vídeo.

1017
Embora os avanços tecnológicos das décadas posteriores permitam que atores reais possam
gerar narrativas visuais antes restritas aos desenhos, como saltar de prédios sem se ferir ou desviar de
balas, eles ainda possuem um elemento que é totalmente irrelevante nas animações: a mortalidade.
Por mais que exista a possibilidade de se recriar em computador a imagem eterna da personagem
Princesa Leia, jovem e cheia de vida na cena final de Rogue One: a Star Wars Story, é inegável que
já não estamos vendo a atriz Carrie Fisher na tela, pois a imagem que estamos recebendo se trata de
uma animação computadorizada em 3D de como ela era no primeiro filme da série de 1977, e nem a
veremos novamente devido a seu falecimento em 2016. Atores e atrizes morrem, já desenhos
animados não. O Pernalonga pode mudar sutilmente seus traços com o decorrer das décadas, isso por
conta de uma trilha de vestígios visuais deixada por todos os artistas que o tiveram em mãos, mas
ainda é o mesmo coelho de 1939 e isso nunca mudará, pois não cabe à sua natureza envelhecer ou
morrer (SANDLER, 1998, p. 4).
Os desenhos produzem uma explosão terapêutica do inconsciente, com novos espaços de
liberdade além do filme. Expandiu a brecha da velha verdade de Heráclito, onde o mundo dos homens
acordados é comum e o dos que dormem é privado. Assistir a um desenho animado é participar de
uma psicose em massa (BENJAMIN, 1986, p.190) , uma hilaridade coletiva, um compartilhamento
da psique dos desenhistas, narradores, diretores e espectadores onde as regras da física, ética ou moral
são nulas, onde é perfeitamente normal um simples coelho desmantelar o já decadente Terceiro Reich.
Herr meets Hare é um curta animação da série Merrie Melodies13, de 7 minutos e 15 segundos,
lançado em 13 de Janeiro de 1945. Dirigido por Friz Freleng14, produzido por Edward Selzer15, roteiro

13 Merrie Melodies é uma série de curtas de animação da Warner Bros que foram ao ar de 1931 a 1969, derivada
da série Looney Tunes. Esta apresentou alguns dos personagens mais famosos do mundo da animação: Pernalonga e
Hortelino. Merrie Melodies foi originalmente produzido por Harman-Ising Pictures de 1931 a 1933 e, em seguida, Leon
Schlesinger Productions de 1933 a 1944. Schlesinger vendeu seu estúdio para a Warner Bros. em 1944, e os recém-
renomeados Warner Bros. Cartoons continuaram a produção até 1963. Merrie Melodies foi terceirizada para DePatie-
Freleng Enterprises e Format Films de 1964 a 1967, e a Warner Bros. Cartoons retomou a produção dos dois últimos
anos da série. Disponível em: https://www.bcdb.com/cartoons/Warner_Bros./Merrie_Melodies/. Acesso em: 14 julho
2017
14 Isadore “Friz” Freleng foi animador, cartunista, diretor e produtor estadunidense de desenhos animados,
conhecido pelo seu trabalho nas séries Looney Tunes e Merrie Melodies, ambas da Warner Bros. Disponível em:
http://www.imdb.com/name/nm0293989/. Acesso em: 15 julho 2017
15 Edward Selzer foi um produtor de desenhos animados e chefe da Warner Bros. Cartoons de 1944 a 1958. Ao
contrário de seu antecessor, Leon Schlesinger, Selzer não cobrava que seu nome aparecesse nos desenhos creditado
como produtor. Disnponpivel em: http://www.imdb.com/name/nm0783666/. Acesso em: 14 de julho de 2017.

1018
por Michael Maltese16, Vozes por Mel Blanc17, música por Carl W. Stalling18 e animação de Gerry
Chiniquy19.
O desenho, liberado quatro meses antes do suicídio de Hitler, foi um sucesso e teve partes
dele que se tornaram características permanentes do coelho Pernalonga: a cena onde ele aparece
perdido com o mapa na mão e diz “eu sabia que deveria ter virado à esquerda em Albuquerque!” e a
cena em que aparece travestido de Valquíria20, que seria imortalizado no desenho What’s Opera Doc’
de 1957, considerado uma das melhores animações de todos os tempos.
Neste curta vemos uma narrativa sendo construída no embate entre o famoso coelho e as já
consideradas figuras decadentes de Herman Göring e Adolf Hitler, antes grandes personagens do
cenário mundial, agora escondidos (ou encurralados, pelo que se dá a entender com o mapa da cena
final), um caçando na floresta negra e outro naquilo que um dia foi a sede da fortaleza Europa. Abaixo,
a análise dos três níveis de discurso da animação: a visual, a narrativa e a musical. Tais níveis, apesar
de serem aqui estudados separadamente, operam em completa simbiose e completa dependência entre
si.

Na floresta negra com Pernalonga: uma análise visual

Nos anos trinta, coincidentemente início da Era de ouro dos desenhos, Ernst Kris, amigo e
colaborador de E. H. Gombrich, escreveu sobre a natureza agressiva da caricatura. Para ele, ela tenta
produzir um efeito não na pessoa caricaturada, mas no espectador, que é influenciado em partilhar
sua ideia com um esforço de imaginação (1952, apud SANDLER, 1998, p. 118).

16 Michael Maltese foi um dos maiores roteiristas de desenhos animados da Era de Ouro. Seus principais
trabalhos foram na Warner Bros., em parceria com o animador Chuck Jones. Disponível em:
http://www.imdb.com/name/nm0540789/. Acesso em: 14 de julho de 2017
17 Melvin Jerome “Mel” Blanc foi um dublador estadunidense responsável pela voz do Patolino, Gaguinho,
Pernalonga e Pica-pau. Também contribuiu nos desenhos do Scooby-Doo, The Flitnstones, The Jetsons, Tom and Jerry
e The pink Panther. Disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0000305/bio. Acesso em: 15 julho 2017
18 Carl W. Stalling foi um compositor, arranjador musical e pianista responsável pelas trilhas sonoras dos
desenhos animados da Warner Bros., em especial da Looney Tunes. Disponível em:
http://www.allmusic.com/artist/carl-stalling-mn0000165304/biography. Acesso em: 15 julho 2017
19 Germain Adolph “Gerry” Chiniquy foi um animador americano, famoso por seu trabalho em conjunto com
Friz Freleng na Warner Bros. e na De-Patie Freleng Enterprises. Sua especialidade eram os números de dança que
Freleng gostava de colocar em seus curtas. Disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0157908/ Acesso em: 15
julho 2017
20 Valquírias são deidades femininas menores da mitologia nórdica que serviam Odin sob as ordens de Freia.
Suas tarefas eram escolher os guerreiros mais heroicos mortos em batalha e conduzi-los ao salão dos mortos, Valhala.
Cf.= AS VALQUÍRIAS E A MITOLOGIA NÓRDICA. Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/mitologia/as-
valquirias-mitologia-nordica.htm>.Acesso em: 14 maio 2017.

1019
A caricatura é uma arma que faz o espectador perceber as fraquezas do inimigo. O objeto de
tal desenho aparece interpretado de forma crítica, mas sem violência, para as audiências reagirem
com riso e não hostilidade. No caso da figura de Göring, seu desenho é feito para deixá-lo não como
um criminoso de guerra, responsável pelas mortes de milhares, principalmente nos bombardeios à
Inglaterra, mas como um homem gordo vestido com lederhosen21, de medalhas ao peito, com gestos
grandiosos e altivos, mas que só deixam sua figura mais afetada e digno de troça. Hitler, jogando
paciência em seu esconderijo na floresta negra, está mais para um ser medíocre e sem expressão do
que o grande ditador totalitário. Ambos já não inspiram medo, são eles mesmos caricaturas de aquilo
que outrora representaram, dignos de riso e não de ódio ou medo.
Herr meets hare é uma animação peculiar por não se preocupar mais em identificar e
demonizar o inimigo, ela já se mostra vacilante, caminhando para um fim próximo. Desde o segmento
de abertura, onde aparece o quadro com o título, pode-se observar no canto superior, a águia em
negro, símbolo do brasão de armas da Alemanha, com a pata enfaixada e amparada em uma muleta.
Todo o segmento de quadros de apresentação, em cor rosa, vem como uma ofensa à masculinidade
dos sujeitos visados. A cor rosa é uma tonalidade sempre rejeitada no universo masculino, tida como
símbolo de feminilidade e contrapartida da masculinidade (HELLER, 2014, p. 401). Escolher o fundo
rosa vai além de uma inocente pintura para fundo do título, é uma ironia visual com a sexualidade de
suas “vítimas”. Rosa é a cor da sensibilidade, da amabilidade, o que, no caso da apresentação de dois
líderes da Alemanha, demonstra fraqueza e uma fragilidade que justificam o seu fracasso. Aos 3m18s
da animação, trecho em que o coelho tira o laço da calça de seu rival, também fica revelado mais um
segredo cromático de seu adversário: a cueca usada por Hermann é cor-de-rosa. Tal tonalidade, nos
anos quarenta, também ganha significado, principalmente entre os nazistas, de opressão e
preconceito. Eram com triângulos desta cor que os homossexuais, que não preenchiam os ideais de
masculinidade do Reich, deveriam ser identificados nos campos de concentração (HELLER, 2014, p.
402). Atribuir tal cor para uma peça íntima do mais alto oficial das forças armadas alemãs é também
um questionamento direto ao modelo de Übermensch22 nazista.

21 Lederhosen são calças de couro, curtas ou na altura do joelho, típicos da região da Baviera, Salzburgo e Tirol.
São
vestimentas tradicionalmente usadas para caça pelos camponeses. Cf.= GRISHOFER, Franz J. Die
Lederhose. Disponível em: <http://histclo.com/style/casual/leder/back/leder-hist.html>. Acesso em: 14 maio
2017.
22 Übermensch é o termo descrito no livro Assim falou Zaratustra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em
que explica os passos através dos quais o Homem pode tornar um Além-Homem (homos superior, como no
inglês Beyond-Human a tradução também pode ser compreendida como Além-do-humano). Cf. = BILATE,
Danilo. Nietzsche, entre o Übermensch e o Unmensch. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-82422014000100010>. Acesso em: 15 maio 2017.

1020
Outro trecho que questiona de forma mais direta a sexualidade do inimigo, no caso Göring, é
no trecho em que ele se veste de Siegfried23 para perseguir o Pernalonga travestido de Brühilde24. Ao
avistar o coelho em trajes femininos, uma saia azul, bustiê de ferro, capacete com chifres e escudo à
mão, seus olhos ficam arregalados e os chifres de seu capacete ficam maiores e eretos, numa clara
demonstração fálica de seu interesse sexual pela falsa valquíria. Suas investidas, em forma de danças
como balé e valsa, cessam não pelo fato da verdadeira identidade de sua “amada” ser revelada, e sim
da pancada que ele recebe com o escudo. O herói do longa se vê na necessidade de recorrer ao
travestismo temporário (SANDLER, 1998, p.157) como forma de sobrevivência e também como
mais uma maneira de humilhar seu adversário.
Para cada aparição de Pernalonga, que se esforça para enganar seu adversário, Göring, em
contrapartida, se esforça para estar à altura ou superior, iconograficamente falando, de seu oponente.
Enquanto o coelho se apresenta como ele mesmo, sem artefatos ou disfarces, Hermann aparece
vestido em seus trajes de caça, código visual de fácil assimilação para o público como estereótipo da
cultura alemã e que o coloca na posição de predador do coelho americano. No momento em que o
falso Hitler chega, imediatamente suas roupas mudam para um uniforme oficial negro, que destaca a
faixa vermelha com a suástica em seu braço direito. Em seu torço, encontram-se penduradas
medalhas, que são arrancadas sem piedade pelo pretenso Führer. Aqui há o contraste do esforço para
parecer convincente em sua imagem: de um lado Göring, que veste seu uniforme alinhado e todas as
suas condecorações, e o coelho, que simplesmente usou lama para desenhar o icônico bigode e a
franja com uma parte de sua orelha, deixando explícito que não é necessário muitos artifícios para
ludibriar um oficial alemão.

23 Siegfried, ou Sigurd, é um herói lendário da mitologia nórdica e um dos principais personagens da das
óperas Siegfried e Götterdämmerung de Richard Wagner. Cf.= SIGURD. Disponível
em: <http://www.mythencyclopedia.com/Sa-Sp/Sigurd.html>. Acesso em: 14 maio 2017.
24 Brünhilde é uma das mais famosas valquírias da mitologia nórdica e um dos principais personagens da Saga
dos
Volsungos. Seu nome também aparece no ciclo operístico Anel do Nibelungo, de Richard Wagner. Cf.=
BRÜNHILDE. Disponível em: <http://www.mythencyclopedia.com/Be-Ca/Brunhilde.html>. Acesso em: 14
maio 2017.

1021
Figura 1: Hermann Göring fazendo a saudação nazista para Pernalonga “disfarçado” de Adolf Hitler

Ao ver a falsa Brünhilde, Hermann muda sua vestimenta para um personagem das óperas
wagnerianas, descalço, com capacete de chifres e roupa de peles, em alusão aos heróis da mitologia
germânica, onde persegue sua amada tendo como cenário o fundo bucólico da floresta negra. O uso
de cores escuras e frias para a composição do cenário de natureza não só destaca as figuras dos
personagens, em especial do Pernalonga, numa contraposição barroca de luz e trevas, como também
serve de alerta visual para o espectador que este ambiente onde seu herói está é um território hostil.
Outro recurso utilizado neste curta é o uso de uma narrativa visual e verbal que quebra a quarta
parede25. Tal recurso de comunicação direta com o publico se dá no segmento onde o falcão mostra
uma placa de diálogo ao espectador e na cena final do curta, após a captura do “famoso coelho
americano”. Feliz com sua proeza, Göring se dirige ao gabinete de Hitler e entrega um saco com o
precioso item ao führer, que o gratifica com mais uma medalha. Entretanto, ao analisar o conteúdo
da bolsa, grita e corre assustado. Confuso, Hermann também faz sua verificação e tem a mesma
reação, deixando o embrulho em cima da mesa de um gabinete vazio, com bandeirinhas para
demarcação de territórios ao chão, cartas de baralho na mesa e um mapa ao fundo, com marcas de
mãos e a inscrição Festung Europa26, com a primeira palavra riscada. Nesse cenário desolado e vazio,
o objeto de terror dos dois maiores líderes alemães se revela: Joseph Stalin. Pernalonga usa como

25 A quarta parede é uma convenção na qual uma barreira invisível e imaginada, separa os atores da audiência,
enquanto o espectador consegue ver a história se desenrolar diante de seus olhos, os atores agem como se não tivessem
a mínima ideia de que está sendo observados, o termo tem origem nas peças teatrais mas já se estendeu por diferentes
tipos de mídia como livros, filmes e jogos. A quebra da quarta parede é realizada quando o ator reconhece a existência
do espectador podendo interagir com ele ou não. Cf.= QUEBRA da quarta parede. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-82422014000100010>. Acesso em:15 maio 2017.
26 Trad.: Fortaleza Europa

1022
artifício para afugentar seus algozes a imagem da única pessoa que trazia terror para ambos. A escolha
desta fantasia também é um alerta ao espectador, que ao ver que a imagem do líder soviético é a
personificação do medo de Göring e Hitler, este é também alguém a ser temido. É a revelação de que
existe um perigo e ameaça ainda maior ao Ocidente: o perigo soviético.

Figura 2: Pernalonga vestido de Stalin na Festung Europa

What’s up doc: uma análise de roteiro

Antes de se fazer uma análise dos elementos auditivos de uma obra fílmica, é necessário
lembrar que o senso comum costuma tratar o termo “trilha sonora” como o conjunto de peças musicais
de um produto audiovisual ou a parte musical instrumental que acompanha a película, seja desenho
ou um filme (ALVES, 2013, p.90). Trilha sonora vem do inglês soundtrack, que significa todo o
conjunto sonoro de um filme, incluindo além da música, os efeitos sonoros e diálogos. Entender o
termo pelo seu senso comum é limitar a complexidade, importância e força expressiva proporcionada
pelos elementos sônicos de quaisquer vertentes do cinema, mesmo ele nos seus primeiros anos
(BERCHMANS, 2006, p. 20).
Para uma análise de roteiro de uma animação dos anos quarenta, primeiramente é necessário
uma breve explanada sobre o humor do período (haja vista que esta é uma animação de comédia) e
também de como ele se dava por parte dos desenhos da Warner, que tinham por traço característico
um humor diferenciado de seus estúdios concorrentes.
Parece difícil pensar em comédia ou simplesmente no riso quando se trata de um dos assuntos
menos engraçados do comportamento humano: a guerra. O século XX foi repleto de tantas

1023
catástrofes, guerras, genocídios, ameaças atômicas, entre outros, que foi no riso que a humanidade
encontrou força para zombar de seus males (MINOIS, 2003, p. 553). Foi um período que se provou
que qualquer coisa pode gerar o riso ou uma piada e a guerra, não só a primeira (1914-1918) quanto
a segunda (1939-1945) foi um momento onde ria-se na guerra e contra a mesma. Fazer a sociedade
ir das próprias desgraças pode ajudar a suportá-las (1961, apud. MINOIS, 2003, p 555).
De acordo com Georges Minois (2003), são “as desgraças do século que estimulam o
desenvolvimento do humor, como um antídoto ou um anticorpo diante das agressões da doença”. Nos
anos 40 a Warner Bros. ainda buscava a receita de humor que a distanciasse de comparativos com a
produção dos estúdios rivais. Vai ser com a guerra que o humor legitimamente associado aos Looney
Tunes surgirá, indo do extremo do fantástico e impossível ao sentimentalismo e realidade. São
personagens que transitam entre um humor gentil, comédia pastelão27 e sátira mordaz (SANDLER,
1998, p. 7). O comportamento do principal personagem desse universo animado, o Pernalonga, no
caso das animações de Friz Freleng, como Herr meets Hare, ele nunca será malicioso ou danoso sem
alguma razão (WOOLERY, 1983, p. 54). No caso dos diálogos destas animações, assim como a trilha
sonora, sempre buscam fazer trocadilhos e referências com produções da Warner, como uma
publicidade extra ao que está sendo lançado pelo cinema e mercado musical, e até frases e jargões de
desenhos e filmes de outros estúdios, como forma de humor através da provocação entre corporações.
Este desenho inicia com um jogo fonológico entre as palavras Herr28 e Hare29 onde, apesar
do personagem principal ser um coelho, deixa-se entender como lebre para permitir tal trocadilho.
Um jogo de sons entre palavras alemãs e inglesas para criar já o clima de deboche característico dos
desenhos da Warner.
No primeiro segmento do desenho, aos 35s, entra uma voz, paródia de uma transmissão
radiofônica, que traz as últimas notícias da guerra: a Alemanha foi acertada por um fare-three-well30
e todos fazer a pergunta de 64 dólares: onde está Fatso31 Göring? Seu garoto das notícias recebeu a
informação de que Hermann está cuidando de seus nervos caçando na Floresta negra.
Ao deparar-se com uma placa escrita “Floresta negra”, Pernalonga abre seu mapa para tentar
localizar-se, entretanto os locais escritos no mapa indicam somente cidades americanas. Neste
contexto, surge uma das frases mais icônicas do coelho: eu sabia que deveria ter virado à esquerda

27 Pastelão, em inglês slapstick, é um gênero de comédia cinematográfica em que predominam cenas de


tropelias, explorando-se motivos de riso fácil e gosto discutível, implicando, por vezes, violência física. Cf.=
COMÉDIA pastelão . Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pastel%C3%A3o>. Acesso em: 16 maio 2017.
28 Trad.: Senhor, cavaleiro.
29 Trad.: lebre.
30 Expressão inglesa para denotar algo que foi feito com perfeição, causando máximo impacto. Cf.= FARE-
THREE-WELL. Disponível em: <http://www.thefreedictionary.com/fare-thee-well>. Acesso em: 14 maio 2017.
31 Tradução: gordo. Cf.= DICIONÁRIO de inglês/português. Disponível em: <http://pt.bab.la/dicionario/ingles-
portugues/hare>. Acesso em: 14 maio 2017.

1024
em Albuquerque. Ao ser interceptado por Göring, que aponta um mosquete32 em sua direção, o coelho
pergunta qual o caminho para chegar a Las Vegas, o que faz o oficial alemão ficar confuso tentando
descobrir onde seria tal localidade. Aproveitando da confusão de seu adversário Pernalonga diz que
sabe como chegar em tal lugar, basta seguir em frente até o posto, virar à esquerda e seguir toda a
vida. Quase caindo no pequeno truque, Hermann cai em si e exclama: Las Vegas? Não há Laz Vegas
na Alemanha! Realmente espantado com o grande desvio de sua rota, o coelho exclama “Alemanha?
Yipe!33” e foge das tentativas de tiros de seu rival mergulhando em seu buraco de túnel.
Enquanto Göring usa sua arma como êmbolo para extrair o animal da terra, Pernalonga surge
atrás dele e faz sua célebre pergunta: What’s up Doc’?34 Com seu inimigo novamente apontando sua
arma, ele tenta uma nova artimanha: questiona a veracidade das medalhas que Hermann carrega,
dobrando elas com os dentes. Furioso, dando suas medalhas como ersatz35, novamente vemos o jogo
entre palavras alemãs e inglesas para provocar o humor. Göring murmura todos os tipos de expressões
negativas designadas à Hitler, como “Oh, eu odeio esse porco do Hitler, este führer falso”. Enquanto
isso, surge Pernalonga “disfarçado” de Adolf, o que faz o Reichsmarschall cair de joelhos e implorar
por perdão. O coelho, interpretando seu papel de líder alemão, começa a repreendê-lo em usando um
jogo de neologismos que soam como xingamentos e palavras conhecidas do público geral como
genuinamente alemãs: Sauerkraut36, Blitzkrieg37, Klooten-flooten-blooten-pooten-meirooten-tooten!
Constrangido com a bronca recebida, Göring, de joelhos, pede perdão, dizendo: Look! I kiss mein
Führer’s hand. I kiss right in der Führer’s face38! . Este trecho final, na verdade, é uma citação de
uma música famosa no período, é também uma associação com um dos desenhos mais famosos da
Disney, de mesmo nome, de 1943 (BARRIER, 2003, p 138). Para terminar com seu pequeno
monólogo de humilhação, Hermann diz para o “ditador” que é um Bad flooten-boy-glooten, uma
adaptação do bordão do comediante da WB Lou Costelo39 I’m a bad boy, novamente com o jogo
fonológico para colocar o seu alvo como flatulento (flatulent/flooten) e glutão (glutton/glooten).

32 Apesar de ser chamado de mosquete, a aparência da arma, principalmente o cano com alargamento da boca, é
mais semelhante a um bacamarte francês.
33 Interjeição da língua inglesa para espanto, surpresa, dor, etc. Cf.= DICTIONARY. Disponível
em: <http://www.dictionary.com/browse/yipe>. Acesso em: 14 maio 2017.
34 Na versão brasileira do cartoon seria: O que há velhinho?
35 Expressão alemã para designar produtos feitos com materiais alternativos, como Ersatzkaffe, café feito com
feijão torrado, ou Ersatzbrot, que era o pão feito com serragem ou fécula de batata. Logo tomou o tom pejorativo para
designar coisas falsificadas, principalmente entre prisioneiros de guerra russos, americanos e eslavos. Cf.=
36 Trad.: Chucrute
37 Trad.: Guerra-relâmpago
38 Trad.: Olha, eu beijo a mão de meu führer, eu beijo bem no rosto de meu führer
39 Louis Francis “Lou” Costello foi um ator e comediante americano, famoso por interpretar em vários filmes
como integrante da dupla Abbott e Costello junto com Bud Abbott. Disponível em:
http://www.imdb.com/name/nm0182579/bio?ref_=nm_ov_bio_sm. Acesso em: 02 de agosto de 2017

1025
No segmento 5m20s quando, após ser humilhado com falsa valquíria, Göring traz um falcão
para caçar o coelho. Após repetir várias vezes, com sotaque pronunciado, que ele deveria ir atrás do
coelho, o falcão, ainda confuso, vira-se para o espectador com uma placa, fazendo a quebra da quarta
parede: Evidently this guy is a foreigner40. Ao apelar para os espectadores com a placa, seu dono fica
furioso e Pernalonga aparece para esclarecer, dizendo que ele tem que procurar um coelho, com
orelhas grandes como a dele e rabo fofinho como o dele, usando dele mesmo como padrão descritivo.
O falcão, após as instruções, o agradece e voa para achar um coelho. Aproveitando-se da distração de
Hermann, o coelho pergunta se a ave será capaz de capturá-lo, e ele responde que será mais rápido
do que Pernalonga dizer Schicklgruber, sobrenome original do pai de Adolf Hitler, Alois.
Com o animal capturado, Hermann o entrega a seu líder, que lhe promete grandes
recompensas pelo “ato de heroísmo”. Entretanto foge de horror do conteúdo do saco, que se revela
como Pernalonga fantasiado de Stalin, virando mais uma vez para o espectador com a pergunta: Does
your tobacco taste different lately?41 Slogan publicitário da época da Sir Walter Raleigh, marca de
tabaco para cachimbo famosa nos Estados Unidos.
Por mais que todos os personagens do curta estejam em um ambiente imaginário, o discurso
narrativo é a relação direta com o mundo real, trazendo piadas e colocações do cotidiano dos
espectadores dos anos 40, fazendo assim o humor que transita entre o fantástico e a realidade.

Ópera como piada: uma análise musical

A trilha sonora de um desenho é algo fundamental para todo o enredo, pois, através do efeito
Mickey Mousing42, ela dita todo o ritmo da história, muitas vezes até substituindo a narrativa de falas
dos personagens.
Em casos onde o desenho não cria um conjunto de músicas e sons originais, mas se vale de
clássicos conhecidos do público geral para referenciar nacionalidades ou culturas, não é a música que
se adapta ao ritmo do desenho, mas o oposto. No caso de Herr meets Hare, Carl W. Stalling optou
por uma seleção de músicas que são de conhecimento geral como símbolos da cultura germânica, em

40 Trad: evidentemente este cara é um estrangeiro.


41 Trad.: Seu tabaco ultimamente tem um gosto diferente?
42 Mickey Mousing, pu trilha pontuada, é uma técnica utilizada nas aminações que consiste na reprodução sonora
da imagem, ou seja, o som tenta descrever o que a cena mostra. O termo ganhou tal nome por ter sido criada e
largamente utilizada nas primeiras animações de sucesso do Estúdio Disney. Tal efeito também é utilizado para criar
um humor não intencional, paródia ou auto-referência. Cf.= MICKEY mousing ou trilha pontuada. Disponível
em: <http://cromossomop.blogspot.com.br/2009/03/mickey-mousing-ou-trilha-pontuada.html>.Acesso em: 14 maio
2017.

1026
especial a ópera Wagneriana. Segundo Goldmark, o diretor desde curta pretendia uma seleção de
referências germânicas para criticar Hitler, os nazistas, a Alemanha como um todo, e Stalling viu que
Wagner se encaixaria perfeitamente para tal crítica (JOE, GILMAN, 2010, p. 169). O musicista foi
um pioneiro no uso de canções populares e música clássica para criar o musical pun,43 onde usava
referências sonoras conhecidas para a pontuação do humor na tela, muitas delas retiradas de cantigas
folclóricas, infantis e até músicas de filmes lançados pela Warner, como forma de promover os
lançamentos da casa. Suas sugestões musicais, que em média não passavam de quatro segundos,
faziam com que o produto final fosse uma trilha única, em que vários estilos musicais transitam de
forma rápida para ditar a ação do curta. Sua pontuação musical era o que ditava a velocidade da
história e, para tal, Stalling tinha acesso de antemão ao roteiro e aos quadros de animação para
formular a trilha e daí o diretor, roteirista e desenhistas poderiam dar continuidade à obra (SHULL,
WILT, 2004, p. 23).
Desde que o primeiro acorde soa, com o slogan da Merrie Melodies, a música Merrily we
Roll Along (1935) já anuncia como um prelúdio à ação desenfreada de um dos famosos personagens
da Warner. A confirmação musical de que este é um genuíno desenho do astro Pernalonga vem com
sua canção tema What’s up, Doc (1939),que acompanha os créditos iniciais.
No primeiro segmento, onde há uma transmissão de rádio e sons semelhantes ao código morse,
há no fundo da trilha, de maneira bem sutil, o The Marine hymn (1942), canção oficial do Corpo de
Fuzileiros navais dos Estados Unidos, não só para a identificação das tropas espectadoras com este
curta mas também como lembrete constante da presença americana na guerra e legitimação do
discurso radiofônico, pois se trata de um hino utilizado somente para cerimônias oficiais. A transição
de uma musica séria para uma cantiga infantil é feita em questão de segundos, 3s para ser exata, como
pontuar a caminhada de Göring e seu cachorro. A-hunting we will go cantiga de ninar ganha uma
nova roupagem, com o som pronunciado dos metais, para marcar os passos “pesados” de Hermann,
e também criar uma semelhança com a volksmusik44.
O ápice da trilha sonora se dá no segmento 3m56s, onde Pernalonga, ao ritmo da abertura de
Tanhäuser (1845), desponta como uma valquíria montada em um cavalo cinza. Neste momento a
narrativa da animação segue a ópera wagneriana, enquanto Göring e o coelho são personagens de
uma lenda nórdica. Enquanto o agora Siegfried persegue sua Brünhilde, a pontuação passa a ser com
as valsas de Richard Strauss, Du und Du, Op. 367 (1864) e Wiener Blut, Op. 354. (1899). Não é
necessário o elemento verbal para que ambos se entendam, tal harmonia se alcança através da música

43 Trad.: trocadilho musical


44 Volksmusik é a designação que se dá para a música popular da região do sul da Alemanha, Áustria, Suíça e
Tirol.

1027
e da dança, até o momento em que o coelho o interrompe com o seu escudo, quebrando a sequência
musical e a fantasia idílica de Hermann.
A última grande pontuação com uma referência auditiva direta ao público será na cena final,
com a revelação de “Stalin”. Como reforço da ideia de seriedade frente a um novo inimigo, a
atmosfera sonora fica mais sombria, com sons graves, tendo como melodia a Эй, ухнем!, ou Canção
do barqueiro do Volga, música tradicional russa.
O poder da música ainda é pouco compreendido na narrativa fílmica, mas com relação aos
desenhos ela tem um poder não só de situar emocionalmente, temporalmente ou geograficamente,
mas também de anular a conversação, colocando em descrédito o discurso do personagem com alguns
acordes. Pode descrever cada movimento do personagem e realçar cada ação na tela, sem a
necessidade de placas de diálogo ou palavra falada, tornando o desenho inteligível a qualquer
nacionalidade.

Considerações finais

Pernalonga conseguia transmitir nas telas, com toda sua irreverência, o espírito do Home front
americano melhor do que qualquer um, incluindo seu icônico “rival” Mickey Mouse. Seus desenhos
se tornaram populares no período pois ele eram uma representação do imaginário coletivo americano:
uma alegoria a força de vontade estadunidense, um ser que podia se transportar até a linha de frente
e lutar, até alcançar a vitória, mesmo que ela seja da forma mais idiota (SANDLER, 1998, p. 8).
Herr meets hare é a síntese de uma produção satírica com os líderes fascistas europeus que
estava chegando ao fim, já não mais vendo seus adversários como pessoas dignas de temor, mas sim
de desprezo e escárnio. O crepúsculo de alguém que, outrora, era tido como a maior ameaça ao
“mundo livre”, já não é nem a sombra de tal personagem.
Este desenho, junto a produção animada da Warner no período, formam uma rica coleção de
fontes para se entender não só como se dava o contexto propagandístico em Hollywood, mas também
um acervo audiovisual de como o americano enfrentava com o humor a guerra, exorcizando o mal
humor e seriedade, características do inimigo, usando como arma o riso, e também denunciando não
um futuro de paz, mas o despontar de um novo inimigo no horizonte: o perigo soviético.

1028
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1029
O MOVIMENTO COMUNOFEMINISTA NO BRASIL: UMA HISTÓRIA EM
CONSTRUÇÃO

Iracélli da Cruz Alves 1

Resumo: A comunicação analisa a militância feminista de mulheres do Partido Comunista Brasileiro


(PCB) entre as décadas de 1940 e 1970, identificando o trabalho político desenvolvido por pecebistas
no período em tela. O objetivo é sugerir novos elementos para a compreensão da história política do
Brasil, tomando como referência o movimento feminista, especialmente em sua relação com o PCB.

Palavras-chave: História, Memória, PCB, feminismo

Abstract: The paper analyzes the feminist militancy of women of the Brazilian Communist Party
(PCB) between the 1940s and 1970s, identifying the political work developed by Pecebistas in the
period in question. The goal is suggesting new elements for the comprehension of the political history
of the Brazil, taking as reference the feminist movement, especially in your relationship with the
PCB.

Key words: History, Memory, PCB, Feminism

A história dos movimentos feministas e femininos no Brasil é marcada pela heterogeneidade.


Atualmente, o termo feminismo é largamente utilizado como se o seu significado fosse auto-evidente.
No entanto, seu sentido não é unívoco e varia conforme os diferentes contextos. As variações estão
relacionadas às disputas políticas em jogo. Devido à carga pejorativa que por vezes se imprimiu – e
imprime – ao termo, frequentemente ele não foi utilizado por indivíduos ou grupos que lutaram por
emancipação e/ou libertação das mulheres. 2 Até os anos 1960, pelo menos, a rejeição foi
particularmente forte entre mulheres militantes ou próximas das esquerdas. (ABREU, 2010: 23-24).
No Brasil, mais particularmente, as ativistas ligadas ao PCB diluiriam a “questão da mulher”
nas relações de classe. Entendiam que o problema só seria superado com a transição do capitalismo
para o socialismo. As feministas ligadas às esquerdas só viriam a criticar essa tradição no final da
década de 1960. (ABREU, 2010: 76). Antes da década de 1970, especialmente antes do golpe de
1964, as mulheres do PCB compartilhavam os valores defendidos pelo partido. Existia uma espécie
de cultura comunista que, na definição de Pandolfi (1995: 35), significa “uma determinada visão de
mundo, compartilhada por todos aqueles vinculados a uma tradição que se consolidou com a vitória
da Revolução Russa de 1917 e se identificou com o modelo de sociedade que foi implantado na
URSS”. O sentimento de pertencer a um partido comunista era tão forte que todos os demais se

1
Mestre em História pela UEFS e doutoranda em História pela UFF.
2
As noções de emancipação e libertação, embora possam aparecer imbricadas, possuem conotação diferente. De acordo
com Maria Amélia de Almeida Teles (1999: 10), a noção de emancipação feminina geralmente está associada à busca de
igualdade de direitos civis sem, necessariamente, questionar os valores masculinos. Já a ideia de libertação prescinde da
igualdade para afirmar a diferença – “compreendida não como desigualdade ou complementaridade, mas como ascensão
histórica da própria identidade feminina”.

1030
tornavam secundários. Desse modo, embora algumas pecebistas tenham se dedicado à luta pela
emancipação e/ou libertação feminina, elas tiveram dificuldades em assumir outra identidade, que
não a comunista.
Diante do exposto, percebe-se que definir-se feminista envolve um jogo político marcado por
disputas. Ademais, e como consequência, a definição muda a depender do contexto. Historicamente,
identificar-se (ou não) com o feminismo é uma forma de definir-se dentro de um amplo espectro
político de ideias e movimentos. Como destacou Abreu (2010: 25-26), a definição do que seria ou
não feminismo está relacionada, com frequência, a demarcação do que se constituiria no “verdadeiro”
ou “bom” feminismo, ou ainda traçar um modelo que é válido. No caso específico do Brasil,
geralmente os movimentos que não atenderam ou atendem as características acionadas para definir o
que seria, de fato, feminista, passam a ser genericamente chamados de movimentos femininos. É
comum a compreensão de que o feminismo só teria nascido efetivamente na década de 1970. Há uma
supervalorização das experiências feministas que emergiram na década de 1970 em detrimento das
anteriores. Muitas vezes credita-se ao feminismo dos anos 70 uma ousadia supostamente ausente nos
movimentos precedentes. Mas é preciso questionar alguns consensos que parecem consolidados na
historiografia atual.3
Hoje, em que pese a diversidade de grupos, há certo consenso no entendimento sobre o
conceito. A definição de Margareth Rago (2013: 28) é pertinente. Segundo ela, o feminismo não se
restringe aos movimentos organizados que se autodenominam feministas. Se referem também às
práticas sociais, culturais, políticas e linguísticas que atuam com o objetivo de liberar as mulheres de
uma cultura misógina e da imposição de um modo de ser construído pela lógica masculina nos marcos
da heterossexualidade. Mas no início do século XX, geralmente, o termo designava o movimento
organizado por mulheres de tendências liberais de classe média que, na maior parte das vezes, não
aprofundaram na discussão acerca das estruturas sociais de dominação masculina. (RAGO, 2001:
219).
Levando em consideração as variações que o conceito sofreu nos diferentes contextos
históricos, é preciso questionar se a concepção compartilhada pelo PCB em meados do século XX,
que via o feminismo apenas como um movimento “pequeno burguês”, impossibilita que se denomine
feminista a ação das militantes do partido que atuaram em defesa da emancipação e/ou libertação das

3
Antônio Maurício Brito (2008: 13) destaca que a história contemporânea do Brasil tem supervalorizado a década de
1960, em função de vários eventos internacionais que eclodiram naquele contexto, a exemplo dos movimentos de
libertação nacional na Ásia e África, da Revolução Cubana, das guerrilhas na América Latina, da guerra no Vietnã, da
Revolução Cultural chinesa, do Maio de 68 e do movimento hippie. Tais eventos teriam renovado radicalmente os
movimentos sociais em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, em que pese o autoritarismo e a violência da ditadura
militar que o assolava. A supervalorização do contexto tem sido permeada por alguns exageros, que parecem presentes
na história do movimento feminista.

1031
mulheres, antes mesmo da famosa “década do feminismo”. Deve-se lembrar que a disputa pelos usos
dos conceitos adequados tem relevância social, política e histórica. Como destacou Reinhart
Koselleck (2006:105-106), a forma como os grupos se apropriam das palavras diz muito, tanto sobre
a história do conceito, quanto sobre a história social. As palavras podem até permanecer as mesmas,
mas não indicam necessariamente a permanência do mesmo conteúdo ou significado por ela
designado. As alterações de sentido pelas quais passam ao longo da história podem ser reflexo de
conflitos sociais e políticos.
No Brasil, no caso da utilização do termo feminismo, percebe-se que ao longo do tempo os
significados foram alterados, bem como os grupos que o reivindicaram. Pensar a historicidade desse
conceito e os grupos que se apropriaram dele pode ser um dos meios pelos quais seja possível
desvendar os meandros do movimento feminista no Brasil. A década de 1970 é um marco importante
no que diz respeito ao desenvolvimento de um consenso em torno do conceito de feminismo, na
medida em que a maior parte dos grupos que lutam por emancipação e libertação feminina passou a
reivindicá-lo, apesar das divergências políticas. Mas o desenvolvimento dessa consciência feminista
foi processual. As leituras sobre o processo são divergentes, em função das diferentes experiências.
Muitas mulheres que viveram a experiência do exílio, em decorrência da Ditadura Militar,
relataram que tiveram o primeiro contato com o feminismo em solo estrangeiro, especialmente na
França. Mas certamente não é possível delimitar esta experiência como a única ou a mais relevante
no que tange ao desenvolvimento de uma “consciência feminista” entre as brasileiras. Partindo dos
depoimentos de mulheres exiladas e da documentação que produziram, Abreu (2010: 78) destacou
que essa experiência contribuiu para uma alteração profunda da concepção de feminismo entre as
brasileiras. Certamente, o contato com o então efervescente ideário feminista francês influenciou
muitas mulheres de forma significativa. Mas, o que dizer das militantes que não experimentaram o
exílio e continuaram atuando em solo nacional, sem necessariamente manter contato com as exiladas?
Como classificar o movimento das mulheres que antes da ditadura já discutiam as desigualdades entre
mulheres e homens, questionando, inclusive, certas naturalizações que a sociedade acionava para
justificar as desigualdades?
É preciso considerar, como lembrou Alessandro Portelli (2001: 103-130), que as memórias
são divididas. É fundamental definir não só a dicotomia entre a memória institucional e a memória
coletiva de determinado grupo, mas também a pluralidade fragmentada de diferentes memórias.
Ademais, “a memória não é somente construção, mas reconstrução, através da duração que separa o
momento rememorado do momento do relato” (FRANK, 1999: 109). Desse modo, entre a experiência
vivida e o momento em que é narrada há não ditos. A narrativa seleciona os fatos a partir do quanto
e como significaram para os sujeitos.

1032
De acordo com Joana Maria Pedro (2001: 2), as memórias das militantes que viveram a
experiência do exílio aparecem de forma recorrente na historiografia sobre o feminismo e ganham
status de verdade, sem muita crítica. A divisão entre “movimento feminino” e “movimento feminista”
também tem relação com os discursos das próprias mulheres que lutaram por emancipação e/ou
libertação. Diante da carga pejorativa que o termo adquiriu entre as militantes de esquerda, na
primeira metade do século XX é comum observar entre elas próprias essa distinção, que, não raro, é
reproduzida acriticamente pela historiografia. O modelo esquemático que separa o “movimento
feminino” do feminista, sem uma análise mais profunda das linhas que separam essa divisão, tem
predominado nos estudos sobre a história do movimento feminista no Brasil. No entanto, entre um e
outro grupo houve intercâmbios. Ademais, no interior deles circularam, não sem tensões, diferentes
ideais, ainda que adensados dentro de um projeto político comum. Portanto, é fundamental refletir
sobre essas disputas presentes em um passado ainda recente.
Mesmo após o ano de 1975, quando o PCB reconheceu oficialmente a legitimidade do
feminismo, dentro do partido as tensões entre “ser ou não ser feminista” continuaram presentes entre
aquelas que reivindicavam emancipação e/ou libertação das mulheres. Na década de 1980 duas
experientes militantes que se filiaram ao partido em 1945 – Ana Montenegro (1915-2006) e Zuleika
Alambert (1922-2013) – se posicionaram a respeito do feminismo que emergiu na década de 1970.
Apesar de ambas construírem sua trajetória política como militantes comunistas, na década
de 1970 tomaram posições diferentes a respeito do feminismo. Ana Montenegro criticou o movimento
e algumas teóricas feministas bastante influentes, como Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Alice
Schwarzer, Juliet Mitchell e Helene Lange. Em linhas gerais, a autora considerou que as mulheres
deveriam investir numa luta contra o capitalismo. A opressão feminina não deveria ser pensada
isoladamente, “como o fazem algumas correntes e personalidades feministas, sem explicar a relação
entre a discriminação da mulher e a propriedade privada, entre a exploração e a opressão”
(MONTENEGRO, 1981: 42). Segundo ela, o feminismo dava uma ênfase exagerada aos temas
sexuais e à política sexual, fato que imobilizaria politicamente o movimento de mulheres, pois
supostamente não atingiria as “grandes massas femininas”. (MONTENEGRO, 1981: 30-46).
Zuleika Alambert, ao contrário, exaltou as contribuições do feminismo e das teóricas
feministas na luta de mulheres e no pensamento marxista. Pontuou que somente com os argumentos
audaciosos e, por vezes, agressivos de teóricas feministas em todo o mundo, a exemplo de Simone
de Beauvoir e Juliet Michell, ampliou-se as reflexões acerca das opressões de gênero. Defendeu que
foram os movimentos feministas que contribuíram para incorporar no campo marxista a ideia de que
a libertação das mulheres deveria ser enfrentada com novos conceitos e novas práticas.
(ALAMBERT, 1986: XV-XVIII). As diferenças entre elas são indícios das tensões existentes na

1033
relação feminismo/comunismo, tensões que por muito tempo contribuíram para que as pecebistas não
se assumissem feministas.
As divergências tácitas influenciavam a forma como as mulheres se reportavam a sua luta
específica, chamando-a de “movimento feminino” ou “feminista”. O fato pode ter colaborado para a
consolidação de marcos historiográficos confusos ou demasiado esquemáticos do feminismo. É
preciso interrogá-los, considerando a movimentação ocorrida e a variedade de grupos existentes no
período investigado.
*
Durante o século XX algumas mulheres escolheram o PCB com um espaço de ação. Há
indícios de uma expressiva participação feminina no processo que culminou na formação do partido,
fundado em 25 de março de 1922. (TAVARES, 2003: 49). Além disso, um olhar nas fontes
jornalísticas permite mapear outras organizações femininas fundadas por comunistas. Em 1935
criaram a União Feminina do Brasil (UFB) que sobreviveu por apenas dois meses, devido ao
autoritarismo do governo de Getúlio Vargas. Durante o curto período de existência lançou um
manifesto convocando as mulheres à luta. Na década de 1940 fundaram outras organizações, a
exemplo do Instituto Feminino de Serviço Construtivo (1946-1949), criado para construir
nacionalmente a Federação de Mulheres do Brasil (1949-?). Em linhas gerais, essas organizações
defenderam pautas específicas: reivindicou a emancipação feminina; mais acesso à educação formal
e que na escola tivessem a mesma formação que os homens; defendeu o fim das disparidades salariais
entre os sexos, a partir do princípio do igual salário para igual trabalho e pautou a valorização do
trabalho doméstico como trabalho produtivo.
É preciso destacar um dado interessante sobre a fundação da FMB. A organização foi criada
em um contexto em que o PCB passava por problemas políticos. A partir de 1946, passada a euforia
democrática de 1945, o autoritarismo e a ofensiva anticomunista foram retomados no Brasil. Esse
movimento tem relação com o início da chamada Guerra-Fria. Diante do novo quadro, o partido
abandonou a linha de União Nacional, substituindo-a por uma linha mais radical, orientada para a
derrubada do governo. Moisés Vinhas (1982: 96) lembrou que, provavelmente, o que impediu o
desaparecimento do PCB como força política efetiva nesse período foi o seu protagonismo nas
campanhas pela paz, contra a bomba atômica e, principalmente, nas atividades desenvolvidas em
defesa do monopólio estatal do petróleo e da construção da Petrobrás. As mulheres atuaram de
maneira expressiva em parte dessas campanhas. A participação feminina era incentivada pelo partido,
em decorrência da concepção de que a suposta sensibilidade feminina e o imaginado instinto materno
eram essenciais para o encaminhamento das campanhas pela paz. (RIBEIRO: 2011: 62).

1034
Se isso está correto, nota-se que a historiografia sobre o PCB invisibilizou a atuação das
mulheres. Apesar da relevância das pesquisas para a história política do Brasil, bem como para a
história do PCB, trabalhos como os de Ribeiro (2011), Sena Junior (2009); Mazzeu & Lagoa (2003)
e Mazzeu (1999), entre outros, por não ter como foco as relações entre gêneros, deixam escapar as
tensões presentes nas relações entre homens e mlheres no interior da militância. Analisá-las é
fundamental para a compreensão das definições políticas do partido. As avaliações sobre a força
política e a inserção social do partido não tomam como parâmetro o trabalho desenvolvido pelos
“quadros femininos”. Portanto, é relevante inquirir sobre como as mulheres participaram das
campanhas partidárias e os níveis dessa participação. Em que medida a militância feminina foi
relevante para fortalecer o partido e garantir sua inserção social? Observa-se que, paradoxalmente,
em um período em que o partido estava enfraquecido, as mulheres conseguiram fundar a Federação
de Mulheres do Brasil e articular um movimento nacional expressivo.
Os fatos apresentados até aqui evidenciam um intenso movimento de mulheres pecebistas que,
de variadas formas, promoveram a construção de uma luta feminista articulada ao PCB, mas não
totalmente dependente dele. Elas tinham instrumentos de luta específicos e gozavam de relativa
autonomia. Além dos meios apresentados, as mulheres em movimento também acionaram a literatura
como instrumento de expressão política. Algumas comunistas utilizaram a literatura como meio de
expressão de suas aspirações políticas, a exemplo de Alina Leite Paim (1919-2011) e Jacinta Passos
Amado (1914-1973). Ambas tiveram uma trajetória de destaque tanto como militantes do PCB,
quanto como artistas engajadas na causa feminista. Arte e política se entrecruzavam em suas vidas.
A produção literária dessas militantes abre a possibilidade de reflexões sobre como o ideário
pecebista influenciou suas produções, além de oferecer elementos para o entendimento de como elas
pensaram as relações entre os gêneros e a luta das mulheres por mais liberdade. Através dos textos
literários, tanto Alina Paim quanto Jacinta Passos representaram os fatores que acreditavam contribuir
para a opressão feminina. Através da narrativa ficcional a romancista Alina Paim trouxe personagens
que denunciavam que a opressão das mulheres. No romance Simão Dias, cuja primeira edição saiu
em 1949 e a segunda em 1979, através de uma das protagonistas da trama, a personagem Luisa,
representou os fatores que considerava responsáveis pela opressão das mulheres, destacando que esta
opressão ia além do plano físico-econômico e se dava também no campo afetivo. Segundo Luiza, as
influências culturais deixavam marcas indeléveis no inconsciente feminino, levando à naturalização
do estado de submissão.

No último período da Escola Normal, discutira muito com as colegas sobre a


liberdade da mulher; naquela época seus planos de independência reduziam-se à luta
econômica, [...] algumas vezes avançava também no domínio intelectual [...]. Com

1035
surpresa Luísa certificara-se que vencer nos terrenos econômicos e intelectual não
constituía tudo para a mulher, falta muito para que seja inteiramente livre. [...] Tinha
consciência de liberdade agora que rompera com a escravidão afetiva. [...] Partira a
continuidade de submissão mantida pelas mulheres da família através de gerações.
[...] Era igual às outras mulheres. O hábito do cativeiro tinhas profundas raízes
inconscientes, também havia aceitado a obrigação de submeter-se ao homem: pai ou
marido, sem examinar de frente quem dava ordens, nem investigar o direito que lhe
conferia o manejo das rédeas. [...] Despedaçara as amarras afetivas com raízes no
passado, nos preconceitos de educação, nos mandamentos religiosos, nos ecos da
voz de Jeová. [...] Era preciso começar do princípio, reconstruir a vida nos alicerces
cavados com a análise de si mesma, levantados sobre a compreensão de uma
igualdade real entre os sexos. (PAIM, 1949: 203-206).

Observa-se que já estava sendo gestada uma reflexão sobre as influências de fatores culturais
no processo de opressão do feminino. Mas essas proposições, ao que parece, não eram recebidas sem
tensões dentro do PCB. As representações de Alina Paim indicam que, geralmente, quando as
militantes propunham uma discussão dos problemas femininos a partir do viés cultural, eram
chamadas pejorativamente de feministas.

Na célula, nesse período, choviam sobre ela as críticas contra sua visão unilateral,
imbuída de paixões e, por isso, desgarrada do conjunto. “A companheira tem um
desvio feminista” – disse-lhe certa vez o secretário político. Fuzilou-o com os olhos,
disciplinando o impulso de gritar-lhe: – “Conheça melhor as companheiras.
Pontifique menos e enxergue mais” (PAIM, 1961: 93).

Em que pesem as críticas, a maioria dos romances de Alina Paim traz as marcas do seu “desvio
feminista”. Na narrativa do romance Sol do Meio Dia a autora trouxe representações indicando que
problemas aparentemente de ordem privada deveriam ser debatidos politicamente.
Se Alina Paim utilizou o romance como instrumento de luta feminista, Jacinta Passos Amado
expressou seu feminismo através da poesia, evidenciando o duplo padrão moral da sociedade. O
poema Canção Simples é representativo nesse sentido. Ele aponta para a dupla moral sexual, na qual,
os mesmos atos eram julgados de maneira diferente. Os homens tinham mais liberdades sexuais,
enquanto as mulheres deveriam manter a sexualidade reprimida para serem respeitadas. A
infidelidade masculina era lida – apenas – como uma fraqueza do sexo, enquanto a feminina era
tratada como um desvio moral. O poema destaca que todos esses valores não eram naturais, mas
vinham de uma tradição. Portanto, eram marcas de uma cultura passível de modificação.

A flor caída no rio/ que leva para onde quer/ Sabia disso e caiu./ Seu destino é ser
mulher./ Leva tudo e segue em frente,/ amor de homem é tufão,/ o de mulher é
semente/ que o vento enterrou no chão./ Mulher que tudo já deu,/ homem que tudo
tomou,/ é mulher que se perdeu,/ é homem que conquistou./ Mulher virgem,
condição/ para homem dar – nobre gesto – / resto duma divisão/ se a divisão deixou
o resto./ No sangue, a honra é lavada/ de homem que mulher engana,/ mulher que

1036
vive enganada/ coitado! Fraqueza humana./ A flor caída no rio/ que a leva para onde
quer,/ sabia disso e caiu,/ seu destino é ser mulher! (PASSOS, 1941 apud AMADO,
2010: 66).

Como foi destacado, tanto Alina Paim quanto Jacinta Passos tiveram alguma inserção política
e social no período, embora a posteriori tenham sido praticamente esquecidas por seus companheiros
de militância. Nas memórias consultadas, a saber: Basbaum (1976), Chaves Neto (1977), Barata
(1978), Vinhas (1982), Gorender (1987) e Falcão (1988), o nome de Alina Paim foi sequer
mencionado, já o de Jacinta Passos aparece rapidamente no livro de João Falcão, sem nenhum tipo
de detalhe sobre suas contribuições ao partido, ao contrário do que acontece quando o autor se refere
aos homens considerados importantes.
*
Apesar da intensa atuação das mulheres pecebistas, de modo geral, as memórias dos homens
militantes invisibilizarama atuação das mulheres, tanto no movimento geral, quanto no
comunofeminista. Paralelamente, e provavelmente como consequência disso, a historiografia do PCB,
que trata direta ou indiretamente da militância feminina, enfatiza o papel do Partido, apresentando-o
como vanguarda do movimento feminino. Geralmente, não se destaca as tensões internas, nem o
protagonismo das mulheres e o provável poder que tiveram de incorporar suas demandas específicas
em uma instituição hegemonicamente masculina. De uma forma geral, em se tratando da militância
feminina, grande parte dos textos memorialísticos, a maioria de autoria masculina, deu pouca
visibilidade à militância feminina e/ou às discussões feministas.
O único texto de memória escrito por mulher que foi consultado não teve como preocupação
central a militância feminina. Em Meu Companheiro: 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes, como
o próprio título indica, Maria Prestes (1992), no tempo da escrita viúva do Cavaleiro da Esperança,
relembrou a vida de Prestes, especialmente em família. Mesmo tendo sido militante de base do PCB,
quando era mais conhecida como Mira, e tendo desenvolvido atividades cruciais para a sobrevivência
do partido, a autora dá pouca ênfase a sua experiência política. Num universo dominado pelo
machismo, não era incomum entre as próprias mulheres a ideia de que suas atividades políticas eram
irrelevantes.
Provavelmente, em função disso, em seu livro, Maria Prestes narrou com mais ênfase a vida
de seu companheiro, este sim considerado importante. A autora deu mais atenção à vida cotidiana do
“cavaleiro da esperança”. Apesar do foco na vida em família, a narrativa permite entrever as
atividades desenvolvidas por parte das mulheres do PCB e indica como o as relações de gênero se
davam no interior do partido, como indica o trecho a seguir

1037
Quando saí da clínica [após ter tido um filho], fiquei alguns dias no Rio, no aparelho
do Partido em Jacarepaguá, onde morava o Arruda Câmara, um dos mais importantes
dirigentes do PCB naquela época. [...] Durante esses dias tive um sério conflito com
o Arruda. Ele maltratava todo mundo em sua volta. A companheira que cozinhava
para o aparelho esqueceu que o Arruda não comia cebola. O Arruda quase que virou
a mesa, teve uma reação terrível. A pobre companheira em pânico ficou aos prantos.
Eu disse que não era através de gritos e murros na mesa que a ordem deveria ser
mantida, o Arruda ficou furioso, disse que eu estava com pretensões de ser dirigente.
Mandou eu me comportar, pois ele sim, um comunista, sabia das coisas. (PRESTES,
M. 1993: 74-75).

O fato narrado por Maria Prestes sinaliza constantes tensões no interior da militância. Ao
mesmo tempo abre brechas para a reflexão sobre como o machismo se reproduzia naquele espaço.
Mas há um quase absoluto esquecimento (ou silêncio?) acerca das experiências femininas no partido,
que tem deixado marcas nos trabalhos historiográficos. Silêncio e esquecimento são coisas distintas.
O que não é dito não significa, necessariamente, que foi esquecido. No caso específico das memórias
produzidas pelos homens do partido, os silêncios e/ou esquecimentos sobre as mulheres podem ter
relação com a ideia de que suas práticas não foram politicamente relevantes para o partido, ou
representam uma tentativa de apagar da memória oficial do partido episódios que contrariam o ideal
revolucionário que incluía o debate sobre a libertação feminina.
Em que pese os esquecimentos e/ou silêncios posteriores, é provável que as experiências
femininas na política partidária tenham contribuído para remodelar os sujeitos e a maneira de entender
o lugar social das mulheres. Certamente, não foi por acaso que em 1975 o PCB lançou um documento
de autocrítica reconhecendo que tinha negligenciado, prática e teoricamente, o trabalho entre as
mulheres.

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1040
GALÉS MODERNAS: operários e militares revoltosos nos navios-prisões da Primeira
República.
Isabel Lopez Aragão

Resumo: Os militares participantes das insurreições de 1922 a 1930 foram alvo de rigorosa repressão
por protagonizarem revoltas, por todo o país, durante esses oito anos. No final de 1924, centenas de
militares rebeldes, operários, jornalistas, políticos da oposição e civis aglomeravam-se em cárceres,
sob a custódia da Polícia Política e das Forças Armadas, em delegacias, presídios, navios-prisões, e
em ilhas litorâneas e oceânicas. Neste artigo, abordaremos o resultado da pesquisa realizada, acerca
dos navios-prisões e da permanência de militares e civis, como prisioneiros dos mesmos.

Palavras chave: navios-prisões. Tenentismo. revoltas.

Abstract: The military that participated in the insurrections from 1922 to 1930 were subjected to
rigorous repression because they carried out riots all over the country during these eight years. At the
end of 1924, hundreds of rebel soldiers, workers, journalists, opposition politicians and civilians
crowded into prisons under the custody of the Political Police and the Armed Forces, in police
stations, prisons, prison ships, and in coastal and Oceanic In this article, we will cover the results of
the research carried out, about the prison ships and the permanence of military and civilians, as
prisoners of the same.

Keywords: prison ships. Tenentism. revolts.

1. INTRODUÇÃO
As revoltas militares ocorridas nos anos iniciais da República brasileira tiveram como
consequência o desencadeamento de violenta repressão, por parte das autoridades governamentais.
Além da criação da 4ª Delegacia de Polícia Política,1 em 1922, uma Delegacia com finalidade de
investigar e aprisionar àqueles que se envolvessem em manifestações, greves operárias e,
principalmente, nas revoltas militares ou que, simplesmente, fossem simpatizantes destas, incontáveis
prisões foram feitas.
A 4ª Delegacia de Polícia Política era oriunda do Corpo de Investigações e Segurança
Pública,2 criado em 1907, com a finalidade de prevenção, investigação e vigilância policial. O Corpo
foi substituído, em 1920, pela Inspetoria de Investigação e Segurança Pública,3 sendo, esta última,
transformada, em 20 de novembro de 1922, 4 na 4ª Delegacia Auxiliar de Polícia Política, pelo
presidente Arthur Bernardes, assim que iniciou seu governo, em 15 de novembro, logo em seguida à


Isabel Lopez Aragão, doutoranda em História pelo PPGHS, UERJ, FFP. Bolsista FAPERJ.
aragaoisabellopez@gmail.com.
1
Cf. ARAGÃO, I. L. Da caserna ao cárcere: uma identidade militar-rebelde construída nas prisões (1922-1930). São
Paulo: Paco Editorial, 2012.
2
CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES. Decreto n.º 6.440, de 30 de março de 1907.
3
Ibid. Decreto Legislativo n.º 4.003, de 7 de janeiro de 1920, regulamentado pelo Decreto n.º 14.079, de 25 de fevereiro
de 1920.
4
Ibid. Decreto 15.848.

1041
primeira revolta militar, ocorrida em 5 de julho do mesmo ano. A partir daí surgia, no Brasil, o
primeiro órgão responsável, especificamente, pela repressão dos movimentos sociais, com uma seção
diferenciada: a Seção de Ordem Política e Social.5 Esta Seção deveria zelar pela “segurança interna
da República, empregar os meios preventivos à manutenção da ordem, assegurar o livre exercício dos
direitos individuais, desenvolver a máxima vigilância contra as manifestações ou modalidades
anárquicas e agir prontamente com relação à expulsão de estrangeiros perigosos.”6
Dentre os que atuavam contra a “ordem”, estavam os militares participantes das insurreições
de 1922 a 1930, que eram protagonistas de revoltas, por todo o país, especialmente a partir do ano de
1924. Desse ano em diante revoltaram-se, quase simultaneamente: em 5 de julho de 1924 - mesmo
dia e mês do levante de 1922 - as guarnições da capital paulista, contando com a adesão maciça de
membros da Força Pública deste estado, numa revolta que manteve a capital paulista sob controle por
um mês. No dia 12 de julho, o 10º Regimento de Cavalaria Independente, na cidade de Bela Vista,
em Mato Grosso, e, em 13 de julho, o 28º Batalhão de Caçadores de Sergipe se levantam, mantendo,
também por aproximadamente um mês, a cidade sob o controle rebelde. Os líderes do 10º Regimento,
em Mato Grosso, imediatamente após o levante, enviaram um telegrama ao general Isidoro Dias
Lopes, comandante da revolta paulista, declarando-se à sua disposição e ao Ministro da Guerra,
declarando a adesão, comprovando-se, assim, mais uma vez, a integração dos levantes por todo o
país. Em seguida, os oficiais sergipanos, no dia 16 de julho, três dias após o levante em Aracaju,
enviaram telegramas ao 20º B.C., em Maceió; ao 22º B.C., na Paraíba; ao 29º B.C., em Natal; ao 23º
B.C., em Fortaleza; ao 24º B.C., em São Luís; ao 25º B.C., em Teresina; ao 26º B.C., em Belém e ao
27º B.C., em Manaus, comunicando o levante e solicitando a adesão destes batalhões. Treze dias
depois, o 26º B.C., em Belém, aderia ao levante e oito dias depois, na cidade de Manaus, o 27º B.C.

5
O Chefe de Polícia, no relatório anual de 1911, sugeria ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores que o Corpo de
Investigação e Segurança Pública – a unidade de investigação civil criada em 1907 – deveria ser dividida em oito seções,
incluindo uma de “ordem social” para proteger direitos individuais e a ordem política. Além desta, seria criada e uma
“seção especial”, para qualquer tipo de serviço que pudesse ser necessário ao Chefe de Polícia. Em 1915, a Inspetoria de
Investigação e Capturas foi estruturada em dez seções. “Em 1917 ela tinha 206 homens em serviço, embora a sua lei de
organização previsse apenas 80. A “seção especial” sugerida em 1911 nunca foi criada, mas a “ordem social” foi
teoricamente dividida em duas seções: “ordem social” e “segurança pública”.” Por economia de pessoal essa separação
permaneceu apenas no papel, “ficando em 1917 um grupo composto de um comissário e sete agentes encarregado da
segurança pública e da ordem social. Sua função como Polícia Política era vigiar os anarquistas, socialistas e outros que
atentassem contra a ordem e somente em 1916 produziram, para os arquivos da polícia fichas sobre 1843 pessoas. “A
seção era ainda muito pequena, mas certamente sua importância foi crescendo com o passar dos anos. A Inspetoria
recebeu uma nova organização em 1920, desta vez por decreto presidencial. Deveria ser composta por 237 homens
divididos por oito seções com a ordem social e a segurança pública mantidas juntas, reconhecidas como uma só função.
A seção de ordem pública e social mereceu um status distinto das demais. Enquanto todas as outras eram subordinadas
a um dos três sub-inspetores, a seção de ordem pública respondia diretamente ao Inspetor.” BRETAS, Marcos Luiz.
Polícia Política no Rio de Janeiro dos anos 20. Revista do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 3, outubro
de 1997, p. 30.
6
Lei 4.743, de 31/10/1923. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Os porões da república: a Colônia Correcional de Dois
Rios entre 1908 e 1930. TOPOI, v. 7, n. 13, jul. - dez. 2006, p. 445-47.

1042
também aderia, este último dominando a capital amazônica por mais de um mês. Atendem à
convocação, feita pelo telegrama, levantando-se, também, ainda em julho, em 23 de julho de 1924: o
27º B.C. e a Flotilha do Amazonas, numa ação conjunta da Marinha com o Exército. A acomodação
dos comandos para o levante da Flotilha do Amazonas foi feita com José Baker Azamor assumindo
o aviso Ajuricaba, no lugar do Capitão-de-Corveta Leopoldo Gomensoro, seu comandante e oficial
legalista que foi preso, enquanto os demais comandantes se mantiveram no comando de seus navios
de praxe, ficando organizada a frota para o levante da seguinte forma: o aviso Ajuricaba, comandado
por José Baker Azamor, que anteriormente o imediatava; o aviso Teffé, comandado pelo Primeiro-
Tenente Aurélio Linhares e a canhoneira Missões, sob o comando do Primeiro-Tenente Lemos Cunha.
O aviso Amapá, no momento da revolta, estava ausente a serviço. Além da ação da Flotilha e do 27º
Batalhão de Caçadores, verifica-se o apoio de alguns dos batalhões do Exército, pertencentes à 8ª
Região Militar: o 26º Batalhão de Caçadores de Belém, capital do Pará, este último em 26 de julho e
o 4º Grupo de Artilharia sediado em Óbidos, no Pará, quase fronteira com Amazonas.7
Concluindo a conexão entre as revoltas deflagradas no país, no mesmo ano, em 1924, observa-
se, além dessas guarnições militares, o levante do Rio Grande do Sul, em 24 de outubro, no qual os
revoltosos gaúchos seguem até Foz do Iguaçu, unindo-se à Coluna paulista e formando a Coluna
Miguel Costa-Prestes. E, novamente, a Marinha adere, dessa vez em 4 de novembro, com as tentativas
de levante do encouraçado Minas Gerais e da contratorpedeira Goiás, e a concretização do levante
do encouraçado São Paulo, liderado por Hercolino Cascardo, um jovem tenente de 24 anos. Após
aportarem em Montevidéu, alguns revoltosos do encouraçado São Paulo se uniram aos
revolucionários do Rio Grande do Sul, acompanhando a Coluna Prestes até Foz do Iguaçu, que
estenderia sua marcha de 25.000 quilômetros por todo o Brasil, até 1927, quando, finalmente, os
revoltosos decidiram-se pelo exílio, internando-se na Bolívia.
Não tendo conseguido seu intento,8 disputariam,durante e após as revoltas, os espaços
do exílio, das prisões e do degredo, onde o isolamento, a tortura, a fome, a doença e a morte, fariam
parte de circunstâncias enfrentadas cotidianamente. Além destes militares revoltosos, operários,
deputados, jornalistas, comerciantes, advogados, jornalistas, políticos da oposição e civis, muitos
desses indivíduos sem culpa formada, foram aprisionados, interrogados, torturados e mantidos presos
ilegalmente, inclusive, tendo alguns de seus parentes sequestrados e aprisionados para revelarem onde
encontrá-los.

7
ARAGÃO, I. L. Revoltas militares no norte do Brasil no ano de 1924: o levante das forças do Exército e da Marinha
no Amazonas. 2009, 60 f. Monografia (graduação em Licenciatura plena em História). Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). São Gonçalo, 2009.
8
Sobre isso e sobre as prisões ver mais em: ARAGÃO, 2012, op. cit.

1043
Ao acompanharmos a trajetória de lideranças dos levantes, a pesquisa revela não só militares,
mas, também, muitos civis, conforme mencionado acima, dentro dos espaços prisionais. Na capital,
serviam a este fim a Polícia Central - 4ª Delegacia Auxiliar de Polícia Política, no centro do Rio de
Janeiro; as Casas de Correção e Detenção, na rua Frei Caneca e a Hospedaria dos Imigrantes, em São
Gonçalo. A Ilha Rasa e Ilha de Bom Jesus, serviu de prisão a civis e militares. Em São Paulo, a
Hospedaria dos Imigrantes, também fora transformada em Presídio. Além desses estabelecimentos
prisionais, campos de degredo, como o de Clevelândia, no Oiapoque, e navios-prisões, para onde
foram levados, serviriam como prisão somente aos militares no Rio de Janeiro: os quartéis do Corpo
de Bombeiros; a Escola de Estado Maior; o Batalhão Naval, na Ilha das Cobras; o 1º e 2º Regimento
de Infantaria; o 1º Regimento de Cavalaria Divisionária (1º RCD); o Hospital Central da Marinha
(HCM) e o Hospital Central do Exército (HCE) e outros corpos da 1ª Região Militar, no Rio de
Janeiro, como a Fortaleza de Santa Cruz e Fortaleza de Lage. Em São Paulo, ficaram presos na
Delegacia de Policia Política de lá e no 4º Batalhão de Caçadores de Santana. Na Ilha Grande o
Lazareto se transformou em presídio militar. No litoral do Espírito Santo ficaram desterrados na Ilha
de Trindade, ilha oceânica, para onde foram enviados os militares rebeldes ficava a localizada a 1.167
quilômetros de Vitória (ES) e a 2.400 quilômetros da África, um terço do caminho entre o Brasil e a
África, extremo leste do território brasileiro, no meio do Atlântico Sul.9
Neste artigo, abordaremos o resultado da pesquisa realizada, acerca os navios-prisões e da
permanência de militares e civis, como prisioneiros dos mesmos.

2. OS NAVIOS-PRISÕES

Nos portos, cederam seus porões a presos políticos os navios-prisões Alfenas, Benevente,
Belmonte, Cuyabá, Jaceguay, Campos, Jahu, Manaus, Baependi - todos requisitados do Loyd
brasileiro - promovendo o encontro de militares operários e indivíduos sem culpa formada, que
possuíam em comum o fato de serem “indesejáveis” ao convívio social. Estes navios serviram como
navios-prisões, onde os prisioneiros permaneceriam por tempo incerto, ou de onde não mais sairiam

9
O arquipélago pertence a uma cadeia de montanhas submarinas do Atlântico numa linha reta que vai do Estado do
Espírito Santo em direção à África. De forma alongada e com um terreno extremamente acidentado, possui uma área de
apenas 9,2 quilômetros quadrados, o que equivale a metade do arquipélago de Fernando de Noronha. Mesmo tão pequena,
a ilha tem atrações naturais diversificadas: são 12 praias, em sua maioria formadas por solo de pedra e corais, e cada
enseada possui uma característica diferente, como um pico, uma vegetação rasteira, uma piscina natural, solo de terra
vermelha, túnel e costões íngremes. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/turismo/aventura/ilha_da_trindade-historia.shtml>. Acesso em: nov. 2009.

1044
devido às condições de insalubridade que os fazia sucumbir. Alguns deles levaram contingentes de
infelizes para prisões em ilhas oceânicas: a Ilha Grande (Lazareto e Colônia Correcional Dois Rios)
ou à fronteira com a Guiana Francesa, para o campo de desterro da Clevelândia, no Oiapoque. Para
as Ilhas mais próximas, como a Ilha de Bom Jesus, a Ilha das Flores e a Ilha Rasa, 10 serviram como
transporte os rebocadores Audaz, o Mario Alves, o Tonelero, o Laurindo Pita, o Tenente Cláudio.

2.1 O navio-prisão Alfenas

A requisição do navio Alfenas, em 2 de junho de 1917, foi levada a efeito a título de represália
e para suprir “a tonelagem que o inimigo vem [vinha] destruindo” na 1ª Guerra.11

Ministro da Marinha
Snr. Chefe do Estado Maior da Armada
Tendo o Governo resolvido incorporar provisoriamente, à esquadra, o vapor
“ALFENAS”, do Lloyd Brasileiro; assim vos declaro para os devidos fins.
SAÚDE E FRATERNIDADE
Alexandrino Faria de Alencar.12

O Alfenas era um navio mercante, a vapor, de casco de ferro, incorporado, provisoriamente, à


esquadra, exclusivamente para conduzir a “carga humana” tendo servido como primeiro navio-prisão
aos presos militares rebeldes de 1922.13 Comandaram o Alfenas, os Capitães de Corveta Américo
Vieira de Melo, de 10 de julho a 23 de agosto de 1922, e Luiz Pereira Pinto Galvão, dessa última data
a 6 de dezembro, do mesmo ano, quando foi desligado da Esquadra. 14 Foram encontrados,
prisioneiros no Alfenas: revoltosos do Forte Copacabana e da Vila Militar; os Capitães José Carlos
Dubois, Leopoldo Nery da Fonseca Jr., Mario Abreu; os Tenentes Alberto Barbeto, Aroldo Leitão,
Bento Ribeiro, Carlos Saldanha da Gama Chevalier, Heitor Bianco de Almeida Pedrosa, Honório
Hermeto Bezerra Cavalcanti, Joaquim Soares de Ascensão e Telmo Barbosa. 15

10
ARAGÃO, 2012, p. 269-273, op. cit.. A Ilha das Cobras também pertence ao conjunto de ilhas utilizadas como prisão,
todavia, não necessita de transporte por navio.
11
Cf. CHEVALIER, Carlos. Memórias de um Revoltoso ou Legalista? 1922-1926. Rio de Janeiro: Estabelecimento
Graphico Nictheroy, 1925; Cf. SAMIS, Alexandre. Clevelândia. Anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil.
São Paulo: Imaginário, 2002. p. 235.
12
DIRETORIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. DPHDM Relatório dos
Ministros da Marinha, nº 2595 de 07/1922 – Alfenas.
13
Ibid. Aviso do Ministério da Marinha, n.º 2595, de 10/071922, publicado na O.D. n.º 55, mesma data.
14
Ibid. Aviso n.º 5688 de 06/12/1922, publicado na O.D. n.º 100 do dia seguinte.
15
Cf. CHEVALIER, 1925, op. cit.; Cf. CHEVALIER, Carlos. Os Dezoito do Forte. Rio de Janeiro: [s.n.], 1930.).

1045
2.2 O Benevente

O Benevente é citado pelo tenente Chevalier, como tendo aprisionado revoltosos em abril de
1924. Foram encontrados no Benevente: os Tenentes: Setúbal, Adalberto Araripe Rocha Lima,
Agnaldo José Senna Campos, Ariosto de Almeida Daemon, Asdrúbal, Walter de Souza Daemon,
Carlos Magalhães Frankel, Carlos Saldanha da Gama Chevalier, Doeys, Dutra, Ten. Granville
Belorophonte de Lima, Humberto Castelo Branco, José Públio Ribeiro, Leony de Oliveira Machado,
Lincoln de Carvalho Caldas, Pedroso, Pery e Santos Dias. Os revoltosos foram transferidos do Alfenas
para o navio Cuyabá, que ficou fundeado na Enseada do Abraão, em frente ao Presídio do Lazareto,
na Ilha Grande.16
O Benevente já havia sido utilizado para o fim de deportação de prisioneiros operários,
considerados anarquistas, em 1919, ocasião na qual esteve atracado em frente à Ilha Fiscal. O relato
dos operários mostra a situação que os prisioneiros vivenciaram, antes e durante o embarque. Os
operários chegavam ao Rio de Janeiro de trem, vindos de toda parte. Ao descerem do trem, no pátio
da Central do Brasil, duas fileiras fechadas de soldados os aguardavam, com a baioneta calada,
enquanto os agentes de polícia os guiavam, juntamente com outros soldados, até um carro fechado,
puxado por animais, lotado de prisioneiros, que os levava ao cais, para serem conduzidos em lanchas
ao navio-prisão. Durante todo o trajeto, até o Benevente, cada deportado tinha um soldado de escolta,
que os conduzia até que desciam ao porão do navio, onde permaneciam os prisioneiros.17 Haviam
sido presos na rua, alguns indo ou vindo da hora do almoço, outros com a roupa suja do trabalho nas
fábricas, sem avisar aos amigos ou familiares, filhos, ou abandonando pequenos negócios, pertences,
dinheiro, emprego, tudo. O jornal O Combate noticiou que teriam sido deportados diversos
trabalhadores nos navios Benevente, Órbita e Belmonte, afirmando que eram anarquistas de
nacionalidade portuguesa, espanhola e italiana. 18 Uma carta do operário gráfico Everardo Dias,
escrita ao pararem em um porto, a caminho da deportação, relata a agonia a que foram submetidos os
prisioneiros políticos da época. Sequestrados no meio da rua e sem julgamento, eram levados aos
navios-prisões e mesmo antes de embarcarem, ainda nas delegacias, já passavam por grande
padecimento.

2 de novembro de 1919
Meu caro F...

16
Cf. CHEVALIER, 1925, op. cit.; Cf. CHEVALIER, 1930, op. cit..
17
DIAS, 1920: p. 40-2, op. cit..
18
“A deportação dos anarchistas de S. Paulo – uma desintelligencia entre o consul hespanhol e a policia do Rio”. O
Combate, 31 out. 1919, p.1.

1046
Saude!
Vamos a Bahia amanhã e por isso escrevo-te esta, esperançado que vá ter ás
tuas mãos! Que destino de luta e desassocego o meu! É incrível!
(...) Fui preso, segunda feira, logo de manhã, ao ir almoçar, por dois secretas,
que me conduziram ao posto da rua Sete de Abril, onde estive em interrogatório e
passando muitos vexames até a meia-noite. A essa hora fui chamado, e acompanhado
do chefe dos secretas, guardas e mais dois do mesmo ofício, fui conduzido de
automóvel até Santos, onde chegamos às 4 horas mais ou menos. No caminho, o auto
recolheu mais dois presos – o João C. Pimenta e um moço de S. Bernardo, de nome
José Righetti. (...) Não és capaz de imaginar o que sofri em Santos. Lá, logo que
cheguei, fui mandado despir e nu completamente metido numa solitária, com meus
dois companheiros. A solitária é um compartimento pequeno, acanhado, infecto e
humido; patinava-se sobre o escremento secco e urina – uma coisa repugnante,
horrorosa. Assim ficamos todo o dia de terça-feira, toda a noite até quarta-feira até
às 4 e meia, quando fui retirado da cela para ir para um pateo, onde me esperavam
oito ou dez soldados de carabina em posição de sentido. Assim nu, fui espancado
barbaramente, recebendo 25 chibatadas nas costas. Imagina depois de tres dias e
duas noites sem comer, sem beber, nu, com um frio horrivel em Santos, pois choveu
sempre, ardendo em febre, a bocca pastosa, sem poder gritar, sem poder falar,
apanhei como um vagabundo ou um ladrão!... Depois disso, mandaram-me vestir,
conduziram-me em seguida de automóvel á estação, embarquei para S. Paulo,
sempre custodiado por tres secretas e esperei escondido no norte, que me
embarcassem para o Rio. Ás 3 horas, com mais 11 companheiros, com uma escolta
de 25 praças de carabina embalada, seguimos de trem para o Rio e a esta capital
chegamos de manhã, desembarcando em S. Francisco Xavier. Aqui, novo aparato de
forças: outras 25 praças tomaram conta de nós e assim seguimos até á Polícia Central,
onde demos entrada no xadrez. Falei, então, com o inspetor Melo, a quem disse
desfalecido que fazia 4 dias e 4 noites não comia, não bebia, não dormia, o mesmo
se dando com meus companheiros. Ele mandou, então, dar-nos café com pão e ao
meio dia almoço! Ás 7 horas, embarcávamos no “Beneventes”, expulsos do Brasil
por ter atacado o governo de São Paulo!... Que grande e imperdoável crime!
Perdi 10 anos de vida. Eu vou no navio mais morto que vivo. Só a bordo que
me aplicaram curativos nas costas, mas estou muito fraco e creio que tuberculoso!
Oh! É horrível! Que policia infame e criminosa! Não me deixaram nem despedir de
meus filhos e de meus amigos! Que fizeste por mim aí? Eu estive sempre
“impedido”, incomunicável, sem poder ler, nem falar com ninguém! Chegamos em
Santos a oferecer ao carcereiro 50$ por um pouco de água e um sanduiche e só
conseguimos que de nós escarnecessem!... Um nosso companheiro, doido, foi beber
água da latrina! Fala com Z. a ver se é possível arranjar recursos para Maria e meus
filhos, fazendo um apelo a meus amigos do interior. O que mais me apavora são eles,
que ficam sem recursos! Não tenho mais papel. Arranjei este com dificuldade.
Everardo.19

De acordo com Everardo Dias, que também foi deportado no Benevente, em 1919 estavam
nesse navio: Annibal Paulo Monteiro, motorneiro da Light; Antonio Costa, foguista; Manuel
Gonçalves, Antonio Silva Massarelos, estivador; Albano dos Santos, da City, em Santos20; Abilio
Cabral, fiscal da City; João Carlos; Alexandre Azevedo, da fábrica de casimiras F. Kowarick; Manuel

19
DIAS, 1920: p. 97-9, op. cit., Carta de Everardo a caminho da deportação na Europa, também publicada no Jornal
Spartacus de 22 de novembro de 1919.
20
Fundada em 1912 com o nome de "City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited", esta
companhia foi encarregada à época da urbanização de vários bairros em São Paulo.

1047
Ferreira, autônomo; Manuel Gama, operário da construção civil e colaborador de A Plebe; Alberto
Augusto de Castro, ferroviário; Francisco Ferreira, pintor; Joaquim Alvarez, da São Paulo Railway;
Adolfo Alonso, alfaiate; José Cid, alfaiate; Manuel R. Peres, marceneiro; Rafael Lopez, metalúrgico;
Antonio Perez, ferroviário da E.F. Central do Brasil; Manuel Perez, funcionário da City; João José
Rodriguez, também funcionário da City; Antonio Pietro, da Light; Manuel Perdigão, operário em
Santos; além do próprio Everardo Dias, operário gráfico, redator durante 15 anos do jornal O Livre
Pensador e colaborador de A Plebe.21
A única razão para que fossem submetidos a tal violência era o fato de serem grevistas. As
greves de 1917 e 1919, ambas em São Paulo, representaram uma ameaça para as autoridades, dado o
nível da organização operária. A greve de 1917 servira como uma demonstração evidente de força,
com adesão de todo o estado de São Paulo e setores do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, reunindo
cerca de cinquenta mil operários, organizada pelas ligas e uniões operárias, as federações estaduais,
e a Confederação Operária Brasileira (fundada em 1906), todas sob forte influência dos anarquistas.
Essa greve preparava a greve geral de 1919, que devia contar com a adesão simultânea de São Paulo,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Pernambuco e Rio Grande do Sul, mas sofreu certa
desmobilização devido aos ataques frequentes de jornais governistas, indispondo a opinião pública
contra os trabalhadores e da ofensiva por parte das oligarquias e governo, que veio rapidamente. A
polícia reorganizou seus quadros contratando o que Everardo Dias, operário gráfico, denomina de
espécimes do bas-fond22 social para seus quadros, “formando uma tenebrosa teia de espionagem”.
Segundo ele, a Argentina, o Uruguai e o Chile atravessavam situações idênticas, pois, os navios que
passavam pelos portos do Rio de Janeiro e de Santos, onde ficavam sob severa vigilância, traziam
grandes contingentes de militantes expulsos desses países, recebendo novas levas de militantes
brasileiros, a serem conduzidos para a Europa, tendo todos recebido, em seus passaportes anotações
com designações infamantes, como “terroristas”, “desordeiros”, “malfeitores” e “caftens”, embora
fossem apenas trabalhadores lutando por seus direitos.23

2.3 O Cuyabá

21
DIAS, Everardo. Memórias de um Exilado. Episódios de uma deportação. São Paulo: s/n, 1920, p. 44-48.
22
O autor usa o termo para se referir às camadas mais baixas da sociedade, no sentido moral.
23
DIAS, Everardo. História das Lutas Sociais no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 2ª edição, 1977, p. 91.

1048
O Cuyabá era um navio alemão de casco de aço e cargueiro, congregado à Frota da Marinha
em 28 de junho de 1923, e, da mesma forma que o Alfenas, foi incorporado ao material flutuante da
Armada e classificado como “transporte de guerra,” sendo restituído ao Lloyd somente em 1925.24

Ministro da Marinha
Chefe do Estado-Maior da Armada
Assunto: Muda a classificação de navio.
1-Declaro que resolvi mandar classificar como “tender” os transportes de guerra
Belmonte e Cuyabá.
Alexandrino Faria de Alencar25

O depoimento do ex-sargento André Figueira, ao jornal O Estado do Pará, sobre as mortes


no campo de desterro da Clevelândia, deixa entrever parte da situação que os presos vivenciavam nos
navios:

Ah! Aquele Cuyabá, aquele Cuyabá! A seu bordo não havia higiene, não havia coisa
nenhuma. Basta referir-lhe que a nossa sanita era uma velha barrica que, ficando
cheia era retirada do porão com um cabo, com o mesmo cabo com que nos jogavam
a comida, como se fossemos cães danados .26

Francisco Nicolau, soldado preso em Catanduvas, Paraná e prisioneiro do Campo de Desterro


da Clevelândia, revela a data aproximada desses embarques. Ele chegou à Clevelândia, em 22 de
maio de 1925. Foi para lá a bordo do Cuyabá, tendo, antes, parado no Distrito Federal, para embarque
de mais 150 presos.27
São alguns militares presos nesses navios: tenentes Nelson Gonçalves Ethegoyen, Eduardo
Gomes, Matheus Moura, Luís Braga Mury, Carlos Saldanha da Gama Chevalier; 28 revoltosos da
canhoneira Goiás e do encouraçado São Paulo; da Escola de Aviação Naval e alguns praças do 27º
BC de Manaus, envolvidos no levante desta cidade, em 1924. 29 Um dos Relatórios revela a
permanência do Capitão do Exército Duguet, preso no Cuyabá, em 1924.30

24
Congregado à Frota da Marinha, pelo Aviso do Ministério da Marinha 2.975, de 28/06/1923.
25
Ibid. Relatório dos Ministros da Marinha, nº 2975 de 28/06/1923.
26
SAMIS, 2002: p. 170, op. cit..
27
DIAS, Everardo. Bastilhas Modernas: 1924-1926. São Paulo: Obras Sociais e Literárias, 1926, p. 238-240.
28
Além desses, foram encontrados no Cuyabá: o Cap. Leopoldo Nery da Fonseca; os Tenentes Adir Guimarães,
Aguinaldo de Castro Sena Campos, Azevedo Marques, Benjamim Constant, Carlos Costa Leite, Carlos Magalhães
Frankel, Felipe Moreira Lima, Gentil Tavares de Araújo, Hugo Bezerra, Heraldo Filgueiras, Jorge Gomes Ramos, Mario
Clementino, Mario Neves Galvão, Milton Guimarães de Souza, presos de 1922; e os Soldados, Lauro Nicácio, Ovídio
dos Santos e Pedro Alves, todos presos em Catanduvas e Leoncio Basbaum. Ver mais: ARAGÃO, 2012, op. cit..
29
DIRETORIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. DPHDM Relatório nº 3002
de 15/07/1924, do Ministro da Marinha.
30
CHEVALIER, Carlos. Os Dezoito do Forte. Rio de Janeiro: [s.n.], 1930, fotografias; SIQUEIRA, Deoclécio Lima de.
Caminhada com Eduardo Gomes. Rio de Janeiro: Novas Direções, 1989: p. 43; SAMIS, 2002: p. 186, op. cit.; SILVA,
Hélio. 1922. Sangue na Areia de Copacabana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1964: p. 388-9.

1049
Ministro da Marinha
Ministro da Guerra
Assunto: Transmite um requerimento.
1 – Tenho a honra de submeter à consideração de V. Excia. o incluso requerimento
do Capitão do Exército Honorato Augusto Duguet Leitão, que se acha preso à bordo
do tender Cuyabá.
Alexandrino Faria de Alencar.31

2.4 O navio-prisão Jaceguay

Este navio foi encontrado, dentre os Relatórios, servindo de navio-prisão aos militares
rebeldes de São Paulo.

Ministro da Marinha
Ao Snr. Procurador Criminal da República
Assunto: Comunica a prisão de um oficial.
1 – Tenho a honra de comunicar-vos que o primeiro tenente do Exército Vitor Cesar
da Cunha Cruz, que se encontra respondendo a processo no foro civil, se acha
incomunicável a bordo do aviso-hidrográfico Jaceguay por ter sido feito prisioneiro
pelas forças legais em operações na cidade de São Paulo.
Alexandrino Faria de Alencar.32

O Primeiro- tenente, incomunicável no navio, participara dos levantes de 1922 e 1924,


respondia a processo em foro civil, pelo levante de 1922. Outro relatório revela a prisão de alunos
revoltosos, da Escola Militar do Realengo, no Jaceguay.

Ministro da Marinha
Ao Snr. Dr. Procurador Criminal da República
Assunto: Comunica a prisão de ex-alunos da Escola Militar.
1 – Tenho a honra de comunicar-vos a prisão dos civis Diogo Figueiredo Moreira,
Osmar Soares Dutra e Paulo Vieira da Rosa, ex-alunos da Escola Militar, encontram-
se presos incomunicáveis a bordo do Aviso Hydrográphico “Jaceguay,” por terem
sido feitos prisioneiros pelas forças legais em operações na cidade de São Paulo.
Alexandrino Faria de Alencar33

31
Ibid. Relatório nº 3002 de 15/07/1924, do Ministro da Marinha.
32
Ibid: Relatório nº 3002 de 15/07/1924, do Ministro da Marinha. Rio de Janeiro, mar. 2009.
33
Ibid. Relatório do Ministro da Marinha s/nº de 21 de Julho de 1924.

1050
Eles participaram, em 1922, dos levantes, na Escola Militar do Realengo, no mesmo dia que
a Vila Militar e o Forte Copacabana, das revoltas de 1924 e das insurreições militares, até o ano de
1927,34 tendo dividido as mesmas prisões e à incomunicabilidade e a tortura com oficiais.35

O Ministro da Guerra declarara que, em face do inquérito 13 aberto sobre os


acontecimentos em que foi envolvida a Escola Militar no dia 5 de julho de 1922, o
Governo resolvera desligar imediatamente, a bem da disciplina, 256 (duzentos e
cinqüenta e seis) alunos envolvidos e que continuaram presos; 333 (trezentos e trinta
e três) alunos que foram distribuídos pelas unidades das diversas regiões militares
para serem desligados do serviço ativo do Exército; e 58 (cinqüenta e oito) restantes
mencionados que foram postos em liberdade. Houve também, o afastamento do
comandante da Escola e todos os instrutores que tivessem vínculo com a Missão
Indígena36 (...).37

Dentre os prisioneiros podemos citar: da Marinha, os Capitães-de-corveta João M.


Dias (médico), Raul Elísio Daltro e Soares Pinna; os Capitães-tenentes Attila Monteiro Aché,
Augusto Short, Salalino Coelho; os Primeiros-tenentes Afonso Machado, Álvaro de Araujo, Álvaro
Miguelotte Vianna, Ary Lima, Djalma Freitas Cordovil Petit, Faro Orlando, Francisco Bulcão
Vianna, Paulo Mário da Cunha Rodrigues; e, do Exército: o Primeiro-tenente Vitor Cesar Cunha
Cruz. 38

2.5 O navio-prisão Campos Salles

O Campos serviu de presídio a rebeldes dos levantes de São Paulo, em 1924, e Mato Grosso,
em 1922. 39 Vindos da 4ª Delegacia de Polícia Política e das Casas de Correção e Detenção e
encontrando-se, por isso, já debilitados, retornavam muitas vezes do navio para a enfermaria da Casa
de Detenção. Everardo Dias, operário já citado, na enfermaria da Detenção, ouviu o que vivenciaram
no navio: saídos da 4ª Delegacia foram separados em cubículos da Detenção e partiram na alta
madrugada, rumo ao Arsenal de Marinha, em carros fortes, “escoltados por praças de carabina

34
Alguns alunos participantes das revoltas: André Trifino Correia, Carlos Rodrigues Coelho, Osmar Soares Dutra,
Alberto Rodrigues da Costa, Samuel da Fonseca Fernandes, Carlos Telles Ferreira, Plínio Phaelante de Câmara Lima,
Adriano Metello Filho, Emígdio da Costa Miranda, Diogo de Figueiredo Moreira Junior, Henrique Cordeiro Oest, Hiram
de Oliveira, Pedro de Oliveira Palma, Waldomiro de Oliveira Remião9, Paulo Weber Vieira da Rosa.
35
Cf. SILVA, 1964, op cit..
36
Sobre isso, ver em: ARAGÃO, 2012, p. 269-273, op. cit..
37
RODRIGUES, Fernando da Silva. Renovação e Revoltas: a Escola Militar do Realengo de 1918 A 1922. Disponível
em <http://www.abed defesa.org/page4/page7/.../FernandoRodrigues.pdf>. Acesso em 01/10/2010.
38
Ver mais: ARAGÃO, 2012, op. cit..
39
Cf. SAMIS, 2002, op. cit..

1051
embalada e por agentes reforçados e bem armados”. Apontados ao comandante, os líderes operários
deveriam sofrer os maiores castigos e constante vigilância. Entraram em uma lancha conduzidos ao
navio, que se encontrava na baía à altura da Ilha de Mocanguê. Já na escada, indivíduos de rebenques
nas mãos, intercalados por praças, iniciavam por chicoteá-los, enquanto caíam tentando alcançar o
convés, aos tropeços e solavancos. Lá, os aguardava um homem chamado por tenente Lopes, que
ordenava que ficassem nus, mesmo à alta hora da madrugada. O pavor se apossava de todos,
especialmente ao constatarem o ar de riso de seu algoz, como que a divertir-se com as perversidades
que planejava. Revistavam as roupas retiravam tudo que houvesse de valor, recolhendo-os aos porões,
onde permaneciam, até o amanhecer, quando era iniciada a escolha para os trabalhos a serem
realizados. 40 Às 5 da manhã despertavam ao toque de uma corneta e caminhavam para o banho feito
com uma mangueira idêntica à usada por bombeiros, com jatos de água salgada que os jogava no
chão, enquanto ouviam a risada dos praças. Seguia-se ao banho o exercício físico: corrida de 15
minutos pelo convés. Se caíssem, por um escorregão, eram imediatamente chicoteados. Depois, vinha
a distribuição do trabalho: das turmas de pintura, que podiam atuar nos locais mais altos do cargueiro
do Loyd, como os mastros, até as partes mais fundas dos interiores; dos grupos de bater ferrugem do
lado exterior do casco; de limpeza de convés, máquinas e caldeiras; dos que desfiavam cordas velhas
e refaziam trançados, e, finalmente os responsáveis pela faxina, rancho e lavagem de roupas. Todos
eram supervisionados por “notáveis malandros do Rio de Janeiro”, que eram encarregados de
chicotear os prisioneiros ao menor deslize.41

- O trabalho! Não se sabe de senhor que mais tenha maltratado os seus escravos. A
taca – é este o nome que dão ao rebenque – funciona a todo momento, nas mãos
vigorosas dos capatazes, e pelo mínimo motivo. Ai do infeliz que cair na antipatia
de um desses perversos individuais! Olhar para um preso é motivo para da taca cair
inesperada e impiedosa sobre as costas, a cabeça, os braços de quem olha... Não
executar uma ordem, não atender promptamente a um chamado, é causa de violentas
e rudes pancadas, distribuídas a torto e a direito com espírito maligno e perverso.
Quantos infelizes, ao trabalharem sobre pranchas mal seguras á amurada, balançando
no abismo, a dez ou quinze metros da água, não foram dela expelidos á força de
bordoadas, afogando-se? Quantos outros não despencaram das vergas sobre as
ferragens do convés ou se sumiram nos porões, a mais de vinte metros de altura,
quebrando na quéda braços, pernas, espinha, rasgando o ventre nalgum ferro
pontudo, destroncando o pescoço, fendendo o craneo?!
- Fugir?! De que modo? Si qualquer embarcação que passasse próxima era logo
alvejada pelas sentinelas? Além disso, os presos, á tarde, eram fechados nos porões
e com sentinelas á vista. Ali, ao infeliz preso só restava esta alternativa – resistir ou
morrer. Só desse modo podia deixar o Campos.42

40
DIAS, 1926: p. 132, op. cit..
41
Ibid, ibidem.
42
Ibid, ibidem.

1052
A alimentação consistia em um copo de café e um pãozinho pela manhã e duas conchas de
feijão com farinha, no almoço e no jantar, após o que se recolhiam ao porão para dormir sobre uma
chapa de ferro, sem ventilação ou agasalhos. Isso após uma jornada de 10 horas de trabalho, restando
apenas, para a higiene pessoal, feita de modo precário, as tardes de domingo. As roupas iam-se
desfazendo até a nudez, muitos usando seus restos como tangas. Segundo o autor, quem avistasse os
prisioneiros “infelizes, desfigurados, tostados do sol, costas lanhadas pela taca infame, grandes
cabelos intonsos, que não conhecem pente há muitos mezes” com suas “barbas crescidas e ouriçadas”,
semi-nus e alquebrados pela subnutrição, presumiria “estar noutro hemisfério e em outra época da
historia da humanidade”.43
Edgard Leuenroth, conta-nos que durante a viagem no Comandante Vasconcelos ao
encontro do Gaiola Oiapoque, com destino à Clevelândia, “o Sargento Freitas ordenava o
espancamento de seis a oito presos diários.” O castigo era aplicado “pelos ladrões de roupas, dos
couradouros do Rio; um destes era o Zala Morte, outro o padeirinho e o último o Rio Grande,
dirigidos pelo cretino João Cândido, vulgo Coronel Bahia,” presos, por crimes comuns, que serviam
como torturadores e “mesmo os protestos coletivos dos desterrados e as reações mínimas às
agressões recebidas, eram punidas com o auxílio de uma guarda armada com fuzil e baioneta”.44

2.5 O Manaus e o Baependi

Em 07/01/27, o navio Baependi retornaria de Clevelândia com os primeiros prisioneiros a


serem libertados. Em 03/01/27, o Manaus traria 72 presos para o Distrito Federal e em 17/02/27, mais
7. O que teria ocorrido aos quase mil prisioneiros enviados para lá? O Jornal Correio da Manhã, de
Edmundo Bitencourt e (diretor, também, de A Vanguarda), refere-se a eles como uma representação
“inesquecível dos crimes brutais da administração” que havia terminado.45 Ele foi preso com José
Eduardo de Macedo Soares e Paulo de Lacerda na Casa de Correção, indo, com este último, para a
Ilha Rasa.

Do Ministro da Marinha
Ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores.
Assunto: - Enfermidade de presos políticos.

43
DIAS, 1926: p.132-7, op. cit..
44
SAMIS, 2002: p. 192, op. cit..
45
Ibid, p. 114, 181-3 e 199.

1053
1 – Tenho a honra de transmitir a V. Exa. as inclusas partes dadas pelos
Primeiros Tenentes Médicos Drs. Geraldo de Amorim e Armando Pinto Fernandes
sobre o estado de saúde dos Drs. Edmundo Bittencourt e Paulo de Lacerda, quando
recolhidos à prisão de Ilha Rasa.
Alexandrino Faria de Alencar46

3. CONCLUSÃO

Na década de 20, centenas de militares e civis estiveram à mercê de governos, que se


utilizariam do estado de exceção para legitimar práticas punitivas, como as incontáveis prisões e a
tortura. Navios-prisões cederam seus porões a presos políticos e indivíduos sem culpa formada,
promovendo o encontro de militares e civis que possuíam em comum o fato de serem “indesejáveis
ao convívio social. Alguns serviram como navios-prisões, outros, levaram contingentes de infelizes,
a bordo, para prisões em ilhas litorâneas e oceânicas.
No caso dos operários, alguns foram expulsos do país, outros sucumbiram aos maus tratos e
às torturas nas prisões, navios-prisões e campos e ilhas de desterro, pois, o fato de serem civis impediu
que tivessem os mesmos recursos de defesa dos militares, da mesma forma que os praças, fazendo
com que a repressão tenha sido implacável contra eles, mas, ainda assim, militares e operários
lutavam, resistindo bravamente através da imprensa operária e das greves.
No caso dos militares, não obstante a repressão ter sido intensa, especialmente pelo fato de
haverem ocorrido revoltas militares com uso de artilharia e combatentes bem treinados, as lutas e as
conspirações militares se mantiveram, pois a repressão política teria colaborado para intensificar
alianças entre os revoltosos, contribuindo para o surgimento de novas insurreições. Tal situação vai
se configurando porque a repressão exercida sobre os militares que protagonizaram insurreições,
entre 1922 e 1930, fez com que vivenciassem incontáveis experiências no sistema prisional, nos
batalhões, navios, ilhas e campos de desterro. E essas situações, no limite entre vida e morte, entre
fugas e combates, exílio, doença, clausura e ausência familiar, entre outras adversidades, teriam
fortalecido os laços entre algumas lideranças, mantendo acesa a ideia de revolução, criando uma
identidade militar-revoltosa, que se manteve unida até a tomada do poder em 1930.

46
DIRETORIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. DPHDM. Relatório do
Ministro da Marinha, nº 4637 de 21/11/1924. Rio de Janeiro, mar. 2009.

1054
Isso significa dizer que o estado permanente de tensão, repressão e violência, deu origem a
uma gama de conspiradores e revolucionários profissionais, que viveram à margem do Estado durante
toda a Primeira República, lutando a partir das greves ou empreendendo a luta armada.
Trata-se de um período que demonstra que “a distância entre leis e práticas,” inegavelmente
está associada, no Brasil, a um “estado centralizador e burocratizado e uma sociedade marcada por
instituições e práticas que reforçam hierarquias sociais.”47 Esse estado primou pela manutenção de
práticas punitivas que impuseram àqueles que fizessem oposição ao governo, uma experiência terrível
e inaceitável. Foi um período, no qual, trabalhadores brasileiros, intelectuais, políticos e militares
revoltosos foram submetidos a toda sorte de arbitrariedades e à tortura, vivenciando dias
extremamente difíceis quanto aos seus destinos, quanto aos destinos do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FONTES CONSULTADAS:
DIRETORIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E DOCUMENTAÇÃO DA MARINHA. DPHDM
Relatório dos Ministros da Marinha: nº 2595, 07/1922;
Relatório dos Ministros da Marinha: nº 2975 de 28/06/1923;
Relatório dos Ministros da Marinha: nº 3002 de 15/07/1924;
Relatório dos Ministros da Marinha: s/nº de 21/071924; nº 4637 de 21/11/1924.
Avisos do Ministério da Marinha: n.º 2595, 10/07/1922; publicado na Ordem do Dia n.º 55, mesma
data;
Avisos do Ministério da Marinha: n.º 5688 de 06/12/1922, publicado na Ordem do Dia n.º 100 do
dia seguinte;
Avisos do Ministério da Marinha: n.º 2.975, de 28/06/1923.

APERJ. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Jornal O Combate, 31/10/1919.

BIBLIOGRAFIA:
ARAGÃO, I. L. Da caserna ao cárcere: uma identidade militar-rebelde construída nas prisões
(1922-1930). São Paulo: Paco Editorial, 2012.
______Revoltas militares no norte do Brasil no ano de 1924: o levante das forças do Exército
e da Marinha no Amazonas. 2009, 60 f. Monografia (graduação em Licenciatura plena em História).
Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). São
Gonçalo, 2009.

47
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Os Porões da República: A colônia Correcional de Dois Rios entre 1908 e 1930.
TOPOI, v. 7, n. 13, jul.- dez. 2006.

1055
______1924: A Revolução que começou em 1889. 2006. 385 f. Monografia (pós-graduação
em História do Brasil). Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). São Gonçalo, 2006.
CHEVALIER, Carlos. Memórias de um Revoltoso ou Legalista? 1922-1926. Rio de Janeiro:
Estabelecimento Graphico Nictheroy, 1925.
______ Os Dezoito do Forte. Rio de Janeiro: [s.n.], 1930.
DIAS, Everardo. Memórias de um Exilado. Episódios de uma deportação. São Paulo: s/n, 1920.
______ Bastilhas Modernas: 1924-1926. São Paulo: Obras Sociais e Literárias, 1926.
______ História das Lutas Sociais no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 2ª edição, 1977.
______Memórias de Um Exilado: episódios de uma deportação. São Paulo: [s.n.] 1920.
RODRIGUES, Fernando da Silva. Renovação e Revoltas: a Escola Militar do Realengo de 1918 A
1922. Disponível em <http://www.abed defesa.org/page4/page7/.../FernandoRodrigues.pdf >. Acesso em
01/10/2010.
SAMIS, Alexandre. Clevelândia. Anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil. São
Paulo: Imaginário, 2002.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Os Porões da República: A colônia Correcional de Dois
Rios entre 1908 e 1930. TOPOI, v. 7, n. 13, jul. 2006.
SILVA, Hélio. 1922. Sangue na Areia de Copacabana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1964.
SIQUEIRA, Deoclécio Lima de. Caminhada com Eduardo Gomes. Rio de Janeiro: Novas Direções,
1989.

1056
A decoração interna do palácio Nova Friburgo: as loucuras em “pedra e cal” do barão de
Nova Friburgo e as reapropriações monárquicas na nova casa da República

Isabella do Amaral Mendes 1

Resumo: Este trabalho apresenta investigação em curso acerca da decoração interna do Palácio Nova
Friburgo. O palácio foi construído entre os anos de 1858 e 1867 para ser a residência do português
Antonio Clemente Pinto, um dos mais prósperos fazendeiros do Império. Mais tarde, o palácio foi
inaugurado como sede e residência oficial da presidência da República em 24 de fevereiro de 1897.
A reforma para adaptar o edifício às novas funções procurou preservar e restaurar ao máximo o
aspecto e a decoração original do prédio, além de ter acrescentado símbolos republicanos aos
ambientes. A decoração apresenta a sobrevivência de quase todos os ornamentos remanescentes do
segundo reinado, mas, simultaneamente, tenta passar a ideia de superação com o passado a partir do
acréscimo de símbolos republicanos.

Palavras-chaves: Imagem. Memória. República.

Abstract: This article presents the current investigation about the internal decoration of the Nova
Friburgo Palace. The palace was built between the years 1858 and 1867 to be the residence of Antonio
Clemente Pinto, born in Portugal and one of the most prosperous farmers of the Brazilian Empire.
Later, the palace became the official residence of the presidency of the Republic on February 24,
1897. The transformations to adapt the building to the new functions preserved and restored as much
as possible of the original appearance and decoration of the building by adding Republican symbols
to the environments. The decoration presents the survival of almost all the remaining ornaments of
the second reign, but simultaneously tries to pass the idea of overcoming with the past from the
addition of republican symbols.

Key-words: Image. Memory. Republic.

1. Introdução

Nos primeiros anos do século XIX, os núcleos de ocupação da cidade do Rio de Janeiro
começaram a se expandir para o lado sul de seu território. Foi desta movimentação que se originaram
as regiões habitualmente conhecidas como Lapa, Glória e Catete, que até então eram uma grande
extensão de alagadiços e mato denso. O “caminho do Catete”, nome dado à abertura que se seguia
paralela ao curso do rio Carioca, mais tarde ficou conhecido como Estrada do Catete e,
posteriormente, como Rua do Catete. Foi neste local rodeado de pequenas chácaras – inclusive, o

1
Mestranda em História Social/ PPGHIS-UFRJ, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Orientadora: Prof. Dra. Andrea Casa Nova Maia (PPGHIS – UFRJ). Contato:
isabellamend@gmail.com.

1057
famoso Barão de Mauá possuía uma propriedade na região – e sobrados de arquitetura colonial, que
o português Antônio Clemente Pinto – o barão de Nova Friburgo -, em 1858, adquiriu a modesta casa
de número 159 da Rua do Catete. Após a demolição desta casa original, foi inaugurado o que seria
um dos mais icônicos edifícios da cidade: o palácio Nova Friburgo. Este palácio tornou-se símbolo
de luxo, riqueza e poder para a corte brasileira de meados do século XIX, período marcado pela
substituição dos antigos sobrados coloniais por palacetes urbanos.

O palácio Nova Friburgo. Foto: Marc Ferrez/ 1897.

Em 1896, alguns anos após a proclamação da República no Brasil, durante o mandato de


Prudente de Morais (1894-1898), o palácio Nova Friburgo foi escolhido para abrigar a sede do poder
executivo. A reforma para adaptá-lo às novas funções foi executada pelo engenheiro Aarão Reis de
Carvalho, que procurou restaurar e preservar ao máximo o aspecto e a decoração original do prédio.
Como resultado desta reforma, símbolos republicanos – aplicados durante a reforma de 1896 - e
imperiais – legados da época do barão-, passaram a conviver em harmonia neste mesmo espaço. Este
fenômeno iconográfico observado no interior do palácio Nova Friburgo trouxe à tona diversos
questionamentos sobre a autoria da idealização destes símbolos republicanos e a quem serviria ou
impactava esta decoração.
A partir do trabalho de Luciana Fagundes2, compreendemos que o passado não está dado,
tampouco se caracteriza como categoria imóvel ou imutável; o passado, assim como o presente e o
futuro, é uma construção transitória cujo sentido está em constante transformação, cabendo, assim,
uma relativização no tempo. Narrativas sobre o passado são construídas como uma representação do

2
FAGUNDES, Luciana Pessanha. Do Exílio ao Panteão: D. Pedro II e seu reinado sob o (s) olhar (es) republicano
(s). 2012. (Tese de doutoramento). Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC),
Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2012. P.42.

1058
presente; os indivíduos costumam lembrar de determinados acontecimentos por si só, entretanto, cada
memória individual se constitui a partir ponto de vista que integra a memória coletiva. Filtros e
seleções costumam ser utilizados quando nos remetemos à apropriação de uma determinada memória;
estes recursos expressam as multiplicidades da lembrança e a capacidade que a coletividade tem de
homogeneizar as representações individuais do passado, ou em outras palavras, acabam por construir
uma visão comum do passado. Os “usos políticos do passado”3 são expressões de memória coletiva,
há uma vontade política por trás do uso de determinado passado; as reinterpretações, usos e
sobrevivências do passado são incitadas pelas disputas do presente.
Este artigo é fruto de pesquisa de mestrado que se encontra em pleno andamento. Seus
resultados ainda são parciais. Não será possível apresentar conclusões, mas sim a sistematização de
resultados encontrados a partir da análise de uma multiplicidade de fontes primárias, além de
reflexões feitas a partir da interlocução com outros estudiosos sobre este tema.

2. O projeto arquitetônico do palácio Nova Friburgo

Português, da região de Ovelha de Marão, Santa Maria de Aboadela, nascido em 6 de janeiro


de 1795, Antônio Clemente Pinto chegou ao Brasil - junto de sua família - coincidentemente com a
iminente invasão4 francesa a Portugal no início do século XIX. Os passos iniciais deste personagem
em nossa historiografia são repletos de especulações e a documentação pouco esclarece sobre os
primeiros anos de sua vida em solo brasileiro. Muito provavelmente, de acordo com a pesquisa de
Leila Vilela Alegrio5, a família Clemente Pinto - e tantos outros portugueses oriundos do norte de
Portugal - chegou ao Brasil com o objetivo de melhorar de vida, escolhendo o comércio como
ocupação profissional inicial.
Antônio Clemente Pinto prosperou com rapidez, mas por meios desconhecidos6; construiu
um patrimônio composto por quinze fazendas, localizadas nos municípios de Cantagalo, São Fidélis

3
FAGUNDES, Luciana Pessanha. Op. Cit., P.42.
4
Segundo Leila Vilela Alegrio, a pesquisa feita na documentação referente aos passaportes de entrada de
estrangeiros no Brasil – localizadas no Arquivo Nacional – não detectou a entrada de nenhum membro da família
Clemente Pinto entre os anos de 1808 e 1815, o que, segundo a autora, sustenta a hipótese de que tenham chegado antes
desse período.
5
ALEGRIO, Leila Vilela. Os Clemente Pinto Importantes Cafeicultores do Sertão do Leste Fluminense. Rio de
Janeiro: Letra Capital, 2015.
6
A pesquisa para a dissertação nos revelou que Antonio Clemente Pinto foi um grande comerciante de escravos.
Entre 1827 e 1830, recebeu mais de 2.000 cativos vindos do continente africano, além de ter se envolvido no recrutamento
ilegal de trabalhadores livres portugueses, sendo o responsável por uma movimentação conhecida como “escravidão
branca”.

1059
e Nova Friburgo, além de cerca de dois mil escravos e dez edifícios na capital. O relato de J.J. Von
Tschudi acrescenta sobre nosso protagonista,

Trabalhava como moço de recados numa das lojas do Rio de Janeiro, quando, por
um feliz acaso, caiu nas graças de um rico fazendeiro, que se tornou seu protetor e o
ajudou a estabelecer-se por conta própria. A boa sorte o acompanhou em todos os
seus empreendimentos. Especulações bem-sucedidas na compra e venda de escravos
e outros negócios, tornaram-no homem de fazenda e homem abastado.7

Conforme indicado na pesquisa de Cicero Antônio F. de Almeida8, o rico fazendeiro – citado


como protetor de Antônio Clemente Pinto e apresentado no relato de Tschudi – era o barão de Ubá:
“fizera fortuna protegido pelo barão de Ubá, a quem prestara socorro num desastre”.9
Já reconhecido como importante comerciante cafeicultor, foi um dos responsáveis pelo
desenvolvimento da região serrana fluminense, viabilizado após a construção da estrada de ferro do
Cantagalo, iniciativa que possibilitou o descongestionamento do fluxo das safras de café na região.
Antonio Clemente Pinto recebeu, em março de 1854, o título10 de barão das mãos do Imperador,
sendo elevado posteriormente, em 1860, a barão com grandeza.
Com o objetivo de afirmar todo seu grandioso poder econômico perante a aristocracia urbana
da capital, o barão de Nova Friburgo iniciou a construção do palácio Nova Friburgo – de acordo com
a documentação presente no Arquivo Histórico do Museu da República – em maio de 1858, confiando
o projeto arquitetônico aos talentos do engenheiro prussiano Gustav Waehneldt11.

7
TSCHUDI, Johan Jakob von. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1980, p. 83.
8
ALMEIDA. Cicero Antônio Fonseca de. Catete: memórias de um palácio. Rio de Janeiro: Museu da República,
1994, p.14
9
GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965, p. 342.
10
A partir do reinado de D. Pedro II, formou-se aquilo que pode ser entendido como uma corte dos trópicos. Nela,
os títulos e brasões nobiliárquicos passaram a ser sinônimo de absoluta ostentação; um titular poderia, inclusive, receber
mais de um título ao longo de sua vida. Se por um lado os títulos eram concedidos à posteriori de momentos especiais –
“aniversário de S.M. Imperial”, “dia da sagração e coroação de S.M.I” etc. -, outros eram distribuídos por motivos de
“patriotismo”, “por fidelidade e adesão a S.M.I” e “serviços prestados”. Na prática, a nobreza brasileira era composta por
uma elite selecionada com base no mérito ou projeção, não necessariamente possuidora de privilégios e bens materiais,
ou seja, comerciantes, professores, médicos, militares, fazendeiros, advogados e tantos outros se faziam representar como
superiores por meio de seus próprios brasões. Apesar desta elasticidade na nobreza brasileira, outras hierarquias vingaram
para que se demarcasse um estrato social ainda mais privilegiado. Enquanto todos poderiam se intitular “nobres”, apenas
alguns eram realmente vistos como grandes dentro do Império. Estes eram justamente aqueles que recebiam o diferencial
“com grandeza” atrelados aos seus títulos.
11
O arquiteto Waehneldt nasceu em 1830 na Prússia. Desembarcou no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em
1852 e permaneceu até 1870. Além de assinar o projeto para o Palácio Nova Friburgo, foi vencedor do concurso para o
Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 1859 – obra que acabou não sendo executada – e autor de modificações arquitetônicas
na igreja da Candelária. Para mais: ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de. Op. Cit., p.21.

1060
Barão e baronesa de Nova Friburgo, óleo sobre tela de Emil
Bauch, c.1867. Acervo do IHGB, cedido por empréstimo ao
Museu da República, onde encontra-se em exposição permanente.
Foto: Museu da República.
O palácio Nova Friburgo foi inspirado nos primeiros palácios urbanos da cidade de Florença
e nos palácios à beira do Grande Canal de Veneza. Este premiado 12 projeto apresentou algumas
soluções típicas da arquitetura italiana, como o Cortille, um pátio interno, localizado no hall de
entrada do edifício, onde encontramos a majestosa escadaria principal. O palácio Nova Friburgo conta
com três pavimentos: O primeiro é destinado aos serviços gerais e primeiras recepções mais
informais; o segundo, conhecido por “piso nobre”, era o mais luxuoso, colorido e exuberante dos
demais, destinado aos bailes e outros eventos sociais de grande visibilidade, e o terceiro era destinado
à intimidade da família Nova Friburgo, onde estavam abrigados os dormitórios. Ao todo, o palácio
conta com 35 espaços entre saletas e salões, fora os corredores e outros espaços de circulação. O
destaque decorativo fica a cargo dos ornamentos em estuque de alto relevo, que apresentam
acabamento muito apurado, riqueza de motivos e detalhes. O palácio todo foi munido com o que
havia de mais refinado: mobílias importadas da França, espelhos de cristal e grandes candelabros de
bronze.

12
Em 1860, o grandioso projeto arquitetônico do palácio Nova Friburgo foi premiado com a medalha de prata
durante a Exposição Geral de Belas Artes, um importante reconhecimento de todo o investimento feito pelo barão para
transformar seu palácio urbano em mais um símbolo de seu enorme poder.

1061
O Cortille e a escadaria principal. Foto: Museu da República.

Após oito anos de investimento caprichoso na construção de mais uma sede de sua riqueza,
em julho de 1866, o barão e a baronesa de Nova Friburgo – juntos de seus dois filhos, os futuros
conde de São Clemente e conde de Nova Friburgo – se mudaram para o palácio. As escolhas luxuosas
feitas para a composição do projeto arquitetônico e decorativo do palácio não foram acaso. A intenção
jamais fora de demonstrar austeridade ou simplicidade. Carl von Koseritz se referiu à residência em
suas notas de viagem: “Um Nova Friburgo (rico plantador de café) constrói para si um palácio por
8.000 contos, verdadeiro palácio de fadas, e dom Pedro II vive num par de casas velhas” 13 . O
investimento para marcar a memória arquitetônica e urbana da cidade do Rio de Janeiro está
diretamente ligado às mudanças nos hábitos e gostos da elite urbana do segundo reinado.
A partir de meados do século XIX, a elite agrária do Brasil – enriquecida devido ao ápice das
exportações de café - passou a adotar, então, costumes tipicamente franceses. O apelo por estes
costumes passava pelo uso de expressões verbais, etiqueta social e moda, mas também pelo consumo
de artigos de decoração e luxo característico da França. O padrão de civilização ideal era aquele
oriundo da Europa, então, almejando adquirir esta civilité, as novas exigências de higiene, conforto e
bem-estar teriam que ser aplicadas.
A busca pela europeização dos costumes se refletiu diretamente sobre a arquitetura,
especialmente no que dizia respeito à decoração de interiores e linguagem estética que deveria ser

13
KOSERITZ, Carl von. Imagens do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1980, p. 43.

1062
adotada a partir de então. Outrora, a representação das posses da elite brasileira não era equivalente
ao padrão europeu pois não havia a preocupação com ostentação. A imagem que era compreendida
pelos observadores vindos da Europa era a de precariedade, como podemos analisar a partir do relato
de viagem de Johann Moritz Rugendas:

Julgando-o apenas pelo interior de sua residência, pelas suas vestimentas e pela sua
alimentação, o europeu teria dificuldade em acreditar que a maioria desses colonos
é abastada e que muitos deles são mesmo ricos. (...) os móveis se reduzem,
comumente, a grandes baús nos quais se guardam as vestimentas e as roupas e que
servem ainda, muitas vezes, de assento ou de leito. Há, também, grandes mesas. E
somente num dos quartos laterais se encontram, assim mesmo raramente, móveis
mais elegantes, espelhos etc.14
Então, para alterar esta visão, as grandes casas de feição colonial passaram a ser substituídas
pela construção de palacetes urbanos. A transformação dos hábitos sociais da elite foram a principal
responsável pela alteração e ampliação dos projetos arquitetônicos. Os programas passaram a aplicar
um ambiente para uma determinada função: sala de fumo, de jogos, de refeições, de bailes, de leitura,
de música e assim por diante. A família e a casa se tornaram o fundamento da nova ordem. Os
cômodos das residências abastadas a partir de então passaram a ser especializados, ou seja, cada
aspecto da vida íntima deveria se desenvolver em um espaço próprio, evitando assim uma
sobreposição de funções.
Outro aspecto dos programas arquitetônicos que sofreu alteração foi a decoração de
interiores, que assumiu papel principal para esta nova vida doméstica da elite brasileira. As paredes
receberam novas coberturas com detalhes e texturas, os tetos foram recobertos com trabalhos
delicados em estuque, arabescos, pinturas e a quantidade de móveis nos ambientes se multiplicou. Os
novos interiores contribuíram para construir a imagem civilizatória do jovem império brasileiro a
partir da ostentação.
As artes decorativas passaram a ocupar um novo lugar de destaque nos debates artísticos como
uma forma de aprimoramento do estado de civilização das nações. A importância desta elite de estar
cercada por grande variedade de obras de arte – e que estas representassem uma grande variedade de
culturas e períodos históricos – satisfazia a necessidade de se transmitir uma imagem do proprietário
da casa e da família como pessoas eruditas e cultas.
Em suma, toda esta alteração de costumes e gostos não poderia deixar de influenciar o barão
de Nova Friburgo ao pensar no programa de sua nova residência urbana. O palácio Nova Friburgo,
então, acabou se destacando entre os demais palacetes da cidade do Rio de Janeiro; podemos citar

14
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. p.113-114;
apud. MALTA, Marize; MENDONÇA, Isabel M. G. (Org.). Casas senhoriais Rio-Lisboa e seus interiores. Rio de
Janeiro: EBA-UFRJ; Lisboa: IHA-FSCH-UNL, 2013-2014, p.128.

1063
exemplos arquitetônicos coetâneos como a antiga casa do barão de Lagoa – atual Fundação Casa de
Ruy Barbosa – e o palácio do Itamaraty, antiga residência do conde de Itamaraty.
Mesmo após todo este grande investimento, o barão de Nova Friburgo usufruiu por muito
pouco tempo de seu majestoso palácio, já que se mudou para o local em 1 de julho de 1866 e faleceu
em 4 de outubro de 1869, deixando o prédio de herança ao seu primogênito, o conde de São
Clemente15. Em 1889, o imóvel encontrava-se completamente desocupado16. Foi então que o Conde
de São Clemente resolveu vende-lo à Companhia do Grande Hotel Internacional, que pretendia
transformá-lo em um hotel de grande porte.
Esta ideia, entretanto, fracassou, e para sanar as dívidas da companhia, o Conselheiro
Francisco de Paula Mayrink, um de seus acionistas, adquiriu a totalidade das ações, tornando-se o
mais novo proprietário do palácio. Envolvido em circunstâncias financeiras desfavoráveis – afinal,
os primeiros anos da República foram marcados por grave crise econômica -, Mayrink foi obrigado
a hipotecar o palácio Nova Friburgo, em 1895, como condição para adquirir um empréstimo. Após
quitar este empréstimo, Mayrink precisou recorrer a uma nova hipoteca como garantia de crédito com
o Banco da República do Brasil. Em 31 de março de 1896, ambas as partes fizeram um acordo de
distrato da hipoteca, o que significou a venda do palácio Nova Friburgo à Fazenda Federal por uma
quantia de 3 mil contos de réis. Neste mesmo dia, após lavrada a escritura que transferia a propriedade
ao Governo Federal, o palácio Nova Friburgo passou oficialmente a ser considerado como patrimônio
da União.

3. De Nova Friburgo ao Catete: o palácio como a nova casa da República

Imediatamente após a proclamação da República, em novembro de 1889, o governo


provisório, encabeçado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, adquiriu o palácio do Itamaraty 17 ,
localizado no centro da capital, para servir como a nova sede e residência do poder executivo.
Inicialmente, foi cogitada a possibilidade de estabelecerem o Paço Imperial como sede, porém, esta
escolha poderia ser problemática porque o edifício era “impregnado de tradição monárquica aos olhos

15
Antônio Clemente Pinto Filho (1830 – 1898).
16
O Conde de São Clemente decidira fixar residência em Cantagalo ao invés da capital.
17
Antiga propriedade do Conde de Itamaraty no Rio de Janeiro, o palácio oitocentista – atualmente localizado na
movimentada avenida Marechal Floriano – foi projetado por José Maria Jacinto Rabello, discípulo do arquiteto Grandjean
de Montigny, responsável por implantar o estilo neoclássico na corte brasileira. Conhecido como “palácio da rua larga”
– pois era localizado na Rua Larga de São Joaquim -, ficou pronto em 1854 e era utilizado pelo Conde e sua família
apenas como espaço para oferecer grandes festas.

1064
do povo”18 por ter sido a residência oficial dos antigos imperadores. O Marechal Deodoro utilizou o
Itamaraty também como residência oficial, reservando parte de seus cômodos para tal. Já seu
sucessor, o presidente Floriano Peixoto, utilizou o palácio apenas para os despachos. Durante o
mandato de Prudente de Morais (1894 – 1898), primeiro presidente eleito pelo voto direto, decidiu-
se pela necessidade de transferir o poder executivo para um novo local. Sobre esta decisão,
aprofundaremos mais à frente.
A estreia de Prudente de Morais – representante das oligarquias cafeeiras paulistas - na
presidência da jovem República brasileira se deu em meio a grave crise econômica e grandes conflitos
nacionais, como a Guerra de Canudos, na Bahia, e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul -
esta se desenrolava desde o governo de Floriano Peixoto, seu antecessor -. Além destes, Prudente
enfrentou um cenário político conflituoso, envolvendo as divergências de interesses entre as duas
principais alas republicanas: os radicais florianistas e a oligarquia cafeeira, da qual era representante.
Isabel Lustosa19 afirma que Prudente, ao organizar seu novo ministério, procurou fazê-lo de forma a
estabelecer uma relação de conciliação com seus opositores, inclusive, ainda segundo a historiadora,
mesmo na pessoa de seu vice-presidente, Manuel Vitorino, ele encontrou um ardiloso opositor.
Durante todo o mandato, o relacionamento entre Prudente de Morais e Manuel Vitorino foi
constantemente tenso. Esta relação conflituosa se acirrou após Prudente se licenciar do cargo, em
novembro de 1896, por motivos de saúde – os sucessivos problemas de saúde do presidente, inclusive,
estavam diretamente relacionados às crises enfrentadas nos primeiros anos de seu governo e
motivaram diversas anedotas por parte da imprensa nacional, que abordavam o tema com frequência
-, sendo substituído interinamente por Manuel Vitorino.
A historiografia trabalha com a afirmação de que, durante o período de interinidade, Vitorino
planejou tomar o poder, assim, procurou fazer com que seu período de governo fosse capaz de defini-
lo como legítimo senhor do cargo, “remodelou o ministério e transferiu a presidência, a 24 de
fevereiro de 1897, do Itamaraty, para o Palácio do Catete”.20
Apesar de ter estado à frente da inauguração do palácio do Catete como sede do governo
republicano, o evento da transferência de edifícios configura-se em mais uma polêmica envolvendo
Prudente de Morais e Manuel Vitorino.
Prudente de Morais se encontrava em exercício, tanto quando o antigo palácio Nova Friburgo
foi comprado pela União, quanto quando as obras de adaptação do edifício para as novas funções
começaram. Porém, não é incomum encontrarmos manifestações que indicam Manuel Vitorino como

18
Jornal do Commercio, Sem Título. Rio de Janeiro, 20 Fev. 1897.
19
LUSTOSA, Isabel. História de presidentes – A República no Catete. Rio de Janeiro: Vozes / Fundação Casa de
Rui Barbosa, 1989, p. 17.
20
LUSTOSA, Isabel. Op. Cit., p. 20.

1065
o único responsável pela decisão de transferir a sede do Itamaraty para o palácio do Catete. Esta
informação foi localizada na carta de Durval Moreira da Silva Lima, sobrinho de Manuel Vitorino,
ao chefe do Museu Histórico e Diplomático datada de 25 de julho de 1979,
Nesse período (presidência em exercício), entre outras importantes realizações, cabe
ressaltar a concernente ao seu firme e deliberado propósito de dar ao poder executivo
uma sede própria e condigna, o que, até então, não possuía (...) E por não se
conformar em absoluto com esta situação (...) ainda vigente, tratou de dar, na sua
gestão, uma solução à altura do que o assunto, ao meu ver, estava a exigir, a despeito
de forte campanha contrária (...) entre outras a do presidente licenciado.21

Cícero Antônio esclarece que, quando do início do mandato interino de Manuel Vitorino, o
palácio do Catete já se encontrava em reforma para abrigar a presidência. O próprio Manuel Vitorino,
apesar das rixas políticas, confirmou em carta – endereçada ao engenheiro responsável pelas obras
no Catete -, a decisão de Prudente de Morais em reformar o palácio:
Senhor Aarão Reis,
Agradeço-vos o zelo e a inteligência com que vos desempenhastes, por determinação
da Diretoria do Banco da República, do encargo de restaurar e preparar o antigo
palacete Friburgo, adaptando-o à residência presidencial e palácio do governo. A
soma de esforços que empregastes e o empenho que revelastes ter em dotar o antigo
edifício dos melhoramentos que ele adquiriu sob vossa hábil direção merecem
encômios que eu tenho a satisfação de externar, e que desejo que aceiteis em meu
nome, como estou certo creio recebe-los do senhor presidente, por ordem de quem
foram aludidos os melhoramentos.22

Porém, nos deparamos com uma informação que pouco foi trabalhada pela historiografia. Em
28 de agosto de 1895, o deputado José Carlos de Carvalho sugeriu uma emenda ao orçamento previsto
para o ano de 1896 que viabilizasse especificamente a compra do palácio Nova Friburgo para alocar
a sede e residência da presidência. Esta emenda foi justificada em plenário:
O Itamaraty, ao meu ver, não é casa que se deva dar ao chefe da nação para morada.
É um casarão, dizem, mas sem conforto algum, sem distinção: imprestável para
morada de família. Não terei dúvida em oferecer uma indicação no orçamento da
fazenda, para que se faça a aquisição do palácio Friburgo para residência do
presidente da República e o aproveitamento do Itamaraty para qualquer repartição
pública que careça mudar de casa23

O Banco da República havia feito alguns empréstimos de valores ao Tesouro Nacional,


provavelmente 24 por conta de os primeiros anos do governo de Prudente de Morais terem sido

21
LIMA, Durval Moreira da Silva. [Carta], 25 de julho de 1979, Rio de Janeiro, [para] EWBANK, Luiz Antônio
Macedo. Museu Histórico e Diplomático do Itamaraty. 2 folhas.
22
PEREIRA, Manuel Vitorino. [Carta], 25 de fevereiro de 1897, Capital Federal [para] CARVALHO, Aarão Reis.
Rio de Janeiro. 1 folha.
23
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1895.
24
Por se tratar de uma informação ainda em caráter preliminar, esta pesquisa ainda não conseguiu identificar outros
possíveis motivos que expliquem com maior precisão a necessidade que o Banco da República teve para pedir os
empréstimos.

1066
marcados por grave crise econômica e social, e como forma de pagamento, foi sugerido que este
adquirisse terremos e imóveis na capital federal para que repartições do governo fossem realocadas.
Ao adquirir o palácio Nova Friburgo como parte deste pagamento, coube ao Banco da República a
tarefa de reforma-lo para adaptá-lo às novas funções. A historiografia sobre o palácio costuma tratar
a requisição desta reforma como um pedido feito pelo governo, mas na realidade, a reforma do
edifício era uma das exigências feitas neste acordo de pagamento.

Esfera Armilar – símbolo imperial.


Foto: Isabella Mendes

A reforma do palácio ficou sob a responsabilidade do arquiteto paraense Aarão Reis de


Carvalho – famoso por ter sido um dos idealizadores do projeto de construção da capital Belo
Horizonte -, que, pouco se menciona, era o diretor do Banco da República naquele momento. Aarão
Reis de Carvalho procurou restaurar e preservar ao máximo o aspecto da decoração original do prédio
- além de ter reutilizado o mobiliário adquirido pelo barão - apenas substituindo ornamentações
quando fosse impossível executar sua restauração patrimonial25.

As Armas da República – em estuque – aplicadas à decoração


original do salão nobre. Foto: Isabella Mendes.

25
ALMEIDA, Cícero Antônio F. Op. Cit.,1994, p.45.

1067
A problematização de nossa pesquisa é explicitada neste momento, pois em quase todas as
salas do segundo pavimento do edifício, novos símbolos republicanos – elaborados e aplicados nos
ambientes com a intenção de representar o novo regime - passaram a conviver em harmonia com os
símbolos imperiais remanescentes a época da construção do palácio, oriundos de um tempo em que
se havia a necessidade de representar e legitimar o imperador e o próprio barão de Nova Friburgo.
Inicialmente, cogitou-se a possibilidade desta manutenção do aspecto original da decoração ter sido
uma estratégia, por parte do Banco da República, de se fazer economias com a reforma, porém, de
acordo com um trecho de reportagem do jornal A Notícia, de setembro de 1896, encontramos o
indicativo de que provavelmente não houve esta intenção:

Felizmente, os reparos e consertos do palácio estão entregues à competência do


doutor Aarão Reis, que não é homem para economias ridículas, quando se trata de
dotar a República com um palácio digno de nele residir o chefe da nação.26

Este fenômeno observado no interior do palácio Nova Friburgo abriu espaço, nesta pesquisa,
para a interpretação sobre uma nova apropriação dos símbolos, ornamentos decorativos e estética,
legados da época do Império, pelos republicanos. Também trouxe à tona diversos questionamentos
sobre o caráter da instituição republicana no Brasil, tais como as peculiaridades de seu advento, e as
reapropriações de diversos elementos estéticos e imagéticos do passado político do país. Por último,
é importante nos debruçarmos sobre os detalhes em relação à autoria da decisão de transferir a sede
do Itamaraty para o Catete, pois é uma equação ainda com incógnitas, principalmente em relação à
motivação para a ação. O personagem Aarão Reis de Carvalho e sua atuação na reforma do palácio
não podem deixar de ser questionados. Tomamos como eixo de investigação em nosso trabalho a
possibilidade destes símbolos republicanos aplicados na decoração do palácio Nova Friburgo terem
sido idealizados por Aarão Reis de Carvalho, já que se tratava de um engenheiro republicano e
positivista. São respostas que, espera-se, serão alcançadas com o avançar desta pesquisa.
Inicialmente, a propaganda republicana trouxe à tona, com o intuito de fortalecer seus
argumentos políticos, a assertiva de que a República significava progresso, ao passo que a monarquia
era considerada como atraso. A temporalidade desta construção é bastante simples: o presente é
representado pela crise do regime monárquico, o futuro é orientado pelo desejo de progresso e
desenvolvimento social e, finalmente, o passado é filtrado pelos interesses do presente, tornando-se
objeto de sua constante crítica. A apropriação de tradições e a leitura seletiva do passado estão

26
A Notícia, Rio de Janeiro, 29 Set.1896.

1068
diretamente ligadas às intenções de um determinado presente. A geração de 187027 - mais conhecida
como o Partido Republicano da Cidade do Rio de Janeiro - não elaborava seus projetos de futuro sem
“inventar” um passado que os legitimasse. Nesse sentido, este grupo procurou reconstruir a história
brasileira por meio do diálogo com o mundo político e cultural da época do Império, justamente a
tradição com a qual, em teoria, desejavam superar.
Esta movimentação contraditória é explicada por Fernando Catroga a partir da relação entre
republicanismo e historicismo,

[...] o republicanismo se baseou numa concepção evolucionista, ou melhor, foi, a seu


modo, um historicismo que, herdeiro da tradição iluminista (Condorcet), entendeu o
tempo numa perspectiva cumulativa, linear e irreversível, fazendo a perfectibilidade
humana e a ideia de progresso aos seus verdadeiros suportes.28

Justamente deste caráter historicista ocorre a necessidade de “refigurar”29 o passado, com o


objetivo de demonstrar que o republicanismo tem uma tradição à qual se filiar. Esta movimentação é
aquela que, acreditava-se, trazia a legitimidade do movimento republicano perante a sociedade:
Dessa forma, mantinha-se um diálogo com a tradição imperial, quer através de uma
crítica mais ou menos radical a alguns de seus traços, quer com a preservação de
outros, como o elitismo do Império, pois todos os grupos se colocavam contra uma
reforma via revolução.30

A partir deste direcionamento interpretativo, o cenário simbólico e estético aplicado à


decoração do palácio Nova Friburgo, a partir de 1896, dilui-se ao longo de sua exposição,
solidificando em “pedra e cal”31 um belo exemplo dos valores republicanos elitistas, estabelecidos a
partir da proclamação, e intensificados com o início do governo de Prudente de Morais, primeiro
presidente eleito por meio do voto. Abre espaço também para, por meio das imagens encontradas
nesta decoração, ser feita uma leitura das questões políticas daquele presente, afinal, o republicanismo
construiu sua própria tradição ao incorporar elementos do passado monárquico - principalmente o seu

27
Cisão do Partido Liberal que em 3 de novembro de 1870 formou o Partido Republicano, além de outros
movimentos, como a mocidade da Escola Militar e da Faculdade de Direito da cidade do Rio de Janeiro. Movimento
complexo e que não se restringia apenas ao Partido Republicano.
28
CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de outubro de 1910. V. II. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1991.p. 195. Apud. FAGUNDES, Luciana Pessanha. Op. Cit., P. 36.
29
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
30
FAGUNDES, Luciana Pessanha. Do Exílio ao Panteão: D. Pedro II e seu reinado sob o (s) olhar (es)
republicano (s). [Tese de Doutorado em História, Política e Bens Culturais]; Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil – CPDOC, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2012. P.36.
31
A expressão “pedra e cal” refere-se a um fato que perpassa as gerações da família Nova Friburgo e é afirmado
pelo trineto do barão, o senhor Harold de Nova Friburgo. Segundo consta na biografia da família, durante a construção
do palácio, um importante amigo do barão o chamou de “louco” por ter decidido investir tanto dinheiro e trabalho na
construção de um imenso palácio em uma região tomada pelo mato e que dificilmente o retornaria algum lucro. A sapiente
resposta do barão teria sido “as minhas loucuras eu as faço de pedra e cal”.

1069
elitismo – o que poderia ser uma explicação para a necessidade da manutenção desta decoração tão
suntuosa em sua residência oficial.
Outro indício para esta interpretação acerca da reapropriação do elitismo do Império como
estratégia de legitimação do governo republicano pode ser encontrado na obra “Alegoria República”.
Encomendada pelo novo presidente, Alegoria da República foi pintada em Paris pelo artista baiano
Manuel Lopes Rodrigues em 1896. Nesta obra, podemos perceber que a figura da Marienne –
personificação da República - foi representada sentada em um trono; ao mesmo tempo em que veste
branco, a cor da paz, e apresenta expressão facial serena; sua mão direita repousa sob uma espada,
símbolo de força, dando a impressão de poder usá-la caso seja necessário.

Há dois elementos que remetem ao passado monárquico nesta alegoria republicana: o trono e
o manto sob os ombros da Marienne. Normalmente, os mantos reais eram confeccionados em veludo,
material não representado pelo artista neste exemplo, porém, o trono não foge à insígnia de
representação da realeza, principalmente este, que apresenta a figura da serpe 32 em seu apoio, o
principal símbolo da dinastia dos Bragança. Visto sob este ponto de vista, a República estaria sentada
no trono ocupado outrora pela monarquia, assumindo o seu próprio lugar de direito e prestígio.
No campo das artes visuais, a representação de ideias está diretamente ligada a um vínculo
entre o artista e o observador da obra. A pintura, enquanto representação da República, não está
inscrita em nenhuma finalidade didática, sendo neste sentido em que reside sua força enquanto
veiculadora do campo simbólico: ela carrega significados que foram construídos socialmente e
historicamente, passando a fazer parte do senso comum e do imaginário coletivo.

32
A serpe é um réptil alado, semelhante a um dragão e muito presente na heráldica medieval – a figura apresenta
duas patas dianteiras e, no lugar das traseiras, apresenta asas, sendo um híbrido entre dragão e ave.

1070
Em suma, a Alegoria da República é a imagem que o regime republicano de 1896 fez de si
próprio, uma espécie de autorretrato de suas aspirações políticas, uma metáfora de sua atuação.
Entretanto, o quadro de Manuel Rodrigues não obteve o alcance esperado de uma obra de arte que se
destinava ao público, desta forma, não produziu legitimidade social. As imagens só conseguem ser
lidas em determinada época, pois cada “agora” determina sua própria cognoscibilidade.
O palácio Nova Friburgo, ao longo de mais de meio século, foi palco dos principais
acontecimentos políticos de nossa República, tendo abrigado em suas dependências mais de dezoito
presidentes do país. Também foi testemunha de grandes articulações políticas e econômicas, além de
ter sido palco de diversas manifestações cívicas trabalhistas e nacionalistas. O fato do palácio ter sido
construído à beira da rua do Catete ao invés da beira do mar – há uma lenda que explica esta solução
como desejo da baronesa do Nova Friburgo, mas sem comprovação documental – facilitou a interação
da população com a vida política republicana, ainda que tenha causado alguns embaraços 33 aos
presidentes. Desde 1960, enquanto Museu da República, apresenta a seus visitantes a representação
mais sofisticada desta herança histórica da aristocracia cafeicultora do Império brasileiro. O luxo e
exuberância decorativa de seus três pavimentos despertam o encantamento dos visitantes que
percorrem diariamente suas salas de exposição, tornando-se inegável a importância deste acervo e
desta decoração interna para a cultura brasileira.

Referências Bibliográficas:
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República, 1994.
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Brasileira de Museus e Museologia. V.5, p.194-209, 2012.

_________. Os museus e o projeto republicano brasileiro. Revista Brasileira de História da Ciência,


v.5, suplemento, p. 72-79, 2012.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Edições 70, 2011.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru: Edusc, 2004.

33
Prudente de Morais sofreu um atentado contra sua vida, facilitado pelo fato da janela dos aposentos presidenciais,
à época, ser voltada para o lado da rua. De acordo com Isabel Lustosa, a ideia dos assassinos era alvejar o presidente pela
manhã, quando este se postasse à janela do palacete para fumar um cigarro. Fonte: ALMEIDA, Cícero Antônio F. de.
Catete: Memórias de um Palácio. Rio de Janeiro: Museu da República, 1994. P.50.

1071
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas O Imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados O Rio de Janeiro e a República que não foi. São
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FAGUNDES, Luciana Pessanha. Do Exílio ao Panteão: D. Pedro II e seu reinado sob o (s) olhar (es)
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LEMOS, Renato Luis do Couto Neto e. A alternativa republicana e o fim da monarquia. In:
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RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

TSCHUDI, Johan Jakob von. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1980.

1072
DIVA, FLORESCÊNCIA ANIMADA: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA OBRA DE
JOSÉ DE ALENCAR.

Isadora de Melo Costa1

Resumo: O presente trabalho pretende realizar uma breve análise da obra Diva (1864), de José de
Alencar, a partir dos debates existentes na segunda metade do século XIX acerca da redefinição do
papel feminino e do ecoar de discursos de emancipação da mulher. Na referida obra, José de Alencar
utiliza adjetivações que nos levam a pensar a mulher como uma flor animada, explicitando a ideia de
beleza, delicadeza e elegância como uma representação comum do ser feminino. A personagem
Emília, porém, é exposta, na obra, como rebelde, namoradeira e de um olhar perspicaz ao que o autor
chama de as ilusões douradas: a leitura feminina. Dessa forma, visa-se problematizar representações
acerca da mulher na segunda metade do XIX, que usualmente coloca-se como quase natural do
comportamento feminino, mas compreendê-lo a partir de seu contexto de debates e distintas visões e
relações de poder que o estudo dos impressos nos possibilita adentrar, nos possibilitando assim,
contemplar a visão de Alencar acerca desses debates que se assolavam em seu contexto produtor.

Palavras-chaves: Representação – leitura feminina – vozes femininas– emancipação feminina.

Introdução:

No século XIX, as relações entre literatura e história não eram tão distintas como nos dias
hoje, embora o debate acerca dessa temática ainda vigore. História, Imprensa e Literatura formavam-
se à medida que se misturavam nos textos impressos e mesmo nos manuscritos, variando os interesses
e visões daqueles que os produziam e tentavam, por vezes, distingui-los. Em 1864, enquanto ainda
era deputado na cidade do Rio de Janeiro, o cearense José Martiniano de Alencar inseriu-se nesse
quadro, com mais um trabalho impresso, a obra literária Diva. O livro retrata as experiências de um
grupo de personagens que convive na sociedade fluminense do século XIX, mais especificamente no
ano de 1855. Além de Diva (1864), José de Alencar (1829-1877) escreveu muitas outras obras que,
de modo geral, se voltavam para constituição da figura indígena como Iracema; As minas de prata
(1864 e 1865) e O tronco do Ipê (1871), e nos “perfis de mulher” da sociedade fluminense, como
Lucíola (1862), A Viuvinha (1857), Senhora (1875) e outros. Assim, além de retratar a cidade, as
obras de Alencar eram vastas e bem diversas, voltando-se para uma ampla descrição do litoral e do
sertão, a cidade e o campo, o presente e o passado, além do branco e o índio. Desse modo, além de

1
Graduanda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Vinculada ao projeto “Entre a Política e as Belas Letras: as
linguagens dos impressos no Brasil, 1ª metade do oitocentos”, financiado pelo CNPQ. Orientanda da Professora Dra. Lucia Maria
Bastos Pereira das Neves. E-mail: isadoramc95@gmail.com.

1073
político e advogado, Alencar pode ser considerado um literato, ou, como era considerado à época, um
jornalista, um publicista.
Há muito se discutem as relações e distinções sobre a História e a Literatura, quais os
pressupostos que o historiador deve apresentar para a utilização da obra literária como fonte histórica
e até mesmo se a escrita da história pode ser considerada em sua totalidade uma narrativa literária
como nos sugere Hayden White, “quem levou mais longe esse movimento de diluição das fronteiras”
entre a literatura e a história (FERREIRA; 2006,77).
Diferentemente da década de 1960, hoje percebemos que os pressupostos de análise dos
discursos somente pelo meio quantitativo da linguística tornaram-se obsoletos para a crítica dos
discursos e imagens que a elas se somam. As novas contribuições da História Cultural e da Nova
História Política nos mostraram um novo terreno de análise metodológica que muito contribui para
a compreensão do passado. De modo sucinto, esses novos pressupostos teóricos nos permitem estudar
o político de forma mais ampla, compreendendo a esfera política não somente destinada aos grandes
fatos, feitos e líderes, mas apresentando agentes sociais, uma vez que a política não se limita as
decisões de um único homem, mas antes, promove diferentes atores políticos que de distintas formas
desempenham seu papel na sociedade (REMOND; 1996). Nas palavras de René Remond:

(...) a história política (...) aprendeu que, se o político tem características próprias
que tornam inoperante toda análise reducionista, ele também tem relações com os
outros domínios: liga-se por mil vínculos, por toda espécie de laço, a todos os
aspectos da vida coletiva. O político não constitui um setor separado: é uma
modalidade da prática social. (REMOND; 1996, 3536).

Ao lado disso, as contribuições das ideias de “redes”, “representações” e “símbolo” de poder,


enfatizados por grandes historiadores da história cultural nos possibilitaram estudar as diferentes
épocas não como fatos históricos consumados, mas suscitou o interesse em esgaçar como os
contemporâneos enxergavam e interpretavam o processo histórico que se desenhava a sua volta,
admitindo-se, assim, não somente novos métodos, mas fontes alternativas de pesquisa, como
tapeçarias, moedas, objetos comemorativos e domésticos, pinturas, fotografias, como também, os
livros e os impressos.
Partindo das ideias do historiador Peter Burke, consideramos que a ideia de documento como
“fonte histórica”, como se eles estivessem saindo inteiramente puros de uma fonte à medida que se
aproxima da origem do Rio é uma metáfora “ilusória, no sentido de que implica a possibilidade de
um relato do passado que não seja contaminado por intermediários”. O relato histórico é repleto de
intermediários que tanto diz respeito à cadeia de arquivistas, bibliotecários, classificações e
compilações técnicas, como também, as próprias interferências do meio que permite a produção do

1074
documento. Assim, a ideia de “indícios do passado no presente”, como ainda ressalta Burke, parece
ser mais apropriado para a ideia de documento em detrimento de “fonte pura e original”, não somente
para uma melhor definição do termo, mas a possibilidade de encararmos com mais clareza o que é
considerado e como deve ser visto o documento histórico pela análise historiográfica. (BURKE;
2004, 16).
Nesse breve ensaio, utilizaremos o conceito de representação do historiador

Roger Chartier, no qual a ideia de representação é, em primeiro, lugar “a imagem presente de


um objeto ausente” e em segundo lugar, pode ser compreendida como “a exibição pública de algo
existente”, uma espécie de encenação. É uma forma de interpretar e, portanto, compreender o mundo
que vive em determinado tempo e lugar. (CHARTIER, 1990). Portanto, dentro dos novos quadros
teóricos metodológicos criados nas ultimas décadas para o estudo da história a partir de novas fontes,
insere-se a análise do romance Diva, de José de Alencar. Compreendendo-o como mais um indício
do passado, que deve ser enxergado não como uma fonte pura e original, mas antes questionado e
compreendido de acordo com os pressupostos de representação e de compreensão que havia acerca
da mulher e das relações de poder entre os gêneros, na época.
***

Diva. O próprio título nos possibilita compreender parte da descrição que José de Alencar
elege para classificar Emília, personagem principal do romance. De fato, como mencionamos
inicialmente, as obras de José de Alencar giravam em torno do elemento indígena e dos perfis de
mulheres urbanas. A questão indígena, já muito esmiuçada pela historiografia brasileira, se insere
nos pressupostos, grosso modo, de formação da identidade nacional, ao qual o elemento indígena foi
exaltado para a constatação desse viés. Mas e a mulher? Quais os objetivos e os interesses de Alencar
ao escrever romances com protagonistas femininas? Como essas eram representadas em seus
romances? E quais os pontos de vista de Alencar acerca da temática? Esses e outros questionamentos
tornam-se assim, de total relevância para analisarmos essa obra a partir de seu contexto criador, em
que a figura feminina começa a habitar, em maior número, o mundo dos impressos e buscar um papel
na sociedade de maior destaque.
Segundo Marco Morel e Mariana Barros, na segunda metade do século XIX, o público leitor
feminino ganha força estimulado por um número maior de mulheres alfabetizadas que se interessava
pela “poesia e o romance-folhetim”. Soma-se a isso a percepção dos autores romancistas quanto a
esse novo público leitor em formação, acarretando um novo elemento de inspiração dos romances
brasileiros: a mulher. Os autores passaram a escrever para elas e para cortejá-las. (MOREL E
BARROS; 2003, 60). Parte desse quadro insere-se a obra literária Diva, ao qual nos promove uma

1075
preciosa visão de época acerca dos hábitos cotidianos, as problemáticas, medos e anseios não
somente da mulher fluminense do XIX, mas também as contradições das relações de gênero dessa
sociedade, muito em função das novas posturas de emancipação e de busca de um papel social
feminino que abarcasse o que historiografia coloca ser a mulher moderna. Essa mulher da segunda
metade do XIX busca espaço e se vê, também, como agente dessa sociedade, inclusive, começavam
a sondar, sobretudo no que Norma Teles salienta ser o “Tornar-se escritora”, isto é, o aumento de
mulheres produzindo escritos por meio da imprensa (TELLES; 2015,408).
Diva, característica dada a Emília, parece nem sempre ser sua maior qualidade. No primeiro
capítulo, aos catorze anos a menina é relatada como feia, tímida, que andava com a cabeça sempre
baixa. “Uma boneca, desconjuntada amiúdo pelo gesto ao mesmo tempo brusco e tímido”
(ALENCAR; 1864, 11). A avaliação da menina aos olhos do autor perpassava critérios que, à época,
mostrava-se necessário serem descritos, uma vez que o discurso adapta-se a cada público que se
deseja alcançar
(CARVALHO; 1998, 138). Dentre esses critérios destaca-se aspectos descritivos da
psicologia da personagem feminina, mas também estéticos como o modo como se comportava, sua
magreza, e seus trajes que “correspondia ao seu físico”. (ALENCAR; 1864, 11)
Os trajes, a moda feminina, de fato, tomou grande repercussão à época nos impressos do
período, sobretudo aqueles destinados especificamente para as mulheres, sendo uma preciosa forma
de distinção e aproximação aos requintes civilizacionais franceses, nessa segunda metade do século,
ao qual desejava-se fazer uma imagem do Brasil que afastasse de seu caráter marcadamente colonial,
e inseri-lo ao lado das nações civilizadas. Para compreendermos a importância dos trajes para a
época, vale ressaltar que para Alencar as roupas femininas “(...) é a segunda epiderme da mulher e
pétala dessa flor animada” (ALENCAR; 1864, 11).
A relação entre mulheres e flores é ressaltada de diferentes formas ao longo dos impressos
da época. O comportamento e o desenvolvimento do corpo feminino muitas vezes são descritos com
analogias a flores e, sobretudo, rosas. Em Diva tal caracterização explica as diferenças entre as
mulheres da trama e a personagem Emília, ao qual, segundo o narrador, se distanciava de um tipo de
beleza recorrente no desenvolvimento da menina:

Há meninas que se fazem mulheres como as rosas: passam de botão a flor:


desabrocham. Outras saem das faixas como os colibris da gema: enquanto não
empluma são monstrinhos ; depois torna-se maravilhas ou primores. (ALENCAR;
1864, 11).

A classificação, a busca de uma utilidade científica e material são vieses que se mostram
recorrentes no pensamento científico do século XIX. À medida que a ilustração abria caminho para

1076
uma ciência que buscava a compreensão dos fenômenos a partir de leis gerais na ótica positivista, a
compreensão dos fenômenos através da classificação tornava-se mais recorrente. A relação entre a
botânica e as mulheres não aparecia claramente como um fato inerente à natureza feminina. Porém
o pensamento de classificação dos vegetais, presente inclusive no método utilizado pelo botânico
sueco Carl Lineu, no século XVIII, como se percebe, fora muitas vezes acionado como forma de
explicar o comportamento feminino. Assim, representações da mulher em meio a termos como rosas
com espinhos, como irá ressaltar um Jornal feminino português de 18652, seja como um botão prestes
a desabrochar, como nos indica Alencar em 1864, a compreensão que a mulher se assemelhava a
uma flor parece ter sido um pensamento à época que também dizia muito da passagem da
representação da mulher que se deslocava de uma “delicadeza ingênua”, para o que foi considerada
na época uma “teimosia” ou, simples “meninas que queriam sobressair”. Referindo-se as novas
posturas de defesa da importância da educação feminina e sua inserção na lógica de modernização
do país (TELLES; 2015, 407). ***
O romance foi publicado no ano de 1864, e utiliza-se logo no começo do livro, de um
engenhoso artifício, que passa ao leitor a ideia de “veracidade” do relato por meio do manuscrito –
carta – que Augusto, narrador-personagem, conta sua aventura amorosa com a jovem Emília Amaral,
a um personagem do livro anterior de Alencar, Lucíola (1862) (REGINA; 2009). Tal prerrogativa já
nos esclarece como os escritos da segunda metade do XIX, tinha o propósito de entrelaçar-se com o
real, que ao mesmo tempo em que possibilitava uma aproximação do público leitor aos personagens
da obra, gerava o entretenimento, viés que muitas vezes era considerado, quando referidos ao público
feminino, aparato de delírio e devaneio, sendo muitas vezes censuradas do hábito de ler. Porém,
parece que a obra de José de Alencar, apresentou grande sucesso. De acordo com Ana Carolina
Soares, podem ser, inclusive, compreendidas como autênticos “manuais de comportamento da
mulher moderna” 3, o que podemos inferir certa popularidade dessa obra a seu contexto produtor,
inclusive, entre as mulheres, as maiores leitoras desse gênero literário.
O enredo do romance desenvolve-se no verão de 1855 quando Geraldo, irmão de Emília,
chama mais uma vez o Dr. Augusto, médico que na infância já tinha salvado
Emília da morte para, mais uma vez, socorrê-la da “febre (...) e das fortes pontadas no
coração” (ALENCAR; 1864, 12). Agora, Emília mostra-se tímida e, apesar de muito doente resiste
a deixar o médico examiná-la, acusando-o de “Atrevido!”. (ALENCAR; 1864, 15)
Nessa segunda metade do XIX, segundo Robert Pachman, o discurso médico, tonava-se cada
vez mais preponderante nessa sociedade, juntamente com a maior vigilância dos espaços públicos e

2
A Esperança: Semanário Literária dedicado às Damas. Porto: 1865.
3
Disponível em <file:///C:/Users/Isadora%20Costa/Downloads/4040-8932-1-PB.pdf> . Acessado em 07/07/2017.

1077
privados. O crescimento da ótica higienista transcorria em encontro da lógica política do Império,
sua necessidade de ordem e de esquecimento de um passado colonial (PECHMAN; 2002, 22-25).
Logo, nesse segundo capítulo de Diva, o médico aparece não somente de modo que “inspira
confiança”, mas como um agente social considerado de suma importância na sociedade ao ponto de
poder penetrar no leito de uma menina desacordada com a permissão do pai e da tia, “que fazia-lhe
(...) de mãe”. A rejeição de Emília aos cuidados médicos torna-se motivo para seu pai desculpar-se
com o médico da família alegando que isso devia-se a “uma educação muito severa” dada a ela por
sua falecida esposa que era “nesse ponto de um rigor excessivo”. Enfim, o pai de Emília acaba
justificando o que foi considerado “a tenacidade inflexível de um caráter singular de menina” pelo
personagem-narrador, Augusto. (ALENCAR; 1864, 13-15).
Outro elemento relevante no romance de Alencar diz respeito à figura feminina da mãe. Nota-
se que a educação das filhas era um atributo feminino destinado às mães, como visto no papel
destinado à tia de Emília. Nessa temática é válido ressaltarmos que na segunda metade do século a
mulher não somente era definida mas discutia-se qual seria o seu papel na sociedade. Os debates
levavam a justificação da importância do papel da mulher empossar-se a partir do biológico feminino.
Atribuições como maternidade, delicadeza e beleza tornou-se algo sacralizado e naturalizado ao
universo feminino. (DUARTE; 2015, 139). Soma-se a esse quadro de criação e redefinição da mulher
na esfera materna, a defesa de sua emancipação, que correspondia à defesa de uma melhor educação,
seu direito de escolha e seu não silenciamento. Enfim, uma função que não fosse somente ser
“máquina de procriação”, como explica o Jornal fluminense feminino Jornal das Senhoras redigidas
por mulheres a partir de1852·.
Dessa forma, percebemos que a criação da personagem Emília inscreve-se em um período
de discussões e debates acerca do que é ser mulher. É um período que como nos afirma Maria Ângela
D’Incão, a mulher passou a auto vigiar-se, compreender que o casamento era um veículo importante
para manutenções não somente dos bens materiais das principais famílias, mas também a posição
política e moral perante a sociedade.
(D’INCÃO; 2015, 235). Ao lado disso, há um forte discurso de emancipação feminina que
utilizava-se também do meio impresso para divulgar suas reinvindicações. No romance, Emília
mostrou-se tímida na infância e por vezes feia. Já jovem, contrapõe a autoridade médica e a vontade
do pai e da tia sem querer que o médico a examine. Sendo, portanto, uma personagem não somente
diferente da “lógica natural” do “desabrochar” da beleza feminina, de caráter singular como nos
afirma o narradorpersonagem, Augusto, mas uma personagem que nos mostra essa transição, da
segunda metade do XIX, ao qual discursos de emancipação feminina começam a ser veiculados no
meio impresso, e, portanto, no tecido social dessa sociedade fluminense. Como nos afirma o autor:

1078
Tive de lutar contra a enfermidade rebelde e a tenacidade inflexível de um caráter
singular de menina, habituada a ver satisfeitas todas as suas vontades, como ordens
imperiosas. (ALENCAR; 1864, 15)

Soma-se a esse ponto de vista de Alencar acerca da mulher a tentativa do autor dar à ficção
uma aparência de realidade, fornecendo a máxima descrição de objetos e sentimentos que também,
torna-se relevante atentarmos, uma vez que nos fornecem dados que, à época, era visto como
necessário e conveniente ser descritos pelo narrador personagem, o Dr. Augusto:

Eu sentia, combatendo sua enfermidade, o que devem sentir os grandes artistas


tratando um assunto difícil; raiva e desespero, quando a consciência da minha
fraqueza contra as leis da natureza me acabrunhava, júbilos imensos, quando meu
espírito, tirando forças da ciência e da vontade arcava com a moléstia e a subjugava.
(ALENCAR; 1864,16)

Augusto, portanto, ao mesmo tempo em que achava a menina tímida e rebelde tinha
sentimentos comparáveis ao tratamento que um artista sentia ao cuidar de sua obra. Dessa maneira,
fica claro que o trabalho do médico e do artista assemelha-se no imaginário dessa sociedade ilustrada
do XIX, ao ponto do narrador estabelecer relações de semelhança entre a vida e a arte, ao mesmo
tempo em que esboça seu total desapontamento ao comportamento de Emília, comparado a outras
jovens.
***
A história segue ressaltando a volta do médico da Europa e deparando-se com Emília já como
uma “linda moça”. Agora Emília é representada de forma tão diferente que Augusto não a reconheceu
quando a encontrou “de pé no vão da janela cheia de luz, meio reclinada ao peitoril, tinha na mão um
livro aberto e lia com atenção”. Os elogios dispostos pelo narrador mais uma vez chamam atenção e
mostra-nos o que era considerado uma “moça bonita” para o autor. Dentre os elogios descritivos
insere-se
“alta e esbelta”, “rosto gentil”, “estátua de moça” e, como já discutido, assemelha-a às
“pétalas da magnólia”, espécie de flor que varia do branco ao rosado. Apesar do autor no começo da
obra classificar as mulheres em dois tipos, as que desde jovem mostramse bonitas e quando jovem
apenas desabrocham, havendo outras que se assemelham mais com os pássaros que se tornam bonitos
somente quando ganham suas lindas plumagens, ele passa a considerar Emília como uma rosa,
mesmo achando-a feia quando jovem, afirmando: “Que sublime trabalho de florescência animada
não realizara a natureza dessa mulher!” (ALENCAR; 1864, 18). Tal perspectiva nos faz compreender

1079
como mostrava-se presente a semelhança mulher com a flor nesse pensamento de época e como
delicadeza, beleza e fragilidade eram chaves de leitura da representação feminina.
De menina à “moça”, de “moça” à “mulher”. A classificação de Emília nessas formas de
representação da personagem feminina altera-se na narrativa não somente quando o autor menciona
a passagem de tempo, expondo que Emília “teria então dezessete anos” quando floresceu sua beleza
de mulher, ou quando aos quatorze anos era considerada uma feia e tímida menina, mas também
como forma de amadurecimento sentimental que a aproximava da “suavidade” do “rosto gentil” “da
estátua de moça”. Essa última prerrogativa mostra-se enquanto o narrador ainda descreve Emília
quando essa lê um livro na sacada da janela:

Ás vezes, porém, a impressão da leitura turbava a serena elação da sua figura, e


despertava nela a mulher. Então desferia alma por todos os poros. Os grandes olhos,
velutados de negro, rasgavam-se para dardejar as centenas elétricas do nervoso
organismo. (ALENCAR; 1864,18)

A leitura feminina nem sempre era vista de forma positiva na sociedade oitocentista. Apesar
do autor não mostrar uma visão mais profunda acerca de sua opinião à temática, no romance, Emília
“desapareceu” após assustar-se com Augusto de modo que não se mostra explícito na obra de Alencar
o motivo da personagem fechar o livro e sair do local de leitura quando se depara com Augusto.
Nesse sentido, Ana Carolina Soares, nos apresenta tal questão como uma hipótese e reflexão de como
dentro do cotidiano dessas mulheres a leitura era tão repreendida, que mesmo olhares de não
repreensão eram considerados como proibitivos da leitura. (SOARES; 2010, 61-66). Na obra, não
sabemos por que Emília fecha o livro rapidamente assim que avista Augusto, porém, sabemos que
para Alencar, a leitura de Emília acabava acarretando “as centenas elétricas do nervoso organismo”
feminino, já nos fornecendo pistas sobre como a leitura feminina podia ser compreendida na
sociedade (ALENCAR; 1864, 18). Em um contexto em que as esferas públicas e privadas assumiam
cada vez delimitações mais precisas, as formas de lazer e de convivência social também se
delimitaram e adaptaram a essa nova realidades. Os bailes, saraus e teatros eram formas de
exposições públicas destinadas a um grupo seleto e convidado a penetrar na intimidade do ambiente
doméstico. (D’INCÃO; 2015, 223) Na obra Diva, Alencar descreve bem como esses ambientes eram
não somente retratados como festivos, de divertimento ou como uma forma de lazer, mas também
locais de aprendizado. É dessa forma que Augusto descreve como uma casa nobre em Matacavalos
era ponto de
“reuniões diárias para uma parte da boa sociedade do Rio de Janeiro” que foi também uma
“escola para Emília”. O autor reconhece a educação de Emília como “perspicaz” elencando as
principais áreas que abarcavam uma boa educação feminina à época: “(...) ela desenhava bem, sabia

1080
música e a executava com maestria, excedia-se em tosos os mimosos lavores de agulha, que são
prendas das mulheres”. Esse mundo educacional feminino que se restringia à educação manual e
artística permite Emília ser considerada uma “inteligente menina”, porém, faltava-lhe ensinamentos
representados como relevantes ao papel feminino, para Augusto, o narrador-personagem da obra de
Alencar (ALENCAR; 1864, 19-20). Nas palavras do autor:

(...) faltava ainda à inteligente menina o tato fino e o suave colorido que o pintor só
adquire na tela e a mulher na sala, a qual também é tela para o painel de sua
formosura. Foi nas reuniões de D. Matilde que Emília deu os últimos toques à sua
especial elegância. (...) ela observava (...). (...) seu bom gosto se apurou. (a elegância
teve nela um molde seu, próprio e original”. Ela criara o ideal de Vênus moderna, a
diva dos salões. (ALENCAR; 1864, 19-20).

Percebe-se que era inerente ao comportamento feminino a elegância e o que era considerado
inteligência limitava-se a normas morais de comportamento feminino e habilidades manuais. Emília,
por sua vez, ganhava através da observação desses bailes
“os últimos toques”, completando o que Augusto acreditava ser “as prendas da mulher”.
Sendo assim, a ideia de escola e boa educação feminina, aparece na obra, sendo os bailes e o modo
de se comportar neles.
***
Diva nos mostra como parte da sociedade fluminense de meados do século XIX compreendia
como deveria ser os atributos femininos aceitáveis, que se mostra na visão de José de Alencar. Como
vimos, os bailes da casa de D. Matilde apresentava uma lógica de lazer, mas também pedagógica.
Foram nesses momentos de baile e conviver social que Emília continuava mostrando, no discurso do
personagem narrador, não mais timidez, como em seu tempo de menina, mas aprendendo prendas,
meios de como se comportar na sociedade, apesar de seu “desdém” a Augusto e a outros homens,
posicionamento divergente das demais damas (ALENCAR; 1864,18). Explica o narrador:
Contudo, às vezes à força de vontade, ela arrancava dessa mesma timidez audácias
ingênuas, que não teria uma senhora: erigia a fronte com altivos desdéns, e fitava em
face qualquer homem. (ALENCAR; 1864, 21)

Os ensinamentos femininos da menina variavam desde os modos de aceitar uma contradança,


não “fitar em face” um homem e até mesmo aceitar para dançar não aquele que desejas, mas com
aquele que pediu primeiro para dançar com ela. Como aluna dessa lógica de comportamentos, Emília
é retratada como o oposto de Julinha, filha de Dona
Matilde e “companheira de infância de Emília”. Julinha é relatada como “uma moça muito
galante”, em que:

1081
(...) educada nas salas aos olhos da galanteria materna, perdera cedo o casto perfume.
Desde menina habituou-se a ser animada ao colo e beijada por quantos frequentavam
a casa. Deus a tinha feito nimiamente boa e compassiva; por isso quando chegou a
idade do coração, ela não soube recusar o amor (...). Suas afeições eram sempre
sinceras e leais nunca traiu nem por pensamentos o seu escolhido; mas também se
este a esquecia (...) ela facilmente se consolava, porque em natureza como a sua o
amor não cria raízes profundas, e só vegeta à superfície d’alma (ALENCAR;
1864,20).

A oposição entre as jovens não é somente relatada, mas esmiuçada em exemplos. Emília,
segundo Augusto, parava de interagir com as pessoas quando ele chegava ao círculo de conversa,
armava ciladas propositais, parava de “tocar ou cantar” quando ele se aproximava, fazendo-o chegar
a seguinte conclusão: “o procedimento de
Emília não era filho de uma simples antipatia, mas um propósito firme de humilhar-me (...),
o instinto de defesa acordou em mim, e com ele o desejo de vingança (...) resolvi descobrir seu ponto
fraco.” (ALENCAR; 1864, 24). A partir de então o narrador personagem passa a observar cada
detalhe da menina. Ele observa o que se fala sobre ela, sua fisionomia e escolhas, e até, o que o autor
chama de “guerra feminina” – os comentários femininos acerca do baile e seus convidados. Entre os
comentários femininos, Emília acaba sendo considerada alfenin4 [delicada demais] e até “rica” por
escolher tanto. Porém aos olhos da observação assídua de Augusto, era uma
“namoradeira”, “rebelde”, que lia muito, sendo um comportamento singular e
incompreensível comparada ao comportamento comum das demais moças, apesar de ainda ser
considerada bela e divinal como uma “florescência animada” (ALENCAR; 18-25).

Considerações finais

De acordo com o exposto acima, percebemos que a representação da mulher como um ser
delicado, frágil e submisso era defendido e elogiado, contrapondo a figura da rebeldia, imponência e
efervescência da personagem Emília. Ao mesmo tempo em que, tais características eram criticadas
pelo narrador personagem Augusto, atraía sua atenção e curiosidade. Nas palavras do narrador, as
atitudes de Emília “o prendiam e levavam cativo e submisso a seus pés. (...) Compreendi tudo (...)
Emília me provocara diretamente” (ALENCAR; 1864, 27).

4
Massa de açúcar branca e dura, no sentido figurado refere-se a um Indivíduo delicado, efeminado. Casquilho, janota.
https://www.dicio.com.br/alfenim/ acessado em 3/07/2017.

1082
Tal perspectiva ilustra essa segunda metade do XIX na qual Alencar está inserido. Nos
escritos da época, como periódicos e livros, havia um grande debate acerca do papel da mulher e sua
função na sociedade. Enquanto havia um forte discurso que buscava a inserção da mulher em uma
ótica de “emancipação moral” por meio da educação, isto é, por meio da esfera das luzes (JORNAL
DAS SENHORAS; 1952, 5). Muitos compreenderam essas ideias como uma afronta a ordem
civilizacional que se construía e se queria construir, ao qual via-se quase como natural, ao
comportamento feminino: a submissão, delicadeza, elegância e doçura.
Diva pode ser um importante veículo de compreensão dessa grande dicotomia entre os papéis
que se desejavam acerca desses debates, uma vez que esboça, a partir do personagem Augusto, os
medos, anseios e afirmações de uma ideia vista como usual ao ideal de mulher, como o mesmo exalta
ser a personagem Julinha (ALENCAR; 1864, 26). Porém, mesmo Emília fugindo das regras impostas
às mulheres, Augusto se mostra apaixonado por Emília, nos dando a entender que a rebeldia dizia
respeito à paixão que ela também sentia por ele. Sendo, portanto, a visão de Alencar uma importante
visão acerca de como parte da sociedade estava compreendendo o processo de emancipação
feminina, que perpassava uma compreensão de rebeldia das jovens moças, daquelas que, como
Emília, coloca Alencar, “Lia muito, e já de longe penetrava o mundo com olhar perspicaz, [mas]
através das ilusões douradas” (ALENCAR; 1864, 19).
A posição de José de Alencar quanto aos questionamentos da personagem Emília acerca das
relações entre o amor e os discursos críticos no tocante da definição de um papel social da mulher,
se mostra com maior clareza ao final do texto, ao qual o autor coloca Augusto como uma espécie de
vencedor da rebeldia da menina, ao passo que ela afirma a Augusto:

O que sei é que te amo!... Tu não és só o árbitro supremo de minha vida, és o motor
de minha vida, meu pensamento e minha vontade. És tu que deves pensar e querer
por mim... Eu?... Eu te pertenço; sou uma coisa tua. Podes conserva-la ou destruí-la;
podes fazer dela tua mulher ou tua escrava... É o teu direito e o meu destino. Só o
que tu não podes em mim, é fazer que eu não te ame!...(ALENCAR; 1864, 84)

Pensamento, assim, completamente diferente da crítica que Emília esboça em palavras e em


seu comportamento desde começo da obra. Como podemos perceber no fragmento a seguir, ao qual
a personagem explica a Augusto o porquê do desprezo a seus pretendentes.

Que ente injusto e egoísta que é o homem! Quando nos ama, dá-nos apenas os
sobejos de suas paixões e as ruínas de sua alma; e entretanto julga-se com direito a
exigir de nós um coração não só puro mas também ignorante! Devemos amá-los sem
saber ainda quem é o amor; a eles compete ensinarnos... educar a mulher... como
dizem em seu orgulho! E aí da mísera escrava que mais tarde conheceu que não
amava!... Seu senhor é inexorável e não perdoa! (ALENCAR; 1864, 69)

1083
Portanto, a obra mostra-se uma verdadeira “Fonte Fecunda”, como considera Antônio Celso
Ferreira quanto ao estudo da literatura como fonte (FERREIRA; 2006, 60). Embora não apresente
um compromisso com o real, ao aproximarmos Diva a outras fontes de época, nos aproximamos de
uma visão de época em que longe de ser imparcial, pretendia dar conta da demanda do cotidiano de
seu tempo histórico, uma vez que “literatura não é uma questão de gosto: é uma questão política”
(FERREIRA; 2006, 60-91). Desse modo, Alencar introduz uma releitura que se afastava do discurso
que colocava a emancipação feminina como “arma de libertação” (JORNAL DAS SENHORAS;
1952, 5) compreendendo-a como uma rebeldia de menina que gerava sofrimento e incompreensão, e
apesar de continuar sendo, evidenciadas pela representação feminina como ser “belo (...) matriz de
castidade”, “virgem”, “Esfinge
[ser fabuloso]” , “coração puro de paixões” de “olhar casto” ... “Diva” (ALENCAR; 43, 46,
52, 54), Alencar nos permite compreender, embora de modo relativo e minimizante, as mudanças do
comportamento feminino dessa segunda metade do XIX, seja pela menção à leitura feminina, seja
pelo o que ele considera ser a ousadia de Emília ao agir de modo inesperado. Nas palavras do autor:
“tão fora dos nossos costumes brasileiros”, nos mostrando assim, uma representação feminina que
embora faça a “felicidade do homem” (A ESPERANÇA; 1865,24), como considera também um
colaborador do Jornal português, A Esperança, essa mulher moderna era incompreensível e rebelde,
embora continuasse divinal, como infere Alencar. (ALENCAR; 51).

Fontes e Bibliografia:

Fontes:
A ESPERANÇA, Semanário Literário dedicado às Damas. Volume I. Edição 1ª e 2º.
Porto: 1865. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.cmlisboa.pt/Periodicos/AEsperanca/AEsperanca.htm >

DIVA. José de Alencar. 10ª edição. Cotejado com a 3º edição revista pelo autor, de B. L
Garnier, Rio de Janeiro, 1875. 5. ª Impressão. Rio de Janeiro: editora ática, 2003.

O JORNAL DAS SENHORAS. Volume I. Edição 1ª. Rio de Janeiro: 1852. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=700096&pesq>

Bibliografia:
BURKE, Peter. Testemunha Ocular. Bauru, SP: EDUSC, 2004. Saul Edgardo Mendez
Sanchez Filho. 1.

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leitura (Modificado). Prismas. Revista de História Intelectual, nº 2 (1998), Quilmes. Universidad
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D’INCÃO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: Mary Del Priore (org.) História
das Mulheres no Brasil. Ed. 10a.. São Paulo: Contexto, 2015.
FERREIRA, Antonio Celso. Literatura: A Fonte Fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi.
LUCA, Tania Regina. Fontes históricas. Rio de Janeiro: editora contexto, 2006.

MOREL, BARROS, Marcos, Mariana. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no


Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP & A. 2003

PECHAMN. Robert, Moses. Uma corte na mata tropical (1808-1830); Meter em polícia
uma nação é o mesmo que civiliza-la e urbanizá-la. In: Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e
o urbanista. Rio de Jaeniro: Casa da palavra, 2002.

REGINA, Sonia. As feições de Diva. Pousio, 2009. Disponível em:


http://pousio.blogspot.com.br/2009/02/as-feicoes-de-diva-sonia-regina.html Acessado em
07/07/2017.

CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e Representações. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1990.

SOARES, Ana Carolina Soares. Entre Anjos e Demônios surgem as mulheres de Alencar.
Revista Mosaico, v.3, n.1, p. 61-66, jan/jun. 2010.

1085
A INFLUÊNCIA DOS JESUÍTAS DA FAZENDA SANTA CRUZ PARA A
FORMAÇÃO DE ITAGUAÍ
João Nilo da Mota Paes 1

RESUMO: O presente trabalho monográfico aborda a relação entre as ações dos padres
inacianos, sua missão em terras da América Portuguesa, a instalação da Fazenda Santa Cruz
na região da baía de Sepetiba, influenciando através da administração do assentamento de
índios do aldeamento Itinga, a instalação da futura cidade de Itaguaí. Abordamos as alterações
físicas que implementaram na região e que, desta forma, capacitaram a região a receber um
contingente de colonos que acabaram por se fixar no espaço e criar a Vila de São Francisco
Xavier de Itaguaí. Nossa pesquisa inicia-se com a chegada dos inacianos à Capitania de São
Vicente e encerra-se com a expulsão em 1759.

PALAVRAS-CHAVE: JESUÍTAS; FAZENDA SANTA CRUZ; ITAGUAÍ.

ABSTRACT:This monographic work addresses the relationship between the actions of the
priests of Ignatius of Loyola, your mission in the Portuguese America, Santa Cruz Farm
installation in Sepetiba Bay, through the administration of the settlement of the village Indians
Itinga, installation of the future city of Itaguaí. We address the physical changes that
implemented in the region and that, in this way enabled the region to receive a contingent of
settlers who eventually settle in space and create the village of São Francisco Xavier de
Itaguaí. Our research begins with the arrival of the of the captaincy of São Vicente and ends
with the expulsion in 1759.

KEYWORDS: JESUITS; FAZENDA SANTA CRUZ; ITAGUAÍ.

INTRODUÇÃO

Esta monografia apresenta um estudo sobre a contribuição dos inacianos com a


colonização, através de sua missão na América Portuguesa. Aquele trabalho missionário,

1
Pós-Graduado em História Social e Cultural do Brasil pela Faculdades Integradas Campo-Grandenses (FIC).
Orientadora: Profª Ma. Alessandra Senna. E-mail: joaonilopaes@gmail.com.br

1086
basicamente, estava direcionado através da função da catequese, em apaziguar os índios e
assim funcionar como agentes atuantes na defesa, criação e fixação de colônias.
Essa missão exterior dos inacianos estava baseada em sua Fórmula, diretriz de
fundação, e explicitava que a sua ordem fora instituída para o aperfeiçoamento das almas na
vida e na doutrina cristãs e para a propagação da fé. E sendo assim queriam agir no mundo
através da caridade, e para isso não poderiam ficar presos a monastérios, e diferentemente das
outras ordens religiosas que também vieram à America Portuguesa, como os Franciscanos1,
sua atuação deveria ser externa as paredes do claustro.
Diante dessa intenção, a Companhia de Jesus tornou-se um dos principais movimentos
de contra reforma religiosa, recebendo assim como objetivo, além de garantir novas almas
para o cristianismo por meio da conversão dos pagãos, e através disso a incumbência de
impedir que o protestantismo em expansão na Europa chegasse às terras da América
Portuguesa.2
Especificamente falaremos sobre a gerência dos inacianos administradores da Fazenda
Santa Cruz, que mediante a tutela do aldeamento indígena Itinga, na região da baía de
Sepetiba, modificaram a região, transformando-a fisicamente de forma a torná-la habitável e
assim a capacitaram para receber população, posterior a retirada forçada da companhia da
colônia, a partir de 1759, no entorno de sua fazenda e sendo responsáveis desta forma, pela
transformação da Aldeia de São Francisco Xavier de Itaguaí, em núcleo da futura Vila, que se
transformaria na atual cidade de Itaguaí.

A MISSÃO JESUÍTICA

A Companhia de Jesus, criada por Inácio de Loyola3, que se tornou um dos principais
movimentos desta Contra-Reforma, abonada pelo Concílio de Trento 4 , chega a América
Portuguesa, por volta da segunda metade do século XVI5. Período este, que havia constantes
invasões de piratas, além da disputa entre portugueses e franceses, pelo território que seria
conhecido posteriormente como São Sebastião do Rio de Janeiro.
A missão jesuítica contava com a efetiva participação de seus membros. Entre as
inúmeras incumbências, havia o objetivo de impedir que o protestantismo amplamente
divulgado na Europa chegasse com força às terras brasílicas, além de garantir novas almas
para o cristianismo através da conversão dos pagãos 6. Somente o ardor missionário e a fé
poderiam justificar a resignação com que estes jesuítas percorriam lugares inóspitos,

1087
atravessavam rios e pântanos, passavam fome e se defrontavam com populações indígenas
hostis7.
Uma vez inseridos e integrados ao cotidiano da comunidade nativa, sua participação
possibilitou a formação e estabelecimento dos aldeamentos8. Outro fator determinante para o
sucesso dos aldeamentos, é que era imprescindível que houvesse condições econômicas para
sua manutenção, e estas foram dadas pelas fazendas estabelecidas e controladas pelos próprios
inacianos.9
Para se alcançar tais condições econômicas, os padres solicitaram benefícios como
meio de recompensa pelos serviços prestados a Coroa, sobretudo ao que se referia a
“civilização espiritual” de alguns índios. E, com isso, conseguir se estabelecer nos territórios
que antes pertenciam aos nativos. Uma vez estabelecidos, segundo Márcia Amantino, os
jesuítas participavam ativamente da organização e liderança dos índios nos combates, no
atendimento dos feridos, na prestação de socorro espiritual e na obtenção dos acordos com
alguns líderes indígenas10.
Notamos que essa associação entre os membros da Companhia de Jesus e o gentio foi
fundamental durante a retomada da Baía de Guanabara. Os portugueses perceberam a
importância das relações estabelecidas entre os jesuítas e alguns povos nativos como: os
Termiminós, Tupiniquins e Goitacazes. Ou seja, era preciso manter boas relações com os
padres a fim de garantir homens que se uniriam a eles na defesa do território. Nesta
conjuntura, a companhia de Jesus, enquanto instituição atuante e vencedora recebeu algumas
benesses

foram agraciados com a primeira sesmaria distribuída por Mem de Sá na região,


atendendo ao pedido do padre Gonçalo de Oliveira 11 para que pudessem, então,
estabelecer-se e instalarem um colégio no Rio de Janeiro. “Nessa sesmaria, os
jesuítas construíram um colégio, os engenhos Velho e Novo e a Fazenda de São
Cristovão. Começava assim a montagem de um sistema agrário característico dos
inacianos nas Américas.12

A partir de então, os inacianos, quer por doação da coroa ou de particulares, e até


mesmo através de aquisição por meio de troca ou compra, foram aumentando sua presença no
Rio de Janeiro. Mais do que nunca, para legitimar essa expansão havia a necessidade de
manterem-se próximos do gentio e levar adiante a missão de catequizá-los e também prepará-
los para o que seria a primeira linha de defesa para o interior13.
Entretanto, ao se tornarem proprietários de grande extensão de terras e inseridos no
modo de produção colonial14, os jesuítas também se apropriaram da mão de obra escrava dos

1088
negros vindos de África e de indígenas aldeados. Tal condição acabou por suscitar relações
conflituosas, uma vez que quanto mais terras, mais homens sob seu controle e,
consequentemente maior o poder social exercido pela companhia de Jesus.
Os padres tornaram-se senhores de terras e de homens iguais a quaisquer outros
senhores, e os conflitos com os fazendeiros e colonos foram inevitáveis 15 . Notamos que
conflitos entre o gentio e os colonos existiam desde a chegada dos jesuítas a América
Portuguesa, conforme informações contidas nas cartas avulsas. Neste sentido as boas relações
estabelecidas entre os inacianos, colonos e brasis se faziam necessárias para assim cumprir
mais uma missão.

E se impediam ao Gentio de se guerrear, e de se comer, promoviam accordo difficil


entre as discórdias continuas e os ódios enviscerados dos colonos, sempre uns contra
os outros: a desunião foi e é o nosso trivial. O Padre Antônio Pires acommodou, a
principio, o orgulhoso e turbulento filho do governador D. Duarte da Costa, que
chegou a ir pedir perdão, ao bispo velho Sardinha. Conseguiu outro Padre, João de
Mello, entre os filhos de Duarte Coelho e o tio delles, Jeronymo de Albuquerque, as
suas pazes. Quem sabe que taes desavenças sempre fizeram guerras no Brasil, sabe
também o preço desse officio de juizes de paz, que eram o cotidiano dos Padres,
com a arraia miúda da colônia16.

A Formação dos Aldeamentos.


Dentre as inúmeras missões que os jesuítas deveriam cumprir talvez as mais
importantes eram de catequizar e civilizar.

Instruíram filhos de reinóes, os primeiros brasileiros, e instruíram os brasis, paes e


filhos, fôrros e escravos, aprendendo a língua da terra, e pela grammatica, a logica, o
latim, passando o humanismo, para chegar á theologia moral e á philosophia.
Educaram costumes, intelligencias, sentidos. Aulas, cerimonias religiosas,
folguedos, canto, musica, autos sagrados e profanos, classes superiores, não
desprezando officios manuaes17.

Para realizar parte de sua missão, os padres necessitavam se estabelecer. Surgem então
os primeiros aldeamentos. O Regimento, entregue por El’ Rei, a Tomé de Sousa, datado de
1548, entre outras diretrizes para o Governo Geral, recomendava os chamados descimentos,
ou seja, a transferências para que “índios tornados cristãos não deveriam continuar vivendo
em suas aldeias de origem, misturados com outros índios não batizados”.18

1089
Assim sendo, os índios foram divididos em duas grandes categorias: os aliados, que
iriam para as aldeias, e os selvagens, que seriam combatidos e se tornariam escravos
legítimos 19 . Essa divisão se daria através das guerras justas 20 . Em 1570, a Carta Régia,
textualiza que, os índios só poderiam ser presos e escravizados mediante essa situação. 21
Entretanto esta condição acabou por gerar novos conflitos entre padres e colonos.
No decorrer do tempo os aldeamentos foram sendo ainda mais legitimados, tanto que
em 10 de setembro de 1611, um novo regulamento é editado e que, além de privilegiar os
padres jesuítas no manejo e instalação, determinava a distribuição em povoações de até
trezentos casais de nativos. Ainda dizia que em cada uma das ditas Aldêas haverá uma Igreja,
e nella um Cura, ou Vigario, que seja Clerigo Portuguez, que saiba a língua; e em falta delles,
serão Religiosos da Companhia22.
A doutrina jesuítica de catequese precisou de adequação vocabular para facilitar a
comunicação, ensinamentos e preceitos. Houve inclusive a criação de textos por parte dos
próprios inacianos a fim de favorecer a comunicação, uma espécie de dicionário. Dois bons
exemplos são: o Compêndio da doutrina christam na língua portuguesa, & brasilica de João
Filipe Bettendorff, impresso em 1687. O segundo texto é um manuscrito intitulado
Compêndio da doutrina christam, q se manda emsinar com preceyto anno de 1740,
identificado como sendo do padre José Vidigal 23 . Provavelmente o fato de conseguir se
comunicar na língua nativa facilitaria o trabalho dos inacianos. Percebemos que os
aldeamentos colaboraram sobretudo no que tange a imposição da cultura ocidental, sendo os
principais responsáveis pela superação do tupi como língua geral24.
Ainda nesta mesma legislação de 1611, determinava-se a escolha de um líder entre os
índios para representá-los na interação com a os padres e colonos. Justificando assim, o papel
mediador entre os inacianos, nativos e colonos.

e assim viverão nellas os Capitães, cada um na sua, com sua mulher e familia, para
os governarem em usa vivenda commua, e commercio com os moradores d’aquellas
partes, assistindo muito particularmente a seu governo, e tratando de tudo o que
convém, assim para cultivarem a terra, como para aprenderem as artes
mechanicas.25

Portanto, os aldeamentos ou aldeia de repartição, foram instalados em locais próximos


aos povoados dos colonos. Possuíam uma igreja ou capela, uma escola e casas para cada

1090
família, bem diferentes das malocas comunitárias e da vida que os índios levavam em suas
aldeias de origem26.
Na medida em que os indígenas se afastavam de suas origens, consequentemente se
distanciavam da escravidão, desde que aceitassem sem resistência o modo de vida
apresentado pelos inacianos. O cotidiano nos aldeamentos era permeado com o ensino
continuo da catequese, realizações do sacramento do batismo e a constante prestação de
serviços obrigatórios aos padres missionários, colonos e a própria Coroa Portuguesa. Boa
parte desta dinâmica era dividida entre os índios de maneira que uma parcela dos nativos
prestava serviços a particulares fora dos aldeamentos, após pronta autorização dos padres e o
restante permanecia nos aldeamentos realizando os afazeres diários, zelando pelo espaço, suas
construções e nas plantações subsistência.
Apesar da existência desse sistema de revezamento, a carga diária de trabalho era
grande, comparável a dos índios escravos e, isso trazia a insatisfação do gentio, que, por
vezes, abandonavam os aldeamentos. A saída causava certo esvaziamento e, por conseguinte,
a necessidade de novos descimentos de outras regiões do território, para repovoá-los.
Além de toda uma dinâmica e necessidade diária da mão de obra indígena, uma nova
realidade fez com que a quantidade de trabalho fosse ainda maior. A economia, antes gerada a
partir da extração de pau brasil e produção de açúcar, agora é, em parte substituída pela
extração de ouro das Minas Gerais. O ouro vindo das Gerais precisava passar pelo Rio de
Janeiro, assim esta região passou a ter importância estratégica com o escoamento dessa
produção. Houve então, uma maior necessidade de mão de obra indígena, para ser utilizada na
construção de novas estradas, como já ocorrera em 1698 na abertura do “Caminho Novo27”.
Todavia, houve grande insatisfação dos jesuítas diante da imposição para arrebanhar
todos os índios da aldeia, o que acarretaria uma carência na lavra de subsistência. Esse fato
acabou sendo um caso especifico da aldeia de Y-Tinga, e, também contribuiria com a
dissensão entre os inacianos e a Coroa que, culminaria na expulsão da Companhia de Jesus na
segunda metade dos setecentos.

SURGE A FAZENDA DE SANTA CRUZ

Essa grande faixa de terras, dentro da Capitania de São Vicente, teve sua origem, a
partir da sesmaria de Guaratiba, doada em 1567 a Cristóvão Monteiro, primeiro Ouvidor-Mor
do Rio de Janeiro, e que se estendia até Itacuruçá.28

1091
Os padres Jesuítas adquiriram metade da fazenda através de doação, feita pela viúva
do ouvidor-mor, Dona Marquesa Ferreira, em 08 de dezembro de 1580. A outra parte, herança
da filha do dito ouvidor, senhora Catarina Monteiro fora conseguida através de permuta, onde
os padres cederam terras em Bertioga, na ilha paulista de Santo Amaro, além de uma área nas
proximidades da Vila de Santos 29 . Entretanto, a troca foi registrada como sendo doação.
Como maneira de se resguardarem, os padres antevendo uma possível alteração nas leis de
concessão de sesmarias, omitiram as informações.
A partir de então, os Jesuítas procuraram aumentar e conquistar os terrenos adjacentes.
Em 09 de julho de 1636, compraram por sessenta mil réis 30 um terreno de 500 braças de
largura (uma braça equivale a 2,2 metros), por 1.500 de sertão 31, pertencentes aos herdeiros
Manoel Veloso de Espinha e Jerônimo Veloso Cubas e que constituem hoje, a localidade
conhecida por Pedra de Guaratiba, e que um dia fizera parte de sesmaria concedida em 5 de
março de 1597 a Manoel Veloso de Espinha, por Jerônimo Leitão, lugar-tenente da Capitania
de São Vicente.32
Com intuito de aumentar seus domínios, e precisando de terras para fechar um dos
ângulos de frente para o mar, os inacianos, realizaram uma negociação em 1640, fechando um
acordo, onde propuseram uma permuta por uma área em Macaé e a metade da sesmaria em
Campos dos Goitacazes, recebendo em troca as terras de assentamento indígena de outrora33,
ao Governador Salvador Correa de Sá e Benevides, a quem haviam vendido as terras onde
existira a Aldeia Itinga, antes de sua transferência para o local definitivo. Diante dessa
negociação, a Fazenda de Santa Cruz, passou a ter seu ponto inicial transferido para lado leste
do rio Itinguçu34, onde foi instalado o primeiro marco de medição definitiva.35
Algum tempo depois, em 26 de fevereiro de 1654, uma nova aquisição de terras, desta
vez as de Tomé Correa de Alvarenga, herdeiro de Manoel Correa. Três léguas 36 de terras que
faziam parte da sesmaria do Guandu, o pagamento foi realizado pelo Procurador do Colégio.
A quantia de mil cruzados foi paga logo após a lavratura da escritura. As outras três léguas
dessa sesmaria foram adquiridas, dois anos depois, em negociação com Francisco Frazão de
Souza, também herdeiro, pelo valor de mil e quinhentos cruzados 37 . Diante dessa última
investida, o historiador Benedicto Freitas afirma que: adquirida e constituída a grande
sesmaria de seis léguas, agora unida às doadas anteriormente, trataram os Jesuítas de
promoverem juridicamente sua posse definitiva que, selou com seu marco comemorativo, o
nome de sua propriedade: Santa Cruz38.

1092
Desta forma, depois de feita a solicitação de regularização judicial às autoridades, e
diante de cerimônia solene, os Jesuítas tomaram posse dessas novas terras adquiridas, em 17
de julho de 167839, perfazendo então a Fazenda de Santa Cruz dez léguas, ou 66 quilômetros
de extensão, e por volta de “dois milhões duzentos e sessenta e cinco mil e cento e vinte
metros quadrados40, com frente para o oceano, mata, rios e a tornaram o mais desenvolvido
patrimônio de toda a Companhia no Brasil.41 Essa extensão de terra prolongava-se do mar, até
a Serra de Mata-Cães em Vassouras, e essas mesmas terras, “atualmente, compreendem o
bairro de Santa Cruz, no município do Rio de Janeiro, e partes dos municípios de Barra do
Piraí, Itaguaí, Mendes, Nova Iguaçu, Paracambi, Paulo de Frontin, Piraí, Rio Claro, Vassouras
e Volta Redonda” 42 e Seropédica.
Construíram um edifício para seu convento, uma igreja, uma pequena escola, açougue,
hospital, cadeia e diversas oficinas, em terras da doação inicial da sesmaria de Guaratiba 43.
Em frente ao convento, ergueram uma cruz de pedra que veio dar o nome a propriedade desde
então designada por Fazenda de Santa Cruz, outrora conhecida como Fazenda dos Curraes.
De posse de tais terras, os Jesuítas iniciaram obras de engenharia transformando
campos pantanosos em locais de agricultura e pastos. 44 Notadamente, desenvolveram
drenagens e canalizaram os rios, desviando o curso d’água para as regiões mais secas.
Criaram mecanismos complexos de controle da água.
na margem esquerda do Rio Guandu, fizeram um canal (o Itá) e, na direita, outro (o
São Francisco). Os canais, ao lado dos dois grandes rios (Guandu e Itaguaí)
formavam uma rede hidráulica ligada a várias valas e pequenos canais que
mantinham praticamente toda a extensão da propriedade banhada com água doce
controlada em seu volume pro diques e comportas45.

Com essas transformações asseguraram uma agricultura diversificada, onde se


plantava açúcar, arroz, feijão, mandioca, algodão, fumo, legumes, frutas, café e cana 46 .
Contudo, a renda da fazenda não estava restrita a essas culturas, e que devido a sua enorme
extensão de terras viabilizava a criação de animais. Essa pecuária também era extensiva,
dando condições de aluguel ou arrendamento de pastos. O rebanho da fazenda estava
distribuído em até 22 currais, e chegou a contabilizar mais de 10.000 animais, entre vacum,
eqüino, caprinos, ovinos, aves e outros animais.47
Fridman assevera que, havia também produção pesqueira e de várias manufaturas,
devido à existência de carpintaria, fábrica de canoas, de móveis, de cerâmica e de artigo de
couro, olaria, ferraria, serraria.
um estaleiro em Piranema (às margens do rio Guandu para construção de
embarcações e reparos das naus dos jesuítas e dos seus vizinhos), tanoaria,
atividades de ourives, de prateiros e de tecelagem, forno de cal, hospital, botica, casa

1093
de farinha, engenhos, prisão de escravos, moradias dos foreiros, armazéns e
senzalas48

Para fazer essa produção circular, utilizava-se uma rede de canais, rios e portos dentro
da fazenda. Pelo rio Guandu, e canais São Francisco e Itá, se chegava até ao porto da Baia de
Sepetiba, em frente à Ilha da Madeira. Havia a Valinha, outra vala que desviava as águas do
Guandu para o rio Itaguaí, aberta pelos jesuítas, por onde era feito o transporte das
mercadorias das freguesias de Marapicu, Jacutinga e Campo Grande. Um canal artificial
chamado de Vala do Trapiche foi aberto pelos padres antes do engenho de Itaguaí49.
Com intuito de obter mais mão de obra para a Fazenda e contingente para povoamento
sob seu controle, que chegou a atingir a marca de mais de duas mil pessoas, os jesuítas
utilizaram-se de miscigenação. Realizaram o casamento de quarenta índias com negros
africanos 50 . E a fim de tornarem as terras bem utilizadas e render financeiramente, os
inacianos dispuseram de compartilhamento com foreiros, formando pequenas propriedades
dentro da fazenda.51
Essa estrutura demonstra que, para mantê-la, foi necessário um profundo
conhecimento de administração, gestão de negócios e de pessoas. Nesse aspecto os inacianos,
com desenvoltura, souberam utilizar-se dos recursos que estavam disponíveis, como também
se fazer preponderantes à necessidade da Coroa Portuguesa de arregimentar parceiros nesse
projeto de ocupação do espaço na América Portuguesa.52
Percebemos que para atingir a excelência durante a administração da fazenda, os
jesuítas estavam fundamentados na multiplicidade de formação dos integrantes da ordem, e
que se baseavam na tríade catequese, defesa e subsistência. Além de se fazerem contínuos,
simétricos e unidos53.
E essa missão de ocupação do espaço através de assentamento, de conversão dos
silvícolas à fé cristã e à cultura européia, transformaram os inacianos em colonizadores e
colonos. E essa percepção fica evidente na Fazenda de Santa Cruz, considerando-se a sua
especificidade, extensão, complexidade de manutenção e a partir do momento em que
aglutinava a função de conversão, zelo pela manutenção da doutrina cristã, davam instrução
aos nativos e escravos, administravam e eram os proprietários dos meios que permitiam a
realização das atividades produtivas.54
Na Fazenda Santa Cruz a administração evidenciava mostras de uma economia rural
que, resumia em suas atividades agropecuária, a “civilização material do Brasil-Colônia”. A
partir dessa administração, a contribuição pecuniária e material ao fundo do Colégio do Rio
de Janeiro, permitia a assistência aos demais colégios espalhados pela colônia.55

1094
A FORMAÇÃO DA ALDEIA Y-TINGA

Existem divergentes opiniões e contradições entre cronistas e historiadores referentes à


origem da fundação da antiga aldeia, que seria o marco do atual município de Itaguaí. As
divergências passam pela origem dos indígenas que a formaram; por quem seria o responsável
por esse assentamento; e como também, ao local de instalação desse primeiro povoamento.
Apresentaremos então, as versões existentes e seus diferentes interlocutores.

Como José de Souza Azevedo Pizarro e Araujo ou simplesmente Monsenhor Pizarro56,


que exerceu cargos eclesiásticos e civis entre 1808 e 1830, afirma que:

attrahidos pelo Governador Martim de Sá 57 , os índios habitantes da Ilha


Jaguaramenon (hoje chamada JAGUANON) para outra da sua visinhança, situada ao
sul, e conhecida com o nome de Piaçevara (hoje Itacurussá); dahi passaram ao logar
de Y-TINGA, sito entre os rios Tinguçu e Itaguahy (onde se diz Cabeça Secca), em
cujo chão instituiram os Padres Jesuítas uma aldéa e por sua direcção se levantou um
templo em beneficio dos catecumenos58

A fala afirmativa de Pizzarro está no fato de que o Livro I de batismo da aldeia de Y-


tinga, se inicia em junho de 1688, escrito pelo padre jesuíta que há época administrava o
aldeamento, conforme citação do vigário Filippe de Siqueira Unhão. E que, posteriormente,
os inacianos percebendo uma melhor localização próxima ao mar e da sede da Fazenda Santa
Cruz, transferiram a aldeia, antes do ano de 1718, para o local onde hoje se encontra o templo
dedicado a São Francisco Xavier, quando também começaram a construção desta igreja,
concluído em 1729.59
Joaquim Norberto de Souza e Silva60, por sua vez afirma que existe um desencontro de
opiniões e carência de documentos que possam apontar com certeza a época do
estabelecimento. Ainda segundo Joaquim Norberto, o aldeamento foi fundado na ilha de
Itacuruçá, “pois se reuniram Carijós ou Tupininkins, quaesquer que fosse eles, sob o nome de
Aldêa de Itinga, qualquer que fosse o seu fundador.” 61
Sua afirmativa está baseada no que consta da escritura de venda de terras em
Sapimiaguera, hoje Itacuruçá, datada de 17 de maio de 1718, feita por Dona Maria de Alarcão
e Quevedo, aos índios Itingas, onde está relatada a descrição do terreno da ilha e onde existe a
referência de localização anterior da aldeia indígena. E, alega ainda que, possivelmente, por
ter a aldeia conservado o nome por muito tempo após sua mudança para a terra firme, seria
essa a razão da controvérsia.62

1095
E quanto ao fundador da aldeia, Joaquim Norberto, alega que talvez, tenha sido Mem
de Sá, terceiro Governador-Geral, no período de janeiro de 1558 a 1572; e também depois
segundo Governador Provincial do Rio de Janeiro, no período de 1567 a 1569, que comandara
uma guerra contra os índios tamoios, aliados dos franceses, e que, para impedir nova reunião
deles nesse local, concentrou os índios descidos das capitanias de Porto Seguro e Espírito
Santo na região, delegando sua administração aos jesuítas 63.
E posto que, Martim Correa de Sá, o oitavo Governador Provincial, durante os
períodos de 1602 a 1608 e 1623 a 1632 lhes teria dado terras na região, corroborando com
essa afirmação. E que seja certa a assertiva que foram os jesuítas os que primeiros a
catequizar e civilizar os índios dos Patos, como eles geralmente apelidavam os Carijós que
habitavam a costa e suas proximidades.64
Nos três volumes de sua obra, o historiador Benedicto Freitas faz citações que
confirmam que a Baía de Sepetiba era habitada por indígenas Tamoios, Tupiniquins – aliados
dos franceses - e Temiminós – aliados dos portugueses - e que, após a expulsão, escravização
ou morte destes, através das guerras, os padres inacianos, após receberem de Tomé de Sousa,
baseado no Regimento de dezembro de 1548, a missão de aldear os índios, trouxeram em
vários contingentes, na embarcação conhecida como Fragata dos Padres, construída após o
ano de 1592, os índios carijós da Missão dos Patos, da região sul, para as aldeias de Sepetiba e
Itinga.65 E indica ainda que a Aldeia Itinga estivesse no lugar conhecido como Cabeça Seca,
entre os rios Itaguaí66 e Itinguçu, próximo ao “Saco da Ilha da Madeira”.67
Freitas detalha que o primeiro grupo que veio da Região dos Patos, no Rio Grande do
Sul, foi cerca de trezentos e cinco indígenas, e chegou à região da Fazenda Santa Cruz, em 17
de setembro de 1620; e a segunda expedição teria chegado ao transcorrer do ano de 1635.68
Luis de Almeida Portugal Soares de Alarcão Eça e Mello Silva Mascarenhas e
Lencastre, um dos Marqueses do Lavradio, que exerceu o cargo de Vice-Rei entre os anos de
1769 e 1778, em um atestado de averiguação datado de 03 de janeiro de 1786 informa que, os
padres jesuítas após terem catequizado um grande numero de índios da Lagoa dos Patos, os
trouxeram para o Rio de Janeiro, e os alojaram na Ilha da Marambaia, imaginando estarem
devolutas. Porém, após o reclame dos proprietários, os inacianos, acabaram por transportá-los
para o sítio chamado Taguahy, onde estabeleceram sua aldeia, denominada São Francisco
Xavier.69
Sinvaldo do Nascimento Souza, historiador e membro do NOPH (Núcleo de
Orientação e Pesquisa Histórica) em artigo de 1986 concordando com Joaquim Norberto,

1096
assevera que, fora na Ilha de Itacuruça onde se reuniram indígenas carijós ou tupiniquins e
que somente depois, transferidos para as terras do continente, estabeleceram a aldeia,
renomeando-a como São Francisco Xavier de Itaguaí.70
Como conseguimos perceber entre esses relatos ocorrem duplicações, supressões e
inserções de informações, e que salvo exceções documentais, são reproduções de opiniões.
Dentre essas narrativas nos parece mais consistente a soma desses relatos, pois todos têm
alguma evidencia verossímil e, principalmente, um embasamento historiográfico.
A versão que presumimos ser mais plausível seria quando informa a utilização de
indígenas tupiniquins migrados de outras regiões por volta de 1615, trazidos pelo Governador
Provincial do Rio de Janeiro Martim Correa de Sá, para presciência contra a invasão de
piratas e corsários na região da Baía de Sepetiba, e posterior assentamento em terras da Ilha
de Itacuruçá, como forma de garantir esse bastião de segurança na entrada desta enseada.
Essa localização é corroborada através da escritura de venda datada de maio de 1718
de metade da dita ilha aos próprios indígenas, onde há a citação de existência da antiga aldeia
dos itingas. Acreditamos que por sua posição estratégica a ocupação deste território deu-se
sobretudo por conta de possibilitar a defesa da região ocupada.
A administração de Itinga foi passada aos religiosos jesuítas, que já se encontravam na
região da atual Santa Cruz desde 1580, quando inicialmente receberam através de doação
parte da sesmaria de Guaratiba e adquiriram, por permuta, a outra parte. Então cientes da
necessidade de efetivação desse assentamento, migram índios carijós que se encontravam
“catequizados e semi-civilizados” da região da Lagoa dos Patos, no sul da América
Portuguesa, para reforçar esse assentamento inicial da Aldeia Itinga.71
A Carta Régia, datada de 06 de dezembro de 1647, estabelecia que as novas povoações
indígenas deveriam ficar em áreas distantes das povoações coloniais, principalmente para
afastá-los da exploração desmedida e do mau exemplo dos colonos. Baseados nessa
determinação e em decorrência dos constantes ataques dos moradores da Ilha Grande unidos
aos piratas acabaram por transferir o aldeamento. 72 Essa transferência também serviria à
necessidade de local para melhor administrá-los. Escolheram um morro no continente entre os
rios Itinguçu e Itaguaí, nomeado Cabeça Seca, entre os atuais bairros da Ilha da Madeira e
Coroa Grande.

1097
E então, erigiram uma capela onde residiam e para continuar o processo de
catequização dos gentios. Esse fato é corroborado pelo o Livro I de batismo da aldeia de Y-
tinga, que se inicia em junho de 1688.73
Os inacianos distribuíram seus primeiros moradores em locais estratégicos, como
próximo ao mar na baía de Sepetiba, assim como essa transferência dos Itingas, para um
ponto convergente entre os caminhos do sertão. 74 Essa atitude de colocação estratégica de
povoamento visava proteção da fazenda.
Houve nova mudança de local do aldeamento. Percebendo a necessidade de estarem
dentro da área de influencia da Fazenda Santa Cruz e mais perto do mar, migraram para o alto
de uma colina, onde a partir de 1718 iniciaram a construção de um templo dedicado a
Francisco Xavier, fundador da irmandade e missionário de Goa. Nesse momento o Superior
da Aldeia era o padre Nicolau Siqueira, permanecendo até o ano de 1736 quando assumiu o
padre Gualter Pereira, que ficaria até a expulsão da Ordem. 75 Esse templo teve sua obra
terminada em 1729, e permanece hoje como sede da igreja matriz do município.
Com essa nova alteração a aldeia foi oficialmente renomeada como São Francisco
Xavier de Itaguaí e para patrimônio da igreja foi adquirida metade da ilha de Itacuruça, em
maio de 1718.
O Alvará Régio de 1755, de D. José I Rei de Portugal 76 abolia a escravidão indígena, e
direcionava os religiosos das aldeias a se dedicarem apenas a vida espiritual dos índios.77
Mais tarde, em 1759 através de Leis da Corte, onde o Marques de Pombal movia contumaz
perseguição contra a Ordem, os Jesuítas perderam o controle dos aldeamentos, e foram
forçados a se retirar.78
Vale ressaltar que a vida dos índios do aldeamento Itinga era controlada pelos padres,
e eram obrigados a recolher um foro 79 anual de sete galinhas que seriam repassados ao
Colégio do Rio de Janeiro, que depois fora reduzido para cinco aves, conforme se reduziu o
espaço físico do aldeamento.
Dentro desse sistema de aldeamento os indígenas em todo o tempo deveriam prestar
serviços aos padres, a Corte e até aos colonos. Os indígenas que não se adaptavam tinham o
hábito de se refugiar na mata dentro da própria fazenda, e juntamente com escravos fugidos,
formavam quilombos, como por exemplo, o Guandu, o Bacaxá, o Palmares, o do Garcia no
Valão da Areia e o Mundéo dos Pretos na Serra do Caçador, estes dois últimos dentro do atual
município de Itaguaí.80

1098
Uma das tarefas exigidas aos aldeados era a mão de obra na construção de trechos
estradas, como por exemplo, o chamado Caminho Novo, para o escoamento da produção
vinda das Gerais, em substituição ao caminho anterior que passava por Parati, por conta de
ataques de piratas. Assim como nas várias fortalezas pela cidade, no aqueduto da Carioca,
atual Arcos da Lapa, nas cadeias públicas, nos fortes de Angra dos Reis e Parati.81
Foi com intuito de convencer os índios que haviam se retirado para a mata, que os
jesuítas fizeram a transferência última do aldeamento para o local definitivo, possivelmente
com promessas de uma maior autonomia em sua vida diária, e lida na lavoura de subsistência.
Diante disso houve prosperidade por algum tempo, pois os padres repartiram terras entre os
índios, que construíram suas cabanas.
É possível que com esse controle sobre os aldeamentos, os inacianos acabaram por
utilizar os indígenas como massa de manobra junto à administração colonial. 82 Como fica
evidente quando a administração do Reino resolveu pela abertura de um Caminho Novo por
terras, em substituição a rota Parati-Sepetiba-Rio a fim de evitar o naufrágio ou assalto das
naus, mas os custos ficariam a cargo de moradores de recursos em troca de sesmarias e cargos
honoríficos. Logicamente houve resistência de vários moradores, assim como também dos
jesuítas alegando futuras invasões em suas terras. Os inacianos ordenavam aos índios da
Aldeia de Itinga para que resistissem aos trabalhos.83
Como afirma Joaquim Norberto, o regime de estudos e trabalhos impostos pelos
missionários aos índios aldeados era duro, porém após a expulsão desses religiosos a situação
ficaria demasiado pior, pois ficariam desamparados, sem proteção de qualquer autoridade e a
mercê de aproveitadores.84 O que de fato ocorreu.
Apesar das controvérsias, de quem teria sido o fundador; quando seria a primeira
instalação; e, onde teria sido esse primeiro estabelecimento, se tem a evidencia de que os
inacianos foram os responsáveis pela administração desse aldeamento. E isso, por si só, nos
remete a certeza da importância deles na história da cidade, quando analisamos a influência
perpetrada por eles na formação da nova identidade desses indígenas aldeados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conseguimos perceber que, sem deixar de lado os emaranhados e complexos


questionamentos surgidos dos embates conceituais advindos do choque cultural, notadamente
entre modus vivendi e crenças religiosas, a preponderante participação dos padres inacianos na

1099
formação do sentimento de pertencimento à terra, notadamente dos indigenas do aldeamento
Itinga, migrados por conveniência alheia às suas vontades, foi fundamental.
Apesar de se identificar preceitos de Etnocentrismo e Eurocentrismo nas ações da
Companhia de Jesus, a ação evangelizadora construiu no seu modus operandi, métodos de
aproximação, que podem ser compreendido como “mediadores culturais”, como nomeia
Tavares. Com esse proceder, tornaram-se responsáveis por estabelecer conexão entre povos e
culturas, e também aqueles que efetivaram a comunicação, ou a transferência de um ambiente
intelectual, material ou religioso para outro.85
Podemos constatar que a missão jesuítica, notadamente na América Portuguesa situou-
se em uma dualidade entre a conversão e exploração do trabalho indígena, e entre a ação
necessária no dia-a-dia aplicando uma política indigenista, e a gestão temporal dos
aldeamentos. E como assevera Zeron, diante dessa realidade, os jesuítas concluíam que a
predominância de sua missão seria corroborada pela conveniente articulação e equilíbrio dos
aspectos políticos, econômicos, jurídicos e teológicos, e que assim se justificaria a insertação
das intervenções missionárias no território colonial.86
Dentro dessa conjuntura, somos capazes de deduzir que, especificamente no caso da
aldeia Itinga, a participação dos padres inacianos fora de fundamental importância para que
esse assentamento se configurasse como célula mater da futura cidade de Itaguaí. Essa
afirmação está baseada na certeza de que com a instalação do aldeamento, mesmo tendo sido
inicialmente com intuito de proteção regional ou reforço da mão de obra, quer da Fazenda
Santa Cruz, da colônia ou de assentamentos de colonos próximos, fora o que permitiu que a
região estivesse em condições de receber mais moradores, principalmente após a expulsão dos
inacianos.
Outro fator determinante na influencia dos jesuítas da Fazenda Santa Cruz para
florescimento da região e posterior assentamento populacional, foram as alterações que
perpetraram fisicamente na região através de trabalhos de engenharia, construção de canais e
vias de escoamento pluvial, com intuito de drenar a área ou de servir de rota de passagem para
mercadorias entre as regiões da fazenda, e que posteriormente serviria para translado
comercial efetivamente.
Após a retirada dos jesuítas da administração do aldeamento, iniciou-se uma tenaz luta
entre os índios aldeados, capacitados devido a influencia da educação passada pelos
inacianos, assim como assumida através dessa nova identidade, dessa nova concepção de
“filhos da terra”.

1100
Vale ressaltar que, esse sentimento, essa atitude demonstraram a força da ação
agregadora dos jesuítas que, em um mesmo espaço físico, administraram diferentes agentes,
diferentes grupos étnicos e sociais, com experiência de vida e perspectivas variadas, retirando
deles o máximo possível e diante disso, se criou condições de transformar o espaço da
Fazenda Santa Cruz em local de irradiação de desdobramento populacional, através da fixação
de aldeamento, capacitando a região para receber um contingente maior de pessoas buscando
um espaço na nova terra.
Evidentemente, também percebemos que para os indígenas, essa transformação de
viver, fora para eles, uma liberdade possível 87 e que, por conseguinte transformaram essa
necessidade em fator de sobrevivência, quando se “associaram” aos inacianos nesse
empreendimento colonizador.

NOTAS

1
ANCHIETA, Joseph de. XXIX.- Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584) – Cartas Jesuíticas III.
2
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno; encontros culturais, aventuras
teóricas. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2000, p.32.
3
Em, 1534, Inácio de Loyola e outros irmãos fizeram seus votos. A Companhia de Jesus foi aprovada
oficialmente pelo Papa Paulo III em 27 de setembro de setembro de 1540, através da bula
RegiminimilitantesEcclesiae. (in) FARIA, Patricia Souza de. A Companhia de Jesus. Rede de Memória Virtual
Brasileira. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/dossies/rede-da-memoria-virtual-brasileira/Acesso em
13/02/2017.
4
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno; encontros culturais, aventuras
teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p.32.
5
AMANTINO, Márcia e COUTO, Ronaldo. “De curral dos padres” à gigantesca fazenda de santa cruz”
In___.ENGEMANN, Carlos e AMANTIO, Márcia (orgs.) Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da
Coroa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.
6
Ibid, p.15.
7
FLENCK, Elaine Cristina Deckmann; STEIN, Tarcila Nienow.Feliz por morrer entre os índios e longe dos
remédios humanos. Um estudo sobre as causas de mortes de jesuítas nas Cartas Ânuas da Provincia Jesuitica do
Paraguai no século XVII. IHS. Antigos jesuitas en Iberoamérica.Vol. 1 Nº 1. 2013. Disponível
em:<file:///C:/Users/superlar/Downloads/Dialnet-FelizPorMorrerEntreOsIndiosELongeDosRemediosHumano-
5576252.pdf> Acesso em 13/02/2017.
8
As Aldeias de Repartição eram entidades cristãs com o objetivo de repartir a força do trabalho indígena e
constituir força de defesa territorial. FRIDMAN, Fania. “De chão religioso à terra privada: o caso da Fazenda
de Santa Cruz”. Simposio: Estrategiasproductivas y transformacionesdelespacio em el mundo rural. Uruguay,
Brasil y Argentina (siglos XIX y XX). Disponível em
<www.audhe.org.uy/Jornadas...Hist_Econ/.../Friedman%20Stacruz.doc>. Acesso em 05jan2017.
9
AMANTINO, Márcia e COUTO, Ronaldo. op.cit., p.18.
10
AMANTINO, 2011 p.141 apud AMANTINO e COUTO, 2013, p.18
11
AMANTINO, Márcia e COUTO, Ronaldo. Op.cit., p.19.
12
Ibid., p19.
13
Ibid., p19.
14
Projeto agrícola baseado na agromanufatura açucareira, com uma diversificação paralela de produtos, e que
garantiria autonomia na produção de alimentos, através de mão de obra escrava. E vinculação do Império

1101
Português aos centros comerciais europeus. SILVA, Francisco Carlos Teixeira. “Conquista e colonização da
América portuguesa. O Brasil colônia, 1500/1750. In:___.LINHARES, Maria Yedda (org.) História Geral do
Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990
15
AMANTINO, Márcia e COUTO, Ronaldo. Op.cit.,p.19.
16
CARTAS JESUITICAS II – Cartas Avulsas 1550 -1568. Rio de Janeiro: Officina Industrial Fraphica, p.12,
1931. Disponível em: file:///C:/Users/superlar/Downloads/003816-2_COMPLETO.pdf Acesso em 14/02/2017.
17
Ibid., p.12.
18
FREIRE, José Ribamar Bessa; e, MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Os aldeamentos indígenas do Rio de
Janeiro”. Disponível em<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/0039_11.html>.Acesso em
06jan2017.
19
PERRONE-MOISÉS, 1992 Apud ALMEIDA, Maria Regina Celestina de. “A aldeia de Itaguaí: das origens à
extinção (sec. XVII-XIX)” In___.ENGEMANN, Carlos e AMANTIO, Marcia (orgs.) Santa Cruz: de legado dos
jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013, p.46.
20
A Teoria da Guerra Justa (em latim Bellum iustum ou jus ad bellum) é um modelo de pensamento e um
conjunto de regras de conduta que define em quais condições a guerra é uma ação moralmente aceitável. Tem
suas origens no pensamento de Cicero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Hugo Grotius.Teoria da
Guerra Justa. Goldim, José Roberto. Disponível em:<https://www.ufrgs.br/bioetica/guerra.htm>. Acesso em
16fev2017.
21
SOUSA, Rainer. Escravidão Indígena. Disponível em<http://brasilescola.uol.com.br/historiab/escravidao-
indigena.htm>.Acesso em 01fev2017.
22
REINO DE PORTUGAL E DOS ALGARVES. Lei de 10 de setembro de 1611. Disponível em
<http://transfontes.blogspot.com.br/2009/12/lei-de-10-de-setembro-de-1611.html>. Acesso em 06fev2017.
23
MONSERRAT, Ruth; BARROS, Candida; MOTA, Jaqueline. Comparação entre dois diálogos de doutrina
jesuíticos tupi: João Felipe Bettendorff (1687) e José Vidigal (1740). XIII Missiones Jesuiticas Jornada
Internacionales. Simposio 3. Linguas Indígenas No Periodo Jesuiticco e Pós Jesuiticos: Historia e Sociedade.
Dourados/MS, 30 de agosto a 3 de setembro de 2013. Disponível em: <http://docplayer.com.br/36337213-
Simposio-3-linguas-indigenas-no-periodo-jesuitico-e-pos-jesuitico-historia-e-sociedade.html>. Acesso em
16fev2017.
24
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. “Conquista e colonização da América portuguesa. O Brasil colônia,
1500/1750. In:___.LINHARES, Maria Yedda (org.) História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
25
REINO DE PORTUGAL E DOS ALGARVE, op.cit.
26
FREIRE, José Ribamar Bessa; e, MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Os aldeamentos indígenas do Rio de
Janeiro”. Disponível em <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/0039_11.html>. Acesso em
06jan2017.
27
Rota idealizada por Artur de Sá Meneses, governador da Capitania do Rio de Janeiro, com o objetivo de
reduzir o tempo de viagem entre o litoral sul e as minas. Essa nova rota, iniciada em 1698 foi concluída em
1707. E depois aprimorada entre 1722 e 1725. Foi aberto pelo sertanista Garcia Rodrigues. SANTOS, Márcio. A
visão Tradicional. Revista História Viva. Temas Brasileiros n.4. Caminhos antigos & Estrada Real, p. 18-29, São
Paulo, Duetto. S/ano
28
MOREIRA, Gustavo Alves Cardoso; SANTOS, Maria de Fátima de Castro Silva; e, ASSIS, Taís Câmara da
Rocha. Coletânea de nossas memórias. Itaguaí, a cidade do porto. Rio de Janeiro. SMEC, 2010.
29
FREITAS, Benedicto. Santa Cruz: fazenda jesuítica, real e imperial. A Era Jesuítica. Rio de Janeiro: Edição
do Autor, 1985. v I.
30
FREITAS, op. cit.,p.34.
31
MOREIRA; SANTOS; ASSIS. op. cit., p.10.
32
FREITAS, op. cit., p.34.
33
Ibid, p.35.
34
O Rio Itinguçu é a divisa entre os atuais municípios de Itaguaí e Mangaratiba.
35
FREITAS, op. cit.,p.36.
36
O sistema de medidas utilizado na colônia era muitas vezes adaptado às condições concretas defrontadas pelo
colonizador e, em alguns casos, distinto do adotado na metrópole. As medidas apresentam variações tanto no
correr do tempo, como no referente ao espaço geográfico. Dentro dessa concepção, 1légua equivaleria a 3.000
braças, que equivaleriam hoje a 6.600 metros. Boletim de História Demográfica. Ano I, n.1, abril de 1994.
Disponível em:<http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd1.htm#pesos>. Acesso em 30mar2017.
37
FREITAS, op. cit.,p.36.
38
Ibid.,p.36.
39
Ibid.,p.37.
40
Ibid.,p.40.

1102
41
Ibid.,p.39.
42
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuru, 2008.
43
Ibid., p.62 e 63.
44
SCHWARCZ, Lilia Moritz; e, COSTA, Angela Marques. As residências de D.Pedro. In:___ SCHWARCZ,
Lilia Moritz (org.). As barbas do Imperador. D.Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
45
AMANTINO, Márcia e COUTO, Ronaldo. “De curral dos padres” à gigantesca fazenda de santa
cruz”.In:___.ENGEMANN, Carlos e AMANTIO, Márcia (orgs.) Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da
Coroa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.
46
FRIDMAN, Fania. “De chão religioso à terra privada: o caso da Fazenda de Santa Cruz”. Simposio:
Estrategiasproductivas y transformacionesdelespacio em el mundo rural. Uruguay, Brasil y Argentina (siglos
XIX y XX). Disponível em <www.audhe.org.uy/Jornadas...Hist_Econ/.../Friedman%20Stacruz.doc>. Acesso em
05jan2017.
47
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuru, 2008.
48
FRIDMAN, Fania. op. cit.02.
49
Ibid., p.02.
50
FREITAS, Benedicto. Santa Cruz: fazenda jesuítica, real e imperial. A Era Jesuítica.Rio de Janeiro: Edição
do Autor, 1985. v I.
51
SCHWARCZ; e, COSTA,op.cit..
52
FREITAS, op. cit.,p.129-130.
53
FREITAS, op.cit., p.127.
54
Equipe da Secretaria Municipal de Educação do Município do Rio de Janeiro. “Do Descobrimento às
colonizações”. Disponível em:<HTTP://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/ colonizados.html> Acesso
em 30mar2017.
55
FREITAS, op. cit.,p.124.
56
Nascido em 1753 na cidade do Rio de Janeiro, bacharelou-se em Cânones na Universidade de Coimbra.
Recebeu o Presbiterato em 1780. Em 1801 recebeu a mercê do hábito da Ordem de Christo e a conezia da Santa
Igreja Patriarcal. Exerceu as mais altas funções civis e eclesiásticas, como Conselheiro de D. João VI, tesoureiro
e arcipestre da Capela Real, entre outras. Em 1781 começou a organizar a história do Bispado do Rio de Janeiro,
que acabou por se tornar uma fonte de informações e dados. (Moraes, Rubens Borba. Prefácio In:___PIZZARO
e ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. RJ 1946. Instituto Nacional do
Livro do Min.da Educação e Saúde. 1v.)
57
Governador Provincial do Rio de Janeiro no período de 1602-1608 e entre 1623-1632. (Silva, Paulo Roberto
Paranhos da. História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ZEM, 2008).
58
PIZZARO e ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. In:___.Pinto.A.M.
Diccionario Geographico do Brazil. Biblioteca Nacional. 1875 (?)R 918.1 P659 V2 p.206.
59
PIZZARO e ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. RJ 1946. Instituto
Nacional do Livro do Min.da Educação e Saúde. 5v. p. 90-91.
60
Nascido no Rio de Janeiro em 1820, funcionário público, poeta, romancista, teatrólogo, polígrafo, pesquisador,
biógrafo. Colaborou em vários periódicos e na Revista do IHGB, para qual entrou em 1841, tendo chegado a
presidente. (Literatura Digital. Disponível em:<http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/autores/?id=6718 >
Acesso em 03Mai2017).
61
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Memória Histórica e Documentada das Aldeias de Índios da Província
do Rio de Janeiro. RIHGB. 3ª Série, nº 14, p. 180. Rio de Janeiro: abr-jun. 1854. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/0B_G9pg7CxKSsTjhYQTc5U2ZxdGM/vieworg.br/publicacoes/revista-ihgb.
html>.Acesso em 07fev2017
62
Ibid., p.181.
63
Ibid., p.180.
64
SILVA, op.cit.,p.179-180.
65
FREITAS, op.cit., p.131.
66
Hoje o Rio Itaguaí é o marco de divisa entres os municípios de Itaguaí e Rio de Janeiro.
67
FREITAS, op. cit.,p.176.
68
Ibid., p.190.
69
SILVA, op. cit.,p.358-361.
70
Souza, Sinvaldo Nascimento. História de Itaguaí. Rio de Janeiro: N.O.P.H.,1986.
71
FREIRE, José Ribamar Bessa; e, MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Os aldeamentos indígenas do Rio de
Janeiro”. Disponível em<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/0039_11.html>.Acesso em
06jan2017.
72
FRIDMAN, op.cit.

1103
73
PIZZARO e ARAUJO, op.cit., p. 90.
74
FREITAS, op.cit.,p.123.
75
Ibid., p.86 e 89.
76
VARNHAGEN, Francisco Adolpho. Historia Geral do Brazil, vol. 2, p. 242-245. Disponível em:
<http://books.google.com.br/books?id=Gl0OAAAAQAAJ&pg=PA242&dq=alvar%C3%A1+%224+d
e+abril+de+1755%22&lr= > Acesso em 07fev2017.
77
FRIDMAN, op.cit.,
78
Livro Municípios em destaque. E.R.J. G918.154 M 966 v.1, p.231.
79
Pagamento ao real proprietário pelo domínio útil do imóvel. Anfiteuse, Foro e Laudêmio. Disponível
em:<http://creci-rj.gov.br/enfiteuse-foro-e-laudemio/>. Acesso em 04Abr2017.
80
FRIDMAN, op.cit.
81
FREITAS, op.cit., p.176-177.
82
MOREIRA, Gustavo Alves Cardoso; SANTOS, Maria de Fátima de Castro Silva; e, ASSIS, Taís Câmara da
Rocha. Coletânea de nossas memórias. Itaguaí, a cidade do porto. Rio de Janeiro. SMEC, 2010.
83
FREITAS, op.cit., p.194.
84
SILVA, op.cit.,p.182.
85
TAVARES, Celia Cristina da Silva. A fundação da Companhia de Jesus no embate das Reformas. Jesuitas e
Inquisidores em Goa: A Cristandade insular (1540-1682).p.92-93. Portugal,Lisboa: Roma Editora, 2004.
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mundo luso-americano. Clio-Série Revista de Pesquisa Histórica, n.,27-1, 2009. Disponível em
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Itaguaí: das origens à extinção (sec. XVII-XIX)”In___.ENGEMANN, Carlos e AMANTIO, Marcia (orgs.) Santa
Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013, p.45.

1104
A RELAÇÃO ENTRE OS KAMIKAZES E A MORTE

THE RELATIONSHIP BETWEEN THE KAMIKAZE AND DEATH

Jonathan Cesar Rodrigues 1

Resumo: A morte na cultura japonesa apresenta uma forma singular de nacionalismo durante
a Segunda Guerra Mundial, que esta pesquisa visa compreender por meio da análise da
propaganda kamikaze, e da escrita de si dos pilotos kamikazes. Este ensaio é uma abordagem
da relação entre os pilotos kamikazes e a morte, que dialoga com o viés oficial e individual,
por uma perspectiva histórica e cultural. São consideradas as dimensões ideológicas,
materiais, culturais, psicológicas, assim como a tradição samurai estabelecida no período
Meiji.
Palavras-chave: kamikaze, Morte, Bushido

Abstract:Death in Japanese culture presents a unique form of nationalism during World War
II, which this research aims to understand through the analysis of kamikaze propaganda, and
the self-writing of kamikaze pilots. This essay is an approach to the relationship between
kamikaze pilots and death, which dialogues with official and individual discourses. The
ideological, material, cultural, and psychological dimensions are taken into account, as is the
samurai tradition established in the Meiji period.
Keyword: kamikaze, Death, Bushido

Em Outubro de 1944, o Japão surpreende o mundo com a utilização da sua mais


poderosa arma militar: a morte. O uso de aeronaves tripuladas carregadas de explosivos como
projétil teve a sua primeira missão em 25 de Outubro de 1944, quando cinco aviões japoneses
conseguiram afundar um porta aviões americano. Esta não foi a primeira vez na história que
aconteceu ataques suicidas em guerras, sendo atos individuais altruístas ou coletivos, contudo
foi a primeira vez que um Estado utilizou este recurso como a sua principal arma de combate.
Os pilotos kamikazes, que durante grande tempo foram objeto de curiosidade no
Ocidente, como uma manifestação exótica de uma cultura ainda mal compreendida. Eram

1
Bacharel e Licenciado em História pela UFRJ, mestrando em História Social pelo PPGHIS/UFRJ. E-mail:
marvel948@hotmail.com.

1105
parte de um esquadrão de ataques especiais oficial, subordinado a marinha japonesa, criado
em 20 de Outubro de 1944. Maurice Pinget em seu livro A morte voluntária no Japão conta
que dia 19 de Outubro, o vice-almirante Takijiro Onishi, responsável pelas forças aeronavais
nas Filipinas, se reuniu com os seus subordinados e argüiu sobre o recente desembarque
americano, e que estava por começar em breve uma batalha naval decisiva onde os métodos
ordinários não eram suficientes para detê-los, era necessário uma nova estratégia capaz de
surpreenderi os adversários. Onishi propôs como recurso, utilizar caças do tipo Zero,
carregado com uma única bomba de 250 kilos, para se lançar contra o porta aviões inimigoii.
Quando a operação foi instituída, em 20 de outubro de 1944, a ideia parecia ser um
tanto quanto desesperada, e nenhum oficial treinado pelas academias militares se voluntariou,
pois eles acreditavam que esta era uma missão sem sentido, e tendo como fim a morteiii.
Contudo, em 25 de Outubro de 1944, aconteceu a primeira ação do recém criado esquadrão,
que a principio era composto de quatro esquadrilhas.
Em sua primeira ação, quatro aviões da esquadrilha Shikishima, de cinco, conseguiram
atingir e destruir o porta-aviões americano St. Loiv. A Unidade de Ataques Especiais, que em
japonês se chama Tokubetsu Kôgekitai, abreviado Tokkotai, obteve um sucesso militar
imediato que justificou a sua adoção como principal ferramenta de defesa japonesa, tendo em
vista os precedentes da guerra.
O Japão entrou em guerra contra os Estados Unidos consciente de que não seria capaz
de guerrear em longo prazo contra a potência Ocidental. O almirante Yamamoto responsável
por planejar o ataque a Pearl Harbor, que foi o ato inicial da guerra contra os americanos,
advertiu que a indústria americana rapidamente iria se recuperar dos danos infligidos pelos
japoneses no inicio da guerra.v
O Japão necessitava para a sua conquista na Ásia de petróleo e ferro, que eram
importados, sobretudo dos Estados Unidos. No entanto, o rápido expansionismo japonês na
região, somado a questão da Europa, fez com que as potências ocidentais que antes
mantinham relações econômicas com o Japão, implementassem um embargo como medida
cautelar. A necessidade de romper com esse embargo econômico do ocidente, após o fracasso
das vias diplomáticas, fez com que os japoneses buscassem forçar os americanos a desistir do
embargo, e abandonando a prudência e ignorando as previsões sobre a guerra.
O contexto material é importante para a compreensão do Japão ter começado a guerra
contra os Estados Unidos, assim como o agravamento deste contexto é importante para a
formulação do Esquadrão de Ataques Especiais. Se a guerra começou devido a questões
materiais, a destruição das maquinas de guerra e o corte de suprimentos levaram a

1106
implementação da tática kamikaze, na medida em que esta foi criada no momento da guerra
quando o Japão perdeu a iniciativa e já não disponibilizava de meios tradicionais para
enfrentar as forças armadas americanas.
A batalha de Midway foi um marco na guerra do Pacifico, que significou a virada da
guerra em favor dos Aliados. O almirante Yamamoto, sabendo da necessidade de vencer
rapidamente a guerra contra os Estados Unidos, organizou uma armadilha com o objetivo de
destruir a frota americana remanescente de navios e porta aviões, além de conquistar um
ponto estratégico no Pacifico. Os americanos, contudo, haviam decodificado a comunicação
japonesa, organizando uma contra-estratégia de grande sucesso bélico. Ao final desta batalha,
os japoneses conseguiram destruir apenas um porta-aviões americano, às custas de quatro dos
seus porta-aviões e cerca de 250 aeronaves, sendo esta uma grande perda, na medida em que o
Japão tinha grandes dificuldades em repor as suas peças de guerra.vi
Ainda sobre a questão material, conforme Antony Beevor, os Estados Unidos
conseguiram exceder em muito as expectativas do almirante Yamamoto. O programa de
construção de navios americanos mostrou-se surpreendente, e o país também mostrou ser
capaz de se equiparar e superar a tecnologia aeronáutica japonesa. A Marinha japonesa
contava no início da guerra com os caças mais poderosos do mundo, o Mitsubishi A6M Zero,
que era extremamente ágil e de grande manobrabilidade. Contudo, já em 1944, os Estados
Unidos já conheciam os pontos fracos do Zero, que estava na sua falta de blindagem e sistema
de combustível, e já haviam criado estratégias contra os Mitsubishis, além de já ter
desenvolvido um avião superior ao Zero, o Grumman F6F Hellcat. A indústria japonesa não
tinha como competir com a americana, e em pouco espaço de tempo, os americanos
desenvolveram novas tecnologias e construíam novas peças, enquanto os japoneses mal
conseguiam atualizar o Zero. vii
Apesar da questão material ser importante, e explicar o momento delicado que o Japão
se encontrava no momento de criação do esquadrão Tokkotai, por si só não explica como a
sociedade aderiu a sua máquina estatal de morte. Algumas questões psicológicas e culturais
são fundamentais para explicar as ações políticas e militares. A compreensão dos sentimentos
japoneses neste momento é importante para entender como o seu sentir, tinha reflexo sobre a
sua maneira de pensar.
A questão religiosa aparece enquanto uma chave fundamental para a compreensão das
ações japonesas durante a Segunda Guerra Mundial. O povo japonês se via enquanto um povo
superior aos demais. Diferente dos alemães, que acreditavam na superioridade do seu povo
com base em uma visão cientificista da sua raça, os japoneses acreditavam serem superiores

1107
aos outros povos devido a sua ancestralidade divina. Dentro da mitologia shintoísta, o Japão,
os japoneses e o imperador são descendentes diretos dos deuses primordiais Izanami e
Izanagi. O imperador é um descendente direto de Amaterasu Omikamia, a deusa sol nascida
da lágrima do olho esquerdo de Izanagi, e designada pelo mesmo para reinar sobre os outros
deuses e o homem.
O discurso religioso foi um dos combustíveis para a expansão imperialista japonesa,
tendo em vista a sua ancestralidade divina, os japoneses deveriam guiar os outros povos
(asiáticos) e governar sobre eles, assim como Amaterasu. No momento da guerra em que o
Japão passa a perder, o governo vai encontrar no shintoísmo bases ideológicas para justificar
a utilização dos kamikazes.
O viés oficial da Tokubetsu Kogekitai
O Ocidente – visto como – corrompido pelo capitalismo tinha claramente superado os
japoneses tecnologicamente, contudo o Japão ainda tinha em sua pureza espiritual o
diferencial que iria trazer a vitória para o povo do país do sol nascente. Assim o esquadrão
tokkotai, adquire a característica de uma arma espiritual, uma vez que as armas mecânicas não
davam mais conta. O aparato religioso envolvia os pilotos em uma lógica divina, o avião
passou a ter uma relação sagrada com o piloto, onde a força de vontade do piloto, e a sua
pureza de espírito eram a única arma necessária para destruir o seu inimigo, “Se a vontade é a
medida de força, a morte é a medida da vontade”viii.
A própria relação dos tokkotai com o nome kamikaze, é uma relação que possuí uma
dupla conotação, espiritual e tradicional. O termo japonês kamikaze, que em português
significa vento divino, remete ao Japão antigo, quando uma poderosa frota mongol se dirigia
para invadir o Japão, que se encontrava indefeso. Os kami interviram em favor dos japoneses,
na forma de kamikazes, sendo o vento uma entidade, que foram poderosos furacões que
dizimaram a frota mongol, antes mesmo de ela chegar ao solo japonês. Ao relacionar a
Tokubetsu Kogekitai com o mito kamikaze, a propaganda governamental conseguiu justificar
o recrutamento de jovens para o auto-sacrifício, transfigurando os pilotos em entidades
protetoras do sokokuix.
Se a intenção era atacar com o espírito japonês, para além da única possibilidade
material de ataque, era desejável que este espírito possuísse fortemente a essência do que se
considerava de mais puro e único no Japão, um espírito ideal. Então como critério para a
seleção dos pilotos, era estabelecido que fossem somente os voluntários, uma vez que o
querer dar sua vida para a nação, significava força e certeza espiritual. Outro critério que foi
adotado foi a busca por jovens promissores e talentosos. Somente aos melhores era oferecida

1108
a honra de morrer pelo país e tornar-se um kamikaze, uma entidade que iria proteger a nação
eternamente.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo japonês utilizou o Yasukuni Jinja
como uma ferramenta ideológica. Diferente dos soldados alemães que eram ditos para matar,
os soldados japoneses recebiam ordens para morrer. A morte exerce um papel de ápice da
honra, se apropriando da tradição samurai. A morte tem um papel sagrado, que a partir da Era
Meiji, adquire um templo específico para os soldados japoneses mortos. O Yasukuni Jinja foi
construído em 1869, para abrigar os espíritos dos guerreiros mortos na Guerra Boshin, e desde
então vem recebendo os espíritos dos combatentes japoneses. Conforme David Earhart, a
ideologia por trás da transformação dos combatentes em guerreiros deuses, se transformou em
um código nacional de conduta, que prometia imortalidade a aqueles que se sacrificavam pelo
imperador, e traziam honra para as suas famíliasx.
David Earhart aponta que a ideologia do Yasukuni Jinja esta intimamente ligada com
Kokutai. Uma vez que o Kokutai é a conexão sagrada o imperador (no caso da Segunda
Guerra, Hirohito, descendente de Amaterasu), o povo japonês ( que devem ser subordinados a
vontade do imperador, e lutar por ele), e o Japão. O imperador deve ser responsável por
presidir os rituais que empossam os soldados mortos no templo, garantindo que os espíritos
destes alcancem os seus ancestrais; O povo deve cumprir com as suas obrigações com o
imperador, para assim receber a sua proteção e direção sagrada; O Japão é o local sagrado que
vai acolher os espíritos dos seus guerreiros tornados divinos.xi
Ainda relacionado à questão espiritual, a opção por jovens promissores também possuí
a estética japonesa da sakura. Em uma relação estética e afetiva milenar com a flor de
cerejeira, que tem por características o fato de ter o desabrochar imprevisível, a grande beleza
de suas flores, e o curto prazo de vida das mesmas. A sakura é uma flor que possuí grande
papel no imaginário japonês, aparecendo com grande freqüência nos lugares de subjetividade,
como poesias, pinturas, literatura, sendo adotada enquanto emblemas de clãs e símbolos
imperiais. A imagem dos pilotos kamikazes foi relacionada com a sakura, justamente por esta
ideologia nacionalista na qual a sakura fazia parte, e além da óbvia comparação entre as suas
vidas e na relação criada com a flor após a morte dos guerreiros. A flor de cerejeira é uma
árvore nativa do Japão, e tida no shintoísmo enquanto parte da entidade espiritual que é o
Japão, assim como o Monte Fuji. Sua presença une o belo com o sagrado, estando presente
nos templos, inclusive no Yasakuni em Tóquio.
A flor de cerejeira, além da sua importância estética, cultura e espiritual, também está
intimamente relacionada com o bushido. Bushido, que significa literalmente “caminho do

1109
guerreiro”, é um emaranhado de valores atribuídos a partir da Era Meiji à extinta classe
samurai. Trata-se de uma romantização e idealização saudosista sobre o que era ser um
samurai, trazendo consigo uma ideia de essência do que é o Japão e o que é ser japonês. Com
a modernização do Japão, pelo imperador Meiji, uma das medidas foi o banimento da divisão
dos japoneses em castas. A classe guerreira samurai deixou de existir por uma imposição
estatal, contudo, o Estado a fim de desenvolver o seu nacionalismo nos moldes moderno,
apropriou-se dos valores samurais, e disseminou por toda a sua sociedade através das suas
instituições.
A classe samurai foi por séculos no Japão detentora do monopólio da violência, e por
isso era vista pelas outras classes, como uma classe repressora e improdutiva. A estrutura
social era baseada no Shi-No-Ko-Sho, onde transição entre as classes sociais eram
impossíveis, e determinadas pela linhagem. Cada classe tinha o seu papel, o Shi, eram os
samurais, estando no topo da hierarquia; seguidos pelo No, que eram os camponeses; os Ko
que eram os artesãos e os Sho que eram os mercadores. Todas as classes eram subordinadas
ao daimiô, que era o senhor feudal, e o mesmo estava subordinado ao imperador ou ao shogun
dependendo da época. As classes viviam, se identificavam e morriam em uma ligação direta
com a terra que era propriedade do daimiô, devendo a ele a sua lealdade.xii
A honra samurai estava em servir com a espada e sua vida ao daimiô, independente
deste ir contra o imperador ou a favorxiii. Esta honra consistia em lutar sem rendição, uma vez
que se o samurai se rendesse perante o inimigo, ele estaria colocando a sua vida acima do seu
compromisso com o daimiô. Portanto a vida possuía menor importância do que a honra de
obedecer. Com a Era Meiji, e a centralização do poder na mão do imperador, este sistemas
não mais se adequavam ao mundo moderno, contudo a honra de obedecer dos samurais
aparece como um elemento importante a ser aproveitado para o controle social do Estado
sobre a vida dos japoneses. A modernidade japonesa nasce sob o signo da vanglória de
obedecerxiv.
Dentro do contexto kamikaze, a morte apresenta dimensões diversas. O morrer do
kamikaze trás consigo uma carga ideológica que mistura os aspectos religiosos que significa a
possibilidade de transcendência a uma forma divina superior, onde o seu espírito será para
sempre venerado no Yasukuni Jinja. A mesma morte também possuí a conotação nacionalista,
de defender a sua pátria no momento em que ela se encontra indefesa. Uma conotação
estética, trata-se de uma morte com a beleza da flor de cerejeira. E possuí o aspecto da honra,
na medida em que apenas os mais honrados são capazes de carregar consigo o peso de
abandonar a vida em plena juventude, de acordo com o código samurai.

1110
O viés individual do Tokubetsu Kogekitai
Conforme vimos, o Estado japonês oferecia um aparato ideológico que não somente
justificava a morte dos seus combatentes, como também tornava desejável a glória do
sacrifício pela nação. Neste ensaio não pretendo explorar somente o aparato institucional que
será a base do que Earhardt chamou de kamikazeficaçãoxv da sociedade, que envolve as
instituições de ensino, as forças armadas, as religiosas e a familiar, que são os meios de ação
do Estado sobre os indivíduos, responsáveis pela disseminação ideológica. Outro ponto a ser
considerado é o viés individual, que pode ser conflitante com a ideologia do Estado, e que no
caso dos kamikazes acabava por oferecer um caminho paralelo ao que a sociedade esperava
deles, e que levava ao mesmo fim, a morte.
O aparato ideológico da sociedade japonesa, fomentado pelo Estado, oferecia
mecanismos responsáveis pela adesão dos indivíduos a causa militar, e adesão ao sacrifício
pelo bem da nação. Contudo, para alguns indivíduos esses mecanismos não eram suficientes a
sua adesão à causa imperial. No livro Kamikaze Diaries: reflections of japanese student
soldiers, a antropóloga Emiko Ohnuki-Tierney analisa escritos deixados por combatentes
kamikazes eruditos, e apresenta novas perspectivas sobre os pensamentos e sentimentos dos
pilotos kamikazes.
Este livro é importante para além da analise da autora, pois ele traduz para o inglês os
escritos de combatentes, que antes só haviam sidos publicados em japonês em limitadas e
algumas antigas edições. Dentro dos casos analisados por Ohnuki-Tierney, está o de Hayashi
Ichizō, um jovem recém graduado em economia pela Imperial Universidade de Kyoto,
selecionado como kamikaze, e morto em 12 de Abril de 1945, aos 23 anos. Somente os
escritos de Ichizō publicados integralmente por Ohnuki-Tierney serão levados em
consideração para esta analise.
Hayashi Ichizō nasceu em uma família cristã, sendo o filho homem mais velho, e
tendo duas irmãs mais velhas, e um irmão mais novo. Aos dois anos de idade perdeu seu pai,
que era um professor universitário e o responsável por introduzir o cristianismo na família. O
seu pai era entusiasta do lema “Iluminismo e Civilização”, e mesmo após a morte, teve grande
papel na formação familiar através de sua esposa, tanto nos estudos, quanto na religiãoxvi.
Hayashi Matsue, a mãe de Ichizō, não pode passar muito tempo com os seus filhos, em
decorrência da necessidade de trabalhar para sustentá-los, o cristianismo e a bíblia cumpriu
um papel fundamental na família Hayashi, dando a eles uma identidade e uma união
espiritual. Vale destacar que o cristianismo no Japão havia sido banido e proibido por séculos,

1111
e só veio a se tornar legal com a Revolução Meiji e a abertura do Japão para as modernizações
ocidentais.
Hayashi Ichizō começou a escrever o seu diário em 9 de janeiro de 1945, enquanto
servia na Coréia, e conforme o seu diário e suas cartas, o sua escolha pela Marinha japonesa,
se tratou de uma estratégia para fugir do Exército. Na época, muitos estudantes universitários
pensavam que o Japão era controlado pelo Exército, que era notório pela sua tradição feudal e
sua brutalidade. Esses estudantes viam a Marinha enquanto uma instituição ocidentalizada,
que não possuía a mesma disciplina rígida que o tradicional Exércitoxvii.
Contudo a sua estratégia inicial de fugir da truculência do Exercito, tornou-se em algo
pior. Ichizō contrariando a sua família escolheu se alistar para a Marinha, com medo de ser
alistado para o Exercito compulsoriamente, e acabou sendo selecionado para ser um piloto
tokkotai. Hayashi Ichizō foi selecionado, não voluntário.
Ichizō era um jovem cristão, universitário, que não tinha interesse em uma vida militar
e que não se sentia confortável com a sua morte prematura. Ao analisar seus escritos,
conforme o passar dos dias convivendo com o espectro da morte, é perceptível que o seu
nacionalismo oscila, mas não se esvaí conforme o tempo de sua vida corre. Conforme o
escrito do seu diário do dia 23 de Fevereiro de 1945:
“It looks like our life will last only about three months. I have
dreaded death so much. And yet, it is already decided for us… My
environment in the past was beautiful. So, I fell I can die dreaming. But
when I think of my mother, I cannot help but cry.(…) There must be some
consolation in dying beside His Majesty. But for my mother, my death is
final. I cry as I think of my mother (…) I know my country is beautiful…
My earnest hope is that our country will overcome this crisis and prosper. I
can’t bear the thought of our nation being stampeded by the dirty enemy. I
must avenge it with my own life.
To be honest, I cannot say that the wish to die for the emperor is
genuine, coming from my heart. However, it is decided for me that I die for
the emperor…
I Shall not be afraid of the moment of my death. But I am afraid of
how the fear of death will perturb my life.”xviii
Ichizō reconhece desde o principio que a sua morte está decidida, não é algo que está
ao seu alcance contestar. Então como um mecanismo para conviver com o medo da morte, ele
se apropria dos discursos imperiais - como morrer pelo Imperador/Japão e proteger os seus
entes queridos dos inimigos – para seguir vivendo. A sua morte não foi uma opção escolhida,

1112
foi uma condição dada. Ichizō não se voluntariou com base no discurso do Estado japonês, ele
se apropriou do discurso para tentar encontrar algum propósito na sua morte já sentenciada,
para que em vida conseguisse algum conforto.
Nas trocas de cartas entre mãe e filho, Matsue insiste várias vezes, e sonha em ver seu
filho casado, se tornando um pai de família, contudo Ichizō possuía uma visão muito cética
sobre a sua realidade, e suas chances de vida, e, portanto se negava em adquirir matrimônio.
O casamento de pilotos tokkotai era uma pratica comum, visto com uma possibilidade de
conforto para o piloto. Conforme o seu diário, no dia 29 de Janeiro de 1945:
“I have not replied to my mother’s letter yet. Her mention of my
marriage feels like something remote, although it makes me feel good. I am
definitely going to die. Of course I can marry, but I am definitely going to
die. Marriage is all right as long as it does not benefit only one party and
does not take advantage of the woman.”xix
O casamento sonhado pela mãe de Ichizō, e também desejável pelo mesmo, era uma
idéia remota. Este episódio apresenta um incomodo da condição de tokkotai para Ichizō, que
apesar de desejar ter uma relação com uma mulher, não achava justo envolver uma pessoa em
sua vida, que ele sentia que não mais o pertencia. O Estado agora era o detentor da sua vida, e
ele iria determinar até quando ela iria durar, assinalando a data de sua missão. O recrutamento
neste caso, não só determinava a sua morte, como também interferia na forma com o que ele
vivia, e nas suas relações e possibilidades de relações.
Conclusão
A filosofia de Foucault chama atenção na análise das relações entre as instituições e os
sujeitos. Ele considera que para analisar a genealogia do sujeito, é preciso “considerar não
apenas as técnicas de dominação, mas também as técnicas de si”xx.
As técnicas de dominação se dividiriam em três formas, aquelas que permitem
produzir, manipular e transformar coisas; aquelas que permitem utilizar sistemas de signos; e
técnicas que permitem determinar a conduta dos indivíduos, impor finalidades e objetivos. As
técnicas de si, são aquelas que em suas palavras:
“existe, em todas as sociedades, um outro tipo de técnicas: aquelas
que permitem aos indivíduos realizar, por eles mesmo, um certo número de
operações em seu corpo, em sua alma, em seus pensamentos, uma
modificação, e a atingir um certo estado de perfeição, de felicidade, de
pureza, de poder sobrenatural.”xxi

1113
O espaço de tempo que o piloto tokkotai tem entre a sua vida e data de morte, é o
espaço de tempo em que ele busca construir um entendimento sobre a sua morte já
determinada pelo Estado. Este entendimento trata-se de uma racionalização, mais do que um
sentimento de aceitação. Nenhum piloto de fato se sente contente em ter de dar a sua vida,
contundo a sociedade não oferece opção além da morte, pela missão, por deserção ou pelo
seppuku. Ele então racionaliza este fato, entende que para a sua sociedade é importante que
ele se sinta contente em dar a sua vida, e tenta se convencer disto. Pode-se dizer utilizando
essas técnicas de si e técnicas de dominação, que o piloto tokkotai recebe um duplo
adestramento para a morte, um por parte do Estado e outro por parte de si mesmo.
Considerando o Tokubetsu Kōgekitai como uma instituição de sequestroxxii, podemos
perceber que a relação do Estado com esses indivíduos visa uma disciplina a respeito da
morte. É um caso excepcional, diferente das instituições ocidentais, como escola, prisão e
exército, que visa exercer o biopoder sobre os indivíduos, protegendo a sua integridade e
disciplinando para a vida em sociedade, a Tokkotai exerce este biopoder visando a sua morte.
O indivíduo é transformado em um objeto, no qual o Estado se apropria e utiliza conforme a
sua necessidade, e como o Estado abordava a guerra como uma guerra espiritual, os
indivíduos foram utilizados enquanto munição.

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i
A surpresa é um recurso estratégico valorizado pela tradição guerreira japonesa. O ataque surpresa, a surpresa
de novos reforços, ou a utilização de novos métodos, visa não somente pegar o inimigo desprevenido, mas
também abalar emocionalmente o inimigo. A tradição samurai não visa apenas o domínio militar sobre seu
inimigo, visa também o domínio emocional e psicológico. MUSASHI, Miyamoto. O livro dos 5 anéis: O
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ii
PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 324.
iii
OHNUKI-TIERNEY, Emiko. Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers. USA: University of
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iv
Idem.
v
PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 319.
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vi
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de Janeiro: Record, 2015.
vii
BEEVOR, Antony. “O Pacífico, a China e a Birmânia”. In: A Segunda Guerra Mundial. 1. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2015.
viii
PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 319.
ix
Ideia de um país ancestral sagrado, base do nacionalismo japonês.
x
EARHART, David C. “Kamikazefication and Japan’s wartime Ideology: all ready to die.” Critical Asian
Studies. Vol. 37, n.4, dez. 2006. p. 569- 596. Disponível em:
<http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14672710500348463> Acesso em: 28 jul. 2017.
xi
EARHARDT, 2006, p. 576.

1115
xii
GOTO-JONES, Christopher. Modern Japan: a very short introduction. Oxford University Press, 2009. p. 30-
31.
xiii
Como exemplo, temos a lenda dos 47 ronins. Nesta lenda 47 samurais, atacam e matam um cortesão de alto
escalão, responsável pela desonra e morte do seu daimiô. Ao conseguirem a vingança, os samurais se entregaram
e cometeram seppuku, pois a vingança era um ato ilegal. O seu único objetivo, a vingança em defesa da honra de
seu mestre, é algo acima de suas vidas, acima de qualquer outro compromisso social.
xiv
Em comparação à modernização prussiana, que trouxe como signo o autoritarismo. Esta modernização
significou em sua sociedade a ascensão do sentimento autoritarista como base do capitalismo, trata-se da via
prussiana, que também pode ser observada em outros países, como o Brasil.
xv
EARHART, David C. “Kamikazefication and Japan’s wartime Ideology: all ready to die.” Critical Asian
Studies. Vol. 37, n.4, dez. 2006. p. 569- 596. Disponível em:
<http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14672710500348463> Acesso em: 28 jul. 2017.
xvi
A mãe de Ichizō, Hayashi Matsue, dividia os mesmos ideais do seu marido, e ensinava em uma escola básica
para garotas camponesas, mesmo que sendo um consenso da época a não necessidade de dar educação aos
camponeses. Matsue teria se convertido ao cristianismo devido ao seu marido, e mesmo após a sua morte,
manteve-se cristã, mesmo indo contra as recomendações de familiares e amigos. (OHNUKI-TIERNEY, 2006, p.
164-165.)
xvii
OHNUKI-TIERNEY, 2006, p. 168.
xviii
HAYASHI, ICHIZO. Hi nari Tate nari: Nikki, Haha eno Tegami, Hayashi Ichizō Ikōshu. Fukuoka: Tōka
Shobō, 1995. p. 25-29. apud OHNUKI-TIERNEY, 2006. p. 170.
xix
HAYASHI, ICHIZO. Hi nari Tate nari: Nikki, Haha eno Tegami, Hayashi Ichizō Ikōshu. Fukuoka: Tōka
Shobō, 1995. p. 20-21. apud OHNUKI-TIERNEY, 2006. p. 169.
xx
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 94-95.
xxi
Idem.
xxii
Considerando a contribuição de Foucault.

1116
O Renascimento Cultural Moderno: Análises e reflexões a partir do livro “O
Renascimento” (Nicolau Sevcenko, 1988) - Nossas heranças e a corrupção no Brasil de
hoje.
José Antônio de Andrade1
José Carlos Correia Cardoso Júnior2
Rafael Magalhães Costa3

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo expor os fatos e acontecimentos que foram
determinantes ao fim do sistema feudal existente na Europa que vigorara do século V ao XV,
e que levou ao surgimento de novas formas de contratos que, por fim, originou o capitalismo
e o que chamamos de renascimento. Partindo desta idéia de mercado e observando a questão
monetária, entender a formação dos estados absolutos e suas atribuições, como se comportou
a sociedade européia da época, bem como seu desenvolvimento e o que levou a novos rumos
e novas terras, que daí então novas civilizações. E por fim, refletir sobre a formação destas
comunidades, que baseadas na escravatura, acabam perpetuando esse sistema, transformando-
o em um racismo cultural, fundamental a corrupção.
Palavras chave: Renascimento; Estado Absoluto; Corrupção.

Abstract: The present work aims at exposing the facts and events that are decisive for the end
of the feudal system that existed in Europe from the fifth to the fifteenth century, and that was
launched at the emergence of new forms of contracts, finally, origin or capitalism and what
we call it rebirth. Starting from this idea of the market and observing a monetary question,
understanding a formation of the absolute states and their attributions, as behaved the
European society of the time, as well as its development and what led to new directions and
new lands, that is from new civilizations. And finally, to reflect on a formation of the
communities, that based on the slavery, end up perpetuating this system, turning it into a
cultural racism, fundamental the corruption.
Keywords: Rebirth; Absolute State; Corruption.

Introdução

Ao debruçarmos sobre a lente histórica e voltar nossos olhares para o nicho entre os
séculos XV ao XVI, temos a oportunidade de observar um período de vivaz transição nos
mais diversos campos que norteiam a vida da sociedade européia de então. Em tal período, os
códigos de honra cavalheiresca sede lugar a pujança de intento burguês.
O renascimento, como ficaria conhecido este período, assim chamado, pois neste
decorrer a Europa, inicia o fim de mais de um milênio do modo de produção feudal com
viscerais ligações com o catolicismo, teoria essa que tolhia a reprodução do conhecimento

1
Autor principal. Graduando do 4º Período do Curso de História do Centro Universitário São Camilo – ES. E-
mail: jaandrade1981@gmail.com;
2
Graduando do 4º Período do Curso de História do Centro Universitário São Camilo – ES. E-mail:
juninhocofril@hotmail.com;
3
Professor Orientador: Especialista em História Política (UFES) e Novas tecnologias Educacionais (FIJ).
Docente do Colegiado de História da São Camilo – ES. E-mail: raflaelmc@gmail.com.

1117
além dos mosteiros bem como das manifestações culturais independentes. Quando este
movimento surge, passa a negar toda a subjugação do pensamento, no entanto não se nega a
Deus, e se volta ao clássico do passado grego e romano, então renascimento como
humanismo, pois tirara Deus do controle excessivo de tudo e libertava o Homem ao
pensamento e ao contato com o mais sublime da natureza, ele próprio.
Desenvolve-se então, de forma concreta e lesta no seio da sociedade, administrações
setorizadas como: econômica, política e de natureza mercadológica, sendo este o motivo a
considerar o renascimento o gérmen do novo sistema que viria o capitalismo e o despertar do
pensamento racionalista, que transfere do divino para o humano inúmeras responsabilidades e
prazeres que, numa visão antropocêntrica e individualizada, o Homem passa a ocupar o centro
do pensamento e priorizar as políticas desenvolvidas. Partindo destas premissas, tendo como
ponto observação a obra de Nicolau Sevcenko podemos razoar sobre esse período histórico,
de forma estruturada e discorrer entre suas mais diferenciadas vertentes.

O Renascimento

E necessário para um bom entendimento deste processo do qual discorreremos a


seguir, antes entender o contexto histórico geral, quais acontecimentos foram de certa forma
responsáveis para o surgimento de uma nova e diferente dinâmica na sociedade européia
daquele tempo. Entender quais seriam as suas necessidades, despido de anacronismos e com o
olhar criterioso na busca dos resultados alcançados pela dinâmica anterior bem como onde ela
já não mais supria as lacunas que aparecem numa sociedade que entra em “ebulição” ante a
falência de tipos de contratos e o surgir de novos outros.
E interessante a observação de que todo processo de transição de sistemas sociais
cause turbulências e conflitos em escalas e termos de grau considerável, no entanto, tudo isso,
consideremos, estava sim, incluso no referido processo, porém neste caso, tudo acontece a
modificar toda a sociedade, até mesmo a nobreza que, em tese foi a prejudicada já se
acomodava dentre das condições do comercio, tais conflitos não chegam a ser condicionante a
uma ruptura entre as novas idéias. Outro fator de igual importância nestes acontecimentos é o
fato de que,esses novos ares trouxeram consigo refresco as tensões das massas desfavorecidas
pala vacância do sistema anterior, bem como novidades que se vertem ao consumo, que
mesmo quem não poderia possuí-las, nutria o sonho de tê-las, o que provoca uma acomodação
pela ocupação, combustível do capitalismo.

1118
Do século V ao XV a Europa vive a partir do colapso Romano, numa sociedade de
modelo feudal, onde embora possam citar as monarquias, essas acabavam sendo somente
mais uma peça em todo esse intrincado tabuleiro político, lotado de nobres ociosos que
dominavam grandes porções de terra, como também o fazia, o clero e pessoas que,
geralmente, por meios militares conseguiam ascender a tal patamar, todo o resto da sociedade
ficava preso a terra tendo como direito básico sua permanência naquele feudo, onde sob
pesados impostos produziam ao senhor. Então, dentro deste processo, o monarca passava a ser
somente mais um senhor feudal.
Neste exercício podemos observar diferenças de comportamento social em diversas
regiões. Principalmente nas periféricas que, por sua localização geográfica no litoral, são
favorecidas ao comércio, como é o caso da Itália, Flandres, Portugal entre outros. Também
possui relevância o fato de ocorrerem invasões em algumas partes, o que acaba por provocar
um nível maior de organização de uma monarquia forte.
Entretanto, para entendermos a mudança de processos, torna-se fundamental a
compreensão do colapso do exercício anterior, que para muitos historiadores, são: a peste, a
guerra e a revolta das massas.
Por volta do século XIV, entretanto, todo esse processo de crescimento entra
em colapso. Os fatores que tem sido apontado pelos historiadores como
principais responsáveis por esse reflexo do desenvolvimento econômico são:
a peste negra, a Guerra dos 100 Anos e as revoltas populares. Essa crise do
século XIV tem sido também denominada de Crise do Feudalismo, pois
acarretou transformações tão drásticas na sociedade, economia e vida
pública na Europa que praticamente diluiu as últimas estruturas feudais
ainda restante e reforçou, de uma forma irreversível, o desenvolvimento do
comercio e da burguesia (SEVCENKO, 1988, p.6).

E inegável que estes três fatores são realmente importantes dentro da questão final do
sistema feudal, pois como observamos nos últimos anos do feudalismo, acontecimentos que
terminaram por contribuir para esses no futuro - como a liberação de servos que leva a
formação dos burgos, aglomerados urbanos ao redor dos feudos que sem estrutura física,
sanitária entre outras favoreceu a possibilidade da peste, oriunda de roedores proliferados no
meio das populações urbanas, o que levou a enorme mortandade, bem como as guerras, em
especial o conflito anglo-franco que perdura por mais de um século e dizima tal como a peste
inúmeras vidas. Então, ao investigar o último fator, as revoltas, podemos tecer uma rede de
ligações com os demais, bem como observar uma teia de acontecimentos que o levaram a
cabo.
Contando então com uma taxa de mortalidade altíssima (pela peste, guerras, e lógico,
uma redução de produção direta), a fim de não diminuir seus estoques, é imposto por parte

1119
dos senhores feudais, um maior peso nos tributos, gerando insatisfação. Outro ponto que leva
direto a isso é a escassez do solo - saturada por mais de mil anos de uso continuo. Partindo
desse princípio, os antigos tributos feudais (corvéia, talha, banalidades, etc) pagos em espécie,
passam a ser substituídos por uma nova lógica monetária. A nascente capital passa a se tornar
alvo de todos os elementos sociais que, tradicionalmente, eram denominados de clero, nobres
e servos. Aos nobres senhores das terras, também conhecidos como senhores feudais, com
representatividade local privilegiada por gerações de domínio fundiário, é fundamental uma
renda oriunda de moeda. Os servos ainda presos a terra passam a vender força de trabalho
e/ou produtos. Essa adaptação da nobreza a um novo paradigma econômico ajuda a solapar o
decadente feudalismo.
Então, com o vazio deixado por esse sistema, começa a surgir uma mudança lenta e
gradual, dos limites ao centro: o Capitalismo. Com o enfraquecimento da nobreza oriunda da
crise do século XIV, as monarquias saem fortalecidas, pois deixam de ter os ideais de
lealdade e honra, começando a agir de forma mais absoluta garantindo o negócio aos
burgueses, a classe emergente e enriquecida pelo comércio. Assim,o monarca passa a atuar
como um chefe militar, arrendatário de terras, garantidor de compromissos fiscais e jurídicos.
A nova ordem social emergente, uma ordem de mercadores que passa a dominar o tempo,
levando este ao patamar de produto negociável desvinculando a vida e o calendário das
imposições da igreja católica, ou no mínimo, promovendo ruídos nesse estratagema. Eram
tempos de efervescência em todos os setores sociais.
Como citado, as monarquias assumem um novo papel, retomam o controle sobre todo
o território, a garantindo o transito dos comerciantes e seus interesses, e deles, recebendo
impostos. Tendo como função também a defesa nas guerras, ou mesmo, a promoção delas em
caso de interesse do comercio, característica que foi decisiva ao fortalecimento do capitalismo
e que perdura como tática dele até os tempos pós-modernos. Além de uma criação que era
necessária ao comércio e fundamental ao novo formato de estado que surgia, a burocracia
estatal, onde o estado se comporta como uma empresa, contábil e administrativamente
eficiente, que tinha o Rei seu controle decisivo. “Deve, pois um Príncipe não ter outro
objetivo, nem outro pensamento, nem ter outra coisa como prática, senão a guerra, seu
regulamento e sua disciplina, porque essa é a única arte que se espera de quem governa”
(MAQUIAVEL, 2010, p.54).
De tudo isso, não poderia ser outro o resultado, de instruções vindas de nada menos
que dos escritos de Nicolau Maquiavel ao Duque de Urbino, Lourenço de Médici, O Príncipe.
Obra dedicada a dar respostas a questões anteriores, o estado absoluto. Tal estado neste

1120
momento contou então com um muito eficiente manual de respostas a falidas tentativas de
organização social e a novos desafios destas organizações que estavam a surgir dentro do
novo bojo das sociedades européias, que Maquiavel viria a chamar de estado.
Desta observação deriva a concepção weberiana, hoje tornada
communisopinio, do Estado moderno definitivo mediante a dois elementos
constitutivos: a presença de um aparato administrativo com a função de
prover a prestação de serviços públicos e o monopólio legítimo da força.
(BOBBIO, 1987, p.69).

Neste caso coube a Maquiavel as mais diversas recomendações acerca da manutenção


e controle do que chamou de estado, sendo necessário ao príncipe (entende-se governante),
medidas que fogem as regras da ética e da moral, mesmo da época. No entanto, era
fundamental que isso não viesse a público, pois deveria o Príncipe parecer sempre forte, altivo
e inspirado, para tal era válido mentir, fingir e dissimular.
Todos compreendem o quanto seja louvável a um Príncipe manter a palavra
dada e viver com integridade, não com astúcia; contudo observa-se, pela
experiência, em nossos tempos, que houve Príncipes que fizeram grandes
coisas, mas em pouca conta tiveram a palavra dada, e souberam pela astúcia
iludir os homens, separando enfim os que foram leais (MAQUIAVEL, 2010,
p.63).

Em observação, jamais deveria o Príncipe governar sozinho, de certo cercar-se-á de


ministros, aos quais deveria tratar com mais bônus e subornos possíveis pois, entendia
Maquiavel que, a lealdade deve ser comprada, afinal não se trata de um dom natural, logo
sendo necessário o suborno e a riqueza ao ministro para que este estivesse em satisfação e
livre de novas ambições. Quanto ao povo, deveria ser o mais cruel possível, embora devesse
tentar mostrar com isso piedade. Recomenda-se ser temido em desfavor de ser amado, pois o
amor se troca, no entanto, o medo se mantém e traz consigo uma eficácia na dominação maior
que qualquer outra técnica. E assim, para um maior sucesso em suas empresas, deve servir-se
sempre da religião e dedicar-se a uma piedosa crueldade (MAQUIAVEL, 2010). Com todas
estas informações e baseado nas necessidades da sociedade já não mais satisfeita com as
regras anteriores, novos ventos varem a Europa trazendo consigo o que seria o novo tipo de
contrato que dominaria o pensamento ocidental.
No soprar destes ventos, uma nova visão de mundo nasce, onde o Homem passa a
ocupar o centro da vida. Digo “da vida”, pois esse movimento não negava a Deus, porém o
enxergava de uma maneira nova, rompendo com toda a tradição e delegando ao Homem, o
que é natural, e a Deus, o que é divino. Não seria de se esperar que esse processo não sofresse
reação, e sofreu por parte da igreja, que tentara recuperar o espaço perdido. Ainda neste
sentido, vem a favorecer o novo pensamento os reformadores da religião, que por premissa

1121
tomam por prática a não interferência no civil, ficando a religião mais pura. Pura não no
sentido de santidade, mas no sentido de desvinculação política - mais tarde observaremos
essas práticas por parte dos reformadores, com a união a governos e interferências impostas e
sofridas. Para a reforma religiosa, principalmente na região nórdica/germânica, torna-se
fundamental a formação dos novos estados, e assim, concluiriam de vez o rompimento com o
clero católico que representava continuidade. Em muitos casos, tomando a religião reformada
como oficial, o que era encarado como ato de afirmação, uma vez que estes reformadores
eram mais receptivos as novas idéias que, orbitavam em torno do sistema monetário
comercial, enquanto a igreja romana perdia posição e por isso, se opunha ferrenhamente a
nova ordem.
Como tudo que é novo, esse movimento cria mecanismos para uso de afirmação e
poderíamos observar inúmeros deles. Talvez um dos mais importantes seja a arte que, até o
momento, ficava ligada quase exclusivamente a arte religiosa, sendo a partir de então, objeto
de intenso uso por parte da burguesia enriquecida pelo comércio e que necessitava de
consolidação no âmbito da sociedade, e para tal, o combate à cultura que deveria ser
suplantada era importantíssimo. As figuras mais ricas faziam suas encomendas a pintores
famosos com idéias já concebidas, o que nos leva a entender que, neste processo, nada era por
acaso, não se tinha ali um ato de inspiração artística, mas sim um ato de propaganda da pessoa
quem encomendou um produto e não uma obra de arte simplesmente. Tais pessoas, os
mecenas, eram considerados como protetores das artes e cultura. “Esses financiadores de uma
nova cultura, burguesia, príncipes e monarcas, eram chamados de mecenas, isto e, protetores
das artes” (SEVCENKO, 1988, p.25).
No entanto, não podemos deixar de reconhecer que esta necessidade de uma
propaganda eficiente, levou a um aperfeiçoamento qualitativo extraordinário do que se tinha
como obras de arte antes dela.
A dramaturgia, a escrita de peças e obras literárias significou um importante
movimento de simbiose com o que se vivia nas esferas política e econômica. Política por
conseguir incutir a possibilidade de uma língua laica, abandonando muitas vezes o latim
tradicional. E econômica, por estabelecer a circularidade de moedas, produtos e serviços nos
recém-criados países europeus. Com esse alcance burguês na vida, direta ou indiretamente, de
todos na nação, delineou-se um caminho propício a fomentação de uma consciência de classe,
basilar a mudança de paradigmas tradicionais.

1122
Outro memorável invento deste período que nos chegou éa forma de governar e de
manter o poder, que deve ser feito a qualquer custo e sem medir/mensurar o esforço ou
mesmo o déficit social provocado.
Entretanto, o aumento da prosperidade econômica das cidades mercantis ao
longo de todo esse processo não contribuiria para reforçar essa solidariedade
entre as classes urbanas. Ao contrário, as guildas e corporações mais bem
sucedidas em seus negócios passam a gozar de uma situação tão favorável
que lhes permite manipular as instituições da nova republica a seu gosto,
através do suborno, da fraude eleitoral e da corrupção administrativa
(SEVCENKO,1988, p.46).

Ao anatomizar toda essa narrativa fica clara e evidente uma imensa ligação entre
passado e atualidade, onde as bases para o novo convívio social foram postas, não somente na
questão da evolução humanística, mas também no ponto onde podemos visualizar um
concreto desprezo ao ser humano que ficava fora das classes favorecidas, bem como uma
severa manipulação dos meios, a fim de manutenção perpétua do poder.
Como tínhamos, neste período, o início do fortalecimento comercial na Europa que
numa fase de transição severa, encontra-se num estágio de acomodações de poder, que se
ligava diretamente o dinheiro, então ficava em evidência os donos das casas comerciais, que
mesmo com a manutenção do sistema republicano em algumas cidades, a maioria delas, como
por exemplo, na Itália, se colocavam acima de qualquer estatuto e lei, dominando de forma
arbitrária todo o corpo administrativo local e moldando-o aos seus interesses particulares.
Como esta nova ordem que entrara em vigor, os intentos comerciais vão dominando toda a
Europa onde cada vez mais penetra e conquista, chegando o tempo em que, devido a aceitação
e a dinâmica, que é natural ao comércio e logo ao sistema capitalista, os produtos locais já não
atende à demanda, os metais preciosos tornam-se escassos na Europa, bem como a
dificuldade das rotas comerciais que a ligavam Ásia e se lançam a novos desafios, era
necessário vencer o mar.
Neste contexto, a igreja católica já intentava participar deste processo. Então, em
privilégio aos reinos, ainda fieis a primazia de Portugal e Espanha, partem a novas rotas
comerciais e por isso, a novas terras e descobertas, cabendo neste contexto a colonização do
que se tornaria a América. Tanto portugueses quantos espanhóis fundam em terras
“americanas” colônias, que se baseavam na exploração e ao atendimento das necessidades
comerciais européias.
Para atender tais intentos, no novo mundo, cria-se um modelo de exploração que
difere do sistema implantado na Europa. Dentro desde modelo coube a dizimação de povos e
a escravização de muitos outros. Nascia então um novo modelo de civilização, baseada no que

1123
há de mais perverso dentro do sistema de exploração comercial ou capitalista, onde as
oligarquias com poucos dominavam muitos. Esta dominação que começa com o uso da força
excessiva, onde tudo era justificado afim da dominação, inclusive a justificativa da ausência
de humanidade nos dominados e escravizados, que a partir desta premissa não se omitiam em
matar e torturar com o intuito da exemplificação. Mesmo com o fim, após a dominação dos
europeus estas civilizações, forjadas aqui com base na escravidão e na violência, permanecem
quase imutáveis, onde as práticas desumanas se perpetuam, pois em quase todos os casos, os
que governam o fazem com o objetivo de manutenção de elites que remontam ao período
colonial.
Ainda que seja defendida a idéia de continuidade da ligação cultural aos
colonizadores, considera-se que as mazelas perpetuadas aqui, seriam herança de um modelo
de ordem política posta em prática nos países colonizadores e que, a corrupção seria
instrumento da política colonizadora (FAORO, 2000). Não seria considerada prudente uma
linha de raciocínio similar, pois há de se considerar que as oligarquias que aqui existem, aqui
mesmo se formaram, tendo em vista que as normas representativas nas colônias não se
ligavam as da metrópole. Como por exemplo, podemos citar a escravidão que, tida como base
da sociedade colonial, nem mesmo existia na península ibérica, ou pelo menos, em sistema
similar ao aqui desenvolvido.
Considerando então que estas sociedades se desenvolveram com regras próprias, ainda
que impostas, impossível tarefa seria compará-las com as demais, inclusive as que regras
ditadas por aqui. Essas sociedades forjadas na escravidão, onde bem dividida em classes,
sempre haverá a quem oprimir e as difíceis mudanças entre as classes econômicas, coloca em
desvantagem o que menos tem, típico do sistema escravista. A escravidão acabou. Então, todo
este sistema de opressões também, imaginaria o “leigo”. Entretanto, devemos estar atentos
aos fatos: como se organiza nossa sociedade hoje? Como é dividida a riqueza em seu seio?
Qual a reação e relação das classes em tempos atuais?
Em resposta a esses e outros questionamentos observamos a mudança nas estruturas de
manutenção de poder. Onde antes era suficiente e possível a pura e simples divisão em classes
econômicas, hoje já existe contestação. E assim, surge a idéia fantástica, talvez a mais
inteligente e eficaz estratégia de dominação de todos os tempos dentro do sistema capitalista:
a divisão em classes sociais; onde é possível ao dominado sentir-se dominador, bem como
entender a “superioridade” dos mais ricos. As classes sociais são vistas como uma questão de
merecimento por deposito cultural (SOUSA, 2017).

1124
Essa dominação por divisão em classes sociais e a idéia do depósito cultural se
mostrou tão eficaz que serviu, e serve, ao interesse de manipulação entre nações, encontrando
até mesmo dentro das próprias nações “dominadas” defensores.
O culturalismo tornou-se uma espécie de “senso comum internacional” para
a explicação das diferenças sociais e de desenvolvimento relativo no mundo
inteiro. O instante de ouro do culturalismo foi a entronização da
modernização produzida especialmente nos EUA no segundo pós-guerra e
disseminada no mundo inteiro. Ela explica precisamente o porquê de
algumas sociedades serem ricas e adiantadas e outras pobres e atrasadas.
(SOUZA, 2017, p.16).

Para sedimentar esse pensamento, Raymundo Faoro (2000) entre outros escritores
brasileiros, compara a colonização dos EUA com a brasileira: onde o depósito cultural dos
colonos protestantes individualistas seria o motivo da riqueza americana, enquanto que, a
colonização brasileira, de exploração, seria culpada das mazelas de nossa sociedade, assim
justificando o que é considerado racismo cultural.

Considerações finais

Ao tratarmos o movimento renascentista com a sua real importância e ao observar com


o devido cuidado, nos deparamos com uma situação bastante singular, ou seja, não é possível
enquadrar o renascimento em um retilíneo eixo. Embora esse processo tenha acontecido e
atingido toda a Europa, o fez em tempos e maneiras distintas, ficando cada região resguardada
ainda nas suas peculiaridades.
Fato é que a estrutura de poder medieval, alicerçada no binômio “Clero x Nobreza”,
não garantiram suas maiores funções para com a sociedade, ou seja, não promoveram a
proteção desses nem espiritual, nem carnal, mediante todos os problemas que o modo de
produção feudal em voga apresentava. No campo da mentalidade desse homem recém-
moderno, os padres não rezaram o bastante, os nobres não administraram bem a propriedade e
esse feudo não satisfazia as necessidades que o fazia existir. A burguesia, o Estado Moderno e
o Capitalismo surgiam como numa súplica fervorosa duma oração desesperada. A sociedade
estava criando um novo Estado. A verdade absoluta religiosa se abria à ação do homem, ao
Humanismo.
Entretanto todo este processo, que ainda se encontra em vigor ou até mesmo em
desenvolvimento, produziu uma sociedade que vive em constante disputa, fato que levou a
explorações e subjugamentos de povos devidos a interesses comerciais, tornando-os reféns de

1125
idéias já mortas na Europa. Forjando sociedades desiguais, que se baseiam em discriminação
social e generalização de pobreza, bem como na perpetuação de poucos no poder por muito
tempo e agravando ainda mais essa situação. Conseqüentemente, tornando nações
ideologicamente fracas e, por conseguinte, de fácil dominação as nações ideologizadoras,
favorecendo as desigualdades e eternizando uma escravidão social.

Bibliografia

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política. Tradução:
Marco Aurélio Nogueira. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 256.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Vol.1.


10ª Ed. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000, p. 929.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução: Lívio Xavier. 3ª Ed. São Paulo: EDIPRO,
2010, p. 96.

SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. 2ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual


de Campinas, 1985, p. 74.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p.
240.

1126
HARRY POTTER E POLÍTICA: PARALELISMO ENTRE O ENREDO
POLÍTICO DE HARRY POTTER E AS CIÊNCIAS POLÍTICA REAIS

José Carlos Corrêa Cardoso Júnior1

RESUMO: O objetivo desse trabalho é fazer um estudo analítico-comparativo entre o


romance fantástico de J.K. Rowling, Harry Potter e as Relíquias da Morte, e algumas teorias
das ciências políticas. Sendo utilizados clássicos das ciências políticas, como Bobbio,
Maquiavel e Chevallier, o trabalho é feito a partir do comparativo de citações – uma citação
de Harry Potter com uma citação de Maquiavel, por exemplo –, dessa forma buscou-se criar
um debate acerca da aplicabilidade de conceitos teóricos em uma obra de ficção infanto-
juvenil, e como isso pode vir a contribuir para uma melhor compreensão dessas teorias e
melhor formação critico-político das novas gerações consumidoras desse estilo literário.

Palavras-chave: Política. Ciência Política. Teoria Política. Harry Potter. Poder.

ABSTRACT: The aim of this work is to make an analytical-comparative study of J.K.


Rowling's fantastic novel, Harry Potter and the Deathly Hallows, and some theories of
political science. Being used political sciences classics, such as Bobbio, Machiavelli, and
Chevallier, the work is done from the comparative of quotations - a quotation from Harry
Potter with a quotation from Machiavelli, for example - in order to create a debate about the
applicability of theoretical concepts in a infantile-juvenile fiction work, and how this can
contribute to a better understanding of these theories and better critical-political formation of
the new generations consuming this literary style.

Keywords: Politic. Politic Science. Politic Theory. Harry Potter. Power.

INTRODUÇÃO
Em 2017, são comemorados os 20 anos da primeira publicação do livro Harry Potter e
a Pedra Filosofal. Este foi o primeiro livro de uma saga que renderia milhões de dólares, ao
redor do mundo, à autora Joanne Rowling, não só, pois, como livro, mas como uma franquia
de 8 filmes bem-sucedidos e aclamados pela crítica internacional.
No entanto, Harry Potter vai além de um romance ficcional com bruxas, magos e
lobisomens; trata de censura, controle midiático, interferência do Estado na sociedade e na
educação, tomada de poder, insurreição, complôs e todo tipo de movimentação política da
realidade.
Um exemplo clássico da trama, e expressivo para todos os fãs, é o corrente no quinto
livro da saga, Harry Potter e a Ordem da Fênix (ROWLING, 2003), em que, por medo de
perder o posto alto do Ministério da Magia, Cornélio Fudge, então Ministro da Magia, nomeia

1
Graduando do Curso de História do Centro Universitário São Camilo-ES –juninhocofril@hotmail.com.

1127
uma funcionária do governo, a subsecretária Dolores Umbrigde, para ministrar aulas de
Defesa Contra as Artes das Trevas na Escola de Hogwarts, no intuito de manter um
representante presente na escola, caso algo que pudesse ameaçar a estabilidade de seu posto
acontecesse.
Essa intromissão do Ministério é uma representação clara de controle que o governo
busca exercer na sociedade. Como disse Michel Foucault (1999), “[...] Todo sistema de
educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com
os saberes e os poderes que eles trazem consigo”, sendo assim, para que o governo Fudge se
perpetuasse era preciso que qualquer forma de mudança fosse contida, colocando um
partidário vigilante no sistema educacional e influenciando as publicações midiáticas, no
caso, O Profeta Diário2.
Mas política não é o único tema abordado, embora será o foco nesse trabalho, mas
muitos outros, como: preconceito, e o conceito de “sangue-puro” para os bruxos nascidos de
famílias bruxas, “mestiço” para os nascidos de um dos pais bruxos e outro não bruxo, e
“sangue-ruim” para os nascidos bruxos de pais não bruxos; superioridade de raça e a relação
bruxos e elfos-domésticos que são escravizados e considerados criaturas inferiores e menos
capazes; e o protagonismo feminino e a posição de destaque que as personagens femininas
recebem na trama, seja como professoras, jogadoras de Quadribol ou pelas habilidades
mágicas surpreendentes diante da sociedade.
Enfim, Harry Potter traz de maneira leve e livre de paixões políticas temas polêmicos
da sociedade permitindo um debate equilibrado e com ampla participação social por ser
cultura popular e distante vocábulos técnicos e militâncias.

METODOLOGIA
O trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa bibliográfica de revisão
integrativa e fazendo um paralelo entre a trama do livro Harry Potter e as Relíquias da Morte
(ROWLING, 2007) com conceitos e teorias da Ciência Política.
Foram utilizadas as obras clássicas dessa matéria, como Norberto Bobbio e
Maquiavel, no intuito de tornar o romance mais próximo possível da teoria, livrando o
trabalho de pretensas comparações ou críticas tendenciosas e direcionadas.

2
Jornal fictício da comunidade bruxa na história.

1128
As comparações entre trechos dos clássicos e trechos de Harry Potter é justamente
para que haja paralelismo entre a teoria e o aplicado na obra; e não entre personagens do bem
ou do mal com figuras históricas e políticas.

DISCUSSÃO
No sétimo livro da saga, Harry Potter e as Relíquias da Morte (ROELING, 2007), se
faz muito mais presente que nos outros livros a temática “política”. É neste que a história
ganha o desenrolar e dá-se o desfecho heroico do bem contra o mal.
O livro inicia com uma cena de dois partidários do Lorde das Trevas, Voldemort, se
encaminhando para uma reunião com os outros Comensais da Morte3. A reunião era para
tratar da captura de Harry e seu assassinato pelas mãos do Lorde.
Contudo, em um dado momento percebemos de forma clara um conceito de Nagel,
citado por Robert Dahl em Análise Política Moderna, na fala do Comensal Yaxley.
“Influência é uma relação entre atores tal que os desejos, preferências ou intenções de um ou
mais atores afetem a conduta, ou a disposição de agir, de um ou mais atores distintos.”
(DAHL, 1915, p. 36 apud NAGEL, 1975).

- É verdade, Milorde, mas o senhor sabe que, na função de chefe do


Departamento de Execução das Leis da Magia, Thicknesse tem contato
frequente não só com o próprio ministro como também com os chefes dos
outros departamentos do Ministério. Acho que será fácil dominar os demais,
agora que temos um funcionário graduado sob controle, e então todos podem
trabalhar juntos para derrubar Scrimgeour. (ROWLING, 2007, p. 12).

O que seria um conceito nageliano complexo e de difícil compreensão, se torna


simples e de fácil acesso a todo público. Isso se dá pela aplicação da teoria em uma
narrativa/exemplo. Assim, uma das teorias do poder mais aceitas entre os ciêntistas políticos
(BOBBIO, 1987) é retratada na trama sem ferir nenhuma característica fundamental.
O conceito em si, trata da relação entre Estado e o poder exercido por este atravéz da
teoria relacional, onde o poder se dá por meio do relacionamente de um sujeito A e um outro
sujeito B, em que A consegue de B algo que, naturalmente B não faria, ou seja, “‘O poder de
A implica a não liberdade de B’, ‘A liberdade de A implica o não-poder de B’”. (BOBBIO,
1987, p. 78, apud DAHL, 1963, p. 68).
À apenas uma fala antes, proferida por Voldemort, percebemos o Príncipe de
Maquiavel ser evocado em um momento de ponderação do Lorde das Trevas: “É um começo

3
Comensais da Morte são os seguidores mais próximos de Voldemort.

1129
– disse Voldemort -, mas Thicknesse é apenas um homem, Sgrimgeour precisa estar cercado
por gente nossa para eu agir. Um atentado malsucedido à vida do ministro me causará um
enorme atraso. ” (ROWLING, 2007, p. 12).

É de se notar, aqui, que, ao apoderar-se de um Estado, o conquistador deve


determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma
só vez, para não ter de renová-las dia a dia. [...]. As injurias devem ser feitas
todas de uma vez, a fim de que, tomando-se-lhes menos o gosto, ofendam
menos. (MACHIAVELLI, 2010, p. 39).

Esse primeiro capítulo do romance é talvez o mais rico em teoria política. Numa
mesma página, e num mesmo diálogo, é possível notar a presenta de duas teorias políticas –
uma acerca do poder e outra da conquista de um Estado – sem, contudo, perder a razão da
história mas, senão, dando-a mais sentido e completude.
Sobre o maquiavelismo de Voldemort, está dentro de um contexto em que, dois livros
anteriores, seu retorno era uma dúvida para a comunidade bruxa e o Ministério fazia de tudo
para negá-la; um livro depois, após ser confirmada a volta do Lorde das Trevas, o ministro é
substituido, inicia-se uma articulação para caçá-lo, o Ministério tenta de muitas formas usar a
imagem de Harry para criar uma propaganda positiva para a sociedade e os Comensais da
Morte passam a atacar com mais frequencia, sem a presença do Mestre.
Vendo que não participar diretamente das empreitadas estava lhe rendendo atrasos e
muitas falhas, então ele decide ser mais atuante. E então acontece o diálogo exposto acima. É
armada a trama para que ao mesmo tempo, ou em tempo próximo, ele capture Potter e seus
aliados usurpem o poder. E acontece.
Até as falhas e os pequenos ataques cotidianos se tornam positivos para o vilão. Já
ocerrera algo parecido na Primeira Guerra Bruxa e estava se repetindo. O medo de Voldemort
tomou conta da comunidade bruxa de tal maneira que dizer seu nome apenas já era motivo de
horror, então lhe empregam o codinome de Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado.
E para ratificar, quando da tomada do Ministério a primeira medida que se toma é de
tornar o nome “Voldemort” um tabu. Dessa forma, quem o pronunciasse era automaticamente
identificado seu paradeiro e funcionários do governo poderiam fazer as devidas abordagens.
- ... e como foi que você descobriu a respeito do Tabu? – perguntou a Harry,
depois de explicar as numerosas e desesperadas tentativas de nascidos
trouxas para fugir do Ministério.
- O quê?
- Você e Hermione pararam de dizer o nome de Você-Sabe-Quem!
- Ah, sim. Foi um mau hábito que adiquirimos – respondeu Harry. – Mas não
tenho problema em chamá-lo de V...

1130
- NÃO! – berrou Rony, fazendo Harry pular para dentro das amoeiras e
Hermione (de nariz enterrado em um livro à esquerda da barraca) olhar feio
para os dois. – Desculpe – disse Rony, puxando Harry para fora dos galhos
espinhosos –, mas o nome dele foi azarado, Harry, é assim que eles rastreiam
as pessoas! Usar o nome dele rompe os feitiços de proteção, provoca uma
espécie de pertubação mágica... foi como nos encontraram na Tottenham
Court! (ROWLING, 2007, p. 304).

Mais uma vez Maquivel se faz presente. “Deve, portanto, o Príncipe fazer-se temer de
maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio [...].” (MACHIAVELLI, 2010, p.
62). Embora Voldemort não tenha conseguido evitar o ódio, ele conseguiu por um tempo
dominar a situação criando uma áurea de terror e medo envolta do prórpio medo.
Que medida seria mais eficaz do que a de proibir as pessoas de o chamarem pelo
nome? Afinal, a partir do momento em que um simples nome conseguia desetruturar toda
possível articulação contra seu dono, a figura da pessoa em si continuaria inalcançável.
Mais um ponto crucial da trama são as razões do Lorde das Trevas de querer dominar,
pelo Mundo Bruxo, os Trouxas4. Fazendo referencias ao Nazismo, J.K. Rowling trabalha o
conceito de superioridade de raça entre os prórpios bruxos. A maioria dos Comensais da
Morte eram de “puro-sangue”, alguns, incluindo Voldemort, eram mestiços.
Contudo, a doutrina da pureza do sangue era tão forte que até mestiços a aderiam. E tal
doutrina é tão perversa que ambos os Mestres das Artes das Trevas seguiam esse mesmo
pensamento: Voldemort e Grindelwald.
A prórpia queda do vilão Gellert Grindelwald, 1945, e o nome de origem germânica, é
uma referência ao líder do partido nacional-socialista alemão, Adolf Hitler. Em uma das
cartas que Dumbledore, antigo diretor de Hogwarts que lutou contra Voldemort, escreveu ao
amigo de adolescência nos revela a mentalidade racista que pairava as cabeças dos bruxos:
Gerardo,
O seu argumento de que a dominação dos bruxos visa ao PRÓRPIO BEM
DOS TROUXAS é, ao meu ver, crítico. Sim, fomos dotados de poder e, sim,
esse poder nos dá o direito de governar, mas isto também nos dá
responsabilidades sobre os governados. Devemos enfatizar este ponto, pois
será a pedra angular da nossa construção. Onde discordamos, como
certamente ocorrerá, ela deverá ser a base dos nossos contra-argumentos.
Assumimos o poder PELO BEM MAIOR. E segue-se daí que, onde
encontrarmos resistência, devemos usar apenas a força necessária. (Este foi o
seu erro em Durmstrang5! Não me queixo, porém, porque se você não fosse
expulso, jamis teríamos nos conhecido.) (ROWLING, 2007, p. 279)

4
Trouxas são os humanos não bruxos.
5
Durmstrang é a escola de magia da Bulgária.

1131
Assim como para Harry, todos os leitores foram pegos de surpresa ao conhecerem um
passado de Dumbledore tão sombrio. O que confirma a tese de que uma doutrina ou uma ideia
muitas vezes possui tanto alcance e seduz tanto as mentes das pessoas que fica difícil para
quem está inserido nesta realidade perceber os preconceitos e absurdos que se dizem ou
defendem.
Eis um trecho de Mein Kampf, livro de Adolf Hitler que exprimia as doutinas
hitleristas:
A mais superficial observação é suficiente para mostrar como as inúmeras
formas que assume a vontade de viver da natureza acham-se sujeitas a uma
lei fundamental e quase inviolável, que lhes é imposta pelo processo
estreitamente limitado da reprodução e da multiplicação. Qualquer animal só
se ajunta a um congênere da mesma espécie: o melharuco com o melharuco,
o tentilhão com o tentilhão, a cegonha com a cegonha, o arganaz com o
arganaz, o rato com a rata, o lobo com a loba, etc. Só circunstâncias
extraordinárias podem trazer derrogações a esse princípio: em primeiro
lugar, o constrangimento imposto pelo cativeiro, ou então qualquer obstáculo
que se oponha ao ajuntamento de indivíduos pertencentes à mesma espécie.
Mas nesse caso a natureza emprega todos os meios para lutr contra tais
derrogações, e seu protesto se apresenta de maneira mais evidente, seja pelo
fato de recusar às espécies abastardadas a faculdade de se reproduzirem por
sua vez, seja por limitar estreitamente a fecundidade dos descendentes: na
maioria dos casos, priva-os da faculdade de resistir àS doenças ou aos
ataques dos inimigos. - E isto é muito natual. - Todo cruzamento de dois
seres de valor desigual dá como produto um meio-termo entre os valores dos
pais ... Tal ajuntamento está em contradição com a vontade da natureza, que
tende a elevar o nível dos seres. Este objetivo não pode ser atingido pela
união de indivíduos de valor diferente, mas só pela vitória completa e
definitiva dos que representam o mais alto valor. O papel do mais forte é o
de dominar e não o de fundir-se com o mais fraco, sacrificando assim a sua
própria grandeza. Só o fraco de nascimento pode achar cruel esta lei, mas é
por ser apenas um homem fraco e limitado... (CHEVALLIER, 1999, p. 404,
apud HITLER, 1934)

Conhecendo o desenrolar da vida do bruxo Alvo Dumbledore, muitos poderiam apoiar


a ideia se realmente buscasse um “Bem Maior” para todos, contudo como mostrado acima
pelo trecho do livro de Hitler, o mesmo já havia sido querido e posto em prática e as
consequências foram desastrosas.
Mas não é só Dumbledore e Grindelwald que se assemelharam ou pensaram como o
líder nazista. Novamente Voldemort entra em evidência, pois ele era tão racista quanto Adolf
ou Gellert. Mas seu preconceito tinha mais a ver com a questão de sangue do que de
superioridade, embora ele também fosse um supremacista. O diálogo entre ele e Belatriz, sua
fiel e idólatra seguidora, mostra esse desprezo:
- Muitas das nossas árvores genealógicas mais traicionais, com o tempo, se
tornaram bichadas – disse, enquanto Belatriz o mirava, ofegante e súplice. –

1132
Vocês precisam podar as suas, para mantê-las saudáveis, não? Cortem fora
as partes que ameaçam a saúde do resto.
- Com certeza, Milorde – Sussurou Belatriz, mais uma vez com os olhos
marejados de gratidão. – Na primeira oportunidade!
- Você a terá – respondeu Voldemort. – E, tal como fazem na família, façam
no mundo também... vamos extirpar o câncer que nos infecta até restarem
apenas os que têm o sangue verdadeiramente puro. (ROWLING, 2007, p.
16)

Até o desenrolar se assemelha a questões políticas reais. Quando do fim da 2ª Guerra


Bruxa6, Maquiavel mais uma vez se faz presente, não em uma frase ou diálogo, mas prevendo
os resultados que as injúrias cometidas por um príncipe à seus semelhantes pode gerar.
“Ainda que não se possa considerar ação meritória a matança de seus concidadãos, trair os
amigos, não ter fé, não ter piedade, nem religião, com isso pode-se conquistar o mando, mas
não a glória.” (MACHIAVELLI, 2010, p. 37).
O desenrolar se encube de mostrar que aquele que seria um de seus mais devotos
comensais, Severo Snape, na verdade era um espião que trabalhava para derrubá-lo desde que
um pedido simples de poupar a vida da mulher que ele amava lhe foi negado, ou que todas as
humilhações destinadas à família Malfoy, dono da mansão que servia de sede da fraternidade,
não garantisse a fidelidade total, como assim o foi; Draco, o filho, fingiu não reconhecer
Harry Potter em determinada captura, Narcisa, a mãe, mentiu ao dizer que Harry estava vivo
após um ataque de Voldemort e, por fim, Lúcio, o pai, ajuntou os seus e se retirou da batalha
final contra seu Mestre, deixando-o morrer sozinho.
E por mais que o Lorde tenha conquistado o mando por algum tempo, a glória lhe foi
negada ao acabar da forma como mais temera em toda a vida: “[...] morto, atingido pelo
ricochete de sua própria maldição, [...]” (ROWLING, 2007, p.578).
Por fim, Joanne Rowling nos brinda com uma metáfora um tanto cômica. Num
diálogo entre Harry e o irmão de Rony, Gui Wesley, sobre uma negociação entre o garoto e o
duende Grampo, Gui fala de sua experiência trabalhando com duendes por anos e lhe fala de
suas formas de negociação:
- Você não está entendendo, Harry, ninguém poderia entender a não ser que
tenha convivido com duendes. Para um duende, o dono verdadeiro e legítimo
de qualquer objeto é quem o fabricou e não quem o comprou. Todos os
objetos feitos por duendes são, aos olhos dos duendes, legitimamente deles.
- Mas se tiver sido comprado...
- ... então eles o considerariam arrendado à pessoa que desembolsou o
dinheiro. Eles têm, entretanto, grande dificuldade em compreender que
objetos feitos por duendes passem de bruxo para bruxo. Você notou a
expressão de Grampo quando bateu os olhos na tiara. Ele não aprovou isso.

6
A guerra descrita é considerada a 2ª Guerra Bruxa; A primeira fora a que Harry sobreviveu à Maldição da
Morte, levando Voldemort à sua queda.

1133
Acredito que pense, como os mais radicais de sua espécie, que o objeto
deveria ser restituído aos duendes quando o comprador original morresse.
Eles consideram o nosso costume de guardar objetos feitos por duendes e
passá-los de bruxo para bruxo sem novo pagamento praticamente roubo.

Esse diálogo fala essencialmente sobre o direito dos duendes sobre a produção e a
relação com propriedade privada. Enquanto a produção pertence a quem a produz, a
propriedade pode até existir, mas até certa medida, sob alguns aspectos, como os que foram
mencionados. Agora uma análise de Chevallier sobre a propriedade privada na ótica
comunista:
Censura-se aos comunistas por quererem abolir a propriedade adquirida pelo
esforço e trabalho pessoais, "isto é, a propriedade que, segundo nos dizem,
forma a base de toda liberdade, de toda atividade, de toda independência
pessoal". Tratando-se da propriedade burguesa, ela não é fruto do trabalho
pessoal. O capital é um produto coletivo, social, criado pelo trabalho
assalariado do proletário, e não um produto pessoal. Tratando-se da
propriedade do pequeno burguês, do camponês, daquela que precedeu a
propriedade burguesa, "não temos que aboli-la: o desenvolvimento da
indústria a aboliu e continua a aboli-la todos os dias". Os comunistas não
querem, de modo algum, abolir a apropriação pessoal, pelo proletário, dos
produtos de seu trabalho, apropriação que lhe permite apenas conservar a
magra existência e reproduzir-se. O que querem suprimir é "o caráter
miserável dessa apropriação, em que o trabalhador só vive para aumentar o
capital, e só vive quanto o exige o interesse da classe dirigente". O que
caracteriza o comunismo, não é a abolição da propriedade "em geral", mas
da propriedade moderna, a propriedade privada, por ser esta a última e a
mais perfeita expressão do modo de produção e de apropriação dos produtos
baseados nos antagonismos de classe, na exploração de uns pelos outros.
(CHEVALLIER, 1999, p. 312).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto acima é possível notar que Harry Potter, apesar de ter uma
classificação infanto-juvenil tem a capacidade de atingir públicos mais maduros de maneira
global, com uma temática acadêmica e teórica, sem fazer propagandas ou militância política,
mas refletindo sobre questões urgentes para a atualidade e para a História.
Embora não tenha sido tratado aqui, inúmeros outros casos – de saúde, preconceito,
escravidão, subjugação – são tratados em toda obra. E seu impacto atinge principalmente
jovens e crianças, que são o público alvo, e os atores da nova sociedade que vai se
modificando e moldando com os tempos e as novas conjunturas políticas.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução
de Marco Aurélio Nogueira, 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

1134
CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias.
Tradução de Lydia Cristina, 8ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1999.

DAHL, Robert Alan. A Influência Política. In._______. Análise Política Moderna. Tradução
de Sérgio Bath, 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988. cap. 3, p. 33-45.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no Collège de France,


Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 5ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. Bauru, SP: EDIPRO, 3ª


ed., 2010.

ROWLING, Joanne K. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Tradução de Lia Wyler. Rio de
Janeiro: Rocco, 2003.

ROWLING, Joanne K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Tradução de Lia Wyler. Rio
de Janeiro: Rocco, 2007.

1135
A Revista Veja e o Golpe de 2016

José Roberto Medeiros do Nascimento1

Resumo: O Presente trabalho tem como finalidade fazer uma análise do papel que a imprensa
na conjuntura política brasileira entre os anos de 2010 e 2014, com foco na Revista Veja,
principal semanal de política do País, e seu papel na construção de uma hegemonia que levou
ao golpe parlamentar de 2016. Através desse trabalho, além de uma análise crítica do papel da
Revista, iremos apontar razões econômicas e políticas pelas quais o impeachment da ex-
presidenta Dilma Rousseff era muito interessante para os proprietários do Grupo Abril.

Palavras-Chave: Imprensa, Impeachment, Dilma Rousseff

Abstract: The present article aims at analyzing the role of the press in the Brazilian political
conjuncture between 2010 and 2014, focusing on Veja magazine, the country's main weekly
policy, and its role in building a hegemony that led to the parliamentary coup of 2016.
Through this article, in addition to a critical analysis of the role of the magazine, we will point
out economic and political reasons why the impeachment of former president Dilma Rousseff
was very interesting for the owners of Grupo Abril.

Keywords: Press, Impeachment, Dilma Rousseff

“Quem controla a imprensa e os meios de massa


não precisa mais de golpes militares”2

O estudo da História da Imprensa pela ciência História é essencial para a análise da


república brasileira após o fim da segunda guerra mundial. Desde a Revolução de 1930, os
usos dos meios de comunicação de massa na questão política só aumentaram em nosso país,
chegando ao ponto de que, se não analisarmos o papel desse poder chamado comunicação,
não podemos ter uma análise completa dos processos que ocorreram no Brasil. Para
começarmos esse debate temos que ter a noção de que a imprensa, enquanto ferramenta e
instituição, nasce junto com o capitalismo3 e se desenvolve assim como o sistema e os meios
de produção. Sendo assim, aqui no Brasil, o desenvolvimento da imprensa tem características
peculiares, tal qual o nosso próprio sistema capitalista.
O historiador Nelson Werneck Sodré atenta para o fato de que todo esse processo não
se dá sem resistências. A História da Imprensa inclui também uma história de lutas e

1
Licenciado e bacharel em História, bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, Mestrando no PPGH-UFF.
2
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. Pág XIII.
3
SODRÉ (op. cit). Página X.

1136
conquistas de diversos setores da sociedade. Se essa História se confunde com a História do
próprio desenvolvimento do capitalismo, ela reflete também “uma luta em que aparecem
organizações e pessoas da mais diversa situação social, cultural e política”4. E é dessa luta que
se conquistam avanços no que tange a uma legislação reguladora desse segmento.
Podemos notar essa relação entre a História da imprensa e do capitalismo notando a
relação dialética entre a questão desse setor com o comportamento de amplos segmentos da
sociedade.

A ligação dialética é perfeitamente perceptível pela constatação da influência


que a difusão impressa exerce sobre o comportamento das massas e dos
indivíduos. O traço consiste na tendência à unidade e à uniformidade. Em
que pese tudo o que depende de barreiras nacionais, de barreiras linguísticas,
de barreiras culturais (...) tudo conduz à uniformidade, pela universalização
dos valores éticos e culturais, como pela padronização do comportamento.5

Essa relação dialética se dá por conta de uma imprensa concentrada nas mãos de
poucos e representando os anseios de uma classe, como podemos observar na análise abaixo
de Sodré sobre a imprensa brasileira.

A função e a hegemonia dos meios de massa levou ao quadro, que logo se


tornou evidente, de ser a empresa jornalística, na maioria esmagadora dos
casos, a iniciadora e impulsionadora desses meios de massa, a começar pelo
rádio, culminando com a televisão. Gerou-se, aqui, portanto, o
conglomerado empresarial agrupando jornal - revista, em alguns casos - e
emissoras de rádio.6

Lemos, em Sodré, que nossa imprensa seguiu, em seu processo de formação a mesma
receita dos demais ramos do capitalismo brasileiro: uma forte concentração nas mãos de
poucos e uma uniformidade entre a classe que controlava esse meio de informação. Assim,
aqueles que produzem as notícias que informam ao povo pertencem todos a uma mesma
classe, que possui interesses similares e geram uma produção padronizada. Consolidadas,
essas empresas construíram um mercado fechado e dificultaram a criação de novas empresas
do setor para concorrer, como diz Sodré ao afirmar que o processo de abertura de um grande
jornal “não está mais ao alcance de qualquer detentor de capital.”7 O historiador, ao abordar o
tema, nos alerta para o fato de que a oficina que produz um jornal está cada vez mais

4
SODRÉ (op. cit). Página 1.
5
SODRÉ (op. cit). Página 2.
6
SODRÉ (op. cit). Página X.
7
SODRÉ (op. cit). Página XI.

1137
assemelhada a uma fábrica, que se trata de um processo caro e, em dado momento nos aponta
uma questão que é central para analisarmos o financiamento e os interesses que contém o
mercado da comunicação.

Esse avanço tecnológico obrigou, por outro lado, que as empresas


jornalísticas se empenhassem em investimentos acima de suas possibilidades
normais. A situação financeira delas, por isso mesmo, é periclitante, em
casos conhecidos. Se fossem empresas de outra área, estariam liquidadas por
razões de mercado. Razões que elas defendem, com ardor infeliz, todos os
dias, atreladas ao neoliberalismo.8

Um trabalho mais profundo sobre a questão pediria a análise da situação econômica do


Grupo Abril9, controlador da revista que é nosso objeto de estudo. Não entraremos em
detalhes mais profundos sobre a questão que iremos abordar mais à frente, mas nos chama a
atenção o fato do historiador destacar que essas empresas, mesmo em situação periclitante nas
finanças, se mantém mesmo com as dificuldades econômicas que vivem. Porque isso
acontece? Que importância tem um segmento como esse para a economia nacional? Não
acreditamos que a relevância da imprensa, para a economia, seja sequer próxima de outros
setores da indústria nacional. Seria necessário um estudo econômico aprofundado para
afirmar isso com maior convicção e rigor científico. Compreendemos, no entanto, que o papel
que ela desempenha na construção de uma ideia na sociedade é fundamental para a
dominação de uma classe sobre a outra e, por isso, seu estudo se faz urgente em alguns
capítulos da História do nosso País.
A crise econômica da imprensa, no entanto, não é algo que não deixou marcas no
setor. Ao longo da segunda metade do século XX, numerosos jornais e revistas desapareceram
do mercado, aumentando o processo de oligopolização do setor. Um processo que seguiu o
próprio rumo da economia nacional. Novamente Sodré nos responde o porquê desse afirma
que essa oligopolização da imprensa advém “do caráter de grande empresa assumido pelos
grandes jornais”.10

A grande imprensa brasileira é uma imprensa de elite. Os jornais populares


que existiam no começo do século praticamente desapareceram a partir da
extinção dos subsídios ao papel, no começo da década de 60. Ler jornais é,

8
SODRÉ (op. Cit.). Página XI.
9
O Grupo Abril, empresa de capital aberto fundada e controlada pela família Civita é a maior editora de revistas
do Brasil. Sua principal publicação é a Revista Veja, cuja tiragem lhe confere o título de uma das maiores
revistas semanais de política do mundo.
10
SODRÉ (op. cit). Página XII.

1138
no Brasil, diferencial de classe, ocupação própria dos formadores de
opinião.11

Agrupadas, as grandes empresas de comunicação que surgem (e sobrevivem) têm um


papel importante na disputa de narrativa dos fatores políticos econômicos da nação. Conforme
se avança na tecnologia e na difusão de massa de meios como a rádio, num primeiro
momento, e da televisão, em seguida, a imprensa assume um papel central na difusão de
ideias e de uma leitura peculiar do Brasil e do mundo. É nesse aspecto que Sodré afirma que a
imprensa é importante porque entramos num processo em que “a dominação se exerce,
dispensando o uso da força, pelo exercício da propaganda e do convencimento12”. Numa
lógica dessas a imprensa não é apenas importante, é central para o projeto de dominação de
classe no desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

É mais uma perda do que um avanço a concentração no sistema de


veiculação de notícias. Os jornais, principalmente, deixam de ser numerosos,
resultantes do esforço e da reflexão às vezes de uma só pessoa, para serem
produtos de uma ação coletiva, organizada e, certamente, poderosa. Esse fato
diminui a função democrática da imprensa, apesar de aumentar sua difusão.13

Através da citação de Bahia podemos notar que esse processo que já citamos presente
em Sodré afeta diretamente o papel democrático da imprensa na sociedade brasileira, mas
acentua sua difusão. Ou seja, menos democrática e plural, a imprensa aumenta seu poder de
circulação, atingindo amplos segmentos da população para levar a opinião e a leitura de uma
determinada classe, a dominante, para exercer sua missão de informar. Sodré chama atenção
para os efeitos colaterais desse processo ao afirmar que:

Os embustes históricos apenas mudam de forma. E a imprensa desempenha


nesse processo de deformação papel importante, coadjuvando com os meios
de massa. Quem controla a imprensa e os meios de massa não precisa mais
de golpes militares.14

Até mesmo grandes consensos, como o da liberdade de imprensa pertencem a


interesses históricos de segmentos que se alçaram ao poder através das revoluções burguesas.
Sodré deixa isso claro ao lembrar que:

11
LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 4ª ed. Florianópolis: Insular, 2012. Página 37.
12
SODRÉ (op. cit). Página XII.
13
BAHIA, Juarez Benedito. História da Imprensa Brasileira, volume I. 5ª ed. Rio de Janeior: Mauad X, 2009.
Página 233.
14
SODRÉ (op. cit). Página XIII.

1139
O princípio da liberdade de imprensa, antecipado na Inglaterra, vai ser
encontrado tanto na Revolução Francesa quanto no pensamento de Jefferson,
que correspondia aos anseios da Revolução Americana, sintonizando com a
pressão burguesa para transferir a imprensa à iniciativa privada, o que
significava, evidentemente, sua entrega ao capitalismo em ascensão.15

Não podemos, no entanto, falar sobre imprensa, hoje, sem falar em publicidade. A
evolução da empresa jornalística para uma grande imprensa acabou por torná-la refém da
primeira. E, naturalmente, os interesses dos patrocinadores da imprensa acabam refletindo na
linha editorial dos jornais e revistas. O veículo acaba por se inserir no conjunto de interesses
de seu patrocinador e, com isso. “Quando preserva e realça os valores da grande empresa, está
realçando os valores do próprio jornal ou revista”16, alertava Sodré. Nós, vamos além, nessa
simbiose entre jornalismo e publicidade, ao defender os interesses dos grupos econômicos que
a sustentam, a imprensa passa a assumir esses interesses como seus. Se fizermos uma análise
marxista desse processo, nem precisamos criar dicotomia, todos pertencem a uma mesma
classe, que possui mesmos interesses e que, não necessariamente são interesses democráticos.

Em 1954, jornais e rádio, habitualmente consorciados empresarialmente,


montaram uma “operação” que levou o presidente Vargas ao suicídio,
praticamente já deposto, em três semanas, entre 5 e 24 de agosto; em 1964,
dez anos depois, jornais, rádio e televisão, trabalhando unidos para a tarefa,
levaram o presidente Goulart ao exílio, já deposto, em “operação” realizada
em menos de um mês. (...) A imprensa, acolitando o rádio, no primeiro caso,
e acolitando o rádio e a televisão, no segundo, foi a alavanca que destituiu
dois presidentes eleitos. Apelidar de democrático um regime em que isso se
tornou possível é, evidentemente, perigoso eufemismo.17

Retomaremos esse debate mais adiante, mas é importante frisar a afirmação do


historiador marxista Nelson Werneck Sodré. A atuação da imprensa na queda de dois
presidentes num intervalo de 10 anos e com uma difusão dos meios de comunicação que não
se compara à atual demonstra o poder que este segmento tem de ferir a democracia. Não é à
toa que, mais à frente na mesma obra, Sodré afirma que “quem controla a informação,
controla o poder”18. No sistema capitalista, a informação é uma mercadoria valiosa
comercializada por poucos que sustentam sua visão de mundo e fazem o recorte de acordo
com seus interesses políticos econômicos e sociais. Constrói-se um modelo de imprensa onde
a opinião se mistura com a reportagem, diminui-se o papel do jornalista e se cria “um

15
SODRÉ (op. cit). Página 2.
16
SODRÉ (op. cit). Página XIV.
17
SODRÉ (op. cit). Página XIV.
18
SODRÉ (op. cit). Página XV.

1140
profundo divórcio entre o que o público pensa e necessita e aquilo que a grande imprensa
veicula”.19 Sodré vai além e diz que esse processo gera uma alienação que pode ser notada
através do “desprezo com que a imprensa encara a cultura nacional20”.
Analisaremos, agora, alguns casos onde a atuação da imprensa é fundamental para a
compreensão do processo histórico e que reafirmam nossa defesa de que a História da
imprensa é um campo fundamental para o estudo da História do Brasil, bem como
apresentaremos um breve relato de como o nosso objeto de estudo nasceu e se fortaleceu por
fora dos marcos democráticos da nação brasileira.

Imprensa e Getúlio Vargas

Para analisarmos o período compreendido entre o retorno de Getúlio Vargas ao poder


em 1951 é fundamental analisar o papel da imprensa nesse período. E, através dessa análise,
mostraremos como o estudo da História da Imprensa é fundamental para o entendimento de
nossa própria História. Tudo começa dois anos antes, em 1949, quando Samuel Wainer,
futuro criador do jornal “A Última Hora” (1951) entrevistou o ex-presidente Getúlio Vargas
no Rio Grande do Sul. A partir dessa entrevista, Assis Chateaubriand21, dono do jornal no
qual Wainer trabalhava à época, inicia uma ousada aposta política ao recolocar o ex-
presidente de volta nas manchetes. A edição de “O Jornal” na qual a entrevista foi publicada
vendeu 180 mil exemplares22. Inicia-se assim uma relação que evidencia o que
problematizamos neste trabalho: as relações íntimas entre imprensa e poder.
O apoio de Chateaubriand não viria sem um preço. Com Getúlio presidente, insistiu na
ideia de ser um Senador já em 1952. As eleições, no entanto, só ocorreriam em 1954, mas
com uma manobra do presidente, que convidou o Senador e seu suplente do estado natal de
Assis Chateaubriand (Paraíba) para assumir cargos públicos, forçando uma eleição
extraordinária. A movimentação deu certo e Assis se tornara senador. Martins e Luca comenta
sobre essa relação de favores de Getúlio com a imprensa:

19
SODRÉ (op. cit). Página XVI.
20
SODRÉ (op. cit). Página XVI.
21
Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, mais conhecido como Assis Chateaubriand ou Chatô foi
um jornalista brasileiro que se consolidou como um dos mais influentes homens públicos do Brasil durante as
décadas de 1940 a 1960. Era dono dos Diários Associados e foi um dos grandes magnatas da comunicação do
Brasil.
22
ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. 2. ed. São Paulo: Scritta, 1995,
p. 187.

1141
No arquivo pessoal de Getúlio, uma lista de devedores da imprensa dos
cofres oficiais, datada de 26 de fevereiro de 1953, dá destaque aos débitos
acumulados pelas empresas associadas (...). Chatô reinava absoluto no
primeiro lugar do ranking dos débitos oficiais, seguido por Samuel Wainer
(Última hora) e, em terceiro, Roberto Marinho (O Globo).23

Mas a relação do governo de Vargas com a imprensa não foi apenas nas articulações
de Chateaubriand ao Senado. Ela foi bem além e, não hesitamos em falar que a imprensa foi
peça fundamental da engrenagem política que levou o ex-presidente ao suicídio. Nas eleições
de 1950, Vargas (PTB) se elegeu com 48,7% dos votos com a missão de posicionar o país
num mundo bipolar. Sua estratégia era a substituição das importações e por em prática os
projetos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU)24. Mas antes mesmo de
assumir, Getúlio já enfrentava uma dura oposição. Carlos Lacerda25 não aceitou o resultado
das urnas, mesmo com todos os preceitos constitucionais terem sido atendidos. E Lacerda
tinha força na imprensa. Ele organizara e dirigia a Agência Meridional de Notícias e tinha
uma imagem ligada à queda da censura no Estado Novo26 por conta de suas publicações no
Correio da Manhã27. Em 1949 lança a Tribuna da Imprensa e, nela, já diz para que serviria o
veículo jornalístico afirmando que: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à
presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado,
devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.28”
Getúlio sabia que a Tribuna servia aos interesses da UDN29 e de Lacerda. Sabia
também que Lacerda tinha relações boas com os controladores do Correio da Manhã e do

23
MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de. História da Imprensa no Brasil. Página 185.
24
Formada no âmbito do Ministério da Fazenda, e integrada por técnicos brasileiros e norte-americanos, a
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico foi resultado das negociações entre
Brasil e Estados Unidos iniciadas em 1950, durante o governo Dutra, visando ao financiamento de um programa
de reaparelhamento dos setores de infra-estrutura da economia brasileira. A Comissão foi criada oficialmente em
19 de julho de 1951 e encerrou seus trabalhos em 31 de julho de 1953. Era parte do plano norte-americano de
assistência técnica para a América Latina conhecido como Ponto IV, tornado público em 1949, quando se
formou no Brasil uma comissão composta por Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões e Valder Lima
Sarmanho encarregada de estudar as prioridades para um programa de desenvolvimento do país. Essa comissão
acabou estabelecendo como prioridades os setores de agricultura, energia e transporte, sem formular, contudo,
um projeto específico de financiamento.
25
Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi um jornalista e político brasileiro membro da União Democrática
Nacional (UDN). Foi vereador (1945), deputado federal (1947–55) e governador do estado da Guanabara (1960–
65).Fundador (em 1949) e proprietário do jornal Tribuna da Imprensa e criador (em 1965) da editora Nova
Fronteira.
26
Estado Novo, ou Terceira República Brasileira, foi o regime político brasileiro fundado por Getúlio Vargas em
10 de novembro de 1937, que vigorou até 31 de janeiro de 1946. Era caracterizado pela centralização do poder,
nacionalismo, anticomunismo e por seu autoritarismo.
27
O Correio da Manhã foi um periódico brasileiro, publicado no Rio de Janeiro, de 1901 a 1974. Foi fundado
por Edmundo e Paulo Bittencourt.
28
Tribuna da Imprensa, 1º de Junho de 1950.
29
União Democrática Nacional (UDN) foi um partido político brasileiro fundado em 7 de abril de 1945,
frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas e de orientação conservadora.

1142
Estado de São Paulo. Nesse quadro, restou ao presidente buscar uma imprensa que divulgasse
as ações de seu governo e as políticas sindicais do PTB. Nascia assim a Última Hora, de
Samuel Wainer. O Última Hora chegou às bancas em 12 de Junho de 1951. O jornal possuía
inúmeros colunistas afinados com as ideias do PTB.

O esquema empresarial e político que garantiu as despesas de UH contava


com Ricardo Jalef, industrial e banqueiro paulista, presidente do Banco do
Brasil no segundo governo Vargas; Walter Moreira Salles, banqueiro e
futuro embaixador do Brasil nos Estados Unidos; Euvaldo Lodi, presidente
da Confederação das Indústrias do Estado Novo ao segundo mandato de
Vargas; Juscelino Kubitschek, governador de Minas Gerais e futuro
presidente da República; conde Francisco Matarazzo Jr., principalmente no
lançamento do UH de São Paulo, em 18 de março de 1952.30

Vemos, pois, nas afirmações de Martins e Luca, uma profunda relação do


financiamento do jornal com figuras do campo político varguista. Enquanto o Última Hora era
campeão em verbas públicas, a Tribuna de Lacerda recebia verbas irrisórias do governo
Vargas, não superando a marca de CR$ 2 milhões31. Essa relação obrigou a Tribuna a
sobreviver sem depender dos recursos públicos. Desde a posse de Getúlio, a Tribuna se
colocou de modo firme em oposição ao presidente; Wainer, por sua vez, criou uma coluna, “O
Dia do Presidente”, que cobria os atos do executivo.

Em 1950, os jornais mais influentes do Rio de Janeiro e de São Paulo não


tinham qualquer preocupação com a isenção na cobertura. De modo geral, o
tom das primeiras páginas era de franco engajamento eleitoral. Manchetes,
chamadas, fotos e chages não escondiam a preferência (...) No caso de O
Estado de São Paulo, do Correio da Manhã, do Diário de Notícias e da
Tribuna da Imprensa, as primeiras páginas chegavam a parecer peças de
propaganda eleitoral.32

Lacerda e Wainer eram velhos conhecidos. Nos anos 1940 trabalharam juntos nos
Diários Associados. Essa aproximação, segundo Martins e Luca, permitiu a Lacerda saber
sobre a não-nacionalidade brasileira de Wainer. Diante desse fato, em 1953, Lacerda usou a
Tribuna para atacar Wainer e fazer a denúncia que colocava o Última Hora em situação
delicada, afinal, não-brasileiros não podiam ser donos de empresas de comunicação de acordo
com a constituição da época. A denúncia de Lacerda gerou uma Comissão Parlamentar de

30
MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de. História da Imprensa no Brasil. 2ª ed. São Paulo, Contexto,
2012. Página 191.
31
MARTINS e LUCA (op. cit). Página 192.
32
MARTINS, Franklin. Jornalismo Político. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2011. Página 14.

1143
Inquérito (CPI) que investigou o favorecimento do jornal de Wainer. A CPI, no entanto, não
ameaçava apenas o Última Hora e mudou a correlação de forças no ramo da imprensa.

Essa ameaça de revelar os empréstimos a Assis Chateaubriand e Roberto


Marinho em aberto na contabilidade do governo, colocando em risco, a
imagem de independência editorial dos Associados e d’O Globo, valeu a
Lacerda dois fortes aliados.33

A CPI avançou em busca do financiamento do Última Hora. Com a ajuda de Juscelino


Kubitschek, Wainer consegue liquidar os empréstimos que havia feito junto ao Banco do
Brasil34. A guerra entre o Última Hora e Tribuna se acentuou e encontrou seu auge em 1954
quando, em 5 de Agosto, aconteceu o famoso atentado da Rua Toneleros, em Copacabana.
Lacerda foi alvejado por tiros que lhe feriram o pé e mataram seu segurança, o major Rubem
Florentino Vaz, da Aeronáutica. Investigações comandadas pela Aeronáutica apontavam para
o chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato.
A Tribuna e a Última Hora duelaram em suas manchetes. O primeiro veículo acusava
o Presidente pelo atentado e exigia punição aos culpados. O Última Hora insistia na tese de
que o governo era o maior interessado em apurar as responsabilidades 35. Em 23 de Agosto, a
Tribuna pede a renúncia de Vargas que, por sua vez, responde na primeira página do Última
Hora com a declaração de que “Só morto sairei do Catete”36. E assim foi. A carta testamento
de Vargas foi divulgada nas páginas do Última Hora em 24 de agosto e, é impossível não
compreender o papel de destaque nos meios de comunicação no processo que culminou no
suicídio do ex-presidente. O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, levou
multidões às ruas e fez a Última Hora vender 700 mil exemplares. Na sequência, o jornal deu
apoio irrestrito a João Goulart, até sua deposição em 1964.37

O apoio da imprensa ao Golpe de 1964

No ano de 1961, inicia-se uma nova instabilidade política no nosso país onde a
imprensa terá papel de destaque. Por motivos que a historiografia debate até hoje, o ex-
presidente Jânio Quadros renuncia, abrindo espaço para que seu vice, João Goulart assumisse
até que se concluísse o mandato. Tal qual Getúlio, Jango era filiado ao PTB e despertava a

33
MARTINS e LUCA (op. cit). Página 196.
34
MARTINS e LUCA (op. cit). Página 198.
35
MARTINS e LUCA(op. cit). Página 199.
36
Jornal A Última Hora, 23 de Agosto de 1954.
37
BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009. Página 76.

1144
antipatia de setores conservadores do PSD e da UDN que o viam como alguém que
simpatizava com ideias comunistas num tempo em que o mundo vivia na bipolaridade da
Guerra Fria38. O primeiro capítulo da instabilidade foi marcado por uma tentativa de não
permitir que Jango assumisse o posto de presidente, como podemos ver em Napolitano:

Visto pela elite como nacionalista e próximo da esquerda, Jango - como João
Goulart era popularmente conhecido - foi impedido de assumir a plenitude
do poder, submetendo-se as novas regras do parlamentarismo, instituído por
emenda constitucional, fruto de manobras políticas dos setores
conservadores no poder. (...). Quando, porém, um plebiscito restitui ao
presidente, a plenitude do comando do governo, em janeiro de 1963, os
acontecimentos tomaram um novo rumo.39

Durante sua gestão, mesmo no período ainda limitado pelo parlamento, Jango defendia
um projeto que chamava de Reformas de Base, que nada mais era do que um conjunto de
reformas políticas, econômicas, fiscais e sociais, com destaque para a Reforma Agrária. Essa
movimentação atraiu a oposição de diversos setores da sociedade brasileira, incluindo a
imprensa, como afirma Toledo: “Diante da proposta do presidente da República, unem-se
proprietários rurais, setores da igreja, congressistas liberais e conservadores, imprensa, etc.”40
Inicia-se aí, uma articulação dos segmentos conservadores que tornou realidade o golpe
empresarial-militar de 1964. As medidas de caráter nacionalistas de Jango eram vistas como
políticas comunistas e a construção da imagem de uma aproximação do presidente com o
comunismo ajudou a construir uma ideia de que ele era uma ameaça ao País.
O papel da imprensa nesse golpe empresarial-militar não pode ser subestimado. A
imprensa era a porta voz da linha política da classe que se opunha à Jango e foi sua fiel
opositora durante se governo. O golpe, como bem disse o fundador do Centro de Estudos da
Mídia Alternativa Barão de Itararé, em sua obra “A ditadura da Mídia”, “serviu aos interesses
- ideológicos, políticos e empresariais - dos barões da mídia.”41. A prova disso é que os
principais jornais da época não hesitaram em saudar os golpistas. Os editoriais dos veículos da
grande mídia comemoraram a ascensão dos militares ao poder, como podemos ver no trecho
abaixo de O Globo:

38
Guerra Fria é o nome utilizado para se referir ao conflito político-ideológico entre os Estados Unidos e a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas que dividiu a maior parte dos países do mundo em simpáticos ou
não ao comunismo e ao capitalismo.
39
NAPOLITANO, Marco. O Regime Militar Brasileiro (1964 - 1985). São Paulo: Atual, 1998, pag. 6.
40
TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o golpe de 1964. São Paulo: Brasiliense, 1982, pag 31.
41
BORGES (op. cit). Página 76.

1145
Graças à decisão e heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do
governo irresponsável que insistia em arrastá-lo a rumos contrários à sua
vocação e tradições (...) Salvos da comunização que celeremente se
preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares.42

O Jornal do Brasil também demonstrou o apoio e buscou dar legitimidade em suas


páginas ao regime que se iniciava, dizendo em suas páginas logo após o golpe que “desde
ontem se instalou no País a verdadeira legalidade (...). A legalidade está conosco e não com o
caudilho aliado dos comunistas.”43 A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, seguiu o
mesmo caminho, falando num tom um pouco mais elevado que “escorraçado, amordaçado e
acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior
Marques Goulart, infame líder dos comunos-carreiristas-negocistas-sindicalistas”44.
É imperativo que a imprensa foi parte da construção do golpe. Tal qual foi parte da
trama que levou Getúlio ao suicídio. Fica claro, para nós, que estudar o papel da imprensa no
jogo político é uma tarefa dos historiadores para compreenderem melhor todo esse processo
que lançou o Brasil em um dos mais sanguinários capítulos de sua História.

2016, a Imprensa e um novo golpe?

Foi golpe ou não foi golpe a manobra que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder
em 2016? Essa pergunta não pretende ser respondida por este trabalho, mas trabalhamos com
a ideia de que os áudios revelados pela Operação Lava Jato45, a mudança na legislação que
passou a permitir as pedaladas fiscais46 e a absolvição da ex-presidenta pelo Ministério
Público47 são elementos que nos permitem trabalhar com a ideia de que houve uma grave
ruptura democrática. A relação do primeiro governo da ex-presidenta Dilma com parte da
imprensa é o nosso objeto de estudo, mas vamos nos permitir avançar um pouco no nosso
corte temporal para mostrar, mais uma vez, como analisar o papel da imprensa é importante
para compreensão de todo o contexto político nacional.

42
Editorial - Jornal O Globo, 02 de Abril de 1964.
43
Editorial - Jornal do Brasil, 02 de Abril de 1964.
44
Editorial - Tribuna da Imprensa, 02 de Abril de 1964.
45
Em diálogos, Jucá fala em pacto para deter avanço da Lava Jato – Folha de São Paulo, 23 de maio de 2016.
Visto em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-fala-em-pacto-para-
deter-avanco-da-lava-jato.shtml às 10h56.
46
Dois dias após impeachment, Senado aprova lei que permite pedaladas fiscais – Portal IG Economia, 02 de
Setembro de 2016, visto em http://economia.ig.com.br/2016-09-02/lei-orcamento.html às 10h55.
47
Pedalada de Dilma no Plano Safra não foi operação de crédito nem crime, diz MPF – Jornal O Globo,
14/07/2016, visto em https://oglobo.globo.com/brasil/pedalada-de-dilma-no-plano-safra-nao-foi-operacao-de-
credito-nem-crime-diz-mpf-19712360 14/10/2017 às 10h59

1146
A mídia obteve um papel de destaque na contraposição ao governo eleito
democraticamente nas urnas, como a presidenta da Associação Nacional de Jornais (ANJ),
declarou em entrevista ao Jornal O Globo, dizendo que os “meios de comunicação estão
fazendo de fato a posição oposicionista no País, já que a oposição está profundamente
fragilizada”48. Essa postura, relatada pela própria presidenta da ANJ nos remete ao mesmo
papel que a imprensa teve ao longo dos governos de Getúlio e de Jango. As grandes famílias
da imprensa brasileira articularam a oposição ao governo da ex-presidenta Dilma Rousseff e,
como nas décadas de 1950 e 1960, usaram do seu poder enquanto meios de comunicação para
ditar os rumos da política nacional.

Quatro famílias decidiram: Basta! Fora! Os Marinho (Organizações Globo),


os Civita (Grupo Abril/Veja), os Frias (Grupo Folha) e os Mesquita (Grupo
Estado). A essas famílias somaram-se outras com mídias de segunda linha,
como os Alzugaray (Editora Três/Istoé) e os Saad (Rede Bandeirantes), ou
regionais, como os Sirotsky (RBS, influente no sul do país). Colocaram em
movimento uma máquina de propaganda incontrastável, sob o nome de
“imprensa”, para criar opinião e atmosfera para o golpe de Estado contra o
governo de Dilma Rousseff, eleito por 54 milhões de pessoas em 26 de
outubro de 2014.49

Vemos, portanto, que a ação dos grupos de comunicação durante a crise política do
governo Dilma teve como objetivo a desestabilização do mesmo. Através de suas manchetes,
as quatro famílias, seguidas pelas demais, operaram contra o governo estabelecido. Se, em
1964 o fantasma era o comunismo, Cuba, a União Soviética e os sindicalistas. Mais de
cinquenta anos depois, a mídia brasileira continuou a usar Cuba como espantalho, somando a
ela a Venezuela e substituindo “comunistas” por “petistas”. O processo chegou a chamar a
atenção da imprensa internacional. Enquanto no Brasil alardeavam um processo
constitucional de impeachment, o ataque à democracia foi denunciado em todos os principais
meios de comunicação do planeta. Dois editoriais consecutivos do The New York Times
desmontaram todo o edifício discursivo do império midiático brasileiro. No primeiro, em 15
de maio, o jornal afirmava que Dilma caiu por “permitir” as investigações contra a
corrupção50. O segundo, em 6 de junho, tinha como título “Brasil, medalha de ouro em

48
Entidades de imprensa e Fecomércio estudam ir ao STF contra plano de direitos humanos - O Globo, 18 de
Março de 2010, página 5.
49
LOPES, Mauro. As quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático. In: JIKINGS, Ivana,
DORIA, Kim e CLETO, Murilo (Org). Porque gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política
do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016. Página 101.
50
The New York Times. Brazil’s Graft-Prone Congress: A Circus That Even Has a Clown. Visto em em 06 de
Setembro de 2016 às 11h27: https://www.nytimes.com/2016/05/15/world/americas/brazils-most-entertaining-
show-may-be-congress.html

1147
corrupção” relacionava as primeiras nomeações do Presidente Michel Temer com o freio nas
investigações de esquemas de corrupção dizendo que “as nomeações reforçaram as suspeitas
de que o afastamento temporário da presidente Dilma Rousseff no mês passado, por
acusações de maquiar ilegalmente as contas do governo, teve uma segunda intenção: afastar a
investigação”. 51
A mídia nacional reagiu aos ataques da imprensa estrangeira. O jornal Estado de S.
Paulo em editorial no dia 29 de maio, intitulado “O jogo sujo da desinformação” critica a
imprensa estrangeira e sua cobertura da política nacional afirmando que “O Brasil, sua
democracia e suas instituições estão sendo enxovalhados no exterior por uma campanha de
difusão de falsidades cujo objetivo é denunciar a ‘ilegitimidade’ do presidente em exercício
Michel Temer”52.
Vemos, pois, que no mínimo, para além de compreender se foi ou não golpe, que o
estudo da imprensa é fundamental para a compreensão do processo político vivido no Brasil
durante os anos dos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2015) e, este trabalho se
propõe a levantar esse debate. Que motivos levaram à radicalização do discurso da semanal da
Abril com a Presidenta? De cara podemos voltar à questão econômica que citamos
anteriormente para falar que, ao longo do governo Dilma Rousseff, ao contrário do seu
antecessor, as verbas publicitárias da Revista Veja (que obteve sua maior arrecadação
publicitária da história com o governo federal em 2009), foram reduzidas drasticamente,
conforme a tabela abaixo:

Tabela 1 - Verbas Publicitárias da Revista Veja (2009 - 2016)53


Valores em R$, Porcentagem em relação ao total gasto com revistas

Ano Total Gasto Porcentagem da Verba

2009 51.399.617 23%

2010 42.968.122 22%

2011 40.875.060 20%

2012 35.748.756 17%

2013 29.901.397 16%

51
Brazil’s Gold Medal for Corruption - The New York Times, 6 de Junho, visto em 06 de Setembro de 2017 em
https://www.nytimes.com/2016/06/06/opinion/brazils-gold-medal-for-corruption.html
52
O Jogo Sujo da Desinformação - Editorial - O Estado de São Paulo, 29 de Maio de 2016.
53
Fonte: Ministério das Comunicações

1148
2014 23.411.081 18%

2015 5.103.030 7%

2016-Dilma 1.050.525 10%

2016-Temer 10.162.390 28%

Nota-se, sem medo de errar, que o governo Dilma baixou de forma considerável os
investimentos em publicidade na revista Veja. Chama atenção, mais ainda, que, a partir de
2015 toda verba publicitária é oriunda apenas das estatais, que, por sua vez, nem sempre são
de controle 100% estatal, como a Petrobrás, Eletrobrás e o Banco do Brasil, que são estatais
de capital aberto. Além disso, os balanços da editora Abril analisados entre os anos de 2010 e
2015 apontam para uma grave crise econômica da empresa que vendeu títulos, reduziu custos,
eliminou atividades, renegociou dívidas, pegou um empréstimo de R$ 722 milhões e ainda
sim, ano após ano, fechou seu exercício com prejuízos superiores à R$ 140 milhões, chegando
ao nível de ter suas contas aprovadas com ressalvas pela auditoria externa.

Tabela 2 – Resultado do Balanço do Grupo Abril entre 2010 e 201454


Valores em Reais (R$)
Ano Valor
2009 R$ 43.033.396,72
2010 R$ 21.655.478
2011 R$ 29.206.750
2012 R$ 2.812.453
2013 - R$ 129.422.000
2014 - R$ 140.720.000
2015 - R$ 155.822.000
2016 -R$ 110.951.000

A queda do investimento em publicidade na semanal do grupo abril, que agiu de forma


deliberada atacando à candidatura da presidenta reeleita em 2014, é fato que não podemos
deixar de colocar para análise. O retorno do investimento em publicidade na revista feito pelo
sucessor, Michel Temer, demonstra claramente que a empresa se beneficiou da mudança na
gestão do Palácio do Planalto.
Outro fator que não pode ser ignorado e que coloca a gestão de Dilma Rousseff como
alvo da imprensa monopolista é o anúncio, feito em entrevista ao Jornal O Globo 55, de que a

54
Balanço do Grupo Abril - http://www.grupoabril.com.br/pt/quem-somos/balanco/ visto em 14/10/2017 às
10h14.

1149
regulação da mídia iria acontecer de qualquer jeito. Na entrevista, o Secretário de
Comunicação Social do Governo Lula, às vésperas da posse da nova presidenta disse que a
regulamentação seria feita “ou num clima de entendimento ou de enfrentamento”. Em maio
do mesmo ano, Franklin Martins já havia assinado o projeto de Lei da Mídia Democrática do
Fórum Nacional da Democratização das Comunicações (FNDC). Em 7 de dezembro, o
ministro anunciou à imprensa que já haviam versões do anteprojeto 56. O próprio ex-presidente
Lula, ao fim do seu mandato, defendeu a regulação da mídia cobrando de seu partido foco na
aprovação do projeto no último mês do seu governo57.
Fica claro, para nós, que havia um clima de confronto para com a grande imprensa por
parte do final do governo Lula, o que fez com que a ex-presidenta Dilma Rousseff assumisse
o governo em uma situação de ofensiva da mídia contra si. Ofensiva que derrubou ministros,
questionou a flexão de gênero com a qual a presidenta quis ser chamada e que se consolidou
em um dos principais fatores de desestabilização do governo petista. Mesmo sem nenhum
avanço de Dilma e seu ministério rumo à democratização e com o novo ministro afirmando,
com apenas 5 dias de governo, que o projeto não iria adiante, a relação entre o governo Dilma
e a imprensa foi hostil e, com as já mencionadas redução de verbas, constatamos que não
faltaram motivos para os empresários da comunicação se oporem e buscarem alternativas
políticas ao lulopetismo. Tentaram em 2014 com o apoio à candidatura derrotada de Aécio
Neves (PSDB) e, diante do insucesso tucano o impeachment foi abraçado pelos grandes meios
de comunicação, em especial a Revista Veja. Financeiramente, todas as grandes empresas do
ramo saíram ganhando.

Bibliografia

ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. 2. ed. São
Paulo: Scritta, 1995.

55
Regulação da Mídia vai acontecer de qualquer jeito, diz Franklin Martins - Jornal O Globo, 26 de novembro
de 2010, visto em https://oglobo.globo.com/politica/regulacao-da-midia-vai-acontecer-de-qualquer-jeito-diz-
franklin-martins-2920281 em 05/10/2017 às 21h44.
56
Frankilin Martins: existem várias versões do anteprojeto - Jornal A Tarde, 07 de dezembro de 2010, visto em:
http://www.atarde.uol.com.br/politica/noticias/1121666-franklin-martins:-existem-varias-versoes-de-anteprojeto
em 05/10/2017 às 21h49.
57
Lula cobra aprovação de lei para regular mídia - O Estado de São Paulo, 20 de dezembro de 2010, visto em:
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-cobra-aprovacao-de-lei-para-regular-midia,656208 em
05/10/2017 às 22h00.

1150
BAHIA, Juarez Benedito. História da Imprensa Brasileira, volume I. 5ª ed. Rio de Janeior:
Mauad X, 2009.
BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.
LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 4ª ed. Florianópolis: Insular, 2012.
LOPES, Mauro. “As quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático”. In:
Porque gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política do Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2016.
MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de. História da Imprensa no Brasil. 2ª ed. São
Paulo, Contexto, 2012.
NAPOLITANO, Marco. O Regime Militar Brasileiro (1964 - 1985). São Paulo: Atual, 1998
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad,1999.
TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o golpe de 1964. São Paulo: Brasiliense,
1982

1151
A viagem de Gilberto Freyre por Portugal e seus territórios coloniais:
Uma análise inicial do lusotropicalismo

Julia Neves Toledo1

Resumo: O presente artigo pretende analisar os três principais, porém, diferentes momentos pelos
quais o lusotropicalismo, teoria formulada pelo intelectual Gilberto Freyre (1900-1989), perpassou.
O primeiro deles diz respeito às bases do lusotropicalismo, momento inicial de elaboração, ainda
restrita à experiência do Brasil enquanto objeto de análise. Casa Grande e Senzala (1933), obra
mais famosa do autor, já apresenta indícios do que iria se tornar o lusotropicalismo e se constitui
enquanto fonte de análise deste artigo. O segundo momento compreende o aprimoramento da teoria
freyreana, quando já extrapola as fronteiras do Estado brasileiro para compreender um processo
mais amplo, a comunidade lusotropical. O lusotropicalismo ganha corpo teórico em conferências
realizadas na Europa e reunidas posteriormente em um livro intitulado: O mundo que o português
criou (1940). O terceiro e último momento, de comprovação e difusão da teoria pelo mundo
lusófono, ocorre durante viagem de Gilberto Freyre, em 1951, para Portugal e suas colônias
ultramarinas na África. A apropriação do lusotropicalismo por parte do Salazarismo português
serviu de embasamento teórico para a construção de um projeto político mobilizado a partir dos
interesses revisados do Estado Novo, no pós Segunda Guerra Mundial. As fontes a serem analisadas
para embasar este conjunto de reflexões serão os dois livros escritos por Gilberto Freyre: Aventura e
Rotina, diário de um viajante em trânsito pelos “vários Portugais espalhados pelo mundo” e Um
brasileiro em terras portuguesas, coletânea de conferências e discursos proferidos durante a viagem
provendo considerável material para o estudo da viagem de Freyre.

Palavras-chaves: Lusotropicalismo; Gilberto Freyre; Pensamento social brasileiro.

Abstract: The present article intends to analyze the three main and different moments through
which Gilberto Freyre 's theory of lusotropicalism (1900-1989) has passed. The first one concerns
the bases of Lusotropicalism, the initial moment of elaboration, still restricted to the experience of
Brazil as object of analysis. Casa Grande and Senzala (1933), the author's most famous work,
already presents indications of what would become Lusotropicalism and constitutes the source of
analysis of this article. The second moment comprises the improvement of the freyre theory, when
it already extrapolates the frontiers of the Brazilian State to understand a wider process, the
lusotropical community. Lusotropicalism gains a theoretical body in conferences held in Europe
and later collected in a book entitled: The world that the Portuguese created (1940). The third and
last moment, proving and diffusing the theory by the Portuguese-speaking world, occurs during
Gilberto Freyre's 1951 trip to Portugal and its overseas colonies in Africa. The appropriation of
lusotropicalism by the Portuguese Salazarism served as a theoretical basis for the construction of a
political project mobilized from the revised interests of the Estado Novo, after World War II. The
sources to be analyzed to support this set of reflections will be the two books written by Gilberto
Freyre: Aventura e Routina, diary of a traveler in transit through the "several Portugais spread
throughout the world" and A Brazilian in Portuguese lands, a collection of conferences and
speeches delivered during the trip providing considerable material for the study of Freyre's voyage.

Keywords: Lusotropicalism; Gilberto Freyre; Brazilian Social Thinking.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.


Email: julianevestoledo@gmail.com.

1152
1. O Lusotropicalismo e a Experiência Brasileira

Gilberto Freyre (1900-1987) foi um pensador social do Brasil que possui grande prestígio
nacional e internacional. Uma de suas maiores contribuições para a historiografia brasileira foi Casa
Grande e Senzala, publicada em 1933. A obra que consagrou o escritor analisa o passado colonial e
a formação do povo brasileiro, a partir da mistura das três grandes raças fundadoras do Brasil: a
raça negra, a raça ameríndia e a raça europeia. A miscigenação surge, então, como um fator positivo
e integrador, como um contributo para a formação do Brasil, indo na contramão dos diagnósticos
até então atribuídos para o Brasil, onde o negro aparece com um fator negativo e degenerador.
Freyre nessa obra se concentra em analisar a condição colonial do Brasil nos séculos XVI e
XVII, principalmente do nordeste açucareiro, terra natal do escritor brasileiro. A miscigenação,
produto da colonização portuguesa e da escravização de africanos nas terras tupiniquins, passa a ser
valorizada na obra de Freyre, em contraposição às correntes hegemônicas que defendiam a tese da
degenerescência de povos miscigenados, resultantes do darwinismo social2. O mestiço aparece
como o tipo ideal do homem moderno, pois foi formado com o contributo de três grandes culturas, a
europeia, a ameríndia e a africana, reunindo as características positivas de ambas e certas vantagens
em relação aos outros povos.
Outro aspecto que vale ressaltar em Casa-grande e Senzala são as bases do
lusotropicalismo, teoria posteriormente amadurecida por Freyre. A referida obra apresenta a
compreensão do escritor brasileiro em relação ao povo português, como sendo aquele que melhor
reuniu as condições necessárias para o povoamento dos trópicos e que melhor confraternizou com
as raças chamadas inferiores.

A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata


dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de
povo indefinido entre a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma nem de
outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre
requeime à vida sexual, à alimentação, à religião (...) A Europa reinando mas sem
governar; governando antes a África. (FREYRE, 1933:66)

Segundo Freyre (1933), o português, devido ao seu passado histórico de influências moura e
judaica, possui uma espécie de plasticidade social, e reúne três características que foram

2 O darwinismo social foi uma escola de pensamento, baseada em Charles Darwin em sua teoria
evolução biológica das espécies animais e a ideia da seleção natural, onde os mais fortes sobrevivem, sendo uma
tentativa de aplicar o darwinismo às sociedades. Baseado nessa teoria os países Europeus justificaram seu colonialismo,
exaltando a sua cultura em detrimento dos outros povos considerados bárbaros. A “missão civilizadora” foi
empreendida como forma de elevar essas nações do seu estado primitivo a um nível mais desenvolvido. Ver mais em: A
Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin.

1153
fundamentais para a conquista das terras tropicais: a mobilidade, a miscibilidade e a
aclimatabilidade. Essas características foram melhor exploradas posteriormente por Freyre, dando
suporte para a teoria lusotropical.
A mobilidade teria sido o grande segredo para a vitória portuguesa, segundo a argumentação
de Freyre, apesar da população escassa, Portugal havia “conseguido salpicar virilmente do seu resto
de sangue e de cultura, populações tão diversas e tão distantes uma das outras: na Ásia, na África,
na América, em numerosas ilhas e arquipélagos” (FREYRE, 1933:70). Sobre a miscibilidade,
Freyre asseguraria que nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou os
portugueses nesse ponto. “A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os
portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em
larga escala e sobre áreas extensíssimas” (FREYRE, 1933:70) A aclimatabilidade, segundo Freyre,
nas condições físicas, de solo e de temperatura, Portugal é antes África do que Europa. O
deslocamento do português para a América “não traria as graves perturbações da adaptação, nem as
profundas dificuldades de aclimatação experimentadas pelos colonizadores vindos dos países de
clima frio” (FREYRE, 1933:72).
Nesse primeiro momento, nem mesmo a palavra lusotropicalismo aparecia nos estudos
freyreanos. Os esforços do intelectual pernambucano estavam voltados para compreender a
realidade brasileira a partir da análise de seu passado colonial. O argumento de Freyre se constitui
diferentemente da maioria dos diagnósticos traçados na época por pensadores que partilhavam das
mesmas inquietações de Freyre, em relação aos problemas de atraso do Brasil, sobre a
modernização tardia principalmente. A presença dos portugueses no Brasil, apesar dos males
gerados, teria contribuído de maneira significativa na formação do Brasil e seu povo, assim como a
forte presença dos negros e suas diversas culturas africanas em nosso território. O passado colonial
não deveria ser superado, mas sim resgatado, estudado, valorizado, mesmo com suas controvérsias,
somente assim o Brasil se modernizaria.

2. Comunidade lusotropical atlântica: Portugal, Brasil e as colônias portuguesas africanas


O lusotropicalismo de Gilberto Freyre foi se concretizando ao longo dos anos, ganhando
corpo teórico em duas conferências, uma realizada em Londres no King’s College e outra em
Portugal, na Universidade de Coimbra, reunidas posteriormente em um livro intitulado: O mundo
que o português criou. (1940). Compreendemos esse momento como uma segunda fase da teoria
freyreana pois não se limita somente a pensar a realidade brasileira e seu passado colonial, como em

1154
seu primeiro momento. O pensamento de Freyre se encontrava, naquela altura, em fase de
expansão, inserindo a colonização portuguesa na África e Ásia em seus estudos, forjando o que
seria o mundo lusotropical, criado pelo português no Atlântico.
Cláudia Castelo, ao discorrer sobre O mundo que o português criou, afirma que ao longo dos
anos 40 poucas inovações ocorreram na obra de Gilberto Freyre, porém assegura que os
fundamentos do lusotropicalismo já estavam lançados, sendo os anos posteriores e principalmente a
viagem de Freyre para Portugal e suas colônias, ocorrida nos anos de 1951-1953, o momento de
concretização e comprovação.

Em Casa Grande e Senzala, Freyre sustenta a sua interpretação psicocultural da


formação da sociedade brasileira numa interpretação pessoal das predisposições de
carácter do colonizador português. Em O mundo que o português criou, faz o
mesmo. Agora para um universo mais vasto, e geográfica e culturalmente
diversificado. (CASTELO, 1998:35)

Para Freyre (1940), o lusotropicalismo se manifesta através do processo de miscigenação e


da interpenetração de culturas presentes nos territórios colonizados. E significa uma constante
tentativa de harmonização da Europa com os Trópicos, concretizada pelo esforço português. A
matriz cultural influenciada pelos mouros e judeus, explicaria a predisposição dos portugueses para
se adaptar a climas quentes e a tendência à miscigenação. O resultado desse processo é, segundo o
autor, uma comunidade lusotropical que partilha a mesma língua e a mesmas afinidades de
sentimento e de cultura em uma unidade supranacional, porém, com a valorização do regional,
sendo o mestiço a representação da integração e da originalidade desta nova civilização.
O conceito de cultura, no qual Freyre se debruça para elaborar sua teoria, gira em torna da
defesa de uma unidade, entendendo cultura como algo essencial, um todo partilhado por diversos e
distintos povos. O fator unificador e possibilitador dessa unidade cultural é a língua portuguesa e os
valores em comum partilhados, resultado direto da colonização. As diferenças regionais e nacionais
não são excluídas para formar a comunidade lusotropical, mas são incorporadas e integradas na
cultura lusotropical, que faz de quase todos nós, portugueses e lusodescendentes, indivíduos
transnacionais.

Os lusodescendentes - puros e mestiços - de áreas diversas, quando se põem em


contato uns com os outros, é para se sentirem espantosamente semelhantes nos seus
motivos e nos seus estilos de vida. Motivos e estilos em todas as áreas de formação
portuguesa e no próprio Portugal, coloridos fortemente pelo fato da mestiçagem, que
criou nesses vários povos semelhanças de critérios ético e estético, de inclinações
sentimentais e de aspirações sociais e políticas. (FREYRE, 1940, p.29)

1155
Freyre nos fala da existência de uma consciência de espécie transacional ou supranacional,
criticando os que defendem uma pureza étnica, assegura ser algo não sustentado na prática. A
unidade cultural de Freyre é justamente a defesa do oposto do puro, é resultado da miscigenação, da
interpenetração de culturas, da mistura. Uma cultura transnacional, que apesar de dinâmica e fluida,
foi essencializada e homogeneizada pelo sociólogo. “... unidade não só nacional, como
transnacional, baseada em afinidades de cultura e de comportamento que excedem as fronteiras
simplesmente políticas para se firmarem em muralhas de cultura viva.” (FREYRE, 1940, p.30)

Para o mundo transnacional ou supranacional que constituímos, pelas nossas


afinidades de sentimento e de cultura, portugueses e lusodescendentes, a mestiçagem
representa, ao mesmo tempo que um elemento de integração - porque a atitude
idêntica para com o mestiço vem criando consequências de ordem social e cultural
semelhantes - um elemento de diferenciação e, por conseguinte, de criação de
iniciativa, de originalidade. (FREYRE, 1940, p. 33)

A expressão ou o conceito de cultura sai da esfera antropológica ou sociológica para adquirir


um sentido político em O Mundo que o Português Criou. O autor defende a necessidade de uma
cultura lusotropical como essencial ao nosso desenvolvimento autônomo, em face de qualquer
imperialismo de cultura - o imperialismo econômico seria, por inclusão, um imperialismo de
cultura. A cultura lusotropical, transnacional ou híbrida, nas palavras de Freyre, adquiri caráter
unificador, integrador e qualitativo.
A questão da língua tem protagonismo na argumentação de Freyre, onde defende a
existência de uma língua comum. Instrumento que possibilita o desenvolvimento de uma cultura
transnacional, formada por diversos povos que coexistem com as diferenças regionais de raça e de
cultura. “... uma língua comum que se enriqueça pela assimilação de elementos de origem popular
ou regional que possam acrescentar ao todo transnacional valores humanos e interesses universais,
que muitas vezes se revelam sob a forma de expressão intensamente regional, local ou folclórica.”
(FREYRE, 1940, p.41)
Resumindo, a década de 1940 e as conferências realizadas por Gilberto Freyre naquele
momento foram fundamentais para o aprimoramento de sua teoria do lusotropicalismo. Ao
introduzir um novo e poderoso conceito de cultura lusotropical e transnacional, Freyre defende a
existência de uma unidade de sentimento e de valores, que ultrapassa o plano regional e nacional.
Cria uma muralha de cultura3 a partir da integração dos portugueses com os povos tropicais e da

3 A referida expressão “muralha de cultura” foi utilizada por Freyre em seu texto Aspectos da
influência da mestiçagem sobre as relações sociais e de cultura entre portugueses e lusodescendentes, publicado em O
mundo que o português criou, de 1953.

1156
troca de padrões culturais, supostamente criando sociedades sincréticas e harmônicas.
Além do carácter transnacional fortemente presente na cultura lusotropical, defendida por
Freyre em seus estudos, a própria formulação e concretização da teoria não pode ser entendida sem
inseri-la em um contexto transnacional no qual foi elaborada. O Mundo que o Português Criou é
retomado em Aventura e Rotina e um Brasileiro em Terras Portuguesas, ambos de 1953, após a
longa viagem por Portugal continental e pela lusofonia africana. Gilberto Freyre passava da
pesquisa documental, em arquivos e bibliotecas, à pesquisa testemunhal direta, a partir de uma
viagem sociológica de comprovação empírica de sua teoria.

3. A viagem de Gilberto Freyre para Portugal e suas colônias ultramarinas.


Em 1951, o intelectual brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) foi convidado pelo governo
português para realizar uma viagem por Portugal continental e suas colônias ultramarinas
localizadas na costa africana. A viagem durou cerca de um ano e permitiu que Freyre conhecesse a
fundo Portugal, pois esteve praticamente em todas as cidades portuguesas, além das colônias
ultramarinas, com exceção de Timor, por opção de Salazar e Macau por decisão do próprio Freyre4.
Esta experiência foi fundamental para que Gilberto Freyre desse uma forma acabada à teoria
lusotropical, possibilitando inclusive sua difusão, a partir das conferências realizadas em várias das
cidades em que esteve.
O resultado desta viagem, visando atender tanto as pretensões de Freyre quanto às
solicitações feitas pelo anfitrião, deu origem à publicação de cinco livros, dois deles foram
produzidos durante a viagem do sociólogo: Aventura e rotina de 1953, Um brasileiro em terras
portuguesas de 1953, os demais, produzidos e publicados posteriormente, são eles: Integração
portuguesa nos trópicos de 1958, Novo Mundo nos Trópicos de 1959 e O luso e o trópico de 1961.
O Estado Novo Português, no contexto em que ocorreu a viagem de Freyre, se encontrava
em uma fase distinta daquela em que surgiu, o caráter do regime havia sofrido profundas
transformações no pós-Segunda Guerra Mundial. O grande desafio do Estado Novo português, se
tornou a busca por mecanismos que o auxiliassem na defesa de uma grande nação portuguesa face à
sua prática colonialista anacrônica e imperialista. O mundo, traumatizado pela guerra e por suas
consequências, passou a ignorar ou revisar as teses de inferioridade racial e de supremacia de

4 Não foram encontradas maiores explicações sobre os motivos que levaram a exclusão de Timor por
parte de Salazar e a opção de Freyre em não visitar Macau. Porém o que se pode deduzir devido dados concretos é que a
visita ao Timor mostraria a Freyre a face mais cruel da colonização portuguesa na África, o que não era conveniente
naquele momento, a exclusão de Macau se justificaria pela longa distância a ser percorrida por Freyre, pois Macau se
situa na China.

1157
civilizações, mesmo camuflados atrás de interesses comerciais em África e Ásia. A corrente que
defende a independência das colônias ganha protagonismo em detrimento da defesa de territórios
subordinados à grandes potências.
Segundo Taciane Almeida Garrido de Resende,

Esta tônica da nova política inaugurada na década de 1950 que teve como principal
defesa de um Portugal que transcendia suas fronteiras europeias, encontrou diálogo
profícuo na tese desenvolvida pelo sociólogo Gilberto Freyre, na década de 1940.
A tese do lusotropicalismo (...), combinava, de modo sincrético, a cultura
portuguesa dos povos colonizados, e assim, oferecia ao governo português o
discurso oficial da conciliação sem hierarquias (RESENDE, 2015:102).

Salazar pretendia disseminar o ideal de uma grande nação portuguesa que possuía territórios
no além-mar, porém, estes faziam parte igualmente de um mesmo Império, negando, portanto as
relações de dependência e subordinação das chamadas “províncias ultramarinas”5 com Portugal. A
tese do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, será apropriada pelo Estado Novo de Salazar,
contribuindo para a legitimação do discurso de manutenção da colonização, devido à pretensão,
defendida pelo escritor, de se criar uma comunidade lusotropical, com uma identidade cultural
unificada entre os povos lusófonos.

(...) aos poucos, porém, a tese acerca da vocação portuguesa para os trópicos foi
penetrando nos círculos intelectuais e políticos portugueses. Percebeu-se a utilidade
da formulação de Gilberto Freyre, uma figura de reputação internacional, cujas
ideias serviram aos setores interessados em modernizar (para manter) a presença
portuguesa na África, tornando compatível com os novos tempos- tempos de
pressões anticoloniais vindas de toda a parte. (SCHNEIDER, 2012:83)

A viagem oficial de Gilberto Freyre às colônias é simultaneamente o momento da explicitação


teórico-formal do luso tropicalismo e o momento da sua apropriação político-ideológico por parte
do regime salazarista. É ainda um dos momentos em que mais claramente se revela a (quase)
convergência nacional em torno da defesa da soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos.
(CASTELO, 1998: 95)
A viagem do intelectual brasileiro responderia então, diretamente as necessidades de Salazar de
uma justificativa científica para a manutenção de suas “províncias ultramarinas” em prol de um
grande Portugal, integrado e unido por valores e sentimentos em comum. Assim como a viagem

5 De acordo com João Alberto da Costa Pinto, em 1951, novas práticas administrativas foram
sugeridas pelo Estado Novo Português, a principal dela foi a revogação do Ato Colonial de 1933, que se demarcava até
então como a carta constitucional do colonialismo português. Devido às pressões internacionais provenientes da ONU,
em um contexto de pós segunda guerra mundial, uma das novas medidas estabelecia que as colônias que eram definidas
como tais, daquele momento em diante, passariam a ser nomeadas como províncias ultramarinas. Mudava-se a
terminologia, mas as práticas e realidades permaneciam intocadas. Ver: PINTO, 2009.

1158
para Portugal e suas colônias foi ao encontro dos interesses de Freyre de comprovação de sua teoria
lusotropical, além de contribuir de maneira significativa para a difusão de sua teoria pelo mundo
lusófono e consequentemente para a afirmação do Brasil e da brasilidade dentro do mundo
lusotropical.
Um brasileiro em terras portuguesas, livro que reúne as conferências realizadas por Freyre
no período em que esteve viajando por Portugal e suas colônias, surge aqui como a materialização
do terceiro momento de que falamos anteriormente, da concretização e divulgação do
lusotropicalismo. Nesta obra, Freyre demonstra convicção por sua teoria, afirmando que “Esta
viagem, apenas, confirmou em mim a intuição do que agora, mais do que nunca, me parece uma
clara realidade: a de que existe no mundo um complexo social, ecológico e de cultura, que pode ser
caracterizado como ‘lusotropical’”.(FREYRE, 1953, p.33)
Dentre as várias conferências que realiza, duas possuem destaque dentro da argumentação
que aqui propusemos. Em “Uma cultura moderna: a lusotropical”, proferida em Goa no ano de
1952, o sociológico aparece então como um ávido defensor da cultura lusotropical e do seu aspecto
harmônico, a despeito de suas supostas contradições. Valorizando a união dos povos lusos, em prol
do desenvolvimento das mesmas. “Vivemos demasiadamente alheios ou estranhos uns aos outros,
os homens de províncias, que pela língua comum, pelas tradições comuns, pelas tendências
igualmente comuns formam essa unidade transnacional de cultura que é a lusotropical.” (FREYRE,
1953 ,p.135).
O autor retoma a discussão sobre a língua portuguesa, central em suas conferências,
reafirmando o seu local de extrema importância para o florescimento da cultura lusotropical. “É
pelo seu tropicalismo - que é hoje o que ela tem de mais dinâmico - e pelas suas raízes lusas, ainda
vigorosas, que a língua portuguesa é, nos nossos dias, o verbo, a expressão, o veículo de uma
cultura diferente de quantas culturas animam o mundo de hoje: a cultura lusotropical.” (FREYRE,
1953, p.143)
Em outra conferência “Em torno de um novo conceito de lusotropicalismo” proferida na
Universidade de Coimbra, em 1952, .Freyre assegura se sentir à vontade para esboçar algumas
sugestões em torno do novo conceito de tropicalismo. Em ocasião da viagem que realiza pelos
territórios de Portugal e suas províncias, afirma que

Na verdade, creio ter encontrado nesta viagem a expressão que me faltava para
caracterizar aquele tipo de civilização lusitana que, vitoriosa nos trópicos, constitui
hoje toda uma civilização em fase ainda de expansão (…). Essa expressão- luso-
tropical- parece corresponder ao facto de vir a expansão lusitana na África, na
Ásia, na América manifestando evidente pendor, da parte do português, pela
aclimação como que voluptosa e não apenas interessadas em áreas tropicais ou em

1159
terras quentes (FREYRE,1953, p.172).

Freyre destaca a ação do português como pioneiro das modernas civilizações tropicais, onde
o sangue e os valores tropicais se juntam aos valores e sangue europeus. O autor se utiliza da
expressão “novo conceito de tropicalismo” fazendo alusão a um suposto “velho conceito de
tropicalismo”, que incluiria a negação ou rejeição da cultura e valores vindos os trópicos. Freyre
atribuiu novo sentido ao termo tropicalismo bem como a civilização lusotropical, elencando como a
civilização do futuro, a terceira civilização, devido seu grande potencial, pois reuniu características
e elementos das três grandes culturas do mundo.
Nesse momento, a teoria lusotropical, que pairava ainda sem comprovação sociológica,
encontra os mecanismos dos quais necessitava para se concretizar e disseminar, a partir da própria
experiência de comprovação empírica vivenciada por Freyre. O intelectual brasileiro encontrou uma
plataforma de projeção dentro do Salazarismo português através de meios institucionais de difundir
seus estudos. Além disso, Freyre buscava se afirmar internacionalmente em busca de prestígio e
reconhecimento.
Embora Freyre tenha contribuído para tal apropriação por parte do Salazarismo, João
Alberto da Costa Pinto assegura que essa apropriação do lusotropicalismo freyreano por parte do
Salazarismo português “não aconteceu à revelia de Freyre, muito pelo contrário, ele aceitou de bom
grado o papel de ideólogo salazarista e em alguns momentos foi percebido como um dos mais
eficientes cães de guarda do Império.” (PINTO, 2009: 435).
As intenções do intelectual brasileiro iam além da afirmação do Império Português no mundo,
estavam sim, imbuídas de assegurar o lugar do Brasil no mundo e seu papel de vanguarda em
relação às colônias portuguesas, bem como de ressaltar o mundo lusotropical como uma terceira
civilização no mundo6, aquela que prosperaria, pois reunia as melhores características dos três
grandes povos do mundo, frente a uma Europa decadente e fadada ao fracasso.
Gilberto Freyre afirma, ao ser questionado sobre sua viagem a convite do Estado Novo
português, que somente aceitou pela garantia dada a sua autonomia intelectual, servindo o aparato
do Estado Novo somente de fomentador da viagem. Freyre nega que a viagem possui qualquer
vínculo ideológico com o Estado Novo, estando imbuído do ideal de comprovar na prática sua tese
do lusotropicalismo, o que afirma posteriormente que o fez, bem como em disseminá-la pelos

6 Sobre a construção da ideia da comunidade lusotropical enquanto terceira civilização no mundo, seus
pressupostos e possibilidades, ver: FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas: introdução a uma
possível luso-tropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e
ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. 1953.

1160
territórios lusotropicais.

O convite recebido por mim do Ministro do Ultramar não poderia ser mais
nitidamente apolítico. Nem mais nitidamente apolítica poderia ter sido minha
resposta a esse convite excepcional que de início me colocou na situação de
homem de estudo a quem se pediu que visse o Ultramar Português com inteira
independência e até com olhos sociologicamente clínicos. (FREYRE, 1980:11)

Desse modo, podemos afirmar que a teoria do lusotropicalismo foi apropriada pelo Estado
Novo de Salazar conferindo sentido histórico-estrutural à manutenção ideológica de um Império
anacrônico. Porém, o lusotropicalismo, enquanto teoria, foi elaborada por Gilberto Freyre não para
servir a Salazar e suas pretensões colonialistas. A teoria freyreana foi criada para afirmar um projeto
brasileiro de hegemonia geopolítica e assegurar o papel de vanguarda que o Brasil possuía frente
aos territórios ainda colonizados por Portugal.
O que observamos é uma “apropriação consentida” por parte de Gilberto Freyre, expressão
utilizada por Cláudia Castelo (1998), que também se beneficia das pretensões salazaristas. O
intelectual brasileiro se apropria do Salazarismo português como plataforma de divulgação
internacional de sua recém-criada teoria do lusotropicalismo, assim como Salazar e sua ideologia
colonial se apropriam da teoria freyreana a fim de legitimar as suas colônias em África e Ásia.
Freyre não formula, elabora e segundo ele, comprova a existência de um mundo
lusotropical, em prol da permanência de Salazar no poder e da manutenção das colônias
ultramarinas, mas se utiliza da propaganda salazarista e da viagem oferecida pelo Ministério do
Ultramar português para difundir e legitimar o lusotropicalismo.
A viagem de Gilberto Freyre para Portugal e suas colônias se manifesta, então, enquanto
acontecimento chave, crucial para compreendermos os interesses revisados do Estado Novo
Salazarista, inseridos em um contexto de revisão das possessões coloniais no mundo, resultado
direto das redefinições políticos-geográficas do mundo pós-Segunda Guerra Mundial.
A ida de Freyre para Portugal também nos fornece mecanismos para compreender a teoria do
lusotropicalismo e seu caráter transnacional, indissociável da própria trajetória do sociólogo e do
conceito de cultura que forjava. Os três momentos acima analisados e suas respectivas obras
recuperam o processo de elaboração da teoria freyreana lusotropical, desde as bases, em Casa
Grande e Senzala, perpassando pela fase de expansão de seu objeto de estudo, em 1940, até a
legitimação do lusotropicalismo, a partir de uma experiência de comprovação sociológica que
incluiu uma grande campanha de divulgação nos territórios lusotropicais nos anos de 1951-1952.
Extrapolando fronteiras nacionais e estabelecendo fronteiras culturais, Freyre idealizou uma

1161
terceira civilização, uma civilização do futuro, que carregaria uma cultura essencializada, formada
pela interpenetração de várias outras culturas. Uma cultura em potencial, onde o Brasil ocupa papel
de destaque, de vanguarda frente os territórios lusotropicais. A despeito de críticas, ausências e
silenciamentos que são claramente visíveis nas obras de Gilberto Freyre, tamanha valorização dos
trópicos, no seu povo e de sua cultura era algo inédito, há quem diga, revolucionário.

Bibliografia

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Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed.34, 1994.

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Cláudia Castelo (Orgs.), Gilberto Freyre. Novas leituras de outro lado do Atlântico, pp. 35-48.
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CASTELO, Cláudia. O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia


colonial portuguesa (1933-1961). CITCEM-Publicações (2012).

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histórias transnacionais, conectadas, cruzadas e comparadas. Temporalidades, v. 8, n. 2, p. 4-21,
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estudos do Atlântico e o ensino de História da África. Temporalidades, v. 9, n. 1, p. 167-183, 2017.
FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes
portuguesas de caráter e ação. J. Olympio, 1953.

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economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933

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tropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e

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Colonial Português (1951-1974). História (São Paulo) 28.1 (2009): 445-482.

1163
Como Dançar?:
Moralidade, raça e relações de gênero nos clubes dançantes cariocas (1900-1910)

Juliana da Conceição Pereira 1

Resumo: O trabalho tem como objetivo analisar os códigos de moralidade adotados nos bailes
realizados pelos clubes dançantes carnavalescos no período de 1904 a 1912. Frequentados por
homens e mulheres de maioria negra essas associações são resultado de um fenômeno que tomou o
Rio de Janeiro entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Os diretores dessas
associações adotaram regras de conduta e comportamento como uma importante estratégia de
afirmação social, garantia de respeitabilidade e proteção feminina. De fato, nesse período, com a
intenção de reformar a Nação e torná-la moderna e civilizada, se estabeleceu um forte apelo moral
dos discursos de médicos, juristas e autoridades políticas. Foi sobre as mulheres que recaíram as
maiores imposições e pressões acerca do comportamento desejado. Partindo dessa constatação, o
trabalho pretende, ainda, refletir sobre a presença feminina nas associações dançantes.

Palavras Chave: Clubes dançantes – mulheres - respeitabilidade

Abstract: The work aims to analyze the codes of morality adopted in the dances performed by
carnaval dance clubs from 1904 to 1912. Attended by black majority men and women these
associations are the result of a phenomenon that took Rio de Janeiro between the end of century and
the first decades of the twentieth century. The directors of these associations adopted rules of
conduct and behavior as an important strategy of social affirmation, guarantee of respectability and
feminine protection. In fact, in this period, with the intention of reforming the Nation and making it
modern and civilized, a strong moral appeal was establish for the discourses of doctors, jurists and
political authorities. It was on the women who relied the greatest impositions and pressures on the
desired behavior. Based on this observation, the work also intends to reflect on the female presence
in the dancing associations.

Keywords: danancing clubs– women – respectability

Foi no dia 08 de agosto de 1903 que José João de Araújo, diretor do Club Flor do
Bonsucesso, localizado na Estrada da Penha número 46 (Freguesia de Inhaúma), enviou à secretaria
de polícia do Distrito Federal um requerimento para obter licença de funcionamento para o seu
clube. Anexado ao pedido de licença estavam seus estatutos para a possível aprovação do delegado
distrital neles, a diretoria afirmava que era finalidade do clube dar partidas “bimensais” de dança e
música a seus futuros associados que poderiam ser de “qualquer nacionalidade, cor ou religião”
(Gifi 6C 102). A paixão pela dança parece ter sido o elemento que reuniu esses indivíduos em uma
associação recreativa. A atenção que tinham com a maneira de se dançar sugere o quanto isso lhes
era importante.

A partir da leitura dos seus estatutos, podemos acompanhar como se constituiu a atenção
desses sócios com a dança. Já nos primeiros artigos, o “Flor do Bonsucesso” informava que aqueles

1
Doutoranda em História - PPGH- UFF. E-mail: juliana.cpereira@yahoo.com.br.

1164
que fossem admitidos como sócios participariam de ensaios semanais, separados por sexo, a fim de
que todos se aperfeiçoassem na arte da dança. Para os membros que não soubessem dançar, o clube
teria à disposição um “mestre de sala” que os instruiria, cabendo aos que estivessem como alunos
prestar atenção às explicações que lhes fossem dadas, guardando o “devido respeito”. Atitudes
como essas, demonstravam que os diretores tinham uma preocupação com a técnica de seus
associados nos movimentos coreográficos, pois, como era um clube voltado para o lazer dançante,
parecia essencial que seus membros fossem bons bailarinos.

Outra preocupação dos sócios era com as damas que frequentavam os bailes. O respeito era
uma exigência dos estatutos, principalmente na hora do dançar. Esse cuidado se expressava nas
regras que eram direcionadas aos indivíduos do sexo masculino. Como os homens conduziam os
passos, a maioria das regras se voltava para o seu comportamento:

Art. 6º § 5º É expressamente proibido os cavalheiros dançar (sic) consecutivamente com a


mesma dama afim de evitar qualquer desgosto ou desavença.
Art. 6º § 7º Os cavalheiros serão obrigados a guardar o devido respeito as damas, tratando as
com toda a delicadeza e amabilidade
Art.17º §1º Observar aos cavalheiros que não podem dançar seguidamente com uma dama
ainda mesmo sendo pessoa de sua família.

A diversificação dos pares durante as danças seria uma forma dos diretores do clube
evitarem a formação de casais em seus bailes. Se, de fato, isso ajudava a evitar possíveis namoros
entre os convidados não podemos ter certeza. Mas, o que chama a atenção é que a proibição de
pares constantes para os foliões da Penha se estendia até entre aqueles que eram parentes.

Essa regra nos sugere dois possíveis caminhos de interpretação: o primeiro seria que, se a
maioria dançasse apenas com seus familiares, as damas que não fossem acompanhadas por seus
parentes ficariam restritas a dançar consecutivamente com os cavalheiros que estiverem na mesma
situação, desobedecendo assim o parágrafo quinto do artigo sexto; o segundo caminho sugere que
seria um meio de evitar que algum casal mal-intencionado pudesse forjar ser da mesma família a
fim de dançar a par constante durante todo o baile. Ficava claro, dessa forma, que, embora tivesse
privilégio em seus festejos, o dançar estaria submetido a uma série de regras pautadas na “moral”. O
clube de Bonsucesso teve seus estatutos aprovados e a concessão da licença de funcionamento
assinada pelo 2º delegado auxiliar, o doutor Segadas Vianna Jr..

O Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX vivia um período de


efervescência. Nas ruas da cidade cosmopolitismo e tradição popular dialogavam cotidianamente.
Era nesse cenário urbano que os novos ritmos e danças de base africana mais animados, pulsantes,
sincopados e frenéticos se estabeleceram. Mônica Pimenta Velloso afirma que a partir de 1880 as

1165
exibições etnológicas e exposições universais permitiram a descoberta das danças da África, Ásia e
do Oriente. Denominadas como “danses exotiques” esses novos ritmos tinham raízes no
“submundo das culturas negras” e se tornaram interesse principalmente no circuito musical
vanguardista. Foi nesse cenário que as “danses nouvelles” como o cake-walk, o maxixe, o tango
argentino, a rumba cubana e outras danças latinas tiveram receptividade. (Abreu, 2017)

Somada a essa valorização de uma “cultura exótica” e “primitiva” também criou-se uma
“correspondência direta entre as ideias de cidade higienizada e corpos saudáveis. Ser moderno
implicava também em modelar e cuidar do corpo. O discurso médico buscava convencer os
governos e a população sobre a necessidade de se cultivar hábitos saudáveis. A saúde seria a
“chave” de “um corpo moderno” (Sevcenko, 1998). Os passos, os requebrados e os movimentos
coreográficos estavam submetidos a conflitos, tensões, negociações, influências e a todas as
“ambiguidades que marcavam a passagem da sociedade brasileira para os tempos modernos”
(Velloso, 2007, p. 11-20). Acompanhando os debates sobre o caráter nacional brasileiro e os ideais
de modernidade e civilização do Brasil pensados por diferentes intelectuais, se tornavam múltiplos
os significados atribuídos aos comportamentos e códigos de conduta que eram adotados por aqueles
que estavam dançando. 1

No meio dessas disputas vários dançarinos se preparavam para seus bailes. As diretorias dos
pequenos clubes tinham maneiras muito particulares de lidar com as controvérsias em torno do lazer
dançante. Entre as suas preocupações, estava a destreza nos movimentos coreográficos para não
fazer feio no salão e o estabelecimento de regras de conduta que permitissem que as damas
frequentadoras se sentissem bem naquele local. É na investigação dos significados atribuídos aos
movimentos coreográficos pelos sócios dos pequenos clubes que se constitui esse texto. O objetivo
é analisar como suas escolhas, no que se refere as danças, dialogavam com outros grupos e se
constituíram como uma importante ferramenta de proteção e valorização das mulheres negras e
mestiças que frequentavam as associações.

Cuidando da Técnica

Mesmo com suas particularidades, aqueles que dançam tinham em comum o desejo de dar o
seu melhor nos bailes. Além de ser um hábito moderno e saudável, o dançar com afinco e destreza
fazia parte do prazer do dançar. Nos jornais, havia vários anúncios de professores de dança que
ofereciam aulas em academias próprias ou ministravam aulas particulares em casa. Alguns desses
professores ajudaram a organizar pequenos livros que tinham “explicações teóricas e práticas”2
sobre danças de salão, vinham ilustrados e se baseavam em manuais de dança que circulavam na
Europa e nos Estados Unidos (Braz, 1915, p.03).

1166
Os frequentadores dos pequenos clubes dançantes também adotaram formas específicas de
preparação para o baile. Existiam dias específicos para os sócios ensaiarem na sede; geralmente
eram separados por sexo e, de acordo com as cláusulas da licença concedida pelo Chefe de Polícia,
não poderiam “exceder das dez horas da noite” (Gifi 6C 98). No caso dos indivíduos das “classes
populares” não associados a algum clube, é provável que muitos dos movimentos coreográficos
fossem aprendidos no compartilhamento de experiências de dança. Fosse como convidado de um
desses bailes ou em algum dos “choros” que aconteciam pela cidade. Era na observação dos casais
vizinhos e na troca de parceiros que se poderia copiar, aprender e ensinar os novos movimentos.

No Carnaval do ano de 1908, os diretores do recém-criado Grupo Carnavalesco Rei das


Mattas, sediado nas proximidades da Estação de Dr. Frontin (Inhaúma), informavam a seus
membros que os que desejassem se preparar para as danças carnavalescas, teriam nos dias
marcados, na sede do grupo, “pessoa competente para lecionar as danças” (Gifi 6C 250). Se o bom
desempenho dançante nas passeatas de carnaval era um dos objetivos dos membros de tal
associação, do mesmo modo o ensino da dança também o era, pois, permitia uma padronização dos
movimentos coreográficos eliminando excessos e imoralidades que poderiam ocorrer nos bailes.

Várias outras associações recreativas compartilhavam o cuidado pela dança. Os sócios do


grêmio Dançante União das Flores de Jacarepaguá atribuíram ao seu mestre de sala o zelo pelas
dança. Sua função era tão importante que ele deveria ser obedecido, “no que diz respeito à dança”,
até pelos diretores da agremiação (Gifi 6C 251). Segundo os regimentos, “o respeito às danças
próprias e alheias” seria “a base” do grêmio. E era justamente para garantir que o respeito
prevalecesse que o mestre de sala estaria ali.

Os protetores do baile: fiscais e mestres de sala

O “mestre de sala” era um importante cargo da diretoria do clube. Ele e o fiscal eram os
responsáveis por manter a ordem dentro do salão3. Nas associações geralmente havia o primeiro e o
segundo fiscal. As funções dos fiscais eram duas: a de organização prática da festa, como por
exemplo, a escolha das músicas; e a proteção da moral e dos bons costumes. Eles advertiam os
convidados o que poderia ou não ser feito nos bailes. Também fiscalizavam o comportamento dos
sócios. E, enquanto todos dançavam, circulavam pelo salão com o olhar atento para que não
houvesse “encostamentos, apalpações e outras inconveniências” que eram proibidas pelas regras
dos estatutos (Edmundo, 1957, p. 818-820). Já o mestre de sala era o cargo de um único indivíduo.
Assim como o fiscal, ele também deveria estar familiarizado com o protocolo e as etiquetas do
clube para aplicá-las nos ensaios, nos salões e nos desfiles4.

1167
As regras de conduta

A antropóloga Andréa Moraes Alves, no livro A dama e o cavalheiro: um estudo


antropológico sobre envelhecimento, gênero e sociabilidade argumenta que as regras de conduta
adotadas nos espaços de sociabilidade funcionam como “guias das relações individuais”, isto é,
permitem que as pessoas saibam o que os outros indivíduos esperam delas. E representam um
“padrão de comportamento vigente na estrutura social mais abrangente, na própria vida cotidiana”.
As regras, para Andréa Moraes Alves, permitem que se estabeleça uma “relação de simetria entre as
pessoas envolvidas” evitando “distúrbios que possam comprometer a relação”. O “prazer pela
dança” seria assim, um sentimento coletivamente compartilhado e responsável pela “imagem de
comunidade que impera nos bailes” (Alves, 2004, p. 54).

No caso dos pequenos clubes dançantes, o entusiasmo que tinham pelas danças modernas
dialogava com as “teorias racializadas e racistas sobre sexo, gênero e culturas” de africanos e seus
descendentes (Abreu, 2017). Assim, os códigos de conduta adotados pelos diretores dos clubes
tinham a função de confirmar a imagem “moral” e de boa conduta que lhes possibilitava a
concessão da licença de funcionamento. E, de igual modo atribuía “um perfil elevado” a suas
atividades os diferenciando daqueles que consideravam inferior (Pereira, 2010, p. 286).

Como já foi apresentado, os sócios da sociedade As Meninas Vaidosas atribuíram ao seu


fiscal a função de cuidar para que não houvesse casais que ficassem dançando “a par constante”,
quer dizer, dançassem juntos durante todo o baile. Essa não era uma regra singular a tal sociedade,
como vimos com o Club Flor de Bonsucesso que estendia tal proibição até entre os aparentados.
Diversificar os casais era uma forma de reafirmar que os bailes eram para ser o encontro
desinteressado de pessoas que amavam a dança5.

A proibição dos pares constantes durante a dança era – e ainda é – um código que circulava
entre aqueles que dançavam6. Não era respeitoso dançar a noite toda com a mesma pessoa, pois
indicava que o interesse estava longe da simples diversão e da prática dos encontros de
sociabilidade7.

A proibição não eliminava a ação. Muito pelo contrário, ela só indicava o quanto essas
práticas eram uma constante. Com a quantidade de pessoas que participavam dos bailes era difícil
para o fiscal controlar a todos os casais. Os sócios do Club do Engenho Velho, por exemplo,
enviaram uma nota para o Jornal do Brasil tornando público que seu fiscal não estava cumprindo
sua função nos bailes proporcionados pela sua diretoria:

1168
Os sócios deste Club perguntam à diretoria se o sr. F.C.P.J tem o privilégio de dançar a par
constante com duas damas que frequentam este salão e que elas negam-se a dançar com os
outros sócios (por que será) o senhor fiscal não terá olhos? (Jornal do Brasil, 1903, p.4)
Os sócios cobravam da diretoria e do fiscal um posicionamento para que a regra fosse
cumprida, sem distinções. Se no meio social existiam categorias entre os sócios, 8 no salão isso não
poderia acontecer. O momento do baile seria o espaço onde todos deveriam circular sem
hierarquias. O lugar em que todos deveriam dançar e estão submetidos as mesmas regras. Quem se
diferenciava era o fiscal ou mestre de sala, que diferentemente dos sócios, não tinha lugar nas
danças, mas cuidava das danças alheias.

A imagem moral do clube era uma construção coletiva. Todos deveriam contribuir para que
ela fosse efetivada. Por esse motivo, alguns desses clubes não se limitavam a determinar proibições
que visavam controlar os excessos possíveis do comportamento masculino. Os sócios do Grêmio
Familiar da Tijuca, por exemplo, determinavam em seus estatutos, do ano de 1903, uma norma que
se voltava diretamente para o gênero feminino: “as damas não poderão recusar a dançar com o
cavalheiro que lhe for pedir” (Gifi 6C 102). Desse ponto de vista, a regra ajudaria a evitar conflitos
no salão decorrentes da preferência das damas por um ou outro cavalheiro, que de fato aparecia
como estopim frequente para brigas dentro da sede9. Para os sócios desse clube, cabia às damas
ajudarem na manutenção da ordem.

Chama a atenção, dentre muitas outras, a descrição feita pelos sócios da Sociedade
Carnavalesca As Meninas Vaidosas, de Laranjeiras, no ano de 1908 das funções de ambos os
cargos:

Do 1º Fiscal:
Art. XX. Ao 1º fiscal compete: Manter a ordem na sala com apelo a moral na ocasião das
sessão e festas da sociedade.
(...)
§4º Ordenar aos músicos o que eles devem tocar, para eles darem o sinal para os convidados
e sócios tirarem damas.
§5º Advertir particularmente ao sócio que abusar no recinto social, quer nas danças quer na
moral pela 1ª vez; pela 2ª deverá suspende-lo até a 1ª sessão de Diretoria que resolverá a
pena a ser imposta, e ser for convidado, depois de ser advertido e não se formar será
convidado por 3 membros da Diretoria a retirar-se do recinto social.
§6º Deverá dar 2 sinais de campainha elétrica a primeira fará os músicos tocarem e os
segundo [sic.] para cavalheiros se formarem.
§7º Prestar toda a atenção nos pares, para que não dancem a par constante, proibindo o
cavalheiro que assim proceder.
Do mestre de sala:

1169
Art. XXII Ao mestre de sala compete: Dirigir os ensaios ter método no ensinar e zelar pela
moralidade da sala em tudo e por tudo que lhe esta afeto. (Gifi 6C 251)
É preciso enfatizar que o cuidado com a moralidade era comum a todos que faziam parte da
associação. Cada um do seu jeito, e guardada as devidas particularidades de seu cargo, deveria
contribuir para que esse objetivo fosse alcançado. Fruto da experiência cotidiana dos sócios e
diretores, as regras adotadas para seus bailes pareciam sem sentido para aqueles que não faziam
parte dessa rede associativa.

Mestiçagem e Historiografia

Martha Abreu, em seu artigo “Sobre Mulatas Orgulhosas e Crioulos Atrevidos”: conflitos
raciais, gênero e nação nas canções populares (Sudeste do Brasil, 1890-1920), reflete sobre a
construção de imagens racializadas dos gêneros em versos de “canções populares”. Como observa,
entre o final do século XIX e o início do século XX, foram muito difundidas, nos discursos
parlamentares, nos artigos da imprensa e até entre os abolicionistas, ideias sobre a inferioridade dos
negros/as e mestiços/as. Essas ideias vinham fundamentadas nas teorias cientificas raciais europeias
que vieram para o Brasil a partir da década de 1870 e eram baseadas no positivismo, evolucionismo,
e no darwinismo10. Foram elas que legitimaram as supostas diferenças sociais hierarquizando os
indivíduos racialmente. Os estereótipos em relação a homens e mulheres negras eram diversos, e
mesmo com a conjuntura do pós-abolição e da proclamação da República continuava-se a difundir
preconceitos “em torno da população liberta e identificada como negra” (Abreu, 2004).

De acordo com Martha Abreu, embora os autores das canções citadas em seu artigo usassem
um tom irônico e humorístico para destacar supostos defeitos de uma população negra e mestiça, as
canções tinham um caráter polissêmico; os sentidos eram muito variados e dependiam de quem,
quando e onde eram cantados. Assim, essas canções não poderiam ser classificadas com um
significado único “pretensamente masculino e preconceituoso”. Mesmo que não se pudesse
classificar, as letras analisadas trazem aspectos que permitem problematizar as imagens que
estavam sendo construídas em torno de mulheres negras.

Um dos desafios nos trechos que tematizam a mulata, é a definição da mesma. No Brasil, as
fronteiras raciais eram muito fluídas, e a definição de ser negro/negra seria o somatório da cor da
pele e de uma série de características de aparências físicas e sociais11. Logo, a determinação de
quem seria efetivamente negra/o ou mulata/o passava por essas indeterminações.

No caso do gênero feminino, ser morena (ou mulata) se ligava a “atributos de beleza e
sensualidade” como os seios fartos e o movimento dos quadris (Abreu, op. cit.). Em geral, as

1170
mulheres consideradas feias (que estavam longe do interesse sexual masculino) eram caracterizadas
como pretas. Quando são belas, no olhar dos homens brancos, são descritas como mulatas.

E embora existisse a valorização das mulatas e dos crioulos nas canções populares
selecionadas para o seu trabalho, Martha Abreu observa que nelas também existe um diálogo com
as visões difundidas principalmente por médicos e juristas de “inferiorização” e de “animalização
da mulher negra e mestiça”. A mulata usualmente representada como a mestiça desejável
sexualmente12, naturalmente mais propensa a uma sexualidade desenfreada e degenerada, era
desejada no imaginário masculino.

A suposta sensualidade transcrita nos corpos de negras e mulatas se transpunha inclusive em


suas danças. Desde o início do século XIX, vários relatos de viajantes já mostravam um
estranhamento e preconceito diante da expressão corporal de africanos e seus descendentes13.
Caracterizados como selvagens e licenciosos por uma pretensa elite branca e burguesa, suas
manifestações culturais foram alvo da tentativa de um enquadramento de moralidade de uma
família branca, heterossexual e burguesa.

Presente nas canções carnavalescas, nas representações letradas, nos teatros e no cotidiano, a
mulata que “tem os requebros mais belos”14, e com sua maneira sensual de dançar que deixava os
“homens loucos”15, não era a figura que as diretorias das pequenas agremiações queriam ver
associadas àquelas que frequentavam seus festejos. As fotos dos clubes dançantes circuladas nas
revistas da época retratam mulheres muito bem comportadas; portando longos vestidos ou saias,
sem nenhum decote e com expressão séria. Imagens estas que estavam muito distantes daquelas que
eram apresentadas nas charges, da imprensa da época, onde as mulheres negras geralmente são
retratas de maneira desleixada.

Danças Morais?

O controle dos diretores das associações não era só sobre a recusa e a permanência dos
pares. Os movimentos coreográficos também estavam em julgamento. É o que demonstravam no
ano de 1912, os diretores do Grupo Dançante Carnavalesco Bateria do Inferno, localizado no morro
da Providência. Para garantir que as atividades organizadas pelo seu grupo fossem decentes, os
diretores proibiam que se dançasse “seguidamente com outrem ou a par constante” e também
“qualquer dança imoral ou desconhecida” (Gifi, 6C 213). Os estatutos não traziam a descrição de
quais as danças seriam consideradas imorais. É provável que as danças imorais fossem aquelas que
tivessem uma coreografia mais sensualizada. E por danças desconhecidas, entende-se movimentos
coreográficos que pudessem ser indecorosos ou que estavam fora do julgamento.

1171
Longe de ser uma singularidade dos sócios do “Bateria do Inferno”, no Club Dançante
Familiar Jandira a proibição era específica: cabia ao fiscal do clube proibir que se “dançasse maxixe
e samba” e que se cantassem modinhas nos bailes (Gifi, 6C 200). Considerando esses gêneros
musicais como algo imoral para um clube que se pretendia familiar, a diretoria decidiu pela sua
proibição. Essa foi a mesma medida tomada, posteriormente no ano de 1913, pelo Rancho
Carnavalesco Progresso dos Operários de Santa Cruz. Segundo seus diretores não era permitido
“dançar ‘o maxixe’ nem outras danças desconhecidas" (Gifi, 6C 465).

Disseminado nos bailes da cidade no final do século XIX16 o maxixe veio a ser conhecido
como o “tango brasileiro”. Mesmo em seu período de auge as disputas em torno do maxixe sempre
o associavam como uma manifestação artística da Cidade Nova. O cronista Baptista Coelho do
jornal a Cidade do Rio afirmava em dezembro do ano de 1901 que “caindo no Rio de Janeiro,
escaparia o estrangeiro do micróbio da febre amarela”, mas, não se livraria “do bacilo do maxixe”
(Cidade do Rio, 1901, p.1). De acordo com Astrid Kusser17 no contexto da dança falar de um vírus,
de uma epidemia ou de febre era um discurso utilizado para classificar o ritmo que consegue romper
com fronteiras de classe, gênero e raça.

O maxixe estava tão disseminado pela cidade que o autor observava que se em uma noite
fosse possível percorrer todos os bailes existentes na cidade se veria o mesmo ardor por esse gênero
musical dos bailes realizados no Club dos Democráticos, que era uma das três sociedades elitizadas
do período, a grupos mais “populares” como o Castello de Ouro. Isso porque na visão do autor o
“maxixe era prazer, loucura e espontaneidade”, características tipicamente modernas e humanas.

Jota Efegê se dedicou a pesquisar esse gênero musical num livro chamado Maxixe, a dança
excomungada. Seu primeiro objetivo foi tentar mapear uma origem para o gênero, que teria sido, na
sua avaliação, o fruto da fusão, da habanera e da polca europeia com o lundu africano. A música
teria se firmado posteriormente à dança. Para o autor, a música formou-se da assimilação de
elementos rítmicos e melódicos que já vinham proporcionando aos dançarinos condições capazes de
conduzi-los aos movimentos. Assim, primordialmente, o maxixe teria sido o “jeito de se dançar”. A
dança era de fato, um dos elementos de maior importância no maxixe (como um todo ritmo e
dança). E os movimentos coreográficos dos pares causavam um verdadeiro impacto em quem
assistia18 .

O sucesso que o maxixe fazia nas ruas e nos palcos cariocas e europeus não garantiu que o
gênero saísse do conflituoso campo de avaliações mais conservadoras sobre o movimento dos
corpos: era considerado escandaloso e imoral19. Eram várias as manifestações contrárias em torno
dos requebros e rebolados associados a cultura de africanos escravizados20.

1172
A descrição feita por Olavo Bilac em crônica sobre a dança no Rio de Janeiro seria um bom
caminho para se refletir sobre alguns dos motivos que levaram as resistências ao maxixe:

E vamos a Cidade Nova. A Cidade Nova! ... um mundo novo, de onde a quadrilha
foi banida... aqui, tem o maxixe o seu reino incontestado. O maxixe! A Espanha tem
o bolero e a cachuca, Paris tem a chahut, Nápoles tem a talanterella, Veneza tem a
forlana, Londres tem a Giga, - e a Cidade Nova não lhes inveja essas riquezas,
porque possui o maxixe. Aqui, não se tocam apenas corpos: colam-se.

O maxixe seria assim, na visão de Bilac, não a dança que estava disseminada na cidade. Seu
“império” estaria muito bem delimitado geograficamente: a Cidade Nova. Localizado próximo ao
centro da cidade, ali se concentrava a maior parte da população pobre e negra, que viviam sob
constante suspeita do aparato policial e das elites. Preconceituosamente retratadas nos periódicos, o
projeto de saneamento moral da cidade deveria ser aplicado a esses indivíduos e a tudo que se
relacionasse aos mesmos. Os estereótipos e preconceito direcionado aos moradores da Cidade Nova
somado a coreografia inovadora foi o que atribuiu ao maxixe uma característica de imoral. Se
tornando, desta maneira, proibido em alguns clubes dançantes como vimos anteriormente.

Ao mesmo tempo o maxixe era uma dança moderna e chique21 que fazia sucesso nos palcos
internacionais. Estudando a coreografia do maxixe, Monica Velloso ressalta a importância de se
pensá-la partindo do “fenômeno da improvisação” e da “inclusão de novas formas” (Velloso, 2011).
Enquanto dançado, o maxixe era constantemente recriado pelos coreógrafos. E a evolução
coreográfica favorecia de forma inusitada a liberação corporal: “O balançar dos quadris, liberando a
pélvis, possibilitava grande flexibilidade aos corpos, algo completamente novo e distinto do
formalismo hierático da valsa”. A sensualidade da dança estava nos muitos requebrados e no
envolvimento corporal. A união dos corpos se envolviam de tal forma que pareciam “um corpo só”.
E como, de forma divertida descrevia Baptista Coelho, “é um corpo só que gira, ginga, remexe,
contorce-se, volteia, abaixa-se, curva-se, ergue-se, bamboleia”.

Em suma, fica evidente que os bailes proporcionados pelos pequenos clubes dançantes não
eram despretensiosos. Os novos ritmos e danças modernas que invadiram a cidade dialogavam com
os discursos moralistas. Se a febre dançante era compartilhada na cidade, de igual modo, o desejo
de dançar dentro dos limites da ordem também o era. Frequentado por várias pessoas que
circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro, seus salões se tornavam um campo constante de encontros
e disputas sociais que envolviam relações de classe, raça e de gênero.

1173
Referências Bibliográficas:

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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 2° edição. São Paulo: Brasiliense, 1985.

1174
1
Cf.ABREU, M. C. ; DANTAS, C. V. Música Popular e História, 1890-1920. In: ABREU, M; LOPES, H; ULHOA, M;
VELLOSO, M.. (Org.). Música e História no Longo século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011,
p. 37-68.
2
BRAZ, Xico. Danças de Salão. Editora Quaresma, Rio de Janeiro, 1915. (p,03)
3
Cf: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. E o Rio dançou. Identidades e tensões nos clubes recreativos cariocas
(1912-1922) In: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura.
Campinas: Editora da Unicamp, 2002
4
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre os anos de 1880 e
1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.. (p.162)
5
ALVES, Andréa Moraes. “A dama e o cavalheiro...”. Op.Cit.
6
O Jornal das Moças do dia 12 de dezembro de 1918 em resposta a uma suposta matéria d’ O Internacional se propôs a
discutir a questão do “par constante”. Em resposta dizia o jornal :“não ha maior esfera moral do que a familia. A familia
é o principio de que parte a idéia da sociedade: a sociedade repousa, a sociedade descança na familia, sem a qual não
existiria. E quem quer que procure outra fonte , no que se diz moral, para dessedentar-se , sentirá apenas areia na boca,
em vez de água tranquilla e boa... É a fonte mais verdadeira de ensinamentos morais, a familia. E não há uma familia
que, se não proíbe, ao menos não repare o par constante...” Assim como nos pequenos clubes, os redatores do Jornal das
Moças mostram-se contra essa prática. (“O par constante”.Jornal das Moças, 12 de dezembro de 1918)
7
Há de se ressaltar que a “proibição dos pares constantes”, apesar de ser um código reconhecido entre aqueles que
dançavam, não era uma preocupação nos bailes das Grandes Sociedades. Cf. CUNHA, Maria Clementina. “Ecos da
Folia...” op. Cit. (p. 145-46); PEREIRA, Cristiana Schettini. Os senhores da alegria: a presença das mulheres nas
Grandes Sociedades carnavalescas cariocas em fins do século XIX.: In: CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Carnavais
e outras f(r)estas”. op. cit.
8
Dentro do clube a diretoria dividia-se em: presidente, vice-presidente, 1º e 2º secretário, 1º e 2º procurador, 1º e 2º
tesoureiro, 1º e 2º fiscal, mestre de sala, mestre de canto (apenas em algumas associações), mestre de pancadaria
(apenas em algumas associações). Haviam também sócios importantes que recebiam o título de fundadores, honorários
e beneméritos.
9
Ver: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “E o Rio dançou”. op.cit.
10
Conf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Uma História de ‘Diferenças e Desigualdades’ – as doutrinas raciais do século
XIX”. In: O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993. (p, 57)
11
GUIMARÃES, Antônio Sergio A. “Racismo e Anti-racismo no Brasil”. In: Racismo e Anti-racismo no Brasil. São
Paulo: Editora 34, 1999.
12
MELO, Thiago Gomes de. SEIGEL, M. “Sabina das Laranjas: gênero e nação na trajetória de um símbolo popular,
1889-1930”, Revista Brasileira de História, São Paulo, Anpuh, CNPq, vol. 22, no 43, 2002, pp. 171-193. (p, 183)
13
Rachel Soihet, “A sensualidade em festa: algumas representações do corpo feminino nas festas populares no Rio de
Janeiro – séculos XIX e XX”, Diálogos Latinoamericanos, CLAS – Centrode Estudios Latinoamericanos. Universidade
de Aarhus – Dinamarca, 2/2000, pp. 92-114.
14
Xisto Bahia, A Mulata. Disponível em: http://musicabrasilis.org.br/partituras/xisto-bahia-mulata Acesso 13 dez 2016.
15
Bastos Tigre, Vem cá mulata. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eOgyAy4W8T0 Acesso 13 dez
2016.
16
De acordo com os trabalhos de: ARAUJO, Rosa Maria Barbosa de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio
de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; LOPES, A. H. “Da tirania ao maxixe: a “decadência” do teatro
nacional”. In: ABREU, M. C. ; LOPES, A. H. (Org.) ; ULHOA, M. T. (Org.) ; VELLOSO, M. P. (Org.) . Música e
História no longo século XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. 500p; LOPES, A. H. . Um
forrobodó da raça e da cultura. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 21, p. 69-83, 2006.; VELLOSO, M. P. . “A
dança como alma da brasilidade: Paris, Rio de Janeiro e o maxixe”. Op. Cit.
17
Apud. ABREU, Martha. “Da Senzala ao palco...”. Op. Cit.
18
EFEGÊ, Jota. Maxixe: a dança excomungada. 2ª Edição. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2009.
19
LOPES, Antônio Herculano, “Um forrobodó da raça e da cultura”, RBCS, vol. 21 n. 62 out. 2006.
20
É importante destacar que a perseguição moralista frente aos movimentos coreograficos não era singular ao maxixe.
Jonh Chasteen em seu trabalho National Rhythms chama a atenção para o carater transgressor das danças. Mesmo
ritmos como a valsa começaram como algo transgressor
21
Sandroni, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Zahar, 2001.

1175
Os exaltados e a Cidadania nos jornais do Rio de Janeiro

Juliana da silva Severo1


RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo apresentar resultados do projeto de Iniciação Cientifica intitulado
“Os discursos sobre as ordens honoríficas nos jornais do período regencial: sociedade e política
(1831-1837) ”, recortando tema da cidadania no Brasil do século XIX, especialmente durante o
período regencial. A pesquisa tem como intuito problematizar as visões dos jornais que circularam
no Império do Brasil entre o final do Primeiro Reinado e a Regência no âmbito político, trazendo
discussões sobre a sociedade e a política brasileira. A comunicação se focará nos jornais
tradicionalmente considerados de cunho exaltado abordando a visão deste grupo na temática sobre
cidadania. De acordo com a historiografia voltada para o Brasil do século XIX, os periódicos
exaltados possuem um víeis popular devido ao seu posicionamento em relação aos debates do
período.
Em 1824, com a outorga da Constituição houve na esfera política inúmeros debates sobre o papel do
cidadão brasileiro, pois entre os artigos que a compunham estabeleceu-se quem deveria ser cidadão
e quais eram seus direitos e deveres. A sociedade debateu sobre essa questão e os jornais tiveram
grande impacto na circulação e propagação das ideias referentes à cidadania, posicionando-se e
relatando vários acontecimentos que envolviam este campo temático, como por exemplo, a
contestação ao reconhecimento dos indivíduos libertos participantes da guerra de Independência
como cidadão brasileiros, teoria exposta no A matraca dos farroupilhas. O Brasil oitocentista sofrera
o impacto do liberalismo, assim como diversas outras colônias e metrópoles europeias, entretanto as
ideias liberais não foram implantadas nas terras brasílicas como foram implantadas em outros locais,
mas essas ideias tiveram muita importância para se pensar a construção do Brasil no século XIX.
Sendo assim essa comunicação problematizará como foi a apropriação do liberalismo no Brasil,
através da análise do posicionamento dos jornais de caráter exaltado.
Palavras-chaves: exaltados; cidadania; iluminismo.

ABSTRACT
This paper aims to present the results of the project of Scientific Initiation entitled "The discourses
on honorary orders in newspapers of the regency period: society and politics (1831-1837)", cutting
off the issue of citizenship in nineteenth-century Brazil, especially during the period regencial. The
research aims to problematize the views of the newspapers that circulated in the Empire of Brazil
between the end of the First Reign and the Regency in the political sphere, bringing discussions about
Brazilian society and politics. The communication will focus on the newspapers traditionally
considered as exalted, addressing the vision of this group on the subject of citizenship. According to
nineteenth-century Brazil historiography, the exalted periodicals have a popular view because of their
positioning in relation to the debates of the period.
In 1824, with the granting of the Constitution, there were in the political sphere countless debates
about the role of the Brazilian citizen, since among the articles that composed it was established who
should be a citizen and what were their rights and duties. The society discussed this issue and the
newspapers had a great impact on the circulation and propagation of ideas concerning citizenship,
positioning themselves and reporting on several events that involved this thematic field, such as the
challenge to the recognition of freed individuals participating in the war of Independence as Brazilian
citizens, theory exposed in The rattle of farroupilhas. The nineteenth-century Brazil had suffered the
impact of liberalism, as well as several other European colonies and metropolis, but liberal ideas were

1 Graduanda de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista FAPERJ. Email: juh-
rj@hotmail.com

1176
not implanted in the Brazilian lands as they were deployed elsewhere, but these ideas were very
important to think about the construction of Brazil in the century XIX. Thus, this communication will
problematize the appropriation of liberalism in Brazil, through the analysis of the position of
newspapers of exalted character.

Keywords: exalted; citizenship; enlightenment

Este trabalho surge de um recorte temático desdobrado do projeto de Iniciação Científica “Os
discursos sobre as ordens honoríficas nos jornais do período regencial: sociedade e política (1831-
1837) ”. A pesquisa analisa diversos jornais que circularam no âmbito do Rio de Janeiro durante a
primeira metade do século XIX, época do Primeiro Reinado e Regência, observando os grupos
políticos conservadores, moderados e exaltados, para entender os discursos políticos e sociais sobre
a questão das ordens honoríficas, compreendendo através desses discursos as hierarquias sociais no
Brasil oitocentista. As ordens eram elementos nobilitantes que promulgavam uma hierarquização na
sociedade e os indivíduos pertencentes a elas eram considerados membros da nobreza. Todavia é
adequado salientar que o período analisado neste trabalho está situado em um momento que se
questiona os resquícios deixados pelo Antigo Regime, ao qual as ordens pertenciam. A fase abordada
é o momento no qual a nação se torna independente de Portugal e com isso gera inúmeros debates
calcados nas ideias liberais. Os liberais não contestam a existência das ordens, mas sim como eram
constituídas, ou seja, a crítica era quais os métodos e formas possíveis para pertencer a esse grupo
seleto e como permaneceriam as ordens honorificas em uma sociedade liberal que promulgava o
pensamento de uma sociedade sem as hierarquias presentes no Antigo Regime. Portanto a pesquisa
pretende, mediante a análise dos debates expressos na imprensa sobre as ordens honoríficas, avaliar
o que estava sendo discutido sobre essa temática pelas correntes liberais no que tangiam aos grupos
políticos. Diante disto, para compreensão do tema do projeto, é preciso entender como se pensava a
cidadania e quem eram os cidadãos pertencentes ao Brasil desse tempo. Por isso abordaremos dois
periódicos exaltados, O Nova Luz Brasileira e O Tribuno do Povo, com enfoque na questão da
cidadania buscando compreender o pensamento dos exaltados sobre os aspectos mencionados
anteriormente.
A imprensa tem um papel primordial para compreensão da disputa política do período
estudado. É uma fonte rica em dialogo apresentando uma diversidade de assuntos que circulavam na
sociedade. De acordo com Marco Morel “os anos de 1831-1833 são marcados por nítido crescimento
da imprensa periódica do Rio de Janeiro”, mesmo sendo um período de tentativa de controle da
manifestação de opiniões públicas, principalmente dos grupos que se contrapunham ao Governo
Imperial. Este “buscou deter a expansão dos periódicos mediante legislação controladora, mas

1177
também de repressão, como ameaças, prisões e até assassinatos de redatores”2. Jean J. Becker3 expõe
a importância do papel da imprensa, pois nela está expressa a opinião pública, e as precauções que se
deve ter ao analisar este tipo de fonte. Os propagadores dos periódicos expõem seus pontos de vistas
nessas reportagens, de modo que se pode dizer que não há neutralidade nos jornais. Além disso, os
redatores através de seus textos podem influenciar a opinião de seus leitores. Dessa forma. “a
imprensa era entendida como construtora do progresso e da liberdade, ou seja, do esclarecimento”4
[...] o surgimento da imprensa periódica no Brasil não se deu numa espécie
de vazio cultural, mas em meio a uma densa trama de relações e formas de
transmissão já existentes, na qual a imprensa se inseriu. Ou seja, a imprensa
periódica pretendia também marcar e ordenar uma cena pública que passava
por transformações no âmbito das relações de poder e de suas dimensões
culturais e que dizia respeito a amplos setores da hierarquia da sociedade, em
suas relações políticas e sociais.5
O Brasil da primeira metade do século XIX se encontrava em um cenário de grande disputa
de poder político com a independência, a abdicação do imperador D. Pedro I e a Regência. Nesse
momento a nova nação buscava consolidar sociedade, política, cultural e economicamente. Essa nova
nação apoiou-se no liberalismo para construir sua organização de Estado. Todavia é importante aludir
que a implementação dos princípios liberais não foi executada como o pensamento original dos
pensadores ilustrados. O que houve foi uma apropriação das ideias iluministas de acordo com a
realidade brasileira.6
Deste modo, ao analisarmos os jornais, é nítido perceber a influência do liberalismo que
transitava no século XIX na Europa e nas Américas. Uma onda impactante atingindo diferentes
grupos e implicando em inúmeras formas de apropriações. Durante o século XVIII houve o
movimento das Luzes trazendo o pensamento Iluminista e transformando a mentalidade da sociedade.
Esse movimento foi capaz de gerar reformas e revoluções políticas em várias nações. Um grande
exemplo analisado pela historiografia ao tratar da influência iluminista é a Revolução Francesa. Em
muitos números de diferentes impressos encontram-se menções às revoluções Francesa e Americana
vistas por alguns como “boas” ou “más” dependendo do posicionamento liberal de cada redator, ou
seja, os três grupos políticos compartilhavam os princípios liberais, mas cada um de uma forma
específica. De acordo com Gladys Ribeiro “as ideias liberais eram compreendidas de forma diferente
pelos homens que estavam no poder, pelos jornalistas e pela população que bradava nas ruas por
liberdade”7. Os exaltados, por exemplo, enalteciam as ações liberais dos franceses e americanos, além

2 Ver MOREL, 2005, p.209; 211


3 Ver REMOND, 1996
4 Ver MOREL, 2009, p.154
5 Idem p.163
6 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difusão Editora, 1988, p.16-17
7 Ver RIBEIRO, 2006, p.115

1178
de mencionar e valorizar os ideais dos intelectuais ilustrados como Locke; Montesquieu; Voltaire;
Rousseau. Isto é importante pois auxilia na compreensão do posicionamento dos exaltados mediante
as questões sociais e, principalmente, no entendimento de suas ideias sobre quem deveria ser cidadão
e como constituir a cidadania.
O contato com as ideias ilustradas muitas vezes ocorria através dos intelectuais letrados que
saíam do Brasil para estudar em Portugal, convivendo com o movimento das Luzes que circulava
fortemente na Europa. Muitos ao retornar traziam consigo, além da bagagem, a influência das Luzes
ajudando a propagar esses ideais aos outros homens pertencentes a terra brasílica. O pensamento
iluminista tem grande importância para a construção do Estado moderno/contemporâneo, pois
mediante seus conceitos possibilitou-se organizar “uma nova sociedade ancorada politicamente no
princípio da liberdade e da igualdade, como forma de assegurar aos homens a conquista da felicidade,
constituindo a essência do que se convencionou chamar de Iluminismo ou Ilustração”8.
Os liberais exaltados assim como os outros grupos políticos “bebiam” a fonte iluminista,
apropriando-se dos princípios liberais para pensar a consolidação e organização do Estado brasileiro
independente. O grupo exaltado é classificado como liberal radical, nomeado assim por se entender
que representava um radicalismo exacerbado semelhante ao jacobinismo francês. Morel explica o
sentido do nome exaltado: “a definição deste grupo não vinha da violência da linguagem ou eventual
agressividade dos métodos empregados, já que tais violências existiam de forma disseminada na vida
pública pelas diversas posições políticas”9. Seu principal engajamento político abrangia as ideais
liberais de liberdade e igualdade para o povo brasileiro.

Marcello Basile relata o ideal de nação exaltada que:


Bem diferente era a nação projetada pelos exaltados. Adeptos do liberalismo
radical – vertente que, conforme o pensamento jacobinista, buscava conjugar
princípios liberais clássicos com ideias democráticas e práticas autoritárias
(Bobbio, 1989, cap. VIII-X; Furet,1989,p.770-774) -, eles procuravam
demarcar suas diferenças frente aos rivais, sobretudo os moderados.10
Basile diz ainda, neste mesmo texto, que “os exaltados também se manifestavam a favor da
efetiva integração dos negros e mulatos livres e libertos à nação, combatendo o preconceito racial e
defendendo a igualdade plena de direitos”11. A autora Gladys Ribeiro comenta que “a identidade
exaltada era múltipla e dava-se ao redor de algumas questões. Entre elas, abordavam a questão dos

8 Ver LYRA, 1994, p.25


9 Ver MOREL, 2005, p.100
10 BASILE, 2006, p. 68
11 BASILE, 2006, p. 73

1179
livre de toda sorte, inclusive dos mulatos, dos homens de cor livres, entremeadas sempre pela
discussão sobre direitos e sobre a cidadania a que estes teriam direito”.12
Assim como Gladys Ribeiro, Marco Morel, no terceiro capítulo do livro As transformações
dos Espaços Públicos imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade Imperial (1820-1840),
aponta as múltiplas faces existentes no interior do grupo exaltado. Menciona três características
diferentes existentes dentro do mesmo grupo, existindo “os Exaltados ou Puritanos - apresentados
como os verdadeiros defensores da independência e liberdade, adeptos de um governo monárquico
representativo e unitário, mas sem condescendência para os crimes cometidos contra a nação”, outros
membros classificados como “Republicano, que deseja uma Monarquia eletiva temporária.” E por
fim os chamados “Federalista composto dos que pretendiam dar a cada província o pleno usufruto
dos seus direitos indispensáveis”13. De acordo com Morel, os exaltados não constituíram um único
partido revolucionário, “mas podemos dizer que eles estavam à esquerda na cena pública brasileira”14.
A pesquisa adota o mesmo ponto de Gladys Ribeiro e Marco Morel, pensando o grupo dos exaltados
como indivíduos com ideias divergentes, formando um grupo pluralizado, ao analisar os diferentes
jornais de cunho exaltado é notório perceber a diversidade existente dentro desse grupo.
O grupo dos liberais exaltados era composto por variados membros e de diversas camadas
sociais, “havia proprietários rurais (não em maioria), profissionais liberais, militares, padres,
funcionários públicos, médicos...”15, possuindo uma formação educacional semelhante aos outros
intelectuais liberais da época. Eles “agrupavam-se em associações mais ou menos restritas, como as
Sociedades Federais, a Grande Loja Brasileira e outras”16. Além disso, havia “divergência entre seus
integrantes e condenavam a escravidão em diferentes graus, variando a forma e o ritmo com que
propunham sua extinção, em geral de forma gradual”17. Rogavam para que as camadas populares
tivessem possibilidades de participação na vida pública, de modo que seus jornais eram
confeccionados para abranger esse grupo marginalizado politicamente, embora buscassem atingir
diferentes camadas sociais.
Nos jornais do período regencial encontram-se discursos relacionadas à cidadania,
principalmente a questão do direito do cidadão. O debate acerca da cidadania neste momento histórico
é muito complexo. Como pensar em direitos e deveres igualitários como prescreve a Constituição de

12 RIBEIRO,2006, p.103
13 Ver MOREL,2005, p.115
14 Idem p.117
15 MOREL, 2003, p.33
16 MOREL, 2003, p.33-34
17 MOREL, 2003, p.34

1180
182418, e em ideias liberais estando em uma nação escravocrata? A dubiedade dos princípios liberais
paralelo a escravidão não foi prioridade brasileira, também se desenrolaram em outras nações
americanas. Essas ambiguidades sociais foram muito discutidas pelos redatores exaltados em suas
publicações. A autora Hebe Mattos, esboça que havia um
[...] dilema nos novos países que se formavam sob a égide das novas noções
de cidadania e igualdade perante a lei, a parti de três premissas fundamentais:
1) a manutenção da escravidão com base no direito de propriedade; 2) a
proibição do tráfico africano; 3) a emancipação progressiva, por meio de leis
que libertavam os nascituros [Ventre livre] ou de experiências de transição
regulada, sempre com indenização aos proprietários.19
O jornal Nova Luz Brasileira elaborou um dicionário com a proposta de levar aos seus leitores
uma nova interpretação de conceitos que estavam no imaginário popular que, de acordo com o ponto
de vista do redator, deveriam ser repensados pela sociedade. O dicionário irá se perpetuar ao logo dos
números do jornal e, nele, temos conceitos como o de cidadão. Este era apresentado como “o homem,
(e também a mulher) membro de um corpo Soberano. Não há Cidadão se não entre povos inteiramente
livres. Este apelido é o mais sublime, que pode haver na Sociedade, pois só pertence aos indivíduos
racionais perfeitamente livres. 20 ” Nota-se claramente o posicionamento liberal exaltado sobre a
cidadania, justificando que só os indivíduos livres poderiam ser cidadãos, sendo que nessa sociedade
existiam homens escravizados. Portanto, como haver cidadania em uma sociedade que não é livre
completamente?
Como citado anteriormente no primeiro tópico abordado por Hebe Mattos, a escravidão se
ratifica por meio do direito de propriedade a qual é garantida ao cidadão por meio de lei. Esse direito
é um dos pilares fundamentais na construção da cidadania do povo brasileiro, por isso se tornara uma
das justificativas para manutenção de escravos, já que se entendia que, decretar a abolição, seria
infringindo o direito que o cidadão tinha quanto a sua propriedade.
O jornal O Tribuno do Povo irá dizer que “Direito de Propriedade é garantido como uma causa
inviolável” 21 , ou seja, não se pode contradizê-lo. O Nova Luz Brasileira definirá a palavra
“propriedade” para seus leitores visando relacioná-la ao atributo da cidadania, buscando gerar uma
nova concepção para a nomenclatura:
O que significa exatamente a palavra – Propriedade. – Em sentido vulgar e
errôneo, são tão somente os bens que o Cidadão adquire, e possui em terras,
casa, dinheiro, e outras coisas que o valem. Porém a primeira propriedade do

18 No Cap. II, Título XIII “Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros”, art.179, §13°. “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos
merecimentos de cada um”.
19 MATTOS, 2009, p.353
20 Nova Luz Brasileira, n° 16, 3 Fer. 1830.
21 N. 2. Quarta Feira 22 de Dezembro 1830

1181
homem é a vida, a liberdade, e a igualdade; conjuntamente é a indústria, e
forças de corpo e espirito, e sua mulher, e filhos .... (estas ideias são alheias)22
Um dos direitos, garantias e deveres da cidadania é a liberdade, talvez seja o principal
fundamento para ser cidadão, já que se o indivíduo não for livre não estará inserido nos parâmetros
primordiais que caracterizam quem deveria ser cidadão. O Tribuno do Povo reflete sobre a liberdade
questionando-se “Qual é o primeiro dever do Homem? Ser Livre porque este é a principal riqueza do
ente humano. Quem presa seus Direitos, quem ama a Pátria, quem é honrado e Livre, não necessita
de outros atributos a que chamamos ridículas chimeras.”23
Dentre os direitos e deveres para os cidadãos há uma divisão entre os Direitos Políticos e os
Direitos Civis, cada qual com suas especificidades. Relacionado ao Direito Civil encontram-se
garantias dos princípios de liberdade, igualdade, propriedade, segurança, vida, entre outros. Nos
jornais, em sua grande maioria, são encontradas manifestações em busca da igualdade civil garantida
por lei. Basicamente os Direitos civis são bem próximos do direito natural do homem. Analisaremos
a definição do Nova Luz Brasileira relacionado ao direito natural para compreendermos a base em
que se fundamenta o direito de propriedade, amparado pelo direito civil:
O que são – Direitos Naturais – São os efeitos da reunião das Leis, pelas quais
Deus criou o homem tal qual ele é; e por isso são as pretensões que o homem
deve ter, e tem sobre algumas coisas, que infalivelmente [ilegível] são suas,
porque lhe pertencem como homem – Definindo por outro modo os Direitos
Naturais – são faculdades moraes que procedem da construção física
particulares ao homem; porque só de ser construído pela natureza que o
distingue, é que lhe vem os diversos Direitos naturais, por exemplo-
conservar e defender e vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade, viver em
sociedade, o exercício da indústria do corpo e do espirito, o esforço para
adquirir instrução e luzes, a diligência para ser feliz, a escolha do governo e
Religião, o estabelecimento do contrato social, a fatura e reforma dos Leis, a
propagação da espécie, a resistência a opressão etc. O homem, possui estes
Direitos naturais, como filho da natureza.24
Para melhor entender as diferenças entre o direito civil e o direito político analisaremos duas
definições abordadas no dicionário de um dos jornais exaltados com o intuito de capturarmos a visão
deste grupo sobre essa temática recorrente na imprensa do oitocentista do Brasil. Segundo o Nova
Luz Brasileira:
O Que são – Direito Civis – São o resultado ou o efeito dos arranjos das Leis
e regulamentos particulares da sociedade depois de constituída, afim de que
o homem goze das vantagens possíveis como membro da mesma Sociedade:
estes Direitos Civis vem das Leis que estabelecem a boa ordem, paz sossego,
economia, e segurança em beneficio comum: por exemplo: são Direitos Civis,
andar o Cidadão seguro pelas ruas; não entrar ninguém em sua casa sem

22 N° 22Terça Feira 23 de Fevereiro de 1830


23 N.40. Quinta Feira 23 de Junho 1831
24 Terça Feira 6 de Julho de 1830. N. 57.

1182
consentimento de seu dono; casar e viver seguro com sua mulher e seus filhos;
gozar livremente de seus bens, e por morte reparti-los; fazer testamento; servir
de tutor etc. Os Direitos Civis também nascem dos Direitos Naturais, porque
estes são a base de toda a legislação.25
Como é possível observar os Direitos Civis são baseados e consolidados por lei, visando um
ordenamento social para os cidadãos de forma igualitária. Entretanto como José Murilo de Carvalho
irá relatar, como ter uma cidadania em uma nação escrava? O autor diz:
Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem dúvida, livres,
votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram os “homens bons” do
período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o próprio sentido da cidadania, a
noção de igualdade de todos perante a lei. Eram simples potentados que
absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as funções jurídicas.
Os direitos políticos eram bastantes seletivos na sociedade, pois suas garantias não eram para
todos, já que existiam especificidades para possuir esse direito. Basicamente o direito político
concede ao cidadão a garantia de participar da esfera política, ou seja, interagir com o ambiente
eleitoral podendo votar e/ou ser votado. Para compreender esse direito separaremos as peculiaridades
para ser portador do direito político no aspecto eleitoral. O cidadão para ser votante deveria ser
homem entre 25 anos ou acima dessa idade que obtivesse uma mínima renda de 100 mil reis. Os
libertos que estivessem enquadrados nessas particularidades podiam votar na eleição primaria.
Entretanto havia exceções para idade, caso o cidadão tivesse 21 anos e fosse chefe de família, oficial
militar, bacharel, clérigo, funcionário público, ou seja, possuidor de independência econômica,
poderia votar. A lei também permitia que analfabetos fossem votantes. As mulheres e os escravos não
dispunham desse direito, obviamente era impossível o escravo possuir esse direito pois ele não se
engloba nem com indivíduo, quem dirá como cidadão26. Já para ser candidato variam-se as regras de
acordo com o posto político que se pretendiam concorrer. Para se eleger senador o cidadão deveria
estar em pleno gozo de seus direitos políticos, ter idade entre 40 anos ou superior com renda de 800
mil réis e de preferência ter feito serviços á Pátria.27 Para o Nova Luz Brasileira o que se compete ao
direito político é:
O que são – Direitos Políticos – São certos privilégios que o Cidadão deve
ter, e tem infalivelmente em virtude das Leis fundamentais do Contrato social
do Povo na formação da Nação, são o efeito da vontade do povo á respeito do
modo porque quer viver em sociedade, e ser governado. São Direitos
Políticos, votar, e ser votado para Deputado, Senador, e quaisquer outros
cargos da sociedade tendo merecimentos e virtudes, reconhecer a necessidade
dos tributos, em que se gastam, e o tempo que duram etc. etc. Os Direitos
Políticas nascem dos Direitos naturais: O homem possui estes Direitos
Políticos, como Cidadão, e parte da Nação.28

25 Sexta Feira 9 de Julho de 1830. N. 58


26 CARVALHO, 2002 p.29-30
27 Cf. Cap. III, art. 45
28 Terça Feira 6 de Julho de 1830. N. 57.

1183
Portanto conclui-se este trabalho pensando na problematização que deve ser feita sobre o
cenário da cidadania do XIX, especialmente a primeira metade, momento que ideias liberais estão
fervilhando o ambiente político. É importante estudar esse período para compreender as demandas
sociais do presente, pois muitos resquícios do período de construção da cidadania perpetuaram-se ao
longo dos anos. A sociedade brasileira possui em pleno século XXI as mazelas deixadas pelo
prolongamento da escravidão que era assegurada pelo direito de propriedade no século XIX, como
observamos ao decorrer do artigo, as questões raciais são resíduos da herança deixada pela colônia e
prorrogada ao longo do tempo. O legado colonial teve grande impacto na sociedade que se tornara
independente, principalmente diante dos direitos civis, em face da liberdade e igualdade. A nova
nação herdou da antiga males que para consolidar o exercício da cidadania nos parâmetros liberais
era muito complexo. O exercício de cidadania em uma sociedade com todas as fragmentações
mencionadas proporcionou brecha para os liberais exaltados criticarem e buscarem soluções para
pratica escravocrata como evidenciamos nas análises feitas através das fontes impressas,
questionando os direitos civis vigentes na constituição.
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imprensa carioca do início dos anos 1830. In: NEVES, Lucia Maria Bastos P., MOREL, Marco,
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In: NEVES, Lucia Maria Bastos P., MOREL, Marco, FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. (Org.).
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CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difusão Editora,
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em 25 de setembro
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Acesso em 15 de junho de 2017.
Nova Luz Brasileira. Disponível em:<http://bndigital.bn.br/acervo-digital/nova-luz/700339>. Acesso
em 15 de junho de 2017.

1185
Charles Perrault e a consciência de um novo tempo
no alvorecer da modernidade

Juliana Timbó Martins1

Resumo: Conhecida, já no século XVII, como “querela dos Antigos e dos Modernos”, a série de
debates entre membros da Academia Francesa opôs, de um lado, aqueles que defendiam a
exemplaridade da Antiguidade na produção artística e literária do período e, de outro, os partidários
da legitimidade da criatividade dos artistas modernos. Enquanto porta-voz dos anticlassistas, o
poeta e escritor francês Charles Perrault buscou, acima de tudo, defender o valor de seu próprio
tempo, considerado pelo autor como um tempo novo, distinto dos anteriores e que carregava em si
suas próprias especificidades que o tornavam único diante das épocas passadas. Nesse sentido, a
partir das contribuições de teóricos alemães como Reinhart Koselleck, Hans Robert Jauss e Hans
Ulrich Gumbrecht para os estudos do tempo histórico e da modernidade, este ensaio visa discutir a
dimensão da consciência histórica esboçadas nas ideias deste intelectual que marcou não só a
história da França em fins do Seiscentos, mas o também o alvorecer de um novo tempo.

Palavras-chaves: Charles Perrault; tempo histórico; modernidade.

Abstract: Known in the seventeenth century as the “quarrel of the Ancients and the Moderns”, the
series of debates between members of the French Academy opposed, on the one hand, those who
defended the exemplarity of antiquity in the artistic and literary production of the period and, on the
other, the partisans of the legitimacy of the creativity of modern artists. As a spokesman for the
anticlassists, the poet and writer Charles Perrault sought, above all, to defend the value of his own
time, considered by the author as a new time, distinct from the previous ones and which carried
within itself its own specificities that made it unique in the face of previous ages. In this sense, from
the contributions of German theorists such as Reinhart Koselleck, Hans Robert Jauss and Hans
Ulrich Gumbrecht for the study of historical time and modernity, this essay aims to discuss the
dimension of historical consciousness outlined in the ideas of this intellectual that marked not only
the history of France in the late sixteenth century, but also the dawn of a new time.

Keywords: Charles Perrault; historical time; modernity.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação
da professora Dra. Laura Moutinho Nery, com bolsa de financiamento concedida pela Capes. E-mail:
jtbmartins@gmail.com.

1186
Introdução

Em março de 1661 chegava ao fim a regência do cardeal Mazarino, que liderou a imponente
França de 1642 até sua morte. Padrinho de Luís XIV (1638-1715), filho do outrora rei Luís XIII e
da então rainha Ana da Áustria, o religioso ao morrer deixava ao príncipe o trono francês, o qual
havia guardado, enquanto primeiro-ministro e a pedidos da rainha, até que o jovem fosse capaz de
governar. Aos vinte três anos, então, Luís XIV assumia os destinos da França. Atendendo aos
conselhos de seu falecido padrinho, o novo monarca, já no primeiro ano de seu governo, atribui à
Jean-Baptiste Colbert o cargo de Ministro do Estado e seu braço direito. Convivendo com o
fantasma e o trauma da fronda que havia presenciado quando tinha apenas dez anos, Luís XIV
buscou já no início de seu reinado dar continuidade e força à centralização do poder iniciada pelo
cardeal de Richelieu, primeiro-ministro do governo de seu pai. Começava assim o processo de
glorificação que logo transformaria Luís XIV no mítico Rei Sol, digno de verdadeiros rituais de
adoração e dependência estudados com maestria por Norbert Elias em A Sociedade de Corte2.
Em meio a este cenário de construção da imagem do soberano enquanto entidade detentora
do dever e do direito de reger os destinos da França e seu povo, assiste-se ao avanço da propaganda
real também e principalmente nas artes e letras do período. Nessa via, emergem pinturas, peças
teatrais, obras literárias, festividades, ritos e regras de todos gêneros em prol da criação do mito
Luís XIV, o Grande. Aqui, a própria Academia Francesa, criada em 1635 por Richelieu, marcava a
aliança entre a monarquia e a literatura, que se colocava como importante meio de louvor ao
monarca e seu reinado. Assiste-se também, em meio à constituição de um novo público letrado que
se apresentava cada vez mais numeroso e diversificado a partir da segunda metade do século, o
alvorecer de questionamentos aos cânones que, desde a Renascença, regiam e regulamentavam o
patrimônio artístico e literário francês através de regras que visavam impor uma adequação às
formas, assuntos, gêneros e destinatários das obras artísticas e literárias produzidas sob tal contexto.
De fato, segundo Erich Auerbach3, a retomada dos clássicos e a constante tradução de
grandes obras da Antiguidade durante o Renascimento impulsionaram a popularização do legado
artístico, literário e filosófico greco-romano nos séculos XVI e XVII, possibilitando,
consequentemente, também o requintamento do gosto do público em formação. Nessa lógica, se por
um lado, na primeira metade do século XVII, a arte francesa continuou a ser medida e produzida a
partir dos exemplos das grandes épocas antigas, cujas obras foram consideradas conforme a própria
natureza — portanto perfeitas —, acarretando, dessa forma, no seguimento dos modelos clássicos

2
Cf. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociedade da realeza e da aristocracia de corte. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.
3
AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. 2 a ed. São Paulo: Cultrix, 1972.

1187
pelos artistas modernos que buscavam cada vez mais deixar de lado as influências dos
renascentistas italianos para “adaptar a imitação a uma forma nacional e francesa”; por outro, já na
segunda metade do XVII, a França havia estabelecido suas próprias regras de delimitação, de
classificação, de escolha e de gosto a partir de sua particular apropriação dos clássicos antigos4.
É neste cenário de consolidação do gosto francês fundamentado na exemplaridade do legado
clássico, mas também na necessidade de centralização de toda atividade política e intelectual do
país em torno do novo rei, que Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711) ascende, nas palavras de
Auerbach, como “o ditador do gosto na Europa”. Ora, enquanto poeta e crítico da literatura
francesa, Boileau possuía o gosto apurado, seguro e culto, adquirido do profundo estudo dos
clássicos e, principalmente, da poesia antiga, necessário para a criação dos códigos regimentares das
artes e da literatura de seu tempo e lugar. Assim, estabelecendo como preceitos do “bom gosto” a
diferença de gêneros na poesia, à maneira dos teóricos antigos; a clara separação de tudo quanto
fosse trágico do realismo da vida cotidiana; as regras das unidades de tempo, lugar e ação no teatro;
a verossimilhança, o decoro e o bom-senso nas artes francesas, Nicolas Boileau definiu não só para
a França, mas para toda Europa, um gosto no qual a imitação da natureza significava, ao mesmo
tempo, seguir a razão, as pessoas de bem e os antigos5.
Não à toa, foi justamente em Boileau que Charles Perrault (1628-1703), poeta e escritor
francês, encontrou seu rival na intitulada “querela dos Antigos e dos Modernos” do século XVII.
Emergida da leitura solene de seu poema Le siècle de Louis le Grand em plena Academia Francesa,
em 1687, tal querela se constituiu como uma importante série de debate entre membros da
Academia e da alta sociedade francesa que opôs, de um lado, aqueles que, como Boileau,
defendiam a exemplaridade da Antiguidade na produção artística e literária do período e, de outro,
aqueles que, tendo Perrault como porta-voz, argumentavam pela legitimidade do gosto e da
criatividade moderna nas artes de seu tempo.

Charles Perrault e a “querela dos Antigos e dos Modernos”

Quando, em 1687, Luís XIV é finalmente dado como curado de uma fístula anal – mal
comum entre os cavaleiros da época – após se submeter a uma inédita e delicada cirurgia, toda a
Academia e alta sociedade francesa é convidada para uma cerimônia solene destinada às
homenagens ao monarca, que havia se afastado de suas funções devido às dores causadas pela

4
Ibidem, p. 190
5
Ibidem, p. 193

1188
doença até então sem cura. Entre os admiradores do rei e sua mais recente experiência que havia
marcado a história da medicina e lhe devolvido a saúde, estava Charles Perrault, escritor e poeta
pertencente a alta burguesia francesa que ascendeu socialmente dentro da corte através da compra
de cargos, mais especificamente na área das finanças, onde atuou como tributarista ao lado de
outros membros de sua família. Sua boa gestão como funcionário público, seu reconhecimento
também como intelectual e até mesmo sua amizade com Jean-Baptiste Colbert foram essenciais
para que Perrault exercesse funções públicas também destinadas às artes e cultura em geral;
primeiro como secretário da Pequena Academia, cargo que ocupou por quase vinte anos, e
posteriormente como diretor da grande Academia Francesa, em 1681, onde permaneceu apenas por
um ano devido a desentendimentos com o ministro.
Contudo, ao contrário dos demais convidados que se dedicaram a simples celebração da
recuperação do rei, Charles Perrault foi além. No dia 27 de janeiro de 1687, o escritor levava à
Academia Francesa sua mais recente obra, um extenso poema intitulado Le siècle de Louis le Grand
que se tornou o estopim daquela que, já no século XVII, ficou conhecida como querela dos Antigos
e dos Modernos. Ora, ao compor sua homenagem ao rei, Perrault durante toda narrativa do poema
ousou comparar a produção artística, filosófica e científica da França de seu século, então sob a
tutela de Luís XIV, com o legado deixado pelos homens da Antiguidade, que ainda regia fortemente
as regras de produção e avaliação artística de seu tempo. Assim, já na primeira estrofe de seu
poema, o autor afirmava que

A bela Antiguidade sempre foi venerável,


Mas nunca cri que ela fosse adorável.
Vejo os Antigos sem dobrar os joelhos,
Eles são grandes, é verdade, mas são como nós;
E a eles podemos comparar, sem temer ser injusto,
O Século de Luís ao belo Século de Augusto.6.

Ciente das possíveis reverberações negativas que sua obra teria, Perrault não se poupou em
ser direto já nos primeiros versos de seu poema. Sim, a Antiguidade é admirável; porém, nós do
século do grande Luís também somos, defendia o partidário dos Modernos diante daqueles que,
sabia ele, não poupariam críticas à sua afirmação. Para o autor estava claro; os antigos eram
venerados de joelhos pelos seus submissos contemporâneos que sacrificavam o real valor das artes e
dos artistas de seu tempo.

6
Tradução livre. Original em francês: “La belle Antiquité fut toujours venerables, / Mais je ne crus jamais qu’elle fust
adorable. / Je voy les Anciens, sans plier le genoux, / Ils sont grand, il est vray, mais hommes comme nous / Et l’on peut
comparer sans craindre d’estre injuste, / Le Siecle de Louis au beau Siecle d’Auguste”. PERRAULT, Charles. “Le
siècle de Louis le Grand”. In Parallèle des Anciens et des Moderns en ce qui regard les Arts et les Sciencies, tome
premier. Paris: Chez Jean Baptiste Coignard, Imprimeus & amp. Libraire ordinaire du Roy, 1688, p.1.

1189
Desse modo, continuou Perrault nas estrofes seguintes sustentando suas primeiras
afirmações e desmistificando a grandeza dos antigos por meio do enaltecimento da qualidade
artística de sua época e seu lugar a partir de comparações entre antigos e modernos em inúmeros
campos das belas-artes e das ciências. Ao fim de sua longa explanação comparativa, claramente
parcial e apaixonada, Perrault concluía seu poema finalmente exaltando a figura de Luís XIV,
dando a entender que se os classicistas, depois de todos os argumentos expostos, ainda não fossem
capazes de admitir a grandeza de seu presente, uma coisa seria inegável: a grandeza de seu
monarca. Nessa lógica, Perrault afirmava que os séculos eram de fato diferentes entre si, mas se o
valor de cada época fosse pautado na excelência de cada monarca nenhum outro teria valor
semelhante ao século de Luís, o Grande.
Ousado e direto desde a primeira estrofe, Charles Perrault não deixou espaço para dúvidas
em seu poema protesto. Seus argumentos eram claros; seu tempo nada devia à Era Clássica. Ao
contrário, inúmeros eram os exemplos possíveis que comprovariam, sob seu ponto de vista, que as
artes e ciências modernas há muito já haviam superado as dos superestimados antigos. Estes apenas
encontravam valor nas atitudes antiquárias daqueles que se negavam a perceber a nobreza artística
do presente em prol de um preciosismo e paixão irracionais aos clássicos greco-romanos.
Uma vez lido diante de todos na Academia Francesa, o poema de Perrault causou grande
desconforto naqueles que ainda tinham a Antiguidade como ideal de perfeição artístico e filosófico.
Ao questionar o cânone cultural e intelectual sob o qual se assentavam as artes da França no século
XVII, Perrault deu início, então, ao debate que dividiu a República das Letras entre defensores da
exemplaridade do legado clássico na produção artística e intelectual da época e partidários da
legitimidade e da inovação das artes, da ciência e da filosofia de seu próprio tempo. Uma querela
que marcou as últimas décadas dos Seiscentos não só na França, mas na também na Europa,
chegando a reverberar e influenciar filósofos e escritores também no século seguinte, onde se
alicerçaram as ideais iluministas que deram bases para a Revolução de 1789 e a consolidação da
modernidade. Não à toa, historiadoras como Joan DeJean7 e Géssica Guimarães8 apontam,
respectivamente, a influência de Charles Perrault nas ideias de filósofos como Diderot e
D’Alambert, que apontaram o autor como o precursor do Iluminismo francês em sua Encyclopédie,
e a influência da querela também em filósofos alemães do século XVIII, como Friedrich Schiller e
sua teoria da modernidade.

7 Cf. DEJEAN, Joan. Antigos contra modernos: as guerras culturais e a construção de um fin-de-siécle. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
8
Cf. GAIO, Géssica Góes Guimarães. “Por uma teoria da modernidade em Poesia Ingênua e Sentimental”. In História
da Historiografia. Ouro preto, n. 23, p. 97-113, abril de 2017. Disponível em
<https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1100/673>.

1190
De fato, tais iluministas receberam como herança do século XVII uma vasta literatura que,
produzida sobre o contexto da querela, serviu tanto a Antigos quanto a Modernos como meio de
expressão e defesa de seus argumentos acerca das discussões então vigentes. Nesse sentido, a
própria obra de Charles Perrault não se limitou apenas ao polêmico poema. Ao contrário, ao longo
do embate que perdurou por todo o fim de século XVII, o escritor traduziu suas certezas e angústias
quanto a desvalorização de seu tempo em seus quatro tomos de Parallèle des Anciens et des
Modernes, publicados entre os anos 1688 e 1697, destinados a discutir diferentes campos do
conhecimento e da cultura.
Deixando de lado os versos de um poema e aderindo a prosa de um paralelo, gênero de
reflexão filosófica que através de múltiplos personagens permite ao autor apresentar a seus leitores
as distintas vozes que compõem um debate sobre um tema em comum, Perrault buscou na
Antiguidade, outrora criticada por ele mesmo, um gênero literário que melhor lhe coubesse para a
exposição de suas ideias agora mais amadurecidas. Um ano após a leitura de seu poema, então,
Perrault apresentava ao público as diferentes vozes que alimentavam a querela francesa através do
primeiro volume de seu Parallèle, este dedicado às artes e as ciências. Dividido em dois diálogos
ambientados em um passeio por Versalhes, o primeiro paralelo de Charles Perrault era composto
pelo debate entre três personagens, a saber, um partidário dos valores classistas, um defensor da
legitimidade dos modernos e um representante da neutralidade, respectivamente, o Presidente, o
Abade e o Cavaleiro, que demonstravam aos leitores da obra o ponto de vista do próprio autor sobre
os componentes intelectuais da querela.
Deixando claro as intenções argumentativas de seu Parallèle já nas primeiras páginas,
Perrault expôs de forma objetiva os perfis dos personagens que representavam os defensores e
detratores da tradição clássica na França de fins do século XVII, isto é, o Antigo Presidente e o
Moderno Abade, deixando um tanto quanto de lado a apresentação daquele que muitas vezes apenas
exercia na obra o papel de mediador do debate, o Cavaleiro. Assim, Perrault descreve o partidário
dos valores antigos, encarnado na personagem Presidente, como sendo um homem que, através de
sua sede pelos clássicos, parece viver mais no passado que no presente; vivendo de costas para seu
próprio tempo. Para ele apenas a Antiguidade, o passado, é digno de atenção. Nem mesmo as
traduções dos grandes autores antigos são válidas, apenas os originais, uma vez que é a
originalidade o que buscam os classicistas quando se voltam para o passado, onde se encontraria a
gênese de toda ciência e arte humana. Aos modernos restaria apenas a imitação, sem qualquer
perspectiva de grandes e novas criações, que nem ao menos chegariam aos pés dos clássicos
originais. Ao viver em todos os séculos, portanto, o Presidente, ou melhor, os Antigos, acabariam
por viver em nenhum, nem mesmo no seu; se limitando a reproduzir as ideias daqueles que

1191
veneram, sem desenvolver a capacidade de um pensamento autônomo9.
Por sua vez, o partidário dos Modernos, encarnado no Abade, segundo Perrault, seria aquele
que também é adepto da “ciência dos livros”, mas que aprendeu a questionar tudo que lhe chega.
Aprendeu a pensar e agir com suas próprias ideias, a partir de seu próprio julgamento, ainda que
tenha se formulado a partir da leitura dos clássicos. Dessa forma, o homem Moderno defendido por
Perrault para além de ler as obras dos antigos, delas ele se apropria e delas faz emergir novas
reflexões, frutos de seu próprio e constante exercício do pensar. Ele compreende, mas questiona.
Ele se apropria, mas renova. Ele não se deixa levar pela paixão cega aos clássicos, seu julgamento é
imparcial, não mede tempo, lugar ou pessoa. O homem Moderno, para Perrault, é o homem racional
por si só, pois ele exerce sua razão pensando através de seu próprio tempo, e não mais a partir dos
moldes do passado10.
Partindo de uma aparente influência cartesiana, Perrault demonstrava que enquanto os
Antigos eram aqueles que fisicamente se encontravam no presente, mas tinham seus olhos e ideias
voltadas para o passado, os Modernos não só viviam em seu próprio tempo como dele tinham
consciência e a partir dele pensavam de forma autônoma, exercendo plenamente a razão. Logo, por
ter consciência de seu próprio tempo, por possuir um juízo crítico sobre o passado, mas
principalmente sobre a realidade do presente, e por exercer seu julgamento de forma racional, o
homem Moderno seria o único a possuir verdadeira capacidade de empreender um olhar justo tanto
sobre a Antiguidade quanto sobre o presente, pois somente ele teria a completa ciência da grandeza
individual de cada época.
Desse modo, Perrault demonstrava já no primeiro tomo de seu Parallèle des Anciens et des
Modernes que o que estava em discussão não era mais o valor do legado da Antiguidade, como
outrora sugeriu em seu poema. Agora, a partir de ideias mais amadurecidas, o autor propunha uma
nova forma de olhar e se apropriar do passado. Nessa lógica, Manoel Salgado Guimarães 11 afirma
que a querela francesa foi, na verdade, uma disputa político intelectual pelo uso do passado, o que
ficaria evidente nas atuações de Luís XIV e seu ministro Jean-Baptiste Colbert marcadas por uma
forte política cultural que buscou utilizar a História para a glorificação da imagem do rei, colocando
em questão não somente as conquistas de antigos e modernos, mas também uma concepção de
passado e uma perspectiva de presente e futuro a serem construídas.
Foi ainda neste contexto que surgiram novos espaços institucionais que, a princípio, não

9
PERRAULT, Charles. Parallèle des Anciens et des Moderns en ce qui regard les Arts et les Sciencies, tome premier.
Paris: Chez Jean Baptiste Coignard, Imprimeus & amp. Libraire ordinaire du Roy, 1688. p. 02.
10
Ibidem, p. 03.
11
GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Reinventando a tradição: sobre Antiquariado e Escrita da História”. In: Humanas:
Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Federal do Rio Grande do Sul. vol.16, nº 1, jan/jun
1993. Porto Alegre: 1993.

1192
tinham como papel uma reflexão acerca da História, mas acabaram desenvolvendo esta função a
partir das novas exigências formuladas ao passado e da necessidade de seu registro e cultivo, como
foi o caso da própria Academia Francesa, palco da disputa em questão. Assim, para ao autor, o
triunfo dos Modernos no contexto da querela significaria a “vitória e afirmação progressiva de uma
concepção de História, que busca apagar suas relações com a tradição antiquária como forma de
construir sua nova identidade e cuja importância para um certo modelo de História ainda vigente é
evidente”12.
Nessa via, enquanto estopim e catalizador da querela, Charles Perrault promovia na França
de fins dos século XVII uma nova forma de se olhar para o passado; uma forma de compreendê-lo
não mais como superior ao presente, ou seu inverso, mas sim uma forma moderna de apreender a
particularidade de cada era, isto é, uma forma de compreender aquilo que chamamos de tempo
histórico. Este que, de acordo com Reinhart Koselleck13, não se mensura pelo tempo natural,
biológico ou astronômico, mas se expressa e determina pelas experiências de homens concretos
dentro das especificidades políticas, sociais e culturais de seu próprio tempo e lugar, bem como pela
articulação entre as experiências legadas pelo passado e as expectativas, esperanças e prognósticos
de futuro particulares de cada época.

Tempo e modernidade: uma análise da consciência histórica de Charles Perrault à luz das
teorias alemães

Se no poema Le siècle de Louis le Grand Charles Perrault dava início ao debate que pôs fim
ao ideal de perfeição pautado exclusivamente na Antiguidade, no primeiro volume de seu Parallèle
des Anciens et des Modernes o autor demonstra uma transformação na própria percepção do tempo
histórico. De fato, segundo Hans Ulrich Gumbrecht14, os argumentos de Perrault em seu conjunto
de paralelos acabou por modificar a visão tanto de Antigos quanto de próprios Modernos acerca não
só do debate em questão, mas também e principalmente acerca da consciência temporal progressista
do período. Ora, ao tentar provar através de inúmeras comparações que, na disputa entre as artes da
Antiguidade e de seu tempo, o presente já havia superado o passado no quesito perfeição técnica,
Perrault levou seus opositores a aceitarem que, de fato, as artes só poderiam ser julgadas a partir do
gosto próprio de cada tempo. Por sua vez, coube aos Modernos admitirem que a distância
qualitativa entre as artes contemporâneas e antigas, bem como o progresso nas ciências naturais,
12
Ibidem, p. 120
13
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p. 14-15.
14
GUMBRECHT, Hans Ulrich. “A History of the Concept ‘Modern’”. In Making Sense in Life and Literature. Theory
and history of literature, v. 79. University of Minnesota, 1992, p. 85.

1193
também não permitiam uma comparação justa quando colocadas lado a lado em uma perspectiva de
progressão temporal.
Desse modo, ainda de acordo com Gumbrecht, ao fim e ao cabo, a querela promoveu
importantes mudanças na episteme de fins do Seiscentos, uma vez que, ao cederem aos argumentos
de ambas as partes, Antigos e Modernos acabaram por concluir que, se cada época deve ser julgada
segundo seus próprios parâmetros, por sua própria medida, não haveria melhor ou pior era, idade
das trevas ou idade ideal. Igualmente, se cada tempo é único, incomparável e irreversível entre os
demais, estes também não poderiam ser imitados ou retornados15. Ao tentar comprovar a
superioridade da arte de seu tempo a partir de seus paralelos entre o presente e a Era Clássica,
Perrault acabou também por configurar uma nova visão na qual se compreendia que os distintos
campos da experiência humana obedecem diferentes leis de periodicidade.
Decerto, tendo a querela dos Antigos e dos Modernos emergido da crítica de Charles
Perrault à adoração exacerbada aos antigos e à crença de que através da imitação dos clássicos
greco-romanos seria possível alcançar a perfeição que outrora pertenceu a Antiguidade, tal embate
parece ter se originado justamente da consciência do autor francês do excesso de
contemporaneidade do não contemporâneo que, em fins do século XVII, ainda regia as práticas
culturais na França a partir dos padrões estéticos do passado, definindo aquilo que era, ou não, de
bom gosto nas artes do período. Por contemporaneidade do não contemporâneo compreendo aquilo
que Koselleck16 definiu como sendo a coexistência de elementos de diferentes tempos históricos em
um único presente, seja em conformidade, tensão ou ruptura. Utilizando metáforas geológicas, o
historiador alemão concebe a ideia de tempos históricos enquanto estratos, onde as experiências
humanas podem ser formuladas através de diferentes estratos de tempo que não se dividem na
simples oposição entre sincronia ou diacronia, linearidade ou ciclicidade. Partindo da metáfora dos
estratos do tempo e de uma reelaboração da longa duração de Fernand Braudel, Koselleck nos
permite analisar as diferentes camadas temporais que circundam e possibilitam as experiências
humanas a partir de níveis, tempos e velocidades distintas que atuam simultaneamente de forma
sincrônica e diacrônica17.
Nesse sentido, as contribuições teóricas de Koselleck nos permitem uma análise menos
superficial da coexistência de diferentes camadas de temporalidades que possibilitaram a eclosão da
querela entre Antigos e Modernos em fins do século XVII, dada a partir da consciência de Charles
Perrault dos entraves ao progresso das artes de seu tempo causado pelas leis de adequação e

15
Idem.
16
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio,
2014.
17
Ibidem, p. 09-10.

1194
imitação aos clássicos greco-romanos que limitavam, e até mesmo anulavam, a capacidade de
criação e inovação dos artistas do período. Ademais, sob os argumentos de Perrault, se cada época
tem seus próprios artistas e suas próprias técnicas, portanto, cada época deveria ter autonomia para
definir seu gosto estético com base nas especificidades do presente e a partir dele elaborar sua
criação artística, livre – até onde fosse possível – das imposições de influências ultrapassadas.
O pensamento do escritor francês, no entanto, nos leva a questionar até que ponto tal
proposta de ruptura com os antigos, já no século XVII, emergida da consciência de um tempo
histórico singular e distinto dos anteriores e que, portanto, deveria ter autonomia para escrever sua
própria história no campo das artes, não representava também a consciência de um tempo histórico
dado como novo, ou pelo menos em vias de inaugurar uma nova era, isto é, um tempo de transição.
De fato, ao pensar o nascimento do mundo contemporâneo a partir da emergência do
Iluminismo no século XVIII em sua tese de doutoramento, Koselleck chega a afirmar brevemente
que “a crítica da arte e a crítica da literatura foram as primeiras a articular, na república das letras, a
oposição entre antigos e modernos e a elaborar uma concepção de tempo que separava futuro e
passado”18. A colocação do historiador alemão relaciona-se com sua própria teoria do nascimento
da modernidade. Ora, para Koselleck, esta teria sua gênese no distanciamento progressivo entre
aquilo que denominou como espaço de experiência e horizonte de expectativa, categorias meta-
históricas forjadas pelo historiador para compreender, respectivamente, de um lado, as experiências
provenientes de um passado encerrado e, de outro, as esperanças de um futuro que se faz presente
em expectativas e prognósticos.
Contudo, se num primeiro momento a teoria da modernidade de Koselleck, através de sua
afirmação supracitada, parece encontrar no contexto da querela seu ponto de ignição, o próprio
historiador só concebe o nascimento da modernidade no século seguinte ao debate de intelectuais da
Academia Francesa, isto é, a partir de 1750, nos anos que antecedem a revolução. Isto porque, de
acordo com Koselleck, a ruptura entre espaço de experiência e horizonte de expectativa,
considerada como originária da modernidade enquanto um tempo novo, só foi possível quando as
projeções para o futuro deixaram de encontrar suas referências nas experiências passadas e, cada
vez mais, buscou-se construir, no presente e de forma acelerada, um futuro completamente distinto
do passado.
Logo, ainda que, segundo Koselleck, a modernidade enquanto um novo tempo se qualifique
como tal a partir da consciência de atualidade histórica; da distinção qualitativa em relação ao
passado, onde experiências são vividas de forma nova, ou diferente de outrora; e da oposição ao

18
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1999, p.14.

1195
tempo que lhe antecede, – ideias presentes na querela –, esta só pode ser concebida como, de fato,
“um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais
das experiências feitas até então”19, algo realmente embrionário no cenário ainda fortemente
absolutista da França de fins do século XVII.
Nesse sentido, por ora, nos soa impreciso qualquer tentativa de adequação da teoria da
modernidade de Koselleck a um período de grandes, porém iniciais, mudanças na mentalidade
histórica e temporal como a querela dos Antigos e dos Modernos. Todavia, parece seguro dizer que
este foi, de fato, um período que inaugurou uma nova forma de conceber o tempo a partir de sua
singularidade e impossibilidade de retorno, mesmo através da reprodução; portanto, a partir de uma
ruptura na lógica temporal até então vigente. Assim, ainda que não possamos argumentar a
consciência do nascimento de um tempo realmente novo em fins do século XVII francês a partir da
teoria de Koselleck, podemos, ao menos, defender a consciência de um período de transição para
algo que não seria mais comparável ao passado, mas que nasceria do presente que logo se
transformaria também em passado.
Ora, segundo Gumbrecht, a premissa recorrente tanto entre Antigos quanto entre Modernos
de que no futuro os modernos, enquanto homens do século de Luís XIV, seriam os próximos
antigos, já evidenciava a noção de transitoriedade entre períodos históricos20. A afirmação do
teórico literário alemão vai de encontro a teoria apresentada por Hans Robert Jauss, para quem,
desde a Antiguidade, as querelas em torno do conceito moderno, enquanto designador de certa
atualidade histórica, teriam se dado principalmente em períodos de transição, onde a experiência de
tempo se refletia na tentativa de “eliminação do passado” e de constituição da especificidade de
cada época21.
Nessa lógica, seguindo os argumentos de Jauss, a querela do século XVII, principalmente
através da transformação na percepção de tempo histórico, não só proporcionou uma nova
perspectiva sobre a Antiguidade – agora compreendida como um período histórico distinto do então
presente e que não poderia ser retornado nem mesmo por meio da imitação aos clássicos –, como
também possibilitou, no contexto do debate e mais ainda após seu término, a “consciência do início
de uma época importante, diferente de todos os tempos anteriores, com a luz da razão
esclarecida”22.

19
KOSELLECK, Reinhart., op. cit, 2006, p. 274-314.
20
GUMBRECHT, Hans Ulrich., op. cit., 1992, p. 85.
21
JAUSS, Hans Robert. “Tradição literária e consciência atual da modernidade”. In OLINTO, Heidrun Krieger.
Histórias de Literatura – As novas teorias alemãs. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 51.
22
Ibidem, p. 63.

1196
Considerações finais

Ainda que os autores aqui em diálogo tenham se debruçado e elaborado estudos sobre a
querela do Antigos e dos Modernos, esta ainda parece carecer de análises mais aprofundadas no que
se refere a uma teoria do tempo e da própria modernidade que partam dela. Assim, o que se buscou
aqui foi apenas uma breve discussão acerca dos limites e possibilidades de se pensar este episódio
da história moderna a partir das contribuições teóricas de Reinhart Koselleck em diálogo com seus
conterrâneos e contemporâneos Hans Ulrich Gumbrecht e Hans Robert Jauss.
Em síntese, podemos concluir que, conforme posto acima, em sua teoria da modernidade
muito bem elaborada e estruturada nos estudos das transformações que, entre 1750 e 1850, fizeram
o mundo tal qual era conhecido desmoronar e um novo tempo se erguer, Koselleck não deixa muito
espaço para uma flexibilização de sua teoria que nos leve a compreender a querela do século XVII
como princípio da modernidade. Entretanto, não seria errado concluirmos que, iniciado pela
consciência de seus agentes da simultaneidade de diferentes estratos do tempo num mesmo
presente, foi justamente neste contexto de disputas e diferenciações entre antigos e modernos que
teve início o processo de distanciamento entre espaço de experiência e horizonte de expectativa que
no século seguinte, após uma ruptura definitiva, originou a modernidade, segundo a teoria de
Koselleck. Ademais, a partir do estudo da querela, das obras de Charles Perrault e de sua
consciência histórica podemos evidenciar, já em fins do século XVII, a gênese da crise do
classicismo que em efeito cascata, para utilizarmos a metáfora proposta por Gumbrecht23, deu bases
para a revolução na mentalidade francesa onde, no Setecentos, se alicerçaram as ideias iluministas
que fizeram ruir o mundo como era e, não mais a partir dele, nascer um novo mundo em um novo
tempo, distinto e melhor no futuro.

Referências Bibliográficas:

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DEJEAN, Joan. Antigos contra modernos: as guerras culturais e a construção de um fin-de-siécle.
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GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Reinventando a tradição: sobre Antiquariado e Escrita da


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23
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas da Modernidade. In Modernização dos Sentidos. São Paulo, Ed. 34, 1998.

1197
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___________. Parallèle des Anciens et des Moderns en ce qui regard les Arts et les Sciencies, tome
premier. Paris: Chez Jean Baptiste Coignard, Imprimeus & amp.
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RODRIGUES, Antônio Edmilson M. “A querela entre antigos e modernos: genealogia da


modernidade”. In: FALCON, Francisco José C. e RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Tempos
Modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

1198
A VISÃO DE DEMOCRACIA DA ACRJ

Júlio Cézar Oliveira de Souza 1

Resumo: Com base no instrumental teórico de Marx, nossa proposta é realizar, de forma sucinta,
um debate sobre o conceito de capitalismo democrático e a inexistência de conflito entre classes,
ambos difundidos por frações da classe dominante. Como estudo de caso, nossa discussão permeará
a narrativa utilizada na Revista do Empresário, veículo de comunicação da Associação Comercial
do Rio de Janeiro. O recorte cronológico estabelecido é o final da década de 1980.

Palavras-chave: ACRJ; Democracia; Capitalismo

Abstract: Based on Marx's theoretical tools, our proposal is to succinctly carry out a debate on the
concept of democratic capitalism and the non-existence of conflict between classes, both diffused
by fractions of the ruling class. As a case study, our discussion will permeate the narrative used in
Magazine of businessman, communication vehicle of the Commercial Association of Rio de
Janeiro. The established chronological cut is the late 1980s.

Keywords: ACRJ; Democracy; Capitalism

O VELHO TRAVESTIDO DE NOVO

Em editorial publicado em fevereiro de 1990, intitulado de “A nova hora”, a Revista do


Empresário discorre sobre expectativas em relação ao novo mandatário da República e, como
contraponto, fazia críticas à gestão política anterior, tanto do executivo quanto do parlamento.
A linha argumentativa lançou mão de expressões como falta de confiança nas instituições
democráticas, administrações passivas e corruptas. A sobreposição do interesse pessoal em
detrimento do coletivo, caracterizando o individualismo, servia de objeto de crítica à classe política,
assim como a falta de valores ligados à nacionalidade e a causas sociais. Destacando a questão
moral, era “exigida” a restauração de padrões mínimos de compostura e o respeito à coisa pública
(ACRJ, 1990, nº 1256, p.3).
Do ponto de vista do capital no Brasil, nos parece que o discurso tem o propósito de
deslocar da questão econômica para a moral toda a problemática envolvendo a opção política de
desenvolvimento econômico. O que estrutura as mudanças, sua relação dialética com o mundo, é
desprezado de modo a perpetrar uma mudança na cultura a partir de um ponto de vista específico.

1
Doutorando em História Social pela UERJ-FFP, Bolsista CAPES. E-mail: cezar1707@gmail.com.

1199
A chave interpretativa do texto, ou seja, o ponto central ligado à transformação do país, é a
eleição para Presidência da República de 1989, com destaque para o segundo turno, disputado por
Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello. Ela consiste na defesa de que candidatos com
escassa biografia política se transformaram em autênticos fenômenos, pois foram capazes de passar
por cima de estruturas arraigadas e de esquemas sedimentados, que representavam correlações de
força vigorantes no país ao longo de muito tempo (ACRJ, 1990, nº 1256, p.3).
A superação do “velho” fazia parte de uma visão de classe. A manutenção de um status quo
diante de transformações de escala global só se daria em virtude da defesa de um “novo” que
pudesse encetar mudanças estruturais e dinamizá-las no campo político econômico. O ponto
precípuo era o ordenamento das contas públicas, que implicava diretamente em questões como a
hiperinflação. A reboque nesta conjuntura, o papel do Estado na economia, a renda e o acesso ao
emprego seriam objeto de intensiva discussão, exemplificando interesses difusos e contraditórios.
O processo de globalização precisaria do Estado para ser para concretizado naquele dado
momento na periferia. As mudanças institucionais operadas na América Latina ao longo das
décadas de 1980 e 1990 proporcionaram a expansão e o fortalecimento do capital monopolista.
Após o período da ditadura militar, a democracia serviria de elemento de consenso (GRAMSCI,
2000, p. 31). Disputas no campo político seriam arbitradas por instituições democráticas. No
tocante à aparência, qualquer tipo de alteração do papel do Estado estaria legitimada por um
ambiente democrático. Nada mais democrático que um ex-operário e um empresário disputando o
segundo turno da eleição para Presidência da República, daí a crítica à velha política no editorial.
Em outras palavras, o grande capital operou transformações em seu favor por meio do estímulo à
democracia e pela dívida externa, que pressionava o Estado a mudar o seu papel em relação à
sociedade. Havia uma simbiose entre o campo político e econômico nesse aspecto. Trata-se aqui de
considerarmos o início de uma revolução passiva, na qual não há rompimento com estruturas
arcaizantes pela burguesia, mas sim da transmutação de um modelo, de um programa de reforma
econômica do centro para a periferia.
A análise dessa nova conjuntura fica mais clara na medida em que levamos em consideração
os vários níveis de relações de força. Começando pela relação da forças internacionais, devemos
considerar o que é uma grande potência, assim como agrupamentos de Estado em sistema
hegemônico e conceito de independência e hegemonia. Toda inovação orgânica na estrutura
modifica organicamente as relações absolutas e relativas (GRAMSCI, 2000, p. 20). A dinâmica de
acumulação do sistema capitalista, liderada pelos países centrais, intervém na soberania de outras
nações em maior ou menor medida dependendo de seu grau de independência. Isso nos leva ao
segundo ponto a considerar nas relações de força, grau de desenvolvimento das forças produtivas do

1200
país. Sob esse aspecto, o Brasil não foi capaz de tornar sua indústria em detentora de capacidade
técnico-científica suficiente para concorrer no mercado internacional com empresas altos
investimentos em ciência e tecnologia. Quase toda tecnologia utilizada no país, com raras exceções,
pertencia aos grandes conglomerados internacionais, pertencentes aos países da tríade Europa-
EUA-Japão implicando um alto grau de dependência economias centrais.
Isso nos leva ao terceiro ponto, as relações de força política e de partido. Orquestrado a
partir de um ponto de vista de defesa econômica, segundo Gramsci,
“...o chamado “partido estrangeiro” não é propriamente aquele que é
habitualmente apontado como tal, mas precisamente o partido mais
nacionalista, que na realidade, mais do que representar forças vitais do
próprio país, representa sua subordinação e servidão econômica às
nações ou a um grupo de nações hegemônicas.” (GRAMSCI, 2000,
p. 20)
Essa prática enseja mudanças no âmbito interno de um país periférico. No caso brasileiro, a
defesa da globalização representou a vinculação de interesses do grande capital com a burguesia
interna. Ainda que a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) fosse representante apenas de
uma fração da classe dominante (POULANTZAS, 1978, p.15), seus líderes tentavam estabelecer
um consenso entre associados e outras associações e federações patronais no Brasil no que tange à
política neoliberal. Encontros, seminários com a presença de intelectuais orgânicos e políticos
foram recorrentes na agenda da entidade empresarial com o objetivo de conduzir à economia aos
ditames do maistream internacional.
Treze dias antes do segundo turno da eleição para Presidência da República, em 1989, a
ACRJ promoveu o seminário “A economia que fica para o novo presidente”, que contou com a
participação de figuras de destaque e influência no âmbito nacional, dentre elas, Roberto Campos,
além de uma platéia de 120 dirigentes empresariais (ACRJ, p. 6). Supomos que o nível de
organização da entidade patronal junto a outras revela o terceiro momento da “relação de força” no
sentido Gramsciniano. O segundo momento, que corresponde a relação de forças políticas, o qual
implica um grau de homogeneidade, autoconsciência e organização (GRAMSCI, 2000, p. 40)
alcançado por vários grupos sociais, no contexto que estamos analisando, parece ter sido superado
em prol de um novo padrão de acumulação de capital, que reconfiguraria a economia, tornando
mais abissal a desigualdade econômica.
Nesta fase de “relação de forças” observamos que questões econômicas extravasam para o
campo político, localizado na superestrutura. Há uma unicidade política, moral, econômica e
intelectual servindo a um plano “universal”. Estabelece-se a hegemonia de um grupo social
fundamental sobre uma série de grupos subordinados (GRAMSCI, 2000, p. 41). Entendemos que a
globalização, sua ideologia, o neoliberalismo correspondem ao anseio desse grupo de empresários,

1201
que organizados, tentam expandir seus interesses por meio do Estado. Organizados como “partido”,
ou seja, eivados de um arcabouço ideológico, a formação e superação de equilíbrios instáveis (aqui
nos referindo às regras, ao direito, o qual deve ser fluido para reificação, sem alterar o status quo de
dominação) é concebida com o controle do Estado.
A mudança de cultura faz parte de um processo dialético entre estrutura e superestrutura.
Para efeito de nossa análise, consideramos que o grupo de empresários ligados à ACRJ tenta
endossar a globalização, pontuando-a como parte de um processo modernizante, novo, integrante de
uma ideologia. Observamos que todo o esforço realizado visa a conservação do sistema capitalista,
voltado para o favorecimento das classes mais abastadas. A ideologia impõe limites à possibilidade
de conhecer a verdade, a partir de sua problemática e no quadro de seu horizonte de classe (LÖWY,
1994, p. 109). É evidente que se produz ciência dentro plano burguês de mundo, contudo há
barreiras impostas que restringem o campo de visibilidade cognitiva. Isso fica em evidência na
medida em que são ventiladas idéias cujos conteúdos não rompem com a ordem existente, mas sim
os aprofundam. Cortar custos oriundos do trabalho, que exige constantes melhorias na
produtividade, que por sua vez demandam meios técnicos e organizacionais para extrair o máximo
de excedente possível, dentro de um período fixo de tempo (WOOD, 2016, p. 2). Reforça nossa
argumentação a falta de iniciativa de uma lógica econômica menos espoliadora. Ocorre o inverso, o
recrudescimento de práticas nas quais o controle de custos se tornou cada vez mais central, tendo
como desdobramentos a destruição de capitais menos potentes, face ao capital monopolista, e o
desemprego estrutural inerente às transformações tecnológicas em ritmo exponencial.
Sob um ponto de vista comparativo, essa nova conjuntura econômica mundial remete ao
Brasil um quadro de modernidade incompleta. O tema fez parte da intervenção do senador Roberto
Campos no evento empresarial da ACRJ. Segundo sua visão, as características da modernidade são:
“... o capitalismo democrático (casamento da democracia política com
a economia de mercado); o advento da sociedade do conhecimento e
de alta tecnologia (com o conhecimento se tornando mais importante
que os insumos materiais); o surgimento de mercados globais, com a
internacionalização do comércio e dos fluxos de capital e a
clientelização, ou seja, a soberania do consumidor” (ACRJ, 1990,
nº1256, p.6)
Numa primeira aproximação com a afirmação, nos parece que Campos enlaça o conceito de
capitalismo e democracia, produzindo o que ele chama de modernidade. Há em seu conteúdo a ideia
do avanço capitalista ser correspondente ao da democracia. O capitalismo democrático seria o livre
mercado conjugado com uma profícua participação política da sociedade.
No entanto, é mister esclarecer que modernidade e capitalismo não conceitos fundidos, ou
interdependentes. O iluminismo, símbolo da modernidade, não traz consigo um projeto capitalista,
mas princípios de uma emancipação humana universal e crítica diante de qualquer tipo de

1202
autoridade, seja intelectual, religiosa ou política num contexto histórico de uma sociedade não
capitalista (WOOD, 2001, p. 114). Em resumo, a ideologia burguesa francesa do século XVIII teve
pouco ver com o capitalismo e mais relação com as lutas em torno de formas não capitalistas de
apropriação. Numa conjuntura histórica particular, assumiu uma visão ampla de emancipação
humana geral, e não apenas da própria classe burguesa.
Desse ponto de vista, ocorre a incompatibilidade do conceito de democracia com o
capitalismo, na medida em que o segundo tende a ser conservador enquanto sistema econômico.
Destarte, remetemo-nos à seguinte questão: Que tipo de emancipação, de cidadania, existe num
sistema econômico no qual a lógica é a acumulação em detrimento do trabalho? A própria
afirmação de Roberto Campos responde sob um viés conservador de classe: a soberania do
consumidor. Mas todos tem acesso ao consumo? Em 1999, 1/4 da população brasileira estava
abaixo da linha de pobreza (MONTEIRO, 2003, p.10). É preciso enfatizar que, na década de 1990,
a política neoliberal e a globalização dominaram a agenda política brasileira.
O capitalismo está atrelado a uma concepção ideológica que se difere dos princípios
iluministas. Wood defende que o capitalismo é dinamizado pela ideologia do “melhoramento”.
Presente na Inglaterra, que de fato está imersa num contexto pré-capitalista, essa corrente ideológica
não propunha o aperfeiçoamento da humanidade, mas o melhoramento da propriedade, a ética – e, a
rigor, a ciência – do lucro, e o compromisso com o aumento da produtividade do trabalho (WOOD,
2001, p. 119). Nesse sentido, não existe aspecto democrático no que concerne às relações
capitalistas.
Em defesa de uma nova lógica para o capital no Brasil, o neoliberalismo, Roberto Campos
ainda propunha:
“O abandono do conflito de classes com dinâmica social, com as
sociedades se tornando mais integrativas e com a substituição da
tradicional dicotomia entre capital e trabalho pela do capital físico e
humano, e o fim dos impérios políticos. A primeira descolonização
moderna pôs fim ao colonialismo ocidental e a segunda está pondo
fim ao império soviético.” (ACRJ, 1990, nº1256, p.6)
A declaração tem o objetivo de esvaziar qualquer tipo mudança estrutural no âmbito sócio-
econômico. A proposta é nitidamente aprofundar o conservadorismo, fazendo sua defesa por meio
da naturalização contexto social. A simbologia da Revolução de Outubro perde força em escala
mundial com o fim da União Soviética. Isso reforça a ideia de que o capitalismo é o fim da história,
dando uma falsa impressão a-histórica. Consoante Eric Hobsbawm, “a questão fundamental em
história implica a descoberta de um mecanismo tanto para a diferenciação dos vários grupos sociais
humanos quanto para a transformação de um tipo de sociedade em outro, ou para sua não
transformação” (HOBSBAWM, 1998, p. 164). Nos detendo apenas ao mecanismo para a não
transformação, temos a chave interpretativa para a fase globalizante do capital. A difusão dimensão

1203
a-histórica do capitalismo tem o papel de conservá-lo. Crises econômicas (1973, 1979, 1987, 1997,
2007/2008) são evidências de um sistema em franca decadência, mas que possui mecanismos de
conservação eficazes do ponto de vista do grande capital. O aumento da concentração de renda e da
pauperização em nível global são faces de uma mesma moeda, que criam condições para
manutenção da ordem estabelecida. O elemento-chave para a produção dessa conjuntura foi o fim
da guerra de ideias depois de 1989, com o fim da União Soviética e a demolição dos regimes do
leste europeu. Aquele, havia sido o momento adequado para fundamentar um novo e duradouro
consenso que deveria deixar firmemente assentada a convicção de que toda tentativa de subverter a
ordem estabelecida era inútil (FONTANA, 1998, p. 17). O abandono do conflito de classes, além
da desconstrução da dicotomia capital-trabalho tem esse sentido, o de impedir qualquer tipo de
subversão ao neoconservadorismo ora imposto.
Naturalizar a divisão da sociedade em classes sociais, necessariamente, deixa de lado
qualquer tipo de discussão sobre a essência do trabalho e sua relação com o social. A essência
subjetiva da propriedade privada é o trabalho (MARX, 2008 p. 99). Em outros termos, a
constituição da propriedade privada é posterior ao processo de trabalho, este inerente ao homem.
Partindo desta premissa, é possível depreender que uma sociedade de classes, assim como a
estrutura e superestrutura que lhe dão sustentação, fazem parte de um determinado momento
histórico. O que não muda no tempo e no espaço é a essência humana da natureza, o homem social
(MARX, 2008, p. 106).
O indivíduo é um ser social, o que torna indissociável sua relação com a sociedade, a qual é
de caráter universal. A propriedade privada desconstitui a essência humana, separa a relação entre
indivíduo e sociedade, pois ela tem um fim em si mesma, é coisa em si (MARX, 2008, p. 109).
Diferente desta concepção, na relação humana (homem-sociedade), o sujeito é que dá sentido ao
objeto, não há a coisificação. Em outras palavras, no sistema capitalista, o produto do trabalho, a
propriedade privada, é estranhado pelo próprio produtor, uma vez que ele não dá sentido social ao
que produz. Se a essência humana é o trabalho voltado para a vida em sociedade, num movimento
dialético, o que justifica sua utilização sem que o homem possa dá-lo algum sentido?
A resposta está na retirada do papel de sujeito do ser humano na história. A coisificação
promove inércia, que por sua vez conserva as condições de existência do sistema econômico
capitalista. Não há nada de moderno no estancamento da luta de classes, pelo contrário, apenas
engessa a perspectiva de rompimento com a ordem estabelecida.

1204
CONCLUSÃO
Capitalismo e democracia não são complementares. O incontrolabilidade do capital provoca
crises, que, longe de serem apenas conjunturais, são inerentes ao próprio sistema capitalista. Num
movimento tático, os capitalistas reificam cada vez mais as relações sociais. O neoliberalismo
trazido no bojo da globalização é materialização desse novo tipo de conservadorismo. Anseia-se a
manutenção do status quo modificando a cultura, estabelecendo novos tipos de relações na base,
estrutura.
Lançando mão do conceito de relações de força, observamos o impacto do posicionamento
político e econômico dos países centrais na periferia. No Brasil, uma fração da classe dominante
engendrou um projeto de dominação calcado no aprofundamento do capitalismo com legitimação
de um ambiente “democrático”. Ventilou-se, estabeleceu-se um consenso de que as alterações no
campo econômico são a resultante de um novo modelo de sociedade. Entretanto, ao discutir o
trabalho como essência da propriedade privada, entendemos que naturalizar uma sociedade dividida
em classes, não passa de um esvaziamento da discussão da relação homem-sociedade, que parte de
uma perspectiva classista.

BIBLIOGRAFIA:
FONTANA, Josep. História depois do fim da História. Bauru: EDUSC, 1998.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. Marxismo e
positivismo na sociologia do conhecimento, 8.ed. São Paulo: Cortez.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo. 2008.
MÉSZÁROS, István. Marx “filósofo”. In: História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979.
MONTEIRO. Carlos Augusto. A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil.
Estudos Avançados, volume 17, número 48. 2003.
MOREIRA, Maurício Mesquita. A Indústria Brasileira nos Anos 90. O que já se Pode Dizer?
www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/livr
o/eco90__b.pdf
POULANTZAS, Nicos. As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar. 1978.
WOOD, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
WOOD, Ellen Meiksins. Os coveiros do capitalismo: http://blogjunho.com.br/os-coveiros-do-
capitalismo/). 2016.

1205
A prática musical dos vilancicos no reinado de d. João IV
as tentativas de assassinato do rei restaurador na poética sacro-profana dos vilancicos

Laís Morgado Marcoje*

Resumo: D. João IV foi o principal impulsionador de um gênero poético musical, conhecido como
vilancico. Esse gênero fizera parte do cotidiano musical da Casa de Bragança em Vila Viçosa, sendo
uma das maiores do reino português. O que torna esse gênero importante não é apenas o interesse
que o rei possuía, mas a sua comum prática sobretudo na Espanha, adquirindo um “estatuto” de
música de Estado. A temática religiosa presente nas letras era, assim como nos sermões, associada à
figura real. Os vilancicos, mesmo tendo uma origem profana, foi sacralizado e incorporado no
cotidiano das igrejas ibéricas, estando presente em catedrais e Capela Real. A partir dos trabalhos
realizados pela historiadora Beatriz Santos, discutir-se-á a ausência e a presença de referências às
tentativas de assassinato a d. João IV.

Palavras-chave: vilancico, Restauração, d. João IV.

Abstract: The King John IV was one of boosted the villancico, a kind of poetic and music genre. It
was part of musical day by day of Bragança’s house in Vila Viçosa, one of the biggest houses of the
role reign. The importance about this genre is beyond the king’s interest, but it’s practiced around
the Spain and it got one status of music of State. Like on sermons, the religious theme was
associated to the king image, The villancicos, besides their profane origin, was sacralized and
incorporated on the Iberian churches, included the cathedrals and the Royal Chapel. Starting the
works realized by the historian Beatriz Santos, it will be debated the absence and the presence of
references of assassins to king John IV.

Keywords: villancico, Restouration, d. John IV.

O objetivo principal desta apresentação é analisar os vilancicos natalinos cantados e


apresentados na Capela Real após a Restauração. Como corte, dei prioridade às tentativas de

* Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Bolsista CNPq. E-mail:


laismarcoje@gmail.com.

1206
assassinato ao então rei de Portugal, d. João IV.1 As tentativas foram frustradas, pois descobriram
com antecedência e os conspiradores foram punidos, o que me levou a selecionar os seguintes
folhetos: Villancicos que se cantarão na Real Capela do muito alto, & muito poderoso Rei D. João
o IV. Nosso Senhor. nas matinas da Noite do Natal da era de 1641 e Villancicos que se cantaram,
na Real Capella do muyto alto, & muyto poderoso rey D. Ioam o IV. nosso Senhor. Nas matinas da
noite de Natal da era de 1647, ambos localizados tanto na Fundação Biblioteca Nacional quanto na
Biblioteca Nacional de Portugal por via online. Para compreender a relação do vilancico, fonte
pouco conhecida e trabalhada pela historiografia, com o conturbado contexto político da
Restauração, discutirei o que é essa fonte e a historiografia da Restauração, focando nos eventos já
mencionados.

Os vilancicos

Os vilancicos são definidos como um gênero poético musical segundo a historiadora Beatriz
Santos.2 Contudo, até compreender o que de fato é esse gênero é preciso se aprofundar mais na sua
formação. O musicólogo Álvaro Torrente3 afirma que o termo vilancico fora usado para diversas
formas musicais, sendo complicado definir suas características formais. Desse modo, seguindo a
lógica de Torrente, não focarei na forma do vilancico, mas na função do vilancico. Essa escolha
parte da compreensão de Brito4 que apresenta-nos o vilancico religioso, posto que o seu uso intenso
nas cerimônias religiosas teria desvirtuado-o dos seus antigos proveitos. O vilancico, ao longo do
tempo, foi incorporado no ambiente da Igreja. Torrente, contudo, afirma que, apesar disso, o
vilancico não deixou de sofrer com influxos de outros gêneros musicais seculares.
A origem dos vilancicos não é muito clara. O musicólogo Rui Lopes afirma que é possível
identificar algumas inter-relações culturais nos vilancicos, sendo elas:
1) a tradição folclórica nas suas dimensões musical, coreográfica e teatral; 2) o drama
litúrgico medieval e as suas manifestações tardias, auto sacramental e oratória; 3) a tradição
de pastorela latina, intimamente ligada ao ciclo do Natal; 4) o teatro secular e os géneros
com ele relacionados, desde a zarzuela, do sainete e da mojiganga até à ópera e 5) a canção
de câmera secular, representada pelo vilancico profano, pelo tono humano ou pela cantata.5

1 A historiadora Beatriz Catão Cruz Santos analisa, em um artigo que será publicado, os vilancicos de Corpus
Christi após as tentativas de assassinato de d. João IV. Cf.: SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Portuguese Villancicos and
Festivities in the Seventeenth & Eighteenth Centuries. Portuguese Studies. Cambridge: Modern Humanities Research
Association, 2017. No prelo.
2 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Os Vilancicos Portugueses nos Séculos XVII e XVIII:
Documentos para uma história do culto dos Santos. Rio de Janeiro: Acervo, v.24, p.113-128, 2011.
3 TORRENTE, Álvaro. The sacred villancico in early eighteenth-century Spain: the repertory of Salamanca
Cathedral. 2006. Tese (Doutoramento em Filosofia). St. Catherine’s College, Cambridge.
4 BRITO, Manuel Carlos de. As origens e a evolução do vilancico religioso até 1700. In:
___________________. Estudos de história da música em Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
5 LOPES, Rui Miguel Cabral. O vilancico na capela real portuguesa (1640-1716): o testemunho das fontes
textuais. 2006. Tese (Doutoramento em Música e Musicologia), Universidade de Évora, Évora. p.1

1207
Retomando à sua função, concepção importante para esta pesquisa, Wardropper 6 acredita
que o processo de divinização dos vilancicos ocorreu durante o hábito de cantá-los durante a espera
do início da procissão. Manuel Brito acrescenta também que é muito provável que eles foram
incorporados no espaço religioso a partir do drama religioso, “tornando-se assim familiares ao povo
como parte do culto oficial, e mantendo-se dentro da igreja depois de o drama ter desaparecido”.7
Assim como o que foi exposto anteriormente a partir do que foi dito pelo musicólogo português Rui
Lopes, há indícios de origens medievais no vilancico religioso e sua existência indica, para Brito, a
sobrevivência ou mesmo ressurgimento de forma popular de devoção de origem medieval tendo
forte contato com o drama religioso.8
O vilancico é um gênero que caminha por lugares sacros e profanos. Sua execução era
acompanhada por apresentações teatrais e por personagens que se destacavam na apresentação. 9 A
partir do que os musicólogos afirmam, eles foram incorporados às cerimônias religiosas devido ao
costume que os fiéis tinham de cantá-los enquanto esperavam os autorreligiosos. Vemos, então, uma
aproximação, de um gênero que por conta de suas características podia ser considerado profano,
com práticas religiosas. Esse contato com o que era religioso é um fator de suma relevância para os
vilancicos. Não é à toa que atualmente eles sejam conhecidos como música de Natal. Contudo, não
é de nosso interesse analisar o que permaneceu ou não de profano nos vilancicos nos dias de hoje.
Podemos crer que o lugar que o vilancico ocupa na música é o “popular”, ou seja, um gênero
de fácil acesso devido à sua língua, aja visto que era elaborado em língua vernácula, como o
português e o castelhano. De acordo com o musicólogo Rui Lopes,10 eram nessas duas línguas que o
vilancico era composto em sua maioria. Desse modo, é um gênero socialmente localizado na
Península Ibérica. Mas existiam gêneros que podemos considerar similares ao vilancico em outras
regiões como o nöel na França e o carol na Inglaterra.11
O que nos motiva a associá-lo com a Restauração Portuguesa? Em primeiro lugar, o
historiador Diogo Ramada Curto afirma que um dos primeiros documentos impressos relativos à
Restauração é um vilancico cantado na noite de Natal de 1640 na Capela Real. Em segundo lugar,
sabemos que o rei d. João IV era músico, tinha, talvez, a maior biblioteca musical de toda a Europa
e foi o responsável pela introdução do gênero nas práticas religiosas da Capela Real. Em terceiro

6 WARDROPPER, Bruce W. Historia de la poesia lírica a lo divino en la cristandad occidental. Revista de


Occidente, Madrid. 1958.
7 BRITO, Op. Cit. p. 34.
8 Idem, p.34
9 TORRENTE, Op. Cit. p.53.
10 TORRENTE, Álvaro. Function and liturgical context of the vilancico in Salamanca
Cathedral. In: KNIGHTON, T. TORRENTE, A. Devotional Music In The Iberian World, 1450–1800: The Villancico
and Related Genre. Yorkshire: Ashgate Publishing Limited, 2007.
11 TORRENTE, Op. Cit. p.53.

1208
lugar, era o rei d. João IV quem escolhia quais músicas fariam parte do seu repertório, avaliando-as
em boas ou muito boas.12 E em último lugar, o musicólogo espanhol, Pablo L. Rodríguez afirma
que o gênero era, na Espanha, música do Estado, na medida em que a forma em que era executado
podia enaltecer a figura real.13 São quatro evidências que podem nos indicar qual caminho devo
percorrer para analisar tais fontes.
Os musicólogos costumam associar a imagem do menino Jesus, dos vilancicos natalinos, à
figura real. Essa interpretação é por aqui adotada, na medida em que constatamos o mesmo em
nossas análises. Para além disso, era comum a apropriação das concepções do direito canônico
pelos juristas portugueses que atribuíam a noção de pessoa mista de Jesus ao monarca14.
De acordo com Jacqueline Hermann, a noção de pessoa mista do rei teve sua formulação
baseada no direito canônico, em que a Igreja e a sociedade formavam um corpo místico e a cabeça
desse corpo era Cristo. Na adaptação feita pelos juristas, o rei era a cabeça do reino.15 Jacqueline
Hermann desenvolve essa noção a partir do que já foi trabalhado por Ernest Kantorowicz. 16 Para
este, a Igreja, nos séculos XVI e XVII, tendia a se conceber como “um protótipo perfeito de uma
monarquia absoluta e racional sobre uma base mística, enquanto que, simultaneamente, o Estado
manifestou mais e mais uma tendência a tornar-se uma quase-Igreja e uma monarquia mística sobre
uma base racional”17. O Estado monárquico se apropriou do misticismo da Igreja para justificar a
existência e a necessidade de um povo ter um rei.
A historiadora citada anteriormente afirma que a análise proposta por Kantorowicz pretendia
explicar um lento processo de transformação da realeza cristocêntrica para a realeza antropocêntrica
entre os séculos XII e XIV. A realeza cristocêntrica baseia-se na noção de dupla natureza de Cristo
na terra e na noção de duplo caráter do rei – este é humano e sagrado.18 Segundo ela, ao mesmo
tempo que se tinha a ideia que os reis eram a imitação de Jesus Cristo na terra, se fundiu noções de
“representações que faziam do rei ‘imagem’ e ‘vigário de Cristo’, títulos que não permitiam maiores

12 IGLESIAS, Alejandro L. em La Colección de Villancicos de João IV, Rey de Portugal. Mérida: Editora
Regional de Extremadura, 2002. 2 vols.
13 RODRÍGUEZ, Pablo L. The villancico as music of state in 17th-century Sapain. In: KNIGHTON, T.
TORRENTE, A. Devotional Music In The Iberian World, 1450–1800: The Villancico and Related Genre. Yorkshire:
Ashgate Publishing Limited, 2007.
14 HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal dos séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
15
Idem.
16
KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre a teologia política medieval. Trad. Cid.
Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
17
HANSEN, João Adolfo. Barroco, neobarroco e outras ruínas. Bahia: Floema Especial. Ano II, n.2ª, out. 2006.
p. 61.
18
HERMANN, Op. Cit. p.145.

1209
diferenciações entre sua função de governante e sua natureza de ‘Deus-homem’”.19 Essa noção de
realeza cirstocêntrica decaiu, havendo substituição de expressões como rex imago Christi e rex
vicarius Christi por expressões como rex imago Dei e rex vicarius Dei.20 Para a historiadora, a
expressão “vicário de Cristo” se torna monopólio dos representantes da Igreja Romana.
Com a queda da noção de realeza cristocêntrica, elaborou-se uma teoria mais independente e
jurídica para o poder real. Esta nova teoria, tal como a anterior, se baseou no direito canônico para
“embasar uma ideia de poder representativo de ‘direito divino’”.21 O nome que será atribuído a esta
teoria é juriscêntrica, cujo objetivo é ressaltar a função mediadora do rei e criar uma nova
compreensão de que o rei é fonte e imagem viva da Justiça.22 A mudança de concepção de poder
real é observada na crença de que quem governa era a Justiça e não o rei, ele seria apenas um
mediador. Portanto,
a missão do sacerdote da justiça encarnada pelo imperador servia, sem dúvida, à
constituição de uma nova natureza de santidade do poder secular, reforçando indiretamente
seu papel místico, na medida em que suas decisões passavam a ser “lex animata”, ou a
própria encarnação da justiça23

O rei seria o intermediador do seu povo e o representante da Justiça. Em conjunto com essa
mudança na teoria política do Estado, a antiga noção de dualidade do corpo de Cristo também se
modificou. De acordo com a historiadora, o corpo natural adquiriu funções sociais e corporativas. O
objeto de comparação da Igreja era o corpo humano. A cabeça era Cristo e os membros, todos os
que compunham a Igreja. A expressão usada para designar essa comparação era corpus mysticum.24

A Restauração Portuguesa de 1640

Em dezembro de 1640, o oitavo duque de Bragança, uma das maiores e mais ricas casas
portuguesas, junto de outros fidalgos se rebelaram contra Castela e restituíram Portugal como reino
independente. Desde 1580, Portugal estivera sob o comando da coroa espanhola. A ausência de
herdeiros por parte de d. Sebastião, que desapareceu após a batalha de Alcácer-Quibir no norte da
África, provocou uma disputa pelo trono, envolvendo Felipe II – rei da Espanha – e dona Catarina,

19
Idem.
20
Idem.
21
Idem, p.146.
22
Idem.
23
Idem, p.146.
24
Idem.

1210
também herdeira. Apesar de a disputa ter envolvido outros nomes, os dois citados foram os mais
fortes. O conflito envolveu redes de espionagem, sobretudo da parte espanhola, usando todas suas
forças para alcançar seus objetivos. O êxito é visto na decorrência dos próprios fatos, pois a Casa
dos Habsburgos se tornou responsável por dois reinos. Foi a chamada monarquia dual. A nobreza
portuguesa não resistiu à união, sendo em sua maioria ao seu favor.
A União Ibérica, a princípio, manteve a autonomia das instituições portuguesas. O
descontentamento de parte da fidalguia ocorreu tempo depois, principalmente durante a década de
1630. A bandeira levantada pelos portugueses seria quebra desse acordo. O reinado de Felipe IV
enfrentava diversos problemas, incluindo rebeliões de determinadas partes de seu território. Esse
descontentamento, contudo, não foi um sentimento compartilhado por toda a fidalguia portuguesa.
A historiadora Mafalda Cunha25 demonstra que nomes menores dessa nobreza foram os
responsáveis pela articulação que elevou o oitavo duque de Bragança a rei de Portugal.
A Casa de Bragança tinha vínculos consanguíneos com a antiga Casa Real portuguesa,
sendo dona Catarina avó do duque. A importância dessa casa era tão grande que o matrimônio do
duque foi tratado com cuidado para que não selasse vínculos com casas reais, seja a de Habsburgos,
seja de outros reinos. O duque se casou com dona Ana de Gusmão, filha do oitavo duque da Casa de
Medina Sidonia, uma família nobre muitíssimo importante na Espanha.26 Apesar da preocupação
citada anteriormente, o duque de Bragança não podia se casar com alguém que estivesse abaixo da
sua importância, por isso escolheu-se uma herdeira de Medina Sidonia.
Muito há do que se questionar sobre o que motivou d. João IV a romper com Castela. O
histórico da sua conduta para com o rei Felipe IV não indicava que ele tornar-se-ia rei de Portugal.
O duque de Bragança foi até então um vassalo exemplar, inclusive quando Felipe IV pedira que o
duque fosse resolver a rebelião que estava acontecendo em Braga, em 1638, ele não exitou e
controlou o problema. Entretanto, dois anos após esta revolta, no dia 15 de dezembro, o duque foi
aclamado rei de Portugal em Lisboa. A fim dar o contragolpe e de angariar partidários, Castela
prometeu proteção e benefícios para aqueles que se juntassem à sua causa. Portugal, recém-
restaurado, não possuía grandes recursos, o que impulsionou a fuga de muitos fidalgos importantes
para a monarquia espanhola.
Um ano após a Restauração, alguns nomes importantes da nobreza e da Igreja portuguesa
estiveram envolvidos em uma conspiração contra a vida do rei d. João IV. Em julho deste ano, o rei
e as pessoas mais próximas a ele e de sua confiança tramaram uma encenação que a fidalguia. Ela

25
CUNHA, Mafalda Soares. Os insatisfeitos das honras: os aclamadores de 1640. In: BICALHO, Maria
Fernanda. FURTADO, Junia Ferreira. SOUZA, Laura de Mello e. O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009.
26 BENEVIDES, Francisco da Fonseca. Rainhas de Portugal: um estudo histórico. Lisboa: Typografia Castro &
Irmão, 1879. Vol 2.

1211
não passou de uma armadilha para prender alguns nomes como o sétimo duque de Vila Real, o
arcebispo de Braga, o bispo inquisidor-geral e o segundo duque de Caminha. Homens poderosos
dentro da fidalguia que planejavam o assassinato de d. João. A confissão ainda levou a mais prisões.
A trama, portanto, fracassou e todo o seu desenrolar demonstra a tensão entre os joaninos e os
filipinos, sendo necessário construir redes de espionagens e de intrigas.
A ameaça à vida de d. João, contudo, não se restringiu a esse momento. Em 1647, outra
tentativa foi desmantelada graças a denúncia feita por Manuel Roque, um dos confidentes de
Domingos Leite, homem que seria o responsável pelo assassinato de d. João IV e que viera da
Espanha. O momento escolhido seria a procissão de Corpus Christi. A denúncia salvaguardou a
vida do rei e o acusado foi preso e executado. D. João IV mandou que sua esposa, d. Luísa de
Gusmão, edificasse um convento com invocação de Corpus Christi para os religiosos de Santa
Teresa no lugar onde o crime seria cometido.27 A historiadora Beatriz Santos, ao analisar o vilancico
de Corpus Christi de 1647, destaca a referência a essa tentativa de assassinato nas suas letras. Como
veremos mais especificamente à frente, no vilancico de Natal de 1647 também há indicações sobre
o fato citado.

Os vilancicos no cotidiano musical dos Bragança

As fontes indicam-nos logo em seu nome o local, a data comemorativa e a quem se destina
os vilancicos. Como dito no início desse artigo, as fontes foram apresentadas na Capela Real
portuguesa e cabe-nos historicizar essa instituição. Para isso, será necessário recuar historicamente
para compreender a importância da música na vida dos duques de Bragança, assim como destacar a
relevância da Capela ducal para compreender como a Capela Real ganhou um grande impulso após
a Restauração.
De acordo com Rui Lopes, a música tinha uma participação importante em Vila Viçosa.
Grandes acontecimentos como batizados, casamentos e funerais eram realizados por meio de
cerimônias solenes que eram acompanhadas por músicas. O musicólogo sublinha que o primeiro
aparecimento do vilancico ocorreu justamente em uma dessas cerimônias solenes. Seu aparecimento
foi relatado na crônica de casamento de d. João II com a dona Luísa Francisca de Gusmão em 12 de
janeiro de 1633.28 O próprio duque dava direções pessoalmente ao seu mestre de capela “para que a

27 Idem, p.76.
28
LOPES, Op. Cit.

1212
distribuição dos cantores, especialmente nos vilancicos, fosse mais possível rotativa, privilegiando-
se as vozes de maior qualidade em determinadas passagens ou secções”.29
Como nas outras grandes casas europeias, a Capela ducal realizava diariamente os Ofícios e
as Missas, mas com grande magnificência.30 E para deixar esses serviços litúrgicos mais atrativos,
usavam-se os vilancicos em alguns momentos.31 Havia um envio regular de vilancicos para o duque
de Bragança antes deste se tornar rei, mas o número que se conhece de vilancicos nesse período é
reduzido.32 Conhecem-se apenas os que foram executados nos ofícios das Matinas de Natal e da
Festa de Reis.33
Rui Lopes destaca que a ligação que d. João IV tinha com Vila Viçosa não foi rompida
quando se tornou rei. Isso é confirmado pelos indícios de que manteve-se trocas frequentes de
missivas entre o rei e o Deão da Capela Ducal, Antônio Brito e Souza.34 O duque levou todo o
sistema de prática de música sacra que foi desenvolvida em Vila Viçosa para Lisboa, incluindo sua
Livraria de Música.35 Desse modo, transferiu os modelos de funcionamento e de organização da
Capela Ducal para a Capela Real.36 A prática musical dos vilancicos continuou em Vila Viçosa.
Contudo, não é possível saber a intensidade da execução e a rotina, pois, segundo Rui Lopes, não há
quaisquer folhetos novos após a Restauração em Vila Viçosa. É muito provável que a Capela Ducal
apenas tenha mantido as fontes musicais que já possuía para se manter ativa.
De acordo com Vasco Mariz,37 Capela Real portuguesa foi criada no século XII, no reinado
de d. Afonso Henriques (entre 1143 e 1185). No início, sua sede não era em Lisboa, mas em
Guimarães. Durante muito tempo, a Capela Real mudou de sede de acordo com o desejo do
monarca. Ela já teve sede em Guimarães, Coimbra, Santarém e, finalmente, Lisboa.38 Somente com

29
Idem, p.18.
30
Idem.
31
Idem.
32
Idem.
33
Idem.
34
Idem.
35
Idem.
36
Idem.
37
MARIZ, Vasco. A Capela Real de Lisboa. In: __________________. A música no Rio de Janeiro no tempo de
Dom João VI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
38
Idem.

1213
d. Diniz (reinou entre 1279 e 1325) que a Capela Real foi instalada dentro do próprio Paço. 39 O
período em que a Capela tem maior importância compreende os reinados de d. João IV e d. João V,
compreendendo o período em que o vilancico é incorporado às práticas religiosas por determinação
de d. João IV até o momento em que d. João V proíbe a execução do gênero. Desse modo, o estudo
os vilancicos pode contribuir também para a história da Capela Real como instituição.
Segundo o historiador Diogo Ramada Curto, durante a Restauração, “a Capela Real surge
como local privilegiado simultaneamente do culto divino e do culto do monarca, pois quem ofende
a Cristo, presente na hóstia, acaba por ofender o próprio rei, que assim se apresenta como uma
espécie de imitação de Jesus”.40 Muito mais do que uma Capela do rei, foi nela que se reafirmou a
doutrina de que o corpo do rei era a imitação de Cristo. Essa instituição teve, portanto, um forte
poder de representação, favorecendo o monarca. E com a Restauração, a Capela Real exprimiu uma
nova ordem política.41
Devemos levar em conta que não era qualquer pessoa que tinha acesso à Capela Real. De
acordo com João André de Araújo Faria,
naquela instituição, junto de D. João IV, reuniam-se diversas personalidades da corte para
celebração do culto cristão. O público variava de acordo com o grau de importância da
solenidade. Em dias de festividades da monarquia, a reunião das altas dignidades do reino
se fazia necessária, observados, evidentemente, os graus de hierarquia da sociedade
portuguesa, onde implicava, por exemplo, a correta disposição dos nobres no espaço físico
da capela. Com efeito, o ritual régio de assistir à missa estava regulado por uma série de
preceitos determinados pela solenidade da ocasião. Em qualquer dos casos existia a
preocupação de se definir uma hierarquia, por vezes operando-se uma divisão física do
espaço sagrado, salvaguardando o corpo e a privacidade do monarca no culto ao divino .42

A Capela Real era um espaço de ordem política, de reafirmação das hierarquias e um lugar
de representação do poder régio. Por isso, essa instituição é importante para esta pesquisa. Os
vilancicos com os quais vamos analisar aqui foram apresentados durante um cenário complexo em
que era necessário firmar e reafirmar alianças, reforçar a representação da Casa de Bragança e do
rei Restaurador, que poderia sofrer ataques à sua própria vida.
Para termos um paralelo documental, temos como exemplo os sermões. Segundo José Pedro
Paiva, os sermões também são grandes fontes documentais e ressaltam a importância do estudo
dessa instituição.
So in the period under analysis [1495-1580], we lack information on this institution. We
know it existed. We know that very important ceremonies in the framework of the

39
Idem.
40
CURTO, Op. Cit. p. 143-144.
41
Idem.
42
FARIAS, Op. Cit, p.29-30

1214
promotion of the monarchy were held there. We know some episodes which occurred
during these ceremonies, like disputes for precedence between foreign ambassadors or
among the Portuguese court nobility. We know that a spectacular tumult occurred there in
1552 after an Englishman attending Mass took the Host from the priest and threw it on the
floor, crushing it (he was immediately arrested, judged by the inquisitors, and executed
three days later). We even know that every king from Manuel I to Sebastian had his own
preachers, yet we possess little information about their role and function at the royal
chapel.43

Embora o foco de Paiva sejam os pregadores do Paço, o historiador destina um determinado


momento para a Capela Real. A citação de Paiva revela um dado interessante. Conflitos na
cerimônia de exaltação. Isso demonstra que a plateia da pregação também questionava o sermão.
Deste modo, tanto o sermão quanto o vilancico poderiam ser mal recebidos e questionados pelos
que estavam na cerimônia. Entretanto, isso não interfere no peso que a Capela Real terá, sendo
então um espaço de reafirmação de poder e da legitimidade do rei.

Análise das fontes

O vilancico de 1641 apresenta logo de início o tema da guerra, tendo como foco uma guerra
climática, o frio contra o calor. Nesse sentido, o inverno, estação do Natal da Europa, é o inimigo
que foi derrotado pelo fogo, que era menos duradouro que o frio. O inverno ameaçava o próprio
menino Jesus, mas mesmo sendo pequeno e parecendo estar desprotegido, venceu-o. A ideia do
menino como fogo, Sol, Amor é reforçada nos próximos vilancicos que compõem este folheto.
Outro tema constante é a fragilidade humana do menino Jesus, aproximando a imagem do rei à do
menino. Podemos observar a humanidade de Cristo sendo abordada nos seguintes versos,
Chiquitiño, & bello
seus olhos son soles44
que diuinas perlas
de su Oriente corren,
quien he o Minino
tão fermoso, & nobre,
que chorando ao frio
nace e nesta noute?
E quien he esse homem? &c. 45

43
PAIVA, José Pedro. The role and doctrines of Portuguese court preachers (1495-1580). In: MILLÁN, Joaé
Martínez. RODRÍGUEZ, Manuel Rivero. VERSTEEGEN, Gijs. (orgs). La corte en Europa: política y religión (siglos
XVI-XVIII). Madrid: Ediciones Polifemo, 2012.
44
O f foi trocado pelo s para facilitar a compreensão dos versos.
45 Villancicos que se cantarão na Real Capela do muito alto, & muito poderoso Rei D. João o IV. Nosso Senhor.
nas matinas da Noite do Natal da era de 1641. - Em Lisboa: por Iorge Rodrigez[sic], 1641. - [11] f. ;8º (15 cm).
Disponível em <http://purl.pt/23780> Acessado em 05 de novembro de 2017. p.8

1215
É preciso destacar que como qualquer texto literário, as representações e o entendimento não
estão necessariamente claros para o leitor ou pesquisador. Assim como o afirmado por Álcir Pécora,
o “texto” e o “contexto” estão conectados, não podendo compreender o primeiro sem o segundo.
Nesse contexto de Restauração, era necessário reforçar a imagem do monarca como um
representante divino. Sendo o vilancico de Natal, a figura do menino Jesus era constantemente
apresentada, muito mais do que a história do seu nascimento. O vilancico de 1641 não é o único a
destacar a humanidade de Cristo, isso se repete em muitos outros. Aliás, o vilancico era um
“espaço” de constantes repetições de representações e temas, variando muito pouco, ou quase nada.
Muito diferentemente do Vilancico de 1641, o de 1647 expressa com maior clareza o tema
da traição, evocando figuras bíblicas que traíram outras personagens, incluindo a referência
explícita a Judas. Já havia passado seis anos da primeira tentativa de assassinato. A segunda
tentativa, como dito, aconteceria na procissão de Corpus Christi, mas foi, assim como a primeira,
descoberta antes. A historiadora Beatriz Santos propôs-se a analisar o vilancico de Corpus Christi
de 1647,46 em que há referência à tentativa de assassinato, mas será que ocorre no vilancico de
Natal do mesmo ano? A complexidade das letras e as figuras de linguagem, além do que venho
pesquisando para a minha pesquisa, levam-me crer que as referências às traições bíblicas seriam
uma alusão a mais uma tentativa de assassinato.
Referências novas aparecem no Vilancico de 1647. Em primeiro lugar, a ideia do pecado
original, isto é, o pecado de Adão é destacado em versos como
Diga se trae testimonio,
que la venta estâ ocupada,
que dè la peste de Adan
la tierra esta inficionada47

A história do primeiro homem na terra é tratada como uma peste, uma doença na Terra. O
seu pecado para com Deus não abandonou os homens e precisa ser combatida. Logo depois, temos a
referência da história de Caim e Abel. A traição entre irmãos aparece nos seguintes versos,
Cain a su hermano Abel
por imbidioso le mâta,
que aun entre hermanos la imbidia
ostentar quiso sus armas.
Mire se entrare em el Mundo
con quien haze camarâda,
que morirâ entre ladrones,
el que con venteros trata48

46 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Portuguese Villancicos and Festivities in the Seventeenth & Eighteenth
Centuries. Portuguese Studies. Cambridge: Modern Humanities Research Association, 2017. No prelo.
47 Villancicos que se cantaram, na Real Capella do muyto alto, & muyto poderoso rey D. Ioam o IV. nosso
Senhor. Nas matinas da noite de Natal da era de 1647. - Em Lisboa: por Manoel Gomes de Carualho, [1647]. - [12] f. ;
8º (15 cm). Disponível em <http://purl.pt/23787> Acessado em 05 de novembro de 2017., p.7
48 Idem, p. 8.

1216
A história de pecado e traição continua com Judas,
Mire que es de la venta
Iudas ventero,
y le puede enseñando
vender cordeiro.
Despues que vino al Mundo
por todo passa
que como ya es tan hombre
nada le espanta.
No ay pozada &c.49

Seria óbvio supormos que ambas as fontes selecionadas abordariam as tentativas de ataques
à d. João IV. Contudo, o vilancico de 1641 não apresenta nenhuma referência direta à tentativa de
assassinato desmantelada em julho daquele ano. Já o de 1647 constata-se uma mudança de
linguagem, apelando para as referências a casos de traição na Bíblia. São referências às histórias de
Caim e Abel e ao próprio Judas que entregou Jesus. Como o vilancico construiu uma imagem real
aproximando-a do menino Jesus, já que estamos analisando vilancicos natalinos, podemos crer que
tal referência a Judas está relacionada à segunda tentativa frustrada de assassinato ao d. João IV. Por
que, então, que a primeira tentativa foi omitida do vilancico? Creio que deve-se à recém-constituída
Restauração, em que as posições dos nobres oscilavam muito e ainda era necessário construir uma
base de aliados. Sete anos depois, a história acabou se repetindo, mas nesse momento muitos nobres
portugueses que apoiavam Felipe IV já haviam conseguido escapar de Portugal e ir para a Espanha.
Era um momento de maior necessidade de se posicionar e defender a Restauração, fazendo as
inferências ao assassinato como traição.

49 Idem, p.8.

1217
Referências

Fontes

Villancicos que se cantarão na Real Capela do muito alto, & muito poderoso Rei D. João o IV.
Nosso Senhor. nas matinas da Noite do Natal da era de 1641. - Em Lisboa: por Iorge
Rodrigez[sic], 1641. - [11] f. ; 8º (15 cm). Disponível em <http://purl.pt/23780> Acessado em 05 de
novembro de 2017.
Villancicos que se cantaram, na Real Capella do muyto alto, & muyto poderoso rey D. Ioam o IV.
nosso Senhor. Nas matinas da noite de Natal da era de 1647. - Em Lisboa: por Manoel Gomes de
Carualho, [1647]. - [12] f. ; 8º (15 cm). Disponível em <http://purl.pt/23787> Acessado em 05 de
novembro de 2017.

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1220
A CANTORIA DE SÃO GABRIEL: FESTA, CONFLITOS E SOCIABILIDADE NO
SERTÃO BAIANO (1991-1998).

Larissa Godinho Martins dos Santos 1

Resumo: O presente texto aborda a Cantoria, festa que foi criada em 1991 pelo grupo Culturarte
em São Gabriel-Ba. O grupo buscava por um espaço de lazer, onde os habitantes tivessem acesso a
um evento de estilo musical diferente e os artistas locais visibilidade, mas, também, por um espaço
para dialogar, expressar ideias e posicionamentos através da arte. A festa gerou conflitos entre o
grupo e a sociedade gabrielense, sendo mal vista nas suas primeiras edições, mas a partir da sexta
edição passou a ganhar espaço e ser frequentada pela população. A pesquisa está inserida na
história do tempo presente, já que os anos analisados serão entre 1991 a 1998 que se justificam
entre o ano que a festa foi criada até o ano que passa ser aceita como a festa da cidade. As
narrativas orais são as principais fontes para compreendermos as tensões dentro e fora da festa.

Palavras chave: Festa; Memória; Tempo presente.

Abstract: This text deals with Cantoria, a feast that was created in 1991 by the group Culturarte in
São Gabriel-Ba. The group looked for a space of leisure, where the inhabitants had access to a
different musical style event and local artists visibility, but also for a space to dialogue, express
ideas and positions through art. The party generated conflicts between the group and the
gabrielense society, being generally avoided in its first editions, but from the sixth edition it began
to gain space and to be frequented by the population. The research is inserted in the history of the
present time, since the analyzed years will be between 1991 to 1998 that are justified between the
year that the Cantoria was created until the year that happens to be accepted like the celebration of
the city. Oral narratives are the main sources for understanding the tensions inside and outside the
party.

Key words: Party; Memory; Present Time.

Introdução

São Gabriel, palco da festa que examinamos, faz parte da microrregião de Irecê, localizada
na Chapada Diamantina setentrional, no Nordeste da Bahia, a 480 km de Salvador. A região é
ligada à capital pela BA-052, inaugurada em 12 de janeiro de 1974 pelo governador da Bahia,
Antônio Carlos Magalhães.2 A estrada foi construída com o intuito de facilitar o transporte do feijão
– o “ouro” da região nesse período – e outros produtos cultivados em Irecê, para o resto do país. A
exportação de feijão foi, por muitas décadas, tão intensa que o itinerário ficou conhecido como

1
Mestranda em História no PPGH da Universidade Estadual de Feira de Santana. Bolsista Capes. E-mail:
larissagodinho.historia@gmail.com
2
Jornal Folha do Norte. Ano;74. Feira de Santana (Bahia) 12 de Janeiro de 1074. Num. 5476.

1221
“Estrada do Feijão”. A estrada teve um papel importante para a regionalização daquelas
redondezas.3
Além de uma infinidade de caminhões carregando o precioso grão, algumas empresas de
viação começaram a fazer o percurso entre Irecê e Salvador e vice versa, que facilitou, em alguma
medida, o deslocamento de estudantes e outros grupos,4 que fez com que aumentasse o fluxo de ida
e vinda das pessoas, que consequentemente, traziam tendências e informações marcantes nos
grandes centros.
Em São Gabriel, atuaram entre os anos de 1979 e 1988 dois grupos de jovens, o Movimento
de Arte e Cultura (MAC) e os Jovens Unidos à Procura da Paz (JUPP), permeados pela atmosfera
da Ditadura Civil-Militar e o processo de redemocratização. Foram grupos que deixaram influências
políticas e culturais na cidade. Antônio Freire, popularmente conhecido como Netão, considerado
um dos mentores do MAC, era um desses jovens que estudava na capital e por muitas vezes, fez o
itinerário São Gabriel-Salvador. Para os entrevistados ele foi um importante personagem nesse
processo de intermediação de tendências para muitos jovens da vila nos fins dos anos de 1970 e
década de 1980.5
Os entrevistados – integrantes dos grupos – acreditam que estes grupos foram de
fundamental importância para o desenvolvimento das questões culturais e, também, política na
cidade, pois, suas ações iam desde a realização de rodas com músicas, até a participação em
reuniões em busca de melhorias para a localidade, sempre criticando atuações de descaso dos
grupos políticos que exerciam o poder em São Gabriel. O MAC durou menos de um ano, de
meados de 1979 a 1980, mas o JUPP conseguiu seguir de 1980 a 1988, talvez por ser ligado a igreja
tivesse maior aceitação pela comunidade.
O MAC e o JUPP se constituíram a partir de algumas características diferentes, mas com
alguns pontos em comum, como o desejo de promover eventos e atividades culturais na cidade e o
envolvimento com questões políticas e sociais. Ambos tiveram contato com as ideias defendidas
pelo pároco ligado a Teologia da Libertação, Pier Luigi Ghirelli, que atuou como um importante
apoio aos jovens. Portanto, a atuação dos membros desses grupos foi importante influência para a
participação de outras pessoas. Desse modo, alguns membros do MAC do JUPP junto a outros
jovens, partindo de ideais comuns, se articularam na formação de um novo grupo em 1990, o

3
REIS, Alécio Gama dos. “O que farpa o boi farpa o homem: das memórias campo dos vaqueiros do sertão de Irecê
(1943 – 1985)”. 2012. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Feira de Santana, 2012. p. 198.
4
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo. [mar.2013]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa
histórica.
5
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo. [mar.2013]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa
histórica.

1222
Culturarte, que criou a festa Cantoria, tendo sua primeira edição em 1991, que gerou um serie de
conflitos e por alguns anos não foi frequentada por muitas pessoas da população, mas em meados
da década de 1990 ela passou a mudar de caráter e a se transformar na festa da cidade. A partir daí
que demarcamos nosso recorte, de 1991, ano da primeira edição da festa, até 1998, ano no qual a
festa começou a se difundir na sociedade.
A história da construção da Cantoria em São Gabriel e as constantes tensões em seu
processo de formação materializam a necessidade de uma investigação mais profunda sobre as
relações sociais que a festa propicia. Para investigar a Cantoria e a dinâmica da sociedade
gabrielense em 1990, utilizamos como principais fontes as narrativas orais. A História Oral
enquanto metodologia será o condutor principal para os caminhos que buscamos percorrer.
As entrevistas dos membros da Fundação Culturarte e de habitantes de São Gabriel que
acompanharam o surgimento e desenvolvimento da Cantoria, entrevistas de artistas locais, políticos
que atuaram na época e alguns turistas que frequentaram a festa nos anos analisados serão de
fundamental importância para o desenvolvimento da pesquisa.
As memórias dos sujeitos que experimentaram a Cantoria na década de 1990, são como luzes
para esta pesquisa. Luzes que, a partir de seus relatos orais, clarearam e ainda clarearão aquele
passado. Cada uma dessas luzes foi e será posta em um lugar estudado e calculado para que o seu
reflexo ilumine da melhor forma as gentes, a folia, a alegria, os conflitos e as disputas em São
Gabriel em 1990. Nesse sentindo, para pensarmos essas memórias nos apoiamos em autores como
Michael Pollak, Antonio Torres Montenegro, Maria Janotti e Alistair Thonson.
Além das entrevistas, utilizamos outras fontes como atas, fotografias, Jornal da Fundação
Culturarte, poemas, cordéis e livros de memórias. O cruzamento de fontes nos ajudou e nos ajudará
na tentativa de montar o contexto no qual a Cantoria se inseriu, para nos aproximarmos com mais
precisão dos fatos que investigamos.

A festa: a Cantoria, o Culturarte e os conflitos

São Gabriel, 1991, em uma roda de amigos, tocava-se as violas, cujas músicas preferidas
eram as que cantavam o sertão. Uma mistura de nota musical com poesia. Mas, também, tocavam-
se diversas canções da música popular brasileira e do rock internacional. Herança advinda dos,
agora veteranos, que em décadas passadas disseminaram na vila/cidade ritmos, canções e ideias.
Entre uma música e outra, um dedo de prosa, junto às experiências dos ex-membros do MAC e do
JUPP e o entusiasmo pela transformação, surgiu a ideia de criar um movimento cultural em São
Gabriel. A prosa surgiu logo após chegarem da Semana de Arte do Uibaí, pois, segundo os

1223
entrevistados, com o fim do MAC e do JUPP, as atividades culturais estavam paradas em São
Gabriel e, o evento mais próximo o qual eles se identificavam era, justamente, a Semana de Artes.
Uibaí é uma cidade que, também, faz parte da micro-região de Irecê e está localizada a 64 km de
São Gabriel. Um dos entrevistados, João Purcino afirma que:
Toinho-vice, Itamá, Erismá, Antônio Galego, Netão, esse pessoal, que foi pra uma
Semana de Artes no Uibaí, que a Semana de Arte no Uibaí fazia na semana santa,
quinta-feira santa, sexta-feira. Fazia o evento cultural, ai participaram de um evento
cultural na semana de arte do Uibaí. [...] ai eles falaram: vamos fazer um evento em
São Gabriel? Vamos fazer....ai pronto.6

A Semana de Arte do Uibaí possui certa tradição na região. É considerada um dos primeiros
eventos culturais, que buscou valorizar elementos característicos daquele sertão, estilos musicais e
artísticos parecidos com os que os jovens de São Gabriel contemplavam, a exemplo de, Elomar,
Xangaí etc., o que os motivavam a irem sempre que pudessem ao evento. Os entrevistados
acreditam que a Semana de Artes do Uibaí foi o lampejo, para que eles decidissem trazer
novamente para São Gabriel ações culturais, assim como já tinham feito o MAC e o JUPP.
Influências culturais eles já possuíam e, também, contavam com o apoio das experiências dos
veteranos e com na Semana de Artes surgiu ideias do que fazer e como fazer. Surgiu o grupo e
numa votação de possíveis nomes, foi escolhido, Culturarte.7
Depois daquela roda de prosa, viola e cantorias, começaram a se organizar. Welington
Oliveira teria questionado: “Toinho você que já está ai há muito tempo no meio dos movimentos,
reivindicando melhorias, vamos fazer uma festa?”8. E daquela roda de amigos, várias ideias foram
florescendo até materializarem o evento. Segundo Welington Oliveira, membro do Culturarte,
Então, assim, a gente teve um período que a gente estava em uma situação crítica
em São Gabriel em relação a lazer. E a gente questionava, por quê? Na época a
gente pensava assim... Barra do Mendes tem o carnaval, Lapão tem um carnaval, o
Uibaí tem o São João de tradição, Jussara e Central tem a festa da cidade, Irecê
teve um período que fazia a semana de artes e São Gabriel não tinha nada. Em
Xique-Xique tinha carnaval e São Gabriel não tinha. Então, Gabriel ficou sem
referência assim, em relação a um evento. Então, assim, foi pensando mais em uma
perspectiva de ter opção de lazer.9

Diante da narrativa acima, o que motivava o surgimento de um grupo foi a busca de criar um
evento. A partir da fala de Welington Oliveira podemos perceber que, assim como o MAC e o
JUPP, os jovens que formavam o Culturarte estavam conectados com influências externas. Para

6
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira :[mar.2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos.
Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
7
FILHO, Valdelicio Barreto Vaz. Valdelicio Barreto Vaz Filho: [Dez.2016]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins
dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2016. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
8
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva:[jul.2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
9
SANTOS, Welington Oliveira. Wellington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.

1224
além das influências internas já existentes, eles dialogaram com ideais de fora que foram
importantes estímulos, também, para a criação do Culturarte e da Cantoria.
O grupo tinha em média quinze pessoas, com faixa de idade entre vinte a trinta anos. Além
dos jovens da década de 1990, o grupo contava com a participação de veteranos.10 Faziam parte do
Grupo, Itamá Rocha, Aimá Rocha, Antônio Carlos (Tonho Galego) Antônio (Tonho-Vice) Antônio
Freire (Netão de Olívio), David Farias (Davi de Anselmo), Luiz Sergio (Lula), Welington Oliveira,
Zé das Virgens, Solange, Réges Abreu, Ariovaldo (Ló), João Purcino, Agnolia de Oliveira Rocha,
Valdelicio Barreto Vaz. A maior parte dos membros eram homens, contando com a presença de
apenas duas mulheres. Na época, a maioria absoluta tinha o segundo grau completo, variando entre
magistério, contabilidade e técnico agrícola.11
A Cantoria foi criada em 1991 pelo o Grupo Culturarte que, posteriormente, tornou-se
Fundação Culturarte. A festa se apresentava para o grupo como uma opção de lazer, em que
pudessem socializar os seus gostos musicais e artísticos em geral.12 Uma tentativa de proporcionar
aos habitantes acesso a um evento de estilo musical diferente dos quais estavam sendo impostos
pela massificação midiática, dar espaço aos artistas locais e, também, um espaço para dialogar e
expressar idéias e posicionamentos através da arte.
Marcava no calendário, 20 de abril de 1991, na pequena cidade do sertão da Bahia, e algo
“novo” acontecia. Era uma prosa só. Na venda, na bodega, nas calçadas, onde tinha duas ou mais
pessoas todos comentavam sobre uma Cantoria que iria acontecer. Na praça principal, a Minervino
José Vaz, o reboque do caminhão de “Loro papagaio” já estava a postos. O cartaz com a
programação já havia sido distribuído, o som testado e a decoração acabada. Foram utilizadas
palhas secas, compradas na mão de seu Nicolino, para a construção da barraca. O dinheiro era
pouco, mas não faltou criatividade. 13
Às quinze horas, os jovens já circulavam na praça e a festa logo iniciou. Teve roda de
capoeira, teatro e dança. À noitinha, os cantores começaram a se apresentar, a maioria com sua
viola, cantando as coisas do sertão. Seu Dimas, o poeta da Jurema, também aceitará participar do
evento da moçada. E para que os roqueiros não ficassem desanimados, o filho do poeta Dimas,
Carlos Simões, mas conhecido como Jacaré, trouxe aquele rock “pauleira” e abrilhantou ainda mais

10
SANTOS, Welington Oliveira. Wellington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
11
SANTOS, Welington Oliveira. Wellington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
12
SANTOS, Welington Oliveira. Wellington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
13
PEREIRA, João Purcino. João PurcinoPereira :[mar.2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos.
Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.

1225
o evento. Jacaré, de tão empolgado, quebrou o violão no “palco”, como era comum em um típico
show de rock in roll.14
Há quem diga que o reboque balançava muito, mas conseguiu suportar todas as
apresentações, pois não se tem notícias de que alguém tenha caindo de lá.15 Foram duas noites de
festa. Segundo os entrevistados, a platéia foi apenas um punhado de gente, porque havia
preconceito em relação aos jovens que queriam inovar com a criação da festa. 16 Mas mesmo com
pouco público, os jovens organizadores, se sentiram realizados e convictos que iriam continuar.
Dia vinte e dois, a festa já havia terminado, mas os falatórios se prolongaram. Por
coincidência, em uma das noites do evento, aconteceram dois assaltos na cidade e, como já se podia
imaginar, a culpa recaiu sobre os “festeiros desocupados”. Um cidadão chamado seu Bira, não
deixou de afirmar com convicção, “foi esse povo, esses “maconheiros” ai, que fizeram esse negócio
ai ôh, trouxeram o povo para rua para os ladrões roubar”. 17 Há uma contradição nos boatos de seu
Bira. Se só um punhado de gente foi à rua, é certo que o povo estava em suas casas, no máximo,
alguns curiosos, poderiam ter ficado nas portas de suas casas, para verificar o que a maioria
denominou de “baderna”. De qualquer modo, os jovens do Culturarte afirmam que nada tiveram a
ver com os roubos e seu Bira não teve provas para comprovar as acusações. Foi mais um, entre
tantos, que tentou desarticular a liberdade de se festejar.
Eis nas linhas a cima um breve resumo da primeira edição da Cantoria de São Gabriel
baseado nos relatos orais dos entrevistados. A narrativa em questão, gira em torno da festa Cantoria
entre os anos de (1991-1998). É uma festa “popular” que carrega em seu histórico tensões e
resistências no processo de surgimento que, caracterizou-se pela busca de aceitação por parte dos
habitantes da cidade e de luta pela sua continuidade. Nas últimas décadas, os estudos sobre as festas
têm as colocado como formas fundamentais de sociabilidade, mas, sobretudo, como lugar de
desenrolar de conflitos e tensões sociais. 18 Portanto, para além de pensar os anos de refrescos
proporcionados pelas algazarras da festa, esta pesquisa se interessa, também, pelas tensões e os
diversos aspectos sociais que se interligam ao evento, desde deputas políticas, tensões de classes e
os conflitos internos.

14
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
15
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva:[jul.2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2012. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
16
PEREIRA, João Purcino. João PurcinoPereira :[mar.2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos.
Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
17
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira :[mar.2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos.
Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
18
LEONEL, Guilherme Guimarães. Entre a cruz e os tambores: conflitos e tensões nas Festas do Reinado.. Belo
Horizonte, 2009.247f. : Il.

1226
A narrativa construída sobre as primeiras edições da Cantoria foi baseada, sobretudo, nas
narrativas orais, mas também nas atas da Fundação Culturarte. A partir do lembrar, mas também do
esquecer e do silenciar de mulheres e homens que constituíram a festa, que pudemos conhecer esse
passado. As memórias de quem construiu – com ideias, mãos e suor e que viveu a Cantoria – são
luzes utilizadas para iluminar o passado que buscamos enxergar. A fonte oral nos possibilitou ter
acesso as minúcias de um cotidiano de labuta, sonhos, conflitos e, também, algazarras.
A Cantoria rompeu, mais uma vez – por acreditarmos que o MAC e o JUPP, também,
tenham rompido – com uma normatividade que era imposta por uma classe política dominante na
cidade e pelo conservadorismo alimentado por parte da população. Por conta disso, o que já era de
“costume” na cidade, a festa foi, aos olhos da maioria, mal vista e criticada. Os maldizeres foram
muitos. Porém, não é de se estranhar que o grupo, muito provavelmente, tenha negociado e se
contido em alguns aspectos, mas eles também partiram para o enfrentamento,19 ao ponto em que,
mesmo com toda oposição contra a realização do evento, a festa aconteceu em 1991 e, também, nos
anos seguintes. Em vista disso, entendemos a festa além da suspensão do cotidiano, ela não foi mera
alegoria ou só algazarra. A Cantoria é uma representação do social, um lugar de encontro,
ressignificação, restabelecimento de valores, de laços afetivos entre as pessoas e, também, lugar de
conflitos e contradições.
As falas dos membros do Culturarte possuem, quase sempre, ao se referirem as ideias gerais
de construção do evento, uma sincronização. Elas se organizam e são transmitidas sob a atmosfera
de enfrentamentos com uma parcela da sociedade. Para eles, uma parcela opressora, que não
aceitava que o povo inovasse e se expressasse. Apontam, também, para conflitos e disputas entre
uma classe desfavorecida – membros do grupo e simpatizantes – contra o grupo dominante:
políticos, comerciantes e algumas pessoas que alimentavam um estranhamento em relação às
estéticas e estilos de vida das pessoas do Culturarte. Esses conflitos, nas falas dos entrevistados, se
manifestavam na falta de apoio financeiros dos políticos e comerciantes, a difamação da festa e dos
membros do grupo, como acusação de envolvimento com roubos, oportunismo para se promoverem
politicamente, forma de ganhar dinheiro e incentivo de uso de drogas.20
As tensões aparecem de forma mais acentuada nas falas no momento inicial de labuta pela
materialização da Cantoria. Assim, a memória da rejeição da festa nos anos iniciais, por parte da
população, pode ser entendida como uma memória consenso marcante entre os membros do grupo.
Percebemos que as memórias que eles alimentam e buscam transmitir, são de uma virada vitoriosa.

19
HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”. In: HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 238.
20
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.

1227
Partindo de uma festa que foi vista como uma baderna, para um grande evento que se tornou a festa
da cidade. Construir um evento com muita labuta e que se tornou um sucesso, em que, todos
quiseram e querem participar, significa para eles, uma vitória.
Em vista disso, questionamos de que forma os entrevistados experimentaram aquele passado
e de que forma eles transmitem suas experiência, escolhendo a maneira que querem ser lembrados.
Para pensarmos tais questões, não negligenciamos os conflitos das memórias e os possíveis
exageros. Pois, é muito provável que os entrevistados queiram construir memórias que os coloquem
em uma posição de destaque e uma narrativa em que sejam lembrados de forma gloriosa. Por isso, é
comum que uma narrativa de uma virada vitoriosa tenha sido construída, principalmente na
tentativa de registrar a história que viveram como acreditam que foi, ou até mesmo, como eles
acreditam que deve ser lembrada. Mas para além da preocupação por uma “verdade”, nos preocupa,
contar as verdades dos personagens entrevistado e questionando-as.
O ano de 1991 começou com muito trabalho coletivo e dedicação para os jovens do
Culturarte, que se uniram e labutaram para a materialização da tão sonhada festa. Era momento de
fazer tudo muito bem pensado para evitar qualquer “poda” por parte de grupos políticos e do
estranhamento da população. Para isso, era necessário buscar “dissociar” a militância partidária, dos
membros do grupo, da festa.21
[...] a gente estava assim com um pouco de receio por conta do que tinha
acontecido com o JUPP e com o MAC[...]aí tinha esse receio né?! A gente tinha
como base o MAC e o JUPP que foram perseguidos e a gente não queria ser
perseguido. Nada de ser ideológico. Tem até uma questão que fala da influência
política, mas o Cultutrarte nasce assim, de uma pluralidade incrível. Está questão
partidária, nos primeiros anos, a gente trabalhou muito bem para não deixar
influenciar a questão política. Porque a questão política já tinha influenciado muito
os grupos aqui em São Gabriel. Assim, os grupos passaram a ter uma conotação
pejorativa, por conta do posicionamento político das pessoas. Então, nós tentamos
montar um grupo que não tivesse esse vínculo ideológico e aí, foi por aí que nasceu
a Cantoria, a festa.22

Para os entrevistados, desde o início foi uma estratégia, não deixar a “má fama” de suas
andanças de lutas, “prejudicarem” o projeto que iria ser posto em prática. A fala de Welington
Oliveira sobre a tentativa de desassociar o evento que organizavam dos seus posicionamentos
políticos, também apareceu nas narrativas dos demais membros do grupo. Para os entrevistados,
existiu uma preocupação em transmitir para a população uma “boa” imagem do grupo. Numa
tentativa de mostrar que o Culturarte não era partidário e o evento não seria construído para se

21
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
22
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.

1228
tornar palco de discursos eleitorais. Eles construíram uma narrativa coletiva que parte de uma
memória que o Culturarte e a Cantoria foram coisas separadas de suas militâncias.
Ao pensarmos essas falas, entendemos que a militância, fazia parte da identidade desses
sujeitos. E é possível que os sujeitos de hoje, queiram silenciar, talvez, de forma consciente, suas
militâncias em relação à festa, na tentativa de responder aos falatórios que existiram na cidade em
relação ao grupo, de que eram envolvidos com grupos políticos de esquerda e que a festa era
organizada por maconheiros, também, de esquerda. Há na maioria das falas uma preocupação em
afirmar que o grupo Culturarte não levantou bandeiras de partidos, ou usaram o palco para
promover candidatos etc. Os entrevistados, em suas narrativas, tentaram esclarecer que o Culturarte
em si, não se posicionou em nenhum ano da década de 1990 a favor de um partido, ou apoiou
candidatura de nenhum sujeito. Mas, sim, os sujeitos que formavam o grupo, pois tinham seus
posicionamentos políticos abertamente e que por conta disso gerou falatórios e conflitos.
Para os membros do grupo, eles não se posicionaram em relação a partidos na festa, mas é
possível notar que em alguns momentos por mais que eles tenham buscado “sair” da militância
durante a festa, foi detectável alguns elementos de suas ideologias no processo de construção do
evento. As ações dos jovens do Culturarte e os elementos que foram pensados para constituir a
festa, disseram muito sobre o que eles defendiam e acreditavam. A população entendeu aquele
evento com inclinações as esquerdas, a rebeldia e desordem. E principalmente porque a maioria dos
membros do grupo já militava em partidos como o Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido
Comunista do Brasil (PC do B).
Acreditamos que todas as ações dos sujeitos são políticas e ideológicas, incluído a
organização de uma festa. Desde as influências do MAC e JUPP, as músicas que escolheram para
serem os ritmos da festa, a decoração que usaram e, também, as roupas que vestiam, representavam
posicionamentos que o grupo defendia. Isso ficou visível em trechos das narrativas dos
entrevistados e em fotografias da festa, como por exemplo, elementos da decoração da barraca,
como as fotos de Che Guevara, as reuniões para decidirem se iriam aceitar ou não patrocínio de
determinado político, por conta da ideologia política que ele seguia, ou mesmo os casos de
discursos de protesto de cantores que subiram no palco da Cantoria.
Logo na primeira Cantoria, em cima daquele reboque, a festa tornou-se espaço de críticas
aos grupos políticos da cidade. Um dos cantadores contratado, Cal Alves, transmitiu no “palco” da
Cantoria um desabafo em questão ao abandono e abuso de poder de grupos políticos da cidade, que
por décadas perseguiam os jovens que buscavam inovar. A fala de Cal Alves, que não era de São

1229
Gabriel, era a reprodução das falas dos membros do grupo, que silenciaram em nome da aceitação e
continuidade. 23 Segundo o cantador,
a gente era perseguido não pelo fato de fazer parte da Fundação Culturarte, mas
fora da Fundação, a gente era militante, militante político e aí a gente fazia muita
zuada. Então, existiu perseguição e é essa coisa, quem é contra é tipo bandido,
bandido assim, maconheiro, por exemplo, mas não porque fazia parte da Fundação,
mas por conta da nossa trajetória anterior, porque a maioria dos que faziam parte
da Fundação eram militantes de oposição.24

Para Welington Oliveira, o grupo foi perseguido por conta da militância política dos
membros, pois ser militante de esquerda em São Gabriel estava diretamente associado a uma
imagem negativa. E mesmo com todos os cuidados que tiveram para não serem marginalizados
como os grupos anteriores, não tiveram sucesso, pois também circulou na cidade uma má impressão
sobre grupo. Repare na fala de Welington, que faz questão de frisar que a perseguição não era em
relação a Fundação, o que mostra a preocupação que os entrevistados têm hoje, de construir uma
imagem positiva da Fundação Culturarte, que provavelmente, em alguns momentos foi contestada
ou julgada.
Para a materialização da festa, o trabalho coletivo desenvolvido pelos jovens do Culturarte
ia desde a arrecadação de fundos para a elaboração do cartaz, os contatos com os músicos,
organização das bebidas e comidas, as coleta de estaca de pau na roça para montar a barraca, a
compra de palhas etc. 25 Eles procuraram vários meios de arrecadar fundos, pois segundo os
entrevistados, eles não tinham dinheiro e sem ele sabiam que nada se realizaria.
Um cartaz foi elaborado trazendo a programação do evento, foi impresso e colado pela
cidade. Nele os jovens divulgavam os dois dias de festa, entre 20 e 21 de abril de 1991. O Cartaz
trazia a programação, que anunciava as atrações a partir das 15 horas com exibição de vídeos,
apresentação de dança e teatro, roda de capoeira e show de cantadores, no turno da noite. Nessa
primeira edição, a Cantoria contou com a presença de seu Dimas Pereira – o poeta da Jurema (em
memória), já estava adoentado e fragilizado, vindo a falecer nesse mesmo ano. Contou, também,
com a participação de Dinho Oliveira, Geronias, Jerônimo e Jacaré e alguns membros do Culturarte
como Ariovaldo Santos (Ló), Valdelicio Barreto e Antônio Carlos (Toinho Galego).26

23
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
24
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: [jan.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. Bahia: São Gabriel, 2017. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
25
FILHO, Valdelicio Barreto Vaz. Valdelicio Barreto Vaz Filho: [Dez.2016]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins
dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2016. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
26
Cartaz da primeira cantoria de São Gabriel de 1991. Retirado do acervo de fotografias da Fundação Culturarte.
Acesso em 10/08/2014.

1230
Cartaz da primeira cantoria de São Gabriel de 1991. Retirado do acervo de fotografias da Fundação Culturarte.

O cartaz foi elaborado pelos membros do Culturarte e impresso com apoio dos
patrocinadores. Podemos perceber, no cartaz, que eles anunciam em letras destacadas apenas o dia
21 de abril, mas logo abaixo segue uma programação desde o dia 20 que anuncia além dos shows,
uma diversidade de manifestações artísticas. As programações começaram com as apresentações de
dança, teatro, capoeira e filme, nos dois dias à tarde e início da noite e durante o restante das noites
dos dois dias, foram os momentos dos shows musicais.
O vídeo apresentado no primeiro dia de Cantoria foi o filme baseado nos poemas de João
Cabral de Melo Neto “Morte e vida Severina”, dirigido por Zelito Viana e lançado em 1977 27, que
narra a história de um sertanejo retirante que parte ao litoral para fugir da fome, miséria e opressão.
Já a peça teatral foi uma peça montada e apresentada em homenagem ao índio. 28 Os shows
musicais, como traz o cartaz, foram compostos em maioria pelos próprios componentes do
Culturarte. Além da programação, o cartaz trouxe, também, os nomes dos seus patrocinadores.
Colocaram estampado todos os patrocinadores, o que ocupou a maior parte do cartaz. Nos
patrocinadores, encontramos comércios de Irecê e, apenas alguns de São Gabriel. Encontramos,
também, nomes de pessoas físicas e a prefeitura municipal, que nos faz questionar o porquê do
prefeito ajudar o grupo mesmo com divergências políticas e com criticas em relação as suas
posturas.
Em 1993, o grupo se tornou Fundação Culturarte. A ideia partiu da tentativa de conseguir
recursos governamentais, já que nos primeiros anos da década de 1990 foram criadas e reelaboradas
as leis de incentivo a cultura que, para o grupo seria uma oportunidade de ampliar a festa, já que os
recursos municipais, as doações e os lucros de pequenos eventos realizados por eles, não somava
27
Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-242121/ . Acesso em: 01/08/2017.
28
Ata da assembleia geral extraordinária da Fundação Culturarte . Realizada em 05/04/ 1993 no Salão Comunitário -
Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte. Acesso em 12/09/2012.

1231
uma quantia considerável. A ideia de se tornar em uma instituição filantrópica sem fins lucrativos se
deu, também, como forma de criarem respaldo perante a sociedade gabrielense. Desse modo, aos
vinte nove dias do mês de novembro do ano de 1992, no salão comunitário, na praça nova Matriz
em São Gabriel-Ba, reuniram-se os membros do grupo Culturarte e lavraram uma ata com o
objetivo de construírem uma Fundação, sob a forma de sociedade civil e sem fins lucrativos.29

Conclusão:
A festa, a partir de 1995, passou a ser frequentada cada vez mais por pessoas da sociedade, o
que foi possível perceber ao analisar algumas fotografias do evento. Passou, igualmente, a receber
ano a ano mais apoio dos comércios e de alguns políticos. Os cartazes da sexta, sétima e oitava
edição trazem o local da festa não mais como praça pública, mas como “praça da Cantoria”.
Cantores com reconhecimento nacional passaram a fazer parte da programação, como Zé Geraldo,
Elomar, Xangaí, Dércio Marques, Edigar Mão Branca. Assim, percebemos que a festa começou a se
difundir e a se transformar, a partir daí, na festa da cidade.
A presente pesquisa se encontra ainda em andamento, por isso, realizaremos entrevistas com
outros sujeitos que não atuaram no grupo Culturarte como políticos da época e outros jovens, para
percebermos como as outras pessoas se lembram dos primeiros anos da Cantoria e qual impacto a
festa teve para elas. O trabalho que já foi feito até o momento, busca responder inquietação como:
por que a festa causou incomodo e gerou conflitos na cidade de São Gabriel? Como ela passou de
mal vista para a festa da cidade? E quais fatores contribuíram para a virada da festa?

Fontes:
Entrevistas: Entrevista com João Purcino Pereira, 55 anos, agente de saúde pública, e memorialista
de São Gabriel, realizada em 15/03/2013 em São Gabriel-Ba. Duração de 86 minutos.
Entrevista com Antônio Carlos Rodrigues da Silva, popular Toinho galego, trabalha como
balconista de farmácia, é casado e tem 51 anos. 02/07/2012, em São Gabriel-Ba. Duração de 68
minutos.
Entrevista com Antônio Régie Evaristo de Figueiredo, 41 anos, técnico Agrícola, trabalha
atualmente como bibliotecário, realizada no dia 16/08/2013, em São Gabriel-Ba. Duração de 55
minutos.
Entrevista com Marcio Gonçalves de Araújo, 38 anos. Técnico Agrícola, mas desempenha funções
de agente de saúde. Realizada no dia 26/01/2012, em São Gabriel-Ba. Duração de 45 minutos.
Entrevista com Itamá Glicério Rocha, 51 anos. Agente Federal de Saúde. Realizada no dia
13/05/2017, em São Gabriel-Ba. Duração de 17 minutos e 37 segundos.
Entrevista com Aimá Glicério Rocha, 50 anos. Professor. Realizada no dia 12/05/2017, em São
Gabriel-Ba. Duração de 31 minutos e 41 segundos.

29
Ata de assembleia geral de construção da Fundação Culturarte. Realizada em 29/11/1992 no Salão Comunitário -
Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.

1232
Entrevista com Wellington Oliveira Santos, 48 anos. Professor. É o atual presidente da Fundação
Culturarte. Realizada no dia 11/01/2017, em São Gabriel-Ba. Duração de 1 hora e 3 minutos e 46
segundos.
Entrevista com Maria de Fátima Oliveira Abreu, 52 anos. Professora. Realizada no dia 21/12/2016,
em São Gabriel-Ba. Duração de 32 minutos e 30 segundos.
Entrevista com Valdelicio Barreto Vaz Filho, 52 anos. Agricultor. Realizada no dia 23/12/2016, em
São Gabriel-Ba. Duração de 51 minutos e 51 segundos.
Entrevista com Agnolia de Oliveira Rocha, 53 anos. Professora. Realizada no dia 22/12/2016, em
São Gabriel-Ba. Duração de 37 minutos e 05 segundos.
Entrevista com Luiz Sérgio Batista Neiva, 47 anos. Comerciante. Realizada no dia 04/01/2017, em
São Gabriel-Ba. Duração de 20 minutos e 15 segundos.
Entrevista com Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli, 75 anos. Padre. Realizada em 12/01/ 2017.
Itália/Brasil;Feira de Santana, 2017. Entrevista concedida via Correio eletrônico.

Atas – Acervo Fundação Culturarte: Ata de assembleia geral de construção da Fundação


CulturArte. Sessão de 29/11/1992. Realizada no Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São
Gabriel-Ba.
Ata de posse dos cargos de direção da Fundação Culturarate. Sessão de 07/01/1993. Realizada no
Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba.
Ata de avaliação da I e II Cantoria, e organização da III Edição. Sessão de 05/04/1993. Realizada no
Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba.

Fotografias - Acervo Fundação Culturarte:Foto do grupo Barros cantando no palco da 2ª Edição,


1992. Retirada do acervo da Fundação Culturarte.
Foto do palco da e faixa com nome dos patrocinadores do evento, 6ª Edição, 1996. Retirada do
acervo da Fundação Culturarte.
Foto do publico da cantoria na 7ª Edição, 1997. Retirada do acervo da Fundação Culturarte.

Cartazes: Cartaz da I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII cantoria de São Gabriel de 1991. Retirado do
acervo de fotografias da Fundação Culturarte. Acesso em 10/08/2014.

Texto memorialístico: PEREIRA, João Purcino; PEREIRA, Leonellia. Terra dos arcanjos.
Historiografia da cidade de São Gabriel- Ba. 1ª edição: Print Fox, 2010.
MACHADO, Cecília. São Gabriel, memórias e lembranças. São Gabriel. Editora Print Fox.
Mai/2014

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1234
DJANGO LIVRE : UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA
ESCRAVIDÃO NO SUL DOS ESTADOS UNIDOS

Leila Cristina Gibin Coutinho1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo pensar como a escravidão no Sul dos Estados
Unidos é representada no longa-metragem Django Livre (Django Unchained, Quentin Tarantino,
2012). A obra do gênero spaghetti western conta a história de Django Freeman (Jamie Foxx), a
busca pela liberdade de sua esposa Brunhilde Von Shaft (Kerry Washington) do jugo de seu
comprador e sua vingança sobre a família Candie. Através da narrativa fílmica de Tarantino,
podemos observar diversas formas de escravidão, as variadas funções desempenhas pelos escravos
e as hierarquias dentro de uma sociedade escravocrata e racista. Nesse sentido, buscamos trazer à
tona a leitura feita da escravidão, considerando o período de produção do filme, assim como o
contexto histórico que retrata (1858) e o olhar de seu diretor/roteirista.

Palavras-chave: Quentin Tarantino; escravidão; Django Livre.

Abstract: This work it has pretension to think how the slavery in South of United States is
represented on the feature film Django Unchained (Quentin Tarantino, 2012). Movie of genre
spaghetti western tell the Django Freeman (Jamie Foxx) story that is looking for to release his wife
Brunhilde Von Shaft (Kerry Washington) from of the buyer's yoke and his revenge about Candie’s
family. Through the film narrative of Tarantino, we may observe many kinds of slavery, divers
works performed by slaves and the hierarchies within a racist and slave society. In this meaning, we
pretend make a reading of the slavery, considering the period of film production, his history context
(1858) and intension of his director/screenwriter.

Key words: Quentin Tarantino; slavery; Django Unchained.

Pensar um filme de Quentin Tarantino se mostra sempre um grande desafio. Django Livre
(Django Unchained, 2012) é o segundo filme histórico do diretor - posterior a Bastardos Inglórios2
lançado em 2009 – que acompanha a longa saga (de quase três horas) de Django Freeman
(interpretado por Jamie Foxx). Um ex-escravo que ganhou a liberdade com a ajuda do alemão King
Schultz (Christoph Waltz), com quem trabalha como caça prêmios e encara a jornada de libertação
de sua esposa Brunhilde Von Shaft (Kerry Washington) escrava numa fazenda de algodão no
Mississipi pertencente a Calvin J. Candie (Leonardo DiCaprio).

1
Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: leilgibin@hotmail.com
2
BASTARDOS Inglórios. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Universal Pictures, 2009. 1 vídeo (153 min).

1235
O longa-metragem é uma obra riquíssima em detalhes, nada está lá por acaso, é repleta de
referências a cultura pop estadunidense, além de múltiplas leituras sobre a escravidão. Dessa forma,
torna-se difícil a escolha de poucas cenas a serem analisadas. Dito isto, devemos ressaltar que não
há pretensão de realização de uma análise integral do filme e sim fazer explanações pontuais de
aspectos mais gerais, selecionando apenas algumas cenas ou sequências específicas que
consideramos fundamentais para o entendimento do pensamento acerca da escravidão que nos é
apresentado. Correndo o risco de deixar preciosas cenas de fora, assim, desejamos dar uma pequena
e singela contribuição para a temática.

Para trabalharmos com análise fílmica, devemos considerar o seu caráter de fonte, mas como
ocorre com outros documentos, é necessário que tomemos os devidos cuidados em sua leitura.
Devemos ter em mente que o filme não é uma representação da realidade, mas sim uma perspectiva
pautada principalmente sobre a visão de um diretor (e seus colaboradores) sobre determinado
assunto. Para uma análise mais aprofundada consideramos não apenas as imagens apresentadas e a
narrativa, mas também pensamos o contexto de produção, a trilha sonora, os diálogos, a fotografia
etc.3 Somando-as às considerações de Marc Ferro sobre história e cinema, ele afirma que devemos
buscar aquilo que não está visível no filme, precisamos, portanto:

(...) analisar no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do


filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime
de governo. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas
também da realidade que ela representa.4
A partir desses pressupostos desenvolveremos uma análise sobre Django Livre. O filme é
uma grande produção sob a direção e roteiro de Tarantino, a obra carrega a assinatura e
características de seu diretor seja na fotografia, na trilha sonora marcante (com direito a hip hop,
soul music e outros), como cenas de violência, a tematização da vingança, ou ainda por suas várias
referências a outras produções. O longa é também uma homenagem ao spaghetti western Django5
(Sergio Corbucci, 1966). E conta com a participação de um elenco renomado com atores como
Leonardo DiCaprio, Samuel L. Jackson, Kerry Washington, Christoph Waltz e Jamie Foxx. O

3
LIMA, Sandra Mara Moraes. “Django Livre - O clichê e o inusitado - Uma reflexão acerca do conteúdo, do material e
da forma”. In: II Encontro de Estudos Bakhtinianos, 2013, Vitória. II Encontro de Estudos Bakhtinianos. Vitória, 2013,
p. 2.
4
FERRO, Marc. “O filme, uma contra-análise da sociedade?” In: Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
p. 79-115. Disponível em: <http://www.anpuh-sc.org.br/ferro1_cinema_historia.pdf>. Acessado em 24 set. 2017,
passim.
5
O protagonista Franco Nero também atua em Django Livre como Amerigo Vessepi. Mais informações sobre Django
disponíveis em: <http://www.imdb.com/title/tt0060315/>. Acessado em 08 out. 2017.

1236
trabalho rendeu a Christoph Waltz o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante6 enquanto o próprio
Tarantino recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Original e além de indicações em categorias como:
Melhor Filme, Melhor Edição de Som e Melhor Fotografia. Tarantino e Waltz também receberam
Globo de Ouro e BAFTA (British Academy of Film and Television Arts) nas mesmas categorias que
venceram o Oscar.7

Tarantino vem se destacando como diretor versátil, trabalha em vários cargos: de roteirista a
diretor. Em Django Livre, ele exerce cargo de diretor, roteirista e ator (interpreta um dos
empregados da LeQuint Dickey Mining Company). Como já citado, se trata do segundo filme
histórico do diretor, uma adaptação da história americana. Entra na lista dos poucos filmes
estadunidenses que retrataram a escravidão no país, a exemplo de 12 anos de escravidão8 (direção
de Steve McQueen, lançando em 2013) e da série Raízes9 (primeira versão lançada em 1977 e a
segunda em 2016).

Dessa forma, o diretor busca tratar de uma ferida ainda não cicatrizada – a escravidão - uma
questão mal resolvida que marca a sociedade estadunidense, seja no século XX com a segregação
racial e com o fortalecimento de grupos racistas10 como a Ku Klux Klan (KKK) que pregam a
superioridade ariana, como no século XXI com o recentemente protesto racista realizado em
Charlottesville na Vigília pela extrema direita e pelos neonazistas.11 Em Django Livre percebemos
que o principal objetivo de Tarantino não é apenas contar uma história ou entreter o público, mas
demonstrar o quão cruel e brutal a sociedade escravocrata foi e assim causar incomodo e uma
reflexão acerca do presente.

Nem por suas “boas” intenções o filme escapou de críticas negativas, polêmicas e de
acusações de racismo. A começar com a escalação do ator Will Smith para papel do protagonista,
mas Will se desligou da produção poucos meses antes do início das filmagens, em justificativa
afirmou que saiu devido a uma discordância em relação ao roteiro criativo, que levou o filme a se

6
O ator recebeu Oscar na mesma categoria pelo papel do nazista Hans Landa em Bastardos Inglórios (2009) marcando
sua primeira parceria com Tarantino. Disponível em: <https://omelete.uol.com.br/filmes/artigo/vencedores-do-oscar-
2010/>. Acessado em 08 out. 2017.
7
DJANGO Livre (2012). Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt1853728/>. Acessado em 08 out. 2017.
8
12 Anos de Escravidão. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt2024544/>. Acessado em 08 out. 2017.
9
CASTRO, Natalia. Remake da série ‘Raízes’ estreia no History com mais suspense e ação. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/remake-da-serie-raizes-estreia-no-history-com-mais-suspense-acao-
20285844>. Acessado em 08 out. 2017.
10
RAMOS, Marilia Patta. Racismo e segregação racial: uma comparação entre o Brasil e os Estados Unidos.
Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7083.pdf>. Acessado em 08 out. 2017.
11
SENRA, Ricardo. 'Sou nazista, sim': o protesto da extrema-direita dos EUA contra negros, imigrantes, gays e judeus.
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927>. Acessado em 08 out. 2017.

1237
tornar uma história de vingança e não uma história de amor como preferia o ator, daí a substituição
feita por Jamie Foxx. Nas palavras de Will Smith:

Queria muito fazer aquele filme, mas senti que a única maneira era fazê-lo uma
história de amor, não de vingança. Não podemos olhar para o que aconteceu em
Paris e não se preocupar na violência do mundo. Não consigo me ligar à violência
como resposta. Amor tem de ser a resposta12
Uma das críticas com maior repercussão é do cineasta Spike Lee, que nem ao menos quis
assistir ao filme por considerá-lo desrespeitoso com seus antepassados, principalmente por se tratar
de um filme do gênero faroeste. Em seu Twitter, ele afirmou que "A escravidão nos Estados Unidos
não foi um western spaghetti de Sergio Leone. Foi um holocausto. Meus ancestrais foram escravos,
roubados da África. Eu os honrarei."13

O filme é classificado como spaghetti western (uma versão italiana do gênero western,
chegando a ser uma espécie de reinvenção do mesmo). Em Django Livre vemos uma subversão de
papéis clássicos do gênero, dessa vez, o herói não é um homem branco e sim um negro liberto.14
Como reafirmam Pedro de Souza e Tiago Costa Pereira: “É usando o seu spaghetti western como
espaço enunciativo que Tarantino vai tornar audível e visível um jogo de forças que opera desde a
constituição da sociedade americana até os dias de hoje, o da questão racial. ”15 Assim o diretor faz
uma espécie de subversão ao utilizar um escravo como herói.16 Com o desenrolar do filme vemos a
transformação de Django de escravo assustado no herói confiante, dono de si mesmo.

O longa nos remete a história do Estados Unidos na segunda metade do século XIX e a
divisão entre o Norte livre e o Sul escravista. Assim a separação entre os dois polos acabou por criar
diferenças entre as duas regiões principalmente no que tangem aos valores sociais e a economia.
Essas divergências seriam um dos principais fatores que levariam o país a uma guerra civil entre as
duas regiões, apenas depois dela o país aboliu a escravidão em todo seu território.17 Comparando as
duas regiões podemos perceber que no Norte em locais como Nova York foram organizadas
sociedades anti-escravista, muitas vezes organizadas pelos próprios negros como no The Liberator

12
MARAFON, Renato. Will Smith revela porque dispensou ‘Django Livre’, de Tarantino. Disponível em:
<http://cinepop.com.br/will-smith-revela-porque-dispensou-django-livre-de-tarantino-107809>. Acessado em 08 out.
2017.
13
SPIKE Lee diz que 'Django Livre' é 'Desrespeitoso aos seus ancestrais'. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-
arte/cinema/noticia/2012/12/spike-lee-diz-que-django-livre-e-desrespeitoso-aos-seus-ancestrais.html>. Acessado em 08
out. 2017.
14
LIMA, Sandra Mara Moraes. Op. cit., p.2-3.
15
SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. “A resistência negra que não resiste à dublagem de/em Django
Unchained”. In: Cultura & Tradução. João Pessoa, v. 3, n. 1, 2014. p. 331-341. p. 2.
16
SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. Op. cit., passim.
17
IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano
antes da Secessão. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-
101X2003000100047>. Acessado em 08 out. 2017.

1238
Jornal (1830), já no Norte a escravidão permaneceu, assim como as plantations produtoras de
algodão e tabaco.18 Nosso filme se passa 1858 as portas da guerra de Secessão remontando o Sul
escravista.

A sequência de abertura é emblemática e característica de Tarantino, surgem letras garrafais


onde se lê o nome do diretor e dos principais atores. Logo, vemos as primeiras referências ao filme
Django, ouvimos a canção de mesmo nome escrita por Luiz Enrique Bacalov (soul music) enquanto
somos apresentados, em plano médio, as costas nuas e suadas de escravos marcadas por chicotadas,
caminhando acorrentados uns aos outros com o sol em suas costas. Numa paisagem árida típica de
western, por onde passam os comerciantes de escravos com suas mercadorias. Passamos a ouvir
também o som de chicotadas, mas não há chicote na cena (som off), deste modo, o espectador
percebe o primeiro aspecto do regime escravista, a violência. Outro ponto importante é a trilha
sonora utilizada que evoca gêneros musicais tipicamente afro-americanos, como jazz, blues e rap,
uma forma de Tarantino inserir o espectador no universo negro, indo de Tupac Shakur à James
Brown, trazendo a ideia de uma resistência negra nos Estados Unidos através da música atual, pelas
músicas sobre a resistência a escravidão ou acerca dos direitos civis.19

Django é comprado por Schultz, cujo o papel relevante deve ser observado mais
atentamente. O personagem alemão, logo de início, se entende um anti-escravista. Ele acaba
possibilitando a fuga dos escravos companheiros de Django e ainda lhes dá a possibilidade vingar-
se de seus proprietários. Schultz também faz uma importante diferenciação entre Norte e Sul
escravista, apontando primeira como uma região esclarecida do país. O personagem de Christoph
Waltz é uma espécie de redenção para os alemães, que aparecem como os grandes algozes dos
judeus em Bastardos Inglórios, com destaque para Waltz que interpreta o antissemita Coronel Hans
Landa também conhecido como caçador de judeus. Em Django Livre quem está em voga são os
próprios norte-americanos e não mais os alemães, trazendo à tona seu passado indigesto. Nesse
caso, o alemão faz o papel de esclarecido enquanto os americanos presentes no filme são todos
escravocratas e racistas, através da ironia desmonta-se a ideia dos alemães racistas.20

Schultz é também o libertador de Django, este acontecimento gerou muitas críticas ao longa,
já que muitos afirmam que a emancipação negra foi possível apenas com a ajuda de homem

18
KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 3. Ed., 5ª reimpressão. - São Paulo:
Contexto, 2017, p. 123-124.
19
SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. Op. cit., passim.
20
LIMA, Sandra Mara Moraes. Op. cit., p. 4.

1239
branco.21 O que não se repete ao longo do filme, como veremos mais adiante. Com o protagonista
liberto, surge uma espécie de amizade/parceria entre os dois personagens que trabalham como
caçadores de prêmios (matando e entregando os corpos de homens foragidos à justiça). Supomos
que, um dos objetivos de Tarantino em demonstrar a aliança entre um homem branco e um negro
seja evidenciar uma cooperação social entre os dois, direcionado ao público atual da sociedade
estadunidense diversas vezes divididas em núcleos de negros e brancos, numa sociedade ainda
racista.

Podemos dividir o filme em dois segmentos, o primeiro momento em que Django e Schultz
dividem a atenção do público enquanto as personalidades de seus personagens são construídas ao
mesmo tempo que são construídas as características da sociedade racista em torno deles. Como
exemplo, ouvimos quase a todo instante Django ser chamado de nigger22 de forma pejorativa, o
termo é usado 110 vezes ao longo do filme, o que gerou mais críticas devido a um uso excessivo,23
além do espanto geral – de escravos e livres – de ver um negro andando a cavalo. Importante
destacar a referência à Kun Klux Klan, quando um grupo de fazendeiros racistas tentam se vingar
da dupla utilizando sacos com furos nos olhos na cabeça, montados a cavalos e segurando tochas,
Luiz Bernardo Pericás entende a cena como anacrônica e fruto de um “desconhecimento histórico”
do diretor, já que a KKK não existia nesse período.24 Porém consideramos que o suposto
anacronismo não como um desconhecimento histórico, mas sim uma tentativa de ridicularização do
grupo racista. A sequência é demonstrada de forma cômica como um diálogo bem elaborado sobre
usar ou não usar o adereço, o bando acaba caindo numa emboscada do alemão, reforçando a ideia
de bobos atrapalhados.

Já no segundo segmento, fica evidente o protagonismo de Django e seu objetivo a ser


trilhado, o resgate de sua esposa Brunhilde. Descobrimos que o casal foi separado e castigado após
uma tentativa de fuga, logo, o espectador cria uma expectativa do reencontro do par. Nesse aspecto,
é interessante perceber como Tarantino conduz o olhar o espectador através do longa-metragem,
que é recheado de cenas violentas e banhado à sangue. O uso da violência é comum nos filmes de
Tarantino, a exemplo de Cães de Aluguel25 (1992), onde um policial tem sua orelha arrancada com
requintes de crueldade enquanto seu torturador Mr. Blonde (Michael Madsen) exibe uma dança.26.

21
PERICÁS, Luiz Bernardo. Django Livre. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2014/04/04/django-livre/>.
Acessado em 28 set. 2017, p. 5.
22
A tradução mais próxima em português é “crioulo”.
23
PERICÁS, Luiz Bernardo. Op. cit., p. 2.
24
Ibidem, p. 4.
25
CÃES de Aluguel. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Live America Inc. 1992. 1 vídeo (99 min),
widescreen, color.
26
SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. Op. cit., p. 13.

1240
Como de costume, a violência não poderia deixar de estar presente justamente quando se trata da
escravidão, conforme as afirmações de Tarantino, segundo ele, mesma toda aquela encenação de
violência não seria suficiente para demonstrar a brutalidade da escravidão, o que ele chama de
Auschwitz negra.27

Na produção tarantinesca, a violência ocorre com os escravos e também com os homens


brancos. No primeiro caso, a fotografia e a trilha sonora nos denotam ao espectador uma percepção
de horror em torno de toda violência física que é a escravidão, demonstrando em detalhes e closes o
sofrimento daqueles escravos. Em especial, num flash back que exibe Django e Hilde depois da
malsucedida tentativa de fuga, em que Django implora para que a esposa não fosse
marcada/castigada e padecemos junto com ela em cada chicotada recebida em suas costas, a cada
expressão de sofrimento reforçada por um close-up e por cada grito da personagem. Seu algoz é
implacável e impiedoso com seu chicote, enquanto ouvimos a música Freedom (Anthony Hamilton
& Elayna Boynton), que significa liberdade, que agora parece um sonho distante. Por outro lado,
nos sentimos aliviados e alguns casos, até vingados pelas mortes dos maus feitores homens brancos,
principalmente quando essas ocorrem pelas mãos dos próprios escravos, como na cena seguinte em
que Django se vinga assassinando o carrasco de sua esposa, que ironicamente usa páginas da bíblia
em suas vestes, mas é um homem sem compaixão e está prestes a castigar outra escrava, com sua
morte também nos sentimos aliviados pelo impedimento de uma nova agressão a escrava. No
momento da vingança, a trilha sonora muda denotando uma postura heroica do protagonista, câmera
mostra Django parado em plano aberto, já não é mais aquele escravo malvestido e subjugado, ele
atira e logo depois diz: “I like the way you die boy. ”28 A uma única exceção à regra, ocorre quando
Django mata um homem na frente de seu filho, após ser forçado por Schultz, colocando em cheque
a ética de Schultz questionada por seu próprio parceiro.

A procura por Hilde leva a dupla até Mississipi, vemos o nome do condado em letras
garrafais, por trás delas podemos perceber escravos caminhando, a câmera em plongée, ouvimos
também o barulho das correntes sendo arrastadas, eles andam sobre a lama com dificuldade e
ouvindo as ordens de capataz e alguns escravos usam máscaras de ferro. Há nessa cena, a clara
intensão do diretor em marcar a região como um local de violência aos escravos. A dupla chega à
fazenda produtora de algodão, chamada de Candieland conhecida pelos maus tratos contra os
cativos. Em Mississipi, observamos um escravo ser brutalmente dilacerado por cães após uma

27
Ibidem. Passim.
28
“Gosto da maneira que você morre, rapaz” (tradução livre).

1241
tentativa de fuga, além de assistimos a dois mandingos29 brigando até a morte aos sons dos gritos
entusiasmado de monsieur Candie (Leonardo DiCaprio). A violência e o sangue exagerado,
característico das produções de Tarantino servem para causar incomodo ao espectador e demonstrar
a história violenta em que se constituíram os Estados Unidos.

No filme, podemos perceber a escravidão de forma complexa, desde a constituição de uma


família escrava - o que causa espanto em Schultz – as várias funções desempenhadas pelos mesmos:

Imagem 1. Imagem 2.

de escravos domésticos, escravos nas fazendas de algodão,


mandingos , escrava de favores etc. Além disso, a produção
mostra uma espécie de hierarquia entre os próprios escravos
marcada pela função desempenhada e também pela vestimenta
utilizada, os que trabalham nas terras e os mandingos utilizam
uma roupa mais simples, de tons amarronzados de tecidos

Imagem 3. Imagem 4.

simples (imagens 1 e 2) e enquanto os domésticos chegam a usar uniforme e tecidos mais finos
(imagem 3). A ornamentação é utilizada principalmente na presença de visitantes, a roupa usada
por Hilde quando esta estaria a prestar “favores” é semelhante à de uma sinhá, um grande vestido
rodado azul (imagem 4). Também podemos perceber as restrições para com os escravos ou negros
livres, que não poderiam frequentar determinados espaços como um saloon ou andar a cavalo.
Alguns escravos domésticos desenvolvem uma maior proximidade com o senhor, a exemplo de
Stephen personagem de Samuel El Jackson, que dá conselhos ao senhor.

29
Termo usado por Candie para assinalar escravos que são usados para lutar (mandingos fight – luta de mandingos),
que normalmente são fatais e sangrentas.

1242
É interessante observar os
comentários feitos por Django a cerca de
sua esposa, devido a tentativa de fuga
malsucedida, ela recebeu a marca nos
fugitivos no lado direito da face além das
já mencionadas chicotadas nas costas. As
marcas são determinantes para a função
desempenhada pela escrava, apensar da

beleza, as marcas a impedem de ser uma escrava doméstica, e seu porte físico não a torna hábil para
o serviço na plantação, então ela é obrigada a fazer “favores” de cunho sexual a mando de seu
senhor. A partir do trecho, percebemos que a função desempenhada pelo escravo depende de seu
sexo, habilidade e aparência.

Outro personagem interessante a ser observado é o fazendeiro e escravocrata Calvin Candie,


devemos lembrar que, nesse contexto, ter escravos denotava um status social ao seu dono.30
Portanto, percebemos a escravidão como um fator de status, ostentação de riqueza e poder, Candie
exibe Candieland para os dois visitantes – Django e Schultz - a fazenda repleta de escravos a seu
serviço. A demonstração de poder não vem apenas das ordens a que submete seus escravos, mas
também dos constantes castigos físicos podendo levar a morte. A morte de um escravo dilacerado
por cães não serve apenas como forma de exibição para os convidados, mas também como exemplo
do que pode ocorrer caso outro escravo tente fugir, mantendo um mecanismo de dominação,
reforçando a relação entre escravo e senhor e ao mesmo tempo demonstra a situação de
inferioridade desse escravo que implora ao senhor por sua vida.31

Brunhilde Von Shaft é a única personagem feminina que ganha destaque na produção, mas
seu papel tem poucas falas e sua personalidade é pouco desenvolvida. Assim, Pericás faz duras

30
KARNAL, Leandro. Op. cit., p. 24.
31
SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. Op. cit., p. 13.

1243
críticas e afirma que Brunhilde “(...) é inexistente em termos de personalidade. Subserviente, é
destituída de qualquer papel ativo na trama. Ela não dá a tônica da história, servindo quase como
um apêndice da mesma. ”32 Apesar de concordarmos em parte, visto que Brunhild é um personagem
deficiente, que serve apenas como motor para o desenvolvimento e o clímax da história,
descobrimos que ela tentou fugir sem a ajuda de Django, o que denota certa independência a
personagem. Mas no restante da narrativa, ela é passiva, usada apenas como um gatilho para as
vinganças de Django e para reforçar o sofrimento dele, ela perde atitude, sendo apenas alguém a ser
resgatada. Estranhamente, Tarantino coloca uma mulher escrava de forma passiva, diferente de suas
outras produções com mulheres fortes, autônomas como a personagem de Uma Thurman, Beatrix
Kiddo dos filmes Kill Bill Vol. I33 e II34 e Shosanna (interpretada por Dreyfus Mélanie Laurent) de
Bastardos Inglórios.

Uma das cenas que mais chamam atenção ao longo do filme é a exibição feita por Candie de
um crânio de antigo escravo que cuidou dos seus antepassados. Um escravo leal, ele questiona o
porquê de o escravo nunca ter se revoltado, tentando assassinar o seu senhor. A resposta é pautada
pelo racismo cientifico, Candie afirma - a partir da Frenologia - que todos os negros têm três linhas
ligadas a área do celebro associadas a servidão, assim assegura que os negros estão fadados
biologicamente a escravidão. É interessante pensar o teor científico em que o personagem justifica o
regime escravista, partindo de ideias associadas ao que hoje chamamos de racismo científico e uma
ciência da craniologia. Com base nessa última temos o médico Johann Friedrich Blumembach que
escreveu a obra A variedade nativa da raça humana ainda no século XVIII que buscava através da
análise de crânio criar uma distinção entre raças humanas, que ele dividiu em cinco grupos, a partir
disso, outros autores desenvolveram suas próprias teorias racialistas. Como Conde de Gobineau no
século XIX com o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas que denotava superioridade
racial, onde o homem branco caucasiano tinha um intelecto superior e a miscigenação como algo
extremamente prejudicial. Assim essas teorias foram usadas desde o século XVIII ao XX para
justificar desde a escravidão, o imperialismo e o antissemitismo.35

Mas as fugas: do mandingo, de Hilde. E a vingança e resgate realizado por Django sem
ajuda apresentam ao espectador, escravos em resistência ao regime, numa tentativa constante de sua
emancipação, de buscar a liberdade, o escravo é um agente ativo, mesmo nessas condições, acaba

32
PERICÁS, Luiz Bernardo. Op. cit., p. 5.
33
KILL Bill - Volume 1. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Miramax. 2003. 1 vídeo (111 min).
34
KILL Bill - Volume 2. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Miramax. 2004. 1 vídeo (136 min).
35
VILAR, Leandro. O racismo científico: da teoria à prática. Disponível em:
<http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2015/07/o-racismo-cientifico-da-teoria-pratica.html>. Acessado em 15
set. 2017.

1244
por rebater as afirmações de Candie pautadas pelo racismo científico. Outra forma de resistência é a
maneira falar, a dicção dos personagens negros (black english), sua entonação e ritmo de fala, não
importando apenas o que é falado, mas como se fala. Essa demarcação acaba se perdendo nas
dublagens.36

O clímax e a definição do filme ocorrem a partir da morte de Candie e Schultz e com o


aprisionamento de Django. Um dos piores pesadelos dos senhores de escravo aconteceu, um negro e
ex-escravo colocou em risco toda estrutura e estabilidade da família e fazenda dos Candie. A cena
em que encontramos Django amarrado e nu é extremamente desconfortável, a câmera está
novamente em plongée, o que causa incomodo no espectador, evidenciando o sofrimento do
personagem, vemos a corda que o prende balançar, o enquadramento é quase sempre torto, para
termos a sensação de vertigem de Django. Após uma ameaça de perda de perda dos genitais,
Stephen chega para revelar a Django o seu destino final, morrer sangrando por “capamento” seria
fácil demais. Algo que o escravo idoso reforça que acontece sempre na fazenda, é comum, assim
como dar escravos aos cães. Seu destino é temido pelos escravos, ser vendido para trabalhar para
LeQuint Dickey Mining Company, de modo a prolongar seu sofrimento e assim acontece. Vemos
Django sendo levado por dois homens que também transportam outros escravos, mas
diferentemente dos demais que estão presos numa espécie de gaiola, Django vai a pé, tenho que
caminhar todo o percurso evidenciando seu castigo.

As sequências finais do filme, mostram a chegada de Django, dessa vez sozinho, com a
intensão de salvar Brunhilde. A cena é uma vingança tipicamente tarantinesca a começar pelo
tiroteio em que dezenas de homens armados enfrentam um único homem, há litros de sangue em
todas as paredes. Dando espaço também para os famosos tiroteios ao estilo western, onde apenas
um único homem consegue através de suas habilidades – Django, o gatilho mais rápido do Sul –
derrotar todos os inimigos sem ajuda, matando os Candie e os empregados que se meteram em seu
caminho. Os escravos da casa são libertados, com exceção de Stephen que era leal a seus donos.
Este é o último a ser morto, com requintes de vingança Django fere sua perna para que ele não se
locomova, enquanto ocorre um pequeno diálogo entre os dois e Django ascende o pavio de TNT,
em suas últimas palavras Stephen diz: “This is Candieland, nigger. You can’t destroy Candieland!
We been here! There’s always gonna be a Candieland. ”37 Dessa forma, fica claro que mesmo com
a destruição daquela fazenda existem outras onde a escravidão continuará, mas ao mesmo tempo a

36
SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. Op. cit., passim.
37
“Isso é Candieland, crioulo. Você não pode destruir Candieland! Nós estamos aqui! Sempre haverá uma Candieland”
(tradução livre).

1245
explosão da casa grande, simboliza o fim da “tranquilidade” para o sistema escravista sulista, de
forma violenta com viria a ser com a proximidade da Guerra de Secessão.

Nas últimas cenas, vemos Django caminhar lentamente em direção a Hilde que o espera
sorrindo e contente enquanto ouvimos a música They call me Trinity (de Franco Micalizzi), cuja
letra ressalta as habilidades do protagonista com uma arma. A vingança foi alcançada, Hilde e
Django estão juntos novamente e a casa grande será destruída. Ademais, Django está usando as
roupas do falecido Calvin, denotando uma inversão de papéis em relação aquele que agora é quem
tem o controle da situação. Ele fuma e olha imponente esperando a explosão acontecer, quando ela
acontece ele olha para trás e sorri em direção a Hilde, que o espera alegremente. Em câmera lenta, o
vemos caminhar em direção a ela e subir a seu cavalo. Podemos perceber a mudança da
personalidade do nosso protagonista, que antes era um escravo assustado (imagem 5) e agora é um

Imagem 5. Imagem 6.

homem livre confiante (imagem 6).

Os créditos sobem sobre o cenário da casa-grande em chamas, reforçando a importância da


destruição simbólica daquela fazenda onde muitos escravos foram mortos. Apesar da libertação de
outros escravos, em Django Livre vemos um caráter individualista na busca pela liberdade, não há a
união e/ou aliança de Django com outros escravos.38 No fim, o longa trata principalmente do
resgate de Brunhilde das mãos de seus senhores e também de vingança contra aqueles que lhe
infringiram algum mal. Tarantino ainda apostou numa continuação não anunciada do longa, lançado
em 2015, Os Oito Odiados,39 apesar do personagem de Samuel El Jackson não levar o mesmo nome
de Django, a obra contém semelhanças que lembram o observador ao filme de 2012, que agora se
passa num período posterior a Guerra de Secessão.

38
PERICÁS, Luiz Bernardo. Op. cit., p. 5.
39
OS Oito Odiados. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: The Weinstein Company. 2015. 1 vídeo (167 min).

1246
Ao contrário de Pericás que considera Django Livre como um filme superficial, sem
profundidade e não sofisticado,40 acreditamos que apesar das falhas, principalmente com relação ao
mau desenvolvimento da personagem de Kerry Washington, podemos perceber a complexidade e
especificidades do regime escravista norte-americano assim como alguns pensamentos próprios do
período que buscavam justificar tal sistema. Como já afirmado, nossa avaliação não se propôs a
buscar uma veracidade histórica no longa-metragem,41 mas analisar como Tarantino pensou a
escravidão e a oferece ao espectador. Nesse aspecto, é facilmente perceptível a multiplicidade desse
sistema hierárquico e excludente, demonstrando que a escravidão não é homogênea, mas que
existem graus de hierarquia dentro dos próprios escravos. Além de evidenciar, diversas formas de
resistência e sobrevivência desses escravos e as diferentes relações que poderiam alcançar com seus
senhores.

Tarantino caracteriza também, de forma muito particular, o Sul escravocrata dos grandes
latifúndios monocultores de algodão. Possibilitando pensar como o sistema escravista é usado para
destacar o indivíduo e marcar sua classe social, seu status. Também devemos lembrar da
complexidade do sistema escravista, o longa acaba demonstrando alguns de seus nuances de forma
interessante, mas obviamente não era sua função dar conta do todo o contexto, mas principalmente
trazer seu aspecto de crueldade. Ademais, devemos levar em consideração que o filme dispõe de
outras atribuições para com o público, de não apenas fazer refletir, mas de contar uma história,
entreter etc. Nesse sentido, podemos afirmar que Django cumpre bem os objetivos, fazer pensar,
diverte, causa horror.

Referências Bibliográficas:

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out. 2017.

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vídeo (153 min).

CÃES de Aluguel. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Live America Inc. 1992. 1 vídeo
(99 min).

40
PERICÁS, Luiz Bernardo. Op. cit., p. 1.
41
A exemplo da mandingo fight que não tem base histórica comprovada pelos historiadores.

1247
CASTRO, Natalia. Remake da série ‘Raízes’ estreia no History com mais suspense e ação.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/remake-da-serie-raizes-estreia-no-
history-com-mais-suspense-acao-20285844>. Acessado em 08 out. 2017.

DJANGO (1966). Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0060315/>. Acessado em 08 out.


2017.

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out. 2017.

DJANGO Livre. Direção: Quentin Tarantino. Los Angeles: Columbia Pictures, 2012. 1 vídeo (165
min).

DJANGO. Direção: Sergio Corbucci. Roma: B.R.C. Produzione Film, 1966. 1 vídeo (92 min.).

FERRO, Marc. “O filme, uma contra-análise da sociedade?” In: Cinema e História. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992, p. 79-115. Disponível em: <http://www.anpuh-
sc.org.br/ferro1_cinema_historia.pdf>. Acessado em 24 set. 2017.

IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional
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KILL Bill - Volume 1. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Miramax. 2003. 1 vídeo (111
min).

KILL Bill - Volume 2. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: Miramax. 2004. 1 vídeo (136
min).

LIMA, Sandra Mara Moraes. “Django Livre - O clichê e o inusitado - Uma reflexão acerca do
conteúdo, do material e da forma. ” In: II Encontro de Estudos Bakhtinianos, 2013, Vitória. II
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1248
OS Oito Odiados. Direção: Quentin Tarantino. Estados Unidos: The Weinstein Company. 2015. 1
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SOUZA, Pedro de; PEREIRA, Tiago Costa. “A resistência negra que não resiste à dublagem de/em
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1249
A atuação do PCB no Espírito Santo entre os anos 1940 e 1950: apontamentos sobre a
aplicação da linha institucional na vida política capixaba
Leonardo Baptista1

Resumo: O presente trabalho traça um panorama da atuação do PCB no Espírito Santo entre os
anos 1940 e 1950. Assim, atenta para a maneira como a organização buscou desenvolver suas
atividades no campo da política formal na vida política capixaba, e mais especificamente, para sua
participação nas disputas eleitorais e parlamentares. Dialogando com a realidade do partido em
âmbito nacional, ressaltam-se como os aspectos de sua linha política institucional se manifestaram
em sua experiência nesse estado no período. Ao mesmo tempo, busca se considerar os dilemas
organizativos oriundos do ambiente político-institucional que influenciavam a conformação desse
comportamento político da organização no contexto.

Palavras-chave: PCB, Partidos Políticos, Espírito Santo.

Abstract: This paper presents an overview of the PCB proceeding in the state of Espírito Santo
between the 1940s and 1950s. Thus, notes the way the organization sought to develop its activities
in the field of formal politics in the political life of Espírito Santo, and more specifically, about the
participation in electoral and parliamentary disputes. It focused on how aspects of the institutional
political line manifested themselves in the experience of the party in this state and in that period and
articulating with the reality of the political party at the national extension. At the same time, it seeks
to consider the organizational dilemmas originating from the political-institutional environment that
influenced the conformation of this political behavior of the organization in that context.

Keywords: PCB. Political Parties. Espírito Santo.

1. Considerações Iniciais

No início dos anos 1940, o então Partido Comunista do Brasil (PCB) 2 tentava se reorganizar
buscando superar os abalos da forte repressão lançada pelo Governo Getúlio Vargas (1930-1945),
principalmente após os Levantes Comunistas de 1935, e com o início da ditadura do Estado Novo a
partir de 1937. Nesse período, uma onda de perseguições, prisões – inclusive a de Luís Carlos
Prestes, em março de 1936 – e assassinatos de seus militantes praticamente desarticularam o partido
nacionalmente (CARONE, 1982; VIANNA, 2010).

1
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIs
– UFES)
2
De sua fundação no ano de 1922 até 1961, o partido se denominava Partido Comunista do Brasil. A partir daquela
última data o mesmo altera seu nome para Partido Comunista Brasileiro, tentando superar um dos entraves impostos
pelo Tribunal Superior Eleitoral à sua legalização. O primeiro nome permaneceu em uso pelos membros que saíram do
partido e fundaram uma outra organização comunista com a sigla PC do B em 1962.

1250
A reorganização do partido se efetivou a partir de agosto de 1943, com a II Conferência Nacional
do PCB, a chamada “Conferência da Mantiqueira”. Das disputas políticas que tomavam o interior
do partido nesse contexto3, emergiu um núcleo de dirigentes ligados à Comissão Nacional de
Organização Provisória (CNOP)4, formado por nomes como os de Mário Alves, Arruda Câmara,
Maurício Grabois, Amarildo Vasconcelos, João Amazonas, Pedro Pomar, Ivan Ramos, Álvaro
Ventura, que assumiram o Comitê Central (CC). Mesmo preso, Prestes foi indicado para o
Secretariado Geral da organização (CARONE, 1982).

Seguindo a proposta do Movimento Comunista Internacional (MCI), que orientava as organizações


comunistas para a formação das frentes populares no combate ao fascismo, o PCB oficializou, a
partir de 1943, a linha política da união nacional, que previa como elemento tático central, a
construção de alianças pluriclassistas com “todos os setores democráticos” da sociedade, inclusive
com o que o partido identificava como burgueses progressistas. Tal concepção de luta respondia às
necessidades da etapa nacional democrático-burguesa que, para o PCB, assumia a revolução
brasileira naquele momento. Assim, seriam objetivos imediatos da luta revolucionária do partido: a
consolidação do capitalismo nacional e a superação da estrutura agrária semifeudal; o combate ao
fascismo e a conquista das liberdades democráticas.

Para tanto, o PCB se orientava a uma luta pacífica, moderada, legal, frentista e pluriclassista com
foco imediato na conquista da democracia. Nesses termos, oficializava-se a linha política
institucional, que, a partir de então, consolidaria um comportamento político de significativa
longevidade na trajetória do PCB no século XX. Esse se basearia na busca pela atuação nos espaços
institucionais legais, e principalmente, no campo das disputas eleitorais, contando com amplas
alianças que o permitissem se aproximar das arenas decisórias e conquistar seus objetivos
revolucionários. Isso, mesmo diante da constante condição de ilegalidade de sua sigla e como alvo
da repressão política baseada no anticomunismo, que marginalizou suas atividades em grande parte
do século passado.

Assim, sem desconsiderar as experiências de uma luta institucional pecebista entre os anos 1920 e
19305, e a importância da chamada “Declaração de Março de 1958” como um dos marcos da

3
Segundo Chilcote (1982, p.88), três tendências disputavam a direção da sigla em 1943: “um [grupo], em São Paulo,
era formado por antigos militantes que desconfiavam de Prestes e desejavam reviver o partido dentro da linha
tradicional e de uma política independente. Um segundo grupo, também em São Paulo, englobava comunistas fugitivos
da Bahia – ‘oportunistas e direitistas que pretendiam dominar o novo CC’. Um terceiro grupo, a Comissão Nacional de
Organização Provisória (CNOP), era composto de comunistas novos e antigos do Rio de Janeiro. Enquanto o primeiro
grupo buscava apenas conselhos de Prestes, os outros dois buscavam sua liderança sobre o movimento [...]”
4
Em fins de 1941, a CNOP foi criada no Rio de Janeiro para tentar articular a reorganização do partido (CHACON,
1998, p.138).
5
Em 1927, por exemplo, atuando na legalidade o PCB participou da construção do Bloco Operário Camponês (BOC),
reunindo setores da classe média e lideranças operárias em uma frente única em apoio a possíveis candidaturas

1251
conformação desse comportamento, concordamos com autores como Mazzeo (1999) e Santana
(2001) que destacam os anos 1940, e mais especificamente, as orientações que emergem a partir da
Conferência da Mantiqueira (1943), e da experiência legal entre 1945 e 1947, como momentos
fundamentais na trajetória da linha institucional do PCB.

Ao longo de nossa narrativa buscamos observar a consolidação e aplicação dessa linha de atuação
pelo PCB nos anos 1940 e 1950, considerando a forma como o partido fazia leitura e se relacionava
com a institucionalidade vigente. Dessa forma, coadunamos com Ângelo Panebianco (2005), ao
indicar como fatores de maior incidência sobre a fisionomia e o funcionamento de uma organização
partidária o seu passado e as relações que ela estabelece com os seus inconstantes ambientes
externos. Estes são diversos e expõe um partido a coerções institucionais que impõem limites a sua
atuação, colocando-o diante de dilemas organizativos, ou seja, exigências contraditórias em que o
mesmo tem que se equilibrar, gerando impasses e desafios para sua militância, e marcando seu
comportamento político.

Dessa forma, dialogando com esses aspectos teóricos e com a história do PCB no período, nos
propomos com este estudo a observar, de maneira geral, o modo pelo qual a linha política
institucional se manifestou na experiência do partido no Espírito Santo entre os anos 1940 e 1950.
Nessa direção, o olhar se volta para a participação da militância pecebista capixaba nas disputas
eleitorais e para a atuação dos seus membros na arena parlamentar, buscando se inserir nas disputas
políticas locais nos limites da institucionalidade vigente6.

2. O PCB e sua linha institucional na arena eleitoral e parlamentar nos anos 1940

A partir de 1943, a linha política estabelecida pela Conferência da Mantiqueira se expressou,


inicialmente, em âmbito nacional, no apoio do PCB ao governo Vargas que se alinhava ao Bloco
Aliado contra as ditaduras fascistas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945); na luta pela
legalidade do partido, e pela anistia geral dos presos políticos. Nos anos seguintes, a luta pacífica,
moderada, frentista e legal se firmou no discurso e na prática do partido, no decorrer do crescimento

operárias (CARONE, 1982, p.6). Naquele ano, via BOC, o partido conseguiu eleger João Batista de Azevedo Lima pelo
Distrito Federal. Em 1928, já de volta à ilegalidade, pela frente, o PCB conquistou vagas na Câmara Municipal do Rio
de Janeiro, elegendo Otávio Brandão e Minervino de Oliveira (CHILCOTE, 1982, p.63-65). Este último concorreu à
Presidência da República em 1930, pleito no qual o partido abrigado no BOC disputou todos os cargos (SEGATTO,
1989, p.40)
6
Diante das condições que se impõem a este tipo de trabalho científico, sobre a atuação institucional do PCB, nos
limitamos ao campo eleitoral e parlamentar, mas sabemos da importância de outros espaços, como os das organizações
do movimento sindical para o partido no período, por exemplo.

1252
das lutas democráticas do país, encontrando ambiente político favorável a partir de 1945. Nesse
ano, avançou o processo de democratização do regime político brasileiro, com a fixação das
próximas eleições e a criação de um novo Código Eleitoral (Decreto nº 7.586/45). O PCB se
beneficiou pela declaração de anistia aos presos políticos, em abril, que permitiu a libertação de
Prestes, seu Secretário Geral. Em maio de 1945, sua sigla retornou à legalidade, e assim se somou
aos novos partidos criados naquele momento, como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o
Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN), que, doravante, se
destacariam na arena político-eleitoral.

No Espírito Santo, o PCB iniciou sua reorganização a partir de 19427, quando chegou ao estado
Antônio Ribeiro Granja8, contratado para trabalhar na Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).
Filiado ao partido em São Paulo, “Granja” teria organizado uma base comunista nessa empresa, em
Cariacica – ES (MACHADO, 2014). Em 1945, o partido já se encontrava organizado, contando
com o seu Comitê Estadual. Em maio desse ano, já na legalidade, lançava o jornal “Folha
Capixaba”, que até o seu fechamento pelos militares em 1º de abril de 1964, foi um importante
meio de difusão do ideário comunista local (TEIXEIRA, 2013).

Em 1945, diante das intensas agitações que emergiam na sociedade brasileira (greves e disputas
eleitorais-partidárias), o PCB foi orientado por Prestes a atuar de forma ordeira, pacífica,
moderada, democrática, frentista e institucional (SEGATTO, 1989, p.58). Nesse caminho,
inicialmente, os pecebistas se aproximaram do PTB e apoiaram a luta pela permanência de Getúlio
Vargas na presidência junto do “movimento queremista”, justificando tal postura como forma de se
evitar uma guerra civil e a ascensão de reacionários e fascistas ao poder (CHILCOTE, 1989, p.94-
95). No Espírito Santo, essa moderação se expressou, inicialmente, numa postura conciliatória para
com o seu então interventor, Jones dos Santos Neves (1943-1945). Por outro lado, a militância
capixaba buscou efetivar a união dos setores democráticos organizando os Comitês Democráticos
Progressistas (CDP) em bairros da região metropolitana de Vitória – ES e interior (ALVES;
SIMÕES, 1996, p.83).

No decorrer daquele ano, o PCB se concentrou nas eleições marcadas para dezembro desse ano. Tal
postura se reforçou com a saída de Vargas do poder em outubro, quando um novo presidente e o

7
No Espírito Santo, Wania Malheiros Alves e Rafael Claudio Simões (1996) atestaram que as primeiras notícias que se
têm sobre o partido no estado datam do final de 1927, com a chegada do estivador Antônio Bernardino de Santos – SP.
Assim como ocorrera com a direção nacional, no estado, entre 1938 e 1942, o partido teria se desarticulado por conta da
repressão policial.
8
Antônio Ribeiro Granja foi uma importante liderança do PCB no Espírito Santo. Nasceu em 30 de julho de 1913, em
Exu, no sertão do Estado de Pernambuco. De família muito pobre, logo cedo migrou para São Paulo em busca de
melhores condições de vida, e lá se filiou ao PCB em 1934 (MACHADO, 2014).

1253
Parlamento responsável por estabelecer uma nova institucionalidade democrática na Assembleia
Constituinte do ano seguinte sairiam das disputas eleitorais.

Nessa direção, o PCB indicou Yedo Fiúza como candidato à presidência, e nomes em diversos
estados do país para as disputas pelo legislativo federal. Nessas eleições, o partido obteve resultados
expressivos: Fiúza conquistou quase 600 mil votos (10% do total), ficando em terceiro lugar num
pleito que teve o General Eurico Gaspar Dutra (PSD) eleito Presidente da República. Para o
Congresso Nacional, Prestes foi eleito Senador pelo Distrito Federal, deputado por Pernambuco,
pelo Rio Grande do Sul e pelo Distrito Federal9, e o PCB ainda elegeu 14 deputados federais
(SEGATTO, 1989, p. 63-64).

No Espírito Santo, o partido não conseguiu eleger membros para a Assembleia Nacional
Constituinte, mas alguns dos seus candidatos conseguiram números expressivos. Assim, por
exemplo, seu candidato ao Senado, Vespasiano Meireles, conquistou 3.444 votos10 (ALVES;
SIMÕES, 1996, p.87).

A partir de 1946, iniciou-se o Governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), marcado pela
democratização do sistema político brasileiro, a partir promulgação da Constituição Federal desse
ano (SKIDMORE, 1982). Inicialmente, o PCB experimentou um breve período de legalidade até
1947, que propiciou condições para que concentrasse sua luta no seio do jogo democrático,
valorizando a luta política pacífica, eleitoral e parlamentar como caminho para conquistar seus
objetivos, e neste sentido, primeiramente, lutar pela democracia (MAZZEO, 1999). O partido
também se esforçou por construir uma imagem organizativa “ordeira” nos espaços em que atuava,
receando se deparar, novamente, com a repressão anticomunista e a ilegalidade. Assim, tentava se
adaptar ao ambiente político vigente.

Nesses termos, o PCB utilizou o Congresso para expressar a defesa de cláusulas sociais com
discursos críticos durante a Assembleia Constituinte de 1946 e para empreender sua oposição ao
Governo Dutra. A arena parlamentar era concebida como fundamental para a aplicação de sua linha
política (SANTANA, 2001, p.49-53).

Nessa direção, a inserção de militantes nas Assembleias Legislativas emergia como fundamental
para sua a atuação regional. Assim, nas eleições estaduais de janeiro de 1947, o PCB se manteve
como quarta força política do país, obtendo significativas vitórias por todo o Brasil. Nesse pleito, o

9
Segundo as regras eleitorais da Lei 7.586/45 que regulamentou o processo eleitoral de 1945, os candidatos poderiam
concorrer simultaneamente a mais de um cargo eletivo em um ou mais estados.
10
Para o Senado Federal, o PCB capixaba ainda indicou Prestes (3.866 votos). Os dois ainda foram indicados como
candidatos para a Câmara Federal. A eles se somaram as candidaturas de Otto Netto (464 votos), Érico Neves (229
votos), Pedro Corrêa Reis (153 votos), Lamartine Barbosa (112 votos) e Edith Castex Olivier, a primeira mulher
candidata a um pleito eleitoral no Espírito Santo (ALVES; SIMÕES, 1996, p.87).

1254
partido também utilizou outras siglas para abrigar seus candidatos nas disputas para as vagas
suplementares para o Congresso. Dessa forma, mantendo traços da luta ilegal num contexto de
legalidade de sua legenda, os pecebistas conseguiram eleger, por exemplo, Pedro Pomar e Diógenes
Arruda Câmara pelo Partido Socialista Progressista (PSP), de São Paulo (CHILCOTE, 1982, p.99).

No Espírito Santo, nessas eleições, o PCB apresentou uma chapa com 32 nomes para as eleições do
Legislativo capixaba. O único eleito foi Benjamim de Carvalho Campos, com 996 votos. A atuação
desse parlamentar pecebista foi marcada por uma ativa oposição ao governo estadual de Carlos
Lindenberg (1947-1951). Além disso, refletindo o anti-imperialismo da linha política do PCB,
criticou os serviços da Cia. Central Brasileira de Força Elétrica (CCBFE)11 no setor elétrico do
estado (ALVES; SIMÕES, 1996, p.95).

No entanto, a partir de 1947, o partido enfrentou uma ofensiva da repressão estatal, que cerceou
suas possibilidades de atuação legal no campo institucional. Em maio desse ano, o PCB foi posto na
ilegalidade. Segundo Chilcote (1982, p.100-101), tratava-se de uma resposta ao crescimento
eleitoral e partidário da sigla12, e ao enrijecimento da crítica de seus parlamentares em relação ao
governo no Congresso, num contexto de avanço da Guerra Fria, no qual o Governo Dutra (1946-
1951) se alinhava ao Bloco Capitalista. Em janeiro de 1948, os mandatos parlamentares pecebistas
foram cassados. Dentre eles, o do deputado estadual capixaba Benjamim de Carvalho Campos.

Antes disso, mesmo dadas as coerções institucionais-autoritárias lançadas contra o partido em 1947,
o PCB tentou ocupar postos nas Câmaras Municipais nas eleições de novembro desse ano,
abrigando militantes em outras siglas. Nessa direção, no Espírito Santo, a organização elegeu
Antônio Ribeiro Granja pela UDN, em Cariacica – ES, com 404 votos (13,24% dos votos válidos);
e em Vitória – ES, Hermógenes Lima Fonseca foi eleito pelo Partido Republicano (PR), com 749
votos (10,45% dos votos válidos). Com tais números, e em termos proporcionais, ambos estão entre
os vereadores mais bem votados na história dos respectivos municípios (MACHADO, 2014). O
partido também elegeu Custódio Tristão em Guaçuí-ES, mas os dados eleitorais são desconhecidos
(ALVES; SIMÕES, 1996, p.88).

Os mandatos desses vereadores pecebistas capixabas se deram no contexto no qual o partido


radicalizou sua concepção de luta, respondendo ao avanço da repressão lançada pelo Estado

11
Segundo Machado (2014, p.35), atuando no Espírito Santo desde 1928, a CCBFE era responsável pelo abastecimento
elétrico e transporte nas cidades de Cachoeiro de Itapemirim, Vitória e arredores. Existia uma grande insatisfação em
relação à empresa devido à péssima qualidade dos serviços e às tarifas cobradas junto aos usuários capixabas. Segundo
análises de Alves e Simões (1996), o combate à política da empresa e a defesa de propostas para a sua nacionalização
foram constantes nos discursos de parlamentares pecebistas capixabas entre as décadas de 1940 e 1960.
12
Segundo Vinhas (1982, p.89), em 1947, o PCB atingia o número de 200 mil inscritos, dos quais, 60 mil só em São
Paulo.

1255
brasileiro, que lhe impôs fortes limitadores para a sua atuação nos espaços institucionais vigentes13.
Essa condição provocou uma forte autocrítica na direção do partido, que apontou para os erros da
linha política oficializada a partir de 1943, e suas expectativas de atuação segundo na
institucionalidade democrática vigente no período de legalidade da sigla.

Nesse contexto, nasceu o chamado “Manifesto de Janeiro de 1948”, produzido pela direção do
PCB, pelo qual se iniciou um processo de radicalização das orientações políticas do partido, que
será ratificado no “Manifesto de Agosto de 1950”. Numa guinada à esquerda, entre 1948 e 1951,
com tais documentos o partido se reaproximava das matrizes teóricas do leninismo e sua concepção
revolucionária (MAZZEO, 1999, p.75-77).

Nessa direção, a linha política dos “Manifestos” defendia uma revolução democrática e socialista
simultânea por meio da luta de massas hegemonizada pelo proletariado. Foi proposta a formação de
uma Frente Democrática de Libertação Nacional, uma espécie de exército popular que deveria se
preparar para a guerra contra a burguesia nacional e internacional atuante no país e empreender uma
revolução agrária e anti-imperialista (SEGATTO, 1989). Buscando uma postura mais
independente, propôs-se um rompimento das alianças com organizações não comunistas, e a adoção
de posturas mais autônomas em relação às eleições, e também no movimento operário. Dessa
forma, por exemplo, nas eleições presidenciais de 1950, a direção do partido orientou seus membros
a votar em branco. Com a vitória e o retorno de Getúlio Vargas à presidência naquele pleito, o PCB
assumiu a oposição ao governo, concebendo-o, num primeiro momento, como representante dos
interesses norte-americanos (CHIlCOTE, 1982).

Apesar dessas orientações, concordamos com Chilcote (1982, p.107) que, ao analisar o Manifesto
de Agosto de 1950, ressalta que, a despeito da retórica radical de esquerda do PCB, a organização
não previa a implantação do socialismo de imediato, e não afastava a possibilidade de apoio do
capital nacional. A própria Frente Democrática de Libertação Nacional expressava a manutenção da
tática frentista e se mostrava ambígua em torno dos setores nacionais que ela deveria abarcar. Ao
mesmo tempo, a ilegalidade e a crítica à institucionalidade do regime democrático brasileiro não
eliminou a luta eleitoral de seu repertório, já que defendia a legalidade da sigla e a devolução dos
mandatos parlamentares cassados em 1948. Assim, apesar das críticas aos espaços institucionais em
vigor, o partido não os abandonou, e ainda os concebia como instrumentos de efetivação da sua
política (SANTANA, 2001, p.71). E dessa forma também era definida a arena parlamentar.

13
Vale destacar que o Estado brasileiro também interviu nos sindicatos, subordinando-os a um maior controle do
Ministério do Trabalho, afastando as lideranças operárias indesejáveis de suas diretorias sindicais, e principalmente os
comunistas (CHILCOTE, 1982; SANTANA, 2001).

1256
Desse modo, no Espírito Santo, os vereadores pecebistas abrigados em outras siglas expressaram
em suas atividades parlamentares o alinhamento às bandeiras de luta dos Manifestos de 1948 e
1950, mesmo em espaços dominados pelas elites capixabas. Assim, identificavam-se e eram
identificados pelos seus adversários políticos como comunistas14.

Antônio Ribeiro Granja, em Cariacica – ES e Hermógenes Lima Fonseca15, na capital capixaba,


defenderam em seus mandatos nas respectivas Câmaras Municipais – entre 1948 e 1951 – bandeiras
nacionais do partido como a luta pelo petróleo, pela paz mundial, contra o imperialismo norte-
americano e pela reforma agrária. Ao mesmo tempo, buscaram atentar para as questões locais,
interpretando os problemas da sociedade capixaba à luz das leituras do PCB sobre a realidade
brasileira. Nessa direção, entre outras questões, sob o norte da luta anti-imperialista pecebista,
criticavam os serviços da Cia Central Brasileira de Força Elétrica (CCBFE), que era definida como
um braço do imperialismo norte-americano, o que explicava, segundo eles, a baixa qualidade do
serviço prestado ao povo e ao empresariado capixaba, devido à falta de interesse em criar condições
para o desenvolvimento do capital nacional. Assim, a empresa de energia era vista como uma das
fontes do atraso econômico do estado do Espírito Santo, e a solução para tal condição seria a sua
nacionalização. Ambos também combateram o governo estadual de Carlos Lindenberg (1947-
1951), compreendido como autoritário e afinado aos interesses dos latifundiários. Pensando a
melhoria da qualidade de vida da população pobre, defenderam a reforma agrária somada à
industrialização e modernização econômica do estado para criar fontes de terra, empregos e
melhores salários, o que possibilitaria maior acesso à alimentação e à moradia aos trabalhadores
capixabas.

Ao mesmo tempo, o PCB continuou participando do “jogo eleitoral”. Em 1950, o partido abrigou
candidatos em outras siglas partidárias, e apoiou políticos concebidos como progressistas, elegendo
mesmo que em postos de pouca expressão, representantes nos legislativos federal e estadual nas
eleições desse ano16. No Espírito Santo, os pecebistas elegeram Custódio Tristão como Deputado

14
Sobre a atuação parlamentar de Antônio Ribeiro Granja na Câmara Municipal de Cariacica – ES, ver Vinicius
Oliveira Machado (2014). E para a atuação de Hermógenes Lima Fonseca na Câmara Municipal de Vitória – ES, ver
Marlon Pittol de Oliveira (2014). Ambos, também apresentam um cenário político local no qual tais personagens eram
vistos – e “atacados” – como “comunistas” nos debates parlamentares.
15
Hermógenes Lima Fonseca foi um destacado militante do PCB capixaba entre os anos 1930 e 1960. Hermógenes
entrou muito jovem para a política. Aos 23 anos, já era presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas
Telegráficas. Na década de 1930 ingressou no PCB, no qual se destacou, galgando altos postos de sua hierarquia.
Dirigiu o jornal Folha Capixaba (1945-1964) (OLIVEIRA, 2014, p.6)
16
Como Roberto Morena para deputado federal pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT) do Rio de Janeiro; Paulo
Cavalcanti, como deputado estadual pelo Partido Social Progressista (PSP) em Pernambuco. Pelo PTB, quatro
vereadores elegeram-se para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro (CHILCOTE, 1982, p.105)

1257
Estadual pelo PR junto da Coligação Democrática (CD)17, sendo este o mais votado da legenda
(1080 votos – 0,81% dos votos válidos). Seu mandato, porém, demonstrou pouca nitidez partidário-
ideológica, apesar de atentar a questões de cunho social e criticar a CCBFE, conforme se
posicionava o PCB capixaba. Ademais, privilegiou a representação dos interesses de sua base
eleitoral, a região Sul do estado (ALVES; SIMÕES, 1996, p.95).

3. O PCB e sua linha institucional na arena eleitoral e parlamentar nos anos 1950

Entre finais de 1951 e o ano de 1952, as bases e a cúpula nacional pecebista apontavam ajustes na
linha revolucionária presente. Primeiro na política sindical, e depois de modo geral. Na verdade,
conforme analisou Santana (2001), parte da militância sindical pecebista já atuava de maneira a
flexibilizar a linha esquerdizante defendida pela direção nacional desde 1948, resistindo à
orientação dos “Manifestos” ou adequando-a à realidade18.

Nesse sentido, a postura flexível que já se dava no cotidiano do movimento sindical foi oficializada
pela Resolução Sindical do CC de 1952, que orientava a militância pecebista para alianças na base,
mesmo que heterogêneas, em torno da organização e da unidade da classe operária (SANTANA,
2001, p.82-83).

Dessa forma, entre outras condições, o programa sindical do partido legitimou a reaproximação dos
pecebistas com setores trabalhistas e getulistas nos sindicatos. Para além dos interesses específicos
da luta operária, essa aliança também vislumbrava conquistas no campo político e eleitoral. Assim,
segundo Chilcote (1982, p.111), membros da esquerda do PTB ligados à figura de João Goulart
abriram negociações para uma aliança eleitoral com os pecebistas a partir de 1953. Depois de atuar
nas campanhas que permitiram a aprovação da lei que garantiu a criação da Petrobrás e o
monopólio estatal do petróleo nesse ano, já em 1º de maio de 1954, o partido recuava em suas
críticas ao governo de Getúlio Vargas (1951-1954).

Esse paulatino recuo do processo de radicalização da direção política do PCB no campo sindical,
alcançou a direção política geral mais precisamente nas teses do seu IV Congresso (entre dezembro
de 1954 e janeiro de 1955). Segundo Antônio Carlos Mazzeo (1999), esse encontro oficializou o
início da flexibilização do discurso partidário e da retomada do programa reformista e moderado

17
A Coligação Democrática se tratava de uma frente partidária formada pelo PR, pela UDN, pelo Partido Democrata
Cristão (PDC) e pelo Partido de Representação Popular (PRP). Reunindo importantes lideranças políticas regionais, foi
o principal polo opositor do PSD nas disputas político partidárias do Espírito Santo, a partir de 1945. Mais informações,
ver Oliveira (2013).
18
Sobre a política e militância sindical do PCB entre os anos 1940 e 1980, ver Santana (2001).

1258
experimentado entre 1945 e 1947, sendo o momento inicial de reconstrução de um partido
institucional de esquerda.

Dessa maneira, a linha política oriunda do IV Congresso do partido orientava a união das forças
democráticas, a partir da formação de uma frente pluriclassista, incluindo os setores burgueses19. O
partido priorizava, neste momento, assegurar as liberdades democráticas e a legalidade
constitucional combatendo o que identificava como ameaças golpistas articuladas aos interesses
imperialistas norte-americanos (SEGATTO, 2003, p.124).

Assim, diante das tensões emergentes no cenário político brasileiro a partir do suicídio do
presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954, o PCB abandonou, primeiramente, sua postura
unilateral e de crítica ao getulismo para se juntar às massas, aproximando-se ainda mais do PTB.
Dessa forma, os pecebistas buscaram se inserir nos movimentos que defendiam o respeito às regras
democráticas e constitucionais para a sucessão presidencial prevista para outubro desse ano,
buscando afastar o que identificava como movimentações golpistas por parte das forças reacionárias
(políticos da UDN e comandos militares das Forças Armadas), influenciadas pelos Estados Unidos,
que culminaram na instalação do que classificava como uma “ditadura americana de Café Filho”,
seguido do “governo reacionário” de Carlos Cruz (SEGATTO, 2003, p.126). Em 1955, o partido
decidiu apoiar a candidatura presidencial e a eleição da chapa formada por Juscelino Kubitschek
(PSD) e João Goulart (PTB) – respectivamente para Presidente e Vice –, assim como atuou junto a
outros setores legalistas para garantir a posse desses eleitos em janeiro de 1956, diante das novas
ameaças de golpe lançadas pelos setores de direita20 (CARONE, 1982, p.8).

As alterações na linha política do PCB na década de 1950 se aceleraram a partir de 1956, sob o
impacto dos desdobramentos do XX Congresso do Partido Comunista Soviético (PCUS). Nesse
encontro, as denúncias e os ataques ao stalinismo realizados por Nikita S. Khruschev, substituto de
Joseph Stálin desde sua morte, em 1953, no comando da União Soviética (URSS), deram início ao
chamado processo de desestalinização.

A recepção dos informes soviéticos gerou profundas reações e reflexões no seio do PCB, que sofreu
com fraturas internas e promoveu novos rumos para o partido (SEGATTO, 2003, p.126). A

19
Importante destacar que a linha política do IV Congresso (1954) mantinha parte das ações radicais da Revolução
Nacional Libertadora, como a proposta de assalto militar a um Estado considerado traidor dos interesses nacionais, nos
termos do Manifesto de Agosto de 1950. No entanto, predominava a indicação de uma nova atitude anti-imperialista
para a sua militância que afastava postura radicais.
20
Segundo Jorge Ferreira (2007, p.518-519), “a extrema direita da UDN, liderada por Carlos Lacerda, apoiada por
grupos civis conservadores e amplos setores da oficialidade da Marinha e da Aeronáutica tentaram golpear as
instituições democráticas em novembro de 1955. O objetivo era impedir que JK e Jango, eleitos no mês anterior,
tomassem posse. No entanto, a maioria dos generais do exército, liderados pelo ministro da Guerra, Henrique Teixeira
Lott, deram um ‘contragolpe’ preventivo, garantindo o cumprimento da Constituição”.

1259
influência do XX Congresso do PCUS dois anos depois incentivou a autocrítica realizada por parte
da direção nacional ao que seria um passado de dogmatismo, mandonismo, sectarismo, falta
democracia e de culto à personalidade de Luis Carlos Prestes, que implicou em erros os quais
teriam isolado e enfraquecido o partido (SEGATTO, 2003, p.126).

Em 1958, um novo núcleo dirigente formado por nomes como os de Giocondo Dias, Mário Alves e
Jacob Gorender, emergiu das disputas internas pelos novos alinhamentos políticos do partido,
assumindo o seu comando e encaminhando orientações que mesclavam elementos de tradição e
renovação na organização (SEGATTO apud MAZZEO, 1999, p.84). Mantendo a liderança de
Prestes, das mãos desse grupo nasceu a chamada “Declaração de Março de 1958”, considerado o
documento “fundador” dos princípios basilares da linha política assumida pelo partido até os anos
1980.

Para além das influências das mutações pelas quais passavam o MCI, a Declaração de Março de
1958 refletia as leituras sobre a vida econômica e o ambiente político institucional da segunda
metade da década de 1950. Assim, entre os principais elementos teóricos e políticos apresentados
pela “Declaração”, apresentou-se uma nova visão do capitalismo brasileiro, que, na perspectiva da
direção partidária, dinamizava a sociedade, promovendo a valorização da luta pela democratização
política do país (SANTOS; SEGATTO, 2007, p.18). Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento
das forças produtivas promovia o surgimento de uma burguesia nacional e progressista, contrária às
intervenções imperialistas, e possibilitava o crescimento da camada proletária urbana e rural na
sociedade. Essa condição teria permitido a emergência de um Estado não mais monopolizado pelos
latifundiários e grandes capitalistas vinculados aos interesses imperialistas, e assim, os espaços
democráticos vinham num processo de ampliação desde 1945.

Diante desse quadro, a transformação socioeconômica do país deveria resultar de reformas


promovidas pela pressão política de movimentos pluriclassistas. Assim, a estratégia revolucionária
deveria se pautar na busca pela formação de uma ampla frente nacional democrática constituída por
diversos setores: patriotas da burguesia nacional, pequena burguesia e proletariado urbano e
rural. Sua militância deveria se dedicar à ocupação dos espaços institucionais legais por meio de
uma luta política e pacífica, elementos centrais da estratégia do partido a partir de então
(MAZZEO, 1999, P.85).

Partindo de uma concepção de “revolução por etapas”, o caminho traçado para a revolução
brasileira dependeria de duas fases. Primeiramente, ela deveria ser uma revolução anti-imperialista
e antifeudal, e assim, nacional e democrática. Dessa maneira, era urgente para o desenvolvimento
do capitalismo brasileiro a derrocada dos interesses imperialistas norte-americanos e da estrutura

1260
“feudal” ou “semifeudal” que garantia o monopólio da terra. Apesar das contradições implícitas e
explícitas dos setores sociais que formariam a frente nacional democrática que fomentaria esse
processo, a unidade do grupo estaria radicada nos interesses progressistas que comungavam pelo
desenvolvimento econômico independente do país contra os interesses e agentes imperialistas
(SEGATTO, 1989, p.92-93). Em seguida, um conjunto de reformas estruturais promoveria a
transformação socioeconômica e política da sociedade brasileira na medida em que ela se
democratizasse. Tal quadro criaria condições ideais para o êxito da segunda etapa: a revolução
socialista. Assim como no período de legalidade da década de 1940, o PCB reforçava a ideia de
construção de um partido institucional de esquerda (MAZZEO, 1999).

Além do acelerado desenvolvimento econômico do período, o que vemos como uma retomada da
linha reformista, democrática e institucional do PCB de 1943 a 1947, pode ser também relacionada
às condições de maior estabilidade política do Governo JK (1956-1961) (SEGATTO, 2003, p.126).
Ao mesmo tempo, segundo Carone (1982, p.8), nesse contexto, os pecebistas teriam vivido sob um
clima de maior tolerância política por parte do Estado brasileiro, o que permitiu que, mesmo na
ilegalidade, o partido atuasse de forma aberta e com maior possibilidade de inserção no cenário
político brasileiro, vivendo uma legalidade de fato21, conforme definiu Santana (2001).

Tal conjuntura se refletiu no crescimento orgânico e político do PCB no Espírito Santo. O partido
ampliou sua inserção política em novos municípios (Ecoporanga, Barra de São Francisco, Linhares,
Viana e Baixo Guandú) e no nascente movimento estudantil capixaba. O foco na luta eleitoral foi
mantido, com a inserção de candidatos em outras legendas. Assim, depois das candidaturas não
eleitas de Aldemar de Oliveira Neves e Renê Cunha para assembleia legislativa estadual nas
eleições de 1954, o partido conseguiu eleger dois vereadores em 1958: Gil Xavier Nunes, em
Cachoeiro de Itapemirim, e Altamiro Felisbino Teixeira, em Ecoporanga, ambos pelo PTB. O
primeiro teve sua atuação marcada pela defesa e apoio ao sindicalismo; pelo combate à CCBFE, a
defesa do funcionalismo público, e pela melhoria dos equipamentos urbanos. O segundo focalizou
sua luta pela educação municipal, por melhores salários para funcionalismo público, e na questão do
abastecimento de energia (ALVES; SIMÕES, 1996, p.89).

21
Como aponta Edgar Carone (1982, p.8), em 1957, o governo brasileiro manda finalizar o processo contra Luis Carlos
Prestes e outros comunistas, que havia 10 anos ameaçava de prisão diversas lideranças da organização. Assim, o PCB
volta a agir com maior liberdade e espaço de ação. Uma fotografia que sintetizaria esse fato seria, por exemplo, a
presença de Luis Carlos Prestes em comício pomposo de JK nos jardins do Palácio do Catete, em 1959, apoiando o
anúncio do presidente em relação ao rompimento do governo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) (AQUINO,
2001, p.547).

1261
Pelo PTB, também em 1958, o PCB conseguiu eleger para Deputado Federal, Ramon de Oliveira
Neto22, com 13.287 votos, o mais votado da legenda (ALVES; SIMÕES, 1996, p.86). No
Congresso Nacional, esse personagem integrou Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), entidade
interpartidária criada em 1956, cujos objetivos eram o combate ao capital estrangeiro e à remessa de
lucros, bem como a defesa de uma política de desenvolvimento autônomo da economia nacional.
Assim, teria expressado acentuadamente a linha política do PCB, ao se centrar em questões como o
desenvolvimentismo, no anti-imperialismo, na aproximação do Brasil com o Bloco Socialista
(ALVES; SIMÕES, 1996, p.94).

Em 1962, Ramon de Oliveira Neto foi reeleito pelo PTB. Segundo Ueber José de Oliveira (2013,
p.93), o referido Deputado Federal capixaba era uma das lideranças da FPN e atuava de forma
bastante combativa no Congresso Nacional, sendo autor de projetos de lei polêmicos à época, como
o substitutivo de reforma agrária e a lei de remessas de lucro. Essa postura o colocou na primeira
lista de cassados da ditadura militar que se instalou no país a partir do golpe civil-militar iniciado
em 31 de março de 1964.

4. Considerações Finais

Observando a trajetória do PCB entre os anos 1940 e 1950 percebemos o momento de consolidação
da linha institucional em sua fisionomia organizativa. Assim, como objeto central dessa narrativa,
verificamos como tanto em âmbito nacional quanto no estado do Espírito Santo, manteve-se
evidente no discurso e na prática partidária a sua busca por se inserir e disputar os espaços
institucionais da arena eleitoral e parlamentar, inclusive quando sua linha política orientava a
radicalização de suas ações. Dessa forma, a luta política nos limites da institucionalidade
democrática instaurada a partir de 1946 permaneceu constante, e assumiu centralidade no
comportamento do partido na maior parte do contexto, sendo o campo da política formal colocado
como instrumento fundamental para a conquista dos seus objetivos revolucionários.

Ao verificarmos esse comportamento do PCB, precisamos, para além de outros enfoques, observá-
lo como oriundo das relações e leituras que o partido realizava diante do ambiente político em que

22
Ramon de Oliveira Neto nasceu em Celina, distrito do município de Alegre – ES, em 19 de fevereiro de 1926. Cursou
o Ginásio Carangolense em Carangola (MG) e o científico em Juiz de Fora (MG), quando foi presidente do grêmio
estudantil. Em 1950, formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, então
Distrito Federal. De volta a seu estado natal, trabalhou como médico em Colatina (ES). Iniciou sua carreira política em
1958, e a findou após a cassação do seu mandato parlamentar pela ditadura militar em 10 de abril de 1964 (OLIVEIRA,
2013).

1262
atuava, assim como no que se refere a sua própria história. Dessa forma, o foco nas eleições e na
atuação parlamentar entre 1945 e 1947 pode ser compreendido pela condição de legalidade do PCB
num contexto de democratização do sistema político brasileiro, que favorecia sua atuação pública
nos quadros legais, disputando o poder de influenciar os rumos do país com outros agentes e
organizações. O esforço de sua direção nacional em construir uma autoimagem de “partido da
ordem e pacífico” respondia à necessidade da organização de se adaptar ao ambiente, e refletia o
receio de ir ao encontro da a repressão e do retorno a ilegalidade, e às possíveis ações clandestinas,
aspectos marcantes de sua história desde os anos 192023. Nessa direção, é preciso considerar a
permanência do anticomunismo nos quadros estatais e na sociedade, que juntamente ao avanço das
disputas internacionais da Guerra Fria, contribuíam para que a militância pecebista permanecesse
sendo vista como “ameaça à ordem e à disciplina” no país (SANTANA, 2001).

Tal condição também influenciava a manutenção, mesmo durante a sua experiência legal, de traços
da luta política ilegal no PCB, ao abrigar seus membros em outras siglas partidárias. Concordando
com Duverger (1970, p. 30), entendemos esse fenômeno como uma demonstração da influência das
origens partidárias no desenvolvimento de sua própria estrutura organizativa, ao mesmo tempo em
que a compreendemos como um mecanismo preventivo e de sobrevivência política diante de um
possível retorno à marginalização política.

Situação essa que se abriu a partir de maio de 1947, quando a democracia instituída pela
Constituição de 1946, demonstrava seus limites e a permanência de elementos ideológicos e
institucionais autoritários do regime anterior (SOUZA, 1990, p.105-106). Mesmo posto na
ilegalidade e sob alvo da repressão nos diferentes espaços, as eleições e a arena parlamentar
mantiveram-se como instrumentos de aplicação da linha política que se radicalizava à esquerda,
como demonstrado na experiência dos vereadores pecebistas capixabas entre 1947 e 1951.

Na década de 1950, a reafirmação oficial da luta institucional com foco nas conquistas
democráticas, para além da influência das mutações por qual passavam o comunismo internacional,
podem ser vistas, por um lado, pela necessidade de se combater as constantes ameaças golpistas à
direita que colocavam em risco a democracia brasileira. Por outro, e principalmente a partir da
segunda metade da década de 1950, as condições econômicas e políticas estimulavam as leituras
sobre a revolução brasileira por etapas, via democratização.

23
Conforme analisa Panebianco (2005, p.23), o fato de a organização tender a se “adaptar” ou a “dominar” o próprio
ambiente depende, obviamente, das características ambientais. “Dominar” pode ser contraproducente na medida em que
pode resultar em reações agressivas de adversários, aumentando as incertezas acerca de sua sobrevivência política.

1263
Ao mesmo tempo, nesse período o partido gozava de maior tolerância política e social, vivendo
uma legalidade de fato que o permitia apostar na atuação nos espaços institucionais como campo de
possibilidades de luta, mesmo com sua sigla mantida excluída das disputas políticas. Na verdade,
este aspecto de semilegalidade do PCB foi um traço importante de sua relação com ambiente
político brasileiro entre os anos 1940 e 1960, sendo essa uma chave importante para compreender a
ênfase do partido em apostar suas fichas na luta política formal naquela conjuntura política.

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1265
O PCB e as Lutas no Campo: as formulações políticas sobre o sujeito e o programa comunista
para questão agrária (1950 - 1964)

Leonardo César de Albuquerque1

Resumo: O presente trabalho busca analisar os diagnósticos e os programas políticos construídos


pelos comunistas ao longo das décadas de 1950 e 1960 sobre a Questão Agrária brasileira. A
abordagem proposta visa inserir as polêmicas que constituíram a temática no interior dos círculos
comunistas como elemento central das contradições que se desenvolveram no seio do PCB desse
período. Inserida nos debates sobre a questão estratégica geral, mas com profundidade própria, a
temática da questão agrária, tendo seu foco nas reflexões sobre o sujeito revolucionário rural e a
qualidade da etapa da revolução e suas tarefas para o campo, constitui elemento rico de debates e
polêmicas em meio à trajetória comunista que se acumulou em meio a esse período.
Palavras-Chave: PCB, Reforma Agrária, Campesinato.

Abstract: The present work seeks to analyze the diagnoses and political programs built by the
Communists throughout the 1950s and 1960s on the Brazilian Agrarian Question. The proposed
approach aims at inserting the polemic that constituted the thematic within the communist circles as
a central element of the contradictions that developed within the PCB of that period. Inserted in the
debates on the general strategic question, but with its own depth, the theme of the agrarian question,
with its focus on the reflections on the rural revolutionary subject and the quality of the stage of the
revolution and its tasks for the countryside, is a rich element of debates and in the middle of the
communist trajectory that accumulated in the middle of this period.
Keywords: BCP, Agrarian Reform, Peasantry.

Introdução

O Partido Comunista do Brasil (PCB)2 foi um dos principais atores políticos da história de
nosso país. Marcadamente, no interregno democrático pelo qual viveu o país no período que se
estende dos anos de 1945 até 1964, o PCB constituiu-se como ator protagonista na formulação e
organização dos setores de esquerda e de amplos setores da sociedade. Buscar refletir sobre esse

1
Bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF e bolsista de mestrado do programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade do CPDA/UFRRJ pelo CNPq;
2
O nome de Partido Comunista do Brasil (PCB) será usado pelo partido até o ano de 1961, quando esse, através de uma
mudança estatutária altera seu nome para Partido Comunista Brasileiro (PCB). Essa mudança tinha por objetivo a
reconquista de seu registro eleitoral, que fora cassado em 1946, sob alegação de não ser um partido nacional. Seu antigo
nome fora recuperado pelo grupo dissidente que saiu do PCB para fundar o Partido Comunista do Brasil (PC do B).

1266
período, como nos afirma Brandão (1997), encontra perspectiva central de compreensão da
dinâmica política através da análise que privilegie o Partido Comunista, como principal tendência
da miríade que compunha a esquerda pré-1964, e partir de suas elucubrações teórico-políticas para
em círculos concêntricos traçar um retrato da fisionomia político-intelectual que se conformou no
período em questão.

No entanto, fazem-se necessárias algumas considerações preliminares. Diversamente a como


se constrói uma narrativa oficial de um partido sobre si, o interessado em compreender os processos
políticos e os esforços formulativos de um partido político deve tomar precauções por evitar
tendências comuns de descontextualizar ou aplainar as contradições presentes nos processos
enquanto ocorrem. Compreender as formulações políticas dos comunistas brasileiros é compreender
a dinâmica de disputas que se operavam no seu interior e as soluções que se produziam, nunca
perdendo de vista a ação dos agentes sociais que se inseriam no contexto, tanto interno no partido
como externos, além das mudanças conjunturais que se produziram ao longo do tempo.

Nesse sentido, Brandão nos traz contribuição teórica interessante a ser considerada. Afirma
que a característica mais marcante, na formação do PCB enquanto partido político, tenha sido sua
condição de ilegalidade. Essa condição constituiu barreira para a constituição de uma consciência e
identidade políticas completas das classes subalternas no país, visto que a ilegalidade do partido
comunista era em si uma forma de ilegalidade da conformação de um partido declaradamente
classista.

“Ora, por maior que fosse a influencia do PC nesta ou naquela conjuntura, a


inexistência de um partido operário legal na arena política tornava ostensivamente
lento e difícil o processo de formação de uma consciência política de classe, pela
simples e boa razão de que nenhum movimento social chega a construir alguma
identidade na clandestinidade (...). Tanto no plano do partido como no da classe –
situações distintas, mas, no caso, confluentes – a limitação da discussão pública, a
impossibilidade de apresentar em seus próprios nomes propostas, candidaturas,
programas etc., tornava complicada a identificação e a seleção de amigos e
inimigos, de objetivos e de interesses” (BRANDÃO, 1997 – pp. 169-170).

A questão da ilegalidade, transformada em problemática teórica, orienta o olhar pelo qual se


podem analisar as relações políticas e teóricas pelas quais o PCB se insere no período estudado. A
condição de ilegalidade do partido influi na sua relação com as outras forças políticas, classes
sociais e com o Estado, como também nas relações internas do Partido, na medida em que essa
condição estrutura o planejamento estratégico do partido e manifesta diferentes formas de
compreensão de como superar esses limites estruturais pelos diferentes formuladores políticos
comunistas.

1267
Os limites evidentes que a ilegalidade do PCB produziu na sua auto-representação no Estado
e diante das diversas organizações e das classes, condicionou o PCB a se inserir no cenário político
enquanto uma força subalterna frente às forças políticas majoritárias na institucionalidade
(BRADÃO, 1997). O que o converteu num partido nacional-desenvolvimentista, na medida em que
interpunha ante seu objetivo estratégico revolucionário a crença numa etapa democrático-nacional,
que teria sua base social construída em aliança com uma burguesia nacional e seus partidos
(PRESTES, 2015). Objetivando influir no cenário político institucional, a direção política do PCB
acaba por ter na construção de superestruturas sindicais um instrumento para se credenciar para
intervir nos debates políticos institucionais que estavam postos (SANTANA, 2001).

Tal conjunto de elementos foi o centro das polêmicas que se maturaram no interior do PCB
pré-1964. A ilegalidade alimentará no interior do partido, por parte de setores importantes,
compreensões “militaristas/ insurrecionais” ou “cívicas/ politicistas” (BRANDÃO, 1997). Mesmo
que ambas não cheguem a superar o horizonte estratégico democrático-nacional (PRESTES, 2015),
elas produziram normativas para a ação política do partido junto às massas de maneira diferenciada
e que atravessaram o período. Sendo as tendências “insurrecionais” alimentadas ou por períodos de
maior repressão política nacionalmente ou por influência de revoluções ocorrentes no período; e as
tendências “politicistas” pelos momentos de maior liberdade política para sua intervenção política
em torno de uma “coalização democrática” mais ampla, que possibilitavam ao partido formular
novas concepções (SANTOS, 1991).

A política agrária do PCB esteve, dessa forma, diretamente condicionada pelas questões
expostas até aqui. Pelo caráter democrático-nacional que assumia seu programa, a questão agrária
e o problema camponês assumiram papel central nas preocupações políticas do partido. A
democracia passava necessariamente pela resolução da carestia das massas camponesas, maioria da
população e por essa razão a construção de uma base sólida de desenvolvimento nacional de
maneira autônoma.

Mesmo que já seja possível encontrar em períodos anteriores da segunda metade da década
de 1940 menções nos documentos e discursos do PCB e de seus militantes sobre a questão agrária ,
entendemos que o encontro dos comunistas com o campesinato no Brasil se dá a partir do fim do
Estado Novo varguista. Sendo atravessado e conformado dessa forma seu trabalho rural por essas
disputas e limitações.

Da Curta Legalidade a Radicalização Nacional-Libertadora

1268
O final do Estado Novo de Vargas, em 1945, o Partido Comunista lançava-se no cenário
político enquanto uma força política fortalecida pela campanha em prol dos direitos trabalhistas e
do apoio aos esforços de guerra contra a Alemanha Nazista. Sua estratégia da União Nacional, que
consistia na política de colaboração dos comunistas com o governo Vargas, objetivando
primeiramente a unidade em prol dos esforços de guerra e posteriormente a extinção dos
remanescentes fascistas, dera resultados expressivos e consolidara o partido enquanto a primeira
experiência de partido de massas da história do país (VINHAS, 1982).

A análise comunista compreendia, e assim será, mais ou menos sem alterações, ao longo de
todo o período do interregno democrático de 1945-64, que o problema central do desenvolvimento
nacional passava pela concentração de terras e pela miséria do campesinato. Por essa razão, o
caráter da etapa revolucionária deveria ser democrático-burguesa, dirigida prioritariamente pelo
proletariado e seu partido.

A possibilidade da construção de um governo democrático e de uma assembleia constituinte


autônoma aparecia aos comunistas como o meio eficaz de promover as mudanças sociais
necessárias para a transformação da antiga ordem social. Luiz Carlos Prestes exortava em discurso
no São Januário em 1945:

“Estamos convencidos de que dentro de um Parlamente democrático livremente


eleito, de que participem os genuínos representantes do povo, será possível e
relativamente fácil encontrar a solução progressista de todos os nossos problemas.
Será possível então legislar sobre a propriedade da terra em particular dos
latifúndios abandonados nas proximidades dos grandes centros de consumo e das
vias de comunicação já existentes, colocando seus donos ante o dilema inexorável
de explorá-los por métodos modernos ou de entrega-los ao Estado para que sejam
suas terras distribuídas gratuitamente à massa camponesa sem terra que nelas
queira viver, trabalhar e produzir para o mercado interno em expansão e cada vez
mais livre, de que tanto necessita a nossa indústria” (VINHAS, 1982 – p.104).

A legalidade do partido e a dissolução de todos os dispositivos autoritários do Estado Novo


se apresentavam em seu discurso como o meio necessário para construir uma democracia
progressiva e um programa de União Nacional (PRESTES, 2010). Seus resultados eleitorais são
significativos para a época. No pleito eleitoral de 1945, seu candidato a presidente, Yeddo Fiúza,
alcança 10% do eleitorado nacional; elege 14 deputados e um senador constituintes, sendo a quarta
bancada da Assembleia Constituinte. Adiante, no pleito de 1947, seus resultados se mantêm em alta,
elegendo 64 cadeiras nas assembleias legislativas de quinze estados; conquistando a maior bancada
na Câmara Municipal do Distrito Federal, com 18 vereadores, etc. Além de enorme expressão
quantitativa, as bancadas comunistas se mostravam muito ativas, como na própria Assembleia

1269
Constituinte, em que propôs 180 emendas ao texto constitucional, que em sua maioria foram
vetadas pela maioria conservadora dos legisladores (PRESTES, 2015).

A constituinte, longe de desenhar-se com a desejada qualidade progressiva da democracia


que então surgia, acaba por ser um grande golpe às intenções progressistas e de democratização da
sociedade, e subsequentemente do acesso à terra no país. Luiz Carlos Prestes, eleito senador
constituinte em 1946, discursou para o plenário denunciando o aspecto arcaico e concentrado na
exploração da terra no país e propôs à Assembleia “encontrar solução legal” para “armar
constitucionalmente o governo” para resolver esses problemas sociais.

Para tanto, busca introduzir algumas modificações de emendas: primeiramente referente ao


direito de propriedade, lhe condicionando de acordo com o “interesse social ou coletivo” ou em
prejuízo ao “respeito às liberdades individuais” e o “bem-estar social”; assim como sobre a “fixação
do homem do campo”, através do “fracionamento do latifúndio” e da “entrega das terras devolutas”
as massas camponesas. (PRESTES, 2005 – pp.26-27). Seu discurso é interrompido com falas dos
parlamentares desmotivando-o, afirmando ser o plenário constituinte composto “de uma elite saída
das classes beneficiadas pela situação atual” de predomínio do latifúndio.

Mesmo que seus resultados eleitorais fossem significativos, sua organização junto às massas
populares que o apoiavam, eram apontadas pelos próprios comunistas como insuficientes para a
execução das tarefas democráticas. Como resultado da sua III Conferência Nacional em 1946,
definia assim o PC sua relação junto às bases políticas populares:

“Para impulsionar a União Nacional cabe ao Partido intensificar rapidamente sua


ligação com as massas. Apesar dos êxitos alcançados nesse terreno, ainda é débil
essa ligação. Devemos, portanto, empregar todos os esforços para fazer a União
pela base através da mobilização das massas nos locais de trabalho, nos sindicatos,
nas ligas camponesas, nas associações diversas, nos bairros e ruas abrangendo o
proletariado, os amplos setores do povo, a juventude e as mulheres” (CARONE,
1982 – p. 68).

O trabalho camponês aparecia como uma exigência política concreta dos comunistas. Em
fins de 1945, na ocasião do Pleno Ampliado do Comitê Nacional, os comunistas apontavam a
necessidade de destacar quadros políticos para o trabalho junto ao campesinato para conformar a
aliança operário-camponesa, entendida como base de um processo revolucionário (MEDEIROS,
1995). A emergência posta se dava pelas dificuldades que enfrentava junto ao embate contra os
setores conservadores, que se conformaram tanto na Assembleia Constituinte como no governo
Dutra. O giro de militantes urbanos para o trabalho no campo demostrava essa preocupação da
constituição de um trabalho rural “rapidamente”.

1270
Inicialmente constituídas de maneira prudente e sob a perspectiva de evitar confrontos que
pudessem vir a prejudicar a União Nacional, os comunistas iniciam no campo a organização das
Ligas Camponesas, entidades de mútua ajuda e de mobilização política democrática (COSTA,
1996) e correlatas as experiências dos Comitês Democráticos Populares de conteúdo
predominantemente eleitoral. Como podemos ver na Resolução da III Conferência do PCB, suas
pautas de mobilização do campesinato afastavam-se da perspectiva mais geral para assumir as
necessidades entendidas como imediatas dos camponeses:

“Nessa tarefa, deve o Partido, utilizando a nova e rica experiência dos trabalhos
realizados no Triângulo Mineiro e em São Paulo, aplicar métodos que lhe facilitem
esse trabalho, sendo indispensável que abandonemos as formulações mais gerais a
fim de apresentar as reivindicações imediatas dos camponeses. A posse da terra é
certamente a maior reivindicação das massas camponesas, mas seria errôneo
pretender mobilizar essas massas em torno dessa palavra de ordem apresentada
isoladamente, sem ligá-la àquelas reivindicações menos radicais, porém capazes,
uma vez conquistadas, de trazer melhoras, por menores que sejam, à situação de
miséria dos camponeses” (CARONE, 1989 – p. 69)

Somava-se a esse quadro, que o trabalho rural do partido não possuía unidade nacional, já
que era realizado pelas Comissões de Campo Estaduais do PCB, atuando de maneira diversa
dependendo da leitura regional que o partido fazia (COSTA, 1996).

O insucesso da intervenção comunista na Constituinte e o golpe profundo da cassação de seu


registro e de seus mandatos em 1947 influíram de maneira decisiva na conversão da linha de União
Nacional, com vistas à estabilidade do regime democrático-legal, numa linha de mobilização
popular em torno de um programa insurrecional que veio a se acumular nos Manifestos de Janeiro
de 1948 e de Agosto de 1950, em que encontra na construção da Frente Democrática de Libertação
Nacional o auge de construção política. “Difunde-se entre os militantes do PCB o amargo
sentimento de que haviam superestimado a liberal-democracia” (KONDER, 1980).

O partido, nessa fase, analisa de maneira autocrítica sua maior participação na luta
institucional, e passa a avaliar que apenas uma aliança feita “por baixo” poderia alterar o quadro de
profundo atraso e desigualdade social. No Manifesto de Janeiro de 1948 afirmava que a burguesia,
“convertendo por completo suas instituições constitucionais”, impunha a “ditadura das classes
dominantes”, desmascarando o “caráter de classe da atual ‘democracia’ brasileira” (CARONE,
1982 – p.73).

A burguesia nacional que anteriormente apresentava-se como uma das forças sociais
interessadas na superação da condição semi-feudal do campo brasileiro era compreendida agora
como uma força apoiadora das forças latifundiárias, o que a retirava do arco das forças

1271
democráticas. No Informe Político do Comitê Nacional de 1949 podemos ver apreciação
interessante que irá ser centro dos debates das concepções “insurrecionais” e “politicistas” ao longo
do período:

“A burguesia brasileira, devido à sua própria origem, e ao processo de sua


formação, jamais lutou contra o feudalismo, trata de adaptá-lo aos seus interesses,
conservando-o e a ele se aliando para uma luta contra as massas trabalhadoras. É
por isso mesmo uma burguesia retrógrada, covarde e pusilânime que, não por
acaso, muito se assemelha à burguesia alemã dos meados do Século XIX,
igualmente formada à sombra dos restos feudais e da conservação do junker
prussiano” (CARONE, 1982 – p.100).

Os termos de discussão eram os expressos pelo pensamento lenineano presentes, por


exemplo, em seu Informe sobre a atitude em relação aos partidos burgueses de 1907 (LENIN,
2013) sobre os meios de consolidação de uma revolução democrático-burguesa: de tipo prussiana e
tipo norte-americana. Aquela em que a resolução da Questão Agrária e a superação dos restos
feudais ocorrem em detrimento dos interesses camponeses, através de uma aliança das classes
latifundiárias e burguesas; e essa, em que a insurreição camponesa e o confisco e repartição das
terras produz um tipo de revolução mais favorável aos camponeses e ao desenvolvimento nacional.

Visando unificar a política nacional, a propagandística principal nas folhas do jornal Voz
Operária passa a incentivar a ação das massas camponesas em prol da tomada da terra de maneira
imediata, visto que na concepção do partido, “sem a conquista da terra, nenhum direito poderia ser
garantido aos trabalhadores” (MEDEIROS, 2005 – p. 102), tendo o caso da guerrilha de Porecatu,
como exemplo emblemático do sentido político que o trabalho do partido no campo deveria tomar.

Sua guinada política, no entanto, não se produziu de maneira coerente a toda a ação do
partido e ensejou contradições profundas nas diferentes esferas partidárias. Marco Aurélio Santana
(2001) assim explicita essas contradições:

“Levando-se em conta passagens dos relatos citados, vemos que um dos grandes
problemas do partido foi o enfrentamento de uma certa consciência sindicalista.
Esse tipo de problema pode ser caracterizado por uma sobredeterminação da órbita
do partido por um outro tipo de identidade, isto é, para além do fato de ser militante
do partido, o trabalhador estaria envolto em outros tipos de relações que,
dependendo do momento, se fariam inerentes à prática do PCB” (SANTANA,
2001 – p.78)

Lyndolpho Silva, histórico militante do PCB na questão agrária, viria anos mais tarde, em
entrevista com Paulo Riberio Cunha (2004), afirmar que não havia condições em sua ação junto aos
posseiros do sertão carioca para a mobilização de cunho insurrecional. Leonardo Santos expressa
essa dualidade na prática do partido em diferentes realidades:

1272
“O certo é que se em algumas regiões como no nordeste do Paraná, Triângulo
Mineiro e Goiás, o PCB tentava implantar por meio de ações armadas de posseiros
e arrendatários as ‘frentes democráticas de libertação nacional’; em regiões como a
Baixada Fluminense (Rio de Janeiro) e Sertão Carioca (Distrito Federal) as ações
de resistência orientadas pelos comunistas eram articuladas com base nos textos
legais. Aqui os posseiros se preocupavam em como articulariam a reivindicação do
usucapião a partir do código civil” (SANTOS, 2012: p.11).

A inconstância na aplicação da política orientada pela direção do PCB encontra oposição da


base sindical do partido, que conseguirá, através Ativo Sindical Nacional de 1952 pressionar o
conjunto partidário a reformular suas teses, ao menos no âmbito sindical, o que produzirá uma
inflexão gradual no programa político do partido nos anos seguintes (SANTANA, 2001). Essa
mudança no programa sindical será o elemento impulsionador do trabalho rural do partido na
perspectiva de constituir o movimento através das organizações civis e inserção no jogo
institucional, e para isso organizando a I e a II Conferência Nacional dos Trabalhadores Agrícolas
em 1953 e 1954 respectivamente, na gênese do instrumento nacional dos comunistas para
intervenção rural do PCB, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB)
(COTAS, 1996).
O IV Congresso Nacional do PCB (1954), mesmo que fortemente controlado para a linha
estratégica não fosse contestada (SANTOS, 1991), já sofrera consideravelmente a influência do
Ativo Sindical de 1952. A burguesia nacional fora reinserida no arco de alianças (PRESTES, 2015),
contestando assim a leitura que sustentava a linha insurrecional de que a burguesia nacional
assemelhava-se aos junkers alemães.
O amadurecimento do trabalho do PCB no campo, realizado na formação do da ULTAB,
produziu mudança significativa na leitura do PCB sobre as condições objetivas do campo brasileiro
e na nacionalização destes acúmulos. Passa a figurar nos documentos do congresso e no discurso de
Calil Chade3, responsável pelo trabalho no campo do partido, uma mais aprofundada análise da
configuração das classes e setores de classe, juntamente com suas demandas. Diante disso, também,
o que já se produzia de maneira mais clara para a cidade, se impõe a necessidade de construir uma
“amplíssima frente única no campo” dos camponeses ricos, médios e pobres; excluindo apenas a
minoria de latifundiários (MEDEIROS, 1995).
A mobilização das camadas camponesas é costurada não mais pela ação de agitação feita
por quadros políticos do partido, mas através da integração do sindicalismo urbano com as massas
camponesas em torno da luta por direitos e com recurso aos meios legais. Vejamos como Calil
Chade expõe em seu discurso ao IV Congresso essa perspectiva:

3
De acordo com Costa (1996), Calil Chade usara durante o IV Congresso o pseudônimo de Oto Santos.

1273
“Com a realização destas duas conferências [ I e a II CNTA], colocamo-nos no
justo caminho da conquista das massas camponesas para a aliança com o
proletariado. Na verdade, só é possível mobilizar e organizar as massas atrasadas e
dispersas de assalariados agrícolas e camponesas, recorrendo à ajuda direta das
organizações da classe operária, mobilizando-as e aos seus líderes para realizarem
um amplo trabalho organizativo e de esclarecimento entre os assalariados agrícolas
e os camponeses. É assim que se vai construindo praticamente a aliança entre os
operários e os camponeses” (SANTOS, 1996 – p.48)

Segue no seu discurso enfatizando que as tendências sectárias do período anterior


expressavam-se no campo numa leitura estreita frente às massas camponesas. “Trabalhamos apenas
com setores restritos das massas camponesas, isto é, com aqueles setores que se encontram mais
próximos ao Partido e que aceitam mais facilmente as nossas palavras de ordem. Muitas vezes
substituímos nas lutas a massa pela vanguarda” (SANTOS, 1996 – p. 50).
Mesmo que o resultado do IV Congresso mantivesse em suas resoluções as perspectivas
“insurrecionais” de derrubada do governo, a descaracterização dessa linha estava colocada com a
revisão do papel da burguesia nacional, com sua reinserção no arco de alianças de uma revolução
democrático-nacional e na revisão do trabalho junto ao campo, afastando as tendências
insurrecionais referentes ao trabalho no campo, que possuía centralidade nas teses anteriores.

Da Declaração de Março de 1958 ao Congresso de BH

A tentativa de golpe que levou Vargas ao suicídio em 1954 e a crise provocada pelo
Relatório Secreto de Khrueschev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética em
1956, foram golpes profundos nos setores que mantinham aberta defesa da linha insurrecional
contidas no Manifesto de Agosto de 1950. A explosão que se deu com a abertura dos debates a
respeito do XX Congresso, não se resumia apenas aos fatos transcorridos na União Soviética, mas
estiveram intrinsecamente definidas pela discussão estratégica do partido e seu funcionamento
interno.
Manifestaram-se diante da crise três tendências substantivas em torno da questão do debate,
primeiramente quanto ao XX Congresso e posteriormente quanto à própria política e organização
partidária: os conservadores, os renovadores e o centro pragmático (SEGATTO, s/d). Sendo os
primeiros os defensores da linha insurrecional, conformados entorno dos antigos dirigentes João
Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar e o antigo responsável pelo trabalho agrário do partido
Calil Chade; o segundo grupo, defensor de propostas prioritariamente nacionalistas e
antiimperialistas, agrupados em torno de Agildo Barata; e o terceiro em que se agrupava uma
diversidade maior de concepções, mas que se estruturaram entorno da defesa da unidade do partido,

1274
liderada por Prestes, contando com a presença de alguns dirigentes como Giocondo Dias, Jacob
Gorender, Mário Alves e Dinarco Reis, esse inclusive, que veio a ser o responsável pelo trabalho
agrário do partido nesse novo período.
O grupo renovador será logo expulso do partido sob acusação de atividades anti-partido,
mas cabe aqui uma apreciação de sua concepção estratégica. Ainda no interior do partido, Barata
escreve seu texto Pela Renovação e o Fortalecimento do Partido em 1957, em que analisava que no
país avança de maneira descompassada as lutas antiimperialistas e a luta camponesa, o que afastava
a possibilidade de uma revolução democrática-nacional no país se constituir através de medidas
agrárias de caráter radical.
“Dadas a penetração do capitalismo na agricultura, as dificuldades que o setor
enfrentava com o quase monopólio de comércio exterior e as possibilidades de se
encontrar melhores preços no mercado socialista para os produtos agrícolas, Barata
admitia a possibilidade de setores do latifúndio participarem da frente anti-
imperialista” (COSTA, 1996 – p. 47).

Tal formulação influenciará, mesmo que de maneira indireta, a formulação do que virá a ser
a nova política contida na Declaração de Março de 1958, redigida pelo centro pragmático da
direção partidária. Ambas coincidiam programaticamente a respeito do caráter da revolução
brasileira. “Ambos estavam sob a influência das concepções nacionalistas então em voga no
cenário político brasileiro” (PRESTES, 2010 – p.149). O centro pragmático se aproximará dessas
teses renovadoras em meio à disputa contra o setor conservador (SEGATTO, s/d). Podemos ver
como na Declaração de Março de 1958 é caracterizada a frente única:
“Ao inimigo principal da nação brasileira se opõe, porém, forças muito amplas.
Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente pelos interesses
gerais da nação; os camponeses interessados em liquidar uma estrutura retrógrada
que se apoia na exploração imperialista; a pequena burguesia urbana, que não pode
expandir as suas atividades em virtude dos fatores de atraso do país; a burguesia,
interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional;
os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-
americano, derivadas da disputa em torno dos preços dos produtos de exportação,
da concorrência no mercado internacional ou da ação extorsiva de firmas norte-
americanas e de seus agentes no mercado interno; os grupos da burguesia ligados a
monopólios imperialistas rivais dos monopólios dos Estados Unidos e que são
prejudicados por eles” (CARONE, 1982 – p. 185).

A adoção das teses renovadora aqui são parcialmente assimiladas, na medida em que, a
frente única se expande e insere no conjunto de forças sociais progressistas “os setores
latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano”. O horizonte da
Reforma Agrária inseria-se num intrincado esquema de etapas, que agora se submetia aos acordos
políticos com setores de interesses conflitantes a uma reformulação radical da estrutura fundiária. A
proposta de inclusão de setores do latifúndio no interior da frente única será ponto de contradições

1275
no cenário posterior. Excluía-se a ideia do confisco de terras, para privilegiar outros aspectos mais
ligados à disputa político-institucionais focadas na luta por direitos trabalhistas e sociais
(MEDEIROS, 1995).
A partir da nova política consolidava-se o caminho privilegiado de ação dos comunistas
junto as massas. Passava a se considerar viável que a revolução brasileira se daria por um caminho
pacífico, diante das conjunturas internas e externas de desenvolvimento econômico e coexistência
entre as forças capitalistas e comunistas. A Declaração de Março possibilitará a abertura de
“espaços para o PCB atuar de forma menos oculta, retomando a questão da democracia e
entendendo que as reformas deveriam ser alcançadas pacificamente, combinando as ações
parlamentar e extraparlamentar” (COSTA, 1996 – p.50).
Constavam nos documentos uma prioridade na organização dos proletários rurais,
trabalhadores assalariados e semiassalariados do campo, na ação dos comunistas junto às massas
rurais. Para essa questão, Alberto Passos Guimarães, intelectual comunista de relevância e um dos
redatores da Declaração de Março, em uma tribuna de debates do V Congresso Nacional do PCB
(1960), diante das enormes dificuldades na organização das massas camponesas, escreve assim:
“Portanto, do ponto de vista da criação da aliança operário-camponesa, a frente da
luta de classe dos assalariados e semiassalariados agrícolas (que muito
frequentemente aliam à condição de assalariados à condição camponesa) tem
principal preponderância sobre as demais. Por intermédio dessa frente será possível
montar as correias de transmissão que irão ligar o proletariado e o movimento
democrático das cidades aos camponeses e ao movimento democrático do campo”
(GUIMARÃES, 2011 – p. 103).

Seria a construção do movimento sindical no campo o meio de ligar o movimento


camponês, entendido como em atraso frente à luta anti-imperialista, pelo autor, ao movimento
democrático e nacionalista das cidades. Opera esse pensamento numa lógica da representação e na
construção das superestruturas políticas, que permeavam o PCB. A construção das federações de
sindicatos rurais e de associações de lavradores, a mobilização do Congresso de BH, a promoção de
campanhas pela Reforma Agrária, até a corrida pela hegemonia do processo de formação da
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG tinham por objetivo a
construção da superestrutura sindical que lhe possibilitaria influir na disputa política nacional.
Quando definitivamente formada e reconhecida legalmente, a CONTAG será uma das quatro
confederações que darão sustentação política para o reconhecimento legal da Central Geral dos
Trabalhadores – CGT, dirigida pelos comunistas em aliança com os sindicalistas trabalhistas
(SANTANA, 2001).
Contudo, o fato dos comunistas terem sido parcialmente derrotados com a aprovação da
consigna da Reforma Agrária Radical no Congresso de BH evidencia um quadro complexo de ser

1276
compreendido, e que possui nas divergências internas do partido um dos elementos constitutivos
desse fato histórico.

Entre uma Reforma Parcial ou Radical

O início da década de 1960 é atravessada por uma turbulência de enormes proporções no


cenário político-econômico. A eleição de Jânio Quadros presidente, apoiado em bases
conservadoras, com dobradinha com João Goulart, expoente do trabalhismo brasileiro constituía um
quadro de enorme instabilidade institucional e de indefinição da política do governo. A política
ambígua realizada por Jânio em seus poucos meses de governo, como sua inesperada renúncia à
presidência da República aumentaram essa indefinição.
Com a posse de Jango, em 1961, iniciava para os comunistas uma nova fase para a aplicação
das resoluções partidárias consolidadas na Declaração de Março e nas Resoluções do V Congresso
de 1960, mantendo o eixo democrático-nacional da revolução, mas voltando-se para medidas mais
enérgicas de pressão, visando à recomposição do governo para a execução das reformas de base
(PRESTES, 2015). Marco Aurélio Santana afirma que:
“É evidente na atuação comunista, neste momento, a tensão entre a posição mais
reformista e aquela mais radical. Uma, acreditando na continuidade da articulação
com Jango; a outra, acreditando na radicalização dos movimentos dos
trabalhadores. De certa maneira, as duas superestimavam, demasiadamente, suas
posições e possibilidades diante dos avanços das forças conservadoras”
(SANTANA, 2001 – pp. 98-99).

A primeira das divergências está clara com o racha que produzirá o PC do B. Organizado
pelos setores conservadores derrotados tanto no pleno de 1958 e no V Congresso de 1960.
Recompuseram-se enquanto uma nova organização e buscaram retomar os elementos insurrecionais
que marcaram sua maior atividade na vida partidária do PCB. Porém as concepções mais radicais a
que Santana se refere, devem ser vistas no interior da nova maioria constituída no partido.
A vitória da consigna da Reforma Agrária Radical, defendida pelas Ligas Camponesas
ligadas a Francisco Julião é sintomática de uma contradição interna do PCB, que era maioria no
Congresso de BH. Leonildes Medeiros defende a “hipótese de que entre os militantes do PCB no
campo havia maiores proximidades com seus opositores das Ligas do que a literatura, que enfatiza a
divergência, deixa perceber” (MEDEIROS, 1995 – p. 111).
Podemos ver expresso esse diálogo entre setores internos do PCB com as ligas na tribuna de
debates de Nestor Vera, dirigente nacional da ULTAB e militante de destaque no trabalho rural do
PCB, para o V Congresso. Nela Nestor expôs suas preocupações com a prioridade que ele entendia

1277
que o partido dava aos setores burgueses e latifundiário em detrimento da causa camponesa.
Afirmava ser o campesinato a questão central da revolução brasileira, sendo necessário defender
desde já a Reforma Agrária Radical, de desapropriação do latifúndio. Denuncia que as propostas de
medidas parciais eram caudatárias das concepções dos partidos burgueses que não solucionariam a
concentração fundiária nem a exploração do camponesinato. (SANTOS, 1996).
Tanto a base política do partido no campo veio a se contrapor à formulação geral de ênfase
no proletário rural, como os objetivos e os meios de mobilização camponesa sofrem reveses na ação
política efetiva. “Muito claramente, a prática comunista demonstrava que a preocupação esteve
voltada para os arrendatários e posseiros”, e isso se constituiu na medida em que “o grande choque
no campo não era com os assalariados, mas sim com os pequenos proprietários, arrendatários e os
posseiros” (COSTA, 1996 – pp.77-78).
O centro das divergências no Congresso de BH se deu em torno da questão da
regulamentação do arrendamento e da parceria, com medidas parciais de reforma agrária,
defendidas pela linha oficial do partido comunista; ou o confisco da propriedade da terra em
benefício de quem efetivamente trabalha nela, pela lei ou pela marra, defendida por Julião. Sai
vitoriosa a concepção defendida por Julião.
O resultado desse congresso produzirá uma reconfiguração das disputas internas do PCB. A
partir da Conferência Nacional do PCB de 1962, o partido tem uma guinada à esquerda, assumindo
que o caráter conciliatório de Jango estava atrasando as reformas estruturais transformadoras
(SEGATTO, s/d). Podemos ver essa mudança referente à questão agrária no texto Os comunistas e
a situação política nacional, publicano no jornal Novos Rumos em 1963:
“As massas trabalhadoras do campo não poderão ficar de braços cruzados à espera
de medidas que já são inadiáveis, devendo organizar suas forças e lutar
concretamente contra o monopólio da terra, negando-se a pagar a meia, o foro ou o
arrendamento, não aceitando o pagamento em vales para o barracão, enfrentando
com decisão os grileiros e seus capangas, organizando a ocupação dos latifúndios
inexplorados” (CARONE, 1982 – p. 260).

Conclusão

A ilegalidade política que se impõe ao longo da trajetória política do PCB é estruturante de


sua conformação enquanto partido. Tanto sua posição subalternizada diante dos partidos e das
concepções político-ideológicas dominante da sociedade brasileira de então, como suas duas almas,
“insurrecionais” e “politicistas” são produtos de um partido que não lhe foi permitida a inserção
autônoma na dinâmica política do Estado Moderno. Dessa maneira, “ao reforçar as características
‘intensamente elitistas’ do jogo político, a permanente ilegalidade forçava o próprio PC ao

1278
‘entrismo’, a se elitizar para sobreviver e alcançar alguma eficácia em sua ação” (BRANDÃO, 1997
– p. 173). Com isso, o PCB não logrou agir na constituição de um verdadeiro bloco histórico, o
sujeito-povo, na medida em que, apoiado na ideologia dominante, não consolidou suas ações em um
processo contra-hegemônico junto aos amplos setores populares subalternos (PRESTES, 2015). Sua
ação constitui-se na busca por sua inserção no cenário político nacional através da
instrumentalização dos instrumentos de organização de classe (SANTANA, 2001).
O problema camponês não foi diferente. Primeiramente, em 1945, a partir de uma leitura
afastada da realidade concreta em que vivia o campesinato brasileiro, o PCB buscou modificar a
estrutura fundiária altamente concentrada através das emendas à nova Constituição, sem um amparo
de um movimento camponeses organizado. Porém a composição da constituinte majoritariamente
de latifundiário impede sua realização. A seguir, converte-se a análise do partido, com a cassação
do registro e dos mandatos comunistas, numa descrença no estado e na democracia, passando o
camponês a figurar como o guerrilheiro, a exemplo de Porecatu, buscando generalizar seu caso de
conflito a todas as bases.
Tal formulação é progressivamente rejeitada pelas próprias contradições que estabelece no
interior do partido e já acaba por ser abandonada no IV Congresso, em que pese à manutenção das
palavras de ordem insurrecionais, inseria a concepção de frente única no campo e a luta por direitos
trabalhistas e sociais como instrumentos de mobilização junto aos camponeses.
A Declaração de Março e sua nova política, produto de contradições internas,
convulsionadas pelos debates abertos com a crise do XX Congresso do PCUS, insere na frente
única os setores latifundiários, e estabelece uma concepção de Reforma Agrária que retira o
confisco de terras como meta, e se foca na luta por direitos, entendendo que a etapa que estava
colocada, não comportava medidas agrárias radicais, em detrimento da manutenção da frente única.
Concepções que serão rebatidas no Congresso Camponês pelos setores julianistas, que possuíam
apoio em setores internos do PCB, contrários a política agrária contida nas formulações da
Declaração de Março de 1958. Porém, como indica Santana (2001), ambas as posições acabavam
por superestimar por demais suas possibilidades diante do avanço dos conservadores que se
consagrara no golpe civil-militar de 1964.

Bibliografia:

BRANDÃO, Gildo Marçal. A Esquerda Positiva: as duas almas do partido comunista –


1920/1964. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997;

1279
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MEDEIROS, Leonildes Servolo de. Lavradores, Trabalhadores Agrícolas, Camponeses: os


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PRESTES, Anita Leocadio. Os Comunistas Brasileiros (1945-1956/58): Luiz Carlos Prestes e a


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SANTANA, Marco Aurélio. Homens Partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo:
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Campos dos Goytacazes: Núcleo de Estudos e Pesquisa em Teoria Social (NEPETS)/UFF, vol. 1, nº
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VINHAS, Moisés. O Partidão: a luta por um partido de massas 1922-1974. São Paulo: Editora
HUCITEC, 1982;

1281
O passado clássico na paisagem do Rio de Janeiro, por quê?

Leonardo Judice Amatuzzi1

Resumo: O ano de 1808 foi aquele em que a Corte Real ligada à Coroa Portuguesa se transferiu
para o Brasil. Esses que vieram trouxeram consigo todo o imaginário que fundamentava uma visão
de mundo essencialmente metropolitana. Quanto a isso, cabe destacar que estamos falando sobre
mentalidades e forças institucionais construídas com base no alcance e no poder estrutural e
potencialmente estruturante de um dos maiores impérios da história humana. Nesse sentido,
interessa-nos validar a premissa de que a elite cortesã comandou, à sua maneira, uma verdadeira
transformação na paisagem da cidade do Rio de Janeiro. O foco da pesquisa são as transformações
que têm ligação com a Cultura Clássica, já que essa foi basilar para o desenvolvimento de todos os
grandes Estados do século XIX. A ideia é relacioná-las com o principal projeto criado no Brasil
após o desembarque do monarca: a criação da nação brasileira.

Palavras-chave: Corte; Clássica; Nação.

Abstract: In 1808, the Royal Court with the Portuguese Crown moved to Brazil. Those who came
brought with them all the imagery thoughts that underlay the view for the essentially metropolitan
world. In this regard, it should be noted that we are talking about institutional mentalities and
institucional forces built based on the reach and structural and potentially structuring power of one
of the greatest empires in human history. In this meaning, we are interested in validating the
premise that the elite commanded court, in its own way, the true transformation in the landscape of
the city of Rio de Janeiro. The focus of this research is the transformations that have a connection
with Classical Culture, since it is a basic tool for the development of all the great states of century
XIX. The idea is related to the main project created in Brazil after the arrival of the monarch: the
creation of the Brazilian nation.

Keywords: Court; Classical, Nation.

Introdução

1808, esse é ano que marca a transferência da Corte Real ligada à Coroa portuguesa para
o Brasil. Período em que Napoleão avançou com suas tropas sobre a Europa continental, o início
do século XIX foi também o momento em que boa parte dos componentes dessa elite lusitana2
acabou trazendo para os Trópicos todo o imaginário que caracterizava suas visões de mundo,

1
Doutorando – PPGArq - Museu Nacional - E-mail: leonardoamatuzzi@gmail.com - Apoio para pesquisa: CAPES
2
De acordo com a historiadora Lilia Moritz Schwarz, em As Barbas do Imperador (2009), a Corte desembarcou no
Brasil com cerca de 20 mil componentes saídos de terras portuguesas.

1286
conforme pontua o historiador Luis Felipe Alencastro (1997). Quanto a isso, cabe destacar que
estamos falando sobre mentalidades construídas com base no alcance e no poder de um dos
maiores impérios da história humana, o que definitivamente não quer dizer pouca coisa.
Sendo assim, o texto que aqui se inicia busca investigar justamente alguns dos conceitos
trazidos por esses recém-chegados. A hipótese principal da pesquisa realizada para a construção
das páginas que se seguirão é a de que essas ideias acabaram configurando-se em vestígios vitais
para que se possa entender o principal processo de transformação ocorrido na antiga colônia após
o desembarque do monarca: a criação da nação brasileira. Vejamos, então, se os caminhos
percorridos até aqui darão margem para traçarmos alguns pontos específicos da formação de uma
nova corte sul-americana.

De país para Nação


O desembarque da monarquia lusitana no Brasil fez surgir uma grande pressão para que
uma série de conceitos e práticas característicos do pensamento colonial sofressem reformas
profundas em relação ao que era estabelecido nessa parte do mundo. A construção dessa nova
forma de enxergar a realidade deveria se dar sob uma ótica que pudesse garantir a hegemonia dos
setores “de cima”3. Diante disso, tomarei a dicotomia entre as ideias de país e Nação como um
recurso didático para demarcar algumas dessas reformulações, já que essas são pensadas aqui
como a base para a criação do projeto nacional brasileiro.
Para entender melhor os termos dessa diferenciação, acredito que seja interessante
recorrermos ao diálogo com alguns autores que se dedicaram a tentar decifrar os pormenores que
demarcam a amplitude da tarefa de superar a noção de país e gerar nas pessoas um sentimento
totalmente baseado num novo conceito de nação. Isso será feito logo após a explicação inicial dos
pontos que demarcam a diferenciação entre país e nação. A nação, por ser o ponto de chegada
dessa caminhada, terá um destaque maior no conjunto do texto, pois a mesma pressupõe um
projeto profundamente complexo, cujo objetivo é a criação de um sentido de pertencimento entre
as pessoas e os preceitos que dão forma ao projeto nacional.
Diferente disso, a noção de país é definida neste texto a partir do caráter de domínio
exercido por parte do Estado em relação às principais questões da vida social e cultural das
pessoas estabelecidas num mesmo território. Sobre essa questão relacionada ao domínio
territorial enfraquecido no que diz respeito ao sentimento de pertencimento, quem nos traz
contribuições importantes é o historiador Jurandir Malerba (1999), que descreve o sistema

3
Podemos entender essa pressão por uma reforma conceitual nos mecanismos que regem o cotidiano a partir dos
preceitos que fundamentam a lógica de hegemonia cultural desenvolvida por Antonio Gramsci em seu livro intitulado
Concepção Dialética da História, reedidato no Rio de Janeiro em 1978.

1287
colonial português e a lógica mercantilista imposta ao Brasil como elementos de domínio
responsáveis por uma ocupação e exploração dramaticamente depredatória e extensiva4. Não
havia, portanto, necessidade alguma de criar laços de pertencimento com o território brasileiro. O
Brasil colonial, de acordo com Malerba, não era uma nação e nem precisava ser.
Desse modo, então, considerando que a palavra nação envolve um sentimento de
pertencimento e a ideia de país se define a partir da lógica hierarquizada de domínio, vamos
percorrer a seguir algumas das rotas onde as diferenças entre esses dois conceitos ficam bastante
claras. Levando em conta que o sentido do texto é o de rever os lugares pensados para a gestação
da nação brasileira, cabe aqui refletirmos sobre quais foram os elementos encarados como
necessários para gerar um projeto nacional. Esse projeto, aliás, diferentemente de muitos outros,
teve de ser gestado a partir de um contexto imperial dado com a elevação do Brasil ao patamar de
Reino Unido, juntamente com Portugal e Algarves, em 1815.

A nação em debate
O primeiro autor que utilizo para me ajudar nessa tarefa de procurar os dados utilizados
para criar um projeto de nação brasileira é o historiador britânico Eric Hobsbawm (2004) que,
logo nas páginas iniciais de seu texto – não específico sobre o Brasil, mas ótimo no que diz
respeito ao tema nacional –, localiza o sentido moderno do termo “nação” como não sendo mais
velho do que os anos iniciais do século XVIII5. A importância da localização temporal desse
entendimento considerado como moderno se dá pela quebra que ela impõe sobre a sensação de
que as nações são tão antigas quanto a própria História, conforme afirma o autor em crítica aberta
ao ensaísta britânico Walter Bagehot6.
Além disso, é preciso dizer que o ato de especificar que há um sentido moderno para o
termo indica que a ideia de nação não possui um conceito fechado em seu significado, de modo
que podemos pensar essas questões a partir da premissa de que há nações e nacionalismos.
Pensando assim, Hobsbawm destaca uma série de pontos que tornam verdadeiramente hercúlea a
tarefa de definir de maneira precisa esse “novo” conceito, tão complexo e ainda assim tão
espantosamente naturalizado na cabeça das pessoas como algo aparentemente coeso e bem
delimitado. “Todos sabem o que a nação é, mas ninguém consegue explicar muito bem quais são os
elementos que a formam”.

4
MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889), Maringá : Eduem, 1999., p.5-27.
5
HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismos desde 1870. Paz e Terra: São Paulo, 2004, p. 13.
6
BAGEHOT, Walter. Physics and Politics; or Thoughts on the Applications of the Principles of “Natural Selection”
and “Inheritance” to Political Society. Londres: Henry King, 1872; Ontario: Batoche Books, p.83.

1288
Outro ponto levantado pelo autor é referente ao fato de ser extremamente pantanoso o
terreno onde se chancela qual coletividade humana pode se entender enquanto formadora de uma
nação e qual agrupamento não pode. A respeito dessas dificuldades, o historiador inglês aponta
alguns critérios gerais normalmente usados para tentar superar os problemas causados por essa
amplitude, a fim de determinar precisamente quais são os elementos que de fato formam uma
nação. Dentre os pontos levantados, destacam-se a língua, o território comum, os traços culturais
e a etnia.
Entretanto, o próprio Hobsbawm mostra que é justamente diante desses pontos
comumente apresentados para definir uma nação que mora o principal problema encontrado pelos
que levam a vida tentando fechar uma explicação para o termo que seja absolutamente precisa e
coerente. Nesse sentido, podemos dizer que essas definições gerais são totalmente incapazes de
se sustentar diante das experiências cotidianas, pois sempre há de aparecer uma exceção quando o
assunto for referente a um coletivo de pessoas.

Esses critérios gerais, portanto, são insuficientes para dar conta do sentido de uma
nação, já que são passíveis de um dança devido à mobilidade de suas naturezas. A língua, por
exemplo, é um elemento extremamente móvel que se torna mais complexo devido ao avanço
cotidiano dos mecanismos de comunicação entre seres humanos. Também é móvel o processo
humano de ocupação de espaços e estabelecimento de territórios, que gera a consequente
ampliação ou redução de fronteiras, também fluidas por natureza, devido às necessidades
encontradas pelas pessoas para se estabelecer.
Assim sendo, é bastante possível fazermos um exercício de análise a respeito da posição
da monarquia portuguesa diante das necessidades impostas à Coroa na superação desses
problemas identificados por Hobsbawm no processo que visa à criação de um sentido de
pertencimento capaz de demarcar a criação de nova nação em seu Reino-Unido. Quanto a isso, o
próprio britânico é quem nos fornece uma dica importante ao trazer em seu texto um dado
interessante retirado do Dicionário Real da Academia Espanhola dando conta de que no século
XIX o mundo ibérico já define nação como “um Estado ou corpo político que reconhece um
centro supremo de governo comum onde o território constituído por esse Estado e seus habitantes
é considerado como um todo”7.
Apesar de essa definição estar presente em um dicionário espanhol, é possível ver nas
ações da monarquia lusitana o mesmo sentido referente ao senso de pertencimento e união entre
toda a estrutura imperial remontada no Brasil e a população de sua antiga colônia. No caso da

7
Ver Eric Hobsbawm, Nações e Nacionalismos, p.27.

1289
união dos reinos portugueses, a figura do imperador era tida como suprema em muitas esferas da
vida política e social. Acreditavam seus súditos mais próximos que ele possuía, assim como
representava vivamente, todos os elementos que poderiam dar a liga necessária entre o projeto
nacional-civilizatório lusitano e as pessoas que já viviam suas vidas no Brasil e eram
consideradas cidadãs.
Interessado no tema da nação brasileira, Afonso Carlos Marques dos Santos (1996)
captura esse mesmo sentido ao analisar a maneira como Félix Émile Taunay – pintor francês e
professor de língua grega e literatura na Academia Imperial de Belas Artes, fundada após a
chegada da Missão Francesa – constrói um discurso elogioso e político sobre o imperador, no
qual busca vincular diretamente Pedro II à definição de nacionalidade. De acordo com o autor, o
imperador é encarado por figuras de destaque no campo social e político brasileiro do século XIX
como símbolo máximo do Estado Nação, conforme fica claro na passagem a seguir:

Senhor! Afortunado é esse momento que o fim do ano escolar reserva à Academia
das Belas Artes quando ela, no seu recinto, possui a augusta presença de Vossa
Majestade Imperial. Por vós, senhor, é representada a nacionalidade.8

Em relação a essa questão, Lilia Moritz Schwarz (1998) – historiadora com ótimos
trabalhos sobre o tema da nação brasileira no período imperial –, afirma que, devido às
circunstâncias impostas pela disputa com Napoleão, o Rei luso teve que elevar o Brasil ao
patamar de Reino Unido. Isso levou a Coroa a reproduzir na antiga colônia todo o aparelho
administrativo que tinha em Portugal, assim como suas práticas de governo chefiadas pelo
monarca, homem que deveria ter como absolutamente natural em seu modo de agir todas as
virtudes cardeais9. Tidas como fundamentais na orientação do ser humano civilizado, essas
virtudes representavam não somente um caminho para o Rei, mas uma indicação para todos os
que pertenciam à nação imperial.
Tal posicionamento da Coroa em relação à fundação de instituições e determinados
padrões de comportamento foi visto como necessário, segundo Schwarz, para que ficasse menor
o constrangimento de uma metrópole que foi forçada a mudar seu centro de poder para um país
até então colonial. Assim, é possível dizer que a reprodução desse aparato administrativo está
ligada a uma tentativa de implementar em solo brasileiro um modelo de nacionalismo que o

8
SANTOS, A. C. M. A Academia Imperial de Belas Artes e o Projeto Civilizatório do Império. Anais do
Seminário Eba 180, Rio de Janeiro, p. 127-146, 1997, p. 12.
9
Essencialmente: Prudência, Temperança, Fortaleza e Justiça. Tais virtudes podem ser vistas no Anexo A deste texto e
estão representadas no teto da Sala do Trono do antigo Paço Real, na Quinta da Boa Vista. A presença dessas figuras na
sala é encarada nessa pesquisa como um modo de comunicar aos que visitavam o monarca qual seria a natureza de sua
personalidade e de seu império.

1290
historiador também de origem britânica, Benedict Anderson (2008), chamou de “nacionalismo
oficial”10.
Tido por seu formulador como uma espécie de “fusão entre a ideia de nação e os
impérios dinásticos”, esse modelo de nacionalismo é marcado por um afastamento das massas em
seu processo de construção. O afastamento das massas foi evidente no processo brasileiro e
esteve diretamente ligado com o sentido de um projeto nacionalista que visava garantir a
hegemonia da elite imperial nos principais campos da vida a ser construída no Brasil. Seguindo
essa linha de pensamento, Anderson destaca também que essa fusão entre a ideia de nação e os
elementos formadores dos chamados impérios dinásticos tem como consequência principal o
sufocamento de potenciais projetos nacionais que visassem a alguma independência institucional
diante do modelo imperial.
Conforme fica claro no caso brasileiro, muito bem demonstrado por Luiz Felipe de
Alencastro (1997)11, o projeto nacional organizado pela Coroa encontrou campos muito férteis
para sobrepor-se aos demais poderes regionais germinados nos tempos coloniais ao construir os
mecanismos geradores de uma hegemonia fluminense, local escolhido para ser a sede do Império,
diante dos demais estados. Isso ocorreu, em parte, por conta da proximidade rapidamente
adquirida entre os ideólogos da nação e os setores mais destacados da elite econômica que
também buscava se estabelecer na nova capital12.
Tal relação entre esses setores de elite fica extremamente clara nas palavras de Francisco
Adolfo Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, que, em carta enviada ao Imperador, acaba por
nos fornecer algumas dicas sobre os fundamentos definidores dessa nova identidade nacional
brasileira que estava sendo construída desde 1808. Era fundamental que as câmaras municipais
perdessem poderes diante do projeto nacional estabelecido a partir da elite sediada no Rio de
Janeiro. Quanto a isso, diz o Visconde que:

Em geral busquei inspirações de patriotismo sem ser no ódio a portugueses, ou à


estrangeira Europa, que nos beneficia com ilustração; tratei de pôr um dique a tanta
declamação e servilismo à democracia; e procurei ir disciplinando produtivamente
certas ideias soltas de nacionalidade13.

10
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Cia das Letras: São Paulo, 2008, p.30.

11
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil v. 2, São Paulo: Companhia das Letras.
2001, p.23-30.
12
De acordo com Alencastro, administradores e colonos de outras partes do império português, notadamente vindos de
Angola e Moçambique, também migraram para o Rio.
13
Carta de Francisco Adolfo Varnhagen ao imperador, datada de 14 de julho de 1857. Arquivo do Museu Imperial.
Código: Doc. 6234.

1291
Ainda assim, é possível identificar que o projeto nacional da dinastia lusitana também
pode ser visto como o resultado prático de um composto de diferentes forças e processos
históricos. Contudo, é inegável que este acabou tornando-se modular para que pudesse ser
incorporado em vários locais e no interior de diversos grupos sociais. Pelo menos era o que seus
ideólogos pressupunham, conforme vimos no relato acima.
Desse modo, passou a ser necessário buscar um senso de comunhão entre os membros
da Corte recém-chegada no Brasil, aqueles que em suas terras já viviam e os demais setores do
império que migraram para o Rio de Janeiro a fim de se estabelecer num novo contexto de
configuração imperial. Por conta disso, a Coroa viu-se obrigada a elaborar um projeto imaginado
que pudesse deixar natural o desembarque de um monarca fugitivo e a chegada de uma série de
burocratas interessados em mudar o rumo de suas vidas. Como fazer isso? Veremos alguns
indicativos a seguir.

O projeto brasileiro e sua marca elitista

Conforme afirma a já citada historiadora Lilia Moritz Schwarz, a elevação do Brasil ao


status de Reino Unido obrigou a Coroa a reinserir a antiga colônia no contexto internacional.
Esse processo gerou na cabeça daqueles que imaginaram o projeto nacional brasileiro uma
necessidade de inserir, a partir do Rio de Janeiro, nova capital do Império, práticas e conceitos
que antes eram estabelecidos na cidade de modo absolutamente distante de qualquer vanguarda.
Desse modo, então, optou-se por levar a cabo um processo que visava à criação de uma memória
capaz de fornecer visibilidade e engrandecimento a uma elite que estava diante de uma situação
dramaticamente desfavorável e esquisita após a derrota política da metrópole diante do poderio
napoleônico.
Tal procedimento, visando à criação de uma memória gloriosa, foi uma parte bem
pensada e fundamental para o sentido de nação escolhido para o Brasil. Quanto a isso, o
historiador Manoel Luís Salgado Guimarães14, em ensaio sobre a relação estabelecida entre o
IHGB e o projeto nacional brasileiro, afirma que os debates sobre História e nação no Brasil se
entrelaçavam de forma muito profunda. Os chamados intelectuais, responsáveis por criar essa
lembrança, pressupuseram que suas atuações em instituições como o IHGB e a Academia
Imperial de Belas Artes estabeleceriam um determinado tipo de memória e esclarecimento que
escorreria da elite imperial, acostumada com os parâmetros de vida estabelecidos na metrópole,
para os outros grupos que não possuíam essa experiência.

14
GUIMARÃES, M. L. L. S.. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o
Projeto de uma história nacional. Rio de Janeiro: 5-24. 1988.

1292
Tal premissa vista nas produções dos intelectuais do IHGB dialoga de maneira profunda
com a questão levantada pelo teórico sobre o tema nacionalista, Ernest Gellner15, a respeito das
possibilidades de construção e busca por afirmação de uma hegemonia cultural dos setores de
elite a partir do sistema educacional eleito como base de um projeto nacional. Quanto a isso,
Gellner afirma que o sistema educacional pode ser um poderoso agente visando à transformação
de uma sociedade em termos culturais.
Considerando o apontamento feito por Manoel Luís Salgado Guimarães a respeito da
existência de uma esfera de compadrio entre as elites brasileiras e os intelectuais que
participaram da fundação das instituições estabelecidas pela Coroa no âmbito educacional, é
possível usar o quadro proposto por Gellner para pensar o Brasil. De acordo com o autor, o
domínio do sistema educacional garante, inclusive, que o projeto nacional dos estratos mais altos
da sociedade acabe sendo forte o suficiente para rivalizar com as particularidades municipais que
costumavam dar conta do cotidiano antes do estabelecimento da nação.
Tal discussão se contrapõe ao pensamento estruturalista, onde a cultura é entendida
como uma estrutura que se sobrepõe às ações individuais e acabam moldando o comportamento
social das pessoas. Dessa forma, Gellner argumenta que as escolhas feitas em relação ao sistema
educacional no âmbito da nação se inserem num contexto de ação por parte de um Estado que se
estabeleceu com o intuito de formar indivíduos capazes de atuar nos cargos criados pela própria
estrutura imperial a fim de evitar rupturas e mantê-la o mais intacta possível. No caso brasileiro
isso fica muito claro quando analisamos a trajetória de alguns desses intelectuais que
compuseram o IHGB em seus anos iniciais. A imensa maioria desse grupo ou era portuguesa de
fato ou era formada em terras europeias, de modo que dialogava com a visão de mundo da Corte
em muitas esferas16.
Assim, podemos dizer que a investigação realizada até aqui nos permite inferir que uma
das bases dos projetos nacionais do século XIX, e em especial o projeto nacionalista pensado
para o Brasil, é a oposição entre Alta e Baixa cultura. Isso ocorreu no processo brasileiro
justamente por conta do domínio que determinados indivíduos tinham das práticas características
dessa sociedade produtora de uma cultura que visava sempre retroalimentar-se a partir da criação
de uma estrutura hegemônica implementada intencionalmente pela ação individual daqueles que
se inserem nas camadas de elite.

15
GELLNER, Ernest. Nações e Nacionalismo. Gradiva: Lisboa, 1993.
16
Ver a trajetória de cônego José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Revista do IHGB, Tomo 1, 1839.

1293
É justamente por essa razão que tendo a concordar com o teórico britânico Stuart Hall17,
que apesar de estar mais interessado em debater questões ligadas ao século XX, nos serve muito
bem para definir os parâmetros da nação brasileira criada a partir de 1808. As ações desses
indivíduos responsáveis pela criação de uma memória e de um modelo de nação podem e devem
ser vistas como atos que visam sempre à indução de uma homogeneidade, apesar de sabermos
hoje que o conceito de nação não terá sentido real se este não quiser lidar com a diversidade dos
indivíduos, algo que, como se sabe, é inexorável ao sujeito.

A materialidade expressando a violência do projeto nacional brasileiro

Tal como propõe Hall, considero que a nação é fruto de uma estrutura de poder cultural
dramaticamente violenta. Vimos nas páginas anteriores, por meio de alguns pormenores do caso
brasileiro, que os projetos nacionais buscam sempre um sentido de homogeneização e
pertencimento num ambiente diverso por conta da própria natureza humana. É nesse sentido,
portanto, que se estabelece uma das formas de violência no campo do nacionalismo. Também foi
possível perceber no que foi debatido até aqui que esse processo violento ocorre por conta da
intenção de um grupo de elite que visa conquistar e garantir os meios que permitam expressar sua
hegemonia diante dos demais setores, como no citado caso da perda de força das administrações
municipais brasileiras após a chegada da Corte.
Entretanto, considerando as contribuições do historiador inglês Edward Thompson em
sua análise dos Costumes em comum18, interessou-me ainda mais aprofundar meus estudos sobre
o tema da nação para entender as minúcias da violência estabelecida no processo brasileiro.
Quanto ao que propõe o intelectual britânico, o mesmo nos mostra que as práticas costumeiras
das pessoas que figuravam nas camadas mais baixas da sociedade inglesa foram profundamente
atacadas a partir do século XIX, com a consolidação dos Estados Nacionais.
Contudo, Thompson afirma que essas práticas não foram totalmente suplantadas, de
modo que sempre podemos encontrar as esferas de resistências e de trocas nos âmbitos culturais e
educacionais. Dessa maneira, levando em conta o que já foi dito sobre a natureza mutável da
linguagem e da sua falta de necessidade de ser condizente com a concretude19, o estudo da
materialidade relacionada ao tema da nação brasileira pareceu-me incrivelmente interessante para
perceber até que ponto é possível identificar efetividade da hegemonia unificadora do projeto
construído pela elite cortesã.
17
HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
18
THOMPSON, E. P.. Costumes em comum.. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
19
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005.

1294
Assim, seguindo a linha de pensamento do arqueólogo Christopher Tilley, na qual o
estudo da cultura material se define pela premissa de que esta é um meio de comunicação
envolvido nas práticas sociais, decidi direcionar meu olhar para os documentos dessa natureza ao
tratar do tema de minha pesquisa. Desse modo, cabe dizer de forma clara que os elementos
materiais também podem ser usados para transformar, armazenar ou preservar informações
sociais. Eles também se constituem em um meio simbólico para essas práticas sociais, já que
atuam dialeticamente.
Não é preciso olhar para a materialidade buscando encontrar nela apenas o seu aspecto
utilitário, muitas vezes os documentos materiais permitem que o pesquisador consiga avançar
muito mais do que isso em suas análises. A cultura material pode (e muitas vezes até deve) ser
considerada como um tipo de texto ou uma forma silenciosa de escrita e discurso. Não podemos
mais aceitar que os documentos evidenciados pelos arqueólogos sejam vistos como meros
apêndices nos trabalhos construídos no campo das ciências sociais, como se a Arqueologia ainda
fosse uma ciência auxiliar das demais. É preciso que esses novos entendimentos sobre a
materialidade se consolidem e ultrapassem esse conceito mal formulado sobre a materialidade.
Nesse sentido, estou profundamente convencido de que a materialidade é plenamente
capaz de dar algumas respostas sobre o modelo utilizado pelos ideólogos da nação brasileira para
pensar o seu projeto, do mesmo modo que os documentos dessa natureza também permitirão a
identificação e a análise das resistências identificáveis a esse projeto dessas elites mencionadas
acima. Neste trabalho, entretanto, não foi feita nenhuma identificação específica dessas
resistências, apesar de serem conhecidos alguns elementos nesse sentido. Sendo assim, as
atenções foram focadas nos elementos do mundo material que serão capazes de fornecer
hipóteses a respeito do modelo utilizado pelos setores de elite para fundamentar o seu projeto de
nação.

Considerações finais e a base civilizatória do projeto nacional brasileiro


Quanto a esse modelo, a paisagem construída nas ruas do Rio de Janeiro do século XIX
permite afirmar que o projeto nacional brasileiro teve como molde um padrão que havia
funcionado como base de inspiração para todos os demais estados nacionais europeus do século
XIX: a civilização greco-romana20. Criar laços com um passado não vivido pelos brasileiros foi,
portanto, o primeiro grande desafio da Corte Imperial ao desembarcar no continente. No afã de
transformar um país dominado em uma nação forte, entendeu-se que esta deveria estar ligada

20
Ver Anexo B.

1295
diretamente ao momento reconhecido como o mais glorioso em termos de padrões civilizacionais
pelos europeus até então.
Considerando essa noção, é plenamente possível afirmar que nada do que se verificava
na paisagem do Rio de Janeiro colonial deveria continuar sendo utilizado como padrão agora que
o Brasil havia se tornado a uma Nação de tipo europeia, que a corte recém-chegada estava
habituada a identificar a partir de seus padrões. No que diz respeito à implantação desses novos
padrões na paisagem da cidade do Rio de Janeiro, os historiadores André Leonardo Chevitarese e
Rogério José de Souza construíram uma interessante reflexão a respeito do sentido que
impulsionou tal prática:

Apresenta-se uma homogeneização étnica, com forte reforço para uma estética
branca, reforçando a visão de um contínuo branco entre nós (os ocidentais
brasileiros) e eles (os ocidentais antigos gregos). Como esta noção de alteridade
alimentada, que pareceria, a priori, polar ou centrada em campos opostos, é na
verdade complementar e de pertencimento21.

O quadro construído pelos historiadores citados acima pode ser percebido tanto na
paisagem da cidade como na pintura de Debret intitulada Bailado Histórico, na qual o pintor francês
coloca os heróis da monarquia lusitana ao lado dos deuses do Olimpo22. Não são poucos os
exemplos que podem ser pensados como indícios bastante relevantes para uma análise profunda
acerca do modo como o projeto nacional brasileiro tentou se impor por meio de um modelo
educacional, segundo os termos de Gellner, que se pautou pela imposição de um modelo
civilizatório construído para homogeneizar a nação partir dos padrões da cultura clássica.
A Sala do Trono do antigo Paço Real23, prédio que hoje abriga a sede do Museu Nacional,
é mais um elemento que pode ser utilizado para fortalecer essa hipótese interpretativa. A simbologia
presente nas belas pinturas24 visíveis no teto desse cômodo pode ser pensada como uma forma de
comunicação material a fim de expor uma narrativa que seja capaz de identificar a nova capital do
império como detentora de uma chancela de verdadeira civilização. Essa narrativa, gestada no
imaginário das pessoas e expressas desde a Sala do Trono até as ruas da cidade, é, portanto, o
principal elemento utilizado pela Coroa para construir um sentido de homogeneização e

21
CHEVITARESE, Andre L.; SOUZA, R. J. . “Percepções étnicas a construção do passado brasileiro”. In:
Chevitarese, André Leonardo; Cornelli, Gabriele; Silva, Maria A. de O.. (Org.). A Tradição Clássica e o Brasil.
1ed.Brasilia: Fortium, 2008, p. 86.
22
Ver anexo C.
23
Sobre a utilização desse espaço do prédio do Museu Nacional enquanto um objeto de estudo desse projeto, faz-se
necessário um agradecimento muito especial ao pesquisador Ricarte Linhares Gomes, doutorando do PPGArq, bem
como à Maria Paula Van Biene, arquiteta do Museu Nacional/UFRJ, que, junto com o Escritório Técnico do Museu
Nacional/UFRJ e a Consultoria Técnica Assumpção Ltda., muito gentilmente forneceram o documento que faz parte do
projeto de restauração das salas históricas do Museu Nacional (2014), fundamental para criação desse projeto.
24
Ver anexos B e C.

1296
pertencimento nacional. Estar próximo dos elementos da cultura clássica e do seu padrão
civilizatório era o mesmo que estar inserido na nação imperial.

Bibliografia consultada

ALENCASTRO, Luiz Fernando de (Org.). História da Vida Privada no Brasil (v. 2) -


Império: a corte e a modernidade nacional. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Cia das Letras: São Paulo, 2008.

BAGEHOT, Walter. Physics and Politics; or Thoughts on the Applications of the Principles
of “Natural Selection” and “Inheritance” to Political Society. Londres: Henry King, 1872;
Ontario: Batoche Books – Kitchener, 2001. Disponível em:
<www.efm.bris.ac.uk/het/bagehot/physics.pdf>. Acesso em: 15/10/2017.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2005.

CHEVITARESE, Andre L.; SOUZA, R. J. Percepções étnicas a construção do passado


brasileiro. In: Chevitarese, André Leonardo; Cornelli, Gabriele; Silva, Maria A. de O.. (Org.).
A Tradição Clássica e o Brasil. 1ed.Brasilia: Fortium, 2008.

GELLNER, Ernest. Nações e Nacionalismo. Gradiva: Lisboa, 1993.

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização


Brasileira, 1978.

GUIMARÃES, Manoel Luís Lima Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma história nacional. Rio de Janeiro: 5-24.
1988.

HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.

HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismos desde 1870. Paz e Terra: São Paulo, 2004.

KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship: A liberal theory of minority rights. Oxford


University Press: Oxford, 1995.

MALERBA, J. . O Brasil imperial; panorama da história do Brasil no século XIX.. 1. ed.


Maringá: EDUEM, 1999. v. 1000.

SANTOS, A. C. M. . A Academia Imperial de Belas Artes e o Projeto Civilizatório do


Império. Anais do Seminário Eba 180, Rio de Janeiro, p. 127-146, 1997.

SCHWARCZ, L. K. M. . As Barbas do Imperador. 10. ed.. 10. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.

TILLEY, C. PEARCE, Susan M. (org.). Interpreting objects and collections. London:

1297
Routledge, 2003, p.67-75.

THOMPSON, E. P. . Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 528p.

ANEXO A – Imagens dos cantos da Sala do Trono

Imagens relacionadas com o projeto, descritas no corpo do texto. De acordo com a documentação indicada, as

1298
figuras possivelmente representam, em ordem, as ideias de Prudência, Justiça, Fortaleza e a Temperança. Fonte:
Projeto de Restauração das Salas Históricas do Museu Nacional Sala do Trono & Sala dos Diplomatas do Paço
Imperial de D. Pedro II, 2014)

1299
ANEXO B – Imagem de Hermes na paisagem da cidade do Rio de
Janeiro

A imagem retrata a figura de Mercúrio (Hermes), divindade greco-romana, disposta na paisagem do


Bairro Imperial de São Cristóvão, na Rua Bela. A representação dessa figura é bastante comum também
nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, especialmente na Rua do Ouvidor, espaço de tradição comercial,
atividade profundamente ligada com a figura representada na fachada do prédio. Fonte: Fotografia cedida
por Daniel Brasil Justi

1300
ANEXO C – Bailado Histórico

A imagem retrata a figura do Monarca e dos elementos característicos da Corte portuguesa circundados
pelos Deus do Olimpo. Fonte: Litografia em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil

1301
ANEXO D – Figura central da Sala do Trono

Imagem relacionada com o projeto, descrita no corpo do texto. Comparação das mudanças feitas após a
reconstituição da figura central da Sala do Trono feita por Eugenio Latour em 1923. Fonte: Projeto de
Restauração das Salas Históricas do Museu Nacional Sala do Trono & Sala dos Diplomatas do Paço Imperial de
D. Pedro II, 2014

1302
ESTADO DE ANOMIA: GRILAGEM, CONFLITOS E “SUBVERSÃO” NA
ZONA CONTESTADA (ESPÍRITO SANTO E MINAS GERAIS)

Leonardo Zancheta Foletto1

Resumo: Como a fronteiras entre os dois estados ainda eram imprecisas, os governos capixaba e
mineiro, cada qual sob seu argumento, passaram a reivindicar a área territorial denominada Região
do Contestado ou Zona Contestada, enquanto isso, grandes levas de migrantes de ambos os estados
e de regiões circunvizinhas passaram a ocupar a região na condição de posseiros, os quais, sem
nenhuma garantia quanto a posse da terra, se tornaram um estorvo para grileiros, ansiosos pela
posse da terra. Pretende-se apresentar, deste modo, como que a referida questão lindeira tornou-se o
pano de fundo para uma série de outros fenômenos político-sociais que vieram a reboque das
incertezas institucionais relacionadas aos aspectos fronteiriços.

Palavras-Chave: Questão agrária; fronteira; grilagem.

Abstract: Since to frontiers between two states they were still imprecise, the governments capixaba
and mineiro, each one under his argument, they started to claim the territorial area called Region of
the Questioned one or Questioned Zone, meanwhile, great groups of migrant ones of both states and
of circumambient regions started to occupy the region in the leaseholders' condition, which, without
any guarantee as for possession of the land, became a hindrance for land-grabbers anxious by the
possession of the land. It intends to present, in this way, like which the above-mentioned bordering
question became the social-political backdrop for series of other phenomena that came in tow of the
institutional uncertainties made a list to the frontier aspects.

Keyword: Agrarian question; frontier; land-grabbing.

No tempo em que a metrópole dividiu em capitanias o território da América Colonial Portuguesa e


entregou a colonização aos donatários, não havia nenhum conhecimento geográfico do interior,
senão numa pequena área, próximo aos locais mais populosos. As regiões litorâneas eram as que
mais prosperavam, por isso, em algumas das Cartas Régias de doação, foi impossível demarcar o
ponto em que elas terminavam, em outras, como na de Vasco Fernandes Coutinho, tomou a forma
genérica – “[...] as cinquentas léguas se estenderão e serão de largo ao ponto da costa, e entrarão na
mesma largura pelo sertão e terra firme dentro tanto quanto puderem entrar e for da minha
conquista [...]” – 2.

Competia ao donatário, portanto, penetrar o território afim de submetê-lo efetivamente à sua


jurisdição, sob pena de perdê-lo. Mas, doutra parte, o próprio governo do rei criou, por outros

1303
motivos, todas as dificuldades imagináveis à penetração por parte do donatário da Capitania do
Espírito Santo, um dos mais infelizes do século XVI3.

Nesse sentido,

Os confins ocidentais do Espírito Santo que, primitivamente entravam pela terra


firme a dentro tanto quanto pudessem entrar e fossem da conquista portuguesa,
como prescrevia a carta régia de doação a Vasco Fernandes Coutinho, de 1º de
Janeiro de 1534, foram sendo paulatinamente recalcados para leste, pelas
conquistas que sucessivamente realizaram no sertão, os penetradores de São Paulo
e de Minas, na incessante procura das riquezas minerais.4
A Zona do Contestado, que compreende boa parte do vale do rio Doce, foi palco de embates desde
o começo da sua colonização. Após a chegada dos primeiros colonos à região, até então
desconhecida e inóspita, tiveram que colocar à prova sua força e vontade para “desbravarem” a
região. Além de enfrentarem todas adversidades naturais à região – coberta por densas florestas,
repletas de animais selvagens e habitadas em sua maioria pelos botocudos -, também se defrontaram
contra os infortúnios inerentes às ambições políticas e econômicas do próprio homem5.

Não se estabeleceu nenhum ato oficial em que ponderava a expansão para o litoral. Tanto a carta
régia de 23 de novembro de 1709 criando a capitania geral de São Paulo e Minas, como o alvará de
2 de dezembro de 1720, desligando Minas e elevando-se à categoria de capitania, silenciaram
quanto aos limites com o Espírito Santo. Só posteriormente (início do século XIX), quando se
iniciou as primeiras comunicações diretas6, em virtude das necessidades do fisco, foi praticado o
primeiro ato estabelecendo uma linha divisória entre as capitanias de Minas Gerais e Espírito
Santo7.

Não havia interesse em demarcar, com precisão, as divisas entre as duas capitanias. Era tudo mata
cerrada, a zona limítrofe ao norte do rio Doce, era, naquele tempo, quase inacessível, por causa dos
ferozes índios aimorés, que a habitavam. Nenhum ato concreto de jurisdição era praticado em tão
longínquas e inacessíveis terras. A demanda por conhecer e determinar os pontos de confinação
entre as Capitanias (mais tarde entre as Províncias e, finalmente, entre os Estados federados)
surgiria apenas mais tarde, com a utilização dos espaços territoriais e com a prática neles da
jurisdição estatal – abrindo espaço para a consequente ação tributária. Só então começavam a
ocorrer os conflitos jurisdicionais, demandando uma definição mais precisa dos limites territoriais
de cada um dos estados8.

O ápice da chamada questão lindeira se dá a partir do início do século XX, quando os mineiros
iniciaram um pujante processo de expansão agrícola em direção à Serra dos Aimorés, a leste do seu
território. Em busca de uma saída ao litoral, adentraram em densas matas, excedendo seus limites

1304
territoriais, até aquele momento incertos e, em tese, pertencentes ao Estado do Espírito Santo. No
mesmo passo, capixabas e baianos começaram a fazer um movimento semelhante, porém, rumo a
oeste.

Desde o fim do século XVIII, com o declínio da produção aurífera, a população mineira começou a
se deslocar em busca de outras atividades que pudessem substituir a mineração. Com o início da
República no Brasil, concedendo autonomia administrativa, jurídica e tributária aos estados, deu
novos contornos às questões territoriais. Passa a ocorrer, segundo Pontes, um “[...] movimento
centrífugo, acarretando frentes de ocupação em todas as direções, principalmente rumo ao Leste, de
encontro ao mar, do qual precisava para escoar seus produtos [...]”9. Tratava-se, doravante, da
busca por ensejos em garantir as necessidades à sobrevivência. Conforme acentua Foweraker, “[...]
os camponeses vão para a fronteira em busca de terras para se estabelecer, e assim proverem sua
subsistência [...]”10.

A migração mineira em direção à Serra dos Aimorés foi amplamente apoiada pelos órgãos oficiais.
Vale destaque, como por exemplo, a atividade organizada pela Companhia do Mucuri, dirigida por
Teófilo Otoni, que estimulava a ocupação das montanhas ao leste. Nas primeiras décadas do século
XX, a Serra dos Aimorés era ainda uma região desconhecida, tanto pelo governo do Estado do
Espírito Santo quando pelo de Minas Gerais. Terras ainda a serem exploradas, ocupadas e
colonizadas. Contudo, o movimento migratório mineiro vai ocorrer, naquele contexto, sem que
ainda houvesse uma demarcação dos limites entre as duas unidades federativas. Nestas
circunstâncias, afirma Elio Ramires:

[...] o deslocamento da frente de expansão mineira colocava na ordem do dia, para


o Espírito Santo, a questão da demarcação definitiva da divisa, em função de que
este considerava que o avanço mineiro ocupava terras que considerava estar sob
sua jurisdição. O apoiamento [sic], através de investimentos em infraestrutura, à
criação de povoados e vilas por cidadãos mineiros, levado a cabo pelos sucessivos
governos de Minas Gerais, provocava apreensões, acreditamos que, em certa
medida, descabidas, no imaginário das autoridades capixabas, preocupadas com a
disposição bandeirante dos governos mineiros [...]11.
Pari passu à expansão mineira e sua marcha para o leste, foi iniciada a organização da frente
capixaba de colonização, denominada por Jones Santos Neves como Marcha para o Oeste,
denominação esta, em alusão ao projeto de mesmo nome anunciado pelo então presidente, Getúlio
Vargas, durante o período do Estado Novo, baseado em ocupar os vazios demográficos. Todavia,
endossamos as considerações de Moreira quando trata da questão do processo de colonização das
margens do rio Doce que ocorreu, segundo a autora, à luz dos vazios demográficos, interpretado
por ela como sendo “[...] um clichê produzido pelo Estado ou por parcelas da sociedade brasileira,
com profundas raízes na história nacional do século XX [...]”12. Na concepção de Moreira, a

1305
Marcha para o Oeste seria, no ponto de vista das autoridades capixabas, uma “resposta” à suposta
ameaça mineira em ocupar o norte do Espírito Santo até o litoral, a partir da Serra dos Aimorés13.

Como ainda não havia uma definição quanto à delimitação da fronteira entre os dois estados, os
governos capixaba e mineiro, cada qual sob seu argumento, passaram a reivindicar a área territorial
denominada Região do Contestado ou Zona Contestada. Tal imbróglio alcançou diversos tribunais,
várias comissões mistas foram criadas, contando com componentes de ambos os estados, vários
estudos foram realizados, por IBGE, Serviço Geográfico do Exército, entre outros organismos, sem
que o problema da demarcação das fronteiras fosse resolvido. A região se torna, então, área de
disputa não somente entre os dois estados, mas também por indivíduos e grupos das mais diversas
naturezas, ávidos em estabelecer seus potentados. Enquanto isso, a população camponesa e pobre
ficava à mercê dessas lideranças locais, que empregavam, dentro da lógica da lei do mais forte,
métodos extremamente violentos para a manutenção ou aquisição de controle político e social.

No contexto da desordem, a região foi caracterizada por uma fartura de terras férteis e devolutas,
com uma volumosa quantia de madeiras nobres. Deste modo, apresentou um acelerado crescimento
populacional, porém, nenhum dos dois Estados sensibilizou olhares para a estruturação e
desenvolvimento da região. Pontes argumenta que

[...] não houve de nenhum dos lados envolvidos medidas efetivas destinadas ao
assentamento de colonos, à distribuição de terras devolutas e à regularização das
posses existentes, ou sequer de imposição da lei e da ordem. Ao contrário, ambos
os governos acabaram por atuar de forma leniente em relação às questões de ordem
pública e de desenvolvimento regional sustentado, legando as comunidades que lá
se estabeleceram a sua própria sorte, sob tutela e abrigo da justiça de jagunços
contratados por latifundiários e madeireiros, ou mesmo de policiais que agiam
conforme suas visões e interesses particulares. Ainda que houvesse “autoridades”
legalmente constituídas na Zona Contestada, faltavam-lhes exatamente aquele
atributo, levando os colonizadores a seguir a ordem natural das coisas,
predominando, na ausência do Estado regulador, as normas impostas à força pelos
poderosos locais [...]14.

1306
FIGURA 1: POLÍCIA e jagunços capixabas ocupam território mineiro da “zona contestada”. Diário da
Noite, Rio de Janeiro, p. 7, 9 jul. 1951.
Por se tratar de uma região praticamente sem lei, de uma frágil e ineficaz organização social, o
território que apresentou um elevado número de habitantes nos anos de 1940 até meados de 1960,
foi acometido com um nímio esvaziamento populacional nas décadas que sobrevieram15.

1307
Portanto, ao cotejarmos os fenômenos políticos e sociais da Zona do Contestado Capixaba,
assumimos o entendimento segundo o qual a região se enquadra naquilo que no campo da
sociologia denomina de estado ou situação de anomia, que, segundo o dicionário de Filosofia
Nicola Abbagnano, refere-se ao “[...] termo usado para indicar a ausência ou a deficiência de
organização social e, portanto, de regras que assegurem a uniformidade dos acontecimentos sociais
[...]”16.

Um dos autores que mais se debruçou sobre tal conceito foi, sem dúvida alguma, Émile
Durkheim17, o qual tratou do conceito a partir da reflexão daquela que talvez seja a sua questão
central: a instituição social, para o autor um mecanismo de proteção da sociedade, um conjunto de
regras e procedimentos socialmente padronizados, aceitos, reconhecidos e endossados por ela.
Segundo Durkheim, o termo é visto como uma condição em que as normas sociais e morais são
confundidas, pouco esclarecidas ou simplesmente ausentes, isto é, as mudanças bruscas e repentinas
na sociedade fazem com que as normas, até então estabelecidas e satisfatórias, tornem-se obsoletas.

Em vista disso, os fenômenos políticos e sociais que ocorrem a reboque do problema da questão
lindeira não são casos isolados. Paulo Pinheiro Machado, analisando o caso do Contestado entre os
Estados do Paraná e Santa Catarina, vai salientar que o Contestado seria como um filho infeliz de
dois pais adotantes: a ignorância dos habitantes e falta de um policiamento eficaz e duradouro.
Seguindo ainda seu raciocínio, enfatiza que mesmo que os estudiosos da Guerra Sertaneja não
relacionam o processo de disputa de limites como causa direta do movimento caboclo, vista da
complexidade deste movimento social, destaca que o longo período de indefinição entre as divisas
marcou profundamente a natureza da ocupação da região e o perfil social e político destas
comunidades18. Sendo assim, não nos abstém afirmar que os problemas oriundos na fronteira entre
Espírito Santo e Minas Gerais podem também ser relacionados com a duradoura indefinição dos
limites entre os dois Estados, ocorrendo, em nosso entendimento, na lógica de ausência do poder
estatal, que seria o provedor da ordem e da disciplina.

No final do século XIX e início do século XX a fronteira passa a ser entendida como uma zona de
transição entre um espaço geográfico ocupado de maneira estável e contínua por uma sociedade
nacional.19 Os estudos norte-americanos definem o termo boundary – sendo a fronteira como
divisão política e administrativa; e frontier como ideia de expansão, de conquista e de movimento
constante em direção a terras livres ou selvagens. Tal acepção se afirmaria com as teorias
desenvolvidas pelo historiador Frederick Jackson Turner (1861-1932), em sua tese20 sobre o oeste
americano. Para Turner21 o oeste americano seria o berço da alma americana, da democracia e da
identidade nacional, lugar em que os pioneiros de todas as nacionalidades teriam de lutar pelo recuo

1308
da natureza selvagem. A fronteira seria, então, a frente pioneira em expansão. No começo do século
XX, a teoria de Turner passaria a ser mais difundida e serviria de modelo também para outros
países, como foi o caso do Brasil, notadamente nos anos de 1950 e 1970, quando historiadores,
geógrafos, sociólogos e demais pesquisadores adotam o conceito de fronteira turniana para
problematizar questões sobre a expansão pioneira em regiões internas ao país. O mito da fronteira
norte-americana como lugar de perpetuação da identidade nacional influenciou também os
intelectuais da denominada Marcha para o Oeste no Brasil, durante o período do Estado Novo. Os
intelectuais que estudavam as chamadas zonas pioneiras, passaram a identificar a política de Vargas
como sendo frentes pioneiras, possibilitando a ocupação, do que chamavam de vazios
demográficos. No modelo de Waibel22 a zona pioneira seria como um espaço geográfico onde
ocorrem a expansão acelerada da agricultura, um grande fluxo de pessoas, um aumento vertiginoso
dos preços das terras [...], identificando cinco zonas pioneiras nos anos 1940: o norte e o sudoeste
do Paraná, o noroeste de Santa Catarina, o oeste de São Paulo, a região norte do rio Doce (Espírito
Santo e Minas Gerais) e a região de Mato Grosso23.

A prática da grilagem, vista como atividade típica de grileiros, pode ser compreendida, de acordo
com Martins, como sendo “[...] uma verdadeira indústria de falsificação de títulos de propriedade
[...] registrados em cartórios oficiais, geralmente mediante suborno aos escrivães e notários [...]”24,
ou também, segundo Foweraker como a atividade de “[...] ‘grileiros’, que tentam validar suas
pretensões seja através de títulos de terra fraudulentos, obtidos por corrupção, seja através de títulos
forjados que jamais, obviamente, foram registrados [...]25. Foweraker ainda acrescenta que

A “grilagem” contribui para os conflitos legais que afligem as regiões de fronteira,


e, apesar de ser uma prática predominantemente privada, não poderia ter
prosseguimento sem, pelo menos, o conluio das administrações estadual e federal26.
A grilagem tem como característica o processo de sequestro cartorial da terra por meios
fraudulentos, ocasionando ao posseiro o saque do seu único meio de subsistência. Pode-se dizer,
então, “[...] que o grileiro é aquele que se apropria ilegal e fraudulentamente de terras, mediante o
registro e a apresentação de títulos de propriedade falsificados, ainda que oficialmente, por
cartorários inescrupulosos”27. Na região contestada, a prática da grilagem tornou-se algo
corriqueiro, sendo um estorvo na vida dos posseiros e pequenos camponeses. Devido ao imbróglio
jurisdicional sob o território, os grileiros forjavam os registros das suas terras em cartórios de outro
Estado. No que diz respeito à prática de registro de terras localizadas, em tese no Espírito Santo, nos
cartórios mineiros, salienta Ramires citando Dias:

O título de posse que o fazendeiro Lamartine possui é concedido pelo Estado de


Minas Gerais e reconhecido por autoridades do Espírito Santo. [...] Em Cotaxé, no
Córrego do Pitengo e na Estrela, nas áreas abrangidas pelos alqueires do fazendeiro

1309
Lamartine, estão, há mais de 15 a 20 anos, posseiros que perderam seus direitos
para uma escritura fornecida pelo Estado de Minas no ano de 196228.
No ano de 1951 ocorreu um episódio que merece mais destaque, mesmo que superficial, pelo fato
de muito bem ilustrar as tensões e os conflitos na região. Tal episódio ocorreu no Distrito de
Oratório, Município de Barra de São Francisco. O relatório confeccionado pelo 1º Tenente Hildo
Fraga Barboza, enviado especial pela Secretaria do Interior e Justiça em missão especial para a
apuração dos fatos é bastante enfático quanto ao clima de tensão que tomou conta da região naquele
ano:

[...] dirigi-me imediatamente àquela jurisdição, tendo antes comunicado ao Senhor


2º Tenente Jonas Cardoso de Mattos, Delegado de Polícia em Conceição da Barra,
a finalidade da minha incumbência [...]. Tive o primeiro contato com o cabo
Nicanor Costa, sub-delegado daquele Distrito, que, informou-me ser a sua
permanência ali insustentável, devido a aversão votada contra si e os demais e os
demais policiais, pelos extremistas, ABRAÃO LINCOLN DA CUNHA, JOSÉ
CORRÊA e ANTÔNIO DOMINGOS UNIDOR, cuja antipatia já havia atingido as
raias da violência (grifo nosso). [...]29.
E segue o relatório da seguinte maneira:
De regresso, estive na Delegacia de Terras de Conceição da Barra, onde fui
atendido pelo respectivo titular JOSÉ RUSCHI FILHO, que além das péssimas
referenciais feitas aqueles maus elementos, mostrou-me inúmeras queixas por
invasões, devido não só às medidas arbitrárias feitas sobre as já legalisadas [sic],
por ANTÔNIO DOMINGOS UNIDOR, como também pelos posseiros açulados
contra os que ali já se encontra [sic] radicados a mais de oito (8) anos pelo
amotinador LINCOLN, secundado pelo seu comparsa JOSÉ CORRÊA DE MELO
[...]. Há requerentes que mesmo possuindo documentos referentes às suas posses já
legalizadas, estão lutando para extirpar de suas terras, os quistos invasores [...].
Ultimamente essa crescente vem um crescente assustador, prejudicando não só os
requerentes, como também o patrimônio do Estado como se ali fosse uma terra de
ninguém [...]30.
O relatório também aponta para a violência praticada na região envolvendo a questão da posse da
terra, algo corriqueiro em se tratando de uma típica região de fronteira:

Nada ali é resolvido por meio suasórios e legais; as ameaças são constantes e a
morte espreita o viajor passo a passo das emboscadas. Urge Senhor Secretário que
sejam tomadas providências imediatas. O próprio Cabo Sub-delegado de Polícia
em “Oratório”, que confirmará as minhas palavras, pois, já o encontrei numa
espécie de marcha forçada rumando para esta capital, depois de haver mandado os
seus (2) dois soldados para o Patrimônio do “Ronco” no Município de Barra de São
Francisco, distante, seis (6) léguas de sua sede policial [...]31.
Em outra parte do relatório aponta para o estado de anomia a abandono verificado na região naquela
fronteira:

Estes fatos, Senhor Secretário, decorre do abandono em que vive o referido distrito.
Os delegados de Terra, senhores Henrique Ayres de Oliveira de São Domingos,
José Ruschi Filho de Conceição da Barra e Francisco Furtado de São Mateus,
nunca visitaram aquele recanto. Os Delegados de Polícia, tanto o de Conceição da

1310
Barra, como o seu colega de São Mateus, 2º Ten. Joubert Costa, jamais procuraram
dar assistência policial indispensável aquele povo que trabalha e sofre [...]32.

O relatório indica o processo de grilagem de terras que ocorria na região de Oratório, que de certa
maneira ilustra o que ocorria na região do Contestado de uma maneira geral, o que gerava inúmeros
conflitos:

Não era minha finalidade visitar a Delegacia de Terras de São Mateus, mas, como
as reclamações avolumam-se, retrocedi e ali pude ouvir os requerentes José de
Oliveira Campos que tem terras requeridas nas margens do Córrego 2 de dezembro
e próximo a “Bebedouro”. Queixa-se Oliveira, que com surpresa, que viu Antonio
Domngos Unidor, “medir” novamente as suas terras e dividí-las entre Eufrosino e
Antônio Soares33.
Dois outros agricultores da região também narram o modus operandi dos grileiros:
Gabriel Ribeiro de Souza [...] viu também suas terras invadidas no córrego Santo
Antônio, por José de Souza, depois de medidas por Antonio Domngos Unidor.
Gustavo de Oliveira, também queixa-se de haver Manoel Rodrigues e Isidoro
Caetano, passando uma linha divisória dentro de suas terras no Córrego Piriquito.
Nas suas meias palavras de homem do campo, explicou-me que não tendo na
ocasião dinheiro suficiente para pagar a entrada dos documentos na repartição
competente, procurou o Senhor Laureano Diaz, proprietário de uma serraria em
Conceição da Barra, a quem propôz [sic] a entrega de seis (6) qualidades de
madeira de seus 200 hectares de terras, em troca do pagamento de pouco menos de
Cr$ 2000,00. Vejamos senhor Secretário se isto é ou não uma verdadeira
espoliação34.
A região ao norte do rio Doce foi uma das últimas a serem alcançadas pela frente pioneira, por isso,
por volta de 1940 a 1950 boa parte de suas terras eram ainda cobertas por densas matas. Com a
intensificação da migração de um número cada vez maior de posseiros desde o leste de Minas
Gerais, passa a ocorrer a ampliação da fronteira agrícola capixaba, com a construção de estradas e a
ampliação do processo de ocupação de todo o noroeste do Espírito Santo 35. Com isso, ao mesmo
tempo, se intensifica na região o interesse de madeireiros, conforma assinala Borgo; Rosa e
Pacheco, “[...] a extração de madeira precedia o avanço da frente do café: as matas eram
derrubadas, novas cidades cresciam ao lado das plantações [...]”36. Sobre o avanço da frente
madeireira e o desenrolar das atividades econômicas na região, afirma Dias

Acabada a madeira em um local, a frente madeireira deslocava-se para outro, mais


adiante, deixando um rastro de estradas, casas, povoações. Estas se consolidaram e
atingiram o estágio de vilas e cidades, quando o surto seguinte foi o cafeeiro, ou
estagnaram, quanto a atividade seguinte foi a pecuária37.
Os embates entre posseiros e grileiros vão ocorrer na lógica das contradições entre os dois modos de
produção imperante em uma região de fronteira, e também presente nesta área – o modo de
produção capitalista, com a frente madeireira e a frente pecuária, e o modo de produção pré-
capitalista, com posseiros e pequenos proprietários, que praticam uma agricultura de subsistência e

1311
com poucas relações junto ao mercado. Com relação à definição do modo de produção inicialmente
imperante na fronteira, Foweraker afirma que

A economia da fronteira não é originalmente capitalista; pelo contrário, é


caracterizada por uma produção pré-capitalista e relações de mercado ocasionais.
Assim, a transformação do “ambiente natural” de uma região de fronteira numa
“sociedade produtiva” traduz a transição das relações pré-capitalistas para as
relações capitalistas38.
A respeito dessa diferenciação entre frente de expansão e frente pioneira, afirma Martins, que a

[...] informação histórica que hoje se tem sobre a frente de expansão e a frente
pioneira sugere que a primeira foi a forma característica de ocupação do território
durante longo período. Começou a declinar com a chamada Marcha para Oeste, em
1943, e a intervenção direta do Estado para acelerar o deslocamento dos típicos
agentes da frente pioneira sobre territórios novos, em geral já ocupados por aqueles
que haviam se deslocado com a frente de expansão39.
Neste contexto, que se reuniram os interesses de grileiros, madeireiros e pecuaristas, ocasionando
em um embate social ou de classes por esses dois modos de produção ou, segundo Foweaker, “[...]
uma luta de classes, travada pela apropriação do excedente e pela apropriação da terra [...]”40. O
mesmo autor afirma que

[...] como a terra é seu [único] meio de sobrevivência, os camponeses não podem
capitular tão facilmente nessa competição desigual que enfrentam, agarrando-se à
terra; daí a transformação do processo econômico de ocupação da terra numa luta
política marcada pela violência41.
Assim, a violência acometida contra os posseiros, exercida por jagunços e também por policiais, era
organizada mediante “[...] ameaças, agressões físicas, espoliação de bens e atentados contra a vida
[que] se sucederam cotidianamente no rastro da impunidade e da ausência quase completa do
Estado”42. Por meio das negociações fraudulentas com entidades governamentais e demais
autoridades, os grileiros buscavam comprovar a titularidade das terras já ocupadas por posseiros por
meio de títulos adquiridos e muitas das vezes forjados, originando os conflitos pela posse da terra43.
Intensifica-se, dessa maneira, todas as formas de luta por parte dos posseiros, que mediante às
agressões e à falsos títulos, procuravam de todas as formas resistir e não abandonarem as suas
terras.

Os limites políticos e jurídicos dos Estados são territórios de disputas. Parecem representar
territórios claramente demarcados, no entanto, as fronteiras estão em constante movimento,
impulsionados por correntes migratórias e um amplo desenvolvimento do capitalismo, com
estratégias geopolíticas, econômicas e culturais e por diversas formas de circulação de mercadorias.

Podemos compreender a fronteira como um lugar

1312
[...] privilegiado da observação sociológica e do conhecimento sobre os conflitos e
dificuldades próprios da constituição do humano no encontro de sociedades que
vivem no seu limite e no limiar da história. É na fronteira que se pode observar
melhor como as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem44.

Dessa maneira a fronteira assumiria diferentes caráteres “[...] fronteira da civilização (demarcada na
barbárie), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da
história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano [...]”45. Mas um lugar que
também se identifica várias outras tensões: globalização e nacionalismo, nação e região e etnia e
nação.

A região de fronteira é vista como um lugar perigoso, espaço da ilegalidade e da violência. Torna-
se, então, área de disputa não somente entre os Estados, mas também por indivíduos e grupos das
mais diversas naturezas, ávidos em estabelecer seus potentados. Enquanto isso, a população pobre
fica à mercê dessas lideranças locais, que empregavam, dentro da lógica da lei do mais forte,
métodos extremamente violentos para a manutenção ou aquisição de controle político e social.

Portanto, as fronteiras são fenômenos bem complexos, não se restringindo a limites estabelecidos
nos mapas, divisas ou tratados diplomáticos. As fronteiras não são abstratas e nem estáticas, mas
estão em constante movimento. A fronteira política hoje é entendida como o lugar da alteridade, da
passagem, do contato e um espaço para integração entre as populações locais e as nações.

NOTAS

1
Licenciado em História. Mestrando em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em
História pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHis-Ufes). lzfoletto@gmail.com.
2
AGUIRRE, Araujo. Limites entre os Estados do Espirito-Santo e Minas. Revista do IHGES, Vitória, n. 3, 1922, p.8.
3
A DIVISA ESPÍRITO SANTO-MINAS GERAIS, 1947. Documentos da Secretaria do Interior e Justiça, 1947-1948,
p.1.
4
Laudo Arbitral do Serviço Geográfico e Histórico do Exército. 1941. Documentos da Secretaria do Interior e Justiça,
1945, p.4.
5
PONTES, Walace Tarcisio. Conflito agrário e esvaziamento populacional: a disputa do contestado pelo Espírito
Santo e Minas Gerais (1930-1970). 2007. 183 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007, p.15.
6
Mais importante que todas estas novas vias de penetração do litoral para Minas, é a do Rio Doce. Ela ocupa
seriamente a administração pública porque, geograficamente, é de fato pelo Espírito Santo, e não pelo Rio de Janeiro, a
saída natural da Capitania. Contingências políticas e interesses fiscais, mais tarde o fato consumado, mantiveram até
hoje o primitivo percurso aberto por Garcia Rodrigues. Mas a topografia, a praticabilidade e a menor distância apontam
claramente para o vale do Rio Doce (PRADO JR, 2011, p.246).
7
Laudo Arbitral do Serviço Geográfico e Histórico do Exército. 1941. Documentos da Secretaria do Interior e Justiça,
1945, p.4.
8
ANDRADE, Darci Bessone de Oliveira; OLIVEIRA, Antonio Gonçalves de. As questões de limites com o Estado do
Espírito Santo: (ao norte do rio Doce). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1958. v. 3, p.253.

1313
9
PONTES, Walace Tarcisio. Conflito agrário e esvaziamento populacional: a disputa do contestado pelo Espírito
Santo e Minas Gerais (1930-1970). 2007. 183 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007, p.38.
10
FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Rio
de Janeiro: Zahar, 1982, p.42.
11
GARCIA, Elio Ramires. Do Estado União de Jeovah à União dos Posseiros de Cotaxé: transição e longevidade.
2015. 204 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015, p.38.
12
MOREIRA, Vania Maria Losada. Vazios demográficos ou territórios indígenas?. Dimensões, n. 11, 2000, p.144.
13
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Brasilia: a construção da nacionalidade - um meio para muitos fins (1956 – 1961).
Vitória: Edufes, 1998, p.185.
14
PONTES, Walace Tarcisio. Conflito agrário e esvaziamento populacional: a disputa do contestado pelo Espírito
Santo e Minas Gerais (1930-1970). 2007. 183 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007, p.17.
15
Estes dados são apresentados na dissertação de Mestrado de PONTES, Walace Tarcisio. Conflito agrário e
esvaziamento populacional: a disputa do contestado pelo Espírito Santo e Minas Gerais (1930-1970). 2007. 183 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
16
ABBAGNANO Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo Martins Fontes, 1998, p.62.
17
Émile Durkheim teorizou o conceito da Anomia em seus livros A divisão do trabalho social (1893) e O suicídio
(1897).
18
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas, 1912-1916.
Editora da UNICAMP, 2004, p.123.
19
ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. Fronteiras em movimento e identidades nacionais: a imigração brasileira
no Paraguai. 2005. 265f. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005, p.62.
20
O clássico trabalho – The significance of the frontier in American History (1893) – considerado o trabalho pioneiro na
perspectiva da análise histórica, pensando a fronteira como frente de expansão na sociedade norte-americana e sendo ela
a formadora da identidade e democracia americana.
21
TURNER, Frederick Jackson. La frontera en la historia americana. San José: Universidad Autónoma de
Centroamérica, 1986.
22
WAIBEL, Leo. As zonas pioneiras do Brasil. Revista Brasileira de Geografia, v. 17, n. 4, p. 3-37, 1955.
23
Idem, p.18.
24
MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010, p.29.
25
FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Rio
de Janeiro: Zahar, 1982, p.47-48.
26
Idem, p.151.
27
GARCIA, Elio Ramires. Do Estado União de Jeovah à União dos Posseiros de Cotaxé: transição e longevidade.
2015. 204 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015, p.133.
28
DIAS, Luzimar Nogueira. Massacre em Ecoporanga: lutas camponesas no Espírito Santo. Vitória: Cooperativa dos
Jornalistas do Espírito Santo, 1984. In: GARCIA, Elio Ramires. Do Estado União de Jeovah à União dos Posseiros de
Cotaxé: transição e longevidade. 2015. 204 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015, p.133.
29
Ofícios expedidos pelo Governador do Estado do Espírito Santo. Relatório do que foi apurado no Distrito Policial de
Oratório, referência 510, 1951, Vitória, 27 ago. 1951, p.I.

1314
30
Idem, p.II.
31
Idem, p.II.
32
Idem, p.II-III.
33
Idem, p.III.
34
Idem, p.III.
35
GARCIA, Elio Ramires. Do Estado União de Jeovah à União dos Posseiros de Cotaxé: transição e longevidade.
2015. 204 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015, p.45.
36
BORGO, Ivan Anacleto Lorenzoni; ROSA, Lea Brígida Rocha de Alvarenga; Renato José Costa. Norte do Espírito
Santo: ciclo madeireiro e povoamento. Vitória: EDUFES, 1996, p.102.
37
DIAS, Luzimar Nogueira. Massacre em Ecoporanga: lutas camponesas no Espírito Santo. Vitória: Cooperativa dos
Jornalistas do Espírito Santo, 1984, p.12.
38
FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Rio
de Janeiro: Zahar, 1982, p.58.
39
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Editora Contexto,
2014, p.178.
40
FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Rio
de Janeiro: Zahar, 1982, p.168.
41
Idem, p.44.
42
PONTES, Walace Tarcisio. Conflito agrário e esvaziamento populacional: a disputa do contestado pelo Espírito
Santo e Minas Gerais (1930-1970). 2007. 183 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007, p.92.
43
GARCIA, Elio Ramires. Do Estado União de Jeovah à União dos Posseiros de Cotaxé: transição e longevidade.
2015. 204 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015, p.64.
44
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Editora Contexto,
2014, p.10.
45
Idem, p.11.

1315
O Colégio Universitário da Universidade de São Paulo: aproximações

Lílian Miranda Bezerra 1

Resumo: O presente trabalho apresenta o Colégio Universitário da Universidade de São Paulo,


inserindo-o em seu contexto histórico e legal. Remete às reformas educacionais empreendidas pelo
Ministro da Educação e Saúde Pública, Francisco Campos, no âmbito do ensino secundário e
superior brasileiro e também à constituição da própria Universidade de São Paulo. Expõe as
primeiras conclusões obtidas por meio do levantamento documental remanescente do Colégio
Universitário.

Palavras-chave: Colégio Universitário – Universidade de São Paulo – Reforma Francisco Campos

Abstract: This work presents the "Colégio Universitário da Universidade de São Paulo", placing it
in its historical and legal context. It refers to the educational reforms undertaken by the Minister of
Education and Public Health, Francisco Campos, in the scope of Brazilian secondary and higher
education and also to the constitution of the "Universidade de São Paulo" itself. It presents the first
conclusions drawn from the study of the surviving "Colégio Universitário" archived documentation.

Keywords: Colégio Universitário – Universidade de São Paulo – Francisco Campos Reform

Em 1931, por meio do Decreto nº 19.8902, de 18 de abril, o ensino secundário brasileiro foi
reformado, passando a ser dividido em dois ciclos: fundamental, com duração de 5 anos e curso
complementar, com duração de 2 anos.

O mesmo decreto estabelecia as matérias a serem ministradas em cada ano do ensino


secundário, bem como a obrigatoriedade das instituições educacionais seguirem os programas e
métodos de ensino expedidos pelo recém-criado Ministério de Educação e Saúde Pública, com
previsão de submissão de suas propostas de revisão à Congregação do Colégio Pedro II, erigido
como parâmetro deste tipo de ensino.

1
Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo. E-mail: lilianmiranda@usp.br.
2
Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do ensino secundário.

1316
Para acesso à série inicial do primeiro ciclo do ensino secundário, o aluno deveria ter idade
mínima de 11 anos e ser aprovado em exame de admissão.

Alçado a pré-requisito para o ensino superior, o segundo ciclo do ensino secundário, o curso
complementar, dividia-se em áreas de interesse: Direito; Medicina, Farmácia e Odontologia;
Engenharia e Arquitetura, havendo previsão para um quarto programa, a ser definido pelas
Faculdades de Educação, Ciências e Letras.

No mesmo ano de 1931, dias antes da reforma do ensino secundário, foi sancionado o
estatuto das universidades brasileiras3, pressupondo a congregação de no mínimo três destes
institutos de nível superior para composição de uma universidade: Faculdade de Direito, Faculdade
de Medicina, Escola de Engenharia e Faculdade de Educação, Ciências e Letras4.

Diante da recente previsão de criação da Faculdade de Educação, Ciências e Letras e,


portanto, da inexistência de licenciados aptos a exercerem o magistério em instituições secundárias
oficiais, foi permitido que os cursos complementares fossem mantidos como “anexos aos institutos
superiores oficiais ou equiparados5”, podendo inclusive dispor do mesmo corpo docente.

Foi este mecanismo de adaptação à realidade educacional brasileira que permitiu, anos
depois, que o Colégio Universitário da Universidade de São Paulo, tema do artigo em tela e objeto
de pesquisa de mestrado em andamento, pudesse se estabelecer em meio à recém-criada
Universidade6, gozando de sua estrutura e recursos e desfrutando de parte de seu renomado corpo
docente.

Pioneira por sua abrangência nacional, a reforma do ensino secundário, que compõe a
denominada Reforma Francisco Campos (em referência ao ministro que a promulgou), inovou
também ao estabelecer frequência mínima obrigatória às aulas (de 75%). Além disso, sancionou ano
letivo regular de março a novembro, bem como a duração de cada aula (50 minutos), tempo de

3
Na origem das reformas educacionais ocorridas na década de 1930 estão os princípios renovadores da década anterior.
As Conferências Nacionais da Educação, e os inquéritos: “O Problema Universitário Brasileiro”; Inquérito do Rotary
Clube de São Paulo e sobre a Instrução Pública em São Paulo contribuíram para corroborar a necessidade de mudanças
neste cenário (SANTOS, 1998). Irene de Arruda R. Cardoso destaca além do referido Inquérito sobre Instrução Pública
em São Paulo, as publicações de Júlio de Mesquita Filho: “A Comunhão Paulista, de 1922 e “A Crise Nacional”, de
1925 (CARDOSO, 1982).
4
Decreto nº 19.851 de 11 de abril de 1931. Dispõe que o ensino superior no Brasil obedecerá, de preferencia, ao
sistema universitário, podendo ainda ser ministrado em institutos isolados, e que a organização técnica e administrativa
das universidades é instituída no presente Decreto, regendo-se os institutos isolados pelos respectivos regulamentos,
observados os dispositivos do seguinte Estatuto das Universidades Brasileiras.
5
Decreto nº 19.890 de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do ensino secundário.
6
No âmbito deste trabalho, todas as vezes em que estivermos nos referindo à Universidade de São Paulo, utilizaremos
Universidade, com maiúscula.

1317
intervalo entre disciplinas (10 minutos), duração mínima (20h) e máxima (28h) de aulas semanais,
assim como as formas de avaliação discente.

Vale lembrar que anteriormente os alunos poderiam frequentar cursos preparatórios e prestar
exames parcelados com vistas à aprovação em determinada disciplina do ensino secundário, sem
necessidade de assistirem às aulas regulares.

Conforme afirma Fernando de Azevedo em sua obra A cultura brasileira (1971, p.670), o
Decreto nº 19.890 “[...] imprimiu ao ensino secundário a melhor organização que já teve entre nós,
elevando-o de um simples ‘curso de passagem’ ou de instrumento de acesso aos cursos superiores, a
uma instituição de caráter eminentemente educativo [...]”.

Em 25 de janeiro de 1934, atendendo aos anseios da elite intelectual paulista, foi instituída a
Universidade de São Paulo (USP)7. Estabelecida em torno da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras (FFCL), reunia instituições de ensino superior pré-existentes: Faculdade de Direito,
Faculdade de Medicina, Faculdade de Farmácia e Odontologia, Escola Politécnica, Instituto de
Educação, Escola de Medicina Veterinária e Escola Superior de Agricultura (ESALQ). Foram
criados, também, o Instituto de Ciências Econômicas e Comerciais e Escola de Belas Artes, ambos
a serem instalados pelo governo do Estado em momento oportuno.

Ainda que esta Universidade não tenha sido a primeira8 a se constituir como tal no cenário
brasileiro, pode-se afirmar que fora a primeira a formar-se a partir do modelo estabelecido pela
Reforma Francisco Campos, nas palavras de Fernando de Azevedo: “O Governo Provisório da
República instituiu em 1931 o regime universitário, mas foi São Paulo que tomou em 1934 a
iniciativa de executá-lo em sua plenitude” (AZEVEDO, 1971, p. 688). Afinal, no projeto de
constituição da USP a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras desempenhava papel de núcleo
articulador.

Neste mesmo projeto, ao Instituto de Educação competiu participação por meio, exclusivo,
de sua Escola de Professores,

[...]ficando-lhe porém, subordinados administrativa e tecnicamente, como institutos


anexos, o Curso Complementar, a Escola Secundária, a Escola Primária e o Jardim

7
Decreto nº 6.283 de 25 de janeiro de 1934. Cria a Universidade de São Paulo e dá outras providências.
8
Até o surgimento de nossa primeira universidade - a Universidade do Rio de Janeiro criada em 1921 - o ensino
superior no Brasil se desenvolveu a base de institutos isolados voltados, preferencialmente, à formação profissional.
Beatriz Fétizon chama a atenção para o acaso que propiciou a criação desta universidade, a qual teria se constituído tão
somente para poder conferir, no contexto das comemorações do centenário da independência brasileira, o título de
doutor honoris causa às autoridades (com destaque ao rei da Bélgica) que viessem prestigiar o evento. Como o título
demandava uma universidade, esta fora criada às pressas reunindo institutos isolados existentes na cidade do Rio de
Janeiro (FÉTIZON, 2012, p. 145).

1318
da Infância, destinados à experimentação, demonstração e prática do ensino e ao
estágio profissional dos alunos da Escola de Professores9.

E em seu artigo 14º o mesmo decreto que institui a Universidade de São Paulo cria o Curso
Complementar anexo à Faculdade de Filosofia.

Nas Faculdades de Medicina e de Direito, os cursos complementares remontam aos anos de


1932 e 1933, respectivamente. Sendo o primeiro denominado Curso Complementar Pré-Médico e o
segundo Curso Complementar Pré-Jurídico. Já a Escola Politécnica possuía um Curso Preliminar,
com duração de um ano, anterior à Reforma Francisco Campos, adotando o Curso Complementar,
nos moldes instituídos por esta, após 1933.

Por meio do Decreto nº 6.430 de 9 de maio de 193410, o interventor federal do Estado de São
Paulo, Armando Salles de Oliveira, organiza o Curso Complementar da Universidade de São Paulo
em cinco seções e altera sua denominação para Colégio Universitário.

A 1ª Seção, de filosofia, ciências sociais e auxiliares, destinava-se à preparação para o curso


de Direito, Filosofia, Ciências Sociais, Geografia e História.

A 2ª Seção, de ciências químicas e naturais, destinava-se aos interessados em adentrar aos


cursos de Medicina, Medicina Veterinária, Farmácia e Odontologia e para a seção de Ciências
Naturais da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

A 3ª Seção, de ciências físicas e matemáticas, abarcava os cursos da Escola Politécnica,


Ciências Matemáticas, Ciências Físicas e Ciências Químicas.

A 4ª Seção, de ciências e educação, era exclusiva para acesso à Escola de Professores do


Instituto de Educação, enquanto a 5ª Seção, de letras, destina-se aos candidatos à seção de Letras
Clássicas e Modernas da Faculdade de Filosofia.

Como previsto na reforma do ensino secundário, todas as seções deveriam funcionar como
anexos das respectivas Faculdades ou Escolas as quais se vinculavam, dispondo de mesma estrutura
administrativa, corpo técnico e, em alguns casos, de parte de seu corpo docente.

Os Colégios deveriam responder diretamente aos diretores das faculdades e questões não
solucionadas por estes ou acima de suas responsabilidades, poderiam ser submetidas às discussões
do Conselho Universitário.

9
Decreto nº 6.283 de 25 de janeiro de 1934, Art. 5º.
10
Um mês depois, novo decreto prevê a criação de seção anexa à Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”.
Decreto 6.515 de 27 de junho de 1934. Modifica o decreto n.º 6.430, de 9 de maio de corrente ano, que organizou o
Colégio Universitário.

1319
Os primeiros contatos com a documentação remanescente deste Colégio indicam que sua
instalação junto as respectivas faculdades, a despeito da disposição legal e das expectativas
frutuosas que o cercavam11, realizou-se em meio a conflitos.

Como já mencionado, o projeto de universidade paulista que então se consolidava com a


instituição da USP partia da reunião de institutos superiores pré-existentes, o que trouxe tanto
problemas de integração entre as antigas faculdades entre si e a nova Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, “bem como de transferência e alargamento de ‘vícios de origem das instituições
já existentes’ para o corpo da Universidade” (FÉTIZON, 2012, p. 152).
Faculdades já tradicionais, como a Faculdade de Direito, Faculdade de Medicina e Escola
Politécnica, se viram, de um só golpe, despossuídas de sua antiga soberania e reunidas junto a um
poder central (Reitoria), sob os auspícios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, recém-
instaurada, mas em torno da qual a Universidade de São Paulo se erigia.
Se a elevação, de instituto superior isolado, à parte constituinte de uma universidade podia
despertar interesse àquelas instituições pelo acréscimo de prestígio que lhes trazia, por certo as
submissões que isso acarretava e a perda de espaço tanto físico quanto de poder, estão na origem
dos embates travados entre estas instituições nos primeiros anos de existência da USP.
Por mais de uma vez a Faculdade de Filosofia fora expulsa dos espaços que ocupava junto
aos prédios daquelas faculdades, já que por não possuir prédio próprio, precisava se alojar em
algum lugar e desfrutar de infraestrutura pré-existente. A criação simultânea do Colégio
Universitário e da Universidade, com certeza contribuiu para o acirramento deste problema, já que
também fora preciso alocar este novo contingente de alunos.
Tanto a Faculdade de Medicina, quanto a Faculdade de Direito e Escola Politécnica,
reclamam da falta de espaço para acomodar seus próprios alunos e os originários do Colégio,
dirigindo à Reitoria reclamações e solicitações de expansão de seus prédios, sob pena de
interrupção das atividades escolares.
No relatório referente ao ano de 1934, presente no primeiro Anuário da Universidade de São
Paulo, o diretor da Faculdade de Direito, professor Waldemar Martins Ferreira afirma:
Causam sempre as reformas do ensino, durante o ano letivo, sérios embaraços, em
detrimento do próprio ensino. A adaptação, a que procedeu, para efeito da
incorporação da Faculdade de Direito a Universidade de São Paulo, trouxe
dificuldades à inauguração e funcionamento do curso de doutorado e do Colégio
Universitário, praticamente reduzidos a um semestre (p. 290).

11
No primeiro anuário publicado pela Universidade de São Paulo, relativo aos anos de 1934 e 1935, consta texto
introdutório no qual se justifica a constituição da Universidade aliada ao objetivo de formação das elites intelectuais e
de promoção da cultura livre e desinteressada. Neste mesmo texto o Colégio Universitário é referido como parte
necessária à consecução deste objetivo, afinal “[...] é o ensino secundário o alicerce em que se erguem as instituições
universitárias, destinadas à formação das elites” (p. 17).

1320
No Anuário do biênio seguinte12, o Diretor da Faculdade de Medicina produz reclamação
semelhante, transcrita do seguinte modo:
Observa o senhor Diretor que os prédios em que funciona a Escola, com suas
dependências, não satisfazem o que reclama o desenvolvimento crescente do
instituto, tanto mais quanto na mesma Escola funciona o Colégio Universitário, e
são ministradas aulas também a grande número de alunos da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras (p. 31-32).

Na Escola Politécnica as reclamações também se dirigem ao Diretor da FFCL diante do


afluxo, em meados do ano letivo, de novos alunos à 3ª seção que coordenava. Os
descontentamentos advindos da gestão do espaço farão com que esta Escola faça parte de Comissão
que apresentará ao Conselho Universitário, em 1938, proposta de aquisição (via aluguel ou compra)
de um único prédio destinado ao funcionamento do Colégio13, o qual deveria dispor de espaço
suficiente para acomodar cerca de 1200 alunos14.
Problemas também advieram da convivência de normativas discordantes quanto ao acesso
de alunos ao ensino superior. Ainda que o Decreto nº 19.890/1931 erigisse o segundo ciclo do
ensino secundário como pré-requisito ao nível seguinte, até 1938 os candidatos a Universidade
ainda puderam concorrer ao vestibular apresentando uma série de documentos distintos.
A Lei nº 11, de 12 de dezembro de 1934 dispunha, por exemplo, que o aluno maior de 18
anos que até o final do ano letivo de 193615 tivesse concluído a 5ª série do primeiro ciclo do ensino
secundário, ficaria dispensado do Curso Complementar (equivalente ao Colégio Universitário),
estando sua entrada na universidade condicionada à aprovação em exame vestibular.

No âmbito da própria USP fora preciso adequar modos distintos de acesso tanto ao Colégio
quanto à Universidade, a depender das peculiaridades ou exigências advindas das diferentes
faculdades.

Na Faculdade de Medicina e Escola Politécnica (responsáveis pelo funcionamento da 2ª e 3º


seção do Colégio Universitário, respectivamente) foi permitido, no ano de 193516, que alunos que
não tivessem cursado o primeiro ano do Colégio em 1934, pudessem se inscrever diretamente para
sua 2º série, desde que concluintes da 5ª série ginasial.

12
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Anuário da Universidade de São Paulo 1936-1937. São Paulo: Empresa
Gráfica da Revista dos Tribunais, 1938.
13
PARECER da Comissão incumbida pelo Conselho Universitário de elaborar um projeto de reorganização do Colégio
Universitário, em harmonia com a Legislação Federal. São Paulo, 13 jul. 1938. Arquivo Histórico da Escola
Politécnica, Colégio Universitário, caixa 2.
14
Ao que o levantamento documental por ora indica, esta proposta não veio a se efetivar.
15
O que poderia abarcar os primeiros meses de 1937, tendo em vista que os exames em 2ª época costumavam ocorrer
neste período.
16
Decreto nº 6.829, de 30 de novembro de 1934. Dispõe sobre o Colégio Universitário e lhe dá regulamento.

1321
Na ESALQ, aos alunos que já tivessem sido aprovados em exames parcelados junto a esta
unidade, ficaria assegurado o direito de concluir estes exames parcelados até 1937, inscrevendo-se,
em seguida, ao concurso vestibular17.

Assim, somente no ano de 1938 se estabelece que o acesso a qualquer curso superior da
Universidade de São Paulo ficaria condicionado, única e exclusivamente, pela aprovação em seu
Colégio Universitário ou instituição equivalente com reconhecimento federal.
Ainda que estes conflitos permeassem sua existência, a consulta aos relatórios anuais da
Universidade, bem como à documentação remanescente por ora levantada junto a Escola
Politécnica e Faculdade de Direito18, apontam que o número de candidatos e de alunos efetivos do
Colégio Universitário se deu sempre em uma linha ascendente.
Desde seus primeiros anos de funcionamento, o número de candidatos fora sempre superior
ao número de vagas, fazendo-se necessário proceder a exame de seleção19 entre eles.
Estes exames de seleção se davam mais ou menos nos mesmos moldes previstos para
admissão à Universidade, realizando-se frente à comissão examinadora composta por três
professores do Colégio, com realização de prova escrita de três matérias - a depender da seção a
qual se destinava - com conteúdos relacionados ao 5º ano do ginásio (primeiro ciclo do ensino
secundário).
O que o andamento da pesquisa indica é que para além de meio de acesso aos cursos
superiores da Universidade, o Colégio Universitário parece ter se configurado como verdadeira
instituição de excelência no ensino, contribuindo para suprir defasagens do ensino secundário
fundamental e formar alunos aptos à dinâmica e ao espírito do ensino superior.

Além de lugar de formação estudantil e compartilhamento de experiências sociais, sobretudo


o Colégio Universitário vinculado à antiga Faculdade de Filosofia, também contribuiu como espaço
de atuação e prática docente, tendo em vista que o objetivo primeiro desta faculdade era formar o
magistério secundário20.

17
Decreto nº 6.829, de 30 de novembro de 1934. Dispõe sobre o Colégio Universitário e lhe dá regulamento.
18
Nossa pesquisa de mestrado teve início em março de 2017 e deverá ser concluída até março de 2020. Até este
momento temos conhecimento de ao menos três conjuntos documentais existentes sobre o tema: um custodiado pelo
Arquivo Geral da USP e proveniente da FFLCH, o segundo alocado no Arquivo Histórico da Escola Politécnica e o
terceiro pertencente à Faculdade de Direito. Existe a possibilidade de existirem ao menos outros três: na Faculdade de
Medicina, na Escola Superior de Agricultura e no arquivo remanescente do antigo Instituto de Educação, podendo
existir outros mais.
19
No art. 40 do Decreto 6.829/1934, se estabelece que se houverem menos alunos que vagas, não será necessário
proceder a concurso vestibular.
20
O escritor, ensaísta e professor da FFLCH-USP, Antonio Candido de Mello e Souza, em entrevista concedida acerca
de sua trajetória profissional salienta sua passagem como aluno, depois como docente no Colégio Universitário
(PONTES, 2001).

1322
A despeito de sua breve duração (cerca de 10 anos), passaram por esta instituição alunos e
docentes que alcançaram destaque na cena intelectual brasileira e, por vezes, internacional. Em
alguns destes alunos o Colégio deixou lembranças vivas e marcantes (informação verbal)21.

No entanto, em 1942, a conhecida Reforma Capanema22 viria modificar a estrutura do


ensino secundário brasileiro, desferindo golpe aos Colégios Universitários e retirando esta etapa do
ensino secundário da órbita das universidades.

No Estado de São Paulo a extinção do Colégio Universitário seria efetivada anos depois, em
194523. Contudo, na década de 60, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 24 previa a possibilidade
de instauração, mais uma vez, de colégios anexos às universidades, nos quais seriam ministradas as
disciplinas relativas ao 3º ano do Ciclo Colegial, trazendo à tona novas discussões acerca do
funcionamento e da anterior extinção destas instituições.

21
Informação fornecida por Anita W. Novinsky em evento promovido pelo Arquivo Geral da USP em parceria com o
Arquivo Público do Estado de São Paulo, denominado A história da Universidade de São Paulo e a contratação de seus
primeiros docentes, ocorrido em setembro de 2016. Esta professora emérita da FFLCH-USP, fez um relato emocionado
de suas memórias enquanto aluna do referido Colégio.
22
Reforma do sistema educacional brasileiro ocorrida sob o governo Getúlio Vargas e coordenada por seu Ministro de
Educação, Gustavo Capanema, em 1942. Decreto-lei nº 4.244, de 09 de abril de 1942. Lei orgânica do ensino
secundário.
23
Decreto-Lei nº 15.235 de 28 de novembro de 1945. Dispõe sobre organização do ensino secundário.
24
Lei 4.024 de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

1323
Referências bibliográficas

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BRASIL. Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931. Dispõe que o ensino superior no Brasil
obedecerá, de preferencia, ao sistema universitário, podendo ainda ser ministrado em institutos
isolados, e que a organização técnica e administrativa das universidades é instituída no presente
Decreto, regendo-se os institutos isolados pelos respectivos regulamentos, observados os
dispositivos do seguinte Estatuto das Universidades Brasileiras. Diário Oficial da União, Rio de
Janeiro, DF, 15 abr. 1931. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-
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Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 dez. 1961. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-20-dezembro-1961-353722-
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1324
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Anuário da Universidade de São Paulo 1934-1935. São


Paulo: Imprensa Oficial, 1936.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Anuário da Universidade de São Paulo 1936-1937. São


Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1938.

1325
“Futuro da nação ou pequenas sementes do mal”? Uma análise sobre o cotidiano da infância
pobre sob os olhares da imprensa carioca (1901-1907)

Lívia Freitas Pinto Silva Soares1

Resumo: Este artigo tem como objetivo avaliar os registros produzidos pela imprensa carioca, no
alvorecer do século XX, acerca do cotidiano de trabalho da infância proletária. Para os fins deste
trabalho, selecionamos determinadas reportagens publicadas no periódico Correio da Manhã, as
quais trouxeram a lume a rotina das crianças e adolescentes que ingressaram no trabalho precoce e
subalterno nas fábricas, oficinas, moinhos e nas obras de engenharia do Rio de Janeiro, então capital
do país. Pretendemos recuperar determinados olhares sobre a infância pobre e desvalida, inscrita
num contexto de mudanças que agitavam o mercado de trabalho, responsáveis por aumentar o
abismo social entre pequenos membros da elite e pequenos operários, que abandonavam os bancos
escolares e os sonhos para complementar a renda familiar no ambiente fétido das fábricas da capital
federal.

Palavras-chave: Infância; Primeira República; Imprensa.

Abstract: This article aims to evaluate the records produced by the carioca press, at the dawn of the
twentieth century, about the daily work of proletarian childhood. For the purposes of this work, we
selected certain reports published in the periodical Correio da Manhã, which brought to light the
routine of children and adolescents who entered early the subordinate work in factories, workshops,
mills and engineering works in Rio de Janeiro, the capital of the country. We aim to recover certain
glimpses of the poor and helpless childhood, registered in a context of changes that agitated the
labor market, responsible for increasing the social gulf between small elite members and small
workers, who abandoned school benches and dreams to supplement income family in the fetid
environment of the factories of the federal capital.

Keywords: Childhood; First Republic; Press.

O escopo deste artigo consiste em analisar as reportagens veiculadas no jornal Correio da


Manhã, entre os anos de 1901 e 1907, as quais trouxeram à luz determinadas representações e
facetas do cotidiano das crianças e adolescentes proletários, inseridos no trabalho precoce, na então
capital da República. O menor de idade, sujeito e objeto desse trabalho, não tem fala, opinião e
feições próprias, não teria deixado qualquer vestígio de sua existência, senão fossem os olhares
atentos e críticos dos agentes da imprensa carioca, que ergueram suas vozes para denunciar a
intransigência do patronato em relação às demandas inerentes à infância e adolescência. Ao longo
da história do Brasil, os grupos socialmente favorecidos souberam habilmente lançar mão de

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista
da CAPES. E-mail: liviafreitasufjf@gmail.com

1326
estratégias de sobrevivência multifacetadas, dentre as quais se sobressaíam os expedientes extras
que davam no comércio, nas ruas, quando atuavam como ambulantes, e nos próprios
estabelecimentos que os empregavam.2 Outro fator importante que auxiliava na complementação
da renda familiar consistia no apelo dos patriarcas à força de trabalho de seus filhos. Em outros
casos, diante da ausência da figura paterna e da consequente dificuldade de reprodução material se
viam impelidos a atuarem como arrimos de família.
No alvorecer do século XX, quando as crianças provenientes dos estratos populares não
auxiliavam seus pais nas tarefas domésticas, ingressavam como operários nas fábricas, moinhos e
nas oficinas da capital da República, ou trabalhavam como vendedores ambulantes. Tendo como
ponto de partida esta realidade, não causa-nos surpresa, portanto, o fato de esses pequenos seres em
formação terem que abandonar os bancos escolares para aumentar as horas trabalhadas e, por
conseguinte, a renda familiar, ou sequer chegavam a frequentá-los em algum momento de suas
vidas, dada a escassez de vagas em escolas públicas da capital federal. Desta forma, um contingente
bastante expressivo de crianças aprendia a conviver com as longas jornadas de trabalho, com as
cobranças do patronato e com os perigos inerentes ao ambiente das fábricas, muito antes de se
aproximarem da puberdade.
Ironicamente, um país que possuía uma elite dirigente que esperava alcançar o tão sonhado
progresso econômico e social convivia com uma grave questão, que poderia comprometer o seu
desenvolvimento: a infância pobre e desvalida, diagnosticada como um problema, no final do
século XIX. A partir desse momento, a criança - e com ela a adolescência- iria adquirir cada vez
mais protagonismo nos projetos e ações levadas a cabo por médicos, higienistas, juristas e
filantropos que propuseram e alinhavaram medidas que visavam acolher, tratar, recolher e assistir
esses pequenos. Muito embora a maioria das iniciativas filantrópicas e caritativas possuísse um
caráter nitidamente moralista, derivavam delas a ajuda que os indigentes, doentes e órfãos
conseguiam. Isso porque os assuntos relativos à área social foram criminosamente relegados na
agenda política de seguidos gestores, a despeito de algumas medidas pontuais terem sido
capitaneadas pelo Estado a partir da década de 1920.
Ao avaliarmos as crônicas e notícias difundidas nesse periódico, entre os anos de 1901 e
1907, é possível perceber que as vidas dos pequenos trabalhadores do Distrito Federal estiveram
inscritas numa rotina de violência, a qual se fez presente nos mais diversos estabelecimentos da
cidade. Neste sentido, os castigos físicos eram comumente empregados pelos representantes dos
cargos de chefia para punir a indisciplina e/ou insubordinação dos empregados, pequenos erros que

2
Sobre este tema, ver: HAHNER, June. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil (1870-1920). Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1993.

1327
pudessem comprometer a produção ou levar ao desperdício de mercadoria, não poupando as
crianças dessas ações gratuitas de brutalidade. Ao contrário, pois, exatamente por serem
inexperientes e, diante da possibilidade de serem moldadas como trabalhadores exemplares, as
punições e práticas violentas afiguravam-se aos olhos do patronato como estratégias ainda mais
interessantes para impor a racionalidade capitalista, o respeito à chefia e impulsionar os lucros do
empresariado.
Esse cotidiano permeado de ameaças diversas para os pequenos proletários era comumente
observado no ambiente das fábricas, mas não cessava nelas. Não raro, a imprensa carioca denunciou
agressões aos menores atribuídas aos professores, nas escolas e institutos profissionais, no
comércio, quando os clientes não ficavam satisfeitos com os preços dos produtos e nas oficinas,
quando os aprendizes não conseguiam executar o trabalho manual determinado pelo mestre.
Paralelamente, observa-se um grande número de reportagens que traz a lume episódios que
ressaltam o fato de a crueldade, muitas vezes, ter origem no seio da própria família do menor.
Assim, sofriam punições desmedidas dos progenitores, quando suas brincadeiras passavam dos
limites e/ou no momento em que não cumpriam suas atividades domésticas. Em determinadas
circunstâncias, esses acontecimentos brutais acabaram levando a criança à morte.

1- O cotidiano dos trabalhadores menores: uma análise sobre as vítimas dos acidentes de
trabalho e da violência do patronato
Em uma das oficinas da Cia Edificadora, na Ponta do Caju, Rio de Janeiro, trabalhava o
menor João de Nazareth, filho de Manoel da Costa Nazareth, quando teve o azar de ser apanhado
pela polia de uma máquina, ficando com a perna esquerda esmagada. João foi recolhido ao hospital
São Sebastião em uma padiola, onde ficou em tratamento, sendo grave o seu estado. Outra
reportagem publicada no mesmo ano, no Correio da Manhã, ressalta um acidente grave do qual o
menor José de Assunção Teixeira Júnior foi vítima, tendo suas mãos esmagadas por um cilindro,
quando trabalhava em uma olaria na Pavuna, zona norte da capital federal. A notícia destaca que o
menor seguiu para a Santa Casa de Misericórdia, no entanto, não é possível localizar maiores
detalhes sobre as implicações do acidente como, por exemplo, se teria ocorrido a perda de um ou
mais dedos das suas mãos, fato comumente observado quando o trabalhador manipulava e limpava
máquinas em movimento nas oficinas e fábricas da cidade. Por sua vez, um desastre desta natureza
vitimou o menor Manoel Nogueira da Costa, de 13 anos, português, enquanto manejava a
engrenagem de uma máquina em um moinho do centro da cidade, o menor teve seu dedo polegar de
uma das mãos arrancado. João de Nazareth, José de Assunção e Manoel Nogueira, são alguns dos
muitos personagens que, por terem em comum o quadro de pobreza que perpassava suas vidas,

1328
acabavam ingressando no mundo do trabalho, antes mesmo de completarem 10 anos, fase na qual
os pequenos começam a gozar de um pouco mais de autonomia.
Naturalmente, o contato próximo e a manipulação de polias, cilindros e engrenagens de
máquinas pelos proletários menores de idade, que trabalhavam em fábricas, moinhos e oficinas da
capital da República, provocaram diversos acidentes profissionais, todos marcados pelo
agravamento do estado de saúde das vítimas e muitos dos quais as levaram ao óbito. Francisco
Celino é um desses personagens que conheceram um desfecho fatal, de nacionalidade espanhola, o
menor não conseguiu sobreviver a um acidente registrado em uma oficina do Distrito Federal, no
qual foi pego pela engrenagem de uma máquina. Ele chegou a ser internado na Santa Casa de
Misericórdia, mas não conseguiu resistir aos ferimentos. Contrapondo-se a esse destino conhecido
por Celino, Dario Gomes de Souza, operário de uma fábrica de molduras, com apenas 13 anos
sofreu um grave acidente, mas conseguiu sobreviver. O menor trabalhava na fábrica durante a tarde,
quando teve a infelicidade de ser apanhado por uma polia do motor de uma máquina, que o
arremessou a grande distância. Vale ressaltar que a maioria dos acidentes dos quais os menores
operários foram vítimas no ambiente profissional foram registrados nas obras de engenharia do
Distrito Federal, seguidos por aqueles que ocorreram em fábricas e oficinas da cidade. Não
obstante, essa insegurança que atravessava a vida de boa parte dos trabalhadores não cessava no
convívio com a iminência de desastres nos meios profissionais, na medida em que durante a
Primeira República registros que destacavam uma rotina de espancamentos infligidos aos
aprendizes e operários pelos superiores hierárquicos figuraram, com frequência, nos periódicos
cariocas e paulistas.
Durante o período em destaque nesta análise, o Correio da Manhã focalizou diversos
desastres decorrentes do manuseio de máquinas nos diferentes estabelecimentos do Distrito Federal
pelos pequenos operários, que resultaram na perda de um ou mais dedos das suas mãos e que, por
conseguinte, acabou dificultando ou inviabilizando de forma definitiva a sua vida profissional.
Paradoxalmente, em uma das páginas do mesmo jornal localizamos uma longa reflexão promovida
por Evaristo de Moraes acerca das especificidades inerentes ao trabalho infanto-juvenil em nosso
país e, ao mesmo tempo, denuncia o atraso em que se achavam as nossas leis sociais, quando
comparadas à legislação de países, como a França, Itália e Inglaterra. Dentro desta lógica, Moraes
ironiza a preocupação dos “civilistas” em regular a lei que dizia respeito às relações de “amos” e
“criados”, relegando questões importantes caras ao universo do trabalho. O jurista assinala que os
menores confiados por pais ou tutores, com autorização judicial, aos mestres de ofícios eram
obrigados a prestarem serviços gratuitos, regulado o tempo pelo costume, sob pena de indenização.
A lei republicana de 1891 não permitia o trabalho efetivo de crianças menores de 12 anos, contudo,

1329
autorizava as de mais de oito anos a principiarem a aprendizagem nas fábricas de tecido. O
criminólogo ressalta, ainda, que a lei 1313 ainda continha determinações interessantes, como o fato
de autorizar os menores do sexo feminino de 12 a 15 anos e os do sexo masculino de 12 a 14 anos a
trabalharem, no máximo, 7 horas por dia, não consecutivas de modo que nunca excedesse 4 horas
de trabalho contínuo; e os do sexo masculino, de 14 e 15 anos, até 9 horas por dia, nas mesmas
condições. Paralelamente, esse mesmo código determinava que os menores aprendizes - que
poderiam ser admitidos nas fábricas de tecido desde os oito anos, só poderiam trabalhar 3 horas.
Como assinala Moraes, se eles tivessem mais de 10 e 12 anos poderiam trabalhar até 4 horas,
estando previsto um descanso de meia hora para os primeiros e de uma hora para os segundos. Esta
lei proibia o emprego de menores no serviço de limpeza das máquinas em movimento, bem como
impedia a sua ocupação junto a rodas, rolantes, engrenagens e correias em ação, pois os legisladores
reconheceram que estas funções poderiam levá-los á morte. Contudo, este trabalho era, comumente,
desempenhado por menores, apesar da prescrição vigente na lei brasileira. De modo semelhante,
Moraes afirma que o código não admitia o trabalho dos menores em depósitos de carvão, fábricas
de ácidos, algodão pólvora, nitro-glicerina fulminatos, nem que fossem empregados em
manipulações diretas de fumo, chumbo, fósforo, etc. Todavia, é mister ressaltar que a idade
permitida para a admissão ao trabalho oscilou na legislação durante o período. Somente em fins da
década de 1910, a Lei Federal n. 1596/ 1917 estabeleceu, de fato, a idade de 12 anos como limite
para a admissão de mão-de-obra menor no setor secundário.
Como já era de se esperar, não era essa a lógica que regia a rotina dos menores que
trabalhavam como operários e aprendizes nas fábricas e nos demais estabelecimentos do Distrito
Federal durante o período avaliado. Esses trabalhadores, por se verem ainda menos amparados pelas
leis sociais do que os adultos, em virtude da pouca idade, vivência e voz que tinham, eram ainda
mais vulneráveis aos castigos e espancamentos impostos pelos patrões e representantes dos cargos
de chefia- como mestres e contramestres.
Muito embora as leis demonstrassem certa preocupação com a educação, a saúde e a
segurança dos trabalhadores menores de idade, a fiscalização foi praticamente inexistente durante
os primeiros anos do século XX. Ao que parece, o modelo liberal de Estado, o qual previa
intervenções mínimas na sociedade, além das brechas existentes em diversos dispositivos, em
função da sua enorme subjetividade, foram alguns dos fatores acabaram contribuindo para reforçar
o comportamento negligente e abusivo do patronato, não poupando os menores da exploração
capitalista. Como bem demonstrou Esmeralda Moura, as expressões “trabalhos comuns”, “trabalho
acessível” e “serviços leves”, empregados pela legislação enquanto critérios associados à exigência
de idade mínima para a admissão dos menores ao setor secundário, sem, contudo, precisar

1330
exatamente em que consistiam, expressavam a enorme subjetividade carregada pelos dispositivos da
legislação3.
Por outro lado, se os empresários lucravam ao máximo com o trabalho infanto-juvenil, as
vozes dos articulistas do Correio da Manhã se ergueram para delatar os termos cruéis da atividade
produtiva exercida pelos pequenos proletários, trazendo à luz detalhes minuciosos acerca das
ameaças, do ritmo de produção exaustivo e da violência que se constituíam nos componentes da sua
rotina de trabalho. Fatores esses que comprometeram, em diversos níveis, a sua saúde e o seu
futuro. Como vivamente foi observado por Moura, como negar que as condições de trabalho eram
particularmente nefastas em relação às crianças e adolescentes? Nesta perspectiva, deparamo-nos
com uma reportagem detalhada sobre um acontecimento que abalou a vida de Oscar José da Costa,
um operário que contava apenas 12 anos de idade. Apesar da pouca idade, Oscar carregava grandes
responsabilidades, uma vez que era o maior provedor da família. O pequeno trabalhava em uma
oficina situada, à Rua da Saúde, no Rio de Janeiro e, em uma tarde de trabalho na fábrica, quando
manipulava uma máquina, o menor teria seus quatro dedos da mão direita decepados pela
engrenagem. A “pobre criança”, como define o jornalista, após um grito de dor, retirou-se do local,
onde perdera quase a mão e foi encaminhado para a delegacia. Por sua vez, relata-se que o estado de
saúde do menor produziu um sofrimento enorme na família, agravado pelo fato de Oscar ser arrimo
da família, após o falecimento do progenitor. Neste sentido, aquela fatalidade comprometeria
significativamente a sua vida profissional, uma vez que ele teria que se adaptar à nova condição,
encontrar um novo ofício e outra forma de prover a sua subsistência e a dos seus dependentes.
Portanto, as leis vigentes eram muito modestas, pontuais e pouco impactavam o cotidiano
dos trabalhadores em geral, submetidos a péssimas condições de vida e de trabalho, não
resguardando as crianças e os menores de idade. Porém, como assinala Claúdia Viscardi em análise
sobre os marcos regulatórios e as leis sociais implementadas pelo estado brasileiro durante a
primeira fase republicana expressavam a intenção dos legisladores de garantir a implantação de
relações mais autônomas entre trabalhadores e patrões, ou seja, o mercado de trabalho livre no
Brasil, no imediato pós-abolição.4 Por outro lado, no tocante ao destino de milhares de crianças e
adolescentes trabalhadores, esta autonomia vislumbrada pelos legisladores afigurava-se como
ameaçadora em vários aspectos e só parecia atender aos interesses dos empresários, na medida em
que poderia comprometer a segurança e a vida desses menores nos espaços profissionais da cidade.

3
MOURA, Esmeralda. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In: DEL PRIORE, Mary (Org). História
das crianças no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2000.
4
VISCARDI, Claúdia. Trabalho, previdência e associativismo: as leis sociais na Primeira República. In: LOBO,
Valéria; DELGADO, Ignácio; VISCARDI, Claúdia. Trabalho, proteção e direitos: O Brasil além da Era Vargas. Juiz
de Fora: Ed. UFJF, 2010. P. 33.

1331
Somente o Código de Menores viria, em parte, regulamentar esta situação. Enquanto isso, lançados
a sua própria sorte, restava aos pequenos operários dedicarem longas horas diárias ao trabalho nas
fábricas, oficinas e moinhos da capital federal. Ademais, o trabalho desempenhado por eles
significava a contenção dos custos de produção e, por conseguinte, o lucro máximo para o
empresariado, que reforçava esse círculo vicioso, do qual os progenitores se viam impelidos a
recorrer, no afã de sobreviver. O leque diversificado de funções desempenhadas por essas crianças e
adolescentes sinalizava para o fato de que a relação produtividade da mão-de-obra infanto-juvenil,
de um lado, e, de outro, os custos de produção era plenamente adequadas aos durante boa parte da
Primeira República: o Estado. Sem dúvida, a omissão e o descaso dos gestores públicos em relação
à dureza e a precariedade do trabalho infanto-juvenil no Distrito Federal eram notáveis, muito
embora as pressões sociais, sobretudo do movimento operário, começassem a se fortalecer e a
ganhar cada vez mais evidência nas páginas dos diversos periódicos, que ergueram suas vozes em
prol da causa trabalhista.
Ao avaliarmos as reportagens publicadas entre os anos de 1901 e 1907, pode-se identificar a
presença de guindastes e andaimes obsoletos, reaproveitados nas obras de engenharia que
representavam um perigo real para a vida dos operários, não oferecendo a eles qualquer garantia de
segurança no ambiente de trabalho. Joaquim de Souza, menor de 14 anos, aprendiz de serralheiro,
foi uma das vítimas de um desastre ocorrido na construção civil. Este episódio motivou uma
denúncia feita pelo Correio da Manhã, que conclamou os órgãos administrativos da Municipalidade
e as autoridades do Distrito Federal a cumprirem o seu dever de poder público e agir a favor dos
trabalhadores, fiscalizando as obras e verificando se os materiais e instrumentos empregados na
construção civil haviam passado por algum processo de manutenção, sobretudo os andaimes. Esses,
por sua vez, ofereciam tantos riscos à vida dos operários que foram classificados como “arapucas”
na reportagem do Correio da Manhã. Outros acidentes desta mesma natureza foram registrados nos
anos anteriores e explorados pelo mesmo periódico. É o que faz supor, por exemplo, a notícia
publicada no mesmo editorial em 1902, segundo a qual, o espanhol Leopoldino Ordente, de 17 anos
de idade, empregado na construção civil, teria sido uma das muitas vítimas da negligência dos
poderes públicos e dos construtores. O articulista afirma que o menor fora acertado no peito por um
volume suspenso por um guindaste, quando trabalhava nas obras do canal do Mangue. Após a
ocorrência do desastre, o operário caiu sem fala e foi enviado para o hospital da Misericórdia.
Assim, os guindastes utilizados nas obras do Distrito Federal eram mais um dos instrumentos de
trabalho que não ofereciam garantias mínimas de segurança aos operários. De fato, a falta de
fiscalização das obras de engenharia na capital federal, papel que competia aos poderes públicos,
acabava dando margem para o reaproveitamento de materiais e instrumentos ultrapassados pelos

1332
empresários, o que acabava deixando centenas de vidas completamente à mercê da ganância dos
capitalistas e da omissão do Estado.
Contrariando o destino conhecido por Leopoldino Ordente, centenas de crianças e
adolescentes não tiveram a mesma sorte que o menor, caso, por exemplo, de Franklin Pereira, que
teve o crâneo fraturado, ao cair de um andaime, numa construção à Rua da Carioca. Em que pese o
fato de ele ter recebido atendimento médico imediato após a queda, às sequelas desse desastre
ficariam marcadas para sempre em sua memória e, em função da gravidade do impacto,
dificultariam a sua vida profissional e, por consequência, a garantia de renda, ou a inviabilizaria
definitivamente.
Entre os anos de 1901 e 1907, localizamos 45 registros de acidentes ocorridos nos diferentes
espaços profissionais do Distrito Federal nas centenas de números publicados pelo Correio da
Manhã que se constituíram no alvo de nossa análise. Curiosamente, dessas 45 ocorrências, 15
ocorreram na construção civil, correspondendo a um total aproximado de 33% dos acidentes
noticiados pelo Correio da Manhã, seguidos por 11 registros desta mesma natureza sucedidos em
oficinas, ou seja, 24% dos desastres noticiados no periódico carioca. Curiosamente, a mesma soma
foi observada em fábricas da capital da República, cujos acidentes foram, na maioria das vezes,
decorrentes da manipulação e limpeza de máquinas pelos pequenos operários, contribuindo para
engrossar a estatística aproximada de 24% dos desastres noticiados. À semelhança das fábricas, as
oficinas da cidade ofereciam igualmente condições inseguras de trabalho para os operários, na
medida em que foi ressalvado o mesmo número de desastres que ocorreram nos estabelecimentos
fabris. Por sua vez, as oficinas eram espaços divididos entre diferentes profissionais, caso dos
mecânicos, funileiros, ferreiros, sapateiros, entre outros, que empregavam menores aprendizes,
muitos dos quais contavam apenas oito e nove anos de idade. Esses desastres provocaram, em
determinados casos, a perda de um ou mais dedos de uma das mãos dos trabalhadores menores de
idade, marcando profundamente a história de cinco operários que trabalhavam em oficinas e em
moinhos da capital da República. Por outro lado, os outros 19% dos acidentes de trabalho
registrados durante esse período, ocorreram em moinhos, em função da queda de sacos e estoques,
nas ruas, resultante dos atropelamentos dos menores que atuavam como vendedores ambulantes, em
olarias e no comércio da cidade, visto que o setor terciário também se valia largamente da mão-de-
obra infanto-juvenil.
No que diz respeito aos acidentes profissionais que produziram vítimas fatais, localizamos
sete registros, dentre os quais três vitimaram trabalhadores da construção civil, seguidos por três
que ceifaram as vidas do mesmo número de operários que viram suas existências e sonhos serem
encerrados por máquinas que os arremessaram a longas distâncias em fábricas da cidade e um

1333
sucedido em uma oficina. Cabe salientar que os três últimos óbitos ocorreram pela mesma razão,
uma vez que o impacto da queda produziu fraturas diversas pelo corpo dos menores e o
esmagamento dos crâneos. Ao passo que os menores que trabalhavam na construção civil tiveram
suas vidas abreviadas, em função de quedas desastradas de escadas e andaimes (dois registros,
sendo um de cada) e da inclinação acidental de volumes suspensos por guindastes que caíram em
cima dos operários (um registro). Em que pese esta última estatística, a construção civil foi o
ambiente, no qual os pequenos operários mais se defrontaram com ameaças diversas para a vida, na
medida em que produziu o maior número de vítimas fatais e em estado grave nos hospitais (três
registros). Este fato se deu, em grande medida, devido ao emprego de andaimes e guindastes
precários que suspendiam materiais pesados nas obras de engenharia da capital da República, cujos
materiais e o mau estado de conservação não ofereciam quaisquer garantias de segurança a vida dos
trabalhadores.
As estatísticas comprovam, portanto, que nenhum estabelecimento profissional ou campo de
trabalho do Distrito Federal oferecia, no alvorecer do século XX, quaisquer garantia de segurança
para a saúde e a vida dos operários menores de idade. As condições de trabalho às quais essas
crianças e adolescentes estavam inscritas eram igualmente ruins, indignas e danosas para suas vidas
futuras, ao mesmo tempo em que eram negligenciadas pelos órgãos de fiscalização do Estado, a
cujo respeito manteve-se completamente omisso durante o período avaliado.
Percebe-se, portanto, que a total ausência do Estado no cotidiano das fábricas, oficinas,
moinhos e demais espaços que se valiam da mão-de-obra infanto-juvenil na capital federal abriu
caminho para a propagação das irregularidades, além de ter contribuído para o aumento da
exploração do capital sobre a força de trabalho e para o total descumprimento das leis vigentes. Em
face disso, a presença maciça de crianças e adolescentes empregados nas fábricas têxteis, mas,
como já foi dito, não limitada a esta, era a expressão máxima do quadro de miséria e opressão no
qual o operariado brasileiro estava imerso. De igual maneira, os efeitos nefastos desta exploração
desumana do trabalho infanto-juvenil acabavam se refletindo na precária saúde alardeada por
muitas crianças e adolescentes, que encontraram nas fábricas, moinhos e oficinas insalubres do
Distrito Federal todas as condições facilitadoras da propagação de doenças infectocontagiosas,
como a Tuberculose. Assim, a falta de fiscalização nos diferentes estabelecimentos da cidade,
competência atribuída aos órgãos oficiais, permitiu que os empregadores ignorassem
completamente a legislação, reforçando, portanto, os instrumentos de coerção sobre este
contingente do proletariado brasileiro e comprometendo o futuro mais valioso do país: a infância.

2- A crueldade e a violência: duas faces que aterrorizavam as vidas dos pequenos operários

1334
A violência, por sua vez, era outro componente que integrava a rotina de trabalho dos
menores nas diversas regiões do país. No Distrito Federal, esta realidade não foi diferente,
tampouco em São Paulo. Em função da pouca idade, talvez tenham sido, entre os trabalhadores,
aqueles que viveram os exemplos mais exacerbados da relação do poder de patrões e de superiores
hierárquicos, que os impunham a uma disciplina férrea.5 Como demonstra Moura, as brincadeiras
promovidas pelos menores resistiam à racionalidade demandada pelo ambiente de trabalho e
acabaram estimulando atitudes violentas, ao longo do tempo, em nome da disciplina exigida nos
regulamentos das fábricas e oficinas. Portanto, pode-se afirmar que o mundo do trabalho não era
flexível, tampouco se curvava as demandas inerentes à infância, paradoxalmente, era um universo
duro e caótico, regido por leis capitalistas, as quais buscavam ao máximo eliminar as
particularidades dos pequenos operários, uniformizando-os e padronizando seus comportamentos.
Neste sentido, durante os anos de 1901 e 1907, uniam-se ás denúncias da intensa exploração
sofrida pelas crianças numa gama bastante variável de estabelecimentos profissionais, trazidas a
lume pela imprensa carioca, os relatos que sinalizavam para uma rotina de espancamentos e
punições severas impostas pelos patrões e pelos superiores hierárquicos aos pequenos trabalhadores
do Distrito Federal. De fato, a literatura que se detém ao universo do trabalho infanto-juvenil
durante a primeira fase republicana é uníssona ao apontar que, de Norte a Sul do país, esses
menores eram colocados em atividades penosas, insalubres e perigosas, submetidos a longas
jornadas de trabalho e a uma remuneração baixíssima e em muitas situações, na área rural, sem
remuneração. Paradoxalmente, o trabalho continuava sendo concebido como uma das soluções para
o problema da infância desvalida, viciosa e abandonada, na medida em que ele seria o instrumento
capaz de prevenir o desvio, ao mesmo tempo em que preparava a mão-de-obra para a agricultura e
indústria.
Esse fato, por sua vez, nos remete ao triste episódio que marcou a vida de um menor que
atendia pelo nome de Alfredo da Silva, de 12 anos de idade. Alfredo foi uma das muitas vítimas de
punições desumanas infligidas pelo gerente da companhia da qual era empregado, a Ferro Carril
carioca. A reportagem sugere ao leitor que o menor foi mantido como refém, na medida em que
teve seus pés e mãos brutalmente amarrados por arames, produzindo diversos ferimentos pelo
corpo. Esse personagem infeliz da história de exploração da mão-de-obra infantil permaneceu
amarrado por longas horas, até que finalmente a polícia chegasse para libertá-lo. Agora, segue a
razão atribuída à ação nefasta levada a cabo pelo gerente, segundo nos adverte o articulista, na parte
da manhã, Alfredo teria sido incumbido pelo seu superior de limpar todas as dependências daquela

5
MOURA, Esmeralda. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In: DEL PRIORE, Mary (Org). História
das crianças no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2000. P. 268.

1335
companhia durante o dia. Assim, a criança teria prontamente obedecido ao seu pedido e encarado a
tarefa, muito embora ela tenha ficado inconclusa. Este, por sua vez, teria sido o estopim do
acontecimento trágico que marcou a vida desta criança, o qual se converteu no objeto da raiva do
gerente, que o espancou com um pau e, em seguida, amarrou-o, como punição pelo
descumprimento de sua demanda. A tortura da qual o menor foi alvo só cessou, quando ocorreu a
interferência policial no final da tarde daquele dia. A ação da Polícia teria sido motivada por uma
denúncia feita por um menor, filho de um conhecido tenente que atuava na freguesia de
Jacarepaguá, segundo a qual havia em um ponto do barracão da Cia Ferro Carril um indivíduo
amarrado.
Por outro lado, é importante destacar que os atos violentos praticados pelo gerente da
Companhia eram considerados crimes pelos artigos 181 e 182 do Código Penal. Outro fato curioso
que chama a nossa atenção reside no pouco tempo em que Alfredo da Silva achava-se empregado
na Cia Ferro Carril, apenas 10 dias, o que poderia alimentar a hipótese de que o brusco castigo
imposto ao menor pelo gerente tivera como propósito colocá-lo “na linha”, ou seja, impor a
disciplina e reforçar a subordinação, ao mesmo tempo em que alimentava o seu medo de errar
novamente frente à figura do superior hierárquico. Por outro lado, fica claro que “serviços leves”,
“trabalhos comuns”, “trabalho acessível”, expressões encontradas na legislação enquanto elementos
atrelados ao ingresso dos menores no setor secundário, não correspondiam ao cotidiano de trabalho
desses menores nas fábricas e oficinas da capital da República.
Dentro desta mesma lógica, verifica-se em outros números publicados no mesmo periódico
que a truculência atingiu níveis extremos nas fábricas e oficinas do Distrito Federal, na medida em
que punições infligidas aos trabalhadores menores pelo patronato resultaram em registros de óbitos
nesses estabelecimentos. Aos 28 de janeiro de 1903, numa tarde carioca, Manoel de Souza Esteves,
de apenas oito anos de idade, foi uma das muitas vítimas da brutalidade do seu superior hierárquico,
que lhe dirigiu uma bofetada tão forte na face, que lançou- o a grande distância, produzindo sua
queda violenta no chão e a perda dos sentidos. O motivo de tamanha violência deveu-se ao fato de
Manoel não ter atendido prontamente a demanda de Antônio Rosa que descontou sua raiva no
menor. Ao reconhecer que o ‘miserável’ castigo poderia levá-lo ao óbito, Rosa levou o menor a
uma farmácia, onde lhe foram feitos os primeiros curativos e reconheceu-se a gravidade do estado
da criança. A crônica ressalta o fato de o diagnóstico do médico ter assustado Rosa, que,
covardemente, fugiu ao constatar que o menor poderia vir a falecer. O exame cadavérico, por sua
vez, confirmou que a bofetada dada no menor e a sua subsequente queda no chão teriam provocado
hemorragia cerebral. Por outro lado, a edição posterior do jornal destacou a realização do seu

1336
enterro, além de tecer elogios à conduta da Polícia, a qual mostrara forte empenho em empreender a
captura do criminoso que, até então, estava foragido.
Contrapondo-se à ação rápida e aparentemente eficaz desse delegado, a maioria dos
episódios de violência dos quais os menores foram alvos, infligidos pelos seus superiores
hierárquicos, ficaram impunes. Em determinados casos, as queixas prestadas pelas vítimas à Polícia
sequer resultavam na abertura de inquérito, na medida em que a agressão poderia ser classificada
como “não grave por não derramar sangue”. Localizamos uma reportagem desta natureza publicada
no jornal carioca, em 1907. Durante o período avaliado, das 12 denúncias de agressões e castigos
perpetradas pelo patronato e os demais superiores hierárquicos aos menores do sexo masculino que
repercutiram na imprensa carioca, apenas duas foram punidas com a prisão dos acusados. Sem
dúvida, a impunidade elevada e o modesto número de inquéritos abertos levam-nos a crer que
muitos menores desistiam de recorrer à Polícia para denunciar os atos de violência dos quais eram
alvos frequentes.
Portanto, ao lado das estratégias voltadas para impor a disciplina entre os pequenos
operários nas fábricas do Distrito Federal, caminhava a violência desmedida e o despropósito dos
superiores hierárquicos, que pareciam transformar esses elementos em um dos componentes da
lógica capitalista. Por esta razão, deparamo-nos com reportagens reveladoras e detalhadas acerca
dos atos desumanos praticados pelos empresários do Rio de Janeiro. Identificamos pelo menos
quatro registros de agressões brutais perpetradas por mestres e contramestres em menores
aprendizes, que sequer haviam completado dez anos de idade. Por este motivo, é mister ressaltar
que, em virtude do elevado grau de hierarquização que separava, de um lado, os empresários,
gerentes, mestres e contramestres, e do outro, os adultos proletários e os menores aprendizes, as
oficinas e as fábricas, embora variassem no tamanho, no grau de investimento e no número de
empregados, esses estabelecimentos foram os espaços privilegiados para as práticas violentas
impostas ao menor. Ao que parece, atos desta natureza ganharam ímpeto e quiçá se
institucionalizaram com a inserção gradativa do país na ordem capitalista. Em outras palavras, esses
foram os ambientes que ofereceram as maiores fontes de vulnerabilidade e riscos para a segurança e
a vida dos menores. Em contrapartida, a construção civil, apesar de ser um ambiente naturalmente
propício à emergência de acidentes profissionais, possibilitava ao menor um maior grau de
autonomia e menos chances de serem objetos de ações violentas, em função do menor grau de
hierarquização existente entre os empregados e a idade na qual ingressavam neste campo de
trabalho. Durante o período avaliado, localizamos apenas um ato desta natureza registrado na
construção civil, decorrente das rixas existentes entre um pedreiro e um servente, menor de idade,
que foi alvo da brutalidade do primeiro.

1337
Em geral, identificamos 12 denúncias de espancamentos infligidos aos trabalhadores
menores do sexo masculino, empregados em oficinas, fábricas e grandes companhias. Muito
embora nossas fontes não apresentem maiores informações sobre a cor desses menores, a fase da
vida na qual foram mais vulneráveis a castigos, dentre outras variáveis importantes, é possível
afirmar que a maioria das vítimas da violência do patronato era brasileira, com idades que variavam
entre oito e 14 anos de idade e trabalhavam em fábricas e oficinas do Distrito Federal. Desses 12
episódios relatados na imprensa, três resultaram na morte de menores (25%), dos quais dois eram
aprendizes que viram suas vidas serem encerradas nos espancamentos que lhes foram infligidos
pelo mestre e contramestre.
Por outro lado, em determinados casos, a própria criança, que já estava acostumada a ter
uma ampla autonomia de ação, dada a sua precoce inserção na ordem produtiva, dirigia-se à Polícia
para prestar queixa contra o patronato. Determinado aspecto da vida de José da Silva, empregado de
um estábulo, se coaduna com esta realidade, uma vez que o próprio compareceu à delegacia para
denunciar o espancamento infligido pelo seu patrão do qual foi alvo. Praticamente todos os casos
analisados neste capítulo, no qual a violência foi o recurso acionado pelos superiores hierárquicos
para punir os desvios e os erros cometidos pelos menores que pudessem comprometer a produção,
resultava de motivos fúteis e corriqueiros, passíveis de acontecerem com qualquer indivíduo, como
a derrubada de objetos e a limpeza incompleta dos espaços enormes das fábricas. Por sua vez,
muitos deslizes derivavam da falta de experiência profissional por parte dessas crianças e
adolescentes, do fato do seu desenvolvimento físico não estar plenamente concluído e, em alguns
casos, os objetos e as máquinas com as quais operavam eram maiores do que os próprios operários,
uma vez que a lei permitia o seu ingresso nas fábricas como aprendizes a partir dos oito anos de
idade.

3- Considerações finais
Nas páginas dos jornais cariocas, especificamente do Correio da Manhã, localizamos
críticas contundentes direcionadas à ganância do empresariado que explorava o trabalho infanto-
juvenil, mal remunerado, para não dizer gratuito, ao mesmo tempo em que chamou a atenção dos
leitores para o descaso do Estado face à ausência de leis sociais que oferecessem amparo aos
pequenos trabalhadores. De modo semelhante, os articulistas salientaram a ausência de órgãos de
fiscalização nas fábricas e, por conseguinte, o descumprimento dos códigos trabalhistas vigentes.
No alvorecer do século XX, diversas vozes se ergueram para denunciar o distanciamento dos
pequenos trabalhadores dos bancos escolares, em virtude da sua precoce inserção no mercado de
trabalho. Em suma, o recurso á mão-de-obra infantil mobilizou a opinião pública na cidade,

1338
transformando a imprensa carioca em locus privilegiado dos debates acerca da questão trabalhista,
na medida em que ela não poupou críticas contundentes aos progenitores, ao patronato e ao Estado,
concebidos como os grandes algozes do sofrimento imposto aos menores.
Paralelamente, a desigualdade social marcante ao longo da Primeira República contribuiu
ainda mais para franquear o enorme abismo entre infâncias privilegiadas e menores marginalizados,
uma vez que o trabalho infantil contribuía decisivamente para alimentar esse círculo vicioso e não
era visto como um fator a ser combatido pelas autoridades. Ao longo do período, impuseram-se
reiteradas propostas assistenciais, cujo propósito consistia em tentar compensar a ausência de uma
política social eficaz e abrangente, capaz de criar condições equitativas de desenvolvimento para
crianças e adolescentes de qualquer natureza. No entanto, estes projetos constituíram-se apenas em
pontos de partida, na medida em que ainda eram excessivamente acanhados frente às crescentes
demandas inerentes à infância desvalida. Era mister, portanto, uma maior participação do Estado na
assistência à infância, não limitando-se a promulgação de leis que visavam evitar os excessos do
trabalho infanto-juvenil. Todavia, avanços sociais expressivos estavam longe de serem conhecidos e
impactarem o cotidiano de trabalho das crianças pobres. Enquanto isso restava a elas o convívio
com os termos impessoais colocados pelo capitalismo e com o mundo proletário sem tréguas.
Fontes:
1- Correio da Manhã. 28/3/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 655.
2- Correio da Manhã. 9/2/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 608.
3- Correio da Manhã. 4/1/1902 Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 204.
4- Correio da Manhã. 23/6/1904. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 1106.
5- Correio da Manhã. 8/12/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 910.
6- Correio da Manhã. 16/9/1906. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 1892.
7- Correio da Manhã. 7/11/1906. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 1944.
8- Correio da Manhã. 1/3/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 628.
9- Correio da Manhã. 12/7/1906. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 1826.
10- Correio da Manhã. 27/1/1907. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 2024.
11-Correio da Manhã. 28/1/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 596.
12- Correio da Manhã. 29/1/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 597.
13- Correio da Manhã. 19/11/1903. Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Número 891.

Referências Bibliográficas
HAHNER, June E. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil (1870-1920). Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1993.
MOURA, Esmeralda. “Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo”. In: História das
crianças no Brasil. 2ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 259.
VISCARDI, Cláudia. “Trabalho, previdência e associativismo”: as leis sociais na Primeira
República. In: Trabalho, proteção e direitos: O Brasil além da Era Vargas. Juiz de Fora: Ed. UFJF,
2010, p. 29.

1339
1340
MAMA HUACO E MAMA OCLLO NA COSMOGONIA DO TAWANTINSUYO

Lorena Gouvêa de Araújo 1

Resumo: A relação interétnica entre Novo e Velho Mundo (século XV e XVI),


desencadeará uma série de relatos que tentarão discorrer sobre as sociedades americanas
recém-encontradas. Essas histórias foram relatadas entre os séculos XVI e XVII pelos
chamados cronistas, que em última instância eram espanhóis ou sujeitos que dominavam os
códigos de linguagem hispânicos. O objetivo desta comunicação é analisar a imagem de duas
mulheres – Mama Huaco e Mama Ocllo – que aparecem nos mitos cosmogônicos sobre os
Incas, que viveram no território andino do atual Peru. Para isso utilizarei as crônicas de Inca
Garcilaso de la Vega [1609], Felipe Guaman Poma de Ayala [1615/1616], Pedro Sarmiento de
Gamboa [1572], Cristóbal Molina [1575] e Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui [1613], de
forma a traçar um paralelo entre estas e a imagem que cada uma apresentará sobre as
mulheres supracitadas.

Palavra-Chave: Mama Huaco, Mama Ocllo, crônicas.

Abstract: The interethnic relationship between the New and the Old World (century XV and
XVI) were treated in a series of reports made in a attempt to talk about the newly discovered
American societies. These histories were reported by Spanish chonicles or subjects who
mastered the Spanish language codes. The objective of this communication is to analyse two
women's images – those of Mama Huaco and Mama Ocllo – who appear on the cosmogonic
myths about Incas, that lived in Andean territory in actual Peru. To achieve this goal, I will
use the chronicles of the Inca Garcilaso de la Vega [1609], Felipe Guaman Poma de Ayala
[1615/1616], Pedro Sarmiento de Gamboa [1572], Cristóbal Molina [1575] e Juan de Santa
Cruz Pachacuti Yamqui [1613], in order to draw a parallel between those and the images that
were shown of the women cited above.

Key-Words: Mama Huaco, Mama Ocllo, chronicles.

Introdução

A relação interétnica entre Novo e Velho Mundo, surgida a partir de finais do século
XV e início do XVI, desencadeará uma série de relatos que discorrerão sobre as sociedades
americanas recém-encontradas. Essas histórias foram relatadas entre os séculos XVI e XVII
pelos chamados cronistas, que em última instância eram ou espanhóis ou sujeitos que
dominavam os códigos de linguagem hispânicos. Nesse sentido podemos destacar indivíduos

1
Doutoranda em História – UERJ/FFP, Bolsista FAPERJ. E-mail: lorena.gouvea@gmail.com.

1341
como Juan de Betanzos (Suma y Narración de los Incas [1551]), Fray Martín de Múrua
(Historia del origen y genealogia real de los Incas, reyes del Peru [1611]), Inca Garcilaso de
la Vega (Comentários reales de los Incas [1609]), Felipe Guaman Poma de Ayala (Nueva
coronica y buen gobierno [1615/1616]), Cristóbal Molina (Ritos y fábulas de los incas
[1575]), Pedro Sarmiento de Gamboa (Historia de los Incas [1572]), Padre José de Acosta
(Historia natural y moral de las Indias [1590]), dentre outros.
O objetivo deste artigo é analisar a imagem de duas figuras femininas – Mama Huaco
e Mama Ocllo – que aparecem nos mitos cosmogônicos sobre os Incas, sociedade que habitou
o território andino do atual Peru. Para tal utilizarei as crônicas de Inca Garcilaso de la Vega
(Comentários reales de los Incas [1609]), Felipe Guaman Poma de Ayala (Nueva coronica y
buen gobierno [1615/1616]), Pedro Sarmiento de Gamboa (Historia de los Incas [1572]),
Cristóbal Molina (Ritos y fábulas de los incas [1575]) e Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui
(Relacion de antigüidades deste reyno del Pirú [1613]), de forma a traçar um paralelo entre
estas e a imagem que cada uma apresentará sobre as mulheres supracitadas. Além disso,
imbricarei esta investigação com bibliografias mais recentes2 a fim de compreender as
relações interétnicas forjadas no seio desta sociedade andina colonial e que terá,
invariavelmente, reflexo na escrita dos cronistas.

Mitos cosmogônicos, Relações Interétnicas e Análise das crônicas

Mitos são elementos sempre complexos e caros quando pensados a partir de nossa
atual sociedade, sendo assim já se tornaram objeto de estudo de vários autores3 que sempre
buscaram compreender o significado destes dentro das sociedades, assim como compreender
como estas sociedades os apropriaram e os ressignificaram de forma a criar uma identidade
histórica própria. Nesse sentido é de grande importância a elucidação do conceito de mito no
que diz respeito ao mitos fundadores do Tawuantinsuyo4 que estarão presentes nas duas
crônicas que servirão como base para os estudos aqui desenvolvidos (Comentarios Reales de

2 ROSTWOROWSKI, 1999 e 2015; OLIVEIRA, 2012; SILVERBLATT, 1990 e GARCIA, 2015.


3 SAHALINS, 2008 e 2011; ELIADE, 1994 e HALL, 2003.
4 Denominou-se Tawantinsuyo ao território do domínio incaicos (do quéchua, língua nativa, Tawantinsuyo, as
quatro regiões).

1342
los Incas [1609] e Nueva Cronica y Buen Gobierno [1616]). Estes mitos tinham por finalidade
conferir um elo comum entre os indivíduos andinos e seus antepassados, funcionando como
elemento organizacional para esta comunidade. Eles unificavam os indivíduos em torno de
um ancestral comum, ao mesmo tempo em que estruturava seus pensamentos, os fazendo, em
última instância, desenvolver ações concretas5.
Em contrapartida, as relações provenientes do encontro entre o Novo e o Velho Mundo
também foram e têm sido objeto de reflexão de vários autores6. A partir de suas obras
podemos perceber que a conquista foi um conjunto de relações interétnicas estruturadas em
uma via de mão-dupla entre colonizador e colonizado. Não é mais possível pensar e analisar a
empresa colonial como um processo de sobreposição de uma cultura (vencedores/europeus)
sobre a outra (vencidos/autóctones) mas sim como uma relação intensa de trocas de
experiência e de cultura material e imaterial entre os povos que aqui chegaram e os autóctones
desta terra.
Baseada neste aporte teórico analisarei, a priori, os mitos cosmogônicos do
Tawantinsuyo que aparecem nas duas crônicas supracitadas, ou seja, na de Felipe Guaman
Poma de Ayala (1616) e na de Inca Garcilaso de la Vega (1609). Posteriormente, analisarei
como as demais crônicas, apontadas anteriormente, também descrevem estas mulheres
presentes na cosmogonia andina dos Incas.
Felipe Guamán Poma de Ayala (1550-1616) foi um autóctone de elevada casta e
originário da região de Huamanga, hoje conhecida por Ayacucho, localizada na parte sul dos
Andes peruanos. Levou uma vida itinerante e, dentre outras coisas, foi auxiliar do visitador de
idolatrias Cristóbal de Albornoz, com quem aprendeu os códigos culturais europeus e passou
a dominá-los (índio ladino). Durante a dinâmica colonial, utilizou tais códigos para obter
prestígio junto aos espanhóis e para poder pleitear seus direitos, tanto por ser descendente da
nobreza do grupo indígena Yarovilca – que haviam antecedido aos Incas - quanto por ser filho
e neto de homens que haviam servido a importantes postos ao lado dos senhores Incas do
Tawantinsuyu. 7
A crônica de Poma de Ayala está dividida em duas partes: A primeira intitulada Nueva
Crónica, onde o autor trata desde a origem dos primeiros indivíduos naturais da região dos

5 HALL. Op. Cit.


6 WACHTEL, 1979; TODOROV,1991; BOCCARA,2001; POLONI-SIMIAND, 2005.
7 ADORNO, 2001. p. 4.

1343
Andes peruanos até a chegada dos espanhóis no continente. A segunda intitulada Buen
Gobierno, onde é relatada a chegada dos espanhóis na América e os sucessos e abusos da
empresa colonial hispânica. Seus escritos foram endereçados ao rei Felipe III da Espanha a
fim de denunciar as consequências da colonização espanhola nos andes do atual Peru.
O pensamento híbrido – fruto de uma mestiçagem cultural – de Guáman Poma de
Ayala pode ser visto logo nas primeiras páginas da sua crônica. Após a descrição dos
primeiros habitantes dos Andes peruanos, Guáman Poma discorre sobre o mito que teria dado
surgimento aos Incas. Neste o autor menciona a figura de uma mulher “importante”, chamada
Mama Huaco (mãe e esposa de Manco Cápac)8 que teria sido fundamental na liderança do
território em que habitava. No entanto, ao mesmo tempo em que reconhece o papel social
desempenhado por esta mulher, atribui a ela adjetivos que a desqualificam, se pensado através
das categorias de pensamento hispânicas da época. Sendo assim, o cronista descreverá Mama
Huaco como grande idólatra, enganadora, feiticeira, amiga dos demônios, que efetuava
cerimônias pecaminosas e dizia que podia falar com os objetos inanimados como pedras,
madeiras, lagoas, etc. Acrescenta ainda que, com a ajuda destes demônios, ela poderia
responder às perguntas que lhes fossem feitas e que tal atitude impressionava os índios. Ainda
segundo o autor, Mama Huaco teria sido a instituidora das huacas9, dos ídolos, da bruxaria e
dos encantamentos no Peru e que não fazia distinção de classe com que tinha relações sexuais.
Guamán Poma ainda aponta que quando Mama Huaco era jovem teria contraído uma
gravidez provocada pelo demônio e que o fruto dessa gestação teria sido justamente Manco
Cápac. Sendo assim, na visão do cronista, Manco Cápac – considerado primeiro Inca dos
Andes peruanos – não poderia ser filho nem do Sol nem da Lua, como havia acreditado os
Incas, e que essa imagem só teria sido aceita por virtude da mentira que sua mãe lhe contara,
não esclarecendo que ele era filho de uma relação sexual ocorrida entre ela com o demônio10.
Nesta descrição de Guamán Poma, os Incas aparecem como usurpadores da posição de
governantes nos Andes, pois tiveram sua origem a partir de indivíduos fingidores e idólatras,
sendo a cosmogonia incaica apresentada como uma mentira, uma enganação protagonizada
por uma mulher – por essência vulnerável – que havia sido persuadida pelo diabo. Nota-se

8 Casal fundador do Tawantinsuyo e presente em vários mitos sobre os povos incaicos.


9 Na cultura andina do Peru, huaca pode ser tanto uma divindade como o lugar onde uma divindade é
cultuada. No idioma quéchua, a waqa significa algo como "sagrado".
10 GUAMAN POMA DE AYALA, 2011, p. 52.

1344
aqui o marcante dualismo existente na concepção de mundo hispânica, amparado
essencialmente na Bíblia católica, pensando a figura feminina como sinônimo de ser frágil e
incapaz, facilmente manipulado e que só adquire poder a partir do laço estabelecido com o
demoníaco.
Quando Poma de Ayala atribui a Mama Huaco esta variedade de adjetivos, muito caros
à uma Espanha católica do século XVI, podemos nos indagar se essa percepção que o autor
tem sobre o feminino seria fruto do hibridismo cultural por ele experimentado por virtude de
seu longo processo histórico/cultural. A obra Historia do medo no Ocidente nos apresenta
talvez uma elucidação do painel conceitual sobre o feminino no século XVI europeu católico.
Nela Jean Delumeau nos apresentará a visão demoníaca imprimida sobre determinadas
mulheres contemporâneas às estruturas de pensamento resultantes deste século. O autor
destaca que, quando virgindade e caridade se tornaram verdades evidentes no seio do
cristianismo e passaram a ser compreendidas como premissas básicas para se chegar ao
paraíso, o homem foi visto como a imagem e a semelhança de Deus. Entretanto, essa
definição não se fez válida para as mulheres, que passaram a ser compreendidas como seres
dotados de lascívia, sexualidade e desejo, elementos que impediriam o exercício de sua razão.
Conclui Delumeau que “(...) Inferior ao homem, a mulher deve então ser-lhe submissa.”11 Ou
seja, as categorias homem e mulher passam a ser consideradas socialmente diferentes e não
apenas biologicamente. Uma posição hierarquizada passa a ser imprimida na sociedade onde,
inferiorizada, a mulher ocupa diferentes e subalternos lugares no seio da sociedade hispânica
do XVI. Pode ser que essa concepção do social tenha sido um elemento motivador para que
Poma de Ayala tenha atribuído determinadas características às autóctones incaicas que podem
não ser naturais às suas categorias de pensamento, pois sabemos que este autor foi
cristianizado pelos missionários jesuítas e se tornou inclusive, extirpador de idolatrias no Peru
andino.
Além disso, a liberdade sexual de Mama Huaco é aproximada da noção de
libertinagem e luxúria presentes na Bíblia católica pois ela foi descrita como idólatra e teria
enganado aos índios com seus encantamentos e feitiços, além de não fazer distinção da classe
daqueles com que mantinha relações sexuais, ou seja, uma concepção de liberdade sexual

11 DELUMEAU, 2009, p. 472.

1345
totalmente distante da esperada para as damas católicas espanholas e, consequentemente,
rechaçada pelo mundo cristão hispânico do século XVI.
Por esses indícios podemos questionar se não estaria Guamán Poma apresentando,
nesta crônica, uma visão de mundo andino traduzida para a estrutura mental hispânica,
reformulando, muitas vezes, o sistema original presente nos Andes, a fim de aproximar este da
concepção de mundo europeia para a qual escreve. O fato de reconhecer o papel guerreiro e
essencial de Mama Huaco não o impedirá de negativar seu comportamento através da
atribuição de elementos demoníacos a ele. Cristianizado que foi, provavelmente Guáman
Poma tenha interpretado a imagem de Mama Huaco a partir da construção social europeia,
que enquadrava as mulheres na ótica cristã de protagonismo do masculino e fragilidade do
feminino e quando fugiam desta expectativa, passavam a ser classificadas como seres
demoníacos. Me pergunto aqui, mais uma vez, se poderíamos aproximar a imagem que Poma
de Ayala criará de Mama Huaco da descrição bíblica da Eva, no que se refere a uma mulher
enganadora e fingidora que corrompeu Adão por ter se deixado persuadir pelo diabo, ou seja,
longe de Adão ela estava vulnerável aos encantos do demônio (representada na Bíblia católica
pela serpente). Este aproveitando da condição irracional da mulher a levou a praticar atos
carnais e luxuriosos.
No entanto, a cosmogonia do Tawantinsuyo não foi retratada apenas pela crônica de
Guaman Poma de Ayala. Um mito cosmogônico consideravelmente divergente deste será
descrito por Inca Garcilaso de la Vega em sua obra Comentários Reales de los Incas (1619).
Inca Garcilaso de la Vega nasceu na cidade de Cusco e foi filho de Sebastián Garcilaso
de la Vega e Vargas (1507-1559) - conquistador espanhol - e de Chimpu Ocllo (1520?-1571) -
ñustra (princesa) inca e neta de um dos irmãos de Inca Huayna Capac 12. Foi batizado pelos
seus pais como Gómez Suárez de Figueroa. Quando ainda era criança seu pai deixou sua mãe
para se casar com uma dama espanhola e toda sua infância e juventude passou a estar voltada
para a cultura andina. No entanto, a partir do pequeno contato que teve com seu pai,
relacionou-se com alguns conquistadores e encomenderos13 espanhóis, absorvendo um pouco
da cultura hispânica. Gómez ainda não tinha vinte anos quando o capitão Sebastián Garcilaso

12 Décimo-primeiro e penúltimo governante do domínio dos Incas


13 Os encomenderos eram aqueles que aplicavam o trabalho da encomienda, esta era originalmente aplicada na
região das Antilhas em 1503, com posterior projeção em outras porções da América espanhola, constando
nos registros legislativos coloniais até o século XVIII, foi uma instituição jurídica imposta pela coroa com
vistas a regular o recolhimento de tributos e circunscrever a exploração do trabalho indígena.

1346
de la Vega faleceu, o que o fez tomar a decisão de ir até a Espanha - Madrid - em busca do
reconhecimento dos serviços que seu pai prestara a Coroa hispânica e dos direitos
patrimoniais de sua mãe, contudo o Real Conselho das Índias rejeitou suas pretensões.
Rechaçado e desconhecido no Velho Mundo, se isolou. Mudou seu nome para Gómez Suárez
de la Vega e em menos de uma semana para Garcilaso de la Vega. Dessa forma, ao chegar aos
25 anos já se chamava como seu pai.14
Ainda em busca de reconhecimento, Garcilaso entrou para o exército espanhol e lutou
na guerra das Alpujarras contra os mouriscos de Andaluzia, em 1570, obtendo o título de
Capitão Garcilaso de la Vega, concedido por Don Juan de Austria (1545-1578) e pelo Rei
Felipe (1527-1598). Com tempo e dinheiro montou uma excelente biblioteca, onde
começaram a frequentar diversos estudiosos, como sacerdotes, humanistas e antiquários
europeus. Neste momento Garcilaso passou a traduzir livros, e assumiu o direito de apresentar
na frente de suas traduções o nome “Garcilaso 'Inca' de la Vega, de la gran ciudad del Cozco,
cabeza de los reinos y províncias del Perú”. 15
O letrado cusquenho Inca Garcilaso pertenceu à rede de mestiços biológicos que
existiram nos Andes peruanos, frutos do encontro entre os dois Mundos. Em contrapartida,
Felipe Guaman Poma de Ayala fará parte de uma rede também de mestiços, mas não
biológicos e sim culturais que, mesmo sendo naturais das terras americanas, trará em seus
hábitos e linguagem uma relação muito próxima às categorias de pensamento hispânicas. No
século XVI ser definido enquanto mestiço muitas vezes proporcionava direitos legais
concedidos pela Coroa hispânica (acesso a cargos públicos ou religiosos; isenção de tributos,
etc.), por outro lado, aos mestiços biológicos também implicava uma situação de segregação
social em termos políticos, pois existia uma legislação própria que visava incidir somente
sobre esta esfera da sociedade, o que desencadeou em uma luta simbólica pela busca de uma
posição política e de direitos sociais na colônia. Ser mestiço biológico, apesar da possibilidade
de serem apontados como filhos ilegítimos, também lhes conferia identidade sócio-política
excepcionalmente ambivalente.16 Eles agrupavam indivíduos de diversas ordens e com
diversas oportunidades sociais, pois, neste período, era, principalmente, a linhagem familiar o

14 HERNÁNDEZ, 1991, p. 16.


15 Idem. Op. Cit., p. 17
16 STOLCKE, 2008.

1347
elemento definidor da classe social a ser ocupada.17 Assim, não podemos nos referir a essa
nova categoria social como uma estrutura homogênea, onde as mesmas oportunidades,
instruções e qualidades de vida eram a todos ofertadas de forma equivalente. Os primeiros
mestiços biológicos da América colonial, chegaram a gozar inclusive de grande possibilidade
de ascensão ao universo hispânico, pois, para eles foram criadas diversas formas de inserção
na sociedade cristã, como os colégios e as faculdades construídas na colônia.18 Em outras
ocasiões, um grupo menor de mesclados chegou a ser levado à Europa para que pudessem
usufruir de melhores estudos e oportunidades 19.
É nesse painel de privilégios, de mercês e de boa linhagem que estão inseridos os
cronistas Garcilaso de la Vega e Poma de Ayala. Dentre os mestiços biológicos peruanos do
período colonial, Inca Garcilaso é o mais influente e um dos personagens intelectuais cuja
trajetória foi sem dúvida muito notável. Segundo o autor Serge Gruzinski, Inca Garcilaso faz
parte de uma rede de mestiços que se formou após o século XVI, impregnados de elementos
tanto europeus quanto indígenas.20 Contudo, as imagens mestiças de Garcilaso de la Vega e de
Guaman Poma de Ayala – pertencentes à elites autóctones incaica e Yarovilca,
respectivamente – é apenas duas dentre as variadas imagens de mestiços que existiam no
período da conquista. A marginalização social, sentida por muitos, não foi presente na vida
dos cronistas supracitados e ainda que o próprio Garcilaso se auto declarasse mestiço em sua
crônica, ele não sofreu os problemas que a maioria das pessoas pertencentes a essa categoria
enfrentaram. Possivelmente a mescla cultural e ideológica de ambos cronistas foi fator
essencial para que se transformassem em mediadores entre os dois mundos – hispânico e
andino. Suas mestiçagens não estavam apenas na cor, nos hábitos, mas em seus pensamentos
e em suas formas de ver o mundo.
A obra Comentarios Reales de los Incas (1619) está dividida em três partes, chamadas
por Garcilaso de três idades: a Primeira Idade, estaria marcada pela selvageria dos primeiros
índios e a existência de animais irracionais nos andes peruanos, e não de seres humanos; a
Segunda Idade, é onde o autor discorre sobre o trabalho civilizador dos Incas, uma espécie de

17 GARCINDO DE SÁ, 2007, p. 83.


18 Podemos citar aqui a fundação, em 1551, da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, localizada em
Lima - Peru. Esta universidade é a mais antiga do continente americano.
19 GARCINDO DE SÁ. Op. Cit.
20 Conf. GRUZINSKI, 2007. Nesta obra Serge Gruzinski produz um estudo de culturas mestiças, esclarecendo
o evento da ocidentalização, que teria operado a transferência, para o nosso lado do Atlântico, do imaginário
e das instituições do Velho Mundo.

1348
preparação para a chegada da revelação bíblica cristã europeia; a Terceira Idade, consumada
com a evolução histórica e com a evangelização dos espanhóis em terra americana. Nesta
crônica, no que diz respeito às fábulas contadas pela gente comum do território peruano, a
mais conhecida e ouvida por Garcilaso durante sua infância é a baseada no mito de Manco
Cápac e Mama Ocllo, que teriam sido a primeira dupla de Deuses filhos do Deus Sol
enviados à Terra, a fim de eliminar a barbárie praticada por aqueles povos que viviam no
mundo andino.
Segundo Garcilaso de la Vega a fábula diz que, após o dilúvio, teria surgido um
homem em Tiahuanacu (que está ao sul de Cusco), tão forte e poderoso que dividiu o mundo
em quatro partes, cada uma dessas partes teria sido distribuída a quatro indivíduos, os quais
ele chamou de reis: o primeiro se chamou Manco Cápac (e recebeu a parte setentrional); o
segundo Colla (e recebeu a parte meridional); o terceiro Tócay (e recebeu a parte do leste) e o
quarto Pinahua (e recebeu a parte oeste). Foram então esses reis ordenados a irem até seus
distritos, cada um com um cedro de ouro, e nestes lugares cada rei deveria, com apenas um
golpe, tentar fundir o cedro de ouro no solo. O local onde este feito fosse logrado seria a nova
capital do mundo incaico, e ao rei estava reservado o direito e dever de conquistar e doutrinar
toda a gente que por lá encontrasse. Sendo assim, segundo esta fábula, foi desse repartimento
do mundo que nasceu o Tawantinsuyo. Manco Cápac, ao norte, chegou ao vale de Cusco e
teria agido conforme as instruções anunciadas, onde, com um só golpe dado com o cedro de
ouro no solo, viu ambos se fundirem. Desta forma, estava fundada a nova capital Inca, tendo
Manco Cápac como seu rei e senhor natural, pois era filho do Deus Sol. O Inca deveria então
doutrinar toda a gente que por lá estivesse. Todos os outros reis Incas foram descendentes de
Manco Cápac. Garcilaso ainda esclarece que sobre os outros reis supracitados, não há
registros.21
Noutra passagem, Garcilaso aponta para mais uma fábula, também contada pela gente
comum do Peru, a respeito da origem dos Incas e dotada de alguns elementos semelhantes aos
encontrados na fábula descrita acima. Segundo o autor, os índios que vivem ao leste e ao norte
da cidade de Cusco contam que, no início do mundo, havia uma rocha que dispunha de três
janelas e que estaria localizada próxima à cidade de Paucartampu. Da janela localizada no
meio da rocha, chamada de “janela real”, teria saído quatro homens e quatro mulheres, todos

21 GARCILASO DE LA VEGA, Op. Cit., p. 46.

1349
irmãos. Ao primeiro irmão, chamaram de Manco Cápac e à sua mulher e irmã Mama Ocllo, e
contam que este homem teria fundado a cidade de Cusco. O nome Cusco foi escolhido
porque, como capital da comunidade incaica, a cidade se tornaria o centro daquele mundo (na
língua particular dos incas – quéchua –, Cusco queria dizer “umbigo”, ou “o umbigo do
mundo”). Além disso, Manco Cápac e Mama Ocllo sujeitaram aquela nação e à sua
população ensinou a serem bons indivíduos. Manco Capac e aqueles que o seguiram se
estabeleceram no vale superior, que agora é chamado Hanan Cusco; e Mama Ocllo na parte
inferior do vale que foi chamado Hurin Cusco. Manco Capac ensinou os homens a cultivar a
terra, plantar milho, fazer canais de irrigação e construir suas casas. Mama Ocllo ensinou as
mulheres a fiar e tecer lã e algodão vestidos. A fábula ainda conta que do casal descenderam
todos os demais incas.22
Observemos então que nas duas narrativas contadas a Garcilaso pela gente comum do
Peru, a cidade de Cusco foi então o local no qual os Incas, filhos do Deus Sol, conseguiram
fundir o cedro de ouro na terra, em um primeiro e único golpe. Notamos ainda que, em
Garcilaso, o protagonismo da fundação do Tawantinsuyo é transferido somente a Manco
Cápac, estando Mama Huaco fora da cosmogonia incaica. Além do mais, uma figura
feminina parece apenas na segunda fábula – Mama Ocllo – e mesmo assim reduzida a
companheira do fundador de Cusco. Sendo assim, nos Comentários Reales o mito fundador
não confere igual participação do feminino e do masculino na fundação da cidade dos Incas,
mas de prerrogativa de um sobre o outro. Não que na crônica de Poma de Ayala o mito
fundador nos apresente uma visão de positiva de mulher. A descrição de Mama Huaco não
encerra apenas adjetivos como os de mulher guerreira, heroica e livre, no entanto é curioso
percebermos que ela nos apresenta um elemento feminino de elevada importância social,
diferente do que é apresentado na crônica de Inca Garcilaso de la Vega. Devo esclarecer aqui
que, entretanto, Mama Huaco e Mama Ocllo não são compreendidas nas bibliografias como a
mesma pessoa. Mama Huaco é descrita como “mulher varonil”, livre, guerreira, fálica,
enquanto Mama Ocllo, que seria sua irmã, aparece como desempenhando papel de mãe,
esposa, de ser subordinado e inferior ao homem.23
Devemos ainda pensar que, apesar da importância atribuída a Mama Huaco, Poma de
Ayala não deixa de destacar as características negativas que teria esta poderosa mulher, como,

22 GARCILASO DE LA VEGA, Op. Cit., p. 47-48.


23 Cf. SARMIENTO DE GAMBOA, 1988; ROSTWOROWSKI, 1988 e OLIVEIRA, 2012.

1350
por exemplo, a prática da idolatria, do fingimento e da feitiçaria. Acusa Mama Huaco de ter
sido a inventora das deusas (haucas), dos ídolos e das bruxas e de ter sido promíscua ao se
deitar com todos os homens que queria.24 Teria sido essa visão de Poma de Ayala, reflexo da
educação cristã que recebeu durante sua juventude? Contudo, seu objetivo poderia ser ainda
mais amplo do que apenas relatar uma história estritamente andina, desligada da história do
mundo hispânico, ou seja, talvez seu intento fosse produzir um escrito com o objetivo de que
quem o lesse percebesse a forte relação entre os dois mundos, apontando as continuidades e
rupturas. Produzindo uma escrita sobre o mundo andino com valores que possivelmente não
eram naturais aos indivíduos sobre os quais falava, mas sim ao mundo hispânico para o qual
escrevia.
Observando outras crônicas, contemporâneas às duas supracitadas, podemos perceber
a existência da imagem de Mama Huaco nelas. Destaco as crônicas de Pedro Sarmiento de
Gamboa (Historia de los Incas [1572]), de Cristóbal Molina (Ritos y fábulas de los incas
[1575]) e de Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui (Relacion de antigüidades deste reyno del
Pirú [1613]). Pedro Sarmiento de Gamboa (1532-1593) foi um espanhol ultramarino,
cosmógrafo, escritor, historiador, filólogo, humanista, conquistador, etc. Foi nomeado pelo
Rei Felipe II governador e capitão geral das terras do Estreito de Magalhães em 1580.
Cristóbal Molina (1529-1585) foi também um espanhol, natural de Andaluzia, mas que por
haver residido em Cusco foi considerado um mestiço cultural. Por muito tempo chegou até
mesmo a se acreditar que ele era um indivíduo peruano. Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui
foi um cusquenho, indígena descendente da nobreza local e que falava a língua aymara.

Na crônica de Sarmiento de Gamboa podemos encontrar indícios de uma Mama


Huaco voltada para a guerra, para a conquista, muito próxima das características de uma
Mama Huaco guerreira, varonil e fálica, instituidora da ordem do território que habitava,
assim como a imagem descrita na obra de Felipe Guaman Poma de Ayala. Na crônica de
Cristóbal de Molina Fábulas y mitos de los incas (1575), encontramos uma Mama Huaco para
a qual seriam oferecidos alguns rituais, como a festa da chicha e milho, o que confere status a
imagem desta mulher, além de associá-la à fertilidade da terra e à fecundidade. Por ter um
ritual dedicado inteiramente a ela, percebemos a importância cultural de Mama Huaco para a

24 GUAMAN POMA DE AYALA, Op. Cit., p. 58

1351
gente natural do Peru incaico. A crônica de Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui está aqui
também inserida para que possamos perceber a existência de mulheres guerreiras em tempos
pré-incas, essas mulheres, também chamadas de curacas, eram guerreiras e estavam voltadas
para o estabelecimento da ordem e defesa do ayllu25. Na crônica Relacion de antigüidades
deste reyno del Pirú (1613) encontramos o relato da luta que Chañan Cori Coca (curaca)
teria travado contra os inimigos incaicos nos Chancas. Esta mulher teria lutado com seu
exército contra doze mil homens quéchuas no período de Topa Inca Yupanqui (1470-1493)
demonstrando a presença, não apenas de Mama Huaco mas de outra mulher andina que se
destacou por sua capacidade de estruturar uma guerra, se posicionar a frente de um exército e
lograr êxito contra o inimigo.

Debate Historiográfico

A presença, na crônica de Poma Ayala, de elementos antagônicos ao descrever Mama


Huaco e seu comportamento, demonstra uma multiplicidade do real em matrizes de
inteligibilidade que não são as ligadas à hierarquia de gênero/sexo/corpo. Por virtude da
existência de apenas materiais espanhóis – ou que estão inseridos dentro da categoria
linguística e de códigos hispânicos – para que possamos saber e compreender a vida e a lógica
dos Andes peruanos no período dos Incas, o trabalho se torna um tanto quanto extenuante e
difícil. Contudo através de alguns estudos que já produzidos26 percebemos que essa
hierarquização feminina não era tão rígida nos Andes peruanos. Por exemplo, através da
pesquisa em arquivos no Norte do Peru sabe-se, por exemplo, que na região de Piura
existiram curacas que lideravam seus territórios, inclusive percebendo o indício de sociedades
matriarcais e voltadas para a prática da guerra. Essas evidências e os relatos das crônicas nos
fazem crer que o domínio dos Andes peruanos era heterogêneo e que a forma como os
cronistas descrevem seus relatos é um nivelamento e/ou uma tentativa de homogeneização do
mundo andino em relação ao mundo europeu. O que era possível ser falado sobre o Novo
Mundo deveria ser compreendido pelos conquistadores, pois uma sociedade em que as

25 É uma forma de comunidade familiar extensa originária da região andina com uma ascendência comum, que
trabalha em forma coletiva em um território de propriedade comum.
26 ROSTWOROWSKI, 1999; OLIVEIRA, 2012; SILVERBLATT, 1990; GARCIA, 2015.

1352
mulheres são por muitas vezes relatadas como agentes de suas próprias escolhas estava fora
da concepção de feminino existente, no século XVI, no mundo espanhol.
Outro exemplo da existência de mulheres donas de seus destinos pode ser encontrado
na descrição de Inés Huaylas Yupanqui, que foi entregue como esposa a Fernando Pizarro.
Este evento não a encerra enquanto ser passivo na história, pois a prática de oferta de uma
autóctone a um homem era sinônimo, no mundo andino, de respeito e amizade. Esta atitude
não eclipsava o poder que esta mulher desempenharia nessa relação dual entre o mundo em
que foi criada e a sociedade hispânica. Ela passou a servir, muitas vezes, como ponte entre os
dois mundos e essencial para o estabelecimento de uma harmonização e comunicação entre
eles. Elas, assim como os homens, faziam as suas próprias escolhas e eram agentes de suas
histórias e da história de seu povo.27
Antes do advento da empresa colonial, podemos perceber na crônica de Guaman Poma
de Ayala que uma mulher autóctone, presente no mito cosmogônico, poderia ser enquadrada
na concepção de agente histórica de seu povo, uma mulher livre dos padrões católicos de
comportamento do século XVI. No entanto, na crônica de Inca Garcilaso de la Vega no mito
cosmogônico esta mulher foi suprimida e, quando muito, substituída por uma figura mais
passiva e submissa (Mama Ocllo). Contudo, por estar fora da concepção de mulher dos
séculos XVI e XVII católico, Mama Huaco foi enquadrada na categoria de idólatras,
feiticeiras e putas, praticamente restringindo seu papel social à sexualidade, ao seu corpo e
aos desejos da carne. A existência, nos andes peruanos, de mulheres guerreiras, submissas,
fálicas e políticas nos demonstra a heterogeneidade das categorias normativas destes
autóctones, uma vez que é sabido que os governantes incaicos ao conquistarem os territórios
de outros povos não os subjulgavam à sua própria cultura. Esta era mantida e incorporada,
ressignificada e mantida na medida que fosse necessária.28
Após o estabelecimento da empresa colonial a heterogeneidade cultural andina dará
lugar a uma tentativa de homogeneização dos grupos étnicos que pertenciam aos diversos
ayllus. Os autóctones serão enquadrados na categoria hegemônica de índios e as mulheres não
estavam de fora desta normatização, ou seja, antes da conquista os naturais dos Andes
peruanos se percebiam enquanto sociedade agrária, enquanto grupo dentro desta sociedade,
enquanto pertencentes a um ancestral comum. Já no pós-conquista haverá a tentativa da

27 ROSTWOROWSKI, 2016, p. 17.


28 ROSTWOROWSKI, 1999.

1353
divisão da colônia em grandes blocos, de acordo com a origem biológica de cada grupo –
brancos, mestiços, indígena. A esfera política e econômica ganhará fluidez entre esses grupos,
o que modificará também a própria estrutura hierárquica local, fazendo com que antigos
curacas, inclusive, percam seus papeis de líderes em nome da astúcia negociadora de outros
autóctones existentes em seu domínio.
A narrativa das crônica trabalhadas como base neste artigo (Comentarios Reales de los
Incas [1609] e Nueva Crónica y Buen Gobierno [1616]) foi pensada de forma a produzir, em
quem as lessem, uma imagem do mundo andino a partir do relato escrito. A hierarquização
sexo/gênero nos Andes peruanos, possivelmente não correspondia às categorias de
pensamento da Europa dos séculos XVI/XVII. Sendo assim, as crônicas sendo as principais
fontes para se compreender a história do mundo andino imediatamente após a conquista limita
a nossa compreensão sobre esse universo, nos permitindo apenas tentar compreender as
matrizes teóricas de pensamento dos naturais do atual Peru, por exemplo. Existia,
possivelmente, uma homogenização do mundo andino aos moldes europeus?

Conclusão

Este estudo aponta para uma tentativa de compreender o Novo e Velho Mundo –
especialmente falando do momento do encontro entre ambos e do material produzido a partir
deste choque – através do conjunto de relações que resultarão em uma “cultura do encontro”,
onde estarão sobrepostas camadas de diferentes modos de ver e de viver e que darão forma ao
que chamamos de relações interétnicas, relações estas mais fluidas do que as pensadas
anteriormente, pois não existe mais a ideia de um povo vencedor contra um povo vencido,
mas sim uma confluência, uma intersecção cultural.
Considero assim que estes cronistas supracitados, ao relatar os mitos cosmogônicos,
utilizaram categorias europeias, tanto religiosas como administrativa, agindo como grandes
híbridos culturais do mundo andino. Guaman Poma de Ayala, por sua vez, ao discorrer sobre o
mundo andino pós-conquista o caracteriza como um mundo “al revés”, ou seja, virado ao
contrário pois aqueles que outrora tinham sido senhores, a partir da empresa colonial, se
submeteram aos agravos de “encomenderos” hispânicos e de homens comuns de suas próprias
comunidades, ávidos por ganhos. Isto porque o mundo andino colonial vai experimentar uma

1354
nova forma de relação – entre si mesmos e entre os colonizadores – a partir de 1533. O poder
advindo da persuasão pessoal, a lógica da disputa interna por terras e outras mercês passou a
ser natural nesta sociedade andina e logicamente os grupos mais abastados, autóctones do
atual Peru, se valeram de sua posição social para buscar reconhecimento perante as
autoridades hispânicas. Desta forma, as memórias produzidas sobre/em um período histórico
devem ser pensados a partir do favorecimento político que elas poderiam alcançar no
momento em que foram elaboradas, ou seja, todo escrito histórico está em sintonia com as
possibilidades de abertura sociais que gozarão, dificilmente havendo escritos que estejam
isentos de interesses a posteriori de sua publicação. 29 O que nos faz pensar que as crônicas de
Guáman Poman e de Garcilaso de la Vega estariam intimamente ligadas aos interesses que os
autores desejariam almejar após o endereçamento desta a Coroa espanhola e por isso teriam
tomado a sua crônica como elemento tradutor do mundo andino para o universo hispânico, o
que justificaria o dualismo hierárquico entre homens e mulheres.
Este trabalho se configura como um esforço inicial de análise dos mitos cosmogônicos
andinos, contudo, assim como o explicitado neste artigo, percebemos que estes mitos podem
muito nos ajudar a compreender também sobre as estruturas de pensamento hispânicas do
século XVI – momento o qual foram escritos -, de forma que nos permite traçar um paralelo
entre as crônicas e estas estruturas. Sendo assim, este escrito se configura mais como
provocações sobre as fontes aqui investigadas do que como um trabalho encerrado, pois o que
pretendi produzir aqui é uma análise etnológica das fontes e não conclusões já estabelecidas.

FONTES E BIBLIOGRAFIAS

Fontes utilizadas:

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GUAMÁN POMA DE AYALA, Phelipe. Nueva Crónica y Buen Gobierno. Peru: Edisa
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29 POLLAK, 1989, p. 3-4.

1355
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1358
Ernesto da Cunha de Araújo Viana e a valorização da arte e arquiteturas coloniais em tempos
de República (1852-1920)

Lorhan Lascolla de Souza1

Resumo: Na passagem do século XIX para o XX, no Rio de Janeiro, os grupos intelectuais
brasileiros salientavam a obsolescência da herança colonial e defendiam a necessidade de reformas
para colocar o país na marcha da civilização ocidental. Na égide da república, especialmente, essa
visão de mundo se tornou mais recorrente, pois surgia a necessidade de demonstrar que o novo
regime inaugurava tempos novos. Na contramão de tais ideias, destaca-se a produção intelectual do
engenheiro Ernesto da Cunha de Araújo Viana, que se notabilizou pela defesa da existência de uma
essência brasílica inscrita nos edifícios coloniais, lamentando a “monotonia” do ecletismo reinante
na arquitetura de seu tempo. Contrapôs-se, assim, à visão imperante entre seus pares na profissão,
que vilipendiavam a arquitetura colonial em favor dos estilos belle époque de matriz francesa.

Palavras-chave: Ernesto da Cunha de Araújo Viana. Arquitetura colonial. Neocolonial.

Abstract: In the passage from the XIX to the XX century, in Rio de Janeiro, Brazilian intellectual
groups emphasized the obsolescence of colonial heritage and defended the need for reforms to put
the country in the march of Western civilization. In particular, this vision of the world became more
recurrent in the Republic, as there was a need to demonstrate that the new regime inaugurated new
times. Against the background of such ideas, the intellectual production of the engineer Ernesto da
Cunha de Araújo Viana stands out for his defense of the existence of a Brazilian essence inscribed
in the colonial buildings, lamenting the "monotony" of eclecticism reigning in the architecture of
his time . He was thus opposed to the prevailing view among his peers in the profession, who
vilified colonial architecture in favor of French belle époque styles.

Keywords: Ernesto da Cunha de Araújo Viana. Colonial architecture. Neocolonial.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a produção intelectual e a trajetória


institucional do engenheiro brasileiro Ernesto da Cunha de Araújo Viana, utilizando-a como fio
condutor para o estudo das tensões que marcaram o debate em torno da formulação de projetos de
modernização da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil, na passagem do século XIX para o XX.
A análise se debruça sobre o curso ministrado pelo engenheiro no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1915. Intitulado Das artes plásticas no Brasil em geral e da
cidade do Rio de Janeiro em particular e dividido em cinco lições, o curso deu-lhe entrada no
grêmio do Instituto, que o elegeu sócio efetivo no ano seguinte. O referido curso é tomado como

1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

1359
fonte para a análise pretendida porque se acredita que ele condensa a reflexão produzida por Araújo
Viana nas primeiras décadas do século passado.
A fim de evitar a “ilusão biográfica” de que fala Pierre Bourdieu2, a pesquisa se despoja de
qualquer coerência e constância arrogada à trajetória de Araújo Viana. A análise, ao contrário,
busca entrever como o mundo social em que ele está inserido e as diferentes espécies de capital em
disputa no campo considerado influem sobre ele.

1. Trajetória: de politécnico a historiador da arte

O engenheiro Ernesto da Cunha de Araújo Viana nasceu em 1852, no Rio de Janeiro; filho
do médico Ernesto Augusto de Araújo Viana e de Marianna da Cunha Vasconcellos de Araújo
Viana. Devido ao falecimento do pai, Araújo Viana passou a ser criado por seu avô paterno,
Cândido José de Araújo Viana, o marquês de Sapucaí.
Viana estudou no Imperial Colégio Pedro II, se diplomou engenheiro civil na Escola
Politécnica e chegou a trabalhar na Santa Casa de Misericórdia e na Inspetoria de Terras e
Colonização, depois de formado. Firmou-se posteriormente no magistério, professando na cadeira
de História e Teoria da Arquitetura na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, que,
após a reforma republicana de 1890, transformou-se em Escola Nacional de Belas Artes.
Naquela época, a antiga Academia Imperial de Belas Artes era responsável pelo ensino da
arquitetura no Brasil, o que gerava certa disputa com a Escola Politécnica. Conforme apontado por
Márcia Chuva, a Escola Politécnica propunha ampliar seu próprio curso de engenharia,
distinguindo-o ao mesmo tempo da formação do arquiteto da Belas Artes. Pretendia-se, por um
lado, incorporar as características construtivas próprias da arquitetura e, por outro, reduzir a
formação da Academia Imperial de Belas Artes à de “artistas desenhistas”, traduzindo, assim, uma
tentativa de distinção, de controle do espaço e do mercado de trabalho, “[...] para o qual a Escola
Politécnica pretendeu desqualificar o profissional formado em Belas Artes, caracterizando-o apenas
como um ‘artista’.”3.
Embora tenha se notabilizado por sua atuação como professor da Academia e Escola de
Belas Artes, enquanto engenheiro, Araújo Viana também integrou duas importantes instituições de
classe à época: o Instituto Politécnico Brasileiro e o Clube de Engenharia.

2
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, 1983, p. 185.
3
CHUVA. Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional
no Brasil - anos 30 e 40. 1998. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1998, p. 232.

1360
Fundado oficialmente em 1862 com o aparato do governo Imperial, o Instituto Politécnico
Brasileiro pode ser considerado como um marco decisivo na luta pela profissionalização da
engenharia no Brasil. Situado em uma sala da antiga Escola Central do Rio de Janeiro, o Instituto
era, de acordo com Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho, “[...] uma associação civil, onde
se reuniam engenheiros e bacharéis em ciências físicas e matemáticas, civis e militares,
constituindo-se como a primeira sociedade do gênero no país, desempenhando atividades por cerca
de 60 anos [...]”4.
O Clube de Engenharia, por sua vez, foi fundado em 1880 e reunia engenheiros e
empresários relacionados às grandes obras públicas. Segundo Maria Alice Rezende de Carvalho, a
fundação do Clube de Engenharia selou a associação prática entre a indústria e a engenharia, que se
mostrou eficaz na tarefa de transformar radicalmente a natureza do país através da ciência. O
objetivo da agremiação era articular os interesses dos engenheiros com o empresariado,
destacadamente aqueles que se encontravam ligados ao que era identificado como a ideia de
progresso para o país5. Ao analisar os princípios e técnicas de organização do trabalho estabelecidos
na indústria na virada do século XIX para o XX, no Rio de Janeiro, Maria Inez Turazzi afirma ainda
que a Associação Industrial, primeira entidade de classe voltada exclusivamente para a defesa da
indústria, fundada coincidentemente no simbólico ano de 1880, testemunhou que, também no
Brasil, “[...] a difusão da engenharia e o surgimento da indústria foram processos intimamente
relacionados entre si.”6.
Sócio do Instituto Politécnico Brasileiro e um dos fundadores do Clube de Engenharia,
Araújo Viana possui, no entanto, uma trajetória que difere da de alguns colegas de formação, como
Paulo de Frotin e Francisco Bicalho, por exemplo, que realizaram as intervenções no traço
urbanístico do Rio no tempo da reforma de Pereira Passos, entre outros engenheiros que se
destacaram sobremaneira pela participação em projetos de obras de saneamento e embelezamento
do Rio de Janeiro, a partir de 18757.

4
MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. De politécnicos a engenheiros: a engenharia entre a sociedade civil
e a sociedade política no Brasil oitocentista. In: ALMEIDA, Marta de; VERGARA Moema de Rezende (Orgs.).
Ciência, história e historiografia. São Paulo: Via Lettera; Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2008,
p. 18.
5
Ver: CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Governar por retas: engenheiros na bella époque carioca. In:
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 65-91.
6
TURAZZI, Maria Inez. A euforia do progresso e a imposição da ordem: a engenharia, a indústria e a organização do
trabalho na virada do século XIX ao XX. Rio de Janeiro: COPPE, p. 1989, p. 16.
7
Conforme Verena Andreatta, a Comissão de Melhoramentos Urbanos do Rio de Janeiro, nomeada na década de 1870
pelo Ministério do Império, configurava um espaço privilegiado para que os engenheiros materializassem os projetos
formulados por eles até então circunscritos aos debates travados em suas associações de classe. Ver: ANDREATTA,
Verena. Cidades quadradas, paraísos circulares: os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2006.

1361
Entre 1886 e 1895, o engenheiro dirigiu a Revista dos Constructores, uma publicação
técnica que particularizava a construção civil. Curiosamente, ele não utilizou a publicação para
divulgar as ideias que formularia nos primeiros anos do século XX. As tímidas aparições de Viana
em seu próprio periódico se resumiam à apresentação dos números e às seções de expediente. A
respeito da Revista dos Constructores, é importante observar a relação que Araújo Viana demonstra
para com seu patrocinador, d. Pedro II. Segundo Viana, a manutenção do periódico só foi possível:

[...] devido ao auxilio todo espontâneo, que recebi do imperador. Sua majestade
mandava pela tesouraria particular de sua Imperial Casa, diretamente à tipografia,
sem eu saber, os recursos para serem pagas as despesas de impressão. [...] O
imperador, quando lhe aparecia para agradecer, se limitava a me aconselhar que
“trabalhasse e não desanimasse”. Sua Majestade, portanto, interessava-se também
pela arquitetura.8.

Reunindo memórias e estudos sobre engenharia, arquitetura, higiene e prática das


construções, a Revista dos Constructores mesclava textos de notícias do país e do estrangeiro, e
trabalhos acerca de inovações tecnológicas e melhoramentos urbanos projetados ou executados no
Brasil e no exterior, muitas vezes ilustrados com gravuras que reproduziam obras tidas como
inovadoras na concepção de seus projetos, visando, enfim, “[...] um público formado principalmente
por engenheiros, mas, também, por mestre de obras e pelos ‘capitalistas que se atiram à construção
de prédios’.”9.
Posteriormente, Araújo Viana somou às suas atividades a atuação na grande imprensa,
publicando uma série de artigos sobre arte e arquitetura no Brasil. Colaborou com o jornal A
Notícia, entre 1901 e 1908, e contribuiu com a revista mensal Renascença, entre 1904 e 190710,

8
VIANA, Ernesto da Cunha de Araújo. Das artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em
particular. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. LXXVIII, parte II, v. 132, 1916, p.
589.
9
CORRÊA, Maria Letícia. Engenharia, ordem e disciplina sobre a cidade: Vieira Souto e os projetos de “casas para
operários” no Rio de Janeiro na década de 1880. In: ENGEL, Magali Gouveia; CORRÊA, Maria Letícia; SANTOS,
Ricardo Augusto dos. Os intelectuais e a cidade: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, p. 97.
10
O periódico A Notícia era dirigido por Manuel Jorge de Oliveira Rocha, com redação na Rua do Ouvidor. Seu
expediente era composto ainda por Demerval da Fonseca, que substituiu Álvares de Azevedo Sobrinho na secretaria;
por Cesário Alvim Filho, Castelar de Carvalho e Nicolau Ciâncio, que trabalhavam na redação; por Olavo Bilac, Emílio
de Menezes, Pedro Rabelo, Vieira Fazenda, Luís Murat, Agenor de Roure e Artur Azevedo, como os colaboradores
mais conhecidos; por Medeiros e Albuquerque, responsável pela crítica literária; e Salvador Santos, a quem estava
entregue a gerência. Apesar de ter sido um jornal vespertino de tiragem expressiva, segundo Nelson Werneck Sodré (p.
285), a publicação “[...] era, ainda no início do século, quase alheia à política, informando mais do que opinando [...]”.
Ainda de acordo com Sodré (p. 298), surgida em 1904, como competidora de outra emblemática publicação da belle
époque carioca, a revista Kosmos, a Renascença era dirigida por Rodrigo Otávio e Henrique Bernardelli. Compartilhava
com a Kosmos os mesmos colaboradores: José Veríssimo, na crítica literária; Coelho Neto, com as suas fantasias; Olavo
Bilac e Guimarães Passos publicavam contos; Sílvio Romero divulgava estudos sociais; Paulo Barreto escrevia
crônicas; Elísio de Carvalho comparecia com ensaios, e havia mais Araripe Júnior, Vieira Fazenda, Max Fleiuss,
Afonso Celso e o barão de Paranapiacaba. Ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 1999.

1362
dentre outras folhas diárias, onde tratou de assuntos vários, sendo sempre sua particular predileção
as questões de arte colonial.
De acordo com Carlos Kessel, “com periodicidade irregular, às vezes enriquecidos por
clichês ilustrativos (como o primeiro, que tratava dos velhos chafarizes da cidade), apareciam os
artigos de Araújo Viana, que assinava ‘A. V.’.”11, no jornal A Notícia. Esses artigos, ainda de
acordo com Carlos Kessel, versavam especialmente sobre reminiscências artísticas e arquitetônicas
da cidade, “[...] em estilo leve e cronístico, e alternavam-se com os textos de Vieira Fazenda,
bibliotecário do IHGB, que falava de episódios e personagens da história carioca.”12. Já na revista
Renascença, as contribuições do engenheiro apareciam com regularidade. Dirigida por Henrique
Bernardelli, pintor acadêmico de projeção, e amigo e colega de cátedra de Viana na Escola
Nacional de Belas Artes, “[...] a revista se destacava pelo apurado acabamento gráfico e pelas
ilustrações e fotografias, hoje valiosos documentos iconográficos.”13.
Em 1916, Araújo Viana ingressou como sócio efetivo no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. No Instituto, lecionou na Academia de Altos Estudos, que em 1919 seria transformada
em Faculdade de Filosofia e Letras. Trata-se de uma iniciativa pouco conhecida do Instituto, que foi
inspirada nos modelos de entidades congêneres, que existiam em Paris e Londres. Segundo Lucia
Maria Paschoal Guimarães, durante seu funcionando, “[...] a Academia promoveu a realização de
seminários especiais, abordando dentre outros assuntos, Filosofia da Arte, Teoria Matemática das
Operações Financeiras e A Questão Social.”14.
Em seu discurso de posse, Araújo Viana demostrara possuir uma forte relação com seus
avôs paternos, dos quais alegou ter recebido importante influência.
Em sua preleção ele diz:

Enche-me de orgulho desculpável a preciosa coincidência de que dois nomes, caros


para mim, pertencem à história do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro:
diretamente o de Cândido José de Araújo Viana, marquês de Sapucaí, e
indiretamente o de João Ignácio da Cunha, visconde de Alcântara, pelo fato de ter
sido o fundador, o primeiro presidente e depois presidente honorário da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, da qual se derivou o Instituto Histórico.15.

11
KESSEL, Carlos. Arquitetura neocolonial no Brasil: entre o pastiche e a modernidade. Rio de Janeiro: Jauá, 2008, p.
70.
12
Ibidem, loc. cit.
13
Ibidem, p. 72.
14
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007, p. 108.
15
VIANA, Ernesto da Cunha de Araújo. Posse de Ernesto da Cunha Araújo Viana. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. LXXX, v. 134, 1917, p. 672.

1363
A despeito de não ter conhecido seu avô materno, falecido em 1834, Araújo Viana afirma
que a trajetória desse avô, estadista no reinado de d. Pedro I, chegou-lhe “[...] pela legislação, pelos
anais do primitivo senado do Império, por documentação legada à família e pela tradição oral
transmitida por seus filhos.”16. Quanto ao marquês de Sapucaí, Viana declara conhecer sua vida,
não apenas pelos elementos históricos iguais ou semelhantes àqueles legados pelo avô materno,
mas, sobretudo, por ela ter sido narrada por ele próprio, de quem ele diz ter recebido “[...] a
iluminação de seu espírito e de sua sabedoria.”17. Consequentemente, seu discurso de posse se torna
revelador à medida que permite verificar que a influência de seu núcleo familiar foi tão importante
quanto a sua formação politécnica.
Como mencionado, Araújo Viana foi criado por seu avô paterno, o Marquês de Sapucaí. É
imperante salientar que Cândido José de Araújo Viana ocupou diferentes cargos na administração
do Governo Imperial, tendo sido homem de confiança do Imperador, a quem o serviu também como
conselheiro. Segundo Maurice Halbwachs, a família cumpre um papel importante ao tornar a
memória histórica inteligível pelo indivíduo. Ainda de acordo com o autor,

[...] muitas vezes é na medida em que a presença de um parente idoso está de


alguma forma impressa em tudo o que este nos revelou sobre um período e uma
sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memória – não como uma aparência
física, um tanto apagada, mas com o relevo e a cor de um personagem que está no
centro de todo um quadro, que o resume e o condensa.18.

Além da memória imperial herdada de seu avô, Araújo Viana também vivenciou o cotidiano
do Império Brasileiro. A memória nutrida pelo engenheiro é, portanto, tributária das lembranças
transmitidas pelo Marquês de Sapucaí, mas também de sua própria vivência e experiência
decorrentes da época do governo de Pedro II. Esses são elementos constitutivos da memória de que
fala Michael Pollack:

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo


lugar, são os acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a
pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre
participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho e relevo que, no fim das
contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.19.

16
Ibidem, loc. cit.
17
Ibidem, loc. cit.
18
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003, p. 85.
19
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, jul. 1992, p.
201.

1364
Seu discurso de posse permite conjecturar, então, que o peso de sua ascendência, o fato de
considerar ambos os seus avôs grandes estadistas do Império do Brasil, fez com que Araújo Viana
nutrisse grande estima pelo legado imperial. Encontra-se aí um indício a ser analisado com maior
acuidade, mas que provavelmente permitiria inferir que a herança desse passado imperial constituiu
um dos estímulos norteadores da produção intelectual de Araújo Viana, uma vez que o engenheiro
se notabilizou por defender em seus textos a existência de uma essência brasílica inscrita nos
edifícios coloniais, lamentando a “monotonia” do ecletismo reinante na arquitetura de seu tempo.
Contrapôs-se, assim, à visão imperante entre seus pares na profissão, que vilipendiavam a
arquitetura colonial em favor dos estilos belle époque de matriz francesa.

2. As artes plásticas no Brasil em geral

O curso ministrado por Araújo Viana no IHGB pode ser entendido como uma resposta à
obra A missão artística de 1816, escrita pelo também engenheiro formado pela Escola Politécnica
Afonso D’Escragnolle Taunay, bisneto do pintor francês Nicolas-Antoine Taunay. Em sua obra,
publicada em 1912, na Revista do Instituto Histórico e Gegráfico Brasileiro (RIHGB), Afonso
Taunay cunhava a expressão “missão” para se referir à comitiva de artistas franceses que aportaram
no Brasil, no tempo de d. João VI. Conforme notado por Lilia Moritz Schwarcz (2008, p. 179),
Taunay afirmava que

[...] “a colônia americana vivia abandonada, esquecida e ignorada pelo mundo


culto”, e só contava com pintores e escultores medíocres. Também a iconografia
portuguesa seria caracterizada como “pobre e sem gosto”, sendo que a vinda dos
pintores franceses tiraria a colônia “da modorra secular” em que se encontrava e
“despertaria” o Brasil.20

Araújo Viana buscou combater a ideia de “missão” formulada por Taunay, embora ele
próprio se referisse algumas vezes à comitiva francesa como “missão”.
Em seu curso, Viana subdividiu as belas artes em duas categorias principais: a primeira,
alcunhada de “artes estáticas ou plásticas”, que compreendia a arquitetura, a escultura e a pintura; e
a segunda, denominada de “artes dinâmicas ou de movimento”, constituída pela poesia, música e
eloquência. O curso, por conseguinte, abordava particularmente as Belas Artes da primeira
categoria, e em especial as questões concernentes à arquitetura, que Viana conceituou ao mesmo
tempo como arte e ciência, pois “[...] subordina a matéria inorgânica às formas rigorosamente

20
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte
de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 179.

1365
geométricas e se rege pelas leis da estabilidade e da ornamentação.”21. Enquanto “arte de Estado”,
a arquitetura seria responsável por estimular o patriotismo. Segundo Viana, “está na consciência dos
que compreendem o sentir quão elevada é a missão social das Belas Artes, que educam o homem, o
tornam bom, despertam e fortalecem o patriotismo.”22.
Ao questionar a ideia de que a arte no Brasil teve início com a “Missão Francesa”, Araújo
Viana remonta ao período do descobrimento, lembrando-se da carta de Pero Vaz de Caminha, que,
para ele, constituiria um verdadeiro monumento da paleografia brasileira. O episódio do
descobrimento registrava também a primeira construção brasileira, ainda que rudimentar, mas
deveras importante à história da arte nacional. Conforme Viana,

[...] o primeiro oficial, da respectiva profissão elementar, foi o carpinteiro que


preparou a grande Cruz inicial e armou o altar da Primeira Missa, missa constituída
na celebre tela de Victor Meirelles, na qual os contrastes da indumentária do
conquistador português, do seu séquito, com o sitio agreste descoberto, e a
multidão aborígene surpreendida, compõe um cenário de elevada emoção
histórica.23.

Assim, consoante Viana, o nascimento da arte no Brasil estava intimamente ligado à


religião. A serviço da religião, a arte colonial brasileira, influenciada pelo entusiasmo com o estilo
barroco então dominante, começou erigir as primeiras igrejas. Somente mais tarde a arte passou à
edificação civil, com o surgimento progressivo da sumptuária nos interiores das casas, em seu
mobiliário, nas indumentárias e nos veículos de transporte.
Ao longo da conferência, Viana lamentava o fato de que muitos dos trabalhos contemplados
por ele pertenciam à lavra de artistas anônimos. Não obstante, ele considerava Antonio Francisco
Lisboa (Aleijadinho) e Valentim da Fonseca e Silva (Mestre Valentim) “[...] os maiores artistas do
século XVIII no Brasil [...]”24.
Embora reconhecesse que não existiu no Brasil, antes de 1816, o ensino oficial das Belas
Artes, Araújo Viana salientava que

[...] em todo o Brasil, antes do advento da Família Real Portuguesa, muito antes,
portanto, da vinda da Missão Artística Francesa e do rei fundar o ensino oficial de
Belas Artes no Rio de Janeiro, já se cuidava, com esmero, das artes plásticas, cujos
exemplos perduram na Bahia, Minas Gerais, Paraíba do Norte, Pernambuco, em
outros estados e nesta cidade; exemplos de arte ornamental, não igualados até hoje,

21
VIANA, Ernesto da Cunha de Araújo. Das artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em
particular. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. LXXVIII, parte II, v. 132, 1916, p.
508.
22
Ibidem, p. 509.
23
Ibidem, p. 515.
24
Ibidem, p. 516.

1366
quanto mais excedidos, no talento da invenção, na interpretação decorativa
executada, e na solidez das arquiteturas.25.

Mais adiante, em um tom mais combativo, complementava dizendo que

[...] a audácia forasteira, tão bem hospedada, atira-se com axiomática


incompetência a rabiscar, que nunca tivemos nem temos arte nacional! ...Não vale
a pena dar-lhes importância: o que falarem não se ouve, o que rabiscarem não se
lê... [...] os brasileiros não poderão se desnacionalizar acompanhando a perversos
escrevinhadores, que não se contentam com a propaganda manhosa na palestra...26.

O curso ministrado por Araújo Viana no IHGB, juntamente com outros de seus escritos, se
destacam, conforme apontou Carlos Kessel “[...] justamente por se oporem à hostilidade
generalizada aos vestígios da arte e arquitetura da época colonial e pela defesa de uma difusa
brasilidade artística.”27.

3. As artes plásticas do Rio de Janeiro em particular

Outro ponto do curso que merece destaque é a menção que Viana faz ao morro do Castelo,
que seria demolido alguns anos depois por iniciativa de seu colega de profissão, Carlos Sampaio,
que assumiria a prefeitura do Rio de Janeiro entre 1920 e 1922. Em 1915, ano em que Araújo Viana
realizou a conferência no IHGB, a Avenida Rio Branco – como passou a ser chamada a Avenida
Central, a partir de 1912 – já cortava o centro da cidade. Sua beleza e magnificência, no entanto,
contrastavam com a imagem do morro do Castelo. Para Carlos Kessel, tal contraste “[...] que
simbolizava a convivência espacial de duas realidades urbanas contraditórias – o Rio europeu e
elitizado e a urbe colonial e popular –, tornou-se um dos argumentos mais repetidos por aqueles que
insistiam no arrasamento da colina.”28.
A mentalidade higienista, que classificava o morro do castelo como um dos obstáculos a
serem superados na busca pelo saneamento e embelezamento da cidade parece não ter sido
compartilhada por Araújo Viana.
Ao tratar em particular da arquitetura do Rio de Janeiro, Viana afirma que a Vila Velha,
fundada por Estácio de Sá, marcou o início da arquitetura carioca, que se desenvolveu após a
transferência da sede da povoação para o morro do Castelo. O morro era considerado por ele um

25
Ibidem, p. 537.
26
Ibidem, p. 538.
27
KESSEL, Carlos, op. cit., p. 70.
28
Idem. Tesouros do morro do castelo: mistério e história nos subterrâneos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008, p. 74-76.

1367
monumento histórico para o Rio de Janeiro, um verdadeiro “lugar de memória”, para usar a
expressão cunhada por Pierre Nora29. O engenheiro adverte, assim, aqueles que insistiam pela
derrubada do monte:

Não tem faltado entretanto ambiciosos pretendentes ao arrasamento do morro, o


que a realizar-se seria atentar contra a tradição, contra a história e direi mesmo
contra estética urbana. Melhorem o morro abandonado, o tratem com carinho.
Porque e para quê arrasá-lo? Realçam a nossa cidade a sua beleza e a singular
descontinuidade plana. 30.

O trecho citado permite verificar uma contraposição ao ideal de retilinidade característica


dos projetos formulados pelos engenheiros da passagem do século XIX para o XX. Conforme
assinalou Simone Petraglia Kropf, o ideal da retilinidade era “[...] uma ideia pregada como um
axioma em todos os planos da engenharia para a construção de uma cidade tida como moderna.”31.
Em outro momento do curso, Viana afirma que a época de aspectos originais na edificação
civil e religiosa brasileira perdurou ao longo do século XIX com o prestigio oficial do arquiteto
francês Grandjean de Montigny, embora suas obras não passassem de “[...] corretíssimas
composições greco-romanas [...]”, pois era um “[...] exclusivista, nada admitia fora do neoclássico
[...]”32. Não obstante, o engenheiro reconhece que as obras de Grandejan influenciaram alguns
artistas brasileiros, que, segundo ele, eram imitadores sem estudos fundamentais na arte construtiva,
que arquitetavam “[...] fachadas abastardadas e insipidas, linhas clássicas incorretamente
empregadas com os ornatos do século XVIII atrapalhados.”33.
Com o tempo, surgiram estucadores que vestiam com ornamentações de cal ou gesso os
tímpanos dos frontões, os frisos e os lisos das almofadas das paredes das edificações. As
composições decorativas dos estucadores compreendiam quimeras, grifos, dragões, grinaldas,
festões, o tridente de Netuno, entre outras figuras divinas da mitologia greco-romana, e até mesmo
cocheados com a feição de Luís XV34. Ao considerar que tais ornatos não possuíam a menor
correspondência simbólica ou alegórica entre a decoração e o destino final da edificação, Viana
assevera que o ornamentista, quando desprovido de tais preocupações estéticas e “sem lógica”,

29
Ver: NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: v. 10, out.
2012, p. 7-28.
30
VIANA, Ernesto da Cunha de Araújo, op. cit., p. 524.
31
KROPF, Simone Petraglia. Os construtores da cidade: o discurso dos engenheiros sobre o Rio de Janeiro no final do
século XIX e início do século XX. Projeto História. São Paulo, v. 13, jun. 1996, p. 184.
32
VIANA, Ernesto da Cunha de Araújo, op. cit., p. 597.
33
Ibidem, loc. cit.
34
No texto do curso, em nota de rodapé, Viana afirma que “[...] em prédios de recente construção, corretos, até naqueles
onde fantasias, inspiradas em linhas medievais, ornam fachadas, há sempre um ponto da casa com o concheado de
feição de Luís XV, aproveitado decorativamente, e quase sempre no compartimento de mais luxo.”. Ibidem, p. 600.

1368
libertava-se de pensar no clássico, “[...] no abastardado ou no caricato, desenhava, compunha,
modelava espontaneamente nos estilos de seus antepassados do século XVIII.”35.
A rigor, o ecletismo neoclássico já se esboçava no Brasil antes da vinda da comitiva de
artistas franceses no início do século XIX, num movimento paralelo ao europeu, porém com menor
contundência. Embora existisse antes da “Missão Francesa”, foi ela a responsável por acelerar seu
processo de assimilação, organizando e estabelecendo padrões. A profusão desse estilo, porém,
ocorreu nos primeiros anos do século passado, período em que é possível verificar a propagação de
uma arquitetura caracterizada pela amalgama dos mais variados estilos existentes.
Segundo Viana, a importação de estilos estrangeiros acentuou-se “[...] intensamente na
presidência de Rodrigues Alves e prefeitura de Pereira Passos, nos concursos de projetos de
arquitetura, na abertura da Avenida Rio Branco, e nos novos arruamentos dados na
municipalidade.”36. Conforme assinalado por Giovanna Rosso Del Brenna, a transformação urbana
capitaneada pelo governo de Rodrigues Alves marcou o ponto culminante do ecletismo
arquitetônico, “[...] que irá se estendendo a toda a cidade até compor a perfeita imagem belle
époque da Capital Federal [...]”37.
O ecletismo reinante naquele período, traduzido pelo gosto e conforto dos padrões europeus,
pode ser interpretado como uma afirmação da Primeira República, cujos ideais pretendiam romper
com o passado colonial. Para demonstrar que a República inaugurava de fato um tempo moderno, a
cidade do Rio de Janeiro tornou-se um grande laboratório onde se experimentavam projetos de
reformas que expressavam, efetivamente, tempos novos. Como observado por Margarida de Souza
Neves, a remodelação da cidade representava para o país e para o mundo “[...] um documento da
nova ordem, a capital do progresso.”38.
Segundo o engenheiro, no período anterior à República,

[...] não abundavam as estampas de consultas, não se dispunha de revistas


ilustradas de hoje, não eram tão frequentes nem rápidas as nossas
comunicações com a Europa, o artista ficava entregue a si próprio. Não se
imitava pelo simples desejo de inovar, guiava o artista o bom senso, auxiliar
poderoso de toda imaginação criadora.39.

35
Ibidem, p. 599-600.
36
Ibidem, p. 600.
37
DEL BRENNA, Giovanna Rosso. Ecletismo no Rio de Janeiro (séc. XIX-XX). In: FABRIS, Annateresa (Org.).
Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Nobel, Edusp, p. 53.
38
NEVES, Margarida de Souza; HEIZER, Alda. A ordem é progresso: o Brasil de 1870 a 1910. São Paulo: Atual, 2004,
p. 56.
39
VIANA, Ernesto da Cunha de Araújo, op. cit., p. 601-602.

1369
Araújo Viana se contrapunha, assim, ao ecletismo da belle époque, que para ele era
constituído por cópias de modelos estrangeiros, que não condiziam com a história da arquitetura
brasileira.

4. O legado de Araújo Viana

Inspirados pelo legado de Araújo Viana, os arquitetos da Sociedade Central dos Arquitetos,
entidade surgida em decorrência de uma cisão do Instituto Brasileiro de Arquitetos, argumentavam
em 1921 a importância de preservação do complexo colonial dos jesuítas edificado no morro do
Castelo, que seria arrasado no ano seguinte, mostrando deste modo uma “[...] atitude similar a do
velho mestre, que durante a reforma de Pereira Passos lamentava o desaparecimento desde ou
daquele casarão [...]”40.
Conforme Maria Lucia Bressan Pinheiro observou, o movimento de valorização das raízes
brasileiras; isto é, o movimento neocolonial, partiu de dois centros irradiadores: o grupo paulista,
baseado nas ideias do engenheiro português Ricardo Severo; e o grupo carioca, centrado em José
Mariano Filho, médico de formação, que se notabilizou, no entanto, pelo estudo da arte e da
arquitetura brasileira41. José Mariano Filho, que foi diretor da Escola Nacional de Belas Artes entre
1926 e 1927, influenciado pela produção de Araújo Viana e de outros profissionais que também
valorizavam a arte colonial, projetou-se como um dos principais ideólogos do movimento de
revalorização da arquitetura colonial brasileira; isto é, o movimento neocolonial.
Pode-se dizer que tal movimento, intimamente ligado às questões trazidas pelo modernismo
brasileiro, que eclodiria com a Semana de Arte Moderna, em 1922, constituiu um esforço de
“inventar uma tradição”, entendida aqui, tal como em Hobsbawm, como um conjunto de práticas
que “[...] visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade com relação ao passado.”42.
Encerrada em 1920, com sua morte, a produção de Viana pode ser tida como embrionária do
movimento que mais tarde seria denominado de neocolonial. Mais do que um mero estilo
arquitetônico, o neocolonial foi um movimento cultural e artístico, onde foram amplamente
discutidas as formas arquitetônicas que iriam representar e dar a ideia de nacionalidade.

40
KESSEL, Carlos. Arquitetura neocolonial no Brasil: entre o pastiche e a modernidade. Rio de Janeiro: Jauá, 2008, p.
110.
41
PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. A história da arquitetura brasileira e a preservação do patrimônio cultural. Revista
CPC, São Paulo, v.1, n.1, nov. 2005/abr. 2006, p. 41.
42
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A
invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9.

1370
Considerações finais

Segundo Angela Alonso, os grupos intelectuais da geração de 1870 frisavam a obsolescência


da herança colonial e a necessidade de reformas para colocar o país na marcha da civilização
ocidental43. Os primeiros anos do século XX testemunharam no Rio de Janeiro a corporificação
desse discurso, que entendia o passado colonial como um obstáculo a ser suplantado no processo de
saneamento e embelezamento da cidade.
Entretanto, esta visão de mundo, certamente dominante naquele meio não evitou que um
persistente trabalho de valorização da arte e da arquitetura no Brasil Colonial estivesse presente nas
reflexões e na atividade do engenheiro de Ernesto da Cunha de Araujo Viana. Segundo Kessel, a
produção de Araújo Viana deve ser situada “[...] como uma fonte erudita engajada na divulgação da
arte e arquitetura coloniais, uma voz em defesa da preservação do patrimônio artístico e
arquitetônico da cidade.”44.
Contudo, Araújo Viana estava alinhado às novas tecnologias e técnicas construtivas de seu
tempo, importadas sobretudo da Europa. Para o engenheiro, a modernização era necessária e, não à
toa, o descontentamento que manifestava com o desmantelamento das construções coloniais era
sempre acompanhado de um elogio às reformas urbanas então empreendidas. No caso do morro do
Castelo, por exemplo, Viana reconhecia a necessidade de modernizá-lo, mas entendia que para tal
não seria necessário arrasá-lo. Por isso, para compreender os posicionamentos tomados pelo
engenheiro ao longo de sua trajetória, é preciso desprover sua personalidade de certa coerência e
estabilidade, tal como sugere Giovanni Levi45.
Ademais, seguindo a orientação metodológica de Bourdie, pensar o sistema constituidor da
classe que o indivíduo faz parte sociologicamente

[...] é necessário para que se possa indagar não como tal escritor chegou a ser o que
é, mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma determinada
época e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus socialmente constituído,
para que lhes era oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e, ao
mesmo tempo, adotar as tomadas de posição estéticas ou ideológicas objetivamente
vinculadas a estas posições.46.

43
Ver: ALONSO, Angela. Apropriação de ideias no Segundo Reinado. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo
(Orgs.). O Brasil Imperial, vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 83-118.
44
KESSEL, Carlos, op. cit., p. 97.
45
Ver: LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, 1983, p. 167-182.
46
BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das
trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 190.

1371
Por conseguinte, a produção intelectual de Araújo Viana não deve ser dissociada das
instituições que pertenceu. A revalorização da arte e arquitetura coloniais era uma problemática da
virada do século XIX para o XX, não estando circunscrita apenas na produção de Viana. Desta
forma, pode-se concluir que, apesar de sua referencialidade, o engenheiro foi um homem de seu
tempo e lidou, a sua maneira, com as questões de sua época.

1372
Referências

ALONSO, Angela. Apropriação de ideias no Segundo Reinado. In: GRINBERG, Keila; SALLES,
Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial, vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 83-118.

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1374
Federalismo argentino: uma breve análise historiográfica sobre a década de 1850.

Lucas Neto Teixeira1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo de pesquisa analisar a maneira como se
moldou a ideia de federalismo na Argentina. Para esta, busca-se focar na discussão
historiográfica sobre a formação do ideal federalista na Argentina, o que de maneira nenhuma
pretende esgotar as fontes existentes sobre o tema, mas nos permite conhecê-lo e nos
aproximarmos de fontes selecionadas ao estudo. De certa forma, aponta-se para uma
consolidação da ideia federalista em meados da década de 1850, devido ao processo
constituinte argentino de 1853.

Palavras-chave: Argentina, Federalismo, Constituição e Estado.

Abstract: This article aims to analyze how the idea of federalism was shaped in Argentina.
For this, we seek to focus on the historiographic discussion about the formation of the
federalist ideal in Argentina, which in no way intends to exhaust the existing sources on the
subject but allows us to know it and to approach sources selected for study. In a way, it is
pointed to a consolidation of the federalist idea in the mid-1850s, due to the Argentine
constituent process of 1853.

Keywords: Argentina, Federalism, Constitution and State.

O que conhecemos como Estado Argentino, não havia ainda se consolidado entre 1853
até a década fins de 1860, devido a disputas de poder internas e a questões relacionadas a que
tipo de modelo de federalismo seria estabelecido para as então províncias autônomas. Para
isso, busca-se através da historiografia exposta por historiadores como, Fabio Wasserman,
Gabriel L. Negretto, José Carlos Chiaramonte, Natalio R. Botana, Vanessa Ayrolo, expor
algumas questões presentes na montagem do federalismo na Argentina.
O federalismo, é um tema complexo devido a sua natureza ligada a maneira que os
poderes interagem e também as mais diversas questões envolvendo à cidadania, atuação dos
estados-membros, divisão de competências, soberania dos estados. Pretende-se neste artigo
expor algumas questões dialogando com textos da historiografia escrita na Argentina sobre a

1
Mestrando pelo Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora – Minas
Gerais. E-mail: lucasnetoteixeira@hotmail.com

1375
construção do conceito de federalismo. Nesse sentido, a seleção dos trabalhos também limita
a análise e o campo de conhecimento.
Dessa maneira, abrindo um leque de questões a serem debatidas que venham a
contribuir posteriormente a outros estudos e análises mais aprofundadas. Este breve artigo não
tem a pretensão de esgotar ou trazer à tona toda a discussão historiográfica pertinente ao
assunto. Sabemos que Argentina legou a História um grande processo de construção de um
Estado e sociedade, e que de certa forma, já fora explorado em muitas vertentes pelos
historiadores do direito, ciências sociais e historiadores de fato ao longo do tempo.
A ideia de modelo federal surge no território que hoje conhecemos como Argentina
através da proposta de J. G Artigas, já no pós-independência, em 1812 (Independência em
1810), na maioria das propostas historiográficas esse é o ponto inicial de discussão. A questão
foi tratada de diversas formas pela historiografia existente. Podemos compreender através do
campo historiográfico que as pesquisas têm duas posições: uma linha liberal a ligada a
Domingo F. Sarmiento, intelectual ativo na escrita e outra que busca o revisionismo histórico
do tema (AYROLO, 2013: 64-65).
Devemos salientar que houve uma revolução na historiografia mundial ocorrida na
década de 80, através das mudanças que nos ligam a francesa Escola dos Annales e que,
também, coincidem com o fim da ditadura militar argentina. O que de certa forma abrem
espaço para as mudanças que ocorriam na disciplina histórica e na escrita também na
Argentina. Portanto, é neste período que ocorrem as modificações profundas na história
política, o giro linguístico com sua maior expressão da História dos Conceitos inglesa e
alemã, além das mudanças na história social e econômica.
Tais mudanças proporcionaram um aprofundamento maior nas questões latentes
presentes no tema do federalismo na Argentina. Nesse sentido, as novas propostas históricas
trouxeram para as pesquisas questões relegadas ao discurso dos atores e aos conceitos
existentes. As duas metodologias são fundamentais para compreensão dessa construção do
conceito que anteriormente passou por um processo de teorização e que posteriormente
passou a ser prática com o advento da conformação com o processo constituinte que é datado
de 1853 na Argentina.
Sobre o discurso e a conceitualização chamo a atenção a perspectiva skinneriana e a de
Koselleck, ambas proporcionam as pesquisas, em grande medida, a busca mais aprofundada
sobre os conceitos e os discursos dos sujeitos naquele período. Nesse sentido, devemos
salientar que toda capacidade humana, a atividade discursiva ocorre num contexto que
simultaneamente a restringe e capacita o indivíduo diante do tempo (SILVA, 2010: 303).

1376
Segundo Collingwood, toda a história é história do pensamento, o que nos leva a
seguinte questão presente neste trabalho: é possível trabalhar com um conceito como
federalismo, sem levar em conta as “ideias perenes” que circulavam através dos livros,
jornais, anais e dicionários sobre o entendimento do conceito? Acredita-se que não, pois “as
palavras também são atos”. Portanto, apesar de algumas problemáticas relegadas a teoria de
Quentin Skinner, a partir da leitura de Silva (2010) compreende-se que é possível a análise de
alguns meanings, como define o historiador.
Primeiramente, os conceitos são as vezes utilizados e são reorganizados através desses
atores, no caso: intelectuais, políticos, militares, dentre outros que participam e deixam de
alguma forma escritos sobre a discussão presente. As definições conceituais podem conter
duplicidade de entendimento, como no caso aqui pesquisado. Nesse sentido, o território
argentino no seu pós-independência em 1813, segundo Chiaramonte, nos corrobora a
compreender que as províncias argentinas careciam de um texto constitucional e que seu
entendimento sobre o federalismo possuía uma espécie de tendências políticas pouco
definidas que era comumente confundido com confederação. (CHIARAMONTE, 1993: 81)
O federalismo, como conhecemos atualmente, baseia-se na dupla autonomia, ou seja,
uma espécie de meio termo entre estrutura centralista, relegada ao unitarismo e uma
descentralizada ligada a ideia de confederação. Essa forma de Estado nacional possui
características de um governo central ou federal e as instâncias subnacionais (estados ou
províncias). Essa dupla autonomia é firmada pelo pacto constitucional. Ambas possuem
poderes únicos e concorrentes podendo exercer governo no mesmo território e também sobre
os indivíduos (SOARES, 1998: 147).
Vencido o processo de independência, era necessário por parte das elites locais ou
províncias, conduzir o território argentino a uma possível unificação. Nesse sentido,
houveram várias tentativas de criação de uma constituição de âmbito nacional; que podemos
referenciar a partir anos de 1813, 1816-1819, 1824-26 e 1828. Os processos constituintes,
assim que finalizados, foram invalidados pelas províncias interioranas devido ao seu caráter
unitário e pela imposição da capital Buenos Aires, pois consideravam que estava em
contraposição ao que era compreendido como autonomia e federalismo. Estas concepções
adotadas nestas constituições eram baseadas e mais próximas a de um modelo de
confederação. O estado que desenhavam era entendido como “un conjunto de pueblos”, mais
autônomos (CHIARAMONTE, 1993: 81).
Segundo Chiaramonte (1993), o federalismo argentino e sua compreensão pouco tem a
ver com o significado do termo em si, para ele, “o descuido” da diferença entre o “triunfante

1377
confederacionismo” e a noção de “federalismo local” contribuiu a obscurecer a
compreensão”. Esta amálgama no vocabulário, para o historiador argentino, é fundamental
para compreendermos a ideia de federalismo presente naquele período.
Havia no território argentino, de certa maneira, uma má compreensão acerca do direito
autônomo dos povos, e nesse sentido, como nos mostra a historiografia, as províncias ficam
relegadas a uma administração autônoma e esta permaneceu relegada aos caudilhos federais.
No histórico deste território até o fim do vice-reinado colonial a busca por autonomia por
parte dos potentados locais sempre fora a chave para compreensão da ideia que, mais
tardiamente, ira compor o entendimento sobre o federalismo autônomo.
O unitarismo advindo da cidade de Buenos Aires não era bem-visto pelos caudilhos
federais, além de controle alfandegário a principal cidade queria impor a força e manter as
províncias longe de seus privilégios perante aos “pueblos de interior”, os mantendo longe dos
benefícios econômicos. Juan Manuel Rosas, ditador e o último governante da capital a
bloquear os interesses do interior até sua derrota em 1952:

Fueron la resistencia al dominio ecónomico, político y cultural de Buenos Aires


expresado por la indignación de sus províncias, expandiendo el grito del interior.
Los caudillos federales encarnaran el signo de su época: la oposición más o menos
organizada de algunas provincias contra la obsesión porteña por enviar ejércitos que
las sujetaran, por entronizar príncipes extranjeros, por dictar reglamentos y
constituciones cuyo o objetivo era fortalecer el privilegio de Buenos Aires y privar a
los pueblos del interior de alguna justa participación en los beneficios del puerto y
su aduana. (O’DONNEL apud AYROLO, 2013: 67)

O esse interior também conhecido como “litoral”, e compreendia as províncias


argentinas de Corrientes, Chaco, Entre Ríos, Formosa e Misiones, atualmente. Estas
províncias foram os principais entraves as políticas surgidas a partir de Buenos Aires. Chefes
militares que acabaram por serem nomeados de caudilhos federais foram responsáveis pelos
embates e guerras com a capital portenha.
Outro ponto importante na historiografia argentina é a participação da Geração de
1837. Esta é a responsável pela teorização do próprio conceito de federalismo e também o de
soberania, república e pela reavaliação do papel da Revolución de Mayo, em 1813, como
legitimadora da nação argentina, conforme também aponta Goldman (2008). A partir de
meados da década de 1830 (WASSERMAN, 1997: 11) e após um período de exílio no Chile e
Uruguai, intelectuais como Alberdi, Sarmiento, Facundo, dentre outros legaram ao estadismo
grandes questões e discussões acerca da construção do estado moderno na América Latina.
Seus escritos foram responsáveis pela teorização e mais tardiamente irão compor o texto
constitucional na Argentina em 1853. (WASSERMAN, 1997: 26-28).

1378
Esse processo de construção da nação vai ser longamente debatido antes da
Assembleia de Santa Fé. O projeto constituinte, posteriormente, será elaborado por Alberdi e
publicado em livro, Bases y puntos. As construções da ideia de nação destes intelectuais eram
compartilhadas com as discussões já existentes desde a Geração de 37 em livros como: La
cuestión Americana, de Alberdi; Facundo, de Sarmiento dentre outros, vieram a contribuir e
convergir para um projeto único de república em que sua fundação seria legitimada pelo papel
inovador e fundador das instituições, que aos seus olhares seriam resultantes das experiências
e costumes (BOTANA, 1993: 226).
As ideias debatidas na Confederação da Filadélfia, na formação do pacto federal
americano, as discussões presentes no livro “O Federalista” deram sua contribuição à
mudança conceito clássico de governo misto oferecendo a este uma posição distinta, que seria
mais aceitável a sua republica moderna, o modelo de freios e contrapesos tem forte peso na
construção da nação (NEGRETTO, 2001: 11).
Importante observar que a ideia não é totalmente transplantada, houve, em certo
sentido, uma elaboração teórica observando as regionalidades presentes, que impactavam
diretamente as províncias. A construção de leis como a de estado de sítio, a do forte
presidencialismo e um poder executivo com plenas capacidades de exercer em todo território
da coação física e o monopólio de recursos fiscais, foram traços da Constituição argentina, e
são um dos muitos que podemos salientar (NEGRETTO, 2001: 16).
Os países latino-americanos se utilizaram do modelo norte-americano, mas
observaram com racionalidade constitucional de maneira que o princípio norteador serviu de
fonte. Há uma compreensão do modelo, havendo, nesse sentido, uma adequação e uma
reinvenção levando em conta necessidades e as realidades presentes. (CARMAGNANI, 1993:
397-98). Tais intervenções, já tornam, a ideia de federalismo e república muito mais regional
e contextualizada a realidade que pensavam os intelectuais.
Portanto, o papel das elites argentinas é essencial para a compreensão da forma como
se configurou o federalismo e até mesmo a noção da ideia nação e de estado moderno.
Segundo Negretto, os líderes, políticos e intelectuais da época possuíam um dilema profundo
de sair da anarquia sem que caíssem ao mesmo tempo na tirania, além de buscar formas
fortalecer o governo sem arbitrariedade. (NEGRETTO, 2001: 17)
A Argentina combalida de conflitos internos entre as províncias e poderes locais e,
além disso, a não unificação imediata depois da independência, nos mostram que as reflexões
da Geração de 1837, dos liberais argentinos, observaram através de sua vivência e de
conhecimento os modelos constitucionais mais afinados com as suas experiências

1379
preocupando-se com as relações entre o governo central e as províncias. (NEGRETTO, 2001:
17)
De maneira que, ao final do processo constituinte podemos compreender que o
centralismo estava coberto de uma estrutura federal. Esses pressupostos nos delegam que a
busca por controle social era a única resposta possível para combater a fragmentação do
território e combater a crises políticas internas, por isso, o fato do presidente ter amplos
poderes firmados na Constituição de 1853 (NEGRETTO, 2001: 17).
Portanto, a constituição obtém aspectos interessantes: ela equaciona um Estado federal
e o centralismo, e além disso, possuía um propósito ao mesmo tempo uma posição
conservadora e inovadora. Segundo Botana, com liberdades econômicas para os habitantes e
liberdades reservadas para uma elite criolla. A república liberal de Alberdi colocava aos
imigrantes o papel decisivo de formar o tecido de uma sociedade civil que dessa vida,
mediante o exercício espontâneo da liberdade, ao inerte espaço do Antigo Regime. Sendo
assim, as instituições políticas seriam conservadoras, pois estariam nas mãos de uma elite e a
sociedade seria inovadora devido ao autogoverno do indivíduo. (BOTANA, 1993: 227)
Dessa maneira, apresentou-se nesta análise alguns pontos de convergência na
construção da nação argentina, esta por sua vez relegada a disputas de poder regional, a
anarquia e a não unificação do território argentino. Não obstante, as tentativas anteriores de
formar um pacto constitucional não avançam, somente após a derrota do ditador Juan Manuel
Rosas, governador de Buenos Aires já na década de 1850. Suas intenções e de parte de
políticos da capital possuíam inspiração na tradição monárquica e unitária da Ilustração
espanhola, o que, de fato, era contraria as propostas de maior autonomia dos caudilhos e
liberais.
O exílio que gestou a elite intelectual na Geração de 1837 possibilitou a esta a
observância de experiências e a construção de ideais para seu país. Entre as décadas de 1840
até posteriormente a década de 1860 os intelectuais debateram o federalismo no plano teórico,
tendo já o colocado em pratica na carta constitucional de 1853 e revista no nos idos de 1860.
Nesse horizonte a busca por uma república federativa era a constante, independente dos
modelos preexistente, o presidencialismo e a representação direta ou indireta eram questões
pertinentes.
Os caudilhos são a emergência de uma força radical completamente nova, expressão
das disputas de poder na América Latina, sua posição e formação principal consistem em
derrotar projetos monárquicos e centralistas, no caso argentino, dos portenhos, e por outro

1380
lado tem uma importância na criação de bases de um federalismo, que mais tardiamente, no
contexto aqui explorado, formou um pacto constitucional (BOTANA, 1993: 231).
Portanto, neste breve ensaio foram exploradas questões pertinentes a construção do
estado argentino, e nele contido a figura do federalismo como chave a equilibrar as disputas.
O conceito de federalismo, mesmo que pouco definido, legou as gerações que buscavam a
república novas ideias aos intelectuais, construindo, assim, novas perspectivas dentro do
próprio conceito o racionalizando ao seu país, cultura e economia.

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1382
SINDICALISTAS, EMPRESÁRIOS E BUROCRATAS: OS PRIMEIROS CONFLITOS NA
FORMAÇÃO DO PTB NO ESPÍRITO SANTO (1945 – 1951)

Lucian Rodrigues Cardoso 1

Resumo: Trata-se de um estudo sobre a formação de um partido como um processo complexo, em


que diferentes grupos políticos, normalmente heterogêneos, atuam e deixam marcas indeléveis nos
anos posteriores da organização. Analisa-se, então, tais decisões originárias no caso do Partido
Trabalhista Brasileiro no Espírito Santo. O nascituro PTB/ES comportou sucessivos conflitos
internos durante boa parte de sua existência. Em sua fase inicial, discursivamente, as disputas
recaíam sobre a celeuma de quem seria mais agraciado pelo líder, quem poderia defender melhor
seu legado e sua permanência política. Assim, não tardou e sindicalistas, burocratas e empresários
demonstraram interesses e estratégias conflitantes na defesa do getulismo.

Palavras-chave: Espírito Santo; getulismo; PTB capixaba

Abstract: It is a study of the formation of a party as a complex process, in which different political
groups, usually heterogeneous, act and leave indelible marks in the later years of the organization.
These decisions are then analyzed in the case of the Brazilian Labor Party in Espírito Santo. The
unborn PTB / ES has had successive internal conflicts during much of its existence. In its initial
phase, discursively, disputes fell on the excitement of those who would be most favored by the
leader, who could better defend his legacy and his political permanence. Thus, soon, trade unionists,
bureaucrats and businessmen demonstrated competing interests and strategies in the defense of
getulism.

Keywords: Espírito Santo; getulism; PTB capixaba

INTRODUÇÃO

Ao se tomar Panebianco (2005) como base, estudar a formação do Partido Trabalhista Brasileiro no
Espírito Santo se torna essencial, visto que o modelo originário, ou seja, o momento de sua
formação baliza o que se verifica em momentos posteriores, na sua consolidação. Desta forma,
como sintetiza D’araujo (1996), “[...] a formação de um partido tem ingerência crucial sobre seu
destino”. Partiremos do pressuposto de Panebianco, em que a formação de um partido apresenta-se
como um processo complexo, visto que diferentes grupos politicos, normalmente heterogêneos,
atuam nesta fase. Assim, se “[...] toda organização traz consigo a marca de suas modalidades de
formação e das principais decisões político-administrativas de seus fundadores, [ou seja] as
decisões que “modelaram” a organização” (PANEBIANCO, 2005, p. 92), passaremos a analisar tais
decisões originárias no caso do PTB capixaba.

1
Mestrando em História pela UFES. Orientador: Ueber José de Oliveira. E-mail: lucianrc2004@hotmail.com

1383
Desta maneira, o nascituro PTB/ES comportou sucessivos conflitos internos durante boa parte de
sua existência. Em sua fase inicial, discursivamente, as disputas recaíam sobre a celeuma de quem
seria mais agraciado pelo líder, quem poderia defender melhor seu legado e sua permanência
política. Não tardou e sindicalistas, burocratas e empresários demonstraram interesses e estratégias
conflitantes na defesa do getulismo.

A FUNDAÇÃO E OS PRIMEIROS ANOS DO PTB NO ESPÍRITO SANTO

O Partido Trabalhista Brasileiro formou sua primeira Comissão Executiva Nacional em 15 de maio
de 1945. A agremiação surgiu por esforço de Marcondes Filho, quando Ministro do Trabalho do
Estado Novo (1937-1945), e tinha como objetivo arregimentar as lideranças sindicais e as ligadas
ao Ministério do Trabalho e suas autarquias, de modo que estas defendessem o nome e a legislação
social varguista, além de canalizar eleitoralmente o apoio das massas trabalhadoras urbanas.

As fontes não são precisas quanto ao processo de formação do PTB em solo capixaba. As eleições
de 1945, para Presidente da República, Senado e Câmara Federal, embora contasse com candidatos
petebistas do Espírito Santo, parece preceder a qualquer mínima organização da agremiação. A
formação inicial do PTB ainda é ponto obscuro, embora Marta Zorzal e Silva (1986) aponte o
Queremismo como aquele que “[...] no movimento subsequente [à queda de Vargas], não deixaria
de fornecer seu apoio e bases para o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB que estava sendo
organizado” (p. 263).

A fundação do PTB do Espírito Santo acompanha o desejo das elites partidárias nacionais de
transformar dirigentes sindicais em lideranças capazes de promover a organização do partido e
arregimentar eleitores. Entre os primeiros fundadores do partido no Espírito Santo pode-se destacar:
Manoel Vianna Neto, então presidente do Sindicato dos Ferroviários da Vitória a Minas; Antônio
Jacob Paixão, comerciário e membro do Diretório Central do PTB em sua fundação, na I
Convenção Nacional, realizada entre 26 de Agosto e 5 de setembro de 1945; Alcyro de Souza
Poubel; Adelpho Poli Monjardim (membro de família abastada no estado, escritor e funcionário
público de Vitória); Guilherme dos Santos Neves (vogal da Junta de Conciliação e Julgamento da
Justiça do Trabalho, representando os empregadores; Luiz Batista; Mozart Medina de Mendonça;

1384
Nilo Guimarães, Saturnino Rangel Mauro2, Racine Leão Castelo, e outros elementos. (SILVA,
1986, p. 264).

Desta maneira, os fundadores da agremiação trabalhista, em sua maioria, dizem respeito a


elementos sindicais e de autarquias do Ministério do Trabalho, comportando elementos tanto de
representação dos trabalhadores, como dos empregadores. A formação congregava, então,
elementos ligados aos sindicatos e à burocracia do Estado Novo.

AS ELEIÇÕES DE 1947 E O COMANDO DO PTB CAPIXABA PELO SINDICALISTA


SATURNINO RANGEL MAURO

Passados os dois primeiros anos conturbados e incertos, verificados nas fontes disponíveis, já
seguindo a campanha eleitoral para o pleito estadual de 1947, a direção do PTB capixaba sustentava
que o partido se abstivesse das eleições presidenciais e conclamasse aos trabalhadores para que
votassem nos candidatos petebistas para as casas legislativas estaduais. Essa decisão reflete um dos
principais problemas para os primeiros anos da agremiação nacionalmente, que se refletiu também
no Espírito Santo: uma corrente optava por tendências isolacionistas e outras optavam por alianças e
acordos com outros setores da política nacional.

Um partido criado para servir ao seu chefe, fizera-o depender do peso da fala de Vargas para se
traçar planos e diretrizes. (D’ARAUJO, 1996, p. 33). Na ausência do peso desta, vozes plurais se
arvoravam para falar pelo partido. Assim, se no dia 05 de janeiro de 1947 o partido lançou uma nota
oficial de caráter “isolacionista”, dez dias depois foi noticiado que um elemento petebista, Mozart
Medina, falaria em nome do PTB no comício de encerramento da candidatura da Coligação
Democrática3, contrário à candidatura de Carlos Lindenberg, PSD.4 Porém, um dia depois, em nota
oficial, o partido desmente a nota de A GAZETA, reafirmando que “[...] Mozart Medina e nem

2
Um dos fundadores da Cooperativa de Consumo dos Empregados da Estrada de Ferro Vitória a Minas, foi, em 1936,
eleito vereador e presidente do Centro Político Distrital de Argolas – bairro operário do município de Vila Velha -. No
mesmo ano, Mauro foi eleito presidente do Sindicato dos Empregados do Comércio do Espírito Santo, ficando em sua
presidência até 1947. Ainda antes da redemocratização, em 1941, o trabalhista foi nomeado por Vargas à vogal da
Junta de Conciliação e Julgamento da Justiça do Trabalho no Espirito Santo. Findado o Estado Novo, em 1945,
Saturnino Rangel Mauro foi preso no 3º Batalhão de Caçadores.
3
Coligação Democrática era a denominação para o grupo que comportava os partidos contrários ao PSD em
determinadas eleições estaduais para o período 1945-1964. A primeira Coligação Demcorática surgiu nas eleições de
1947, em que Attilio Vivacqua, pelo PR, disputou a eleição para governador contra Carlos Lindenberg, do PSD. Os
partidos que compuseram a coligação variaram conforme as eleições, sendo que em duas ocasiões, o referido grupo
sagrou-se vitorioso no pleito à governadoria, em 1954 e 1962 com Francisco Lacerda de Aguiar, o Chiquinho.
4
ENCERRAR-SE-Á amanhã a campanha eleitoral da grande Coligação Democrática Espiritossantense. A Gazeta, Vitória,
p. 01, 15 jan. 1947.

1385
ninguém [...]” está autorizado a falar pelo PTB no comício da candidatura para o Governo do
Espírito Santo de Attilio Vivacqua, pela Coligação Democrática5.

Durante a campanha, o PTB apresentou vinte e seis candidatos a deputação estadual. Entre estes,
destaca-se a presença de seis elementos provenientes dos sindicatos e autarquias do Ministério do
Trabalho durante o Estado Novo e que, posteriormente, ocuparam postos importantes na
administração do PTB estadual. O destaque entre as candidaturas petebistas foi Saturnino Rangel
Mauro, presidente do Sindicato dos Empregados no Comércio do ES, em 1946, diretor Presidente
da Caixa Beneficente da Associação dos Sindicatos de Empregados do Comércio do ES, além de
vogal dos empregados na Junta de Conciliação de Julgamento do Ministério do Trabalho, durante o
Estado Novo.

Neste pleito, o prestígio de Saturnino Mauro no município de Vila Velha - vizinho a Vitória - e no
interior foi decisivo, sendo eleito deputado com 896 votos, a maior votação da bancada trabalhista.
Além dele, fora eleito o professor José Monteiro Peixoto com 833 votos. A partir daí, o caminho
estava pavimentado para o comando de Mauro na sigla trabalhista do Espírito Santo, não sem
oposições, pelo menos até o pleito de 1950.

Assim, logo após o pleito, em maio de 1947, o PTB estadual convoca os membros do Diretório
Estadual para tratar de assuntos relevantes, “[...] inclusive a restruturação do PTB no Estado e o
estudo do ante-projeto constitucional [...]”. A nota é assinada por Gualter Oliveira, como 1º
secretário, não se sabendo, entretanto, o total da composição da Executiva Estadual.6

Mas, ao que parece, Saturnino Mauro reunia as tropas para, então, trazer para si o butim conseguido
com o pleito. Isto parece razoável supor diante de uma nota que, dois dias depois, dá ao
conhecimento que a reunião designou Saturnino Rangel Mauro, José Monteiro Peixoto e Gualter
Oliveira para constituírem a Comissão Estadual de Coordenação, “[...] com poderes para processar
a reestruturação do nosso Partido, neste Estado [...]”7. Possivelmente, numa demonstração da força
dos elementos sindicais nesses primeiros anos do PTB capixaba, assina a referida nota Alvaro
Fraga, 2º secretário e advogado do sindicato dos comerciários, presidido por Mauro.

A partir daí, Saturnino Rangel Mauro toma as rédeas visando a reestruturação do partido e as
eleições municipais de 1947. Não à toa que, logo após uma convocação dos membros do Diretório
Estadual do PTB para reunião visando a tomada de decisões administrativas e político-partidárias,

5
NETTO, Manoel Vianna. Movimento Partidário: Partido Trabahista Brasileiro A Gazeta, Vitória, p. 04, 15 jan. 1947.
6
OLIVEIRA, Gualter. Partido Trabalhista Brasileiro. A Gazeta, Vitória, p. 04, 29 mai. 1947.
7
FRAGA, Alvaro. Partido Trabalhista Brasileiro: comunicação. A Gazeta, Vitória, p. 04, 31 mai. 1947.

1386
decidiu-se pela candidatura de Domício Mendes à Prefeitura Municipal de Vila Velha. Tratav-se de
um aliado rangelista em um dos principais municípios capixabas.8

A consolidação de Saturnino Rangel Mauro no comando da sigla veio com as eleições municipais,
em fins de 1947. Na Câmara Municipal de Vitória, o PTB elegeu o sindicalista Altamir Faria
Gonçalves e um aliado de Rangel Mauro, Oscar Paulo da Silva, sendo este o segundo mais votado
na capital. Neste certame, a organização constituiu-se na segunda força na capital, ficando atrás da
UDN, com 3 cadeiras, e empatando com o PSD, com duas. Em Vila Velha, seu aliado mais
próximo, Domício Mendes, foi eleito prefeito, vencendo o candidato do PSD com quase o dobro de
votos (2077 votos x 1154). Além disso, na cidade canela-verde, o PTB ganhou nos votos da legenda
com 1279, contra o PSD, com 1145, UDN ,com 540, e PDC com 203.9

No que concerne à relação com o governo estadual de Carlos Lindenberg, do PSD, a estratégia de
Saturnino Mauro no comando da sigla foi criar uma atuação independente, aliando-se, na
Assembleia Legislativa, com as oposições coligadas de UDN, PR, PDC e PRP. Assim, se no início
da legislatura, o presidente da sigla defende que o PTB não tem nenhum compromisso com o
governo Lindenberg, embora julgasse oportuna uma moção de confiança ao governo, proposta e
aprovada na casa de leis10, no ano seguinte a relação entre o presidente estadual do PTB e o governo
de Lindenberg iria azedar. Até 1949 o deputado Rangel Mauro passaria de uma independência ao
governo do estado para uma atitude hostil ao governador pessedista, articulando derrotas para o
governo.

Desse modo, a marca da presidência de Saturnino Mauro Rangel no PTB capixaba revela uma forte
tendência de independência frente ao Aparelho de Estado. Por isso, a aposta da Executiva Estadual
do PTB sob o comando de Rangel Mauro foi fortalecer os diretórios regionais e municipais no
interior e nos bairros periféricos da Grande Vitória. Em 1949, por exemplo, uma nota do partido
noticia a instalação do Diretório Regional do PTB do Forte São João, bairro periférico e operário de
Vitória, contando com a presença dos deputados petebistas, Saturnino Mauro e José Monteiro, além
dos vereadores da capital, Altamir Faria Gonçalves e Oscar Paulo. A nota reforça que o partido
conta com muitos adeptos na referida comunidade operária, relevando um potencial eleitoral nessas
regiões da cidade.11 Tratava-se, portanto, de uma liderança que apostava mais na força dos votos
que através dos meandros da burocracia. Para isso, Mauro detectou a necessidade de fazer alianças

8
POLITICA do Estado: Lançada a candidatura pessedista à prefeitura de Vila Velha. A Gazeta, Vitória, p. 01, 20 set.
1947.
9
O pleito de 30 de novembro: Espetacular derrota do PSD em Vila Velha – Vence a UDN em Alegre, Afonso Claudio e
Cariacica. A Gazeta, Vitória, p. 06, 03 dez. 1947.
10
ASSEMBLÉIA Constituinte Estadual. A Gazeta, Vitória, p. 01, 04 abr. 1947.
11
PARTIDO Trabalhista Brasileiro. A Gazeta, Vitória, p. 04, 10 jun. 1949.

1387
com sindicalistas e, principalmente, lideranças locais dos bairros periféricos da capital e das cidades
vizinhas, assim como do interior do estado.

AS ELEIÇÕES DE 1950 E A INTERVENÇÃO DA EXECUTIVA NACIONAL NO PTB


CAPIXABA

As disputas internas começaram a ficar favoráveis a um grupo de membros do partido. Diante de


fissuras internas dos quadros nacionais, em 1948, deu-se o afastamento do então presidente nacional
do PTB, Baeta Neves, e uma Comissão Provisória fora eleita para pacificar o partido. Getúlio
Vargas tornou-se o presidente formal da comissão, tendo Salgado Filho como seu vice e presidente
efetivo. O Senador Salgado Filho viajou por todo o país visando unificar o PTB nacional, o que
“[...] era uma tentativa de tirar o PTB do cotidiano de disputas pessoais e lançá-lo na política
nacional, visando a sucessão presidencial” (D’ARAUJO, 1996, p. 52). D’araujo (1996) demonstra
que a gestão de Salgado Filho se configurou numa vitória de grande fileira de getulistas, desejosos
de “[...] transformar o partido em interlocutor válido dos setores dominantes da política brasileira
[...]” (p. 52). Esse fato seria o sinal de que o PTB não seria mais construído como um partido
dirigido por lideranças sindicais.

Esta luta se acirraria com a aproximação das eleições de Presidente da República, Governadores e
Deputados Estaduais em 1950. Se haviam lutas infrapartido, duas correntes se apresentariam
antagônicas no PTB capixana. Ainda em dezembro de 1949, o jornal A Gazeta revela que Jones dos
Santos Neves, candidato a governador do Espírito Santo pelo PSD, esteve na capital, Vitória, e o
ponto alto de sua estadia foi a reunião com Saturnino Mauro e o empresário José Buaiz, então vice-
presidente do PTB capixaba. José Buaiz tratava-se de um industrial dos mais abastados e bastante
reconhecido na praça de Vitória, com negócios diversificados e bastante influência nos círculos
políticos e sociais do Espírito Santo. Assim, se o sindicalista era descrito como aquele que poderia
garantir votos para o candidato pessedista, sobretudo no município de Vila Velha, o empresário José
Buaiz é descrito como aquele que seria capaz de angariar recursos para a candidatura.12 Haviam aí
dois elementos, se ainda não antagônicos, distintos no comando do PTB capixaba. Saturnino
Mauro, líder sindical, e José Buaiz, ligado às classes empresariais e mercantis.

A publicação do jornal A Gazeta nos permite analisar alguns pontos. O primeiro é a miscelânea de
interesses que a agremiação comportava. Se havia uma liderança com relativa capacidade de
transferir votos, assentada em bairros operários do município de Vila Velha e Vitória, influente nos

12
CRUZEIROS & Centavos. A Gazeta, Vitória, p. 01, 30 dez. 1949.

1388
meios sindicais, havia também um poderoso comerciante da capital, garantidor de apoio financeiro
para a campanha e interessado na defesa das demandas mercantis. Outro elemento que se afere é
que, ao longo do governo pessedista de Carlos Lindenberg, a bancada capixaba da Assembleia
Legislativa, sob liderança de Saturnino Mauro, começou dando votos de apoio ao então governador,
depois declarou independência frente ao Executivo, para depois passar a atuar na oposição do
Palácio Anchieta. Entretanto, para o pleito de 1950, haviam negociações para o apoio à sigla
pessedista. Este apoio revela uma marca do PTB: o getulismo e as alianças/amizades de Getúlio
Vargas como fator determinante para apoio a uma determinada candidatura. Jones dos Santos
Neves, do PSD, abraçava o projeto nacionalista e desenvolvimentista de Vargas e, além disso, foi
um ex-interventor no Estado Novo.

Desta forma, não tardaria uma disputa pelo comando da sigla petebista. Ainda em janeiro de 1950,
portanto, antes das eleições, já havia rumores de que o empresário José Buaiz iria ao Rio de Janeiro,
a chamado do Diretório Central do PTB, para deixar o referido diretório “a par” das atividades de
Saturnino Mauro e por lá, noticia-se ainda, que aquele “preparou a cama” do então presidente
estadual do PTB, Saturnino Mauro.13

Em julho de 1950, o PTB realizou sua convenção estadual e, com a presença de representantes de
todos os diretórios municipais e distritais, referendou a seguinte chapa: Getúlio Vargas para
Presidente, pelo PTB; Jones dos Santos Neves, do PSD, para Governador; Francisco Alves de
Athayde para Vice-Governador, também do PSD; Lindenberg (PSD) para Senador e Edson Pitombo
Cavalcanti, do PTB, para suplente de Senador.

A composição da chapa com o PSD é justificada pelo então presidente do PTB, Saturnino Mauro,
em um comício em Argolas, bairro operário de Vila velha, ocasião em que o sindicalista atribuiu a
parceria com o PSD ao “[...] comportamento das correntes políticas frente ao Chefe do seu Partido e
candidato do mesmo à Presidência da República, Senador Getúlio Vargas”.14 O PTB estadual, ao
que parece, seguiu a indicação das hostes petebistas nacionais de relegar às candidaturas estaduais a
segundo plano, privilegiando o apoio à candidatura de Vargas a Presidência da República na costura
de alianças. Desta maneira, o partido, “[...] aparentemente caminhava coeso no apoio a Vargas, mas
a pacificação interna estava longe de se concretizar” (D’araujo, 1986, p. 57).

Conforme D’araújo (1986), a imposição de Danton Coelho para a Presidência do PTB por Vargas,
em julho de 1950, seria uma estratégia visando sua própria eleição, e a secundária preocupação com
a organização partidária. Assim, sem uma costura de acordos internos na agremiação, a composição

13
CRUZEIROS & Centavos. A Gazeta, Vitória, p. 01, 25 jan. 1950. CRUZEIROS & Centavos. A Gazeta, Vitória, p.
01, 01 fev. 1950.
14
NOTAS Politicas. A Gazeta, Vitória, p. 01, 30 jul. 1950.

1389
de chapas de candidatos aos cargos proporcionais foi traumática para o partido em diversos estados,
o que parece ocorrer com o PTB capixaba (p. 57).

Neste sentido, um mês após a divulgação do acordo PSD-PTB no Espírito Santo, Saturnino Mauro
vai à imprensa rechaçar as críticas de que o acordo foi feito ao seu bel-prazer, posto que “[...] a
direção central do PTB dele tomou conhecimento, sobre ele opinou e chegou-se a conclusão [...]”
de que aquele seria o único rumo a tomar. Afirma que o acordo se manteria de pé, visto que “[...] foi
ditado pelos altos interesses partidários de ambas as agremiações políticas”.15 E, dias depois, ainda
em agosto de 1950, Mauro engrossou a voz taxando que “O presidente do PTB aqui no Estado sou
eu. Não temos tutor nem admitimos tutela de elementos alheios à situação política de nossa terra e
de nosso Partido”. Assim, o sindicalista põe-se firme na candidatura de Jones, “[...] que nunca
hostilizou o nosso chefe Getúlio Vargas [...]”.16 A passagem, mais uma vez, demarca a base do
acordo PSD-PTB em solo capixaba, que seria pautado pelo apoio a Getúlio Vargas, ou seja, pelos
ditames da Executiva Nacional do PTB.

Ou seja, quando as pessoas da época se referem ao PTB como “o partido de Vargas” não parece ser
apenas um recurso adjetivo, mas, sim, configura-se um substantivo da agremiação. A forma de atuar
da agremiação estava intimamente ligada aos interesses e à figura de Vargas, tanto que a
justificativa para ficar com o PSD no Espírito Santo é a posição da coligação em relação ao líder, e
não necessariamente baseada em um programa.

A mudança na estratégia do PTB nacional, agora, durante a campanha de 1950, disposta a “[...]
incorporar elementos não vinculados aos interesses dos trabalhadores [...]”, revelou-se dificultosa
enquanto o sindicalista Saturnino Mauro esteve como Presidente da agremiação. Deste modo, se
“[...] o crescimento eleitoral do partido dependeu do prestígio eleitoral de Getúlio em 1945 e em
1950, e também da capacidade dos dirigentes petebistas de diversificar alianças” (D’ARAÚJO,
1986, p. 66), era necessário remover os entraves a esta nova tendência aliancista.

A crise pelo comando da sigla capixaba se acirrou durante a campanha iniciada em 1950. Eleito
Vargas presidente, os trabalhistas capixabas não escondiam a intervenção da Executiva Nacional do
partido. A acusação para a retirada do sindicalista Saturnino Mauro do cargo de presidente do PTB
capixaba era de não ter fortalecido a organização partidária, de modo a aproveitar o momento em
que Vargas era candidato à Presidência da República pelo mesmo partido. Se o PTB não obteve
sucesso era porque havia uma “[...] política individualista e fascista de alguns próceres do diretório

15
NOTAS Politicas. A Gazeta, Vitória, p. 01, 10 ago. 1950.
16
NOTAS Politicas. A Gazeta, Vitória, p. 01, 11 ago. 1950.

1390
local [...]”17, havendo, segundo um articulista ligado ao PTB capixaba, leilão de cargos e escolha de
cabos eleitorais e amigos sem expressão eleitoral.

Porém, se é perceptível a precária existência organizacional do partido nos seus cinco primeiros
anos de formação, o argumento do articulista pode ser relativizado pelos resultados eleitorais
alcançados pela sigla. Na capital Vitória e nos municípios vizinhos de Vila Velha e Cariacica, o
PTB contou com a maioria dos votos válidos para a Câmara Municipal, obtendo a maior bancada.
Na capital, elegeu cinco vereadores18, contra quatro cadeiras do PSD e duas da UDN, PDC e PSP.
Ressalta-se, também, que os quatro vereadores mais votados na capital eram das fileiras petebistas.
Ou seja, de dois vereadores, a agremiação passou a contar com cinco novos representantes na
Câmara Municipal de Vitória. Já em Vila Velha, reduto trabalhista, o partido obteve quatro
cadeiras, contra três da UDN e duas do PSD. Em Cariacica, outra cidade vizinha à capital, elegeu
três vereadores, mesmo número da UDN e do PSD. Em Cachoeiro de Itapemirim, considerada a
segunda maior cidade capixaba na época, também um município de efervescência política e
operária, Nelo Vola Berelli elegeu-se Prefeito Municipal pelo PTB.

Já na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, o PTB conseguiu eleger os deputados Floriano


Lopes Rubim, Ely Junqueira, Domício Mendes, Argilano Dario, Sebastião da Rosa Machado e
Lauron Calmon Nogueira da Gama. Desta maneira, se na primeira eleição contou com dois
deputados (Saturnino Mauro e José Monteiro Peixoto), nas eleições de 1950 aumentou a bancada
para seis deputados.

Para um partido ainda com uma organização incipiente, havia um crescimento considerável. Nas
eleições de 1950 configurou-se no partido com o maior crescimento de bancada na Assembleia
Legislativa do Espírito Santo. Desta forma, se observada também as notícias da intervenção antes
mesmo das eleições de 1950, a relativização do desempenho eleitoral como razão da saída do grupo
do sindicalista do comando do PTB ganha ainda mais musculatura.

Porém, se a nomeação de Salgado Filho para presidente do partido em 1948 demonstrou uma virada
nos interesses partidários, agora voltados a abarcar setores dominantes da política capixaba, o PTB
capixaba, dois anos depois tratou de entrar nos eixos desejados pela Executiva Nacional. Se “[...]
três anos de vida partidária haviam demonstrado que era impossível mantê-lo sob a administração
de líderes classistas sem experiência política [...]” (D’ARAUJO, 1996, p. 52) contra os interesses de
empresários e burocratas há muito ambientados com as disputas pelo poder, no caso capixaba,

17
Id. 18 out. 1950.
18
Foram eles Mario Gurgel; Theophilo A. da Silveira; Adir Sebastião Baracho; Isaac Los Rubim e João Felix da Silva,
pela ordem crescente de votação.

1391
mesmo uma liderança sindical com experiência e relativo peso político, não lograria êxito na luta
contra esses interesses.

A ALIANÇA ENTRE OS BUROCRATAS E OS EMPRESÁRIOS NO COMANDO DO PTB


CAPIXABA

Se já havia um motivo, uma ideia corrente nas hostes petebistas opositoras ao comando da sigla por
Saturnino Mauro, também já havia um nome para substituí-lo. Menos de um mês depois das
eleições, anunciou-se o novo Presidente do PTB capixaba, Edson Pitombo Cavalcanti, apoiado pela
Executiva Nacional e por Getúlio Vargas. Tratava-se, agora, de reformular o partido e alijar dos
postos de comando os líderes do primeiro momento de formação.

Edson Pitombo Cavalcanti foi, desde a fundação, Presidente de honra do PTB capixaba. Antes
disso, durante o Estado Novo, foi Inspetor Chefe do Trabalho, Diretor do Departamento Nacional
do Trabalho, cooperou na implantação e execução da Consolidação das Leis Trabalhistas, CLT,
tendo organizado e dirigido o Serviço de Alimentação da Previdência Social, SAPS,19 até 1945.
Trata-se, desta maneira, de uma figura outsider da política capixaba, porém com trânsito livre entre
as lideranças nacionais do trabalhismo. Não foi ocasional, assim, que se tornou o interventor na
Executiva Nacional após a destituição de Saturnino Mauro da Presidência do PTB estadual.

Esta ligação com lideranças nacionais está presente em uma nota oficial assinada pelo PTB
nacional. A nota do presidente da Comissão Executiva Nacional do Partido Trabalhista Brasileiro,
Danton Coelho, “[...] considerando os inexplicáveis e descabidos rumores que têm chegado ao meu
conhecimento acerca da situação reinante nos meios petebistas espiritossantenses [...]” diz que a
destituição da antiga Comissão Executiva Estadual sob a presidência de Saturnino Mauro foi devido
a “[...] imperiosos motivos disciplinares [...]” e “[...] relevante interesse partidário [...]”. Nesse
sentido, esclarece que Edson Pitombo Cavalcanti, “[...] pela sua elogiável firmeza e lealdade
partidária [...]” conta com seu apoio da referida Comissão e de Vargas, conclamando aos petebistas
para apoiá-lo “[...] nos trabalhos de reestruturação e soerguimento do partido [...]”. Por extensão,
cumprimenta o PSD por colaborar na “[...] vitória de nossos ideais políticos personificados na
figura exponencial do grande líder GETÚLIO VARGAS [...]”.20

19
Autarquia criada por Vargas a partir de 1940 que congregava restaurantes populares com espaços de lazer e de
promoção cultural.
20
COELHO, Danton. Aos correligionários do Espírito Santo. A Gazeta, Vitória, p. 01, 09 set. 1950.

1392
Este conflito parece demonstrar que havia uma pressão para buscar filiações muito mais pautadas
nos ganhos eleitorais que na identificação programática. A intervenção no PTB capixaba se efetivou
em setembro de 1950, mas seu começo pode ser detectado já em 1947. Nos dias 5 a 10 de março de
1947, ocorreu a II Convenção Nacional do PTB, que aprovou uma reforma nos estatutos, o aumento
do Diretório Nacional e promoveu a eleição de nova Comissão Executiva. Esta reforma visou
ampliar a participação de diferentes regiões do país, ao mesmo tempo visava englobar novos setores
sociais, diminuindo o número de trabalhadores em favor de políticos mais abastados e de maior
tradição.

Edson Pitombo Cavalcanti, após ser nomeado interventor, concedia entrevistas criticando o
comando anterior do PTB capixaba e traçava planos de reestruturação partidária. Para fim de
reestruturação, o Estado foi dividido em três zonas políticas: “[...] a norte, convergindo para
Colatina, a centro, com jurisdição em Vitória, e a sul, dependente de Cachoeiro do Itapemirim”.21 A
organização, nesses moldes, “[...] contem algumas inovações, tais como a criação de Diretórios
Regionais e de Agrupamentos Políticos, com a manutenção, entretanto, das determinações
estatuárias e dos Diretórios Municipais como postos-chave do nosso sistema politico [...]”.22 Ao
passo que faria a reestruturação, Cavalcanti anuncia que a nova direção tomaria medidas contra
elementos que ainda, segundo ele, interferiam na estabilidade do partido, para “[...] proceder ao
saneamento político que se fizer mister [...]”.23 Desta maneira, se Saturnino Mauro gozava de
prestígio com os petebistas do interior do Espírito Santo, a reestruturação do PTB com a nova
divisão por regiões poderia encaminhar aos postos de comando do partido os apoiadores da nova
gestão partidária.

Com a eleição, em 1950, de Jones dos Santos Neves para a Governadoria do Estado, cabia ao PTB a
indicação para cargos na administração estadual. Dito isso, Edson Cavalcanti informou que
consultou as bases para escolher o nome do PTB para a Secretaria de Educação do Estado,
Prefeitura de Vitória, diretores do Departamento de Municipalidades e Secretaria de Saúde. A
região sul indicou um nome para a secretaria de saúde; Vitória (região centro) a de seu prefeito;
Colatina (região norte) e São Mateus, respectivamente, os nomes dos diretores dos Departamentos
de Municipalidades e de Saúde.24 Essa divisão das hostes petebistas por região, efetivada por essa
consulta às bases partidárias sob essa divisão, parece também dizer respeito a manobra de alijar
Mauro e seu grupo de sindicalistas e lideranças locais de decisões importantes do partido.

21
EDISON Pitombo, líder do PTB capixaba, delcara: “Toda a nossa atenção está devotada à reestruturação do Partido e
à cooperação com o governo do sr. Jones dos Santos Neves”. A Gazeta, Vitória, p. 01, 30 jan. 1951.
22
Id. 30 jan. 1951.
23
Id. 30 jan. 1951.
24
Id. 30 jan. 1951.

1393
Mauro, durante sua presidência no partido, não foi um entusiasta dos elementos pessedistas. Sua
atuação na Assembleia passou de uma neutralidade para oposição ao então governador do Estado,
liderança forte do PSD, Carlos Lindenbgerg. Ao que parece, se Rangel Mauro não foi tirado da
presidência somente por flertar com a Coligação Democrática ou por defender um viés mais
independente para o PTB durante as eleições de 1950, sua retirada se deveu também ao não desejo
de que ele comandasse as indicações para os cargos resultantes dessa aliança. De qualquer forma, a
aliança com o PSD não parece ter sido algo defendido com entusiasmo pelo ex-presidente,
Saturnino Mauro, ficando a decisão por aquela à cargo da decisão da Executiva Nacional.

Efetivada a intervenção na direção do PTB capixaba, tratou-se de organizar um Comitê Político de


Reestruturação, figurando nele o próprio Cavalcanti, o empresário José Alexadre Buaiz e Dylo
Guardia de Carvalho.

A permanência de José Buaiz no centro de comando do PTB revela que, se este não fora um dos
interlocutores do pedido de intervenção no PTB capixaba, pelo menos, pertencente à ala de
Saturnino Rangel Mauro também não era. O empresário foi o vice-presidente do partido quando
Saturnino era o presidente. Sua permanência durante a reestruturação é sintomática, revela uma
aliança com o grupo do burocrata Pitombo Cavalcanti.

A força do getulista de primeira hora, amigo pessoal de Vargas, Edson Pitombo Cavalcanti,
adicionada a força dos recursos financeiros do homem da gaita, José Alexandre Buaiz, não foram
páreo para a liderança de Saturnino Mauro. Cabia agora, depois de retirado da presidência,
manobrar o partido de modo a neutralizar a força do sindicalista.

A hipótese defendida neste artigo é a de que o sindicalista Saturnino Mauro fora retirado pelo
partido devido às repercussões da tese nacional, defendida na II Convenção Nacional, em 1947, de
que um partido nas mãos de lideranças sindicais seria inviável. Era necessário a incorporação de
elementos de outros setores sociais, inclusive, de empresários. Nesse sentido, em 1951, durante o
processo de reestruturação partidária, o empresário e membro do Comitê Político de Reestruturação
Partidária, José Buaiz, argumentou que “[...] a vida do PTB no Espírito Santo será marcada, de
início, por um amplo movimento de reestruturação [...]”. Essa reestruturação, segundo o abastado
comerciante, seria “[...] em todos os sentidos, incluindo-se também, o voluntariado político-
partidário, destinado a receber quantos queiram fortalecer as nossas fileiras com suas adesões e sua
colaboração [...]”. Assim, parece ter havido uma mudança no recrutamento das bases partidárias.
Com os novos comandantes, as origens dos novos filiados pouco importavam, senão seu desejo de
colaborar com o maior peso da sigla. Continuando, afirma, portanto, que arregimentaria apoiadores

1394
de “todos os setores” e municípios, “[...] trabalhando, como se vê, não apenas pelo engrandecimento
do Partido mas pela arregimentação dos valores expressivos [...]”.25

No dia 25 de maio de 1951 chegava ao fim a reestruturação dos quadros do PTB capixaba.
Convocada pela Comissão Reestruturadora Estadual e seu Comitê Político, a Assembleia Estadual
elegeu o Diretório Estadual e a respectiva Comissão Executiva, com mandatos por dois anos. Antes
da reunião, porém, ocorreu a reestruturação dos diretórios municipais da capital e do interior. A
eleição da Comissão Executiva, referendou o burocrata Edson Pitombo Cavalcanti como presidente
e o empresário José Alexandre Buaiz como vice-presidente da agremiação trabalhista.

É curioso que a prometida inclusão de Saturnino Mauro na nova Comissão Executiva não se
efetivou. O sindicalista de Vila Velha era ainda candidato à Prefeitura de Vila Velha, eleição não
realizada até maio de 1951, e não exercia nenhum outro cargo eletivo. Assim, se a presidência do
PTB ficou com o burocrata, Cavalcanti, e a vice-presidência com o empresário, Buaiz, a não
participação de Mauro em eleições parece ter tirado - o que também reforça a ideia anteriormente
defendida – o foco de onde emanava sua liderança, os números eleitorais depositados em seu nome.

Retirado de qualquer posto de comando no Partido Trabalhista Brasileiro capixaba, somando-se a


derrota de sua candidatura à Prefeitura Municipal de Vila Velha, Saturnino Rangel Mauro não
suportou a pressão interna. A pouca autonomia do partido em suas seções estaduais acirrava a
convivência conflitiva entre sindicalistas, empresários e burocratas, que não chegaria ao fim. Mas,
no PTB capixaba estava definida, provisoriamente, com a aliança das forças daqueles que têm os
pesos da amizade e da gaita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A afirmação de Angela de Castro Gomes de que, diante do patrocínio oficial de Vargas à formação
do PSD e seu empenho na candidatura de Eurico Gaspar Dutra, em 1946, o PTB era visto em sua
formação como “[...] um filho dileto, porém espúrio, cujo franco e rápido reconhecimento poderia
causar problemas [...]” (GOMES, 2005, p. 283), dá a dimensão da crise que este pensamento
causaria em um partido criado sob a mística do varguismo.

Enquanto um partido carismático, em que “[...] o líder se torna para o eleitorado, assim como para
uma parte majoritária dos militantes, o intérprete autorizado da política do partido [...]”
(PANEBIANCO, 2005, p. 98), esperava-se que este elemento arbitrasse sobre suas dissidências e

25
FORTALECIDOS os laços do acordo PTB-PSD. A Gazeta, Vitória, p. 01, 28 fev. 1951.

1395
seus conflitos internos, porém, Getúlio Vargas negava ao PTB o peso de sua mão para direcioná-lo,
sob risco de despertar a ira do partido caudatário de sua estabilidade política, o PSD. Desta forma, o
nascituro partido carismático comportou sucessivos conflitos internos durante boa parte de sua
existência.

Em um momento de constante apelo à figura de Getúlio Vargas como o cimento da idealizada


harmonia organizativa, o cenário mostrou-se dificultoso para uma liderança como a de Saturnino
Rangel Mauro, primeiro Presidente do PTB estadual, tão logo se elegeu deputado, em 1947.

Mauro era ligado aos sindicatos e aos bairros operários urbanos e buscava uma atuação, senão mais
independente, de caráter menos aliancista para o PTB. Quando perdeu a eleição para a Prefeitura
Municipal de Vila Velha, cidade vizinha à capital, foi retirado de qualquer cargo de direção do
partido, embora, um ano antes, já houvesse sido retirado do comando do PTB.

O pretexto da saída de Mauro era a de que não preparou o partido com candidaturas de envergadura
eleitoral no Espírito Santo, de modo que aproveitasse a oportunidade da eleição de Vargas, pelo
PTB, em 1950.

Entretanto, como vimos, esta justificativa pode ser relativizada, já que o partido comportou o maior
crescimento de bancada na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, era a maior bancada nas
Câmaras Municipais de Vitória, Vila Velha e Cariacica e ainda elegeu um prefeito em Cachoeiro de
Itapemirim, cidade capixaba importante para a política da época.

Desde 1947 o comando nacional do PTB tentava retirar o partido das mãos dos trabalhadores, de
modo a abrir o leque das filiações partidárias, abrigando diversos segmentos sociais. O partido
também pendia para uma política de alianças com os diversos partidos que apoiassem Vargas.
Assim, a preocupação era que os trabalhadores e sindicalistas não possuíam capilaridade eleitoral.

Porém, Saturnino Mauro, até 1950, possuía uma relativa base eleitoral. Quando não disputou
nenhuma eleição, sintomaticamente, foi removido do comando da sigla e excluído do diretório
municipal por esforço de um empresário, José Buaiz, e de um burocrata, Edson Cavalcanti. Um
tinha os recursos financeiros, o outro, bom trânsito nacional.

Parece-nos, então, que a legitimação do poder do sindicalista no partido vinha das urnas. A postura
de maior independência dele pareceu ser um entrave às alianças. Sua aposta, aventa-se, foi a de
arregimentar lideranças locais, como Oscar Paulo, Domício Mendes e outros elementos do interior,
muito mais que promover alianças a outras agremiações, apostando mais na força da influência
local para os votos, que nas alianças partidárias.

1396
Mas, por isso, quando Mauro não passou pelo crivo das urnas, e ainda perdeu a eleição em Vila
Velha, em 1951, pereceu diante de outros dois interesses. Desta forma, o conflito originário na
formação do PTB nacional, revela-se em solo capixaba. Na ocasião, a ala sindicalista foi retirada do
poder por ocasião da aliança entre a ala ligada aos burocratas, “amigos de primeira hora de Vargas”,
e a ala ligada aos empresários, “os homens da gaita”. Faltava a Saturnino Mauro a força das
amizades e da gaita, restava-lhe apenas a força dos votos, dificultosa em um ambiente
marcadamente rural e oligárquico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FONTES PRIMÁRIAS

Jornal A Gazeta (1945 – 1951). Arquivo Público do Espírito Santo.

1397
Josefa Paulino: Mulher e militante camponesa em Xerém nos anos de 1950 e 1956

Luciana Andrade1

Resumo: Este artigo propõe uma análise acerca da atuação de Josefa Paulino dentro dos conflitos pela terra
na região de Xerém entre 1950 e 1956. Reconhecendo a relação que esta mulher mantinha com a Associação
Feminina Fluminense, sediada em Niterói, bem como seu envolvimento com a militância rural através da
Associação de Lavradores Fluminense, se procurará entender em que medida ela foi capaz de atuar na
articulação e mobilização de mulheres, trabalhadoras rurais, de Xerém dentro do conflito pela terra em que
estavam inseridas. Além disto, é possível que sua própria trajetória esclareça sobre as singularidades da
atuação feminina em espaços políticos rurais da época. Assim, mesmo ao olhar para o percurso individual de
alguém, perguntas, a respeito do contexto em que ela atuava, ganharam forma: É possível que tenha havido
uma articulação feminina, identificada como tal, dentro de movimentos rurais do período e local em análise?
E quais os limites para tal atuação de mulheres?

Palavras-chave: Movimentos Rurais; Mulheres; Baixada Fluminense.

Abstract: This paper proposes na analyses about Josefa Paulino’s actions inside the struggle for
land in Xerém between 1950 and 1956. Knowing the relation this woman had with Feminine
Fluminense Association, placed in Niterói, as well as her engagement with peasants movements
through Peasant Fluminense Association, we’ll try to understand how she was able to act in the
organization and mobilization of women, rural workers, from Xerém. Besides, it’s possible that her
own trajectory will throw some light on the particularities of women’s actions inside rural politic
space. So, even when we look at a individual history, questions about the context she lived in
emerge: Is it possible the existence of a woman’s articulation, known this way, inside the peasants
movements in the studied place and time? What are the limits for such participation?

Key-words: Peasants Movements; Women; Baixada Fluminense;

Introdução

Siliprandi ao tratar da questão das mulheres do campo dentro da atualidade aponta para o fato
de que estas são invisibilizadas enquanto trabalhadoras rurais e cidadãs e complementa que “seu
trabalho é considerado apenas uma ajuda dentro da família, enquanto o homem é considerado como
o verdadeiro produtor rural” (SILIPRANDI. 2011. p. 175).
Desde os anos 1980 a participação feminina em movimentos do campo tem se expandido e as
demandas por reconhecimento ganhado contornos cada vez mais claro. Ao nos deparamos com este
cenário em que mesmo após se cruzar a fronteira dos anos 2000 a luta contra a invisibilidade
feminina dentro dos movimentos sociais deste tipo ainda se faz necessária e a multifuncionalidade
feminina ainda é ignorada. Herrera aponta que ainda que exerçam atividades na lavoura e de

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
luandrade89@outlook.com.

1398
produção de alimentos, as mulheres não são consideradas como parte produtiva da agricultura e
muitas delas acabam sendo mais conhecidas como “a mulher ou filha de determinado agricultor”
(HERRERA. 2012. p. 4).
Partindo de tais análises, emergiu o seguinte questionamento: se tais perspectivas recentes
advogavam pelo não reconhecimento do trabalho feminino em meios rurais, mesmo após
manifestações de movimentos de mulheres de grande expressividade, não seria possível que boa
parte da análise feita sobre as organizações rurais anteriores a este processo estivessem impregnadas
de perspectiva semelhante? Ou seja, será que a ausência de mulheres em trabalhos acerca do que se
desdobrou nos campos não se deu em virtude desta invisibilidade da mulher e este entendimento de
que todas as tarefas femininas se limitassem ao âmbito doméstico e, por esta razão, não seriam
trabalhadoras rurais?
De fato, ainda não se fez possível, nesta pesquisa, responder a tais questionamentos. No
entanto, a mera existência deles já é capaz de conduzir a um novo ponto de vista que inclua análises
que considerem a participação feminina em cenários rurais, não apenas como extensão de seus pais
e maridos, mas como agentes que atuavam de maneira diferente da dos homens, sim, e dentro da
medida em que lhes era possível fazê-lo, mas que não estavam ausentes a estes contextos.
Será neste sentido que se debruçará sobre a trajetória de Josefa Paulino entre 1950 e 1956,
período em que esteve presente em Xerém, Duque de Caxias, e atuou juntamente ao movimento de
lavradores presente na região. Olhar para o papel desempenhado por ela pode contribuir para
ratificar a ideia de que a atuação feminina não se dava exclusivamente no âmbito doméstico,
embora possivelmente não carregava o mesmo reconhecimento sobre suas outras atividades.
Também é necessário esclarecer que se respeitará o fato de que homens e mulheres
executavam papéis distintos e regidos por limitações sociais. Tal fato não é o que se questiona no
presente artigo. O que se enseja é levantar a possibilidade de que tal divisão de tarefas talvez não
fosse tão clara como se pode julgar em primeiro momento.
Para conduzir a apresentação de tais ideias, decidiu-se abordar, primeiramente, a trajetória de
Josefa Paulino, posteriormente, a Associação Feminina Fluminense e a Associação de Lavradores
Fluminenses. Ao fim, concluiremos brevemente com os resultados do que foi possível averiguar até
o momento.

Associação Feminina Fluminense – AFF

Delcy Macedo apresenta a AFF enquanto organização apartidária, embora boa parte de suas
participantes tivesse interesse pelo comunismo. Tal fato é relevante a se ter em conta o fato de que

1399
Lydia Cunha, que foi o objeto de estudo da mencionada autora, não chegou a aderir a tal corrente
filosófica.
Macedo fala ainda que a associação dava suporte para a implementação de novos núcleos
além de apoiar os já existentes desde a sua criação. Tal fato foi verificado ao longo desta pesquisa
por meio do exemplo do caso de Xerém através da pessoa de Josefa, principalmente. A este
respeito, Macedo transcreve anotações de Lydia da Cunha, que em uma reunião do Centro da
Mulher Brasileira, de 1979 em Niterói, relembra o movimento dos anos 1950
Foi dos nossos núcleos o que desenvolveu algum trabalho entre camponeses, e aqui
temos a presença de uma amiga daquele tempo, que se dedicou a aplicar a linha de
trabalho da Associação Feminina Fluminense [...] entre as mulheres da Zona Rural
do Estado do Rio de Janeiro, notadamente na Baixada Fluminense. É a amiga
Josefa Paulino da Silva que durante vários anos viveu entre os camponeses e ali
procurava organizar as mulheres em torno de seus problemas e reivindicações.
(MACEDO. 2001. p. 183)

É notável, portanto, a função que a tratada organização assumia no intuito de mobilizar as


mulheres através do incentivo ao engajamento feminino para a militância em favor das demandas
próprias a suas realidades. Neste sentido, deve-se ter em mente o fato de que mulheres de diversos
segmentos sociais estavam envolvidas com a AFF. Amaral, por exemplo, estuda o operariado de
Niterói e aponta que “Ao percorrer territórios onde muitas vezes, o sindicato não alcançava a
Associação Feminina Fluminense desempenhou um papel importante nas lutas das mulheres
operárias em Niterói chegando inclusive” (AMARAL. 2016. p.59)
Costa (2007) apresenta os eventos promovidos pela AFF como adotando uma perspectiva de
movimento feminino democrático, ou seja, que defende a preocupação feminina com o lar e com a
família, além das pautas gerais, não femininas, e até mesmo resistentes, em alguns momentos, as
demandas sexistas por entende-las como preocupações burguesas e que ofuscam as lutas
igualitárias.
A participação de Josefa em Congressos e Conferências de Mães ou de Mulheres
trabalhadoras não podem ser compreendidas em apartado com relação à AFF. Ao que tudo indica,
esta organização inspirou o modelo de atuação que Josefa buscava implantar em Xerém.

Associação de Lavradores Fluminense – ALF

No começo dos anos 1950, emerge a Associação de Lavradores Fluminense, ALF, com sede
em Xerém. Tratava-se de organização que buscava integrar os trabalhadores rurais para demandar o
que acreditavam ser seus direitos. Esta instituição pretendia, segundo seu estatuto que data de 1952,
ter jurisdição por todo o estado.

1400
Era constante a tentativa dos habitantes das áreas rurais da Baixada Fluminense, dentre eles
Xerém, em manterem suas moradas e o que cultivavam. Enfrentavam ordens de despejo frutos,
muitas das vezes, de pedidos de reintegração de posse feitos por pessoas que entre os lavradores
eram conhecidos como grileiros. Neste sentido, diversos casos de violência e repressão foram
relatados, a exemplo do que se pode notar no seguinte fragmento

Leitão [supostamente grileiro] conseguiu do juiz de Duque de Caxias um mandado


de reintegração de posse (apesar de nunca ter tido posse nem terra em Piranema). E
com este mandado fez o despejo de oito lavradores. Os camponeses foram
expulsos, todos os seus haveres roubados e suas lavouras estão sendo carregadas
para a fazenda do grileiro. Os produtos são repartidos e vendidos pelos seus
capangas (IMPRENSA POPULAR, 10/12/1954, p.8)

De fato, a ALF era, portanto, uma forma de resistência, da qual um dos principais líderes era
José Pureza, marido de Josefa. Apesar de pretender atender a todo o estado a atuação da
organização estava mais restrita a Duque de Caxias. Ou seja, nunca atingiu plenamente, portanto,
esta sua intenção. (GRYNSZPAN. 1987).
Ainda assim, é notável o trabalho que fez entre os trabalhadores e trabalhadoras rurais de
Xerém, uma vez que passou a oferecer até mesmo amparo no que tange a alfabetização, uma vez
que a associação mantinha uma escolinha informal na região, além do apoio jurídico e de oposição
a precária situação em que viviam.
A ALF se organizava em núcleos divididos pelo distrito de Xerém, tais como, São Lourenço,
Capivari, Piranema e outros. Tal fato também pode ter contribuído para a escolha de Josefa em
manter as associações e comissões de mulheres em polos também. Além disto, a própria Josefa
relacionava os grupos femininos existentes em Xerém a ALF (GHELLER. 1997)

Josefa Paulino

Alagoana, órfã desde muito cedo, trabalhou como empregada doméstica ainda na
adolescência. Casou-se com José Pureza, que viria a ser um líder dos trabalhadores rurais bastante
significativo para a história da Baixada Fluminense (SOUZA. 2004). Mudou-se para o Rio de
Janeiro, em 1942 (GHELLER. 1997), cidade onde teve dois filhos.
A decisão de mudar-se para a “roça” partiu de seu marido, em 1947. A princípio, Josefa
permaneceu na cidade, trabalhando em uma confecção. Dez meses depois, no entanto, esta veio a
fechar, de maneira que Josefa se viu obrigada a se juntar ao marido nas terras de Xerém.
Durante o tempo em que estiveram morando afastados, Josefa se manteve cuidando dos
filhos. Segundo relatos seus em sua biografia, eles chegaram a ficar internados em um hospital em

1401
Botafogo em virtude das necessidades que lhes provocaram debilitado estado de saúde (GHELLER.
1997).
Pureza conta em sua biografia, que teria tomado conhecimento, por meio de um servente
quando exercia função de estucador, do fato de que estariam dando terras em Xerém (PUREZA.
1982). A isto, Josefa acrescenta a informação de que foi

sabendo do interesse de José por política e por tentar organizar os trabalhadores da


área rural, [que] um amigo aconselhou-o a procurar um certo Grileirinho, que, ao
contrário da maioria, ajudava na distribuição de terras. “Não era como os outros, os
verdadeiros grileiros que roubavam as terras dos pobres” (GHELLER. 1997. p. 40)

O fato, então, do interesse de José por “organizar trabalhadores da área rural” ser anterior a
sua própria mudança para o campo se destaca. Souza aponta que “a partir das orientações do PCB e
por conta do próprio desemprego, decidiu alojar-se em Xerém” (SOUZA. 2004. p. 61). A
importância da influência política em sua decisão pode ser contraposta ao fato declarado por sua
esposa, posteriormente, de que ela resistiu, à época, a mudança para uma região rural, em função
das “lembranças de sua infância no campo” (GHELLER. 1997. p. 39)
Além disso, ao ter que tomar conta dos filhos doentes e ter um emprego por dez meses
enquanto seu marido se estabelecia no campo, Josefa demonstra que embora tivesse múltiplas
funções, o cuidado com a família não deixava de ser responsabilidade sua, antes de ser a de seu
marido. E que quaisquer atividades que viesse a exercer teriam que ter seu tempo dividido com este
outro papel que compunha atribuição feminina.
Josefa participou da campanha “O petróleo é nosso” e teve participação com outras mulheres
politicamente engajadas por meio da Associação Feminina Fluminense, AFF, sediada em Niterói e
que incluía personagens de diversas profissões, regiões do estado e classes sociais. Esta atuação
parece ter motivado seu interesse por mobilizar as mulheres lavradoras.
“Enquanto José atuava na frente das associações e federação, Josefa contribuía para a
organização das trabalhadoras rurais” (SOUZA. 2004. p. 63). Segundo relatos expressos em sua
biografia, Josefa se propunha a fazer um trabalho de “conscientização e informação junto às
organizações mais distantes” (GHELLER. 1997. p. 62). Ela ia de bicicleta aos núcleos e incentivava
as comissões e associações femininas.
Esta participação ativa de Josefa direcionada a mobilização feminina é indicativo de que é
possível que outras mulheres rurais se disponibilizassem a atuar dentro da mesma proposta. É
notável, contudo, que segundo o divulgado no jornal Imprensa Popular do dia 08 de outubro de
1953, é adequado entender como essencial a influência de mulheres externas àquela região como
algo necessário à criação para a organização feminina em Xerém

1402
A união Feminina de Nova Iguaçu promoveu no dia 03 uma importante assembleia
junto as camponesas de Xerém, que também se farão representar em Porto Alegre
[Na II Assembleia Nacional de Mulheres, em 12 de outubro de 1953]. Falando
nesta ocasião, secretária da União, sra. Osvaldina Rocha, levantou as
reivindicações dos camponeses de Xerem contra os despejos das terras pelos
grileiros, por direito à propriedade, por concessão às trabalhadoras agrícolas dos
mesmos direitos concedidos às operárias industriais. Foi resolvida a criação, ainda
este mês da União Feminina de Xerém.(IMPRENSA POPULAR. 08/10/1953. P.2)

O primeiro fato a ser notado é que o jornal divulga este acontecimento de maneira a não
incluir nenhuma trabalhadora rural da região. É como se um movimento externo tivesse agido
unilateralmente para a criação deste movimento. Contudo, parece válido supor, principalmente por
não se tratar de informações contraditórias, mas, sim, complementares, que existe a possibilidade de
que lavradoras ou lavradores da região tenham facilitado este contato da organização de Nova
Iguaçu com as trabalhadoras rurais de Xerém.
Neste sentido os depoimentos de Josefa ratificam e colaboram para o entendimento de uma
militância feminina que se identificava neste fato. Isto se faz importante para entender que
possivelmente a personagem estudada neste artigo fosse proeminente entre as lavradoras da região
em que se encontrava. Contudo, seu comportamento militante talvez não tenha sido isolado, mas
acompanhado de outras mulheres.
À Gheller (1997) e a Souza (2004), Josefa relatou a importância da atuação feminina dentro
da ALF para contribuição financeira. Além disto, às mesmas autoras e em seu documentário, ela
falou a respeito da atuação feminina nos momentos em que seus maridos eram presos. Elas agiam
fazendo pressão junto a polícia para a soltura dos homens (GHELLER. 1997; SOUZA. 2004).
A divisão de tarefas, então, parece bastante clara neste tipo específico de ação, já que as
mulheres atuavam enquanto esposas demandando a liberdade de seus maridos. De fato, a própria
atuação na contribuição financeira também parece ser influenciado por esta perspectiva de que
houvessem papéis femininos e masculinos, pois ao que parece “organizavam almoços e festas com
fins de arrecadação” (SOUZA. 2014. p. 219).
Na responsabilidade pelo cuidado com a família, observado ao exemplo da saúde dos filhos, a
ida contrariada para o ambiente rural, em função da escolha do marido, que exercia o papel de
provedor da família e nas tarefas executadas por ela e outras mulheres, mesmo enquanto militantes,
relatadas às suas entrevistadoras, em momento posterior, é possível observar a posição de Josefa
enquanto mulher de sua época.
Em que pese sua trajetória passar por um período por uma vivência urbana, conforme
relatado, ela é originária de uma região rural e a amargura que sentia em função desta origem é que

1403
a influenciou a resistir em voltar para o campo. A fome que conhecia, tal qual o analfabetismo, que
ela conta ter superado por esforços próprios e de estudos sozinha, demonstram que Josefa tinha
aspectos de sua vida comuns a outras mulheres do campo contemporâneas suas. De fato, estes
mencionados aspectos afligiam tanto a mulheres quanto a homens. Note-se por exemplo o que diz
uma jovem de 16 anos, chamada Olinda Maria, também de Xerém, à entrevista ao jornal Imprensa
Popular quando da eleição do título de rainha camponesa do mesmo jornal

Do jornal nada posso dizer porque não sei ler, mas quando o pessoal lê pra mim,
gosto muito porque ensina a gente a se defender dos grileiros. Peço ao jornal para
publicar uma seção de alfabetização que ajudaria muito aos camponeses
(IMPRENSA POPULAR. 12/12/1953. p. 8)

Destaca-se o fato de que na biografia de Josefa destaca esta mobilização de arrecadação


financeira para o Imprensa Popular como ponto determinante para a expansão das organizações de
mulheres lavradoras, com a campanha sendo realizada em diversos locais, “as mulheres ganharam
com este trabalho em nível de organização” (GHELLER. 1997. p. 56).
Além disto, é notável, na fala de Olinda que a questão do analfabetismo era um fator comum
na região. Olinda se recente, na mesma entrevista publicada, do fato de não haver uma escola. Além
disto, ao dizer que o jornal “ensina a gente a se defender dos grileiros”, Olinda não divide homens e
mulheres. Ao contrário, se inclui em uma resistência reconhecida por muito tempo enquanto
masculina.
Josefa não era a única mulher atuante dentro das pautas dos trabalhadores rurais. Conforme
apontado anteriormente, o próprio fato de que houvesse as comissões femininas dentro da ALF
denuncia tal fato. Contudo, deve-se reconhecer que possivelmente Josefa destacava-se, sim, dentre
as mulheres atuantes.
Ela alista-se ao Partido Comunista em 1955, ou seja, posteriormente, ao início de suas
atividades e em 1956 vai à Áustria para a Conferência Mundial das Trabalhadoras, foi a única
representante das camponesas brasileiras a participar (GHELLER, 1997. SOUZA, 2004), o que
demonstra que ela sua proeminência entre as lavradoras.
Josefa propunha para a região, organizações femininas, mas dizia que a posição das mulheres
que só participavam da associação de lavradores devia ser respeitada (GHELLER. 1997). Isto é
importante para que se note que a militância motivada nesta identidade feminina não era unânime,
ainda que existam indicativos de que elas participassem dos movimentos de lavradores. Apesar
disto, sua participação se dava claramente no sentido da defesa das pautas de interesses de
mulheres, como se pode notar na Conferência Latino-Americana de mulheres, em que se
pronunciou a respeito das condições precárias em que viviam as camponesas

1404
sem qualquer assistência, sem instrução, trabalhando na lavoura sem horário,
sucede que por vezes dão a luz na própria lavoura, durante o trabalho. Enquanto
isso, os latifundiários pagam caros veterinários para assistir suas vacas de raça
(IMPRENSA POPULAR. 31/08/1954. P. 1)

As organizações femininas atreladas a ALF dispersaram em razão dos despejos frequentes


(GHELLER. 1997). De fato, em 1955 um grande despejo realizado na região de Xerém removeu
boa parte dos dirigentes da associação para o município de Casimiro de Abreu (GRYNSZPAN.
1987), o que provavelmente afetou a organização feminina deste local.

Conclusão

Desta maneira, por meio da história de Josefa é possível identificar indícios de que a
participação feminina no movimento de trabalhadores rurais atuante na região de Xerém não era
algo atípico. Estavam presentes a sua maneira e, por vezes, organizadas pela identidade feminina
que tinham.
Além disto, a própria trajetória de Josefa, oriunda de região rural, com histórico de privações
financeiras e violência, além do fato de não ter tido acesso a educação formal, a aproxima do que
acontecia com muitos de seus pares dentro dos movimentos de lavradores. Quando se enfoca a sua
responsabilidade sobre o que se desdobrava com a família, nota-se ainda mais sua similaridade com
as outras trabalhadoras rurais do mesmo período.
Sua história pode ser grande indicativo de que as mulheres estavam presentes dentro dos
movimentos rurais da Baixada Fluminense. Indo além, é capaz de demonstrar a importância de seu
trabalho. Se por um lado, mulheres inseridas neste contexto de disputa pela terra não tem sido
lembradas ao se recordar deste contexto da Baixada Fluminense, por outro, histórias como a de
Josefa ocupam crucial importância para o questionamento desta invisibilidade.

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1406
ESTUDO PROSOPOGRÁFICO DOS REDATORES DE PERIÓDICOS
EDITADOS ENTRE 1808 e 1831 NO BRASIL: OS CASOS DE LUIZ AUGUSTO MAY E DIOGO
SOARES DA SILVA DE BIVAR.

Luis Otávio Vieira1

Resumo: Este trabalho apresenta parte dos resultados obtidos até o momento de uma pesquisa de
mestrado em elaboração. A partir de um rol de periodistas que atuaram no período do processo de
Independência das colônias luso-americanas, estamos realizando uma prosopografia – sistematização
e cotejamento de dados biográficos coletivos – baseada na perspectiva desse agrupamento na forma
de um ator coletivo. Contemplar os dados biográficos dos periodistas em atividade entre 1808 e 1831,
buscando padrões e características através de comparações, incorre em levantar elementos da própria
Independência. Nas próximas páginas optamos por nos concentrar em apenas dois destes
personagens, Luiz Augusto May e Diogo Soares da Silva de Bivar.

Palavras – chave: prosopografia, Independência, imprensa.

Abstract: This paper presents part of the results obtained until the moment of a research of masters
in elaboration. From a list of journalists who acted during the period of the Independence process of
the Portuguese-American colonies, we are carrying out a prosopography - systematization and
collating of collective biographical data - based on the perspective of this grouping in the form of a
collective actor. Contemplating the biographical data of journalists in activity between 1808 and
1831, seeking patterns and characteristics through comparisons, incurs to raise elements of
Independence itself, and revitalize their trajectories and performances. In the next pages we decided
to focus on only two of these characters, Luiz Augusto May and Diogo Soares da Silva de Bivar.

Keywords: prosopography, Independence, press.

Este trabalho apresenta parte dos resultados obtidos até o momento de uma pesquisa de
mestrado em elaboração. A pesquisa visa contribuir no veio dos estudos biográficos e de trajetórias
de grupos de indivíduos circunscritos, mais especificamente no tocante aos publicistas brasileiros do
século XIX. A partir de um rol de 27 periodistas que atuaram no período do processo de
Independência das colônias lusoamericanas, entre 1808 e 1831 2 , estamos realizando uma
prosopografia – sistematização e cotejamento de dados biográficos coletivos – baseada na perspectiva
desse agrupamento na forma de um ator coletivo.

1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação
do Professor Doutor João Paulo Garrido Pimenta e financiando por bolsa da FAPESP.
2
Utilizamos aqui a mesma periodização utilizada na pesquisa anterior e proposta por Caio Prado Junior para cobrir o
processo de Independência, aceito por significativa parte da historiografia até hoje. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução
Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1971.

1407
No entanto, nas próximas páginas optamos por nos concentrar em apenas dois destes
personagens, Luiz Augusto May e Diogo Soares da Silva de Bivar, redatores da Malagueta e da Idade
d´Ouro no Brasil e Variedades ou Ensaios de Literatura, respectivamente. Agrupamos esses dois
indivíduos por reconhecer em ambos o tratamento de coadjuvantes dado pela historiografia.
Consideramos tratados como coadjuvantes pela historiografia os periodistas cujos nomes
frequentemente constam nas obras acerca da Independência e da história da imprensa no Brasil, mas
que não receberam estudos expressivos sobre suas trajetórias individuais ou o receberam só muito
recentemente, não conformando uma frente temática considerável. Também alocamos nesse grupo
figuras cuja importância local é assente, sendo protagonistas regionais, mas sem o mesmo apelo em
nível nacional.
A diferença entre protagonistas e coadjuvantes é bem nítida entre os periodistas que atuaram,
sobretudo, na Corte. Se por um lado, Januário da Cunha Barbosa, Joaquim Gonçalves Ledo e José da
Silva Lisboa tem grande espaço biográfico na historiografia, o mesmo não podemos dizer de nomes
como Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, João Soares Lisboa e Luis Augusto May. No entanto,
estes são três nomes no mínimo familiares e recorrentes a quem estuda o período. Seus periódicos,
os episódios marcantes de suas vidas, os grupos que integravam e até mesmo traços de suas
personalidades estão presentes em diversas obras. Todavia, carecem de trabalhos mais exaustivos
acerca de suas vidas.
E considerando a indissociável relação de mutualidade e simbiose entre desenvolvimento da
trajetória do indivíduo e da sociedade na qual está inserido, temos que atentar às características e
cursos de vida individuais significa necessariamente a observação da dinâmica social3. Pois, “tudo
aquilo que chamamos estruturas e leis sociais não são nada além de estruturas e leis das relações entre
as pessoas”4. Portanto, contemplar os dados biográficos dos periodistas em atividade entre 1808 e
1831, buscando padrões e características através de comparações, incorre em levantar elementos da
própria Independência, além de revitalizar suas trajetórias e atuações.

3
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. In:ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro Jorge
Zahar Editor, 1994. Concordamos com a crítica de Elias a rígida antítese entre indivíduo e sociedade, onde um
determinaria por outro por completo em relação de total submissão. Para o tipo de pesquisa que estamos realizando, esse
raciocínio seria inviável e transformaria ou os indivíduos em agentes autômatos dos próprios destinos, tornando a
comparação entre seus dados biográficos irrelevantes

1408
O Malagueta

É algo surpreendente ainda não haver uma biografia mais detalhada e volumosa sobre Luis
Augusto May, também conhecido pelo nome de seu periódico, Malagueta. Este foi um dos periódicos
luso-americanos mais conhecidos de sua época. Vianna, um dos poucos a se debruçar sobre o
periodista com mais afinco, reconheceu a “importância que à Malagueta atribuíram os seus
contemporâneos, e que injustamente lhe foi negada”5. Esse impresso foi um verdadeiro colecionador
de polêmicas e embates. Na primeira edição dizia:

não sou Constitucional por contracto, nem Corcunda por inclinação, nem Republicano já não
há Gregos nem Romanos; eu que fui educado à sombra da Magna Carta, e do Bill dos
Direitos do Homem; que regojisei quando vi os primeiros beneméritos da Pátria, de 21 de
agosto, tratavão de levantar a Monarquia que há hião enterrado6

Nessa retórica, firmava compromisso e apoio com o movimento constitucional português,


sendo interessante notar, antes das divergências mais acentuadas entre as Cortes de Lisboa e
interesses luso-americanos que a Revolução do Porto, não só nessa alusão da Malagueta, mas na
imprensa portuguesa de forma geral, constava como um marco temporal de regeneração do império.
Por outro lado, nesse mesmo excerto, May procurava se distanciar de identificações como
republicano e corcunda, denominações utilizadas na imprensa em grande parte das vezes com
conotação negativa e acusatória. Eram termos que mais

e impossíveis, ou em reflexos ilustrativos de forças estruturais além de sua percepção e capacidade de agência, tornando
o levantamento e comparação de seus dados biográficos um esforço nulo em termos de capacidade de explicação
histórico-social. Dito isto, adotaremos a perspectiva relacional de Elias, escapando de um antagonismo desnecessário e
sem saída. “Deve-se começar pensando na estrutura do todo para se compreender a forma das partes individuais (...) é
necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e
funções”.
4 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994, p.22.
5 VIANNA, Helio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livra, 1945, p. 503.
6 Malagueta, n° 1, dezembro de 1821.

serviam como recurso de alteridade e demérito do que para explicar e identificar positivamente o
posicionamento do grupo ou indivíduo a quem eram dirigidos. Dessa maneira, May tentava se
esquivar de possíveis críticas e afiliações a grupos já rotulados. De fato, a Malagueta procurou em
diversos momentos apresentar uma veste de isenção e imparcialidade, não se comprometendo com
um ou outro grupo, principalmente em contendas mais acaloradas. Evitava as ações mais incisivas
ou comprometedoras, como, por exemplo, a recusa em assinar a Representação para convocação da

1409
Constituinte brasileira 4 , apesar da afinidade, num primeiro momento, com João Soares Lisboa,
redator do Correio do Rio de Janeiro, veículo que mais divulgou e procurou angariar público para
esta ação.
Além disso, a formatação do conteúdo da Malagueta também era bem peculiar. Não havia
divisão por seções, e trazia habitualmente um único artigo, diversas vezes escrito em primeira pessoa
e direcionado diretamente a D. Pedro, como se fosse uma carta pessoal. O estilo prolixo muitas vezes
irritava os adversários, principalmente quando velava críticas sob o verniz de humildade e
subserviência a D. Pedro. Não raras vezes foi tachado como oportunista e ambicioso pelos seus
detratores, e outras vezes como louco e excêntrico5.
Essas acusações parecem ter transposto a documentação e achado lugar na historiografia.
Vianna não fez questão de transparecer qualquer simpatia pela pessoa de May. A narração desse autor
de alguns episódios envolvendo o periodista descreve um homem, muitas vezes, movido pela
ambição e oportunismo. Militar de formação, May passou a servir como funcionário civil nos anos
de 1810. Vianna salienta que

não querendo, porém perder o direito de acesso nos postos militares, reiteradamente se
correspondeu, a respeito, como o marquês de Aguiar, em 1816, com o Conde da Barca, João
Paulo Bezerra e Tomás Antônio de Vila Nova Portugal, todos auxiliares de D. João VI, em
1817. Pretendendo, então, ser promovido a Sargento-mor (...) obteve apenas o hábito de
Cavaleiro da Ordem de Cristo. Mas, apesar de ter sido contra aquela ideia o Conselho Militar,
em 1819, ainda no ano seguinte, sendo Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da
Marinha, insistia pela concessão do hábito da Ordem de São Bento de Aviz 9.

Décadas mais tarde, é nítida a continuidade de elementos do relato de Vianna na descrição


feita sobre May por Isabel Lustosa:

May gostava de um cargo público, de uma condecoração. Era ambicioso. Não pedia pouco.
Durante os anos de 1816 e 1817 bombardeou de cartas o marquês de Aguiar, o conde da
Barca e Tomás Antônio, ministros de D. João VI. Seu objetivo era manter o direito de
promoção nos postos militares, apesar de ter se tornado funcionário civil. Chegou a solicitar,
por aclamação de D. João VI como soberano de Portugal, Brasil e Algarves, promoção aos
posto de sargento-mor6.

Não se trata aqui de fazer uma defesa da probidade e do caráter de May, procurando desmentir
os dois excertos, ressaltando sua sinceridade e desinteresse. No entanto, achamos por necessário

4
Malagueta, n° 28, 25 de maio de 1821.
5
O Espelho, n° 120, 10 de janeiro de 1823. 9 VIANNA,
Helio. op. cit., p. 504.
6
LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia
das Letras, 2000. p.158.

1410
matizar uma possível individualização da procura por mercês, cargos e privilégios num traço de
caráter peculiar deste periodista. De uma forma geral, como apresentaremos de forma mais
aprofundada nos próximos capítulos, um traço comum das trajetórias desses periodistas era a
tentativa de penetração em ambientes, redes e ambientes de poder, seja em nível provincial ou
imperial, seja movidos por novos projetos surgidos no ambiente de crise, seja visando integrar as
práticas tradicionais. As mercês e pedidos de cargos estavam longe de ser particularidade de May.
Silva Lisboa, por exemplo, o fez em 1808 buscando uma cadeira na Casa de Suplicação7.
Januário da Cunha Barbosa requereu ao menos o cargo de bibliotecário na Biblioteca Pública 8. João
Soares Lisboa teve negado pedidos por cargos na Corte9. No Grão-Pará, Felipe Patroni juntou-se às
movimentações do movimento constitucionalista almejando um cargo na Junta provisória10. Em São
Paulo, Libero Badaró requereu ao governo imperial a cadeira de geometria do curso preparatório 11.
Mesmo perpétuo oposicionista, Cipriano Barata fez uso desse expediente, em 1831, quando preso,
assegurando o envio de um soldo para sua família por ser Dignitário da Ordem do Cruzeiro12.
A distribuição de cargos e mercês era um elemento tradicional da monarquia portuguesa,
denotando merecimento do beneficiado e reconhecimento deste pela Coroa. E essa prática continuou
após o translado da Corte para o Rio de Janeiro e também após a Independência. Aludindo à época
de 1808, Kirschner aponta que “ao distribuir mercês aos seus vassalos, nativos e emigrados, o
príncipe renovava, no trópico, a tradição da monarquia portuguesa e fortalecia a imagem paternal do
soberano”13. Inclusive, a distribuição e agraciamento de alguns com cargos e mercês em detrimento
de outros foi um dos elementos centrais das disputas entre grupos fluminenses14.
Portanto, May não agia diferente de seus pares e nem de forma aberrante ao tentar requerer à
Corte, ou por meio de abordagem de indivíduos bem posicionados nesse ambiente, mercês e cargos.
Individualizar essa prática nesse periodista, como um traço decorrente de sua personalidade, tende

7
KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa. Visconde de Cairu: Itinerários de um lusobrasileiro. São Paulo:
Alameda; Belo Horizonte, MG: PUC-Minas, 2009, 159.
8
IPANEMA, Cybelle. Januário da Cunha Barbosa: para não esquecer. In: RIHGB – 158, n.394, jan./mar. 1997, p. 226.
9
FERREIRA, Paula Botafogo. Negócios, impressos e política: a trajetória pública de João Soares Lisboa (1800-1824).
Tese de Doutorado, Campinas: Unicamp, 2017, p.95.
10
COELHO, Geraldo Mártires. Anarquistas, demagogos e dissidentes: a imprensa liberal do Pará de 1822. Bélem:
Cejup, 1993, p.24.
11
SILVEIRA, Argemiro. Alguns apontamentos biográficos de Libero Badaró. Rio de Janeiro:Typ. Universal de
Laemmert & C., 1890, p. 22.
12
MOREL, Marco. Cipriano Barata na sentinela da liberdade. Salvador. Academia de Letras da Bahia/Assembléia
Legislativa do Estado da Bahia, 2001, p. 271.
13
KIRSCHNER, T. C.. José da Silva Lisboa. Visconde de Cairu.., op. cit, 152.
14
OLIVEIRA, Cecilia H. L. S. A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-
1824). Bragança Paulista: Edusf; Ícone, 1999.

1411
ao risco de ofuscar uma prática corriqueira e comum, um hábito que permeia, ao menos, a trajetória
da maioria dos periodistas aqui estudados. No entanto, se há alguma diferença em May para que sua
fama de ambicioso e oportunista se perpetue acima dos demais, talvez esteja relacionada a própria
atividade de publicista. Como já mencionado, a Malagueta diferenciava-se de seus similares por
conter apenas um único artigo por edição, e às vezes no formato de carta escrita em primeira pessoa
para D. Pedro. Através desse padrão, May se colocava como uma espécie de conselheiro pessoal do
príncipe de maneira informal. Esse perfil voluntarioso decerto despertava reprovação de seus rivais
e a publicação dessas cartas na imprensa, procurando aproximação de D. Pedro parecia trazer ao
público as estratégias expedientes de ascensão sócial. Talvez May quebrasse um protocolo ou uma
regra de etiqueta de Corte ao levar isso aos leitores, numa época em que as noções de público e
privado estavam em constante modificação. De qualquer maneira, seria uma outra forma um tanto
mais espalhafatosa de fazê-lo, mas não a invenção de um hábito até então desconhecido e excêntrico.
Para essa e para outras questões viria em boa hora um estudo biográfico mais detalhado e
aprofundado sobre Luis Augusto May, pois a exceção de Vianna e Lustosa, tornam-se escassos os
materiais que propiciem a compilação de informações e análise sobre sua trajetória.

Acuado pelo vendaval revolucionário

Na Bahia, surge em 1811 o primeiro periódico da província, a Idade d´Ouro do Brasil. O


impresso era produzido na tipografia Silva Serva, montada pelo livreiro Manuel Antônio da Silva
Serva sob a permissão da Coroa e com o apoio do governador D. Marcos de Noronha e Brito, o Conde
dos Arcos15. Dada a proximidade com o Estado e a anterioridade ao decreto de liberdade de imprensa,
a Idade d´Ouro iniciou suas atividades como folha oficiosa. Apesar do periódico dever sua fundação
a Silva Serva, a redação ficava a cargo, principalmente, de dois escritores, Diogo Soares da Silva de
Bivar e o padre Inácio José de Macedo16.
Há de se considerar a dúvida em torno da presença de Bivar na redação do periódico. Dentre
os historiadores da imprensa brasileira, principalmente Maria Beatriz Nizza da Silva se diferencia por não
incluir Bivar entre os redatores da Idade d´Ouro17. No entanto, ainda não havendo consenso sobre essa questão,
optamos por nos escorar em Sodré, Rzzini, Vianna, Lustosa e Passos, mantendo a vinculação entre Bivar e o
periódico baiano. De qualquer maneira, mesmo sob a hipótese de Bivar não ter colaborado com a Idade

15
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p.30.
16
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil..., op. cit, p.30.
17
SILVA, Maria Beatriz Nizza da Silva. A primeira gazeta da Bahia: Idade d´Ouro do Brasil. São Paulo:
Editora Cultrix, 1978, p. 24 – 39.

1412
d´Ouro, sua inclusão neste grupo de periodistas se mantém coerente, pois o mesmo foi o responsável
por outra publicação baiana da mesma época, a Variedades ou Ensaios de Literatura, cujas duas
edições saíram no ano de 1812, e igualmente sob a proteção e aprovação do governo do Conde dos
Arcos e em concordância com os princípios da Corte do Rio de Janeiro18.
Sobre Bivar, seu nome consta em diversos trabalhos acerca da História da Imprensa e da
independência, sobretudo pelo pioneirismo da Idade d´Ouro e da Variedades. No entanto, maiores
informações sobre esse periodista só podem ser recolhidas de pouco em pouco, procurando em
dicionários biográficos, documentação e breves ensaios biográficos, faltando ainda um relato de
maior fôlego e centrado sobre sua trajetória. Infelizmente essa lacuna persiste mesmo a vida de Bivar
ter sido um caso exemplar de contato com a experiência revolucionária nos dois lados do Atlântico.
Bivar nasceu em 1785, na antiga província de Estremadura, em Portugal. Era filho do médico
Rodrigo Soares da Silva de Bivar, e o sobrenome da família indicava ou procurava indicar
pertencimento a linhagem do nobre castelhano Rodrigo Dias de Bivar, eternizado como o herói
medieval hispânico El Cid19. Sendo ou não verídica a descendência, a família tinha laços com o alto
escalão do corpo político do Império, uma vez que o Rodrigo português tinha entre seus pacientes
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio-irmão do Marquês de Pombal. Essa proximidade
salvou o medico durante uma devassa em que esteve envolvido20.
Formado em leis por Coimbra, Diogo Soares da Silva de Bivar seguiu trajetória comum aos
recém-egressos da universidade, ocupando cargos da administração. Tinha entre outras incumbências
a de Inspetor de Plantação de Amoreiras em Estremadura21. Todavia, o vendaval revolucionário da
virada do século XVIII para o XIX afetou diretamente a trajetória de Bivar. Ainda em 1807, mal a
família real fugira para a América, o futuro periodista recebe um novo e importante cargo, o de juiz
de fora em Abrantes. Todavia, foi nomeado pelo líder da invasão francesa, general Junot, que em
1808 foi tornado Duque de Abrantes. Não sendo o suficiente, Junot permaneceu hospedado na casa
de Bivar22. Dessa vez, as boas relações familiares não foram o suficiente para salva-lo, e após a
expulsão dos franceses foi processado por alta traição. Durante o inquérito alegou ter hospedado de
Junot se deu por meio de coação e que graças a essa aproximação os prejuízos para Abrantes, durante

18
VIANNA, Helio. Contribuição à história da imprensa brasileira ..., p, 15.
19
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar, degredado, jornalista, advogado e censor. Jornal do Commercio. Rio
de Janeiro, 22 de jan. de 1960.
20
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.
21
PASSOS, Alexandre. O conselheiro Diogo de Bivar. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 7 de fev. de 1965.
22
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.

1413
a invasão, não foram maiores. A explicação não surtiu o efeito desejado e o réu foi condenado ao
açoite, degredo em Moçambique e ao confisco dos bens23.
No entanto, conseguiu evitar o açoite, e o degredo não foi tão radical quanto a pena previa
inicialmente. Para tanto, novamente foram decisivas as redes de sociabilidade em que estava inscrita
a família Bivar. Entre os indivíduos próximos nessas redes estava o governador da Bahia e último
vice-rei do Brasil, o Conde dos
Arcos. Quando o navio que o transportava para o degredo aportou na Bahia, Bivar por lá ficou sob a
proteção do governador24. Noronha usou de sua influência e proximidade com D. João para interceder
em favor de seu protegido, tentando alterar e reverter a pena de degredo 25. De início conseguiu que
local de cumprimento da pena fosse trocado para a Bahia, e anos mais tarde, em março de 1821, por
decreto do rei, teve sua liberdade assim como todos os seus direitos, prerrogativas e honras
restituídas26.
No entanto, desde 1811, já redigia o Idade d´Ouro e prestava seus serviços como advogado.
Também redigiu e publicou, em 1812 , o Almanaque da Bahia, além da Variedades27. Portanto,
mesmo antes de recuperar a plena liberdade e ter a pena perdoada, Bivar já havia não só fixado raízes
na Bahia através de suas ocupações, como também pelo matrimônio com D. Violeta de Lima, que de
acordo com Vianna, pertencia “a uma das boas famílias de Salvador” 28. Não está claro o cotidiano
deste condenado e cada vez mais entrosado habitante da Bahia. Se suas atividades, inclusive de
periodista, eram realizadas no cárcere, estamos diante de um caso pioneiro, já que Barata e Soares
Lisboa só o viriam fazer após 1822.
De qualquer maneira, o até algum tempo atrás traidor e degredado consegue, através dos
acessos permitidos pelas redes que provinham da sua origem familiar, tornar-se um respeitável súdito
e morador de Salvador, fincando raízes e adentrando as redes de interdependência dos poderes locais,
seja através das atividades realizadas para o governador e a proteção deste, seja pela inserção em uma
das famílias proeminentes pelo matrimônio.
No entanto, Bivar terá sua trajetória novamente agitada pelos ventos das revoluções. Em
fevereiro de 1821, a Bahia aderia oficialmente ao movimento constitucional deflagrado com a

23
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.
24
PASSOS, Alexandre. O conselheiro Diogo de Bivar ... op.cit.
25
BN - Ofício ao conde dos Arcos remetendo para ser informado pelos governadores do reino o requerimento em que
Diogo Soares da Silva e Bivar pedia comutuação da pena de degredo. Rio de Janeiro : [s.n.], 05/11/1814.
26
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.
27
RIZZINI, Carlos. Livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1500-1822: com um breve estudo geral sobre a informação.
São Paulo: Imprensa Oficial, 1988, p.336
28
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.

1414
Revolução do Porto no ano anterior. Mesmo mantendo a fidelidade ao rei, a nova Junta de governo
que havia aderido à revolução, trazia à tona em manifesto uma série de descontentamentos,
enfatizando os pesados tributos, miséria do povo, ruínas da agricultura, comércio e navegação e
também a corrupção dos magistrados29.
Sabendo que a Idade d´Ouro foi regularmente publicada até 1823, o periódico dificilmente
passaria incólume pelos extraordinários acontecimentos. Se de início o compromisso do impresso era
com a monarquia, a Corte, e a família real, nota-se em suas páginas uma alteração sensível em 1821:

Reunidas todas as forças na Praça do Governo, subirão todos os Officiaes para a Sala da
Camara, aonde intallarão hum Conselho Supremo Militar, e mandarão chamar o Senado da
Camara para se elegerem os Membros do Governo Provisional com as formalidades
praticadas em simelhantes casos. Eleitos os Membros do Governo, e feito o juramento na
forma mencionada abaixo, começarão a repicar os sinos, e huma multidão incalculável de
gente grada, e miúda gritavão cordiais Vivas a El – Rei Nosso Senhor, à Religião Catholica,
e à Constituição pela qual ficarão hipothecadas as nossas vidas. O novo Governo entrou logo
em Suas Sessões nas quaes resplandece huma energia que só tem modelo nos Campos de
Ourique, e na Igreja de Almacave. Ah! Climatistas...a Bahia desmentio vosso systema, a
força não está nos nervos e na influencia da atmosfera; está na opinião moral, e no grão de
luzes que é o barômetro da verdadeira valentia 30.

A constituição e o novo governo, conforme a descrição do periódico, trazem uma nova energia
e vitalidade para a Bahia. A retórica coaduna com a utilizada por uma série de outros periódicos à
época, associando a Revolução e o movimento constitucional a uma regeneração do Império. Daí
para frente os laços entre o governo provincial baiano e as Cortes de Lisboa mantiveram-se até 1823.
De acordo com Argemiro de Souza Filho:

Al parecer, la adhesión de Bahía al constitucionalismo portugués era mucho más fuerte que
la corte en Río de Janeiro lo había pensado. Las decisiones inmediatas reiteraron esa perspectiva. La Junta
determinó que las villas y comarcas baianas confirmaran la adhesión a las Cortes liberales, aumentó los sueldos
de las tropas, decretó que la prensa local quedaría bajo la censura de una comisión, además de hacer contacto
con otras capitanías cercanas. Estas y otras intervenciones potenciaron la formación de un ambiente político,
que iba más allá de la capital y del Recôncavo y que le daba mayor complejidad a la manifestación de la crisis
en territorio baiano31
Entre diversas mudanças e instabilidades, a redação da Idade d´Ouro continuava formada pelo
padre Inácio e por Bivar, mesmo não estando mais alinhada a um governo provincial escolhido
diretamente pela Coroa. Por outro lado, se não estava mais tão inclinado à Coroa, estava
definitivamente comprometido com o novo governo provincial e às Cortes. Pela permanência de

29
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de; SOUSA, Maria Aparecida Silva de . La Independencia de Brasil en Bahía:
dimensiones políticas y conflictos (1821-1823). In: Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, 2013, p.118.
30
Idade D´Ouro do Brazil, n° 13, 13 de fevereiro de 1821.
31
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de; SOUSA, Maria Aparecida Silva de . La Independencia de Brasil en Bahía ...
op. cit; p.119.

1415
Bivar na redação do periódico, sustentamos que assim como era sua boa sua posição e prestígio na
configuração do poder local anterior à adesão, esta assim permaneceu. Ainda subsidia essa
proposição – mesmo sob a hipótese do periodista não ter colaborado com a Idade d´Ouro - o fato de
Bivar ter sido um dos membros da comissão de censura estabelecida pelo novo governo32.
Ainda em 1821, em abril, o rei retorna a Portugal, e em setembro são eleitos os deputados
baianos às Cortes de Lisboa, e, por fim, em novembro, “algunas personas intentaron deponer la Junta
Provisional acusada de practicar actitudes conciliatorias con las medidas aprobadas por las Cortes de
Lisboa que atentaban contra los intereses locales33”. Contradizendo a narrativa da Idade d´Ouro, as
turbulências ressurgiam na Bahia, havendo divergências graves entre governo e parte da população.
O ambiente revolucionário se desenvolvia em solo trêmulo, nada era definitivo e a incerteza
mantinha-se sempre em cena.
Bivar se desvencilha das suas atividades de periodista e advogado na Bahia e, a despeito de
ter criado fortes vínculos familiares na província, parte para a capital fluminense34. Segundo Vianna,
“trazido por importantes negócios pertencentes à sua profissão de advogado, transferiu-se para o Rio
de Janeiro”35. Não negando a motivação ensejada pela advocacia, contudo, aventamos a possibilidade
de haver nessa transferência um posicionamento e uma escolha política frente as possibilidades de
futuro.
A ocupação de advogado não era tão prestigiada à época quanto um cargo na magistratura ou
na alta burocracia36. Na Bahia, Bivar era um periodista prestigiado e incorporado à esfera do poder
político o suficiente para ser designado a compor a comissão de censura na província. No entanto,
anteriormente as idas e vindas das incertezas do ambiente revolucionário já haviam lhe colocado em
posição privilegiada para depois jogá-lo na infâmia. Foi sucessivamente burocrata do império, juiz
de fora durante a ocupação francesa, traidor condenado, protegido pelo alto escalão político real,
redator comprometido com a família real, redator e censor comprometido com a causa constitucional.
E em 1821, as rixas internas entre diferentes grupos de interesses presentes na província levavam a
contingentes excluídos do governo a identificar uma liderança de D. Pedro para reforçar seu projeto

32
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.
33
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de; SOUSA, Maria Aparecida Silva de . La Independencia de Brasil en Bahía ...
op. cit; p.120.
34
Não encontramos o mês exato desta mudança ocorrida ainda em 1821.
35
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.
36
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem/teatro das sombras. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p.175.

1416
alternativo, ressaltando que “eso no significaba la existencia de un proyecto político de autonomía en
relación a las Cortes Generales de Lisboa ni de concretización de la Independencia del Brasil37”.
Todavia, um ambiente de grupos em conflito - onde o dominante encampava compromisso
com as Cortes, ainda que não questionasse a lealdade com a Casa dos
Bragança, e um outro, de oposicionista, sem questionar a autoridade das Cortes de Lisboa, apontava
como alternativa a figura de D. Pedro -, e onde o horizonte de possibilidade era plural e incerto,
havia o indicativo de uma possível queda de braço envolvendo o governo local e um grupo hasteando
como bandeira a figura do príncipe. E, de fato, essa situação foi progressivamente se desenhando.
Mais tarde, sozinho na redação do periódico, padre Inácio seria um ferrenho defensor do general
Madeira, rechaçando o projeto de adesão ao Rio de Janeiro38. Mais ainda, como destacou Marisa
Saenz Leme, a conformação das Juntas em território luso-americano pode ser dividida em dois tipos
de novos governos, as revolucionárias e as oficiosas. O critério de categorização é a relação dessas
novas Juntas com a Corte do Rio de Janeiro. As juntas revolucionárias formaram-se de forma mais
independente (como Maranhão, Pará e Bahia), enquanto as oficiosas de algum modo negociaram com
o aval da Corte (como São Paulo e Minas Gerais)39. Sob essa perspectiva, havia um distanciamento
entre governo provincial baiano e Corte cujo desenvolver do processo revolucionário poderia acirrar,
e de fato, acirrou.
Sendo, através da imprensa, porta-voz do governo local, Bivar poderia novamente se indispor
com a família real, como já havia experienciado, mesmo após ter sido inclusive beneficiado pela
clemência do rei. Parece que além de ter interesses ligados à sua carreira de advogado, o periodista
ao mudar-se para o Rio de Janeiro, fazia uma escolha, quase uma aposta, sobre onde se posicionar na
torrente de incertezas revolucionárias, com base na configuração do momento e na sua experiência
passada recente.
Uma vez na capital fluminense, Bivar tentou novamente acessar indivíduos de sua rede de
sociabilidade que pudessem lhe facilitar o acesso e a proximidade com a Corte. Entrou em contato
com Luiz Augusto May, redator da Malagueta e funcionário da Secretaria de Negócios da Marinha40.
O periódico O Espelho, no famoso e grosseiro artigo intitulado “Calmante no Malagueta”,

37
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de; SOUSA, Maria Aparecida Silva de . La Independencia de Brasil en Bahía ...
op. cit; p.121.
38
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil..., op. cit, p.30.
39
LEME, Marisa Saenz. A construção do poder de governo na Província de São Paulo e o Estado em formação no Brasil
independente: entre a Revolução do Porto e a outorga constitucional. In: ODALIA, Nilo;CALDEIRA, João Ricardo de
Castro. (Org.). História do Estado de São Paulo/ a formação da unidade paulista. São Paulo: Editora UNESP/Arquivo
Público do Estado/Imprensa Oficial, 2010, p. 373. BERBEL, Marcia Regina. A Nação Como Artefato. São Paulo: Hucitec
/ FAPESP, 1999. BERBEL, Marcia Regina. Independência do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva, 1999.
40
LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos.. op, cit.,; p.302.

1417
provavelmente escrito por D. Pedro, um declarado ataque a May por conta de suas críticas ao
governo, indica o pedido de auxílio de Bivar ao polêmico redator, assim como demonstra que sua
pecha de traidor ainda não havia sido apagada totalmente:

a pele que possuía em tal parte não é a mesma que agora tem depois da saída de Junot, visto
ter levado uma formidável roda de açoites nos pelourinho em Lisboa, como foi público por
traidor à Nação(...) E o Sr. Malagueta é íntimo amigo dele, como de todos os marotos 41.

Todavia, o grande alvo do artigo era May. Mesmo atentando a permanência da memória da
traição de Bivar, procurava através desta desqualificar o Malagueta. Assim, ainda que não tenha
chegado aos pontos mais altos da vida política estatal, não tendo exercido mandatos no legislativo e
nem tendo sido nomeado a ministérios, Bivar obteve sucesso em alcançar alguns cargos, aproximar-
se do convívio da Corte e adquirir algum prestígio, mesmo com essa marca negativa em sua biografia.
Em 1824, foi nomeado um dos juízes do Conselho de Jurados para excessos de liberdade de imprensa.
Também foi nomeado comissário do Brasil para a liquidação das reclamações do governo dos EUA
na questão das presas marítimas da guerra contra as Províncias Unidas do Rio do Prata42. Obteve
títulos das ordens da Rosa e de Cristo e atuou como administrador do patrimônio de Domitila de
Castro, a Viscondessa de Santos. Além disso, foi um dos sócios fundadores do IHGB assim como
também fundou, em 1843, o Conservatório Dramático, instituto com atribuições de censura para com
a dramaturgia e que recebia subsídios do governo43. Por fim, em 1846, foi nomeado ao Conselho do
Império44.
Dessa maneira, a partir de 1821, Bivar inicia uma maior aproximação da Corte e da família
real, saindo de Bahia, onde estava estabelecido como porta-voz do governo provisório e onde havia
estabelecido laços familiares através do casamento. Inclusive por sua trajetória pregressa, para Bivar,
a tradição monárquica e o ambiente da Corte, com o qual já tinha alguma penetração, parecem ter se
mostrado um espaço mais seguro diante do horizonte revolucionário prenhe de incertezas e numa
província onde a instabilidade política, advinda do embate de grupos rivais, vinha se fazendo
presente. É significativo ressaltar que a opção de Bivar pela Corte, não se deu de forma conflituosa,
pois não se juntou aos que começavam a levantar o estandarte do príncipe na Bahia. Bivar não muda
de posição na configuração provincial, simplesmente abandona a Bahia para tentar inserir-se na
configuração fluminense.

41
O Espelho, n° 120, 10 de janeiro de 1823.
42
VIANNA, Helio. Diogo Soares da Silva de Bivar... op, cit.
43
LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos.. op, cit.,; p.467.
44
PASSOS, Alexandre. O conselheiro Diogo de Bivar ... op.cit.

1418
Considerações Finais

A partir de uma breve recuperação da trajetória desses dois indivíduos colocando-as em


perspectiva conjunta podemos inferir algumas proposições. Mesmo o pouco que a historiografia
deixou sobre a trajetória individual de ambos pode ser reintegrado em conjunto com seus pares
(outros periodistas) e algumas observações e novas hipóteses podem ser levantadas, como a
matização da ganância de May quando comparada com as ações de outros periodistas e a motivação
da mudança de Bivar da Bahia para o Rio de Janeiro tendo em conta a triangulação política entre
Lisboa, a Corte fluminense e a província nordestina.
Nos dois casos também é notável as possibilidades proporcionadas pelo envolvimento com o
periodismo. Para além dos meios possíveis, antes da liberdade de imprensa, para ascender
socialmente e fazer-se presente na discussão política, May acha na imprensa autoral e de opinião um
modo de tentar colocar-se e aproximar-se da esfera do poder, quando não diretamente ao príncipe. O
periodismo, ainda não livre antes de 1820, também proporcionou a Bivar a fincar raízes em solo
baiano e colocar seu nome em evidência em nível provincial. Mais tarde, com a polarização crescente
entre Cortes de Lisboa e Corte do rio de Janeiro, para a aposta política de Bivar o mais adequado é
afastar-se do periodismo baiano.
Portanto, o desenvolvimento do processo de Independência, assim como as novas e velhas
estratégias de ascensão sociais coexistindo são notáveis ao nos debruçarmos nas trajetórias
individuais de Bivar e May, escorando-se sempre que necessário nas trajetórias de seus pares. Logo,
entre a revitalização de trajetórias há muito não revistas pela historiografia e a apreciação do processo
de Independência sob a escala dessas trajetórias obtém-se um ganho duplo.

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1420
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do Commercio. Rio de Janeiro, 22 de jan. de 1960.

1421
MILITARES NA POLÍTICA: DEBATE SOBRE A VENEZUELA CHAVISTA

Luiz Fernando Silva*

Resumo: A transição do século XX ao XXI testemunhou a ascensão política de grupos políticos


alinhados com as Esquerdas em várias partes importantes da América Latina. Esta onda de
Esquerda foi inaugurada com e eleição do tenente-coronel Hugo Chávez Frias ao cargo mais
importante da República da Venezuela, em dezembro de 1998. Chávez venceu as eleições com a
proposta de “refundação” da República, o que iniciou em 1999, com a promulgação de uma nova
Constituição, dita Bolivariana. O presente trabalho, fruto de pesquisas iniciais do curso de
Doutorado em História do PPGH-UERJ, com fomento da FAPERJ, visa traçar as linhas gerais da
presença e da participação das instituições militares e de seus membros como base da chamada
Revolução Bolivariana, durante o Governo Chávez.

Palavras-chave: militares; esquerda; Venezuela

Abstract: The transition from the twentieth to the twenty-first century witnessed the political rise of
political groups aligned with the Left in several important parts of Latin America. This Left wave
was inaugurated with and election of Hugo Chávez Frias to the most important position of the
Republic of Venezuela in December 1998. Chavez won the elections with the proposal of
"refounding" the Republic, which began in 1999, with the promulgation of a new Constitution, said
Bolivarian. The present work, the result of initial research in the PhD in History of the PPGH-
UERJ, with the support of FAPERJ, aims to outline the presence and participation of military
institutions and their members as the basis of the called Bolivarian Revolution, during the
Government Chavez.

Key-words: militaries; Left; Venezuela

*
Doutorando em História pelo PPGH-UERJ sob orientação da profa. Dra. Érica Sarmiento da Silva e Rafael Pinheiro
de Araujo; bolsista FAPERJ; email: prof.luizfernandosilva@gmail.com

1422
1 - Introdução
Apesar de a análise do governo de Nicolás Maduro não ser objeto de minhas pesquisas até
agora, para analisar – no âmbito da História do Tempo Presente – a participação dos militares na
Revolução Bolivariana, não se pode ignorar o contexto atual.
Podemos considerar que os governos bolivarianos – do ex-presidente Hugo Chávez e do
atual presidente Nicolás Maduro – como um socialismo pretoriano. Este conceito é a chave de
compreensão para o processo político inaugurado na Venezuela com a eleição de Chávez à
presidência, em dezembro de 1998.
O conceito de socialismo, sabe-se, ser amplo e polissêmico, servindo a várias ideologias e
ramificações político-partidárias. Entretanto, todos as definições e ramificação ideológicas do
socialismo convergem para um mesmo objetivo, a saber, a construção de uma sociedade igualitária,
que, embora respeitasse o indivíduo, não abriria mão do protagonismo da coletividade.
Mesmo com a falência do Socialismo real, na transição da década de 1980 para a seguinte,
com a queda do Muro de Berlim, a unificação da Alemanha e esfacelamento do bloco soviético, o
ideal socialista sobreviveu ao novo milênio em muitos lugares. A América Latina dos anos 1990,
ainda assustada pelos fantasmas dos regimes ditatoriais impostos pelas Direitas com o apoio
estadunidense num contexto de Guerra Fria, foi um terreno fértil aos projetos de igualdade e
inclusão sociais que o capitalismo e o neoliberalismo eram incapazes de dar conta.
Na Venezuela, de forma específica, esta ineficiência do Estado se fez sentir durante o último
governo de Carlos Andrés Perez (1989-1993), quando um pacote de austeridade fiscal foi baixado
pelo presidente, dias depois de sua posse, ocasionando uma revolta popular espontânea, crítica à
política econômica neoliberal adotada pelo governo. Os protestos populares ficaram conhecidos
como El Caracazo e foram duramente reprimidos pelas forças de segurança de Perez, em fevereiro
de 1989, deixando um saldo de dezenas de mortos e centenas de feridos.
O desejo de humanizar o capitalismo, contrapondo ao neoliberalismo uma política
econômica autônoma e alternativa, de dar vazão as demandas sociais apresentadas pela população
durante o Caracazo de 1989, e de restabelecer a importância política dos militares como baluartes
da ordem, da pátria, da soberania e da integração regional sob os auspícios do pensamento
oitocentista de Simon Bolívar, pai da Pátria, culminaram com a frustrada tentativa de golpe de
Estado perpetrada por oficiais da Academia Militar, dentre os quais seu líder – tenente-coronel
Hugo Chávez Frias – ganhou notoriedade imediata, e a possibilidade de apresentar ao país um
projeto que passava ao largo do sistema político-partidário até então vigente na Venezuela.

1423
Dez anos após a queda do Muro e do fracasso mundialmente comentado do Socialismo real,
Chávez tomava posse do cargo de presidente da República. O projeto de Chávez – um socialismo
bolivariano – buscava ressuscitar o interesse dos venezuelanos pelo Socialismo, reajustando àquela
ideologia às demandas nacionais.
O governo Chávez, logrou o que ninguém jamais lograra na História republicana da
Venezuela: aumentar vertiginosamente as receitas do Estado graças a uma política petroleira que
permitiu o aumento de preço do barril do petróleo no mercado internacional – “recriação” da OPEP
– e, o uso destes mesmos recursos para cumprir uma das principais promessas de campanha, a
saber, a implementação de política social de inclusão da parcela mais pobre da população
(camponeses, indígenas, operários, moradores dos subúrbios das grandes cidades, mulheres etc.).
Mesmo tendo executado com sucesso sua política social, a aprovação da Constituição
Bolivariana, no final de 1999, permitiam ao governo estatizar boa parte da economia, iniciando o
processo com a estatização das grandes empresas presentes na Venezuela, elevando dramaticamente
os gastos públicos. O Estado inchou na tentativa de erradicar a fome, a pobreza, o desemprego, o
déficit habitacional e o analfabetismo, e entrou em colapso quando o preço do petróleo despencou.
Neste novo conceito de Estado trazido pela Carta de 1999, percebe-se a implementação do
pretorianismo. Para explicar tal conceito, o historiador venezuelano Thomas Straka entende
pretorianismo como uma relação na qual o poder dos militares excede, na prática, os limites
estabelecidos pela lei, de modo que a influência dos militares em campos tradicionalmente civis se
expande desordenadamente, a ponto de não poder ser controlada pelas autoridades civis.1
O conceito de pretorianismo é então diferente do de Estado aquartelado (Estado Cuartel) no
qual se militariza a sociedade como um todo. No pretorianismo, a sociedade civil funciona
normalmente porém se deixa tutelar pelos militares que, por sua vez podem ou não exercer
diretamente o poder. Desta forma, o pretorianismo foi a marca das grandes ditaduras do Cone Sul
entre os anos 1960 e 1990, caracterizadas por governos diretamente exercidos pelos militares –
ainda que tivesse, em alguns casos, amplo apoio de parcelas da sociedade civil; e também de
regimes de exceção, como o vigente na Coreia do Norte, no qual as decisões políticas, sociais e
econômicas estão, de alguma forma, à mercê das decisões militares.
Raramente, um governo exercido por um militar – mesmo da reserva – consegue manter-se
distante das demandas da caserna. O governo de Chávez não logrou ser exceção. Sua notoriedade
se deu exatamente por ser um oficial do Exército que, segundo o imaginário chavista, se arriscara

1
STRAKA, Tomás. “El socialismo pretoriano”. Nueva Sociedade: democracia y política en América Latina. Caracas,
nº 262, Agosto-2016 disponível em http://nuso.org/articulo/el-socialismo-pretoriano/ acessado em 18 de agosto de
2017.

1424
pelo bem do povo; que fora preso e condenado por lutar ao lodo dos venezuelanos; que viu sua
brilhante carreira militar findar-se pelos ideais que o levaram a tentar dar um Golpe num governo
corrupto, ineficaz e desorientado.
A influência dos militares era clara, pública e notória no Governo Chávez. Um sem par de
vezes, o próprio presidente ostentava um uniforme militar durante cerimônias públicas oficiais –
especialmente aquelas voltadas para uma audiência militar. Por outro lado, o presidente preferia ser
chamado de “Comandante”, o que reforçava a aliança entre sociedade civil e os militares.
Em dado momento, o sucesso do programa de governo de Chávez será causa de uma
polarização político-ideológica em seu país. A moderação perdera espaço no cenário político para a
radicalização e o fanatismo partidário. Ou se era chavista ou não. Sem meios termos naquela
disputa, as direitas se utilizaram da insatisfação das classes médias e dos funcionários da estatal de
petróleo – PDVSA – para pressionar o governo com manifestações e greves, ao passo em que as
entidades patronais, a grande mídia e o empresariado cooptava uma parcela conservadora de
militares para remover o presidente.
O Golpe de abril de 2002 se alicerçou em todos esses elementos, porém a articulação
construída pelos aliados do Governo entre os militares e as populações dos barrios caraquenhos
garantiu um contra-golpe que, reestabeleceu Chávez na presidência e, perseguiu os participantes do
golpe. Se por um lado o presidente determinava um expurgo nas Forças Armadas, por outro lado,
confiava os principais postos no Governo – incluindo aí a presidência da PDVSA.
2 – O Movimento Bolivariano entre os militares
O processo político da Venezuela nomeado por Hugo Chávez de “Revolução Bolivariana”,
termo este construído a partir da apropriação e ressignificação do ideário político de Simon Bolívar.
Durante a campanha eleitoral de 1998 e em seu discurso de posse (1999), Chávez fez referência ao
seu bolivarianismo, cujo objetivo era “refundar” a República e, reestruturando-a segundo os ideais
dos artífices da memória coletiva e identitária venezuelana, abolir o modelo político-administrativo
vigente desde 1958 por meio da substituição da Carta de 1961 por uma nova, elaborada, aprovada e
referendada e promulgada em dezembro de 1999, dando início a V República ou República
Bolivariana.
A Constituição de 1961, mesmo com suas emendas, não discute diretamente a questão
militar da IV República venezuelana. Isto é, aquela geração de constituintes não desejou realçar,
em momento algum, papel das Forças Armadas na construção ou consolidação daquela estrutura
político-administrativa. Ao contrário, buscaram tratar a questão com discrição no texto
constitucional, que definia que a responsabilidade da manutenção, coordenação e fiscalização da
ação dos militares seriam compartilhadas entre o poder Executivo nacional e o Legislativo: ao

1425
presidente da República, caberia chefiar as Forças Armadas e fixar seu efetivo; ao passo que a
promoção e nomeação dos oficiais generais dependeria da aprovação dos senadores.
Baseado nos ideais bolivarianos do processo de construção e consolidação do Estado-nação
venezuelano, Hugo Chávez associou em seu projeto pensamentos de diversas tendências. Para
conciliá-los em prol a seus objetivos políticos, o ex-presidente conduziu um processo de releitura do
pensamento político de Simon Bolívar, um dos maiores próceres da Independência da América do
Sul espanhola, no século XIX.
Hugo Chávez se apropriara do pensamento de Bolívar de forma a legitimar suas ações à
frente do governo venezuelano, assim como outros fizeram ao longo da construção, consolidação e
modernização do Estado venezuelano. Para além desta apropriação, o bolivarianismo de Chávez
fora consequência de uma releitura, de uma representação do pensamento original do Libertador.
Chávez ignorava aspectos desfavoráveis de Bolívar, ao passo que enaltecia e supervalorizava
aqueles que pudessem corroborar um novo quadro socio-político descortinado a partir da sua
ascensão.
É impossível desvincular o movimento bolivariano de sua origem essencialmente militar,
nos idos da década de 1970. Durante o primeiro mandato de Rafael Caldera (1969-1974) houve
uma reformulação da educação aplicada na Academia Militar, cujo novo programa faria de Chávez
e de seus companheiros de caserna licenciados em Ciências e Artes Militares, abrindo as portas da
oficialidade também a elementos das camadas mais humildes da população. Ao mesmo tempo, a
formação destes oficiais era voltada para o nacionalismo, para o culto ao Libertador, para o resgate
da dignidade militar. Paralelamente a isto, a nova tendência de formação do oficialato venezuelano
propiciava o surgimento de cadetes com visões críticas ao status quo não só das instituições
militares, como também do governo e da própria estrutura do Estado. No decorrer dos anos de
Academia, os cadetes passariam da crítica reflexiva a atividade considerada subversiva, na década
seguinte, segundo Chávez, graças à certeza que pairava sobre aqueles jovens de que eles seriam a
geração vocacionada a “herdar as glórias do Exercito Libertador”.
Hugo Chávez antes de ser um político, estava imbuído do espírito da caserna, da disciplina,
das ordens, rigor e orgulho militares, do nacionalismo, do bolivarianismo. Ele “entende a alma do
Exército, pois faz parte desta alma”.2 Por isso, entendia que a revolução que conduzia na
Venezuela desde sua eleição em 1998 até sua morte em 2013, teve, obrigatoriamente, nas Forças
Armadas uma das suas bases de sustento mais sólidas.

2
GOTT, Richard. A Sombra do Libertador: Hugo Chávez Frías e a transformação da Venezuela. São Paulo: Ed.
Expressão Popular, 2004, p.281-282.

1426
O culto a Bolívar e as reflexões sobre o seu pensamento político e seu legado na Venezuela
estavam se espalhando em diversos setores da sociedade e das instituições. Todavia, esta memória
coletiva foi canalizada para a discussão política pelos militares, em especial e mais concretamente
pelo grupo de reflexão e debates liderado por Hugo Chávez na Academia Militar.
O grupo de Chávez fundou em 1982 o Ejército Bolivariano Revolucionario 200 (EBR-200)
que logo se tornou o Movimiento Bolivariano Revolucionario 200 (MBR-200), parafraseando o
famoso juramento de Bolívar no Monte Sacro (1805) de libertar o povo venezuelano da opressão
dos poderosos. Em sua companhia estavam Jesús Urdaneta, Felipe Acosta e Raul Baduel, que
ocuparam cargos estratégicos no governo Chávez.
Durante os anos que seguiram a fundação do MBR-200, seus líderes se empenharam em
elaborar uma ideologia suficientemente forte e complexa capaz de doutrinar seus membros, com
base não apenas no pensamento político de Simon Bolívar, mas também nos de Ezequiel Zamora e
Simon Rodriguez, ou seja, “três personagens típicos do liberalismo político latino-americano do
século XIX”.3
O estudo sistemático destes três personagens históricos venezuelanos deu origem à chamada
doutrina da “árvore das três raízes”, uma vez que, cada um de seus atores representam, para os
membros do MBR-200, um desdobramento da luta contra o imperialismo, contra a opressão
oligárquica e, por fim, representavam a necessidade de uma estrutura sócio-política própria para a
região. Rodriguez, Bolívar e Zamora foram escolhidos como baluartes do movimento não por
acaso. A história venezuelana teria outros personagens para representar os ideais do movimento,
entretanto o programa revolucionário daquele grupo fez a escolha dos três, uma vez que a
elaboração da nova doutrina política dependia, não apenas do pensamento político, mas também – e
talvez, principalmente – da biografia desses, considerados, grandes homens da história nacional.
Para Flavio Mendes, “eles constituíram as três raízes não apenas porque os militares acreditavam no
programa político que esses personagens defenderam, mas também pelo que representam na história
nacional”.4
O surgimento e consolidação do MBR-200 representou uma nova etapa no pensamento da
esquerda na Venezuela e na América Latina, em geral. Diante do colapso do pensamento de
esquerda que se testemunhava nos anos 1980, com o fracasso das experiências socialistas na
Europa, com as formas de opressão exercidas pelo governo soviético em diversos países, com o
declínio político e econômico do império soviético que encontraria, dali a poucos anos o seu fim,

3
MENDES, Flavio da Silva. “Raízes do movimento bolivariano na Venezuela” in Anais do IV Simpósio de Lutas
Sociais na América Latina: imperialismo, nacionalismo e militarismo no século XXI. GEPAL/UEL: Londrina, 2010.
4
MENDES, Flavio. Op.Cit.

1427
levava a mudanças no pensamento de esquerda. Não mais se pensava na revolução tradicional para
se chegar ao poder, nem na planificação econômica como remédio ao capitalismo selvagem do final
do século XX. No lugar disso, as propostas variavam entre a adesão ao sistema democrático como
forma legítima de chegada ao poder e implementar modificações específicas e bem pontuais na
sociedade e na economia, até mesmo ao afastamento do pensamento socialista através da
aproximação com moderados e setores de direita.
O caráter nacionalista do movimento não era um fenômeno isolado, ou algo inédito na
história venezuelana. Esse nacionalista era uma herança da influente “Geração de 28”, a qual
reuniu em suas fileiras socialdemocratas e comunistas.
O MBR-200 não conseguia, a priori, desvincular a implementação das mudanças sociais
necessárias sem o uso da força para tomar o poder. No final dos anos 1980, os projetos baseados no
comunismo já não eram considerados uma alternativa viável, nem na América Latina nem no resto
do mundo, devido à crise que, no início da década seguinte, levaria a União Soviética à
desagregação. Nem mesmo a Venezuela que, após da crise econômica que a reconduziu a
patamares alarmantes de subdesenvolvimento quase apagados da memória recente de sua
população, seria um bom lugar para uma proposta alternativa baseada no marxismo.
Diante desta declaração de Chávez, podemos compreender que o MBR-200 surge num
momento complexo para a Venezuela, onde existe no meio político local e mundial, uma grande
decepção com o projeto comunista e a ascensão do neoliberalismo – e, como vimos, nenhum dos
dois responde adequadamente ao anseio político dos militares. Num outro aspecto, as principais
características da “Geração de 28” – nacionalismo e liberalismo político – não poderiam ser
recuperadas pelo MBR-200 sem uma forte crítica ao seu mau uso. Isto posto, a liderança do MBR-
200 fez a opção de resgatar o projeto liberal de Bolívar, Zamora e Rodriguez, por um lado, mas
tendo o cuidado de apontar os equívocos da Geração de 28 na sua tentativa de se apropriar daqueles
projetos, na década de 1920.
Outra parte dos militares que discutiam a política nacional estava bastante interessada em
resgatar os ideais do último ditador venezuelano, deposto nos anos 1950, o general Marcos Pérez
Jiménez (1914-2001; presidente entre 1952-58) em cujo governo se gestava o objetivo de fazer da
Venezuela uma potência regional por meio do investimento na indústria pesada, incluindo aí o
desenvolvimento das Forças Armadas e do seu poderio bélico.
Neste contexto, pode-se perceber que este o “bolivarianismo renovado” assumido pelo
MBR-200 precisa ser compreendido, não somente como fruto de um processo sócio-político próprio
na Venezuela em plena crise entre os anos 1970 e 1980. Em meio a tantos outros projetos
revolucionários, o projeto que se afirma como sendo herdeiro daquele de Bolívar triunfa como

1428
sendo a alternativa mais viável para os militares, e isso pode ser creditado ao culto a Bolívar
fomentado dentro das Forças Armadas e, também na cultura política geral na Venezuela.
É verdade que o Exército venezuelano deu um salto organizativo no inicio do século XX a
reboque da exploração de petróleo, exploração essa que permitiu uma reequipagem geral do Estado
e de suas instituições. Esse fortalecimento do Estado forçou, consequentemente, um
enfraquecimento importante das oligarquias e do poder regionais. Por outro lado, um Exército
reequipado de um Estado fortalecido se via necessitado de uma doutrina, de uma história, de uma
tradição diferente daquela tradição militar caudilhista do século XIX. As novas Forças Armadas
encontraram na biografia de Simon Bolívar a tradição militar necessária, forjando a partir de então,
laços de continuidade entre o Exercito Libertador de Bolívar e a nova realidade militar na
Venezuela do início dos Novecentos.
O culto a Bolívar dentro das Forças Armadas traria duas consequências imediatas. A
primeira, foi exatamente a ligação entre a instituição militar e o projeto de formação de uma nação
moderna na Venezuela, realocando as Forças Armadas, no campo sócio-político interno, não como
coadjuvante do processo político, mas como um dos atores principais nas disputas internas pelo
poder. E a segunda foi que, daquele momento em diante, ao longo do século XX, as Forças
Armadas, sobretudo o Exército, emergia durante as situações de crise e instabilidade política, como
o fiel da balança política venezuelana, ou melhor, o Exército assumia uma posição central no
cenário político, devendo refundar a República venezuelana diante da incapacidade das lideranças
civis de sustentá-la.
Esta “tradição pretoriana”, como visto, advogava o direito dos militares ao debate político,
incluindo aí, o dever de, em momentos de crise extrema, assumir, ainda que provisoriamente, o
controle do Estado. Tal tradição foi se elaborando nos meios militares e se consolidando na
Venezuela ao longo do século passado.
Dez anos depois de sua fundação, o MBR-200 tentava um golpe de Estado, mas a IVª
República venezuelana, apesar de seu colapso iminente ainda teve forças para rechaçar aquela
tentativa militar, mas sabia-se que não sobreviveria mais tempo.
Com o afastamento legítimo do presidente Carlos Andrés Perez, em 1993 e a vitória eleitoral
de Rafael Caldera, por uma questão política, os golpistas foram anistiados. Uma vez reorganizados,
o movimento bolivariano foi ganhando força política nos debates sobre a necessidade de mudanças
profundas na sociedade e na própria constituição venezuelana de 1961.
Durante este último governo de Caldera, o MBR-200 via a oportunidade de participar
diretamente do processo eleitoral em 1998. Mas para tal, sem que o movimento perdesse suas
especificidades enquanto movimento social, sua liderança buscou cooptar políticos e intelectuais

1429
civis. Esta aproximação entre militares e civis dentro do movimento foi determinante para
distinguir uma nova fase do bolivarianismo, a sua fase político-partidária.
Uma vez que os militares bolivarianos – em sua maioria reformados ou expulsos após o
fracasso do golpe de fevereiro de 1992 – estavam ideologicamente ligados à esquerda, o MBR-200
estabeleceu contatos com as lideranças de esquerda que foram derrotadas e marginalizadas nos anos
1960, como foi o caso exemplar de Douglas Bravo e de Alí Rodriguez, ambos do extinto Partido
Revolucionário Venezuelano (PRV).
3 – Do bolivarianismo ao chavismo
Paralelamente à estrutura tradicional do MBR-200 o movimento bolivariano fundava o
Movimiento Vª República (MVR) especificamente para a disputa eleitoral. O MVR possuía uma
estrutura e uma organização distinta do MBR-200 original. Enquanto o último foi constituído como
espaço privilegiado para a reflexão, o debate e a formação ideológica de seus membros, o primeiro
não abria espaço ao debate e a formação de seus participantes, concentrando suas forças a alcançar
o seu único objetivo em curto prazo, a eleição de Chávez em dezembro, de 1998.
Os oficiais militantes do MRB-200 que foram expulsos ou reformados compulsoriamente
como punição ao golpe de 1992 se filiaram ao MVB em 1998, tornando-se personagens de destaque
político dentro do governo Chávez, sobretudo durante a crise de 2002/2003, reforçando o
protagonismo dos militares durante o governo Chávez, tanto para a manutenção do movimento
bolivariano quanto para a sobrevivência do governo chavista, ocupando postos-chave na
administração pública, sobretudo no primeiro e segundo escalões.
A proposta de verticalização da revolução bolivariana feita em 2006/2007 foi seguida pela
proposta oficial da parte do governo de modificação de mais de 60 artigos da Constituição de 1999,
dentre os quais se destacam os pontos sobre a mudança dos princípios que regulam a propriedade
privada e a reforma institucional das Fuerzas Armadas Nacionales Bolivarianas (FANB). Cremos
que estes dois pontos podem ser considerados como os pontos de maior polêmica no projeto do
governo, que suscitou grande desconfiança tanto por parte de opositores quanto por parte de
apoiadores, revelando fissuras no cerne do bolivarianismo militar.
Em julho de 2007, um dos mais leais colaboradores do presidente rompe com o governo em
repúdio as propostas de Chávez. O general Raul Baduel, como já dito, esteve ao lado do presidente
deste os tempos de Academia Militar e fora ele o grande responsável pela sua recondução ao
Miraflores em abril de 2002. Entretanto, Baduel demitindo-se do cargo de Ministro Popular da
Defesa em julho de 2007, revelou-se um opositor feroz, indo a público para criticar a medida do
governo e questionar as intenções de Chávez sobre o rumo que dava ao processo político na
Venezuela. Naquele referendum, o governo sofreu a primeira derrota em nove anos.

1430
O bolivarianismo pode ser definido como um movimento cívico-militar específico da
Venezuela surgido entre os oficiais do Exército nos anos 1980 com a intenção de criticar, refletir e
questionar o modelo político, econômico e social do país naquela ocasião, defendendo a
reconhecimento da dignidade militar e a luta contra a corrupção e a desigualdade social. Este
movimento se organizou em torno de uma proposta de tomada do poder por meio da força em 1992.
Após o fracasso desta tentativa, abriu-se a participação de intelectuais e políticos civis capazes de
dar força política ao movimento para disputar as eleições em 1998 apoiando o seu líder Hugo
Chávez.
Uma vez no poder, o bolivarianismo implementara as mudanças propostas por Chávez
durante a campanha, aderindo à maioria das propostas do presidente que, uma vez, consolidada sua
força política vinculada diretamente aos militares e aos eleitores, reformula o próprio projeto do
movimento, adicionando à sua plataforma ideológica um novo modelo socialista, objetivando o
fortalecimento do governo internamente, e da Venezuela no plano latino-americano com discurso
capaz de cooptar propostas de resistência e combate àqueles que, segundo Chávez seriam os dois
grandes males da globalização no início do século XXI: o neoliberalismo econômico e a
agressividade da política externa norte-americana.
Para os críticos como Raul Baduel, nos últimos anos, o bolivarianismo militar original, foi
de tal forma deformado pela política do presidente Chávez que poderia ser chamado, hoje, de
chavismo, uma vez que a peça central no tabuleiro político que antes era destacado a figura de
Bolívar fora o próprio Chávez.

BIBLIOGRAFIA
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2005.

1432
O BISPADO DE BRAGA DENTRO E FORA DOS LIMITES DA INDEPENDÊNCIA DE
PORTUGAL (1128 -1185)

Luiz José da Silva 1

Resumo: Este trabalho tem como proposta efetuar reflexões na participação do Bispado de Braga,
durante as transformações, que conduziram o Condado Portucalense à condição de Reino de
Portugal. O momento do clero bracarense ao lado de D. Afonso Henriques, entre os anos de 1128 a
1185, nosso corte temporal, está inserido em nosso objetivo de compreender esta união, que
ultrapassou as fronteiras conquistadas pelo primeiro monarca português. É perceptível uma relação
envolvendo religião e política, o que nos permitirá uma análise da interação do Bispado de Braga,
representante da Santa Sé, e as intenções de D. Afonso I. A Conferência de Zamora proporciona a
oportunidade de identificarmos a estrutura geopolítica criada por D. Afonso I e as ações da Igreja,
que resultaram na concessão do Papa Alexandre III.

Palavras chave: Bispado de Braga, Condado Portucalense, Reino de Portugal.

Abstract: This work’s proposal is to create reflections about the act of the Diocese of Braga during
the transformations, that led the County of Portucalense into Kingdon of Portugal. The moment of
the bracarense clergy beside D. Afonso Henriques between the years of 1128 and 1185, our time
frame, is inserted in our reason to comprehend such union. This crossed the borders conquered by
the first portuguese monarch. It is noticeable a relation involving religion and politics, which takes
us to analyze the interaction of the Bishopric of Braga, representative of the Holy See, and the
intentions of D. Afonso I. The Conference of Zamora, permits us identify the geopolitics structure
created by D. Afonso I and actions of the church which result in the concession of Pope Alexander
III.

Keywords: Bishopric of Braga; County of Portucalense; Kingdon of Portugal.

Introdução
A situação da Península Ibérica, em meados do século XII, considerando o período de 1128

1
Mestrando em História Política pelo PPGH/UERJ. Orientador: Prof. Dr. Fabiano Vilaça. E-mail:
Luizjosesilva72@gmail.com.

1433
a 1185, apresenta o Condado Portucalense, sob o domínio da rainha D. Teresa, esposa do já morto
Conde D. Henrique; o Reino de Leão, sob a liderança de D. Afonso VII, com o título de Imperador,
exercia o domínio sobre os demais reinos hispânicos; e, os muçulmanos ocupando a região do Al-
Andaluz, ao Sul da Península finalizavam o quadro geopolítico da região.
Transformações sociais, econômicas e territoriais ocorreram na Península Ibérica, que
ocasionaram uma redefinição política de Portugal sob a influência da Igreja Católica, e, este
desenvolvimento nos conduz a analisar a relação entre o clero português, sob a liderança do
Bispado de Braga e o poder político nesta época centralizado em D. Afonso Henriques, filho de D.
Teresa com o conde Henrique.
Segundo Galli (1997), o sentimento religioso dominante na sociedade europeia, atua no
equacionamento das relações de poder, na medida em que se desenvolvem novas forças sociais [...],
constituídas a partir das lutas de reconquistas, das ambições e perspectivas futuras, sonhadas pelo
conde Henrique, concretizadas por Afonso Henriques com o apoio imprescindível nos nobres
portucalense e do clero bracarense.
A Igreja sob a autoridade dos Papas ganhou força política e administrativa a partir do Papa
Gregório VII, que ficou conhecido historicamente como o Papa Reformador. Ele colocou a Igreja
como o centro de poder na Europa, expandindo sua força no decorrer dos séculos por todo planeta.
Os demais Reinos na Europa, subordinavam-se a autoridade religiosa, representada nos Bispos e
Cardeais que agiam em nome e sob a orientação de sua santidade, que rapidamente exercia sua
força política em nome de Deus, entronando e destronando reis e imperadores.
É nosso objetivo: Descrever a participação do Bispado de Braga no processo de
independência de Portugal. Identificar a influência do clero bracarense nas decisões de D. Afonso
Henriques. Analisar as consequências da Bula Manifestis Probatum para o Bispado de Braga.
Atingir este propósito nos permite realçar a relação entre a política e a religião, percebendo uma
sintonia entre D. Afonso Henriques e o Bispado de Braga, que se propaga à nobreza e ao povo, ou
seja, a sociedade está inserida na religião ou a religião está no contexto dessa sociedade? Aline
Coutrot nos auxilia a responder a tais reflexões:
o que há de comum entre a religião que propõe a salvação no além, e a política que rege a
sorte dos homens nesta terra? À primeira vista, parece que uma diz respeito ao íntimo do ser,
a outra ao coletivo. Religião e política não são da mesma natureza se não adotarmos as teses
marxistas, e é exatamente por serem distintas que podemos nos interrogar sobre suas relações
(COUTROT, 2003, p.334)

O contexto político e religioso na Europa, no período considerado, apresenta um vínculo de


subordinação a autoridade do papa. A influência dos papas cerceava a nobreza, condicionando suas
ações e alcançava o povo embalado na ignorância, fossem camponeses, comerciantes ou artesãos,
não excluindo os soldados, pois eram em maioria oriundos desse povo.

1434
Encontramos no trabalho de Max Weber, Economia e Sociedade; Pierre Bourdieu, Poder
Simbólico, o amparo teórico para melhor compreendermos as ações do clero português no período
abordado. As crônicas: de Duarte Galvão (1727), “Crônicas de El Rey D. Afonso Henriques”, a de
Frei Antônio Brandão (1945), “Crônica de D. Afonso Henriques”, e, a Bula Manifestis Probatum,
são fontes documentais que permitirão informações relevantes.
Não podemos ignorar a existência de uma relação, entre a política e a religião, no contexto
do processo de formação do Reino de Portugal, visualizamos isto em D. Afonso Henriques e o
Bispado de Braga. Michel de Certeau (1990), nos auxilia chamando de “estratégia, o cálculo das
relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é
isolável de um ambiente” e como “tática um cálculo que não pode contar com um próprio,
tampouco com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por
lugar o do outro”.
Aliado de D. Afonso Henriques, atuante junto ao papa, na defesa da integridade de Portugal,
era desejo do clero bracarense, emancipar-se da tutela dos bispados hispânicos. Coutrot (2003), diz
que a história religiosa não é mais estritamente eclesiástica ou apologética, o que observamos nas
intervenções de D. João Peculiar2, efetuadas seja nos diferentes domínios da vida religiosa, seja nas
expressões culturais e sociais, fazendo com que a Igreja esteja atuante na sociedade portuguesa em
transformação. As influências religiosas, identificadas no Bispado de Braga, através do Bispo D.
João Peculiar, se ajustam as observações de Aline Coutrot:
“Hoje, as forças religiosas são levadas em consideração como fator de explicação política em
numerosos domínios. Elas fazem parte do tecido do político, relativizando a intransigência
das explicações baseadas nos fatores sócio-econômicos” (COUTROT, 2003, p.331)

D. Afonso Henriques e o clero bracarense mantem relações que durante muito tempo foram
desprezadas pela história do político, que possuía interesse pelas coisas da Igreja e do Estado, na
realidade do século XII, Reino.
A religião em Portucale, tendo à frente o Bispado de Braga, é força política representativa,
atuante, que tem na figura do infante D. Afonso Henriques, segundo Kantorowicz (1998), o símbolo
de um rei imortal, porque legalmente jamais pode morrer, ou que jamais esteja legalmente sujeito a
idade, foi interferência em todas as etapas do processo de independência. A independência de
Portugal foi sendo construída ao longo de várias batalhas e o clero português teve sua participação e
influência, mencionamos como de maior importância, aquelas que foram marcos históricos no
processo de evolução do Condado Portucalense: a revolta de Afonso Henriques com a conquista de
poder ao derrotar sua mãe, a rainha Teresa na Batalha de São Mamede (1128); a Batalha de Ourique
(1139); a conferência de Zamora (1143); a conquista de Lisboa (1147); a batalha de Badajoz (1169)

2
D. João Peculiar, bispo do Porto em 1136, Arcebispo de Braga e primaz das Espanhas entre 1138 e 1175.

1435
e o reconhecimento da nova monarquia pela Santa Sé (1179).

O Bispado de Braga no contexto da expansão


Após a batalha de São Mamede D. Afonso Henriques expede carta de couto à Braga, ode
podemos entender tenha sido uma concessão de privilégios ao arcebispo de Braga D. Paio Mendes,
em compensação pelo apoio recebido antes e durante o conflito em que submeteu sua mãe.
Um fato narrado por Alexandre Herculano, apresenta divergências ocorridas entre o bispo
Gelmires e o prelado de Braga, D. Paio Mendes, antes de 1128, sendo possível perceber que ainda
que esteja presente outros interesses, um é claro: o desejo do arcebispo de Braga D. Paio Mendes,
que a sede arquiepiscopal continuasse em Braga, o que manteria para a Sé de Braga a posse de bens,
que eram reivindicados pela Sé de Santiago e Compostela. Deste modo visualizamos que antes da
Batalha de São Mamede, já existia um desejo de autonomia por parte do Bispado de Braga, ou seja,
um clero português independente.
O ano de 1139, marcado historicamente pela Batalha de Ourique, inserida em um contexto
de misticismo, ou seja, a inclinação para acreditar em forças e entes sobrenaturais, uma crença, de
que o ser humano pode comunicar-se com a divindade ou receber dela sinais ou mensagens, fixou a
imagem do príncipe como Rei de Portugal. As lendas em torno de D. Afonso Henriques
ocasionaram o desenvolvimento do mito, que na definição do historiador Peter Burke:

Um mito (...) é uma história sobre o passado, um “alvará” para o presente. Ou seja, a história
fictícia desempenha a função de justificar alguma instituição no presente e, desse modo,
manter sua existência. Ainda assim, é esclarecedor definir o mito em termos não só de
funções como também de formas ou “enredos” recorrentes, (...) como produtos imutáveis do
inconsciente coletivo. É mais provável que um historiador os considere produtos da cultura,
que vão mudando lentamente à longo prazo. (BURKE, 2012, p, 171)

Considerando a definição de Peter Burke, o mito colabora com a sociedade em formação,


fortalece a posição do monarca portugalense, acarretando um misticismo que até os dias de hoje
está presente na História de Portugal.

Uma das consequências de Ourique foram as implicações político-militares, que


impulsionaram os portugueses para a certeza de conquistas futuras como a de Lisboa e a aclamação
do príncipe D. Afonso Henriques como primeiro Rei de Portugal. Existe um sentimento religioso,
citado por Kantorowicz por (1998, p.18), “[...] o rei é não somente incapaz de fazer errado, mas até
de pensar errado: ele jamais pode fazer uma coisa imprópria: nele não há qualquer tolice ou
fraqueza”, estas palavras nos levam a um quê de romantismo, presente na leitura de historiadores
mais antigos, identificamos isto nas Crônicas.

1436
D. Afonso Henriques, agora Rei D. Afonso I, envolvido em um misticismo, que será
visualizado como mito ou até mesmo lenda, embasado na oportuna tolerância e condescendência do
clero bracarense, permanece até os dias de hoje, mesmo com todos os debates e críticas em que se
envolveram historiadores e estudiosos do tema.

Ao adentrar o ano de 1143, houve uma calma nas guerras, o coincidiu com a vinda do
Cardeal D. Guido de Vico à Espanha, conforme narrativa de Alexandre Herculano, viera por legado
do Papa Inocêncio II e reunira um concílio provincial em Valhadolid. Nesta época, em uma
coincidência discutível, o Imperador D. Afonso VII e o rei de Portugal, dirigiram-se à Zamora para
uma conferência que objetivava discutir uma possível paz entre eles. O Cardeal como representante
do pontífice foi chamado para mediar e o resultado final foi que o Imperador reconheceu o direito
de seu primo utilizar o título de Rei de Portugal, recebendo o senhorio de Astorga, desde que
também devolvesse as terras conquistadas na Galiza (HERCULANO, 1983). Esta conferência,
consolida uma paz duradoura e necessária para os futuros planos de D. Afonso Henriques.
Ainda na fase de planejamento para a conquista de Lisboa, o monarca portugalense
qualifica como seu chanceler o arcebispo D. João Peculiar, antigo regrante3 de Santa Cruz, muito
influente na vida política do reino, que junto com o bispo do Porto, D. Pedro, desenvolverão
esforços nesta luta. O monarca português visualiza nos cruzados uma auspiciosa solução para seus
problemas e certamente não lhe passa desapercebido que tal auxílio servia a uma dupla finalidade:
ele teria os contingentes de homens necessários e aproximaria a guerra de reconquista à guerra santa
da Cruzada, isto o aproximaria como rei e o seu reino, ao modelo de rei necessário para marcar sua
condição de rei de Portugal sob a soberania da Santa Sé e autoridade divina. As ações do monarca
no planejamento da conquista de Lisboa tiveram o embasamento do Papa Eugenio III, o que realça
a postura do arcebispo João Peculiar como chanceler, dirigindo-se ao Papa a cada avanço territorial,
onde advogava tanto os interesses do clero bracarense quanto o reconhecimento das novas
aquisições territoriais de Afonso I.

A vitória em Lisboa configura os anseios de Roma quanto a expansão do território cristão,


sendo justificado o deslocamento do arcebispo João Peculiar para Roma, em 1148, acompanhado de
um templário. Tratou com o Papa Eugênio III da redefinição dos termos da sua relação com Toledo,
reinterando a sujeição de Santa Cruz e o enfeudamento e censo do rei de Portugal a Roma. Não
deixou de participar os feitos de Afonso I, destacando empatia junto aos portugueses e sua piedade
com os vencidos em conformidade com os desígnios papais.

3
A Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho (Sacer et Apostolicus Ordo Canonicorum Regularium Sancti
Augustini ou Canonici Regulares Sancti Augustini, CRSA) é uma ordem de cónegos regrantes da Igreja Católica
Romana, a qual segue uma regra instituída a partir dos ensinamentos de Santo Agostinho.

1437
Muitas decisões foram tomadas assim que um pouco de normalidade desceu sobre a cidade,
uma delas a que tomou o arcebispo D. João Peculiar, tão logo purificou a mesquita, transformou-a
em Sé, como Catedral de Santa Maria Maior e a pedido do Rei Afonso I, restaurou a diocese
consagrando d. Gilberto4 como novo bispo da cidade. Esta atitude do primaz bracarense, reafirma a
posição de Portugal em cada vez mais afastar-se de qualquer tipo de dependência hispânica. No
tempo dos Godos, a Igreja de Lisboa era subordinada a diocese de Mérida, na época capital da
Lusitânia, a nova política sob orientação do primeiro monarca português era de colocar todas as
dioceses do reino na dependência do arcebispado de Braga. Como consequência: implicações
sociais, que permitiria ao bispo d. Gilberto ações sobre a população, tanto no aspecto religioso
quanto no conduzir de cada dia e o lado econômico permitiria o direito de auferir a cobrança de
tributos sobre os diferentes produtos comercializados, o que incluiria percentual sobre os estoques
efetuados pelos navios que aportassem. Efetuou implementações na Sé de Lisboa, criou as
paróquias de São Vicente de Fora, Mártires e Santa Justa, sendo que alguns anos antes, mais
precisamente em 1173, chegaram a Lisboa as relíquias de São Vicente, que passou desde então a ser
o patrono de Lisboa; também não deixou de ter preocupações com a concretização da reconquista,
escreveu cartas a seus conterrâneos na Inglaterra pedindo que viessem ajudar.

Uma das primeiras ações, logo após a invasão, ocorreu na área religiosa com o arcebispo de
Braga, sagrou os novos bispos portugueses, mesmo sem o beneplácito papal, menciona Antônio
Borges Coelho, que o credo bracarense coloca sob a sua autoridade os bispos de Lamego, de Viseu
e também o de Lisboa. Integrando-se no Estado Cristão, Lisboa perde a princípio importância
política diante da cidade de Coimbra, sendo que Braga, sede do arcebispado, capital religiosa não
rivalizava com os novos centros urbanos como Guimarães e Porto. A colaboração de Aline Coutrot
no trabalho de René Rémond, “Por uma História Política”, inclui um oportuno questionamento: “o
que há de comum entre a religião que propõe a salvação no além, e a política que rege a sorte dos
homens nesta terra? À primeira vista, parece que uma diz respeito ao íntimo do ser, a outra ao
coletivo (COUTROT, 2003, p.334).

Claves regni celorum


Em 13 de dezembro de 1143, após o término da Conferência de Zamora, Afonso Henriques
escreveu uma carta de vassalagem que ficou conhecida pelas primeiras palavras, Claves regni
celorum, ao Papa, na qual declara a ele ter feito uma homenagem a Sé Apostólica, representada pelo
Cardeal D. Guido de Vico, como cavaleiro de São Pedro (miles Sancti Petri), se obrigando a pagar à

4
Dom Gilberto de Hastings, origem inglesa, integrava a armada que se destinava a Terra Santa, II Cruzada.

1438
Santa Sé o censo anual de quatro onças de ouro, sob a condição do Papa defender a sua honra e a
dignidade da sua terra. Neste documento informava que não reconhecia a autoridade de nenhum
outro poder eclesiástico ou secular, a não ser a do Papa.
José Mattoso diz ter sido através desta carta, a forma que Afonso Henriques encontrou,
aproveitando a presença do Cardeal, deixa claro a sua intenção de vassalagem diante do Papa ao
dizer que, “não reconhecia nenhum outro poder eclesiástico”. Fixa desta forma a posição de
independência portucalense em relação aos demais reinos hispânicos. D. Guido entre outros
motivos, tinha vindo à Península Ibérica em busca de auxílio financeiro e apoio moral ao Papa,
devido as ações perpetradas pelos Normandos e a comuna de Roma, que esvaziaram os cofres do
Pontífice. O censo anual em ouro, oferecido por Afonso Henriques foi a resposta à intenção de D.
Guido e a condição seria o Papa aceitar a homenagem desvinculando-o do Imperador de Leão.
Toda esta ação de Afonso Henriques, foi anteriormente discutida e avaliada entre ele e o seu
conselheiro e chanceler, o arcebispo D. João Peculiar.

Devotionem tuam - A resposta do Papa-(1144)


No texto em que Mattoso (2007) ser refere a resposta do Papa Lúcio II à carta Claves regni
celorum, há uma narrativa da visita do arcebispo D. João Peculiar à Santa Sé onde aproveita a
oportunidade para resolver sua querela com o bispo Bernardo de Coimbra, que se recusava a lhe
prestar obediência. José Mattoso comenta que se D. João Peculiar almejava o reconhecimento da
independência de Afonso Henriques, a sua viagem foi um fracasso, pois através da Bula
Devotionem tuam, emitida e 1 de maio de 1144, o Papa Lúcio II, aceitou a homenagem e o censo
prometido pelo rei, concedeu-lhe apenas o título de Dux, também não fez referência a nenhum
compromisso assumido pela Santa Sé.

Ainda seguindo o curso das reflexões de José Mattoso, apenas a aclamação em Ourique não
era suficiente para a Cúria romana. O que na Península Ibérica determinava a condição política
eram os fatos: “a capacidade para constituir uma corte, para se fazer obedecer, para governar os
conselhos, para obter fidelidade dos nobres e fazer guerra aos inimigos externos”. Todos estes fatos
eram visualizados pelos portugueses em Afonso Henriques e reconheciam-no com veneração,
porem o Papa estava longe, seria necessário conquistar Lisboa.

Bula Manifestis Probatum


No dia 23 de maio de 1179, tanto José Mattoso quanto Alexandre Herculano, fazem
referência à concessão da Bula Manifestis Probatum, emitida pelo Papa Alexandre III,
reconhecendo o título de Rei de Afonso Henriques, declarando que assumia a ele e a seus herdeiros
sob a sua proteção. O longo período de 36 anos desde miles Sancti Petri chegara ao fim.

1439
Alguns questionamentos por parte dos historiadores tiveram que ser efetuados e refletidos,
mesmo que a resposta jamais tenha sido convincente, como: “Por que razão a Sé Apostólica que
tinha tardado tantos anos a reconhecer o título de Rei, acabou por o proclamar aparentemente sem
negociações prévias nem contrapartidas?” (MATTOSO, 2007, p.359). Uma relação com o
testamento escrito por Afonso Henriques, no qual manda distribuir considerável soma de dinheiro
em favor da Igreja, uma grande soma ao Papa e aumenta o montante do censo. Os historiadores
mencionam que o arcebispo de Braga D. Godinho, substituto de D. João Peculiar, teria sido o
negociador, quando foi à Roma para o concílio geral de Latrão, entre 5 e 19 de março de 11795.
Concluindo, a partir de do reconhecimento da Santa Sé, o poder do Rei de Portugal deixava
de se fundamentar na força das armas para se legitimar em deveres e responsabilidade políticas,
sociais, militares e religiosas. A existência de duas identidades: D. Afonso Henriques e o Bispado
de Braga, quase que inseparáveis no processo de formação do Reino de Portugal, são marcos
indestrutíveis que certamente serão muito refletidos por qualquer estudioso do Portugal medievo.

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5
Segundo José Mattoso, não existem atas que comprovem a existência deste concílio.

1440
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1441
TENSÕES NOS QUADROS DAS LETRAS DO IMPÉRIO: FRANCISCO DE SALES
TORRES HOMEM E A CONDENAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DO CATIVEIRO (1836)1

Luiza de Oliveira Botelho2

Resumo: Este trabalho é resultado do incômodo com a rigidez com a qual determinados estudos
historiográficos tratam a temática que vincula os homens de letras ao Estado Imperial, em especial
os membros da primeira geração romântica. A capacidade do exercício crítico desta categoria diante
de temas controversos – como, por exemplo, a escravidão - é invalidada devido à sua relação de
proximidade com Estado. Neste sentido, apontar-se-á algumas reflexões iniciais sobre a importância
de estabelecer uma abordagem mais fluida entre os vínculos que unem a categoria letrada e o
Estado Imperial no que se refere ao exercício da crítica. Para este fim, privilegiar-se-á a análise do
caso de Torres Homem e a mobilização crítica do romântico perante os prejuízos que a escravidão
proporcionava para o desenvolvimento da nação em Considerações Econômicas sobre a
Escravatura (1836).

Palavras-chave: Escravidão, Letrados, Estado Imperial.

Abstract: This work is a result of the dissatisfaction with the rigidity in which certain
historiographical studies treats the theme that links the men of letters to the Imperial State,
especially the members of the first romantic generation. The ability of the critical exercise of this
category to face controversial issues - such as slavery - is invalidated because of the bond of
submission that binds it to the State. In this sense, it will be pointed out some initial reflections on
the importance of establishing a more fluid approach between the bonds that unite the literate
category and the Imperial State in what concerns the exercise of criticism. For this purpose, the
analysis of the case of Torres Homem and the critical mobilization of the romantic in the face of the
damages that the slavery provided for the development of the nation in Considerações Econômicas
sobre a Escravatura (1836) will be privileged.

Keywords: Slavery, Publicists, Imperial State.

1
As reflexões iniciais deste trabalho foram resultadas dos bons frutos colhidos da disciplina Estudos da Imprensa na
América Latina nos séculos XIX e XX no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro
Preto, ministrada no semestre de 2017.1 pelo Prof. Dr. Mateus Fávaro Reis, a quem agradeço imensamente pela
possibilidade de diálogo que veio a encorajar a concretização deste trabalho. Agradeço também a Marcelo Rangel pela
leitura e comentários.
2
Mestranda – Programa de Pós-Graduação em História – Instituto de Ciências Humanas e Sociais - UFOP-
Universidade Federal de Outro Preto, campus de Mariana. Mariana - MG - Brasil. Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: luiza_historia@yahoo.com.br

1442
INTRODUÇÃO

Os anos que seguiram após a ruptura dos laços políticos que vinculavam o Brasil a Portugal
a partir de 1820, com ênfase na década de 1830, foram caracterizados pela valorização do
sentimento nacional. No plano cultural, especificamente, o campo da literatura, foi animado por
discussões que tinham por finalidade a conquista da autonomia da inteligência americana em
relação aos anos de submissão a Portugal. Em outros termos, conquistada a independência no
âmbito político, fazia-se necessário conquistá-la no campo cultural e, para isso, era necessário a
mobilização de um grupo de homens de letras. Neste contexto, é imprescindível recordar a
contribuição da primeira geração romântica e o seu comprometimento cívico com a construção da
jovem nação no nível simbólico e da imaginação.
Ainda neste contexto, acirraram-se no âmbito parlamentar as discussões sobre a escravidão e
o comércio atlântico de carne humana3. Os debates centrados na câmara dos deputados e do senado
em relação ao tráfico de escravos eram múltiplos e, diante daquele mar de argumentos, vale apena
destacar duas posições bastante fortalecidas: os que defendiam a continuidade do comércio atlântico
se respaldavam na justificativa da sua importância para o desenvolvimento da agricultura nacional,
bem como para a prosperidade econômica da jovem nação; os que se colocavam contrários,
argumentavam sobre os prejuízos que a presença africana trazia para os bons costumes nacionais.
É importante ressaltar que a década de 1830 assistiu a dois grandes debates em nível
nacional: os rumos da escravidão e do tráfico de escravos na política nacional e a busca incessante
pelas origens da nacionalidade brasileira a fim de construir uma nação composta por uma população
homogênea, coesa e singular. Para esta última discussão cabe o papel privilegiado dos primeiros
românticos como, por exemplo, Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre e Francisco de Sales
Torres Homem. Contudo, poucos são os estudos que se concentraram na possibilidade de uma
conexão temática entre esses dois grandes temas 4 , ou melhor, pouco valor tem se atribuído à

3
Sobre as discussões da elite política acerca da continuidade ou fim do tráfico de escravos e da escravidão no Império
do Brasil entre as décadas de 1830 e 1850, ver CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costumes no
Brasil oitocentista. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e
experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult,
2000.
4
Sobre os trabalhos recentes que abordam a vinculação do romantismo e sua crítica à escravidão ver: FERRETTI,
Danilo José Zioni. A Confederação dos Tamoios como Escrita da História nacional e da escravidão. Revista História da
Historiografia, n. 17, abr. 2015, p. 171-191. Disponível em:
<http://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/831>. RANGEL, Marcelo de Mello. Escravidão e
Decadência nos Estados Unidos e no Império do Brasil. Torres Homem e seu diálogo com Alexis Tocqueville. In:
Dimensões, v.29, 2012, p.208-237. Disponível em:
<http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/viewFile/5406/3992>

1443
possibilidade de se verificar a visão dos românticos em relação à discussão mais ampla da política
da escravidão como pilar indispensável para a vida nacional.
Essa lacuna é consequência de uma corrente de estudos que desacredita a contribuição dos
poetas românticos diante o processo de formação da nação brasileira oitocentista devido à sua
relação de “subordinação econômica” em relação ao Estado Imperial. Pelo fato da escravidão e do
comércio atlântico de africanos serem questões complexas, paradoxais e polêmicas, acreditou-se
que os homens de letras silenciavam-se e fechavam os olhos para este tema, pois uma reflexão
incisiva sobre determinada questão era o suficiente para comprometer sua posição perante o Estado.
Nossa intenção não é a de desvalorizar o vínculo econômico que unia os poetas ao Império; no
entanto, é importante notar que tal relação não dá conta de explicar a existência de artigos
publicados nas revistas românticas, por membros daquela geração, que faziam referências diretas
condenando a instituição escravista e a presença massiva de africanos no Brasil. Um dos casos mais
notórios é o de Torres Homem em Considerações Econômicas sobre a Escravatura, publicada da
Revista Niteroi em 1836, artigo em que diagnostica a impossibilidade da construção de um futuro
próspero para a nação em decorrência da escravidão.

DEBATE HISTORIOGRÁFICO: PASSIVIDADE, SUPERFICIALIDADE E AUSÊNCIA DE


PROFUNDIDADE CRÍTICA DOS ROMÂNTICOS?

O programa romântico brasileiro encontrou muitas dificuldades para se pôr em prática, pois
a realidade local era bastante diferente do que imaginavam e incompatível com as sugestões dos
românticos europeus. Alguns problemas que diziam respeito ao Império do Brasil eram muito
intensos e dificultavam a difusão da civilização, da ilustração, do progresso intelectual, social e
cultural do Brasil - como, por exemplo, a heterogeneidade social, o elevado índice de
analfabetismo, as diversas e fortalecidas identidades regionais, a vigorosa influência inglesa e a
força da escravidão. Estes problemas levaram a interpretações historiográficas mais pessimistas em
relação ao desenvolvimento do campo das letras e a atuação dos letrados no projeto de construção
da nação imperial do século XIX.
Luiz Costa Lima (1989) afirma que o nosso romantismo foi muito marcado pela não
existência de uma autorreflexão, o oposto do movimento europeu. O canto à natureza no
romantismo europeu foi um momento de autorreflexão do poeta, proveniente, sobretudo, da revolta
e desilusão com a vida política e social. Conforme o pesquisador, o romantismo no Brasil não
poderia ter adotado este tom rebelde e nem auto reflexivo do movimento europeu pelo fato de os
poetas românticos terem suas produções financiadas pelo Imperador e pelo Estado Nacional.

1444
(COSTA LIMA, 1989, p.134) Diante desta visão, afirma que não havia meios de criticar a sociedade
e que, portanto, o contato com natureza deveria ser feito por outra via que não a censura e o
exercício crítico.
Em relação à associação entre literatura e nacionalismo, frisa que os poetas estavam
associados aos interesses do Estado e eram empregados para servi-lo. O laço de dependência que
une o poeta ao Estado Imperial determina que
O poeta se apreste para sua missão de auxiliar carismático. Para o exercício desta
tarefa, parece ser indispensável que suas palavras sejam capazes de convocar, de
criar entusiasmo, ao mesmo que se mantém genéricas e abstratas, isto é, cuidando
para que não haja muito dispêndio de esforço mental de compreensão e para que
não desça ao exame agudo dos argumentos (Idem, p.143)
Em síntese, Luiz Costa Lima (1989) acredita que a dependência dos poetas em relação ao
patrocínio imperial contribuiu para a edificação de um romantismo artificial, não reflexivo e
acrítico. Concorda que os poetas da primeira geração romântica deveriam medir suas palavras para
não ser crítico demais, o que pode explicar o não desdobramento autorreflexivo do nosso
movimento literário. Por este motivo, o crítico literário maranhense sugere a inferioridade do
romantismo brasileiro em relação ao europeu, a superficialidade da nacionalidade brasileira e a
incapacidade do exercício crítico e reflexivo da produção dos homens de letras diante dos laços de
dependência que unia os poetas e o Estado.
Em O Brasil não é longe daqui (1990), Flora Sussekind chama atenção para o fato de os
escritores do início do século XIX no Brasil serem profundamente caracterizados por uma sensação
de deslocamento e desenraizamento do cenário e da realidade social que descrevem. Os primeiros
românticos, neste sentido, estabeleciam diálogos restritamente entre si e com a elite dirigente do
Império, não ampliando o diálogo com outros segmentos sociais. Nas palavras da autora, os
escritores das décadas de 1830 e 1840 eram marcados por uma profunda “sensação de não estar de
todo”.
Sobretudo em se tratando, de um lado, de uma sociedade em que literatos parecem
sempre falar entre si, sem maiores aproximações com outras camadas sociais que
não a burocracia a que pertencem ou a classe senhorial de quem dependem, e, de
outro, de país também dependente, como é o caso do Brasil (SUSSEKIND, 1990 ,
p.21)
A crítica literária defende que os escritos da primeira geração romântica trouxeram uma
tentativa, quase forçada, de “abrasileirar” as paisagens naturais e, para atingir esta finalidade,
eliminavam, silenciavam e ofuscavam a realidade problemática da nação. Reconhece ainda que o
contexto sócio-político das décadas de 1830 e 1840 foi palco das lutas provinciais, ameaças
separatistas e o medo das rebeliões de escravos e, em resposta a isso, a elite apoiava os escritores a
descrever um Brasil singular e coeso, fechando os olhos para os problemas críticos que assolavam o
Império e que punha em xeque o projeto centralizador de nação. (Idem, p. 66)

1445
Em poucas palavras, Flora Sussekind (1990) frisa que a não existência de um olhar reflexivo
em prol do encantamento é uma característica singular do ofício dos escritores do romantismo
brasileiro. Influenciados pelas descrições dos viajantes naturalistas, eles tentavam homogeneizar
paisagens e realidades sociais heterogêneas e, a partir da técnica, eram “capazes de sobrepor aos
ruídos das chicotadas caseiras, os confrontos provinciais, rebeliões de escravos, conflitos entre
fazendeiros e índios no interior” (Idem, p.123). Ao “rascunhar as origens étnicas e identidades
nacionais, mesmo onde se vêem ruínas de aldeias e divisões políticas sociais” (Idem) procurar-se-
iam ofuscá-las em nome de uma natureza divinamente construída. Portanto, a pesquisadora
determina que para exaltar as qualidades de uma nação que se diga livre, ilustrada e que marcha a
passos de gigante rumo ao progresso, é preciso fingir não ver as desigualdades regionais, o caos, o
medo, a desumanidade e a violência acarretada pelo fantasma da escravidão.
José Wilton Marques (2010) é autor de um estudo sobre a relação entre literatura e
escravidão no romantismo brasileiro. Seu trabalho tem como fonte principal Meditação (1850) de
Gonçalves Dias, obra na qual expõe severas críticas ao regime escravista. Em seu estudo, Marques
defende que a categoria dos letrados era dependente dos laços de patronagem que os subordinavam
a algum tipo de investimento externo proveniente do Império ou de algum proprietário rural. Neste
sentido, as possibilidades de ascensão social e de reconhecimento público na sociedade escravista
era por intermédio da subordinação ao Estado e, por esta razão, cabia a eles “assumir uma peculiar
disposição para aceitar tacitamente alguns silêncios necessários, sobretudo no que se refere a
possíveis críticas à escravidão” (MARQUES, 2010, p.21). É neste sentido que, para Marques,
Gonçalves Dias se destaca como uma inteligência superior.
Conforme o pesquisador aponta, a elaboração de críticas à instituição escravista só pode ter
sido concretizada em decorrência da magistralidade excepcional do poeta e também de sua ousadia
para, naquele contexto, tecer críticas à escravidão. O próprio título Gonçalves Dias: o poeta na
contramão sugere que Gonçalves Dias exercia seu ofício e suas obrigações no sentido oposto ao
permitido, agia para além dos limites imposto e para além do que era esperado, extrapolando os
limites do exercício crítico.
Em linhas gerais, Luiz Costa Lima (1989), Flora Sussekind (1990) e José Wilton Marques
(2010) concordam que o ofício dos poetas da primeira geração romântica brasileira careceu de
qualquer tipo de postura crítica por consequência das relações de favores e os laços de dependência
a que estavam submetidos. No entanto, defendemos que tal interpretação esvazia a possibilidade de
tornar mais complexo o entendimento sobre a primeira geração romântica e a sua contribuição para
a formação da nacionalidade brasileira. É possível verificar nos jornais da época o quanto a

1446
presença africana e a instituição do cativeiro eram sentidos como incômodos cujos efeitos traziam
graves e irredutíveis obstáculos à composição ética, moral e material do povo brasileiro.

POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS: O RESGATE E A ABERTURA DO DIÁLOGO

No centro de toda cidade, (...) houve uma cidade letrada que compunha o anel
protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos,
administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores
intelectuais. Todos os que manejavam a pena estavam estreitamente associados às
funções de poder. (RAMA, p.43)

El intelectual es un viajero, pero de tanto en tanto quiere hacer también de


maquinista. (Wolf Lepenies, apud ALTAMIRANO, 2008, p.15)

Uma das grandes referências latino-americana sobre a complexa relação entre o mundo das
letras e o mundo do poder político é Ángel Rama. Em Cidade das Letras (1985), o crítico literário
uruguaio se propõe a analisar o sistema cultural latino-americano, desde a colonização até a
segunda metade do século XX, a partir da participação dos letrados (e suas inúmeras categorias) na
vida sociocultural das cidades latino-americana. O fio condutor da obra é, neste sentido, a relação
entre os letrados e o poder na América Latina e como isso se configura no espaço urbano.
O ensaio abre margem para a reflexão sobre os possíveis vínculos entre o mundo das letras e
o mundo do poder político urbano e, a saber, a necessidade de uma maior investigação a respeito do
papel desempenhado pelos letrados na edificação das cidades, lugar por excelência do poder
político. O crítico defende que o fenômeno urbano é composto não somente pelas suas edificações e
construções físicas/concretas, mas também é resultado de uma construção sígnica, fruto do trabalho
dos homens de letras, que cumpre o papel legitimador de um poder que se expressa no âmbito
político, econômico e social. Em poucas palavras, Rama defende que as elites letradas são esferas
essenciais no exercício da construção e legitimação do sistema de poder político que governa a
sociedade.
A grande contribuição do crítico literário para a (des)construção do problema apresentado
neste trabalho é a sugestão que expõe sobre a necessidade de uma abordagem mais fluida entre os
grupos intelectuais e as instituições de poder as quais estão inseridos. Argumenta que a corrente
marxista contribuiu para a redução dos homens de letras à meros executantes práticos das ordens
das Instituições ou classes a que estão agregados. Este reducionismo resulta no fato de não estarmos
atentos para a compreensão complexa da função específica deste grupo, a saber, a produção de
categorias sígnicas destinada a formação de mensagens para a condução coletiva da sociedade a
partir do eixo central do poder político. Nas palavras do ensaísta:

1447
Com excessiva frequência, veem-se nas análises marxistas os intelectuais como
meros executantes dos mandatos das Instituições (quando não das classes) que os
empregam, perdendo-se de vista sua peculiar função de produtores, enquanto
consciências que elaboram mensagens, e, sobretudo, sua especificidade como
desenhistas de modelos culturais, destinados à constituição de ideologias públicas.
Creio indispensavelmente manejar uma relação mais fluida e complexa entre as
instituições ou classes e os grupos intelectuais. Inclusive por sua condição de
servidores de poderes, estão em contato imediato com o forçoso princípio
institucionalizador que caracteriza qualquer poder, sendo portanto os que melhor
conhecem seus mecanismos, os que mais estão treinados em suas vicissitudes e,
também, os que melhor aprendem a conveniência de outro tipo de
institucionalização, o do restrito grupo que exerce as funções intelectuais. Pois
também por sua experiência sabem que podem modificar o tipo de mensagens que
emitem sem que se altere sua condição de funcionário, e esta deriva de uma
intransferível capacidade que procede de um campo que lhe é próprio e que
dominam, pelo qual se lhes reclama serviços, que consiste no exercício das
linguagens simbólicas da cultura. Não somente servem a um poder, como também
são donos de um poder. (RAMA, 1985, p. 47-48)
Por fim, cabe ressaltar que, conforme o crítico uruguaio, o domínio do conhecimento sobre
os mecanismos de funcionamento interno das instituições de poder, aos quais estão vinculados os
homens de letras, é um fator essencial que inaugura um caminho para que estes possam articular
críticas sem, necessariamente, comprometer sua condição de funcionário vinculado a tal estrutura.
Os letrados lidam cotidianamente com códigos sígnicos inerentes à estrutura de poder aos quais sua
classe contribui majoritariamente para (re)criar, legitimar, preservar e difundir na sociedade. Eles
não apenas executam o que é exigido pelas instituições; sua função é dar forma e atribuir
significados a determinadas estruturas de poder simbolicamente. Afinal, Rama enfatiza a
importância de compreender esta categoria como também detentores de um poder e não reduzi-la à
servidão passiva e superficial em relação ao poder. Portanto, é justamente o pertencimento
empenhado às estruturas do poder e a sua função de forjar símbolos para legitimá-lo que abrem
margens para o espaço de um direcionamento crítico por parte dos homens de letras em seus
argumentos. É a partir desse nível de consciência que os homens de letras encaminham suas críticas
às instituições a que pertencem.
Carlos Altamirano, em Historia de los intelectuales en America Latina (2008), ressalta que a
complexificação dos estudos sobre os intelectuais no continente latino-americano é um tema que
deve ser levado adiante, pois foi construída uma imagem em torno dessa figura – como, por
exemplo, os “salvadores” culturais da nação, ou “gênios” cuja função é conduzir seu povo, ou,
ainda, os representantes da “inteligência americana” – que já não mais conforma nossa necessidade
de conhecimento histórico na contemporaneidade. Diante disso, acredita que a função que os
intelectuais desempenham dentro dos sistemas de poder pode ser um caminho bastante frutífero
para responder nossas demandas pelo conhecimento do passado na contemporaneidade. Assim
como Angel Rama, o pesquisador chileno crê na importância da compreensão da dimensão

1448
sociopolítica da cultura escrita como elemento indispensável para o melhor entendimento sobre o
comportamento do segmento intelectual.
Acrescento às ideias de Altamirano e de Angel Rama que a concepção construída
historicamente dos intelectuais como indivíduos presos atrás das grades de ferro das grandes
instituições de poder político-administrativo do seu país, bem como a sua condição de subordinação
em relação a elas, é muito devedora da narrativa historiográfica que compactuou com menosprezo
da localização periférica do continente latino-americano em comparação à Europa civilizada. No
caso da América Latina, a subordinação do intelectual ao poder não foi resultado somente dos maus
frutos colhidos com a interpretação marxista, mas é também decorrente da descrença da força
intelectual deste continente devido a sua condição de ex-colônia que, para consolidar sua
independência, foi preciso “copiar” valores e referências do velho mundo.
A partir desses encaminhamentos é importante destacar que parte dos componentes da
primeira geração romântica fizeram de suas mensagens artísticas um uso político para questionar a
viabilidade da instituição escravista no Império do Brasil, como é o caso de Francisco de Sales
Torres Homem.

O CASO: CONSIDERAÇÕES ECONÔMICAS SOBRE A ESCRAVATURA (1836)


Francisco de Sales Torres Homem (1812-1876) é um grande exemplo que mostra os
vínculos existentes entre os letrados e o Estado Imperial. Foi médico, advogado, com participação
muito ativa em periódicos da época e muito engajado politicamente, chegando a ocupar o cargo de
Ministro da Fazenda (1858) e de Senador do Império (1870). Possui uma passagem notável no
Instituto Histórico de Paris na década de 1830, percurso que fez através do patrocínio do imperial
juntamente com Gonçalves de Magalhães e Manuel Araújo Porto Alegre.
Considerações Econômica sobre a Escravatura foi publicado na Revista Niterói em 1836.
Nele, Torres Homem percorre a história de algumas “nações” que fizeram da escravidão uma
instituição pilar para o seu funcionamento como, por exemplo, Grécia, Roma, Egito, Estados
Unidos da América, Venezuela, inclusive o Império do Brasil. A ideia é dissertar sobre os
inconvenientes que a escravidão deixa como herança para estas nações para, por fim, registrar a
impossibilidade de um destino próspero para o Império do Brasil, pois compreende ser a escravidão
um fator determinante para a decadência de todos os povos que a adotaram.
Segundo Marcelo Rangel (2011) o percurso histórico promovido por Torres Homem, em
Considerações..., funciona como uma espécie de instrumento de “verificação” para a confirmação
do potencial destrutivo da escravatura para as nações que a adotaram e, continua o historiador, os
prejuízos causados por tal instituição independe de qualquer demarcação no tempo e no espaço. Por

1449
fim, a tendência confirmada por esse percurso histórico é a de um destino único e comum a essas
nações: a decadência e sua própria destruição.
É válido ressaltar que, para além de um instrumento de “verificação”, a concepção de
História que se delineia em Considerações... é a de que os seus processos são desencadeados a
partir de meios que nos permite acompanhar a marcha da indústria 5 e do desenvolvimento da
manufatura. Nas palavras de Rangel, “Torres Homem é orientado por uma filosofia da história que
compreende a história da humanidade como sendo o progresso da “indústria”, sendo a escravidão
detentora dos motivos ideais à decadência de quaisquer sociedades, e isto a despeito da vontade e
das ações humanas” (RANGEL, 2011, p.282)
As críticas à instituição do cativeiro que Torres Homem delineia em seu artigo é inspirada
pela seguinte dúvida: por que o Brasil - herdeiro tropical da civilização europeia, detentor de um
destino promissor, que tanto havia progredido no âmbito político e no plano das ideias a partir da
incorporação do que mais de ilustre havia no momento, isto é, as ideias liberais - encontrava-se tão
distante do progresso da indústria? Nas palavras de Torres Homem, “por que tanta diferença entre o
Brasil político e o Brasil industrial?” (TORRES HOMEM, 1836, p.78)
Para ele, a origem do retardamento do desenvolvimento industrial e das manufaturas
“brasileiras” está na escravidão, “monstruoso corpo estranho implantado no coração de sua
organização social” (TORRES HOMEM, 1836, p.79). A instituição do cativeiro era a responsável
por promover o agravamento do “egoísmo” natural do ser humano e por introduzir determinados
males nos costumes que dificultavam, ou melhor, impediam a marcha da indústria e da manufatura,
finalidade última da modernidade oitocentista na visão do romântico. Neste sentido, acompanhemos
algumas críticas articuladas pelo romântico em relação aos prejuízos causados pela escravatura, a
saber, a afeição aos cargos do Estado, a falta de interesse em relação ao exercício de algumas
atividades fundamentais ao desenvolvimento da indústria e o desencorajamento da imigração de
colonos europeus.
A afeição a cargos públicos se associou à possibilidade do exercício do poder a partir da
dominação do homem sobre o homem em detrimento de um objetivo comum, isto é, o bem da
nação. Tanto no caso do Sul dos Estados Unidos da América como no do Império do Brasil a lógica
escravista motivou a sede por empregos públicos em prejuízo de atividades que tem relação direta
com o progresso da agricultura e para o bem comum. No caso do Brasil oitocentista, Torres Homem

5
O conceito de “indústria” no artigo de Torres Homem está vinculado à agricultura e a possibilidade de obtenção de
riquezas a partir da natureza. Seguindo as proposições de Marcelo de Mello Rangel, “O termo “indústria” quer dizer
produção de riquezas a partir da natureza, em relação direta com ela, através de atividades como a agricultura e a
pecuária, ou ainda, a partir da manufatura e da comercialização das “matérias primeiras” conquistas a ela. E isto, por
meio do trabalho livre e da mediação da razão.” (RANGEL, 2011, p.228)

1450
ressalta que os grandes comerciantes e os donos das lavouras dedicavam parte de seu cabedal ao
incentivo de seus herdeiros a estudarem na Europa profissões que os levarão a ocupar cargos
políticos no futuro, quando retornarem ao país de origem. Nas palavras do romântico “o rico
lavrador envia o filho a estudar nas capitais ilustradas da Europa não ciências que relação tem com
a agronomia e lhe prestam indispensáveis luzes, mas sim, aquelas a que os prejuízos e o desprezo da
indústria sabem dar certo verniz de aristocracia.” (TORRES HOMEM, 1836, p.79-80). Por fim, os
cargos do Estado acabam por se tornar atividades que tem como finalidade o exercício do poder de
um indivíduo sobre o outro, aprofundando-os em interesses mesquinhos e egoístas em detrimento
do bem da nação.
A supervalorização do ofício público ocorre em detrimento do desencorajamento por
trabalhos fundamentais relacionados à promoção do desenvolvimento da indústria como, por
exemplo, as atividades relacionadas à agricultura, agronomia, química, física. A desvalorização dos
ofícios relacionados às atividades industriais tem origem nos preconceitos fundados pela prática
escravista, cujas ideias promoveram um favoritismo em relação a ofícios que se ocupam da
administração e da vida pública. O raciocínio desenvolvido por Torres Homem leva à constatação
de que “desta tendência dos espíritos nasce a penúria de capacidades agronômicas, fabris,
comerciais e artísticas, em que labora o Brasil; (...) Ora, com o menosprezar os trabalhos úteis, nós
parecemos não conceber o espírito, e as necessidades do século em que vivemos” (TORRES
HOMEM, 1836, p.80). Conforme Torres Homem, não só de trabalhos relacionados ao
aprimoramento intelectual - como, por exemplo, as artes, filosofia, a política - consiste o
desenvolvimento próspero da nação; é preciso que haja um corpo de homens empenhados nas
atividades que se destinem à dedicação do progresso industrial, que por sua vez, também é base
primordial para a gestação de riquezas para o tesouro nacional.
A preferência por cargos públicos e o não incentivo aos ofícios relacionados aos trabalhos
industriais são resultados diretos da má visão construída em torno de atividades manuais, entendida
como atividades desprestigiadas e não dignas. Torres Homem pontua que isso também é um
problema grave para o incentivo de mão de obra livre, isto é, ao atrativo da mão de obra europeia
que não deseja ser submetida a determinadas tarefas de incumbência dos escravos. O trabalho na
lavoura, por exemplo, é entendido como uma atividade menor e indigna de ser realizada pelas mãos
de homens livres. Isso consiste em um grande obstáculo à atração de colonos europeus para cultivar
as terras brasileiras. Torres homem defende que tais atividades também são importantíssimas para o
progresso e produção de riqueza da nação. Sem elas, a marcha da indústria fica impossibilitada de
avançar.

1451
Os ataques de Torres Homem em relação à persistência da prática maléfica e incoerente da
escravidão se dirige também à “boa sociedade”, circunscrevendo esta categoria aos traficantes,
senhores de escravos e “lavradores brasileiro”. Denuncia que a “boa sociedade” é orientada por um
orgulho e fraqueza arraigados que inviabiliza a ruptura com determinadas ideias e costumes que
provocam a degeneração ética, moral e material da jovem nação, dentre elas, a insistência na ideia
de que a escravidão é o motor da prosperidade e da produção de riquezas nacionais, quando, pelo
contrário, ela segue em sentido anti-horário, ou melhor, em sentido oposto aos caminhos liberados
pelo progresso e pela civilização que se pretende alcançar.
Segundo Marcelo Rangel (2011), Torres Homem se insere na corrente que, no âmbito das
discussões sobre os encaminhamentos do tráfico e da escravidão entre as décadas de 1820 e 1830,
faz a defesa da abolição imediata tanto do tráfico de escravos como o fim súbito do uso do trabalho
compulsório no Império do Brasil. Segundo o historiador, o romântico lamenta a força política dos
traficantes e os senhores de escravos, sendo esta uma das razões para a não abolição imediata do
tráfico e da escravidão. Por fim, alega que a continuação e permanência da instituição escravista
corresponde a interesses mesquinhos, orgulhosos e fracos de determinados indivíduos que
sobrepõem seus interesses individuais à vontade geral. Nas palavras de Rangel
Torres Homem afirma que a escravidão era uma instituição que já teria nascido
ultrapassada, responsável pela decadência de quaisquer povos que insistissem em
empenhá-la a contrapelo do destino da humanidade e do espírito do tempo, e por
isto empenhava-se na defesa da abolição imediata do tráfico negreiro e da
escravidão, reconhecendo ainda, vale anotar, que seu intento encontrava
dificuldades para se concretizar, em especial em função da força política que teriam
os traficantes e os senhores de escravos no Império do Brasil. (RANGEL, 2011,
p.236)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho foi resultado do incômodo e do desconforto com determinadas interpretações


que subjugam o letrado às estruturas de dominação do Estado de forma passiva, acrítica e
superficial. Contudo, este tipo de abordagem desconsidera as tensões, disputas e relações de poder
existentes dentro das grandes instituições de poder estatal.
A proposta da discussão empreendida nestas considerações é evidenciar a necessidade de
uma abordagem mais complexa e mais fluida sobre a atuação dos homens de letra nos grandes
órgãos de poder do Estado. Cabe ressaltar que no Império do Brasil oitocentista os homens de letras
se mobilizavam em torno de discussões mais complexas e significativas que diziam respeito a
implementação do Estado Liberal. No âmbito da política externa, o ofício dos letrados, com
destaque para os primeiros românticos como foi o caso de Francisco de Sales Torres Homem,
respondia a necessidade do Império de se enquadrar como referência dentro do núcleo das nações

1452
civilizadas europeias - afinal, o território do Brasil era herdeiro direto de um Império europeu – bem
como demarcar esta condição diante as repúblicas rebeldes que se instauraram ao seu redor no
continente americano. Neste sentido, é importante refletir sobre a categoria letrada não somente
como aqueles que servem ao poder imperial, mas como um grupo que, além de ter pleno
conhecimento dos mecanismos de funcionamento das instituições imperiais, também são donos de
um poder; poder este que reconhece o limite do exercício da crítica em relação ao que parte da elite
política dirigente imperial define como algo positivo para o bom funcionamento do império, mas
que, no seu ponto de vista, pode ser um impedimento para a prosperidade da jovem nação.
O caso de Considerações Econômicas sobre a Escravatura evidencia muito bem a
possibilidade de um letrado romântico se colocar contrário a uma das instituições basilares da nação
imperial oitocentista, como a escravidão, por exemplo. Além de construir críticas à instituição do
cativeiro, Torres Homem direciona observações rígidas ao “egoísmo”, “orgulho” e a “fraqueza” das
classes beneficiadas por este tipo de trabalho forçado que impõe seus interesses acima aos interesses
da jovem nação. A insistência em tais interesses causava uma espécie de cegueira na “boa
sociedade” impedindo-a de reconhecer que a escravidão era uma força retrógrada que ia de encontro
à marcha do progresso da indústria nacional. Diante disso, compreende-se que a crítica construída e
dissertada por Torres Homem faz parte da sua missão cívica e evidencia o seu comprometimento
com a construção de um futuro redentor para a nação imperial brasileira.

1453
REFERÊNCIAS
1. FONTE CONSULTADA

TORRES HOMEM, F. de S. Considerações Econômicas sobre a Escravatura. In: Niterói, Revista


Brasiliense. Tomo Primeiro, nº. 1, 1836.

2. BIBLIOGRAFIA

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1454
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_____________. Poesia, história e economia política nos Suspiros Poéticos e Saudades e na


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RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos


para o Brasil (1800-1850). 1ª edição. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000, 238p.

SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. 3ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, 320p.

1455
A historicidade da planta de fortificação: interpretada pelo estudo de tratados de
arquitetura militar (1700-1750)

Luiza Nascimento de Oliveira da Silva 1

Resumo: Os desenhos dos engenheiros de plantas de fortificação enunciam o quanto esses


indivíduos eram munidos de um saber, qual seja, o da ciência da arquitetura militar. Pensar em
interpretar esses desenhos não pode ser uma ação dissociada da compreensão dos critérios e das
regras de produção envolvidos. Para o presente artigo, propomos debater sobre quais elementos
foram desenvolvidos em uma planta da Fortaleza de Vilheganhon e quais métodos serviram de mote
para tal fim. A historicidade e a cultura visual dos desenhos serão, portanto, exploradas através da
arte de defesa.

Palavras-chave: ciência da arquitetura militar; plantas de fortificação; cultura visual.

Abstract: The drawings of the fortification plant engineers state how much these individuals were
equipped with a knowledge, that is, the science of military architecture. To think about interpreting
these drawings cannot be an action dissociated from the understanding of the criteria and the rules
of production involved. For the purpose of this article, we propose to discuss what elements have
been developed in the Vilheganhon Fortress plant and what methods have been used for this
purpose. The historicity and visual culture of the drawings will therefore be explored through the art
of defense.

Keywords: science of military architecture; fortification plants; visual culture.

1. Introdução
O presente trabalho visa propor uma leitura interpretativa dos desenhos de plantas de
fortificação desenvolvidos pelos portugueses no reino e no ultramar, na primeira metade do século
XVIII, por meio da prática da arquitetura militar. Através de uma análise social da ciência, somos
direcionados à linguagem política de defesa. O ensino da matemática se torna, portanto, o fio
condutor de um estudo político, cultural e social. Em seu material, os tratados de arquitetura militar
e as plantas de fortificação, os engenheiros demonstraram a sua significação de aspectos do mundo.
O que o engenheiro mencionou de si, do rei, da cidade pode ser por nós em alguma medida cotejado
para compreendermos mais sobre esse indivíduo e sua obra, pois ao explicar a legitimidade da
arquitetura militar, o engenheiro abordou temáticas próprias de um período.
As obras em estudo são: o "Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação
das Praças" de autoria desconhecida e datação preliminar de ca. 1705, e o "Exame Militar" de 1703,

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHIS/UFRJ). Bolsista do CNPq. lujonascimento@gmail.com

1456
escrito pelo padre da Companhia de Jesus Luiz Gonzaga, e ditado por ele para D. João V, e seus
irmãos, por ordem do monarca D. Pedro II. Gonzaga atuou na corte desse último como seu mestre e
fora preceptor do primeiro.
Para uma análise do desenho, necessitamos pensar em como as fontes visuais são dotadas de
historicidade em si mesmas. Ulpiano T. Bezerra de Menezes em seu artigo "Fontes visuais, cultura
visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares" abordou tal temática. A relação
entre a História e o campo visual foi posta por esse autor, que sistematizou em termos de propostas
de análise as questões referentes aquele enlace. A compreensão, no nosso caso, da visualidade da
planta de fortificação se impõe como fundamento da pesquisa histórica acerca das propostas
políticas de defesa para a América portuguesa, e mais especificamente, para a cidade do Rio de
Janeiro, e como o governo desse espaço esteve atrelado ao ideal de defesa expresso nos tratados e
aplicados em plantas de fortificação. Pois, na pesquisa, na relação dialética entre documento e
problemática histórica, este último deve sempre ter prioridade, segundo Meneses:

A primeira decorrência desta postura é que trabalhar historicamente com imagens


obriga, por óbvio, a percorrer o ciclo completo de sua produção, circulação e
consumo, a que agora cumpre acrescentar a ação. As imagens não têm sentido em
si, imanentes. Elas contam apenas — já que não passam de artefatos, coisas
materiais ou empíricas — com atributos físico-químicos intrínsecos. É a interação
social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaço,
nos lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm) determinados
atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar.
Daí não se poder limitar a tarefa à procura do sentido essencial de uma imagem ou
de seus sentidos originais, subordinados às motivações subjetivas do autor, e assim
por diante. É necessário tomar a imagem como um enunciado, que só se apreende
na fala, em situação. Daí também a importância de retraçar a biografia, a carreira, a
trajetória das
imagens 2.

O estudo da produção do desenho está atrelado à dimensão do ensino dessa ciência,


copilados em tratados de arquitetura militar, a circulação esteve por conta das aulas do saber
mobilizado nos próprios textos, e descritos em diferentes métodos e teorias expostos nos referidos
tratados, o que seria, vale lembrar, um exemplo da interação social. Já o consumo e a ação podem
ser percebidos em termos práticos, na defesa praticada, com as disputas para a aplicação de
determinado desenho. Daí a importância de articular o desenho, o saber divulgado, com as querelas
expostas em documentos do Arquivo Histórico Ultramarino que mostram a prática do engenheiro e
o desenho sendo mobilizado para a defesa do território.

2
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas
cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36, 2003, p. 28 − grifos nossos.

1457
Com isso, não podemos deixar de pontuar a especificidade da planta de fortificação como
um documento visual marcado, em sua concepção, pelo ensino de uma ciência, a arquitetura militar.
Desse modo, as condições, os modos de produção do documento necessitam ser estudados, e como
este passa a ser um instrumento de poder, ao ser também identificado como monumento, nas
palavras de Jacques Le Goff 3. Este último autor, problematizou a ideia de documento como
monumento, justamente por seu caráter dotado de estratégias de poder. Dinâmica fundamental para
o entendimento da produção histórica, a crítica do documento como monumento perpassa a síntese
de sua utilização pelo poder. Pelo próprio discurso da obra, há como identificarmos as condições
concretas de produção histórica - políticas, culturais e sociais -, e de poder utilizado.

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades histórica para


impor ao futuro − voluntária ou involuntariamente − determinada imagem de si
próprias. [...] É preciso começar por desmontar, demolir essa montagem,
desestruturar essa construção e analisar as condições de produção dos documentos-
monumentos 4.

Nesse sentido, os engenheiros ao produzirem o saber em destaque, mobilizaram a produção


para marcar um discurso político de defesa e engendrar uma cultura política de defesa. Pensemos
em termos produtivos, a argumentação utilizada para designar a importância política e cultural da
ciência ensinada para a posse e o domínio do território, a retórica construída pelos engenheiros, nos
instrui acerca de como a planta de fortificação fora utilizada como instrumento de poder.
A investigação da visualidade, a identificação da imagem como objeto de análise e não
como puro conteúdo, perpassa a noção de construção histórica, artefato dotado de historicidade,
com profunda relação com a dinâmica social do período de sua produção. Estamos falando de
discursos e práticas oriundas de distintas formas de experiências visuais, cujas circunstâncias
históricas são específicas. A proposta de Meneses é que a história "para melhor atender a seus
propósitos e responsabilidades, amplie seu horizonte de ação e seu instrumental, deixando de
amputar da vida social e das forças de transformação histórica uma faixa relevante de fenômenos
(além de insuperável manancial de informações) que é insensato ignorar" 5. Ou seja, o discurso da
imagem, bem como os seus diversos usos, trazem para o centro da discussão historiográfica a
perspectiva do imaginário desenvolvido na interação social.

3
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In.: História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
4
Idem, p. 538.
5
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas
cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36, 2003, p. 31.

1458
Ler e compreender o conteúdo da documentação visual pesquisada nos possibilita identificar
algumas das intenções políticas, a gerência desejada para o território, por exemplo. Lidando com
essa documentação, Beatriz Bueno interpreta “as cartas militares como artefatos sociais e
instrumentos de raciocínio, projeto e gestão de territórios na política colonizadora ibérica” 6. Desse
modo, a fortificação e os elementos que a integram são identificados como estágio, ou categoria, do
sistema urbano. Segundo aquela autora,

para visualização e espacialização dessas e outras preocupações, artefato operatório


privilegiado é a cartografia antiga. Os mapas representam biomas, aspectos da
geografia física e humana, redes viárias, redes fluviais, o 'sistema urbano' em suas
múltiplas categorias e estágios (fazendas, registros, fortes, capelas, freguesias,
vilas, cidades, julgados, aldeias missioneiras, aldeamentos indígenas etc.) e, ainda,
registram os topônimos que lhes conferiam 'lócus' e 'identidade' 7.

Desse modo, plantas de fortificação e mapas são objetos iconográficos que nos possibilitam
perceber a dimensão da defesa no processo de colonização portuguesa, em particular na cidade do
Rio de Janeiro. As fortificações e suas plantas são consideradas como fontes históricas, na medida
em que há o caráter do significado da fortificação, e não apenas de sua concreta edificação. Roberto
Conduru também destaca seu aspecto múltiplo e simultâneo, de monumento e documento.

Recorrendo à possibilidade desses objetos falarem tanto da classe de objetos a que


pertencem quanto do momento e do lugar em que surgiram, pode chegar à história
social da cultura desenvolvida às margens da baía de Guanabara e, também,
esclarecer sobre as práticas da cartografia e da fortificação em particular e em suas
relações com a história da arte e da ciência 8.

Nesse paradigma do caráter retórico das plantas de fortificação e da importância do estudo


de suas técnicas, é possível notar o quanto a potência virtual do sistema defensivo acaba por
sobrepor a potência real. Para Conduru, a função significadora, o ato de simular a segurança se
torna ainda mais importante do que a própria segurança. O complexo defensivo afirma-se enquanto
sistema de imagens, reforçando o seu caráter teatral de cenografia para o espetáculo da guerra 9.
Ao identificar o caráter político e simbólico dos desenhos, seja em mapas ou nas plantas de
fortificação, Beatriz Bueno propõe uma metodologia de análise morfológica da linguagem
cartográfica, abordando essa linguagem como cultura material. A busca da autora é por
6
BUENO, Beatriz P. S.. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Edusp, 2011,
p. 23.
7
Idem, p. 26.
8
CONDURU, Roberto. Geometria bélica: cartografia e fortificação no Rio de Janeiro Setecentista. In: CARITA,
Helder; ARAÚJO, Renata (Org.) Universo urbanístico português (1415-1822). Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p.119-141, p. 122.
9
Idem.

1459
compreender o processo de produção através de tratados de geometria prática, desenho e
arquitetura, contemporâneos ao seu objetivo de estudo – mapas mais especificamente. Como a
autora, verificamos como os códigos de representação são mobilizados, bem como as condições
técnicas da sua produção e os cuidados na interpretação da sua linguagem: as plantas de fortificação
como objetos culturais. Importante também é o estudo da morfossintática desses desenhos como
textos, com diferentes níveis de representação e códigos figurativos, de acordo com as escolhas
culturais e as concepções de mundo de cada período histórico.
Como qualquer documento histórico, as plantas de fortificação apresentam lógicas
específicas em diferentes contextos, sendo as convenções cartográficas próprias de cada época. Por
isso, o seu entendimento nesse pressuposto teórico-metodológico permite a associação desses
documentos com a formação do universo urbanístico da cidade do Rio de Janeiro e com as
intenções da definição de tal espaço. O que Beatriz Bueno chamou de configuração gráfica pode ser
extraída por meio da observação dos usos do material cultural em estudo, o reconhecimento
atribuído ao mundo, pois a representação visual – sejam mapas ou plantas de fortificação – não é o
produto de códigos universais, mas sim objeto oriundo de um contexto cultural específico,
apresentando uma dimensão retórica, sendo caracterizada como instrumento de poder, da mesma
forma que vimos a respeito da análise de Le Goff. O desenho é, então, identificado como desígnio,
entendendo por desígnio a intenção de propostas políticas e sociais de um período. Bueno lembra
que “‘desenho’ era também o exercício mental que precedia a viabilização de qualquer coisa – não
exclusivamente os arquitetônicos; era o elo entre o conhecimento da realidade e a ação sobre ela e,
portanto, sinônimo de desígnio” 10.

2. A defesa e o ideal do bom governo


Quando refletimos sobre a roupagem, a aparência acerca da retórica em relação ao governo
do príncipe, ou melhor, uma retórica principesca, os objetos e os objetivos da ciência da arquitetura
militar nos fornecem indícios dessa questão. Podemos começar apontando o quanto o ensino do
saber defensivo esteve atrelado ao ideal de proteção do príncipe, de seus domínios, e, portanto, de
sua soberania política que perpassava a soberania territorial. Partimos da ideia de que a formação de
um discurso para o governo do Príncipe está em articulação à ciência em estudo, o que pode ser
identificado nos tratados de arquitetura militar, uma vez que o seu ensino tinha por objetivo que o

10
BUENO, Beatriz P. S.. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Edusp, 2011,
p. 30

1460
Príncipe exercesse o bom governo, ou seja, "a boa administração, conservação e aumento dos
domínios" 11.
A referida articulação entre Luiz Gonzaga e os governos dos “Príncipes” citados, para além
de sua posição política, fica clara quando analisamos sua obra. O diálogo com o governante, que
Gonzaga chama de Príncipe, nos introduz em uma relação intrínseca entre a ciência da arquitetura
militar e o governo soberano de um monarca. Dito de outra forma, os conceitos ensinados por esse
tratadista remetem às questões políticas, do governo do Príncipe. Um ponto a ser destacado é a
própria definição do autor para as fortificações como objetos de manutenção do domínio régio.
Da mesma forma, o Autor desconhecido argumenta para corroborar a "dignidade" da
fortificação: "Confirma-se [a dignidade da fortificação]; porque muitos príncipes soberanos se tem
aplicado a esta ciência, e todos os da Europa lhe dão estimação: logo é evidente, que ela tem grande
12
dignidade" . Além de, "pelo que diz Aristóteles no Sétimo da Política, que a cidade fiada no seu
13
poder se há de cercar com muros" . Em "A Política", Aristóteles, no item "Da Finalidade do
Estado", afirma que o principal fim para a reunião dos homens seria "pôr a vida em segurança" 14.

3. Exemplo de análise: "Plano da Fortaleza de Vilgalhon com os acréscimos que se lhe


fizeram"
Por ora, para a prática do que abordamos até aqui, vejamos alguns dos elementos do "Plano
da Fortaleza de Vilgalhon com os acréscimos que se lhe fizeram" (Figura I em anexo). Trata-se de
uma cópia do acervo do Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro. Em substituição às torres
de vigia, engendrando a fortificação moderna, o baluarte é o elemento mais importante da
fortificação, sendo composto pela face, pelo flanco e pela cortina, que são, respectivamente, na
imagem a seguir, as linhas acima das letras A e C, as linhas AB e CD e as linhas abaixo dos pontos
B e D.

Figura 1: Baluarte

11
GONZAGA, Luiz. Exame Militar, 1703, p. 5.
12
AUTOR DESCONHECIDO. Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças, ca.
1705, p. 12.
13
Idem, p. 14.
14
Aristóteles. A Política.

1461
Fonte: Gonzaga, Luiz. "Exame Militar", 1703.

As aulas de Luiz Gonzaga ensinavam que para explicar quais são os pontos fortes e fracos
de uma praça fortificada, o importante é começar com o ângulo, por ser esta a parte mais fraca, e
15
por isso a que necessitou de transformação. O baluarte é apontado, então, como a grande
invenção moderna que minimiza a fraqueza dos ângulos. No desenho em estudo, o baluarte, que no
caso, são dois meios baluartes, podem ser observados a seguir:

Figura 2: Recorte do "Plano da Fortaleza de Vilgalhon com os acréscimos que se lhe fizeram"

Fonte: Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro (Código: 0626,

15
O baluarte foi criado no século XV, mas ganha fama apenas no Seiscentos, com os projetos do francês Vauban.

1462
Localização: 04.02.626)

Outro elemento presente no desenho em tela, é a obra exterior tenalha, representada nos
16
desenhos geométricos do Autor desconhecido . Na figura 2 a seguir, as figuras 19 e 20 são,
respectivamente, a tenalha simples e a dobre.

Figura 3: Tenalha simples e dobre

Fonte: Autor desconhecido, ca. 1705, Estampa 3ª.

Como obra exterior, a tenalha, que no caso em perspectiva, identificamos como dobre 17 − e
não simples −, tinha por premissa fazer parte da defesa quando a praça não permitia o desenho do
hornaveque 18 (devido às dimensões do sítio da praça ou por dispor de pouco tempo para edificar o
hornaveque), tido por perfeito no texto do Autor desconhecido. Além da tenalha dobre ser melhor
do que a simples. “A razão é; porque o ângulo reintrante CFH − fig. 97, é menos obtuso do que o
reintrante da tenalha simples, mas assim fica melhor defendido: logo a tenalha dobre é melhor do
que a simplesˮ 19.

Figura 4: Medidas das tenalhas simples e dobre

16
AUTOR DESCONHECIDO. Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças, ca.
1705.
17
Figura II em anexo.
18
Figura III em anexo.
19
AUTOR DESCONHECIDO. Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças, ca.
1705, p. 180.

1463
Fonte: Autor desconhecido, ca. 1705, Estampa 17ª.

Portanto, objetivando uma melhor defesa, o Autor desconhecido classificou a tenalha dobre
como melhor do que a simples, pois aquela possuía dois ângulos reintrantes (CFH e HGE da figura
3 exposta acima), o que permitia a sua maior defesa, com ângulos menos obtusos do que o ângulo
CIE da tenalha simples. Talvez por isso, o autor da “Plano da Fortaleza de Vilgalhon com os
acréscimos que se lhe fizeramˮ apresentada tenha realizado a mesma escolha, melhor defesa em
menos tempo, e, por isso optou pela tenalha dobre.
A partir do ensino do Autor desconhecido, somos direcionados às medidas do polígono
exterior e a da linha de defesa fechante. Dimensões que nos informam acerca da natureza
classificatória da proposta do desenho. A medida do lado do polígono exterior é marcada pela linha
que une as pontas dos baluartes. De acordo com a medida da planta de fortificação em estudo, o
lado do polígono exterior mediria aproximadamente 240 pés, (40 braças, com cada braça sendo
igual à 6 pés), o que não se adéqua ao ensino do Autor desconhecido que variava entre 600 e 1.000
pés como parâmetro daquele elemento do desenho e característica da fortificação real, de resistência
20
. A linha de defesa fechante é a medida da linha da ponta do baluarte à extremidade da Cortina
(dimensão que liga um baluarte ao outro) do baluarte oposto. Com 25 braças de linha da defensa
fechante o que são 150 pés, o "Plano da Fortaleza de Vilgalhon" está abaixo dos 600 pés definidos
como medida para uma fortificação real, de resistência, frisamos mais uma vez. Portanto, na
composição do sistema defensivo, aquele desenho designava uma fortificação de Campanha, isto é,
de ataque.
20
"[...] se deve advertir se a praça for real, se há de admitir o tal lado [do polígono exterior] de 600 até 1000 pés".
AUTOR DESCONHECIDO. Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças, ca. 1705,
p. 97.

1464
Considerações Finais
A ideia de relacionar o desenho da planta de fortificação com o governo do território
perpassa a formação urbana do Rio de Janeiro da primeira metade do século XVIII voltada para os
aspectos defensivos. O período ainda marcado pelo fim da União Ibérica, quando Portugal
necessitava legitimar ainda mais os seus domínios na América, bem como com o advento das
invasões francesas no início da centúria, indicam o quanto a defesa precisava ser a matriz das
estratégias políticas e da urbanização das cidades ultramarinas, em especial o Rio de Janeiro.
Vale ressaltar que o nosso intuito foi pontuar apenas um extrato do sistema defensivo para a
cidade do Rio de Janeiro proposto por engenheiros capacitados para tal finalidade. Indicamos
também um exemplo de metodologia de estudo das plantas de fortificação, que em outros trabalhos
estarão conectadas para que possamos vislumbrar o ideal de defesa como um todo.

Bibliografia
Fontes
AUTOR DESCONHECIDO. "Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das
Praças" (ca. 1705).
GONZAGA, Luiz. "Exame Militar" (1703).

Livros e revista
BUENO, Beatriz P. S. Decifrando mapas: sobre o conceito de território e suas vinculações com a
cartografia. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 12, p. 193-234, 2004.
____. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Edusp,
2011.
CONDURU, Roberto. Geometria bélica: cartografia e fortificação no Rio de Janeiro Setecentista.
In: CARITA, Helder; ARAÚJO, Renata (Org.) Universo urbanístico português (1415-1822).
Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p.119-
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LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In.: História e Memória. Campinas: Editora Unicamp,
2003.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço
provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36,
2003.

1465
Anexos
Figura I: "Plano da Fortaleza de Vilgalhon com os acréscimos que se lhe fizeram"

Fonte: Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro (Código: 0626,


Localização: 04.02.626)

Figura II: Recorte do "Plano da Fortaleza de Vilgalhon com os acréscimos que se lhe fizeram":
tenalha dobre

Fonte: Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro (Código: 0626,


Localização: 04.02.626)

Figura III: Recorte que indica o hornaveque

1466
Fonte: Autor desconhecido, ca. 1705, figª 21, Estampa 1ª.

1467
O Movimento Estudantil e a Esquerda Armada na Luta contra a Ditadura (1968-1972):
O caso do PCBR em Pernambuco

Maicon Mauricio Vasconcelos Ferreira1

Em 1º de Abril de 1964, o Estado democrático de direito2 no Brasil e o povo, são vítimas de


um golpe de direita de composição civil-militar. Instaura-se uma ditadura no país, que irá perdurar
por “21 anos de arbítrio e exceção”3. E como todo sistema autoritário, com seu caráter
intrinsecamente repressivo, não seria admitida qualquer contestação. Pautava-se na Ideologia de
Segurança Nacional4 que instituiu a noção de guerra interna e concomitantemente à busca
desenfreada da institucionalização de todo aparelhamento repressivo fundado na utopia autoritária.
O processo conspiratório, e o próprio golpe, demonstraram-se como um recurso utilizado
pela classe dominante, civil e militar, intermediada pelas suas forças políticas e entidades de classe,
para refrear as conquistas democráticas que vinham sendo galgadas pela classe trabalhadora a partir
da curta experiência democrática brasileira5, sobremodo nos anos 60 e com maior agudeza no
governo de Jango. O golpe asseguraria a dominação burguesa num momento de crise de
hegemonia6.
Já no ano de 1968, de modo semelhante ao cenário em nível mundial e nacionalmente, em
Pernambuco, também se configurou como de extrema agitação e vivacidade dos movimentos que se

1
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Bolsista Capes. mf.ferreiro@outlook.com.
2
Entendendo Estado de Direito como o “Estado cujo poder político se submete ao império da lei – expressão da
vontade da nação e elaborada pelo Parlamento – e não às vontades pessoais do governante. Estado de Direito é o Estado
que possui poderes políticos autolimitados, em nome da liberdade da sociedade burguesa que se consolida. (BOBBIO,
Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. p.157
3
CAMPOS, Antônio de. O Caráter e o Sentido do Golpe de 1964 no Brasil. Recife: Oito de Março Gráfica e Editora,
2011. p.19
4
Cf. COMBLIN, J. A Ideologia da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
5
Ver sobre a questão os trabalhos de Caio Navarro de Toledo: O Governo Goulart e o Golpe de 64. São Paulo
Brasiliense. 1983; “1964: O Golpe Contra as Reformas e a Democracia” In MOTTA, Rodrigo Patto Sá. REIS FILHO,
Daniel Aarão. RIDENTI (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar: 40 Anos Depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004.
6
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis,
Vozes, 2006.

1468
organizavam na contramão do regime civil-militar que vigorava. A resistência se fortalece, as
manifestações aumentam exponencialmente, ainda que a repressão política igualmente.
Esse ano irá marcar o ponto culminante de uma década de movimentos juvenis que se
espalharam por quase todo o planeta e no Brasil irá assinalar a “opção” pela luta armada como via
alternativa de resistência e construção de uma nova sociedade: há uma radicalização da oposição ao
regime, que em resposta decreta a 13 de dezembro o Ato Institucional nº 5, o AI-5, este irá cercear
toda liberdade de expressão democrática que ainda se pudesse aventar como possível aos opositores
ao Estado ditatorial. Era a oficialização patente do Terrorismo de Estado, o qual perduraria em
efetividade até a segunda metade dos anos 1970, mais precisamente até 1978.
Pairava no ar um clima revolucionário, a resistência à ditadura entremeava-se com o ideal
revolucionário, os militantes requeriam ações mais contundentes e radicais no enfrentamento ao
Estado opressor. As utopias são a máxima do movimento, num sentimento de fervor e impaciência
por profundas transformações sociais. O PCB terá dividendos negativos dos acontecimentos, pois
daí irá surgir vários rachas e uma fragilização decorrente. Alçava-se a visão inclusive de que “a
postura essencialmente “reformista” e não revolucionária do PCB teria sido responsável pelo golpe
de 64.”7.
No Brasil, assim como em vários países da América Latina, a opção pela luta armada
significou um confronto com o Partido Comunista. Entre 1962 e 1972 criaram-se inúmeras
organizações de esquerda, a maioria delas egressas direta ou indiretamente do PCB e quase todas
voltadas para a luta armada. A maioria delas criticava o PCB pelo imobilismo, pelo pacifismo e
pelo reformismo. “A luta armada, portanto, era a afirmação de um outro caminho político para a
revolução brasileira: o caminho da “via revolucionária”.”8
Juventude, radicalidade política e contestação encontraram-se vinculadas na década de 1960
e início da de 70 em todo o Cone-sul ou mesmo na América Latina, constituindo-se em timbres
indeléveis desse intervalo histórico. A anunciação da luta armada como via de atuação política das
esquerdas, arrogando-a como necessidade histórica em diversos países da América Latina, está
amalgamada com este cenário. Esta começou a ser tentada, no Brasil pós-golpe, pela esquerda em
1965 e desfechada em definitivo a partir de 1968.9

7
Idem. p.265
8
ARAÚJO, Maria Paula. Esquerdas, Juventude e Radicalidade na América Latina nos anos 1960 e 1970. IN: FICO,
FERREIRA, ARAUJO & QUADRAT (Orgs.). Ditadura e Democracia na América Latina: Balanço histórico e
perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p.269
9
As primeiras organizações especificamente voltadas para a luta armada foram criadas em 1966: Ala Vermelha do PC
do B, Dissidência Comunista da Guanabara (que mais tarde mudará o nome para Movimento Revolucionário 8 de
Outubro, MR-8, em homenagem à Che Guavara); em 1967 foi criada por Marighela a Ação Libertadora Nacional
(ALN) e a COLINA; em 1968 surgiram o PCBR e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); em 1969 a VAR-
Palmares. A lista é certamente incompleta e não dá conta das várias fusões que também se estabeleceram. (ARAÚJO,
Maria Paula. Esquerdas, Juventude e Radicalidade na América Latina nos anos 1960 e 1970. IN: FICO, FERREIRA,

1469
As principais organizações voltadas para a luta armada que atuaram em Pernambuco foram
o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), a Aliança Libertadora Nacional (ALN), O
Partido Comunista Revolucionário (PCR), A Frente de Libertação do Nordeste (FLNe) e a
Varguada Armada Revolucionária – Palmares (VAR-Palmares), sendo a primeira a maior e mais
expressiva Organização da Esquerda Armada que atuou em Pernambuco durante o período da
ditadura, - 1968-1973, anos de sua existência-, além de possuir a maior inserção no movimento
estudantil do Estado, donde proveio também a majoritária de seus quadros. E sobre este aspecto que
este artigo traz considerações.
A linha política do PCBR, articulado por Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de
Carvalho e outros, elaborada no Congresso de Fundação e que definia todos os nortes de sua
atuação foi dividida em quatro grandes tópicos: O Caráter da Revolução Brasileira; A Revolução
Brasileira e a Situação Mundial; O Caminho Revolucionário no Brasil; O Partido da Vanguarda
Leninista. Nesse documento declaram a necessidade da combinação na luta de massas do caráter
ilegal e não-pacífico com o legal e pacífico, porém anunciando que com o emprego exclusivamente
dos últimos não há horizonte de sucesso para a revolução; estes meios devem ser utilizados para o
desenvolvimento do movimento de massas a serviço da luta armada, porque somente a violência
revolucionária pode vencer a violência reacionária estabelecida.
E é este aspecto, de agrupamento de modos legais com os ilegais na luta revolucionária, ou,
mais precisamente, a tentativa de conciliação da perspectiva militar com a do movimento de
massas, que diferenciava o PCBR da majoritária esmagadora das organizações de luta armada do
período, sendo a ALN a mais emblemática desse outro polo, mais militarista. Em Pernambuco
desenvolveu um esforço para, concomitante as ações armadas, desenvolver um trabalho orientado
para o movimento de massas, o Movimento estudantil era também conjugado nessa frente.
Para o PCBR, além da conjugação do trabalho de massas no campo e na cidade serem
fatores indispensáveis para o rebento e êxito do projeto revolucionário, ela também manifesta-se
estratégica no combate e neutralização da repressão, bem como agudiza a crise do sistema,
minando-o e preparando sua derrocada. Enfatiza-se que a luta armada deve ser conduzida com
articulação com as massas e não de forma independente em dissociação com estas. E asseveram
que, na empreitada da luta contra a ditadura é vital a arregimentação dos setores populares num
mesmo bloco ou frente única, ficando excluídos obviamente apenas os dois setores que representam
nacionalmente a classe dominante: burguesia e latifundiários. Sendo do partido marxista-leninista -

ARAUJO & QUADRAT (Orgs.). Ditadura e Democracia na América Latina: Balanço histórico e perspectivas. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2008. p.270)

1470
declara-se no documento – a maior responsabilidade de conduzir essa frente única popular como
também evitar que esta se desvie dos caminhos da revolução.
Advertem que trabalho de massas deve ser feito simultaneamente à apresentação do
programa revolucionário, e este trabalho de massas deve ser promovido organicamente no seio das
categorias e não apartada das lutas cotidianas. Contrariamente, o Partido tem o dever de estar a
frente destas reivindicações, priorizando as mais prementes da ocasião. E nesta dinâmica geral
contribuindo para elevação das consciências políticas para que transcendam o particularismo e
demonstre a confirmação global das problemáticas e seus verdadeiros culpados: a classe dominante
nacional (burguesia e latifundiários) e o imperialismo estadunidense. Sendo a ditadura manifestação
do poder desses agentes.
Quanto às reivindicações mais imediatas, enunciam as seguintes, basilares para elucidar sua
posição de resistência e combate, já planejado, à ditadura: lutar em defesa das liberdades
democráticas; pela revogação dos atos da ditadura; pela libertação dos presos políticos; contra a
opressão e o terror policial; pelos interesses vitais dos operários; contra a política de arrocho
salarial; por aumento de salários e liberdade sindical; pelas aspirações dos trabalhadores agrícolas e
camponeses; por uma verdadeira reforma agrária; pela solução dos problemas dos estudantes e de
todas as camadas populares; pela resistência ao crescente domínio econômico e políticos do
imperialismo estadunidense. Assim está posto na sua Linha Política10. Há de fato, como se pode
observar, na compreensão do PCBR, um determinismo pungente do imperialismo no destino do
país, numa aproximação clara com as premissas da teoria da dependência.
O PCBR deixa claro na sua linha política de que não traçou a estratégia da luta armada
devido à instauração da ditadura ou mesmo do fechamento das vias legais de atuação, argumento
utilizado por vezes como mote explicativo da imersão das organizações na luta armada a partir
sobretudo de 1969 e secundarizando que esta foi, de fato e primeiramente, por escolha política:
No curso da luta, devemos estar preparados para a possibilidade de substituição da ditadura por
outro governo que se revista de uma fachada democrático-representativa, mas exclua o povo do
poder político e defenda os privilégios da reação e do imperialismo. Em vista do crescente
desgaste do governo ditatorial, as classes dominantes podem antecipar-se à ação revolucionária das
massas, substituindo-o por outro governo reacionário com uma roupagem constitucional.
Transferências de poder deste tipo, puramente formais, têm ocorrido no Brasil e na América
Latina. Em face de tal eventualidade, cabe às forças revolucionárias desmascarar a manobra da
reação e revelar ao povo o conteúdo antipopular do novo regime, prosseguindo a luta pelos
objetivos da revolução. Necessária para derrubar a ditadura militar, a luta armada continuará a ser
necessária se, após a queda do regime ditatorial, se mantiver no país o Estado da burguesia e dos
latifundiários, base da dominação imperialista. 11

10
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (APEJE). Linha Política – Publicações do PCBR. SSP/DOPS-PE.
Prontuário 27.342.
11
Idem

1471
Diante da continuidade da oposição organizada ao regime, e ciente do lócus estratégico-
tático que ocupava a juventude, atuante sobremaneira no Movimento Estudantil, setor de maior
resistência ao regime de exceção após a decretação do 5º ato institucional, a ditadura cria, nas férias
escolares, um instrumento de “controle legal definitivo do Movimento Estudantil”12: o decreto 477.
Como disse um autor: “Expressão mais acabada das ameaças de repressão política e ideológica à
universidade brasileira”13. Há quem defenda inclusive que foi a pá de cal no movimento estudantil
daquele período14. Estando a Presidência Costa e Silva, no Ministério da Justiça Luiz Antônio da
Gama e Silva e no Ministério da Educação Tarso Dutra.
Há uma agudização, através do DL 477, das premissas lançadas desde 1964, quando da
instituição da Lei Suplicy de Lacerda, que decretava a proibição aos órgãos de representação
estudantil a toda e qualquer manifestação, ação de perfil político partidário, bem como o incitar
greves ou paralisações. Além de prescrever a submissão das entidades estudantis ao controle do
Estado, mais precisamente ao Ministério da Educação. Destacamos, nesse sentido seu artigo 1º:
Art. 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado
de estabelecimento de ensino público ou particular que:
I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a
paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento;
II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de qualquer
natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dêle;
III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos,
passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dêle participe;
IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua
material subversivo de qualquer natureza;
V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro de corpo docente,
funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente de autoridade ou
aluno;
VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar
ato contrário à moral ou à ordem pública.
§ 1º As infrações definidas neste artigo serão punidas:
I - Se se tratar de membro do corpo docente, funcionário ou empregado de
estabelecimento de ensino com pena de demissão ou dispensa, e a proibição de
ser nomeado, admitido ou contratado por qualquer outro da mesma natureza,
pelo prazo de cinco (5) anos;
II - Se se tratar de aluno, com a pena de desligamento, e a proibição de se
matricular em qualquer outro, estabelecimento de ensino pelo prazo de três (3)
anos.
§ 2º Se o infrator fôr beneficiário de bolsa de estudo ou perceber qualquer ajuda
do Poder Público, perdê-Ia-á, e não poderá gozar de nenhum dêsses benefícios
pelo prazo de cinco (5) anos.
§ 3º Se se tratar de bolsista estrangeiro será solicitada a sua imediata retirada de
território nacional

12
Termo empregado por CAVALARI, Rosa Maria F. Os Limites do Movimento Estudantil: 1964-1980. Dissertação.
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1987. p.137
13
CUNHA, Luiz Antônio. GÓES. Moacyr de. O Golpe na Educação. 11. Ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.,
2002. p.38
14
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. Memórias Estudantis, 1937-2007: Da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Relume Damará; Fundação Roberto Marinho, 2007. p.193

1472
Esse decreto vinha para coibir quaisquer tipos de manifestações políticas nas instituições de
ensino do país, de menor ou maior grau, que contestassem a ordem que vigia, proibindo-se desde
reuniões e confecção e entrega de panfletos ditos “subversivos” até a promoção de greves ou
passeatas. Era a política de silenciamento da resistência que avançava no seu endurecimento
repressivo.
O AI-5 conjugado com o Decreto-Lei 477 e a Reforma Universitária, instituída e 28 de
Novembro de 1968 pela Lei 5.540 baseada nos acordos MEC-USAID15, formam a tríade central que
transformou a Universidade brasileira ajustada à máxima do regime O Diálogo é a Violência,
implantando, ao passo de destruía o precedente, um regime de socialização totalmente avesso ao
anterior a partir de uma matriz de massificação que divorciava a expansão qualitativa da expansão
puramente quantitativa. obviamente optando pela última. Engendrou um processo de desmonte do
aparelho socializador característico das instituições de ensino superior, sobremaneira as públicas,
dando lugar a um modelo individualizante com vistas ao mercado e destituído da essência crítica e,
por consequência, dialógica.
Já não bastassem tantos funestos elementos, o decreto 477 foi reconhecidamente utilizado
como instrumento de represália aplicado a estudantes em decorrência de questões pessoais com os
gestores das instituições escolares sobremaneira públicas. Nas instituições privadas essa lei era
utilizada principalmente para demitir professores. E ainda há um agravante, apesar de não estar
previsto no texto da lei, efetivamente o enquadramento neste decreto terá vigência de caráter
retroativo, sobremodo para os sujeitos infratores da lei de segurança nacional, esta de 1967. Não se
deve a casualismos, os muitos estudantes que participaram do XXX congresso da UNE e foram
postos em liberdade em liberdade, serem em quase sua totalidade englobados pelo decreto 477.
Consta, segundo levantamento realizado pelo Jornal Estado de São Paulo, que “durante seus
10 anos de existência, o Decreto Lei 477, foi utilizado 245 vezes, atingindo 12 estudantes do ensino
médio, 228 do ensino superior, 3 professores e funcionários de instituições universitárias”16. Em
Pernambuco, a perseguição aos estudantes foi tão expressiva, que este enquadra-se como o 2º
estado mais atingido pelo 477, sendo no mínimo 67 estudantes os punidos diretamente pelo Decreto
Lei17, número superado apenas pelo Rio de Janeiro, com 82 punições. As instituições, com maior

15
Afora outras leis complementares que viriam depois, a exemplo das Portarias Ministeriais n°s 149-A, de 28 de março
de 1969, e a 3.524, de 3 de outubro de 1970.
16
Estado de São Paulo apud CAVALARI, Rosa Maria F. Os Limites do Movimento Estudantil: 1964-1980.
Dissertação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1987. p. 140
17
Levantamento realizado pelo cruzamento de dados de documentos diversos, mas concentrado em três grandes
categorias: Jornais de grande circulação do período (Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco), Documentos
internos da Universidade Federal de Pernambuco e Correspondências e inquéritos do próprio Departamento de Ordem
Política e Social.

1473
número de indiciados foram: a Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade Federal Rural
de Pernambuco e a Fundação de Ensino Superior de Pernambuco.
Toda essa sanha repressiva dos anos de chumbo vai acelerar o processo que o AI-5 havia
catalizado, a passagem de muitos jovens, que vendo-se sem vias efetivas de militância, farão a
passagem da atuação na resistência democrática para a resistência revolucionária, expressa no
período nas organizações armadas.

A atuação do PCBR no Movimento Estutantil de Pernambuco

A estrutura organizativa e de comando do PCBR estava disposta da seguinte forma: No topo


do organograma estava Comitê Central (CC), a esse estavam subordinados todos os Comitês
Regionais (CRs), que por sua vez subordinavam os Comitês Zonais (CZs) e vinculados a estes os
setores, e para cada setor existia um assistente que dava orientação política, ideológica e
organizativa aos seus integrantes e informava e mediava a relação com as direções superiores, já
que por norma de segurança os componentes dos setores não deveriam se conhecer. A critério de
ordenamento partidário, Pernambuco seria dividido em dois grandes Comitês Zonais, o CZGR
(Comitê Zonal do Grande Recife) e o CZZC (Comitê Zonal da Zona Canavieira). Os setores se
resumiam na prática ao setor operário, estudantil, Profissionais Liberais (PLs) e do Campo. E ainda
contava com as Organizações Para-partidárias (OPPs), que era um esfera pré-partidária de apoio de
futuros possíveis membros. Quanto à estrutura armada, respondiam o Comando Político Militar
(CPM) e posteriormente também o Grupo Armado de Propaganda (GAP), além de contar com o
Comitê de Agitação e Propaganda (CAP), estes estruturalmente contavam com um comandante e,
diferentemente das outras instâncias, as decisões não eram democrática entre seus participantes.
Como já havia uma inserção dos militantes no movimento de massas, e a promoção deste
trabalho de mobilização compunha papel estratégico na tese da Revolução Brasileira do PCBR,
continua-se a atuação neste formato, sobremaneira no Movimento Estudantil, onde o Partido tinha
bases em vários lugares estratégicos, a exemplo da Faculdade de Direito do Recife, Escola de
Arquitetura, Escola de Geologia e da Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP), majoritariamente
na condição de gestão de Diretório Acadêmico. Focaremos na atuação do PCBR na EEP devido a
sua relevância dentro do quadro geral do ME do Estado e de sua posição tática particular para o
Partido.
No ano de 1968, o PCBR participou, com suas bases, ativamente das manifestações de rua
populares e estudantis, neste último exercendo inclusive clara liderança e papel organizativo. Bem
como desenvolveu uma militância cotidiana em que tinha núcleos de inserção, no movimento
estudantil secundarista e universitário, em que desenvolveu uma atuação orgânica e combativa, já

1474
respaldada antes mesmo da atuação enquanto Partido, mas agora as atividades pressupõem todo um
novo horizonte que apesar de delineado, não havia sido definido; tratava-se do caminho armado
para a revolução. E essa atuação estará quase sempre no extremo da legalidade ou fora dela, e vai se
aguçando, os riscos inclusive, com o decorrer do tempo e o enrijecimento da repressão.
1968 marcará o momento áureo do Partido em Pernambuco no tocante à mobilização de
massas e recrutamento para o partido, pois diante das manifestações em pleno vapor e o clima
político efervescente a adesão a organização era tarefa menos inglória do que nos tempos que
estariam por vir. Também é nestes primeiros meses que o PCBR conseguiu aplicar em condições,
minimamente favoráveis, suas premissas de atuação por meios legais no movimento de massas, pois
com o endurecimento político e repressivo desfechado contra toda e qualquer oposição, impôs-se
uma atuação com o timbre irrevogável da desobediência civil.
O Diretório Acadêmico da Escola de Engenharia de Pernambuco, situada então na Rua do
Hospício no Recife, era um dos principais núcleos de atuação do movimento estudantil do PCBR.
Neste Diretório Acadêmico forma-se um núcleo de membros e apoiadores do partido, que teve uma
relevante, ainda que difícil e decrescente, renovação no decorrer do tempo, quando da imposição da
clandestinidade devido às atividades políticas; foi composto ativamente por Alberto Vinicius de
Melo Nascimento, João Mauricio de Andrade Baltar e Candido Pinto de Melo, e posteriormente
Pedro Eugênio de Castro Toledo Cabral, principal articular do ME após o descenso do movimento
de massas. As panfletagens, reuniões, conclamação de assembleias, paralisações, são as principais
atividades promovidas que gradativamente erigem-se maiores dificuldades operacionais, bem como
majoram-se exponencialmente os riscos, no plano jurídico e físico mesmo, de executá-las, e a rede
de apoio vai minguando cada vez mais diante dos fatores conjunturais.
Cândido Pinto desenvolve uma proeminência no ME e projeta-se como principal líder
estudantil da Escola de Engenharia de Pernambuco do período, chegando a outubro em 1968 a
eleger-se presidente da União dos Estudantes de Pernambuco (UEP) - desarticulada desde o golpe -
numa eleição acirrada contra a Ação Popular, representada por Marcos Burle de Aguiar. E os meses
seguintes marcaram o descenso do movimento de massas, apesar de ainda haver, indiscutivelmente,
uma efervescência política muito grande e um combate diário ao Regime. Denunciava-se aos
estudantes primeiramente e, quando possível, à sociedade em geral, nas atividades promovidas, as
arbitrariedades da ditadura e conclamando-a lutar em prol de uma universidade e sociedade
melhores e mais democráticas. Pois o movimento estudantil carrega a marca da junção das suas
pautas internas, mais corporativas por assim dizer, com as questões sociais mais gerais. O combate
à reforma universitária empreendida em 68 e a aplicação do Acordo MEC-USAID é emblemático
nesse sentido também em Pernambuco, fatores indiscutíveis de desmobilização no meio

1475
universitário a partir da construção de uma universidade pautada no tecnicismo e carente de
conteúdo de socialização e reflexivo.
Em finais de 68 e inícios de 69, numa escalada repressiva aguda, o movimento estudantil foi
um dos principais alvos. Vários diretórios acadêmicos sofrem intervenção, são fechados ou mesmo
destruídos fisicamente, como chegou a ocorrer na Universidade Católica de Pernambuco (UCP).
Com seus membros perseguidos ainda mais duramente, muitos inquéritos abertos para punição
exemplar dos militantes opositores - ao Regime ou às diretorias e administração geral alinhadas
com este – com o fito de exterminar todo e qualquer contradito às iniciativas do Estado autoritário e
igualmente amedrontar ainda mais os que pensassem em pelo menos apoiar o movimento.
Conseguem destituir os DAs de sua razão política originária de luta. E isso é acompanhado,
articuladamente, como todo um arcabouço jurídico, a principiar-se com o AI-5, que sustentaria o
paroxismo repressivo, torpemente com pretensões de democracia, categoricamente afirmada no
plano discursivo governamental e legitimada pelo absenteísmo devido em muito aos resultados
econômicos advindos do “milagre econômico”.
O Decreto 477, anteriormente debatido, insere-se estrategicamente nesse contexto. O qual
foi analisado pelo PCBR em sua Carta Política de 1969, e que institucionaliza e intensifica a
repressão na universidade. Retira dos conselhos e congregações o poder decisório e concentra-a nas
mãos de diretores e reitores – nomeados pelo Estado, evidentemente. Há, de fato, um processo de
militarização da Universidade, com a inserção sem processo seletivo de estudantes pertencentes às
forças armadas com o intento de vigiar e reprimir. Depreende a Carta Política que:
Com a aplicação do decreto 477 e a intensificação geral da repressão, as forças
revolucionárias que atuam na universidade sofreram um grande golpe, cujas
consequências foram:
⎯ Afastamento da universidade de grande número de estudantes e
professores;
⎯ Forçou a afastamento dentre as lideranças e a massa, desde que com a
intensificação da repressão tornou-se impossível as lideranças estarem
presentes no dia a dia de cada faculdade;
⎯ Passagem para a ilegalidade da grande maioria das entidades de massa;
⎯ Dificuldade no encaminhamento das mínimas ações.
Se tudo isto por um lado aguçou as contradições da universidade e isolou ainda
mais a ditadura por outro lado criou um clima de terror e medo coletivo que
contribuiu decisivamente para o descenso do ME.18

O espaço enraizador e planejativo por excelência das mobilizações nas universidades e


escolas, a reunião, é agora acometido de uma intensa vigilância e enquadrada taxativamente, no
texto do decreto acima, como infração disciplinar sujeita às sanções mais pesadas, acadêmicas,
como a expulsão, e criminais, a partir da abertura dos inquéritos policiais militares, num processo

18
SSP/DOPS – Prontuário 27.342.

1476
sintônico com toda a estrutura dos órgãos de repressão e o SNI, o qual se modernizava e aprimorava
sua integração para maximizar sua eficiência na vigilância e repressão, contando três bases centrais:
o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha) e o CIE (Centro de Informações do Exército) e
por último viria a ser criado, em 1970, o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica).
A empreitada de conduzir uma oposição ao regime dentro da universidade torna-se uma
missão por demais temerária e difícil, pois com a saída das lideranças, por medidas disciplinares ou
afins, que já detinham uma rede de relações estudantis já construída, torna-se igualmente muito
mais dificultosa a mobilização sem a existência de espaço aberto para fóruns, reuniões, debates,
assembleias. A única via que resta é necessariamente a promoção de articulações para lá da
fronteira da legalidade, suscetível a qualquer momento de ser extirpado do âmbito da universidade
ou escola secundarista19.
Então, a informalidade e reserva passou a ser um timbre do modus operandi da mobilização.
Nessa fase de “articulação ao pé-do-ouvido”, pairava um tom de secretismo, que gradativamente
pelos titânicos obstáculos infligidos pelo regime e seus asseclas, tornou-se numericamente
muitíssimo reduzido os quadros e a possibilidade de renovações do partido. Mas é graças a firmeza
deste movimento de resistência, apesar de todos os pesares que a bandeira da contestação e da
imperiosidade de transformação social não abaixou. Cumprindo um papel salutar em todo esse
processo a imprensa, a partir das publicações clandestinas num contexto de relativo e consentido
ascenso de manifestação da direita em detrimento da expressão da esquerda, era estropiada pelas
garras do regime.
E mesmo com essa sanha repressiva, o PCBR manteve sua existência e atividade no meio
estudantil, ainda que posteriormente, muitos, decorrente de sua militância, viessem a ser atingidos
por sanções legais e devido às fronteiras de atuação impostas, se ausentaram do espaço estudantil
para militar em outra frente, as ações armadas sobremodo, como foi o caso de Alberto Vinicius de
Melo Nascimento da Escola de Engenharia e do estudante de Geologia e dirigente do Comando
Político-militar do PCBR Nordeste, Carlos Alberto Soares.
A perspectiva do caminho armado para a revolução já estava posto para o Partido desde sua
fundação e, evidentemente, para seus militantes que se encontram em atividade no meio
universitário. Mas como definido na linha política do PCBR, o trabalho de movimento de massas
deve ser encaminhado elevando a consciência política dos sujeitos a partir de reivindicações mais
19
Nesse momento “tortura e propaganda formam duas modalidades complementares de administrar o silêncio e o
segredo. Ambas operam nas camadas escondidas do governo ditatorial. A primeira dá-se nos campos de concentração,
na madrugada, bem longe da vista e da escuta popular. A segunda, decidida nos gabinetes ocultos, invade literalmente
todos os sentidos (sobretudo a vista e o ouvido) da multidão. Pouco sobra, em termos de espaço social – com este
açambarcamento da fala, da escrita, da imagem, pelo dominante – para os que se colocam contra o Príncipe do
momento”. (ROMANO, Roberto. Autoridade e poder na vida acadêmica. In FÁVERO, Maria de Lourdes de
Albuquerque (Org.). A Universidade em Questão. São Paulo: Cortez; Editora Autores Associados, 1989. p. 27-40.)

1477
imediatistas e cotidianas das categorias, e assim era feito. Era o Movimento Estudantil durante toda
a história do partido, a principal fonte de militantes, mesmo para os comandos político-militares, e
núcleo de apoio tático para os membros do “grupo de fogo”– neste último papel, juntamente com a
rede, cada vez menor, diga-se de passagem, de profissionais liberais (PLs) que auxiliavam o partido.
A rede de PLs era formada, principalmente, a partir da universidade. Em 1968 quando os
estudantes saiam das Universidades e iam exercer as profissões como médicos, engenheiros,
advogados, etc., relevante parcela escolhia o PCBR para apoiar devido a sua proposta ser julgada
com a mais acertada. Contudo, a medida que os riscos no apoio se exacerbam, a rede igualmente vai
minguando.
Em 1969, Cândido Pinto, principal liderança e presidente da UEP, na qualidade de militante
do PCBR, levou a cabo - juntamente como os demais militantes do Partido que atuavam no
Movimento Estudantil, irmanados com o restante das forças e indivíduos que participavam deste –
uma campanha contra as cassações advindas do DL 477 e de todas suas premissas. Era feita uma
denúncia das arbitrariedades da ditadura e do cenário de obscurescência estabelecido no âmago da
Universidade e da sociedade em geral, inclusive sobre a vida privada dos cidadãos. A ousada e
histórica Carta Aberta aos Professores de autoria de Cândido e divulgada no período no meio
universitário, figura bem essa luta do acadêmico membro do PCBR, expressando pari passu a visão
dessa organização:
CARTA ABERTA AOS PROFESSORES
Companheiro Professor,
Movidos pela necessidade de romper com os preconceitos que ainda existem em
relação à aproximação entre alunos e mestres, dirigimos a todos os professores
universitários de Pernambuco estas palavras. E, principalmente nesta hora
dramática que atravessa a nossa Universidade, torna-se necessário romper,
definitivamente com esta barreira. Partimos para uma relação fraternal, respeitosa e
séria, tão importante, não só do ponto da transmissão do saber, como do ponto de
vista que nós - professores e alunos – temos a desempenhar nas transformações
sociais.
Torna-se dispensável falarmos aqui do caminho que segue a nossa Universidade.
Nós, estudantes, já há muito temos demonstrado (e a cada dia se comprova) que a
nossa Universidade segue um caminho bem tortuoso e diverso daquele que nós –
professores e alunos – gostaríamos que ela seguisse; um caminho diverso do que o
nosso povo faminto, explorado e aviltado (o que ele não tem acesso), gostaria que
seguisse.
Não precisa dizer aqui que há muito tempo – para ser mais preciso: há 5 anos – a
AUTONÔMIA UNIVERSITÁRIA vem sendo vergonhosamente traída e que hoje,
qualquer “estrela” ou “divisa” impõe e dita as normas à vida universitária.
Não é necessário falarmos aqui, da política educacional do governo, que fere os
interesses do nosso povo e põe a nossa universidade a serviço de grupos
econômicos dominantes, e o que é mais doloroso, minoria econômica estrangeira.
Finalmente, será dispensável relembrarmos aqui, que há 5 anos a nossa
Universidade foi transformada em um palco de terror, a custa do medo à
“subversão” e da “defesa da “Segurança Nacional”.

1478
Tudo isto, torna-se dispensável, pois quem tem olhos facilmente vê. Aí estão as
reuniões constantes de diretores e reitores, com o IV Exército, para que os nossos
educadores aprendam “como melhor ensinar”, com as autoridades militares. Aí está
a Reforma Universitária do Governo, onde qualquer investidor (sim, pois a
Universidade é agora vista como investimento econômico privado) pode ser Reitor
ou Diretor. E, finalmente, aí está o DECRETO DAS CASSAÇÕES, impondo o
TERRORISMO à vida universitária.
Sobre o Processo de Cassações
(...) Para nós estudantes, este decreto é o particular, na educação, do Ato Nº 5.
Assim como o Ato Nº 5 representa a tentativa de amordaçar todo país. O decreto-
lei busca amordaçar, de modo especial, os estudantes, professores e funcionários.
Para nós estudantes, só existe uma posição em relação ao decreto: NÃO ACEITÁ-
LO, resistir ao máximo à sua aplicação. Nós, sempre, lutamos por uma
Universidade Dinâmica e voltada para os anseios de libertação e bem-estar do
nosso povo, e não será agora que pararemos. As repressões, masmorras, torturas e
até mesmo os mortos já não nos intimidam.
(...) Finalmente esperamos contar com o apoio e a colaboração de todo o corpo
docente das universidade de Pernambuco, para que juntos possamos dar
prosseguimento à nossa luta contra a política educacional da ditadura e por uma
universidade popular.20

Diante da destacada atuação de Cândido Pinto, membro do Comitê Zonal do PCBR, na noite
do dia 30, às 22:30 aproximadamente, quando esperava o ônibus na parada do cruzamento da Rua
Amélia com a Avenida Rui Barbosa, é vitimado com três disparos de arma de fogo, um deles
atingindo sua coluna e fracionando a medula, que lhe sequencia o estado de paraplegia. Hoje, e já
na época, sabidamente executado por integrantes dos órgãos de repressão, o DOPS especificamente.
O relatório do inquérito instalado na época para apurar os fatos e autores do crime, concluiu o
seguinte:
Do exposto, é forçoso concluir-se que a autoria do delito teria partido de policiais,
onde se destaca a figura do Tenente FERREIRA, oficial encarregado das
diligências que tinham por finalidade a prisão de pessoas tidas como subversivas.
[...] Há, como se vê, nas diversas peças deste inquérito, uma série de indícios
convergentes contra o Tenente FERREIRA (JOSÉ FERREIRA DOS ANJOS), da
Polícia Militar do Estado. A nossa convicção resultou da observação minuciosa e
atenta dos diferentes elementos probatórios carreados para o processo.21

E nada foi efetivamente diligenciado naquele momento diante das constatações apontadas no
processo no sentido de punir os seus homicidas, minimamente o Tenente Ferreira, torturador
conhecido de então, comparável a Fleury em sua violência, e hoje ainda mais a partir dos
depoimentos dos que sofreram em suas mãos. Contrariamente, quando convocado para depor pelo
Delegado de Segurança Pessoal e Homicídios Artur Rodrigues de Freitas Junior, responsável pelo
caso, o último é informado pelo Coronel Expedito Queiroz, superior do Tenente, que este em razão
de ter de viajar para aos Estados Unidos da América com o fito de cursar a Escola Internacional de

SSP/DOPS – Prontuário Cândido Pinto de Melo, Nº 17.011


20
21
Relatório de Inquérito Portaria nº 271. Secretária de Segurança Pública – Delegacia de Segurança Pessoal e
Homicídios. 8 de setembro de 1969. Prontuário SSP/DOPS Cândido Pinto de Melo, nº 17011.

1479
Polícia não poderia comparecer para prestar os esclarecimentos solicitados22. Mas antes mesmo
deste fato, porém posterior ao atentado contra o universitário da Escola de Engenharia, o tenente já
havia sido recolhido à Escola de Oficiais até segunda ordem, como consta no relatório do processo,
supramencionado.
A Escola Internacional de Polícia trata-se da Escola das Américas, conhecido centro de
ensino de métodos de tortura com filial no Forte Gullick na Zona do Canal do Panamá. Esta dava
suporte para aperfeiçoamento das técnicas de repressão e interrogatório às ditaduras de todo o
Cone-sul contra a resistência de seus opositores. Situando-se no arco da notória participação
estadunidense no apoio aos estratagemas golpistas na América Latina, bem como em sua
manutenção durante longo período da Guerra Fria.
Esse apelo aos professores empreendido por Cândido procede e segue a compreensão do
PCBR, exposto posteriormente no tópico “Alternativa que o ME apresenta a Universidade” em seu
documento Carta Política, onde declara entender a majoritária dos professores como integrantes
das camadas médias da população brasileira, sofrendo assim as cruezas e arbitrariedade da ditadura.
Somando-se a isso sua má remuneração e também péssimas condições de trabalho nas
universidades, o que os credenciava como potenciais aliados do ME e possíveis adeptos da luta
popular. Devendo o temário de luta das reivindicações de ambas as categorias ser discutido para a
construção de um programa comum.
Na visão do PCBR, o recrudescimento de repressão converteu muita das formas de luta do
Movimento Estudantil em ultrapassadas, pois não possuíam mais operacionalidade,
simultaneamente impondo um mínimo de apoio armado na promoção de qualquer ação e a violência
como fator constante na quase totalidade dos modos de luta. Este entendimento é fruto de um
debate levado a cabo internamente no Partido após a ofensiva da repressão com o AI-5 e o DL 477
a seu serviço, na busca de soluções e caminhos táticos a seguir diante dessa nova fase, caracterizada
sobremaneira pelo resfriamento quase total do movimento de massas de 1968.
No entanto, o PCBR, traçará um entendimento certamente romântico de que após o AI-5,
mesmo ocorrendo o descenso das lutas de massas, havia espaço para grande intensificação das
ações armadas por parte das forças revolucionárias. Nesse sentido depreendem que o processo
revolucionário no Brasil dirige-se para o avanço cada vez maior e as ações armadas igualmente
inclinam a fortalecer-se mais ainda. E por fim professam: “não podemos prever quantas trocas de
generais haverá, quantos “golpes” de Estado serão dados pelas forças reacionárias, nem quantos
atos institucionais ainda, serão editados, só podemos prever que o processo revolucionário brasileiro

22
Oficio s/n. Polícia Militar de Pernambuco - Estado Maior. 14.8.1969. Prontuário SSP/DOPS Cândido Pinto de Melo,
nº 17011.

1480
avança cada dia mais e como resposta a repressão das classes dominantes é intensificada cada vez
mais”23. Todavia o que será visto ao final da experiência de luta armada, é que esta não conseguiu
um reconhecimento de legítima representação junto às massas.
A análise que o partido realiza é a de que o cometeu-se um grave erro em não se preparar
para o avanço da repressão e por consequência não preparando as massas e uma estrutura para
resistirem e progredirem com o processo revolucionário à margem da legalidade quando chegasse
essa fase –, já teoricamente previsto esse momento de clandestinidade. A resultante desse legalismo
em que caíram foi, no movimento estudantil, a intervenção, fechamento ou inatividade de maior
parte dos DAs e DCEs e Grêmios estudantis do Brasil, acompanhada de um arrefecimento das
mobilizações e atividades políticas nas universidade e escolas. Por conseguinte para superação deste
sério desacerto, a perspectiva da ilegalidade de agora em diante deveria estar sempre posta.
A Carta Política já citada traz a questão que se de fato o ME comunga das lutas do povo
brasileiro, então deve também participar de seus modos fundamentais de luta. É nesse ínterim que
se coloca a utilização da violência pelos estudantes, mesmo que em nível baixo, mas numa
preparação para a grande violência que participarão juntamente com o restante do povo brasileiro.
Concluem que a necessidade de que o ME se integre efetivamente às guerrilhas urbanas é premente
e exigirá preparação não somente política, mas também militar. Taticamente, cumprindo um papel
salutar no desenvolvimento do processo revolucionário a partir da guerrilha rural, mantendo
relevante proporção das forças de repressão nas cidades.
Concluindo que naquele momento para o desenvolvimento das lutas de massa é
imprescindível um mínimo de apoio armado, o qual deverá ser majorado gradativamente com seu
avanço e o desenvolvimento mesmo da luta armada. Devendo haver a constancia ininterrupta de
propaganda da violência revolucionária em todos os momentos, seja através da orientação para
publicação sobre a questão, nas agitações desenvolvidas e sobretudo pela via da prática
propriamente dita.
Desde os primeiros meses de 1969 – momento em que se forma o primeiro Comando
Polítco-militar (CPM) do PCBR –até abril de 1972, quando ocorre a prisão dos membros do seu
núcleo estudantil pelo DOPS-PE, haveria a atuação da organização no meio universitário, bem
como seu Comando Político Militar (CPM) e o Grupo Armado de Propaganda (GAP) seriam
constituídos por militantes egressos do Movimento estudantil.24

23
Carta Política. Publicações do PCBR. SSP/DOPS. Prontuário 27.342
24
Muitos serão os inquéritos abertos em Pernambuco para investigar ações armadas da esquerda revolucionária, os
acusados são majoritariamente jovens, normalmente egressos do movimento estudantil ou que ainda atuavam nele. No
período de 1968 a 1972, foram encontrados, no acervo do DOPS, mais de 100 militantes com processos remetidos a
juízo265, precisamente para a 7ª Região Militar também sediada no Estado. Os enquadramentos legais das ações pelas

1481
autoridades militares são vários, mas em Pernambuco a sua grande maioria refere-se a assaltos (a bancos sobremodo),
expropriações e desmantelamento de aparelhos subversivos.

1482
REFERÊNCIAS

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nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Damará; Fundação Roberto Marinho, 2007.
ARAÚJO, Maria Paula. Esquerdas, Juventude e Radicalidade na América Latina nos anos 1960 e
1970. IN: FICO, FERREIRA, ARAUJO & QUADRAT (Orgs.). Ditadura e Democracia na
América Latina: Balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora
Campus, 1992.
CAMPOS, Antônio de. O Caráter e o Sentido do Golpe de 1964 no Brasil. Recife: Oito de Março
Gráfica e Editora, 2011.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe.
Petrópolis, Vozes, 2006.
CAVALARI, Rosa Maria F. Os Limites do Movimento Estudantil: 1964-1980. Dissertação.
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1987.
COMBLIN, J. A Ideologia da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
ROMANO, Roberto. “Autoridade e poder na vida acadêmica”. In FÁVERO, Maria de Lourdes de
Albuquerque (Org.). A Universidade em Questão. São Paulo: Cortez; Editora Autores Associados,
1989.
TOLEDO, Caio Navarro de. “1964: O Golpe Contra as Reformas e a Democracia” In MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. REIS FILHO, Daniel Aarão. RIDENTI (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar: 40
Anos Depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004.
____________. O Governo Goulart e o Golpe de 64. São Paulo Brasiliense. 1983.

1483
O ANTIRRACISMO: UM DIÁLOGO FRANÇA – BRASIL – FRANÇA

Manuel Diatkine 1

Resumo: Desde os anos 1980 o filósofo francês Pierre-André Taguieff desenvolveu uma obra
instigante de reflexões sobre racismo e antirracismo. Em particular, propõe distinguir dois tipos de
antirracismos, antirracismo universalista e antirracismo diferencialista. Este modelo é usado pelos
antropólogos brasileiros Kabengele Munanga e Jacques d’Adesky, a fim de, primeiro, melhor entender
o debate brasileiro sobre o assunto, e, segundo, contribuir à legitimação do movimento negro no Brasil,
em uma perspectiva diferencialista. A situação é, portanto, paradoxal, porque na França P.-A. Taguieff
é considerado um adversário do antirracismo diferencialista. Porém, é possível mostrar que existem
convergências entre estes autores.

Palavras-chaves: racismo, antirracismo, universalismo.

Abstract: Since the 1980’s the French philosopher Pierre-André Taguieff has developed an instigating
work on reflections on racism and anti-racism. Particularly, he proposes to distinguish two types of
racism, universalist anti-racism and differentialist anti-racism. This model is used by Brazilian
anthropologists Kabengele Munanga and Jacques d’Adesky, in order to, first, understand better the
Brazilian debate on the subject and, secondly, contribute to the legitimization of the black movement in
Brazil, on a differentialist perspective. The situation is therefore paradoxical, because in France P.-A.
Taguieff is considered an adversary of differentialist anti-racism. However, it is possible to show that
there are convergences between these authors.

Keywords: racism, anti-racism, universalism.

O geógrafo social e professor na Universidade de São Paulo Demétrio Magnoli publicou há


pouco uma história do pensamento racial e racista2. Entre outros desenvolvimentos instigantes, o autor
consagra vários capítulos à crítica, não de movimentos racistas ou próximos ao universo do racismo,
mas de movimentos antirracistas, isto é, inspirados pela luta contra o racismo. O ponto é interessante, já
que ilustra a divisão dos antirracismos, uma situação em nada singular do Brasil, mas, ao contrário,
muito comum em vários países da Europa e nos Estados Unidos. É um aspecto desta divisão que nos
interessará. Gostaríamos de desvendar o paradoxo de um modelo teórico elaborado para pensar racismo
e antirracismo, modelo que, no Brasil, serviu para sensibilizar quanto aos limites de um universalismo

1
Doutor em História (Universidade de São Paulo - USP, 2017). Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). E-mail: manudiatkine@yahoo.com.br
2
MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue. História do Pensamento Racial. São Paulo: Contexto, 2009.

1484
estreitamente entendido e, na França, serviu, ao contrário, para alertar sobre os perigos de um
esquecimento de toda perspectiva universalista.
O antropólogo Jacques d’Adesky se apoderou de um modelo conceitual proposto pelo filósofo
francês Pierre-André Taguieff para argumentar em favor do movimento negro (ou afro-brasileiro) e
para assim responder a críticas excessivas vindas de meios antirracistas universalistas (I). É instigante
observar o mesmo tipo de excesso nas críticas levantadas contra P.-A. Taguieff, mas, desta vez, vindas
de meios antirracistas diferencialistas (II). As interpretações errôneas tanto do antirracismo
diferencialista no Brasil quanto do antirracismo republicano na França convidam a relativizar as
oposições, reais, porém, não absolutas, entre perspectivas diferencialistas e universalistas (III).

I. França – Brasil: a legitimidade do movimento afro-brasileiro

A formação de um movimento negro ou afro-brasileiro no Brasil a partir dos anos 1970


constitui uma história bem conhecida. Podemos lembrar rapidamente alguns traços desse movimento:
afirmação cultural da contribuição das culturas negras, isto é, oriundas da África, à cultura brasileira;
denúncia da realidade das discriminações dos cidadãos negros, num contexto de discriminação velada,
não legal, e inclusive ilegal; pluralismo político, levando a uma oposição entre uma maioria buscando
sua afirmação na nação brasileira, e uma minoria, tentada pela secessão ou a indiferença; influências da
negritude francesa e do movimento afro-americano; atuação em várias áreas, por exemplo a favor do
candomblé, ou da presença dos negros na mídia, ou dos problemas específicos das afro-brasileiras3.
No mundo acadêmico, esse movimento afro-brasileiro foi e ainda é encarnado por alguns
autores, por exemplo o professor Kabengele Munanga. Tanto K. Munanga como um de seus
orientados, Jacques d’Adesky, tentaram pensar as evoluções em curso do antirracismo brasileiro.
Indissociável e assumidamente, tentaram também contribuir à legitimidade acadêmica, intelectual,
deste movimento pluralista, que estava transformando a sociedade brasileira. É neste contexto que
encontraram uma ferramenta útil na reflexão do filósofo francês Pierre-André Taguieff. Com efeito, o
pensamento de P.-A. Taguieff é uma das referências explicitas ou implícitas decisivas destes
pesquisadores. Por quê? Em qual medida ajuda a legitimação acadêmica do movimento negro,
legitimação intelectual e, portanto, política, já que o debate desenvolvido dentro da universidade possui
vocação a se prolongar fora dela?

3
ARAUJO PEREIRA, Amilcar. “O mundo negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-
1995). Tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2010.

1485
Gostaríamos de enfatizar três pontos, baseando-nos em dois livros publicados por Jacques
d’Adesky4.
Primeiro, P.-A. Taguieff ajuda a responder às críticas sobre um suposto “racismo às avessas” do
movimento negro. Identificar “os fatores de desenraizamento e de alienação que atingem a população
negra” é optar por um antirracismo diferencialista, de identificação dos preconceitos e discriminações
que afetam uma população singular5. É uma abordagem perfeitamente legítima do antirracismo, em
nada excepcional ou perigosa. A alternativa é optar por um antirracismo universalista. Este insistiria
menos sobre um coletivo – os negros, os afro-brasileiros, os judeus, os muçulmanos -, e mais sobre os
indivíduos e seus direitos, direitos que cada ser humano possui como ser humano: portanto,
antirracismo “universalista”. Por exemplo, a liberdade religiosa, liberdade de escolher, de mudar, de
não ter religião, é uma liberdade do ser humano, ser racional e esclarecido. Mas quando preconceitos e
discriminações atingem um coletivo, importa que este coletivo se mobilize. Hannah Arendt o disse, e
também Jean-Paul Sartre – “E posto que o oprimem em sua raça [o negro], e por causa dela, é de sua
raça, antes de tudo, que lhe cumpre tomar consciência”6. P.-A. Taguieff expõe esta conceituação dos
antirracismos em dois polos em dois livros, publicados respectivamente em 1988 e 19957.
P.-A. Taguieff chamou a atenção sobre um risco real. Quando se focaliza exageradamente sobre
a diferença ou sobre a universalidade, cada antirracismo concentra seu combate contra um tipo de
racismo. No caso do antirracismo diferencialista, o racismo universalista; no caso do antirracismo
universalista, sobre o racismo diferencialista. Assim, levado pela lógica da argumentação e do
confronto político, pode-se eludir, e, primeira dificuldade, negligenciar um dos dois racismos; e,
segunda dificuldade, pode também contribuir na deslegitimação do outro antirracismo.
Por exemplo, o professor D. Magnoli no livro citado acima optou por uma postura antirracista
universalista, per se legítima. Porém, esta posição o leva a uma deslegitimação total do movimento
negro, para quem, supostamente, “a miscigenação é, sim, um problema”8. Mas este problema nada tem
a ver com o racismo histórico citado por ele (Alemanha nazista, África do Sul do apartheid) para
apoiar sua condenação sem nuances. O problema, visto pelo movimento afro-brasileiro, vem da

4
D’ADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multiculturalismo. Racismos e Antirracismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas,
2001.
5
Ibid., p. 151.
6
SARTRE, Jean-Paul. Orfeu negro. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, trad. J. Guinsburg p. 110-111. “Et
puisqu´on l´opprime dans sa race et à cause d´elle, c´est d´abord de sa race qu´il lui faut prendre conscience » (Orphée
noir, in Situations III. Paris: Gallimard, 1949, p. 236).
7
TAGUIEFF, Pierre-André. La Force du préjugé. Essai sur le racisme et ses doubles. Paris: Gallimard, 1988. Les fins de
l´Antiracisme. Paris: Michalon, 1995.
8
MAGNOLI, Demétrio. Op. cit., p. 380.

1486
mestiçagem como ferramenta para diminuir a contribuição das culturas africanas à formação do Brasil.
Também é uma ferramenta para fazer esquecer o que uma personagem da romancista Conceição
Evaristo expressa muito bem. Ele pertence a uma comunidade, “o seu povo, os oprimidos, os
miseráveis; em todas as histórias, quase nunca eram os vencedores, e sim, quase sempre, os vencidos.
A ferida dos do lado de cá sempre ardia, doía e sangrava muito”9. Mas, se o povo brasileiro é um só,
uma grande mestiçagem, por que esta dor?
Esse tipo de debates internos aos antirracistas – militantes, intelectuais – são numerosos, e, ao
menos na França, cada vez mais numerosos. Distinguindo um polo diferencialista e um universalista,
P.-A. Taguieff nos ajuda a esclarecer o porquê da recorrência desses debates, e a optar pela moderação.
Por exemplo, em um de seus melhores livros, La République enlisée. Pluralisme, "communautarisme"
et citoyenneté, propõe uma análise detalhada da situação das minorias na República. Suas conclusões
são severas para o multiculturalismo, se, por esta palavra, se advoga em favor de uma dominação de
um grupo minoritário sobre o indivíduo, e a favor do fim da igualdade dos cidadãos frente à lei. Porém,
se por multiculturalismo entendemos o reconhecimento do papel positivo do calor das culturas
minoritárias à vida pública, o diagnóstico muda – a pluralidade cultural, assim entendida, contribui a
um republicanismo vivo e dinâmico10. Como escreve J. d’Adesky, primeiro “situar-se como negro,
além da alienação, e a partir de então colocar a questão da cidadania e da nacionalidade”11.
No Brasil, nas intervenções de K. Munanga e J. d’Adesky, a reflexão de P.-A. Taguieff serviu
para dar apoio ao movimento negro. Frente às críticas oriundas de antirracistas sinceros, preocupados,
nem sempre por motivos indignos, pelo risco de deriva identitária, P.-A. Taguieff ajuda a explicitar que
existem dois antirracismos, igualmente legítimos: um atrelado à defesa das identidades coletivas
discriminadas, outro à defesa dos direitos individuais. O movimento negro pertence à primeira
categoria, é criticável como qualquer movimento social, mas não há motivo para demonizá-lo.

P.-A. Taguieff é, portanto, uma das referências mais importantes de K. Munanga e J. d’Adesky,
e talvez não seja um exagero dizer a referência mais decisiva. Instigante é observar que ele mesmo é
vítima de um tipo de ostracismo comparável ao que conhecem os intelectuais próximos do movimento
afro-brasileiro, porém “inverso”.

9
EVARISTO, Conceição. Becos de Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017 (2006), p. 63.
10
TAGUIEFF, Pierre-André. La Republique enlisée. Pluralisme, communautarisme et citoyenneté. Paris : Éditions des
Syrtes, 2005.
11
D’ADESKY, Jacques. Op. cit., p. 157.

1487
II. P.-A. Taguieff e o antirracismo republicano

Nossa apresentação será muito alusiva, e por isto mesmo visa a dizer o essencial em poucas
palavras12.
Em diversos textos escritos desde a década de 1980, P.-A. Taguieff expõe as limitações,
segundo ele, tanto do antirracismo universalista quanto do antirracismo diferencialista.
O primeiro é bem ilustrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Assume
que os seres humanos, como indivíduos, possuem direitos intransponíveis, por exemplo, a igualdade
frente à lei, que devem ser respeitados. A universalidade visa o ser humano porque cada ser humano é,
em potencial, igualmente racional, e igualmente um ser de sensibilidade e emoções. Todas as crianças
devem poder ir à escola, todas as mulheres são iguais aos homens. Este antirracismo é indispensável, e
particularmente eficaz contra os racismos diferencialistas, que afirmam a superioridade ou, outra
hipótese, a necessidade de “preservar a pureza” da raça ou da cultura X, embora essa raça ou essa
cultura não sejam descritas como superiores. É o antirracismo de Charles Chaplin na obra-prima The
Great Dictator: no final do filme, o herói discursa de uma maneira admirável contra os preconceitos
que dividem e hierarquizam os seres humanos. No entanto, este antirracismo deixa de lado o político.
Com efeito, os seres humanos não são indivíduos isolados. Pertencem a grupos políticos – nações,
religiões, comunidades, clãs... Muitas vezes, essas comunidades é que são vítimas de preconceitos e
discriminações.
O segundo, precisamente, levanta este desafio. Defende estas comunidades discriminadas. Para
se restringir ao debate francês, Claude Lévi-Strauss argumenta em favor dos povos não-ocidentais
ameaçados pelos progressos do Ocidente. A fraqueza deste antirracismo é que pode levar a um
fechamento do grupo sobre si mesmo, a um esquecimento de todo horizonte universalista, e também à
concorrência entre grupos discriminados. Pode acompanhar a negligência das contribuições do
liberalismo político, em particular do respeito aos direitos individuais.
No contexto francês, desde mais de 30 anos, P.-A. Taguieff defende que a tradição republicana
é a menos ruim para articular diferenças e perspectivas universalistas. Autoriza a diversidade, como o
comprova a situação da comunidade judia francesa, a maior da Europa, bem organizada, diversa, e
capaz de se expressar no espaço público e perto dos poderes públicos. Mas mantém uma ligação forte

12
DIATKINE, Manuel. Racismo, antirracismo, nação: estudo sobre a obra de Pierre-André Taguieff, tese de doutorado
disponível na Biblioteca Digital da Universidade de S. Paulo (USP): http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-
07062017-082029/pt-br.php.

1488
com a ideia de direitos universais, como o demonstra a proibição dos signos religiosos nas escolas
públicas primárias e secundárias. O professor contribui para a formação de um cidadão
independentemente das convicções religiosas ou outras das famílias.
É pouco dizer que uma grande parte da esquerda antirracista francesa discordou e ainda
discorda. Não iremos detalhar aqui o debate francês. Simplesmente observamos que, tanto aqui no
Brasil quanto lá na Europa, o antirracismo não é mais o que era. Ele se tornou um campo de batalha,
muito ideologizado, e, verossimilmente, se enfraqueceu. Esta evolução contribui a explicar os sucessos
das direitas populistas na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. Porém, se nos esforçamos
para ir além da ideologia, podemos ver que muitas críticas simétricas levantadas contra o antirracismo
diferencialista de K. Munanga e J. d’Adesky, ou contra o antirracismo republicano de P.-A. Taguieff,
são exageradas. Apesar das aparências, estes autores possuem muito em comum.

III. Falso e verdadeiro debate

Os pontos comuns são metodológicos, mas não somente.


Compartilham, como vimos, o mesmo modelo teórico, apesar de engajamentos políticos que,
aparentemente, os opõem. Isto não é uma surpresa. Importa com efeito distinguir modelo teórico e
engajamento político. Um modelo pretende contribuir a melhor conhecimento e entendimento de uma
situação social, passada ou presente. Não implica, por si mesmo, nenhuma postura política – razão pela
qual, por exemplo, Max Weber sempre demonstrou interesse no marxismo, e Michael Lowy em Max
Weber. A biologia de Lyssenko era, sim, uma ferramenta política, mas, precisamente, não era um bom
modelo científico.
Além disto, o grande erro nos parece ser o de exagerar as oposições entre perspectivas
universalistas e diferencialistas. Um antirracismo lúcido deveria procurar as boas articulações, e não
optar por um ou por outro. É exatamente esta a abordagem tanto de Jacques d’Adesky, quanto de K.
Munanga e P.-A. Taguieff. Existem entre eles diferenças de ênfases, e não de objetivos. Ou seja, não
devemos nos deixar iludir pelas etiquetas ou afirmações brutais. Nenhum desses autores é um “radical”,
impermeável à complexidade das situações. São seus adversários, seja na França, seja no Brasil, que
assim os caracterizam, esperando por essa manobra deslegitimar suas intervenções.

1489
Por exemplo, lemos no jornal Folha de S. Paulo do dia 26 de setembro de 2017 uma crônica
hostil às cotas reservadas aos estudantes afro-brasileiros nas universidades públicas brasileiras13. Hélio
Schwartsman caracteriza o movimento negro como “essencialista”, e as cotas como um procedimento
inepto, já que ninguém soube definir quem são os negros. O cronista conclui que “um modo de
contornar a encrenca é trocar o nebuloso critério racial pela mensurável renda familiar. Como a
principal faceta do racismo brasileiro é a segregação econômica, privilegiar o acesso dos mais pobres já
implica beneficiar mais os negros!”. O leitor, lendo o artigo, testemunhará mais um confronto entre
antirracismo diferencialista e universalista.
Mas como não se interrogar – por que nunca, ninguém, precisamente, implantou esta política
pública de apoio aos alunos pobres oriundos das escolas públicas? Não será porque esta política
poderia facilmente ser descrita e condenada como “socialista” – impensável na guerra fria,
deslegitimada intelectual e moralmente depois da guerra fria e das experiências soviéticas? Não será,
também, porque em nenhum momento em sua História antes da Constituição de 1988, o Brasil se
representou como tendo uma dívida com as populações negras escravizadas e seus descendentes – nem
em 1888, nem no Estado Novo, nem mesmo nos anos dourados de 1946 a 1964? Como não
compartilhar a constatação, razoavelmente consensual, de que a política de cotas, de inspiração
“diferencialista”, “essencialista” no vocabulário de H. Schwartsman, contribui a um acesso mais
universal às universidades?
Ou seja, em certas circunstâncias, o antirracismo universalista pode esconder interesses de
classes específicos por definição, e, ao contrário, um antirracismo diferencialista pode contribuir a uma
justiça mais universal. Muito depende da conjuntura política. Quem viu isto com grande agudez foi
Jean-Paul Sartre:
“para um judeu consciente e orgulhoso de sê-lo, que reivindica sua pertença à comunidade judaica, sem
desconhecer para tanto os laços que o unem a uma coletividade nacional, não há tanta diferença entre o
antissemita e o democrata. Aquele quer destruí-lo como homem para que não subsista nele senão o judeu, o
pária, o intocável; este quer destruí-lo como judeu a fim de não conservar nele senão o homem, o objeto abstrato
e universal dos direitos do homem e do cidadão”14.

13
SCHWARTSMAN, Hélio. "É possível fraudar as cotas?". Folha de S. Paulo, 26 de setembro de 2017, p. A2.
14
SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre a questão judaica. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, tradução de J.
Guinsburg, p. 38-39. Eis o original: « (…) pour un Juif conscient et fier d’être Juif, qui revendique son appartenance à la
communauté juive, sans méconnaître pour cela les liens qui l´unissent à une collectivité nationale, il n´y a pas tant de
différence entre l´antisémite et le démocrate. Celui-là veut le détruire comme homme pour ne laisser subsiter en lui que le
Juif, le paria, l´intouchable; celui-ci veut le détruire comme Juif pour ne conserver en lui que l´homme, le sujet abstrait et
universel des droits de l´homme et du citoyen » (Réflexions sur la question juive. Paris: Gallimard, Idées, p. 68).

1490
O filósofo descreve assim, muito bem, embora, claro, com bastante exagero, os limites do
antirracismo universalista. No caso do cronista Hélio Schwartsman, assimilar discriminações e
desigualdades econômicas significa ignorar as dimensões culturais das discriminações, em particular a
subestimação da contribuição das culturas africanas à formação do Brasil. A situação é, portanto,
paradoxal. Não conhecemos pessoalmente Hélio Schwartsman, mas não temos dúvidas que ele seja um
cidadão hostil aos preconceitos e às discriminações. Porém, esquece que as discriminações não
impactam somente indivíduos, atingidos em seus interesses econômicos; também impactam coletivos,
como a comunidade negra.
Eis dois outros exemplos recentes, no “sentido contrário”, ou seja, que chamam a atenção dos
antirracistas diferencialistas sobre os inconvenientes de esquecer as perspectivas universalistas. Nos
Estados Unidos se desenvolveu uma polêmica. Partes do movimento afro-americano gostariam de
proibir as manifestações organizadas por “suprematistas” brancos contra o deslocamento das estatuas
públicas dos líderes da Confederação. Porém, a Primeira Emenda protege a liberdade de expressão no
espaço público de todos. Após reflexões, a venerável ACLU (American Civil Liberties Union) tomou
atitude em favor deste direito universal, com argumentos que nos parecem convincentes15. Na França,
uma famosa historiadora americana acabou de taxar de “racista” a lei proibindo os símbolos religiosos
nas escolas públicas (2004). Supostamente, esta lei discriminaria as alunas muçulmanas. Este
antirracismo diferencialista, que pretende se expressar em nome dos muçulmanos, é assim cego à
ofensiva de um fanatismo religioso cujas primeiras vítimas são os próprios muçulmanos16.
Resumindo – diferencialistas e universalistas têm seus extremistas. São facilmente
reconhecíveis: mais se engajam contra o racismo, mais polemizam contra seus adversários antirracistas.
Mas felizmente seus moderados possuem muito em comum. Procuram as boas articulações entre
identidades coletivas singulares e perspectivas universais – particularmente os direitos individuais do
liberalismo político; e, segundo traço em comum, são descritos por seus adversários como
“extremistas”. Não querem abandonar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e
querem também que os casos de preconceitos e discriminações visando comunidades, povos ou
culturas, – comunidades, povos e culturas sempre singulares - sejam confrontados. Como fazer? Muito
depende das conjunturas políticas e históricas. O Brasil não é a França, que não são os Estados Unidos,

15
COLE, David. « Why We Must Still Defend Free Speech ». New York Review of Books, volume LXIV, número 14, 28 de
setembro de 2017 – 11 de outobro de 2017. Para ir ao essencial: devolver ao poder político (executivo, judiciário ou
legislativo) a possibilidade de censurar o debate público seria um grave retrocesso. Em nada beneficiaria o movimento
negro.
16
SCOTT, Joan W. La politique du voile. Paris: Éditions Amsterdam, 2017 (2007).

1491
e, com certeza, precisa ficar atento à singularidade das situações. Segundo P.-A. Taguieff, a boa
articulação mobiliza a nação republicana, implicando uma concepção exigente da laicidade. Muitos na
esquerda antirracista francesa discordam, mas isto é uma outra história!

Bibliografia:

ARAUJO PEREIRA, Amilcar. “O mundo negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo


no Brasil (1970-1995). Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2010.
COLE, David. “Why We Must Still Defend Free Speech”. New York Review of Books, volume LXIV,
número 14, 28 de setembro de 2017 – 11 de outobro de 2017
d’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Racismos e antirracismos no Brasil. Rio
de Janeiro: Pallas, 2001.
DIATKINE, Manuel. Racismo, antirracismo, nação: estudo sobre a obra de Pierre-André Taguieff.
Tese de Doutorado, Universidade de S. Paulo (USP), maio de 2017.
EVARISTO, Conceição. Becos de memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue. História do pensamento racial. São Paulo: Contexto,
2009.
SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, trad. J.
Guinsburg.
SCOTT, Joan W. La politique du voile. Paris: Éditions Amsterdam, 2017.

SCHWARTSMAN, Hélio. “É possível fraudar as cotas?”. Folha de S. Paulo, 26 de setembro de 2017.

TAGUIEFF, Pierre-André. La Force du préjugé. Essai sur le racisme et ses doubles. Paris: Gallimard,
1988.
Ibid., Les fins de l’antiracisme. Paris: Michalon, 1995.
Ibid., La Republique enlisée. Pluralisme, communautarisme et citoyenneté. Paris: Éditions des Syrtes,
2005.

1492
A POLÍTICA SINDICAL DO PCB E A MEMÓRIA DE SEUS MILITANTES.
The PCB's trade union policy and the memory of it’s militants.

Marcelo da Silva Lins1

Resumo: Esse artigo é parte de uma pesquisa que trata da política sindical do PCB e sua relação
com o movimento sindical baiano no período 1945-1964. Nesse texto dou ênfase ao período 1948
até 1952, quando o partido foi colocado novamente na ilegalidade e geralmente é denominada de
fase esquerdizante. Apresento minhas primeiras impressões de pesquisa e utilizarei de três
enfoques, a historiografia, as fontes (jornais) e algumas memórias de ex-militantes. Durante esse
período o PCB passou por algumas mudanças na sua linha política e consequentemente mudanças
na política sindical. Ao analisar tais questões em um determinado espaço, pretendo analisar tais
mudanças, não apenas como alteração da tática, mas através das ações dos militantes que atuavam
no meio sindical. O foco, portanto, são as atividades e o diálogo com as orientações partidárias.

Palavras-chave: PCB; Sindicatos; Memória.

Abstract: This article is part of a research about the trade union policy of the PCB (Brazilian
Communist Party) and its relationship with the Bahian trade union movement in the period of 1945-
1964. In this text I emphasize the period from 1948 to 1952, when the party was again placed in
illegality and is generally called the leftist phase. I present my first impressions of research and I
will use three approaches, historiography, sources (newspapers) and some memoirs of ex-militants.
During this period, the PCB underwent some changes in its political line and consequently changes
in trade union policy. In analyzing these issues in a given space, I intend to analyze these changes,
not only as a change of tactics, but through the actions of the militants who worked in the union.
The focus, therefore, is the activities and the dialogue with the party orientations.

Keywords: PCB; Unions; Memory.

PCB a União Nacional e a linha “esquerdizante”

Após passar por um período de repressão e clandestinidade, com a prisão de seus principais
dirigentes, principalmente após as rebeliões de novembro de 1935, o PCB chegou a 1945
defendendo uma transição para a democracia tendo Getúlio Vargas à frente do processo, com a
palavra de ordem “Constituinte com Getúlio”.
Mas o que levou os comunistas e suas lideranças, a exemplo de Luís Carlos Prestes, depois
de passar quase dez anos na prisão e ter sua companheira, a judia Olga Benário, enviada para o

1
Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Mestre
em História (UFBA) e Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Email:
marceloslins@hotmail.com

1493
terror nazista, a assumir tais posições, não foi uma simples decisão pessoal. A definição da Linha
Política defendida pelo PCB foi anterior a conjuntura do pós guerra.
Ainda em 1935, o VII Congresso da Internacional Comunista aprovou a política das Frentes
Populares, com a defesa da participação dos comunistas em frentes amplas, o que consideravam o
campo progressista para combater o fascismo, chamadas frente nacional, união nacional, ou frente
popular antifascista. O PCB publicou em dezembro de 1936 o documento “A marcha pela
Revolução nacional libertadora e suas forças motrizes”, que refletia a aplicação dessa linha e entre
outras coisas deixava claro que a frente não seria um “bloco de classes” contra o imperialismo, e
colocava a burguesia nacional como classe aliada “buscando conquistá-la no curso das lutas”.
A nova linha política estava diretamente ligada ao contexto de crescimento do fascismo, que
quando aplicada pelo PCB ao Brasil se somaria a interpretação sobre a sociedade brasileira que
colocava o Brasil como país “semicolonial, semiescravagista e semifeudal”, e por isso primeiro
deveria passar por uma revolução democrática burguesa de libertação nacional, para desenvolver e
consolidar o capitalismo, para só depois construir a revolução socialista, o que justifica a posição do
PCB com relação à burguesia nacional como possível aliada.
Nesse documento de 1936 os comunistas classificavam o governo Getúlio Vargas como de
“traição nacional”. Contudo, em 1938 foi publicado “União Nacional pela democracia e pela paz”,
onde os comunistas afirmam a disposição de lutar “ombro a ombro, por cima de qualquer
divergência, com todas as forças nacionais, inclusive com o Sr. Getúlio Vargas, se este se dispuser,
como é do seu dever, a se opor à investida do fascismo”. Essa mudança de posição ocorreu após a
Ação Integralista Brasileira (AIB) ter sido colocada na ilegalidade, e após a nomeação do Ministro
das relações exteriores Osvaldo Aranha, conhecido pelas suas posições favoráveis aos EUA e
contrário a Alemanha e aos países do eixo. Ou seja, o PCB entendeu tais atos como sinais de avanço
político e vislumbrou a possibilidade de contar com o ditador na frente antifascista. (SENA
JÚNIOR, 2009. p. 39-47)
Em 1945, com os primeiros ares de redemocratização que levariam ao fim do Estado Novo,
o Partido retornou ao movimento sindical organizando o Movimento Unificador dos Trabalhadores
(MUT), que naquele ano teve atuação na campanha pela legalização do PCB. Acreditavam seguir a
orientação da “frente ampla popular e democrática” contra o fascismo, e que o caminho para a
democracia sem percalços e sem perigos fascistas se daria nos movimentos que tentaram manter
Getúlio Vargas à frente do governo durante o processo de abertura. Tal defesa não obteve sucesso,
pois os militares forçaram a renúncia do ditador.
Conquistando a legalidade, os dirigentes do PCB se preocuparam em apagar a imagem
deixada pelos movimentos de 1935, do partido que pegou em armas. Queriam ser vistos como “o

1494
partido da ordem e tranquilidade” e, no meio sindical, a ordem significaria “apertar os cintos”
evitando greves. Inicialmente essa orientação obteve algum sucesso, que pode ser percebido pelo
reduzido número de paralisações, mas com o tempo as movimentações foram aumentando, e
quando as greves aconteciam os comunistas que atuavam no meio sindical apoiaram, participaram e
até dirigiram, o que demonstra a tensão entre a deliberação partidária e a vida real. Nas palavras de
um militante da época: “Não podia entrar na minha cabeça o apoio irrestrito a Vargas e
posteriormente à política de ‘apertar o cinto’ para evitar greves”. (MARTINS, 1989, p.77)
Tais posturas levaram a constantes tensões entre a direção e a base partidária que estava
mais ligada diretamente à dinâmica do movimento sindical. Essa relação entre Partido e sindicatos
não foi homogênea durante todo o período a ser estudado.
Apesar do discurso de “ordem e tranquilidade” adotado a partir de 1945, durante o governo
de Dutra, em 1947, o PCB foi novamente posto na ilegalidade com o argumento que se tratava de
organização política internacionalista e antidemocrática. Alguns meses depois os mandatos dos
parlamentares eleitos pelo PCB foram cassados. A partir desse momento o Partido iniciou um
processo de autocrítica, reconheceu que no período anterior priorizou sua atuação nos espaços
institucionais desviando-se de seus objetivos revolucionários e com isso fez uma virada à esquerda.
Caracterizou o governo Dutra como de “traição nacional”, e conclamou as massas para a derrubada
do governo. Tais posições foram manifestadas no documento intitulado Manifesto de Janeiro de
1948 e reafirmadas no Manifesto de Agosto de 1950.
Com relação a sua atuação no meio sindical a maior parte da historiografia afirma que os
comunistas caminharam em direção ao afastamento dos sindicatos, por serem vistos como parte da
estrutura do Estado, controlados pelo Ministério do Trabalho e cumprirem papel de colaboração de
classes. Assim, deveriam então, atuar no sentido de construir entidades paralelas nas lutas pelas
reivindicações mais sentidas e imediatas do trabalhador nos locais de trabalho e adotam a política
que ficou conhecida como “greve pela greve”. “Era a orientação de promover greves a qualquer
custo, mesmo quando os trabalhadores não estavam mobilizados para tal e inexistiam condições
propícias para a defesa dessa forma de luta”. (PRESTES,2010. p.111)

Debate historiográfico

Influenciando vários estudos acadêmicos os ensaios de Weffort (1973 e 1978) se tornaram


pilares da formulação da visão crítica acerca da prática e das orientações dos comunistas no período
1945/1964. Nas palavras de Marco Aurélio Santana:

1495
Nas análises do autor, a prática comunista teria se caracterizado, em linhas gerais,
por: a) uma ação por dentro da estrutura sindical corporativa, carreando o
movimento dos trabalhadores para os liames desta, servindo-lhe mesmo de reforço;
b) centralidade repousando mais nas reivindicações políticas do que nas
econômicas, elegendo o Estado como locus de ação em detrimento da sociedade
civil; c) orientação para formação de entidades de cúpula com o correlato
distanciamento das bases; d) concentração de força nos setores tradicionais da
economia com dificuldades de expansão nos setores modernos. (SANTANA, 1998)

Weffort salienta ainda o pouco esforço do PCB no sentido de tentar transformar a estrutura
sindical corporativa vertical, em virtude dessa opção ocorreu distanciamento das bases. Deriva
desse modelo de interpretação, a tese que aponta o papel dos comunistas na efetivação do chamado
pacto populista, na medida em que levou os trabalhadores para os sindicatos controlados pelo
Ministério do Trabalho, estava de certa forma contribuindo para a consolidação dos mecanismos de
controle. Portanto, com estas orientações, o PCB contribuiu para reforçar a estrutura sindical
corporativa, e o Estado Populista e junto com ele foi derrotado em 1964.
Escrito no início da década de 1980, o trabalho de Luís Werneck Viana (1983) estabeleceu
um outro marco interpretativo sobre o tema. Viana defende que os mecanismos de controle sobre os
trabalhadores não se mantiveram em virtude dos equívocos do PCB e sim pelas ações das frações
burguesas (agrária e industrial). Nesse caso, não havia opção de ação a não ser por dentro das
estruturas existentes, pois a correlações de forças existentes na sociedade da época não permitia a
construção de alternativa. Viana concorda que ocorreu certo distanciamento da base, mas sugere
que foi causado pela estratégia de construção de unidade com a burguesia nacional, em torno da
chamada “revolução democrática burguesa”. Tal estratégia prejudicou as atividades do partido junto
às bases.
Os trabalhos dessa geração giraram em torno do conceito de sindicalismo populista, e
concordavam com a tese do distanciamento dos sindicatos ou das representações políticas (PCB)
com as bases, ainda que apresentem motivações distintas, para uns a origem social dos
trabalhadores, e para outros a participação na estrutura sindical corporativa, ou os equívocos na
estratégia. Inegável o papel que tais pesquisas desempenharam, contudo de forma geral, pelo caráter
ensaísta, fica claro que necessitavam de maiores pesquisas empíricas para reforçar algumas
posições.
Vale destacar os trabalhos de Leôncio Martins Rodrigues (1983), e de Gildo Marçal Brandão
(1997), utilizando a metáfora da coexistência de dois partidos que apontam uma dicotomia entre o
PCB da direção e o PCB da base, salientam uma oposição entre dirigentes e militantes. Tal tese foi
usada principalmente para justificar que em alguns momentos, as ações dos militantes nem sempre

1496
correspondiam às expectativas das direções partidárias, ou os posicionamentos expressos nas
determinações das orientações políticas.
Os primeiros estudos elaborados por historiadores em torno do tema aqui tratado são da
década de 1980, e foram impulsionados pelos novos programas de pós graduação que surgiram em
várias universidades, e entre outros aspectos tiveram o mérito de ampliação de uso de fontes
documentais, assim como novos referenciais teóricos tornaram-se acessíveis no Brasil, a exemplo
de autores como Eric Hobsbawm e E. P. Thompson.
Ângela de Castro Gomes (1988) em estudo que se transformou em marco nos estudos que
tratam da relação entre trabalhadores e Estado, considerou que a categoria de análise “populismo”
como mecanismo de controle, dominação e manipulação das massas atribui aos trabalhadores
apenas um papel de passividade, por isso rejeitou seu uso, pois considera que a manipulação nunca
era completa, havendo importantes momentos de mobilização.
A partir dos anos 1990 o debate ficou muito mais rico e diversificado. Ocorreu a
consolidação de Grupos de Pesquisa ligados ao tema, e novas abordagens foram propostas,
aprofundando as criticas iniciadas por Ângela Gomes, revendo as versões consolidadas sobre o
período 1945-1964 ligadas a tese do populismo.
Novas fontes foram disponibilizadas, e algumas dessas pesquisas recentes só foram
possíveis a partir do acesso a diversos acervos documentais, periódicos e fontes judiciais e policiais
com a organização e disponibilização de arquivos.
Hélio da Costa (1995) nas suas análises colocou os trabalhadores como atores da história
sem abrir mão de mapear e discutir os dilemas da historiografia do período, como as tensões entre
os sindicatos e as Comissões de Fábrica, a tensão entre as definições da linha política e a prática dos
militantes do PCB, e a ação dos sindicatos e o conjunto dos trabalhadores. Para o autor as
movimentações da classe às vezes ocorreram fortalecendo o papel das entidades, mas que em outros
momentos atuou de maneira autônoma, à margem dos sindicatos ou partidos. O que para ele era
sinal de maturidade da classe esse caráter espontâneo de ações grevistas ocorridas no período e
nesse sentido as organizações por local de trabalho exerceram papel importante.
Com relação ao PCB no período 1945-1947, quando o partido viveu seu período de
legalidade, Costa repete a interpretação que se refere à existência de dois PCs, um que defendia que
era o momento de “apertar os cintos”, e que buscava ser o partido da ordem, e outro que se colocava
na frente das mobilizações, mas que na luta dos trabalhadores a palavra do partido teve menos força
do que as vozes dos trabalhadores. A ação dos trabalhadores então não pode ser vista como correia
de transmissão do partido, o que sinaliza para questionamentos sobre o papel do PCB nas análises
ligadas às interpretações do sindicalismo populista.

1497
Outra perspectiva dessa relação e da atuação dos comunistas nos sindicatos pode ser vista
em interpretações mais recentes como nos textos de Antônio Luiggi Negro (2002) que ao tratar
dessa dicotomia base versus direção partidária constata:
Essa duplicidade originou-se no atrito entre o apego à auto-imagem do comitê
central como único sujeito histórico capaz de entender e modificar o capitalismo
brasileiro com a experiência de o PCB ser expressão - institucional e social - das
diferenças e conflitos vividos pelas classes subalternas.(NEGRO, 2002:255)

Contudo, ao se referir a historiografia do sindicalismo populista, Negro defende a superação


do antagonismo entre o “PC da Cúpula” (maquiavélico e burocrata) versus o “PC das bases”
(autônomo e representativo). Pois havia dirigentes com representatividade na base, assim como
havia na base quem defendesse as posições da direção por considerar a linha mais adequada e não
por mera obediência. Ainda assim o autor não nega que em alguns momentos foi possível notar que
os arranjos políticos podiam opor a organização ao movimento. Como exemplo cita Hercules
Correa:
nós que trabalhávamos nos sindicatos, no dia-a-dia e na prática, estávamos cada
vez mais distantes do pensamento da direção. E aqui é preciso deixar uma coisa
bem clara - o PCB não era, nunca foi, apenas sua direção. (CORREA, 1994:8 apud
NEGRO, 2002:259)

Em diversos momentos as bases partidárias agiam conforme a posição da direção não apenas
por obediência, mas por concordar, e ainda que, em alguns momentos a base atuou conforme os
conflitos impostos pela luta de classe, em protestos ou greves que nem sempre seguiam o
receituário da cúpula partidária. Para Negro, essa movimentação era via de mão dupla, pois também
houve momentos em que as mobilizações dos trabalhadores e a pressão dos militantes partidários
que atuavam no movimento sindical levaram a direção à mudança de posição.
Negro analisa ainda o período pós 1947, quando foi colocado novamente na ilegalidade, e
com os mandatos dos parlamentares comunistas cassados, o PCB adotou linha política inversa a
“União Nacional”, abrindo mão da imagem de “partido da ordem”, passou a defender a eclosão de
greves contra o imperialismo, e a debandada dos agora denominados sindicatos “oficiais”, buscando
a construção de entidades paralelas, livres. Demonstra que tais diretivas não foram prontamente
seguidas por diferentes motivos: “Apenas pensando na sua sobrevivência ou defendendo convicções
divergentes, ou ainda com o objetivo de mover a luta interna, nem sempre a militância era a correia
de transmissão do partido até a classe.” (NEGRO, 2002:267) Ainda sobre a proposição de
construção de entidades paralelas o autor constata que a militância pecebista não deixou de
frequentar os sindicatos denominados como “oficiais”.
Podemos perceber que o debate historiográfico a respeito da trajetória do PCB e sua relação
com os sindicatos está marcado com polêmicas que giram em torno das seguintes questões: a

1498
relação entre a direção política do Partido e dos sindicatos e a espontaneidade da classe; a relação
entre as definições das linhas políticas e a ação dos militantes comunistas nos sindicatos; e como
desdobramento dessa, as tenções entre direção e base partidária nos sindicatos.

Questões Fundamentais
Tratando especificamente da polêmica sobre os impactos da ilegalidade de 1947 e das
mudanças na orientação política sobre as ações sindicais do PCB, é comum em alguns relatos sobre
a atuação do PCB nesse período, as análises que indicam o fracasso dessa orientação, sugerindo que
houve esvaziamento do Partido, e ainda que perderam sua base sindical. A exemplo de Marco
Aurélio Santana, alguns estudiosos, no entanto, tentaram demonstrar a tensão existente entre as
orientações partidárias e as ações, revelando as divergências internas, e salientando que os
militantes de base conseguiram manter um vínculo estreito com as massas. (SANTANA. 2001,
p.72)
Augusto Buonicore (2000) defende posição diferente, na qual a política de construção de
organizações de trabalhadores à margem da estrutura sindical oficial não teve como objetivo a
construção de uma estrutura sindical paralela, de caráter permanente. Esta foi a forma encontrada
para acumular forças no sentido de reconquistar os sindicatos oficiais. Para esse autor, não existe
nenhum documento do partido, nesse período, que oriente no sentido de esvaziamento dos
sindicatos oficiais. Seria um equívoco, então, afirmar que os comunistas que continuaram atuando
nesses sindicatos estariam contrariando orientação partidária.
Para Marco Aurélio Santana, o autor não explica o porquê das entrevistas com vários
militantes, de diferentes regiões, afirmarem que teria havido tal orientação. Além disso, em
Resolução do Comitê Nacional de 1952, a direção faz clara autocrítica, ao reconhecer que “na
prática eles se esforçaram equivocadamente na ação por fora dos sindicatos e, inutilmente, na
criação de uma estrutura independente.” Ou seja, se não nos textos, mas na prática, tal orientação de
saída dos sindicatos oficiais repercutiu. Junto com tal orientação ocorreram as tensões, com os
militantes do meio sindical, que não concordaram com a ideia de sair dos sindicatos que ajudaram a
construir. (SANTANA. 2001:73)
Segundo tal interpretação, tais tensões entre as ações dos militantes comunistas que atuavam
nos sindicatos e a direção partidária acabaram por forçar o partido em direção à mudança da linha
voltada para o meio sindical, e depois em termos gerais. A resolução de 1952 fez apenas oficializar
o que já era a prática de muitos militantes, com alguns ajustes na linha política que consolidaram o
retorno dos comunistas aos sindicatos. De novidade nota-se apenas uma mudança gradual que inclui
aproximações com setores petebistas, que se intensificaram após 1954 com o suicídio de Vargas, e

1499
após o IV Congresso do PCB. A partir desse momento se observa um rápido crescimento da
influência comunista nos anos seguintes, após o abandono da linha que ficou conhecida como
“esquerdizante”.
Considero pertinente o debate entre Marco Aurélio Santana e Augusto Buonicuore, na
medida em que ele sugere algumas questões. Se não existe documento partidário com tal orientação,
e aparece nos relatos de diferentes militantes, como surgiu e se difundiu tal discurso e se
transformou em ação? Teríamos a possibilidade de refletir sobre a construção de uma linha para o
movimento sindical sem passar pelas orientações da direção, e apenas como prática? Como essa
disjunção teria influenciado a atuação dos comunistas baianos junto aos sindicatos? Talvez para
além de diferentes interpretações, temos aqui duas posturas diferentes com relação a questões de
ordem metodológica. Como devemos fazer a história de um Partido?
Para refletir sobre as questões levantadas no parágrafo anterior, pesquisei no jornal O
Momento, publicado pelo PCB da Bahia durante o período 1945-1957, buscando responder as
polêmicas já levantadas pelo debate historiográfico e, portanto, algumas perguntas “foram feitas aos
documentos”. Era necessário investigar se as orientações gerais foram ou não efetivadas na Bahia,
ou seja, os comunistas saíram dos sindicatos? Mudaram as palavras de ordem? Criaram sindicatos
paralelos? Tentaram construir greves a qualquer custo? Caso a nova orientação não houvesse sido
implementada isso teria significado um enfrentamento da base versus a direção?

Os comunistas Baianos nas páginas de O Momento


A pesquisa no jornal do PCB baiano demonstrou que não houve liberdade de atuação no pós
1945. Boa parte dos sindicatos continuou sob intervenção, não tinham liberdade para convocar
assembleias sem autorização do Ministério do Trabalho, e os comunistas continuaram sendo presos
ao participarem de atividades como protestos, greves, ou outras formas de manifestação.
Na tentativa de se inserir no meio sindical e de acumular forças, foi criado o Movimento
Unificador dos Trabalhadores (MUT) em abril de 1945. Na Bahia foram criados núcleos na capital
e em vários municípios do interior. O MUT apoiou diversas categorias nas suas mobilizações por
aumento de salários, contra a carestia, assim como, pela autonomia sindical e pelo direito de greve.
Além dos comunistas é possível identificar lideranças ligadas ao trabalhismo nas atividades e em
órgãos de direção do MUT.
A orientação da política sindical do PCB de “apertar os cintos” fica explicita, entre 1945 e
1947, portanto antes da ilegalidade, era nítida a preocupação em se colocar como o “esteio máximo
da ordem”, e demonstrar que a orientação correta era esgotar todas as possibilidades de negociação

1500
e que a greve seria o ultimo recurso, e quando essas aconteciam fariam o possível para que fossem
logo solucionadas.
Envio de correspondências, memoriais, realização de reuniões com empresas, solicitação de
resolução por parte da delegacia do trabalho, instauração de dissídios individuais ou coletivos na
Justiça do Trabalho, eram passos importantes a serem dados antes da deflagração de uma greve que
deveria ser visto como ultimo recurso. O presidente do sindicato dos estivadores em entrevista
cedida ao O Momento comentou a orientação:
Ora, nenhum trabalhador pode ser contra a greve. Ela é uma das armas
essenciais para a defesa do proletariado. É uma conquista que custou grandes
sacrifícios aos trabalhadores de todo o mundo... No Brasil, nós lutamos para
garantir este direito. Somos desfavoráveis às greves provocadas em benefício
de terceiros e não da classe operária. Somos ainda desfavoráveis a certos
tipos de greve, neste momento, porque as mesmas poderão ser aproveitadas
pelos nossos inimigos, para deter as conquistas do povo, entre as quais está o
próprio direito de greve. Somos pela resolução pacífica de nossas questões,
empregando a greve somente quando já estiverem esgotados todos os
recursos para um entendimento entre patrões e trabalhadores.2

A tática de construir organizações paralelas, como comissões de trabalhadores por local de


trabalho para atuar no sentido das reivindicações imediatas, não começou apenas com a mudança da
linha em 1947/48. Na verdade essa tática era utilizada desde 1945 quando, mesmo na legalidade
vários sindicatos continuaram sob intervenção e constante fiscalização do Ministério do Trabalho.
Para a realização de assembleia continuava dependendo de autorização da delegacia regional do
trabalho, e mesmo assim eram acompanhadas de policiais, que em alguns casos exigia a
apresentação de identificação para permitir a entrada nos locais da assembleia.
Nesses casos, as comissões não tinham a pretensão de substituir a estrutura sindical, mas era
a única forma de atuação possível, diante da falta de eleições para as direções sindicais. Em várias
categorias as comissões, com a participação de comunistas, se utilizavam do mecanismo de reunir
determinado número de assinatura de trabalhadores e solicitar na delegacia do trabalho a realização
de assembleias (dispositivo que estava previsto na legislação vigente). Chegando mesmo a iniciar
greves em algumas categorias puxadas pelas comissões, atropelando as direções sindicais formadas
por interventores nomeados pelo ministério do trabalho.
Boa parte dos sindicatos continuavam sendo dirigidos por interventores nomeados pelo
Ministério do Trabalho. Ainda se precisava de autorização da delegacia do trabalho para realização
de assembleias, que eram acompanhadas de policiais, e em alguns casos se exigia identificação na
entrada, e se exigia atestado ideológico, o que praticamente inviabilizava a candidatura dos
comunistas as direções sindicais. Para o líder ferroviário Raphael Martinelli:“De modo que essa foi

2
“Os operários não têm candidatos”. O Momento, Salvador, 30 abr. 1945, p. 5.

1501
uma foi uma das razões de o Partido Comunista começar a trabalhar com uma espécie de
sindicalismo alternativo ao ‘oficial’- ou ministerialista, como ficou conhecido. (BASTOS, 2014,
p.96)
Na Bahia, o período 1945-46 e mesmo após a virada tática do PCB é possível identificar tais
ocorrências, e nesses casos o posicionamento do PCB manifestado nas páginas do periódico O
Momento era de lutar pelo fim das intervenções nos sindicatos, estabelecimento de direções livres, e
ao mesmo tempo incentivava a participação dos trabalhadores nas instâncias sindicais quando essas
aconteciam, como nos raros casos de convocação de assembleia
Em maio de 1947 ocorreu a cassação do registro do PCB, a União da Juventude Comunista
(UJC) também foi considerada ilegal, e o decreto governamental 23.046 determinou a intervenção
nos sindicatos que se filiaram ou contribuíram para a CTB e as Uniões Sindicais nos estados.
Na Bahia, a USTB teve as atividades suspensas, e sindicatos, como os dos
Estivadores, Sapateiros, Gráficos, Moageiros, Transviários e outros, tiveram as
diretorias destituídas, os livros de atas e contábeis apreendidos e as sedes interditadas
por determinação da DRT, enquanto aguardavam a designação da nova diretoria. Em
julho, foram nomeadas as juntas governativas dos Sindicatos dos Panificadores,
Tecelões, Marceneiros e Gráficos de Salvador.3 (SOUZA, 2015.p.169,170)

Em 1947 após voltar para a clandestinidade mudam o tom, deixando de lado o discurso mais
conciliador de “esteio da ordem” (que sobrevive durante um tempo em tom mais ameno), Antes
sinalizava para a crença na Justiça e no Ministério do Trabalho, na negociação com os patrões e na
mediação do Estado, e na necessidade de se tentar todas as alternativas possíveis antes da
deflagração de greves, com a virada tática para gradativamente ir sendo substituído por
chamamentos mais incisivos à mobilização e medidas mais radicalizadas, notadamente após janeiro
de 1948 com a cassação dos mandatos.
Houve intensificação nas tentativas de mobilização, convocando os trabalhadores para
participação em comissões, defesa das liberdades sindicais e denuncia dos interventores. Mas não
encontrei chamamento para abandono dos sindicatos nem noticia de dirigente sindical pecebista que
tenha renunciado ao cargo. Com o fechamento da CTB e da USTB os Comunistas baianos
construíram a Comissão Central em Defesa da Liberdade Sindical que antecedeu a Associação
Geral dos Trabalhadores (AGT) criada em abril de 1948.
Intensificaram a criação de comissões nas empresas, tática iniciada desde 1945. Foram
comissões de salários, de reivindicação, de greve. Também é possível identificar a criação de
algumas associações que atuaram paralelamente aos sindicatos a exemplo da União dos Portuários,
dos Trabalhadores da Circular, dos Ferroviários, mas vale destacar que isso não significou

3
“Prosseguem os absurdos atentados à liberdade sindical”. O Momento, Salvador, 22 jul. 1947, p. 6.

1502
desfiliação aos sindicatos, ou que abriram mão de disputar os espaços dos sindicatos quando era
possível. Além das bandeiras comumente levantadas de salários, condições de trabalho, liberdades
sindicais, pelo abono de natal, iniciaram campanhas pelo não pagamento do imposto sindical e
denunciando que esse dinheiro estava financiando os interventores que agiam contra os
trabalhadores.
Portanto encontramos na documentação que trata do PCB baiano noticias de atividades entre
os trabalhadores, em organismos paralelos como as comissões de trabalhadores ou as associações,
mas que isso não significava negar os sindicatos por serem órgãos burgueses, e sim a tática para
tomar as direções sindicais ou atropelá-las, a tentação inicial é de acreditar que os militantes de base
não estavam seguindo as orientações da direção. Mas analisando o jornal comunista, fica claro que
os militantes estavam respaldados pela direção partidária.
Refletindo sobre a polêmica em torno da orientação de sair dos sindicatos ter ou não
existido, tratei de buscar algumas memórias de militantes para tentar encontrar nos relatos indícios
de tais diretrizes. E como tal relação teria ocorrido nas experiências de militantes em outras partes
do país.

Memórias
Em algumas memórias de antigos militantes aparecem versões muito próximas dos
historiadores que defendem a tese de que o partido teria saído dos sindicatos. Moisés Vinhas em O
Partidão: A Luta por um partido de massas, publicado em 1982 assim descreve:

Adotando a palavra de ordem de “derrubar o governo”, classificado como de “traição


nacional”, os comunistas passam a estimular todo tipo de ação grevista,
independentemente da hora e lugar. Procuram tomar conta das direções sindicais a
qualquer preço e, quando não o conseguem partem para o “racha”.
“Pretextando que a estrutura sindical vigente era atrelada ao Ministério do Trabalho,
os comunistas rompem com ela e se lançam à construção de sindicatos paralelos. Na
verdade, estes só conseguem reunir pequeno número de associados, a maioria
comunistas. (VINHAS, 1982.p.95)
Passam a considerar os sindicatos como órgãos a serviço da burguesia e do latifúndio
(...) E tratam de criar organizações novas, revolucionárias, puras, autônomas,
independentes e paralelas (...) tentam tirar greve a qualquer custo e a qualquer preço;
quando conseguem, prolonga-la o maior tempo possível. (VINHAS, 1982. p.129)

Mas é esse mesmo autor que demonstra dificuldade de implementar essa nova orientação no
meio sindical:

É lá que as insatisfação primeiro se acumulam, a aplicação da linha se esbarra em


vários obstáculos. A própria experiência dos militantes acaba indicando a

1503
inviabilidade da tática de confronto, de recusa de alianças, de ruptura com a estrutura
sindical existente: a massa operária simplesmente não acompanhava o partido nessa
direção. Assim, em 1952 resolve realizar um amplo “ativo sindical nacional” e
aprova uma resolução que permite, nessa área específica, uma correção de rumos. A
“resolução sindical” de 1952 sanciona e generaliza o que a prática estava indicando
fazer: determina que os comunistas voltem aos sindicatos existentes, recolham as
reivindicações próprias dos trabalhadores, forjem alianças com as forças ali
atuantes, especialmente os petebistas, e retomem a luta pela sindicalização e pela
unidade sindical. (VINHAS, 1982. p.130)

Em livro publicado em 1980, que inclui textos escritos no exilio e ainda uma longa
entrevista, o dirigente sindical Hercules Correa se refere ao período dividindo em dois. Primeiro de
1948 a 1952, quando:
“Nossa linha de trabalho com o proletariado estava em sintonia com a linha política
geral e se caracterizava pela já referida direção do golpe principal, o abandono dos
sindicatos e criação dos sindicatos paralelos independentes, e a tentativa de arrancar
greves de qualquer modo.” (CORREA, 1980. p.145)

Segundo Correa, houve reação das “organizações e militantes do Partido diretamente ligados
ao trabalho nas empresas à política estabelecida para o movimento sindical. Essa manifestação se
manifestava na volta aos sindicatos, na aliança com os getulistas e em medidas concretas de
construção do Partido nas empresas. É daí que eclode o processo das grandes greves, iniciadas com
a dos bancários de São Paulo, em 1951.” p.145
A segunda fase de 1952 a 1954 foi quando “a resolução sindical de 1952 marca o início
oficial do período, mas ela era a legitimação de uma prática política que já vinha sendo executada
pela base operária e por parte dos escalões intermediários do Partido desde 1950”. (CORREA
p.145-146)
Conta ainda um episódio que retrataria o que significaria na prática a ideia de “greve de
qualquer modo” ou “greve pela greve”. Uma equipe de militantes chegou na porta da fábrica antes
da entrada das operárias, e um deles colocou o revolver na cintura do porteiro e disse: “fique quieto
não abra o portão”. Com o acumulo de operárias um deles fez comício e disse que a fábrica estava
em greve. Quando terminou todos ficaram olhando sem esboçar reações até que pegaram os
revólveres e começaram a atirar para cima causando corre-corre, e as trabalhadoras só voltaram no
dia seguinte. No dia seguinte a imprensa noticiou: “Greve na fábrica Odeon”.
Em ambos os relatos, de Correa e de Vinhas, eles afirmam a dificuldade de implementação
da linha e ao mesmo tempo sugerem que os militantes de base não teriam seguido, em movimento
de reação as orientações da direção. No caso de Correa é ainda mais claro quando afirma que na
prática desde 1950 é possível encontrar desajustes, ou “insubordinações”.

1504
No livro de memórias de Marco Antônio Tavares Coelho, dirigente partidário em Minas
Gerais relata alguns episódios de greves ocorridas em algumas minas nesse período após a
ilegalidade, e após a cassação dos mandatos, entre 1947, 1948 em situações que a direção dos
sindicatos não estava nas mãos dos comunistas e que mesmo assim estes conseguiram impulsionar e
até liderar tais movimentos. E que foi através dos sindicatos que se desencadearam as greves, o que
demonstra que não houve saída dos sindicatos, ou que a mera compreensão desses como órgãos da
burguesia.
Coelho relata ainda que no caso da greve entre os 600 mineiros de Conselheiro Lafaiete
causou intervenção no sindicato, prisões, salários suspensos e repercussão nacional e a mina
cercada militarmente. Marco Coelho foi chamado para ir ás pressas para o Rio de Janeiro para se
encontrar com o deputado Pedro Pomar encarregado pela direção de acompanhar a orientação na
greve, que deu verdadeiro banho de água fria pois para ele os trabalhadores deveriam construir a
saída organizada da greve. (COELHO, 2000 p. 105)
O mesmo ocorre na biografia de Raphael Martinelli, líder ferroviário paulista que relata
episódios assembleias que ocorreram sob convocação através de solicitações da base no ministério
de trabalho, até de greve em 1949 com participação de comunistas, e sob a coordenação do
sindicato. Ou seja, os comunistas atuando através dos sindicatos. (BASTOS, 2014)
Da mesma maneira Eloy Martins é claro ao afirmar que: “(...) Nós, os camaradas ligados ao
movimento sindical (...) atuávamos no sentido de ganhar os trabalhadores e os sindicatos, por isso
mesmo, ao lado das greves por decreto, saíam movimentos de envergadura. (Eloy Martins, p.98) Os
relatos do Eloy esclarece algumas questões. Conta que participou de um “ativo sindical do PCB
onde seriam debatidas algumas questões controvertidas”. O assunto principal eram as organizações
paralelas.
“Após ampla discussão me convenci de que criar duplicidade sindical não só era
incorreto, como irrealizável na conjuntura daquele momento. Grande parte dos
presentes tinha a mesma opinião, mas ninguém dizia claramente o que pensava. (...)
Fiz duas perguntas (...):
1- Criado o sindicato livre, os trabalhadores devem abandonar o outro? ”
Cada ativista sindical do partido deve saber qual a posição mais adequada para cada
setor determinado”. A resposta causou confusão, se estabeleceu novo debate e no
final ficou tudo como estava antes. Um companheiro da mesa disse que o ativo não
tinha poderes para tirar resoluções, que na aplicação da linha política partidária, a
prática iria ensinar como fazer. (...)
2- A qual sindicato os trabalhadores devem pagar suas mensalidades?
Depende da vontade deles. Não somos nós que vamos determinar, inclusive podem
pagar para os dois.”

O relato de Eloy talvez comece a explicar a dificuldade de tratar do tema, já que ficou claro,
que nem mesmo para os militantes da época estava claro quais as tarefas colocadas na linha a

1505
seguir. Além disso, as respostas dadas deixam brechas para localmente algumas definições, como a
duplicidade da atuação. “Não criamos novos sindicatos, mas tínhamos o controle dos setores
fundamentais da classe operária: ferroviários, mineiros alimentação, energia elétrica, metalúrgicos,
bancários, tecelões, portuários, estivadores, transporte urbano, gráficos, entre outros.” (MARTINS,
p.112-113
Concluo acreditando que a história da atuação dos militantes pecebistas no meio sindical não
pode ser descrita ou explicada apenas a partir das linhas, e tampouco, apenas me utilizando de
elementos da dinâmica interna do partido. As questões externas como o nível de repressão,
sindicatos sob intervenção, posicionamento e a relação com as outras correntes que atuavam no
meio sindical, o nível de organização e consciência dos trabalhadores, devem ser levados em
consideração. Nesse caso, a atuação em entidades paralelas ou em comissões por local de trabalho,
não foi apenas uma escolha em função da linha política, mas uma condição para permanecer
atuando entre os trabalhadores, já que as entidades estavam sob intervenção.
Os documentos e as memórias mostram que não foi apenas na Bahia que os militantes
comunistas continuaram a atuar junto aos sindicatos na medida do possível. Outro aspecto que jugo
importante, é perceber que tais posturas dos militantes, mesmo quando aparentemente não estavam
conforme a linha política, ao não saírem dos sindicatos, mas estavam em consonância com as
orientações defendidas pelo jornal do PCB, que de certa maneira expressa a opinião da direção
partidária, portanto, não podem ser vistas como desobediência, ou de enfrentamento da base versus
direção.

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1982.

1507
Os Sertões da Comarca do Rio das Mortes: análise das estruturas fundiárias e a
dinâmica das fronteiras (1740-1808)

Marcelo do Nascimento Gambii1

Resumo: Esta proposta de trabalho visa analisar a dinâmica das fronteiras nos sertões oeste da
Comarca do Rio das Mortes, Capitania de Minas Gerais, adotando como marco temporal o período
de 1740 até 1808. Com a descoberta dos veios auríferos, o processo de ocupação destas regiões
provocou transformações substanciais na sua dinâmica ocupacional bem como também, na
movimentação das fronteiras. A medida em que cresce o número de indivíduos nesta comarca,
consequentemente cresce a necessidade de ocupar novas faixas de terras, desencadeando a dinâmica
nas fronteiras. Para apresentarmos nossas análises fizemos uso das cartas de sesmarias como
documentação principal para expor o cenário de ocupação dos sertões oeste desta comarca, área que
apresentou uma intensa ocupação ao longo da segunda metade do século XVIII.

Palavras-Chave: Comarca do Rio das Mortes, Sertões, Fronteiras.

Abstract: This work proposal aims to analyze the dynamics of the frontiers in the hinterlands west
of the Comarca do Rio das Mortes, Capitania de Minas Gerais, adopting as a temporal frame the
period from 1740 to 1808. With the discovery of the aereal veins, the process of occupancy of these
regions has brought about substantial changes in their occupational dynamics as well as in the
movement of borders. As the number of individuals in this region increases, consequently the need
to occupy new tracts of land increases, and consequently, the dynamics at the borders. In order to
present our analyzes, we made use of the cartas de sesmarias as main documentation to expose the
scenario of occupation of the western hinterlands west of this region, an area that showed an intense
occupation throughout the second half of the XVIII century.

Keywords: Comarca do Rio das Mortes, Hinterlands, Frontiers.

Este trabalho visa analisar a expansão das fronteiras na Comarca do Rio das Mortes ao longo
da segunda metade do século XVIII e na primeira década do século XIX. Por se tratar de uma
região que atraiu um grande contingente populacional, em consequência das descobertas dos veios
auríferos, compreender a dinâmica das fronteiras bem como também, o processo ocupacional desta
região, auxilia na identificação dos aspectos sociais e econômicos desta área. Dessa maneira,
visamos realizar uma breve apresentação acerca do nosso recorte espacial de estudo para
posteriormente adentrarmos nas análises das fontes primárias, a saber, as cartas de sesmarias.
Destacamos que, nossos objetivos neste breve texto é demonstrar como ocorreu o processo
ocupacional nas regiões compreendidas como os sertões a oeste desta comarca.
A Comarca do Rio das Mortes teve a sua origem por meio do Alvará de 1714 ii e embora não
fosse a maior em extensão territorial, já havia neste período centros significativamente povoados a
exemplo das vilas de São João del Rei e a de São José del Rei. Sua localização meridional,
apresentava como limites ao norte a Capitania de Vila Rica e do Rio das Velhas, a oeste a Capitania

1
Doutorando em História - Universidade Federal Fluminense – e-mail: marcelongambi@yahoo.com.br

1508
de Goiás e ao sul e sudeste com as Capitanias de São Paulo e do Rio de Janeiro. A sua posição
geográfica permitiu o contato com outros importantes centros da colônia, possibilitando o
desenvolvimento das suas atividades econômicas, em destaque a prática agropastoril, predominante
ao longo da segunda metade do século XVIII.
Como em outras localidades da Capitania de Minas Gerais, o seu processo de ocupação pode
ser analisado em duas etapas distintasiii. Inicialmente em sentido centrípeto, ou seja, oriundo do
deslocamento de indivíduos de outras partes da colônia ou mesmo da metrópole para as áreas de
extração mineral, o que ocasionou a formação de aglomerados urbanos. Entretanto, já em um
segundo momento ocorreu a ocupação em sentido centrífugo, portanto, das regiões mineradoras
para as áreas mais interioranas da comarca, à medida que aumentavam as necessidades de
ocupações de novas unidades de terras.
O processo de interiorização juntamente com a ocupação dos sertões a oeste da Comarca do
Rio das Mortes, constituem o tema central deste trabalho, pois expõe a relação econômica
juntamente com a dinâmica das fronteiras. Portanto, ressaltamos também a importância de analisar
a expansão das fronteiras juntamente com a ocupação do território mineiro, pois, a "constituição de
um território é, assim, um processo cumulativo, a cada momento um resultado e uma possibilidade -
um contínuo em movimento"iv. Entender este processo ao longo do tempo possibilita compreender e
analisar de quais maneiras ocorreram os processos de ocupações nestas regiões dos sertões.
A conquista espacial nesta região emerge em decorrência da descoberta mineral, sendo este
o cerne da atração que ocasionou um intenso deslocamento populacional para estas áreas.
Entretanto, não podemos desconsiderar as demais atividades que surgiram concomitantes a esta, em
destaque, as atividades agropastoris e o seu importante papel estabelecido nesta comarca. Como
bem destacou Caio Boschi, "no chamado ciclo do ouro, esse mineral não foi tudo. Em tendência de
longa duração, nas Minas Gerais setecentistas nem tudo que reluzia era ouro"v. Neste contexto, a
historiografia das décadas de setenta e oitentavi produziram excelentes debates que auxiliam para a
compreensão do mercado interno existente nas Minas Gerais setecentista, bem como também na
identificação da acumulação endógenavii oriunda da prática agropastoril.
As notícias de achados de minas de ouro despertavam o interesse dos indivíduos,
provocando as mobilidades internas e os deslocamentos populacionais que, consequentemente,
contribuíam para a formação de sítios e fazendas afim de abastecer os centros mineradores. Nas
circunvizinhanças da vila de São José del Rei e também nas áreas mais interioranas, compreendidas
como os sertões a oeste, tiveram fortes ondas populacionais. Como destaca Andrade, "pessoas
oriundas das Minas Gerais e das capitanias adjacentes, atraídas pelo lucro nos descobrimentos,

1509
ocasionavam fortes aglomerações populacionais de curta duração que animavam o comércio das
vilas"viii.
Neste tema em questão, vemos os currais abastecendo o intenso povoamento nas regiões
mineradoras e, por outro, as minas, fornecendo o capital necessário para a manutenção e existência
dessasix. A partir de relato de viajantesx nas Minas Gerais, pode-se perceber que a formação de
sítios e fazendas para suprir as carências de gêneros alimentícios das zonas mineradoras era uma
característica comum, encontrada também em vários outros pontos da Comarca do Rio das Mortes,
em destaque para a produção dos gêneros alimentícios.
O aumento populacional e a necessidade de ocupar novas áreas provocaram intensas ondas
de interiorização nesta comarca, desencadeando o avanço das fronteiras, principalmente em relação
aos sertões, por serem consideradas os espaços com potencial para a prática econômica dos gêneros
alimentícios além de ser áreas que ainda apresentavam abertas as suas fronteiras. Portanto, é
fundamental identificarmos a ocorrência deste fenômeno das fronteiras, aqui compreendidas como a
abertura e o seu fechamento, para identificarmos a complexidade deste processo. Ressaltamos que o
conceito de fronteira neste trabalho está sendo empregado segundo as análises de Otávio Velho, na
qual destaca a
fronteira em movimento (moving frontier) que é de uso comum para referir-se ao
processo de ocupação do território dos Estados Unidos. Entre nós, existem algumas
expressões próximas, embora menos disseminadas, tais como fronteira interna e
fronteira econômicaxi.

Neste sentido, a demanda por mais unidades de terra é um processo economicamente


inelástico, ou seja, cabendo a população crescente buscar constantemente por novas unidades de
terras. Dessa maneira as áreas a oeste da vila matriz, São José Del Rei, foi o principal eixo de
ocupação e, consequentemente, auxiliou para absorver a crescente população provocando o avanço
das fronteiras nestas áreas mais interioranas.
Cabe neste momento, fazermos uma apresentação do conceito de sertões utilizado neste
trabalho, para compreendermos como estes espaços sofreram transformações na medida em que
ocorriam o processo ocupacional. O sertão (ou os sertões) esta intrinsecamente relacionado à
percepção dos povoadores acerca da natureza que lhes rodeavam. xii A busca pela riqueza e o
povoamento de áreas remotas, distantes dos principais centros povoados e do litoral, contribuíram
para a formação da mentalidade destas áreas. As definições variavam de região para região, cada
uma reservando suas próprias características e peculiaridades, sempre relacionadas com a percepção
e impressão do espaço que os circundavam. A palavra sertão é oriunda do radical latino “desertanu”
que remete a uma ideia geográfica e espacial de deserto, de interior e de vazio, caracterizando
assim, na ausência de elementos civilizadosxiii. Segundo o dicionário de Raphael Bluteau de 1728, o

1510
sertão compreende a região “afastada do mar, e por todas as partes, metida entre terras”xiv. Dentre a
grande variedade de definições que podemos encontrar acerca dos sertões é importante destacarmos
os aspectos culturais que margearam estas áreas, como a noção de espaços vazios e distante dos
litorais. Ademais, destacamos este ponto, pois serão estes espaços que desempenharão um
importante papel econômico e social na Comarca do Rio das Mortes, por meio do desenvolvimento
das atividades agropastoris e também, absorvendo o contingente populacional que se deslocou para
estas áreas.
É importante destacarmos que embora neste período a extração mineral já estivesse em
processo de esgotamento, foi ela que impulsionou o adensamento populacional na vila matriz de
São José Del Rei, que viria a sofrer modificações significativas no seu contingente populacional nas
décadas posteriores, influenciando na ampliação das atividades agropastoris. A produção
alimentícia nesta região, embora em sua grande maioria atuava inicialmente como zonas de
abastecimento dos centros extratores do ouro que se formaram no início do setecentos, passaria na
segunda metade do século XVIII a comercializar com praças mais distantes. Como destacou
Douglas Libby e Zephyr Frank, “até meados dos setecentos, gado bovino, queijos, toucinhos e grãos
procedentes de São José haviam penetrado na praça mercantil do Rio de Janeiro e, de lá, eram
redistribuídos para mercados menores, especialmente os litorâneos”xv.
Neste contexto apresentado até o momento, as cartas de sesmarias podem trazer novas
informações acerca do tema estudado em questão, ou seja, os aspectos pertinentes ao avanço das
fronteiras, a ocupação dos sertões e a produção agropastoril. É importante ressaltarmos como
destaca Francisco Pinto, que esta documentação apenas é capaz de expor o real contexto fundiário
quando analisadas em conjunto e não tomadas de maneira isoladas. Dessa forma, segundo o
pesquisador as cartas de sesmarias

se tomadas num grande conjunto, (...), podem desenhar a ocupação do território, o


perfil dos sesmeiros, os momentos de maior ou menor distribuição das terras, a
ocupação dos sertões, a variação dos seus textos etc. Mas se tomadas isoladamente,
ou em conjuntos menores, talvez respondam a poucas das questões que inquietam o
historiador das estruturas agráriasxvi.

Por meio da análise e sistematização desta fonte documental em nosso recorte espacial e
temporal de estudo, identificamos que a movimentação das fronteiras bem como os seus avanços
para as áreas dos sertões a oeste desta comarca, ocorreram de maneira mais intensa entre os
períodos de 1750 a 1780. Em um universo de 278 cartas de sesmarias analisadas, 210
concentravam-se nestas décadas em questãoxvii. Dessa forma, podemos identificar que as fronteiras

1511
se encontravam abertas ainda neste período, ou seja, permitindo o processo de interiorização e
absorvendo o intenso contingente populacional que se deslocou para estas regiões.
No aspecto econômico outro ponto inferido acerca deste avanço das fronteiras se referem a
intensificação da produção da economia agropastoril, que serviu como atrativo para que esses
indivíduos ocupassem estas novas unidades / faixas de terras. Além disto, cabe destacarmos
também o fato de que as principais áreas ocupadas primeiramente foram nas proximidades da vila
de São José del Rei, por ser este, o principal mercado consumidor e o centro urbano nas
proximidades dos sertões a oeste da Comarca do Rio das Mortes. As freguesias de Nossa Senhora
da Conceição de Congonhas do Campo e a de Santo Antônio apresentaram um número significativo
de solicitações de sesmarias nas décadas de setenta e oitenta. Ademais, também é importante
ressaltarmos que neste período era nítido a expansão das fronteiras neste termo em direção ao
Caminho da Picada de Goiásxviii, sendo esta região rica em terras férteis e em fronteira aberta. Este
ponto em questão reforça ainda mais, a especialização na produção de gêneros alimentícios
desenvolvidos nas áreas dos sertões.
Cabe ressaltarmos também que as freguesias presentes nas áreas mais interioranas foram
ocupadas posteriormente, à medida que a população crescente demandava cada vez mais por novas
unidades de terras. Neste contexto cabe apontarmos como exemplo São Bento do Tamanduá, que no
estudo das cartas de sesmarias apresentou várias solicitações nas décadas de setenta e oitenta xix.
Dessa forma, as nossas análises corroboram com a noção de que "a economia do ouro criou um
mercado interno, articulado em torno dos centros urbanos e das zonas de garimpo, particularmente
propício para os produtos agropecuários"xx.
Destacamos diante do apresentado nestas análises a elasticidade da economia mineira, em
especial da Comarca do Rio das Mortes. A absorção da constante população crescente ao longo da
segunda metade do século XVIII foi consequência da dinâmica do avanço das fronteiras para as
áreas mais interioranas bem como, da prática agropastoril nestas regiões. Como destacou Ângelo
Carrara, neste período de transformação

foram as pequenas lavouras de mantimentos e a pequena criação que garantiram,


com uma base técnica restrita, níveis de rendimentos agrícolas e pastoril tais, que
permitiram não só o crescimento ininterrupto da população, como o avanço
consequente da fronteira agrícolaxxi.

Dessa maneira, os avanços das fronteiras para as áreas interioranas moldariam os aspectos
sociais e econômicos da Comarca do Rio das Mortes. As regiões nas proximidades da vila de São
José Del Rei foram as primeiras áreas desejadas pelos sesmeiros, visando a possibilidade das
relações comerciais com a vila matriz. Além disto, as atividades agropastoris foram as principais

1512
atividades econômicas praticadas por estes sesmeiros. Esta relação comercial existente entre o
centro minerador e as regiões rurais foram cruciais para a manutenção desta região. Como bem
destacou Alexandre Cunha, "a designação irrestrita dos espaços desconhecidos, vão se
diferenciando, como na conformação dos 'currais' onde se espalha a pecuária extensiva ou dos
'campos' onde começa a florescer uma área de produção agrícola para o abastecimento das
'minas'”xxii.
A expansão nas fronteiras e o seu avanço como o ocorrido nas regiões dos sertões permitem
compreendermos que a Capitania de Minas Gerais não sobrevivia apenas do metal precioso, mas
muito além disto. O mapeamento da dinâmica das fronteiras demonstra a importância de relacionar
este fenômeno, com a conjuntura socioeconômica da Comarca do Rio das Mortes. Portanto,
percebemos um avanço das fronteiras nas regiões dos sertões, à medida em que avançamos nas
décadas finais do século XVIII, período em que a mineração apresentava o seu sinal de esgotamento
e as atividades alimentícias passariam a ganhar maior destaque.
Por fim, como destacou o desembargador José João Teixeira na primeira metade do século
XIX, referindo-se a Comarca do Rio das Mortes e o seu importante papel econômico na produção
de gêneros alimentícios, como sendo a mais vistosa e a mais “abundante de toda a Capitania em
produção de grãos, hortaliças e frutos ordinários do País, de forma que além da própria sustentação,
provê toda a Capitania de queijos, gados, carne de porco etc.”xxiii. Dessa maneira, a economia da
Comarca do Rio das Mortes demonstrou a importância econômica exercida pelas atividades
agropastoris que se desenvolveu e aprimorou ao longo da segunda metade do século XVIII e início
do XIX

i
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorando em História pela Universidade
Federal Fluminense. Membro do INCT Proprietas.
ii
A Comarca do Rio das Mortes, juntamente com a Comarca da Vila Real do Sabará e a Comarca de Vila Rica, formava
as primeiras Comarcas de Minas Gerais no início do setecentos. Posteriormente, no ano de 1720 se constituiu a quarta
Comarca desta Capitania, sendo esta a de Serro Frio. Ver: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do Oeste
e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002. p. 31.
iii
IGLÉSIAS, Francisco. Minas Gerais. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.). História Geral da Civilização
Brasileira. Tomo II, v.2. São Paulo:Difel, 1960. p.366.
iv
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo:Annablume, 2005. p.45.
v
BOSCHI, Caio. Nem tudo o que reluz vem do ouro. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (org.). História Econômica do
Período Colonial. São Paulo. Ed. Hucitec, 2002. p.65.
vi
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. Rio de Janeiro. Ed.:Paz e Terra, 1977. LENHARO, Alcir. As Tropas da
Moderação: o abastecimento da corte na formação política do Brasil (1808-1822). São Paulo. Ed.:Símbolo, 1979.
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo. Ed.:Hucitec/Edusp,
1990. CARRATO, José Ferreira. Iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo. Ed.:Edusp, 1968. MENESES,
José Newton Coelho. O Continente Rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina,
Minas Gerais. Ed.: Maria Fumaça, 2000.
vii
FRAGOSO, João Luiz Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. “movimento que diz respeito à reiteração, no tempo
das produções ligadas ao abastecimento interno. Esse movimento, por ser realizado em todas as suas etapas no espaço
colonial, implicaria a retenção de seu excedente no interior da economia colonial” p.27

1513
viii
ANDRADE, Francisco Eduardo de. A Invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos sertões
do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte. Ed.:Autêntica:PUC Minas, 2008. p.227.
ix
Acerca do tema minas e currais ver: VASCONCELOS, Diogo. História Antiga de Minas Gerais. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1948. MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil colonial. Rio de Janeiro.
Imprensa Nacional, 1938.
x
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte. Ed.:Itatiaia,
1974.
xi
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em
movimento. Rio de Janeiro:Edicão on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. p.07
xii
FAORO, Raimundo apud. CARRARA, Angelo Alves. Minas e Currais: produção rural e mercado interno em Minas
Gerais 1674-1807. Juiz de Fora: UFJF, 2000. P.41. Segundo Faoro, “os sertões eram o outro mar ignoto, cercado por
mistérios e desconhecimento”.
xiii
AMANTINO, Marcia. O Mundo das Feras: os moradores do sertão oeste de Minas Gerais – século XVIII. Rio de
Janeir. UFRJ, IFCS, 2001. P.26.
xiv
Dicionário de Raphael Bluteau, acessado pelo endereço eletrônico http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/1/sert%C3%A3o
xv
FRANK, Zephyr. LIBBY, Douglas. Voltando aos registros paroquiais de Minas colonial: etnicidade em São José do
Rio das Mortes, 1780-1819. P.04.
xvi xvi
PINTO, Francisco Eduardo. As Sesmarias da Comarca do Rio das Mortes nas nascentes do São Francisco. In:
XXIV Simpósio Nacional de História, ANPUH, 2007. p.08
xvii
IPHAN/São João del Rei - MG. Acervo da Comarca do Rio das Mortes. Documentação das cartas de sesmarias
pertencentes a vila de São José Del Rei e suas respectivas freguesias (1740-1808).
xviii
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte. Ed.:Itatiaia,
1995. Segundo Barbosa, o termo "Picada de Goiás" ou "Picada dos Goiazes" era a referência para as sesmarias situadas
nas vizinhanças do caminho que levava de São João del Rei a Paracatu. Entretanto, em nossa análise optamos por
concentrar nossos esforços no estudo da Vila de São José del Rei a Paracatu, pois foi este o principal termo que se
expandiu aos sertões a oeste, constituindo freguesias e arraiais que margeavam este antigo caminho.
xix
As cartas de sesmarias solicitadas para a freguesia de São Bento do Tamanduá foram de 34% e 31% respectivamente
para as décadas de 70 e 80. Fonte: IPHAN/São João del Rei - MG. Acervo da Comarca do Rio das Mortes.
Documentação das cartas de sesmarias pertencentes a vila de São José Del Rei e suas respectivas freguesias (1770-
1880).
xx
MALAQUIAS, Carlos. Pequenos produtores de São José. (Dissertação em História). Belo Horizonte.
FAFICH/UFMG, 2008. p.35.
xxi
CARRARA, Ângelo. A Capitania de Minas Gerais (1674-1835): modelo de interpretação de uma sociedade agrária.
In: História Econômica & História de Empresas. Ano III, n.2, 2002. p.54
xxii
CUNHA, Alexandre Mendes. Vila Rica - São João del Rey: as voltas da cultura e os caminhos do urbano entre o
século XVIII e o XIX. Universidade Federal Fluminense, 2002. (Dissertação de Mestrado) p.142.
xxiii
TEIXEIRA, Des. José João apud GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste e o Mito da
Decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo:Annablume, 2002. p.36.

1514
Pequena África: os cotidianos de resistência no cinema negro para uma educação no plural

Marco Aurélio da Conceição Correa 1

Resumo: Buscando na herança africana do território da Pequena África (MOURA, 1995)


possibilidades para se pensar uma mudança para as desigualdades vividas pela população negra,
encontramos nos cotidianos (CERTEAU, 1995) das negras e negros do início do século XX formas de
resistência às hegemonias impostas pela modernidade. Na contemporaneidade, o cinema negro
(CARVALHO, 2012) busca também na ancestralidade da Pequena África outras possibilidades
estéticas para as imagens, narrativas e sons cinematográficos valorizando as histórias e culturas de
origem do continente africano (MUNANGA, 2015). Para os cotidianos escolares, tecer nas redes
educativas dos praticantespensantes os cotidianos (ALVES, 2012) e as formas de resistência que
valorizam as subjetividades negras e promovem uma educação plural, contempladora das diferenças
contra as hegemonias da modernidade (NOGUERA, 2011).

Palavras chave: Herança Africana, Cinema Negro, Cotidianos

Introdução
O reconhecimento recente do Cais do Valongo como patrimônio mundial pela UNESCO nos
provoca pensar novamente sobre a herança africana no Brasil e principalmente na cidade do Rio de
Janeiro. Um dos maiores portos do sistema escravista colonial, localizado na zona portuária da cidade,
é uma das ruínas presentes de uma história que muitos tentam esquecer. A região, um simulacro de dor
e sofrimento de milhões de negras e negros historicamente, se tornou ao longo do tempo um território
de resistência negra, onde diversas expressões estéticas e culturais se manifestaram como o samba e o
candomblé. Retornar a história do território que engloba a zona portuária e grande parte do centro da
cidade, onde milhares de negros residiam e resistiram, denominado no século XX pelo artista Heitor
dos Prazeres como Pequena África (MOURA, 1995), é uma forma de se compreender o presente e lutar
por mudanças futuras na situação de desigualdade persistente desde a época colonial para a população
negra (MUNANGA, 2015).

As criações cotidianas daqueles que resistiram historicamente no território, vibram na


contemporaneidade em vários outros artefatos culturais que buscam inspiração no passado e celebram

1
Graduando em Pedagogia – UERJ. E-mail: marcao_cp2@hotmail.com.

1515
as conquistas sociais e políticas da população negra. O cinema negro, suas imagens, narrativas e sons
seguem o legado da Pequena África apresentando em suas estéticas a herança africana do território,
como pode ser visto na cinematografia de Zózimo Bulbul (FRESQUET; ROSA, 2017). O pioneirismo
deste cineasta reverbera até nos dias de hoje (CARVALHO, 2012) em novos cineastas que resistem
para criar suas estéticas as subjetividades negras da resistência, da ancestralidade e da transgressão
contrária as hegemonias (MOORE, 2005).

As imagens, narrativas e sons são uma potência para os cotidianos escolares (ALVES, 2012)
por proporcionarem, através das redes educativas dos praticantespensantes2 da educação,
possibilidades de táticas (ALVES; FERRAÇO; SOARES, 2017) que transgridam uma educação
contrária as diferenças (SILVA, 2010), centrada epistemologicamente no ocidente colonizador
(GOMES, 2012) e não valorize a história e a cultura negra (NOGUERA, 2011). Desta forma iremos
discorrer sobre tais questões no decorrer do presente texto.

Pequena África e os cotidianos de resistência

A Pequena África é um território político e cultural que possui o atrito entre diferentes forças
como definidora de seu espaço. As invenções culturais que marcam e identificam a região
consequentemente influenciaram grande parte da cultura negra brasileira (MOURA, 1995). A
delimitação geográfica de seu território também se encontra num constante conflito histórico com os
poderes dominantes, a elite branca carioca. Indo, variando de registros, do início do bairro glória até a
cidade nova. O consenso que unifica a região é a zona portuária carioca, indo da Praça Mauá até os
bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo, região de grande importância para a cidade desde o período
colonial. No modelo urbano colonial os centros das cidades se desenvolvem a partir de seus portos. Os
portos nesse modelo urbanístico são os pontos de ligação econômica e política com a metrópole e o
resto do mundo, por isso tal significância nas cidades que se desenvolveram nesta época. Por serem
parte importante dessa rota comercial os portos eram também por onde adentravam a maioria da mão
de obra brasileira da época, neste caso os negros escravizados pelo tráfico colonial (DENER, 2012). Os
negros e negras que ali viviam - desde a época antes do rompimento com o modelo escravista -

2
Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, verificamos que as dicotomias que organizaram o pensamento das ciências na
Modernidade têm significado limites para as questões que tentamos desenvolver. Com isso, decidimos indicar,
permanentemente, as dificuldades encontradas no contato com esse pensamento, utilizando dos termos das dicotomias –
marcadas em nós pela formação recebida– unidos e em itálico.

1516
possuíam uma forte ligação territorial com os ambientes próximos ao cais do porto. Tanto nas relações
de trabalho como nas demonstrações culturais, os cotidianos daqueles que vivam nos portos eram
carregados de atos de resistência contra a um poder que menosprezava e criminalizava a população
negra (ARANTES, 2003).

A repressão policial a essas manifestações culturais negras nas ruas era forte, o que tornava as
casas das Tias um refúgio para esse tipo de manifestação. Quanto a repressão policial:

Havia na época muita atenção da polícia às reuniões dos negros: tanto o samba como o
candomblé seriam objetos de contínua perseguição, vistos como coisas perigosas, como marcas
primitivas que deveriam ser necessariamente extintas, para que o ex-escravo se tornasse parceiro
subalterno “que pega no pesado” de uma sociedade que hierarquiza sua multiculturalidade.
(MOURA, 1995, p. 143)

Os cotidianos daqueles que viviam e tiravam o sustento da zona portuária carioca na virada do
século XX não eram nada fáceis. O histórico recente do Rio de Janeiro com: a abolição da escravatura;
a negligência do estado com os recém libertos; as reformas urbanas de Pereira Passos deixavam
milhares de negras e negros em situações de extrema dificuldade financeira. A região da Pequena
África que por si só já era bem turbulenta com a virada do século se tornava ainda mais conflituosa: a
revolta da vacina após um projeto mal elaborado de combate a epidemias; a chegada de imigrantes
europeus como opção mais "moderna" no mercado de trabalho; e a constante chegada de outras negras
e negros do interior do sudeste e principalmente do nordeste baiano tornavam ainda mais difíceis a vida
naquele momento. A procura por um trabalho nesse momento era tarefa árdua:

O desconhecimento da nova linguagem trabalhista, os preconceitos raciais e as consequentes


dificuldades de competir pelas vagas que se abrem na indústria, no comércio, no funcionalismo e
nas obras púbicas, fazem com que muitos nesse período de transição se incorporem à massa de
desocupados que lutam pela sobrevivência nas grandes cidades brasileiras, vivendo de
expedientes e das inúmeras formas de subemprego que margeiam as ocupações regulares,
registradas e reconhecidas pela legislação e a marginalidade. (MOURA, 1995, p. 88)

Em paralelo a dura vida laboral os negros, bebendo de suas tradições esses sujeitos elaboravam
nos cotidianos manifestações culturais advindas de seus conhecimentos e sensibilidades. Os artefatos
criados e usados por esses praticantespensantes não era somente uma simples forma de amenizar as
dificuldades vividas, era exercer a vida propriamente dita. Realizar essas tradições oriundas do
continente africano, hibridizadas no território brasileiro desde a Bahia até o Rio de Janeiro, era
reafirmar a memória e a identidade negra. Celebrando o passado no presente pensando em um futuro
diferente, melhor do que o agora. Foi assim, que em forma de resistência, que diversas manifestações
culturais foram criadas e afirmadas no início do século XX na Pequena África, principalmente o samba
e o candomblé iremos trazer aqui.

1517
Grande parte desse caldeirão cultural que era a Pequena África no início do século XX foi
fervilhado nos quintais das tias baianas. Nos encontros nas casas das baianas aconteciam diversas
tessituras entre os convidados das festas sediadas por elas. Não era qualquer um que podia participar de
tais eventos, entre os mais chegados se encontrava cariocas, baianos, africanos e até brancos das elites
simpatizantes e curiosos. Dentre elas a que mais se destacou foi a Tia Ciata que por sua referência
cultural e influência política3 tornou seu quintal a capital da Pequena África. As tias baianas eram o
alicerce das invenções cotidianas criadas nos encontros em seus quintais, as festas começavam com
uma homenagem aos santos e "depois se profanizavam em encontros de música e conversa, onde se
expandia a afetividade do corpo, atualizando o prazer e a funcionalidade da coesão." (MOURA, 1995
p. 132)

Esse ato de transgressão é uma das potências da origem do samba desde os tempos dos ranchos
e dos sujos nas ruas que subvertiam os sentidos católicos a essas datas festivas, como a folia dos reis. O
cortejo dos ranchos, trazidos da Bahia por Hilário Jovino, celebravam nas ruas cariocas as tradições
híbridas dos cultos iorubanos e católicos, onde se reuniam no cortejo diversos sujeitos marginalizados
da época, os estivadores, os músicos, as tias, os malandros e os curiosos. A forma transgressora com
que a população negra "se apropria das festas católicas provoca protestos e interdições que têm como
consequência o deslocamento das principais festas negras para o tempo desinibido do Carnaval, e sua
definitiva profanização" (MOURA, 1995, p. 125).

Com a República, como vemos anteriormente, as práticas de negligência e repressão para a


população negra são mantidas num tom de colonialidade (CANDAU; OLIVEIRA, 2010). Desta forma
a população negra para continuar exercendo sua ancestralidade precisou encontrar táticas (ALVES;
FERRAÇO; SOARES, 2017, p.) para que isso aconteça. Foi assim que as casas das Tias definiram a
sua importância na criação e manutenção de tais manifestações. Foram os baianos e os africanos livres
que migraram junto aos cariocas e os inúmeros filhos dessa união que resistiram e criaram essa cultura
que até hoje valorizamos.

as tias baianas que eram os grandes esteios da comunidade negra, responsáveis pela nova geração
que nascia carioca, pelas frentes do trabalho comunal, pela religião, rainhas negras de um Rio de
Janeiro chamado por Heitor dos Prazeres de “Pequena África”, que se estendia da zona do cais
do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a praça Onze. (MOURA, 1995, p. 131)

3
Conta a história que o marido da Tia Ciata, João Batista da Silva com seu emprego no gabinete de polícia teve uma ligação
com o presidente da república Wenceslau Brás que sofria com um machucado na perna que nenhum médico formal
conseguia curar. O presidente foi convidado ao tratamento de cura com ervas com a Tia Ciata que em troca dos serviços
queria o fim da perseguição ao samba em seu quintal. O tratamento foi um sucesso e os encontros no quintal continuaram
acontecendo livremente.

1518
O cinema negro como intercessor e potência

No mesmo período histórico que dialogamos anteriormente, a virada do século XIX pro século
XX e suas primeiras décadas, começava a ascensão e consolidação de um dos mais abrangentes
artefatos culturais inventados pelo ser humano: o cinema. O cinema que desde suas origens na França
imperialista com os irmãos Lumière se destacou pela tentativa de se capturar o diferente. O exótico era
fonte rica para os primeiros cineastas que procuravam material para suas produções. Sua
implementação no Brasil não foi diferente, os primeiros cineastas que aqui filmaram, europeus ou não,
tinham as paisagens cotidianas dos centros urbanos como um dos principais interesses de suas
filmagens. Essa curiosidade etnocêntrica dos primeiros anos do cinema no mundo, assim como as elites
dominantes da época, ou folclorizou esteriotipando o negro e outros grupos marginalizados ou os
invisibilizou deixando para eles os cantos das telas dos cinemas (SOUZA, 2012).

A presença da identidade negra, suas estéticas, criações e subjetividades nas imagens, narrativas
e sons do cinema tem desde seu marco inicial no inicio do século XX até os dias contemporâneos do
século XXI o sofrimento de uma negação vilipendiada com origem nos quase quatro séculos em que
perdurou o regime escravocrata no Brasil (SOUZA, 2013). Porém, assim como ressaltamos
anteriormente com os cotidianos da Pequena África, é fundamental ressaltar as estratégias de
resistência que guiaram a arte e a vida da população negra (SOUZA, 2013). É impossível dissociar as
manifestações culturais da resistência histórica da população negra

O produtor, cineasta e ator negro Zózimo Bulbul, considerado o inventor do cinema negro
brasileiro, sempre esteve atento em sua trajetória artística e política as questões da população negra.
Grande amante do samba e das várias outras invenções cotidianas da cultura negra Zózimo carrega nos
seus filmes uma admiração a história da resistência negra (CARVALHO, 2012). Desde o início de sua
trajetória o cineasta criticava as ações do sistema que negava a sua negritude e de seu povo, suas
questões não serviram "apenas para uma conscientização das questões raciais, mas também para pensar
e construir novas imagens negras pela cinematografia" (FRESQUET; ROSA, 2017, p. 3.)

Zózimo enfrentou alguns problemas com o regime ditatorial no Brasil por suas ideias tidas
como radicais o que dificultou, ainda mais, a realização de outros filmes. A dificuldade de produzir as
suas ideias é uma constante na vida e obra do cineasta carioca, da mesma forma que a população negra
resistiu historicamente e conseguiu manifestar artisticamente suas vontades, Zózimo na sua
cinematografia também resistiu e criou, e muitas vezes usou as personagens dessa resistência como

1519
narrativas para seus filmes, como é o caso do próximo filme que destacamos em sua trajetória: Dia de
alforria...(?) (1981). Neste seu curta metragem Zózimo acompanha de perto a vida do sambista e
compositor Aniceto do Império, que assim como vários outros sambistas foi estivador no cais do porto
do Rio de Janeiro e ativista do sindicato dos trabalhadores desse ofício. A vida de Aniceto junta três
pilares importantes para o cinema de Zózimo Bulbul: ativismo político; memória da identidade negra e
as manifestações populares negras (CARVALHO, 2012). O sambista foi um dos fundadores da Escola
de Samba Império Serrano, e assim como vários outros trabalhadores do porto que moravam nos
subúrbios cariocas usou o samba para narrar seus tormentos e prazeres da vida cotidiana. O filme se
passa quase como se fosse uma conversa informal com o sambista naquele momento aposentado o que
pensa e relembra o quanto sofreu no tempo que esteve na resistência. O filho da união de baianas e
cariocas, espera ansiosamente declamando seus sambas repletos de poesia e da ancestralidade africana
o dia de alforria de todo o seu povo.

Aniceto do Império em Dia de alforria... (?).

Pequena África é um filme documental composto em três partes onde, a criança, a jovem e o
idoso conversam com pessoas que vivem nos domínios da Pequena África sobre suas memórias e
afetos da região. O filme começa com a criança, interpretada por Douglas Silva, nos quintais de uma
vila na praça onze com conversa com a Tia Jurema que onde num passado não tão distante
frequentavam muitos familiares, baianos, africanos nos encontros regados a música e muita comida.
Em seguida a jovem, interpretada por Flávia Souza da Cruz, conta sobre a Pedra do Sal local de
chegada dos escravizados africanos e depois ponto de encontro dos escravos alforriados para o batuque,

1520
chorinho e o tradicional samba. A menina em seguida visita a casa de engorda dos escravos doentes do
antigo Cais do Valongo e depois o antigo local do Cemitério dos Pretos Novos. A jovem conversa com
Mercedes sobre a sua descoberta logo após a reforma de sua casa, que hoje em dia da lugar ao IPN.
Compara-se o Cemitério dos Pretos Novos que é completamente diferente do Cemitério dos Ingleses
que por serem protestantes não podiam ser enterrados juntos aos católicos assim como os escravos. O
Cemitério dos Ingleses construído quase na mesma época está em melhor estado de conservação pelo
descaso dado as negras e negros que não resistiam a travessia atlântica. No terceiro momento o
protagonista é o senhor de idade interpretado por Waldir Onofre, o idoso caminha com dificuldade
pelos estreitos caminhos dos morros da Providencia, conversando com um dos moradores sobre a
história da formação da primeira favela carioca, onde os soldados que serviram na guerra do Paraguai
foram prometidos casas e outras bonificações mas não tiveram suas promessas cumpridas pelo estado.
No final os três personagens se reúnem em uma escadaria para conversarem sobre o descaso e a falta de
respeito a memória daquela região. A criança propõe e é recebida com risos que aquela região se torne
um ponto turístico, o que acaba acontecendo anos depois, deixando quase que completamente de lado
toda a herança apresentada pelos três.

Futuro, presente e passado na Pequena África.

Após a sua morte o festival foi renomeado Encontro Zózimo Bulbul em homenagem a uma bela
trajetória de resistência e de busca por outras imagens. "Ao falar de cinema negro ou do negro no
cinema, estamos falando de uma história de exclusão que perdura até nossos dias. Entretanto, a vida e
obra de Zózimo Bulbul se conectam diretamente com a história do cinema negro brasileiro" (SOUZA,

1521
2013, p. 76). As imagens, narrativas e sons criadas e protagonizadas por Zózimo Bulbul instigam e
inspiram aqueles interessados em alterar esse quadro histórico onde a população negra não tem seus
interesses contemplados. É necessário constantemente pensar e formar outras redes de estéticas,
posições e ações para a população negra, o cinema de Zózimo Bulbul e sua relação com a resistência
histórica de tantos outros cotidianos negros nos permitem articular além de outras imagens outras
possibilidades para a população negra.

Com os avanços nas tecnologias da informação e das audiovisualidades produzir


independentemente um filme ficou bem mais fácil e possível (MONTEIRO. 2016). Por essa praticidade
de se fazer cinema com baixo orçamento e distribuí-los através das mídias digitais diferentemente do
modelo mais formal e mais técnico das produções cinematográficas dos maiores orçamentos os jovens
negros que anseiam expressar todas as suas subjetividades encontram no cinema independente a
possibilidade de expressar esses anseios. As conquistas em campos dos movimentos sociais também
proporcionam espaços de formação cinematográfica para esses jovens cineastas, como é o caso do
Centro Afrocarioca de Cinema4 (MONTEIRO, 2016). São vários filmes nos últimos anos que
conseguiram circular o Brasil e o mundo também obtendo reconhecimento e sendo premiados dentro
dos questionamentos do cinema negro seguindo o caminho traçado por Zózimo Bulbul. Exemplo disso
é o caso do filme Kbela (2015) de Yasmin Thayná que lotou o tradicional Odeon em sua estreia, rodou
o brasil inteiro e foi exibido no festival de internacional cinema de Roterdã e no FESPACO.

Destaco aqui os filmes Óna (2014), Elekô (2015), Quijaua (2016) e Siyanda (2016) que são
produções que tratam da ancestralidade africana na contemporaneidade. Cada uma das narrativas que
trago para a discussão tem algum tipo de relação com as culturas tradicionais do continente africano,
como o Iorubá, e os povos Bantos. Essas culturas fundamentam as religiões de matrizes africanas como
o Candomblé e a Umbanda que são símbolos da herança africana na resistência das negras e negros
brasileiros.

O filme Óna é protagonizado pela personalidade do Exu, o orixá nos ritos Iorubá que representa
a interligação entre o mundo dos homens Orun5 com o mundo espiritual Aiye. A complexidade do
orixá para os cultos Iorubá faz com que ele seja imprescindível nessa relação e que a sua personalidade

4
O Centro AfroCarioca de Cinema é uma instituição fundada por Zózimo Bulbul que serve espaço de discussões, encontros
e exibições para o cinema negro. A organização do espaço atualmente segue o legado de Zózimo promovendo os encontros
de cinema negro Zózimo Bulbul reuniando cineastas e filmes da Africa, Caribe e Brasil.
5
o mundo espiritual, paralelo ao Aiye, mundo físico. Tudo que existe no Orun coexiste no Aiye através da dupla existência
Orun-Aiye

1522
seja associada a abertura dos caminhos e também a comunicação. A sua representação como
transgressor, marginal e oculto na colonialidade (CANDAU; OLIVEIRA, 2010) brasileira e seu caráter
original fazem com que a figura do Exu seja:

a decolonialidade, a potência decolonial em estado bruto. Ele sacaneia a lógica do colonialismo e


sua pretensão universalista, bagunça o monologismo e o unilinguismo, engole tudo de um jeito
para regurgitar de outro, reinventa e ressignifica, produzindo um saber que não tem qualquer
pretensão de revelar a verdade única, mas aposta sobretudo na diversidade, na convivência, na
tolerância. (BESSA, 2017, sem página)

O seu caráter comunicativo e contestador vai em contra mão as hegemonias e seu poder central
e homogeneizador. Por essas características Exu pode ser considerado o orixá do cinema. Na narrativa
do filme o protagonista Exu passeia pelas ruas a noite da Pequena África se relacionando com as
pessoas que o cortejam. O caminhar com confiança, um bom diálogo com aqueles do seu redor torna a
imagem de Exu uma potência astuta que sabe o momento certo de driblar, esquivar e solucionar os
infortúnios dos cotidianos da região que nem sempre é são amistosos. A encruzilhada, local simbólico
para o culto ao Exu, representa toda a tessitura de sentidos e significados a partir da potência de Exu, a
encruzilhada:

A encruzilhada, que constitui um campo de possibilidades e de incursão para todas as formas de


conhecimento, é uma operação de transgressão dos parâmetros da colonialidade, o lugar onde se
destroem as certezas, o espaço das frestas e das brechas, nos diz Luiz Rufino. E como Exú está
presente em todos os atos da vida natural e social, a sua epistemologia é complexa e a sua
pedagogia também o é. Ele não é dono de uma verdade, porque assim seria o colapso de um
sistema pautado por narrativas que guardam versões. O que ele nos oferece é a noção de
alternativas. (BESSA, 2017, sem página)

Óna: Exu e a sua pluriversalidade.

Com a busca de diferentes alternativas os filmes Elekô e Quijaua reafirmam a figura feminina
como vista nas personalidades das tias baianas, das Mães de Santo e das trabalhadoras da Pequena

1523
África que resistem e criam as manifestações e os artefatos que fundamentaram o patrimônio cultural
brasileiro (MOURA, 1995). Ambos os filmes citados prestam homenagens a ancestralidade feminina
promovendo uma outra visão para a mulher desassociadas dos padrões estéticos e éticos instituídos. A
nudez, a comunhão e a coletividade caminham para uma ruptura com os modelos conservadores e
normativos que preconizam a diferença e os corpos e mentes das mulheres negras. Reafirmar a
ancestralidade africana é um movimento contrário as atitudes intolerantes, mostrando o potencial
artístico e toda a sua constituição histórica de resistência. A ancestralidade e a comunhão servem como
uma cura que renovam as energias dos filhos que precisam de purificação. Siyanda, da mesma forma
dos filmes anteriores, faz uma ligação das questões atuais da população negra e força reconfortante e
acalentadora da ancestralidade africana que reforçando a coletividade dá energias aos negros e negras
que precisam superar os problemas de seus cotidianos.

Quijaua: Mulheres em seus banhos de ervas de cura.

Com todos os filmes apresentados aqui vemos uma tentativa de mostrar outras possibilidades de
se encarar o mundo, se distanciando dos monologismos e limites impostos pelas dificuldades, para a
população negra, ocasionados pelos poderes hegemônicos. Ver, ouvir e sentir esses filmes e vários
outros que abarcam em seus roteiros e propostas as questões do povo negro nos possibilitam pensar em
outros caminhos e outras perspectivas para se encarar as demandas dessa parcela da população. A
maioria dos filmes aqui listados se encontram disponíveis online na plataforma Youtube ou então no

1524
site AfroFlix6 que reúne e disponibiliza vários filmes onde negras e negros estão presentes na produção
e na elaboração dos conteúdos audiovisuais.

São os praticantespensantes atentos politicamente as demandas da população negra, indo desde


o pioneirismo de Zózimo Bulbul até as produções recentes dos jovens articulados, que pensam e criam
imagens, narrativas e sons, através do audiovisual, para repensar e resignificar a imagem da população
negra. Valorizar a memória e a resistência negra contra as hegemonias é um processo que fortalece o
combate contra o preconceito e a discriminação racial que afetam a nossa sociedade, possibilitando a
mudança do cenário de desigualdade vivida no Brasil.

Redes educativas, cotidianos escolares e educação plural

Somos cercados por um mundo preenchido de vários sentidos e significados, passamos em


nossos cotidianos por várias situações que nos afetam, que nos fazem sentir e pensar. Todas essas
experiências - sendo elas devidamente com a intenção formadora de aprendizado ou não - nos afetam
de formas que não podemos ter a total noção de como ou porquê. Essas experiências que nos formam e
que nós mesmo formamos são tecidas em redes que entrelaçam os diferentes conhecimentos e os
significados que tiramos deles. Essas inúmeras ideias, pensamentos e opiniões são formadas pelos
espaços que frequentamos, as pessoas que interagimos e a cultura que consumimos. Todas elas se
entrelaçam entre si e formam a maneira na qual lidamos com as situações de nosso cotidiano, desde as
mais triviais, como tarefas domésticas, até as mais engajadas, como a prática docente.
Alves nas suas pesquisas nos/dos com os cotidianos encara a tessituras das redes como principal
invenção nos cotidianos:
Entendendo que as ideias em ciências na Modernidade implantaram a compreensão de que o
conhecimento se constrói com as pesquisas desenvolvidas pelos cientistas dentro da metáfora da
árvore (Lefebvre, 1983), vimos que a criação dos conhecimentos nos cotidianos era feita em
redes, segundo esse mesmo autor. Desse modo, nas pesquisas com os cotidianos, adotamos a
ideia de que os conhecimentossignificações são tecidos. Percebemos, então, que ao mesmo
tempo em que tecemos conhecimentos, tecemos significações para os mesmos que os explicam e
nos dizem do valor que têm para o viver cotidiano. (ALVES; FERRAÇO; SOARES, 2017, p. 11)

A cientificidade do modernismo que consolidou as estruturas políticas e epistemológicas que


imperam ainda na contemporaneidade desqualificaram os conhecimentos oriundos dos cotidianos
distantes do método científico acadêmico, principalmente as criações dos sujeitos oriundos de

6
http://www.afroflix.com.br

1525
cotidianos marginalizados. Cotidianos das práticas e dos saberemos vistos como marginais, incorretos e
criminais como vimos com o caso das negras e negros que viviam na Pequena África. Nos cotidianos:

Ao pensar “a cultura” como uma rede de operações produtoras de saberesfazeres, poderes e


significados, Certeau (1995) descolou a compreensão de ação cultural ou política como algo
realizado de forma centralizada e de cima para baixo para algo tecido permanentemente nas/com
as práticas sociais cotidianas que produzem significados para aqueles que as realizam. (ALVES;
FERRAÇO; SOARES, 2017, p. 13)

O cotidiano é um "espaçotempo de invenção permanente de conhecimentos e modos de


conhecer, de existir e de viver com outros, em práticas – “usos” – exercidas em múltiplos
espaçostempos com o que, a princípio, é colocado para “consumo”" (ALVES; FERRAÇO; SOARES,
2017). Então, reconhecer e valorizar os mundos culturais presentes nos cotidianos, principalmente os
cotidianos que estão longe fisicamente ou epistemicamente dos ambientes escolares, é uma forma de
subverter o poder hegemônico que desconsidera a possibilidade de conhecimentos e valores vindo
desse meio.

A inventividade da população negra que está em constante resistência à vigilância e ao poder


que tenta inferiorizar suas criações precisa estar mais presente nos cotidianos e nos currículos
escolares. A musicalidade do samba que nos proporciona momentos de festividade, de reflexão e até de
catarse; o culto aos Orixás e outras divindades de matrizes africanas que são um aporte de toda a
ancestralidade com as raízes africanas e várias outras invenções que facilitam e inspiram a resistência
diária das negras e negros que viveram e vivem no Brasil.

A criação cinematográfica dos cineastas negros que retratam as dimensões históricas e a


significação subjetiva e cultural da Pequena África é consequência dessa luta histórica. Suas invenções,
localizadas na Pequena África ou não, estão carregadas de um sentido político que busca uma alteração
perante o tratamento a população negra. Fazer uso das imagens, narrativas e sons por eles criadas é no
contexto educacional trazer esses mundos culturais do dentrofora dos cotidianos e currículos em voga e
dar mais espaço e visibilidade a essa discussão. Os filmes e seus usos para o contexto educação, vistos
como artefatos culturais tidos como personagens conceituais, são uma das formas que as pesquisas
dos/nos com os cotidianos usam para reforçar a importância do simples ato de se assistir um filme para
a pensarfazer educação.

Ter contato com o espaçotempo da Pequena África, ou qualquer outro de resistência e criação
negra, possibilita uma tessitura de conhecimentossignificações importantes para os cotidianos e

1526
currículos escolares possibilitando e fortalecendo a mudança do paradigma das heranças coloniais na
contemporaneidade.

Considerando que o currículo não é somente aquilo que "dita" o que os professores devem
ensinar em sala de aula, mas sim um processo do entrelace entre as diversas redes dos
praticantespensantes que frequentam os dentrofora das escolas (ALVES, 2017). Os currículos não são
tecidos somente nas diretrizes, nos parâmetros organizados a nível macroestruturais pelas forças
governamentais distantes do cotidiano escolar. Pelo contrário, os currículos: "têm sua presença nas
escolas trançada com inúmeras ações curriculares cotidianas, desenvolvidas por docentes e discentes e
cujas origens estão em diversas redes educativas" (ALVES, 2017, p.8). É na inserção de redes
permeadas pelos conhecimentossiginifcações dos praticantespensantes da resistência negra que
acontece a criação nos cotidianos escolares de currículos atento as questões dos estudos das relações
étnico raciais

Considerações Finais
O território da Pequena África e a sua herança africana são uma potência para se pensar em
possibilidades em mudanças para as desigualdades vividas, ao longo de séculos, por negras e negros do
Brasil. Os artefatos culturais criados no território, indo desde as invenções cotidianas de resistência,
como o samba, o candomblé e várias outras práticas, até as imagens, narrativas e sons dos cineastas
negros da contemporaneidade, promovem tessituras para as redes educativas dos praticantespensantes
dos cotidianos escolares que buscam promover uma educação no plural que resignifique o histórico de
desigualdade promovendo a pluriversalidade (2012) dos mundos culturais que habitam as escolas.

Referências Bibliográficas
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se transformam em questões curriculares nas escolas. Rio de Janeiro. (Projeto de pesquisa entre
2017 e 2019)
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currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”,
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003. p. 1.
BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
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implementação da Lei 10.639/03. Belo Horizonte: Mazza, 2006 e 2014.
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DEBATE In: CINEMA NA PANELA DE BARRO: MULHERES NEGRAS, NARRATIVAS DE
AMOR, AFETO E IDENTIDADE

1530
História.com: ensino de história, fontes documentais e historiografia

Maria Aparecida da Silva Cabral1

Resumo: O projeto História.com: ensino de história, fontes documentais e historiografia visa à


construção de práticas investigativas e científicas no campo da História, com a realização de seleção
de fontes documentais acerca da História do Brasil, abarcando o recorte temporal de 1822 a 1988,
referente à temática da cidadania articulada a construção do imaginário político, bem como o da
cultura histórica. Pretende-se, com este trabalho, instigar jovens que estão no ensino médio, da
escola de educação básica, à realização de atividades de pesquisa, em laboratório de ensino de
história, sob a supervisão de professor/pesquisador da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), contribuindo, dessa maneira, para uma
nova forma de compreensão da história escolar.

Palavras-chave: Ensino de história; formação histórica; História Digital

Abstract: The Historia.com project: teaching of history, documentary sources and historiography
that aims at the construction of investigative and scientific practices in the field of History, with the
realization of selection of documentary sources about the History of Brazil, covering the temporal
cut from 1822 to 1988, referring to the subject of citizenship articulated the construction of the
political imaginary, as well as that of historical culture. It is intended, with this work, to instigate
young people who are in high school, from the basic education school, to the performance of
research activities, in a history teaching laboratory, under the supervision of professor / researcher
of the Faculty of Teacher Training University of the State of Rio de Janeiro (FFP / UERJ), thus
contributing to a new way of understanding school history.

Keywords: History teaching; historical formation; Digital History

Introdução
Criar meu web site
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje
Gilberto Gil, 19982

Selecionamos um pequeno trecho da música, composta por Gilberto Gil, nos anos de 1990,
citado acima, para iniciar a discussão sobre a presença da tecnologia, redes sociais, facebook,
whatsApp, Internet em nosso fazer como professores e pesquisadores do campo de ensino de
História no Brasil, pois as ideias contidas em tal fragmento são indícios interessantes de como as
1
Faculdade de Formação de Professores (FFP), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – E-mail:
cidacabral4567@gmail.com - FAPERJ
2
Letra de música Pela Internet de Gilberto Gil.

1531
ferramentas digitais, a comunicação em rede, e a constante divulgação dos fazeres ordinários não
somente se estabeleceram em nossas vidas, mas tornaram-se uma necessidade vital aos indivíduos
contemporâneos. Estas não só criam novas relações, mas impactam diretamente em nossas
percepções de mundo e, por essa razão, vêm sendo objetos de análises entre os pesquisadores das
Ciências Humanas e Sociais.
Alguns autores têm evidenciado o surgimento, a partir da segunda metade do século XX, de
uma modificação profunda nos suportes de informação, seja por sua imensa capacidade de
transmissão a um número muito grande de pessoas, o que lhe confere um certo dinamismo, seja
pelo seu caráter de armazenamento de textos, imagens e vídeos. Fenômeno esse que demarca os
significados e os sentidos atribuídos à aprendizagem da cultura impressa em relação aos produzidos
atualmente pelos suportes digitais. (Caimi,2015; Pozo,2002).
A sociedade contemporânea impõe um ritmo de aprendizagem cada vez mais veloz, o que
nos obriga a pensar de forma distinta do que tradicionalmente se convencionou por ensino e
aprendizagem. Nas instituições escolares, por sua vez, professores se veem demandados por uma
geração que solicita agilidade nos processos comunicacionais, porque não pode perder tempo.
A tecnologia, especificamente, a informática tem representado uma transformação radical no
modo como os indivíduos lidam com as informações, alterando, sobretudo, a relação entre eles. Ao
considerar esse fenômeno bem característico do século XXI, é perceptível de se observar a extrema
valorização dos saberes produzidos, no tocante ao uso do computador, da internet e seus sites, pela
atual sociedade do conhecimento.
Na era digital novas formas de produção, circulação e difusão da informação são
construídas, implicando em uma nova relação do leitor (usuário) com os textos eletrônicos.
Segundo Chartier (2009), “a textualidade eletrônica de fato transforma a maneira de organizar as
argumentações, históricas ou não, e os critérios que podem mobilizar um leitor para aceita-las ou
rejeitá-las”. (p. 59).
A problematização dos usos que os professores e alunos da educação básica têm realizado
no ambiente escolar e além dele, nos remete a pensar em alguns desafios, que estão postos à
educação escolar nesse cenário tão marcado pela provisoriedade do conhecimento, e de busca
incessante por informações. O que está em jogo, portanto, não é o ensino e aprendizagem a partir da
utilização da internet, assim como das demais ferramentais virtuais na sala de aula pelos alunos,
mas sim a capacidade que estes têm de selecionar o que é relevante para a sua formação ou quiçá
para a sua vida.
Dessa forma, apresentamos neste texto algumas das ações traçadas, e em desenvolvimento
na execução do projeto de pesquisa História.com: ensino de história, fontes documentais e

1532
historiografia3 que destina-se a inserção de jovens do ensino médio em práticas cientificas no
campo da História com a priorização de levantamento e análise de fontes documentais
disponibilizadas em suportes digitais, livros didáticos, arquivos etc com o foco na questão da
cidadania no processo de formação sócio histórica brasileira, abarcando o recorte temporal de 1822,
- momento em que o Brasil se torna uma nação independente - , até 1988, ano em que foi
promulgada a Constituição Cidadã - , consolidando os direitos sociais básicos no país.
Com vistas a instigar em estudantes de ensino médio, dos primeiros e segundos anos, um
olhar problematizador aos processos de construção do conhecimento histórico escolar, por meio do
coleta e análise de fontes documentais contidas em diversos suportes de aprendizagem (livros
didáticos, revistas especializadas na área de História e na Web), temos por objetivo construir
situações de ensino e aprendizagem, que proporcionem a construção de novos entendimentos e
percepções acerca dos processos políticos e históricos instituídos no Brasil a partir de sua
Independência.
Nesse sentido, o conceito de cultura história, à luz da perspectiva de Le Goff (2003), a ser
mobilizado em nossas análises, será chave para o entendimento de como os diferentes
agrupamentos sociais têm se relacionado com o passado, sendo utilizado no tratamento dos diversos
vestígios produzidos em torno da ideia de cidadania no Brasil, bem como na problematização do
conhecimento historiográfico produzido recentemente sobre esse assunto.
Temos por objetivo principal a construção de experiências significativas no campo da
aprendizagem em história, com a promoção de ambientes propícios à pesquisa e investigação de
fontes documentais relacionadas à temática articuladora deste projeto, e em diálogo com a produção
historiográfica acerca dos processos de construção da cidadania no Brasil.
Por meio da problematização de documentos históricos, visamos propiciar que os estudantes
do ensino médio participantes do Programa Jovens Talentos, vinculados a este projeto de pesquisa,
se apropriem de procedimentos e metodologias construídos no campo da História com a promoção
de pesquisas em suportes digitais ou impressos, instigando-os a pensarem historicamente. Três
objetivos específicos apresentam-se articulados entre si e relacionam-se a esse objetivo principal, a
saber: reconhecer que a história na escola pode ser trabalhada por meio de evidências (registros
escritos, imagens, objetos, paisagens etc); valorizar operações cognitivas voltadas à capacidade de
extrair e correlacionar informações dessas evidencias contribuindo para a construção de práticas
cientificas no trato da história escolar e converter alguns temas que são familiares nas aulas de

3
Projeto de Pesquisa submetido ao Edital da FAPERJ, Programa Jovens Talentos e em vigência desde julho
de 2017.

1533
história da educação básica em problemas historiográficos em relação com a produção no campo da
História.

“História ensinada” ou “história escolar”: pesquisa e ensino no tempo presente

Nos últimos anos as investigações na área do ensino de História têm crescido


significativamente tanto no campo da Educação, quanto na História privilegiando temáticas sobre a
formação docente, a construção do currículo, as políticas educacionais, os processos de ensino e
aprendizagem, os materiais didáticos, os patrimônios materiais e imateriais, as diversidades
culturais e sociais etc. Certamente, o fortalecimento do Ensino de História pode ser atribuído na
atual conjuntura pela presença de pesquisadores em todas as regiões brasileiras, que promovem
debates e reflexões sobre os processos de ensino e aprendizagem da história escolar com a
proposição de eventos científicos-acadêmicos
Desde os anos de 1990 as pesquisas a respeito das potencialidades de fontes históricas no
ensino e aprendizagem da história escolar têm sido agregadas a esse rol de assuntos, constituindo-o
em um objeto de pesquisa bastante recorrente entre os pesquisadores do ensino de História.
Constata-se que de lá para cá houve não somente um ampliação dos referenciais teórico-
metodológicos nas pesquisas sobre os processos de ensino e aprendizagem no campo da história
escolar, a partir das interlocuções com autores da História Cultural, da Teoria da História e do
Campo da Sociologia do Currículo, assim como o da História da Educação, que possibilitaram a
renovação de estudos nessa área, mas principalmente a constituição de um nova forma de se
investigar a produção, a circulação e os usos de diversos suportes na difusão do conhecimento
histórico ao público escolar e em geral.
De modo geral, tais trabalhos têm focalizado a introdução de novas temáticas a partir das
demandas legais (Leis 10.639/03 e 11.645/08), com o estudo da introdução de novos conteúdos
escolares na síntese histórica do Brasil e do Mundo. Nessa direção, justificamos a relevância de um
projeto voltado à promoção de pesquisas de cunho histórico entre jovens inseridos no ensino médio,
pois cada vez tem se instituído a necessidade de inserção de fontes documentais na realização das
aulas de história, na educação básica de modo. Trata-se, desse modo, proporcionar aos estudantes a
vivência de experiências significativas na construção e apropriação dos procedimentos básicos da
construção do conhecimento histórico, específicos do ofício do historiador.
Nessa perspectiva, os trabalhos de Silva e Fonseca (2011) têm contribuído para novos
entendimentos em torno dos saberes e fazeres docentes nas aulas de História. Ao investigarem
temas sobre a formação de professores de História e o trabalho desenvolvido na educação básica, a

1534
maneira como se dá os critérios organizativos dos currículos escolares em relação ao conhecimento
histórico no século XX, a importância dos diferentes suportes de aprendizagem no contexto de
ensino e aprendizagem da história escolar e os impactos da tecnologia nas formas de ensinar e
aprender esse conhecimento na contemporaneidade, esses autores evidenciam uma crescente
preocupação dos pesquisadores com as questões prementes que permeiam o campo do ensino de
História no Brasil.
Na seara da história escolar, podemos afirmar que, desde o processo de redemocratização do
ensino nos anos de 1980 a proposição de um ensino de história problematizador, isto é, que leve à
construção de uma visão crítica dos processos sociais, tem mobilizado o campo dos historiadores,
que atuam na educação básica a refletir acerca das linguagens e metodologias de ensino, que
possibilitam a transmissão do saber histórico escolar às futuras gerações, além dos próprios
professores que ministram essa disciplina.
A adoção dessa perspectiva no ensino de História tem se mostrado como uma possibilidade
interessante aos alunos por vários motivos. Dentre eles, destacamos o fato de que os conteúdos
históricos são vistos como construções sociais, frutos de embates políticos e resultantes das
concepções de cada tempo e espaço uma vez que há a possibilidade de se pesquisar diversas
informações sobre o mesmo acontecimento social.
Nesse sentido, compreendemos que o uso das diversas ferramentas online pode
instrumentalizar os alunos da educação básica para as práticas de pesquisa de fontes documentais
disponibilizadas na rede virtual, à medida que propicia o desenvolvimento de competências
relacionadas à observação, análise, classificação de informações e produção de escritas.
As produções recentes no campo da História Digital e também da História Pública têm
propiciado debates promissores acerca dos processos de produção do conhecimento histórico e seus
processos de difusão e apropriação entre os historiadores, professores de história e público em geral.
Estas, certamente, estão se inter-relacionando e/ou conectadas com os saberes produzidos por
professores e alunos em situação de ensino e aprendizagem da história de natureza escolar.
Pesquisas realizadas no âmbito da educação e também no campo da História, no início do
século XXI, tem demonstrado que o ensino de História tem sido um campo fértil e promissor na
construção de novas práticas, tanto do ponto de vista da inovação pedagógica, criando espaços de
discussão e debates entre alunos e professores no momento da construção do conhecimento, quanto
da problematização acerca do conhecimento histórico legitimado socialmente.
Seffner (2013) afirma que as aulas de História são excelentes oportunidades para a
realização uma aprendizagem significativa aos alunos, mas para isso ocorrer torna-se necessário o
estabelecimento de critérios por parte dos docentes. Em sua opinião:

1535
o ensino de História é um ensino de situações históricas. Mais do que nomes, datas
e acontecimentos, o professor deve propiciar ao aluno a compreensão de como se
estrutura uma dada situação, seja ela de revolução, eleição, ‘descoberta’, guerras,
(...). (p. 50-1) .

Em um texto recente acerca dos fazeres de três professoras de educação básica, em suas
aulas de História para adolescentes e jovens, de uma escola pública de São Gonçalo, a pesquisadora
Helenice Rocha (2015) destaca o uso de fontes diversificadas no processo de ensino e aprendizagem
de um conhecimento histórico, tido muitas vezes como muito distante da realidade deles, como uma
possiblidade de uma aprendizagem significativa de história. Bittencourt (2004), por sua vez, chama
atenção em suas investigações para a centralidade das fontes documentais na constituição do saber
histórico escolar. Em sua visão, tais documentos podem ser considerados pelos professores como
ricos materiais didáticos no processo de ensino e aprendizagem da história escolar.
No âmbito das pesquisas sobre as metodologias da história escolar, essa autora argumenta
que as investigações que focalizam as fontes documentais, possibilitam o entendimento de que os
vestígios localizam-se em diferentes lugares, são produtos de uma certa memória social e
necessitam de “ser preservados como patrimônio da humanidade”. Nessa direção, podemos afirmar
que uso de fontes documentais diversificadas, tais como: fotografias, imagens, depoimentos orais,
patrimônios histórico-cultural, canções musicais, produção cultural, indumentária, alimentos, mapas
históricos, documentos pessoais e privados (cartas, e-mails, diários, cadernos de anotações etc)
dentre outras, tem sido extremamente valorizado pelos professores de educação básica, tornando-se
recursos didáticos potentes na problematização das diversas temporalidades, dos valores e da
compreensão das mudanças e permanências no processo histórico.
O que podemos apreender dessas leituras é que cada vez mais se advoga em prol da
necessidade de inserção de fontes documentais na realização das aulas de história, na educação
básica de modo a proporcionar que os estudantes construam uma bagagem conceitual e
metodológica que lhes permita a apropriação dos procedimentos básicos da construção do
conhecimento histórico, específicos do ofício do historiador.

O Projeto História.com: ensino de história, fontes documentais e historiografia

O projeto História.com: ensino de história, fontes documentais e historiografia foi aprovado


em junho pela Faperj, por meio do Edital Programa Jovens Talentos em 2017, mas a seleção da
instituição escolar parceira e também dos alunos participantes de tal projeto foi uma ação em maio
desse mesmo ano. Os quatro alunos selecionados para participar deste programa estudam no turno

1536
da tarde no Colégio Doutor Adino Xavier, que está localizado no munícipio de São Gonçalo, região
metropolitana do Rio de Janeiro, que é local onde também está sediada a Faculdade de Formação de
Professores (FFP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
É importante registrar que contamos também com a participação da professora de história
desse colégio, sempre muito colaborativa e incentivadora permanente dos trabalhos e pesquisas
realizadas sobre as práticas de ensino e aprendizagem no campo do ensino de história.
Em agosto desse ano fizemos algumas reuniões com os jovens participantes do projeto e
apresentamos-lhes os objetivos do projeto, as metas e as ações que seriam desenvolvidas por eles
com a nossa supervisão. Como o nosso trabalho visa inseri-los no universo da pesquisa cientifica no
campo da história, nosso primeiro movimento foi incentivá-los na busca de fontes documentais para
a realização de uma oficina sobre esse assunto. A receptividade deles foi muito boa.
Investimos em nossa comunicação por meio do grupo de WhatsApp (Grupo Jovens Talentos
– História – Adino Xavier) criado para a troca de mensagens, a disponibilização de materiais, os
esclarecimentos de dúvidas, a apresentação de propostas de reuniões etc, e também mensagens
eletrônicas por e-mails, pois acreditamos que estes meios potencializam a nossa forma de diálogo,
isto é, a nossa interação, colocando-nos em uma situação de colaboração constante.
Apesar de o nosso projeto não ser direcionado à História Digital, compreendemos que há
conexões com essa abordagem teórico-metodológica no campo da História, pelo fato de
pretendermos investir na construção de um blogue ou página de facebook, produção de mídias
diversas que serão disponibilizadas em rede social, com a finalidade de apresentar os resultados dos
projetos de trabalhos desses alunos, a partir da pesquisa de fontes documentais diversas.
O fato de esse projeto ser construído para um público juvenil implicou na construção de uma
metodologia de trabalho, que busque interfaces com os saberes destes jovens no campo da
informática, das redes sociais e das mídias digitais. A mudança nos suportes de informação no
tempo presente, tem nos obrigado (na condição de professores e pesquisadores do ensino de
história), a se preocupar com os processos de aprendizagens. Sobretudo, a pensar não somente na
ampliação de locais, mas, principalmente, nas formas de armazenamento e disponibilização de
fontes documentais históricas.
A Internet, as redes sociais, as mídias digitais oferecem uma gama de possibilidades para o
desenvolvimento educativo de jovens na atualidade. A complexidade que envolve a discussão sobre
os modos como as mídias digitais, jogos eletrônicos (em redes) e demais ferramentas online podem
contribuir na aprendizagem da História, tem sido objeto de muitos investigadores no campo do
ensino da história escolar. Nessa direção, as pesquisas de Arruda (2013) têm trazido uma

1537
contribuição significativa para a discussão sobre as potencialidades formativas dos jogos digitais,
especialmente, os videogames que simulam acontecimentos históricos.
Caimi (2014), em recente artigo sobre os novos suportes de informação e a aprendizagem
histórica na escola, chama a atenção para a forma como os jovens atuais lidam com os múltiplos
recursos tecnológicos. Essa autora tomando por base algumas das reflexões de Veen e Wrakking
(2009), que nomeiam a geração atual de Homo Zappiens, entende que essa nova geração, “atua em
uma cultura cibernética global com base na multimídia”. (VEEN e WRAKKING apud CAIMI).
De acordo com Veen e Wrakking (2009) apud Caimi (2014), esses jovens da geração homo
zappiens têm uma relação muito particular com a instituição escolar, diferindo-a das gerações
anteriores. Destacam-se alguns comportamentos,

a) Reconhece a escola como um dos interesses, entre muitos outros, como rede de
amigos, trabalho de meio turno, encontros sociais; b) considera a escola
desconectada de seu mundo e de sua vida cotidiana; c) demonstra comportamento
ativo, em alguns casos hiperativo; d) concede atenção ao professor por pequenos
intervalos de tempo; e) quer estar no controle daquilo com que se envolve e não
aceita explicações do mundo apenas segundo as convicções do professor; f)
aprende por meio dos jogos, de atividades de descoberta e investigação, de maneira
colaborativa e criativa. (p.167).

Quando a autora faz esse alerta, mobilizando os trabalhos de Veen e Wrakking (2009),
certamente, almeja apresentar alguns (dos muitos) desafios prementes ao nosso fazer docente,
principalmente, na história escolar. Para Caimi (2009), trata-se de investir na construção de novos
olhares acerca da geração Homo zappiens, pois o que está em questão é a análise por parte dos
professores das “possiblidades formativas subjacentes ao uso de alguns suportes de informação,
tomados (ou não) na condição de fontes para o estudo da história escolar”. (p. 168)
Nessa sociedade marcada pela instantaneidade aliada a ideia de provisoriedade do
conhecimento, ensinar História torna-se desafiante aos professores dessa disciplina, uma vez que
esse saber é compreendido pela maioria dos estudantes como um conhecimento muito distante de
sua prática, logo, desnecessário. A pergunta sobre o como a aula de História pode ser instigante aos
estudantes da educação básica, permitindo-lhes a construção de novos olhares acerca de diferentes
realidades em diferentes temporalidades e espaços, tem acompanhado investigadores que tem se
dedicado à investigação no campo do ensino de História.

Considerações finais

1538
Com esta pesquisa pretende-se avançar num primeiro momento na compreensão do
entendimento do conhecimento histórico como um saber datado socialmente e construído pelo
historiador a partir de referenciais teórico-metodológicos específicos desse campo. A partir da
investigação da temática da cidadania, em diferentes temporalidades, a ser iniciada,
preliminarmente com o levantamento de fontes documentais, e, em segundo lugar, com a instituição
de seu tratamento crítico, e, finalmente, a construção de uma ferramenta online para a
disponibilização do material produzido.
Espera-se contribuir na construção de outras narrativas históricas acerca do processo
histórico de formação brasileira e suas interfaces com o imaginário política e cultura histórica;
evidenciando assim os caminhos percorridos por diferentes sujeitos sociais na busca pela inserção
social.
Ressaltamos que o investimento na orientação e supervisão de trabalhos desta natureza visa
não somente fortalecer as pesquisas e as atividades desenvolvidas no âmbito do Laboratório de
Ensino de História, mas propiciar vivências significativas no campo da pesquisa aos graduandos da
História (Licenciatura Plena) com a promoção de atividades formativas e investigativas no âmbito
do ensino de História, tais como: a indicação de leituras e construção de roteiros de análise dos
textos; a elaboração de fichas de análise das fontes documentais com a instituição de questões
relacionadas à temporalidade, autoria e finalidades; a apresentação de trabalhos em seminários, a
participação de debates e discussões em temas da área e a produção textual (resenhas, resumos,
fichamentos e artigos cientifico-acadêmicos), mas, sobretudo estreitar a relação entre as práticas de
ensino e pesquisa promovidas pela Universidade em parceria com escola pública.

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1539
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aprendizagem histórica. In: MAGALHÃES, Marcelo; ROCHA, Helenice et ali. Ensino de História:
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atividades em sala de aula. In. GIACOMONI, Marcello P.; PEREIRA, Nilton M.; Jogos e Ensino
de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013. p. 47-62

1540
OFÍCIO DE GARÇOM: Inserção dos migrantes nordestinos no mercado de trabalho do Rio
de Janeiro

Maria das Dores Gomes Sales¹

Resumo: A migração de nordestinos para o sudeste em especial São Paulo e Rio de Janeiro se
intensificou a partir de 1930 com o advento da industrialização. O fluxo migratório se manteria
intenso por mais ou menos 50 anos, após a década de 1980 a migração diminuiria
consideravelmente, embora, jamais tenha acabado. O objetivo deste artigo é entender a inserção dos
nordestinos no mercado de trabalho do Rio de Janeiro. Há alguns ofícios que são exercidos
predominantemente por nordestinos, seja como empregada doméstica, porteiros, zeladores,
pedreiros, em restaurantes etc. Dentre os serviços associados aos migrantes nordestinos, voltei
minha atenção para os garçons. Por meio de entrevistas busquei desvendar em que consiste essa
ocupação, como é vista pelos migrantes que a exercem e qual o percurso para se tornar um garçom.

Palavras chaves: migração, garçons, nordestinos.

Abstract: The migration of northeastern to soultheast in special São Paulo and Rio de Janeiro
intensified in 1930 with industrialization. The migratoy flow if would keep intense for more or less
50 years, after the decade 1980 the migration would reduce considerably, but never finished. The
objective of this article is understand the insertion of the 1northeastern in the job Market of the Rio
de Janeiro. There some workes executed predominantly for northeastern, be of housemaid, porters,
bricklayer, in restaurants, etc. Among the Jobs associated the migrants northeastern, I returned my
attention to waiters. Through of oral histoy search uncover in what consist this occupation, how is
see for migrants and how to become a waiter.

Keywords: migration, waiters, northeasters

De acordo com Silva há algumas considerações sobre os migrantes que os tornam diferentes dos
não migrantes, por exemplo,

“1- por que não dominam as regras do mercado no local de destino; 2-seja por não
terem a qualificação profissional necessária para concorrer às vagas disponíveis; 3-
seja por comporem um grupo social em idade ativa e predisposto a inserir-se no
mercado de trabalho; 3- ou por que haja barreiras institucionais no mercado de
trabalho que lhes impedem de inserir-se em determinados setores, restringindo-os a
posições mal qualificadas e remuneradas”.2

1
Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Este artigo faz parte da monografia: Migrações Internas: Garçons e a Inserção no mercado de Trabalho. Maria das
Dores Gomes Sales
Email: salesmariagomes@gmail.com
2
SILVA, Uvanderson Vitor. Velhos caminhos, novos destinos: migrante nordestino na região metropolitana de São
Paulo. São Paulo, 2008, p.8

1541
Características

A ocupação de garçom é uma dentre as áreas que predominam a mão de obra migrante. Esta
ocupação é almejada, por ser uma área em que se ganha relativamente bem se comparada a outras.
Há cursos nessa área, para formar garçons ou simplesmente para aperfeiçoar aqueles que já
trabalham nesse seguimento. O garçom é um profissional que trabalha direto com o público, é
responsável por anotar os pedidos, servir e manter as mesas limpas. O garçom é o cartão de visita
do estabelecimento, por isso é necessário que este profissional tenha alguns atributos como
simpatia, paciência, atenção com os clientes, agilidade, organização, boa memória, raciocínio
rápido e disponibilidade de horário, pois é usual que nos finais de semana tenham que trabalhar
além do horário normal.

A média salarial gira em torno 2 a 5 salários mínimos. Isto se dá por que a renda do garçom é
composta por um salário base estipulado pelo sindicato mais os 10% sobre a venda, mais gorjetas
aleatórias, esses fatores são o diferencial do salário do garçom. O valor adicional é cobrado aos
clientes, no entanto o cliente não é obrigado a pagar, este valor é opcional. Essa comissão pode ser
paga de forma individual, em que cada um ganha sobre a sua venda ou de forma global em que
todos ganham o proporcional à venda da casa. Este fator é de suma importância para a harmonia do
espaço trabalho. Quando a comissão é paga individualmente cria-se um ambiente extremamente
competitivo, onde não há ajuda mútua entre os funcionários.

“Se a minha praça tiver cheia e a dele vazia, ele não me ajuda, deixa eu me matar de arrumar a
mesa, tirar os pedidos, buscar, servir. Eles falam: pra quê eu vou te ajudar? Não vou ganhar nada
mesmo”. (Marcos 2017)

“Restaurante onde a comissão é individual é cada um querendo engolir o outro”. (Jonas, 2017)

Essa gorjeta segundo o Sigabam³3 é destinada aos garçons, maítres e barmans, no entanto ela tem
sido o motivo de muitos processos contra os patrões, os proprietários dos restaurantes. Dentre as
queixas mais comuns estão a de que os garçons não recebiam os 10% integrais, recebendo em torno
de 7 a 8% desse valor.

Você já processou alguma casa?

3
Sindicato dos garçons, barmans e maítres

1542
“Já, por causa dos 10%, dobras, dobrava muito e eles não pagavam. E por que eu era obrigado a
dobrar, se não dobrasse perdia a comissão da semana todinha” (Jonas)

Os garçons que entrevistamos trabalham em casas que adotam o sistema de comissão global, essas
casas também não pagam os 10% integrais, pois todos os funcionários recebem parte desse valor,
sendo que aos garçons são destinados 80% e aos demais funcionários 20%. Os salários dos cargos
da cozinha são muitos baixos gerando grande rotatividade no setor, esse valor “desviado” dos
garçons funciona como um “agrado”, complemento na renda, tendo em vista que o salário real não é
aumentado.

O que você acha desse repasse aos outros funcionários?

“Acho justo por que o garçom não entra na cozinha pra fazer um arroz, uma batata”. (Jonas)

“Eu acho certo por que eles também precisam” (José)

Os garçons não demonstraram nenhum desconforto com relação essa divisão, embora admitam
que muitos colegas se mostrem veementemente contra.

Diante da recorrência de processos referentes a essa taxa, noticiou-se recentemente que o valor
corresponde aos 10% passará a ser contabilizada. O projeto de lei que regulamenta gorjetas aos
garçons foi aprovado pela câmara, faltando apenas à sanção do presidente da República. Com essa
aprovação tanto a taxa de 10% quanto gorjetas espontâneas dadas pelos clientes serão incluídas no
salário dos funcionários de bares, restaurantes e hotéis. Com essa medida as gorjetas incluíram a
base de cálculo do FGTS e férias. As empresas poderão descontar de 20 a 33% para pagar encargos,
o restante deverá ser entregue ao garçom. Na prática os garçons não terão perda significativa, tendo
em vista que não recebiam o valor dos 10% integrais. A meu ver seria uma proteção à categoria,
pois se as normas forem de fato cumpridas, impedirá a apropriação indevida pelos patrões. 4

Está em tramitação um projeto de lei que estabelece que a comissão será ser contabilizada, o que
você acha disso?

“É pra nós é uma vantagem de um lado e uma desvantagem de outro. Como tá agora sem ser
cobrado no contracheque a gente ganha mais. Mas depois vai contar no FGTS e férias, no futuro
vai ser melhor”. (Jonas)

4
Atualmente a lei em questão já está em vigor, mas não temos informações de como tenha sido a recepção/percepção
desta lei após sua aplicação prática, pois no período em que as entrevistas foram feitas a lei ainda não estava em vigor.

1543
“Há eu acho uma coisa boa, tem que pensar um pouco no garçom né, mas a gente não sabe como
vai ficar a comissão da cozinha” (José)

De acordo com as respostas acima o benefício dessa nova lei será sentido de forma mais sólida na
contabilização das férias e numa possível demissão, tendo em vista que tanto as férias como o
FGTS são calculados apenas com base no salário base da categoria, sem levar em conta a comissão.

Entrevistas

1- Rodrigo

Rodrigo tem 44 anos, nunca estudou, é casado e têm dois filhos, um ainda é criança o outro um
jovem adulto. Mora atualmente com toda a família na Lapa no Centro da cidade. É natural de
Ipueiras-Ce, chegou ao Rio em 1988, seu primeiro bairro foi Andaraí. Seu Rodrigo relata que fez
sua primeira viagem aos 13 anos de idade, tendo que aumentar sua idade para conseguir viajar.
Voltou para o seu estado, passado algum tempo casou e fez sua segunda viagem com a esposa,
dessa vez para São Paulo. Influenciado por conterrâneos e pela mídia. Algum tempo depois decidiu
voltar ao Rio de Janeiro, dentre os principais motivos estavam à temperatura da cidade que era
muito baixa e a esposa não se dava bem, além não ter familiares. Seu primeiro trabalho foi em
restaurante, como auxiliar de cozinha. Faz questão de citar sua vasta experiência.

“Já trabalhei em padaria como balconista, em lava jato, em posto de gasolina como lubrificador,
ajudante de cozinha, como copeiro em restaurante, como desembaracê, que pouca gente conhece,
que é só para polir taças, ninguém conhece, nunca nem viu falar. (risos) Ainda trabalhei como
porteiro em condomínio, como vigia e em oficina como ajudante de mecânico” (Rodrigo)

Rodrigo não precisou o tempo que passou nessas áreas, mas o tempo foi relativamente curto, tendo
em vista que já fazem 20 anos que ele é garçom.

E para se tornar garçom foi direto, ou teve que passar por outros setores?

Não, foi difícil eu tive que passar por vários setores, tive que passar pela copa, da copa eu tive que
passar é, ser cumim é, o cumim é o ajudante de garçom. Aí trabalhei dois anos de cumim, aí dois
depois foi que eu passei a ser garçom.

A maioria dos seus colegas de trabalho são do nordeste?

Sempre a maioria.

1544
Mas por acaso tinha algum paulista ou carioca?

Não nunca trabalhei assim não, que tivessem pessoas de outros estados, sempre não, sempre do
nordeste.

Dentre todos os empregos que teve, por que optou pela área de restaurantes?

De restaurante, por que você lida com o público, área que você consegue ganhar mais dinheiro,
mas eu pegaria serviço em qualquer área, contando que me pague bem.

Então você está satisfeito com sua colocação no mercado?

Sim, muito satisfeito.

Além do mercado de trabalho o que mais gosta no Rio?

De tudo no Rio eu gosto, só também, só nunca frequentei uma praia também, nunca frequentei
uma praia, não gosto.

Você pretende retornar algum dia para sua terra?

Eu pretendo sim um dia voltar pra minha cidade de origem com certeza, esse é todo o nosso sonho.

Rodrigo é o migrante mais antigo a que tive acesso, a idade com que fez a sua primeira viagem
faz com que indaguemos a realidade social do nordeste para que uma criança de treze anos se
aventure numa viagem em busca de trabalho. Rodrigo chegou ao Rio de Janeiro no final da década
de 80, mesmo sendo um período de estagnação econômica nunca teve problemas com desemprego.
Talvez isso se deva por fazer parte do setor de serviços, que pode não ter sentido os efeitos da crise
de forma muito acentuada. Mas, sobretudo pela sua rede de sociabilidade, que por meio de
informações e indicações possibilitaram a inserção no mercado de trabalho. A partir de suas
respostas percebemos que a presença da família e de conhecidos são essenciais para o migrante,
pois ao decidir sair de São Paulo o fator que mais pesou na sua decisão foi a falta de conhecidos.
Estas informações confirmam a ideia de que uma rede de sociabilidade mencionada por Barbosa
(2000) ajuda no estabelecimento do migrante, seja pelo suporte material ou emocional.

Com relação à rotatividade de ocupações podemos inferir que tais ocupações não geravam
satisfação no senhor Rodrigo. Para Rodrigo não foi uma trajetória fácil, pois passou dois anos sendo
ajudante até conseguir de fato o cargo que desejava. O exercício dessa profissão o deixa satisfeito,
pois além de gostar de lidar com o público, Rodrigo ressalta que nesse trabalho tem a possibilidade

1545
de ganhar mais dinheiro se comparada a outras ocupações. Esse fator talvez seja o que mais explica
a permanência nessa profissão, pois garante a possibilidade de uma vida mais confortável para a sua
família. Outro dado interessante é a ausência de pessoas de outras regiões trabalhando como
garçom, Rodrigo ressalta que essa ausência não é exclusiva do seu atual trabalho, seja no Rio de
Janeiro ou em São Paulo, nunca teria trabalho com pessoas que não fossem do Nordeste.

Indagado sobre o que gosta no Rio de janeiro Rodrigo é categórico ao dizer que a única coisa que
não gosta é a praia. Sua resposta foi um tanto genérica, pois não citou algo especifico de que
gostasse. A possibilidade de retorno é um objetivo na vida de Rodrigo, sua resposta nos dá a
entender que esse objetivo também é compartilhado por outros nordestinos.

2- Alex

Alex é de São Benedito, interior do Ceará, tem 24 anos, possui ensino fundamental incompleto,
chegou ao Rio em 2012, mora no Caju com a esposa.

Como você se tornou garçom, teve que passar por outros setores?

Não, eu sofri muito, eu trabalhei como copeiro.

Por que você sofreu?

Por que trabalhar numa copa, vou te falar viu, é complicado.

Por que você quis ser garçom?

Não. Não, foi os patrões mesmo que me escolheram.

Mas era um desejo?

Não, eu vim no sentido de trabalhar na copa.

Então você não tinha essa ambição?

Não, não, aí eu chegou uma época que eles me colocaram pra fazer, há esqueci! A gente começa a
fazer, no salão?

Para fazer treinamento?

1546
Sim, pra me analisar, pra ver como que eu era.

Quais as vantagens de ser garçom?

Bem, a vantagem é que a gente ganha um pouco bem e a desvantagem é que a gente trabalha todo
fim de semana e tem que dobrar as vezes.

No seu trabalho tem pessoas de outras regiões além do Nordeste?

Aqui só tem um carioca, é o único, ele é filho de gente de lá.

Além do mercado de trabalho o que mais gosta no Rio?

Só ir de vez em quando na Praia e do trabalho pra casa e da casa pro trabalho (risos)

Está satisfeito com o seu trabalho?

Por enquanto sim.

No restaurante em que trabalha os 10% são pagos integralmente aos garçons?

Não, uma parte vai pros outros funcionários.

E o que você acha desse sistema?

Eu não me incomodo não, por que eu continuo ganhando um pouco bem.

E você pretende voltar algum dia para sua terra?

Sim, sim, aqui não é o lugar o lugar o ideal pra gente, é bom pra ganhar dinheiro. Não tenho que
falar mal dessa cidade, mas ela é um pouco perigosa! (risos)

Alex migrou para o Rio na intenção apenas de trabalhar, não importando a área, também não
tinha a intenção de ser garçom. Passou para este setor por escolha dos patrões. Ressalta que sofreu
bastante antes de se tornar garçom, o que nos leva a pensar que o cargo exercido anteriormente
causava certo desconforto em Alex, tendo em vista que ele se mostra feliz com a atual profissão.
Embora esteja satisfeito com o trabalho e remuneração esboça planos de mudar de área no futuro.
Alex vê a remuneração que recebe como garçom como a maior vantagem desta profissão, em contra
partida ressalta o ônus desta, pois tem que trabalhar todos os finais de semana, os dias em que a
maioria das pessoas procuram sair para se divertir. Além disso, deve dobrar algumas vezes, o que
significam para Alex uma desvantagem da profissão. Indagado sobre o que mais gosta no Rio de

1547
janeiro cita a praia como o que mais gosta a ida a praia é o seu principal lazer. Alex pretende no
futuro voltar para sua terra natal, na sua concepção “esse lugar não é pra gente” o Rio de janeiro é
um meio apenas de ganhar a vida, mesmo reconhecendo que a cidade é perigosa nota-se certo
receio em “falar mal da cidade”, pois não pareceria justo na sua concepção, pois é nesta cidade que
tem a possiblidade de ter uma vida melhor.

3- Jonas

Jonas tem 26 anos, é de Ipueiras-CE estudou até a 7ª série do ensino fundamental, é solteiro
chegou ao Rio em 2010, trabalha numa casa de alto padrão, mora na favela de Rio das Pedras com
dois irmãos.

Seu primeiro emprego já foi em restaurante?

Foi, foi em padaria, lá era padaria e restaurante também.

Você já veio com o intuito de ingressar nessa área?

Já vim no foco de trabalhar nessa área. Só achava que ia ser mais difícil ser garçom, não achava
fácil ser garçom, mas depois que você aprende o serviço fica fácil. Quando cheguei tive
oportunidade de trabalhar de caminhão como meus irmãos, mas decidi esperar mais um pouco,
não queria isso não.

Como foi sua trajetória até se tornar garçom?

Comecei como copeiro, liberando refrigerante, bebidas, lavando copos, isso se chama copa, já era
outra casa, não era mais a padaria. Com o tempo, tinha um maítre lá, falei pra ele que queria sair,
por que já tava a seis meses e não tinha oportunidade.

O salário da copa é muito diferente?

O salário é o mesmo, a comissão é que é diferente. Aí foi, ele me colocou no salão de cumim.
Passei mais seis meses de cumim, aí fui, saí dessa casa, por que era muito difícil promover pra
garçom. Aí fui pra outra casa, passei mais seis meses, aí passei pra garçom!

O que os garçons fazem no geral?

Tem dois horários, pra quem trabalha ao dia pra abertura de casa, tem que limpar todo o salão,
passar pano nas mesas, higienizar os talheres, montar o salão e depois se arrumar todo.

1548
E no caso de reclamação do cliente?

O cliente já pede logo pra chamar o gerente. Quando acontece é melhor ficar calado, por que
mesmo errado o cliente tá certo.

Nos seus trabalhos anteriores a maioria dos funcionários era do nordeste, no emprego atual isso
continua?

Nos outros boa parte é nordestina, mas nesse a maioria são gaúcho, por que a casa é de
churrascaria gaúcha. Mas na cozinha tem mais gente do nordeste.

Quais as vantagens de trabalhar como garçom?

Sem dúvida é o salário que a gente ganha, quanto mais cara a casa melhor pra gente. Mas tem as
coisas ruim também né. Você não tem fim de semana.

O que mais gosta no Rio?

Sair, curtir, ir pras baladas.

Pretende se radicar no Rio de Janeiro?

Não, pretendo passar mais algum tempo aqui e depois ir embora. Pretendo sair desse ramo e
montar alguma coisa pra mim como um restaurante ou um bar ou tirar outra habilitação e seguir.

Jonas ao chegar à cidade não teve a necessidade de arrumar um emprego de imediato, podendo
esperar um pouco até se colocar na área que desejava. Jonas começou a trabalhar como copeiro,
mas já tinha a meta de trabalhar como garçom. O quadro de funcionários do local em Jonas trabalha
é bem diferente dos casos anteriores, pois há garçons nordestinos, mas a maioria é gaúcha. Uma
grande diferença, tendo em vista que os dois casos anteriores não tinham funcionários de outras
regiões, exceto no caso de Alex, pois havia um carioca, enquanto que todos os outros eram
nordestinos. Jonas entende que essa composição diferente dos empregos anteriores se explica pelo
fato se tratar de um restaurante de origem gaúcha. Sobre o que mais gosta no Rio, Jonas ressalta as
baladas do Rio como principal opção de lazer. Jonas pretende voltar para sua terra e montar um
negócio para si. A cidade novamente se mostra como um meio e não um fim. Jonas não faz
nenhuma crítica à cidade.

4- josé

1549
José tem 26 anos, é casado, mas sua esposa está no Ceará. Veio pela primeira vez em 2009, é de
Tamboril-CE, possui ensino médio completo. Mora em Rio das Pedras. Esta é sua segunda
migração.

Como se tornou garçom? Já queria ingressar nessa área?

Desde que eu tava no Ceará eu já queria, por que meus amigos diziam que era bom trabalhar de
garçom, que nessa área as pessoas costumavam ganhar bem.

Mas você conseguiu entrar no restaurante direto como garçom?

Nesse trabalho sim, mas da primeira vez eu também fui pra restaurante, mas fui primeiro pra
limpeza, depois foi que eu consegui ser garçom, não foi direto não. Nesse meu amigo me indicou, ai
já entrei como garçom.

Nos seus trabalhos anteriores qual era a proporção de nordestinos?

A maioria era nordestina. Já nesse que eu tô atual, a maioria é gaúcha.

E por que será?

Posso explicar pra você, o meu ponto de vista é por que, tipo assim, lá na casa que eu trabalho no
momento a maioria são gaúcho, mas tem uma boa parte nordestina, tanto na manha quanto na
noite. É por que o gerente, ele é gaúcho, então ele acaba trazendo pessoas do lado dele, trás
pessoas do conhecimento dele pra montar a equipe. Por isso lá é dominado mais por gaúcho.

Está satisfeito com sua posição no mercado?

No momento sim, mas eu pretendo algo melhor.

O que mais gosta no Rio?

Eu gosto de conhecer os lugares, de passear, de ir no jardim botânico, essas coisas.

Pretende voltar para sua terra?

Eu já tentei voltar uma vez pro Ceará, mas vi que as coisas não tinham melhorado e tive que voltar
pra cá.

José migrou com o intuito de trabalhar como garçom por influência de seus amigos que lhe
diziam ser uma área com bom retorno financeiro. Na sua primeira migração relata que não

1550
conseguiu um emprego como garçom, mas na segunda migração já conseguiu devido à indicação de
um amigo. No seu atual trabalho os gaúchos ( e pessoas dos Estados do Sul em geral) também são a
maioria, na sua concepção isso se explicaria pela afinidade, pois o gerente sendo gaúcho busca
favorecer seus conterrâneos. Indagado sobre o que gosta no Rio, José ressalta os pontos turísticos.
Quanto a voltar para sua terra relata que já tentou voltar, mas não diz se tentaria voltar novamente
ou se pretende se estabelecer no Rio de Janeiro de Vez.

Todos os entrevistados migraram pela necessidade de trabalhar, pela busca de uma vida melhor.
Todos eles tiveram o primeiro emprego no setor de serviços e até se tornarem garçons tiveram
diferentes graus de dificuldade, o que fica evidente é que para se tornar garçom é necessário passar
por outros setores. Alguns já migraram com o intuito de abraçar esta profissão, outros acabaram
entrando nessa área por acaso. Fato é que embora os entrevistados relatem alguns aspectos não tão
satisfatórios, a remuneração se sobrepõe às desvantagens, por exemplo, trabalhar todos os finais de
semana, mesmo assim todos eles demonstraram que estão bastante satisfeitos com suas profissões.
A profissão de garçom é exercida de forma muito abrangente por nordestinos, mas não somente,
pois os quatro casos tinham semelhanças e diferenças. No restaurante que Rodrigo trabalha todos os
funcionários são do Nordeste. No restaurante que Alex trabalha há um garçom que é carioca e os
demais nordestinos. Já no restaurante de Jonas e José há uma inversão dessa estrutura, pois há maior
diversidade regional, como nordestinos, cariocas e sulistas. Com isso percebemos que, embora os
5
nordestinos predominem nessa profissão, há restaurantes em que estes não são a maioria.

Os entrevistados relataram que gostam da cidade, mas sem se aprofundarem muito, resumiram o
que gostam de fazer. Não falaram dos problemas urbanos como violência, serviços públicos etc.
Alex de forma sutil falou da cidade como perigosa. Embora todos gostem da cidade o principal
motivo que os fazem viver nela é a oportunidades de trabalho, possibilidade “de ganhar dinheiro”,
eles entendem a cidade como um meio, uma passagem, pois após algum tempo, pretendem voltar
para seus locais de origem. Somente com José esse interesse não ficou claro.

Os migrantes entrevistados são migrantes de segunda geração. Logo a migração já é algo comum
no seu meio em que estes viviam. No que tange a motivação da migração dentre os quatro
entrevistados prevaleceu à questão financeira. Devido ao baixo desenvolvimento econômico de suas
regiões se veem obrigados a migrar em busca de emprego. Esses migrantes possuem pouca ou
nenhuma escolaridade. Rodrigo nunca frequentou a escola nem quando morava com os pais no
Nordeste e nem após a migração. O ato de estudar, de frequentar a escola parece não ter

5
As entrevistas foram feitas em 3 restaurantes, os dois primeiros têm perfis populares, o terceiro é um restaurante de
luxo (os clientes desse restaurante são de classe média a alta) não sabemos se este fator influencia na composição dos
funcionários, pois a princípio este não era o foco da pesquisa.

1551
importância para Rodrigo, pois ele é categórico em dizer que “o mundo foi o meu melhor
professor”. Ele entende que o fato de não ter estudado não tem relação alguma com sua ocupação,
esse fator não o condicionaria a determinadas ocupações. José diferente dos demais dimensiona sua
ocupação com sua instrução, ele compreende que sem uma formação especifica tem possiblidades
mais restritas, ou seja, só consegue trabalho em ocupações que não exija uma formação. Talvez os
demais participantes não vejam relação entre escolaridade e trabalho por que nunca precisaram
provar nenhuma escolaridade para conseguir emprego. Logo chegamos á nossa questão principal
que é: como conseguem se emprego sem escolaridade?

Chegamos á conclusão que a inserção no mercado se dá através do capital social do indivíduo, a


sua rede de sociabilidade como a família, amigos e conhecidos. Pessoas que são contatadas quando
um indivíduo decide migrar. Essa rede é de suma importância para o novo migrante, pois a partir do
apoio desse grupo tornará sua adaptação mais fácil no novo ambiente. Com essa ajuda o migrante
através da ajuda das pessoas que já estão estabelecidas consegue moradia e emprego. A área que o
migrante vai conseguir emprego geralmente está condicionada à sua rede de apoio, por exemplo, se
a maior parte de sua trabalha em restaurante é provável que o migrante ingresse nessa área. Através
das entrevistas chegamos a esta conclusão, pois todos tiveram uma rede de apoio e todos
conseguiram seus empregos através de indicações. Quanto ao ofício exercido pelos entrevistados
entendemos que esta profissão é vista com certo prestígio por aqueles que a exercem. Este trabalho
possibilita uma boa remuneração quando comparada com outras ocupações que também são
exercidas predominantemente por migrantes. Essa profissão segundo as entrevistas tem algumas
desvantagens, mas as vantagens são muito maiores. Outro dado importante é que embora os
migrantes relatem que gostam da cidade, de morar, de trabalhar, alguns não cogitam passar o resto
de suas vidas no Rio de Janeiro. Os migrantes por mais tempo que passem na cidade trazem o sonho
ainda que longínquo, ainda que sem data prevista, de voltar para suas terras. Entendemos que eles
não enxergam a cidade como sua cidade, eles se consideram migrantes que passarão um tempo
longe de casa, mas acabarão retornando. Logo o Rio de Janeiro representa na vida desses migrantes
um meio de conseguirem uma vida melhor, mas não um fim em si, pois o desejo de retorno
prevalece na vida destes entrevistados.

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1554
Conflitos, disputas e poder: Católicos e Batistas em Jaguaquara – BA (1950-
1958)

Maria do Carmo Souza Santos1

Resumo: A pesquisa analisa os conflitos políticos e religiosos entre católicos e batistas em


Jaguaquara. Os embates entre os dois grupos religiosos eram acirrados, interferindo nas campanhas
eleitorais da cidade transformando as disputas políticas em disputas religiosas, visto que os eleitores
eram de grupos religiosos opostos. Esses acirramentos se intensificaram nas eleições para prefeitos
nos anos de 1950, 1954 e 1958. Votar no partido político que tivesse aliados protestantes para os
católicos era como se revoltar contra a Igreja Católica e apoiar um grupo que lutava para
deslegitimar sua ortodoxia. Para os protestantes, eleger um candidato católico seria concordar com a
ignorância, falta de progresso, além de perder espaço nessa disputa do campo religioso.
Palavras chave: Conflitos – Disputas – Campo religioso.

Abstract: The research analyzes the political and religious conflicts between Catholics and Baptists
in Jaguaquara. Clashes between the two religious groups were fierce, interfering with the city's
election campaigns, turning political disputes into religious disputes, as voters were from opposing
religious groups. These factors intensified in mayoral elections in the years 1950, 1954 and 1958.
Voting in the political party that had Protestant allies for Catholics was like revolting against the
Catholic Church and supporting a group struggling to delegitimize its orthodoxy. For Protestants, to
elect a Catholic candidate would be to agree with ignorance, lack of progress, and to lose space in
this dispute of the religious field.
Key words: Conflicts - Disputes - Religious field.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento e tem por objetivo
analisar os conflitos gerados pelas divergências religiosas e políticas entre católicos e batistas na
cidade de Jaguaquara, também conhecida como “Toca da Onça”, uma cidade do interior baiano
classificada como Território de Identidade no Vale do Jiquiriçá, localizada no centro Sul da Bahia.

Durante os anos 1950, 1954 e 1958 os conflitos religiosos entre católicos e batistas se
intensificaram devido às campanhas eleitorais, influenciando os eleitores na escolha do candidato
político. Devido a essa disputa do campo religioso, o campo político também passou a ser
disputado. Desse modo, é pertinente analisar de que forma esses conflitos interferiam na sociedade
Jaguaquarense.

1
Mestranda em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana, (UEFS), BA. Bolsista FAPESB. E-mail:
marya19ssantos@gmail.com.

1555
A partir da segunda metade do século XIX o protestantismo missionário se instalou no Brasil. Os
batistas vieram para o Brasil originários dos Estados Unidos, devido à Guerra de Secessão (1861-
1865) e intensificação do comércio entre os Estados Unidos e o Brasil. “Paralelo aos fatores
especificamente religiosos, o contexto socioeconômico e político dos Estados Unidos, na segunda
metade do século XIX, desempenhou um papel importante na expansão missionária que resultou na
instalação da Denominação Batista no Brasil”. (SILVA, 2011, p. 286).

Desde o período colonial o Catolicismo está presente no País. Com a Proclamação da


República (1889) houve a separação entre a Igreja Católica e o Estado, assim o Catolicismo deixou
de ser a religião oficial e extinguiu o sistema de Padroado Régio. Com a posição de laicidade do
Estado concedendo aos cidadãos liberdade religiosa, os protestantes ganharam liberdade de cultos, o
que contribuiu para a expansão do protestantismo no Brasil, muito embora ainda continuassem
sendo bastante perseguidos e taxados de “hereges”.

Os pioneiros Batistas na Bahia foram os missionários Zacarias Taylor e Katerine Taylor,


enviados pela Junta de Richmond do Sul dos EUA, foram recebidos pelo casal William Buck Bagby
e Anne Bagby em janeiro de 1882. Depois de oito meses no Colégio Presbiteriano de Campinas,
aprendendo o idioma português, o casal Taylor chegou à Bahia. Fundaram a Primeira Igreja Batista
do Brasil na cidade de Salvador, em 15 de Outubro de 1882, organizada para os fiéis brasileiros. Os
missionários batistas deram prosseguimento à expansão pelo interior baiano, travando embates com
o Catolicismo. “O ataque frontal à Igreja Católica era, na verdade, um dos métodos de
evangelização utilizados pelos líderes batistas” (SILVA, 2011, p. 36).

Batistas chegaram a Jaguaquara e em 21 de novembro de 1923 fundaram a Primeira Igreja


Batista de Jaguaquara, no mesmo ano da fundação da Paróquia Maria Auxiliadora. Até então
Jaguaquara pertencia à cidade de Areia, atual Ubaíra e foi elevada à categoria de vila e município
em 1921 com a Lei Estadual n. 1.472, só alcançando a posição de cidade pela Lei Estadual de 30 de
agosto de 1923. Tendo como seu primeiro intendente o Coronel Guilherme Martins do Eirado e
Silva.

Um elemento importante que contribuiu para o crescimento da cidade de Jaguaquara foi a


Estrada de Ferro de Nazaré. Inaugurada, com o nome de Tram Road de Nazareth (TRN), visto que
engenheiros ingleses participaram ativamente das construções de estradas de ferro no Brasil.
Posteriormente passou a se chamar Estrada de Ferro de Nazaré (EFN). Partiu de Nazaré (Bahia) em
1871, chegando a Jequié em 1927. Com extensão de 290 km, fazia o transporte de passageiros e dos
principais produtos agrícolas da região, como café, fumo e cacau. Entre os anos de 1871 (início da

1556
construção) e 1971 (quando foi desativada), a estrada permitia a integração das microrregiões do
Vale do Jiquiriçá / Recôncavo Sul / Jequié e Salvador, conectando ferrovia e navegação,
contribuindo assim com intercâmbios culturais, sociais e econômicos. (SANTOS, 2011, p. 12-13).

Além da Ferrovia (EFN) ter possibilitado os intercâmbios culturais, sociais e econômicos,


possibilitou também o intercâmbio religioso, facilitou o acesso ao interior do Sudoeste baiano
aumentando o povoamento da região. Foi através da linha ferroviária Nazaré-Jequié que imigrantes
chegaram à cidade, como os imigrantes italianos, os Frades Capuchinhos e missionários Batistas.

Outros elementos que participaram do cenário da disputa religiosa em Jaguaquara foram os


imigrantes italianos. Vindos de um país essencialmente católico, os imigrantes italianos não
escaparam do proselitismo dos Batistas, que faziam visitas às colônias italianas a fim de converter
novos fiéis. Por sua vez, a Igreja Católica prestava assistência às colônias, realizava missas e
advertia nos sermões sobre o perigo dos “hereges”. Os imigrantes italianos se estabeleceram em
duas colônias, uma em Jaguaquara e outra na cidade de Itiruçú e ambas faziam parte da disputa do
campo religioso entre Católicos e Batistas.

Embora o Catolicismo e o Protestantismo tivessem destaque no cenário religioso de


Jaguaquara, esse campo também estava sendo disputado pelo Espiritismo e pelo Candomblé. Como
ficou registrado pelo pároco: “mesmo a população enxertada de protestantes e espíritas. Também
prolifera com grande mal para as almas, o Candomblé.” (Livro de Tombo Paróquia Maria
Auxiliadora 26-06-1941, p. 16 verso). Podemos perceber que o campo religioso Jaguaquarense
possuía uma diversidade de credos e grupos religiosos.

RELIGIÃO E EDUCAÇÃO

Antes da criação da Paróquia Maria Auxiliadora a comunidade de Jaguaquara era assistida


pelo Vigário Coadjutor de Areia (atual Ubaíra). Em 1921, a população de Jaguaquara já havia
crescido o suficiente para ser elevada à categoria de município, e para tanto tornava necessário uma
Paróquia própria ao local, que orientasse com maior proximidade e frequência, evitando que os
católicos desviassem de suas doutrinas e principalmente evitando a conversão dos mesmos ao
protestantismo, conforme consta no Livro de Tombo2:

(...) em terceiro lugar, fazendo justiça ao zelo do nosso digníssimo vigário, secundado pelo
boníssimo coadjutor, parece que não ficamos sem o apoio da razão quando dizemos a V.
Excia que um Vigário residindo em Jaguaquara, poderia com maior vantagem combater até

2
Livro de Tombo da Paróquia Maria Auxiliadora, n.1, (1923-1973).

1557
o extermínio a planta daninha do protestantismo, que infelizmente conseguiu nascer em
nosso reino. (Livro de Tombo Paróquia Maria Auxiliadora, 1922, p. 1).

O termo “planta daninha” remonta à ideia de uma planta invasora de rápido e fácil
propagação que nasce espontaneamente em local indesejado, que caso não seja retirada termina por
disputar e absorver os nutrientes destinados ao cultivo principal se sobrepondo, levando assim à
morte ou baixa produção dos mesmos. O Protestantismo representaria para o vigário essa planta
invasora que conseguiu nascer entre os católicos se propagando, o que reforçava o pedido de
criação de uma Paróquia por ser uma forma de demarcar o campo religioso e de evitar que os
protestantes conseguissem prosélitos. O termo “planta daninha” foi usado como uma representação
negativa associada ao protestantismo, “as lutas de representações têm tanta importância como as
lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe ou tenta impor, a
sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 1990,
p. 17).

Em 23 de março de 1923 se deu a criação da Paróquia Maria Auxiliadora através do decreto


do Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil Dom Jerônimo Tomé da Silva. Em
1923, a tenra Paróquia Maria Auxiliadora pertencia a Arquidiocese de Salvador e só em 1943 foi
criada uma nova Diocese na Bahia na cidade de Amargosa sob a jurisdição de Dom Florêncio
Sisinio Vieira, passando posteriormente em 1979 para uma nova diocese, a recém criada Diocese de
Jequié, a qual a Paróquia Maria Auxiliadora pertence até a atualidade.

Como já destacado, um fato que chama a atenção em relação à construção de uma Igreja
Batista em Jaguaquara é que ela se deu exatamente no mesmo ano da construção da Paróquia Maria
Auxiliadora. Mas a presença dos Batistas em Jaguaquara se deu bem antes da construção do
primeiro templo, a cidade já figurava no cenário do Campo Batista Baiano. Era comum uma
congregação ou ponto de pregação preceder a organização da Igreja local. A notícia da criação da
Igreja Batista de Jaguaquara foi publicada no O Jornal Baptista (OJB):

Uma nova igreja. Em 20 de novembro p. p., achando-se reunida em sessão, com presença
de 51 membros, a Igreja Baptista de Casca, Bahia, concedeu unanimemente cartas a 43
membros para se organizarem em nova igreja. De facto, no dia seguinte, os ditos membros
se constituíram em igreja, com o nome de Igreja Baptista de Jaguaquara. [...] A igreja
autorizou a compra de uma boa casa para culto no estratégico lugar de Muritiba. – UM
MEMBRO. (O JORNAL BAPTISTA, 13 de Dezembro de 1923).

Importante observarmos que o ou a correspondente trouxe o termo “igreja” para especificar


diferentes contextos, no primeiro caso o termo “igreja” foi usado no sentido de “templo”, logo
“templo” seria o espaço físico onde a “igreja” se reunia. E no segundo caso o termo “igreja” referiu
se à assembleia dos crentes batizados em comunhão com a doutrina, ou seja, enquadrados nas

1558
regras de comportamento e inseridos nos trabalhos de cooperação e evangelização. (TEIXEIRA,
1975, p. 120).

O “estratégico lugar” referido pelo correspondente do “O Jornal Baptista” foi o bairro


Muritiba, exatamente no mesmo bairro e na mesma avenida (Avenida Dois de Julho) onde foi
construída a Paróquia Maria Auxiliadora e também o Colégio Taylor Egídio. Os documentos
demonstram que as igrejas dividiam não só o mesmo campo religioso como também disputavam o
mesmo território em um bairro estratégico, ambas buscando a legitimidade de seu espaço.

Como uma cidade pequena do interior da Bahia ainda na década de 1950 conseguiu se
destacar no cenário educacional baiano, angariando o título de “cidade escola” e atraindo estudantes
de outras regiões? Analisando a trajetória dos colégios mais conceituados da cidade de Jaguaquara,
podemos crer que esse destaque na educação teve reflexo também das disputas do campo religioso
Jaguaquarense, visto que dois desses colégios foram fundados e dirigidos por instituições religiosas
confessionais, o Colégio Taylor Egídio (batista) e o Colégio Luzia Silva (católico).

Além desses dois colégios, havia também outros dois educandários de grande destaque na
cidade, são eles a Escola Carneiro Ribeiro inaugurada em 1929 e o Colégio Pio XII inaugurado em
1961.

O setor educacional também foi utilizado como meio de evangelizar, de ou até mesmo de
manter os seguidores em suas respectivas doutrinas. Os Batistas passaram a construir escolas para a
instrução dos crentes e seus filhos, além de aceitarem também a presença dos filhos de católicos.
Isso reforçava o discurso proferido pelos Batistas de que os Católicos eram responsáveis pela
ignorância no Brasil, “não é por acaso que nos países onde o catolicismo predomina haja quase
sempre maior porcentagem de analfabetismo”. (CRABTREE, A. R. 1962, p. 140).

O programa educativo é uma das primeiras e mais importantes expressões da obra


missionária. A natureza e a profundidade das mudanças que se quer introduzir na sociedade
não condizem com o analfabetismo dos conversos, nem com a pouca instrução reinante. É
necessário que o protestante seja capaz de, pelo menos, ler a Bíblia e certa literatura
religiosa, e a comunidade global deve valorizar e expandir a educação, considerada a mola
principal de ascensão social. (RAMALHO, 1976. p.69).

Por que o Colégio Taylor Egídio foi transferido para Jaguaquara em meio a outras cidades
mais próximas da capital Salvador e até mais desenvolvidas na época? Pode ter contribuído para
que a cidade de Jaguaquara fosse escolhida os seguintes fatores: a doação das terras para a
instalação do CTE pela família do Capitão Egídio; a rota da Estrada de Ferro Nazaré por
Jaguaquara, facilitando assim o acesso à cidade e viabilizando o transporte dos estudantes que
residiam em outras localidades; além da ausência de um colégio que pudesse concorrer com o CTE.

1559
O primeiro desses colégios que levou a cidade de Jaguaquara a adquirir o prestígio de
“cidade escola” foi o Colégio Taylor Egídio, porém o que nos chama a atenção é o fato do Colégio
Taylor Egídio ter sido transferido para Jaguaquara em 1922, antes mesmo da instalação oficial na
cidade da Igreja Matriz N. S. Maria Auxiliadora e da própria Igreja Batista de Jaguaquara, ocorridas
em 1923. O desejo de ter uma escola de orientação religiosa que atendesse o povo católico já se
manifestava anos antes da criação do Colégio Luzia Silva. Era necessária uma escola que além de
educar pudesse instruir, de forma catequética, os alunos na fé católica, fizesse concorrência com o
colégio Batista Taylor Egídio que conquistava cada vez mais alunos e de prosélitos.

Em 18 de abril de 1950 o Colégio Luzia Silva começou a funcionar oficialmente. Eram


oferecidos os cursos de Jardim de infância, Pré-primário, Primário, sendo que o curso Ginasial foi
autorizado a partir de 1959 e só em 1963, treze anos após dar início às atividades educativas, foi
também implantado o Curso Normal. Também oferecia cursos de culinária, corte e costura,
datilografia e mesmo sendo um colégio de cunho particular mantinha gratuitamente uma escola para
as crianças de famílias carentes. As disputas entre Católicos e Batistas estimularam a criação de
escolas e o incentivo à educação, porém essas diferenças também acabaram sendo uma forma de
segregar os alunos de doutrinas diferentes, segundo consta no Livro de Tombo da Paróquia Maria
Auxiliadora:

Acrescentou ainda, uma nota de esclarecimento do Padre Vigário, proibindo a matrícula de


alunos católicos no Colégio Protestante, sob pena de ser negado aos pais ou aos mesmos
alunos, os sacramentos da Penitência e Eucaristia. (Livro de Tombo Paróquia Maria
Auxiliadora, 1963: 99 verso).

Mediante essa advertência, muitos alunos deixaram de estudar no Colégio Taylor Egídio por
serem de famílias católicas, outros foram enviados pelas famílias para estudarem em colégios
confessionais (Irmãs Mercedárias; Sacramentinas; Salesianos, Maristas;) em outras cidades. O
incentivo à educação motivada pela disputa do campo religioso pode ter contribuído para que a
pequena cidade de Jaguaquara ganhasse destaque na área educacional ainda em meados de 1950, se
diferenciando das outras cidades que sequer possuíam escolas organizadas, oferecendo um ensino
qualificado e assim conseguiu atrair estudantes de regiões vizinhas e de outras cidades, angariando
o título de “cidade escola”.

CONFLITOS POLÍTICOS E RELIGIOSOS

Nesse clima de conflitos entre Católicos e Batistas, começaram as eleições de 1950. A


disputa estava formada entre os candidatos: Dr. Menandro Minahim, médico, “católico fervoroso”,
representando o partido da União Democrática Nacional (UDN), verso Sr. Carlos Dubois, Pastor da

1560
Igreja Batista de Jaguaquara, diretor do Colégio Taylor Egídio e candidato do Partido Social
Democrático (PSD). Não era comum na década de 1950 a inserção de protestantes na política, Silva
explica que:

Segundo a perspectiva fundamentalista, o Estado e a sociedade eram vistos pela ótica do


Reino de Deus, do milênio, o termo positivo da díade, e reino do mundo, o termo negativo
da díade. Se as questões políticas faziam parte do reino do mundo, esperava-se que o cristão
vivesse completamente afastado das questões mundanas e não se imiscuísse em problemas
sociais e políticos. (SILVA, 2002, p. 594-595).

A partir dos anos 1980 houve uma intensificação da presença dos protestantes na política
brasileira, mas desde o recorte contemplado nesta pesquisa já ocorria disputas políticas, envolvendo
lideranças protestantes na cidade de Jaguaquara. Tudo indica que esse pensamento já circulava entre
os protestantes durante as eleições de 1950 em Jaguaquara, mas nem todos, principalmente os
católicos, viam com bons olhos essa inserção Batista no campo político. Divergências de opiniões
agitaram as eleições municipais, se transformando em uma disputa religiosa entre católicos e
protestantes.

O que os católicos receavam e temiam era que com o poder do Governo Municipal nas mãos
de um “Pastor Batista”, os protestantes teriam uma maior liberdade e mais privilégios na cidade e
que ocorreria o inverso com a Paróquia Mª Auxiliadora, onde a festa da Paróquia estaria ameaçada,
bem como outros atos sacramentais. Mas segundo Armando Rosa, ex-professor do Colégio Taylor
Egídio, toda a campanha udenista em 1950, contra o candidato do (PSD) foi difamatória,
“infundindo na cabeça do povo humilde que o candidato do PSD, por ser protestante, “tinha parte
com o demônio” e, se eleito fosse, iria jogar a imagem da padroeira, Nossa Senhora Auxiliadora,
‘ladeira abaixo’”. (ROSA, 2000: 112-113).

As agitações eram infladas por cartas, poesias, ABC que circulavam entre os
Jaguaquarenses, escritas por eleitores que visavam defender seu partido e sua denominação
religiosa. Uma dessas poesias que causaram alvoroço entre os eleitores foi a intitulada “Avante
Católicos” de Leonídio Pinheiro Fernandes, onde ele advertia “Eleitores, meus amigos, CUIDADO!
/ MUITA ATENÇÃO! Olhai a tirania... / Não ide dar o vosso voto honrado / A quem está contra a
VIRGEM MARIA” 3. Nos versos ficou claro um apelo para que os católicos não dessem o “voto
honrado” ao candidato do PSD, por este ser pastor e não reconhecer a legitimidade da santidade da
“Virgem Maria”. Essa é uma questão de divergência entre católicos e protestantes, para os católicos
Maria é a mãe de Deus, que através das orações intercede a Deus por eles, já para os protestantes

3
Cópias de cartas, panfletos, ABC e poesias pertencentes ao arquivo pessoal de Lígio Ribeiro Farias.

1561
Maria não é divina e assim acusam os católicos de praticarem mariolatria. A confirmação de que o
eleitor seria um católico fervoroso se daria através do voto para o Dr. Menandro Minahim.

Outro eleitor anônimo que militava pelo PSD, usou o pseudônimo “Musa da cidade” para
publicar outra poesia em forma de resposta às provocações do poema de Leonídio P. Fernandes, um
trecho deixou implícito a crítica que os protestantes faziam em relação aos católicos, como
demonstrado nos seguintes versos: “É dos tempos medievais / É coisa que está no olvido / No
século não cabe mais / Seja, pois, adiantado / Não verseje tanta asneira / Que seu estro é atrazado” 4.
A resposta em forma de poesia da (o) suposta (o) “Musa da cidade” foi escrita de forma rebuscada,
utilizando termos que demonstravam um nível elevado de erudição, para que pudesse desqualificar
o autor da poesia “Avante Católicos”. Dessa forma, a referida “Musa da cidade” defendia o
candidato do partido do PSD que tinha o apoio dos protestantes.

As trocas de insultos em forma de poesia continuaram durante toda campanha eleitoral de


1950. Ao encerrar a votação as urnas foram levadas para ser apurada na Comarca de Santa Inês,
cidade vizinha. Ao abrirem as urnas encontraram junto com as chapas retratos de Nossa Senhora,
orações, medalhas, conferindo a vitória das eleições para o candidato da UDN, ao Dr. Menandro
Minahim. “O Dr. Menandro Minahim foi eleito com uma diferença bastante expressiva, com mais
de 400 votos. Foi a vitória do catolicismo contra o protestantismo” (AMARAL, 2008. p.60). A
vitória do candidato do partido da UDN representou para os Católicos em Jaguaquara, não só uma
vitória política, mas o triunfo contra o Protestantismo.

Nas eleições de 1954 as disputas políticas e religiosas continuaram, assim como na eleição
anterior também circularam panfletos com versos e poesias acusando e defendendo os candidatos a
prefeito municipal, a partir de uma ótica religiosa. Os candidatos em 1954 foram Lourival Rosa de
Sena (UDN) e Achiles de Brito Cardoso (PSD), ambos eram católicos, porém o fato do Protomor de
Justiça Achiles Cardoso ser filiado ao PSD e o Pastor Carlos Dubois continuar sendo líder do
partido do PSD, podem ter influenciado os eleitores católicos a escolherem como seus
representantes o candidato Lourival Sena da UDN. Sendo assim, foi publicado um “ABC” por
Ernesto Santos que defendia o candidato da UDN, onde deixou explicito seu posicionamento
religioso “Iremos todos para as Urnas / Satisfeitos em todo instante / Livrar a linda Jaguaquara /
Das garras dos protestantes.” 5.

4
Idem.
5
Idem.

1562
Por sua vez o ABC de Ernesto obteve resposta através de uma “CARTA ABERTA A
ERNESTO SANTOS – Autor do A.B.C. CONTRA Dr. Achiles de Brito Cardoso” escrita por um
pessedista anônimo, em que criticava o envolvimento da religião com a política “Ó Ernesto, um
candidato / para ser bem sucedido / Deverá aceitar votos / De católicos e ateus... / De protestantes,
espíritas / De gregos e de troianos / Maometanos e judeus!” 6. Após encerrarem as eleições o
candidato da UDN Lourival Sena acabou sendo eleito, mas para surpresa de todos antes de tomar
posse na prefeitura ele rompeu com o Deputado Estadual eleito, Menandro Minahim e passou a ser
aliado do grupo opositor, o PSD. Isso causou novas discórdias entre os Jaguaquarenses, levando
Lourival a ser considerado por alguns como traidor.

Os diversos conflitos entre católicos e protestantes nas eleições de 1950 e 1954 geraram
muitos desentendimentos que ocasionaram o distanciamento entre alguns católicos da Igreja.
Possivelmente isso pode ter contribuído para que o bispo Dom Florêncio não se posicionasse contra
nem a favor dos candidatos a prefeito nas eleições de 1958. Os candidatos que concorreram às
eleições municipais de Jaguaquara em 1958 foram Leonídio Pinheiro Fernandes do Partido
Democrata Cristão (PDC) e Ágton Novaes Souto (PSD), ambos também seguiam o catolicismo.

Uma carta intitulada “PROCLAMAÇÃO” foi enviada por Pedro. A Souza que residia e
trabalhava em Jaguaquara, mas por desentendimento político foi transferido para outra cidade. O
autor da carta demonstrou apoio ao candidato do PDC e criticou a administração do antigo prefeito
do PSD que governou a cidade por 12 anos, mas segundo o mesmo, os Jaguaquarenses começaram
a reagir a partir das eleições de 1950 “E com a ajuda de nossa Virgem Padroeira, derrubamos o
bastilhento governo que nos envergonhava.” 7. Durante as eleições de 1958 os conflitos políticos e
religiosos entre católicos e batistas, não foram tão acirrados como nas eleições de 1950 e 1954.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das fontes analisadas constatamos que para os católicos votar no partido político
com aliados protestantes representaria uma revolta contra a Igreja Católica e o apoio a uma
denominação que tentava deslegitimar sua ortodoxia. Em contra partida, para os protestantes, eleger
um candidato católico era concordar com o atraso, a falta de progresso, além de ceder espaço nessa
disputa do campo religioso.

6
Idem.
7
Idem.

1563
O setor educacional foi utilizado como meio de evangelizar, de conseguir prosélitos ou até
mesmo de manutenção dos seguidores em suas respectivas doutrinas. O incentivo à educação,
motivado pela disputa do campo religioso, contribuiu para que a pequena cidade de Jaguaquara,
ainda em meados de 1950, ganhasse destaque na área educacional. A conclusão provisória a que
chegamos é que os conflitos religiosos que interferiram na eleição para prefeito municipal no ano de
1950, 1954 e 1958 em Jaguaquara, foram motivados, na verdade, pela disputa do campo religioso
Jaguaquarense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1565
A Carta Claves Regni Coelorum (1143) e a Bula Devotionem Tuam (1144). Reexaminando
algumas concepções políticas e religiosas no governo de D. Afonso Henriques de Portugal

The Letter Claves Regni Coelorum (1143) and the Bull Devotionem Tuam (1144). Reexamining
some political and religious conceptions during the government D. Afonso Henriques of Portugal.

Maria Fernanda R. T. M. dos Santos1

Resumo: A proposta apresentada busca refletir a respeito de distintas noções e conceitos que
permearam a linha de pensamento da Igreja católica medieval, inseridos em sua política e
instrumentação ideológica. A noção de "Miles Sancti Petri", o conceito de "Claves Regni Coelorum",
assim como o de "Dei gratia" estão presentes na comunicação de D. Afonso Henriques (1109-1185),
com o papado. Desta maneira, pretende-se abordar a carta intitulada "Claves Regni Coelorum"
(1143), emitida por D. Afonso ao Papa Lúcio II, onde é associado ao governante a fórmula "por graça
de Deus Rei de Portugal", título régio que ainda não lhe era reconhecido, assim como o de "Miles
Sancti Petri" ou Cavaleiro de São Pedro. Considera-se a subsequente resposta pontifícia na Bula
"Devotionem Tuam" (1144), tanto em relação as ofertas e compromissos, quanto aos títulos atribuídos
ao governante de Portugal.

Palavras-Chave: D. Afonso Henriques; Portugal Medieval; Título régio.

Abstract: The proposal presented seeks to show on different notions and concepts that permeated the
line of thought of the medieval Catholic Church, inserted in its ideological policy and instrumentation.
The notion "Miles Sancti Petri", the concept of "Claves Regni Coelorum", as well as that of "Dei
gratia" are present in communication between D. Afonso Henriques (1109-1185), with the papacy.
In this way, the letter entitled "Claves Regni Coelorum" (1143), issued by King Afonso to Pope Lucio
II, where it associated with the ruler is index the grace of God King of Portugal", a royal title was
not yet recognized, as was Miles Sancti Petri or Knight of St. Peter. It considered the pontifical
response in the Bull "Devotionem Tuam" (1144), both regarding the offers and commitments, as well
as the titles attributed to the ruler of Portugal.

Keywords: D. Afonso Henriques; Medieval Portugal; Royal title.

A presente proposta busca refletir a respeito de alguns conceitos e noções que permearam a
linha de pensamento da Igreja católica medieval, inseridos deste modo em sua política e
instrumentação ideológica. A noção de "Miles Sancti Petri", o conceito de "Claves Regni Coelorum",
assim como o de "Dei gratia" são observados nos documentos chancelares de D. Afonso Henriques
ou Afonso I (1109-1185), inaugural monarca português. Desta maneira, abordaremos a carta
intitulada "Claves Regni Coelorum" de 1143, emitida por D. Afonso ao Papa Lúcio II, onde é
associado ao governante o título régio que ainda não lhe era reconhecido naquele momento, assim
como o de "Miles Sancti Petri" ou Cavaleiro de São Pedro. Concomitantemente, considera-se a
subsequente resposta pontifícia aos termos da carta anterior, presente na Bula "Devotionem Tuam"

1 Mestranda do PPGH- Programa de Pós-Graduação em História da UERJ, bolsista Capes-CNPQ.

1566
de 1144, tanto em relação as ofertas e compromissos oferecidos quanto ao título atribuído ao
governante de Portugal.
D. Afonso Henriques (1109-1185) foi filho de D. Teresa de Leão, ilegítima filha do Imperador
Afonso VI de Castela e Leão, e de D. Henrique, pertencente a família ducal da Borgonha. Casou-se
com D. Mafalda de Sabóia em 1146, dando início a linhagem dos futuros reis de Portugal. Governou
o condado português de 1128, após tomá-lo de sua mãe, até 1179, quando recebeu o reconhecimento
pontifício como rei e da independência do território. Conhecido por suas vitórias militares contra os
mouros na guerra de Reconquista, por unificar o território que viria a ser Portugal e torná-lo
independente do reino leones, seu retrato é muitas vezes controverso, oscilando entre Afonso, o
fundador, que recebeu ajuda diretamente de Deus durante a Batalha de Ourique, e Afonso Henriques,
rebelde contra a hierarquia a qual articulava-se, de humor irascível, violento, que fazia acordos com
aliados e inimigos e que costumeiramente não cumpria.
Afonso Henriques governou o território por 51 anos (1128-1179) sem o reconhecimento
jurídico perante a Igreja e o papado, e sem ritual de consagração e unção régias. No entanto, conforme
historiografia tradicional (Herculano e Mattoso1), D. Afonso passou a intitular-se “Rei pela Graça de
Deus” a primeira vez na Carta de confirmação e couto ao presbítero D. Nuno Gonçalves da Ermida
de Stª. Marinha de Panóias2 (1140), não voltando a utilizar títulos como princeps e infante. Conforme
Maria João P. Guerreiro, a fórmula Ego Alfonsus Portugalensium rex", referenciando o território, é a
mais utilizada, e "Ego egregius rex Alphonsus "Dei vero providentia totius provincie Portugalensium
princeps" a mais completa3. Todavia, na tabela em anexo da obra de Mª. João Guerreiro, observa-se
uma doação ao Mosteiro de S. Martinho de Castanheira, com data aproximada de 1129-1135 no qual
consta a fórmula "Ego domnus Alfonsus rex portugalensium" no protocolo e escopo4, e uma doação
a favor de Santa Cruz de Coimbra de fevereiro de 1141 no qual consta "princeps"5. Apenas em 1179,
Afonso Henriques recebe o reconhecimento do título régio pelo Papa Alexandre III através da Bula
Manifestus Probatum.
O conceito medieval da “Graça” dentro do campo político, conforme Walter Ullmann6,
aplicava-se a governos teocráticos, com múltiplas expressões latinas, mas que indica que o rei só era
rex por outorgamento divino, assim como denotava que isso o diferenciava como favorecido por Deus
e com capacidade para governar. Logo, destaca-se a relevância, já abordada na historiografia em
variados desdobramentos, ao ungimento real, que até o século XII figurava entre os sacramentos e
era o ato que conferia a “graça”. Tal conceito soma-se aos argumentos papais para fundamentar o
princípio de mediação, considerando-se no entanto que a sagração poderia ser realizada por um
sacerdote com sciencia, ou seja, qualificado, possuidor do saber dogmático e sacralizado com a

1567
potestas regendi pelo Papa, podendo ser o bispo, mas que tornava o ungido ou coroado o receptáculo
da graça divina, tratando-se esse do rei, imperador ou prelado.
Segundo Marc Bloch, ao investigar o caráter sacro e miraculoso da realeza medieval francesa
e inglesa, corrobora que o cerimonial hebraico do antigo testamento, no qual acredita-se que propagou
a unção régia a partir do século VII, não se limitava exclusivamente aos reis, configurando um
processo que transfere um caráter sagrado a algo ou alguém que pertencia ao terreno. Para o autor,
era consenso que a santidade real só existia a partir da unção, ritual que estabelecia a ligação do
governante com o divino. Compreende-se que o rei é apenas um instrumento e intermediário de Deus,
mas os milagres7 que supostamente os monarcas realizavam eram feitos por Deus. Deste modo, a
unção era a solenidade régia plena, conferindo ao rei ou imperador a justificativa biblico-jurídica
cristã e o caráter de sagrado originalmente atribuídos aos reis da antiguidade8.
De acordo com Bloch, a 'unção-sacramento", justificada por teólogos de importância como S.
Agostinho, o Anônimo de York, S. Bernardo, entre outros, marcava a entrada dos reis em uma vida
mística, uma transformação espiritual, atribuindo a sagração régia poderes similares aos de
purificação dos pecados que possuía o batismo, e tornava o homem um christianus9. Logo, o rei que
possuía poderes taumaturgos reafirmava e legitimava seu direito régio, distinguindo-o dos reis
comuns ou mesmo de barões, este traço vindo a ser um fator de prestígio particular dos reis franceses
e ingleses.

Conforme Ullmann, um dos problemas da realeza na Idade Média era a origem do seu poder,
e a expressão Rex Dei Gratia, expressava a concepção descendente de poder pelo rei10. A função do
rei, ao depender da graça divina, adquiria um caráter sagrado pois ligava-se estreitamente com Deus,
e distanciava-se do povo que anteriormente o haviam eleito. Logo, dentro das premissas eclesiásticas
com fundamentos paulinos, o que se é não o devemos a nossas conquistas ou méritos pessoais, mas
pela ‘graça de Deus’, o conferimento do ofício real era um benefício, uma gratia, o que
impossibilitava o rei de exigir sua aquisição como um direito, sendo um favor divino o apanágio de
ocupar o trono.
A implícita ideia de concessão da ‘graça cristã’ relaciona-se com a de ‘graça real’ como um
benefício e com a perspectiva de que o direito e o poder se ramificavam deste. Os súditos do rei não
podia exigir juridicamente direitos, eram detentores de privilégios, doações, ocupavam ofícios mas
conforme a graça real (gratia regis), e assim como o monarca, sendo seu ofício uma prerrogativa da
graça superior (divina ou real), o mesmo poderia perder tal direito quando em des-gratia.

A Carta “Claves Regni Coelorum” foi emitida por D. Afonso Henriques ao Papa Lúcio II
em 1143. Conforme a tradição, seu original foi escrito em latim, possuindo uma lauda e três traduções

1568
diferentes, no qual optou-se pela versão contida na Monumenta Henricina11. D. Afonso Henriques
acorda o pagamento de tributo12, constituindo o território como ‘censual’ à Igreja de Roma e ao Papa
Lúcio II, referente ao que o mesmo denomina como sua terra, na presença do Cardeal D. Guido e
demais testemunhas13.

O título da carta de D. Afonso aparenta ser o reconhecimento do governante português de que


o Papa possui o poder das chaves celestes, dado diretamente por Cristo e, consequentemente, aquele
que tem a verdadeira autoridade e jurisdição de lhe reconhecer o título régio. No entanto, designando-
se antecipadamente perante o pontífice “por graça de Deus Rei de Portugal”, o mesmo presta
homenagem ao sucessor petrino, afirmando-se como um Miles Sancti Petri, e tomando o Papa como
“padroeiro e advogado” perante as dificuldades cotidianas e, almejando através dos conselhos
pontifícios alcançar os “méritos da bem-aventurança”. D. Afonso, se nomeia como “verdadeiro
soldado de S. Pedro e do Pontífice Romano”, e solicita a “defesa e auxílio da Sé apostólica” para que
este não seja obrigado a admitir em suas terras outro poder e senhorio, seja eclesiástico ou secular,
que não o da Santa Sé e seus legados.
No intuito de elucidar a respeito do conceito de Miles Sancti Petri, sendo este pautado por
reinvenções e encontrado no Regesto de Gregório VII, especificamente em dois juramentos
vassalicos, buscou-se de forma breve averiguar etimologicamente a possível transmutação de seu
significado, de proeminente importância na compreensão da política de Afonso I com o papado e sua
busca por tornar-se reconhecidamente rei pelo mesmo.
Desde a Antiguidade clássica, principalmente em Roma, as palavras Miles (Milites no plural),
Militia, Militare, tinham o significado genérico de soldado. Os povos germânicos desenvolveram
valores guerreiros que permaneceram após sua cristianização, influenciando significativamente a
sociedade medieval. Desta forma, observa-se intercâmbios no vocabulário entre valores cristãos e
valores guerreiros: Miles, Militia, foram gradualmente associados ao nome de Cristo para qualificar
o novo '‘exército” dos monges (milites Dei ou soldados de Deus). A contar do período Carolíngio, a
cavalaria passou a ocupar um lugar de destaque no exército secular. O Miles tornou-se o combatente
a cavalo por excelência, tendo porém, a partir do século XII, a tradução francesa do termo para
chevalier, adquirindo uma valorização ideológica e social, tornando-se referência não mais a uma
soma de guerreiros a cavalo, mas a elite valorosa, cujos feitos eram celebrados14. Anteriormente ao
século XII, Miles significava frequentemente vassalo. De acordo com Jean Flori, a partir do século
XII a nobreza passou a controlar e comandar a cavalaria e esta apareceu como expressão militar da
ideologia da nobreza, que a considera terreno particular.
Logo, cavaleiro tornou-se título nobiliário, e foram utilizados por seus senhores ou patronos
para intimidar os camponeses, extorquindo mais tributos e que, segundo os clérigos, introduziram a

1569
“desordem na casa de Deus”. Assim, a Igreja buscou proteger-se da “fúria devastadora e saqueadora
dos senhores da guerra”, que seriam os potentados locais e castelões15 à frente de seus cavaleiros16.
Desta forma, a Igreja passou a confiar a defesa de seus bens, estabelecimentos e pessoas a outros
castelões e seus milites ou a outros guerreiros recrutados com essa finalidade, cumprindo missão
protetora que anteriormente era reservada aos reis e príncipes. Concomitantemente e de formas
diversas, a Igreja, e principalmente os bispos, atribuíram a esses cavaleiros e, posteriormente a toda
Cavalaria, um ideal inspirador: proteção das igrejas, dos fracos e dos desarmados no interior da
cristandade, denominada “a paz de Deus”, e a luta contra os inimigos no exterior.
Ressalta-se que, para Flori, ao se falar de cavalaria, fala-se de ideologia ou mesmo mitologia,
de forma que a palavra, até nossos dias, ficou relacionada a conotações honoríficas, éticas e
idealísticas. A literatura, apoderou-se da cavalaria desde seu início, transfigurando-a gradualmente
através de heróis emblemáticos17 , como o próprio Afonso Henriques. Logo, a fórmula Miles Sancti
Petri, comumente traduzida como Cavaleiro de São Pedro, pode ser compreendida como Vassalo de
São Pedro, o que aparentemente corresponde as intenções da Igreja de obter protetores guerreiros,
mas não a obriga necessariamente a proteger os mesmos, como solicita Afonso Henriques na Claves
Regni.
Todavia, diferentemente do Juramentus Regis proposto pelo Papa Gregório VII, onde se
encontra o termo Miles Sancti Petri, na carta Claves Regni, D. Afonso Henriques se refere ao pontífice
como “meu pai, o Papa” onde, apesar de o pontífice tratar os príncipes por “fílhos”, aparentemente é
Afonso Henriques que busca estabelecer proximidade, um laço de maior afetividade do que poderia
ligá-lo a um suserano secular, como seria o caso com o imperador Afonso VII, tendo com este,
consanguinidade. Logo, seria esta afetividade ou aproximação, entendida por Afonso Henriques, que
lhe conferiria o direito, como Miles Sancti Petri, de ser reconhecido como rex, de facto18 .
Outra diferença da Claves Regni para o juramento formulado por Gregório VII, é a vontade
expressa por Afonso Henriques de não receber em seu território, qualquer outra autoridade que não
da Santa Sé e, desta forma, minimizar o domínio de seu suserano, o imperador leonês, com o qual
Afonso Henriques, de acordo com Ana Dias e Maria Fernandes, requeria igualdade em dignidade.
Outra divergência significativa remete a linguagem forte e direta, demonstrando autoconfiança, e
distante da fórmula submissa que Gregório VII concebeu como aceitável, devido a conjuntura política
de arrogância e oposição de príncipes no qual o pontífice se inseria.
Deste modo, pode-se afirmar que D. Afonso Henriques recebeu influência de seus prelados
principais, destacando-se D. João Peculiar, das doutrinas de Gregório VII e, apoiado na Sé de Braga,
reconheceu o ‘poder petrino das chaves’, postou-se vassalo do bispo de Roma através do recurso ao

1570
conceito de Miles Sancti Petri, oferecendo a sua força bélica a Igreja para justificar a posse de novas
terras, “em honra de S. Pedro”, já garantidas anteriormente na “Carta aos Príncipes da Hispânia”,
concordando em pagar tributo pelo território a Santa Sé o que, se não enfraquecia politicamente, ao
menos esvaziava de sentido o reconhecimento anterior do imperador Afonso VII no Tratado de
Zamora (4 e 5 de Outubro de 1143) e a sujeição vassálica que Afonso Henriques devia a este.

Ressalta-se que, de acordo com Ullmann, o Papa possuía a prerrogativa de dissolver os


juramentos de fidelidade prestados aos senhores e isolá-los de seus vassalos, logo, indaga-se o
benefício que esta ação, refletida na vontade de D. Afonso Henriques de não receber outra autoridade
que não a eclesiástica, caso fosse sancionada, traria para a sua afirmação como rei do território
português desvinculado de Leão e como vassalo apenas da Santa Sé e não mais do imperador.

Em resposta, em maio de 1144 o Papa Lúcio II emitiu a Bula “Devotionen tuam” a D.


Afonso Henriques. O documento contém uma página e o original foi escrito em latim19. O Pontífice
inicia a carta com agradecimentos pela devoção de Afonso Henriques, denominando-o seguidamente
de “ilustre duque”, e salientando que por este estar a serviço de Deus contra os pagãos e ocupado com
muitos negócios, o mesmo não pôde ir a sua presença (conforme enunciava os pressupostos
gregorianos), confirmando porém que D. Afonso Henriques havia, através da figura do cardeal Guido
prestado tais homenagens a seu antecessor, Papa Inocêncio III, e que, por meio de várias outras cartas
do duque e de D. João Peculiar, no qual D. Afonso Henriques dedica sua terra e sua pessoa a proteção
de Pedro. Logo, relembrando as promessas de Afonso Henriques aos papas anteriores, Lucio II aceita
o pagamento anual de quatro onças de ouro, pelo mesmo e seus herdeiros, recebendo-os entre os
“herdeiros do príncipe dos apóstolos” para, com o auxílio do apóstolo Pedro, permaneçam sobre sua
benção e proteção, tanto das almas quanto dos corpos, para que, defendidos contra inimigos invisíveis
e visíveis, alcancem o reino celeste.
Este documento inicialmente é a única resposta papal às investidas de reconhecimento do
título de rei por D. Afonso Henriques conhecida, e a afirmação de que o duque português tentou tal
diálogo além da Carta Claves Regni. Concomitantemente, destaca-se a saudação do Papa, ressaltando
que para o mesmo, D. Afonso Henriques é um dux, logo, sua terra o ducado portucalense e não um
rei, como este havia afirmado na carta anterior ao mesmo pontífice e que o pagamento de tributo e
vassalagem são aceitos, porém, não faz referência a afirmação de Afonso Henriques de não mais ser
obrigado a aceitar outro poder, ou da honra deste como Miles Sancti Petri.
Deste modo, localiza-se o uso e inicial concepção do termo dux e rex (Ku-ni-ng) na Península
Ibérica, na obra “Germânia” do historiador romano Públio Cornélio Tácito, no qual este realiza um
estudo etnográfico, conforme o caráter greco-romano, abordando a sociedade, ocupação do território,
os aspectos antropológicos e religiosos dos povos germanos, assim como referência um ritual de

1571
eleição, no qual o rei é alçado sobre o escudo de batalha por seus guerreiros, posteriormente utilizado
na construção quinhentista da narrativa cronística sobre Afonso Henriques.
Conforme Tácito20, no centro do entendido por esfera pública germânica, ao qual o mesmo
denomina "assembleia", localiza-se um rei21 , “reges ex nobilitas”, escolhidos pela nobreza e os
“duces ex virtute sumunt”, os duques pela virtude. Todavia, as concepções modernas de rei e duque
devem ser relativizadas pois foram construídas durante a Idade Média. No entanto, o significado
(verbal) de Regere, que origina rex, denota “reger, governar, definir limites”; enquanto ducere, dux,
seria “comandar, marchar a frente”.
Os reis são eleitos conforme a sua nobreza, mas os capitães, escolhidos segundo a
sua capacidade. O poder dos reis, entretanto, não é ilimitado ou absoluto e os chefes
comandam mais pelo exemplo dos seus atos e pelo atrevimento das suas ações do
que pela força da sua autoridade. Se se mostram ousados e destemidos e conseguem
arrebatar a vitória, governam sob admiração dos povos.22
Tais funções definidas pelo historiador romano, não significam a convivência paralela de dois
reis, um com caráter religioso e outro militar, mas que eram diferentes e escolhidos por critérios
distintos. Os Reges eram de origem nobre (ex nobilitas) e governavam o povo, possuindo elo com os
deuses, a obrigação de prezar pelo cumprimento das leis e conduzir o culto religioso. Enquanto os
duces eram escolhidos por sua capacidade (ex virtude) em comandar o povo na guerra, não
constituindo uma instituição fixa na sociedade, pois sua existência condiciona-se à questões bélicas.
Sendo que tal cargo poderia ser exercido por alguém de linhagem nobre ou um rex (possuindo este a
nobreza hereditária e a virtude guerreira). Tal líder hábil em comando, passa a possuir amplos poderes
em contexto de guerra, sendo elevados por sua própria fortuna.
Supõe-se que o papa, utilizou o termo dux na Devotionen Tuam em perspectiva aproximada
do dux germano de Tácito, na medida em que Afonso Henriques possuía utilidade militar por suas
proezas guerreiras em situação de guerra, no caso a Reconquista. No entanto, o rex de Tácito ex
nobilitas, se relaciona com a consanguinidade nobre e, como dito, o pai de Afonso Henriques era um
conde, donatário do condado portucalense por matrimônio. Logo, em muitos documentos da
chancelaria do primeiro rei, seu título régio é vinculado a memória e exaltação virtuosa de seu avô
Afonso VI, em uma maneira de legitimar o direito régio de linhagem, considerando além de D.
Henrique, sua mãe ser filha ilegítima, todavia reconhecida do imperador leones.
Deste modo e conforme os postulados pontifícios, a função útil do príncipe, portador do
gladium, com base ideológica nos escritos paulinos, era combater o mal, sendo este mal no mundo
designado pelo pontífice, que possuía sciencia, conhecimento para determinar o que era o mal e o
pecado. Logo, dentro do ponto de vista dos princípios papais, o rei não era autônomo em assuntos
que afetavam a estrutura da Igreja, tendo em vista a concepção de poder descendente, e este almejando
ser um príncipe católico, deveria respeitar os ditames do papa, sobre pena de incorrer em excomunhão

1572
ou deposição. Assim sendo, o rei que se sujeitava ao papa, aumentava sua honra e liberdades, o
príncipe secular era, deste modo, concebido como um órgão instituído pela divindade para auxiliar o
papa em sua função de governante do corpo cristão.
Todavia, considerando tal incumbência do rei e a propaganda cristã contra os mouros, estes
como a representação do mal, verdadeiros inimigos da cristandade e da fé cristã, tanto na Terra Santa
quanto na Península Ibérica, D. Afonso Henriques, apesar de conhecido como o intrépido guerreiro,
combatente de mouros, e autointitulado como miles sancti petri, estabeleceu pactos de tréguas e
acordo com o califa Ibn Wazir, que dominou Lisboa e Santarém, Ibn Qasi, senhor da região de Silves
e 'Ali al-Wahibi, senhor de Tavira. O “Chronicon Lusitano” e os “Anais do Rei Afonso” aludem que,
a partir de 1144, Lisboa e Santarém passaram a pagar “párias” ou tributo a Afonso Henriques. Em
contrapartida, evitava sua invasão pelas tropas portuguesas. Conforme Mattoso23, o conflito entre
mouros e cristão comumente é concebido como uma guerra permanente e total, concepção
propagandeada por textos ideológicos de ambos os lados. No entanto, encontram-se referências a
acordos de colaboração, tréguas nos conflitos em determinado momento e pagamento de tributos,
entre ambas as partes, não sendo eventualmente cumpridos. por D. Afonso Henriques, que, conforme
o historiador, possuía um acordo de trégua com Santarém, e que o rompeu dias antes de a invadir e
conquistar em 1147.
Observamos desta maneira que, eventualmente cumprindo a função de combater os inimigos
da Igreja, D. Afonso Henriques o fazia com o reconhecimento do papado como um comandante
militar, um dux, partindo do desígnio de Lucio II, os três papas que o precederam24 partilhavam da
mesma concepção na medida em que não houve reconhecimento de Afonso por estes, e considerando
o princípio de que os pontífices não estavam vinculados as decisões de seus antecessores, pois
herdavam o trono diretamente de Pedro, provavelmente devido ao fato do dux exercer a função de
combater os mouros, por interesse particular de expandir seu território sobre as fronteiras inimigas
de forma legítima, conforme assegurava a já mencionada Carta de Gregório VII, mesmo sem o
reconhecimento do título rex.

De acordo com Pâmela Michelette e referenciando a obra de Walter Ullmann, ao assumirem-


se governantes pela graça divina, os imperadores e reis abdicaram da pretensão de serem divindades
na terra e atribuíram seu poder e legitimidade a Deus. Tal fato alterou as práticas eletivas da realeza
visigoda, no qual, inicialmente o rei era eleito por voto. A eleição real perdeu o significado original
após a concepção descendente de governo, regalando o propósito de eleger um indivíduo apto ao
cargo. Deste modo, conforme a autora, a eleição não lhe tornava rei ou dava poderes, mas a unção e
coroação passaram a conferir a legitimidade e poder divino do monarca.25

1573
Considerando alguns apontamentos de Quentin Skinner26, para explicarmos as ações dos
agentes históricos, é necessário considerar seu vocabulário normativo, pois se configura como um
dos fatores determinantes das ações humanas, inclusive na análise de seu comportamento político e
limitações. Conforme o autor, uma teoria política secular dissociada dos valores da ética e moral
cristãs, só ocorreria no final do século XV. Deste modo, acredita-se que no caso de Afonso I, uma
justificativa ritualística, de origem germânica e pagã, não sustenta a arrojada ação de intitular-se “Rei
pela Graça de Deus”, mesmo com o reconhecimento cortês de seu suserano, pois sendo este coroado
imperador pela Igreja, o título de Afonso Henriques não lhe atribuía direitos acima do imperador
leonês, prevalecendo sua supremacia em relação ao dux português, não encontrando validade em um
reconhecimento imperial a um título sem consentimento eclesiástico.
Intentou-se de forma breve refletir sobre algumas concepções que se relacionam com a
construção da autoridade e legitimidade de D. Afonso Henriques, partindo do pressuposto weberiano
no qual a dominação carismática está centrada na crença da santidade, do heroísmo ou paradigmal de
determinada personalidade e nos princípios ou regras por ela criadas ou reveladas por meio da
devoção. Isto fundamenta o poderio da Igreja Medieval, e sua autoridade, conforme Ullmann,
baseando-se concomitantemente na fundamentação jurídica de suas normas, decretos, leis e
concepções através da Bíblia, ou a “dominação burocrática,” conforme Weber. Neste sentido, a
autoridade suprema para o reconhecimento ao título régio de Afonso Henriques pertencia a Igreja e
ao Sumo Pontífice. Sobre a autoridade legitima, Weber diz que a mesma pode provir de atitudes
religiosas, guiadas pela crença de que a salvação depende da obediência a autoridade. A
correspondência do Duque português com o Papa Lúcio II enquadra-se nesse pressuposto, onde
Afonso reconhece que sua salvação depende do Papa. Deste modo torna-se válido problematizar
algumas perspectivas políticas da Igreja e do Papa como autoridade suprema do corpo cristão e D.
Afonso Henriques, antes de tudo um cristianus, membro de uma sociedade que procurava estruturar-
se hierarquicamente conforme suas concepções e normas, onde cada indivíduo possuía um lugar e
cada cargo uma missão determinada por Deus através de seu mediador supremo.

Referências Bibliográficas:

1. MATTOSO, José. D. Afonso Henriques. Lisboa. Ed. Círculo de leitores e Centro de estudos
dos povos e culturas de expressão portuguesa. 2014. p. 120-260

1574
2. AZEVEDO, Rui P. de. (Org.) Documentos Medievais Portugueses, Documentos Régios,
Documentos dos Condes Portucalenses e de D. Afonso Henriques (Volume I, Tomo I e II).
Lisboa. Ed. Academia Portuguesa de História.1958.
3. GUERREIRO, Mª. João P. Santos. Por Graça de Deus, Rei dos Portugueses. As Intitulações
Régias de D. Afonso Henriques e D. Sancho I. Dissertação de Mestrado para obtenção do grau
de mestre em História. Lisboa: UAB-Universidade Aberta Pública Digital, 2010. Disponível
em: https://repositorioaberto.uab.pt/ bitstream/10400.2/1584/1/MJGuerreiro.pdf
4. 17 de setembro de 1129-1135- Doação ao mosteiro de S.Martinho da Castanheira. In:
GUERREIRO, op. cit, p. 155. Conforme autora documento em: AZEVEDO, Rui .
Documentos medievais Portugueses – Documentos régios, vol. I, Lisboa, 1958 (DMP, 103,
p.126)
5. 1141, Fevereiro. Doação a favor de Santa Cruz de Coimbra. Consta no protocolo "Ego
Alfonsus princeps Portugalensis patrie.” Faz referência aos progenitores e ao avô imperador
leonês e finaliza com o titulo "Ego prefatus AlfonsusPortugalensis patrie princeps" In:
GUERREIRO, op. cit. p . 164.
6. ULLMANN. Walter. Principios de Gobierno y Politica em la Edad Media. Trad. (espanhol) Graciela Soriano. Madrid. Ed. Resta de
Occidente. 1971. (Acervo do Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
p. 62
7. O poder milagroso dos reis inicialmente era entendido como resultado da predestinação
familiar. A partir da época carolíngia, esta virtude sagrada passou a ser atribuída à unção.
Logo, conforme Bloch , entende-se, uma espécie de complementariedade entre estas duas
concepções, na medida em que para o homem medieval, o mundo temporal e o espiritual se
correlacionam constantemente em complementariedade. BLOCH, Marc. Os Reis
Taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Cia.
Das Letras, 1993. p. 130-132
8. Ibidem. p. 151-153
9. Ibidem. p. 154
10. Durante o Século V, os imperadores bizantinos, passaram a utilizar imperator Dei gratia em
substituição ao divus imperator, simbolizando deste modo que não eram em si mais divinos,
e seu poder não provinha mais do populus e sim de Deus. No entanto, a fórmula Dei Gratia
era utilizada um século antes dos imperadores pelos bispos. Desde o século VIII tal fórmula
tornou-se usual no Ocidente a partir de Carlo Magno. ULLMANN. op. cit. p. 121
11. DIAS, Ana P.; FERNANDES, Maria. “Em torno da CLAVES REGNI – Do texto à
simbólica”. Disponível em:

1575
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/8971/1/Em%20torno%20da%20Claves%20Regni.%
20Do%20texto%20%C3%A0%20simb%C3%B3lica.pdf (Consultado em 29/10/2016).
12. O que equivaleria a um “tributo anual de quatro onças de oiro.”
13. Confirmações de D. João Peculiar, Arcebispo de Braga de 1139 a 1175, D. Bernardo, Bispo
de Coimbra entre 1128 e 1147, D. Pedro Rabaldes, Bispo do Porto de 1138 a 1145.
14. DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo: Templários, Teutônicos, Hospitalários e
outras ordens militares da Idade Média. (Sécs. XI-XVI) Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro-Ed. Jorge Zahar, 2002. p. 18
15. Conforme Demurger, os senhores proprietários de terras e possuidores da vassalagem, tinham
o poder de comandar, obrigar e punir, poder este que pertencia anteriormente aos reis e
príncipes enfraquecidos. Os castelões, senhores dos castelos, se multiplicaram próximo ao
ano mil e se apropriaram, segundo o autor, da vassalagem, tornando o poder fragmentado
porém eficaz. DEMURGER, Ibidem, p. 17-18
16. FLORI, Jean. “Cavalaria”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J. (org.) Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Vol. 1. Tradução de Hilário Franco Júnior., São Paulo: Edusc, 2006 p.
185
17. Ibidem, p. 186
18. DIAS, Ana P.; FERNANDES, Maria. op. cit. p. 11-13

19. AMARAL, Diogo Freitas. “Em que momento se tornou Portugal um País Independente”. 2º Congresso
Histórico de Guimarães: A política portuguesa e as suas relações com o exterior. Guimarães. Município

de Guimarães, 1996. Vol. 2, 139-181. Disponível no web site do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta.

(http://www.amap.pt/page/224#i2.Consultado em 21/10/2016).

20. Públio Cornélio Tácito foi historiador, procônsul, e orador romano, viveu entre 55 d.C a 120 d.C. Escreveu
dentre outras, a obra Germania (De origene et situ Germanorum) em 98 d.C. como estudo etnográfico,

conforme o caráter greco-romanos, no qual aborda a sociedade, ocupação do território, os aspectos

antropológicos e religiosos dos povos germanos.

21. No entanto, após o ano 50 a. C. as sociedades tribais do Reno parecem ter abandonado a monarquia, na
chamada 'Revolução celto-germânica Ocidental’' e os Þeudana* permaneceram apenas nas tribos da

Escandinávia e entre os germanos do leste. FABBRO, Eduardo. A Golpes de Machado. As origens da

monarquia Franca. Brasília. UNB, 2006. Dissertação de mestrado para obtenção do grau mestre em

1576
História. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/2218/ 1/2006_Eduardo%20Fabbro.pdf

(consultado em 16/04/2017) p. 22-24

22. Tácito. Germânia (Trad. e notas de Sadi Garibaldi). Rio de Janeiro: Editora Livraria Para Todos, 1943.
Disponível online em: http://www.ricardocosta.com/traducoes/ textos/germania-98-d-c (consultada em

22/05/2017). Nesta tradução, encontra-se o termo dux substituído por comandante.

23. MATTOSO, José. op. cit. pg. 205-206

24. Eugenio III 1145-1153/ Anastácio IV1153-1154/ Adriano IV 1154-1159. Considerando que Alexandre III
iniciou seu pontificado em 1159, ainda demorou 20 anos para emitir a Manifestis Probatum.

25. MICHELETTE. Pamela Torres. “Isidoro de Sevilha e a construção de um conceito de monarquia teocrática
no reino visigodo”. Revista Crítica Histórica, Ano IV, nº. 7, julho/2013. Disponível em:

http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/

attachments/article/158/ISIDORO%20DE%20SEVILHA%20E%20A%20CONSTRU%C3%87%C3%83

O%20DE%20UM%20CONCEITO%20DE%20MONARQUIA%20TEOCR%C3%81TICA.pdf. p. 44

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo.Cia.

1577
Comunicação interétnica e cultura material na Obra Nova da Língua Geral de Mina (Ouro
Preto, 1741)

Maria Elisa Scovino da Silva. 1

Introdução: Em primeiro lugar gostaria de agradecer a Comissão Organizadora da Semana de


História Política da UERJ por receber esse trabalho, a Fundação Casa de Rui Barbosa por
disponibilizar todos os meios materiais e imateriais para essa pesquisa, a minha orientadora e
pesquisadora da FCRB Ivana Stolze Lima por todo apoio e conhecimento, e finalmente ao CNPq
que financiou esse projeto. Este estudo tem como objetivo compreender os usos, circulação e
atuações relacionadas às práticas linguísticas no espaço colonial, e suas conexões com as formas de
vida, cultura e sociabilidades dos negros africanos com as diferentes categorias étnicas existentes no
contexto dos setecentos. Estando inserido no projeto mais geral que visa entender essas relações na
América Portuguesa, as formas de intervenções nas línguas e o registro das diferentes formas
linguísticas que se manifestavam e tinham seu papel na história social, esse recorte espaço-temporal
está intimamente ligado a essa linha de pesquisa.2Buscando a interpretação de um documento sobre
uma língua geral que circulava na região das Minas, se pretende conhecer as esferas de uso dessa
língua, compreender essa tradução para o português como produção de seu tempo e autoria,
interesses e informações que carrega, e enfim captar parte da cultura e de como viviam esses
falantes, percebendo os falares como veículo de comunicação, troca e resistência.

O tema da comunicação pressupõe o estudo dos registros das línguas africanas elaborados
no período colonial, estando o documento principal de análise dessa pesquisa, dentro do conjunto
dessa produção. Alguns Apontamentos da Língua Mina com as Palavras Portuguesas
Correspondentes por Antônio da Costa Peixoto em 1731, foi um exemplar manuscrito de 14 folhas
que se encontra atualmente na Biblioteca Nacional de Lisboa e antecede a Obra Nova de Língoa
Geral de Mina, Traduzida ao Nosso Igdioma(sic), escrita em 1741 na freguesia de São Bartolomeu,
de mesma autoria, constando na Biblioteca Pública de Évora. Existe ainda a edição impressa de

1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mariaelisasds@gmail.com.
2
Está inserido no projeto de pesquisa “História social das línguas africanas no Brasil: a língua de Angola e a Língua
Mina”, promovida pela historiadora, doutora em História Social e Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa
Ivana Stolze Lima.

1578
1945 elaborada por Luís Silveira e publicada pela Agência Geral das Colônias. Esse conjunto
documental consiste no vocabulário da chamada Língua Geral de Mina, tratando das línguas faladas
por grupos étnicos classificados como ‘mina’ trazidos para as Américas através do Tráfico e
redirecionados para a região mineira no processo que ocorria de interiorização no Continente.
Foi no século XVIII que o tráfico transatlântico de escravos da região da Costa da Mina foi
intensificado, trazendo grandes contingentes de negros do grupo linguístico gbe, constituindo o
conjunto das línguas ewe, fon, aja, entre outras, para as Américas. A categoria mina seria uma
denominação mais ligada ao tráfico do que a procedência africana, e seria o resultado de uma
reorganização de etnias próximas geograficamente, dando origem a essa unidade, que não deixa de
manifestar uma proximidade linguística e cultural. As pesquisas identificam a região da Costa da
Mina como parte do golfo do Benin entre o rio Volta e Cotonu, abrangendo Gana, Togo, República
Popular do Benin e parte da Nigéria, se situando próximo ao Castelo de S. Jorge da Mina, antiga
fortaleza portuguesa na Costa da Mina, referência que oferece essa denominação mais geral da
região. No final do século XVII, para o XVIII, os portugueses começaram a enfrentar a
concorrência de navegadores europeus e americanos no tráfico negreiro, mesmo período que as
regiões dos reinos de Ardra e Ajudá, principais fornecedores de negros jeje (daomeanos) e nagôs
(iorubas), foram anexadas pela expansão territorial do Reino de Daomé. Assim, esses povos
genericamente denominados “mina” pelo tráfico negreiro, possuíam diferentes origens e partiamm
de diferentes localidades africanas, que traziam até mesmo rivalidades.3
Muitos estudos recentes têm se dedicado a investigar de forma mais minuciosa as relações
escravistas, negras e da circulação das línguas africanas de forma a não tratar o escravo como uma
categoria homogênea e submissa ou ignorar a fala como aspecto irrelevante na dinâmica colonial.4
A multiplicidade étnica, linguística e cultural está atrelada a vida da colônia no Império
Transatlântico Português nas Américas. Foram das convivências, confrontos e relações
estabelecidas entre os diferentes grupos que os desafios comunicacionais surgiram e suscitaram
situações diversas e complexas do falar e se fazer entender nesse universo. Porém, ainda permanece

3
Vide LARA, Silvia. “Linguagem, Domínio Senhorial e Identidade Étnica nas Minas Gerais de meados do Século
XVIII” ; SOARES, Mariza de Carvalho. ‘Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baía do Benim,
Século XVIII” in “Rotas Atlânticas da Diáspora Africana – da baía do Benim ao Rio de Janeiro. E CASTRO, Yeda
Pessoa de. “A Língua mina-jeje no Brasil, uma língua negro-africana documentada em Vila Rica no século XVIII” In
História Social da Língua Nacional 2 – Diáspora africana.
Será melhor explicado posteriormente, mas como grupos diversos unidos numa só categoria pelo tráfico, encontram
semelhanças e diferenças entre si.
4
Estudos tais como o da própria Silvia Lara e Mariza de Carvalho citados anteriormente, que procuram perceber
diferentes origens, categorias e etnias dentro do que se chama genericamente ‘escravos’, Ainda SCHWARTZ, Stuart.
Trabalho e Cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos. In: Escravos, roceiros e rebeldes. E REIS, João José, e
SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito- A resistência negra no Brasil escravista sobre não tratar o escravo como
categoria submissa, e diversos estudos de Ivana Stolze Lima e a linguista Yeda Pessoa de Castro que tratam
especificamente da língua e da comunicação na América.

1579
no tratamento da comunicação colonial uma visão que percebe a língua portuguesa como único
elemento linguístico existente, como se o português como idioma oficial e imposto sempre existisse
e dominasse todos os aspectos comunicacionais da vida colonial. Mas a dimensão desse domínio é
posto em questão, quando se percebe o grande desequilíbrio demográfico que se configura com a
introdução portuguesa num Continente densamente povoado e de forte tráfico africano, criando
concentração de grupos falantes de outras línguas.
A urgência da comunicação e do esforço jesuíta da catequização forçou um contato que
favoreceu as línguas originais em detrimento do português. Segundo José Ribamar Bessa-Freire em
“Nheengatu: a outra língua brasileira”, a língua geral tupi foi uma forma amplamente usada na
Amazônia para a comunicação daqueles que não partilhavam a mesma língua materna, ou primeira
língua, intermediando o contato entre portugueses e outras comunidades que possuíam seus
próprios códigos. Apenas no final do século XIX com a presença metropolitana mais significativa,
que o português foi, aos poucos, se impondo. Esse recurso de incentivar o aprendizado das línguas
nativas ou originais africanas foi utilizado amplamente nas áreas de grande presença do elemento
não português na colônia, mas se diferenciando de acordo com as características locais e interesses.
Assim, o estudo de Bessa permite perceber que o uso das línguas possuíam mecanismos, tensões e
lógicas muito além do emprego da língua oficial portuguesa, e que esse domínio do português esta
atrelado a diversas formas de imposição da língua, não sendo um predomínio e incorporação natural
e espontânea.
Desta maneira, esse estudo das trocas linguísticas deve perceber a fala como elemento
fundamental para se compreender o gerenciamento e funcionamento da sociedade que se constituiu
nas Américas através do contato entre os diferentes grupos étnicos. Mas também abordar os
aspectos materiais que acompanhavam o falar e a circulação de línguas na região das Minas, como
esta difusão estava associada ao comércio e aos elementos que configuravam a produção,
alimentação, confecção de utensílios, ferramentas, usos da flora e fauna, entre outros aspectos da
vida colonial dos setecentos. Busca compreender os contatos, trocas e costumes por meio das
palavras e do vocabulário plurilíngue, vislumbrando um cenário, uma ferramenta, um alimento, uma
expressão, e a forma de viver nessa região. Ainda, pretende uma interpretação desse Vocabulário
como também uma maneira e uma produção que escapava das amarras da estrutura colonial
portuguesa nas Américas.

O VOCABULÁRIO DA LÍNGUA MINA: AS DIMENSÕES DA VIDA COLONIAL


A OBRA NOVA E O FALAR NOS SETECENTOS

1580
Antônio da Costa Peixoto, em 1741, redige um vocabulário da língua mina com a tradução
de palavras para o português, contendo diálogos e expressões que compunham o universo colonial
mineiro, significados do que era corrente ou útil saber. A produção de Costa Peixoto sugere a
seleção de certas palavras e conversas do que era comumente falado ou do que se queria comunicar.
É um retrato do cenário dos falares no cotidiano colonial, contando o que era corrente na
comunicação e também revelando interesses. Esse conjunto de traduções revela uma face do que era
dito e pensado, mas também do que era visto e ouvido, transpondo os leitores a uma dimensão do
mental e do cultural nos setecentos. As palavras ordenadas e escritas, respectivamente, em língua
mina e português, pressupõem a maneira pela qual essa Obra foi elaborada, ou seja, através da
conversa com um negro ou uma negra da nação mina.
Importante perceber que um vocabulário tem uma face ativa e uma passiva, tanto servindo
para ouvir a língua mina como para dizer, interagir com seus falantes. Assim, não poderia ter a
finalidade única de controlar o que era dito, também demonstrando uma necessidade e uma vontade
de comunicar, trocar informações. A Obra Nova permite acessar esse falante do grupo de línguas
atualmente conhecidas como gbe, e elucidar que a comunicação nas Minas dos setecentos não
estava ligada apenas as formas de controle metropolitano e senhorial. Revela faces da vida e da
troca linguística ligada tanto aos falantes das línguas minas quanto aos falantes da língua
portuguesa, consistindo num registro do plurilinguismo. Nas finas malhas da vida cotidiana, um
horizonte comunicacional e de relações se tecem, de forma mais abrangente e difusa que foge as
estruturas de dominação próprias do período colonial.
Algumas passagens esclarecem os interesses de Costa Peixoto em escrever a Obra, e que
havia grande procura desta no conjunto dos homens capazes de adquirir um exemplar desse
vocabulário. O autor afirma que o registro não foi feito apenas para o controle da escravaria,
deixando em aberto para um grupo bem mais abrangente e diversificado de leitores. Primeiro, se
põe como curioso, uma categoria bem genérica, e dedica sua obra aos mesmos: “Que com
curiosidade trabalho, e desvelo, se [expôs], em aprendê-la, para também a ensinar, a quem for
curioso, e tiver vontade de a saber...”5Em seguida, diz que foi o grande número de pedidos que o
levou a redigi-la:“O motivo senhor que me moveu, e persuadiu a empreender esta nova tradução
foram rogos de amigos e particulares peditórios de pessoas a quem não devia faltar.”6 Na próxima
passagem Costa Peixoto deixa claro que a Obra não se destina apenas aos senhores: “Pois é certo e
afirmo, que se todos os senhores de escravos, e ainda os que não os tem, soubessem essa
linguagem não sucederiam tantos insultos, ruínas, estragos, roubos, mortes, e finalmente casos

PEIXOTO, p.9.
5

PEIXOTO, p.12.
6

1581
atrozes, como muitos miseráveis tem experimentado.”7 Mesmo evidenciando que se evitariam esses
tais casos, que possivelmente poderiam estar atrelados ao aprender a língua para controlar os
escravos, Peixoto afirma que o aprendizado das línguas mina seria útil também para os não
senhores, e portanto, esse saber não estava restrito a finalidade de domínio senhorial da escravaria.
A historiadora Silvia Hunold Lara, em “Linguagem, domínio senhorial e identidade étnica
nas Minas Gerais de meados do Século XVIII” traz diferentes considerações da Obra de Costa
Peixoto. Primeiramente, a historiadora oferece importantes contribuições para a diferenciação étnica
dos escravos, e ainda realiza uma análise da documentação trazendo bastantes informações e
fundamentação teórica sobre os ‘minas’. Porém, comparando com as obras dos jesuítas, concebe o
documento de Costa Peixoto com caráter ainda mais voltado a permanência das estruturas de
dominação do sistema colonial. Conforme deixa claro na passagem:
Assim, aqui, mais que traduzir para converter, o esforço tem o
objetivo explícito de contribuir para a continuidade do domínio senhorial.
Ao facilitar o exercício do poder através do domínio da linguagem dos
escravos, a obra de Peixoto é também um bom exemplo das dificuldades
dos senhores em penetrar o universo cultural de seus cativos.8

Silvia Lara concebe a produção de Peixoto como uma ferramenta de controle e reforço da
rígida hierarquia social e étnica da sociedade colonial. O interesse identificado corresponde à
manutenção da escravidão e dos cativos, não tendo menor predisposição pelo autor de compreender
ou reservar um lugar de conhecimento do outro. Para a autora, o vocabulário é apenas um veículo,
um meio de dominação dos senhores sobre a escravaria. Em contrapartida, o estudo aqui proposto
procura interpretar essa Obra em sua face mais ligada ao acesso a essas línguas e modos de vida nos
setecentos. Sem desconsiderar a produção de Silvia Lara, mas buscando essa faceta menos voltada
as estruturas de dominação, o objetivo é resgatar através das palavras e comentários do documento,
os elementos que fugiam da manutenção do cativeiro, que demonstravam as sociabilidades e
expressavam o cotidiano e a cultura material da região das Minas.
Outros aspectos a que vem acrescentar a essa Obra estão relacionados à origem social do
autor, sua graduação, e a própria trajetória de Costa Peixoto. Sendo um português de poucos bens,
consegue o cargo de escrivão e juiz de vintena nas freguesias de São Bartolomeu, Santo Antônio da
Casa Branca e Nossa Senhora de Nazaré e Cachoeira. Foi denunciado, diversas vezes, pelos
moradores de São Bartolomeu e intimado a abandonar o cargo de escrivão. A figura de Costa

PEIXOTO, p.13. Grifos meus.


7

LARA, 2002, p.13.


8

1582
Peixoto se mostra interessante, pois além de sua condição social pouco favorável, existe o registro
de seu contato com negros, que o faz integrado tanto às redes de influências e da promoção de
cargos da administração como das camadas mais inferiores da hierarquia colonial.
Ainda, mesmo sendo um escrivão, não era um homem culto, de grande conhecimento das
letras, o que o insere ainda mais nesse lugar do leigo, da escrita espontânea, do registro informal. Na
passagem da Obra Nova abaixo, o autor, através de um jogo de palavras, demonstra esse seu lugar de
fala e de produção como pouco conhecedor da gramática e do ensino culto da língua, sendo graduado
apenas na curiosidade: “Lingua Geral de Mina, traduzida ao nosso idioma, por Antônio da Costa
Peixoto, curioso nessa ciência, e graduado na mesma faculdade.”9 Na edição de 1945 consta o seguinte
comentário da apresentação feita por Luís Silveira: “Não foram só os missionários os estudiosos das
línguas exóticas. Os leigos também cooperaram. Serve de exemplo o manuscrito que se apresenta
agora.”10

SOCIABILIDADES, CULTURA MATERIAL E COTIDIANO ATRAVÉS DO REGISTRO


DAS LÍNGUAS MINA

É importante perceber que havia atividades e âmbitos do convívio colonial nos setecentos
que escapava as ordens da Coroa Portuguesa. No plano econômico, social ou cultural havia relações
que possibilitavam brechas no que o rígido sistema colonial propunha, e para além dos puros
interesses mercantis metropolitanos. Os locais das vendas e da prática do comércio significavam
esse espaço das sociabilidades, dos contatos plurilíngues e multiétnicos, no qual o próprio
documento de 1741 de denúncia de Costa Peixoto já identificava ao relatar a aproximação de
Peixoto com escravos e libertos. Outro documento corrobora essa informação, permitindo perceber
a forte dinâmica desses ambientes e como resultavam em situações diversas com as diferentes
categorias sociais existentes nas localidades. Um documento de 1746, também de Vila Rica,
consiste na solicitação de moradores da região para determinação do horário de funcionamento das
tavernas, evidenciando essa atividade noturna e como havia uma preocupação com a falta de
regulação desse espaço por parte das autoridades coloniais. A requisição e toda essa tentativa de
gerenciar esses locais permite perceber que não havia um controle absoluto desses espaços, e essas
brechas são exploradas pelos diferentes agentes coloniais. Assim, a dita documentação afirma:
Dizem os moradores desta freguesia (...) que por haverem de
evitarem os prejuízos que tem dos seus escravos e pela ‘perdição’ que tem

PEIXOTO, p.15.
9

PEIXOTO, p.6.
10

1583
destes com as vendas a maior parte de noite e estes os terem recolhidos fora
de horas em tal forma que por um vintém lhe dão meia medida de
aguardente estão tal os senhores deles em termos de os perderem em duvida
(...) pois os ditos taverneiros os tem recolhidos11.

Nessa passagem, além da atividade noturna, é ainda registrado mecanismos de barganha e


comutação ilícita praticada pelos comerciantes locais.
Além de estarem ligados as troca interétnicas e intraétnicas, esses espaços também
viabilizavam a emancipação dos estratos menos favorecidos. Através do comércio e do exercício
dos mais diferentes ofícios, o acúmulo de quantias possibilitavam compra de alforria, e até mesmo
aquisição de propriedades. O estudo realizado por Débora Cristina de Gonzaga Camilo “As donas
da Rua – Comerciantes de ascendência africana em Vila Rica e mariana (1720-1800)” oferece
importantes informações sobre a participação das mulheres na venda de gêneros alimentícios e
outros objetos, sendo bastante comum a presença nas quitandas, de lojistas e negras de tabuleiros de
víveres geralmente apara abastecer um grande contingente de escravos consumidores desses
produtos. Essas mulheres cativas, forras ou libertas entravam nos negócios direcionadas pelo seu
senhor ou apoiadas por homens através de situações de concubinato, e estabeleciam uma rede local
de parceria com vizinhas e outros agentes mercantis, fornecedores ou credores também
comerciantes em condições similares. Através do levantamento de dados, a pesquisa de Débora
Camilo permite compreender todo um complexo de homens e mulheres, ligadas à venda,
abastecimento, distribuição e ao crédito, divididos em categorias que iam dos grandes “homens de
negócios” às vendeiras, quitandeiras, negras de tabuleiro, lojistas locais, mascates, atravessadores e
fornecedores como roceiros e tropeiros12. É possível perceber essa circulação local e as trocas
cotidianas, e como essas atividades, e a consequente melhora de enquadramento social desses
agentes mercantis se davam, que estavam associadas também a laços familiares e relações pessoais
que faziam da confiança e boa imagem determinantes na concessão do crédito. É interessante, pois
a autora faz a análise de casos que demonstram mulheres da nação mina praticando o comércio,

11
CMOP, cx.18, doc.44.
12
CAMILO, Débora Cristina de Gonzaga. As donas da Rua – Comerciantes de ascendência africana em Vila Rica e
Mariana (1720-1800)”, Cap.2, p.64-100. Todos esses segmentos são citados e explicados pela autora. Entre os homens
de negócios e os agentes mercantis de baixo trato havia grande diferenciação social, os primeiros estavam relacionados
a donos de estabelecimentos que contratavam funcionários para exercer as tarefas manuais, vistas como inferior dentro
da lógica colonial, enquanto os segundos exerciam todas as atividades com poucos recursos, sendo os mascates
vendedores ambulantes pobres, fornecedores de produtos para lojistas, e os atravessadores os que transportavam e
estocavam alimentos, causando problemas de especulação pouco favorável as vendas locais, sendo sua atividade
proibida.

1584
donas de estabelecimentos e acumulando quantias que aparecem descritas em testamentos e outros
documentos.
Havia a tentativa de regularizar esse comércio praticado por segmentos sociais mais baixos,
tidos como possíveis contrabandistas ou mesmo por seu caráter ilícito, pelo não pagamento de
impostos. Segue essa passagem de um documento de contratação do capitão do mato Luís Dias da
Silva pelos moradores da Freguesia de Santo Antônio da Casa Branca, Vila Rica, 1751, que
demonstra a restrição dessas atividades: “Toda a negra que apanharem em lavras donde não aceita
branco com tabuleiro de comestíveis exceto pão ou bananas a prenderão executando o que lhe
ordena o seu Regimento (...)” 13 Desta maneira, o comércio era alvo da vigilância constante, já que
os subterfúgios eram recorrentes. Por mais que as autoridades coloniais buscassem impedir e limitar
a atuação desses agentes, essa rede dinâmica acontecia. No trecho, acaba sendo evidente que não
apenas pão e bananas eram comercializados, mais outros tantos artigos. Alguns constam na obra de
Camilo, como bolos e frutas. A documentação de Peixoto descreve diversos alimentos e objetos
relativos a vendas que ocorriam na região mineira nesse período, que poderiam estar ligados a
prática mercantil tanto de falantes de gbe como do português: “...vou vender feijão, (...) milho,
(...)vender farinha, (...) vender sabão, (...) quiabo, (...) laranjas, (...) aguardente, (...) pão, (...) pasteis,
(...) galinhas, (...) roupas, (...)negros novos, vou vender amendoins, (...)sapatos, (...) a casa, vou
vender violas14.
As vendas eram também locais no qual as línguas do grupo gbe circulavam em contato com
outras variações linguísticas e demais códigos africanos, indígenas ou europeus. Outro documento
levantado durante a pesquisa consiste no Estatuto da Congregação dos pretos minas maki, ou mahi,
um dos grupos étnicos agrupados na denominação mina. Este registro demonstra que havia uma
rede de sociabilidade em torno das línguas do grupo mina em outras regiões, no caso, Rio de
Janeiro. Segue a passagem de autoria de Francisco Alves de Souza, que se denomina “preto natural
do Reino do Makin”:

Em 1728 que cheguei a esta capital vindo da cidade da Bahia, achei


já esta Congregação ou Corporação de pretos Minnas de várias Nações
daquela Costa a saber Dagomé, Maqui, Zanno, Agolin, Sabaru todos de
Língua Geral com muita união.15

13
CMOP, cx.26 doc. 30, p. 4.
14
Retirado da Obra Nova da Língua Geral de Mina, ps. 24 e 25. As partes entre parênteses existem na documentação
original e aqui foi subtraída para evitar repetições.
15
BN (MA) 9,3,11.

1585
Além de demonstrar a difusão desse conjunto de línguas mina, o documento permite
perceber o reconhecimento de uma identidade ‘mina’, uma categoria genérica criada pelo tráfico,
por um africano, e ainda sim, a permanência das vinculações étnicas originais que se encontram
destacadas no relato de Francisco de Souza. Moacir Rodrigo de Castro Maia, em “O
apadrinhamento de africanos em Minas colonial: O (Re)encontro na América (Mariana, 1715-
1750)” analisa a composição de laços de compadrio e apadrinhamento entre negros nesse contexto.
Maia afirma que no batismo havia a criação de laços afetivos e de solidariedade entre os cativos, e
que era reforçado pelo fator de escolha desses padrinhos, que em sua maioria ocorria entre homens
e mulheres ‘minas’. O autor constata que a língua era o critério para essa escolha, e isto corrobora a
existência de uma identificação e a formação de agrupamentos de ajuda mútua entre aqueles que se
percebiam semelhantes, integrados a essa categoria etnolinguística. Ainda, vale ressaltar que
diferentes povos relacionados a variadas regiões e noções de pertencimento, por vezes reinos
inimigos no Continente Africano, acabam encontrando novas formas de associação e parecença do
outro lado do Atlântico. 16
Castro Maia faz a referência ao Conde de Assumar, importante autoridade portuguesa na
Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, que temia que esse vínculo relacionado ao
apadrinhamento pudesse contribuir para uma sublevação maciça dos escravos. Assim, o Conde
buscou controlar a formação desse elo batismal decretando a obrigatoriedade de padrinhos brancos
no ritual católico, sem obter muito sucesso. Afirmava que essas relações haviam levado a fugas e a
formação de quilombos na região, prejudiciais ao domínio senhorial. Maia relata que as tensões e
conflitos eram constantes, assim o Conde proibia que libertos fossem donos de vendas, que seria
“um local propício para esconder fugitivos e de ligação com os quilombolas”17. Segundo o
documento do Arquivo Público Mineiro havia a proibição de vender armas e alimentos para
calhambolas por “negro ou negra forra ou brancos ou outras pessoas...”18. Essas passagens
evidenciam a existência de uma constante e espontânea rede de auxílio entre esses pontos
comerciais e os fugidos. Esse era outro fator que caracterizava os locais das práticas do comércio
como da informalidade, do contrabando, propício à ilegalidade, ainda da possível ascensão social
das populações pobres e negras, que se voltava contra os preceitos e interesses das elites coloniais
portuguesas, mas escapavam ao seu controle.

16
Fenômeno já apontado pelo autor, mas associado a ideia do batismo, ferramenta de coerção e conversão dos cativos,
que era por eles aproveitada, reinventada e revalorizada nas Américas. Outros autores vão chamar atenção para essa
apropriação africana pela categoria mina dada pelo tráfico, que aprece nos estudos de Robin Law e Mariza Carvalho.
17
MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. O apadrinhamento de Africanos em Minas Colonial: O (Re) encontro na América
(Mariana, 1715-1750), p. 39.
18
Arquivo Público Mineiro – CMOP Cx. 26 Doc. 30, p.5.

1586
Nesse lugar das vendas circulava também o ouro e as moedas para obtenção de produtos. Na
Obra Nova consta uma tradução do sistema de contagem que devia ser usado nessas transações,
levando o subtítulo “Conta de ouro”, com seus valores correspondentes em oitavas de ouro, vinténs
e libras. Em seguida aparece o sistema de numeração traduzida das línguas do grupo gbe para o
português. Costa Peixoto afirma que o sistema numérico mina só ia até o numeral 40, e que se
repetia para acumular novos valores.
Aquhédupom – 1vintem/ Aquhéháhizem. Aquhécatom -3/8as – Aqhécanê –
4– Aquhé’aforeê – 5/8as – Aquhéaforécarê – 6/8as – Aquhéaforécauhê- 7/8as
– Aquhéaforécatom -8/8as ...gampupou – meia libra...dupou – 1/ hópê – 2 /
vtom- 3/ henê – 4 / atom -5/... ouhene -14 / afótom – 15 / afótomcurupou -
16 / afótomcuhóhe – 17 / afótom cu hatom – 18...19

A forma como foi escrita a Obra Nova, se assemelha a um negro ou negra da nação mina
narrando e descrevendo cenários, utensílios e tudo que poderia ser captado ao seu redor. Assim, esse
documento também proporciona acesso à cultura material presente na época. Entendido como
cultura material os instrumentos, alimentos, animais, e todos os aspectos culturais munidos de
materialidade. Esse retrato das minas setecentistas estava ligado ao cotidiano e justamente aos
locais de trocas de produtos e comercialização de comestíveis. Nas passagens da Obra Nova
encontra o seu registro

...douquim- batatas /epê- abóboras/ vquâ – melancias/ atim si sem -


figos, joazes; sidras; goiabas; ...alefim- farinha/ atimcamlefim -farinha de
mandioca/ atimcam- raiz de pau/ ataquim- pimentas / ataquimtouboume -
pimenta do Reino/ atâ –gengibre/ avánâtou- bananas da terra...Agam - agua
ardente/ agamtouboune- agua ardente do Reino/ touboume ami- azeite doce/
nhijoutouboume - manteiga do Reino/ agamvégê- vinho/ acláchuchû–
biscoito/ depo - palmitos – azimzem – formigas...20

A escolha desse eixo temático privilegiando a descrição documental desses elementos se


refere a tentativa de compreender de forma objetiva a economia local e a utilização e exploração da
fauna e flora, buscando através do levantamento de outras fontes desse contexto e produções acerca
do tema, adentrar nas formas de abastecimento e consumo nas Minas. O estudo de Manoela

PEIXOTO, ps. 33 e 34.


19

PEIXOTO, ps.16 e 17.


20

1587
Pedroza “A roça, a farinha e a venda: produção de alimentos, mercado interno e pequenos
produtores no Brasil Colonial” oferece importantes dados e perspectivas sobre as práticas
econômicas e sistemas produtivos dos setecentos que servirão de substrato e eixos de intersecção
com as informações documentais. A autora descreve o processo de produção da farinha de
mandioca, alimento que é recorrente na documentação de Peixoto, sendo ingerido ou vendido. As
diferentes espécies da mandioca, bravas e mansas, e toda a preparação da farinha aparecem
descritas no estudo de Pedroza, assim como também aparece no documento levantado relativo ao
Códice Costa Matoso. O importante a destacar é que o seu consumo era hábito indígena, apropriado
pelos colonizadores, e depois se tornou principal fonte de carboidrato da alimentação escrava, sendo
difundida posteriormente a todos os segmentos sociais. A facilidade do plantio, da colheita, a
resistência da planta e poucos cuidados necessários a conservação foram fatores que determinaram
sua difusão. Interessante é a sua produção no interior das moradias, que seria a continuação de um
hábito indígena possibilitando o trabalho familiar noturno na elaboração da farinha. Outro elemento
presente no cardápio mineiro eram as formigas, também descritas na Obra Nova junto com outros
alimentos.
A autora identifica na historiografia diversas interpretações sobre a relação mercado
doméstico e agroexportador, e demonstra que esses dois segmentos não se encontravam totalmente
polarizados, e que a produção de subsistência estaria presente no interior do grande latifúndio. Os
escravos obtinham concessões dos senhores para ter sua roça, praticando a pecuária e o cultivo de
vegetais para alimentação familiar. Os excedentes eram vendidos para os vizinhos e redes próximas
de comércio, o que funcionava como forma de abastecimento local, mas essa produção ficava
subordinada aos grandes proprietários. Outra categoria produtiva no interior das fazendas
monocultoras eram os agregados e os ‘lavradores de cana obrigada’. Assim, se configurou o que a
autora denominou “brecha camponesa”, o mesmo agente produtor doméstico se inseria no circuito
da agroexportação. Os posseiros eram aqueles que estabeleciam relações de produção mais
autônomas. Porém, com as pressões de disputas de terras e do produto econômico mais rentável se
impondo, as possibilidades de cultivo de gêneros alimentícios se dividiram entre a subordinação a
grande propriedade através do pagamento de foros ou rendas ou a migração para áreas não
desbravadas. Desta maneira se estabeleceu a “fronteira aberta”, também conhecida como os sertões,
sendo caracterizada pela exploração livre e desbravamentos, pautando linhas de interiorização do
Continente.
O estudo de Pedroza, por mais que aproxime os eixos de produção, ainda dissocia o mercado
exportador e o de subsistência. Informações coletadas no Códice Costa Matoso demonstra que as
embarcações também transportavam mercadorias não-monocultoras e secundárias, que estariam

1588
associadas ao consumo local, mas que também entravam no circuito da exportação. Algumas cargas
saíam de diversas regiões da América Portuguesa em direção à Lisboa, mesmo que não tivessem
objetivos comerciais claros, pois na descrição do documento apenas aparece que eram transportados
para a metrópole a fim de demonstrar o potencial produtivo da colônia, esses artigos estavam saindo
do uso local. Assim, não é possível fazer uma distinção muito excludente na categorização da
produção de “subsistência” e de “exportação”, pois na prática esses destinos se misturavam se
obtendo produtos secundários exportados e produtos monocultores consumidos internamente. Não
foi encontrado registros de víveres da região mineira, e sim de navios saindo do Rio de Janeiro,
Pernambuco e Grão-Pará em direção a Lisboa, nos quais constavam artigos de origem extrativista
ou criatória, como casco de tartarugas, barris de mel e farinha, pipas de azeite de peixe, toros de
paus de jacarandá, couros de veado, quintais de pau-violeta, entre outros.21 Também de acordo com
o Códice Matoso as freguesias de Casa Branca e Cachoeira22 e Curralinho, bem próximas a São
Bartolomeu, na qual a Obra Nova foi elaborada, consistiam em uma área de abastecimento da
região das Minas e a grande variedade de gêneros alimentícios que aparecem nas traduções de
Peixoto podem advir das trocas com essas localidades vizinhas. “[Vila do Carmo] é de clima
favorável para todo gênero de plantas, [mas não] tem em si o milho e feijão que lhe bastem, e
grande parte deste mantimento já lhe vem dos Campos de Cachoeira, Casa Branca e Curralinho...”23
Na Obra Nova ainda aparecem expressões como “amâ- couves, mostardas e todas
variedades de ervas.”24. Essa variedade de ervas é bem tratada no Códice Matoso que oferece uma
lista das ervas e usos medicinais: “Erva chamada de santa-maria, que se dá por terras estercadas;
tem esta erva virtude para matar lombrigas, para panariz e carbúnculos”.25 “Erva chamada suçuaia
que costuma haver por capoeiras e terras estercadas; é perfeito remédio para defluxões e para cortar
o sangue em febres malignas”26 Outros usos também aparecem: Há o cipó chamado rapacari; serve
sua raiz de sabão para lavar o corpo e toda a qualidade de roupas...”27. No documento de Peixoto
ainda aparecem os animais que circulavam na região: “máhisásõ- vou vender cavalos” “ máhisánhi-
vou vender Bois // máhisá couculou- vou vender galinhas”.28Havia também cabras, carneiros,
ovelhas e porcos. Deste último comiam toucinho, linguiças, cabeças de porco, “antrecostas”,

21
Códice Costa Matoso, p.911-917, docs. 140, 141 e 142, fls. 505, 506 e 507.
22
Freguesias em que Antônio da Costa Peixoto também atuou com cargos administrativos.
23
Códice Costa Matoso, p. 907, fl.500v.
24
PEIXOTO, ps.20 e 21.
25
Panariz seriam inflamações na pele em torno das unhas; e carbúnculos infecção na pele, mais comum na nuca e nas
costas.
26
MATOSO, p787.
27
MATOSO, p.784.
28
PEIXOTO, os.24-25.

1589
“mucutos” e banha ou manteiga.29 No documento aparecem as expressões: “máhiroy bucõ – vou
chamar o sorgião” (cirurgião)30 fazendo referência a existência desses ofícios assim como as
práticas da sangria. Outros objetos como a candeia, que parece se referir a um tipo de luminária de
barro e óleo, “Asicô- machado /...Alim- enxada, ou almocafre //gam – ferro/ cô- barro”31 aparecem
nas línguas mina e correspondem aos materiais e utensílios existentes na vida mineira. A utilização
de talheres, pratos e panelas também aparece no conjunto documental e inclusive a expressão
“máhidouzam – vou por a meza”32 que pode indicar a existência desse hábito. “guhi- faca” zem –
panela / abam – pratos / gamtim – colheres...máhiclóabam - vou lavar os pratos”33 Outra passagem
retrata itens relativos às armas: “guhicum- bainha/ guhigâ- espada/ so- espingarda/ sotutû- pólvora/
sopem-balas, e chumbo”.34
No próximo trecho aparece uma lista das profissões, sendo carapina provavelmente
sinônimo de “carpinteiro”: “aótutô- alfaiate/ atimpátô- carapina/ gamtulô- ourives/ ayótô -ferreiro –
atamCholatô / atamchólátô- barbeiro/ nhigutô – carniceiro/ guhégutô- pescador/ chégutô-
casador...”35 Não é feito menção a nenhuma profissão liberal ou burocrática, sendo esses ofícios
mencionados ligados ao cotidiano e as necessidades mais básicas. Essas possivelmente eram
profissões exercidas também por libertos ou forros que buscavam melhor se inserir no interior dessa
sociedade. Havia a prática de ensinar esses ofícios para aqueles que serviam de aprendizes o que
permitia a passagem das técnicas e conhecimentos para que não faltassem praticantes. Maia registra
essa tendência num documento que analisou em seus estudos: “Um outro senhor de Mariana tinha,
no final da primeira metade do Século XVIII, ‘um moleque courano na cidade da Bahia’ como
aprendiz no ofício de barbeiro.36Mesmo sendo em outra localidade, nada impede que esse fosse
ensinado na própria região. Mas esse caso demonstra a forte conexão no trajeto Bahia- Rio de
Janeiro- Minas, utilizado para transportar os escravos traficados até a Capitania das Minas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo buscou realizar a análise e interpretação do conjunto documental “Obra Nova da
Língua Geral de Mina” de Antônio da Costa Peixoto, buscando compreender os espaços da
comunicação na região mineira no Século XVIII. Havia a circulação e as trocas linguísticas entre os

29
PEIXOTO, p.16.
30
PEIXOTO, p.23.
31
PEIXOTO, p.17.
32
PEIXOTO, p.25.
33
PEIXOTO, ps.16-27.
34
PEIXOTO, p.16.
35
PEIXOTO, p.18.
36
Passagem em que Rodrigo de Castro Maia faz referência ao documento AEAM, Livro O-7, Testamento de Manoel
João Dias, 22/10/1743, fl.154v.

1590
falantes do grupo gbe e do idioma português principalmente nos lugares das vendas, que a própria
documentação explora bastante nas traduções realizadas. Esses locais de sociabilidades eram alvos
de vigilância por parte das autoridades coloniais, porém, essa tentativa incessante de controle não
efetivo, evidenciava esse escape, a existência de dinâmicas brechas de contatos e formas de
ascensão social, que caracterizava esses espaços. A tentativa do Conde de Assumar de impedir
batismos entre negros mina e o documento da Congregação dos makis(RJ), demonstram que as
línguas do grupo gbe consistiam numa forma de identificação, agrupamento e formação de laços de
solidariedade e permite inferir a existência de vínculos baseado na marca linguística também na
região mineira.
O registro vocabular do conjunto linguístico gbe revela uma tentativa de domínio através da
língua, porém as especificidades da Obra e autoria indicam um olhar muito mais complexo, que a
insere também nos meios informais e como um registro de contatos multiétnicos. Havia a pretensão
de ensinar as línguas africanas desse grupo mina, mas seus usos e aplicações não são definidos na
Obra. Esse registro se insere na prática colonial da busca do estudo e assimilação das línguas não-
européias, recurso utilizado pelas autoridades locais cujo objetivo, nesse caso, não foi bem
esclarecido. Porém a existência de grande número de africanos mina e uma ampla rede de negócios
possibilita inferir uma busca por formas de comunicação interétnica, de inserção dos diferentes
grupos nessas redes de comércio lícito e ilícito, e todas formas de contatos que existiam e
permeavam o cotidiano setecentista. A dinâmica comunicacional nesse universo era diversa e, assim
como as outras instâncias da vida colonial, escapavam e não se restringiam a esfera do controle.
O documento de Peixoto se mostra atrelado a facetas do cotidiano, das relações mais diretas,
como trazendo palavras e expressões relativas a materiais, instrumentos, animais e alimentos que
circulavam na região. Importante perceber que a produção não-monocultora extrativista, criatória e
agrícola existia, e estava relacionada ao comércio, ao abastecimento, o que não impedia a
possibilidade de exportação, e moviam diferentes agentes econômicos locais criando laços. A forte
presença das mulheres mina no comércio acumulando quantias permite perceber os mecanismos de
ascensão ligados a esse setor, que era tido como propenso ao contrabando e a ilegalidade. Ainda
reforça a propensão de vínculos identitários e afetivos entre a categoria mina. Assim, a análise do
conjunto documental e bibliográfico permite atestar a formação de solidariedades do outro lado do
Atlântico de diversos grupos étnicos africanos agrupados em uma categoria- mina - criada pelo
tráfico, em torno da chamada ‘Língua Geral de Mina’, criada no contexto americano, fator de
integração desse grupo na região mineira e outras localidades. Ainda permite concluir que a
comunicação interétnica e intraétnica ocorria nos lugares de subterfúgio, contrariando as políticas
oficiais e interesses metropolitanos. Assim, a Obra Nova demarcaria e estaria ligada bem mais a

1591
subversão e as trocas informais que existiam nas Minas Colonial do que a uma ferramenta de
controle da Coroa sobre a Colônia americana.

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS

PEIXOTO, Antonio da Costa. Obra nova da língua geral de mina. Lisboa: Agência Geral das
Colônias, 1945.
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Câmara Municipal de Ouro Preto. Cx.12, doc.45. Ouro Preto, 18
fev. 1741.
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Câmara Municipal de Ouro Preto. Cx.18, doc.44.Ouro Preto, 27
abr. 1746.
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Câmara Municipal de Ouro Preto. Cx. 26. doc.30. Ouro Preto,
19 nov.1751.
BIBLIOTECA NACIONAL. Estatuto da Congregação dos Pretos minas Maki no Rio de Janeiro,
1786. (BN (MA) 9, 3, 11.)
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Códice Costa Matoso. Coleção das
notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa
Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários
papéis. – Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999.
2v. (Coleção Mineiriana, Série Obras de Referência).

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1593
Gênero e discurso no Curdistão Sírio: notas de pesquisa

Maria Raphaela Luchini Caldeira Campello1

1 INTRODUÇÃO

O Curdistão se localiza em meio àquilo que Kadiyoti (1988) chamou de eixo do


patriarcalismo clássico. Esta região é tradicionalmente caracterizada pela dominação
masculina, preferência pelo filho, códigos restritivos de comportamento para as mulheres e a
associação da honra da família à virtuosidade feminina.

Essas condições advêm da formação societal tradicional baseada no tribalismo e


agrarismo. A endogamia, prática que precede em muito o Islã, foi adotada como meio de
manter a propriedade dentro da mesma família. A mulher, capaz de gerar filhos - e, portanto,
força produtiva -, passa a entrar na mesma lógica econômica, como propriedade, e o
casamento torna-se transação.

Tal era a região na qual o Curdistão está compreendido. Não se pode afirmar que as
sociedades curdas passaram ilesos pela onda patriarcal. Na verdade, práticas como a excisão
feminina são, ainda, frequentes em determinadas áreas do território curdo, e a esfera pública
lhes vem sido amplamente interditada, na dupla condição minoritária de curdas e mulheres.
Contudo, nesta mesma região, exércitos exclusivamente femininos afloraram, juntamente
com um discurso libertário sobre gênero. Como se operou essa mudança? Qual a participação
das mulheres nela? Quais são as variáveis do processo de subjetivação da mulher curda no
eixo Turquia-Síria? Tais são as perguntas que orientarão a pesquisa.

Neste trabalho, apresentaremos notas de pesquisa ainda em primeiro estágio de


execução. Mobilizaremos conceitos de Michel Foucault para extrair conclusões acerca do
processo de autonomização das mulheres no Curdistão, que culmina, atualmente, na presença
de exércitos exclusivamente femininos e a participação igualitária das mulheres na auto-
gestão das comunidades de Rojava, Síria. Utilizaremos dos textos de Abdullah Öcalan para

1
Marialuchini00@gmail.com - História - graduação - Universidade Federal de Minas Gerais

1594
análise do discurso do PKK (Partido dos Traballhadores do Curdistão) e seu ramo sírio, o
PYD (Partido da União Democrática) e de fontes secundárias que investigaram e
entrevistaram mulheres curdas a partir da década de 1980.

2 DIAGRAMAS DE PODER E SUBJETIFICAÇÃO

Foucault afirma que “relações de poder são tanto intencionais quanto não-subjetivas”
(FOUCAULT, 1988). Dividiremos essa afirmação em três partes para explicá-la: relações de
poder, intencionalidade e não-subjetividade. Primeiramente, acerca do poder, entendemos
que não pode ser explicado de maneira unidimensional: não apenas na esfera do domínio
político, econômico ou social está o poder. Não o entendemos, também, como algo que existe
por si só – o poder não existe, o poder se exerce. Trata-se de uma construção histórica que
tem múltiplas formas e que está presente em todas as relações sociais, em rede, permeando
todas as práticas cotidianas. Daí a utilização do termo relações de poder.

O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a idéia de que existe, em um


determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder,
me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de
um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de
relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos
coordenado. (FOUCAULT, 2012, p. 369)

O poder reside, para o autor, é uma modificação que permeia uma rede de
mecanismos de poder. Esta rede (determinada pela lei, pela tradição, diferenças culturais…)
permite a uma unidade interferir intencionalmente nas ações das outras, provocando
mudanças, quase sempre adotadas como resposta a interesses particulares. Daí a
intencionalidade.

A totalidade deste sistema é o que ele chama de “diagrama de poder”, onde existe uma
“mútua pressuposição”, nos termos de Deleuze (HELLER, 1996), entre mecanismos de poder
e diagrama de poder. O exercício de poder modifica constantemente a anatomia do diagrama,
mas só é possível debruçando-se sobre mecanismos pré-existentes de poder. É isso que o
autor entende por não-subjetividade. No entanto, ele vai mais além: o uso que indivíduos
fazem de seu poder pode ser igualmente não subjetivo se há uma disjunção entre entre a
intenção da ação e seu efeito concreto.

1595
É aí que reside a diferenciação proposta por Foucault entre tática e estratégia. Nem
todas mudanças institucionais acontecem deliberadamente: algumas são não-intencionais,
resultado do efeito inesperada da ação. Táticas são ações intencionais determinadas;
estratégias são efeitos não-intencionais, mas institucionalizados, da articulação não-subjetiva
de táticas distintas de diversos grupos e indivíduos. As instituições nascidas da disjunção
entre intenção e efeito conseguem se sustentar na medida em que os sujeitos nelas envolvidos
reconhecem a legitimidade de sua tática. Isso as permite operar mesmo que tais sujeitos não
reconheçam as consequências, i.e. a estratégia final, de tais instituições.

Tal anatomia das relações de poder tem como consequência a subjetificação. O sujeito
nasce, único, em um ambiente pré-formado, em que cultura e, sobretudo, língua lhe são
anteriores e são o ponto de partida da construção da subjetividade. Toda escolha tática do
sujeito é, portanto, uma escolha não-livre na medida em que o sujeito apenas pode escolher
táticas que pode formular discursivamente. A subjetividade nunca é, portanto, plenamente
livre e depende inteiramente do processo de subjetificação.

O processo de subjetificação é heterogêneo, formado por múltiplos discursos, capazes


de formar tanto poderes hegemônicos quanto contra-hegemônicos. Na verdade, de acordo
com Foucault, a inevitável multiplicidade de discursos sempre presentes garante que a
subjetificação produza posições subjetivas estruturalmente incompatíveis. Tais posições
subjetivas, hegemônicas ou contra-hegemônicas, se capazes de produzir mudanças, são
poder. Porque usurpar de todos os grupos oponentes todos os mecanismos de poder é
improvável e porque todo mecanismo de poder - notoriamente o discurso - é potencialmente
reversível, a resistência é uma das faces de toda relação de poder. A subjetificação, portanto,
não significa a impossibilidade da emergência de posições de sujeito liberadas (que Foucault
opõe às repressivas), isto é, em relações de poder em que indivíduos ou grupos não são
capazes de congelar determinadas relações de poder e torná-las imutáveis, irreversíveis. A
proliferação da possibilidade, para Foucault, é liberdade. (HELLER, 1996)

1596
CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS

3.1 A mulher virtuosa

Em Bargaining With Patriarchy (1988), Deniz Kandiyoti define as regiões


compreendidas pelo Norte da África, Sul e centro da Ásia e o Oriente-Médio muçulmano
como dominadas por aquilo que ela chama de patriarcalismo clássico, cuja reprodução está
relacionada com a família estendida e a autoridade concedida a membros anciãos de uma
sociedade. Essa organização, afirma a autora, relacionaria-se possivelmente com a
incorporação e controle da família pelo Estado. Tal interpretação as associa a dominação do
sexo masculino sobre o feminino às mudanças em termos de produção agrária da transição
para o período Neolítico.

O patriarcado, de tipo clássico, que emerge então, para Kandiyoti, é definido pela
preponderância das figuras paternas em termos não apenas simbólicos mas materiais,
usurpando da mulher sua possibilidade produtiva através do cerceamento ao trabalho,
educação e à esfera pública. É baseado na família, ou tribo, seu núcleo político fundamental.
A endogamia, prática que precede em muito o Islã, foi adotada como meio de manter a
propriedade dentro da mesma família. A mulher, capaz de gerar filhos - e, portanto, força
produtiva -, passa a entrar na mesma lógica econômica, como propriedade, e o casamento
torna-se transação.

Há uma série de códigos, normas, que guiam o comportamento feminino na direção


do ideal de mãe e esposa, especialmente através da associação entre honra familiar e
virtuosidade feminina, e restringem o comportamento de diversas formas. Segundo
uma guerreira curda de Rojava, “é claro que o patriarcado prevaleceu aqui também,
e igualdade entre gêneros era algo sobre o qual não se poderia sequer sussurrar”
(KNAPP; FLACH; AYABOGA, 2016)

Além disso, dentro de um mesmo núcleo familiar, mulheres mais velhas (em especial
a sogra) ocupam uma posição superior em relação àquelas mais jovens, o que serve de
amparo para estas, que vêem na maternidade possibilidade de ascensão social, perpetuando
um ciclo que mantém as mulheres nas esferas inferiores da sociedade.

1597
A Turquia, por sua vez, parece excluir-se dessa lógica tradicional. O país, desde o
final do século XVIII, passou por diversas reformas de proclamado intuito de modernização;
em particular, a Revolução Kemalista. Trata-se de um projeto de modernização, em que
dissemina-se um discurso progressista que prega a igualdade entre gêneros no nível legal.
Nesse processo, as mulheres ganharam acesso ao espaço público e participação na educação e
trabalho. Contudo, o discurso de igualdade tem base nacionalista: é a identidade nacional -
vale lembrar que este processo desdobra-se enquanto a Turquia busca estabelecer sobre as
ruínas de um Império Otomano multiétnico e multicultural - que deve ser colocada acima dos
sexos.

Neste processo, as mulheres curdas foram, portanto, amplamente marginalizadas.


Paralelamente, os curdos são vistos como uma minoria a ser suprimida em prol do projeto
modernizador da nova Turquia. Em uma sociedade em que a identidade curda não é
reconhecida, e mesmo a língua curda proibida nas escolas, a opressão da mulher curda não
era uma questão, e seu acesso às instituições que as permitiriam buscar ajuda lhes são
inacessíveis.

Observamos que por todo território em que os curdos estão espalhados as mulheres
sofrem esse tipo de dupla opressão: em função de seu gênero, no seio do cinturão patriarcal, e
em função de sua identidade étnica. Os curdos, oriundos das montanhas fronteiriças do
(atual) Irã, têm por séculos lutado pelo reconhecimento de sua identidade. Durante a
expansão persa e sua luta contra o Império Otomano, os príncipes curdos, em sua maioria,
entraram em acordo com o sultão, que os concedia poder e autonomia, e passaram a integrar
o Império. É durante seu período de decadência otomano, no início do século XIX, que a
questão da autonomia curda, como um todo, na forma de um Curdistão unificado, toma as
elites locais, ameaçadas pela crescente intervenção e contingências postas pelo Império.

Quando da dissolução efetiva deste, a questão curda foi levada até a comunidade
internacional e chegava a integrar o Acordo Internacional de Sèvres entre a França, o Reino
Unido, os Estados Unidos e o Império Otomano. O acordo previa a formação de um Estado
curdo em parte do território do Curdistão.

No entanto, este plano nunca se concretizou. Logo os territórios em que os curdos se


instalavam foi divido em quatro territórios: Turquia; Síria, sob tutela francesa; Irã e Iraque,

1598
sob protetorado inglês. Cada um destes países estabeleceu sua própria relação com os povos
curdos, mas os projeto nacionalistas das nações recém formadas foram unânimes em
negligenciá-los.

Observamos, portanto, que mesmo no eixo mais progressista do cinturão patriarcal a


mulher curda é vítima de marginalização e violência, especialmente se associada - ou acusada
de associação - ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). O discurso predominante
sobre a mulher curda na Turquia segue sendo o do patriarcado, o namus (honra), a norma.

O namus é definido como a vigília sobre o corpo, comportamento e sexualidade


femininos. É essa noção que vai orientar em grande parte a maneira como a mulher deve
realizar/viver seu gênero, da mesma maneira que ela orienta também os homens. É
extremamente importante guardar a honra da família, e essa honra é portada pela mulher,
vista como seu assento fundamental. O namus, nesse sentido, pode ser concebido como um
discurso cujo resultado é a solidificação do patriarcado e, portanto, submissão feminina.

Tal namus serve a manter a mulher nos lugares aos quais ela pertence: a família, o lar.
Nas sociedades curdas, o papel biológico das mulheres é ainda fundamental. O valor de uma
mulher é com frequência atribuído a sua capacidade de gestar e criar filhos. Quanto mais
filhos ela tem, mais honra ela carrega.

3.2 A construção discursiva do PKK


2.2.1 Anos 1980

Em 1978, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), de ideologia marxista-


leninista, emergiu na Turquia com o objetivo inicial de fundar um Curdistão independente.
Sua figura central era então, e segue sendo hoje, Abdullah Öcalan. Na Turquia, os curdos
representam a minoria étnica (seguida pela árabe) mais expressiva. No início dos anos 1980,
Öcalan fugiu para a Síria, onde os curdos haviam sido usurpados de sua cidadania desde
1962, quando o censo de Hasaka os excluiu da cidadania, condição hereditária.

Öcalan foi, em grande parte, responsável direto por formular as diretrizes do partido.
Durante os anos 1980, o PKK formulou um programa partidário que coloca à frente

1599
elementos da tradição e, ao mesmo tempo, de modernização. Sua ideologia baseava-se
essencialmente na ideia de que as classes soberanas curdas, em aliança com o dominador
estrangeiro, turco, teria limitado os curdos ao horizonte do patriarcado, que representa o
Estado particular de cada homem, intrinsecamente associado ao capitalismo.

O partido formula, então o ideal do novo homem. Era preciso chamar os curdos de
todas as partes do Curdistão para a luta de emancipação contra o inimigo imperialista e
capitalista. De acordo com essa teoria, seria preciso se emancipar individualmente, mudar de
hábitos e sacrificar seu próprio desejo para atingir a nova ordem social.

Nos anos 80, a família tradicional, baseada no patriarcalismo clássico, passa ser vista
como um empecilho para a efetivação da vitória. O namus, que trancava as mulheres curdas
em casa, mantinha contingenciado um possível exército. Quebrar as correntes que oprimem
as mulheres seria necessário não apenas para a liberação do povo em geral: Öcalan cria que
as mulheres, enquanto vítimas da exploração capitalista e, paralelamente, aquela do
patriarcado, seriam mais abertas a ideias radicais e mais motivadas para a luta.

Paralelamente, homens eles também seriam vitimados por essa ordem estatal,
patriarcal e capitalista, essencialmente por causa da mulher. Em suas Análises, Öcalan fala
acerca de uma estrutura patriarcal que trancafia mulheres dentro de casa, “puxando-as para
baixo”. Essas mulheres, por sua vez, “puxam o homem para baixo” (ÇAGLAYAN, 2012), e
por tal razão o curdo que se pretendesse militante deveria evitar tais laços familiares.

Portanto, a vitória apenas seria possível com a ruptura com a ordem patriarcal, estatal
e capitalista e, para rompê-la, seria preciso uma nova abordagem da mulher, do homem e de
sua relação. A ordem apenas poderia ser vencida a partir da formulação de uma nova
personalidade. Essa concepção tomou forma na teoria do Novo Homem:

O novo homem não bebe nem joga, nunca pensa em seu prazer e conforto pessoais,
e não há nada de feminino sobre ele, e aqueles que [no passado] e aqueles que
participavam de tais atividades vão, afiados como uma faca, cortar todos esses
hábitos assim que ele ou ela estiver entre novos homens. A filosofia e moralidade do
novo homem, sua postura, seu estilo, seu ego, atitudes e reações [tepki] são dele e
dele apenas. A base de todas essas coisas é o amor pela revolução, liberdade, país e

1600
socialismo, um amor que é sólido como rocha. Aplicar socialismo científico à
realidade de nosso país cria o novo homem2 (UÇULU apud GROJEAN, 2013)

O objetivo do PKK é preparar todas as bases da sociedades, a partir do indivíduo, para


a revolução.

3.2.2 Anos 1990

Com a crescente e insistente participação feminina na esfera pública - especialmente


durante as celebrações do Newroz em 1991, 1992 e 1993 -, nas fileiras do partido e na
guerrilha, tornou-se claro que o partido deveria deixar de falar das mulheres e começar a falar
a elas: a dupla opressão à qual elas eram submetidas – do patriarcado e do capital - só poderia
ser parada pela tomada de controle da luta das mulheres por elas mesmas. No início dos anos
1990, as mulheres representam um terço dos militantes do partido, participando das
guerrilhas nas montanhas e provando sua força. O movimento das mulheres havia conseguido
promover mudanças organizacionais em que as mulheres eram incentivadas a formarem suas
próprias unidades de combate, sem comandantes homens, que tomou a forma do Yekîneyên
Jinên Azad ên Star (YJA Star). Por fim, o PKK integra, finalmente, a questão feminina a seu
programa oficial em 1993 e passa a se dirigir diretamente às mulheres.

O PKK passava, neste mesmo período, por uma ampla reformulação ideológica. A
queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o Fim da Guerra fria foram
certamente fatores de impacto sobre a decisão do partido de declarar cessar-fogo na Turquia e
o abandono das reivindicações separatistas. Existe, nesse momento, um vácuo ideológico que
precisa urgentemente ser preenchido em prol da motivação à luta.

Neste contexto, uma inversão mitológica interessante acontece, que acreditamos


ilustrar adequadamente a mudança pretendida pelo PKK. Anteriormente, o mito fundador
curdo referia-se à figura de Kawa, metalúrgico tido como liberador dos Medes – tribo que
antecedeu os povos curdos. Kawa teria conduzido uma revolta popular que livrou a tribo do

2
“The new man does not drink does not gamble, never thinks of his own personal pleasure or comfort, and
there’s nothing feminine about him, and those who [in the past] indulged in such activities will, sharp as a knife,
cut out all these habits as soon as he or she is among new men. The new man’s philosophy and morality, the
way he sits and stands, his style, ego, attitude and reactions [tepki] are his and his alone. The basis of all these
things is love for revolution, freedom, country and socialism, a love that is as solid as rock. Applying scientific
socialism to the reality of our country creates the new man”

1601
domínio assírio. Nesse momento, contudo, a figura libertadora de Kawa é preterida em prol
de uma heroína: Zilan.

Zilan (Zeynep Kinaci) cometeu um atentado suicida em 1996, em protesto contra a


prisão de Öcalan na Síria. O ato aconteceu durante uma parada militar turca, matando 11
soldados e ferindo 44. Ela fazia parte das fileiras do PKK desde 1994, e deixou uma carta ao
presidente em que afirmava:

Eu quero ser parte da expressão da total da luta de libertação de nosso povo.


Explodindo uma bomba contra meu corpo eu quero protestar contra as políticas de
imperialismo que escravizam as mulheres e expressar minha raiva e me tornar um
símbolo da resistência das mulheres curdas. Sob a liderança de Apo [Abdullah
Öcalan], a luta de libertação nacional do povo curdo irá, finalmente, tomar seu
muito merecido lugar na família da humanidade 3 (KINANCI, Z. 1996. Tradução
nossa)

Zilan se torna então a perfeita representante do tipo de auto-sacrifício pela nação que
o PKK visava promover. Mais importante, Zilan era mulher. No novo mito, fundado pelo
partido, a liberação dos povos é uma missão feminina. Zilan se torna, então, origem de um
novo mito constitutivo, muito mais útil à causa revolucionária do que Kawa, o metalúrgico.

Mais além, o partido difunde um novo mito fundador. A ideia central é que havia um
tempo quando, sem as potências imperialistas, o homem e a mulher curdos podiam viver de
acordo com suas próprias identidades. Era a Mesopotâmia. Essa ordem social, matriarcal e
pacífica, teria sido destruída pela dominação estrangeira, notadamente turca.

Nessa ordem, a mulher representava o papel principal. A mulher fazia a colheita e


controlava o surplus produtivo das sociedades agrícolas mesopotâmicas. Tais atividades são
pacíficas e não precisam de guerra. Foi quando os “homens fortes” e os xamãs
deliberadamente roubaram a liderança feminina e estabeleceram o poder patriarcal e
hierárquico inicial, através da caça e da guerra, que o declínio dessa sociedade pacífica
começou. Passava-se do culto da mãe, cuja autoridade vinha do fato de formar a bases do
corpo social, ao culto do pai. O homem, dotado de uma “inteligência analítica” a sobrepôs à
“inteligência emocional” das mulheres (OCALAN, 2013) . Paralelamente, para se

3
“I want to be part of the total expression of the liberation struggle of our people. By exploding a bomb against
my body I want to protest against the policies of imperialism which enslaves women and express my rage and
become a symbol of resistance of Kurdish women. Under the leadership of Apo, the national liberation struggle
and the Kurdish people, will at last take its richly deserved place in the family of humanity.”

1602
estabelecer, o poder masculino desenvolveu um repertório mitológico que lhe conferia
autoridade.

Esse momento, fundador do patriarcado, representa o que Öcalan chama de primeira


grande ruptura sexual. Seguem-se séculos de reforço do poder através de uma estrutura
autoritária e hierárquica que está na base do atual poder estatal. É durante o feudalismo que a
mulher recebe o segundo golpe: aquele das religiões monoteístas, chamado segunda grande
ruptura sexual. A partir desse período a sexualidade feminina é concebida como o mal mais
absoluto: a mulher se torna o símbolo do pecado. Seu papel é limitado a gestar e criar os
“deus-filhos” e a esfera pública lhe foi completamente proibida. A família se tornou
finalmente o pequeno Estado de cada homem; a mulher, seu escravo. É por essa razão que a
família e o casamento são, para Öcalan, os maiores obstáculos à liberdade.

Reorganizar a sociedade curda queria dizer, então, voltar às origens e construir uma
nova identidade curda, baseada nas características intrinsecamente femininas: sensibilidade,
pacificidade e amor à natureza.

Uma operação discursiva sobre o namus chama atenção nesse período: se,
anteriormente, era diretamente associado a corpos e condutas, seu objeto passa a ser visto
como a nação. Existiria, de acordo com o PKK, um namus, uma honra, da terra natal, que
estaria sendo violada pelo invasor estrangeiro. Essa operação serve, ao mesmo tempo, para
motivar os homens na defesa da honra da terra natal e para remover a barreira do namus
tradicional que mantinha as mulheres em casa.

A esta altura já estava claro que o antigo discurso que se referia a mulheres como
seres passivos esperando para ser libertados não correspondia de todo à realidade. Um
poderoso discurso emerge nesse contexto: a mulher que liberta a si mesma está libertado a
sociedade. Percebe-se claramente, através do que foi exposto, que a questão feminina ocupa
um grande espaço na nova agenda do PKK nos anos 1990, possivelmente preenchendo
lacunas deixadas pelo marxismo, como sugerido por Çaglayan, e confere à agência feminina
papel primordial.

A bibliografia estudada sugere amplamente a emersão, no contexto da reformulação


ideológica do PKK nos anos 1990, de um novo discurso de poder acerca do sexo feminino.

1603
Olivier Grojean chega a apontar para a possibilidade de emergência, nesse contexto, de um
novo namus.

Como vimos anteriormente, a reformulação ideológica do PKK colocava a mulher


como baluarte revolucionário ao mesmo tempo que proclamando a necessidade de
reformulação da personalidade – sobretudo masculina – e estabelecendo diversos scripts de
gênero que estabelecem os comportamentos adequados. Tais scripts não são sempre coerentes
entre si e os comportamentos que deles derivam tampouco.

Constatamos que a mulher é percebida como um ser naturalmente emocional e


pacífico. É assim que deve ser, pois é a natureza feminina e o objetivo é voltar ao estado
natural neolítico, o matriarcado, a dominação da mulher-mãe. O papel de mãe permanece
essencial. Öcalan (2013) lamenta mesmo que em tais sociedades ditas ocidentais a cultura da
mulher-mãe tenha sido destruída.

Contudo ele diz também (2012) que a vida familiar é uma barreira à individualização
das mulheres, e que seria preciso se distanciar da família opressora e do amor sexual. A
mulher é vista também como amorosa, mas esse amor feminino deve ser dirigido à terra
natal. O amor é, com efeito, um ideal para o futuro, pois o amor só é possível com a vitória,
preocupação maior.

Trata-se de um discurso fortemente dirigido às mulheres combatentes: na guerrilha é


estritamente proibido demonstrar amor por o que quer que seja, exprimir vontade de ser mãe
ou falar da vida e da família antes da guerrilha. As relações sexuais também são proibidas e
fortemente punidas; na verdade, todo contato mais ou menos íntimo entre guerrilheiros e
guerrilheiras pode ser constrangedor para as mulheres. Se adicionarmos que, entre as
guerrilhas curdas, de acordo com Grojean (2013), uma espécie de divisão do trabalho
revolucionário persiste - não sem grande resistência das mulheres, é preciso dizer - e que a
mulher curda tem, grosso modo, duas grandes opções de ofício: dona de casa ou soldada.
Curiosamente, mas nos eximimos de tirar conclusões, são estes exatamente os dois elementos
que estão na origem do patriarcado, de acordo com Joan Scott: controle sobre as funções
reprodutivas e do trabalho produtivo.

1604
Um terceiro discurso sobre a mulher: a boa mulher é aquela que luta, que faz
sacrifícios. A posição da mulher não é independente do ideal de uma nova sociedade, e seu
valor nessa nova ordem social é dado por sua disposição a fazer parte da luta pela sociedade
curda e se sacrificar. Um provérbio curdo diz: para merecer ser amada, é preciso ser bela; só é
bela aquela que luta. O amor está diretamente associado à luta pela terra natal: é preciso amar
apenas a terra, os curdos e, sobretudo, Apo (tio), quer dizer, Öcalan. A única forma de
libertação efetiva da ordem patriarcal é a luta por todos os curdos. Mesmo em termos
práticos, um pai pode impedir sua filha de se educar ou de trabalhar, mas impedi-la de lutar
seria considerado uma traição.

Entretanto, como vimos, a partir do momento que a mulher decide deixar o lar e a
ordem patriarcal que lhe impõe o namus, ela entra em uma outra esfera, como indica Grojean
(2013), a esfera do namus social.

O partido estabeleceu identidades femininas e masculinas ditas reacionárias e


revolucionárias, determinou no seio da guerrilha relações de gênero que lhe convinham. Mais
além, acreditamos que a sacralização de sua própria figura pode ser um possível empecilho
para a contestação de suas ideias.

4 CONCLUSÕES PARCIAIS

Como demonstramos, há uma multiplicidade de discursos acerca das mulheres que


passaram a coexistir ao longo das últimas décadas, cuja origem é também diversa. O que
observamos é a formação de um complexo diagrama de poder de uma grande multiplicidade
de sujeitos e mecanismos.

Este diagrama vem sido rapidamente modificado pelo exercício de poder de vários
atores, dentre os quais nós destacamos representantes da ordem patriarcal, as mulheres
curdas, o PKK. A rapidez do processo podem possivelmente ser explicadas pelas as
circunstâncias excepcionais do Curdistão sírio, que se tornou autônomo no século XXI,
paralelamente à guerra.

No entanto, como mudanças no diagrama de poder só podem ser operadas se fundadas


sobre mecanismos anteriores de poder, o resultado é a continuidade. No caso estudado, a

1605
continuidade é representada pelos mecanismos tradicionais de dominação sobre o sexo
feminino. Não coincidentemente, podemos perceber elementos que permeiam tanto a tradição
patriarcal acerca do sexo feminino quanto a alternativa revolucionária apresentada pelo PKK.

Inferimos – e, neste ponto, concordamos com grande parte dos autores estudados –
haver embutido nos discursos do PKK um subjacente desejo de manter as mulheres sob
controle, ainda que encorajando-as a sair de suas casas. Esse domínio se materializa nas
restrições às quais as mulheres guerreiras são submetidas no que diz respeito à sua
afetividade e sexualidade.

Contudo, a ação feminina neste mesmo diagrama, suscitada por um discurso que
essencializa e atribui à mulher pacificidade, parece levar a consequências inesperadas a
princípio: a inversão dos anos 1990 indica a necessidade de adaptação de um discurso que se
provava errôneo a cada bala disparada por um fuzil feminino, pela criação de exércitos
próprios, pela criação de um partido autônomo feminino, etc. Gostaríamos de apontar aí para
uma possível disjunção inicial entre a intenção do discurso de poder e seu efeito concreto,
que acaba provando o próprio discurso falso e obrigando sua reformulação; isto é, a
existência de uma tática de mobilização de militantes e soldados e a estratégia, resultado
inesperado da ação, de autonomização efetiva das mulheres.

“Se um homem bate em uma mulher,” diz Adile, “ele fica pelo menos um mês na
prisão. Antes, as mulheres não possuíam direitos. Mas agora temos até mesmo
cortes femininas. As mala jinan (casas femininas), as Asayîşa Jin, e as cortes
prestam assistência mútua. Quando há problemas entre homens e mulheres, nós
documentamos o problema e depois falamos com o homem. Muitas vezes eles
deixaram suas esposas. Se não podemos resolver o problema, como quando o
homem não paga pensão alimentícia, então vamos até a corte. E investigamos
casamentos de menores de idade. Existe um mercado real de casamentos na
Turquia. Meninas são vendidas na Internet.” (KNAPP; FLACH; AYABOGA,
4

2016. Tradução nossa)

4
“If a man hits a woman,” says Adile, “he gets at least a month in jail. Previously women had no rights. But
now we even have women’s courts. The mala jinan [women’s houses], the Asayîşa Jin [see 9.4], and the courts
all mutually assist one another. When there are problems between men and women, we document the problems,
and we talk to the men. Many times they’ve left their wives.If we can’t solve the problem, such as when a man
pays no alimony or child support, then we go to court. And we investigate underage marriages. There is a real
marriage market in Turkey. Girls are sold over the Internet.”

1606
É a partir dessa disjunção, sugerimos, que nascem instituições de organização
exclusiva feminina, como partido e exército, cuja legitimidade pode residir, possivelmente,
mais do fato de fazerem parte de uma tática emancipatória dos povos curdos do que na
estratégia de libertação feminina.

Essa tática, argumentamos, pode ter sido incorporada pelas mulheres curdas
exatamente por conta de seu complexo processo de subjetivação, sua emergência em um
contexto de dominação patriarcal, no seio de uma sociedade marcada pelo marxismo, cujo
principal agente discursivo contra-hegemônico apresenta uma única tática possível. Como
argumentado por Foucault, toda escolha tática é não-livre.

Dentro do PKK, no entanto, a não-hegemonia é o discurso hegemônico. Existe,


portanto, possibilidade de resistência. As mulheres integraram intimamente o processo de
formação e expansão do PKK e de seus discursos. A relação que se fundou entre o PKK e
suas militantes femininas, a partir de então, as incluía dentro de suas instâncias
organizacionais. Assim sendo, as mulheres passam a ter elas próprias acesso aos mecanismos
de poder vigentes, sendo capazes, pois, de alterar as relações de poder. Este ponto nos parece
essencial para indicar para possibilidade de uma relação de poder liberada entre as
organizações curdas contemporâneas e seus componentes femininos, em contraponto à
relação clássica entre patriarcado e mulheres, na qual não há qualquer espaço para mudança.

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1608
El Alto Desde Abajo: Histórias de uma Cidade Insurgente

Mariana Bruce*

I. A Outra América

O continente americano é um território ocupado por povos milenares que durante séculos de
opressão e colonialismo sobreviveram e resignificaram seus saberes e práticas ancestrais. Os povos
dos Andes, em particular, sob o protagonismo indígena, têm ocupado um papel de destaque no
diálogo com a Modernidade Liberal com vistas a indicar a existência de outras racionalidades e de
outros caminhos possíveis para a humanidade1.
É sintomático que “de las 100 millones de personas latinoamericanas que tienen que vivir con
un dólar por día, un 80% pertenece a la población nativa y mestiza, tiene color moreno o negro y
vive en el campo o en las grandes barriadas o villas urbanas” (ESTERMAN, 2006, p. 9). Contudo, a
despeito do “epistemicídio” (SANTOS, 2005) vigente, como produto dessa realidade social, a
América Latina se mantem como um laboratório fértil de formulações e concepções de mundo
alternativas.
Na Bolívia, em particular, em 2005, como parte de um contexto de amplas manifestações e
contestações houve a eleição do primeiro presidente indígena do continente, Evo Morales -
sindicalista aymara egresso do movimento cocalero de El Chapare/Cochabamba 2 . Nesse país
existem 36 grupos étnicos reconhecidos. Os aymaras e os quéchuas são os mais numerosos,
correspondendo respectivamente a 17 e 18% de um total de quase 7 milhões de bolivianos
entrevistados (INE, 2012)3. Logo em seguida vêm os guaranis, localizados na região amazônica
que, por sua vez, se subdividem em vários grupos (guarayos, pausernas, sirionós, chiriguanos,
matacos, chulipis, taipetes, tobas, yuques, entre outros). Foram estas as principais bases de apoio
que possibilitaram a eleição de Morales. Com isso, em meio a um processo permeado por tensões,
*
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF) e bolsista Cnpq.
1
É certo que, apesar das resistências, houve também diversas formas de colaboração. Não temos a intenção de
reproduzir um quadro vitimizador dos indígenas, apenas estabelecer que o foco desse artigo é a dimensão da resistência.
2
O movimento cocalero é produto de um processo de reestruturação do sindicalismo camponês que teve início nos anos
1970, principalmente com os kataristas, e foi impulsionado pela resistência aos esforços do governo, com apoio dos
EUA, de erradicar a produção de coca em nome da guerra contra o narcotráfico. Possui uma forma híbrida: um
sindicalismo herdeiro das tradições urbanas, mas, ao mesmo tempo, profundamente influenciado pelas tradições
indígenas, da organização dos ayllus. Tem por capital simbólica a região de El Chapare, em Cochabamba, de onde teve
início a trajetória política de Evo Morales. Em 1995, as federações cocaleras desembocaram no Movimiento al
Socialismo/MAS, concebido como um Instrumento Político-Eleitoral para a disputa institucional na Bolívia.
3
A população total da Bolívia é de aproximadamente 10 milhões de pessoas, porém, somente aqueles acima de 15 anos
são perguntados quanto a autodeterminação em relação a alguma identidade étnica, o que corresponde a 69% do total da
população levantado pelo Censo. Das 6.916.732 pessoas perguntadas, 40% reivindicaram pertencer a alguma etnia,
enquanto 58% afirmaram não pertencer a nenhuma. (INE, 2012, p. 31).

1609
polêmicas e ampla participação, foi possível construir um projeto de Estado Plurinacional e
Comunitário que ganhou um primeiro esboço na Nova Constituição Política do Estado/NCPE,
aprovada por referendo em 2009.
Apesar de Morales não ter rompido completamente com os paradigmas hegemônicos 4, seu
governo e a nova Constituição deram maior visibilidade para a questão indígena no continente
desde uma perspectiva em que se apresenta a potência existente em outras formas de viver que re-
existem há tanto anos sob o colonialismo interno. Neste artigo, vou tratar da história de El Alto,
cidade aymara localizada a 10 km de La Paz e a 4.100m de altitude, onde ocorre um rico diálogo
intercultural entre tradições indígena-comunitárias e elementos urbano-ocidentais herdeiros da
Modernidade Liberal. El Alto foi palco de insurreições históricas, desde o período da colonização
até os dias atuais, com destaque para a Guerra do Gás de 2003 que levou à queda de dois
presidentes da República e o Gasolinazo em 2011, já sob o governo de Evo Morales.
A proposta é apresentar uma perspectiva da cidade e de suas lutas, a partir de uma visão
"desde abajo", isto é, a partir da história oral de algumas de suas lideranças históricas, como Irene
Mamani Ojeda ex-dirigente da FEUJE na ocasião da Guerra do Gás de 2003, entrevistada por mim
em trabalho de campo realizado em janeiro de 2017 e de algumas obras bibliográficas, com
destaque para a etnografia de Sian Lazar, antropóloga inglesa que morou em Rosas Pampa, região
de El Alto, entre 1997 e 2004 e acompanhou o dia a dia das organizações coletivas, particularmente
da junta vecinal local e a Federación de Comerciantes Minoristas e que traz igualmente
importantes contribuições.

Cidade Insurgente

As lutas na cidade de El Alto tiveram início ainda sob o Império Espanhol, atravessaram a
República e permanecem no Tempo Presente. Apesar de ter sofrido profundas transformações ao
longo dos anos, El Alto foi se tornando um palco emblemático de insurreições. Para Pablo Mamani
Ramirez, é “uno de los lugares el que mejor resume este largo recorrido de la lucha en la colonia y
la república” (RAMIREZ, 2005: 27). Sua posição é estratégica do ponto de vista geopolítico, pois,
pela cidade, passam as principais estradas que ligam a capital ao restante do país5. Por essa razão, a
tática de obstrução de vias, conforme veremos mais adiante, é reiteradamente utilizada em

4
Pablo Mammani Ramirez em seu balanço sobre os “Cuatro Años del ‘Estado Plurinacional’” (2014) aponta para o fato
de ser um governo que continua reprimindo e matando indígenas que não coadunam com a insistência de um projeto
desenvolvimentista e predatório (cuja maior expressão foi a tentativa de construir uma estrada na reserva florestal de
TIPNIS, desencadeando vários conflitos).
5
Também o local onde está situado o Aeroporto de La Paz.

1610
momentos de crise uma vez que disso resulta o “estrangulamento de La Paz” (MACCHIAVELLO,
2008, p. 87).
El Alto conquistou sua autonomia de La Paz e recebeu o estatuto de cidade somente em 1988.
A alta concentração populacional e a sistemática ausência do Estado no sentido de oferecer políticas
públicas resultaram em profundos problemas sociais de infraestrutura que não acompanharam o seu
crescimento: “es una ciudad con profundos problemas sociales. Las calles son polvorientas, existe
pobreza, a los sectores marginales no llega luz, no hay fuentes de trabajo, por eso se le ha llamado
‘ciudad dormitorio’” (RAMIREZ, 2005: 29). Contudo, como afirma a antropóloga Sian Lazar
(2013, p. 43), “la ciudad es más que la suma de sus problemas sociales”
Da primeira grande onda migratória que ocorreu para a cidade nos idos dos 1950, como
resultado da Reforma Agrária de 1952 6 até a mais recente, nos anos 1980, devido às reformas
neoliberais que levaram ao fechamento de várias minas e a “relocalização”7 dos mineiros na região,
El Alto saltou de uma região periférica de La Paz para uma cidade autônoma com centenas de
milhares de habitantes. A despeito da representação que se tem de que se tratava de uma cidade
dormitório que se emancipou de La Paz porque cresceu demograficamente, pode-se considerar
também que El Alto em seu processo de formação, foi se tornando uma região com vida própria e
autônoma, estruturando-se muito mais como reflexo das relações profundas que sempre estabeleceu
com as províncias e outras regiões da Bolívia do que com a capital propriamente dita. “En la
actualidad el término ‘ciudad dormitório’ solo es adecuado para algunos barrios (principalmente
para Ciudad Satélite y Villa Adela)” (LAZAR, 2013, p. 41).
Do ponto de vista social, no último censo realizado, em 2012, El Alto contava com
aproximadamente 700 mil habitantes (INE, 2012). Destes, 80% consideram-se indígenas e 74%
autodenominam-se aymara. Segundo Raul Zibechi (2006 apud MACHIAVELLO, 2008: 95), El
Alto é a “primeira grande cidade índia do continente”. É a terceira mais habitada da Bolívia.
Bairros inteiros espelham as comunidades do interior com as quais se mantém um rico
intercâmbio que escapa à lógica comercial capitalista, mantendo um estreito diálogo ente o urbano e
o rural. Estes elementos são fundamentais para se compreender a dimensão da revolta
protagonizada pelos alteños no na Guerra do Gás.
No Norte da cidade, nos distritos 4, 5, 6 e 7, assim como no 9 (rural), observa-se uma maior
concentração de uma população aymara-camponesa proveniente das províncias do Altiplano Norte;
já os distritos 1, 2, 3 e 8, ao Sul, é constituído a partir de uma origem migratória mais diversa,

6
A Reforma Agrária não favoreceu aos camponeses de tradição comunitária, pois o parcelamento em cotas individuais
inviabilizou as condições de produção da vida. Além disso, intempéries climáticas também criaram um período de
profunda escassez e de fome no campo.
7
A relocalização foi o reassentamento, com apoio do Estado, dos mineiros em função do fechamento de várias minas.

1611
advinda de La Paz e de regiões mineiras, como Oruru, no Altiplano Sul. Essa divisão entre norte e
sul se inscreve na cosmovisão indígena de matriz relacional e complementária, bem como se origina
devido ao fato de que as zonas foram se constituindo a partir dos lugares de origem dos migrantes,
os quais permanecem profundamente articulados. Deste modo, gradativamente foi se constituindo
uma distinção entre os setores de origem “mineira” e os “de província” (campo). Para Irene Mamani
Ojeda, em entrevista realizada em janeiro de 2017,

El Alto es como Sao Paulo, donde, por ejemplo, Sao Paulo tiene boliviano,
perauno, brasileiro, chino, japonés, tanta cultura, ¿no? Aquí en El Alto tiene… hay
provincianos, de todas las provincias. En la Paz son 20 provincias. Todos tienen
sus provincias. Otros vienen de los centros mineros como yo, Colquiri, Catavi,
Siglo XX, Matilde. […] cada quien vive con lo que es y su costumbre. Los mineros
son ordenados y revolucionarios; los de provincia, son pacíficos, pero rebeldes; los
extranjeros también tienen otra cultura. […] Y así se va construyendo la ciudad.
Predomina pero esa cultura de las provincias y de los centros mineros. […] El
minero es más flanco, le habla. Los de provincia, tienen miedo. No te confían
fácilmente. Esa es la diferencia. Pero, las identidades se complementan. (OJEDA,
Entrevista, 2017)

Apesar das diferenças, vale notar que a distância entre mineiros e “os de províncias” é menor
ainda do que se pode imaginar haja vista que mesmo com toda experiência acumulada na luta
sindical em moldes mais influenciados por uma matriz ocidental, os mineiros redefinem essas
práticas a partir das tradições comunitárias que os próprios mantêm devido aos vínculos que não se
rompem com o mundo rural.

El sindicato llega de otro país, llega con los grandes barones del estaño. Y por la
pauperiza, salario, vivienda… los mineros aprenden a organizarse. Pero nosotros
como bolivianos, como naturales de aquí de estos terrenos, nuestros ancestros
también se organizaban, pero en diferentes estructuras. Se organizaban por ayllus,
donde trataban la siembra de parcelas, por decir de este ano esta parcela, otro ano,
esta otra parcela. Ya ahí está el respecto a los abuelos, a los más mayores que
manejaban estas organizaciones y nuestra identidad cultural. En el sindicalismo
maneja el que más habla, él que más o menos está más preparado. En los pueblos
son los más mayores. En los pueblos se organizan por obligación. Pero en los
centros mineros se eligen. Esa es la diferencia. Pero se complementan. (OJEDA,
Entrevista, 2017)

A noção de respeito às lideranças e às determinações tiradas em assembleia, por exemplo, que


foram centrais para o sucesso do Guerra do Gás, advém dessa interseção de mundos, conforme
sugere Ojeda.

El minero ha sido campesino, entonces mantiene esas sus raíces, por eso lo
respecta el dirigente que se elija. […] En el sindicalismo cualquier uno puede ser
cabeza, joven, viejos. En la parte del campo, es porque tienes terreno. Es rotativo.

1612
Va rotar. Primero vas tú, después el otro, y el otro y el otro, cada año va rotar […]
Hasta las escuelas manejan por cargo[…] En el sindicalismo también hay eso
porque nuestros ancestros, a los mayores se les respectaban sí, no se podría pasar
por su cabeza y lo que diga un mayor se le obedecía. En el sindicalismo si se
respecta, aunque sea joven, quien es cabeza, es cabeza (OJEDA, Entrevista, 2017)

As juntas vecinales, juntas escolares, demais sindicatos, todas as organizações coletivas são
de alguma forma afetadas por esses dois mundos, mineiro e “de província”, que potencializam sua
existência. No caso das juntas vecinales, estas “lo han hecho los mineros, campesinos y lo
complementan” (OJEDA, Entrevista, 2017). São construídas a partir de uma zona localizada em
cada departamento da cidade, podendo reunir, cada uma, cerca de 200 a 300 famílias. Como
governos locais informais, atuam paralelamente ao Estado, ora mediando a relação deste com a
sociedade, ora substituindo o Estado, nos casos em que este não se faz presente. Elas existem
praticamente desde o início dos assentamentos e articulam-se em um nível supra-local através da
Federación de Juntas Vecinales/FEJUVE que abrange os nove distritos desta cidade (revezando a
presidência entre representantes das províncias do Norte e do Sul), com mais de 500 juntas e que se
mantêm atuantes até hoje8.
De maneira semelhante ao que apontei referente às estruturas sindicais, as juntas, em tese,
podem ser consideradas como o equivalente às associações de moradores, instituição tipicamente
liberal. Porém, na prática, acabam atuando de maneira bem diferente, pois igualmente incorporam
um conjunto de valores e princípios herdeiros das tradições comunitárias do campo.

así se empieza a estructurar un conjunto de actividades propias de una nueva


ciudad bajo las lógicas de organización indígena, minera y la población ‘rebalde’
de la La Paz. Unos y otros ponen en movimiento por ese hecho varios sistemas de
ayuda mutua (ayni) y sistemas de vigilancia y control para el aporto de mano de
obra o de dinero orientados a la construcción de obras. Se empiezan a mover
entonces varios mecanismos de acción colectiva que hace que todos se sientan
como parte de la misma realidad social (MAMANI, 2005, p. 33)

Costuma-se associar à vida urbana um processo gradativo de fragmentação das identidades


coletivas de base comunitária em prol de um individualismo exacerbado, Se, por um lado, esta é
uma evidência em vários casos, em El Alto, ainda que se conviva com esse tensionamento, ao
mesmo tempo, pode-se observar também que, paradoxalmente, há uma tendência à redefinição dos
laços de lealdade e coletividade como condição que inclusive viabiliza a própria existência na
cidade. Segundo Lazar, a partir de sua experiência antropológica na região de Rosas Pampa,

8
A FEJUVE foi fundada em 1979, no contexto de luta pela democracia frente às ditaduras militares e em defesa da
municipalidade de El Alto.

1613
El término vecino hace referencia a una relación persona a persona, pero
además es una categoría que arraiga alguien en un espacio particular,
implicando residencia o habitación. Las personas que se me describían
frecuentemente como vecinos de su zona. [...] El término “zona” indica la
territorialidad del sentido de lealtad a un lugar que tiene la gente y ante otra
gente con similares lealtades (LAZAR, 2013, p. 71).

Tratam-se, assim, de noções de cooperativismo e coletivismo que são desdobramentos da


racionalidade aymara que ultrapassam as fronteiras entre campo e cidade. Para Fiorella
Macchiavello (2008), trata-se de um fio condutor emancipatório, na medida em que rompe com o
paradigma individualista, herdeiro das tradições liberais. De forma geral, nas juntas, as decisões são
tiradas em assembleias locais (que podem ocorrer semanalmente, de 15 em 15 dias ou uma vez por
mês, a depender da dinâmica de conjuntura e da própria urbanización correspondente) e os
mandatos podem ser rotativos ou por eleição. É o espaço por excelência de tomada de decisões
coletivas: para temas de muita importância, costuma ser necessário o consenso; nos demais, pode
haver regime de votação (MACCHIAVELLO, 2008, p. 141).
Há outros aspectos que Irene Mamani Ojeda considera centrais para o sucesso das
organizações populares em El Alto, dentre os quais, além das tradições do sindicalismo e do
comunitarismo, está a referência a algumas lideranças políticas, como a de Carlos Palenque,
também conhecido como “El Compadre”. Compadre Carlos era uma liderança carismática local
com grande influência sobre os alteños. Músico charanguista e empresário, atuou também como
comunicador social em uma rádio e, depois, com uma emissora de televisão, o canal 4, RTP9. Foi
candidato à presidência da Bolívia pelo partido Conciência de Patria/CONDEPA nas eleições de
1989, nas quais logrou o primeiro lugar na região de La Paz, mantendo-se como figura política de
referência a nível regional, com grande influência sobre as eleições municipais. Na televisão,
Palenque, através de uma retórica paternalista, convocava o povo a se organizar e atrelava
assistencialismo social ao engajamento político. Segundo Ojeda,

Antes llevamos las reuniones a cada 15 días. Nosotros sabíamos invitar a quien sea.
Una amiga, yo conozco a usted y la invito: tenemos reunión en el 15, ¿vas a venir?
Tenemos la Federación, podrías venir, quieres ayudar, así. Y para eso ha sido bien
fundamental el apoyo de Compadre Carlos, Carlos Palenque. Él tenía su emisora,

9
No começo dos anos 1980, Palenque começou um programa de rádio chamado La Tribuna Libre del Pueblo, no qual
as pessoas comuns poderiam usar o microfone para pedir ajuda, publicar eventos, denunciar crimes. Em 1985, o
programa começou a ser transmitido também pela televisão, pois Palenque havia comprado uma emissora. Devido a sua
popularidade, fundou em 1988 o CONDEPA, mas não conseguiu se eleger apesar de se consolidar como liderança
política de referência no Departamento de La Paz e, particularmente, em El Alto. Morreu em 1997 devido a um ataque
cardíaco, deixando um legado político que foi imediatamente apropriado por sua viúva, Remédios Loza, mulher
indígena, com quem compartilhava o programa e que havia sido construída como candidata para as eleições municipais.
Apesar da vitória nas eleições municipais o partido não conseguiu sustentar esse legado durante muito tempo e terminou
desmoralizado por escândalos de corrupção e má administração do poder público.

1614
canal 4, RTP. Él trabajaba con médicos, advocados, con una óptica. Entonces,
había una compañera que tenias problema en la vista, entonces, solicitábamos al
Compadre Carlos, solicitábamos para la compañera unos lentes, ella iba en la
óptica, medía y le daba sus lentes. Eso repercutía en otras mujeres. Entonces,
nosotros, cuando llamábamos a la reunión, o sea por agradecimiento o porque tenía
su la inquietud de hacer algo por la gente, venían. Y nuestros ampliados eran
llenos, nuestros congresos eran bien peleados porque veían que incluso cuando
alguien muria y no tenia recursos para enterrar, sabíamos que íbamos de nuevo al
Compadre Carlos. Él nos mandaba a las embajadas, a los ministerios… Él nos ha
ayudado alto. Ese sí ha hecho una formación político sindical al pueblo. Y desde la
radio, él siempre decía: “el gringo <aymara>”, decía a Sanchez de Lozada. Te
regala una libra de azúcar, un bañador, “recibiste, compadre, porque es tu plata, es
de vos, pero vota con la conciencia de que tú quieras mejores días para su país”.
Entonces, eso es una formación política y sindical. (OJEDA, Entrevista, 2017)

Para Sian Lazar, essas relações clientelistas não podem ser reduzidas a um viés manipulador e
unilateral. O caso de Palenque, em particular, expressa negociações de ambos os lados. Os clientes
não são passivos, mas são sujeitos que se utilizam de uma relação pessoal e direta com o Patrão
para obter benefícios para suas zonas e para instigar a participação política (LAZAR, 2013, p. 101-
102).

La relación de compradrazgo es muy importante en las sociedades andinas, y los


vínculos entre el padrino y los padres de su ahijado son a menudo más fuertes que
los que se establecen entre el padrino y ahijado. […] Palenque había puesto énfasis
en el compadrazgo […] era capaz de llamar a lealtad la gente a través del
compadrazgo, pero también demonstrar su voluntad de invertir en la comunidad.
Esto último implicaba que, en un sentido de reciprocidad, la gente estaba preparada
para votar por él debido a que al menos les había dado algo. […] la gente sentía
que el hecho de que hubiese puesto su propio dinero en obras implicaba que estaría
preparado para poner el dinero de la municipalidad en obras aún mayores
(LAZAR, 2013, p. 113-114)

Em períodos eleitorais tais cálculos se apresentam ainda mais estratégicos, pois são os
momentos, por excelência, em que estão abertas as negociações, as quais poderão determinar a
chegada ou não de recursos, obras e emprego à zona nos anos seguintes.
A partir dos anos 2000 ocorre uma ruptura nos espaços de negociação e os alteños começam
a protagonizar grandes mobilizações e paros cívicos. Através destas formas de protesto,
consolidaram-se métodos de luta eficazes para conquistar algumas demandas. A obstrução de
avenidas com pedras, destruição dos espaços de representação política (alcaldia, câmaras
municipais) e de empresas multinacionais avessas aos interesses populares (como a Aguas de
Illimani e a Electropaz) foram emblemáticos desta fase. A organização através das juntas vecinales
conferiu uma capilaridade e uma capacidade de mobilização que tornou a cidade ingovernável.
Tornaram-se símbolos do poder constituinte em curso, a whipala (bandeira multicolorida
quadriculada que expressa outra significativa chakana, o arco-íris), o poncho e a manta (estes dois,

1615
vestimentas características dos indígenas). Tais elementos, de um lado, somados às dinamites
carregadas pelos mineiros nas marchas, de outro, ilustram como o movimento acaba por articular
todas essas tradições.
Em El Alto, o descontentamento foi intensificado devido à gestão neoliberal de José Luis
Paredes, também chamado de Pepelucho, que foi eleito para a Alcaldía em 1999 pelo Movimiento
de Isquierda Revolucionario/MIR, partido que derrubou a hegemonia do CONDEPA que não
conseguiu manter a liderança após a morte de Carlos Palenque. Pepelucho também possuía um
canal de televisão, o canal 24, e se apropriou do legado de Palenque reinvindicando sua memória e
de muitos de seus símbolos. Apesar de não ser natural de El Alto, tornou-se conhecido pelas obras e
investimentos que promoveu na região em um longo caminho até se tornar candidato máximo à
prefeitura.

Durante años Jose Luis Paredes se ha manejado cuidadosamente hasta llegar a la


posición de candidato máximo para la alcaldía de El Alto. Fue apoyado por la
maquinaria partidaria del MIR y hasta cierto punto por su dinero, aunque él invirtió
gran parte de sus recursos personales tanto durante la campaña como años antes de
la elección ganándose el favor de los vecinos (LAZAR, 2013, p. 111)

Palenque apoiava o Governo de Gonzalo Sanches de Lozada (2002-2003) e foi responsável


por propor um conjunto de reformas neoliberais de reestruturação econômica, dentre as quais
destacam-se os Formulários Maya e Paya (um e dois em aymara) que previam um aumento
substancial sobre os impostos referentes a moradia. Os alteños recusaram-se a pagar, pois se tratava
de um aumento abusivo e as pessoas não tinham dinheiro. Diante das pressões da prefeitura pela
cobrança dos novos impostos, começaram a haver reuniões entre as juntas e outras organizações
coletivas de onde tiraram o encaminhamento de queimar a sede da prefeitura como forma de
protesto, conforme relata Ojeda.

[El Pepelucho] nos aplica un impuesto llamado el maya y paya. Este maya y paya
es en aymara que les dice primero y secundo. Entonces, este maya y paya, un
ejemplo, ¿no?, nosotros pagábamos 50 bolivianos de impuesto anual. En el maya y
paya nos propone pagar 80 pesos, pero en dos partes, 40 después 40. Un robo
disimulado, ¿no?, pero la gente para el entonces no había plata, no había donde
ganar, un plato de comida, un almuerzo costaba 3 bolivianos. Un plato así sencillo
para pasar el hambre, 50 centavos. Entonces, para nosotros, 40 pesos era mucho.
Empezamos a tener reuniones ampliadas en donde se rechaza el pago de ese
impuesto y Pepelucho nos culmina para que nosotros comencemos a las diferentes
zonas y distritos a que paguen esos impuestos. Entre tira y afloja, tira y afloja, no
negamos a que paguemos ese maya y paya, la gente rebaja y lo quema la alcaldía.
Donde se quema mucha documentación. Por eso es la Alcaldía Quemada.
Entonces, pasa ese del maya y paya y empezamos a decir ¿adonde están los
recursos que recibimos por los hidrocarburos? Nosotros comprobábamos la

1616
gasolina con 3 bolivianos, costaba más que un almuerzo muchas veces. Entonces,
empezamos a hacer números (OJEDO, Entrevista, 2017).

No país, o Governo Goni também enfrentava muitos descontentamentos devido à insistência


em reformas neoliberais; à possível assinatura da ALCA; à proposta de exportação do gás, uma das
principais riquezas naturais do país, pelo porto de Arica, no norte do Chile – território que a Bolívia
perdeu para os chilenos em uma guerra em 1879 e motivo de muitos ressentimentos por parte dos
bolivianos -; à aprovação da Lei 2494 de “Protección y Seguridad Ciudadana” que, na prática,
criminalizava os protestos, entre outros.
No auge dessas insatisfações todas, em 2003, Edwin Huampu, morador da comunidade de
Cota Cota, localizada nos arredores de El Alto, acusado de ter assassinado dois ladrões de gado, foi
preso. Contudo, a decisão pelo justiçamento dos ladrões foi tomada em assembleia atendendo aos
trâmites da justiça comunitária aymara. Ao individualizar em um dirigente uma ação que fora
decidida coletivamente, o Estado ficou isolado.
No auditório da emissora de Rádio San Gabriel, em El Alto, dirigentes aymaras – dentre eles,
Felipe Quispe 10 -, tentaram uma negociação com dois viceministros que não foi bem sucedida.
Diante da irredutibilidade do governo em liberar Huampu, o diálogo foi suspenso e os dirigentes
entraram greve de fome por tempo indefinido atrelando ao movimento todas as demais insatisfações
que vinham se acumulando. Também foi decidido em assembleias o bloqueio de avenidas por toda
El Alto.

[...] La táctica camponesa era simple: reunirse en un punto libre de la presencia


militar para colocar en el camiño cientos de piedras de gran tamaño e impedir con
esto el transito. Minutos más tarde, los militares, al tomar conocimiento del
“sembrado” pétreo, llegaban al lugar para limpiarlo. Pero en este instante, en otro
lugar, ya los campesinos repetian sus acciones, por lo que durante varias horas, si
bien hubo bloqueos defendidos por contigentes, fue imposible detener la protesta
(GÓMEZ, 2004, p. 33)

Apesar de algumas vitórias parciais, como a revogação do Formulário Maya e Paya, a


polêmica em torno da venda do gás ganhou uma dimensão nacional, tornada símbolo da luta pelos
recursos naturais no país. Em outros departamentos, tiveram início marchas, protestos e bloqueios.
Os dirigentes mantiveram a greve, assim como a obstrução de avenidas em El Alto. La Paz estava
isolada. O governo intensificou as medidas de segurança e lançou operativos, como o envio de

10
Felipe Quispe é considerado um Mallku, isto é, uma autoridade originária aymara. Militou em vários movimentos
sociais e organizações, tais como o Movimiento Indígena Túpac Katari (anos 1970); no Ejercito GuerrilleroTúpac
Katari/EGTK (anos 1990), no qual também participou o atual vice-presidente, Alvaro Garcia Linera; foi secretário
executivo da Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia/CSUTCB; e candidato à
presidência em 2002 pelo Movimiento Indígena Pachakutic/MIP, ficando atrás de Goni e Evo Morales, este último
eleito presidente em 2005.

1617
comboios militares, que pudessem garantir a chegada de alguns produtos, como a gasolina, na
capital, bem como para resgatar turistas isolados em algumas regiões. Em Warisata, uma das
províncias do Departamento de La Paz, houve enfrentamentos contra os militares. Às pedras
atiradas pela população, os militares responderam com tiros, matando três pessoas. O “massacre de
Warisata” intensificou ainda mais as animosidades com o governo, dificultando as negociações.
Assembleias aconteciam em diversas regiões de El Alto cujas resoluções eram transmitidas
por rádios comunitárias para articular a resistência. Um poder paralelo se estruturou a partir das
juntas vecinales e outras organizações tornando a cidade ingovernável. Irene Mamani Ojeda, uma
das dirigentes da FEJUVE nessa época, lembra que

Nosotros nos declaramos en clandestinidad. Eran solos celulares: “en tal día en la
marcha, esto vamos hacer”. Cada dirigente tenía su distrito, estaba bien
conformado. Era como cuando el agua esta en un bañador, pero en ese bañador hay
altos, es que… altos… pienso que, a cualquier lado se que vuelva se va encharcar
esa agua. Entonces, a una sola orden, se encharca esa agua toda en la ciudad de La
Paz y toda la gente bajaba como ríos, ríos de gente, de personas (OJEDA,
Entrevista, 2017)

Os bloqueios se estendiam não apenas por El Alto, mas pelos departamentos vizinhos e outras
regiões do país, como Cochabamba. Foi decretado o “estado de sítio indígena” que, segundo Felipe
Quispe, significa que “ni soldados, ni policías tenían garantias dentro de su território y que quedaba
prohibido el patrullaje ‘en nuestras comunidades’” (GÓMEZ, 2004, p. 50).
Novos enfrentamentos ocorreram e mais mortes. Não era possível estabelecer qualquer
diálogo com o governo, de sorte que começaram a exigir a renúncia do presidente e a convocação
de uma Assembleia Constituinte para repactuar o país: “gas, constituyente, renuncia”, gritavam. É
deste modo que se apresenta a chamada Agenda de Outubro, construída no calor dos eventos, e que
apontava de forma genérica, porém categórica, a necessidade de avançar na nacionalização dos
recursos naturais, hidrocarbonetos e gás, com intuito de restabelecer a soberania do país sobre a
gestão de suas riquezas, viabilizando uma reconfiguração da economia e, ao mesmo tempo, avançar
na redação de um novo pacto político para o país com a convocação de uma Constituinte. Para
Ojeda, Evo Morales é uma consequência dessa Agenda. Sem o Levantamiento de 2003 e sem a
Agenda de Outubro dificilmente poderíamos falar hoje de algum Proceso de Cambio.

[...] en 2003, el pueblo ha hecho esta Agenda de Octubre, donde estaba la


nacionalización de los hidrocarburos, la creación de fuentes de empleo, los mas
primordiales. [...] nos llega a una ira cuando escuchamos decir: “el Proceso de
Cambio”. Cuando no saben esas personas donde ha nascido ese “Proceso de
Cambio” y para que se ha hecho este Proceso de Cambio. Este Proceso de Cambio
no ha sido hecho para hacer estructuras grandes no más, se ha hecho para mejorar

1618
la vida de la sociedad más que todo. ¿Para que se ha dicho que se tenía que
nacionalizar los hidrocarburos? Para que haga plata en el país, para que haga
empresas, fabricas, para que se crean fuentes de empleo. Ese es el fondo del
Proceso de Cambio [...] (OJEDA, Entrevista, 2017).

Nas ruas de El Alto, o cenário era de guerra. Contudo, há de se notar a assimetria entre ambos
os lados, pois, enquanto o governo dispunha de um aparato militar, a população se utilizava dos
recursos que tinham à mão.

nosotros solo nos defendíamos con palos y piedras, las botellas de pet cola, unas
botellitas pequeñitas, sabíamos hacer bombas molotov, con arena y gasolina, una
mecha más, y lo tapábamos con poxipol, los secábamos. Y cuando teníamos que ir
a una marcha, agarrábamos, prendíamos y empezábamos a jugar y “bum”. Uno
aprende la necesidad que lo empuja, a crear sus propias armas. Pero a nosotros el
gobierno nos ha enfrentado como unos asesinos sanguinarios, no nos han dando
opción a nada. Han venido gente que no era de La Paz, eran cruceños o eran
extranjeros francotiradores. Porque mataban a quema ropa, sin mirar se era niño,
gente, mujer (OJEDA, Entrevista, 2017).

Para Ojeda, o apoio dos mineiros foi determinante para que o governo começasse a ceder,
quase um mês depois do início dos conflitos. “Y ahí nos viene apoyar los mineros de Huanuni,
Colquiri, luego llegan de Catavi, Siglo XX. Mueren también los compañeros mineros […].
Entonces los mineros están agarrados de sus dinamitas y eso hace con que el gobierno retroceda y
se escape” (OJEDA, Entrevista, 2017). O governo assina então o Decreto Supremo 27210 que
estabelecia que não se exportaria mais o gás pelo Chile, a menos que se realizassem consultas e
debates públicos sobre o assunto. Porém, era tarde demais. A população não deixou as ruas até que
Goni renunciasse, o que acabou ocorrendo, depois de cerca de 70 pessoas perecerem somente na
cidade de El Alto.
No lugar do ex-presidente, assumiu seu vice, Carlos Mesa, que tampouco conseguiu atender
às demandas populares e também foi obrigado a renunciar em 09 de junho de 2005. O presidente da
Corte Suprema assumiu até eleições seguintes, quando Evo Morales tornou-se o primeiro Presidente
indígena da história. Era o início de um novo momento de lutas na Bolívia, no qual, pela primeira
vez, depois de mais de 500 anos, os indígenas chegaram a poder, com um novo projeto de Estado.

Potencialidades emancipatórias?

A eleição de um presidente indígena em 2005 não representa necessariamente o fim das lutas
indígenas e populares na Bolívia. Se, por um lado, não podemos compreender a chegada de Evo
Morales à presidência, sem um quadro anterior de organização e movimentos indígena-populares,

1619
por outro, o fato de ser indígena, não torna Morales imune às críticas e contradições inerentes a
tomada do cargo mais importante da Nação.
Nas bases, a despeito da vitória política nacional, muitos dirigentes foram alvos de duras
críticas e perseguições. Após a queda de Goni, Pepelucho seguia como alcalde de El Alto e havia o
risco real de muitos serem processados e presos por conta das agitações políticas que
protagonizaram na Guerra do Gás. Para Irene Mamani Ojeda faltou também apoio e suporte por
parte de muitos vizinhos que os acusaram de serem responsáveis pelas mortes durante o conflito.
Ojeda acabou fugindo para o Brasil, enquanto outros foram para as províncias, Los Yungas, e outras
regiões.
No âmbito nacional, a eleição de Morales, a Constituinte, a reivindicação de um Proceso de
Cambio e a construção de um Estado Plurinacional e Comunitário não significaram para muitos
destes ex-dirigentes uma mudança radical com o período anterior. Se é certo que foram consturídas
importantes brechas para que os movimentos indígenas pudessem encontrar maiores espaços para
expor suas demandas e praticar o poder comunal, porém, em muitos casos houve também um
processo de silenciamento, instrumentalização de entidades representativas e esvaziamento das
lutas. Ojeda chegou a atuar no MAS, mas rompeu com o governo porque não se sentia contemplada
com os rumos que havia tomado.

Este gobierno se está encargando en borrar el 2003. Hay un libro de Edgar


Zaconeta, hay un libro de Alvaro Garcia, yo lo he leído, en este libro no se
menciona nada, nada de El Alto. El Proceso de Cambio supuestamente lo ha hecho
Evo Morales, cuando, en la práctica, Evo Morales no estaba ni un minuto aquí. Él
estaba en el exterior, luego llegó a Cochabamba, quiso venir en marcha, los
comunas le hicieron retroceder y se fueron a meterlo en su casa en Cochabamba.
Para él lo único que existe es la Guerra de Agua, cuando eso no has sido guerra,
porque se hubiese sido guerra, hoy en día Cochabamba no viviría en la falta de
agua, ¿no? Entonces, quieren tapar, es como, nosotros, los ex ejecutivos, somos el
peor para el MAS. ¿Por qué? Porque nosotros hicimos ese Proceso de Cambio que
nadie podría hacer. Tantas generaciones han pasado y no han podido hacer. Piensa
que gracias a eso Evo Morales llega ser Presidente del país, pero hoy dicen, así no
más que El Alto se había levantado. ¿Por qué? Porque no lo conviene. Entonces,
esa es la parte de fondo que existe intereses personales, económicos, políticos. E yo
misma estoy consciente de que no me van dar trabajo, ni me van dar nada en el
gobierno del MAS porque saben que nosotros, cuando lo queremos, podemos
alzarlos y hacer cualquier cosa. (risos) (OJEDA, Entrevista, 2017)

Na cidade de El Alto permanecem muitas carências e a necessidade de uma maior atenção do


Estado para a resolução das problemáticas urbanas e sociais. Ojeda reclama dos investimentos em
obras faraônicas em detrimento de um compromisso real com a Agenda de Outubro que significa
nacionalização, industrialização e geração de empregos.

1620
En El Alto al menos no lo han hecho ninguna empresa, no han invertido, nada, solo
han hecho algunas canchas de césped sintético, un coliseo y un hospital. Obras
maravillas del gobierno. Entonces, dicen, tal vez esto empieza a apretar el zapato y
va tener que haber otro 2003. E yo les digo, “ ¿les gustan la guerra ustedes?
(OJEDA, Entrevista, 2017).

As disputas internas decorrentes da necessidade de se garantir o apoio da cidade ao governo


levaram a um processo de partidarização das organizações coletivas que resultou na fragmentação
das mesmas em oficialistas e de oposição. Situação bem diferente de 2003, quando havia uma maior
unidade e predominava um caráter cívico em seu interior.

Antes el dirigente era… al dirigente no se le pagaba, no negociaba, cuando se


declaraba un ampliado de la FEJUVE, de la COR, allá afuera podrías tener un
partido político, un color político, pero cuando entrabas a la sala del ampliado
tenías que olvidarte de que partido es. Allá adentro era cívico y tú que peleaba por
la ciudad, por lo que te están exigiendo, por las necesidades. Hoy por hoy se hacen
dos bandos: oposición y oficialismo. Ahora, ni el uno quiere perder, ni otro quiere
perder. Lo parte y hay dos federaciones, dos COR, dos FEJVUE, dos todo hay.
Entonces, la gente misma… ¿A quien lo vamos a creer? Se están practicando lo
que se llama, ¿no?: “divides y reinaras” (OJEDA, Entrevista, 2017)

Os movimentos sociais se mantêm atentos para futuros desdobramentos e essas complexas


relações com o Estado e ao atendimento ou não de demandas, apontam para um porvir ainda
incerto. Para Irene Ojeda, prevalece uma visão cética dos rumos assumidos pelo governo com uma
população mais consumista, dependente das bolsas sociais, apostando nas grandes obras realizadas
pelo governo, mais resignada a uma globalização que não respeita os direitos da natureza e o Bem
Viver e, portanto, cada vez mais distante do ideal anunciado em outubro.

El Vivir Bien no hay implementado el gobierno. [...] Son 10 anos de gobierno en


los cuales ellos no pueden implementar en Vivir Bien. [...] Y no vamos llegar al
Vivir Bien mientras no haya empleo seguro, con seguro social. Eso es el problema
de fondo. Por eso el gobierno mismo no puedo llegar a eso, no puede implementar
el Vivir Bien, porque no hay empleo.[...] ¿A quién nos está gastando el dinero? A
estirar la mano y dame bono, pensando que la solución en ese momento es darme
bono. Cuando ya no cobran bono, educar y criar esos niños es más caro que ese
bono. Entonces, lo van a trabajar y tienen que dejar los niños con sus abuelos y
abuelas. Por eso no vamos llegar hasta el Vivir Bien se no implementamos la
Agenda de Octubre.(OJEDA, Entrevista, 2017).

Ainda assim, mesmo com todas as críticas apresentadas, potencialidades emancipatórias


existem. Aliás, existem desde os tempos coloniais quando tiveram início as lutas nessa região. A
disposição para seguir lutando continua. Ojeda sergue atuando em organizações cívicas
revindicando suas bandeiras históricas e atuando de forma protagônica na gestão local de sua zona.
Cabe a nós acompanhar, atentos, os desdobramentos deste processo e avaliarmos se o governo será

1621
capaz de se repactuar com esses setores, se seguirá sendo uma alternativa válida para avançar na
construção de un otro mundo posible ou se sucumbirá, como tantos outros anteriores a ele, por não
ser mais capaz de atender às demandas populares.

1622
FONTES

ENTREVISTAS realizadas em janeiro de 2017


OJEDA, Irene Mamani, aproximadamente 50 anos, comerciante, moradora da Santa Clara/El Alto,
ex dirigente da FEJUVE na Guerra do Gás de 2003, ex dirigente e fundadora da Federación de
Mujeres de El Alto e dirigente do Comité Cívico de El Alto em 2017.
GACETA Oficial de Bolivia. Constitucion Política del Estado. Edicion Oficial. La Paz, 2009.
INE [Instituto Nacional de Estadística]. Censo 2012. In: http://censosbolivia.ine.gob.bo consulta
em outubro de 2017

Bibliografia

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Paulo: UNESP, 2007.
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2006
GÓMEZ, Luis A. El Alto de Pie: Una Inusrreción Aymara en Bolivia. La Paz:
HdP/Comuna/Indymedia, 2004
MACCHIAVELLO, Fiorella. “O Espaço Transitório na Cidade de El Alto, Bolívia”. Dissertação de
Mestrado. Florianopolis: UFSC, 2008
MAMANI RAMIREZ, Pablo. Microbiernos Barriales: Levantamiento de la Ciudad de El Alto
(Octubre de 2003). El Alto: CADES, 2005.
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http://www.paginasiete.bo/ideas/2014/1/26/cuatro-anos-estado-plurinacional-12253.html - consulta
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SANTOS, Boaventura de Sousa Santos (org.). Democratizar a Democracia: Os Caminhos da Democracia
Participativa. Coleção Reinventar a Emancipação Social / Para Novos Manifestos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.

1623
A guerra e suas mutações: de Clausewitz à contemporaneidade

Mariana Franco Teixeira 1

Resumo: O presente trabalho é uma reflexão acerca da transição entre a guerra regular e cartesiana,
caracterizada por Carl von Clausewitz e típica do Antigo Regime, para aquela contemporânea,
irregular, atípica e assimétrica. A partir daí, pretendemos avaliar também as diversas formas de
interpretação que a guerra suscita.

Palavras-chave: Guerra regular; guerra irregular; Clausewitz


Abstract: This paper propose a reflection about the transition of the regular kind of war, as thought
by Carl Von Clausewitz as a character of the Ancien Regime, to the contemporary one, non- and
regular. Once, pretends to think about various manners to think the war issue.
Keywords: regular war; non-regular war; Clausewitz

Introdução

A guerra é um ato de ódio. Momento onde o que há de mais brutal no ser humano aflora,
descontroladamente. “Ciência”, “arte” ou raciocínio equilibrado. Principal e basicamente, a guerra é
uma pulsão, um impulso destrutivo. Aquilo que, no dizer de Kant, é imanente ao estado natural do
homem; a paz é algo a ser implantado; o momento onde as coisas se encontram fora da ordem.

Justamente por ser praticada constantemente, o homem não se deu em gastar tempo e
energia para defini-la, tampouco teoriza-la. A guerra é para ser guerreada, combatida, e ele
simplesmente luta. As teorizações ficam para o campo de combate, em estudar a melhor estratégia
para impor sua supremacia ao inimigo.

Nesse artigo avaliaremos a guerra regular, suas características e seu contexto. Ela surge no
contexto da criação dos Estados nacionais, tem como características a humanização da guerra, a
criação dos exércitos permanentes e dos regimentos, a subordinação da guerra à política, a exaltação
de virtudes do guerreiro como a coragem e a honra. Também abordaremos o processo de transição
da guerra regular e clausewitziana para a guerra irregular ou conflitos assimétricos e suas
1
Graduada em História pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Rio de Janeiro, especialista em
História e Cultura no Brasil pela Universidade Candido Mendes e atualmente é graduanda em Biblioteconomia e
Documentação pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: franco-mft@hotmail.com.

1624
características, mostrando que esse processo ainda se encontra em curso e tendo em vista o caráter
mutante da guerra.

A guerra regular de Carl von Clausewitz

Muitos estudiosos buscam compreender a guerra e sua essência, assim como quais são as
razões de sua existência. Os estudos acerca do comportamento humano tomam diferentes rumos,
com diferentes interpretações, seja no que refere ao comportamento individual ou coletivo. Há os
que afirmam que a violência faz parte da natureza humana e os que defendem que a potencialidade
do homem para a violência é um fator externo. Ela pode ser entendida como, por exemplo, uma
manifestação cultural, social ou uma consequência de algum ato político. Para alguns estudiosos,
dentre os quais podemos mencionar Thomas Hobbes, ela faz parte da natureza humana.

Para Hobbes há três causas conflituosas inerentes à natureza humana: a competição, que leva
os homens a atacar uns aos os outros visando o lucro; a desconfiança, que visa a segurança; e a
glória, que visa a reputação.i

Outro estudioso que acredita que a guerra é um estado natural do homem é Immanuel Kant.
Para ele, a guerra é um meio inerente ao estado de natureza a fim de afirmar seu direito através da
força. Para Kant, o homem é mau por natureza, e a maldade pode ser percebida através da livre
relação dos povos. Entretanto, o Estado, através da coação do governo, a suprime.ii

Para Carl von Clausewitz a guerra é a continuação da política por outros meios. Entretanto,
diferentemente de Clausewitz, para John Keegan a guerra é uma manifestação cultural, e não a
continuação da política por outros meios. Keegan mostra que o oficial prussiano, ao afirmar que a
guerra é a “continuação das relações políticas por outros meios” apresenta um pensamento
incompleto. Isto porque para Clausewitz a guerra interliga-se na existência de Estados e uma
racionalização que nem sempre existem. Entretanto, para Keegan, a guerra antecede os Estados e
nem sempre segue propósitos racionais, e sim a emoção, o instinto. Ela abrange além da política,
sendo uma manifestação cultural. Para ele somos animais culturais, e a nossa riqueza cultural é que
nos permite aceitar ou não nossa aptidão à violência.iii

Eric Hobsbawm define o nacionalismo como um princípio que sustenta uma unidade
política e nacional congruente, o qual concerna uma obrigação pública com a nação. O autor não
considera a nação como uma entidade social originária ou imutável. Ela pertence a um período

1625
histórico particular e recente, constitui-se numa entidade social quando relacionada ao Estado
territorial moderno ou o Estado-nação. Há toda uma engenharia social que engendra a formação das
nações. Muitas vezes, o processo do nacionalismo, de acordo com as variações regionais e
cronológicas, acaba por servir-se de culturas preexistentes, transformando-as em nações, ou
simplesmente este processo acaba por decorrer devido as estruturas e conjunturas sociais,
econômicas e políticas. A questão nacional situa-se na confluência da política, da tecnologia e da
transformação social. As nações existem tanto como funções de um determinado tipo de Estado
territorial como no contexto de um estágio particular de desenvolvimento econômico e tecnológico.
Assim, as línguas nacionais padronizadas só surgem a partir da imprensa e da alfabetização em
massa, ou seja, é necessária uma escolarização em massa. Dessa forma, Hobsbawm mostra que as
nações constituem-se em fenômenos duais, são construídas de cima para baixo, mas só podemos
compreendê-los ao analisá-los por baixo, ou seja, através das suposições, esperanças, necessidades,
aspirações e interesses das pessoas comuns, e não nacionais ou nacionalistas.iv A nação só poderá
surgir a partir do momento em que houver um Estado centralizado, fundamentado e funcional:
então esses instrumentos pedagógicos ou identitários do Estado acabarão por ser reforçados pelo
processo criador do nacionalismo; tudo isso acaba sendo reforçado, e de preferência numa
demarcação contra a alteridade, contra o outro, contra tudo aquilo que é estrangeiro ao processo.

Segundo Norbert Elias, a sociedade da chamada era moderna no Ocidente caracteriza-se por
um certo grau de monopolização. A autoridade arrecada meios financeiros através da tributação da
propriedade ou da renda dos quais financiam o monopólio da força militar que mantém o
monopólio da tributação. Quando o monopólio permanente da autoridade central e o aparelho
especializado para a administração ascendem, temos um domínio com caráter de Estado. A
burguesia conquista os monopólios de força física e de tributação. Graças a centralização e a
monopolização, oportunidades que eram conquistadas através da força, tornam-se passíveis de
planejamento, formando-se o que entendemos por regime democrático.v

No Ocidente é no final do século XV que o termo Estado começa a adquirir o seu atual
sentido. No século XVI esse valor se estabelece em todas as regiões, mantendo suas distintas e
variadas significações sociais e políticas. Todavia, anteriormente não podemos atribuir ao termo seu
sentido atualmente usual de corpo político submetido a um governo e a leis, pois o Estado é
resultado de um processo histórico de longa duração, e possuiu configurações diferentes devido às
regiões e circunstâncias onde foi se implantando. A Idade Média não utiliza o termo nesse último
sentido, apesar de já ter uma noção de Estado em seus últimos séculos. No início do século XIV,
Império ocupa uma posição simbólica de destaque, pois acredita-se nele, além dele ser desejado ou

1626
temido. Os séculos XIV e XV constituem um período de transição, no qual o Estado medieval
gradualmente cede lugar ao Estado moderno. Ambos viveram um confronto e foram separados pela
Renascença.vi

O Estado renascentista põe governados diante de governantes, assim como o país diante do
príncipe. Dessa forma, o sentimento nacional nasce na solidez desse Estado novo, unindo os súditos
do príncipe numa comunidade. O Estado renascentista constitui, frequentemente, um Estado
nacional. Um dos fatores a ser assimilados nesta discussão é também que o processo de formação
do Estado é também o processo de formação e afirmação de identidades e consensos. Além deste
aparato governamental/burocrático que se forma, é também importante notar que toda uma estrutura
governamental é formada no sentido de espalhar este processo civilizador no seio da sociedade,
formando aquilo que Michael Foucault chamou de uma “vascularização do Estado”, que se dava, ao
mesmo tempo, graças ao sistema educacional — de importância fulcral para estes novos
mecanismos de poder.vii

Há diversas formas de organização militar diferentes da ordem regimental. É importante


assinalar que o sistema de organização militar é um reflexo da ordem social e política na qual ele
está inserido. As principais formas de meios de organização militar são: guerreiro, mercenário,
escravo, tropa regular, recruta e milícia .viii

O feudalismo marca a transição das sociedades guerreiras para outras formas. Podemos
encontrar aí, na guarda real, a origem das tropas regulares. Manter um exército regular constituía
uma dificuldade para o soberano. Para os Estados ricos essa dificuldade era menor, mas é custoso
manter uma tributação para esta finalidade, especialmente se o Estado possuir uma população
pequena e a necessidade desse exército for para um longo período: temos aí a base do sistema
mercenário, que também podia ser utilizado de forma a complementar o exército regular.
Entretanto, era complicado para um Estado depender de mercenários tanto em termos econômicos,
pois os fundos para mantê-los poderiam acabar antes do término do conflito quanto pelo risco dos
mercenários, percebendo seu poder de combate, tornarem-se uma ameaça perante conflitos internos,
existindo, inclusive, o risco de passarem para o lado do inimigo ou mesmo tomarem o poder.ix

Na Europa dos séculos XVI e XVII a guerra vai se tornando uma profissão onde o soldado,
cada vez mais especializado, será valorizado como uma mercadoria. Nos Estados mais fracos há um
contrato para quem se alista, que pode ser feito por um homem de negócios, um empresário de
guerra. Nos Estados fortes esse empresário de guerra é o próprio soberano. É no século XVIII que o
serviço militar obrigatório é decretado por lei. A partir daí, com a sofisticação das armas e das

1627
técnicas de combate, o recruta é treinado durante um período a fim de ter seu corpo transformado e
seus sentidos refreados.x

Na primeira metade do século XVIII o exército era constituído pela nobreza de sangue azul,
por membros de famílias tradicionais com brasões, por comerciantes enriquecidos, soldados com
fortunas e plebeus que alcançaram postos através do mérito. Na segunda metade do século os
oficiais de famílias antigas insurgiram-se contra os nobres que compravam cargos, conseguindo
acabar com este comércio. Assim, o recrutamento dos oficiais deixou de ser baseado no nascimento.
Escolas para oficiais são abertas. A carreira torna-se menos excludente, porém, os postos superiores
continuam sendo voltados para os nobres.xi

No século VXIII, a Prússia possui o exército regular mais organizado. Na França, ele
constitui-se pelo alistamento voluntário. Entretanto, além dos voluntários, a França também possui
um sistema de milícias, originado na milícia real, criada em 1688 por Luís XIV e os exércitos
regulares europeus começam a nacionalizar-se.xii Com o tempo, o estabelecimento do alistamento
universal na Europa foi acompanhado pelo direito de voto. Quando a Primeira Guerra Mundial
eclodiu, a maioria dos países europeus mantinha grandes exércitos de conscritos, além de um
regime institucional representativo. Esses exércitos eram leais, pois a lealdade era resultado de um
sentimento nacionalista.xiii

É no século XVIII que se visa humanizar a guerra e evitar o massacre de prisioneiros, que
podem possibilitar a troca de combatentes com os adversários, pois a preparação do indivíduo para
a batalha é dispendiosa. Os tratados possibilitam essas trocas e também possibilitam melhores
condições de vida para os prisioneiros. É a partir desse período, também, que os generais começam
a se preocupar com a população civil procurando evitar barbáries como, por exemplo, o saque.
Entretanto, nem sempre é o que ocorre na prática.xiv

O regimento surgiu na Europa no século XVII como resultado de uma crise entre os
soberanos europeus e seus fornecedores de serviço militar, revolucionando-a e tornando-se mais
sólido no século XVIII, sobrevivendo até a atualidade.xv

As ameaças externas e as rupturas internas preocupavam a Europa, mantendo-a


constantemente em conflito. A tentativa de manter os senhores feudais das áreas mais tumultuosas e
de pagar cavaleiros para servir aos exércitos agravavam o problema. Muitos reis adotavam a
perigosa prática de suprir suas forças com mercenários — risco que se tornava real na medida em
que, no século XV, muitos reis e senhores feudais tiveram seus territórios assolados por eles.

1628
Portanto, estava configurado um problema. Como reunir um maior número de soldados a fim de
restaurar a ordem sem ampliar o número de saqueadores? A resposta estava na criação de um
exército permanente .xvi

No final do século XV, Carlos VIII teve êxito no uso da artilharia móvel, ele pôs fim ao
desafio à autoridade real dos senhores de castelos. No século XVII seus descendentes recebiam
coronelatos de infantaria como um favor real — o que também significava, por outro lado, uma
mobilização do comando das forças guerreiras. Esses coronelatos eram ligados ao regimento (ou
comando) de um conjunto de companhias. Até o século XVIII os mercenários coexistiam com os
regimentos reais. Mas logo esses regimentos se diferenciaram dos bandos de mercenários do final
do feudalismo e das guerras religiosas, transformando-se em instituições reais e, posteriormente,
com a formação dos Estados nacionais, em instituições nacionais, permanentes, fixos, atuando,
inclusive, como escolas regimentais. É nesse contexto que, em 1792, Carl von Clausewitz ingressa
no 34º Regimento de Infantaria da Prússia.xvii

Para compreendermos o pensamento de Clausewitz é necessário conhecermos quem ele foi.


Fortemente ligado ao seu tempo, além de militar era intelectual com pendores iluministas, um
reformista. Homem de ação e crítico que buscava mudar a sociedade em que vivia, sua teoria estava
de acordo com os valores dos oficiais de regimento, que viam a política como primordial.
Entretanto, ele estava preso ao seu passado de oficial do Exército (no qual ingressara em 1792) de
um Estado europeu centralizado: a Prússia. Assim, acreditava nos valores da cultura regimental
como honra, coragem e obediência que, segundo ele, aproximavam-se da “guerra verdadeira” e que
deveria ser o objetivo do soldado. Algo bem próximo e parecido com os ideais medievais da
cavalaria.

Clausewitz mostra que a guerra é, basicamente, um duelo, ato de violência onde as partes
envolvidas buscam submeter o inimigo à sua vontade, com o objetivo de neutralizá-lo — sendo,
para isso, necessário colocá-lo em desvantagem, submetendo-o, assim, à vontade do opositor. Ela é
choque entre forças opostas, no qual o mais forte destrói o mais fraco.xviii

Segundo Clausewitz, a guerra possui um objetivo político, que proporciona a finalidade da


ação militar. Por ser um ato político, resultado de uma motivação política, também é utilizada como
meio de alcance de um determinado fim — político, por sua vez. Assim como a política e seus
objetivos não são estáticos a guerra, por sua vez, tende a se transformar — justamente por não ser
algo independente da política, mas sim seu instrumento. A guerra é a continuação das relações
políticas por outros meios: “a guerra não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento
político, uma continuação das relações políticas, uma realização desta por outros meios”.xix

1629
Como a guerra é um desdobramento das ligações entre os governos e nações, ela não
interrompe as relações políticas entre eles. Enquanto a guerra é o instrumento, a política é a
faculdade intelectual. O elemento militar encontra-se sempre subordinado à política. Segundo
Clausewitz:

a guerra nada mais é senão a continuação das relações políticas, com o


complemento de outros meios. Dizemos que se lhe juntam novos meios, para
afirmar ao mesmo tempo que a guerra em si não faz cessar essas relações políticas,
que ela não as transforma em algo inteiramente diferente, mas que estas continuam
a existir na sua essência, quaisquer que sejam os meios de que se servem, e que os
principais filamentos que correm através dos acontecimentos de guerra e aos quais
elas se ligam não são mais que contornos de uma política que prossegue através da
guerra até a paz.xx
Clausewitz mostra que existem virtudes que são essenciais ao militar, do soldado ao
comandante-chefe, como a ambição da honra e da glória, a energia, a firmeza, a perseverança, o
equilíbrio, a força de caráter e de espírito e a coragem, que é a grande virtude do guerreiro.xxi

Ao pensar a guerra, Clausewitz afirma que ela não é uma arte, um ofício e nem uma ciência,
mas um campo social cuja origem encontra-se na política. Os princípios, as regras, os regulamentos
e os métodos são essenciais à teoria da condução da guerra, neste ordenamento cartesiano.xxii

As grandezas morais do exército, do general, do governo e da população exercem influência


na teoria da guerra. Os efeitos das forças físicas têm como base as forças morais, sendo
inseparáveis. Para analisarmos os efeitos de uma vitória, é necessário recorrer às questões de ordem
moral. Ou seja, os efeitos morais são também uma arma. Os principais poderes morais são: os
talentos do chefe de guerra, as virtudes guerreiras do exército e o seu espírito nacional, o zeitgeist.
Algo digno de ser notado: o Exército é reflexo do povo, do Estado. Encarna a nacionalidade em si, e
representa o espírito e alma da nação (zeitgeist).xxiii

Clausewitz tinha como objetivo principal, de maneira prática, garantir que sua teoria
proporcionasse vitória à Prússia. Para ele, que possuía formação monárquica e regimental, e os
regimentos eram predominantes na Prússia do século XIX, os franceses eram, graças aos seus ideais
revolucionários, inferiores em relação às qualidades nacionais. Na França, a política foi essencial à
revolução. Já na Prússia, ela estava subordinada ao rei. Clausewitz visava convencer o exército
prussiano de que a guerra é uma atividade política e o soldado deveria guerrear como um ser
político ciente de que a guerra verdadeira serviria melhor ao Estado. Seu pensamento era dominado
pelas instituições do Estado e pela cultura regimental, de modo que ele não pôde perceber que em
sociedades onde não há um conceito para Estado e regimento a guerra pode ser diferente .xxiv

1630
Num processo de longa duração, a partir da Revolução Francesa houve grandes
investimentos na militarização da população e nas forças bélicas, mas a guerra que começou no
século XX mostrou que sua conclusão ainda estava longe. Após o final daquela que
convencionalmente chamou-se a Segunda Guerra Mundial, a militarização e belicização do planeta
ficaram polarizadas num desdobramento ideológico deste processo guerreiro do século XX, a
chamada Guerra Fria. Conflito ideológico entre as duas superpotências vencedoras da Segunda
Guerra Mundial evitado de chegar às vias de fato graças à potencialidade dos arsenais nucleares.
Porém, travado de maneira “quente”, ora “convencional”, ora “suja” e “irregular” em suas esferas
de influência mundo afora — geralmente, países que não conseguiram acompanhar o mesmo ritmo
de desenvolvimento. Mas apesar desta ser um pouco da configuração do mundo atual, tem havido
um esforço no sentido de buscar uma pacificação. É importante focar que esse esforço não é
resultado de cálculos políticos, mas pela aversão às consequências de uma guerra. Ou seja,
mudanças culturais estão ocorrendo.

O fim da guerra regular

Não podemos estabelecer um momento exato que marque o fim da guerra regular, pois este
é um processo que está em andamento, mas podemos dizer que essa transição se intensificou
durante as grandes guerras do século XX.

Segundo John Frederick Charles Fuller, a conduta da guerra é uma arte. Tanto o homem de
Estado quanto o militar visam evitar, atenuar ou suprimi-la, pois elas constituem-se numa ameaça às
nações. Entretanto, no século XX essa arte acabou por retroceder à sua forma bárbara de destruição
e carnificina. Assim, as guerras tornaram-se desastrosas, e a Primeira e Segunda Guerra Mundial
são exemplos. Para Fuller:

Toda uma época foi conturbada e submersa como na erupção de um Cracatoa


universal. Impérios desapareceram, a Europa foi dividida, a Alemanha também e a
revolução ganhou o mundo. Hoje em dia, o medo do aniquilamento oprime os
corações. Já não existem mais sinais de estabilidade ou de clima de segurança, e, o
que é igualmente ruim, desapareceram os laços de honra, ou mesmo de respeito
humano, que deveriam unir as nações.xxv
Em 1914 irrompe a Primeira Guerra Mundial, que dura até 1918, causando uma grande
mudança no cenário geopolítico europeu. Grã-Bretanha, França, Rússia, Alemanha, todos esses
países sofreram com a guerra, que trouxe, no seu rastro, falências, fragilidades, revoluções. Os
Impérios Austro-Húngaro e Otomano desapareceram, e com eles a “ordem” característica do Antigo
Regime. As mudanças são profundas. Toda uma época desaparece e com ela, além dos impérios,

1631
estabilidade política, econômica e social; a Revolução é filha da Guerra. xxvi Com o fim da Primeira
Guerra Mundial a Europa mergulha num caos.

Foi combatida de formas diferentes. Enquanto a guerra de trincheira tomava a Europa, na


África e no Oriente Médio diversas campanhas eram travadas de maneira diversa. Diferentemente
dos conflitos que predominavam na Europa, aqui os conflitos eram irregulares, fluidos, móveis,
travados por pequenos efetivos que atacavam os pontos fracos da retaguarda inimiga. xxvii

Com o fim da Primeira Guerra Mundial e as conturbações que lhe são decorrentes, a guerra
de atrição sofre um arrefecimento, aparentemente perdendo sua importância. O que não quer dizer
que a paz foi instalada, mas que o conflito continuou de outra forma. Os vencedores da guerra
transformaram a paz num objeto de dominação. Através da coação, submetiam seus adversários. O
tratado de paz foi o instrumento de coerção utilizado contra os perdedores. Em 28 de junho de 1919
o Tratado de Versalhes, com condições humilhantes, foi imposto à Alemanha.xxviii

Versalhes foi imposto à Alemanha pelos vencedores, que eram constituídos pela, Grã-
Bretanha, França e Itália. Algumas observações foram preponderantes: o colapso de diversos
regimes europeus e a ascensão dos revolucionários bolcheviques na Rússia; a necessidade de
manter a Alemanha sob controle com a redução humilhante de seu parque bélico-militar; a
necessidade de retraçar as fronteiras europeias; os problemas referentes à política interna dos países
vencedores, assim como as divergências entre eles. Na esperança de evitar outra guerra como essa,
que teria sido a “guerra definitiva”, foi criada a Liga das Nações, com o intuito de agir como
mediadora entre seus países membros, para evitar uma repetição da carnificina. Objetivo que
fracassou, pois, vinte anos depois, graças a uma grave crise econômica que levou à derrocada da
fugaz onda liberal-democrata na Europa, acarretando em uma ascensão de movimentos
reacionários, conservadores e totalitários, eclodiu a Segunda Guerra Mundial.xxix

É importante destacar que ocorreu uma “democratização da guerra”, que se estendeu aos
civis. Segundo Eric Hobsbawm:

Os conflitos totais viraram ‘guerras populares’, tanto porque os civis e a vida civil
se tornaram os alvos estratégicos certos, e às vezes principais, quanto porque em
guerras democráticas, como na política democrática, os adversários são
naturalmente demonizados para fazê-los devidamente odiosos ou pelo menos
desprezíveis.xxx
Entretanto, ainda havia leis, regras, normas de conduta que conduziam os conflitos, e as
guerras ainda eram profissionais. Apesar da Segunda Guerra Mundial ter sido o apogeu da guerra
total de Clausewitz, podemos encontrar resquícios de conflitos irregulares, embora seu papel tenha
sido secundário. Além disso, ainda no século XIX, o processo de expansão neocolonialista também

1632
foi responsável pela existência de conflitos irregulares, mas somente no século seguinte é que foram
intensificados com, além dos acontecimentos já citados, a Revolução Industrial, o advento do
socialismo e a Guerra Fria.xxxi

Guerra irregular e assimétrica

A guerra irregular é a forma de combate mais antiga, mas a partir da segunda metade do
século XX tornou-se a mais comum e tende a predominar no século XXI. Ela abrange diversos
conceitos ou ideias, como mostra Alessandro Visacro:
terrorismo, guerrilha, insurreição, movimento de resistência, combate não
convencional e conflito assimétrico, por exemplo, são alguns dos conceitos ou
práticas abarcados pelo conjunto de ideias, mais amplo e muito pouco
compreendido, denominado guerra irregular.xxxii
Com a ascensão de grupos insurgentes e terroristas, o monopólio do Estado sobre a guerra é
quebrado, dando espaço aos conflitos irregulares. A guerra irregular não é declarada nem ao início,
nem no fim, e muitas vezes sequer é compreendida pelo Estado e pela população civil.xxxiii

Esta problemática é bastante complexa. Ainda não há, para a contemporaneidade, um


pensamento ou estudo semelhante ao que foi o de Clausewitz para as questões de seu tempo.
Paradigmas e definições acabam sendo, o tempo inteiro, quebrados ou redimensionados — apenas
com a permanência da ideia de que a guerra continua sendo um ato plenamente destrutivo. Frédéric
Gros, ao tentar entender como é vista a guerra atualmente, intui que há um rompimento na chamada
guerra pública e justa, na qual a submissão à ética, à política e ao poder jurídico se dissolvem,
dando lugar ao estado de violência:

Conceito de provisão, que se sustenta pela ficção filosófica de um fim de guerra, o


estado de violência conhece princípios específicos de estruturação: princípios de
estouro estratégico, de dispersão geográfica, de perpetuação indefinida, de
incriminação, que todos se opõem ao estado de guerra.xxxiv
O soldado fardado, pertencente a um regimento, o oficial superior, estruturas hierarquizadas
de comando, o alvo militar, o plano de batalha, colunas de soldados preparando-se para a batalha
decisiva, campos de batalha, data da vitória ou da derrota, a declaração de guerra, assim como os
rituais para o seu encerramento, tudo isso está dando lugar ao terrorista, ao chefe de facções, ao
mercenário, ao soldado profissional, aos comandos especiais, ao engenheiro de informática, aos atos
terroristas nos centros urbanos, às guerras civis, aos conflitos endêmicos. Atos de guerra. Atos de
violência que, consequentemente, acabam desencadeando uma guerra, tal qual foi o atentado
terrorista ao World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001. Atualmente as guerras não

1633
ocorrem mais nos campos de batalha, mas nas cidades, nos espaços públicos, nos centros urbanos,
onde civis são massacrados.xxxv

A guerra irregular é marcada pela criminalização, pela barbarização, pela privatização e pela
desregulamentação. Ela é anárquica e, dentro das regras de conduta militares e mesmo das leis,
criminosa. Atos bárbaros são cometidos contra a civilização, a ética do guerreiro desaparece, sendo
substituída por pulsões selvagens, e a bravura do soldado é substituída pela brutalidade; ocorre uma
desmoralização da guerra. As questões políticas dão lugar a problemas étnicos, identitários,
religiosos, comerciais e mesmo criminosos, através da máfia — que, por sua vez, possui diversas
variações e ramificações, encontrando “versões locais” por onde quer que se espalhe.xxxvi

Na guerra regular, é a filosofia política clássica que vigora, na qual a guerra consiste numa
relação de violência regulada entre Estados. No âmbito irregular ocorre uma despolitização da
guerra desaparecendo, também, a ética do guerreiro e ascendendo os instintos primitivos. O sentido
político sofre uma mudança de eixo, face ao pensamento tradicional da guerra, e os conflitos
passam a ser marcados pela mercantilização e etnicização — e mesmo questões religiosas. Os
cidadãos não mais lutam por questões nacionais, mas se trucidam através de massacres e
depredação, frutos das novas violências.xxxvii Inaugura-se uma nova era do massacre, como se pode
observar através das guerras civis originadas na Primavera Árabe.

A queda do Muro de Berlim significou um marco inaugurando uma nova distribuição das
violências no que concerne à intervenção e à segurança, ofuscando a guerra e a paz. O mundo
tornou-se palco dos estados de violência, sendo regido por sistemas de segurança e intervenções. É
o fim da guerra como conflito armado, público e justo.xxxviii

Na guerra irregular não há regra. É difícil defini-la. Segundo Visacro:

O caráter informal, dinâmico, flexível e mutável do combate irregular tem


contrariado o cientificismo acadêmico, frustrando as expectativas daqueles que
procuram, em vão, por padrões doutrinários rígidos, aplicáveis com a mesma
abrangência encontrada na guerra regular.xxxix
Para Visacro, antes de ser um fenômeno político, a guerra é um fenômeno social. Ela não
pode se limitar à subordinação política, embora este fato seja verdadeiro. Assim, as transformações
decorrentes da guerra são de caráter social.xl

Na guerra irregular a questão militar é a de menor relevância. A natureza dos conflitos


irregulares, sua dinâmica, seus protagonistas, suas perspectivas, abarcam questões históricas,
culturais, econômicas e psicológicas. Quando os avanços e conquistas sociais se dão de forma
incompleta ou restritiva, contribuem para gerar violência. O contraste social também é um fator

1634
perigoso, pois as sociedades nas quais a má distribuição de riqueza e a concentração de meios de
produção e de capital mantém um ambiente de exclusão e acúmulo de poder nas mãos de um
determinado grupo, não permitindo a ascensão das camadas menos favorecidas, são mais propensas
à violência. A consciência que o oprimido adquire acerca da sua situação de opressão é
indispensável para transformar a insatisfação em violência coletiva. Um conjunto de ideias que
formam uma doutrina filosófica com capacidade de munir o curso da história e as causas da
opressão e da desigualdade social com uma explicação racional é importante para legitimar a
violência.xli

Segundo Thomas L. Friedman, o “mundo plano”, globalizado, resulta no contato direto de


culturas e sociedades distintas, e tal encontro ocorre antes que tais sociedades estejam preparadas.
Para algumas culturas esse contato gera prosperidade. Entretanto, outras se sentem ameaçadas,
frustradas e humilhadas com isto. Para ele, isso ajuda a explicar o terrorismo. Segundo ele, a
questão primordial é a humilhação. O terrorismo não seria resultado da pobreza material, e sim da
pobreza de dignidade. A humilhação é a força motriz nas relações internacionais e humanas.
Quando as nações e os indivíduos se sentem humilhados, reagem com violência extrema.xlii

A ausência do Estado também é um fator importante na sustentação das forças irregulares,


pois elas se desenvolvem com mais facilidade onde o ele é ausente ou fraco. A falta de assistência
governamental agrava os problemas sociais, gerando descontentamento e abalando a legitimidade
do poder. A ausência de tradição e legitimidade nas questões políticas, sociais e militares resulta
num ambiente propício à violência. Além desses fatores, para Visacro a preservação de
deformidades na estrutura social, a violência cultural institucionalizada, o êxito da experiência
militar de um determinado povo, a existência de interesses externos antagônicos, o apelo às
aspirações nacionalistas de um povo, os conflitos étnico-religiosos, a atuação de uma
intelectualidade radical nativa em prol da restituição de direitos tradicionais injustamente
suspendidos e a falência do regime político vigente são essenciais para criar um ambiente propício
ao conflito irregular.xliii

A guerra irregular tem como principais características a busca pelo apoio — ainda que
forçado — popular, pois a população local é apta a conceder suporte às forças irregulares em termos
táticos; a necessidade de um ambiente político, social, histórico e cultural propício para o seu
desenvolvimento pois, caso contrário, se enfraquecerá mergulhada em sua própria violência; uma
menor relevância dos aspectos militares, pois a guerra irregular é travada nos campos político e
psicossocial; a atuação das forças irregulares através de processos indiretos a fim de ampliar
indiretamente a receptividade de seu proselitismo. Diferentemente do conflito convencional que

1635
precisa buscar reduzir o tempo do conflito a fim de não obter mais perdas e se tornar impopular, as
forças irregulares atuam sem limitação de tempo e apostando mesmo no desgaste causado por um
conflito extenso, porque sua prática mais recorrente é lançar mão de ações rápidas e pequenas. Ela
não é linear. Não há, como nos ditames da guerra tradicional, frente de batalha, flancos e
retaguarda. Os combates ocorrem de acordo com a presença e a postura da população civil, em
detrimento da configuração do terreno e da disposição espacial dos inimigos — nesta bizarra
modalidade a população é, ao mesmo tempo, campo de batalha, escudo e combatente. Tal espécie
de guerra não é declarada, reconhecida e, muitas vezes, sequer percebida; a busca de resultados
psicológicos nas ações de combate — a exemplo do terrorismo, que com sua grande capacidade de
impacto — gera grande repercussão política. Possui padrões rígidos de planejamento e execução —
vide, por exemplo, a complexa organização do atentado às torres do World Trade Center em 11 de
setembro de 2001, operação que demandou grande quantidade de tempo, dinheiro e planejamento
— e nela predominam a informalidade organizacional. Não há normas estabelecidas, e é constante a
insubordinação a restrições legais, à individualidade; existe maior proximidade entre os níveis
político, estratégico e tático. Outras características importantes são também a economia de forças e
o desenvolvimento em fases. Geralmente a guerra irregular é demarcada por uma bipolaridade: o
nível de maturação das forças irregulares e o grau de deterioração dos cenários político, social e
militar; indefinição entre os campos da segurança interna e da segurança pública; assimetria não
muito clara entre os parâmetros operacionais aplicados por forças regulares e irregulares; e a
subordinação dos objetivos militares aos objetivos políticos, pois guerra irregular também é guerra,
logo é importante que os objetivos militares estejam subordinados aos objetivos políticos.

Isso ocorre principalmente devido a uma ordem prática, na qual a guerra irregular possibilita
uma série ilimitada de modos de conflito, e a questões psicológicas, onde o essencial e fundamental
é o modo como a opinião pública interpretará o fato e suas consequências. Dessa forma, a guerra
irregular necessita de uma abordagem flexível. Uma classificação pautada apenas em bases
militares é inadequada, as ações de combate encontram-se, na guerra irregular, além do campo de
batalha. Logo, para enfrentá-la, é necessário uma abrangência para além das ações armadas. A tática
atualmente utilizada é combater a guerra irregular com ações ao mesmo tempo irregulares — não
uma desinformalização das práticas de guerra comum, mas sim adequação ao teatro de operações
apresentado. À célula terrorista, contrapõem-se unidades de comandos, altamente reduzidas e
especializadas.xliv

1636
Conclusão

A guerra vem sofrendo diversas transformações. A guerra regular e cartesiana de Carl von
Clausewitz, que marcou a segunda metade do século XIX, entrou num processo de transição, dando
lugar aos conflitos assimétricos ou à guerra irregular, que se tornou predominante a partir do século
XXI. Apesar da sua essência remontar à própria natureza do homem e, ao mesmo tempo por ser
algo novo, a guerra irregular ainda não é algo muito bem definido.

Mesmo que cada vez mais alterada pela tecnologia e por novas táticas, motivações,
estratégias e modos de combate, a guerra continua sendo inerente ao ser humano, seja como
manifestação cultural ou instrumento político. Passa o tempo, mudam as sociedades, mudam as
formas e modos de combate mas, em essência, a guerra não alterou em nada: continua sendo,
sempre, a lei do mais forte, onde qualquer fim justifica os meios.

i
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1999, p. 108 – 109.
ii
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Mourão, Lisboa, Edições 70, 2009, p. 134 –
145.
iii
KEEGAN, John. Uma história da guerra. Tradução de Pedro Maia Soares, São Paulo / Rio de Janeiro, Companhia
das Letras / Biblioteca do Exército Editora, 1996, p. 19 – 28.
iv
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Tradução de Maria Celia Paoli
e Anna Maria Quirino, 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013, p. 9 – 22.
v
ELIAS, Norbert. O Processo civilizador: formação do Estado e civilização. Vol.2. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 97 –
107.
vi
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. Tradução de Luiza Maria F. Rodrigues. São Paulo:
Pioneira/Edusp, 1981, p. 47 – 67.
vii
Ibid. p. 65. Cf. também Elias, op. cit., FOUCAULT, Michel. “A Governabilidade”. In: Microfísica do Poder.
viii
KEEGAN, John. op. cit. p. 235 – 242.
ix
Ibid. p. 243 – 246.
x
BERTAUD, Jean-Paul. “O soldado”. In: VOVELLE, Michel (ed.). O homem do Iluminismo. Trad. port., Lisboa:
Editorial Presença, 1992, p. 74 – 78.
xi
Ibid. p. 76.
xii
Ibid. p. 75 – 77.
xiii
KEEGAN, John. op. cit. p. 249.
xiv
BERTAUD, Jean-Paul. op. cit. p. 81.
xv
KEEGAN, John. op. cit. p. 29.
xvi
Ibid. p. 29 – 30.
xvii
Ibid. p. 30 – 31.
xviii
CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. Tradução de Maria Teresa Ramos, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010,
pp. 7 – 10.
xix
Ibid. p. 16 – 27.
xx
Ibid. p. 870 – 873.
xxi
Ibid. p. 50 – 60.
xxii
Ibid. p. 126 – 131.
xxiii
Ibid. p. 183 – 187.
xxiv
KEEGAN, John. op. cit. p. 33 – 40.
xxv
FULLER, John Frederick Charles. A conduta da guerra. Tradução de Hermann Bergqvist, Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército Editora, 2002, p. 13.
xxvi
MAZOWER, Mark. Dark continent: Europe’s twentieth century. London: Penguin, 1999, p. 1.
xxvii
VISACRO, Alessandro. Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
São Paulo: Contexto, 2009, p. 43 – 45.
xxviii
FULLER, op. cit. p. 209 – 210.

1637
xxix
Ibid. p. 38 – 40. Para a questão da ascensão/derrocada da democracia liberal na Europa, cf MAZOWER, Mark. op.
cit. p. 18 – 20.
xxx
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. Tradução de Marcos Santarrita, São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p. 56.
xxxi
VISACRO, Alessandro. op. cit. p. 17 – 22.
xxxii
Ibid. p. 7.
xxxiii
Ibid. p. 7 – 8.
xxxiv
GROS, Frédéric. Estados de violência: ensaio sobre o fim da guerra. Tradução de José Augusto da Silva, São
Paulo, Editora Ideias & Letras, 2009, pag. 227 – 229.
xxxv
Ibid. p. 228 – 230.
xxxvi
Ibid. p. 230 – 233.
xxxvii
Ibid. p. 111 – 241.
xxxviii
Ibid. p. 243 – 254. A própria noção de “guerra justa” é algo a ser discutido e relativizado. Trata-se, de cada lado
contendor, de uma interpretação semântica.
xxxix
VISACRO, Alessandro. op. cit. p. 221.
xl
Ibid. p. 370.
xli
Ibid. p. 225 – 234.
xlii
FRIEDMAN, Thomas L. O mundo é plano: o mundo globalizado no século XXI. Tradução de Cristiana Serra, Sergio
Duarte, Bruno Casotti e Cristina Cavalcanti, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 522 – 531.
xliii
VISACRO, op. cit. pp. 230 – 237.
xliv
Ibid pp. 237 – 258.

1638
As repúblicas do Brasil monárquico: projetos de república circulantes na imprensa da
corte entre os anos 1875 e 1879

Mariana Nunes de Carvalho 1

Resumo: Entre os anos de 1870 e 1874 a publicação do Manifesto Republicano (1870) e a


circulação do jornal A República deixaram claro que existia, na imprensa da Corte, propostas para a
construção de um projeto de república. Porém, após a extinção de tal jornal em 1874, sentiu-se na
historiografia um hiato a respeito de propostas republicanas na imprensa do rio de Janeiro. Existia
na imprensa que circulava na Corte discurso, ou discursos republicanos? Os principais periódicos
deste período não deixavam um posicionamento explícito. Imbuída pela percepção de tal lacuna,
fez-se um levantamento de jornais entre os anos 1874 e 1880, encerramento do jornal A República e
período de baixa atividade dos políticos “liberais”, até o boom da imprensa republicana e
abolicionista. A partir de tal levantamento, busco identificar os diversos discursos republicanos que
apareciam nestes periódicos e os diversos projetos de república que circulavam neste período. Para
este trabalho, escolhi os periódicos específicos, O Republicano e A Liberdade, de oposição à
Monarquia de D. Pedro II, que foram publicados no Rio de Janeiro entre os anos de 1875 e 1879.
Com isso, pretendo demonstrar as diversas visões e projetos de república que existiram na imprensa
carioca neste período.

Palavras-chave: Projetos – República – Imprensa do Segundo Reinado

Abstract: Between the years 1870 and 1874 the publication of the Republican Manifesto (1870)
and the circulation of the newspaper The Republic made clear that there were proposals in the press
of the Court for the construction of a republic project. However, after the extinction of such a
newspaper in 1874, historiography felt a hiatus about republican proposals in the Rio de Janeiro
press. Was there in the press circulating in Court speech, or Republican speeches? The main
periodicals of this period did not leave an explicit position. Imbued with the perception of such a
gap, a survey of newspapers between the years 1874 and 1880 was made, the closing of the
newspaper A República and the period of low activity of the "liberal" politicians, until the boom of
the republican press and abolitionist. From this survey, I try to identify the various republican
discourses that appeared in these periodicals and the various republican projects that circulated in
this period. For this work, I chose the specific periodicals, The Republican and The Liberty,
opposed to the Monarchy of D. Pedro II, which were published in Rio de Janeiro between the years
1875 and 1879. With this, I intend to demonstrate the various visions and projects of the republic
that existed in the Rio press in this period.

Key-words: Projects – Republic – Press of Rio de Janeiro

Este trabalho tem como objetivo principal analisar os sentidos que eram atribuídos à palavra
república e aferir os projetos de república que veiculavam nos periódicos de oposição à monarquia
que circulavam na corte entre os anos 1875 e 1879.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. E-mail: marincarvalho@gmail.com

1639
Aqui apresento a leitura de dois jornais como fonte, O Republicano e A Liberdade, datados,
respectivamente, de 1875 e 1879. Estes periódicos são duas das fontes por mim levantadas para
serem analisadas ao longo do doutorado. Portanto, este trabalho aqui apresentado é um breve
recorte do que desenvolverei nestes anos de pesquisa. A leitura e análise destas fontes permitirá
compreender não somente o discurso político circulante na imprensa deste período e os projetos de
república que eram propostos por estes homens em um período de baixa atividade política liberal,
mas trará ao debate historiográfico fontes de pesquisa praticamente inéditas, e estes periódicos são
duas delas. Cânones que estudaram a história da imprensa como Nelson Werneck Sodré e Rizzini
não citam em suas obras tais periódicos. Além do mais, este trabalho possibilitará a descoberta de
novos atores políticos atuantes na imprensa da corte de um período crucial para a história do Brasil
que é o da crise do segundo reinado.
Parte-se do pressuposto de que a fala contida nestes periódicos discute não apenas o
conceito de república, mas conceitos como democracia, liberalismo, cidadania, aí incluindo o
debate sobre a participação política e relações de trabalho. A análise do discurso proferido nestes
periódicos enfatizará as propostas políticas dos redatores, aqui encarados como publicistas, em
substituição à monarquia e aprofundará a investigação dos sentidos que conceitos como liberalismo,
democracia, república e cidadania ganharam nesse período. Acredita-se que estas expressões
tiveram seu sentido ampliado no âmbito das manifestações políticas que marcaram estes anos, uma
vez que a sociedade vinha sofrendo mudanças estruturais, oriundas da intensa atividade econômica
do período, quando surgiram bancos, indústrias, empresas de navegação a vapor, e o país ia em
direção a uma modernização capitalista.

O Republicanismo e a década de 1870


No Diccionario da lingua portuguesa, de Antonio de Moraes e Silva datado de 1877 o
verbete República possuía a seguinte definição:
Republica: s. f. (do Lat. respublica, feito de res, e publica, a cousa publica) O que
pertence, e respeita ao publico de qualquer Estado: v. g. convêm à republica que
todos trabalhem. § Estado, que é governado por todo o povo, ou por certas pessoas,
que o representam, e por elle escolhidas. § fig. A republica das lettras; os homens
lettrados, ou litteratos.

Na segunda metade do século XIX, especialmente a partir da década de 1870, a imprensa


adotava novos discursos e uma nova postura diante da esfera de poder. Somente a partir do final
desta década que se desenvolveu uma imprensa atuante nos principais centros urbanos. No Rio de
Janeiro, formou-se o principal núcleo jornalístico da corte, especialmente por causa do incremento
da urbanização. Aliado ao crescimento demográfico, estes fatores proporcionaram um aumento do

1640
número de leitores. Outro fator que permitiu este crescimento foi a presença de uma elite
intelectualizada que mantinha ligação direta com as novidades vindas da Europa, incompatíveis
com a estrutura escravista. Concepções políticas estrangeiras assolavam o repertório político
imperial. Reproduções de ideias estrangeiras, especialmente europeias e norte-americanas,
adaptadas ao contexto político brasileiro traziam o debate sobre questões como a escravidão,
cidadania, ciência, federação, centralização e poder moderador. A estrutura imperial via-se, então,
como um dos alvos de debate nos círculos intelectuais.
Em 3 de dezembro de 1870 começa a circular na corte A República, órgão do Partido
Republicano Brasileiro. No primeiro ano sua periodicidade era trissemanal. A partir de 1871 passou
a ser diário. Circulou até 18742 e, a partir de então, ficou na historiografia um hiato no que concerne
a estudos de periódicos de cunho explicitamente republicano.
A partir de levantamento realizado na Biblioteca Nacional, listei todas as publicações que
circularam na corte entre os anos de 1875 e 1879, anos marcados pela baixa atividade política
liberal. A partir da observação e análise dos discursos promovidos em tais periódicos, selecionei
aqueles que se manifestavam contrários à monarquia e ao imperador. A partir de tal levantamento,
busco identificar nesses periódicos projetos de república e os sentidos que essa palavra possui
nestes periódicos, bem como palavras como cidadania, democracia, federalismo e liberalismo.
Neste trabalho, apresento a prévia dos resultados coletados em dois desses periódicos: “O
Republicano: órgão de propaganda republicana”, de 1875; e “A Liberdade. Jornal defensor dos
direitos do povo” de 1879.

O Republicano: Orgam de Propaganda Republicana


Este jornal circulou em 1875. Possui três edições, todas de dezembro deste ano (21, 25 e 29
de dezembro). É composto de 4 folhas, divididas em 3 colunas. Não possui imagens. Imprenso pela
Typografia Fluminense, que pertencia a Carlos Francisco da Silva e localizava-se na Rua Evaristo
da Veiga 5, depois n. 3, que funcionou até 1878. Era vendido mensal e avulso, possuindo preços
diferentes para tais modalidades. A mensalidade era 600 rs, enquanto o exemplar avulso custava 40
rs. Se dizia uma publicação bissemanal. As seções não possuíam uma padronização. Em cada
edição elas apareciam de uma forma, como indicado no quadro abaixo:

2
SODRE, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

1641
Seções e Vol. 1 Vol.2 Vol. 3 Observações
Subseções
O Republicano X X X
-a - Os partidos - Prostituição
centralização - Instrução - Religião
pública - Instrução
pública
Noticiario X X X
- Instrução
Pública
- Policiemos a
Polícia

Colaboração X X X (aparece
- Prostituição - Art. 5 da invertido,
Constituição depois da seção
Revista)
- Conservatório
dramático
- História dos
mártires da
liberdade por
Alphonso
Esquiros
Revista X - X
Letras X -
- História dos
mártires da
liberdade por
Alphonso
Esquiros
Anuncios - x

1642
Os artigos e editoriais não eram assinados, nem por pseudônimos. No primeiro editorial da
primeira edição, intitulado O Republicano afirma que lutam contra “velhas e caducas instituições
que nos regem...”, fazendo referência à monarquia. E dizem professar com convicção. “Por isso
mesmo que professamos de convicção o mais absoluto republicanismo devemos dizer que para nos
a tolerância é a primeira condição de vida.”
No quinto parágrafo eles descrevem aquilo que consideram a perfeita república:
Queremos ver a igreja livre no estado livre; o povo governado pela igualdade de
direitos e seguindo a mesma rotina de deveres; a escola elevada ao templo da
instrução e se nos é elícito exprimir todo o nosso pensamento é força que digamos:
Queremos o estado sem religião imposta; o povo sem os verdugos; lavoura sem os
escravos: a herdades sem os feitores; o commercio sem os impostos a naturalização
sem as cartas; o governo sem o mysticismo, a propaganda sem a revolta; a
revolução sem a força material; a liberdade sem a anarquia, e ainda, usando dessa
frase sublime do gênio francez queremos Deus sem o padre.”...“Quando tudo isso
existir não podemos deixar de possuir a perfeita republica.

A seção O Republicano possuía uma subseção intitulada “Centralização”. Aí, o redator


exprimia suas observações a respeito da centralização monárquica, que ele afirmava ter sido uma
tradição transplantada do “velho Portugal” que geravam, desde 1822, “um monstro horrendo que
corroe dia por dia o coração destas desgraçadas situações a que deu-se o nome de provincias”.
Denuncia que as 20 provincias brasileiras, exceto Rio de Janeiro e São Paulo “vegetam; não podem
ter existência própria ... estão moribundas”.
Nesta mesma subseção, compara o governo do imperado “único e absoluto”, referindo-se ao
poder moderador a Cesar e afirma que tanto ele quanto os políticos de seu governo não conhecem
estas províncias.
Nesta primeira edição data de 21 de dezembro de 1875 e suas críticas são especialmente
voltadas para a centralização monárquica e as origens do regime no colonialismo: “As tradições
transplantadas do velho Portugal geram desde 1822 um monstro horrendo que corroe dia por dia os
corações destas desgraçadas situações a que deu-se o nome de províncias”.3
Também critica a existência de uma religião oficial, herança do primeiro reinado, fazendo
referência ao artigo quinto da constituição de 18244 afirmando a necessidade de liberdade de
crença, uma orientação liberal dos redatores.
A Liberdade

3
Idem
4
CONSTITUIÇÃO DE 1824. Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião
do Imperio. Todas as outras Religiões serão permittidas com seu culto domestico, ou particular em casas
para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo.

1643
De acordo com o Diccionario da Lingua Portugueza de Antonio de Moraes Silva, edição de
1877 as palavras democracia, federalismo, liberalismo e república apresentavam as seguintes
definições, com a grafia atualizada, respectivamente: democracia: forma de governo, na qual o
sumo império, ou os direitos majestáticos residem no povo, e são por ele exercidos; federalismo: o
sistema de governo federativo. V. Federativo. § A constituição, ou governo de um Estado agregado
a outros em confederação; liberalismo: ideias generosas; tendência para a felicidade de todas as
classes da sociedade. § Profissão de doutrinas liberais. § Sistema, adopção das ideias liberais. il.
Procedimento politico regulado por essas ideias; o contrario de servilismo. Não existe verbete para a
palavra cidadania em tal dicionário.
Dentro deste contexto do final da década de 1870 encontra-se o periódico “A Liberdade.
Jornal defensor dos direitos do povo” que circulou no Rio de Janeiro no ano de 1879. Encontra-se
hoje na seção de Obras Raras na Biblioteca Nacional. Existem apenas 3 edições disponíveis: a
primeira, a segunda e a terceira, datadas respectivamente de 01, 04 e 08 de outubro de 1879.
Impresso pela Tipografia Cosmopolita, o escritório da redação localizava-se na Rua da
Alfandega n. 343 sobrado. O jornal era distribuído duas vezes por semana, às quartas-feiras e
sábados. Impresso com 4 páginas, seu formato era 48 x 32 cm, dividido em 3 colunas. Era vendido
por dois preços distintos: um valor para a Corte e outro para as províncias, o que nos leva a crer que
sua distribuição não se restringia apenas à cidade do Rio de Janeiro. Disponibilizava duas
modalidades de assinatura: a anual, que custava 5$000 na corte e 6$000 nas demais províncias,
enquanto a semestral custava 3$000 na corte e 4$000 nas demais províncias.
Este periódico possui 2 colunas que aparecem nas três edições: “A Liberdade” e
“Gazetilha”. A coluna “A Pedido” aparece na primeira e segunda edições e não está presente na
terceira, enquanto a coluna “Memoranda” aparece na segunda e na terceira edições.
Na primeira edição, logo no editorial inicial intitulado “A Liberdade”, que apresenta o jornal
e diz ao que ele veio, menciona que este jornal já havia existido no ano de 1875, mais precisamente
em 23 de outubro, mas sua duração foi efêmera. Além do mais, já neste parágrafo inicial se coloca
como defensor dos direitos do povo e afirma que foi o primeiro órgão da imprensa que denunciou o
monopólio da carne seca.
A Liberdade áppareceu a 23 de Outubro de l875, e posto que tinha durado
apennas o tempo dos meteoros e isto por circunstancias estranhas à vontade
de seu Redactor não lhe accusa a consciência de ter jamais faltado aos
deveres sacrossantos que se, impoz no programa que adoptou, não só para
com seus collegas da Imprensa, como em referencia ao Povo, de cujos
direitos se declarou mantenedor arcando por vezes contra a tyrannia dos
Cezares e de seus instrumentos, contra o poder da theocracia, e sendo o

1644
órgão da Imprensa que primeiro elevou a voz contra o monopólio da carne
secca...5

Logo neste parágrafo inicial e também com base no próprio nome do periódico podemos
verificar um discurso de orientação liberal. Ao se propor a denunciar o monopólio comercial
podemos concluir que quem escrevia era favorável à liberdade de comércio, o que fica explícito
mais adianta, na mesma coluna “A Liberdade”, com o subtítulo “Liberdade de Commercio”.
Nesta subcoluna o redator prossegue a sua denuncia contra o monopólio do comércio da
carne e defende o liberalismo com o argumento de que o monopólio comercial prejudica a
distribuição do alimento. De acordo com o artigo, os donos de açougue são também vendedores de
gado e estes deveriam receber pesadas multas ou penas mais rígidas, pois provocam a “carestia” do
alimento.
Continùa o monopólio comercial, não há falta de gado para que haja tanta
carestia desse necessário alimento, se o governo acabasse com os
marchantes de gado que são açougueiros, ou que prohibisse expressamente
sob muitas rigorosas e outras penas, aos donos de açougue que direita ou
indirectanente são marchantes de gado, igual prohibição aos commissarios
que se associão occultamente aos marchantes, nâo estaria o pobre prohibido
de comprar a carne que se vende por um preço que só pode dela saborear os
ricaços do Paiz.6

Podemos aferir, na afirmativa apresentada acima, uma contradição dos redatores, pois em
um primeiro momento defendem a liberdade de comércio, mas pedem a ação do Estado por meio de
punições para aqueles que praticassem o monopólio comercial.
Além do próprio título do periódico e desta subcoluna mencionada acima, o periódico faz
inúmeras referências à liberdade individual. A palavra liberalismo não aparece em nenhuma das três
edições, porém a palavra “liberdade” é contabilizada 20 vezes (não foram computadas as que fazem
referência à publicação). Já a palavra “livre” é mencionada 23 vezes nas três edições publicadas. Na
primeira edição, na coluna “Res Non Vera” uma das vezes que a palavra “livre” aparece é
acompanhando a palavra voto. Nesta coluna, que é o segundo editorial deste jornal, o redator
reconhece que o país passou por avanços políticos significativos. Ele usa termos do linguajar
cientificista, como “evolução” e “metamorphose” faz referência à troca ministerial, à falta de
comprometimento dos dirigentes com o povo e com os próprios programas e faz críticas às eleições.
Depois do paiz ter passado por tantas evoluções politicas, se assim se pôde
chamar a essas continuas e rápidas ascençõas e quedas dos dous partidos,que se
pavoneão com o titulo de constitucionaes; depois de tão amargas decepções
para o Povo, cruel e ignobilmente sophismado, mistificado e traido por seus

5
A Liberdade, Rio de Janeiro ano 1, vol.1 out 1879.
6
Ibidem, p. 1

1645
mandatários, que no poder não tratão senão de si e dos seus, porque sabem que
o Povo pouco instruído em vez de reagir e assumir o governo, porque é o único
soberano legitimo, se entibia, calla-se e assiste na mais degradante indifferença
e atonia ao desmoronamento de um grande império ; depois de tantas lições de
experiência dolorosa, que demonstrão à toda a luz que desorganisados como se
achão os partidos militantes, sem programma, sem chefes prestimosos, sem
apoio consciencioso e sincero da coroa, sem idéas definidas e sustentadas
lealmente, não é possivel jamais que qualquer d'elles assuma perante a nação a
responsabilidade seria de administrar os negócios públicos fazendo prosperar
seu estado. Um partido sobe ao poder, dirigem-o os seus mais prestimosos
chefes (esta ao menos é a presumpção) as urnas approvão sua escolha (só Deus
sabe porque meios!) distribue-se programmas, promessas etc, passados poucos
annos e ás vezes mezes, de uma luta inglória e mesquinha, que tem por fim
jamais o interesse do'povo, mas sempre o interesse mesquinho—do poder—cae
o ministério salva-vidas, por entre os apodos e maldicções publicas e o pobre
continua sem instrucção; som garantias, exausto de impostos, não tendo as
vezes nem água para beber, vendo seus filhos morrer à fome e á secca; exausto
o thesouro, com esbanjamento e a commandita, desacreditado o commercio,
exangue a lavoura, desmoralizadas as instituições, calcada aos pés â
constituição, e elevando-se sorrateiro á sombra das saturnaes do voto livre, e
das metamorfoses politicas, cada vez mais sobranceiro e altivo, por meio da
usurpação*de demais poderes, um parasita
que lhe suga a seiva, repartindo-a com mão profuga pelo sotaina negra, que lhe
incensa o throno — e pelos fieis servos que adorão n'elle o bezerro de ouro!7

Na sequencia do editorial, o redator fará suas críticas ao poder imperial, mais


especificamente ao absolutismo e ao poder moderador. Ele não é direto e se vale de metáforas,
relacionando a existência de tal regime à ausência de liberdade do povo. Neste trecho, ao tratar da
figura do Imperador e do poder que este exerce no sistema político de então, o autor se vale de
adjetivos depreciativos como doido e diretor e gênio do mal, palavras que ainda hoje encontramos
em nosso vocabulário e que são utilizadas para os mesmos fins.
Este poder que se conhece com o nome de pessoal, progride sempre e visa de perto
a completa absorpção dos demais, isto é só absolutismo — que alguém defiiniu o
governo de, muitas intelligencias por um só homem, ainda que seja doudo ; e no
entanto os ministérios caem arrastado por seus actos, e elle, o director, o gênio
mau, o chefe sob cujas ordens e inspirações tudo se faz, continua sempre no mesmo
posto, sem responsabilidade !!! Triste condição de um povo livre! Liberdade,
virgem linda, augusta vista, quantos ídolos do barro não vivem e são adorados á tua
sombra e protegidos pelo teu nome, sem que o ignórantismo de teus verdadeiros
crentes, reclame ao menos contra os que profanão o teu divino manto ?!8

Dentro da perspectiva de construção e implantação de um país moderno, o redator se valerá


da oposição entre velho e novo, antigo e moderno, de modo que para atingir a “moderna
democracia” é necessário romper com programas e partidos antigos. Aqui também notamos que o

7
Ibidem, p. 1.
8
Ibidem, p. 1.

1646
conceito de democracia, nesse contexto do final da década de 1870, está muito próximo do conceito
de liberdade.9 As duas palavras possuem sentidos semelhantes e se aproximam. Soma-se a isso a
perspectiva da possibilidade do voto popular, indo ao encontro da proposta do gabinete liberal de
eleições diretas. A palavra democracia aparecerá ao longo das três edições apenas 4 vezes, mas nas
duas vezes que aparece na primeira edição, está junto do adjetivo “moderna”.
É preciso que se ponha de parte os velhos, programas e rançosos partidos, que não
mais podem, que se eleve das ruinas de ambos, um novo partido inspirado pelas
idéas da Democracia moderna, passadas pelo cadinho de experiência e que,
esquecendo seus velhos ódios mesquinhos e rediculos, suas infantis desavenças, se
reunão em um só corpo- pujante pela força da idéa, valente pelo voto popular,
audaz pela consciência de seu direito e que hasteando a bandeira das liberdades
publicas, intime a esse Poder hybrido á que se ponha á testa do movimento
civilizador ou resigne a pozição que indebitamente ocupa em um paiz de homens
livres, que desejão a prosperidade de sua Pátria. Nada mais de mistificações e
sophismas. Pelo povo, ou tudo ou nada.10

A segunda edição deste periódico, datada de 4 de outubro de 1879 possui algumas


diferenças estruturais com relação à primeira edição. Uma destas diferenças é que as colunas
passam a ser assinadas por pseudônimos. Um destes pseudônimos chama-se Proudhom Filho, em
clara referência ao filósofo revolucionário francês.
No editorial de abertura “A Liberdade”, cujo subtítulo nesta edição é “A Situação”, a palavra
“república” aparecerá pela primeira vez no periódico. Na terceira edição a palavra aparecerá mais
uma vez, totalizando duas citações, assim como a palavra “republicanos”. Ao mencioná-la o redator
fará menção ao movimento republicano já existente no pais e aproximará o conceito de república do
conceito de democracia. José Murilo de Carvalho11 afirma que o Manifesto republicano de 1870 já
não fazia distinção entre estas duas palavras e que a república era a forma de governo apropriada ao
exercício da soberania popular, entendida como fenômeno exclusivamente político Sendo, então,
democracia e república uma mesma coisa, um país que se autogovernasse e elegesse todos os seus
governantes.
O Povo de hoje não é mais o de hontem, cada dia passado é um passo dado
em sua illustração., a republica já não;é mais uma utopia, os, caracteres mais
timidos e pusilânimes a affaga já como uma risonha esperança, outros a
considerão como a única idéa que personifica o governo do povo pelo povo,
descrente de outras idéas que jà constituirão- lhe uma religião.12

9
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora UNB,
2010, vol.2, p. 688.
10
A Liberdade, Rio de Janeiro ano 1, vol.1 out 1879.
11
CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil, 1870-1891. Revista Varia hist.vol.27,
no.45.Belo Horizonte: Jan./Jun,2011, não paginado.
12
A Liberdade, Rio de Janeiro ano 1, vol.2 out 1879.

1647
Ainda neste editorial faz referência ao partido liberal e sua ascensão ao poder, criticando a
atuação do partido usando adjetivos como “mesquinho”, e longe de representar o programa liberal
que, segundo o autor do editorial, são “ideias generosas, sublimes, e grandiosas”. Neste mesmo
parágrafo assumem que não são revolucionários, mas prosseguem elencando uma série de medidas
e propostas que são mais que reformistas, além de apresentarem um repertório de palavras ligadas a
movimentos revolucionários, como “proletário”
Mas os pobres, os filhos dos proletários, os miseráveis que nem roupa tem,
aos quaes o governo deve vestir e dar livros, o que farão sahindo da escola
?13

Na subseção intitulada “Os ingênuos” o redator apresenta consequências da lei do ventre


livre para os meninos que eram livres por conta da lei. Na sequencia o redator apresenta algumas
“vantagens” que se pode conseguir a partir da lei, apresentando propostas de qualificação destes
meninos, contribuindo que estes se tornem cidadãos. Assim, este periódico colabora para o debate
sobre as relações de trabalho.
Parece mesmo que não se enxerga ou quer enxergar um dos fins que teve
em vista a lèi da emancipação do ventre, porque não se tratou ainda de dar
uma providencia qualquer, que mostre que se os não esqueceu. No entanto
que uma das mais interessantes vantagens que o paiz pode auferir da lei, não
é a libertação do ventre mas sim o aproveitamento de milhares de creanças,
tio estado de receberem uma educação que pára o futuro os torne cidadãos
prestaveis, obreiros do progresso a que aspira o Brazil ... Mas se o governo
ainda que com sacrifício tornasse a lei effectiva, e apurado o numero de
ingenuos, creusse colônias agrícolas orfanológicas em que esses menores e
outros recebessem educação e ao mesmo tempo fossem instruídos para a
lavoura, para as artes e oíficios, que de bênçãos não votarião os próprios
esclavocratas de hoje, quando d'aqui a alguns annos, encontrassem núcleos
moralisados onde podessem contractar o obreiro, o artista, o trabalhador que
conhecesse o valor de seu trabalho? 14

Ainda sobre a escravidão, já na primeira edição o periódico se coloca contrário. A aqui


mantem o posicionamento defendendo, inclusive, a educação de meninos negros.
Na sequencia deste artigo tratará da educação pública brasileira, apresentando a baixa
qualidade do ensino e comparando com a educação norte-americana. Critica a instrução primária ao
afirmar que esta deve ir além das primeiras letras.
Entendemos que não ô esta a instrucção a que se obrigou o Governo pelo art. da
Constituição e que como nos Estados Unidos a instrucção primaria deve abranger
mais alguma cousa do que primeiras letras, e teremos oceasião dedesinrolver esta

13
Ibidem, p. 1.
14
Ibidem, p. 2.

1648
idéa em artigos subsequentes. Por era quanto o que pretendemos ó saber em nome
do Povo o que se pretende fazer com esses ! ingênuos, que destino se lhes ha de dar
jà !15

Tanto nesta segunda edição como na primeira o jornal falará da falta de água e criticará o
monopólio do comércio, mais uma vez afirmando que agem por conta da ineficiência do governo,
deixando subentendida a defesa de menor participação do estado, responsabilizando-o pela
ineficiência dos serviços prestados ao público.
A terceira e última edição do jornal começa não com o editorial, mas com a apresentação
dos postos de venda do jornal. São eles: Rua da Lampadosa n.;2; Kiosque de S. João, Largo do
Rocio; Rua de S. Clemente; Rua de São Luiz Gonzaga n. 37; Rua do Conde d'Eu, n. 122 E; Kiosque
da Estrada de Ferro; Rua da Gloria n. 18; Ponte das Barças, Corte, Praia-Grande e S. Domingos;
Kiosque do Largo de S. Francisco.
Na sequencia, o editorial “A Liberdade” traz uma homenagem ao Marques de Herval, que
faleceu em 04 de outubro de 1879, dia que circulou a segunda edição.
O segundo artigo, intitulado “A verdade é a liberdade” e assinado por V. Hugo e E. Guinet
se coloca como instrumento da verdade. Informam também que não estão a serviço de nenhum
partido e sim a serviço dos direitos do povo. A palavra revolução aparece nesta edição, contudo
falam de revolução por meio da palavra.
Suspirados nestes princípios, tendo fé só no futuro, encetamos a publicação de
nosso modesto jornal, que não sendo instrumento de partido algum, declarou-se
defensor dos direitos do povo, rasão pela qual não se ataviando com pennas de
pavão nem empregando ramalhetes de rhetorica, usa da linguagem chã e vulgar que
mais bem possa serc ómprehendida pelo povo a quem ó destinado. Apezar porém
de tão modesto programma, como tem por fim censurar os tartufos e desmandos do
poder,' não obstante não yísâr senão a revolução racciònal por meio da palavra,
tendo por fim tão somente discutir princípios e jamais personalidades, porque não
encherga pessoas, mal funcionários públicos responsáveis por seus actos, aos quaes
não injuria por certe e nem procura expor ao ridículo, quando censura, porque não
è jornal caricato, não poude A Liberdade escapar á sanha da perseguição e má
vontade de aiguns— anima vilis — que desmascara/ fazendo conhecer ao povo as
harpias dos cofres públicos, as sanguesugas que sorvem seu precioso sangue, os
parasitas que lhe sugão a seiva16.

Além deste uso da palavra revolução, faz referência aos ideais da Revolução Francesa no
editorial intitulado “Xingu”.
Nesta terceira edição eles indicam que poderão não continuar a publicação por falta de
recursos. Para tal, se valem de metáforas e apelam para identificação do povo, aquele que eles
defendem com o programa, para tentar aumentar suas vendas.

15
Ibidem, p. 2.
16
A Liberdade, Rio de Janeiro ano 1, vol.3 out 1879

1649
A Liberdade só receia uma cousa, ó não se fazer comprehender do povo e
desmerecer sua protecção; desde esse momento, callar-se-ha, porque deficiente de
recursos, mirrhar-se-ha como a flor perfumosa da estação ao faltar-lhe o orvalho do
céu, como tem acontecido a outros. Não espera porem que lhe falte a aura popular,
desde que cumprir seu programma, pois não é de presumir que lhe recuse 40 rs. por
folha, aquelle a cuja defesa se dedica com sacrifício.17

Referências:

A Liberdade, Rio de Janeiro ano 1, vols.1, 2 e 3 out 1879.


O Republicano, orgam de propaganda republicana, Rio de Janeiro, ano 1, vols.1, 2 e 3 1875.
ALONSO, Ângela. “Apropriação de ideias no Segundo Reinado”. In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (org). O Brasil Imperial, volume III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009, p. 89.
______. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002.
______. Discurso e contestação. O movimento reformista da geração de 1870. Revista Brasileira
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17
Ibidem, página 1.

1650
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oligárquico. In: O Brasil Republicano. O tempo de liberalismo excludente. Rio de Janeiro:
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VIOTTI da COSTA, Emília. Da Monarquia à República: momentos decisivos/Emília Viottida
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1651
Os Coletores-Pescadores de Rio das Ostras: O caso de Tarioba

Marlon Barcelos Ferreira1

Resumo: O território do Brasil, antes da chegada dos europeus já era intensamente habitado.
Milhões de nativos e centenas de etnias diferentes ocupavam todo o território de norte a
sul e um movimento que começou a milhares de anos atrás quando tivemos o inicio da
ocupação do atual território brasileiro e que prosseguiu até a chegada dos portugueses
Umas dessas populações pioneiras deixaram enormes montes de conchas espalhados pelo litoral
brasileiro e que são conhecidos como sambaquis. Neste trabalho procuraremos ressaltar de
forma breve a importância arqueológica dos sambaquis e discorrer sobre o histórico das
pesquisas arqueológicas sobre Sambaquis no município de Rio das Ostras e que
resultaram na criação do primeiro museu de sítio arqueológico “in sito” do Brasil, o
Museu Arqueológico de Tarioba.

Palavras – Chave: Sambaqui, Pré - História, Arqueologia.

Abstract: The territory of Brazil before the arrival of the Europeans was already intensely inhabited.
Millions of natives and hundreds of different ethnic groups occupied the whole territory from north to
South movement and a movement that began thousands of years ago when we had the occupation of
the present Brazilian territory and which continued until the arrival of the Portuguese Some of these
pioneer populations left huge piles of shells scattered along the coast and are known as sambaquis. In
this work, we will the archaeological importance of the sambaquis and to discuss the history of the
archaeological research on Sambaquis in the municipality of Rio das Ostras and resulted in the creation
of the first museum of archaeological site "in situ" of Brazil, the Archaeological Museum of Tarioba.

Keywords : Sambaqui , Pre History, Archaeology

INTRODUÇÃO

Com a expansão petrolífera no Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas, a cidade de Rio
das Ostras tem acompanhando um grande desenvolvimento de sua economia e ao tempo uma enorme
evolução de sua população. Entretanto, esta região localizada no litoral fluminense, tem uma ocupação
humana muito mais antiga que a proporcionada pela colonização portuguesa e pela riqueza do petróleo.
Sendo uma região rica em recursos naturais, esta região acabou sendo apropriada territorialmente e
primordialmente por grupos de caçadores, coletores e que nos deixaram inúmeros vestígios materiais
em sítios arqueológicos bem característicos conhecidos como sambaquis.

1652
Esta denominação é originária da mistura dos termos Tupi, tamba (conchas) e ki (amontoado),
dando origem a palavra sambaqui. O PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas)
definiu que em linhas gerais que um sambaqui é um tipo de “sítio arqueológico cuja composição seja
predominantemente de conchas2”. Os mesmos são constituídos por inúmeras camadas de conchas de
moluscos, ossadas de animais, fragmentos de ossos e sepulturas humanas, restos de fogueira e, por
vezes, ferramentas, adornos e esculturas, misturado com a areia e alguns chegam a ter dezenas de
metros de altura e extensão.

Ao longo das últimas décadas, as pesquisas arqueológicas se desenvolveram no Brasil e assim,


os conhecimentos acerca dos sítios arqueológicos denominados de Sambaquis tiveram um grande
desenvolvimento em todo o Brasil. Da mesma forma, a região do município de Rio das Ostras acabou
chamando a atenção de diversos arqueólogos ao longo das últimas décadas, o que levou ao surgimento
de diversas pesquisas na região e que resultaram em vários estágios de pesquisas até chegar às visões e
entendimentos atuais sobre os sambaquis e a ocupação e a história pré-colonial da região. O que
também acabou levando a criação de políticas públicas relacionadas à valorização desse passado ligado
a essas populações nativas e que resultaram na criação do Museu Arqueológico Sambaqui de Tarioba
em Rio das Ostras.

POR DENTRO DE UM SAMBAQUI

A ciência arqueológica e as inúmeras pesquisas ainda não conseguiram traçar um panorama


bem definido de como grupos de homens pescadores-coletores chegaram ao litoral ao desbravar o
território brasileiro. Possivelmente, um seguimento deslocou-se para o litoral e ambientou-se em um
ecossistema limítrofe ecótone (diversos ambientes como manguezais) no qual foi possível encontrar
uma alimentação segura: o ambiente estuarino é fértil por manter em suspensão matéria orgânica na
confluência da água doce com a salgada, assegurando comida para os animais. Ao chegarem às áreas
litorâneas, os caçadores-coletores encontraram condições de grande segurança alimentar e estabilidade.

As primeiras evidências são muito antigas, com quatro datas em torno de 8 mil anos ( AP)3
com a maior parte das datações entre 5000 e 3000 (AP). Mas como nesta época o mar estava recuado e

1653
atualmente está coberto pelas águas, é possível que muitos vestígios estejam debaixo d`água e por isso
os pesquisadores tenham dificuldades de encontrar outras muitos sambaquis.

Os sambaquis são encontrados em vários trechos do litoral brasileiro. Do Rio Grande do Sul até
a Bahia, e do Maranhão até o Pará. Os sítios mais vistosos são encontrados em Santa Catarina. Segundo
as pesquisadoras, Lina Maria Kneip e Luciana Pallestrini, alguns sítios podiam chegar a 30 metros de
altura e até 400 metros de extensão e geralmente com o formato ovalado4.

Uma das principais características desses grupos humanos era o costume de guardar as conchas
dos moluscos coletados e empilhá-las juntamente com restos de comida, ossos de animais, ferramentas
entre outros objetos. As conchas dominantes são ostras (Ostras SP) e berbigões (anomalocradia
brasiliensis). Com base nesses padrões, alguns arqueólogos, como Madu Gaspar5, entendem que houve
a formação de uma cultura sambaquieira, ou seja, de uma unidade sociocultural nessas populações.
Este é um tema que tem gerado grandes debates, alguns arqueólogos questionam esta unidade cultural
com base no fato que se podem observar sensíveis diferenças entre diferentes sítios arqueológicos
litorâneos, como mudanças nos padrões de subsistência, formato, entre outros, o que indicam uma
diversidade cultural entre esses povos litorâneos e assim questionam esta padronização e unidade
cultural.

Além de restos faunísticos, encontramos também artefatos da vida cotidiana. Lâminas de


machados polidas ou lascadas, raspadores, polidores entre outros artefatos líticos. Os artefatos ósseos e
os líticos são os mais comuns. Esses sítios foram também locais para enterramentos e de rituais
religiosos. Segundo Prous, “em geral, os corpos não foram abandonados nos extratos de conchas. Mas
sim colocados em sepultamentos de vários tipos6”. Sendo que, a maioria é de sepultamentos primários
e geralmente na prosição fletida podendo estar acompanhado ou não de objetos de adornos, como
colares de dentes de tubarão, utensílios do cotidiano e ossos de animais eram enterrados com os
corpos.7

A intenção da construção dos sambaquis é um tema desenvolvido por vários arqueólogos.


Segundo a arqueóloga Tânia Andrade Lima8, um dos objetivos da construção desses amontoados era o
de ser uma clara demonstração de poder, afinal, para serem construídos foram exigidos tempo,
organização e liderança. Da mesma forma, as diferenças nos rituais funerários, segundo Madu Gaspar9,
podem indicar diferenciação social nestas sociedades sambaquieiras, faltando mais pesquisas neste
sentido. Isso mostra como essas sociedades eram complexas e não devem ser vistas e classificadas

1654
apenas como populações igualitárias de nômades caçadores e coletores, o que era uma ideia muito
difundida na arqueologia.

AS PESQUISAS E A PRESERVAÇÃO EM RIO DAS OSTRAS

Somente a partir da segunda metade do século XX é que tivemos início a um período de


crescimento das pesquisas arqueológicas e da formação do cenário moderno da arqueologia no Brasil.
Em 1954, foi realizado o Congresso Internacional de Americanistas, que pode ser considerado um
ponto de virada no estabelecimento da moderna arqueologia nacional. A partir daí tivemos a vinda de
inúmeros especialistas estrangeiros como Anette Emperaire, Wesley Hurt que não apenas se
debruçaram sobre o tema, mas também colaboraram na formação de especialistas brasileiros, trazendo
novas metodologias e orientações técnicas e que permitiu a ampliação do entendimento sobre os
sambaquis e a ocupação pioneira do território nacional e em especial do litoral.

Neste contexto, na década de 60, o Governo Brasileiro determinou a criação do PRONAPA


(Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), projeto do governo que tinha como objetivo de se
fazer um levantamento da cultura matéria (arqueológico) e de identificar\definir as principais culturas
do território nacional e que teve um papel fundamental, pois, a partir daí, a arqueologia brasileira se
estruturou do ponto de vista institucional, metodológico e teórico. Este projeto resultou em inúmeras
pesquisas de campo realizadas em todo o território nacional e que acabou proporcionando o primeiro
grande mapeamento dos vestígios matérias das culturas nativas do período pré-colonial e também do
período de colonização.

Na Região dos Lagos, as pesquisas arqueológicas se intensificaram dentro do contexto de


criação do PRONAPA, nas décadas de 60 e 70. Quando surgiram os primeiros projetos de pesquisa
arqueológica fora da alçada de amadores, que já ocorria desde o século XIX. Assim, desde a década de
60, inúmeros projetos e pesquisas foram realizadas na região e o que tem proporcionado um relativo
conhecimento deste passado pré-colonial e das culturas nativas que ocuparam essa região.

1655
Neste contexto, desde a década de 60 as pesquisas arqueológicas em Rio das Ostras levaram a
identificação de 12 sítios arqueológicos denominados de sambaquis10. Destes sítios arqueológicos,
somente o sítio denominado Sambaqui da Tarioba foi escavado, mapeado e totalmente preservado. Sua
descoberta aconteceu em 1967, mas somente em 1997 durante as obras da construção de um teatro no
terreno da Casa de Cultura, o sítio fora redescoberto e devidamente escavado e preservado. Sua
redescoberta trinta anos depois de sua localização pioneira dentro do PRONAPA movimentou a cidade.
O Instituto de Arqueologia Brasileira, com a orientação do Professor Ondemar Dias, foi à equipe
técnica responsável pela escavação e pesquisa no sambaqui da Tarioba.

As escavações revelaram seis camadas estratigráficas como resultado da ocupação humana. A


datação por radiocarbono modelou a probabilidade de início e fim da ocupação da localidade na faixa
11
entre 3.793-3.713 e 3.417-3.266 A.P. Durante o processo de escavação a equipe do IAB recuperou
inúmeros vestígios da cultura material dessa população de caçadores, pescadores e coletores. Ao
mesmo tempo, também tivemos o desenvolvimento de políticas de valorização dessas populações pré-
contato, enquanto parte da história e consequentemente patrimônio arqueológico da região e em
especial da cidade de Rio das Ostras não apenas com a preservação do sítio, mas também com a criação
pela Prefeitura do Museu Arqueológico Sambaqui de Tarioba em Rio das Ostras.

Segundo o Presidente do Instituto de Arqueologia Brasileira, Ondemar Dias, “Desde o princípio


já havia essa intenção de deixar o sítio em exposição e fazer realmente uma exposição didática.” 12
Desta maneira, o museu fora pensando para ser um dos poucos museus de arqueologia “in situ” do
Brasil, ou seja, o material que está exposto permanece da forma como foi encontrado a disposição do
visitante.

Entendemos que durante muito tempo, o Estado (Imperial e Republicano) e os diversos


profissionais da memória, no caso, os arqueólogos, privilegiaram os vestígios e os artefatos
arqueológicos dos segmentos dominantes da sociedade 13e na qual os vestígios e artefatos pré- coloniais
e indígenas foram descartados do discurso oficial e colocados como curiosidades ou vestígios de povos
primitivos e sem história. Mas, nas últimas décadas diante de mudanças políticas e sociais, como o
retorno a normalidade democrática, as atuações de movimentos sociais e ativistas dos direitos indígenas
proporcionaram uma ampliação das pesquisas sobre a história dos povos pré-coloniais e que resultaram
no que foi denominado por John Monteiro 14como uma nova história indígena.

1656
15
Da mesma forma, o pensador Michel Pollak chamou a atenção para os processos de
dominação e submissão através do uso de diferentes versões, visões e memórias, apontando que muita
das vezes pode ocorrer uma ruptura entre uma memória oficial e dominante e o que ele denominou de
memórias subterrâneas, que são as memórias marcadas pelo silêncio, pelo não dito, pelo ressentimento.
Assim, ma cidade de Rio das Ostras, nos últimos anos foram desenvolvidos trabalhos não
apenas de escavação e pesquisa, os trabalhos arqueológicos também contemplaram os aspectos de
recuperação desta memória e de educação em torno dos sambaquis. Na qual essas memória dos povos
nativos que durante muito tempo ficaram submersas, estão ganhando espaço. A recuperação desta
herança pré-colonial é resultado do aumento das pesquisas arqueológicas no Estado do Rio de Janeiro e
de inúmeras políticas de resgate e valorização deste passado pré-colonial que estão sendo
desenvolvidas nos últimos anos16.

Com apoio do governo, o sítio fora delimitado, escavado e em torno de sua área fora erguido
uma estrutura que resultou em um novo espaço de memória municipal: O Museu de Sítio Arqueológico
Sambaqui da Tarioba. Como salienta a presidenta da Fundação de Cultura de Rio das Ostras na época,
Mara Fróes:

“Eu tinha que explicar a uma população o que eu estava fazendo dentro deum monte de
buraco. E era difícil, a matéria é difícil explicação, fazer a população entender que
aquilo ali, que o pessoal que morava aqui antes de todo mundo tá aqui. Aí eu tava
falando, a gente estudava a história, tentando
ir a fundo e descobrir os grandes navegadores, todo mundo que passou aqui, quantos
anos poderia ter esse município. Difícil, a gente achava três linhas assim em um livro e
de repente se percebeu o grande passado que estava na sua cara, entendeu? Então
optou-se na época quando eles começaram a fazer prospecção, a primeira prospecção
foi uma surpresa, que eles acharam ossada, o professor Ondemar também que é um
ícone desse país de arqueologia, Beltrão também veio aqui... Nossa tanta gente passou
por aqui. Então nós definimos na época, o Ondemar achou a melhor lógica e eu posso
dizer que ele que definiu e eu fiz assim ó: tá bom, tá ótimo! Que poderia a gente fazer
um museu de sítio, deixar a escavação aparente. Eu consegui na época dinheiro prá
fazer uma cobertura porque eles não trabalhavam fora da cobertura, o pessoal me mata
também, arqueólogo é fogo na roupa. Arrumei um capim, parecia uma tapera, o
negócio começou a voar, começou a entupir ralo dos vizinhos o negócio ficou igual a
um tapete mas aí vinha naquele ímpeto, né: achamos uma descoberta prá região aqui
fenomenal. Sabendo que em Araruama tinha cento e tantos sítios, Saquarema tem mais
não sei quantos sítios catalogados e de repente Rio das Ostras a gente faz um achado
desse achando que o lugar era um local de passagem. Mesmo você pensando que é
super aprazido, não ia ter população aqui? Mas assim, nem historicamente você tinha
índio que pudessem comprovar os índios daqui, né? Assim índios que estavam aqui...
Você via Goitacazes ali em ampos, Tamoios prá lá e aqui a gente ficou em um local
meio neutro, assim, estranho. Então isso veio comprovar tudo, né? Tinha ocupação, a

1657
ocupação vinha, acontecia aqui, aconteciam em vários lugares aqui do município, na
zona rural, entendeu?”17

A mesmo tempo, a criação do Museu Sítio Arqueológico Sambaqui da Tarioba se enquadra na


perspectiva de preservação dentro da educação patrimonial. Pela localização e estado de preservação do
sambaqui, o mesmo tornara- se excelente para ser usado para fins didáticos e servir de ilustração para
as pessoas de como era um sambaqui. Afinal, preservar não é só guardar uma coisa, um objeto ou uma
construção, preservar é tornar vivo para as pessoas aquele passado como salienta Lemos,

um miolo histórico de uma grande cidade velha. Preservar também é gravar


depoimentos, sons, músicas populares e eruditas. Preservar é manter vivos, mesmo que
alterados, usos e costumes populares. É fazer, também, levantamentos, levantamentos
de qualquer natureza, de sítios variados18

Da mesma forma, juntamente com o trabalho do arqueólogo, desenvolveu-se um trabalho de


educação patrimonial no intuito não apenas educacional, mas também preservacionista: Como Maria
Horta, Evelina Grunberg e Adriane Monteiro salientam: “o conhecimento crítico e a apropriação
consciente pelas comunidades do seu patrimônio são fatores indispensáveis no processo de preservação
sustentável desses bens”.19

Para atingir os objetivos propostos, o Museu do Sítio Arqueológico Sambaqui da Tarioba,


oferecem atividades, voltadas para escolas, turistas e a comunidade local. Todas elas dentro desta
perspectiva de olhar para o passado mas pensando no presente, como salienta Maria Horta, Evelina
Grunberg e Adriane Monteiro:

A Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita


ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do
universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Esse
processo leva ao reforço da auto-estima dos indivíduos e comunidades e à valorização
da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural. 20

O Patrimônio histórico e arqueológico tem um papel destacado no processo de formação da


cidadania. Afinal, do ponto de vista educacional, em uma abordagem sócio-cultural, se reconhece que o
conhecimento é fruto das interações do indivíduo com o meio na qual ele está inserido. Concedendo
assim, ao sujeito um papel central na produção do saber como um todo. Onde segundo Paulo Freire 21,
para que o homem se constitua como sujeito, é fundamental que ele, integrado num determinado

1658
ambiente histórico, reflita sobre ele e tome consciência de sua historicidade e da realidade social no
qual está inserido.
Pois desta forma,

Ao apropriar-se do sentido e da peculiaridade de suas manifestações em todos os


aspectos da vida diária, esses indivíduos tendem a modificar suas atitudes em relação
aos bens, tangíveis e intangíveis, a recuperar os sentimentos de autoestima e de
cidadania.22

O desenvolvimento e a elaboração de novos conhecimentos neste sentido estão diretamente


ligados à tomada de consciência dele com a cultura e a história da sociedade da qual faz parte. Dentro
desta ideia de educação, o Patrimônio Cultural de um povo, tem um papel muito importante como
construtora da cidadania, como atesta a autora Evelina Grunberg,

O contato com os bens patrimoniais possibilita uma experiência acessível a todos


deverá traduzir-se na compreensão do passado do qual o observador é herdeiro
permitindo uma consciência e conhecimento do presente para propiciar uma melhoria
na sua qualidade de vida. Reconhecer o passado cultural do qual o cidadão é herdeiro é
mais um passo na coquista da sua identidade cultural e na compreensão e consciência
do presente. 23

A criação do Museu do Sítio Arqueológico Sambaqui da Tarioba além de ser excelente exemplo
de preservação do patrimônio arqueológico brasileiro, também vai ao encontro de uma política
educacional preocupada em criar cidadãos críticos e capazes de mudar o destino da nação.

O Museu do Sítio Arqueológico Sambaqui da Tarioba está localizado na região central de Rio
das Ostras. Ao lado da Casa de Cultura Bento Costa Junior. Constitui um dos poucos museus de
arqueologia “in situ” do Brasil, ou seja, o material que está exposto permanece da forma como foi
encontrado pela equipe do Instituto de Arqueologia Brasileira. Em 2015, o mesmo sofreu uma grande
reforma com melhorias em suas instalações, com novas placas e a instalação de ar condicionado para a
melhor preservação do sambaqui.

CONCLUSÃO

O território brasileiro fora ocupado por diferentes grupos antes da chegada e conquista
portuguesa. Durante muito tempo, esse passado fora esquecido e ignorado por grande parte das
pessoas. Mas, no Sambaqui de Tarioba, o trabalho do arqueólogo não se encerrou na escavação, ele foi

1659
além desta etapa da arqueologia. O arqueólogo desempenhou um importante papel social não apenas
recuperando parte do passado, mas também levando a sociedade sua história e revelando o seu passado.
Os artefatos e vestígios materiais quando possível, devem ser expostos para a comunidade para que a
mesma possam se reconhecer e valorizar esse patrimônio, tornando-se protetores e guardiões do seu
próprio passado. A criação pioneira dos dois museus vai de encontro com essas propostas.

Ao mesmo tempo, o conhecimento deve anteceder a ideia de preservação. Pois, só se preserva o


que se tem sentido e valor para as pessoas e a comunidade. Desta forma, a educação patrimonial
desempenha um papel importante de conectar o cidadão enquanto indivíduo ao seu passado e ao
passado de sua cidade e região. Conhecendo o que é um sambaqui, a população de Rio das Ostras,
poderá reconhecer nos sambaquis parte de seu passado, fazendo do patrimônio arqueológico de sua
região parte de sua história também. Além de termos o resgate da memória local, percebemos que a
educação patrimonial se coloca como uma das mais importantes ferramentas de preservação do
patrimônio cultural brasileiro.

1
Mestrando em História Social do Território do PPGHS-UERJ
2
SOUZA, Alfredo Mendonça. Dicionário Arqueológico. Rio de Janeiro:ADESA, 1997, p.115
3
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasilia:UNB, 1992.
4
KNEIP, Lina Maria & PALLESTRINI, Luciana. Brasil Antes do Descobrimento. Curitiba: EDUCA, 1991.
5
GASPAR, Maria Dulce. Aspectos da Organização Social de Pescadores-Coletores: Região Compreendida entre Ilha
Grande e o Delta do Paraíba do Sul, Rio de Janeiro. Rio Grande do Sul: Pesquisas-UNISINOS, Número 59, 2003.
6
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: UNB, 1992, p.217
7
KNEIP, Lina Maria & PALLESTRINI, Luciana. Brasil Antes do Descobrimento. Curitiba: EDUCA, 1991.
8
LIMA, Tânia Andrade.”Sambaquis Monumentais”. Revista Nossa História. Rio de Janeiro: Vera Cruz, N.22, p 26-29,2005
9
GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: Arqueologia do litoral Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
10
OLIVEIRA, Renata de Almeida. Memórias da Ocupação Indígena no Estado do Rio de Janeiro:Um estudo de caso do
Museu de Tarioba. 2011, p 247 Tese de Mestrado da UNIRIO- Universidade do Rio de Janeiro, Rio de janeiro 2011, p.96
11
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MARQUES, A. N.; ALVES, Q. E.; OLIVEIRA, F. M.; CHANCA, I. S.; CARVALHO, C.; ANJOS, R. M., PAMPLONA,
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12
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Museu de Tarioba. 2011, p 247 Tese de Mestrado da UNIRIO- Universidade do Rio de Janeiro, Rio de janeiro 2011, p.98
13
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.
14
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Alves; BATISTA, José Élcio; PINHEIRO, Joceny. (Orgs.). Olhares contemporâneos: cenas do mundo em discussão na
universidade. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001, p. 135-142
15
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.3-15, 1989.
16
OLIVEIRA, Renata de Almeida. Memórias da Ocupação Indígena no Estado do Rio de Janeiro:Um estudo de caso do
Museu de Tarioba. 2011, p 247 Tese de Mestrado da UNIRIO- Universidade do Rio de Janeiro, Rio de janeiro 2011, p.33
17
OLIVEIRA, Renata de Almeida. Memórias da Ocupação Indígena no Estado do Rio de Janeiro:Um estudo de caso do
Museu de Tarioba. 2011, p 247 Tese de Mestrado da UNIRIO- Universidade do Rio de Janeiro, Rio de janeiro 2011, p.99
18
LEMOS, Carlos A .C. O Que é Patrimônio Histórico. São Paulo, 1987, p.29
19
HORTA, M. L., GRUNBERG, E. MONTEIRO, A. Guia Básica de Educação Patrimonial. Brasília, 1999, P5.

1660
20
HORTA, M. L., GRUNBERG, E. MONTEIRO, A. Guia Básica de Educação Patrimonial. Brasília, 1999, P6.
21
FREIRE, Paulo. Concestização São Paulo, 1979 p 151.
22
HORTA, M. L., GRUNBERG, E. MONTEIRO, A. Guia Básica de Educação Patrimonial. Brasília,1999, p 9.
23
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1662
ENTRE A TEMPESTADE E A BONANÇA: AS CONTROVERSAS POSIÇÕES DA
IGREJA NO BRASIL NOS ÁTRIOS DE UM BISPO

Marlon Rodrigues Marques1

Resumo: Durante o final da década de 1960, despontou no Brasil uma grave crise diplomática entre
militares e religiosos. A tensão entre as duas esferas teve como pilar as decisões sedimentadas no
Concilio Vaticano II, e posteriormente na Conferência Episcopal de Medellín. Na busca por
compreender as estratégias adotadas para que as ideias dos eventos se aplicassem, foi necessário
nessa pesquisa, eleger um estudo de caso capaz de investigar um dos agentes fundamentais na
organização, observação e execução dos projetos de ambos os eventos. Assim a trajetória de D.
Waldyr Calheiro Novais, membro da cúpula hierárquica da Igreja nacional, e um dos bispos mais
influentes e perseguidos pelo aparato repressivo, nos apareceu como personagem desse estudo.

Palavras-chave: Concilio Vaticano II; Conferência Episcopal de Medellín; D. Waldyr Calheiros.

Abstract: During the end of the decade of 1960, a serious diplomatic crisis emerged in Brazil
between military and religious. The tension between two spheres took as a pillar the decisions
consolidated in the Council Vatican II, and subsequently in the Episcopal Conference of Medellín.
In the search because of understanding the strategies adopted so that the ideas of the events were
applied, it was necessary in this inquiry, to elect a case study able to investigate one of the basic
agents in the organization, observation and execution of the projects of both events. So the
trajectory of D. Waldyr Calheiro Novais, member of the hierarchical dome of the national Church,
and one of the bishops most influential and pursued by the repressive pomp, us appeared like
character of this study.

Keywords: Council Vatican II; Episcopal Conference of Medellín; D. Waldyr Calheiros.

1- Ritos Inicias: uma formação nos átrios da neocristandade.

Quando Waldyr Calheiros entrou no seminário, em Julho de 19372, ainda predominava na


Igreja Católica o modelo de neocristandade ,cujo expoente principal era D. Sebastião Leme.
Conforme argumenta Della Cava, desde que Vargas havia ascendido ao poder e 15 anos depois com
sua deposição, a Igreja havia reconquistado seu espaço na ossatura do Estado.

O profundo vazio político que surgia depois da revolução de 1930, dava a Igreja Católica à
condição necessária para se tornar uma força social indispensável ao constructo político. E foi se
aproveitando deste contexto, que D. Sebastião Leme articulou intensa mobilização de fiéis na
capital da república com apenas um significado: demonstrar que a Igreja exerceria sua influencia
em nome da imensa maioria de Católicos.

1663
Todavia para atingir seu objetivo, mais significativo que os eventos de massa como a
inauguração do Cristo Redentor ou a festividade de Nossa Senhora Aparecida, a Igreja precisava
articular em escala nacional uma série de organizações católicas leigas, que foram gestadas por
Leme quando comandava a Arquidiocese do Rio de Janeiro. Duas dessas organizações seriam
medulares para a inserção da influencia católica na sociedade.

A Liga Eleitoral Católica fundada em 1932 tinha como propósito impelir o eleitorado
católico a votar nos candidatos fiéis à religião. O objetivo era eleger uma bancada de candidatos
para influenciar na Assembleia Constituinte de 1933, e que permanecesse em ação no Congresso
Nacional nos anos seguintes.3 Enquanto a LEC operava sua campanha para arregimentar fiéis, no
seminário Waldyr Calheiros dispunha de pouca, ou nenhuma educação e informação política. Mas a
convergência de Calheiros com a organização fica evidente quando o próprio declara que a
diferença entre os candidatos resumia-se “no fato de serem ou não católicos, ou de família católica-
se fosse congregado mariano, ainda melhor. Nunca um ateu ou maçom.4”

A emergência institucional do catolicismo, em participar assiduamente dos rumos políticos,


residia no fato de que naquele período a Igreja recebia verbas diretas do Estado, que estavam
destinadas a manter sua infraestrutura, e outras entidades de bem feitoria, por isso era praxe
condecorar ou difamar certos políticos. Já quando Getulio capengava no poder, por exemplo, o
Estado destinou verbas para D. Jaime Câmara, com objetivo de construir o Seminário São José.
Nesse episódio Waldyr relata que ficou extremamente feliz, pois sentiu que a Igreja havia sido
contemplada. Por outro lado, o então seminarista diz ter rezado o terço, com transmissão oficial da
Rádio Globo, para que Café Filho saísse do governo, uma vez que era acusado de “Comunista.” 5

Outro movimento leigo de primordial importância no período era a Ação Católica Brasileira
(ACB). Herdeira de várias outras tentativas de organização do laicato inclusive articuladas
internacionalmente. A ACB nasce em 1935, com a finalidade de incentivar a participação apostólica
dos leigos, e excluindo qualquer filiação política partidária. De acordo com Cava, a Ação Católica
deve ser compreendida como uma alternativa histórica de inserção do catolicismo, no momento em
que as sociedades modernas tinham como eixos centrais, não mais a religião, mas os preceitos da
democracia e do capitalismo, e o embate entre as classes médias, aristocracias e trabalhadores se
acentuava.6

Dentre muitos empreendimentos, a Ação Católica brasileira contava com centros culturais,
jornais e revistas. Reservava boa parte de seus esforços na criação de quadros intelectuais católicos,
com a finalidade de intervir e divulgar o conhecimento católico na sociedade brasileira, para isso

1664
desenvolveu escolas e universidades católicas, como a Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Estimulavam ainda o Centro D. Vital e a revista A Ordem. 7

A parca formação política do seminário de Waldyr Calheiros, só se supriu nas primeiras


visitas a Igreja de São Francisco Xavier. Durante os fins de semana os seminaristas deixavam o
seminário e se deslocavam para acompanhar os trabalhos pastorais nas paroquias. Nessa
oportunidade, Calheiros se viu defronte com a Ação Católica, e grupos como a JOC e a ACI,
formaram sua base social de modo que sua própria percepção de mundo fora alterada:
Ao tomar conhecimento da situação de injustiça em que se vivia, de como aquelas pessoas
se sentiam, iniciou-se em mim uma abertura para os mais fracos e oprimidos. Mas minha
conversão, mesmo, se deu com o Vaticano II. Foi uma reciclagem teológico-pastoral.8

O impulso leigo logo seria acompanhado por uma renovação eclesial, e adentraria os debates
teológicos brasileiros. Os intelectuais mais importantes que se desgradeavam era Gustavo Corção,
conservador e que atacava a renovação eclesial, e Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde),
partidário da mudança eclesial e da participação dos bispos ativamente na política. Naquele
momento, Calheiros estudava teologia no Rio de Janeiro no qual o reitor do seminário era Motta de
Albuquerque, efusivamente renovador. Nesse sentido, o então seminarista Calheiros teve amplo
contato com a literatura da renovação que partia principalmente do Mosteiro de São Bento.9

Foi nesse período entre 1940-1975 que a Igreja Nacional passaria por mais uma crise. Em
consonância com a esfera global, diversas alterações na sociedade brasileira são constatadas como:
“a emergência da estrutura de classes complexas, o surgimento do desafio dos trabalhadores e dos
estratos médios, às elites políticas tradicionais da nação e, por fim, a utilização de recursos
autoritários, militares e internacionais para manter o poder.”10

Derivando do desafio “sociopolítico” brasileiro, duas crises se expressam no ceio do


catolicismo brasileiro. A primeira em decorrência da erosão do monopólio religioso, a segunda em
virtude do sistema decadente de lideranças tanto nos termos de seus próprios quadros, quanto no
sentido de organizações. Em outras palavras, a proliferações de outras matrizes religiosas, a
histórica falta de investimentos na criação de um sacerdócio nacional, e a pouca atenção deferida ao
laicato explica a erosão do monopólio católico. Por sua vez, a deficiência de organizações
estruturadas, atravanca a manutenção do prestígio católico no Brasil.

O primeiro esforço da Igreja para recuperar sua pujança social, veio ainda em 1946 com a
atuação do Movimento Democrata Cristão para a América Latina. Dois anos depois, em 1948 era
criado o Partido Democrata Cristão- PDC, influenciado diretamente por Alceu Amoroso Lima e
Eduardo Frei. O partido solidificou uma forte base eleitoral principalmente no sudeste. Ainda assim,

1665
não foi capaz de cair nas graças da alta hierarquia clerical. A hesitação de contrariar D. Leme e criar
um partido, aliado com a necessidade de evitar confrontos ideológicos entre o clero justificam
parcialmente o fracasso da atitude do Movimento Democrata Cristão.

No entanto, o empreendimento de D. Helder Câmara teria resultado diferente. Em 1950 o


bispo propõe, para o Monsenhor Carlo Chiari, uma estrutura que fosse capaz de revitalizar as linhas
de comunicação entre os bispos brasileiros, superar as lacunas individuais dos membros do
episcopado nacional, e promover uma unidade mínima apta a dar conta da administração cotidiana e
outros esforços da Igreja. Dois anos depois, em 1952, após aprovação da Sé Romana, nascia a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A criação da Conferência representa, sobre
tudo, uma preocupação direta do Vaticano sobre os assuntos internos da Igreja Brasileira, em
nenhum outro país, exceto Cuba, uma estratégia como essa havia vigorado.

Logo após a fundação da CNBB, é enviado ao país o núncio D. Armando Lombaridini. O


diplomata tinha entre suas funções, a orientação e sustentação da unidade da Conferência.
Conforme inferiu, destaca-se que a partir da chegada de D. Armando ao Brasil, em 1954, a CNBB
ganhou notoriedade como instituição responsável por representar a Igreja Católica do Brasil. Em
contrapartida D. Hélder Câmara surge como líder sucessor de D. Leme.11 Naquele momento Waldyr
tinha clareza de que os bispos estavam se organizando, e viu na própria criação da CNBB uma
antecipação das decisões do Vaticano II de criar as conferências.

Segundo a releitura de Cava sobre Bruneau, o estabelecimento da CNBB serviu para mediar
à divisão clerical entre progressistas e conservadores no interior da Igreja Católica Brasileira. A
origem dessa cisão é um ponto recorrentemente discutido. Para Antoine a dicotomia se inicia entre
as organizações católicas de juventude e a posterior posição dos bispos nelas no período entre 1963-
1964.

Em detrimento disso Alves, Bruneau, De Kadt e Floridi, apontam que na década de 1960,
parte de bispos conservadores discordaram do apoio da CNBB ao programa governamental de
reformas de base, que incluía a reforma agrária. No mesmo período criou-se a Sociedade para a
Defesa da Tradição, Família e Propriedade. A Sociedade havia sido elaborada pelos dissidentes D.
Antônio de Castro Mayer, D. Geraldo Proença Sigaud, e o professor Plínio Correa de Olíveira.
Provém daí a divisão mais clara entre conservadores e progressistas.

Por sua vez a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil pendeu para a marginalização da
direta católica. Todavia, os conservadores responderam através da arregimentação de fiéis,
incentivados pela devoção pública ao nível paroquial e diocesano. Assim as associações de devotos,

1666
participavam amplamente dos Congressos Eucarísticos, além da organização de campanhas de
cunho nacional como a peregrinação anti-comunista de Nossa Senhora de Fátima, e a Cruzada do
Rosário em Família de Padre Peyton.12

Mas nas memórias de Waldyr Calheiros, a fratura entre o clero parece residir anteriormente
a existência da CNBB. Como nos conta, ainda no VI Congresso Eucarístico Nacional, em 1948, se
manifestava certa diferença entre os bispos renovadores e não renovadores. Isso se verificava
principalmente pelas propostas e posições defendidas por cada um deles.

Naquele momento surgiam duas posições bastante esclarecedoras. D. Alexandre Amaral, 94


anos, e arcebispo emérito de Uberaba, entusiasta da Ação Católica e seus movimentos, defendia
abertamente a participação da Ação Católica. De outro lado, representando os não renovadores,
estava D. José de Castro Mayer, e D. Sigaud que haviam sido decisivos na criação do grupo
Tradição, Família e Propriedade. Enquanto os defensores da Ação Católica defendiam a atuação do
laicato no mundo, os tradicionalistas pensavam em como restringi-los ao mundo clerical e a
hierarquia.13

A vida de seminarista de Waldyr Calheiros se encerrava em 1948, e como saldo o novo


padre além de ter estudado Filosofia e Teologia, também carregava na bagagem as discussões entre
renovados e tradicionalistas. Começou seu impulso social e político na Igreja de São Francisco
Xavier, acompanhando os movimentos pastorais da Ação Católica Brasileira. Já ordenado viu a
fundação e o crescimento da CNBB. Mas somente quando começou a atuar como padre, fora dos
cercos do seminário, Waldyr Calheiros começaria a definiria sua posição.

2- O canto de abertura: extrapolando as barreiras do seminário.

Logo que se ordenou, Waldyr Calheiros se dedicou quase exclusivamente a formação de


novos alunos no seminário do Rio Comprido. Neste período o padre esteve presente em quase todos
os níveis do seminário, desde as primeiras orientações, até a comunidade de filósofos e teólogos.
Por conta da sua atribuição na orientação espiritual, Calheiros também estudou psicologia e
psicoterapia. Seu posto mais auto no seminário foi o de Vice-Reitor, na época em que João Ávila
Moreira Lima era o dirigente principal.

Apesar do sucesso que havia atingido na hierarquia do seminário, parece que naquele
período o trabalho que mais marcou a trajetória de Waldyr Calheiros, foi sobre tudo, o auxilio que
prestava ao pároco da Igreja de São Francisco Xavier, o monsenhor McDowell. Foi durante a
assessoria ao pároco, que Calheiros teve seus primeiros convívios com grupos da Juventude
Operária Católica.14

1667
Em 1832 nascia na Bélgica, na cidade de Schaerbeeck, o Padre Leon Joseph Cardijn. No
final do século XIX, o país passava por uma forte industrialização e expansão econômica, ncomo
consequência, os trabalhadores tiveram suas condições de trabalho pioradas, com largas jornadas de
trabalho e baixos salários. Pertencente a uma família de operários, o padre ingressou no seminário
na cidade de Malinas e logo chamou sua atenção o fato de que muitos de seus amigos deixavam os
estudos para ingressar no mercado de trabalho, aliado a isso acabavam se afastando da Igreja e de
suas práticas religiosas. Aos quinze anos, Cardijn constatou que a Igreja não tinha nenhum projeto
que visava resgatar a juventude operária, em contrapartida, o marxismo começava a ter forte adesão
por parte dos jovens cristãos.

Ainda seminarista, Cardijn teve a ideia de organizar um movimento religioso que


reconquistasse os jovens trabalhadores para o ceio da Igreja Católica. Entretanto, o novo
movimento não foi bem visto pela hierarquia clerical, que logo contestou o agrupamento jocista
como sendo uma versão comunista da atividade cristã católica. Contudo, não se tratava realmente
de uma doutrina marxista, mas de um movimento que seguia a Doutrina Social da Igreja e buscava
sua aplicabilidade prática nas camadas mais baixas da sociedade. Alguns anos foram necessários
para que o movimento fosse reconhecido pela Igreja. Apenas em 1925 com o papa Pio XI o
Vaticano reconheceu a JOC como pastoral oficial.

Após esse reconhecimento, o jocismo se organizou na Bélgica e conseguiu grande adesão no


país. O movimento logo alargou suas fronteiras e condessou participantes por toda a Europa, o que
convenceu o Vaticano a propagar a ideia em novos continentes. No Brasil, os primeiros grupos
jocistas se formaram ainda na década de 1930, mas apenas na década de 40, com o inicio dos
trabalhos da Ação Católica, o movimento se expandiu com efetividade pelo país. A organização
jovem fez parte de uma estratégia clerical para reaproximar a classe trabalhadora do ceio religioso.

Em princípio, a JOC do Brasil se contentou com as atividades ligadas ao fortalecimento do


plano espiritual dos fiéis, deixando um pouco de lado a ideia de revolução social. Num segundo
momento, houve a predominância dos ideais liberais e humanitários, visando minimizar os
problemas materiais enfrentados pelos operários.15

Ao se aproximar das atividades paroquiais consecutivamente, Waldyr Calheiros se viu


interligado a JOC, em principio não assumiu nenhum posto ou função. Apesar disso fez presença
em vários momentos da organização como em congressos e nas reuniões de grupo, realizadas na
Igreja de São Francisco Xavier. Na concepção de Calheiros, nos anos de 1950, a presença da
Juventude Operária juntamente com a Ação Católica era “muito acanhada” justamente porque na
época ainda havia uma influência decisiva na concepção de Igreja interligada ao elemento religioso

1668
e sacramental. Enquanto isso, os jocistas estavam refletindo de que forma o elemento religioso e
sacramental, alimentam a Igreja que está no mundo. Posteriormente a morte de Cardijn, e a
separação da JOC fez com que o movimento perdesse sua impulsão no meio religioso.

Em 1957 Waldyr Calheiros sairia das paredes do seminário, deslocado enfim oficialmente
para Paróquia de São Francisco Xavier. Sua atribuição primeira era ajudar Mc Dowell, mas logo
com o falecimento do padre, Calheiros passou a função de pároco. Durante essa experiência, além
da já ligação com a JOC, o novo pároco desenvolveria estrita associação com duas organizações, a
Pastoral de Casais e o Movimento Familiar Cristão. Os dois agrupamentos se dedicavam
essencialmente a assuntos como o relacionamento cristão com a família, as reuniões eram
compostas por membros de Classe Média e se tornou o eixo central da administração de Waldyr
Calheiros na paróquia.

No entanto, o relacionamento com a questão dos pobres, aconteceu durante o contato do


novo pároco com o morro da Chacrinha. Lá desenvolveu o trabalho com o povo favelado se
fazendo presente nas reuniões de Associação de Moradores. Ainda assim, a atuação não rompeu a
barreira do assistencialismo e das melhorias das situações cotidianas de vida como reinvindicações
básicas: água, luz e saneamento. O maior feito na favela, da administração paroquial de Waldyr
Calheiros, foi à construção de uma pequena capela na comunidade, no qual pode mobilizar alguns
fiéis e facilitar o acesso dos moradores a catequese e celebrações litúrgicas.16

Os primeiros anos de Waldyr Calheiros como padre, e seus três anos iniciais como pároco
da Igreja de São Francisco Xavier, demonstram que nosso personagem não tem nada de singular em
relação ao contexto estabelecido no período. Sua atuação pastoral foi seguramente referenciada por
alguns movimentos populares da Igreja como a Juventude Operária Católica, e o Movimento
Familiar Cristão. Mas foi, sobretudo, os primeiros contatos com os empobrecidos no morro do
Chacrinha, que propiciaram a ele, compreender que as discussões entre conservadores e renovados,
transpassava o limite teológico-clerical, e condensava uma maneira de agir, uma atitude, que seria
referendada durante os anos de 1960, principalmente com o início do Concílio Vaticano II.

3- Reflexos de uma mudança: o depoimento de D. Waldyr sobre Vaticano II

Eu vivi todo esse momento que estava apontando para renovação. Como se diz
popularmente, peguei uma grande onda, mergulhei e, ao emergir procurei navegar nas
águas do Concílio Vaticano II17

Somente a declaração de Waldyr Calheiros exposta acima, denota o grande envolvimento


que as decisões conciliares representaram na sua trajetória pastoral. Os documentos conciliares são,

1669
como todo texto, escritos interpretativos. Tanto no que compete a Igreja interpretando o mundo,
quanto se tornou para quem o refletiu posteriormente. Por exemplo, no que compete a Calheiros,
dentre as mudança mais significativas emanadas do Vaticano II, duas merecem destaque e estão
sedimentadas nas primeiras constituições dogmáticas, Lumen Gentium e Dei Verbum.

Para ele a noção de povo de Deus, justamente assentada no segundo capítulo de Lumen
Gentium, representou a quebra da hierarquia tradicional da Igreja. No lugar de uma Igreja
monárquica, onde “bispo mandava no padre, padre no leigo e leigo em ninguém”, começava a
despontar a percepção de Igreja como comunidades, onde todo batizado era dotado de dons e
carismas que deveriam estar a serviço da salvação. Por sua vez, a colegialidade dividiu as
responsabilidades de manutenção da Igreja. Assim se destacou a ideia de uma Igreja servidora. 18

Certamente Calheiros não compartilhava dessa percepção solitariamente. Dispendioso seria


elencarmos todos, ou pelo menos parte significativa dos defensores do conceito, como não estamos
objetivamente tratando dessa ideia, mas a título de exemplo José Comblin faz uma inegável defesa
de povo de Deus, frente à reversão do pontificado de João Paulo II e a tentativa do Sínodo de 1985
de expelir o conceito. Na argumentação menciona ainda, Carlos Gali cuja interpretação sustenta que
o conceito de povo de Deus é o que mais expressa às orientações do Vaticano II. Na mesma linha
Ricardo Blasquez pondera que, se quisermos compreender as contribuições do Vaticano II para
Igreja, precisamos dizer: “lembrou à Igreja que ela é o povo de Deus.”19

Na mesma ordem de importância para Calheiros, está à valorização da palavra de Deus


expressa no documento Dei Verbum. Enquanto antes havia um destaque acentuado dos
sacramentos, agora as escrituras novamente entraram no centro da vida religiosa tanto que, na
ausência de padres, a constituição permitiu que os leigos celebrassem a palavra de Deus. Desse
impulso derivaram muitos movimentos bíblicos e litúrgicos. 20 Da mesma opinião está o argumento
de Seeanner, segundo qual salientou que a constituição Dei Verbum fez questão de explicar que a
Sagrada Escritura é a palavra de Deus expressa em palavras humanas.21

Com as novidades provenientes do Concílio Vaticano II era claro uma renovação das
estruturas e do modus operante da Igreja. No balanço de Waldyr Calheiros a renovação da
instituição foi clara no sentido de se comprometer com os pobres e intervir nos problemas sociais
como a fome, a seca e a saúde. Derivam daí as ações brasileiras como o Movimento de educação de
Base encabeçado por D. José Távora, no domínio do continente Latino Americano. A atitude de
assumir a opção preferencial pelos pobres adveio da II Assembleia do CELAM em Medellín que
surgiu para pensar o Vaticano II nos domínios americanos. A própria convivência entre os bispo
brasileiros nos anos em que trabalharam no concílio propiciou uma maior confiança e fraternidade

1670
entre eles, desde lá saíram documentos e ações importantes como o Plano de Pastoral de
Conjunto.22

No entanto as renovações e pujança de uma Igreja mais social não agradaram a todos. No
Brasil, conforme o aponta o relatório da Comissão da Verdade, foi justamente o contexto teológico
e pastoral da Igreja Católica que impeliu a instituição na promoção de direitos humanos e na
expansão de projetos sociais e educacionais. Nesse sentido o Concílio Vaticano II foi uma das bases
para o protagonismo de indivíduos, grupos e lideranças clérigas e leigas em áreas rurais e urbanas
que se contraporiam ao projeto conservador assumido pelo estado.23

No mesmo sentido está a colocação de Moreira Alves em que o diagnóstico aponta para uma
intensificação dos conflitos entre Igreja e Militares, justamente quando o pensamento social dos
católicos e as formas e estratégias para que se aplicassem formaram novas organizações e
embalaram padres, bispos e leigos na luta contra o Governo, combate esse intrinsicamente ligado a
sua concepção de fé.24

Ainda em conformidade com os autores mencionados, Kennedy Serbin arguiu que a ênfase
na justiça social e nos direitos humanos, tem intrínseca relação com a teologia provinda do Vaticano
II, o resultado foi o movimento de teólogos, clérigos e leigos que se aprofundaram nos trabalhos
sociais. As relações entre militares e a Igreja seriam afetadas pela modernização da instituição.

É no bojo dessas considerações que salta a concepção de Waldyr Calheiros representando


mais especificamente os motivos para a tempestade que se seguiu entre militares e a Igreja:

O espírito de renovação marcou os bispos conciliares. A ditadura era a estupidez do


obscurantismo. A Igreja abria-se para a participação enquanto o cidadão era silenciado,
perseguido, torturado e assassinado, por pensar diferente. A dignidade da pessoa humana,
sua presença e atuação na construção da sociedade são capítulos da constituição pastoral
Alegria e esperança. A Igreja não podia aceitar ser conivente com um regime que sufoca a
inteligência, tira a liberdade, encobre a verdade e mata. Sentia-me cercado desta
realidade.25

Manifestadamente as posições sociais e pastorais de Waldyr Calheiros não derivaram apenas


das contribuições do Vaticano II, sua trajetória formativa e também sua atuação posterior como
padre, já aludiam para sua inserção na ala progressista no âmbito da CNBB e da Igreja em geral.
Mas certamente o evento teve um papel central em sua interação com o mundo e seu despertar para
as questões sociais como externado por ele próprio:

Acompanhei a JOC, a ACI... Foi assim que comecei. E a participação nesse movimento me
ajudou a andar no mundo consciente da realidade que nos cercava. Foi aí que despertei. Ao
tomar conhecimento da situação de injustiça em que se vivia, de como aquelas pessoas se
sentiam, iniciou-se em mim uma abertura para os mais fracos e oprimidos. Mas minha
conversão, mesmo, se deu com o Vaticano II. Foi uma reciclagem teológico- pastoral.26

1671
Marcado por uma nova visão Waldyr Calheiros acompanharia já na condição de bispo a
Conferência Episcopal de Medellín em 1968 que também deixou significativas marcas, e talvez
tenha representado uma guinada mais radical nas questões que envolviam sua oposição política ao
regime militar. Por isso os próximos passos se dedicam justamente a compreender primeiramente o
que foi a Conferência, e em seguida sua significação prática na vida de Waldyr Calheiros.

4- Um bispo pós Medellín: novas abordagens pastorais

Em 1964 Waldyr Calheiros já havia sido empossado como bispo auxiliar do Riode Janeiro.
Na ocasião do golpe militar se viu no centro de conflito que se estabeleceu na CNBB quanto ao
apoio da instituição ao novo governo. Durante sua atuação como auxiliar, não desenvolveu nenhum
trabalho de amparo social e se limitou a prestar serviços a Igreja de Nossa Senhora de
Copacabana.27

No dia 8 de dezembro de 1966 tomou posse como bispo da diocese de Barra do Piraí- Volta
Redonda onde estendeu seu trabalho até o fim da vida. Já no ano seguinte teve seus primeiros
embates mais sérios com a ditadura militar por ocasião da prisão de membros da judica. Por hora
centramos nossa analise na percepção de Waldyr Calheiros sobre Conferência Episcopal de
Medellín, mais um evento que embasou a formação e atuação do bispo em sua trajetória. As
contribuições da Conferência na atuação do bispo se refletiu mais propriamente no modelo de
administração episcopal aplicada por ele.

Em 1968 Waldyr Calheiros tinha apenas dois anos como bispo titular da diocese de Barra do
Piraí- Volta Redonda, por isso não participou efetivamente da reunião dos bispos de Medellín que
congregou cerca de 146 cardeais, arcebispo e bispos, além de 6 religiosas e 15 leigos. Todavia para
o bispo o encontro foi muito importante no sentido de que elaborou um diagnóstico da Igreja Latino
Americana e suas atribuições. Nesse sentido foi elementar o fato de que a Conferência extrapolaria,
em partes, os limites do Vaticano II, justamente porque estendeu a Igreja em direção à opção
preferencial para os pobres. O diagnóstico dos bispos da conferência, que havia sido encampada
principalmente por D. Manuel Larraín e D. Hélder Câmara, constatou que a Igreja latina americana
estava situada em um ambiente espoliado pelo capital que gerava miséria e pobreza.

O tema da opção preferencial pelos pobres já havia entrado em pauta durante o debate do
Concilio Vaticano II, mas não se traduziu efetivamente nos documentos oficiais. Dessa forma
Medellín, produziu uma nova concepção de Igreja que exigia o abandono dos palácios, roupas
vistosas e tronos, em prol de uma instituição que se tornasse pobre e que pautasse a libertação dos

1672
sujeitos. Para Waldyr, a Conferência foi uma espécie de resposta a situação de miséria da América
Latina, embasada pela concepção de que o pecado “não era só das pessoas e sim da estrutura
opressora geradora de pobres.” 28

De Medellín emanou também uma reflexão mais aprofundada sobre o papel das
comunidades eclesiais de base, foi a partir da conferência que elas se alastraram pelo continente, a
proposta era justamente utilizar esse modelo para que a Igreja se aproximasse dos pobres, “na base
junto ao povo”. Conforme observa o bispo, tanto a Ação Católica como as CEBs enfrentaram
abertas restrições por parte do regime militar, do lado da Igreja a Teologia da Libertação passou a
ser suspeita de práticas comunistas. Somente depois da queda do muro de Berlim as comunidades
eclesiais de base começaram a desfrutar de alguma tranquilidade.

No âmbito da diocese de Volta Redonda, durante o período em que transcorreu a


Conferência de Medellín, a Igreja local realizou diversos debates que tinham como eixo central
discutir as experiências e propostas de ação que surgiam de suas decisões.29 Derivou dai os
primeiros impulsos da diocese na organização de comunidades eclesiais de base, bem como a opção
preferencial pelos pobres adotada no âmbito da Igreja local, e ainda o método de análise Ver- Julgar
e Agir, estreitamente interligado com o que se havia formulado em Medellín. 30

Decerto as CEBs representavam mesmo algum projeto contra- hegemônico, justamente


porque, preenchiam as lacunas das ditaduras, foi dentro das comunidades que o povo passou a se
reunir e falar sobre questões políticas e sociais principalmente aludindo para os direitos
fundamentais.31 No âmbito de Volta Redonda, D. Waldyr Calheiros foi responsável por adotar uma
linha pastoral que incentivava os movimentos católicos, mas não somente sua administração
episcopal foi responsável pela ampliação dos movimentos e das comunidades eclesiais de base, a
própria conjuntura de mobilizações nacionais implicavam nesse tipo de ação. A perseguição dos
lideres sindicais da cidade, possibilitou a Waldyr e sua Igreja a assumir um protagonismo no meio
político circundado pela diocese.32

Dessa forma o que podemos inferir é que se no campo político- ideológico e teológico o
Concílio Vaticano II significou a transformação das concepções do bispo, na esfera prática as ideias
de Medellín permearam sua administração frente à diocese de Barra do Piraí- Volta Redonda, a
mudança pode ser significativamente comprovada quando observamos primeiramente que Waldyr
Calheiros no tempo em que foi pároco não realizou nenhuma atividade que visasse certa
transformação social, ressalvo as atuações assistencialistas no morro do Chacrinha. Quanto em sua
administração como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, também centrou suas tarefas no ordenamento
eclesial e nas questões internas da Igreja de Nossa Senhora de Copacabana. Somente após Medellín,

1673
e de ter assumido a diocese de Barra do Piraí- Volta Redonda, o bispo inicia as atividades que
evidenciaram sua trajetória episcopal.

5- Considerações Finais

Decerto podemos considerar que a atuação de D. Waldyr Calheiros está estritamente


articulada com os dois eventos o Vaticano II e a Conferência Episcopal de Medellín, por isso não se
deve considerar que o bispo entrou em rota de coalizão com a ditadura militar, unicamente por suas
convicções próprias, mas articulado com o contexto que se desenrolou no âmbito político brasileiro
e na esfera institucional da Igreja Católica. Por outro lado, também não se pode negar o
protagonismo de Calheiros na aplicação e desenvolvimento dos preceitos que envolviam as decisões
conciliares e da conferência.

Todavia o plano eclesial elaborado pelos eventos, nada mais reflete do que uma ampla
preocupação da Igreja em desenvolver sua influencia. Assim fica evidente que por mais que o
laicato tenha concepções que transitavam entre a revolução social e o elemento religioso, na cúpula
católica, e aqui incluo também os progressistas como Waldyr Calheiros, não fizeram nada mais do
que elaborar estratégias para que a religião continuasse sendo protagonista no meio social
contemporâneo.

Por isso no contexto latino americano em que a Revolução Cubana se tornava um horizonte
próximo, e as tentativas reformistas do capitalismo, traduzidas principalmente pelas ações da
Aliança pelo Progresso, havia fracassado culminando com a instalação das ditaduras, nada mais
apropriado do que apresentar a Igreja como instituição que defendia os interesses populares, mesmo
que isso significasse um embate frontal com as concepções do governo militar.

Enquanto o Vaticano II se esmerou para responder a secularização europeia provinda do


humanismo e do antropocentrismo que havia se tornado hegemônico, a releitura de Medellín se
preocupou em resignificar o papel da Igreja. Para preservar o poder não bastava mais estar ao lado
das elites dominantes, era preciso convencer as classes subalternas de que instituição cumpriria um
papel ao lado dos desfavorecidos. Por isso a CNBB não poderia ser de outra maneira. O conflito
entre progressistas e conservadores representava, sobretudo, o embate no entorno do
reposicionamento institucional da Igreja brasileira. O mastro da opinião pública dirigiu a Igreja
brasileira do período, isso não quer dizer que trajetórias como a de Waldyr Calheiros não
signifiquem uma renovação, uma limpeza no mofo eclesial.

1
Bolsista do grupo BIPID História da UFRRJ. Graduando do DHRI-UFRRJ. E-mail: marlonrmarques@hotmail.com

1674
2
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
3
DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro - 1919-
64. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, 1975.
4
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 37
5
Ibidem, p. 29.
6
DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro - 1919-
64. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, 1975.
7
SANTOS, Carla Xavier dos. “Nossa Senhora de Medianeira Rogai Por Nós”. A Relação do estado novo com a igreja católica através dos
círculos operários no Rio Grande do Sul (1937-1945).– Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
PUCRS. Porto Alegre, 2008.
8
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 35.
9
Ibidem.
10
IANNI, Octavio. (1970) apud in: DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o
catolicismo brasileiro - 1919-64. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, 1975. p. 20
11
DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro - 1919-
64. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, 1975.
12
Ibidem
13
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
14
Ibidem.
15MATTOS, Raimundo César de Olíveira. A Juventude Operária Católica. Fênix: Revista de história e estudos culturais, Rio de Janeiro,
v. 6, n. 2, p.1-15, jun. 2009. Trimestral. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br/PDF19/Artigo_06_Raimundo_Cesar_de_Oliveira_Mattos.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2017.
16
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
17
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 54.
18
Ibidem, p. 55.
19
COMBLIN, José. O povo de Deus. São Paulo: Paulos, 2002. p. 9.
20
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 55-56.
21
SEEANNER, Paulus. A Dei Verbum, sua preparação e repercussão. Ano V Nº.10 – Anápolis, 2012
22
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 57.
23
Comissão nacional da verdade. Relatório. Volume II. Textos temáticos. Texto 4 violação dos direitos humanos nas Igrejas cristãs, 2014. p.
151.
24
ALVES, Marcio Moreira. A Igreja e a politica no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979. p. 202.
25
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 56.
26
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 35.
27
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 79-80.
28
Ibidem, p. 117- 118.
29
SOARES, Paulo Célio. A atuação das Cebs em Volta Redonda (1974-1979). Revista Nures, n. 13. Núcleo de Estudos Religião e Sociedade
– Pontifícia Universidade Católica, 2009. Disponível em: <http://www.pucsp.br/revistanures> Acesso em: 15 de jun de 2017.
30
ESTEVEZ, Alejandra Luisa Magalhães. Projetos católicos e movimentos sociais: A Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda (1966-
2010). Tese: Doutora em Ciências Sociais (Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, 2013.
31
COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta redonda: memórias de Dom Waldyr
Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
32
ESTEVEZ, Alejandra Luisa Magalhães. Projetos católicos e movimentos sociais: A Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda (1966-
2010). Tese: Doutora em Ciências Sociais (Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, 2013.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALVES, Marcio Moreira. A Igreja e a politica no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.

COMBLIN, José. O povo de Deus. São Paulo: Paulos, 2002.

1675
DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o
catolicismo brasileiro - 1919-64. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, 1975.

ESTEVEZ, Alejandra Luisa Magalhães. Projetos católicos e movimentos sociais: A Diocese de


Barra do Piraí/Volta Redonda (1966-2010). Tese: Doutora em Ciências Sociais (Sociologia) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, 2013.

IANNI, Octavio. (1970) apud in: DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX:
sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro - 1919-64. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-
52, 1975.

MATTOS, Raimundo César de Olíveira. A Juventude Operária Católica. Fênix: Revista de história
e estudos culturais, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p.1-15, jun. 2009. Trimestral. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br/PDF19/Artigo_06_Raimundo_Cesar_de_Oliveira_Mattos.pdf>.
Acesso em: 10 ago. 2017.

SANTOS, Carla Xavier dos. “Nossa Senhora de Medianeira Rogai Por Nós”. A Relação do estado
novo com a igreja católica através dos círculos operários no Rio Grande do Sul (1937-1945).–
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS.
Porto Alegre, 2008.

SEEANNER, Paulus. A Dei Verbum, sua preparação e repercussão. Ano V Nº.10 – Anápolis, 2012

SOARES, Paulo Célio. A atuação das Cebs em Volta Redonda (1974-1979). Revista Nures, n. 13.
Núcleo de Estudos Religião e Sociedade – Pontifícia Universidade Católica, 2009. Disponível
em: <http://www.pucsp.br/revistanures> Acesso em: 15 de jun de 2017.

FONTES:

CELAM. Conclusões de Medellín, 4° edição, São Paulo, 1979.

Comissão nacional da verdade. Relatório. Volume II. Textos temáticos. Texto 4 violação dos
direitos humanos nas Igrejas cristãs, 2014.

COSTA, Celia Maria Leite; PANDOLFI, Dulce Chaves; SERBIN, Kenneth. (orgs) O bispo de volta
redonda: memórias de Dom Waldyr Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
SACROSSANTUM CONCILIUM. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São
Paulo, 1997.

1676
Ditadura Civil - Militar no Rio de Janeiro: reflexões e propostas para o Ensino
de História

Marta Cristina Soares Dile Robalinho*

Resumo: O artigo propõe uma leitura das memórias da ditadura civil militar brasileira no Ensino da
disciplina História procurando estabelecer, em alguns momentos, um paralelo com o ensino dessa
disciplina na Argentina. A reflexão perpassa pelo currículo oficial da Secretaria de Educação do
Município do Rio de Janeiro e pelo currículo mínimo do Estado do Rio de Janeiro. Procuramos
ainda refletir sobre como a memória desse período é tratada nos dois países vizinhos, analisando
suas semelhanças e diferenças e de que maneira isso pode interferir no ensino desse conteúdo.
Mobilizamos autores que analisaram e propuseram trabalhos onde a memória é vista como algo
inseparável do período a ser tratado e como ela pode nos ajudar a construir com nossos alunos algo
mais concreto e de fácil percepção já que muitos não viveram o período ou nem mesmo tem ideia
do que estamos falando.

Palavras- chave: Ensino de História, Memória, Ditadura Civil-Militar, Rio de Janeiro

Abstract: The article proposes a reading of the memories of the Brazilian military civil dictatorship
in the Teaching of the History discipline trying to establish, in some moments, a parallel with the
teaching of this discipline in Argentina. The reflection is based on the official curriculum of the
Department of Education of the Municipality of Rio de Janeiro and the minimum curriculum of the
State of Rio de Janeiro. We also try to reflect on how the memory of this period is treated in the two
neighboring countries, analyzing their similarities and differences and how this can interfere in the
teaching of this content. We mobilized authors who analyzed and proposed works where memory is
seen as something inseparable from the period to be treated and how it can help us build with our
students something more concrete and easy to perceive since many did not live the period or have
no idea of what we're talking about.

Key words: Teaching History, Memory, Civil-Military Dictatorship, Rio de Janeiro

Introdução
O artigo se propõe a refletir sobre o ensino da história da ditadura civil-militar no Rio de Janeiro,
analisando as propostas curriculares da Secretaria Municipal de Educação e da SEEDUC e a

*
Mestre em Ensino de História(UERJ); Professora da SME-RJ, SEEDUC-RJ, supervisora PIBID –Sub- Projeto
Maracan. E-mail: martadile@hotmail.com

1677
utilização dos “lugares de memória” que estão presentes nesse território nas abordagens sobre esse
tema em sala de aula e fora dela. Os autores aqui tratados pensaram sobre as memórias sensíveis, o
dever de memória e o trabalho de memória. São eles, Michael Pollack, Tzvetan Todorov, Maurice
Hawlbacks, entre outros. Entendemos que a História é uma disciplina importante para a formação
de alunos e alunas que estão no mundo e atuam sobre ele. Faz-se necessário abordar esse tema para
que conheçam bem o que aconteceu no passado próximo e para que não aceitem o retorno desse
tipo de situação. Para além dessas análises nos propusemos a pensar os lugares de memória como
importantes e significativos para a compreensão do tema e para o processo pedagógico. A
patrimonialização de lugares onde ocorreram torturas, prisões e resistências pode proporcionar uma
aproximação do jovem àquela história ou fato ocorrido. Entendemos que adensar o saber de sala de
aula com a visita a um lugar de memória nos possibilita construir outros saberes escolares. Nesse
sentido, podemos propor muitas ideias aos nossos alunos para essa construção de saberes que
podem estar numa visita in loco a um destes patrimônios ou mesmo através do digital buscando
alguns aplicativos já conhecidos ou criando formas para apontar e registrar essas histórias. Esquecer
e lembrar têm sido verbos constantes na história e na memória da ditadura brasileira e do Cone Sul.
Cabe a nós, professores/ pesquisadores estarmos atentos ao que objetivamos fazer com isso.

Como professora de História me pergunto como fazer, ensinar, apresentar essa história para meus
alunos se muitas vezes seus pais, bem mais novos que os meus, não viveram o período, e sabendo
que suas memórias são as do seu tempo e as das suas famílias. Mesmo sabendo que temos “lugares
de memória” tão próximos das escolas e das nossas casas e não explorarmos isso pedagogicamente
e o porquê disso ocorre. Se o trabalho com essas memórias sensíveis poderia contribuir para a
formação de gerações futuras. E de que forma esses patrimônios podem colaborar pedagogicamente
para ajudar a fomentar uma identidade sobre nosso passado recente de um país que viveu muitos
anos sem a democracia. Podemos almejar, através desse processo de mergulho nos lugares de
memória e memórias da ditadura uma reflexão sobre outras formas de tortura e não democráticas
que vivemos na atualidade. Por essas e outras questões é que procuramos pensar nesse artigo
maneiras de se aprender sobre esse passado através do patrimônio e memória e tentar de alguma
forma colaborar para as reflexões do presente.

1.0- Breve análise sobre o Ensino de História da Ditadura Civil Militar nos currículos cariocas e
no Brasil

1678
As Orientações Curriculares de História 1 para o Ensino Fundamental da cidade do Rio de
Janeiro são um documento, como já enfatiza o seu título, que orienta o docente a eleger o conteúdo
a ser trabalhado, as habilidades propostas e até mesmo sugestões de atividades para sala de aula.
Encontramos também na plataforma da Educopédia 2 aulas prontas que podem ser baixadas ou
usadas on line nas aulas. Infelizmente quando os links aparecem na plataforma nem sempre
podemos acessá-los, principalmente se for no youtube, pois este é vetado nas escolas. Algo, no
mínimo, paradoxal, já que se não podemos acessar não deveria estar ali. Alguns informes ao
professor quanto ao uso da plataforma já foram dados e nos indicam que devemos baixar as aulas e
vídeos em casa para que não fiquemos presos e atados às intercorrências de sala de aula quanto ao
uso das tecnologias. Mas o que nos leva a pensar esses dois materiais de apoio ao professor? Em
ambos os materiais não observamos menção ao tema da memória da ditadura civil militar no país.

As orientações curriculares se preocuparam em listar os conteúdos importantes do tema da


ditadura. Nos objetivos do 4º bimestre esclarece que o aluno deverá compreender os motivos que
levaram a uma ditadura no Brasil, a importância da cultura no contexto de defesa da democracia e
na luta contra o autoritarismo e compreender o contexto dos vários golpes de estado na América do
Sul e a ligação entre eles. No que se refere às habilidades enfatizam que os alunos devem operar
conceitos como ditadura, estado de sítio e segurança nacional.

Ainda no plano de curso das orientações é possível ver uma preocupação com a utilização de
charges, textos, músicas, imagens e outras abordagens para falar do tema. São sugestões
interessantes e que podem levar à aprendizagem sobre o período. Mas o que nos chamou a atenção
foi uma ausência da ideia de se pensar na memória dessa ditadura numa prefeitura que tem inúmeras
escolas de uma grande rede na cidade do Rio de Janeiro. 3 E que, essa mesma cidade, foi
protagonista de inúmeros atos antidemocráticos durante o período da ditadura civil militar. Por que
o currículo de História da maior rede municipal da América Latina não atende a essas memórias?
Algumas hipóteses podem ser apresentadas, mas a que mais nos intriga é a questão de como a
memória sobre a ditadura é construída no Brasil e consequentemente no Ensino de História. É óbvio
que se temos um impasse sobre essa memória nas políticas públicas, na Justiça e na sociedade,
temos também um grande impasse na educação.

1
Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/825382/DLFE-196615.pdf/1.0 Acesso em 18-08-2017.
2
Disponível em: http://www.educopedia.com.br/Cadastros/Aula/Visualizar.aspx?pgn_id=192 Acesso em 18-08-2017.
3
O total de unidades dentro da rede de escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro é de 1537, sendo que desse
número 398 são de segundo segmento ou segmentos mistos. O total de matrículas na rede é de 654.949 sendo que desse
número, 509.923 são alunos do Ensino Fundamental. São 149.556 estudantes do segundo segmento no total. Essa é a
última atualização no site da prefeitura feita em março de 2017. Disponível em: http://prefeitura.rio/web/sme/educacao-
em-numeros. Acesso: 2-10-2017.

1679
Existe uma lei sancionada pelo ex-prefeito Eduardo Paes, de autoria da vereadora Teresa
Bergher que tornou o ensino sobre o “holocausto nazista” obrigatório na cidade. Essa lei tem
número 5.267 e é de 9 de maio de 2011. A ideia básica é que se tenha uma “abordagem especial de
noções sobre o holocausto nazista como forma de educação, prevenção e combate a todas as formas
de discriminação e intolerância”4.

Segundo a historiadora Samantha Quadrat, em 2012, Gerson Bergher já havia aprovado um


projeto de lei na Alerj sobre a questão do holocausto nazista, como matéria extracurricular no
Ensino Médio, com programações de atividades escolares em lembrança ao Dia do Holocausto,
estipulado pela ONU como 27 de Janeiro. Uma data bem distante das escolas brasileiras, importante
frisar, já que é um período de férias escolares. E ainda mais pensar em apenas um dia para falar
desse tema tão relevante. Em Porto Alegre também surgiu uma lei sobre essa questão do holocausto
judeu, mas Quadrat5 chama a atenção para a ausência de leis sobre o ensino da ditadura brasileira e
até cita que as próprias leis que tratam do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena
não enfatizam o caráter da escravidão e da conquista. Se pensarmos em propiciar reflexões aos
nossos alunos e alunas esses temas sensíveis precisam ser trabalhados e encarados de frente.

Em seu artigo, a autora analisa documentos oficiais ligados à educação brasileira desde o
retorno à democracia nos anos 80. Aponta que mesmo com as mudanças ocorridas em 1996, quando
foi alterada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e em 1997, quando foram criados os
Parâmetros Nacionais Curriculares (PCNs) não foram encontradas uma preocupação específica com
o ensino da ditadura dentro da ideia da pedagogia da memória. Segundo a autora, os debates
ocorriam em torno das questões relacionadas à cidadania e democracia e que esses documentos
foram pensados a partir disso, mas mesmo assim, sem a preocupação com a ditadura civil militar.
Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff o que
existiu foi uma ausência de um movimento político de memória na secretaria Nacional de Direitos
Humanos, mesmo que ainda assim, a referida secretaria produza cartilhas, cursos e debates sobre o
tema. O que surgiu foram ações isoladas como o Memorial da Resistência em São Paulo, as
Caravanas da Anistia e as cerimônias simbólicas de reparação. E que apesar de estarmos
acompanhando, desde 2012, o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, a educação não tem sido

4
Disponível em:
http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/5c6436ad7c61fa468325
788c00611c8c?OpenDocument Acesso em: 18-08-2017.
5
QUADRAT, Viz Samantha. Páginas da História: o ensino das ditaduras do Cone Sul. In: Ditaduras Militares: Brasil,
Argentina, Chile e Uruguai. Org. Rodrigo Patto Sá Mota. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.p.279.

1680
incluída e pensada como elemento importante. 6 Esse ponto é algo tangencial para pensarmos o
porquê da educação continuar fora desse debate e dessa memória. Segundo Mário Chagas,

“Onde há poder, há resistência, há memória e há esquecimento. O caráter seletivo


da memória implica o reconhecimento da sua vulnerabilidade à ação política de
eleger, reeleger, subtrair, adicionar, excluir e incluir fragmentos no campo do
memorável”7.

Já no currículo do Estado do Rio de Janeiro nos deparamos com a ideia de currículo mínimo que
é definida pelo governo como

“uma ação norteadora que não soluciona todas as dificuldades da Educação Básica
hoje, mas que cria um solo firme para o desenvolvimento de um conjunto de boas
práticas educacionais, tais quais: o ensino interdisciplinar e contextualizado; oferta
de recursos didáticos adequados; a inclusão de alunos com necessidades especiais;
o respeito à diversidade em suas manifestações; a utilização das novas mídias no
ensino; a incorporação de projetos e temáticas transversais nos projetos
pedagógicos das escolas; a oferta de formação continuada aos professores e demais
profissionais da educação nas escolas; entre outras — formando um conjunto de
ações importantes para a construção de uma escola e de um ensino de qualidade”8.

Com essa visão, o currículo básico que está disponível no site da Secretaria de Estado e
Educação do Rio de Janeiro sugere para o nono ano do Ensino Fundamental que se trabalhe no
quarto bimestre com o Brasil Contemporâneo através de habilidades e competências e lista aquilo
que considera relevante sobre o tema da ditadura civil militar no Brasil como é possível observar:

“Comparar as diversas relações de poder democráticas e ditatoriais no período; -


Compreender os movimentos de dominação e resistência na ditadura militar e no
processo de redemocratização; - Contextualizar os diferentes agentes que
contribuíram para as sucessivas crises político-econômicas no Brasil; - Analisar a
situação socioeconômica brasileira após a estabilização financeira”9

Percebemos que os verbos que aparecem na lista de habilidades e competências são os


objetivos que foram colocados para o professor orientar seus alunos a conquistarem, mas não há
uma sugestão de caminhos ou um debate para saber como se chegaria a isso. Tudo fica muito vago
e pode dar a ideia de que o professor tem liberdade para dar suas aulas. Mas sabemos que isso não
corresponde à realidade já que durante muitos anos estivemos pautados por avaliações externas que
vinham para as escolas e abordavam esses conteúdos da maneira que lhes convinha. Além disso,
estávamos condicionados à meritocracia à partir do resultado dessas avaliações. Mais uma vez não

6
QUADRAT, p. 285-286.
7
CHAGAS, Mário. Memória Política e Política da Memória. ABREU, Regina; CHAGAS,
Mário. (orgs.) Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
p.141-171.
8
Disponível em: file:///C:/Users/marta/Documents/Soares%20Pereira%202013/HISTORIA_livro.pdf Acesso em : 18-
08-2017.
9
Disponível em: http://www.conexaoescola.rj.gov.br/site/arq/historia-regular-curriculo-basico-9a-0b.pdf. Acesso em:
2-10-2017.

1681
encontramos dentro da política educacional dos governos cariocas um indício que tivesse tratado do
tema da ditadura militar de forma substancial e digna para os que sofreram com ela e para os que
não a viveram mas deveriam aprender sobre ela.

Em relação ao Ensino Médio do Estado é no terceiro ano que o tema aparece no segundo
bimestre com o seguinte tópico como conteúdo: “Os sistemas totalitários na Europa do século XX:
nazifascismo; ditaduras na América Latina e Estado Novo no Brasil”.10 Em seguida, as habilidades e
competências a serem trabalhadas são as seguintes:

“- Identificar as diferenças entre os conceitos de totalitarismo e ditadura; - Avaliar


criticamente conflitos culturais, sociais, políticos, econômicos e ambientais no
século XX; - Relacionar o contexto sociopolítico com a construção das ditaduras e
do populismo na América Latina”. 11

Percebe-se que as preocupações com o tema são ainda mais escassas e pelo número de aulas
semanais que os professores de História têm na sua carga horária fica ainda mais difícil pensar em
fazer algo diferente daquilo que o Estado sugere. Com dois tempos de 40 minutos por semana fica
complicado alcançar o fim do programa e ainda pensar numa educação diferenciada. É importante
frisar que o conteúdo listado acima é a metade do conteúdo bimestral. O governo estadual, na
gestão do ex-governador Sérgio Cabral, ofereceu cursos à distância para professores da rede sobre
cada série do Ensino Médio.

Esses cursos foram feitos à distância através de uma plataforma onde os professores interagiam
numa sala de aula virtual orientados por um tutor ou tutora através de leituras e tarefas que eram
direcionadas ao curso. No final de cada etapa o professor cursista deveria elaborar um plano de aula
ou sequência didática sobre os temas debatidos. Havia acesso à literatura atualizada sobre os temas
e as propostas eram voltadas com enfoque no aluno e sua aprendizagem. O material produzido
sobre ditadura civil militar analisado era composto de texto base, texto complementar, atividades
para alunos e sugestões de filmes, imagens, etc. Nele pudemos encontrar uma discussão sobre
Memória e História para este período. É importante enfatizar que o curso não foi feito por todos os
professores da rede e, consequentemente, entendemos que essa não é uma política educacional do

10
Disponível em: http://www.conexaoescola.rj.gov.br/site/arq/historia-regular-curriculo-basico-3s-0b.pdf. Acesso em
2-10-2017.
11
Disponível em: file:///C:/Users/marta/Documents/Soares%20Pereira%202013/HISTORIA_livro.pdf. Acesso em:18-
08-2017.

1682
estado do Rio de Janeiro para esse tipo de debate.12 Quadrat nos inquire sobre qual memória vamos
trabalhar: a oficial, do governo ou aquela escolhida por nós, professores em sala de aula? 13

1.1 - Ensino de História e Ditaduras no Brasil e na Argentina: memória e história

Como é possível acompanhar, desde o fim das ditaduras no Cone Sul ocorreu uma demanda
para retirar as marcas que esse período deixou na sociedade. Mas o processo foi bem diferente nos
dois países, a ver, por exemplo, o que Juliana Balestra descreve em sua tese:

“As Ditaduras civil-militares de Segurança Nacional atravessaram, de maneira


distinta, cada país, tanto em extensividade quanto em intensividade, o que
certamente interfere nos modos de se relacionar com ela. No Brasil, a ditadura
permaneceu vinte e um anos no poder (1964-1985), enquanto, na Argentina, a
última ditadura teve a duração de sete anos (1976-1983). Durante esse período, na
Argentina, o número de mortos e desaparecidos políticos está estimado em 30 mil.
No Brasil, a lista oficial possui 362 nomes.”14

Essa maneira de se relacionar com o passado é que nos faz perceber como no Brasil a ditadura
é encarada pela sociedade e como ela o é na Argentina. É possível andar pelas ruas de Buenos Aires
e observar uma memória do que foi aquele período. Não se vê apenas memórias da ditadura, mas
também sobre assassinatos de mulheres, feminicídios, e muito mais. A sociedade faz questão de
expôr as suas feridas e lembrá-las. Balestra aponta para o fato das políticas de memória e reparação
atuarem de forma diversa nos dois países,

“na Argentina, desde o início do processo de redemocratização, cerca de 515


pessoas foram condenadas pelos crimes cometidos durante o período, partindo-se
da premissa de que os crimes de tortura são imprescritíveis e não passíveis de
anistia” 15

E continua,

“no Brasil, prevalece a lógica do esquecimento. Ninguém foi punido até o


momento, o acesso à documentação militar começou a ser permitido apenas em
2012, com a instalação da ―Comissão Nacional da Verdade (CNV), mas ainda
cabe aos familiares das vítimas do regime o ônus de provar a responsabilidade do
Estado nas mortes e nos desaparecimentos”.16

12 12
Disponível em:
file:///C:/Users/marta/Documents/cecierj%203º%20ano/6_roteiro4_ditadura_mem+¦ria[ciclo1_bim3]%20(1).pdf
13
QUADRAT,Op.Cit., 2015, p.279.
14
BALESTRA, Juliana Pirola da Conceição, 1984- O peso do passado: currículos e narrativas no ensino de história das
Ditaduras de Segurança Nacional em São Paulo e Buenos Aires / Juliana Pirola da Conceição Balestra. – Campinas, SP
: [s.n.], 2015, p.28.
15
BALESTRA, Op.Cit., 2015, p. 29
16
BALESTRA,Op. Cit., 2015, idem

1683
No Brasil, permanece a lógica do esquecimento para não causar constrangimentos pois entende-
se que essa história muito próxima acaba por incomodar demais aqueles que estiveram atuantes
como agentes do Estado e que por esses torturadores ainda estarem vivos, em alguns casos, seria
gerado um mal estar entre eles. A anistia, materializada na Lei de Anistia, é, segundo Icléia
Thiesen,

“’o esquecimento’ das ações que, num tempo passado, quando eram presentes,
foram consideradas contrárias às leis vigentes na sociedade e, por força do tempo,
são (re)vistas como passíveis de serem desconsideradas. A anistia é o
“esquecimento” oficial de acontecimentos passados, que se institucionaliza em
forma de perdão.”17

Para além da questão que envolve diretamente a anistia, Joana D’Arc Ferraz e Carolina
Scarpelli procuraram demonstrar em artigo que apesar do consenso que vivenciamos no Brasil
sobre o silêncio sobre o período existem grupos atuantes que fazem um esforço para pressionar o
governo e lembrar a todo instante o que ocorreu no país.

“Na contra-corrente deste movimento proposto pela memória do


consenso,identificamos a memória da luta, promovida por diversos grupos de
pressão. O principal grupo de pressão, que concentra grande número de pessoas
atingidas pelo regime ditatorial é o Grupo Tortura Nunca Mais, atuante em
diversos estados da Federação. Este grupo teve seu início no Rio de Janeiro, em
1985, depois espalhou-se pelo Brasil. Outro grupo de pressão no Rio de Janeiro,
são os “Amigos de 68”. Grupos de pressão existem em vários países da América
Latina que passaram por ditaduras militares recentemente.”18

Mas como ver um país vizinho encarar de frente esse tema e não se sentir, de certa forma,
impotente em não conseguir fazer o mesmo aqui? Como não se sentir passivo demais? Muitos
grupos têm trabalhado para fazer dessas memórias não apenas histórias esquecidas no passado e sim
algo que sirva como uma lição para novas gerações e um meio de reparação para aqueles que
sofreram com isso. O Memorial da Resistência19 em São Paulo exerce um papel crucial na questão
da memória desse período. Oferece cursos e materiais didáticos aos professores e faz uma
interlocução ativa. Mas no que se refere à uma política pública sobre essa memória ainda estamos
bem aquém dos argentinos. Quadrat faz um apanhado dos documentos sobre educação desde os
anos 80, passando pela LDB (Lei de Diretrizes e Base) nº 5692 e pelos Parâmetros Nacionais
Curriculares (PCNs) e observa que esses documentos não apresentam uma preocupação específica

17
THIESEN, Icléia. Memória Institucional. João Pessoa: UFPB, 2013,p.257.
18
FERRAZ, Joana D’Arc Fernandes e Scarpelli, Carolina Dellamore Batista. A Memória da Ditadura Brasileira
enquanto Patrimônio Cultural. “Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil.”
19
Disponível em : http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/. Acesso em 19-08-2017.

1684
com a “pedagogia da memória”20. Pedagogia da memória é uma prática que tenta transmitir às
novas gerações um passado que elas não viveram, mas que deixou marcas na sociedade e nos
lugares da cidade. Nesse sentido, a pedagogia da memória está umbilicalmente atrelada ao que
Todorov 21 defende como “Trabalho de Memória”. Para o autor, a memória é necessária na
construção de identidades. Todos nós precisamos lembrar. Mas defende a ideia que lembrar não
deve ser uma obrigação, “dever de memória”. Para ele, precisamos ter um “trabalho de memória”
que reavive as lembranças e faça com que o indivíduo queira construir o bem. Todorov fala de
causas humanistas e do combate aos totalitarismos. Já que é bem esse o tema dele. Assim, a
memória não deve ser sacralizada, de um lado, ou banalizada, de outro. Sua proposta para o trabalho
da memória seria valorizar as falas coletivas, democratizando, combatendo a intolerância,
acolhendo os indivíduos, respeitando-os. A memória deve ser usada no presente para construir
justiça e um mundo melhor. Em sua opinião, a resposta das pessoas e da sociedade precisa vir pela
justiça e nunca pela vingança. Dessa forma, ele se coloca veemente contra a pena de morte. Se
respondermos com o mal certamente legitimaremos o mal do outro.

Por isso, a memória precisa ser trabalhada entre as novas gerações. Apesar de termos alguns
pontos comuns entre as iniciativas de memória e a resposta da sociedade em relação a elas somos
órfãos de uma política de memória mais efetiva sobre o período da ditadura no país. Esse
“esquecimento” é algo deliberado e contribui para a ausência desse debate nas escolas. A amnésia
torna-se um problema coletivo e traz graves consequências para a identidade coletiva. 22 Jacques Le
Goff pensa a memória como fenômeno coletivo, ligada diretamente à discussão de identidade
social. A maneira como os indivíduos entendem sua relação com o passado individual e coletivo
interfere diretamente na construção de identidades. Se a amnésia aparece numa sociedade, isso é um
problema de identidade daquela mesma sociedade. Esses “esquecimentos” constituem esta ou
aquela identidade. O silêncio seria uma manipulação da memória. No caso brasileiro, as amnésias
serviram e ainda servem para manter seguros alguns grupos que se beneficiam delas, grupos que
buscam controlar as memórias. É uma luta constante dessas memórias. Apesar de estarmos vivendo
um período em que as memórias estão vindo à tona, no que se refere à da ditadura militar andamos
a passos lentos.

Na Argentina, o processo de memorialização andou mais rápido, e como a autora Ludimila


Catela afirma houve a necessidade de se preservar os lugares de memória por onde haviam passado

20
QUADRAT, Op.Cit., 2015, p. 284
21
TODOROV, Tzvetan. “Los usos de la memoria”. In: Memoria del mal, tentación del bien. Indagación sobre el siglo
XX. Barcelona: Ediciones Península, 2002, pp. 191-211.
22
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Unicamp, 2013.

1685
presos políticos e pessoas haviam sido torturadas. Esses lugares são entendidos como “territórios
de memória” 23 . Nesses locais se produz atividades educativas para que se entenda, se sinta, se
lembre do que aconteceu, com quem aconteceu, qual o resultado daquelas ações para os indivíduos
e para o coletivo. É um uso pedagógico das memórias sensíveis da ditadura. A autora analisa no
artigo “Essas memórias...nos pertencem?”24 como essas ações afetam as pessoas que passam por um
desses “territórios de memória”. É sabido que nesses “lugares de memória”25 o passado e o presente
estão atuando o tempo todo. A História está presente, mas é a memória quem vai dar o curso, a
direção de cada fala, cada ato, cada passo. Nesse sentido, encontramos em David Lowenthal26 uma
discussão interessante na qual o autor construiu suas considerações sobre a história e a memória.
Ele discute os modos de se conhecer o passado ao fazer uma apreciação sobre os objetos da
memória e os da história. Ambos se debruçam no passado, mas a metodologia é diferente. Para o
autor, ter consciência do passado é essencial ao nosso bem estar. A memória é inevitável e
indubitável. A história é contingente e empiricamente verificável. Memória é introspecção. História
é reflexão. A partir da diferenciação entre memória e história, o autor elabora um caminho para
explicar a consciência do passado: “[...] toda consciência atual se funda em percepções e atitudes do
passado; reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque já os vimos
ou já os experimentamos”27. Mas, o que seria o passado? Para o autor, o passado nunca pode ser
tão conhecido quanto o presente. Toda consciência do passado está fundamentada na memória. Essa
memória é seletiva e há também o esquecimento. Afinal, não lembramos de tudo. Não lembramos
de quase nada. Para Lowenthal, “(...) a necessidade de se utilizar e reutilizar o conhecimento da
memória, e de esquecer assim como recordar, força-nos a selecionar, destilar, distorcer e
transformar o passado acomodando as lembranças às necessidades do presente” 28 . O passado
relembrado é tanto individual quanto coletivo. Mas, para a consciência, a memória é totalmente
pessoal e sentida. Por isso, relembrar o passado é importante para nosso sentido de identidade. E a
História? Ela expande a memória ao interpretar fragmentos e sintetizar relatos de testemunhos
oculares do passado. A história estaria presente desde os tempos pré-históricos, antes mesmo da
escrita, pois, segundo o autor, outros registros de memória já estavam ali presentes, como as
transmissões orais. A história difere da memória imensamente. As abordagens das duas sobre o

23
CATELA, Ludimila da Silva. Situação-Limite e Memória. In: A Reconstrução do Mundo dos Familiares de
Desaparecidos da Argentina. São Paulo, HUCITEC, ANPOCS, 2001. Cap. 5.
24
CATELA, Ludimila da Silva. “Essas memórias...nos pertencem? Riscos, debates e conflitos nos lugares de memória
em torno dos projetos públicos sobre os usos do passado recente na Argentina. In: Ditaduras Militares: Brasil,
Argentina, Chile e Uruguai. Org. Rodrigo Patto Sá Mota. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 254.
25
NORA, Pierre. “Entre memória e história: A problemática dos lugares”. Projeto História. Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo, (10), dezembro de 1993, p. 7-28.
26
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado? Projeto História. São Paulo, novembro de 1998.
27
LOWENTHAL, Op.Cit.,p.64.
28
LOWENTHAL, Op.Cit.,p.66.

1686
passado são específicas. Mas uma não sobrevive sem a outra. O presente é um lugar instável,
principalmente quando lida com essas memórias sensíveis, quando chegam a pessoas que são da
família, quando causam dor por causa da lembrança. Catela defende a ideia de que a memória
precisa ser pensada de “forma plural”, que o patrimônio é de todos e que esses espaços
proporcionam o exercício da cidadania e da democracia e estar aberto ao debate seria papel
fundamental daqueles que exercem esse tipo de trabalho.

2.0 – Pensar Patrimônios Como Lugar de Memória Para Ensinar Sobre a Ditadura: entre o real e o
virtual.

Pensar o que discutir com nossas turmas do ensino fundamental e médio sobre o período da
ditadura civil militar no Brasil nos carrega de muitos significados, histórias, memórias. Quais
reflexões podemos propor aos jovens e adolescentes num mundo cheio de retornos nazistas,
fascistas, onde o racismo impera, onde a extrema direita recebe muitos votos na França
“revolucionária”, onde assistimos a cada edição de jornal televisivo mortes violentas, numa cidade
violenta e que são, na verdade, extermínios de jovens da periferia? Muitas vezes já escutamos na
sala de aula até apoio a candidatos de direita que fazem apologia aos regimes ditatoriais e ao
fascismo. Como fazer esses jovens perceberem o que foi\é a ditadura? Como aproximá-los disso?
Como sensibilizá-los? Aprender é um ato voluntário, mas a figura do professor possui uma
relevância significativa na vida das pessoas principalmente nessa fase em que os alunos se
encontram.

A ideia inicial seria propor-lhes uma busca na internet sobre a ditadura no Brasil, época em
que aconteceu, o que pode ter acontecido, se já ouviram falar ou não desse período. Em seguida
propor algo com mais ação e protagonismo onde eles sejam os pesquisadores e o professor atue
como um colaborador para o conhecimento. Pode-se dividir a turma em grupos pra ficar mais fácil a
organização das aulas que se seguirão, mas seria importante deixar claro que a construção do
conhecimento sobre a ditadura civil militar será feita coletivamente. Pensar em materiais que já
temos acesso ajuda muito o processo e depois disso os alunos poderão acrescentar suas descobertas
e reflexões.

Pensamos em trabalhar a memória da ditadura através de aplicativos, um do Rio de Janeiro,


elaborado por uma pesquisadora da PUC –RJ que se intitula: Cartografias da Ditadura29. Na sua
apresentação o site diz:
“Levando em consideração a memória como uma dimensão fundamental para a
reconstrução da história de períodos autoritários, o ISER, no âmbito do calendário

29
Disponível em: http://www.cartografiasdaditadura.org.br/.

1687
de “descomemorações” do cinquentenário do golpe de 1964, iniciou um trabalho
de mapeamento de lugares de memória relacionados tanto à resistência quanto à
repressão no estado do Rio de Janeiro intitulado Cartografias da Ditadura. Trata-
se de uma proposta de construção coletiva e colaborativa, de caráter permanente e
processual, de uma plataforma virtual aberta às contribuições de pesquisadores,
ativistas, ex-presos políticos, bem como de qualquer pessoa que tenha interesse ou
informações pertinentes aos assuntos aqui abordados. Reunindo os mais diversos
materiais produzidos neste campo temático, esta cartografia é uma ferramenta de
valor pedagógico que objetiva fomentar a conexão entre as lutas e as violações do
passado e do presente, bem como transmitir para as gerações de hoje e para as
próximas o absurdo da violência institucional.30

Esse site proporciona um interesse maior pelo tema, porque une temporalidades diversas e pode
dar aos alunos uma localização exata de onde existe um “lugar de memória”, já que utiliza do
Google Maps como um marcador do território. Ao ver um lugar marcado o aluno entende que ali,
no passado, existiu um local que teve um papel importante para o período e passa a relacionar as
pessoas que por ali também passaram. Além disso, pode haver um questionamento do porquê
daquele local ter ou não se tornado um museu, um patrimônio, ou estar inclusive abandonado. São
assuntos que surgem ao longo do processo e que aumentam as tramas dessas memórias. Para além
disso, essa ferramenta pode servir para marcarmos um novo lugar de memória sobre a ditadura e
vermos que uma pesquisa pode resultar num trabalho colaborativo e construir novos saberes. A
ideia pode seguir para fora da escola, passando pelos muros e fazer com que os alunos observem o
entorno do seu bairro, ou o bairro da escola. Dessa forma, a construção de novos conhecimentos
poderá atingir outros locais e outras pessoas.

Prosseguindo nessa ideia de trabalhar as memórias e\ou lugares de memória, nos apropriamos
dos estudos de Pollak 31 sobre memória, esquecimento e silêncio. Esses três termos nos fazem
refletir sobre o processo de silenciamento que muitos presos políticos sofreram naquela época e
mesmo após a redemocratização do país. O texto de Pollak foi escrito na época da queda do muro
de Berlim, em 1989, mas ele é tão atual que ao lê-lo somos colocados de frente a vários problemas
que em nossa sociedade são sufocados e muitas vezes proibidos de serem tratados. O autor
mergulha suas ideias nas memórias micro, se assim podemos dizer, aquelas que estão no plano
familiar, de um determinado grupo, de uma pessoa que se dispôs a falar. Através da história oral se
consegue perceber o não-dito, as memórias subterrâneas, periféricas, o que o sujeito diz sem dizer
ou que acha que não estaria pronto pra dizer. Nesse tipo de pesquisa histórica a abordagem se dá
muito do plano individual para o coletivo, para se entender o processo. Consegue-se, assim,
entender e capturar o peso da memória na construção social. Os silenciamentos, em geral,
30
Disponível em: http://www.cartografiasdaditadura.org.br/ Apresentação do site. Acesso em > 2-10-2017.
31
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. Revista Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

1688
colaboram para a eliminação física ou social. A História Oral ajuda a elucidar essas memórias
subterrâneas fazendo-se um contraponto com as memórias oficiais, do Estado. Isso é pedagógico na
sua forma mais clara do que entendemos por educação. Dar fala ao outro. Possibilitar que o outro
tenha voz. Dialogar. Libertar. Pensar em Pollak para discutir o processo educativo é acreditar,
colocando em prática, uma pedagogia de libertação do outro. Se no processo de ensino-
aprendizagem os alunos puderem dar conta do conhecimento dessas memórias subterrâneas e ainda
construir caminhos para perceber como elas fazem parte da nossa história e quem sabe podem fazer
parte de nossa memória coletiva teremos um ganho fundamental no processo educativo daquele
jovem.

Um exemplo prático que podemos apresentar é o lugar conhecido hoje como 1º Batalhão de
Polícia do Exército, localizado à Rua Barão de Mesquita nº 425, no bairro da Tijuca, no Rio de
Janeiro. Lá funcionou o Destacamento de Operações de Informações- Centro de Operações de
Defesa Interna, o DOI-CODI. O DOI-CODI “foi uma das instituições criadas pelo governo militar
para garantir sua permanência à frente da política nacional, ameaçada pelos movimentos
oposicionistas”. 32 O artigo de Rafaella Bettamio utiliza a História Oral como metodologia de
trabalho de pesquisa e nos oferece uma vasta informação sobre aquele local, os ex-presos políticos
que ali se propuseram a falar nas entrevistas e algo que é muito mais que uma simples informação:
faz-nos aguçar os sentidos para aquelas memórias que são reveladas e esse tipo de material humano
pode e deve ser utilizado por nós professores como forma de sensibilizar as gerações que não
tiveram contato com a ditadura. Claro que devemos pensar que em alguns momentos vamos nos
deparar com alguém que tem essas histórias latentes em suas vidas, seja por um avô, tio ou um
parente que tenha sofrido nesse período e caberá a nós ter sensibilidade em como iremos trabalhar o
assunto.33

32
BETTAMIO, Rafaella. O DOI- CODI do Rio de Janeiro na memória de ex-prisioneiros políticos. In: Imagens da
Clausura na ditadura militar de 1964: informação, memória e história. Icléia Thiesen (org.). – Rio de Janeiro: 7 letras,
2011,p.42.
33
Um site bastante relevante sobre esse tema da ditadura é o Memórias Reveladas que coloca, de forma clara em seus
objetivos uma ideia de dar acesso à população de todas as informações sobre o período. Veja: “O Centro tem por
objetivo geral tornar-se um pólo difusor de informações contidas nos registros documentais sobre as lutas políticas no
Brasil nas décadas de 1960 a 1980. Nele, fontes primárias e secundárias são gerenciadas e colocadas à disposição do
público, incentivando a realização de estudos, pesquisas e reflexões sobre o período. A ação do Centro promove o
fortalecimento das instituições arquivísticas públicas, transformando-as em espaços de cidadania. São objetivos
específicos do Centro:Estimular pesquisas, na perspectiva da história, da sociologia, da antropologia, da ciência política
e do direito, mediante:• Controle das fontes primárias e da produção bibliográfica disponíveis;• Busca de novas fontes
documentais;• Gerenciamento de instrumentos de pesquisa disponíveis e elaboração de novos instrumentos com caráter
coletivo.Promover amplo acesso às fontes de informação e de conhecimento assim sistematizadas, mediante:• Criação
de uma rede virtual de amplo espectro;• Montagem de exposições;• Edição (em suporte-papel ou em meio digital) de
obras de referência, estudos monográficos e periódicos, em parceria com outras instituições;• Confecção, em parceria,
de material didático.Contribuir para o debate de natureza acadêmica e política sobre o período, mediante:• Organização

1689
3.0- Considerações Finais: Afinal, como nós, professores, podemos exercer o papel de
propiciadores desse “trabalho de memória”?

Faz-se necessário nos perguntarmos quais os motivos que levaram a educação e o ensino de
História a estar tão distantes do assunto ditadura militar. Como vimos anteriormente, o Brasil ainda
está longe de conseguir propiciar dentro dos espaços escolares ou espaços de educação um debate
aprofundado sobre esse tema sensível. Essa ausência poderia repercutir em quê? Quais as
consequências para a sociedade não se aprender esse período da nossa história? O ensino de
História tem um dever de repensar esse currículo e colaborar para promover um contato mais
aprofundado com o tema. Inúmeros professores exercem esse papel de trazer essa história e suas
memórias, mas ainda necessitamos de uma política de estado, de leis que garantam a alunos e
professores um aprofundamento desse período. Sabemos que essas disputas não são exercidas
apenas dentro da educação ou do ensino da História, elas estão na sociedade, na política, naquilo
que se quer ocultar, ou deixar passar o tempo para que não se promova a prisão de pessoas
envolvidas. Mas apesar de ter ocorrido há mais de 50 anos, é uma ferida aberta, machuca milhares
de famílias, não apresenta os corpos dos desaparecidos políticos e é muito atual, porque fala do hoje
também, dos que se calam na periferia, dos que morrem nessa sociedade desigual, dos que não têm
os mesmos direitos apesar da Constituição lhes assegurar.

Nós professores podemos retomar ao pensamento de Todorov, que ao falar de dores do


passado, essas memórias sensíveis, fala também das dores atuais. O “trabalho de memória”
possibilita tratar a partir do presente esse passado. O ensino de História nos permite isso, e junto às
ideias de patrimonializar, precisamos entender que esses processos acontecem através de muitas
disputas políticas e de memória. E quando essas disputas atingem todos nós, os que pensam sobre o
patrimônio, os que pensam sobre o exercício da memória, os que veem uma exposição, aqueles que
não têm uma exposição para ver mas podem trabalhar em sala de aula com o que está disponível no
momento na sociedade. Porque é preciso dizer que temos muito pouco a ser visitado em nosso país,
e nossa cidade. O Rio de Janeiro foi um local de muitos acontecimentos e muitos deles estão ainda
no subterrâneo, são remexidos de vez em quando, mas na maior parte do tempo estão escondidos.
Aqui ainda se tem muito receio de falar abertamente sobre esses assuntos. O medo impera. Já
tivemos sim alguns fatos daquilo que chamamos de “escrachos” contra torturadores em frente suas
casas. Mas, a sociedade ainda não sabe muito como reagir a isso. Com a velha Lei da Anistia em

de seminários e eventos de caráter interdisciplinar;• Promoção de concursos monográficos;• Intercâmbio com


instituições congêneres, nacionais e estrangeiras. Disponível em:
http://www.memoriasreveladas.gov.br/index.php/objetivos. Acesso em: 04-10-2017.

1690
vigor sempre ouvimos desses indivíduos que eles estavam cumprindo ordens. Muitos grupos estão
numa luta incessante para trazer à superfície essas memórias e, para além de problematizá-las,
oferecerem uma chance de reflexão à sociedade. Ver, sentir, entrar num lugar em que ocorreram
essas histórias é algo pedagógico e imprescindível para qualquer povo que queira crescer e se
repensar no mundo. Esse passo precisa ser dado no país. Acreditamos que o ensino de História
possui um papel fundamental na atual conjuntura da nossa história. Muitos meios estão disponíveis
para os professores e alunos a fim de planejarmos caminhos possíveis.

É importante dizer que o tema desse artigo é muito vasto e que mesmo fazendo recortes
temporais e temáticos podemos cair nas armadilhas de deixar de citar inúmeras outras ações de
afirmação e também políticas de grupos, pessoas e entidades que têm colocado à frente de suas
vidas pessoais o esforço para que essas memórias estejam o mais rápido possível em discussão na
sociedade brasileira. Cabe a nós professores estarmos atentos e nos aproximarmos das lutas desses
grupos. A proposta do artigo foi continuar um debate que já vem sendo feito há muito tempo por
historiadores, sociólogos, partidos políticos de esquerda, bem como pensar em como podemos
incluir nossos estudantes nele. Esse movimento de inserção já demonstraria um caminho diferente
para nossa sociedade, pois estaria conjugado a uma produção do conhecimento sobre um passado e
às implicações das memórias construídas em torno dele.

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1693
1694
A história medieval apresentada nos livros didáticos: construção de conhecimentos ou
reprodução de estereótipos?

Marta de Carvalho Silveira 1

Resumo: Os livros didáticos são os principais instrumentos utilizados pelos professores nas salas de
aulas brasileiras desde o século XIX. Tornaram-se as bases através das quais docentes e discentes
constroem o conhecimento histórico acerca de vários períodos históricos. No que se refere à Idade
Média, que tem sido alvo de diversas construções historiográficas variantes entre uma visão
negativa, idílica e problematizada acerca dos sujeitos e das construções simbólicas que
caracterizaram esse período, os livros didáticos tornam-se, por vezes, fontes de reprodução de
estereótipos e de modelos explicativos a muito questionados e superados pela academia. Pretende-
se nesse trabalho analisar a forma como conceito de Idade Média tem sido elaborado no discurso
didático e influenciado na formação dos discentes brasileiros.

PALAVRAS CHAVES: livros didáticos – Idade Média – Educação

Abstract: Textbooks are the main instruments used by the teacher in Brazilian classrooms since
the 19th century. They have become the foundations upon which teachers and students construct
historical knowledge about several historical periods. With regard to the Middle Ages, which has
been the subject of various historiographical constructions that vary between a negative, idyllic and
problematic view of the subjects and the symbolic constructions that characterized this period,
textbooks sometimes become sources of reproduction of stereotypes and explanatory models that
have long been questioned and surpassed by the academy. This paper intends to analyze how the
concept of the Middle Ages has been developed in didactic discourse and influenced the formation
of Brazilian students.
KEYWORDS: textbooks – Middle Ages – Education

1 – Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir a forma como a Idade Média é representada nos livros
didáticos. O que, em um primeiro olhar, poderia parecer uma questão menor, mostra-se, no Brasil
contemporâneo, uma discussão crucial. Em um país que não experimentou a Idade Média, em seu
sentido estrutural e cronológico, para muitos tornar-se desnecessário o ensino deste período
histórico, vide as discussões implementadas no momento da elaboração da primeira versão da Base
Nacional Comum Curricular (2016). Esta mostrava a clara tendência a considerar que o estudo do
período medieval não poderia se dar a não ser sob o padrão eurocêntrico, o que o tornava
desnecessário e inviável para uma política pública educacional que investia claramente em uma
visão “brasiliocêntrica”. Propunha-se, portanto, substituir um centro por outro, o que, graças a

1
Doutora em História Social pela UFF, Prof. Adjunta de História da UERJ. Pesquisa financiada pelo Programa de
Pesquisa Produtividade da UNESA. E-mail: marta.silveira.uerj@gmail.com.

1695
intensos debates acadêmicos não ocorreu, por representar uma perspectiva equivocada e descolada
das discussões historiográficas sobre o período medieval presentes na academia pelo menos desde
os anos 90.
As discussões implementadas no contexto da elaboração da primeira versão da base
permitem algumas constatações: o desconhecimento da própria academia em relação ao que está
sendo produzido entre os pares, apontando a clara necessidade de intensificar o diálogo entre os
especialistas de cada área, e a tendência de parte da tradição historiográfica brasileira em não
reconhecer a influência que as estruturas medievais tiveram na elaboração da sociedade colonial.
Em um país que vê diante de si o desafio de formar professores em um curto espaço de
tempo numa perspectiva utilitarista, a retirada do ensino de Idade Média no currículo das escolas
públicas poderia significar a oportunidade para diminuí-lo ou mesmo extingui-lo do currículo dos
cursos licenciatura em História. Diante destas circunstâncias o corpo docente e as associações de
pesquisadores de diversas universidades capitanearam uma série de debates que culminou na
reversão da primeira versão da BNCC e a proposição de uma segunda versão do documento, onde
os conteúdos referentes à Idade Média foram reintroduzidos no currículo do ensino fundamental.
Todo este processo de discussão foi bastante enriquecedor. Na tentativa de justificar a
permanência da Idade Média nos currículos escolares, os medievalistas brasileiros se viram
pressionados a pensar, dentre outras questões, como o período medieval tem sido ensinado nas
escolas de ensino fundamental, a ponto de ele parecer tão distante da realidade dos alunos e tão
desnecessário a sua formação. Utilizar os livros didáticos como fonte de pesquisa possibilita a
análise do percurso pedagógico que os conteúdos históricos alcançam nas escolas brasileiras,
mensurando-se a intensidade do diálogo estabelecido entre o saber acadêmico e o saber didático.
Daí, para esta comunicação, que se preocupa em trazer alguma contribuição neste campo, terem
sido selecionadas seis obras didáticas, aprovadas pela comissão de seleção do Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), em 2015, e submetidas à escolha pelos professores que atuam nas
escolas públicas brasileiras.

2 - Os livros didáticos brasileiros: um breve histórico


O avanço do modelo econômico neoliberal no mundo pós-guerra fria implicou na criação de
políticas públicas educacionais que promovessem a constituição de cidadãos culturalmente
adaptados às necessidades cotidianas de um mundo globalizado, e a formação de uma mão de obra
adequada e eficiente no processo de produção da riqueza interna dos países ocidentais. Através do
Consenso de Washington (1990) foram estabelecidas as metas financeiras macroeconômicas que
deveriam ser seguidas pelos países em desenvolvimento a fim de garantir o seu fortalecimento

1696
econômico. Dentre as estratégias necessárias para o alcance destas metas estava a melhoria dos
níveis educacionais.
Em um desdobramento do Consenso e sob a influência da Teoria do Capital Humano foi
realizada, na Tailândia, a Conferência de Jomtien (1990), onde se pretendia investir na elaboração
de metas educacionais a serem alcançadas pelos países participantes da ONU que propiciassem o
aprimoramento do seu sistema educacional. Medidos os índices de analfabetismo, a defasagem
entre a idade e a formação educacional dos indivíduos, a evasão escolar, a ausência de práticas
inclusivas, a diversidade curricular existente e outros tantos indicadores, o Brasil comprometeu-se a
traçar metas que dirimissem tais obstáculos ao aumento do índice educacional do povo brasileiro .
Foi assim que o Brasil investiu na elaboração do Plano Nacional de Educação Brasil para
Todos, iniciado em 1993, com o intuito de direcionar a política pública educacional brasileira,
fomentado, dentre outras práticas, a elaboração de documentos que promovam uma educação
integrada e igualitária em todo o território nacional, o diálogo entre a sociedade (representada
através de conselhos, organizações etc.) e a criação de práticas educacionais concernentes à
diversidade e à demanda brasileira. Dentro destes princípios, foram elaborados os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997), as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (1996), o Plano
Nacional de Educação (2014) e a Base Nacional Comum Curricular (2017), desdobrados em
diversas orientações e programas que objetivam a organização e o direcionamento da educação
brasileira desde a Educação Infantil até o Ensino Superior.
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi forjado justamente neste contexto, por
entender-se que o fornecimento de livros didáticos gratuitos aos estudantes das escolas públicas
brasileiras seria uma das estratégias fundamentais à elevação dos índices de desempenho
educacional docente. No entanto, a distribuição de livros didáticos nas escolas brasileiras não foi
uma criação das demandas produtivas e educacionais da década de 1990.
Os livros didáticos estão presentes nas escolas brasileiras desde o século XIX. A princípio
eram utilizados manuais franceses traduzidos que focavam à princípio a História Geral.
Posteriormente investiu-se na construção de uma história nacional que pudesse servir como base à
construção de um sentimento nacionalista principalmente entre a elite brasileira frequentadora dos
bancos escolares. Para tanto, o governo imperial incentivou a elaboração de manuais específicos de
História do Brasil produzidos pelos intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), em sua maioria, professores do Colégio Pedro II, considerado a principal referência
educativa no Brasil.
Nos diversos momentos do período republicano, os livros didáticos de História continuaram
a ser utilizados como instrumentos à consolidação do ideal nacional, principalmente durante o

1697
governo de Vargas. Além da clara intenção de reforçar o nacionalismo próprio, a política
educacional varguista, iniciada em 1930 e expressa na criação do Ministério da Educação e da
Saúde Pública, pretendia ampliar a formação da mão de obra brasileira para aproveitar as chances
de crescimento da política exportadora gerada graças aos efeitos da Crise de 1929. A dificuldade de
importar materiais pedagógicos e a necessidade de reafirmar os seus próprios ideais nacionais levou
o Brasil a iniciar uma produção interna de manuais didáticos em grande escala. Para garantir o
controle ideológico sobre o material produzido, principalmente a partir da instauração do Estado
Novo, o governo varguista criou, em 1938, a Comissão Nacional do Livro Didático.
O fim do Estado Novo não trouxe o término da política de produção de livros didáticos
próprios para o mercado brasileiro. Pelo contrário, os manuais didáticos, produzidos por
especialistas nas áreas de conhecimento, passaram a ser largamente utilizados no sistema
educacional que experimentou uma expansão considerável na medida em que se abriu para a
entrada de setores populares nos seus quadros, beneficiados pela onda das políticas
desenvolvimentistas do período.
Durante a ditadura militar o governo criou dois mecanismos que favoreceram a continuidade
e a ampliação da política de publicação e de distribuição de livros didáticos: a Companhia Nacional
de Material de Ensino e a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático, um dos braços do
Ministério da Educação e Cultura (MEC), responsável por estabelecer os princípios e as
orientações para a construção dos manuais didáticos, posteriormente publicados pela Companhia.
Portanto, a princípio a produção dos livros didáticos estava centralizada nos mecanismos
governamentais. Este quadro alterou-se na década de 70 quando o MEC buscou a parceria das
editoras privadas para publicar os manuais didáticos, tendo como órgãos reguladores o Instituto
Nacional do Livro e a Fundação Nacional de Material Escolar.
A década de 80, com a redemocratização, alterou a relação entre o setor público e o setor
privado na produção dos livros didáticos, já que as editoras assumiram o controle total da produção.
Os manuais passaram a ser produzidos de acordo com os critérios estabelecidos pelo MEC, através
de um conselho específico, e expressos no PNLD, criado em 1985 e aperfeiçoado em 1995.
Os livros produzidos e aprovados pelo MEC são distribuídos pelas editoras nas escolas
públicas brasileiras para que sejam avaliados pelos docentes e encaminhados às escolas após o
período de escolha. Tais obras utilizadas por professores e alunos trienalmente passam por um
complexo processo de escolha que envolve uma vasta rede de profissionais, onde estão incluídos
também os docentes .
Analisando os índices de compra dos livros didáticos pelo governo brasileiro, é possível
detectar o incremento e a geração de lucros expressivos para o setor editorial brasileiro nos últimos

1698
anos em virtude da efetuação destas compras. O Brasil é um dos países que mais utiliza recursos
estatais na compra deste tipo de material didático. Este setor movimenta tantos recursos que passou
a ser disputado por empresas estrangeiras empenhadas em alcançar um espaço de liderança no
mercado brasileiro, já que as compras efetuadas pelo governo correspondem a 60% da renda
editoriais.
As disputas travadas entre as editoras pelo controle do mercado se expressam em fortes
campanhas publicitárias e no aliciamento dos quadros técnicos das escolas para que se sintam
seduzidos a adotar esta ou aquela obra. Apesar da possível formação de oligopólios neste setor, que
pode traduzir-se em prejuízos aos cofres públicos e superfaturamentos, tal concorrência, se feita de
forma adequada, pode mostrar-se saudável, em termos didáticos, se traduzirem-se em uma busca
mais intensa para a melhoria do material produzido, tanto em termos textuais quanto visuais, e uma
constante tentativa de adequação das obras às propostas estabelecidas nos documentos que
fundamentam a política pública brasileira.
O contexto que envolve a produção, a distribuição e a utilização do livro didático fez com
que ele se tornasse uma peça de pesquisa básica para aqueles que têm como objetivo pensar nos
diversos níveis das ciências humanas, a questão da educação. Ao se elencar os livros didáticos
como fontes de pesquisa é preciso definir alguns pressupostos. O primeiro é o que o considera como
um produto cultural, tendo, portanto, uma historicidade muito bem demarcada. Os atuais livros
didáticos de história diferem muito daqueles produzidos nas décadas passadas, já que investem (ou
deveriam investir) na disponibilização de um conhecimento mais adequado ao seu público
incorporando os resultados de diversas pesquisas acadêmicas.
Os livros didáticos possuem também diante de si o desfio de disponibilizar um
conhecimento científico complexo de forma simples e didática a ponto de ser entendido
satisfatoriamente pelo público leitor sem, no entanto, apelar para a superficialidade discursiva.
Além disso, os livros didáticos são constituídos por discursos multifacetados, contendo uma
variedade de gêneros textuais, já que incorporam imagens, sugestões de filmes, áudios, sites e
plataformas de web, jogos, reportagens de jornais e revistas, fontes históricas (os melhores as
trazem em quantidade e variedade) e é nesta variedade discursiva que está grande parte do seu valor
e utilidade. Sendo assim, o livro didático não é um produto cultural que possa ser analisado somente
a partir de uma perspectiva histórica, mas também pedagógica, o que o torna uma fonte de análise
extremamente rica de pesquisa.

3 – Apontamentos sobre a construção do conceito de Idade Média na historiografia

1699
A Idade Média é um período histórico marcado pela criação de formulações estereotipadas
movidas pela historiografia que interferem diretamente na visão vigente no senso comum. O termo
Idade Média foi cunhado no século XVI e reforçado pela historiografia positivista do século XIX,
para designar um período intermediário e tenebroso que a humanidade mergulhou após o esplendor
da Antiguidade e o resgate da Modernidade. Entendida como um espaço de predomínio do
pensamento teocrático cristão e de uma ordem social pautada no poder da aristocracia e do clero, a
Idade Média em nada se adéqua às luzes do conhecimento iluminista e às inovações tão ansiadas
pela burguesia em franca ascensão. Infelizmente e apesar das inovações propiciadas pela
historiografia dos séculos XX e XXI, a visão que se tem da Idade Média em muitos livros didáticos
ainda essa instaurada no século XIX.
Com o advento das historiografias marxista e analítica, no início do século XX, é perceptível
uma ruptura considerável em relação à visão estereotipada estabelecida anteriormente sobre o
período medieval, mas também se nota o estabelecimento de novas proposições que fundamentaram
uma visão anacrônica e esquemática do período. Um exemplo disso, foi a veiculação crescente nos
livros didáticos, principalmente naqueles produzidos na década de 1980, do modelo interpretativo
de modo de produção feudal como chave para o entendimento do período medieval, fortemente
influenciada pela historiografia marxista e o seu traço determinístico econômico.
A proposta historiográfica da Escola dos Annales, desenvolvida a partir de 1929, ampliou o
foco da história política, feita sob as concepções historicistas do século XIX, e estimulou a
perspectiva de uma história total, onde o diálogo com outros campos do conhecimento e a utilização
de documentos diversos promoveria a resposta a uma questão primordial, norteadora da pesquisa. A
abertura do leque de fontes analisadas, a abordagem temática ampliada pelo diálogo interdisciplinar
com a Antropologia, a Sociologia e outras áreas do conhecimento também possibilitou a
constituição de diversas metodologias de análise. No entanto, a adoção dos princípios
historiográficos analíticos, especialmente no Brasil, trouxe consigo a difusão de um modelo de
sociedade, de monarquia, de cultura, de economia atrelado a uma perspectiva baseada na realidade
histórica da Gália e do Império Carolíngio. O chamado modelo francês foi adotado indistintamente
tanto no ensino fundamental quanto no ensino superior, o que inibiu os estudos referentes a história
medieval da Península Ibérica e de outras regiões medievais tomadas como periféricas.
O século XXI, marcado pela perspectiva multicultural e global de sociedade, estabeleceu o
repensar das bases historiográficas que, obedecendo a estas novas tendências, deveria estar de
acordo com as demandas apresentadas por uma sociedade neoliberal e globalizada. Assim é
inaugurada a luta para a elaboração da global history, uma história global onde todas as sociedades
se sintam representadas. Desta forma, os estudos medievais se viram impelidos a ampliar as suas

1700
perspectivas e a alterar a própria noção do que pode ser considerado como Idade Média. Cada vez
mais no mundo contemporâneo, o Medievo é visitado tanto como o espaço de formação da
identidade do mundo ocidental, como também o momento de interlocução, por excelência, entre a
cultura ocidental e a oriental, o que promove o resgate das diversas trocas culturas presentes neste
período e fundamentais para o entendimento do mundo contemporâneo.

4 – Alguns estereótipos medievais recorrentes nos livros didáticos


Entendendo que o diálogo entre a história ciência e a história escolar ainda precisa ser
intensificado, oferecem-se aqui alguns exemplos de estereótipos que se encontram presentes nas
obras didáticas escolhidas como fontes de pesquisa. A intenção desta discussão não é depreciar as
obras analisadas e sim destacar o potencial educativo que elas possuem e o quanto poderiam
ampliá-lo caso intensificassem o diálogo com a história produzida na academia.
A primeira obra analisada aqui é o Projeto Mosaico, de Claudio Vicentino e José Bruno
Vicentino. Nesta obra os autores se preocuparam em, antes de apresentar o conteúdo referente ao
período medieval, invocar nos seus leitores exemplos midiáticos com os quais têm contato
contemporaneamente e que se referem a elementos medievais, tais como: as histórias em
quadrinhos como Hagar, o horrível e os filmes que tiveram como inspiração as histórias de
cavalaria, principalmente as do rei Artur. Há, portanto, por parte dos autores um esforço válido de
estabelecer um elo entre o período medieval e a cultura contemporânea presente nos filmes e
quadrinhos. No entanto, a falta de um esclarecimento ao alunado do estatuto de ficção que as obras
apontadas possuem, não podendo ser encaradas como reproduções da realidade, pode vir reforçar
velhos estereótipos, como aqueles que alimentam as histórias dos vikings e a presença constante das
guerras e dos castelos.
Outra preocupação demonstrada pelos referidos autores foi a apresentação aos alunos da
discussão em torno do termo Idade Média, construído “por volta do século XV”, lembrando aos
alunos que tal nomeação foi feita no momento da construção de “uma periodização clássica da
história ocidental”. As discussões em torno do uso historiográfico do termo e mesmo o seu caráter
pejorativo infelizmente não foram implementadas. Os autores justificam o uso do termo Idade
Média para sinalizar um período que está no meio, entre Antiguidade e a Idade Moderna. O que
poderia ser uma oportunidade de levar o aluno a refletir sobre a forma como os homens veem a sua
história, sobre ela constroem conhecimentos e desenvolvem formas de contá-la e registrá-la de
acordo com as perspectivas do seu próprio tempo foi perdida.
A questão da relatividade cronológica é endossada pelos autores que informam aos leitores
que “não há consenso entre os historiadores que marcam o início e o fim da Idade Média”, mas eles

1701
não se preocupam em informar aos leitores sobre os limites cronológicos costumeiramente
utilizados para este período. Já que, segundo os autores, o que deve guiar o aluno na construção de
conhecimento sobre este período são as suas características (que as distinguem das outras épocas), a
importância em estudá-lo, a forma como as pessoas viviam naquela época e como organizavam a
sua economia e estruturavam-se politicamente. O esforço dos autores em romper com uma
perspectiva cronológica rígida, que marcou a historiografia do século XIX, mostra compatível com
a concepção contemporânea de ensino, que vê as datas como acessórios facilitadores do aluno na
identificação do processo de mudança histórica. Numa tentativa de suprir esta necessidade de
informação cronológica, os autores optaram por informar aos alunos que “o longo período
medieval que durou cerca de mil anos “: a Alta Idade Média (V-X) e a Baixa Idade Média (XI –
XV).
Os autores partiram do pressuposto de que o termo Idade Média é empregável somente para
a Europa ocidental “no território que fazia parte do Império Romano do Ocidente”, pois foi ali que
“(...) se desenvolveu uma visão de mundo, um modo de agir e de se organizar que chamamos de
“medieval”. Identificaram como características do período medieval a descentralização política, a
produção rural, o predomínio do trabalho servil e a organização da sociedade em camadas rígidas
(estamentos). Tais características referem-se diretamente ao feudalismo que, segundo os autores, se
desenvolveu na Europa ocidental enquanto os povos germânicos se fixavam na região. Os feudos
seriam “fruto da fragmentação política do antigo Império Romano.” Desta forma, os autores
demonstram estar desatualizados quanto ao que já se tem discutido recorrentemente nos meios
acadêmicos em relação à formação histórica do feudalismo e a possibilidade de uso deste conceito,
optando por estabelecer relação sinonímica entre Idade Média e feudalismo, reforçando com os
alunos um dos estereótipos mais usuais sobre o período medieval.
Reforçando esta visão, os autores ressaltam que em outras partes do mundo outros povos
passavam por períodos de maior desenvolvimento e de formação de grandes reinos, como foi o caso
da América pré-colombiana (onde maias, incas e astecas se organizaram), da África e da Ásia
(quando grandes reinos, como o de Gana, Mali, China e Índia) se desenvolveram. Nota-se, portanto,
a tradicional tendência no discurso pedagógico sobre o período medieval de considerá-lo como uma
época de atraso e de ignorância, mesmo que ela não esteja explícita no texto.
A segunda obra aqui analisada é História nos dias de hoje (2015), de Flávio de Campos,
Regina Claro e Miriam Dolhnikoff. Apesar de terem dedicado três capítulos a apresentar os
conteúdos referentes ao período medieval e tendo o mérito de colocar em pauta alguns aspectos da
história medieval peninsular, que pode ser considerada imprescindível para o alunado brasileiro, os
autores não tiveram se quer a preocupação de estabelecer com os seus leitores um debate conceitual

1702
sobre o próprio termo Idade Média e seus usos. Os autores se limitaram a estabelecer os limites
cronológicos do período e acusar a sua variação. Delimitaram o início do período medieval com a
queda do Império Romano Ocidental e a ocupação do seu território pelos povos germânicos. Já
quanto ao fim deste período ofereceram aos leitores uma variação de datas: 1453 (conquista de
Constantinopla pelos turcos), 1492 (com a chegada dos europeus à América) e 1519 (com a
Reforma Protestante). Apesar da informação da variação cronológica quanto ao “fim” do período
medieval, os autores não se preocuparam em discutir com os seus leitores sobre o porquê da sua
existência. Sem a implementação desta discussão, a informação mostra-se inútil ao aluno, sendo
totalmente dispensável.
Continuando na questão cronológica, os autores apresentaram aos leitores a clássica
subdivisão do período medieval: a Alta Idade Média (V-X) que se caracterizou pela “formação de
uma nova sociedade a partir da articulação de elementos romanos e germânicos” 2e a Baixa Idade
Média (XI-XVI), quando houve “o desenvolvimento do feudalismo e a crise da Ordem feudal na
Europa, que vai do século XI ao XVI.” 3
Destas informações é possível tecer algumas
considerações. Em primeiro lugar parece que os autores optaram por utilizar como referência
cronológica para o “fim” do período medieval a reforma protestante, já que o situam no século XVI,
mas se for este o caso, isto não foi explicitado ao leitor. Em segundo lugar fica evidente a clara
relação estabelecida entre Idade Média e feudalismo, o que é atestado no capítulo dois, quando os
autores afirmam que: “O feudalismo é o sistema que se estabeleceu na Europa, a partir do final do
século X.”4, ou seja não há uma preocupação dos autores em relativizar o uso do termo feudalismo
e nem mesmo em identifica-lo como passível de ser utilizado somente para algumas regiões do
Ocidente medieval. Tal proposição defendida pelos autores demonstra a opção dos autores pela
utilização de um modelo de interpretação da Idade Média pautado, sobretudo, na história do reino
franco: o chamado modelo francês. Esta opção pode ser atestada também no fato de que, ao tratar
do tema dos reinos germânicos, os autores terem se limitado a identificá-los em um mapa e a
oferecer informações sobre o reino franco.
Mesmo quando os autores brindam os leitores com elementos sobre a história dos
muçulmanos na Península Ibérica e sobre a Reconquista, eles parecem desconectados do restante da
história das outras regiões do Ocidente medieval. Foram mostrados como uma espécie de exceção,
explicada através do ideal da Reconquista, que os autores entendem a partir do viés religioso e não
como um projeto político engendrado pelas coroas peninsulares, já que consideraram que tal ideal
foi construído a partir de um processo de chegada de cavaleiros e peregrinos à Península Ibérica

2
CAMPOS,F., CLARO,R. e DOLNHIKOFF,M. História nos dias de hoje, 7 ano. São Paulo: Leya, 2015. P. 14
3
Idem
4
CAMPOS,F. op. Cit. P. 37

1703
atraídos pela luta contra os muçulmanos e a peregrinação a Santiago de Compostela. Assim, a
atuação dos reinos cristãos seria decorrente da chegada dos francos (termo usado no medievo
peninsular para os estrangeiros) e não uma reação política pensada pelas monarquias locais,
demonstrando o caráter periférico da região.
Nota-se, então, nesta obra o reforço de alguns equívocos em relação ao período medieval: a
absorção do conceito de Idade Média sem a devida discussão em torno dele, a ideia de que o
feudalismo foi um fenômeno universal e homogêneo no período medieval e o uso do modelo
francês como referência para o estudo deste período.
A terceira obra selecionada para análise é Historiar (2015) da autoria de Gilberto Cotrim e
Jaime Rodrigues. Assim como a segunda obra, os autores não estabeleceram nenhuma discussão
acerca do conceito de Idade Média, optando por simplesmente não o mencionar. Sobre a Idade
Média, limitaram-se a identificá-lo como “O período tradicionalmente conhecido como Idade
Média durou cerca de mil anos,” no qual “(...) a igreja católica transformou-se em uma instituição
poderosa, surgiram as universidades e novas técnicas agrícolas.” Os autores procuraram mostrar aos
leitores a Idade Média, mesmo que não explicitamente, como um período de trevas e ignorâncias,
mas de “(...) diversas outras transformações econômicas, sociais e políticas na Europa ocidental”.
Os limites cronológicos da Idade Média não são mencionados pelos autores, que se limitam
a informar que o período durou cem anos. Os autores não utilizaram as subdivisões tradicionais da
Idade Média e nem a informam aos seus leitores. No que parece uma tentativa de romper com uma
construção cronológica e partir para uma análise culturalista, os autores optaram por não utilizar a
ideia de Idade Média como referencial para a organização da sua unidade 1, intitulando-a como
Europeus, árabes e africanos e subdividindo-as em Formação da Europa Feudal, Transformações
na Europa Feudal, Mundo Islâmico e Povos Africanos. No entanto, apesar da tentativa, os
conteúdos referentes às sociedades ocidental, islâmica e africana não foram conectados. Este
partilhamento conteudístico e a ausência de uma informação cronológica mais precisa sobre o que
se convencionou chamar de Idade Média, não favorece a aprendizagem integrada do aluno do
conteúdo referente ao período medieval.
O gancho utilizado para a apresentação do período medieval é, assim como as obras
mencionadas anteriormente, o sistema feudal, apesar de o feudalismo ser entendido pelos autores
como um conceito construído pelos historiadores para se referir a características comuns
identificadas nas sociedades da Europa ocidental, lembrando aos alunos que “(...) o feudalismo não
se desenvolveu em todas as regiões da Europa.” 5

5
COTRIN,G. Historiar. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 20.

1704
Assim como a segunda obra, os autores de Historiar, utilizam o modelo francês como fio
condutor da sua apresentação, priorizando os conteúdos referentes ao reino franco e limitando-se a
identificar os demais reinos germânicos em um mapa. A tentativa de criar uma análise próxima a
uma perspectiva multicultural mostra-se contraproducente para o aluno por não favorecer a
compreensão do contexto medieval como um todo e a possibilidade de integração dos elementos
diversos elementos culturais e espaciais.
A quarta obra aqui analisada é Estudar História (2015) de Patrícia Ramos Braick, também
foi organizada de acordo com a proposta da obra mencionada anteriormente. A autora dividiu os
conteúdos referentes à Idade Média em quatro capítulos: A Alta Idade Média, Nascimento e
expansão do Islã, A África antes dos europeus e A Baixa Idade Média. A temporalidade medieval
foi utilizada como fio condutor para a organização dos capítulos, mas não se nota uma conexão
entre os conteúdos tratados referentes ao Ocidente medieval, a África e ao mundo islâmico.
Entretanto, ao contrário dos autores da terceira obra mencionada, Patrícia Braick iniciou o primeiro
capítulo identificando os limites cronológicos da Idade Média, o que talvez garanta aos alunos a
existência de uma conexão entre os temas dos quatro capítulos, se isto for muito explicitado pelo
professor.
A autora chamou a atenção para o fato de que “A expressão “Idade Média”, foi criada no
século XVI”, por pensadores renascentistas que “(...) diziam que a época que os precedeu era
marcada pelo fanatismo religioso, ignorância e violência. Para eles, teria havido um “período de
trevas”, um intervalo entre a Antiguidade clássica e o Renascimento.”6 Esta visão é criticada na
obra que atualiza os seus leitores quanto ao fato dela estar ultrapassada pela historiografia que
atualmente identifica o período medieval como “(...) uma época de importantes realizações
artísticas e culturais.”7, como as universidades e o Parlamento que, junto com outras contribuições
do período “(...) lançaram as bases do mundo ocidental moderno, o mundo em que vivemos.”8 É
interessante sinalizar que das quatro obras analisadas aqui, esta é a primeira que se preocupa em
estabelecer claramente a discussão conceitual em torno da Idade Média e o faz em uma linguagem
clara e acessível para o aluno, o que permitirá a compreensão do tema com uma simples leitura.
O limite cronológico inicial do período medieval é estabelecido para os alunos, em 476,
sendo devidamente relativizado quando a autora informa que o processo de desagregação do
Império Romano teve origem com a longa crise iniciada no século III. No entanto, o limite
cronológico terminal da Idade Média não foi mencionado, embora a autora adote a subdivisão já
utilizada pelos outros autores mencionados anteriormente: Alta Idade Média (V a X), caracterizada

6
BRAICK,P. p. 12
7
Idem
8
Idem

1705
pela ocupação das antigas terras do Império Romano pelos reinos germânicos e a formação do
feudalismo e a Baixa Idade Média (XI a XV), quando houve a consolidação, a expansão e a crise do
feudalismo. O fio condutor para o estudo do período medieval, assim como em outras obras
mencionadas aqui, é o feudalismo, que a autora identificou como um sistema político, econômico e
social originário da fragmentação política, da afirmação da Igreja Católica e da síntese das tradições
romanas e germânicas decorrentes da fragmentação do Império Carolíngio.
Novamente nota-se a ausência de referências em relação a história de outros reinos
germânicos, só sinalizados em um mapa e exemplificados pela história do reino franco, o que
demonstra a clara opção pelo modelo francês como referência de estudo para o período medieval.
Numa tentativa louvável de inserir alguns elementos da história medieval peninsular e conectá-los
ao restante da história ocidental, a autora insere um subitem intitulado O rei assume o controle para
apresentar a questão da Reconquista e da formação das monarquias medievais peninsulares.
Abrindo mão de uma explicação puramente religiosa para este fenômeno, a autora investiu em uma
análise política e a utilizou como ponto de partida para a explicação da formação do Estado
moderno. Apesar da crítica que tal perspectiva possa ter entre algumas correntes acadêmicas que
justificam o estudo da Idade Média a partir da necessidade de se conhecer as origens da
modernidade e das suas instituições, tal tendência não parece ter ocorrido na obra em questão e
mostra-se enriquecedora para os alunos que podem construir um conhecimento mais completo e
relacional entre os conteúdos referentes a Idade Média e a Idade Moderna.
A quarta obra analisada seguiu, portanto, a tendência identificada nas obras anteriores:
manteve o feudalismo como fio explicativo para o período medieval e priorizou o modelo francês
apesar de introduzir elementos da história medieval peninsular. Inovou, no entanto, ao oferecer ao
leitor informações conceituais mais precisas acerca do uso do termo “Idade Média” do que as obras
citadas anteriormente.

5 – Conclusão
Considerando-se a importância que os livros didáticos alcançam na formação do estudante
brasileiro, já que se trata do recurso didático mais utilizado nas salas de aula, torna-se muito
importante analisar que representações estão presentes neles acerca do período medieval, visto que
elas interferirão diretamente na forma como este aluno construirá o seu conhecimento sobre ele e
considerará a importância em estudá-lo ou não, tanto no ensino fundamental quanto nos cursos
superiores de licenciatura ou bacharelado em História.
Nota-se uma tendência dos livros didáticos a estabelecer uma análise superficial sobre a
Idade Média, pautada basicamente na existência do feudalismo ou do sistema feudal. A Alta Idade

1706
Média é entendida como o período de preparação para a formação do feudalismo (com a formação
dos reinos germânicos, que tem suas histórias representadas pela do reino franco) e a Baixa Idade
Média como o momento de organização, consolidação e decadência do feudalismo (que, com
exceção da primeira obra citada que identificou a sua existência já nos reinos germânicos, situa a
sua formação com a desagregação do Império Carolíngio). Este equívoco é extremamente oneroso
para os estudantes que tendem, devido a informações incorretas ou defasadas historiograficamente,
a relacionar os termos “Idade Média” e “feudalismo” como sinônimos. Talvez tal resquício possa
ser atribuído a uma herança marxista e a uma tentativa dos autores em conciliá-la com a análise
estruturalista analítica, não entendendo o feudalismo somente a partir das suas características
econômicas, talvez criando um híbrido interpretativo e contraditório.
Outra tendência existente nas obras analisadas é a não implementação de uma discussão
conceitual sobre o uso do termo “Idade Média” com os alunos, que só pôde ser identificada em duas
das quatro obras analisadas e feita de forma satisfatória em somente uma. A falta de
problematização desta questão além de criar nos alunos a noção errônea de que os períodos
históricos não têm a sua própria história, o faz mais indefeso diante da perspectiva, infelizmente
ainda corrente na mídia e em alguns debates acadêmicos, de estabelecer uma relação sinônima entre
“Idade Média” e “Idade das Trevas”.
A necessidade de incorporar a perspectiva multicultural ao discurso pedagógico dos livros
didáticos levou os autores a tentar equilibrar os conteúdos referentes a Europa ocidental, ao mundo
islâmico e a África em seus textos bases, mas a falta de conexão entre eles dificulta a compreensão
do aluno sobre estas “histórias locais”. É preciso ainda aprimorar o intercambeamento discursivo e
conteudístico para que as obras didáticas ofereçam ao aluno a possibilidade de construir um
conhecimento mais completo e relacional sobre os temas medievais. A iniciativa dos autores
didáticos que investem nesta perspectiva apontada pela BNCC tem contribuído muito para o
incremento das discussões conceituais na academia sobre o uso do termo “Idade Média”, hoje não
mais vinculado a existência de um sistema feudal, mas simplesmente como um espaço cronológico
que, numa herança renascentista tradicionalmente se estende dos séculos V a XV, marcado por
diversas realidades culturais locais e intercambiáveis cujos efeitos precisam ainda ser
profundamente analisados, e o desafio está lançado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VICENTINO,Cláudio e VICENTINO, José Bruno. Projeto Mosaico. História. São Paulo: Scipione,
2015.

1708
O ensino de História na visão de Jonathas Serrano: análise do livro didático Epítome de
História Universal em 1913

Matheus Carlos de Castro Dantas 1

Resumo: A obra didática Epitome da História Universal, publicada em 1913, de Jonathas Serrano,
que foi professor do Colégio Pedro II, da Escola Normal do Distrito Federal, membro do Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro. Esse livro didático foi considerado, por muitos professores daquela
época, como inovador pelo fato apresentar uma nova visão acerca do ensino da história escolar. O
investimento na inserção de quadros sinóticos, o emprego de gravuras, mapas e retratos, e
prevalecendo um conhecimento baseado na observação, com o intuito de garantir a aprendizagem
na disciplina escolar, no âmbito da instrução secundária. Serrano produz um certo afastamento da
história linear e cronológica, à medida que introduz um novo método, se contrapõe à proposta de
memorização e fixação de conteúdo, usual aos compêndios escolares daquele período.

Palavras-Chave: Metodologia; Inovação; Ensino.

Abstract: The “Epitome of Universal History”, was published in 1913 by Jonathas Serrano. He was
a professor at Colégio Pedro II of the Normal School of the Federal District, and also member of the
Brazilian Geographic Historical Institute. His didactic work was considered, by many professors of
that time as innovative once it presents a new vision about the teaching of History. The work
presents investment in the insertion of synoptic pictures, use of engravings, maps and portrait, and
also prevailing knowledge based on observation, with the purpose of ensuring the learning in the
school discipline, within the scope of secondary education. Serrano produced a certain distance
from the linear and chronological History, as he introduced a new method, opposing to the proposal
of memorization and fixation of content, usual to the school textbooks of the period.

Keywords: Methodology; Innovation; Teaching.

Introdução

Estudar a produção didática de Jonathas Serrano, que foi professor do Colégio Pedro II,
atuou em projetos de formação de professores, nas décadas iniciais republicanas no Brasil, tem se
constituído em um enorme desafio para a nossa pesquisa de iniciação cientifica 2, porém muito

1
Graduando em História pelo PPGHS/UERJ. Agradeço a FAPERJ pelo apoio financeiro prestado à pesquisa. E-mail:
matheusdantas755@gmail.com

2
Trata-se do Projeto de Pesquisa intitulado Por um novo ensino de História: a Pedagogia de Jonathas
Serrano (1913-1930), que conta com financiamento de bolsa de Iniciação Cientifica, da FAPERJ, sob a
supervisão da Profa Dra Maria Aparecida da Silva Cabral, a quem agradeço pela disponibilização da
bibliografia e revisão parcial deste texto.

1709
instigante pela sua importância na divulgação de uma nova metodologia para o ensino da história
escolar.
O presente texto tem por objetivo apresentar os resultados obtidos nesse primeiro ano de
pesquisa sobre a trajetória de Serrano, bem como a sua produção didática voltada ao ensino da
história para os alunos da instrução secundária no Brasil àquela época. Nesse sentido, destaca-se
para esta discussão a análise da obra Epítome de História Universal, publicada em 1913, e que
chegou a 25ª edição em 1957, o que demonstra a sua importância para o ensino de História no
Brasil.
Publicada pela prestigiada Editora Francisco Alves, essa obra foi adotada pelo Colégio
Pedro II, na Escola Normal do Distrito Federal e em diversos estabelecimentos de instrução da
Capital da República (Rio de Janeiro) e demais Estados da federação, o que aponta para relevância
no âmbito da produção didática desse período.

A trajetória de Jonathas Serrano

Jonathas Serrano nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1885, filho do capitão-de-mar- e


Guerra Frederico Guilherme de Souza Serrano, senador da República do Estado de Pernambuco e
de Dona Ignez da Silveira Serrano. Realizou seus estudos no Colégio Pedro II e na Faculdade de
Ciências Sociais e Jurídicas do Rio de Janeiro, de onde sairia bacharel em 1909.
Foi autor de compêndios de história para o ensino primário e secundário, assim como autor
de obras de metodologia do ensino de história, destacando-se o Epítome de História Universal
(1913), História do Brasil (1926), História da Civilização (1933), Epítome de História do Brasil
(1933) e os textos metodológicos, que eram destinados aos professores, conhecidos como:
Metodologia da história no ensino primário (1916) e Como se ensina História (1935).
Em 1915, Serrano ingressou na Escola Normal3, um importante local de formação dos
futuros professores do Distrito Federal. Em 1919, fora nomeado diretor do mesmo instituto. No
mesmo ano ingressou como sócio no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) 4. Em 1926

3
São instituições de formação de professores. As Escolas Normais surgiram no Brasil previstas pela Lei
Provincial de 1835, sendo a primeira delas instalada no mesmo ano, em Niterói no Rio de Janeiro. Para
aprofundar esse assunto ver: ARAUJO, José Carlos Souza; FREITAS, Ana Maria Gonçalves Bueno de;
LOPES, Antônio de Pádua Carvalho. As Escolas Normais no Brasil: do império à república. Campinas (SP):
Alínea, 2008.
4
A criação, em 1838, do IHGB vem apontar em direção do processo de consolidação do Estado Nacional
que se viabiliza um projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada mantendo profundas
relações com a proposta ideológica em curso. Sobre esse assunto veja: GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado.
Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História
Nacional. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1988, p.5-27.

1710
foi nomeado professor catedrático da cadeira de História Universal no Colégio Pedro II, defendendo
as teses sobre a Ideia de Independência na América e As Corporações de Ofício na França
Medieval.
Vale ressaltar, o valoroso e o simbolismo do nome Imperial Colégio de Pedro II, instituição
de ensino secundário na preparação dos filhos da elite brasileira àquela época. Criada desde a
primeira metade do século XIX, tal instituição expressa a importância atribuída pelo governo
imperial, sob a administração vigilante do Ministro do Império e a da Inspetoria Geral da Instrução
Pública, que respondiam, perante ao Imperador, sobre as questões relativas ao bom andamento das
coisas do Colégio, verificadas muitas vezes pelo próprio Dom Pedro II, que não só comparecia
regulamente à instituição, nas cerimônias de abertura dos exames e de concursos de professores
como fazia visitas inesperadas às dependências do Colégio e salas de aula, observando e fazendo
perguntas aos alunos (Dória, 1997). Sendo também responsável pela “construção da memória
institucional dentro da memória nacional” (Andrade apud Santos 2011).
Como um homem letrado de sua época, Serrano navegava com facilidade pelo latim,
português, filosofia e a história, o que o credenciava para estar junto ao círculo intelectual daquele
momento. Segundo Itamar Freitas, o magistério oficial deu maior prestígio a Jonathas Serrano, pois
ao ocupar esse posto poderia produzir livros a partir de sua experiência no magistério, frequentar o
restrito círculo de professores catedráticos da instituição etc. Para esse autor, Serrano desempenhava
o professorado desde os tempos de aluno do Pedro II (1903). Ensinava para se manter e para
aprender mais. Arquitetava planos de aula, fazia o desenvolvimento e os redigia em forma de
artigos (FREITAS, 2008).
Serrano empregava constantemente aquele velho aforismo de Erasmo de que “é ensinando
que se aprende”. Varava a madrugada e, mesmo doente, escondeu-se para estudar com o fito de
conservara imagem de aluno aplicado. O esforço valeu a pena. Foi distinguido em todas as matérias
do ginásio e na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais – “Medalha de ouro Conselheiro
Portela (FREITAS, 2008).
Em 1916, prestou concurso para a Escola Normal, principal instituição de formação de
professores do Rio de Janeiro e, no mesmo ano, produziu obra pedagógica stricto sensu. Naquele
tempo, dirigia a Escola Júlio Afrânio Peixoto que a fez passar por uma reforma em seu
regulamento, indicando nova definição e função para o método de ensino para a história.
O cultivo das boas amizades, certamente foi determinante nas suas vitórias no magistério
(FREITAS, 2008). Era amigo, afilhado, sócio, confrade, correligionário do professor Luís Gastão de
Escragnolle Dória (1869/1948). Dória, lhe abria as portas do seu acervo particular, das bibliotecas e
dos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Arquivo Nacional – de onde fora

1711
diretor no período 1917/1922 – para a elaboração de seus escritos sobre Capitanias Hereditárias,
sobre Domingos José Martins e Luiz Pedreira do Couto Ferraz, o Visconde do Bom Retiro.
A contribuição de Dória auxiliava-o, já que o mesmo disponibilizava seu acervo particular,
das bibliotecas e dos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Arquivo Nacional
– de onde fora diretor no período 1917/1922 – para a elaboração de seus escritos sobre Capitanias
Hereditárias, sobre Domingos José Martins e Luiz Pedreira do Couto Ferraz, o Visconde do Bom
Retiro.
Segundo Itamar Freitas (2008), as vitórias de Serrano, nesse campo, têm os dedos do nobre,
católico, monarquista e amigos dos amigos do Imperador, poeta, crítico literário, historiador e
primo do também historiador das bandeiras Afonso Taunay5. Foi Dória, quem convenceu o livreiro
Francisco Alves6, a editar o Epítome de história universal (1913), primeiro didático produzido por
Serrano. Esse livro até poderia ser moderno, vazado em pesquisa erudita atual, qualidades que
atraíram a atenção do renomado João Ribeiro. Mas daí até ser incluso no programa do Pedro II
(1915), precisaria, como teve necessidade, da intermediação de Escragnolle Dória.
O magistério de Serrano também foi exercido por correspondência trocada com alunos, ex-
alunos, professores do secundário, principalmente, radicados no interior do Rio de Janeiro, de São
Paulo, Pará, Pernambuco Sergipe. Ele indicava bibliografia, comentava suas próprias obras,
avaliava a escritura de livros didáticos, fornecia detalhes da ação desse ou daquele personagem
histórico e – também pelas cartas – conhecia o alcance dos seus métodos de ensino e de militância
pelo catolicismo (FREITAS, 2008).
De 1928 a 1930, foi subdiretor da instrução do Distrito Federal. Nomeado membro do
Conselho Nacional da Educação em 19377. Integrou a comissão do ensino secundário, neste
momento a discussão à cerca da História passou a ser indagada também pelo ensino secundário, do
Plano Nacional, criada pelo Conselho Nacional da Educação, naquele mesmo ano. Pertencia a
comissão nacional do livro didático8, na qual ingressou em 1939, e exerceu ainda os cargos de

5
Taunay foi professor na Escola Politécnica de São Paulo no período de 1904 a 1910. Teve atuações no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Instituto Histórico Geográfico de São Paulo e na Academia
Portuguesa de História e na Academia Paulista de Letras.
6
A Livraria Clássica, predecessora da Francisco Alves, foi fundada em 15 de agosto de 1854, na Rua dos
Latoeiros (quando ainda se chamava Gonçalves Dias), nº 54 (posteriormente alterado para nº 48), por seu tio
Nicolau António Alves, imigrante português natural de Cabeceiras de Basto, que havia emigrado para o
Brasil com 11 anos de idade, em 1839. A Livraria Clássica começou modestamente, com atividades voltadas
para o atendimento escolar.
7
O conselho tinha como uma das principais atribuições, elaborar o Plano Nacional de Educação. Devido à
importância e ao trabalho desse Plano, viu-se a necessidade da elaboração de um regimento interno próprio
para reger os trabalhos da elaboração do PNE. CURY, Carlos Roberto Jamil. Plano Nacional de Educação.
8
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é o mais antigo dos programas voltados à distribuição de
obras didáticas aos estudantes da rede pública de ensino brasileira. Atualmente, o PNLD é voltado à
educação básica brasileira, tendo como única exceção os alunos da educação infantil.

1712
membro do Conselho de Ensino do Estado do Rio de Janeiro e do Conselho de Educação do
Distrito Federal. Foi também membro da Comissão de Censura Cinematográfica (1932) e foi juiz
do Tribunal Eleitoral do Distrito Federal em 1932 e 1933.
Segundo a perspectiva de Santos (2011), o modelo biográfico, ensinado pelo exemplo, em
que os valores morais e cívicos eram transmitidos por meio de representações, atuou com uma
característica da História ensinada durante parte do século XX. No início do século, as mudanças no
ensino de História ocorreram muito mais pela inovação do ensino pelos métodos dos livros
didáticos dos professores catedráticos – como João Ribeiro, Jonathas Serrano e João Baptista de
Mello e Souza – do que propriamente pelos programas de ensino. A construção da identidade
nacional manteve-se como um objetivo do ensino de História, porém associando-se essa identidade
a uma questão cultural.

A obra Epítome de História Universal

Sua primeira obra de sucesso foi o Epitome da História Universal (1913), obra na qual é
tema de estudo deste presente artigo foi considerada inovadora para sua época, ela retrata objetos de
estudo da história que não eram produzidas em seu período. Seu trabalho trouxe à tona novas
categorias de aprendizagem que não participavam dos compêndios. Foi utilizado o emprego de
gravuras, mapas e retratos com finalidade de atribuir uma história voltada para a observação e
empreender melhor analise dos alunos.
De acordo com Freitas (2009), Serrano compreendia a “História” como “História
Universal”, o que era bastante usual no Colégio Pedro II, e esta tinha a finalidade de apresentar a
ideia de continuidade histórica da humanidade. Nesse sentido, Serrano mobilizava em sua narrativa
grandes exemplos, por meio da apresentação de biografias de personagens tidos como relevantes,
além de acontecimentos marcantes para a mudança social, como uma forma de incutir nos jovens a
ideia de boa formação moral e patriótica.
Serrano produz a sua obra em um momento que havia uma intensa disputa sobre o que
ensinar às gerações futuras, e, sobretudo, de forma. O que estava em jogo era o projeto de formação
do cidadão republicano. Segundo Cabral (2014):

É nesse momento de construção e, consequentemente, de legitimação da República


que os conteúdos de ensino passaram a ser objetos de intensa disputa entre os
reformadores da instrução pública, os quais traduziram, por meio de suas ações, as
ideias vigentes a respeito dos vínculos da educação com as questões da moral, do
progresso e do desenvolvimento social do país. Em razão disso, os currículos das
escolas primárias e secundárias foram modificados. No caso, especificamente para

1713
a instrução secundária, um novo currículo foi desenhado com o intuito de que as
matérias de ensino - com seus conteúdos, métodos e processos avaliativos - se
articulassem aos objetivos desse tipo de educação.

Na estrutura do livro, na qual estão presentes os quadros sinóticos e cronológicos que


auxiliavam os alunos a localizarem os acontecimentos ocorridos no período da história que fora
estudado. Nos livros anteriores, os compêndios escolares, prevaleciam textos escritos e
questionários, uma história sem a utilização de recursos visuais, e de memorização exaustiva com a
falta de uma história narrativa, que possui finalidade de facilitar o aprendizado. Serrano parte da
ideia que o aprendizado para o aluno deve ser uma necessidade de uma satisfação psicológica, para
isso ocorrer, diz o autor,

é preciso usar todos os recursos pedagogicos hodiernos, que visam transformar a


escola, – a velha prisão temível e temida —, em um ambiente arejado e convidativo
em que se aprende principalmente pelos olhos, graças às múltiplas e variadíssimas
representaçoes visuaes dos assumptos didacticos: mappas, globos geographicos,
quadros coloridos, colleções, gabinetes e museus escolares.

Esta nova concepção metodológica visava o aprendizado na área escolar. A transformação


para uma história que visava o olhar do aluno, em detrimento de uma história mais conceitual que
era voltada para a memorização, conforme visto nos parágrafos anteriores. A importância desse
catedrático, está mais presente na inovação no ensino de história do que propriamente na
perspectiva historiográfica realizando assim uma reflexão menos densa e mais didática, facilitando
assim o envolvimento do aluno com o conteúdo.
Serrano afirma que o objetivo da história era estudar os fatos que afetam diretamente a vida
social e o progresso. O valor histórico somente será adquirido se fosse atendido a questão social.
“É, principalmente, o encadeamento dos fatos, a concatenação das causas de das consequências,
para a investigação das leis históricas”.
Retomando ao parágrafo anterior, o encadeamento dos fatos era atribuído a três principais
métodos no estudo da história. O etnográfico relacionava acontecimentos de um povo. O sincrônico
efetuava a exposição simultânea dos fatos e povos na ordem cronológica e o misto era a correlação
de ambos citados. O auxílio de fontes históricas era necessário para reconhecer um fato histórico e
com isso realizar e expor métodos para a realização de ciência.
Neste período, a história fazia parte do grupo das ciências morais, caracterizada por Serrano
como “ reservatório da humanidade”. A inclusão da história no grupo das Ciências foi considerada
transformadora para época inserir a história com o caráter cientifico exposto em um livro didático
(Epitome da História Universal). Esta almejava o estudo do homem. Eram divididas em

1714
psicológicas e social. A história era enquadrada na parte social devido a ter por objeto o estudo da
origem e desenvolvimento das sociedades humanas.
Segundo Cabral (2016), a obra didática de Serrano tem sido objeto de estudo recorrente no
campo do ensino de História no Brasil, por se tratar de um:

Autor de uma vasta produção intelectual, Serrano destaca-se por tentar dialogar
com os referenciais teórico-metodológicos da Ciência Histórica, que norteavam a
produção do conhecimento histórico no início do século XX e os ideais da
Pedagogia da Escola Nova, na produção de suas obras didáticas voltada à história
escolar. Em sua proposta de ensino há uma tentativa de inovação de tal disciplina,
por meio da incorporação de outras linguagens e, sobretudo, porque a sua história
enfatiza a necessidade de uma relação com o tempo presente e aos interesses dos
estudantes, rompendo com a ideia da repetição e memorização de fatos e
personagens bastante recorrentes nas aulas de História.

Com todas as críticas realizadas pelo autor sobre a aplicação dos métodos, desempenha
indagações sobre aos modelos adotados para o ensino da história. Referindo-se principalmente a
“pedagogia científica”, baseada na observação psicológica que condena a memorização, eram
ensinados de maneira repetitiva para a conservação de datas e eventos, expondo uma ineficácia na
hora do aprendizado. Serrano condena,

por inefficaz e nociva à formação intellectual do alumno a velha idéia de que


aprender é, principal, quasi exclusivamente, decorar. Sobrecarregar de nomes e
datas a memoria da creança, mesmo sem que ella comprehenda as mais das vezes
absolutamente nada...

O trabalho de Serrano preservou História Brasileira, reiterou o sentimento nacional e incluiu


a História da Pátria, partindo de uma visão eurocêntrica. O que alguns autores enfatizam em suas
análises é que Jonathas Serrano, mantém a concepção de História como “genealogia da nação”,
valorizando conteúdo da História da civilização ocidental nos quais o Brasil foi inserido a partir do
descobrimento. Nesse contexto, a História do Brasil iniciava-se somente a partir do enredo europeu
das grandes navegações e do comércio internacional.
No tocante à organização do livro Epítome de História Universal destacamos que a mesma
está dividia em: Prefácio, Nota preliminar, Introdução, História Antiga, História da Edade-Media,
História Moderna e História Contemporânea, o que segue o modelo quadripartite da História,
construído no século XIX, com destaque para a visão eurocêntrica. Observamos que Serrano ao
apresentar as civilizações antigas, mobiliza procedimentos do conhecimento geográfico para situar
os povos no espaço, fazendo uso de mapas, gravuras e quadros sinópticos. As formas de moradia, a

1715
vida familiar, os processos educativos, os modos de alimentação, os nascimentos, casamento,
mortes, vestuário, ciências, letras e artes também são explanados por Jonathas Serrano em sua obra.
O livro didático passa a encarcerar uma transmissão de valor nacional fazendo jus ao
processo de enaltecimento político com finalidade de construção do sentimento de nação brasileira
como parte do processo civilizatório do governo imperial e republicano. Vale ressaltar, a erudição
da educação, principalmente sob ótica de uma construção de identidade com finalidade de ensinar a
elite para o ensino acadêmico e destacar o que era significativo para a construção da nacionalidade
brasileira.

Considerações finais

Portanto, a concepção de história para Serrano era de valorizar questões consideradas como
novidade para a época, o predomínio de figuras nos livros didáticos tornava mais fácil e didático o
aprendizado. Os quadros sinóticos mostravam uma cronologia favorável para situar-se perante aos
acontecimentos e as figuras históricas. O abandono da fatigante conservação de conteúdos e o início
de uma remodelagem destacaram a obra Epítome da História Universal como uma inovação para o
ensino da história na escola.
Ademais, por meio de suas obras, Serrano registrou rica experiência como professor e
historiador, homem do seu tempo, explicitando em vários momentosa sua preocupação com a
renovação metodológica e didática do ensino de História (SCHMIDT, 2004). Jonathas Serrano
como professor catedrático do Colégio Pedro II, inovou as concepções de ensino e intensificou a
elaboração de como habilitar conteúdos, não restringido somente a História, mas, de maneira geral,
contribuindo diretamente para a preservação e aumento do sentimento histórico brasileiro.

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1717
“O Globo" e as cotas raciais: uma análise sobre as reportagens do jornal sobre as
ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras

Matheus de Carvalho Leibão 1

Resumo: O estudo, fruto de uma pesquisa de mestrado em andamento, busca debater as reportagens do
jornal O Globo sobre as cotas raciais nas universidades públicas brasileiras. Partindo de uma
perspectiva que entende o jornalista como responsável pela criação da realidade coletiva, busca-se
analisar o perfil das reportagens, tentando compreender como foi conformada a narrativa sobre o tema.
Também é um objetivo deste trabalho identificar quais foram os atores que tiveram maior destaque nas
narrativas do jornal sobre a temática e os motivos que fizeram o veículo da família Marinho a
privilegiar determinados atores, pautando a temática pelo viés da burocracia estatal. Como recorte
cronológico, foi escolhido o ano de 2003, em que há o início deste tipo de política pública na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Cotas raciais; O Globo; Reportagens

Abstract: This study is a result of an ongoing Master’s research and it aims to debate the news of O
Globo about the racial affirmative actions in Brazil’s public universities. We try to analyze the
character of these news so that we can understand how a narrative about this public policy was created,
having as starting point a perspective that sees the journalist as the responsible person for the creation
of collective reality. It is also a goal of this work to identify who were the main agents on the
newspaper narratives about this theme, and the reasons why the media of the Marinhos have chosen
them as the main ones, choosing as a guideline the State bureaucracy. The period we chose to analyze
here was the year of 2003, in which there was the beginning of racial affirmative actions in Rio de
Janeiro State University (UERJ)

Key Words: Racial affirmative actions; O Globo; News

Em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) teve, pela primeira vez, uma
série de estudantes ingressos pelo sistema de ações afirmativas raciais, que beneficiavam alunos pretos,
pardos e índios. Desde então, o debate sobre as cotas no estado e no país ganhou um novo impulso, já
que a proposta já vinha sendo debatida ao menos desde a Conferência de Durban, em 2001.2

1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da UERJ. Bolsista CAPES.

2
ALVES, J. A. Lindgren. A Conferência de Durban contra o Racismo e a responsabilidade de todos. Revista Brasileira de
Política Internacional, v. 45, n. 2, p. 198-223. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v45n2/a09v45n2.pdf.
Acesso em: 29/09/2015.

1718
Quando analisamos a literatura acadêmica sobre o tema, verificamos que há uma quase
unanimidade em afirmar que este tipo de política pública é resultado da mobilização do movimento
negro no contexto histórico da virada do século XX para o século XXI.3 Entretanto, ainda persiste na
mentalidade de uma parcela considerável dos cidadãos brasileiros a ideia de que as cotas seriam uma
imposição governamental, uma espécie de benesse que os governos estaduais e federal concederiam às
minoria étnicas, muitas vezes com interesses eleitoreiros por trás de tais ações.
Para entender este fenômeno, busco analisar, em pesquisa de mestrado em andamento, a
cobertura jornalística de O Globo acerca das cotas raciais. Apesar de, na dissertação que venho
escrevendo, o recorte cronológico ser de 2003 a 2012, neste artigo limitar-me-ei à análise de
reportagens informativas do ano de 2003, já que não dispomos de espaço suficiente para uma discussão
mais ampla.
Em primeiro lugar, é impossível afirmar que determinadas noções do senso comum sejam
moldadas exclusivamente a partir da mediação dos meios de comunicação. Contudo, em uma sociedade
como a brasileira nesta virada de século, tampouco é possível ignorar a importância que eles adquirem,
principalmente quando falamos das organizações Globo. O jornal O Globo faz parte do maior
conglomerado de mídias do país, a maior empresa de comunicação brasileira no início do século XXI. A
extensão das organizações Globo abrange desde a mídia impressa, com revistas, jornais e até uma editora,
passando pelo rádio (AM e FM) e pela televisão, até o portal de notícias on-line mais conhecido do país.
Verifica-se, então, um fenômeno que os especialistas na área de comunicação social chamam de
propriedade cruzada.4 A abrangência de veículos comunicativos possuídos pela família Marinho faz com
que eles exerçam uma influência na formação de opiniões e visões de mundo que, apesar de não ser
possível de precisar e de não ser ilimitada, tampouco pode ser negligenciada ou minimizada.
Neste sentido, foi possível verificar uma possível correlação entre a visão que parte do senso
comum brasileiro tem das cotas raciais e a produção jornalística de O Globo no ano de 2003. Ao longo

3
Sobre o debate acerca das cotas raciais na imprensa brasileira ver: MOYA, Thays Santos. Ação Afirmativa e Raça no
Brasil: Uma análise do enquadramento midiático do debate político contemporâneo sobre a redefinição simbólica da nação.
2009. 199 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, 2009; BRAGA, Amanda Batista. A mídia impressa na promoção de discursos sobre políticas de
igualdade racial: o negro e a revista Raça. 2008. 113 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Linguística, Centro de Educação
e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008; CAMPOS, Luiz Augusto de Souza Carneiro
de. Enquadrando a Esfera Pública: a controvérsia das cotas raciais na imprensa. 2013. 276 f. Tese (Doutorado) - Curso de
Ciências Sociais, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013;
PEREIRA, Ilídio Medina. Debate público e opinião da imprensa sobre a política de cotas raciais na universidade pública
brasileira. 2011. 238 f. Tese (Doutorado) - Curso de Comunicação Social, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
4
Sobre este tema, ver: LIMA, Venício. Regulação das comunicações: História, poder e direitos. São Paulo: Paulus, 2011.

1719
deste ano, o jornal produziu 24 reportagens informativas sobre o tema, um número bastante considerável,
se levarmos em conta que era um tipo de política pública que ainda dava os seus primeiros passos. Em
apenas 3 delas, são destacadas as ações e debates promovidos pelo movimento negro. O jornal construiu
uma narrativa majoritariamente pautada através da ótica de membros do alto escalão do governo federal e
da alta burocracia das universidades públicas, em especial aquelas localizadas no estado do Rio de Janeiro
– muito provavelmente pelo fato de O Globo, apesar de ter circulação nacional, tem na maior parte do seu
público os leitores fluminenses.
Foi possível dividir a cobertura de O Globo em alguns subtemas. As vias de abordagem dividiram-
se em: 1) Experiências e debates de universidades do Rio de Janeiro, em especial a UERJ, pioneira no
sistema de cotas, e a UFRJ, maior universidade federal do país, que desde a adoção do sistema da UERJ
passou a debater internamente a possibilidade de adotar políticas de ação afirmativa; 2) Os debates e
propostas dos poderes executivo e legislativo, com destaque para a intenção do governo federal em
aprovar um projeto de lei de cotas para as universidades federais; 3) As decisões e debates do poder
judiciário, uma vez que houve uma judicialização do debate, acerca da constitucionalidade das cotas
raciais; 4)Estudos estatísticos sobre desigualdade racial; 5) As ações e debates do movimento negro,
protagonista desta história na produção acadêmica, contudo, coadjuvantes na cobertura de O Globo; 5) A
articulação das cotas no Brasil com as experiências dos EUA com ações afirmativas raciais 5; 6) Ações
afirmativas na iniciativa privada e 7) Tema secundário. Um melhor detalhamento das temáticas das
reportagens informativas de O Globo pode ser verificado na tabela abaixo:

Reportagens de O Globo sobre as cotas raciais:


D
vias de abordagem
e
Experiências e debates de acordo
universidades no Rio de Janeiro
com a
Debates e propostas do Executivo e do
4% 4% Legislativo perspect
8% 29% Decisões e debates do Poder Judiciário
iva
13% Estudos estatísticos sobre adotada
desigualdades raciais
aqui,
13% Ações e debates do movimento negro
17%
12% Articulação com experiências dos EUA
5
Uma série de editoriais de O Globo afirmavam que as cotas raciais seriam um modelo importado dos EUA, que teriam
uma história diferente da brasileira, o que invalidaria este tipo de política pública. As reportagens que constam do ano de
2003 ajudam a reforçar esta ideia. Ações afirmativas na iniciativa privada

Tema secundário
1720
Gráfico produzido pelo próprio autor.
Fonte: Edições de O Globo (2003), disponíveis em: acervo.oglobo.globo.com
encara-se que o jornalismo profissional, como aquele construído pelo jornal O Globo, tem uma
fundamental relevância no que diz respeito ao que Miquel Rodrigo Alsina chamou de “geração das
imagens da realidade coletiva”.6 Isso quer dizer que, ao contrário da autoimagem que boa parte dos jornais
(inclusive o veículo objeto deste estudo) busca difundir, os meios de comunicação – e, consequentemente,
os jornalistas – não são apenas transmissores desinteressados de qualquer tipo de informação, mas são
também agentes políticos que buscam condicionar o pensamento de um determinado público, seja através
de um determinado viés da notícia – o que nem sempre é tão evidente – ou por meio da seleção daquilo
que se quer que pense. Ou seja, é possível que os meios busquem moldar a forma de pensar de seu
público. Entretanto, como muitas vezes tal tentativa redunda num fracasso retumbante, busca-se
determinar sobre o que as pessoas deveriam pensar.
Portanto, compreende-se aqui que o jornalismo é capaz de produzir sentidos sociais que
remetem a uma série de interesses e conflitos que se inter-relacionam. Segundo Rodrigo Alsina, o
primeiro passo para que os jornais executem esta produção é o estabelecimento de uma ligação entre
aqueles que produzem as notícias e aqueles que as consomem. Então, para que esta ligação se
consolide, “tem de existir um convênio social em que se constate que os jornalistas estão preparados e
legitimados informar, para moldar a realidade do dia-a-dia”.7 O autor também ressalta que, durante o
século XX, a profissionalização da atividade jornalística proporcionou o surgimento de escolas de
formação especializadas e, por conseguinte, profissionais especializados, que pudessem fazer com que
os veículos de comunicação estabelecessem com seus leitores “um contrato pragmático fiduciário, que
tem a pretensão de que acreditemos que o que os meios de comunicação dizem é verdade, e, ao mesmo
tempo nos propõem que confiemos no discurso informativo desses meios”.8
Desta forma, a transformação do jornalismo em uma atividade profissional que diz respeito,
sobretudo, à produção das imagens da realidade coletiva fez com que os profissionais dos grandes
veículos de comunicação passassem a exercer a função de intelectuais, na concepção gramsciana do
termo. Segundo Gramsci, a distinção entre intelectuais e não intelectuais estaria não na capacidade
mental/cognitiva dos indivíduos9, mas sim nas funções organizativas e conectivas exercidas por eles. Ou
seja, se estamos de acordo com o autor, entendemos que “todos os homens são intelectuais, mas nem

6
RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia. Petrópolis, Vozes, 2009, p. 212.
7
Idem, p. 231.
8
Ibidem.
9
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 7. ed. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2014. 2 v. p. 18.

1721
todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”.10 Desta, forma, destaca-se aqui a importância
intelectual dos jornalistas como criadores da realidade social, uma vez que boa parte daquilo que os seres
humanos tomam conhecimento nas sociedades contemporâneas se dá através da mediação dos veículos de
comunicação – daí a importância das organizações Globo para a conformação desse debate sobre as cotas
raciais e também para vários outros da história política brasileira.11 Desta forma, os jornalistas são
intelectuais que contribuem para a conformação da hegemonia do próprio veículo em que atuam.
Ou seja, a relevância dos meios de comunicação não se restringe apenas a informar a seus leitores
– que muitas vezes, são seus próprios colegas jornalistas – acerca da verdade que eles aguardam. Eles
também possuem fundamental relevância no que diz respeito à construção de narrativas sobre
determinados eventos e processos que ocorrem na sociedade contemporânea. Nesse sentido, estou de
acordo com Sônia Meneses, que afirma:

em nossos dias, a mídia atua na elaboração tanto de acontecimentos emblemáticos, como


de um tipo especifico de conhecimento histórico a partir de narrativas que operam com
categorias temporais na fundação de sentidos históricos, destacando-se, especialmente, a
relação entre as três dimensões fundamentais: a mídia, a memória e a história.12

O processo explicado pela autora recebeu o nome de “Operação Midiográfica”. Este conceito
nos permite entender como os veículos midiáticos buscam não apenas relatar publicamente os eventos,
mas também estabelecer alguns deles como marcos emblemáticos para a vida em sociedade.13 Nesse
sentido, acredito que a construção da operação midiográfica de O Globo buscou consolidar tanto uma
história das ações afirmativas raciais quanto uma memória em relação às mesmas. Desta forma, me
distancio parcialmente da concepção de Marialva Barbosa14, que em artigo recente, defendeu que os
meios de comunicação buscariam mais um “lugar na história”, do que constituir propriamente um
“lugar de memória”, conceito desenvolvido pelo historiador francês Pierre Nora. 15 Na concepção que
adoto neste trabalho, apesar de concordar com ambos autores que História e memória se distinguem em
diversos aspectos, a dicotomia estabelecida por Barbosa não pareceu ser pertinente à analise realizada

10
Idem.
11
Sobre a relevância de O Globo nos processos políticos da História recente brasileira, ver: ARÊAS, João Braga. As
batalhas de O GLOBO: Ditadura Militar, Lula x Collor, Privatizações e a Vitória do PT em 2002. Curitiba: Prismas, 2015.
12
MENESES, Sônia. A operação midiográfica: da escritura do evento na cena pública à inscrição do acontecimento no
tempo. In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). História do tempo presente. Rio
de Janeiro: Editora Fgv, 2014. Cap. 12. p. 231-257, p. 231.
13
Idem, p. 234.
14
BARBOSA, Marialva. Meios de comunicação: lugar de memória ou na história? Contracampo, Niterói, v. 35, n. 01, pp.
07-26, abr./jul., 2016.
15
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28.

1722
nesta pesquisa, uma vez que, ao menos para O Globo, foi possível para o jornal tentar construir tanto
uma história das cotas raciais e também uma memória das ações afirmativas raciais que se confundiam
com as cotas para negros nas universidades públicas do Brasil.
As narrativas de O Globo sobre a temática das cotas raciais ao longo do ano de 2003 seguiram
uma tendência que já foi verificada por Miola em um estudo sobre a cobertura jornalística da imprensa
burguesa no Brasil sobre o processo que levou à criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). 16
Segundo a autora, a tendência é de construir uma narrativa que privilegia a perspectiva daqueles que
ocupam altas posições hierárquicas em uma estrutura institucional. Isso significa dizer que raramente as
reportagens jornalísticas explicitam a perspectiva do repórter em questão, mas buscam privilegiar aquela
de grupos com algum poder institucional, com destaque massivo para aqueles que ocupavam o aparelho
de Estado e as posições mais altas da burocracia do serviço público – no caso deste estudo, os reitores de
universidades.
Nas 24 reportagens informativas analisadas sobre as cotas em um período de um ano, é
praticamente impossível encontrar alguma matéria que não faça ao menos uma leve menção às intenções
de membros do aparelho de Estado brasileiro ou da alta burocracia das universidades em positivar este
tipo de política pública. Nesse sentido, as figuras que mais se destacaram no período foram as do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva além dos ministro da educação e da ministra da Secretária de
Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) a saber: Cristóvam Buarque e Matilde Ribeiro.
Além deles, destacavam-se os reitores de universidades públicas, em especial aquelas situadas no estado
do Rio de Janeiro, com destaque maior para Nilcea Freire, então reitora da UERJ, que já adotara sistema
de cotas.
A opção de O Globo por privilegiar estes atores nas reportagens informativas denota, na
perspectiva que aqui é adotada, uma intenção por parte do veículo, a partir de seus jornalistas, de construir
uma história das ações afirmativas na qual os seus principais protagonistas são membros do governo e
reitores de universidades. A narrativa do jornal, então, se distancia daquelas produzidas por boa parte dos
estudos acadêmicos sobre as cotas e demais ações afirmativas, que destacam a importância dos
movimentos sociais no processo de positivação desses tipos de política pública. Apenas uma parcela
inferior das reportagens do jornal destaca a atuação do movimento negro e sua contribuição para que o
Estado brasileiro democratizasse o acesso à educação superior para grupos histórica e socialmente
marginalizados. Além disso, é necessário lembrar que os estudantes do ensino médio, aqueles que seriam

16
MIOLA, Edna. Representações do jornalismo sobre a radiodifusão pública: o debate em torno da criação da Empresa
Brasil de Comunicação na imprensa. Revista Compolítica, n. 2, vol. 1, ed. set-out, ano 2011.

1723
diretamente afetados pela política pública aparecem apenas em duas reportagens. E em apenas uma delas,
uma estudante ingressa pelo sistema de cotas foi entrevistada. Percebemos, então, que o jornal tem uma
clara dificuldade de identificar nestes sujeitos uma atuação política relevante, ou seja, que caiba no espaço
do jornal.
Há se questionar os motivos pelos quais o jornal não privilegiou os estudantes potenciais
beneficiários das cotas – raciais ou não – ou mesmo aqueles que já havia lançado mão deste direito. Para
além da questão de construção da narrativa que buscava apagar ou minimizar estes atores dentro da
história das cotas, é necessário pensar sobre o público-alvo do jornal. O site da Infoglobo reúne
informações relevantes sobre os três jornais impressos que pertencem aos Marinho: Expresso, Extra! e O
Globo. Sobre este último, cabe destacar que é “líder absoluto nas classes A e B”. Segundo o próprio texto
do site, O Globo busca um público alvo “qualificado”.17
O que as análises econômicas centradas nas faixas de renda consideram como membros das classes
A e B são aqueles cujas rendas familiares somam mais de 15 salários mínimos e aqueles que possuem
renda familiar entre 5 e 15 salários mínimos, respectivamente. Em que pesem as diferenças internas entre
estes grupos ou até mesmo em cada grupo internamente, é possível afirmar que O Globo produz
jornalismo para membros da burguesia e das camadas da classe trabalhadora cujas faixas salariais são
especialmente mais elevadas. Este público difere bastante dos estudantes cotistas ou mesmo dos
potenciais beneficiários das cotas raciais, sociais ou de estudantes de escolas públicas.
Outro ponto importante sobre a produção jornalística diz respeito aos anunciantes do jornal.
Apesar de este não ter sido o ponto principal de nossa análise, foi possível verificar que uma parte
considerável dos anunciantes de O Globo são grupos de educação privados. É sempre difícil precisar qual
grau de intervenção os anunciantes do jornal possuem em um veículo de imprensa, uma vez que boa parte
dos rendimentos do jornal advém das receitas publicitárias. Desta forma, dificilmente uma empresa – no
caso, uma empresa de educação – anuncia em jornais que publicam notícias, textos, charges, etc que
possam contrariar seus interesses sociais. Desta forma, mesmo que não se tenha aqui a intenção de
pesquisar essa relação, não se pode deixar de lado que ela existe e tem certa influência na produção do
jornal. Talvez essa seja uma chave para entender a baixa presença de membros das camadas sociais mais
baixas do jornal, mas que precisa ser explorada em pesquisas futuras.
Outro silêncio que é praticamente impossível não notar são as questões relacionadas aos povos
indígenas. Eles não aparecem em nenhuma reportagem do ano de 2003, sendo totalmente negligenciados

17
INFOGLOBO. Sobre a Infoglobo. Sem data. Disponível em:
<https://www.infoglobo.com.br/Anuncie/institucional.aspx>. Acesso em: 04 out. 2017.

1724
pela narrativa do jornal. Se pensarmos que uma das facetas do racismo é a invisibilização, certamente ela
incidiu sobre os nativos da América em uma história que, diretamente, lhes dizia respeito.
Em síntese, podemos afirmar que a produção de reportagens de O Globo sobre a temática das cotas
raciais abordou temas variados, porém não aleatórios. Ela seguiu uma hierarquia de temáticas que se
sobrepunham umas às outras e que, de alguma forma, estava ligada aos interesses e visões de mundo que
o próprio jornal buscava propagar. Nesse sentido, sobressaem as perspectivas daqueles que ocupam altos
postos em cargos políticos ou posições de destaques nas universidades ou na sociedade em geral: o
presidente da república e seus respectivos ministros, parlamentares, ministros do STF, reitores de
universidades e professores universitários: na história das cotas construída por O Globo a partir de 24
reportagens informativas, estes são os principais mobilizadores desta política pública e não aqueles que
lutaram pela garantia do acesso ao ensino superior público.
Ao se selecionar estes como os principais agentes da história das cotas, O Globo enquadrou outros
sujeitos fundamentais para este processo histórico como pouco influentes, na verdade, mais como objetos
de uma política pública, que, aparentemente, é vertical. Esta narrativa dificulta que os leitores vejam as
cotas nas universidades como um direito, uma conquista de camadas subalternas da sociedade brasileira,
uma vez que a narrativa que aqui analisamos sugere uma aplicação das mesmas como se ela fosse pensada
a partir do Estado – à época, encabeçado pelo PT – e não dos movimentos sociais, como grande parte da
bibliografia acadêmica sobre o tema indica.
Assim, percebemos que, em alguma medida, a operação midiográfica de O Globo contribuiu para
que boa parte da sociedade brasileira visse nas cotas raciais uma proposta de política pública demagógica,
eleitoreira, que focava mais em garantir votos do que na melhoria do ensino público de base. Certamente,
não apenas as reportagens informativas de O Globo contribuíram para o fortalecimento desta visão. Vale
lembrar que a imprensa escrita não possui mais a abrangência de anos anteriores, haja vista que a televisão
aparece no início do século XXI como o principal meio de comunicação. Além disso, O Globo é um
jornal considerado caro, e que, portanto, não é lido pelas “massas”. Porém, mais uma vez, é preciso
lembrar que estamos falando do maior conglomerado de mídias do país, logo, aquilo que é escrito em O
Globo, além de ser mediado por seus leitores – que não raro, ocupam lugares sociais de prestígio que lhe
conferem um certo poder simbólico18 – para outras pessoas, pode também estar presente em revistas
semanais, na televisão, no rádio, na internet, etc.

18
Segundo Pierre Bourdieu, “Os símbolos são os instrumentos por excelência da “integração social”: enquanto instrumentos
de conhecimento e de comunicação (cf. a análise durkheimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do

1725
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MEROLA, Ediane. Universidades do Rio e da Bahia são alvo de ações: STF avalia se é constitucional
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PARAGUASSÚ, Lisandra. Universidade pública deverá ter cota para negros: Comissão interministerial
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1728
VASCONCELOS, Adriana; CAETANO, Valderez. Lula cria secretaria para combater o racismo: Nova
estrutura também terá status de ministério e será comandada por assistente social que trabalhou na
campanha. O Globo. Rio de Janeiro, p. 13-13. 22 mar. 2003.

1729
O fim do silêncio parlamentar: Fatores pertinentes para a discussão da escravidão na década
de 1860

Matheus Monteiro Pedrosa1

Resumo:O artigo propõe refletir sobre os principais elementos que nortearam os debates acerca da
escravidão: os conteúdos e o percurso dos projetos emancipacionistas existentes na década de 1850,
anteriormente à Lei do Ventre Livre. Assim, importa analisar a conjuntura de elementos que foram
importantes para que o silêncio fosse rompido no parlamento com relação à questão servil nos anos
de 1860: os projetos emancipacionistas de 1850, os grupos abolicionistas, a imprensa e a guerra
contra o Paraguai (1865-1870). Fatores que teve seu peso para os debates sobre o projeto do ventre
livre.
Palavras-chave: Escravidão; Lei do Ventre Livre, Guerra contra o Paraguai.
Abstract:The article proposes to reflect about the main elements which guided the debates about
slavery: the contents and the course of existing emancipationist projects in the 1850s, previously to
the Free Womb Law. So, it is important to analyze the context of elements that were relevant for the
silence that was broken in the parliament regarding the slavish question in the 1860s: the
emancipationist projects of 1850, the abolitionist groups, the press and the war against Paraguay
(1865-1870). Factors that had their significance in the debates about the project of the Free Womb.

Keywords: Slavery; Law of the Free Womb; War against Paraguay.

Introdução:

A Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871 inaugurou o processo gradual de abolição


da escravidão no Brasil. Embora a lei tenha sido interpretada por muitos estudiosos como um passo
tímido na direção do fim da escravidão no Brasil, representou uma etapa importante para o retorno
da questão do elemento servil no parlamento, mesmo que de forma cautelosa. O retorno do assunto
serviu para a população letrada reconsiderar o peso da escravidão na sociedade evidenciado na
mobilização que o debate causou nos jornais, na criação e proliferação de vários grupos
abolicionistas, nas ações simbólicas como cerimônias para libertação de escravos e no surgimento
de lobbys abolicionistas. O desmonte do escravismo envolvia mudanças na estrutura econômica e
na hierarquia social. Como veremos, o escravo era uma engrenagem para o funcionamento das
cidades e do campo, um símbolo de riqueza e status, mas também, um problema para os dirigentes

1
Mestrando em História social no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-
Faculdade de Formação de Professores, UERJ-FFP. Orientador: Cláudio Antonio Santos Monteiro. Email:
Matheuspedrosa91@gmail.com

1730
imperiais, na medida em que, a persistência da escravidão brasileira também desafiava o
conhecimento e as crenças que norteavam os princípios do século.
Dessa forma, no presente artigo reflito sobre elementos importantes para entender o período
conturbado dos anos de 1860 no Brasil. É preciso analisar a década de 1850, os fatores precipitantes
para entender o debate no parlamento nos anos 1860 sobre o ventre livre. Assim o artigo vai trazer
fatores pertinentes que surgem na década de 1850 como o surgimento de projetos
emancipacionistas, assim como de grupos abolicionistas, a utilização da imprensa e o conflito no
prata.
A escravidão sempre manteve uma relação ambígua no império, não lhes conferiu estatuto
de cidadão, mas não formalizou sua situação de mercadoria. Mesmo com o temor de revoltas e as
formas de resistência escrava, não se pensava em erigir leis que pudessem decretar o fim da
instituição escrava ou trocar a forma de mão de obra, os motivos mais visíveis para tal situação
sendo a questão da manutenção do status dos senhores, o problema do valor econômico da mão de
obra escrava e todos os inconvenientes decorrentes no caso de sua substituição, e a própria
construção do Estado Imperial cujas bases repousam também sobre a escravidão.
O império manteve uma relação ambígua com os escravos, não lhes conferiu estatuto de
cidadão, mas não formalizou sua situação de mercadoria. A escravidão não é assunto na
Constituição de 1824, a liberdade ficava restrita à “boa sociedade”, resguardada como cerne dos
direitos e atribuições do estamento senhorial.2
Como se sabe, a partir de 1840, após a experiência da regência houve a ascensão da política
centralizadora levada pelos saquaremas. Os saquaremas se apresentavam como os propositores de
um império centralizador e dotado de um poder executivo forte para preservar a ordem e a
reprodução da sociedade dos três mundos, ou seja, os brancos, principalmente os que possuíam uma
boa posição, a “boa sociedade”, a população pobre, mestiça ou liberta, e, finalmente, os escravos.3
Os ideais de “manutenção da ordem e de expansão da civilização” foram legitimados como
forma de unir diversos interesses políticos e econômicos da classe senhorial em torno da Coroa4. O
primeiro dos ideais garantia a escravidão como peça para sobrevivência do Império, o segundo
valorizava as formas do comportamento europeu. Como afirma Ilmar de Mattos5, a consolidação da
instituição monárquica estava ligada a um processo no qual os setores dominantes e detentores de

2
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil- Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002,
p. 60.
3
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 192.
4
MUAZE, Mariana. Novas considerações sobre o Vale do Paraíba e a dinâmica imperial. In: MUAZE, Mariana;
SALLES, Ricardo. (org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da segunda escravidão. Rio de
Janeiro: 7 letras, 2015. p. 66.
5
Ibidem, p. 66.

1731
monopólios construíram sua identidade como classe social através da consolidação monárquica e a
conservação dos mundos distintos que compunham a sociedade. Os fundadores do Império teriam
os olhos na Europa e os pés na América, pois buscavam criar um Império soberano semelhante aos
estados nacionais europeus. Porém sua consolidação e esforço de acomodação da sociedade
escravista coincidiram com a precipitação das ações britânicas que buscavam acabar com o tráfico
negreiro Atlântico ameaçando as bases do jovem Império.
Dessa forma a escravidão era uma das fundações que seguravam o Império, os senhores
escravocratas estiveram direta ou indiretamente, ligados à política imperial, muitos tinham
conexões com importantes nomes da Corte como forma de garantir os interesses cafeeiros. Esses
senhores puderam exercer o controle político e econômico por quase todo o século XIX, muitos
membros destas famílias da classe senhorial detinham postos importantes dentro do Império, eles
eram, por exemplo, vereadores, deputados, juízes, membros da Guarda Nacional entre outros 6 .
Segundo Alonso7, os conservadores se consolidaram com uma reforma constitucional no início dos
anos 1840, conhecida de “reação monárquica”. Os conservadores “restauraram” as instituições que
o ato adicional de 1834 teria corrompido. Dessa forma criou-se uma estrutura político-
administrativa centralizada como o Conselho de Estado e o Poder Moderador.
Interessa ressaltar que essa conjuntura pró-escravista começou a entrar em crise na segunda
metade da década de 1860, no contexto da guerra contra o Paraguai, culminando na Lei do Ventre
Livre de 1871, o período que para muitos contemporâneos, como Joaquim Nabuco, inaugurou o
tempo de crises do Império. Contudo, na década de 1850 a conjuntura pró-escravista encontrou
limites, alguns intransponíveis, como foi o conflito com a Coroa inglesa na questão do tráfico
Atlântico.
Em 4 de setembro de 1850 se tornou realidade o fim do tráfico negreiro no Brasil, o artigo
primeiro definia que as embarcações que tivessem equipados para o tráfico de escravos, seriam
passíveis de apreensão pelas autoridades. A importação de escravos no Brasil foi declarada pirataria
e os “autores” do crime eram passíveis de pesadas punições8.
Contudo, após a Lei de 1850, pouco ou quase nada foi feito no Brasil em relação à
escravidão. O silêncio dos senhores, dos políticos e estadistas concorre igualmente com o silêncio
da maior parte da imprensa. O tema escravidão saiu da pauta política do parlamento, e muito
embora o debate não tenha desaparecido por completo das páginas do cotidiano da Corte, as
tentativas de implementação de projetos abolicionistas foram logo rechaçadas. Na década de 1850,

6
Ibidem, p. 78.
7
ALONSO, op. cit., p. 66.
8
BETHEL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de
escravos, 1807-1869. Trad. Luís A. P. Souto Maior. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 385.

1732
alguns homens que ocupavam cadeiras no parlamento tentaram advogar a favor dos escravos, mas
suas propostas não foram bem recebidas.
No calor dos debates relativos à lei contra o tráfico, em 1850, o deputado cearense Silva
Guimarães9 registrou, nas sessões da Câmara dos Deputados de 22 de março de 1850, 2 de agosto
de 1850 e 4 de junho de 1852, três propostas cuja função principal era a liberdade dos nascituros.
Na sessão de 22 de março de 1850, o deputado Guimarães propôs o primeiro projeto que tinha um
total de três artigos (em tempo, respeitou-se a ortografia da época):

“Art.1º- Todos os nascidos de ventre escravo no Brasil serão considerados livres da


data da presente lei em diante.
Art.2º- Os senhores de escravos ficão obrigados a libertar os mesmo escravos, toda
a vez que estes pela sua alforria derem uma quantia igual á aquella por que forão
comprados, doados ou havidos por qualquer outro titulo.
Art.3º- Os senhores de escravos, que forem casados, não poderão vender ou alinear
por qualquer forma um dos conjuges sem o outro sob pena de nullidade da
alienação”.10

Podemos considerar esse projeto como o primeiro a tratar a abolição da escravatura a partir
da perspectiva que prevaleceria somente em 1871, que foi a liberdade do ventre. Contudo, como
afirma Conrad11, naquele contexto a proposta não foi nem sequer debatida por ser considerada, pelo
parlamento, como inadequada.
Em nova ação solitária, em 2 de agosto de 1850, Silva Guimarães tentou mais uma vez
provocar o debate. Dessa vez buscou legislar sobre a prática da alforria, solicitou reflexões sobre o
problema da separação dos escravos casados e, com maior ênfase, tentou encaminhar o debate a
respeito do ventre livre:

“Art.1º- São livres os que no Imperio nascerem de ventre escravo, ou mesmo,


nascidos em outra parte que, para elle vierem, da data da presente lei em diante.

9
Pedro Pereira da Silva Guimarães nasceu em Aracaty em 29 de Junho de 1814 e faleceu em 13 de abril de 1876,
bacharel em direito pela academia de Olinda, foi jornalista, professor, promotor público de Fortaleza, juiz municipal e
de orphãos de Fortaleza e deputado pelo Ceará. O deputado Silva Guimarães é lembrado como o precursor da Lei do
Ventre Livre, pelos seus projetos na década de 1850. Os cearenses através do Instituto do Ceará reclamavam as glórias
pela lei de 1871, demonstrando que bem antes do movimento abolicionista do Ceará (1881-1884), a província já tinha
uma importância na questão escrava como pode ser visto no seguinte artigo: VASCONCELLOS, Barão de. Pedro
Pereira da Silva Guimarães – Documentos históricos. Revista trimestral do Instituto do Ceará, Tomo 20º, Número 20º,
p. 187-219. 1906. Sobre o movimento abolicionista do Ceará, ver: GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. 3º
Edição, Fortaleza/Ceará: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984. ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento
abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das letras, 2015. SILVA, Pedro A. de Oliveira. História da
escravidão no Ceará: das origens à extinção. 2ª Edição, Fortaleza: Instituto do Ceará, 2011.
10
Sessão da Câmara dos Deputados no dia 22 de março de 1850. ESCRAVIDÃO NO BRASIL. Projetos de lei sobre o
elemento servil e a abolição total da escravidão. 1831-1872. IHGB, DL 374.3.
11
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978, p. 61.

1733
Art.2º- Todo o escravo que der em remissão do seu captiveiro uma somma igual
ao preço que elle tiver custado a seu senhor, ou este o possua por titulo de doação,
herança, troca ou compra, será obrigado a passar carta de liberdade, sob pena do
art. 179 do código criminal.
Art.3º- Nenhum escravo casado poderá ser vendido ou libertado sem que o seja
conjunctamente a outro consorte, sob pena de nullidade da venda.
Art.4º- O governo fica autorisado a crear os estabelecimentos precisos na corte e
nas provincias, para onde se recolhão os recem nascidos de que trata o art. 1º, e que
os possuídores dos mesmos não quizerem criar, e proverá da maneira mais
conveniente sobre sua sorte futura.
Art.5º- O governo é igualmente autorisado a expedir os regulamentos precisos aos
parochos e mais autoridades para a boa execução desta lei.
Art.6º- Ficão revogadas as leis e disposições em contrario”.12

Como na outra ocasião o novo projeto foi novamente descartado. Com efeito, em 1850,
Silva Guimarães foi o primeiro parlamentar a advogar pela abolição na Assembleia Geral dos
Deputados. Entretanto, uma pequena mudança, nessa última sessão de 2 de agosto, quatro
deputados da bancada do Nordeste - respectivamente os deputados Moraes Sarmento13, Fernandes
da Silveira14, Venancio Rezende15 e Paula Baptista16 - votaram a favor do avanço do projeto para o
debate. Ou seja, no calor do conflito entre o Brasil e a Inglaterra que resultou na Lei Eusébio de
Queiroz de 4 de setembro de 1850, Silva Guimarães havia cooptado apenas quatro deputados para
sua causa, todos do Nordeste. Mesmo sendo difícil entender as motivações deles, podemos supor
que o apoio dos deputados nordestinos ao projeto estivesse relacionado ao enfraquecimento dos
senhores escravocratas da região em momento de forte presença da economia do centro-sul do
Império. Da mesma forma, as pressões inglesas poderiam igualmente ter interessado a antigos
inimigos da centralização imperial, como foi o caso do deputado Venancio Rezende, que participou
das revoluções de 1817 e 1824, em Pernambuco.
Em 1852, o deputado propunha um projeto com oito artigos, todos relativos à liberdade
escrava, inclusive do ventre, sempre presente. Com efeito, esse projeto de 1852, trata-se de apenas
uma atualização dos primeiros de 1850, entretanto não mais tão “radical”, pois nesse último projeto
seu artigo terceiro definia que os senhores que cuidassem dos recém-nascidos, até os sete anos,
teriam a oportunidade de ficar com eles até quatorze anos de idade, dando ao mesmo toda a
assistência necessária e utilizando a sua mão de obra.
“1º - São livres da data da presente lei em diante, todos os que no Brazil nascerem
de ventre escravo.

12
Anais da Câmara dos Deputados. Sessão do dia 2 de agosto de 1850, p. 384.
13
Casimiro José de Moraes Sarmento, bacharel em direito e deputado pela província do Rio Grande do Norte.
14
Antonio Fernandes da Silveira foi monsenhor da capela imperial e deputado pelas províncias do Sergipe e Piauí.
15
Venancio Henrique de Rezende foi cônego honorário da capela imperial e deputado pela província de Pernambuco.
Rezende foi um republicano como tal tomou parte nas revoluções de 1817 e 1824 em Pernambuco.
16
Francisco de Paula Baptista, bacharel em direito pela faculdade de Olinda, foi deputado provincial e da Assembleia
Geral por Pernambuco.

1734
2º- São igualmente considerados livres os que nascidos em outra parte vierem para
o Brazil da mesma data em diante.
3º - Todo aquelle que criar desde o nascimento até a idade de 7 anos qualquer dos
nascidos do art 1º, o terá por outro tanto tempo para o servir, e só então aos 14
annos, ficará emancipado para bem seguir a vida que lhe parecer.”
Art.4º- Todo o escravo que der em remissão de seu captiveiro uma somma igual ao
preço que elle tiver custado a seu senhor, ou este o houvesse por titulo oneroso ou
gratuito, será o senhor obrigado a passar carta de liberdade, sob pena do art. 139 do
codigo criminal.
Art.5º - Não havendo preço estipulado, o valor do escravo para ser alforriado será
designado por arbitros, um dos quaes será o promotor publico da comarca
respectiva.
Art.6º- Nenhum escravo casado será igualmente á mesma pessoa o outro consorte.
Art.7º- O governo fica autorisado a dar os regulamentos preciosos para a boa
execução da presente lei, e igualmente autorisado a crear os estabelecimentos que
forem necessarios para a criação dos que nascidos da data desta lei em diante forem
abandonados pelos senhores dos escravos.
Art.8º- Ficão revogadas as leis e disposições em contrario”.17

Como se observa nos primeiros três artigos, o texto do projeto é basicamente o mesmo de
dois anos antes e as opiniões sobre ele continuaram a mesma, demonstrando o interesse por manter
a escravidão, nem mesmo o artigo terceiro foi visto com bons olhos.
Outro aspecto interessante dessa sessão de 1852 que expõem outro ângulo sobre os cuidados
em torno dos debates sobre a escravidão diz respeito ao expediente dos deputados Fernandes
Chaves18 e Santos de Almeida19, que obstruíram as tentativas de Silva Guimarães de esclarecer a
necessidade do projeto e defenderam uma necessidade: a de que, no caso de o projeto ser debatido
na Câmara, que este debate fosse, ao menos, em uma sessão secreta, evitando-se assim a
publicidade de uma temática inoportuna à ordem brasileira, como é possível verificar na seguinte
passagem:

“Sr. Fernandes Chaves: São matérias melindrosas que sempre têm sido tratadas em
sessão secreta.
Sr. Silva Guimarães: Guardarei as reservas necessarias, não direi aquillo que não
convém dizer em publico, e sómente o que pouco mais ou menos se tem publicado
pelos jornaes.
Sr. Visconde de Baependy: Desgraçadamente”20.

Face às vivas demandas do deputado Fernandes Chaves e na esperança de evitar novas


obstruções ao seu projeto, Guimarães, por fim, afirmou aos seus homólogos que não falaria nada
naquela sessão, além do que já se tinha publicado em jornais com relação à escravidão. Como se
observa, o silêncio parlamentar no que diz respeito ao problema da escravidão não era apenas

17
Anais da Câmara dos Deputados. Sessão do dia 4 de junho de 1852, p. 169.
18
Pedro Rodrigues Fernandes Chaves, barão de Guarahim era bacharel em direito pela faculdade de São Paulo. Foi
deputado e senador pela província do Rio Grande do Sul, além de presidir a província da Paraíba.
19
José Thomaz dos Santos e Almeida foi magistrado e deputado pela província do Maranhão.
20
Anais da Câmara dos Deputados. Sessão do dia 4 de junho de 1852, p. 168.

1735
expressão de uma Câmara de maioria escravocrata, mas também resultado de estratégias de
sobrevivência e luta.
Nessa perspectiva, a profunda inércia da Câmara às demandas abolicionistas do deputado
Pedro Pereira da Silva Guimarães tratou-se de uma estratégia de resistência política da parte da
maioria dos parlamentares ao “projeto do ventre escravo”.
Ainda no ambiente da Câmara, outro momento no qual a escravidão retorna ao debate se
produziu em 1854, através do deputado João Mauricio Wanderley que propunha o debate sobre a
proibição do comércio e do transporte de escravos interprovincial, e sobre o destino dos escravos
idosos e sem mais condição de qualquer sorte de trabalho. Assim, em 11 de agosto de 1854, o
deputado apresentou dois projetos. Sendo que no primeiro foi tratada a proibição tráfico interno:

“Art 1º- Fica prohibido, sob penas da lei n. 581 de 4 de setembro de 1850, o
commercio e transporte de escravos de umas para outras provincias do império.
Exceptuão-se os que viajarem em companhia dos respectivos senhores, em número
marcado em regulamento do governo.
Art 2º- Revogão-se as disposições em contrario”.21

Com relação à sorte dos cativos considerados improdutivos (como os que dependiam de
esmolas e de abrigos, por exemplo), a ideia presente no projeto de João Mauricio Wanderley foi a
de tentar facilitar a sua libertação levando em consideração a parte que caberia aos proprietários no
ato dessa libertação:
“Art 1º- A alforria concedida aos escravos, que não puderem alimentar-se pelo
producto de seu trabalho em consequencia de velhice, doença prolongada, ou
incurável, não isenta os senhores da obrigação de alimental-os, salvo falta absoluta
de meios.
Art 2º- Os escravos que mendigarem com consentimento dos senhores serão por
esse facto considerados livres, inda que não estejão no caso do artigo antecedente.
Art 3º- Os juizes de orphãos compellirão os senhores de que trata o art 1º a
alimentarem os manumettidos, ou a lhes concederem uma pensão alimentícia, se
forem recolhidos aos estabelecimentos de caridade; e passarão carta aos escravos
de que trata o art 2º.
Art 4º - Ficão revogadas quaesquer disposições em contrario”.22

Com efeito, nessa ocasião, a sistemática oposição da Câmara ao debate foi rompida. Como
se sabe, após a extinção do tráfico o movimento de escravos entre o Norte e o Sul criou incertezas e
despertou o interesse dos senhores do Norte quanto ao futuro da mão de obra escrava nessa região.
Assim, ainda na primeira metade da década de 1850, a questão chegou à Câmara e a proibição do
tráfico interno de escravos passou a ser uma reivindicação dos senhores do norte, que mais uma vez
rompiam com o silêncio ou “a política da inércia”, que prevaleceu com relação aos projetos do

21
Anais da Câmara dos Deputados. Sessão do dia 11 de agosto de 1854, p. 124.
22
Anais da Câmara dos Deputados. Sessão do dia 11 de agosto de 1854, p. 124.

1736
Ventre Livre propostos por Silva Guimarães. O projeto do deputado João Mauricio Wanderley foi
debatido seriamente em algumas sessões23.
Entretanto, destino diferente teve o projeto feito por Wanderley a respeito da sorte dos
escravos desvalidos. Com efeito, dos projetos apresentados por Wanderley interessaram aos
parlamentares somente aqueles articulados diretamente ao fim do tráfico interno. Como se observa,
na primeira metade dos anos 1850, a política que prevaleceu na Câmara com relação ao problema
da escravidão foi a de se procurar conciliar a continuidade da escravidão com a realidade do fim do
tráfico imposto pelos ingleses. Nesse sentido, ao longo dos anos 1850, os parlamentares
sistematicamente se recusaram a se debruçar sobre qualquer tema relativo à escravidão que não
estivesse relacionado ao mercado ou à segurança dos seus negócios. Por esse lado, tanto os projetos
do ventre, de Silva Guimarães, como parte do projeto do deputado Wanderley, sobre a sorte dos
escravos “improdutivos”, tiveram o mesmo destino no interior do parlamento: o silêncio.
Entretanto, fora das “seções secretas” da Câmara do início dos anos 1850, foi nos círculos
diplomáticos e nos periódicos, nacionais e internacionais, que a questão da escravidão passou à
circular, nas duas margens do Atlântico, capitaneado pelos interesses liberais e civilizatórios
ingleses e franceses.
Críticos à política belicosa dos anos 1850 praticada pelos ingleses na questão do tráfico
brasileiro, mas ao mesmo tempo, reconhecedores da necessidade de se por fim à escravidão no
Brasil, a militância francesa pela abolição da escravidão no Brasil foi pautada, em grande parte, na
política do convencimento moral e intelectual dos brasileiros.
Ao passo que a Inglaterra fazia a política da canhoneira e do conflito diplomático, os
franceses (por falta de dispositivos legais que legitimassem uma pressão mais intensa, como a dos
ingleses) praticaram a “política da ilustração”, ou seja, através do convencimento moral e
intelectual. Os franceses usaram a estratégia da “aproximação cultural”, na época, sendo bastante
comum na França a associação entre, de um lado, o desenvolvimento do fluxo comercial, e de outro
lado, a aproximação cultural entre as partes em contato, em outras palavras, na ótica francesa,
comércio também é cultura.
Nessa perspectiva, uma das grandes ferramentas à mão dos franceses foi a célebre Revue des
Deux Mondes, que, a partir dos anos 1850, teve o Brasil, em particular, e as jovens Repúblicas
Platinas, no geral, como objeto de reflexões, análises e previsões, gerando, por isso mesmo, uma
periódica publicidade sobre a região. O periódico francês teve um papel bastante importante quanto
à produção de análises, de previsões e divulgação de temas concernentes aos jovens Estados

23
Exemplo são as sessões na Câmara dos Deputados nos dias 22, 25, 30 de agosto e 1 de setembro de 1854 que
discutiram o tema.

1737
independentes que faziam fronteira na região platina, gerando uma intensa publicidade periódica
sobre as inúmeras necessidades dessa região no que diz respeito à dependência dessas novas
unidades nacionais do capital, da indústria, da cultura e dos braços europeus.
Observamos assim que na década de 1850 os parlamentares em sua maioria não tinham o
menor interesse em retirar direitos dos senhores, tirando raras exceções como dos projetos
apresentados até aqui, poucos viam a necessidade de mudar o que levou ao descrédito dos projetos.
Mas se existiam poucas vozes favoráveis a discutir a questão servil, no parlamento, fora dele
apareceram sociedades abolicionistas, no Rio de Janeiro, em 1850, tínhamos a Sociedade contra o
Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização dos Índios que mantinha uma relação com a
British and Foreign Anti- Slavery Society.24 Em 1857, também nasceu no dia do aniversário da
independência, a sociedade Ypiranga. Outro polo abolicionista estava na Bahia com a fundação da
Sociedade Libertadora 2 de julho, organizada em 1850 por alunos da Faculdade de Medicina, tendo
entre seus membros, Jequitinhonha.25
O Império, na década de 1850, consolidava-se em larga medida baseado na persistência e
defesa do escravismo nacional, e, diante dessa persistência, o problema da escravidão não era mais
nacional, dos dirigentes e da sociedade brasileira, mas também, de órbita internacional, como as
pressões dos canhões ingleses sobre a costa brasileira. Em todo caso, o fim do tráfico brasileiro
surtiu um efeito positivo ao Brasil, ao menos no plano simbólico, na medida em que, na perspectiva
de muitos observadores internacionais, a percepção foi de que o Império do Brasil entrava em uma
nova etapa, na qual, os benefícios do progresso e da civilização seria uma questão de tempo.
Seja como for, tais perspectivas e previsões, foi mais um estímulo aos dirigentes imperiais,
sob a batuta do Imperador e do seu Conselho de Estado, buscar um lugar entre as “nações
civilizadas”. Nesse sentido o projeto imperial dizia a respeito a um espaço nacional, superando a
herança colonial a partir da preservação da unidade territorial da América portuguesa. Mas o projeto
imperial visava também uma valorização cultural e ideológica, marcando a grandeza territorial
brasileira, garantindo dessa forma seus interesses no contexto internacional.26
Por esse ângulo, o processo de consolidação das instituições imperiais no Brasil sempre
esteve relacionado aos movimentos e avanços das Repúblicas platinas, o sucesso ou não na
obtenção dos braços e do capital europeu representando mais um elemento de disputas entre os
países da região. Desse modo, interessa destacar agora que, por volta dos anos 1850-1860, zelar por

24
ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das
letras, 2015, p. 101.
25
Francisco Gê Acaiaba de Montesuma, visconde de Jequitinhonha, bacharel em direito pela Universidade de Coimbra.
Foi advogado, jurista e político. Foi fundador e presidente honorário do instituto da ordem dos advogados brasileiros.
26
SALLES, Ricardo. A Segunda Escravidão. Revista Tempo, Rio de Janeiro, v.19, n. 35, p. 249-254, jul – Dez. 2013, p.
70.

1738
uma boa imagem no exterior, assim como, manter e, se possível, estreitar as relações com a Europa
foi uma meta dos jovens Estados em questão.
No Brasil buscou-se assim, entre outras coisas, se construir uma imagem ou uma identidade
brasileira em oposição às formas republicanas de governo na região. Nesse ambiente, o conceito de
“nação civilizada” se identifica com a representação de alguns ideais como o de riqueza, de
desenvolvimento industrial, de governo representativo, de liberdade, de cultura, de educação e
administração eficiente. 27 Como ideais, tais modelos e representações correspondem, em última
análise, a uma garantia de sucesso futuro do Brasil.
No quesito de representação o imperador sempre buscou demonstrar uma imagem
grandiosa, no plano externo, buscou introduzir o Brasil no círculo das monarquias europeias, para
isso o plano simbólico foi essencial, com a ajuda de mecenas e de instituições, como por exemplo, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Como se sabe, o IHGB criado, em 1838, foi um
projeto nacional de reconhecimento e desenvolvimento da civilização brasileira. O IHGB forneceu
ao Império uma história, enaltecendo-se os indígenas e a população local livre como forma de
substituir progressivamente a mão de obra escrava, vista como um dos motivos de atraso do país.28
Importa ainda ressaltar que, além das fronteiras nacionais, foi interesse do IHGB manter relações
estreitas com outros institutos do gênero, especialmente na França, importantes para o projeto de se
representar o país no exterior através dos seus pontos positivos. Os contatos entre as duas
instituições estendiam-se ainda à troca de publicações e correspondência e à abertura de espaço na
revista do instituto parisiense para tratamento de temas e veiculação de notícias relativas ao Brasil.29
Entretanto, a escravidão manchava a imagem do Brasil no exterior e, em um contexto
europeu de rápidas transformações tecnológicas e de prosperidade e proliferação dos impressos, a
circulação no exterior da imagem do Império escravocrata progressivamente se torna uma
preocupação, sobretudo, após a segunda metade dos anos 1860, quando, aos problemas da
escravidão expostos pela pressão inglesa na luta contra o tráfico, vieram se somar os problemas que
impunha a guerra do Império contra a República do Paraguai.
No plano da política externa do Império entre as décadas de 1850 e 1860 pautou-se,
principalmente, nos problemas concernentes à Inglaterra e seus desdobramentos na questão da
interdição do tráfico internacional de escravos, e, em segundo lugar, nas relações do Império com os
Estados independentes da região platina. Em relação à escravidão, como se sabe, a resposta foi

27
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política
imperial. 8º Ed. RJ: Civilização Brasileira, 2013, p. 365.
28
GUIMARÃES, Manoel Luís Lima Salgado. Nação e Civilização nos trópicos: o instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº 1, 1988, p. 22.
29
Ibidem, p. 11.

1739
manter-se na defensiva face às pressões inglesas, diferentemente, na região platina, buscou-se uma
política de afirmação militar no sentido de garantir a hegemonia do Brasil.30 Entretanto, a política
do governo imperial em ficar na defensiva na questão sobre a escravidão mudará a partir de 1866
com o revés em Curupaiti na Guerra contra o Paraguai, quando o Brasil reconhece a fraqueza de
suas forças face às forças paraguaias e entra na pauta de discussão do Conselho de Estado a
necessidade da utilização dos escravos no conflito, ao passo que algumas mudanças importantes
foram operadas no que diz respeito à continuidade da escravidão no Brasil.
Dessa forma, na reunião no Conselho de Estado de 5 de novembro de 1866 os conselheiros
foram consultados sobre a proposta do gabinete Zacarias de Góes 31 para o envio de escravos
libertos para o conflito. Na ocasião os conselheiros foram a favor em sua maioria, mas com várias
ressalvas. O decreto foi criado um dia depois, em 6 de novembro de 1866, mas chamou a atenção
no debate os conselheiros que viam a ida de escravos para guerra como um passo para abolição.
Exemplo é o conselheiro Itaboraí 32 , que considerava a utilização de escravos para o auxilio na
guerra como assinar o papel de país impotente frente ao mundo civilizado, além de abrir uma porta
para a emancipação, pois com se justificaria a manutenção da escravidão após sua utilização na
defesa dos direitos do homem e de soberania Imperial, ou seja, o governo ficaria devendo a ajuda
dos escravos, mesmo dando a liberdade para os que combatessem no conflito.
Paralelamente, a crítica à escravidão se tornava mais intensa, a condenação moral
proveniente do exterior muitas vezes ecoando no Brasil. Esse mal-estar cresceu na década de 1860
por causa de acontecimentos internacionais que tinham grande reflexo no Brasil, entre eles: a
questão Christie, que deu continuidade ao conflito entre ingleses e brasileiros em torno da
escravidão, da mesma forma, pesando sobre o Império, o apoio equivocado a União frente aos
confederados na Guerra Civil Americana; particularmente, outro desacerto da política internacional
do Império foi o reconhecimento do Brasil ao efêmero Império de Maximiliano, no México, fato
não tolerado pelos Estados Unidos.33 Ou seja, o Brasil apoiou apenas lados derrotados o que causou
um mal-estar do ponto de vista da sua política externa, além disso, o resultado do conflito nos
Estados Unidos com a aprovação da emenda constitucional que abolia a escravidão sem

30
SALLES, op. cit., p. 71.
31
Zacarias de Góes e Vasconcellos formou-se em direito pela Academia de Olinda, foi professor, senador, conselheiro
do estado.
32
Joaquim José Rodrigues Torres, Visconde de Itaboraí formou-se em matemática pela universidade de Coimbra. Foi
deputado, senador e conselheiro. Presidiu e organizou como ministro da fazenda os gabinetes de 14 de julho de 1853 e
no de 16 de julho de 1868.
33
SALLES, Ricardo. As águas do Niagara, 1871: crise da escravidão e o caso saquarema. In: SALLES, Ricardo;
GRIMBERG, Keila. Brasil Imperial. V. III, RJ: 2010. p. 64.

1740
indenização alterou, definitivamente, as expectativas em relação ao futuro da instituição no
hemisfério.
As escolhas feitas pelo Imperador e sua elite política no cenário internacional foram
equivocadas e contrárias, particularmente, aos ideais liberais do século, expressos no continente
Americano pelos Estados Unidos da América e, na Europa, pela Grã-Bretanha, países que vinham
manifestando, se não, liderando (no caso da Inglaterra) o abolicionismo em todas as partes do
Ocidente, a etapa das ações dos ingleses com relação ao Brasil mais uma vez indicando a todos que
o tempo da escravidão parecia ter passado em todas as partes do Atlântico.
As ideias em movimento contra a persistência da escravidão afirmavam-se na imprensa
tanto nacional como internacional, exemplo a Revue des Deux Mondes que durante o conflito
publicou alguns artigos situando os acontecimentos na região platina, além de críticas a escravidão
no Brasil. Dessa forma, considero pertinentes os acontecimentos dos anos 50 e início dos anos 60:
como os projetos emancipacionistas, o surgimento de grupos abolicionistas, as críticas da imprensa
a escravidão, além da guerra contra o Paraguai que deu origem a um antagonismo ao levar recém-
libertos ao front. Os conjuntos de fatores internos e externos, como a resistência escrava e a guerra,
foram importantes para o Brasil quebrar o silêncio no parlamento no final da década de 1860. Não
era de interesse de parlamentares e do próprio Imperador ser visto como um país escravocrata e
imperialista como era visto nos artigos de Élisée Reclus34 na Revue des Deux Mondes.
A discussão do projeto do ventre livre a partir de 1867 no Conselho de Estado foi em grande
parte iniciada por esses conjuntos de fatores que leva ao início do desmonte escravista.

Bibliografia:

ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São
Paulo: Companhia das letras, 2015.
________. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil- Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
BETHEL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos a Grã-Bretanha, o Brasil e a
questão do comércio de escravos, 1807-1869. Trad. Luís A. P. Souto Maior. Brasília: Senado
Federal, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de
sombras: a política imperial. 8º Ed. RJ: Civilização Brasileira, 2013.

34
Jacques Élisée Reclus foi um intelectual, geógrafo e anarquista. Publicou vários livros e artigos.

1741
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888, 2ª Ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.

GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. 3º Edição, Fortaleza/Ceará: Secretaria de Cultura e


Desporto, 1984.

GUIMARÃES, Manoel Luís Lima Salgado. Nação e Civilização nos trópicos: o instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº
1, 1988
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987.

MUAZE, Mariana. Novas considerações sobre o Vale do Paraíba e a dinâmica imperial. In:
MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo. (org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos
quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7 letras, 2015. PP. 57-99.

SALLES, Ricardo. A Segunda Escravidão. Revista Tempo, Rio de Janeiro, v.19, n. 35, p. 249-254,
jul – Dez. 2013.

________. As águas do Niagara, 1871: crise da escravidão e o caso saquarema. In: SALLES,
Ricardo; GRIMBERG, Keila. Brasil Imperial. V. III, RJ: 2010.

SILVA, Pedro A. de Oliveira. História da escravidão no Ceará: das origens à extinção. 2ª Edição,
Fortaleza: Instituto do Ceará, 2011.

1742
Aliança para o Progresso e mundo rural brasileiro: o ideal da modernização

Melissa de Miranda Natividade1

Resumo: O trabalho pretende investigar as relações entre a Aliança para o Progresso –


programa estadunidense de auxílio técnico e financeiro direcionado aos países da América
Latina, lançado bem no início do governo de John F. Kennedy, em agosto de 1961 – e o
Estado brasileiro, representadas pelos vários acordos de cooperação firmados entre os dois
países através da United States Agency for International Development (USAID). Daremos
preferência aos acordos e iniciativas voltadas para o mundo rural brasileiro, este último tinha
grande destaque dentro dos objetivos da Aliança, que visavam o aumento da produtividade
agrícola, e programas de reforma agrária que deveriam substituir o latifúndio e o minifúndio
por “sistemas sociais mais justos e complementados por crédito e assistência técnica”. A
criação do Conselho de Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso (CONTAP), em
outubro de 1965, demonstra a consolidação e ampliação do programa de auxílio norte-
americano junto ao governo brasileiro.

Palavras-chave: modernização; rural; cooperação.

Abstract: The paper aims to investigate the relationship between the Alliance for Progress -
an American program of technical and financial assistance to Latin American countries,
launched well into the early days of John F. Kennedy's administration in August 1961 - and
the Brazilian state, represented by the various cooperation agreements signed between the two
countries through the United States Agency for International Development (USAID). We will
give preference to the agreements and initiatives directed to the Brazilian rural world, the
latter had great prominence within the objectives of the Alliance, which aimed at increasing
agricultural productivity, and agrarian reform programs that should replace the latifundio and
the minifundio by "social systems more fair and complemented by credit and technical
assistance ". The creation of the Technical Cooperation Council of the Alliance for Progress
(CONTAP) in October 1965 demonstrates the consolidation and expansion of the US aid
program with the Brazilian government.

Keywords: modernization; rural; cooperation

Visão crítica da teoria da modernização


Nosso trabalho aborda uma série de acordos e ações colocadas em prática no mundo
rural brasileiro, a partir de um programa estadunidense de assistência financeira e técnica
denominado Aliança para o Progresso. O programa foi lançado logo no início da
administração de John Fitzgerald Kennedy, em agosto de 1961. Grande parte dessas
iniciativas se converteu em políticas públicas que visavam à modernização do campo. Tendo

1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF).
Bolsista CAPES. E-mail: melissa.natividade@hotmail.com .

1743
como objetivo um tipo de modernização, o Estado brasileiro participou ativamente do
processo de expansão do capitalismo avançado nos moldes estadunidenses.
A alavanca ideológica para a elaboração da política externa norte-americana que deu
origem à Aliança para o Progresso foi a teoria da modernização. Antes de tratarmos dos
pressupostos dessa teoria, abordaremos algumas críticas que se referem a conceitos criados no
pós-45 e que em muito contribuíram para a expansão internacional do capitalismo, sob a
hegemonia estadunidense. Escobar (2007) analisa como as noções de “Terceiro Mundo” e
“desenvolvimento” foram forjadas no pós-segunda guerra, por teóricos e políticos
estadunidenses e também europeus. O discurso em prol do desenvolvimento dos países mais
pobres2 se converteu em “verdade universal”, sendo o Terceiro Mundo comparado a uma
criança que precisava ser guiada. Traduzindo esta metáfora restava a necessidade imperiosa
dos países centrais do Ocidente “auxiliarem” o crescimento econômico dos países mais
pobres. Segundo esse discurso, o planejamento seria o instrumento fundamental para que
países do Terceiro Mundo obtivessem êxito em seu crescimento econômico.
Ainda segundo Escobar as lutas anticoloniais na África e na Ásia e o crescente
nacionalismo latino-americano, deram forma ao discurso do desenvolvimento. Além disso,
destaca outros fatores como a Guerra Fria, a necessidade de novos mercados, o temor ao
comunismo e a fé na ciência e na tecnologia (ESCOBAR, 2007, p.65). Dentre os fatores
citados, o autor aponta que a Guerra Fria foi um dos mais importantes para a conformação da
estratégia do desenvolvimento. “O temor anticomunista se converteu em um dos argumentos
obrigatórios nas discussões sobre o desenvolvimento” (Idem, p. 70).
Nesse contexto, colocava-se na ordem do dia, para os grupos econômicos
estadunidenses, a necessidade de promover o desenvolvimento dos países latino-americanos,
significando, principalmente, estimular sua industrialização e a modernização. A teoria da
modernização foi a alavanca ideológica da elaboração da política da Aliança para o Progresso.
Um de seus principais formuladores, Walt Rostow, participou do grupo de trabalho sobre
política econômica externa, criado por John F. Kennedy (1961-1963) antes mesmo de sua
posse e, posteriormente, foi conselheiro e presidente do Policy Planning Council (Conselho
de Planejamento) do Departamento de Estado norte-americano, um dos principais cargos da
burocracia daquele país. O cientista político Ricardo Alaggio Ribeiro (2006) avalia:

2
O Banco Mundial estabeleceu, em 1948, que os países com renda per capta inferior a U$100 eram pobres.
Dessa maneira, quase que por decreto, quase dois terços da população mundial foi considerada pobre, e a
solução não poderia ser outra se não o crescimento econômico, ditado pelos critérios dos Estados Unidos e dos
países da Europa Ocidental (ESCOBAR, 2007, p.51).

1744
Cientistas sociais americanos, baseando-se na teoria econômica, e nos
avanços da teoria social e da psicologia comportamental, criaram a área de estudos
conhecida como “teoria da modernização”, dentro da qual desenvolveram-se
abordagens que dividiam entre si, um conjunto de pressupostos e premissas. Uma
delas, a que deu o nome à escola, era a que acreditava, de forma não-problemática,
que o Terceiro Mundo iria experimentar a mesma sequência de crescimento
econômico, estabilidade social e democratização, pela qual haviam passado as
sociedades do ocidente industrializado, tornando-se, por sua vez, modernas. O fato é
que no final dos anos 50 e no começo dos anos 60, essa teoria pontificou sobre a
ciência social americana. Seus principais pensadores chegaram aos mais altos
degraus da profissão e aos cobiçados cargos dentro da burocracia estatal (RIBEIRO,
2006, p.54).

Concentraremos nossa análise na abordagem rostowniana de modernização, pois


entendemos tal linha de pensamento como fundamental para nossa interpretação sobre a
política externa de Kennedy e sua Nova Fronteira (New Frontier)3. Rostow foi professor de
História da Economia do Centro de Estudos Internacionais (CENIS) do Massachusetts
Institute of Tecnology (MIT), Centro que iniciou suas atividades em 1951, sob o patrocínio da
Fundação Ford e da Fundação Rockefeller, bem como da Central Intelligence Agency (CIA).
Segundo Flavio Ribeiro (2007) o primeiro trabalho a partir do qual o Centro se constituiu foi
um projeto secreto para resolver o problema das “interferências nas transmissões de rádio que
os Estados Unidos faziam para a União Soviética através do programa Voice of America
(VOA)”. Além disso, o Centro foi implantado partindo de entendimentos entre o
Departamento de Estado e o MIT, e a proposta visava realizar um projeto que incluísse, além
de físicos e engenheiros, cientistas sociais dispostos a produzirem pesquisas para fundamentar
a “propaganda e guerra psicológica” (RIBEIRO, 2007, p.178).
Não apenas o CENIS/MIT se debruçou sobre a da teoria da modernização. Outro
importante ambiente onde fermentaram tais ideias foi o Commitee on Comparative Politics
(CCP) do Social Science Research Council (SSRC), um think tank criado em 1954, com
recursos das Fundações Ford, Rockefeller e Carnegie. Sua preocupação central girava em
torno de desenvolver pesquisa empírica voltada para resultados práticos. Como outros centros
de pesquisa congêneres, o CCP foi moldado pelos acontecimentos externos e internos aos
Estados Unidos. Buscava-se elaborar uma teoria e uma política que pudessem ser aplicadas
aos problemas do subdesenvolvimento e da instabilidade política do Terceiro Mundo, em um
ambiente no qual a configuração da arena política mundial mudava rapidamente (RIBEIRO,
2006, p.58-59).

3
Ressaltamos que a teoria da modernização não foi uma exclusividade de pensadores norte-americanos, apenas
enfatizaremos aqui os pensadores daquele país com o objetivo de demonstrar a arquitetura da Aliança para o
Progresso.

1745
O livro A Proposal: Key to an Effective Foreign Policy4, pode ser tomado como
principal obra que compilou as discussões em torno da teoria da modernização, e que foram
utilizadas na política externa estadunidense. A ideia central do livro gira em torno da proposta
de que os Estados Unidos assumissem a liderança de um programa de cooperação
internacional, destinado ao crescimento econômico mundial. Os autores afirmam que “seria
um programa de longo prazo para promover o crescimento econômico no Mundo Livre”
(Idem, p.67). As etapas do desenvolvimento econômico desenvolvidas por Rostow foram o
fundamento das teses defendidas em A Proposal. Este autor considera que nenhum país é
igual ao outro, pois os problemas do crescimento estão ligados aos recursos disponíveis, à
cultura, à história e às instituições políticas nacionais. Apesar disso propõe que se admita a
existência de elementos em comum nos padrões de desenvolvimento dos diferentes países.
A teoria da modernização, aqui analisada principalmente a partir das teses
rostownianas, expressava ter por meta promover o crescimento econômico mundial. Em
outras palavras, criar condições para a expansão do capital na América Latina e em países
recém independentes. Porém, por detrás desse discurso Flávio Ribeiro avalia:
Penso que se deve prestar atenção redobrada à diferença entre desenvolvimento dos
países subdesenvolvidos e desenvolvimento nos países subdesenvolvidos. O
discurso ideológico do desenvolvimento costuma enunciar o desenvolvimento dos
países subdesenvolvidos, mas a análise das medidas concretas propostas e dos
critérios que devem nortear a sua aplicação indica, às vezes com nitidez cristalina,
que o que se almejava era o desenvolvimento do capitalismo por meio de uma
determinada forma – sob rigoroso controle econômico, financeiro, político e militar
norte-americano, embora sempre que possível via instituições internacionais – de
expansão capitalista, sempre em proveito dos setores dominantes dessa expansão, as
grandes corporações multinacionais ou transnacionais, o sistema financeiro
internacional e o grande capital americano (RIBEIRO, 2007, p.239, grifos do autor).

Defendemos nesse trabalho a hipótese de que o programa de cooperação financeira e


técnica denominado Aliança para o Progresso foi um dos principais instrumentos de
disseminação de um ideal de modernização do campo no Brasil, ou seja, um dos principais
instrumentos utilizados para a modernização da lógica capitalista junto ao campo brasileiro.

A Nova Fronteira de Kennedy


No final dos anos 1950, o discurso sobre a política externa norte-americana era o de
cada vez mais direcionar esforços para o crescimento econômico das regiões em
desenvolvimento. Antes mesmo de sua posse, Kennedy instituiu uma série de grupos de
trabalho para elaborar sua política interna e externa. Em meados de dezembro de 1960,

4
MILLIKAN, M.; ROSTOW, W., 1957.

1746
existiam cerca de onze grupos de trabalho sobre política externa e oito sobre política interna.
O grupo designado para promover avaliações sobre a América Latina (Latin American Task
Force) e traçar as linhas mestras do que seria denominado Aliança para o Progresso5, contou
com figuras como Adolf Berle Jr.6, Lincoln Gordon7, além dos já mencionados Millikan e
Rostow. O staff de Kennedy foi apelidado de Nova Fronteira.
O citado grupo de trabalho elaborou relatório assinalando que três quartos da ajuda
externa norte-americana, no ano fiscal de 1960 e quatro quintos do ano fiscal de 1961,
destinavam-se a fundos militares e a programas de curto prazo. Indicava, ainda, que para o
desenvolvimento eram destinados apenas 23% em 1960 e 19% em 1961 e concluía que “o
sistema existente foi destinado principalmente a ser um instrumento contra o comunismo, e
não para o progresso econômico e social construtivo” (SCHLESINGER, 1966, p 595).
Com os resultados de seus grupos de trabalho sobre política econômica externa em
mãos, Kennedy teve como objetivo inicial reorganizar o esforço de ajuda externa
estadunidense. Em sua primeira mensagem sobre a questão dizia que:
A tarefa fundamental de nosso programa de ajuda externa na década de 1960 não é
combater negativamente o comunismo, mas sim ajudar a demonstrar historicamente
que no século XX, como no XIX – no Hemisfério Sul do globo, como no
Hemisfério Norte – o crescimento econômico e a democracia política podem
caminhar lado a lado (SCHLESINGER, 1966, p.596, grifos nossos).

Enfatizando a necessidade de reorganização e unificação das agencias envolvidas com


o tema da cooperação financeira e técnica, a administração Kennedy criou outro grupo de
trabalho sobre assistência econômica externa, com a participação de Millikan, George Gant
(da Fundação Ford), Theodore Tannenwald Jr. e Henry Labouisse8. O grupo trabalhou
durante os meses de março a junho de 1961 para lançar as bases da nova Agência de
Desenvolvimento Internacional (AID)9, tecendo críticas à política de assistência militar
estadunidense. Concluiu que a nova política de assistência internacional estaria lastreada em
uma nova “concepção de ajuda”10, enfatizando que a ameaça comunista - na maioria das
nações em desenvolvimento - não era a agressão externa, mas a desintegração e subversão

5
“As repúblicas coirmãs ao sul de nossa fronteira, fazemos uma promessa solene: transformar as boas palavras
em boas ações, em uma nova aliança para o progresso, a fim de ajudar homens e governos livres a se livrar das
amarras da pobreza”. JFK Library, Discurso de posse de Kennedy, janeiro de 1961.
6
Representava, dentro da configuração do esquema de Kennedy, uma figura conhecida por suas posições
liberais, com ligações estreitas com muitos líderes políticos do continente.
7
Embaixador dos EUA no Brasil entre 1961 e 1966, teve como principal missão viabilizar a Aliança no Brasil,
maior país do hemisfério, fundamental na estratégia americana.
8
Nomeado por Kennedy como chefe da ICA, presidiu o grupo de trabalho (JFK Library, JFKPOF-068-007).
9
Em inglês: United States Agency for International Development (USAID). Nas fontes aparecem as duas siglas:
USAID e AID, é sintomático que aid signifique ajuda em inglês.
10
new aid conceps (JFK Library, JFKPOF-068-007-30).

1747
internas. Dessa forma, concluíram que para solucionar tal problema era preciso fomentar o
“bem-estar social e econômico e, portanto, recomendava o predomínio da assistência
econômica sobre a militar” (SCHLESINGER, 1966, p.597).
A USAID era responsável por gerenciar toda a ajuda externa norte-americana e foi
incluída no Departamento de Estado. Fowler Hamilton, um nome oriundo do mundo
empresarial, foi nomeado como seu primeiro diretor e, como administrador da USAID, tinha
o status de Subsecretário de Estado, sendo responsável pela coordenação da assistência
externa. A linha de responsabilidade era distribuída entre quatro órgãos regionais, cada qual
liderado por um Administrador Assistente. Uma destas subagências era o Bureau of Latin
America, cujo gestor passou a ser também o Coordenador Americano da Aliança para o
Progresso. O primeiro Diretor regional da USAID para a América Latina, e, portanto,
Coordenador da Aliança foi Teodoro Moscoso, porto-riquenho, economista da CEPAL,
embaixador americano na Venezuela.

Aprofundamento e consolidação da “cooperação” técnica da Aliança para o Progresso


O golpe empresarial-militar de 1964 significou uma reordenação do padrão da
acumulação capitalista no país, e para o campo representou a implementação de uma política
de modernização da agricultura a ser perpetrada pelos governos militares. A farta concessão
de créditos, a disseminação de tecnologia que privilegiava produtos destinados à exportação, a
propagação do ensino rural e de pesquisas voltadas para a produtividade e para “padrões de
modernidade”, foram responsáveis pela implantação do capitalismo no campo sem alterações
na estrutura fundiária do país.
Com Castelo Branco empossado presidente, Roberto Campos 11 assumiu o Ministério
Extraordinário do Planejamento e Coordenação Econômica e trouxe para a Pasta a concepção
fulcral da necessidade do desenvolvimento econômico. Campos defendia que para ocorrer tal
crescimento, o financiamento do governo e de entidades privadas norte-americanas eram
essenciais, e, para isso, se tornava imperioso um planejamento técnico. O Ministério era

11
Consideramos Roberto Campos figura central na implementação, manutenção e supervisão da Aliança para o
Progresso no Brasil. Campos já participava ativamente das relações bilaterais entre Brasil-EUA, desde os anos
1950. Nos anos iniciais do programa – durante o governo de João Goulart (1961-1964) – Campos esteve à frente
da embaixada em Washington e empenhou-se em negociações com o governo norte-americano, bem como com
instituições financeiras privadas, visando fomentar ajuda financeira para o Brasil. De outro lado, Campos insistia
sempre, junto aos Ministros das Relações Exteriores, para que o governo realizasse maior esforço de
coordenação e de planejamento, dada a necessidade de planos detalhados – para análise da USAID – serem pré-
condição para obter qualquer auxílio financeiro da Aliança. Além disso, era intelectual orgânico do IPES e
participou das articulações para a derrubada de João Goulart, sendo peça chave na administração Castelo Branco
na promoção da modernização da estrutura socioeconômica e reformulação do aparelho do Estado.

1748
estratégico dentro da administração Castelo Branco e junto com o Ministério da Fazenda,
exerceu papel fundamental no processo de busca de investimentos “em volume adequado ao
porte da estrutura produtiva”. O objetivo era superar a crise do capitalismo brasileiro que se
arrastava desde 1962, e a solução se baseou na intensificação da exploração do trabalho e na
própria concentração de empresas e capitais (MENDONÇA, 2006, p.91-92). Dessa maneira,
questões como desenvolvimento, crescimento econômico, planejamento, cooperação técnica e
cooperação financeira, permearam todas as iniciativas de Roberto Campos à frente da Pasta.
A questão agrária brasileira era tratada de forma destacada pelo Ministério, tendo sido
Campos indicado pelo presidente Castelo Branco para, juntamente com o Ministro da
Agricultura, supervisionar o Grupo de Trabalho para Regulamentação do Estatuto da Terra
(GRET), composto por vários membros do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)12,
e que estabeleceu “os contornos e as fronteiras do que será ou não discutido sobre a questão
fundiária pelas elites políticas e empresariais e, posteriormente, pelo Congresso Nacional e
pela sociedade” (BRUNO, 1995, p.16).
Ademais, o Ministério do Planejamento contava com um Departamento de Agricultura
e teve a preocupação em trazer para os quadros do planejamento do desenvolvimento da
economia, “técnicos qualificados, especialistas dos problemas da economia agrária brasileira
e representantes das entidades de classe de proprietários e trabalhadores rurais” (RC,
Exposição de Motivos de 9/9/64). Foram então colocados à disposição do Gabinete de
Campos diversos funcionários do Ministério da Agricultura, além de celebrados contratos de
prestação de serviço para elaboração de projetos técnicos em parceria com uma série de
empresas. Eudes de Souza Leão Pinto13 era assessor do Gabinete do Ministério do
Planejamento e coordenador do setor de agricultura. Para Campos a questão agrária deveria
passar pelo planejamento agrícola, sendo de “fundamental importância quer para os objetivos
imediatos de contenção inflacionária, quer para o de mais longo prazo, de desenvolvimento
harmônico do país”.

12
Regina Bruno analisa as divergências entre os membros do GRET, que giravam em torno, principalmente, das
divergências desde o pré-64 entre os membros do IPES Rio e do IPES São Paulo.
13
Engenheiro agrônomo; professor de Genética Vegetal, da Escola Superior de Agricultura de Pernambuco
(Universidade Rural de Pernambuco). Secretário de Estado de Agricultura, Indústria e Comércio no governo
Etelvino Lins, desenvolveu o Serviço de Extensão da ANCAR – RN; apoio às Cooperativas e Associações
Rurais, expandindo o Crédito Rural. Foi dirigente do Departamento Agronômico e Assessor Técnico-Científico
da Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro – SANBRA, incorporada pela Bunge, gigante do agronegócio.
Entrou para o Curso da Escola Superior de Guerra e foi eleito Vice-Presidente da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG), em 1963, e Presidente em 1964. Foi o primeiro Presidente do Instituto
Nacional do Desenvolvimento Agrário – INDA no ano de 1965; Diretor da Companhia Siderúrgica do Nordeste
– COSINOR.

1749
A leitura que os dirigentes do Ministério fizeram do campo brasileiro era a de que
existiam dois tipos de malformação na estrutura agrária: o latifúndio, no qual o uso da terra
como fator de produção era muitas vezes desperdiçado e o minifúndio, incapaz de gerar
economias de escala. A ênfase maior recaiu sobre as pequenas unidades, onde prevalecia o
produtor de baixo nível de instrução; baixa produtividade; demora de adaptação às alterações
de mercados; lenta geração de capitais e não incentivo ao investimento privado em proporções
substanciais. Como solução defendia-se a
necessidade da ação supletiva do Estado, no sentido de encaminhar para o meio rural
o capital público e de criar condições favoráveis a um maior investimento privado
(...) O Crédito Rural é instrumento essencial nos programas de aumento da
produção e melhoria da produtividade agropecuária (RC, EM nº 17/64, grifos
nossos).

Diante de tais diretrizes vemos a criação do Conselho de Cooperação Técnica da


Aliança para o Progresso (CONTAP). O CONTAP consistiu em um esforço de sistematizar a
obtenção e alocação dos recursos da Aliança, direcionados à assistência técnica. O Conselho
era integrado por representantes da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE), do Escritório do Ponto IV e da COCAP, sob a presidência do Ministro do
Planejamento e tendo como Secretário Executivo o Diretor Executivo do Escritório do Ponto
IV.
(...) CONTAP – destinado a obter e gerir recursos para o financiamento de
programas e projetos de cooperação técnica bem como ajuda de capital, aos mesmos
relacionada.
Art. 2º O CONTAP aplicará recursos em complementação aos do Programa de
Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso, de conformidade com metas e
princípios estabelecidos na Carta de Punta del Este (Decreto nº 56.979, de 1º de
outubro de 1965).

O Conselho foi criado para funcionar dentro do Ministério do Planejamento e


Coordenação Econômica e era responsável por uma conta especial no Banco Central, suprida
por recursos do governo brasileiro, da USAID, do BID e outras agências internacionais de
cooperação técnica. O Banco Central, por intermédio do Fundo Geral de Agricultura e
Indústria (FUNAGRI)14, responsabilizava-se pela contabilidade e auditoria da conta, devendo
manter o Conselho devidamente informado das operações.
O Conselho realizava reuniões semestrais, além de outras extraordinárias, para a
aprovação da programação geral da aplicação dos recursos disponíveis provenientes da
USAID, do BID e demais agências financeiras da Aliança para o Progresso. Além de

14
O FUNAGRI foi criado também em 1965, como um fundo de natureza contábil do Banco Central, constituído,
dentre outros, por recursos obtidos junto a entidades internacionais.

1750
discutirem a fixação de critérios para a aplicação dos recursos que envolviam cooperação
técnica.
A cooperação técnica entre Brasil e Estados Unidos esteve voltada principalmente para as
seguintes áreas:
a) Levantamento, análises e estudos de recursos humanos, naturais e financeiros
do país;
b) Trabalhos de planejamento de desenvolvimento social e econômico;
c) Expansão e aprimoramento de sistemas escolares e extraescolares;
d) Formação, aprimoramento e multiplicação do magistério de todos os níveis;
e) Elaboração, multiplicação e distribuição de material didático e técnico,
relacionado com programas já adotados de desenvolvimento social, educacional e
técnico;
f) Formação, especialização, aprimoramento e treinamento de economistas,
administradores e técnicos em geral e, em particular dos destinados a programas de
desenvolvimento social e econômico já aprovados;
g) Aprimoramento ou reorganização de serviços públicos autárquicos, de
economia mista ou privada de interesse público;
h) Pesquisas científicas e tecnológicas;
i) Aumento de produtividade do capital invertido no país (BRASIL,
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO ... 1966).

Segundo estudo feito pelo Escritório Ponto IV a maior parte da assistência técnica dos
Estados Unidos foi destinada ao treinamento de pessoal. Algumas fontes do governo
brasileiro procuraram justificar e abrandar a participação/intromissão estadunidense. Existiam
muitos projetos de assistência técnica direta a serviços públicos brasileiros, concentrados nas
áreas de agricultura, saúde, administração e recursos naturais. Os relatórios da COCAP
informavam que consultores e peritos norte-americanos “experimentados” trabalhavam em
“colaboração” com os técnicos brasileiros, porém, “em período temporário”. Os técnicos
brasileiros, ao fim desse “curto” período, “assimilavam o que de novo foi trazido ao país”.
Muitos projetos envolviam também o envio de técnicos brasileiros para especialização em
escolas e serviços nos Estados Unidos, além da doação de livros, publicações, e equipamentos
de pesquisa tecnológica (BRASIL, MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO ... 1966, p.140).
Além disso, havia projetos de cooperação técnica entre universidades norte-
americanas e escolas e universidades brasileiras que envolviam a manutenção, por vários
anos, de uma missão de professores estadunidenses para “cooperar” com docentes brasileiros.
Veremos no capítulo IV uma série de exemplos desses acordos. Ademais, tal cooperação
abrangia o envio, durante a década de 1960, de professores brasileiros para realizar estágio ou
estudos em universidades norte-americanas; a “orientação” e ajuda financeira da USAID na
aquisição de livros e na organização de bibliotecas de universidades brasileiras; tradução de
livros e produção de apostilas ou publicação de material didático em geral e a organização e
realização de pesquisas (Idem).

1751
A pós-graduação aparece com destaque nos acordos Brasil/EUA no âmbito da Aliança
para o Progresso. O princípio defendido era o do “treinamento e aperfeiçoamento” em
universidades estadunidenses de professores e técnicos brasileiros de nível superior que
trabalhassem em empresas privadas ou no serviço público. Alguns exemplos das instituições
que participavam dessa cooperação foram: Fundação Getúlio Vargas (Escola de
Administração de Empresas)/Universidade de Michigan; Escola Agrícola de Viçosa/
Universidade de Purdue; Escola Agrícola de Piracicaba/Universidade de Ohio e Universidade
Federal do Ceará/ Universidade da Califórnia (Projeto Azimov).15
De acordo com relatório da COCAP de 1966 o governo dos Estados Unidos investiu
nos programas de assistência técnica, entre 1942 e 1965, o valor total de US$ 113 milhões,
dos quais US$ 70 milhões após o lançamento da Aliança para o Progresso (BRASIL,
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 1966, p.141). Não nos interessa analisar o montante
de valores empregados nos programas de cooperação técnica estadunidenses para o campo,
mas, sim, observar a natureza desses projetos, suas áreas de atuação, sua dinâmica da
implementação, com o objetivo de corroborar nossa hipótese sobre a utilização da Aliança
para o Progresso como estratégia de difusão do paradigma de modernização norte-americano
junto ao mundo rural brasileiro.
Os requisitos para a obtenção de recursos no âmbito do programa estadunidense eram
i) a exigência de planos, programas e projetos “tecnicamente” elaborados e ii) a realização de
reformas sociais “indispensáveis”, com destaque para as reformas agrária, educacional e
tributária (BRASIL, 1964, p.3). Dessa forma, entrou na ordem do dia da administração
pública brasileira a questão do planejamento “técnico”, e podemos verificar várias políticas
públicas impetradas pelo estado restrito que envolveram serviços dos chamados “escritórios
técnicos”.

15
O Projeto Morris Asimov foi implantado na região do Cariri, em decorrência de um acordo entre a
Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade da Califórnia (UCLA), em 1961, patrocinado pela
USAID. Em parceria com a UCLA a UFC criou, em 1962, Programa Universitário de Desenvolvimento
Industrial (PUDINE), com o qual montou uma equipe técnica de agrônomos, economistas, administradores,
engenheiros, sociólogos, etc., com o objetivo de levantar as vocações industriais da região. Foram então
formuladas empresas ligadas ao Projeto Asimov: Cecasa - Cerâmica do Cariri S.A. (em Barbalha, a mais longa
do Projeto); IMOCASA - Indústria de Moagem do Cariri S.A. (em Crato, indústria de moagem de milho);
CIMASA - Companhia Industrial de Mandioca S.A. (em Crato, indústria de farinha e polvilhos de mandioca);
IESA - Indústria Eletromáquina S.A. (em Juazeiro do Norte, indústria de rádios e motores); LUNASA - Luna
S.A. (em Juazeiro do Norte, fábrica de calçados de couro e artefatos). Disponível em
http://juazeiroanos60.blogspot.com.br/2012/02/juazeiro-fabricava-radio-nos-anos-60.html, consulta realizada em
06/12/2016.

1752
Dreifuss (1981) mostra em suas pesquisas que, no governo de Juscelino Kubistchek,
surgiu a assim chamada “administração paralela”, baseada na formação de anéis burocrático-
empresariais:
[...] ampla gama de organismos de planejamento e consultoria e comissões de
trabalho, os Grupos Executivos. Composta por diretores de empresas privadas e
empresários, oficiais militares, com “qualificação técnica e profissional”,
rivalizando e ampliando seu espaço no lugar da burocracia populista, nas
formulações das diretrizes... Eles aplicaram a racionalidade capitalista da empresa
privada às soluções dos problemas socioeconômicos nacionais... uma abordagem
empresarial para os problemas de desenvolvimento e a colocação propriamente dita
de tais problemas em termos capitalistas [...] (DEIFUSS, 1981, p.73)

Após o golpe de 1964, com a “burocracia populista” destituída do poder, essa


intelligentsia técnica passa a ocupar posições chave na sociedade política. Assim, o poder de
classe era inscrito na materialidade do Estado restrito sob o manto da “racionalidade técnica”,
legitimado por grupos executivos e por escritórios de consultoria “tecno-empresariais” (Idem,
p.76).
Esses escritórios de consultoria – de cunho eminentemente técnico - surgiram na
administração JK, paralelamente às agências estatais, como uma decorrência da consciência
empresarial da necessidade de planejamento, de perícia técnica e de administração “eficiente”.
Na gestão Castelo Branco esses escritórios técnicos proliferaram e passaram a participar
ativamente do processo de formulação das diretrizes das políticas do Estado brasileiro.
Em março de 1965 foi criado o Fundo de Financiamento de Estudos de Projetos e
Programas (FINEP), sendo o Ministro do Planejamento o presidente da junta deliberativa do
Fundo16. Na Exposição de Motivos da criação do FINEP, Roberto Campos demonstrou
preocupação com a alocação dos recursos externos destinados ao “desenvolvimento”
econômico. Campos justificou que haveria “substancial fonte de recursos colocados por
entidades internacionais à disposição do país, para financiar o seu desenvolvimento
econômico” E dessa forma argumentou sobre a necessidade de capacitar empresas privadas e
órgãos do poder público para a “boa aplicação dos recursos em projetos técnica, econômica e
financeiramente bem estruturados”.
Constitui, assim, tarefa urgente do governo a de orientar esse esforço de
desenvolvimento econômico, ajudando os empresários e as entidades
governamentais a elaborarem projetos de criação ou expansão de empreendimentos
dentro da boa técnica e adequadamente orientados. Só assim será possível habilitar o
país à conveniente utilização de novos recursos ... O Ministro do Planejamento (...)
sugere a criação de um fundo meramente contábil, destinado a fornecer recursos

16
“§ 1º O Ministro Extraordinário para o Planejamento e Coordenação Econômica será o Presidente da Junta,
com direito a voto em todas as resoluções desta, cabendo-lhe ainda a representação ativa e passiva do FINEP,
celebrando os atos e contratos de seu interesse e movimentando os recursos dentro das diretrizes traçadas pela
Junta” (DECRETO Nº 55.820, 8 de março de 1965).

1753
para a elaboração de projetos e estudos de exequibilidade de programas (RC p m
1964.05.08, EM 29 de 26/02/1965).

O FINEP era operado pelo então Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDE) e


destinou-se a financiar estudos e programas necessários à definição dos projetos de
“modernização” e industrialização, contando com recursos do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e da USAID. Seu primeiro presidente foi o engenheiro Francisco
Manoel de Mello Franco. As empresas privadas e entidades públicas que pretendiam obter
financiamento para elaboração de projetos e programas, dirigiam seus pedidos a um Escritório
instituído no Gabinete do Ministro do Planejamento, esclarecendo devidamente as
características do estudo, sua provável dimensão, o custo de elaboração do estudo inicial ou
do projeto definitivo. O FINEP examinava a viabilidade do projeto, podendo deferir o pedido,
para um estudo inicial, ou para o projeto definitivo.
Somente em 1966, o Banco Central da República do Brasil foi autorizado pela
Presidência da República, a negociar e contratar operação de empréstimo em moeda
estrangeira, em nome do Tesouro Nacional, montante de US$ 16 milhões de dólares, mais
juros com a USAID. Este total seria destinado ao financiamento da assistência técnica e à
elaboração de estudos de projetos e programas necessários a investimentos a serem
executados através do FINEP (RC p m 1964.05.08, EM 67 de 20.04.66).
Ao final de 1966 existiam cento e oitenta e três escritórios técnicos privados
cadastrados junto ao FINEP, dentre eles vinte e cinco com sede nos Estados Unidos, além de
outros que, através dos nomes do escritório ou de seus diretores, evidenciam ter também
raízes norte-americanas, porém com filiais no Brasil (Firmas de Consultoria Técnica
Credenciadas no FINEP, dezembro de 1966” (RC pm 66.07.04, pasta 3).
A Sociedade Civil de Planejamento e Consultas Técnicas Ltda. (CONSULTEC) era
um desses escritórios que celebravam contratos com a administração pública através do
FINEP. Considerado por Dreifuss como o mais importante e bem-sucedido escritório técnico
e um anel burocrático-empresarial em si mesmo, tinha como membros importantes figuras
como Roberto Campos e José Luiz Bulhões Pedreira, este último coordenador da COCAP.
Podemos então identificar que, parte das verbas da Aliança para o Progresso
destinadas à assistência ao “desenvolvimento” do Brasil, eram alocadas em “escritórios
técnicos” que elaborariam os projetos “adequadamente técnicos” a serem entregues à USAID
para, então, solicitar os recursos do programa, ou seja, trata-se de empréstimos duplos.
Membros e sócios desses escritórios ocupavam posição diretiva dentro de órgãos

1754
governamentais diretamente envolvidos com a Aliança para o Progresso, o que demonstra o
Estado ampliado perpetrando políticas públicas do interesse direto da classe dominante17.
Outro importante conjunto de acordos entre Brasil e Estados Unidos, no âmbito da
Aliança para o Progresso, foram os convênios formados entre o Ministério da Agricultura,
USAID e CONTAP, assinados entre 196418 e 1969. Os acordos entre MA/CONTAP/USAID
dividiam-se em: CONTAP I – Produção Agrícola (pesquisa, extensão rural, produção
agropecuária, cadastro rural, colonização); CONTAP II – Ensino Agrícola de Nível Médio e
CONTAP III – Comercialização Agrícola (comercialização, estatística, análise, planejamento
e crédito rural). Nas conclusões do relatório de 1967 dos convênios podemos observar a
interpretação dos responsáveis brasileiros sobre o alcance da cooperação. Tais considerações
demonstram o caráter produtivista das atividades, que buscavam uma modernização das
atividades do campo aos moldes estadunidenses:
[...] estamos trabalhando intensivamente nos programas de pesquisa e extensão
visando à difusão de novos conhecimentos sobre a tecnologia agrícola que, aliados
ao desenvolvimento industrial, proporcionarão novas oportunidades de emprego à
mão-de-obra ociosa existente [...] estaremos contribuindo para o aumento e
melhoramento da produção agropecuária brasileira ((BRASIL. Ministério da
Agricultura. Relatório Convênios MA-CONTAP-USAID, 1967, p.8).

Considerações finais
A Aliança para o Progreso é entendida nesse trabalho como uma estratégia importante
dos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria, direcionada a países latino-americanos, com
o objetivo principal de guiá-los ao processo de adequação à dinâmica do capitalismo
avançado. No pós-golpe de 1964, a agricultura brasileira passou pelo processo de
modernização, sendo privilegiadas políticas produtivistas que superassem o “atraso”. As
discussões em torno da reforma agrária com ampla participação de movimentos sociais rurais,
que agitaram o governo de João Goulart, foram substituídas pelo mantra da modernização que
gerou um conjunto de políticas públicas em favor do grande capital. A modernização
conservadora19 e dolorosa20 do campo brasileiro, que distribuiu crédito e subsídios
seletivamente, e disseminou a tecnologia, reproduziu a concentração fundiária e
automaticamente a expropriação de trabalhadores rurais.

17
No capítulo quatro voltaremos à análise dos escritórios técnicos.
18
Até 1966 – antes da criação do CONTAP – a agência brasileira responsável era a Comissão de Coordenação
da Aliança para o Progresso (COCAP).
19
Seguimos aqui as análises de Guilherme Delgado (1985) que propôs a análise do desenvolvimento econômico
da agricultura brasileira no período compreendido entre 1965 e 1985, caracterizando-o como um projeto
marcado por uma “modernização conservadora”, visto manter intocada a estrutura da propriedade agrária.
20
José Graziano da Silva (1982), analisando o processo de desenvolvimento do campo, aponta que a questão
agrária no Brasil, gira em torno do alto grau de concentração da propriedade da terra e disparidade de renda que
historicamente marcou a estrutura agrária brasileira.

1755
Bibliografia
ARQUIVO ROBERTO CAMPOS, FGV/CPDOC, RC.
BRASIL, MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO ECONÔMICA,
Aliança para o Progresso: conceitos, objetivos, estrutura, realizações no Brasil, Segunda
Edição, outubro de 1964.
BRASIL, MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO ECONÔMICA,
Aliança para o Progresso: conceitos, objetivos, estrutura, realizações no Brasil, janeiro de
1966.
BRASIL, Relatório Semianual MA/USAID Convênios 512-15-110-247.1, CONTAP I.1,
Ministério da Agricultura/USAID, dezembro de 1967.
BRUNO, Regina. O Estatuto da Terra: Entre a conciliação e o confronto. Estudos Sociedade e
Agricultura. Rio de Janeiro: CPDA, novembro de 1995.
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Petrópolis: Vozes, 1981.
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del desarrollo. Venezuela: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007.
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MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e Economia no Brasil: opções de desenvolvimento.
Rio de Janeiro: Graal, 2006.
MILLIKAN, M.; ROSTOW, W. A Proposal: Key to an Effective Foreign Policy. New York:
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RIBEIRO, Flávio Diniz. Walt Whitman Rostow e a problemática do desenvolvimento
Ideologia, política e ciência na Guerra Fria. Tese de Doutorado da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007.
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Campinas: Tese de Doutorado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas, 2006.
SCHLESINGER, A. Mil Dias: John F. Kennedy na Casa Branca. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, vol.2, 1966.
SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

1756
PELEJAS DO COTIDIANO: TRABALHO, COSTUMES E DESLOCAMENTOS NA
REGIÃO SISALEIRA - ARACI-BA (1950-1985)

Mirian Carvalho Miranda1

Resumo: A presente discussão analisa o deslocamento dos sujeitos da roça e as formas costumeiras
de trabalho diante das ações estatais, em Araci-Bahia, entre os anos de 1950 a 1985. O recorte
possibilita avaliar as implicações empreendidas pelas intervenções do Estado, especificamente a
monocultura do sisal. Foi comum ler os sertões como espaços vazios, lugar de atraso que carecia de
desenvolvimento para acompanhar o capitalismo. Narrativas que excluíam as variadas formas de
organização comunitárias, ou mesmo, desprezavam os mecanismos de existência construídos por
trabalhadores negros e pobres. Formas tradicionais de trabalho que foram se distanciando do labor
da roça para dar lugar a superexploração em campos de sisal, deslocamentos efetivados na medida
em que os espaços e os sertanejos(as) se integravam no processo de desenvolvimento capitalista que
forjou a Região Sisaleira.

Palavras-chave: Costumes; Deslocamentos; Região Sisaleira.

Abstract:The present discussion analyzes the displacement of the subjects of the plantation and the
customs forms of work in front of the state actions, in Araci-Bahia, between the years of 1950 and
1985. The clipping makes possible to evaluate the implications of state's interventions, specifically
the sisal’s monoculture . It was common to read the sertões as empty spaces, place of delay that
lacked development to accompany capitalism. Narratives that excluded the various forms of
community organization, or even despised the mechanisms of existence built by black and poor
workers. Traditional forms of work that were distancing themselves from the work of the
countryside to give way to overexploitation in sisal’s fields, effective displacements as the spaces
and the sertanejos were integrated in the process of capitalist development that forged the Sisaleira
Region.

Keywords: Custons, Displacements, Sisaleira Region.

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa (em andamento) tem por objetivo analisar o deslocamento dos sujeitos
da roça e as formas costumeiras de trabalho diante das ações estatais, em Araci-Bahia, entre os anos
de 1950 a 1985. O recorte possibilita avaliar as ações empreendidas pelo Estado sobre um lugar que

1
Estudante de Mestrado em História na Universidade Estadual de Feira de Santana – PPGH/UEFS (email:
myrianc3@hotmail.com).

1757
compartilhava espaço e trabalho. O cotidiano de Araci era muito imbricado ao mundo roceiro. A
dinâmica da “rua” seguia o ritmo da “roça”, mobilizando os modos próprios de produzir e de
comercializar, encontros que perfaziam a vida dos sertanejos e sertanejas do Tocós.
Lugares e costumes pouco investigados que denotam o silêncio dos pesquisadores acerca
das cidades afastadas dos grandes centros econômicos e mais distantes do litoral. Ao priorizar as
vivências cotidianas na ocupação de parte do Sertão do Tocós pretendo explicitar de que maneira
intervenções que pretendiam melhorar a vida das gentes reverberaram nas formas tradicionais de
trabalho2.
O município de Araci localiza-se no Nordeste do semiárido da Bahia, a 210 km da capital
Salvador, tendo a extensão de 1524 Km², área que abrange o Território do Sisal3, como demonstra o
mapa a seguir, produzido pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial, vinculada ao Ministério
de Desenvolvimento Agrário.

2
Os Sertões do Brasil já foram representados como espaços simbólicos e explicativos da dualidade social brasileira: por
meio da dialética da pobreza e do atraso, do moderno e do arcaico. De um lado os Sertões dos conflitos sociais
comandados por figuras como Lampião, por pregadores como Conselheiro na Bahia, por lideranças comunitárias ou
grupos políticos em luta pela posse da terra como as Ligas Camponesas e o Movimento dos Trabalhadores sem Terra;
de outro lado, o sertão como expressões artísticas e culturais patrimônio da nacionalidade. Porém, mais recentemente
alguns autores rompem com as narrações dualistas e propagam uma nova maneira de ver e dizer o Sertão nordestino.
VER: MUNIZ JUNIOR, Durval de Albuquerque. Vede Sertão, Verdes Sertões: Cinema Fotografia e Literatura na
Construção de outras Paisagens Nordestinas. Revista de História e Estudos Culturais. Rio de Janeiro, n°1, v.13. ano
XIII, jan. a jun. de 2013. OLIVEIRA, Clóvis Ramaiana. “Canudos Brasília: anotações de uma viagem sertanejadora”.
In: KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (org). Semeando cidade e sertões: Brasília e o Centro Oeste Goiânia: Ed
da PUC, 2010, p. 121-140.
3
A categoria “território de identidade” foi operacionalizada a partir de 2003 pela Secretaria de Desenvolvimento
Territorial na gestão do Partido dos Trabalhadores-PT. Antes desse marco a designação para fins de planejamento e
controle era “Região Sisaleira”. Ver: CARNEIRO, Edinusia Moreira Carneiro et al. GeoTextos. vol. 11. n. 2,
dezembro 2015. 131-151. Disponível em: file:///E:/Arquivos/Downloads/13472-48804-1-PB%20(12).pdf

1758
Fonte do site da Agência Embrapa Informação e Tecnologia: MDA 2010.

Dentre as práticas costumeiras de trabalho, a festa do “Boi Roubado” recebe destaque na


discussão por apresentar uma significativa integração entre as comunidades e as ações
compartilhadas. A simbologia da festa evocava ancestralidades4 que precisam ser evidenciadas,
indícios que desafiam as fronteiras do que está posto acerca das práticas roceiras. Formas
costumeiras de trabalho asseveradas com base na concepção teórica de Thompson5: “costume” sui
generis, mentalité, um vocabulário completo de discurso, de legitimação, de expectativa. Modos de
vida advindos de tempos imemoriais, aspectos de uma economia moral “não econômica”,
codificada em expressões simbólicas e regras reatualizadas nas tradições orais, práticas que se
distanciaram do labor da roça e do próprio cotidiano de quem as praticava.

2 “O DONO ERA QUEM FAZIA SEU LUGAR”6

Abrir caminhos, mediar domínios e demarcar espaços são ações para se instituir territórios.
Porém, a dinâmica das operações de ocupação nem sempre cumpriram etapas de colonização e
apropriação mercantil. O Sertão já foi terra de “ninguém” e seus “domínios” eram regulados por
relações comunitárias imbricadas aos costumes herdados. A posse, autorizada pelo trabalho,
demarcava, circunscrevia e desenhava o espaço sertanejo de índios, negros e caboclos. Práticas de
espacialização que se adornavam à medida que a caminhada criava e recriava os mecanismos de
existência.
Espaços que foram demarcados pelas ações costumeiras e tinham força de lei7: “Nesse
tempo o primeiro que chegava fazia uma posse pegava os decumento e era o dono. Os terreno era
tudo aí sem cercar. Quem chegava fizesse sua posse era o dono. Nesse tempo era tudo solto aí
caatinga. O dono era quem fazia seu lugar.”8.
O dono, a quem apresento aos leitores, realizava a feitura do próprio lugar e, para
demonstrar como eram as relações que regiam as vidas das gentes sertanejas das comunidades
roceiras de Araci, é necessário especificar que não se tratava do “patrão”, aquele que apenas dar
ordens para que outros executem o serviço. Apossar-se das terras era sinônimo de labuta para

4
Dentre as diversas vozes que narram as suas vivências para esta pesquisa, os sujeitos da comunidade roceira de Pau de
Rato conduzem o enredo, em especial a família de Agripino Gonsalves dos Santos, descendentes de ex-escravizados.
5
THOMPSON, 1998, p. 86.
6
Frase extraída das prosas com Agripino Gonsalves dos Santos. (GONSALVES, 2017)
7
Para Thompson o costume está na interface da lei com a prática agrária, pois podemos considerá-lo como práxis e
igualmente como lei. Repousam sobre o costume dois pilares: o uso em comum e o tempo imemorial. Ver:
THOMPSON, 1998, p. 86.
8
SANTOS, Agripino. Agripino Gonsalves dos Santos: depoimento [mai. 2017]. Entrevistadora M. Carvalho. Araci,
2015. 3 arquivo. Áudio mp3 (1:05 min.). Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.

1759
qualquer sertanejo que pelejava e, ainda peleja, diante das condições históricas regidas por forças
externas. Gentes em muitas partes do Sertão lutaram (e lutam) contra a expropriação de suas terras,
a exploração da força de trabalho e, por conseguinte, as dificuldades no acesso aos recursos
produtivos perante as amarras articuladas pelos agentes dominantes9.
A terra nas mãos dos sertanejos é fruto de várias tensões, conflitos e acomodações do
processo iniciado com a invasão dos europeus no século XVI. As ações colonizadoras engendraram
o massacre e a expropriação de áreas indígenas pela coroa portuguesa, o fatiamento do território em
capitanias e posteriormente sesmarias, além das diferentes desapropriações para os ciclos de
monoculturas. Esse modelo agroexportador foi assumido desde a colônia e levado a diante nos
períodos imperiais, ditatoriais e democráticos que se seguiram. Tais confiscos geraram diversos
modos de ocupar os sertões: escravos e índios se apropriaram das terras na formação de seus
quilombos, ou mesmo, em grupos menores de ex-escravos que ocuparam as terras próximas as de
seus senhores10 imbricados aos caboclos e vaqueiros.
Mas no cenário de lutas em que se fazia o “dono”, a liberdade - entendida aqui como
liberdade do cativeiro ou do fazendeiro que o subjugava - foi à potencialidade que se coadunou aos
valores herdados e reatualizados a cada nova geração. Os costumes compartilhados asseguravam a
capacidade de resistir às circunstâncias a que historicamente índios, negros e caboclos foram
submetidos. Por conta disso, preciso esclarecer que não se “fazia” um lugar sozinho e não se tratava
de agremiar trabalhadores para receber valores em troca do serviço. Então, como se dava a
empreitada de erguer as bases do sustento e amenizar as dificuldades que afligiam as condições de
existência e do “fazer-se” após a ocupação dos espaços roceiros?
O dono, figura central do enredo, fazia do espaço demarcado “seu lugar” quando o dividia
com outrem. As ações de compartilhamento eram necessárias para que a feitura fosse concretizada.
A base era erguida em família, o “dono” com a posse da terra começava a feitura do lugar com os
seus, mas para enfrentar as dificuldades era necessário estender a partilha do trabalho e do próprio
lugar em ações de ocupação que perfaziam a existência sertaneja.

3 AS BANDEIRAS TROCADAS: As memórias do “Boi Roubado”

9
Disputas que envolvem a “questão agrária” no Brasil e, em muitos casos com um forte punho violento, conflitos que
se reverberam até os dias de hoje por boa parte do território brasileiro. Para maiores esclarecimentos consultar:
STEDILE, João Pedro (org.). A questão agrária no Brasil: o debate na esquerda. 2 ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2012.
10
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910)
Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.

1760
Eu tinha um menino que era mestre pra isso [tirar boi de roça], o que morreu. Nois
ia num samba ele tirava um batuque que ninguém nunca tinha visto na vida,
inventava na hora e no bataião tomém era. Inventava um boi na hora. Todo mundo
puxava, quano um parava outo pegava, era a carritia de cantador: um tava aqui na
cabiçera, um cantava aqui, quano esse parava o outo ali pegava e ia correno e a
enxada trabaiano. Já lutei muito! Quano parava ali nois ia pra casa areunia tudo ali,
botava a comida tudo ali, todo mundo comia, quano chegava a hora, pa roça,
trabaia de novo até cinco hora, seis.11

A voz, que narrou os tempos em que o trabalho e a festa faziam parte da mesma travessia,
demonstra algo sui generis: ambiência, mentalité, um vocabulário completo de discurso, de
legitimação e de expectativa12. Agripino Gonsalves dos Santos reconstituiu o viver comunitário de
gentes que transformavam a dura labuta em rituais de fraternidade: a “carretia de cantador” dava
ritmo à “enxada trabaino” envoltos a capacidade criadora de um “mestre”. A potência da
inventividade do “mestre” era traduzida em versos que reatualizavam os tempos imemoriais dos
batuques e caboclos. Vozes africanas e indígenas que desafiavam as dificuldades do cotidiano e
“arreunia tudo ali” para que entre “trabaio” e “carritia” a existência fosse assegurada.
O festejo que movia as famílias em torno do compartilhar é sui generis na medida em que
resguardam peculiaridades do eito da escravidão, agregadas às ancestralidades indígenas. Trazem a
marca de sujeitos e suas táticas13 para driblar a imposição histórica da escassez material. Foi uma
celebração comum dos Sertões dos Tocós, de áreas próximas ao Recôncavo e da região da Chapada
Diamantina14. Homens e mulheres eram, nesses espaços, protagonistas de um viver comunitário.
Ali, recriavam diferentes maneiras de viver e desenvolviam mecanismos conjugados de trabalho e
festa.
Os sertanejos ocupavam a terra, mas o trabalho ou mesmo as dificuldades eram enfrentados
em lutas conjuntas: os “bataião”. A palavra era a metáfora para a guerra/vida do cotidiano, a tática
de quem só podia contar com o suor do próprio rosto. O trabalho e a festa se traduziam no espaço
comum em que enxadas e facões eram ritmados pelos cantos de trabalho. As bandeiras fincadas
outrora, no lavorar da roça, se fundiam em uma única bandeira, o símbolo de ocupação desses
sujeitos. Os passos dos invasores eram acompanhados por bois de roça, cantigas e chulas:
Chegôô mano, Chegô ôôôô
Chegôô seu boi da roça chegô ôôôô

11
SANTOS, 2017.
12
THOMPSON, 1998, p. 14.
13
Conforme Certau: tática é a ação calculada pela ausência de um próprio que joga com o terreno que lhe é imposto, tal
como organiza a lei de uma força estranha. Ao aproveitar às ocasiões, as brechas, as margens opera golpe, por golpe,
lance por lance; por conta disso sua reação é inusitada, realizada à distância. Numa posição recuada de convocação
própria se move dentro do campo de visão do inimigo. É agilidade, movimento, mas o que ela ganha não se conserva,
pois não se trata de estocar privilégios. Recria as condições de existência numa docilidade aos azares do tempo: É
astucia. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Tradução Ephraim Ferreira Alves. 9 ed.
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 94-95.
14
SANTANA, Sandro. Música e ancestralidade na Quixabeira. Salvador: EDUFBA, 2012.

1761
Quando o povo admirôôô seu boi na roça chegô ôôôôô
Chegôô mano chegô ôôôô chegô ôôôô
teu boi lá na roça chegô ôôôô
Quando foi de madrugada que o passarinho canto ôôôôô
Seu boi na roça chegô ôôôôiiiii15

O dono da roça, surpreendido pelo grupo, providenciava um pano vermelho para representar
a sua bandeira que era trocada pela bandeira branca trazida por quem roubou o batalhão 16. A
tomada simbólica do espaço era efetivada com diferentes intenções: ajudar alguém da comunidade
que estava enfermo e tinha seus afazeres atrasados, acudir companheiros que não tinham condições
para pagar os serviços de trabalhadores em sua roça, ou mesmo, participar da festa com muita
comida e bebida.
A bandeira era empunhada para atender diferentes situações, porém, regida por um único
objetivo: acudir a quem precisava. A solidariedade não era exclusividade da festa, pois se fazia
presente no cotidiano, ao istuciar as necessidades dos companheiros que tinham os serviços por
fazer. A entrada da bandeira dava início aos trabalhos, erguida por muitas mãos era trocada no final
do dia.
Nós ia roubar os bataião, saiamos de casa como hoje a noite ia dormir no ponto, pra
roubar aquele bataião, 04:00 da manhã, nois estava na roça soltando o boi,
soltamos fogos, e rolava o dia todinho, pegava 04:00 da manhã parava 17:00 da
tarde, ai voltava cantando a bandeira. Tinha o grupo do bataião cantador, tinha as
pareia tudo certo, fazia as bandeira com um pano, enfeitava a bandeira com as nota
de dinheiro e agora, era duas bandeira, ficava passando uma pela outra, era
bonito17.

Em segredo, os r

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