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Mas quando a melodia precisa ser acompanhada por um instrumento, como o órgão, ou cantada por
um coro a quatro vozes, só a melodia não é suficiente: é necessário adicionar um acompanhamento
(acordes) à melodia, num processo conhecido como “harmonização de coral”. Isto ficava a cargo dos
músicos executantes ou do kapellmeister do local, e era algo comum e trivial na Alemanha da era
barroca. Dentre os compositores que se destacaram nesse ofício está o nosso velho conhecido
Johann Sebastian Bach: veja o que ele fez, por exemplo, com a bela melodia An Wasserflüssen
Babylon do organista Wolfgang Dachstein (1487-1553) – ouça primeiro a melodia coral, depois a
harmonização de Bach, BWV 267 (apenas as frases iniciais de ambas):
Dachstein: An Wasserflüssen Babylon – Bach BWV 267 (Nordic Chamber Choir – Nicol Matt):
Vale a pena observar que, entre a época de criação das melodias corais (século XVI) e a época de
Bach (século XVIII) muita coisa mudou na harmonia e teoria musical, o que gerou alguns conflitos
interessantes. Por exemplo, para corais de arrependimento e penitência Lutero preferia o modo frígio,
mas durante o barroco a música modal já havia cedido espaço para a música tonal (maior e menor). E
aí vemos Bach dando tratos à imaginação para harmonizar o exemplo anterior, Ach Gott, vom Himmel
sieh’ darein, que é em modo frígio assim como Aus tiefer Not schrei ich zu dir, harmonizado na cantata
de mesmo nome BWV 38:
Lutero: Aus tiefer Not schrei ich zu dir – Bach BWV 38 (6) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink):
Na época de Lutero não havia a “exigência” de que a música começasse e terminasse no mesmo tom
(aliás, ainda nem existia o “conceito” de tonalidade). É por isso que Christ lag in Todes Banden de
Lutero inicia claramente em Si menor e termina em Mi menor, mas isso é algo com que Bach jamais
poderia concordar. Assim, na sua cantata Christ lag in Todes Banden BWV 4, ele dá uma forçadinha e
inicia o coral em Mi menor mesmo:
Lutero: Christ lag in Todes Banden – Bach BWV 4 (8) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink):
Porém o “Prêmio Schoenberg de Modernosidade” vai mesmo para Johann Rudolf Ahle (1625-1673),
que ousou iniciar seu coral Es ist genug com uma escala de tons inteiros. Só Bach mesmo para tirar
isto de letra, lá no final da cantata O Ewigkeit, du Donnerwort II BWV 60:
Ahle: Es ist genug – Bach BWV 60 (5) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink):
Mas Bach não se restringia apenas às harmonizações: as melodias corais também eram usadas como
base para criação de obras musicais mais complexas, como fantasias, variações, partitas, motetos e
cantatas. Veja o caso do coral natalino de Lutero, Vom Himmel hoch, da komm’ ich her: Bach o tomou
emprestado em três números do Oratório de Natal BWV 248 (ouça aqui o início do nº9), mas a melodia
também originou vários prelúdios para órgão, como o Prelúdio em Dó Maior BWV 700, além das
Variações Canônicas BWV 769:
Lutero: Vom Himmel hoch, da komm’ ich her – Bach BWV 248 (9), BWV 700 e BWV 769 (King’s College Choir / ASMF / Ledger – Hans Fagius):
Uma melodia coral também podia originar vários movimentos de uma cantata. A cantata Ein feste Burg
ist unser Gott BWV 80 tem quatro dos seus oito movimentos baseados no famoso coral de Lutero:
além da harmonização tradicional ao final da cantata, ele emoldurou o coral com um acompanhamento
também baseado na melodia (nº5) e criou um adorável dueto onde a soprano entoa uma versão
floreada do hino. Mas o gênio de Bach aparece mesmo no movimento inicial, uma grande fantasia
coral sobre a famosa melodia:
Lutero: Ein feste Burg ist unser Gott – Bach BWV 80 (movs 8, 5, 2 e 1) (Holland Boys Choir – Netherlands Bach Collegium – Pieter Jan Leusink):
Para finalizar, a pérola das pérolas: o coro inicial da Paixão segundo São Mateus BWV 244, Kommt, ihr
Töchter, escrito para dois coros e duas orquestras. Não, ele não é baseado em nenhuma melodia
coral, porém no decorrer do movimento surge um terceiro coro cantando O Lamm Gottes,
unschuldig de Nikolaus Decius (1485-1541). Ouça primeiro somente a melodia coral completa,
acompanhada da harmonização de Bach BWV 401: