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"BRASIL, MEU BRASIL BRASILEIRO"

título deste trabalho partir do dia 12 de setem-

O
LúCIA ARRAIS MoRAlES*
toma de emprestado bro (999), a cada mês, a
o verso que Ari Bar- RESUMO rede britânica de televisão
roso usou para abrir transmitirá para todo o
sua música "Aquarela do o artigo discute questões da cultura mundo dez artistas escolhi-
Brasil" na qual faz uma es- brasileira. Toma como ponto de partida a dos a dedo pela emissora
análise de uma notícia na "Revista Isto é" para representar seu país.
pécie de declaração de
dando conta de um evento programado para
princípios. Pretendo aqui, festejar a chegada do terceiro milênio. E termina com uma decla-
entretanto, traçar um per- Examinando as noções de Brasil e Brasileiro. ração de EIsa Soares na
Este trabalho demonstra como estas
curso de uma noção de categorias estão atravessadas por uma
qual ela não apenas pro-
"Brasil" e "Brasileiro" pre- concepção racial. mete incluir a música
sente no que se afirma ser Aquarela do Brasil no seu
• Doutora em Antropologia pelo Programa de
este país e seus habitan- Pós-qraduação em Antropologia Social do recital, como também, afir-
tes. Neste artigo vou utili- Museu Nacional da Universidade Federal do ma que essa canção É a
Rio de Janeiro e professora do Departamento
zar material empírico de Ciências Sociais e Filosofia da
minha cara. A cara do
coletado em veículos de co- Universidade Federal do Ceará. Brasil.
municação de massa tanto Além do curioso fato
de circulação nacional, a de se atribuir a um país
revista "ISTO É", quanto local, o jornal "O 500 anos de existência e ele produzir, nes-
Povo". Também, usarei os resultados de um se intervalo de tempo, alguém que repre-
conjunto atual de pesquisas sobre migrações sente um milênio, três pontos se destacam.
internacionais de brasileiros para os Estados Primeiro, o método utilizado para selecio-
Unidos, a partir da década de 80. nar os cantores que iriam compor a catego-
A revista "ISTO É" tem uma seção de- ria artista do milênio: "escolhidos a dedo".
nominada Gente que funciona como a coluna Isto significa que os realizadores promove-
social da revista. Nessa sessão aparecem ba- ram uma seleção fina, rigorosa e criteriosa.
sicamente registros sobre as celebridades da O segundo ponto diz respeito aos objetivos
moda, da música, do cinema bem como refe- de tal seleção: ela visa destacar alguém para
rências a algum acontecimento de destaque "representar" seu país. Isto é, aparecer
da semana. Na seção Gente do dia 08 de se- como a imagem dos habitantes de um de-
tembro de 1999 há uma nota que diz "A Cara terminado território. O terceiro ponto é o
do Brasil' e, ocupando toda a sua extensão, fato de a cantora dizer que promete cantar
está a fotografia da cantora EIsa Soares (62 uma determinada canção. Isto significa aten-
anos, natural do Rio de Janeiro). Ao lado des- der a uma expectativa em torno do repertó-
sa foto, há um texto que informa a participa- rio musical que representará o Brasil. Com
ção da cantora no projeto Milenium Concert, isso, ela remete para uma suposta unanimi-
idealizado e produzido pela BBC de Londres, dade em torno de uma canção que seria
no qual foi eleita a artista do Milênio do Bra- percebida por todos os brasileiros como ex-
sil. O texto prossegue esclarecendo que a pressão de sua brasilidade. Além disso, EIsa

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Soares se coloca e é colocada como a legí- das frente ao adverso, aos obstáculos e aos
tima representante desse país. Tanto sua pes- momentos difíceis. Nesse sentido, inzoneiro
soa quanto a música escolhida são vistas é aquele que não se deixa aprisionar na di-
como a cara, o rosto, a face dos indivíduos mensão da tragédia e prefere escapar para a
e grupos que habitam um território descrito vida. Assim, ao falar "Brasil brasileiro", ele
como Brasil. Em outras palavras, elas funci- se dirige para as fontes de vitalidade exis-
onam a semelhança de uma carteira de iden- tentes nesse país. Ari Barroso firma nessa
tidade. Documento que, obrigatoriamente, direção e conclui essa canção da forma como
exibe, uma fotografia do rosto, da cara de iniciou reafirmando que "esse brasil lindo e
alguém. Portanto, com esses três pontos se trigueiro é meu brasil brasileiro". Portanto,
vai construindo um discurso daquilo que é não é apenas uma exaltação da mestiçagem,
suposto crer ser a essência do povo brasi- mas de um tipo específico: o mulato. Nessa
leiro e, por causa disso, será apresentado música o mestiço oriundo das relações entre
para todo o mundo através da BBC. brancos e índios não aparece. Ou seja, não
Mas por que Rita Lee não é a cara do se fala do caboclo, ou sertanejo ou caipira.
Brasil?Cássia Eller?Marina Lima?Zélia Duncan? Fala-se do começo ao fim em mulato. Além
Gal Costa? Maria Betânia? Antes de procurar disso, elege-se o samba como o ritmo musi-
essa resposta é melhor examinar os versos da cal por excelência. O que permite pergun-
"Aquarela do Brasil" que dizem o seguinte: tar se outros ritmos como o forró e o carimbó,
por exemplo, também não fariam gingar e
"Brasil/ meu Brasil brasileiro/ meu mulato inzoneiro/ vou bambolear o corpo?
cantar-te nos meus versos/ o Brasil, samba que cIáIbam- Aquarela do Brasil foi escrita em 1939
boleio que faz gingar/ o Brasil do meu amor/ terra de por Ari Barroso. Nesse momento, o país atra-
nosso Senhor/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim/ ôi !abre
vessava o regime do Estado Novo no qual um
a cortina do passado/ tira a mãe preta do cerrado/ bota o
vigoroso vetar nacionalista estava presente. É
rei-congo no congado/ Brasil,Brasil/ Deixa cantar de novo
o trovador/ a merencória luz da lua/ toda a canção do o momento em que se pretende forjar um
meu amor/ Quero ver a Sá dona caminhando/ Pelos sa- novo país, um novo brasileiro para responder
lões arrastando/ o seu vestido rendado/ Brasil, Brasil/ Pra positivamente à direção que estava sendo
mim, pra mim/ Oh! ôi essas fontes murmurantes/ ôi onde imposta. O "trabalhador nacional", leia-se a
eu mato minha sede/ e onde a lua vem brincar/ oh! esse massa de mestiços, antes considerado inapto
Brasil lindo e trigueiro/ És meu Brasil, brasileiro/ Terra para operar numa economia capitalista e in-
de samba e pandeiro/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim". dustrial é alçado, nos anos 30 deste século, a
atributos para desfazer essa crença. Se no "Os
Essa música inicia afirmando que há Sertões", obra do início deste século e cir-
um Brasil brasileiro. Isto supõe a existência cunscrita ao contexto da Primeira República,
de um Brasil que não é brasileiro. Ou seja, Euclides da Cunha relaciona a mestiçagem
está implícito de que há duas modalidades com uma visão sombria acerca das possibili-
de Brasil. Mas é sobre a primeira que o au- dade de o Brasil vir a se constituir como uma
tor se detém e, para tanto, indica o que pos- nação de envergadura, na década de 30, mas
sibilita o Brasil ser brasileiro. Nesse sentido, precisamente em 1933, Gilberto Freire em
não é apenas a condição de mulato, mas tam- Casa Grande & Senzala vai na direção contrá-
bém, de inzoneiro. Inzoneiro no sentido de ria. Freyre conduz seus argumentos para pro-
manha, de jogo de cintura, enfim, de flexibi- duzir um efeito de positividade sobre o
lidade adaptativa. Este atributo não se reduz mestiço. É oportuno ressaltar que durante o
à conotação de "jeitinho", isto é, a noção de Estado Novo buscava-se definir as raízes do
levar vantagem, ignorar de forma reativa as Brasil, a brasilidade. Procurava-se construir um
regras ou explorar o outro. Ao contrário, discurso que definisse o ser brasileiro e, com
aponta para a habilidade de descortinar saí- isso, fizesse um Brasil avançar sobre o Brasil,

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ou seja, produzisse uma homogeneidade, uma está subordinada a um conjunto de estereóti-
unidade. É de dentro desse contexto que sur- pos sobre o Brasil. Ele analisa festas, shows e
ge a música Aquarela do Brasil. Além disso, desfile de carnaval. Esse último é denomina-
há outro elemento importante. Ela passa a ser do de "Carnaval Parade" e se encontra entre
bastante executada no momento em que o um dos maiores festivais multiculturais dos
Brasil estabelece a aliança com os Estados Estados Unidos. Faz, inclusive, parte do ca-
Unidos, em 1942. Nesse instante, o governo lendário cultural de São Francisco no qual es-
americano instala um bureau de assuntos cul- tão presentes uma diversidade de estilos
turais, dirigido por Nelson Rockfeller, e in- musicais. Nele se apresentam grupos da Bolí-
veste massissamente num intercâmbio cultural. via, Bulgária, Cabo Verde, Cuba, Espanha, Fi-
Vinham para cá e iam para lá escritores, artis- lipinas, Jamaica, Japão, Haiti, Itália, México,
tas, professores universitários e estudantes. Panamá, Porto Rico e Trinidad Tobago.
Entre os que foram estão Érico Veríssimo e Ribeiro chama atenção para o fato de
Carmem Miranda. Entre os que vieram, está o que os grupos brasileiros e os caribenhos são
cineasta Orson Wells que faz, inclusive, fil- os maiores, mais freqüentes e os que produ-
magens no Ceará e cuja produção foi quase zem um maior clímax não apenas pelo o rit-
toda vetada pelo governo americano. Além mo, pelas fantasias e pela coreografia, mas
dele, vem Walt Disney e desenha o persona- também, pelo que o público considera como
gem Zé Carioca: um papagaio falante, "entusiasmo" e "sensualidade" das mulheres
inzoneiro e natural do Rio de Janeiro. Assim, brasileiras. Além disso, Ribeiro encontrou um
para compor a sua galeria de personagens e dado curioso. Em São Francisco, predominam
montar Histórias em Quadrinhos que tives- brasileiros oriundos do estado de Goiás e seus
sem ressonância com o que julgava ser o povo modos de representar o Brasil não estão liga-
brasileiro, Walt Disney escolhe o papagaio e dos a um "estado rural, do centro-oeste, onde
o associa ao exótico e ao Rio de Janeiro. As- gado, cerrado, piqui, rio Araguaia e música
sim, no momento de efervescência do Estado country supostamente seriam os elementos
Novo exalta-se o mulato, elege-se um estilo construtores de sua identidade'. Ao contrário,
de música, o samba e reafirma-se um lugar eles lançam mão de elementos subordinados
do Brasil, o Rio de Janeiro. basicamente a uma matriz carioca, apontan-
EIsa Soares é mulata, carioca e sam- do, com isso, que o Rio de Janeiro funciona
bista. Portanto, nela estão reunidos todos os como a fonte de representação que prevale-
elementos básicos que fundam essa noção de ce nesse país. Sobre isso, é bom lembrar que,
brasilidade. Além do que, e não menos im- a partir de 1763, o Rio de Janeiro passou a
portante, ela tem 62 anos. Esta senhora, por ser a sede da administração colonial, e em
conseguinte, se desenvolveu no interior do seguida, dos governos imperial e republica-
espírito dessa época. Foi socializada dentro no. Foi, portanto, durante quase dois séculos
de suas estruturas, adquiriu um habitus, ou o centro do poder político e administrativo
seja, uma disposição permanente para sentir, desse país. Além disso, e tão importante quan-
agir e pensar de uma determinada maneira. to se constituiu como um ponto de conver-
Mas como explicar que migrantes bra- gência e difusão da cultura brasileira. Daí a
sileiros nos Estados Unidos na faixa etária dos importância do Rio de Janeiro como emble-
30 anos também adotem o samba e o Rio de ma nacional. Se os promotores do Millenium
Janeiro como os elementos que os singulari- Concert escolheram a carioca e sexagenária
zam enquanto indivíduos portadores da cida- sambista EIsa Soares para representar o Bra-
dania brasileira? Em sua recente pesquisa sil, os migrantes brasileiros, em São Francis-
sobre brasileiros na cidade de São Francisco, co, na faixa etária dos 30 anos também
na Califórnia, Gustavo Lins Ribeiro (1996) escolhem o Rio de Janeiro para expressar sua
mostra como a identidade destes migrantes brasilidade.

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Além dos resultados dessa pesquisa da disposição para explorar novos espaços,
que, junto com a reportagem da "ISTO É", uma contundente miscibilidade e um despren-
apontam para elementos comuns, há um ou- dimento para viver em ambientes ecológicos
tro dado que eu gostaria de apresentar. O distintos, diversos e até hostis. O que eu que-
Jornal O Povo trouxe uma matéria, no dia 30 ro ressaltar aqui é o fato de que a obra de
de setembro de 1999, sobre o lançamento do Gilberto Freyre é datada de 1933, justamente
livro "Brasil, A Europa dos Trópicos' do Pro- no período em que esforços se concentram
fessor Caio Lóssio Botelho, professor titular para dar uma outra interpretação sobre o Bra-
do Departamento de Geografia da Universi- sil e onde a mestiçagem ocupa um lugar de
dade Federal do Ceará. Nessa reportagem, o positivo relevo. O curioso é observar a força
autor dá uma entrevista explicando que seu dessa interpretação tanto na fala de um re-
livro trata da colonização portuguesa no Bra- presentante do mundo acadêmico-científico
sil. Numa determinado ponto, ele faz a se- quanto na de Eisa Soares que, ao montar o
guinte comparação entre Brasil e Estados repertório do recital que fará como represen-
Unidos: tante do Brasil, incluiu de forma
superdestacada a música Aquarela do Brasil.
"Existe no Brasil algo inusitado que não aconteceu Nesses três discursos há uma conver-
lá fora. O português incentivou o cruzamento de gência: todos remetem a questão racial no
diversas raças. Não como nos EUA,onde o cruza- Brasil. Nesse sentido, é oportuno lembrar que
mento só existiu entre um grupo racial: o no início do século XX era intensa a discus-
caucasóide. Entre alemães, ingleses, holandeses. A
são sobre a constituição da nação brasileira
população branca marginalizou a população ne-
nos meios político, científico e intelectual.
gra, destruiu a população indígena. No Brasil, o
português incentivou o cruzamento da população Ressoava de forma bastante desconfortável nas
branca, negra e indígena. Daí por que somos a elites brasileiras o parecer que estudiosos
maior nação mestiça do planeta. O país se superpõe europeus e norte-americanos produziram so-
numa harmonia tão perfeita que foi incapaz de bre o Brasil.Tanto Gobineau, na França, quan-
fragmentar a nossa unidade política". to Louis Agassiz, nos Estados Unidos, teceram
considerações sobre o Brasil nos seus livros.
Ao comparar Brasil e Estado Unidos, o Ambos estiveram aqui, tendo Gobineau, in-
Prof. Botelho o faz através da variável clusive, exercido o cargo de embaixador. Para
mestiçagem e coloca nela a razão de ser da eles, o país era inviável porque os mestiços
unidade política brasileira. Além disso, a constituíam a grande parcela da população.
mestiçagem é um fator que singulariza o Bra- Os cruzamentos entre branco, negro e índio
sil e o coloca na posição da "maior nação eram vistos como altamente indesejáveis para
mestiça do planeta". Essa posição do profes- a preservação, progresso e bem-estar de uma
sor Caio Lóssio também está desenvolvida por nação. O mestiço era considerado um ele-
Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala". mento de degeneração, uma vez que se cons-
No capítulo de abertura que tem por título tituía num tipo híbrido, indefinido, e,
"Características Gerais da colonização portu- consequentemente, desprovido da vitalidade
guesa do Brasil: formação de uma SOCiedade necessária para responder aos desafios da
agrária, escravocrata e bibrida ",Freyre faz um vida. Para estes estudiosos, o Brasil apresen-
elogio à colonização portuguesa no Brasil e tava não apenas perspectivas sombrias, mas
procura introduzir no leitor o orgulho por ter também, era o exemplo dos efeitos deletéri-
como herança um povo cujo traço fundamen- os da mestiçagem: atraso, miséria, preguiça,
tal é sua plasticidade. Em outras palavras, seus ignorância e doença.
argumentos destacam a colonização portugue- Contudo, as elites brasileiras ansiavam
sa por sua capacidade em criar formas de introduzir-se no mundo da "civilização" e,
adaptação expressas através de uma acentua- conseqüentemente, da modernização. Procu-

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raram, então, um modelo explicativo que per- o instrumento que viabilizaria a construção da
mitisse a solução para o diagnóstico de nação. Ela não apenas "melhoraria" a pele
mestiçagem racial como causa do estado de dos indivíduos, mas também, os seus cére-
indigência do país. As concepções bros: melhor caráter, brilhante inteligência e
deterministas de raça, em vigor na Europa, vigorosa capacidade empreendedora.
são elaboradas aqui em torno da teoria do Seyferth (985) analisando esta teoria
branqueamento. Baseada na superioridade da trabalha com a tese de João Batista de Lacerda,
raça branca e na inferioridade das demais, tal antropólogo e diretor do Museu Nacional, a
teoria supunha que o negro estava fadado a partir de dois textos. Um, apresentado no "Pri-
extinção e o elemento branco predominaria meiro Congresso Universal das Raças - Lon-
na "dosagem" dos mestiços. Isto ocorreria atra- dres (911) e o outro (912) em resposta às
vés de dois mecanismos: a seleção natural e críticas que recebera quando da divulgação do
a seleção sexual. Pela seleção natural se ex- primeiro. Levando em conta o contexto políti-
plicava a inexorável extinção do negro su- co e científico da época, o exame da autora se
pondo que ele era portador de baixa taxa de detém basicamente, a apontar as contradições
natalidade, de propensão a doenças e da in- e ambigüidades presentes na argumentação de
capacidade de civilizar-se. Pela seleção se- Lacerda. Ela afirma que Silvio Romero, em 1888,
xual, se engendrava uma outra visão da foi um dos primeiros autores a tratar a teoria
miscigenação. Esse mecanismo possibilitaria do branqueamento de forma sistemática e que,
a reprodução de indivíduos mais claros por- portanto, antes de Lacerda lhe conferir status
que a preferência por um parceiro recairia de ciência, estas idéias já circulavam no meio
sobre o branco. Além disso, como a teoria do do público. A questão em foco é o fato de
branqueamento sustentava a idéia da superi- Lacerda ter ido ao congresso representando o
oridade da raça branca e pretendia criar uma governo brasileiro e, por isso, investido na con-
positividade para o fato da miscigenação, ela dição de porta-voz do pensamento oficial.
afirmava que mesmo na união com indivíduo Seyferth aponta que o desafio de tal teoria,
portador de uma herança negra o elemento frente ao mito ariano prevalecente, era de-
branco predominaria. Essa teoria não estava monstrar como através da miscigenação se al-
apenas no plano do pensamento social brasi- cançaria uma nação constituída por uma raça
leiro. Ela se encontrava incorporada à visão superior. Ou seja, como se alcançaria a condi-
oficial e, portanto, servia como instrumento ção de branco num país onde predominam o
para a formulação de políticas de migração e negro e o mestiço. Seyferth mostra os artifícios
colonização. Regulamentos e leis, que deli- de raciocínio e o malabarismo lógico que o
beravam sobre a entrada de trabalhadores es- autor produz para juntar proposições mutua-
trangeiros no país, eram elaboradas a partir mente excludentes, como por exemplo, afir-
dessas concepções. Através da teoria do bran- mar que todas as raças são iguais e, ao mesmo
queamento, a Primeira República procurava tempo, apresentar o negro como incapaz de
produzir instrumentos de intervenção que atingir o estágio da "civilização". Ao longo do
possibilitasse a homogeneização do povo bra- texto, Seyferth tem a preocupação de apontar
sileiro: ele se tornaria basicamente branco. para a dimensão ideológica da teoria do bran-
Com isso, o Estado estaria dotado de uma na- queamento e seus objetivos políticos dentro
ção apta a participar dos benefícios do pro- do contexto da Primeira República. Além de
gresso junto as demais nações "civilizadas". dar sustentação a política imigracionista brasi-
Em última instância, o que estava em jogo, ao leira, dirigida para contingentes brancos, ela
olhos da elite, era a possibilidade de o Brasil tinha no seu bojo uma justificativa para o
vir a se transformar numa população de infe- colonialismo: os brancos, por natureza, mais
riores e incapazes de civilização. Dessa ma- evoluídos e superiores estavam habilitados a
neira, o branqueamento era percebido como conduzir negros e mestiços.

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É nesse ambiente político e intelectu- A partir dos dados coletados, ele dis-
al que Roquete Pinto inicia, em 1919, a pes- tribui a população brasileira em quatro clas-
quisa para a determinação dos tipos ses denominadas de Leucodermo (branco),
antropológicos brasileiros, que pretendia ser Phaiodermo (branco x negro = mulato),
uma contribuição do Museu Nacional às co- Xanthodermo (branco x índio = caboclo),
memorações do centenário da Independên- Melanodermo (negro). Esta classificação se
cia. O ano de 1822 marcara, com um ato de torna de ampla utilização não somente no
Dom Pedro I às margens do Ipiranga, a campo da Antropologia Física, onde as pes-
pretensa ascensão do Brasil à categoria de quisas passam a tomá-Ia como ponto de parti-
"nação livre e soberana". O ano de 1922, por da, mas também, na literatura nacional. Esta
seu turno, pretendia inaugurar, com a ajuda receptividade extensa se deve, entre outras
da ciência, a consciência do "brasileiro" so- razões, ao fato de Roquete Pinto ser a pessoa
bre si próprio. A pesquisa de Roquete Pinto no Brasil a fazer este tipo de estudo e não ter
vinha atender à pergunta sobre quem são os formado ninguém com a sua envergadura in-
"brasileiros", respaldando-se nas técnicas telectual. Naquele momento, ele era a última
antropométricas do alemão RudolfMartin que, palavra da ciência antropológica no Brasil.Seu
criando novas possibilidades de medir o cor- trabalho marca o momento histórico em que a
po humano, de forma minuciosa, tornara-se Antropologia se volta para estudar o homem
um autor de referência. Além dessa corrente, miscigenado, com o objetivo de examinar se
Roquete Pinto busca a vertente francesa lide- o atraso do país estava associado à composi-
rada por Bertillon que, introduzindo outros ção genética do seu povo, como sustentava a
cálculos estatísticos, ampliou as interpretações visão de fora. É interessante notar que Roquete
e o manejo dos dados. Pinto usava o termo "brasiliano", provavel-
Assim, munido de um arsenal teórico, mente para distinguir a perspectiva de quem
metodológico e técnico, Roquete Pinto parte examina uma realidade de dentro e, por isto,
para produzir uma interpretação sobre a cons- acredita ter os requisitos para fornecer ele-
tituição racial do Brasil. Naquelas circunstân- mentos singulares para a sua compreensão.
cias históricas, esta aspirava por ser a A apresentação dos resultados de sua
representação fiel do país, uma vez que, além pesquisa, contidos no capítulo XV dos "Ensai-
de ser gerada com base na ciência da época, os de Antropologia Brasiliana", segue dois
era feita por um nativo. Seria a fala da pró- momentos distintos e pretende desfazer a co-
pria nação frente às atribuições vinda de fora, nexão entre atraso e mestiçagem. Seu intento
notadamente da Europa e dos Estados Uni- é provar que a causa da ineficiência brasilei-
dos. O nativo em questão era a voz da Antro- ra situa-se para fora do corpo de sua gente.
pologia Física da época e tinha o aval de ser Usando uma linguagem marcada pela
o diretor de uma instituição do porte do Mu- simplicidade, trabalha com duas modalidades
seu Nacional. de dados: o histórico e o antropométrico. Nos
Para determinar os tipos antropológi- momentos iniciais, quando está situando o
cos brasileiros, Roquete Pinto faz o levanta- problema e criando as condições necessárias
mento de medidas em cerca de 2.000 para o surgimento da pergunta pertinente, ele
indivíduos nascidos em todos os estados do trabalha com dados históricos. Estes são do
Brasil e na faixa etária entre 20 e 22 anos. A conhecimento corrente e, portanto, de fácil
pesquisa é publicada na íntegra, pela primei- assimilação pelo leitor, não exigindo esforço
ra vez, em 1928, no volume XXXdos Arqui- de raciocínio nem de concentração. Ele cita o
vos do Museu Nacional. Posteriormente, em movimento bandeirante, a ocupação da Ama-
1933, é incluída numa coletânea de textos do zônia e a conquista de Rondônia como exem-
próprio autor com o título "Ensaios de Antro- plos variantes de um único fenômeno: a
pologia Brasiliana". capacidade do "mestiço" em trabalhar e se

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apropriar da riquezas do país. Posto isto, ele sobre o país, de uma outra tradição na qual se
afirma: "visto que seu modo de agir na luta faça o elogio à mestiçagem.
pela conquista da terra não permite que se É com a Revolução de 30, abrindo ca-
considerem os mestiços do Brasil como gente minho para a implantação do Estado Novo,
moralmente degenerada, vejamos si as suas que a mestiçagem, vista em sua positividade,
características antbropolôgicas mostram vai encontrar abrigo. Nesse regime que se
signaes de decadência anatômica ou inicia em 1938 e vai até 1945 há o fortaleci-
pbysiolõgica. vejamos si é gente physicamente mento do executivo e a centralização político
degenerada" 0933:125). Ele gera, assim, um administrativa. Isto gerou medidas como o fe-
desafio e uma curiosidade. Isto lhe permite chamento do Congresso e das Assembléias
criar um terreno favorável para introduzir estaduais, a suspensão dos partidos políticos,
dados antropométricos (índices numéricos, das associações e dos direitos individuais.
gráficos, tabelas explicações sobre meto- Enquanto isto, o aparato repressivo e as For-
dologia estatística), os quais exigem um ní- ças Armadas eram aperfeiçoadas. Além do
vel maior de abstração e interesse para seguir autoritarismo, o Estado Novo combina fortes
na leitura. Contudo, uma mesma linha de ra- marcas de conservadorismo e nacionalismo
ciocínio comparativo domina toda a análise como princípios que organizavam o pensa-
destes dados. Roquete Pinto toma como mento político e a vida nacionais.
parâmetro principal o tipo branco. Para tan- Conservadorismo concebido dentro de uma
to, a primeira providência é provar, através visão de mundo que privilegia a tradição, a
da estatística, que esse é o tipo predominan- hierarquia e a ordem. Nacionalismo, por sua
te na população brasileira. Isto lhe possibili- vez, engendrado na percepção de que a na-
ta desmentir Gobineau e Agassiz, como ção é um dado da natureza e, por conseguin-
também, apontar para a pretensão em forçar te, de existência e criação imemoriais
uma mudança da posição do Brasil no pano- precisando apenas ser reconhecida. Através
rama internacional da época. O argumento do nacionalismo, o Estado Novo se empenha-
embutido, neste momento da análise, é que va em indicar traços étnicos, culturais, geo-
a população brasileira é branca, portanto, o gráficos e históricos que pudessem definir
país é potencialmente viável. Nas demons- noções como brasileiro e brasilidade (Lippi,
trações seguintes, as medidas de estatura, ín- 1982: 14-30). Uma das estratégias utilizadas
dices nasal e cefálico de mulatos e caboclos para construir este nacionalismo é uma reto-
aparecem com um afastamento pequeno mada do passado colonial português. Nele
quando comparados com as medidas encon- estaria contido as referências do verdadeiro
tradas para o tipo branco. Com isto, Roquete Brasil. A larga influência européia durante a
Pinto produz o argumento de que a miscige- Primeira República era apontada como res-
nação não é biologicamente deletéria e, por- ponsável pelo abandono das tradições, da
tanto, mulatos e caboclos não são a causa do cultura e da história do país. Assim, volta-se
atraso do país. Além disto, como as causas para o passado e elege-se a colonização por-
desta falta de progresso não residem na cons- tuguesa. Ela é vista como dotada de peculia-
tituição biológica do povo, é preciso res qualidades as quais possibilitariam a
identificá-Ia no ambiente e tratá-Ias através existência de um país de dimensões territorial,
da educação. ética e cultural excepcionais. A plasticidade
Assim, por um lado, Roquete Pinto re- adaptativa do português, sobretudo sua tole-
afirma a crença na existência de uma hierar- rância racial, era um dos pontos de ênfase.
quia racial na qual a branca é superior às Com isso e os trabalhos de Roquete Pinto es-
demais e, por outro, rompe o vínculo entre tava preparado o terreno para produzir uma
mestiçagem e atraso. Com isso, ele abre um positividade em torno da questão da
veio para a construção de uma outra narrativa mestiçagem. O negro, o índio e o branco são

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apresentados como os elementos constitutivos chamado Brasil. Esses discursos parecem ace-
de um povo exemplar. Instala-se, então, uma nar na direção do que diz Marx (984), ao
louvação à mestiçagem. chamar atenção para a tradição que insiste
. Dessa forma, o que está sendo afirma- em perdurar: eles são "os mortos que marte-
do, na segunda metade da década de 90 des- lam o cérebro dos vivos'.
te século, pela cantora EIsa Soares, pelos
migrantes brasileiros na cidade de São Fran-
cisco e pelo professor Botelho tem um traje- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
to. Ele pode ser localizado no início da década
de 20 com desdobramentos que ganham con- Castro Faria, Luís. Pesquisa de Antropologia Físi-
tornos mais definidos na experiência do Esta- ca no Brasil: História. Rio de Janeiro: Bole-
do Novo. É neste instante, portanto, que esta tim do Museu Nacional, 13: 1-106, 1952.
visão sobre o povo brasileiro ganha magnitu- Freyre, Gilberto - Casa Grande & Senzala.
de. Sua presença, em 1999, aponta para uma Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
continuidade, uma permanência e significa Gould, Stephan - A Falsa Medida do Homem.
que algo se constituiu como tradição. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Hobsbawm (984) demonstra que, Hobsbawm, Eric & Ranger, Terence - A In-
freqüentemente, certas tradições consideradas venção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz
antigas são, na realidade, recentes. Trabalhan- e Terra, 1984.
do com a noção de "tradição intentada', este Lippi, Lúcia (org.) - Estado Novo: Ideologia e
autor faz a ressalva de que, apesar de ser um Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
termo amplo, não é indefinido pois nele se Marx, Karl - O 18 Brumário de Luiz Bonaparte.
"i nclui tanto as tradições realmente inventa- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
das, construídas e formalmente Morales, Lúcia Arrais - Vai e Vem, Vira e Volta:
)
institucionalizadas, quanto as que surgiram de As Rotas dos Soldados da Borracha. Rio de

maneira mais difícil de localizar num período Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 1999. Tese.
-c: limitado e determinado de tempo". No caso
aqui exposto, não se trata de algo difícil de
Moura, Gerson - Tio Sam chega ao Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
Q
localizar no tempo. A exaltação à mestiçagem, Reis, Rossana & Sales, Teresa (org.) - Cenas do
enunciada nas formulações do professor da Brasil Migrante. São Paulo: Boitempo, 1999.
Universidade Federal do Ceará, vem acom- Raquete Pinto, Edgar - Ensaios de Antropolo-
panhada de uma glorificação ao samba e ao gia Brasiliana. São Paulo: Companhia
Rio de Janeiro nos discursos da cantora EIsa Editora Nacional, 1933.
Soares e dos migrantes brasileiros nos Esta- Seyfert, Giralda - A A ntropologia e a Teoria
dos Unidos. Todavia, todos esses casos de- do Branqueamento da raça no Brasil: A
monstram que o Estado Novo ainda está tese de João Batista de Lacerda. In: Revis-
presente, balizando o olhar sobre os indiví- ta do Museu Paulista (5), São Paulo, Mu-
duos e os grupos que habitam um território seu Paulista (30), 1985.

58 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS v.31 N.2 2001

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