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Milton Santos
Retomarei aqui algumas categorias de análise que vêm norteando minha reflexão
ao longo dos últimos anos em suas implicações para uma melhor compreensão da
problemática do território nesta era de globalização.
O evento
A primeira dessas categorias é a noção passado que aparece como presente. O
de evento. Ela tem entrada recente no presente é fugaz e sua análise se realiza
meu vocabulário e imagino que seja sempre a partir dos dois pólos: o futuro
talvez a minha contribuição pessoal mais como projeto e o passado como reali-
importante, na medida em que é a zação já produzida. O evento aparece
forma de resolver uma série de proble- como essa grande chave para unir tam-
mas de método. Isso porque permite bém as noções de tempo e espaço, que
unir o mundo ao lugar; a História que até recentemente não apareciam como
se faz e a História já feita; o futuro e o um todo único. Mesmo os que avança-
*
Texto apresentado em seminário organizado pelo Laboratório de Conjuntura Social: tecnologia
e território (LASTRO/IPPUR) e pelo Núcleo de Cidadania e Políticas Públicas da FASE.
Ricardo Salles, doutorando em História na UFF, colaborou na edição, e Cristiane Calheiros
Falcão, Laura Maul de Carvalho e Alice Lourenço, na transcrição.
A forma-conteúdo
Nesse caso não se trata de trabalhar a realiza através sobretudo de formas-
forma em si, nem o conteúdo em si. Essa conteúdo? Estas seriam as dotadas do
seria a contribuição dos “territoriólogos”, que chamei também de inércia dinâmica,
geógrafos à frente, evidentemente, para enquanto não havia ainda inventado essa
o entendimento da sociedade. A socieda- idéia de forma-conteúdo. Uma forma
de em si pode ser uma categoria, mas que, por ter um conteúdo, realiza a socie-
quem jamais trabalhou o país com essa dade de uma maneira particularizada,
idéia de sociedade em si, dessa sociedade que se deve à forma. Isto é, aquela
total? Onde está ela? Será que o país se concha na qual a sociedade deposita
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de todos, sem excluir quem quer que muito grave, porque não são considera-
seja, sem excluir qualquer que seja a ins- das a totalidade dos atores, a das institui-
tituição ou a empresa. Dessa forma, have- ções, a das pessoas e a das empresas.
ria uma volta à noção de totalidade dos Procura-se explicar aos empresários o
atores agindo no espaço. Coisa que os que eles fazem, dedica-se muito aos
“territoriólogos”, mas sobretudo os pla- fluxos dominantes e abandonam-se os
nejadores, deixaram para trás, porque a outros. Ou, pelo contrário, estuda-se a
pesquisa e o ensino do planejamento são pobreza como se ela fosse independente
realizados, na maior parte dos casos, do conjunto de circunstâncias. O que se
sobre algo que não é o espaço. O plane- produz não é uma interpretação da po-
jamento espacial, o planejamento terri- breza, pois falta essa idéia de totalidade,
torial, o planejamento regional não são que só poderá ser alcançada pela noção
planejamentos do espaço. Não o são na de horizontalidade.
prática, na pesquisa e no ensino, o que é
O território usado
O território não é uma categoria de aná- lética. A sociedade não atua sobre a na-
lise, a categoria de análise é o território tureza em si. O entendimento dessa ação
usado. Ou seja, para que o território se é o nosso trabalho e parte do valor que
torne uma categoria de análise dentro é dado àquele pedaço de natureza –
das ciências sociais e com vistas à pro- valor atual ou valor futuro.
dução de projetos, isto é, com vistas à
política, com “P” maiúsculo, deve-se É o caso da Amazônia. A ação presen-
tomá-lo como território usado. Por que te, os interesses sobre parte do território,
essa insistência? O marxismo vendeu, e a cobiça, e mesmo as representações
vendeu bem, algumas idéias que eu pró- atribuídas a essa parte do território têm
prio escrevi na minha maturidade, tam- uma relação com o valor que é dado ao
bém repetindo o mainstream marxista. que está ali presente. O que há na reali-
Uma delas é a relação sociedade–natu- dade é relação sociedade e sociedade
reza que abunda na literatura que nos enquanto território, sociedade enquanto
concerne como “territoriólogos”. Mas espaço. O território não pode ser uma
onde é que se encontra essa relação categoria de análise, tem de ser conside-
sociedade–natureza? Será que há real- rado território usado. Na realidade,
mente essa dialética sociedade–nature- quando uma empresa, uma instituição,
za? Eu creio que não. A dialética somente um grupo, agem sobre uma fração do
se realiza a partir da natureza valorada território, num momento “T” do tempo,
pela sociedade; é aí que começa a dia- não desconsideram o que ali já existe,
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O saber local
A territorialidade é um atributo do terri- propriamente dito; tem de saber, mais
tório ou dos seus ocupantes? Vivo o meu e mais, sobre o mundo, mas tem de res-
cotidiano no território nacional ou no pirar o lugar em si para poder produzir
lugar? Essas perguntas me parecem im- o discurso do cotidiano, que é o discurso
portantes porque estão ligadas ao que da política. Por conseguinte, o expert de
eu chamaria de saber da região em con- fora vem como aquele que atiça a brasa
traposição a saber do expert internacio- como um fole. E tem que ir embora.
nal. Este, cada vez mais, é chamado a Tenho cada vez mais consciência de que
falar sobre o lugar, quando no máximo há necessidade de se fortalecer a pro-
deveria fazer uma palestra de dois dias dução desse saber local e, no caso bra-
e ir embora. Porque o saber local, que sileiro, de apoiar a multiplicação da
é nutrido pelo cotidiano, é a ponte para Universidade, sobretudo de mestrados,
a produção de uma política – é resultado para a geografia brasileira. Essa é a nossa
de sábios locais. O sábio local não é garantia de que a disciplina vai continuar
aquele que somente sabe sobre o local viva. E isso é central: que os monopólios
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Aqui retomo a noção de tempo em- mesma coisa, estou fornecendo um ca-
pírico. O que buscar para tornar o even- minho de método para a História e,
to analítico analiticamente utilizável? paralelamente, para a Geografia.
Vou, se o que está em questão é a ação
do fato financeiro, tentar encontrar o O que é que estamos vendo acon-
que o caracteriza em geral, em seguida tecer agora em relação à composição
o que o caracteriza em particular e, a orgânica do território? É que no territó-
partir daí, verificar como incide sobre rio diminui o número de empregos pro-
uma sociedade e um lugar. O mesmo priamente agrícolas e, mais ainda, o
procedimento se aplicaria para o fato número de empregos rurais. Isso pela
industrial, o fato informacional, aquela mudança de composição orgânica da
notícia, aquele rumor. Acho que isso é atividade agrícola e da vida do território.
que permitiria datar os eventos. Essa A cidade abriga uma parte importante
seria a metodologia a utilizar. Escolheria dos empregos agrícolas, de tal maneira
ainda um número de variáveis signifi- que temos hoje no país mais empregos
cativas e acompanharia sua historiciza- e atividades agrícolas do que rurais. O
ção e geografização. Faria esse caminho campo é que é o lugar do capital e não
para trás, reconhecendo presentes su- mais a cidade. É o campo brasileiro o
cessivos, porque se trata de (re)encon- lugar de acolhimento mais fácil para o
trar presentes sucessivos. capital. A cidade resiste às formas hege-
mônicas do capital e passa a ter um papel
Quando se lê um relatório da Asso- de porta-voz desse campo larga e pro-
ciação dos Geógrafos Brasileiros dos fundamente capitalizado, juntamente
anos 1940 ou 1950, vê-se uma tentati- com a obrigação de estender a vertica-
va de reconstituição do passado. A in- lidade ao campo por meio de processos
tenção era descrever o presente; mas, técnicos nas áreas da produção direta.
lido a posteriori, torna-se uma oferta de A cidade é cada vez mais um interme-
interpretação do que passou, que pode diário, na produção direta, do processo
ser canhestra, que pode ser insuficien- técnico da produção, mas não do pro-
te, que pode ser pobre, mas que pode cesso político. Só que ela se investe de
também ser rica se escolhermos bem as uma vontade política que é diferente da
categorias. E é por isso que a Geografia que havia há quinze anos no Brasil. Essa
é cada vez mais uma disciplina que só é vontade política se manifesta através da
praticada a partir de uma teoria. Para imprensa local, da rádio local, dos pro-
evitar exatamente que as interpretações longamentos locais da televisão, que têm
sejam incoerentes. Essa busca de coe- de usar uma linguagem diversa da utili-
rência, de solidariedade entre os “acon- zada pela grande imprensa nacional,
teceres” num pedaço do território é o estadual ou pela televisão mais geral.
que temos por fim. E isso é válido tam- Assim, a partir de um certo tamanho, a
bém para a História, já que o espaço e cidade acaba sendo esse laboratório po-
o tempo são a mesma coisa. Quando lítico, dado que a agricultura exige uma
considero espaço e tempo como uma certa quantidade de emprego urbano
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que não tem relação direta com a pró- obediência a estas eles serão excluídos.
pria agricultura. Esse fato cria dentro da Assim, a primeira coisa que o agricultor
cidade uma complexidade de funções de uma área moderna terá de fazer, se
inimagináveis há vinte anos e uma com- quiser sobreviver, é obedecer, como
plicação em matéria de interesse, que num exército, à palavra de ordem. Po-
poderá transformar-se em uma comple- deríamos identificar na figura do servo
xidade de preocupação da ordem polí- da gleba, da Idade Média, esses agricul-
tica, já que tudo se resolve na ordem tores modernos. Ou seja, são servos de
da política e a economia se realiza a uma ordem global cujo mecanismo co-
partir da política das empresas e do Esta- nhecem pouco, sabendo porém que a
do. Creio que por aí aproximar-se-ia, a obediência é indispensável para conti-
partir do acontecer empírico (o aconte- nuar presentes. Nesse caso, o lugar para
cer é sempre empírico, mesmo quanto a solidariedade é menor porque o pro-
às idéias), de uma tentativa de interpre- cesso de vida, a produção de sua exis-
tação que talvez encontrasse essa pro- tência, de alguma maneira, supõe
dução de horizontalidade, quando o preocupações menos altruísticas. Trata-
que se quis produzir foi a exclusiva verti- se da tensão da bolsa, do mercado, da
calidade, mesmo quando não se fala da necessidade de obedecer às regras de
grande cidade, mas também das cidades produção, de colheita, de empacota-
que no Brasil chamamos de médias. E, mento. Tudo o que verificamos no Pa-
a partir disso, é originado esse mecanis- raná e sobretudo em Santa Catarina,
mo de horizontalização, que é tanto mais por exemplo, com a produção de por-
rico quanto maior é a divisão do traba- cos ou de frangos, é exemplo típico dessa
lho interna às cidades e que tem um po- obediência indispensável do produtor a
tencial de despertar político na medida uma cadeia técnica que responde a uma
em que a própria atividade econômica demanda econômica que cria nele com-
sugere esse entendimento a partir da po- portamentos regulados, de tal forma
lítica. que excluem a idéia que se possa ter de
prática da solidariedade.
Haveria a possibilidade de distinguir
lugares pela sua capacidade inata de Talvez desse modo pudéssemos ana-
produzir mais ou menos solidariedade? lisar o que se chama sociabilidade a partir
Haveria lugares onde essa disposição de condições geográficas, ou geo-socio-
para a solidariedade pudesse se exercer econômicas, ou geo-sociopolítico-eco-
mais fortemente, mais rapidamente, nômicas, o que implica uma diferença
mais conscientemente? Retomo rapida- essencial entre o que chamaríamos de
mente uma oposição hoje factível nas rural e o que chamaríamos de urbano.
áreas mais modernas entre o rural e o Isto é, a oposição rural e urbano vai to-
urbano. O rural submetido às leis da glo- mando novos contornos, novos conteú-
balização convoca os participantes do dos, novas definições, diferentes das que
trabalho rural a uma atitude de subor- aprendemos e ensinamos ainda há vinte
dinação a essas normas, porque sem anos. A cidade é isso: ela fornece a pre-
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