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Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.219/7103
O território em disputa: o espaço público não utilizado, dominado por agentes do tráfico
e da prostituição, é conquistado para o uso das crianças e famílias (Programa Centro
Aberto, Largo do Paissandú)
Foto Red OCARA, 2014
Introdução
"É sem dúvida um dos piores males do nosso atual sistema fundiário que, ao
invés de colher o benefício do esforço comum de seus cidadãos, uma comunidade
acabe sempre por pagar pesada penalidade aos proprietários de terra por
valorizarem as suas terras".
David Lloyd George, primeiro-ministro britânico, em 1909, ao introduzir uma
taxa de captura da valorização terra como parte da primeira lei nacional de
planejamento e uso do solo (1).
Assim como a grande maioria das cidades brasileiras, São Paulo se constituiu, em
grande medida, a partir do somatório de lógicas desordenadas e espontâneas e opções
tecnocráticas com inexistência de um objetivo comum de coletividade; sendo assim,
mostrou-se negligente perante um planejamento orientado ao uso equilibrado do
território. Esse processo histórico, agravado com o dramático crescimento da cidade
durante o século 20, revela na atualidade um intenso desequilíbrio socio-
territorial, que gera uma demanda urgente pela introdução de um novo padrão de
cultura urbana, que passa pela questão da terra urbana.
Para promover uma lógica de construção de tais políticas públicas urbanas com visão
de inclusão socio-territorial continuada é fundamental, além de superar disputas
governamentais, perpetuar uma apropriação das estratégias construídas e pactuadas
junto à sociedade. A assiduidade dessas estratégias depende da coerência cotidiana
que elas têm para a população, pois o êxito recai sobre sua participação tanto no
momento da elaboração das políticas e planos territoriais, quanto na posterior
manutenção das ações urbanas. A inserção junto à comunidade só é socialmente
pactuada se a abordagem não for imposta de cima para baixo, mas trabalhada com ela,
em constante colaboração.
O protagonismo da inclusão socio-territorial e a indução do urbanismo social
O urbanismo social objetiva promover a melhoria da qualidade de vida urbana e a
inclusão socio-territorial, especialmente direcionando investimentos para áreas
mais socialmente vulneráveis e para a solução integrada de grandes questões
habitacionais urbanas e de infraestruturas de suporte. Em outras palavras, busca-
se aproximar pessoas e infraestrutura: adensar onde há infraestrutura, bem como
prover mais e melhor infraestrutura de suporte onde há maior densidade populacional
e onde há maiores necessidades e carências. Além disso, sobretudo, busca-se
financiar a cidade com os recursos gerados pelo próprio processo de urbanização,
com critério redistributivo.
O urbanismo social demanda a integração das políticas públicas que atuam sobre o
território, as quais incluem: planos e ações integradas em infraestrutura urbana,
mobilidade urbana, serviços e equipamentos públicos sociais, além de habitação
social. Quando se discute transporte e habitação conjuntamente, por exemplo, está
se discutindo o metabolismo das cidades mais sustentáveis socialmente a partir de
um uso mais equilibrado do território.
Assim, o urbanismo social não se refere apenas, ou isoladamente, às questões de
oferta de moradia social e urbanização de favelas ou à construção de equipamentos
sociais nas periferias, mas antes à promoção da cidade acessível socialmente através
do acesso à terra qualificada. Tal processo deve ocorrer por meio de infraestrutura
de suporte e moradia adequadas, além de uso coletivo do território, acessível a
todos.
Têm sido observadas nos anos recentes mudanças no comportamento social da população,
que passa a reivindicar seu direito à cidade, ocasionando assim transformações
nítidas no espaço público, que perde seu caráter único de passagem para se tornar
destino. O ato de percorrer e permanecer na rua assegura benefícios aos seus
usuários, incentiva a economia local e alavanca as livres expressões culturais.
Lutas cívicas acompanhadas por ações públicas ousadas são resultados da
participação popular na demanda sobre os setores públicos e no envolvimento aos
âmbitos decisórios da gestão urbana.
Assim como o ônus desse modelo de cidade ultrapassa seus efeitos às pessoas pobres,
os benefícios de uma política fundiária orientada ao acesso à terra com
infraestrutura e qualificada e ao uso coletivo do território trazem benefícios
gerais para toda a população. Políticas e medidas adequadas para corrigir os
desequilíbrios e incentivar os comportamentos favoráveis a um outro modelo de
urbanismo devem centralizar esforços na política fundiária.
O instrumento da OODC é aplicado de forma vigorosa – com uma nova fórmula, adotando
base de referência de valores de mercado e fatores de planejamento e social
balanceados – e coloca a cidade como referência no país e na América Latina a
respeito do uso do principal instrumento de captura da valorização fundiária. A
arrecadação ocorrida em 2013 e o investimento realizado em 2014 através do Fundurb
mostram a capacidade redistributiva desse instrumento e atestam que apenas ações
vigorosas e sistêmicas como essa são capazes de reestruturar o espaço urbano a
longo prazo. A arrecadação da outorga é mais intensa na área das subprefeituras
mais privilegiadas da cidade, mas esse montante é gasto em áreas de maior
vulnerabilidade social.
O território em disputa: o espaço público não utilizado, dominado por agentes do tráfico
e da prostituição, é conquistado para o uso das crianças e famílias (Programa Centro
Aberto, Largo do Paissandú)
Foto Red OCARA, 2014
notas
1
"It is undoubtedly one of the worst evils of our present system of land that instead of
reaping the benefit of the common Endeavour of its citizens a community has always to
pay a heavy penalty to its ground landlords for putting up the value of their
land".ALTERMAN, Rachelle. Land-use regulations and property values: the “windfalls
capture” idea revisited. In BROOKS, Nancy; DONANGHY, Kieran; KNAPP, Gerrit-Jan
(Org.). The Oxford handbook on urban economics and planning. Oxford, Oxford University
Press, 2012, p. 755-786.
2
Evento ocorrido na Universidade Presbiteriana Mackenzie em 5/3/2018. Ver: 3º Seminário
Instrumentos Urbanos Inovadores. Intervenções urbanas: instrumentos de
viabilização. Eventos, São Paulo, Vitruvius, 18 dez. 2017
<http://www.vitruvius.com.br/jornal/events/read/1850>; 3º Seminário Instrumentos
Urbanos Inovadores. Esquina: Conversas sobre cidades. Disponível in:
<https://bit.ly/2CrWBqk>.
3
O PDE recebeu prêmio da ONU–Habitat em 2017 por "tornar a cidade mais humana, moderna
e equilibrada, através do emprego e da moradia, para enfrentar as desigualdades
socioterritoriais”. Plano Diretor da cidade de São Paulo vence prêmio de agência da
ONU. Nações Unidas no Brasil, Brasília, 09 jan. 2017 <https://nacoesunidas.org/plano-
diretor-da-cidade-de-sao-paulo-vence-premio-de-agencia-da-onu/>.
4
HADDAD, Fernando. Um desenho para São Paulo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 jul. 2014
<http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/07/1486491-fernando-haddad-um-desenho-para-
sao-paulo.shtml>.
5
FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro, Globo, 1989; HOLLANDA, Sergio
Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1984.
6
BRASIL. Estatuto da Cidade – Lei 10257/01. Disponível in:
<https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/101340/estatuto-da-cidade-lei-
10257-01>.
7
FLORIDA, Richard. The new urban crisis. How our cities are increasing inequality,
deepening segregation, and failing the middle class and what we can do about it. Nova
York, Basic Books, 2017.
8
KHAN, Sadiq; COLAU, Ada. City properties should be homes for people first – not
investments. The Guardian, Londres, 03 jul. 2018
<www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/03/city-properties-homes-people-first-
london-barcelona>. No mesmo ensejo, a importante International Federation for Housing
and Planning – IFHP, lançou recentemente seu novo programa Social Cities, com o desafio
de construção de indicadores de aferição da sustentabilidade social, conceito intangível
recorrentemente negligenciado em políticas públicas internacionais. Introducing Social
Cities. International Federation for Housing and Planning, Copenhagen
<https://www.ifhp.org/ifhp-blog/introducing-social-cities>.
9
TULLER, David. Housing and health: the role of inclusionary zoning. Health Affairs
Health Policy Brief. Berkeley, University of California, 2018; SALDIVA, Paulo. Vida
urbana e saúde. São Paulo, Contexto, 2017, p. 53.
10
A este respeito, Leonardo Benévolo realiza uma aproximação histórica ao surgimento da
regulação e das obrigações urbanísticas na Inglaterra e França durante o século 19. Em
seu relato, em especial no caso inglês, o autor expõe o processo de oposição
dos landlords às recomendações do comitê de higiene; recomendações que em essência
retiravam a liberdade construtiva impunham a internalização de custos da urbanização e
reduziam ou colocavam limites ao lucro imobiliário. Exemplos do fenômeno são as
exigências de janelas e pátios interiores de ventilação, a introdução de infraestruturas
de redes de água e esgoto e a proibição de aluguel de porões, que antes serviam de
habitação a grupos de dez ou até mais pessoas. BENÉVOLO, Leonardo. Orígenes del urbanismo
moderno. Madrid, Celeste Edições, 1992.
11
BRASIL. Estatuto da Cidade – Lei 10257/01. Op. cit.
12
“O tributo sobre os valores da terra é, portanto, o mais justo e igual de todas os
tributos. Recai somente sobre aqueles que recebem da sociedade um benefício peculiar e
valioso, e sobre eles na proporção do benefício que recebem. É a tomada pela comunidade,
pelo uso da comunidade, desse valor que é criação da comunidade. É a aplicação da
propriedade comum para usos comuns”. GEORGE, Henry (1879). Progress and Poverty. Nova
York, Robert Schalkenbach Foundation, 2011.
13
SALDIVA, Paulo. Op. cit., p.75.
14
Ver especialmente o caso paradigmático do Largo Paissandú.
15
No país das leis qualificadas e inovadoras, mas não aplicadas, a questão dos instrumentos
de indução da função social da cidade é particularmente sintomática, infelizmente. A
Pesquisa de Informações Básicas Municipais – Munic, mais recente (dados de 2015) revela,
com relação aos dois instrumentos de captura da valorização da terra existentes no país
– Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC, Operações Urbanas Consorciadas – OUCs
e Certificados de Potencial Adicional Construtivo – CEPACs que 1.946 municípios no
Brasil prevêem OODC e 1.401 OUCs em leis do Plano Diretor ou específicas, mas sabe-se
que (i) pouquíssimos municípios as aplicam de fato e (ii) mesmo nesses, a aplicação
está sendo realizada muitíssimo aquém de seu real potencial, arrecadando-se valores
muito baixos quando comparados aos parâmetros desejáveis. Pesquisa de informações
básicas municipais. Perfil dos Municípios Brasileiros 2015. Rio de Janeiro, Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006. Disponível in:
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95942.pdf>
16
HADDAD, Fernando. A cidade é o produto de uma ação coletiva. The City Fix Brasil, Porto
Alegre, 24 nov. 2015 <http://thecityfixbrasil.com/2015/11/24/fernando-haddad-a-cidade-
e-o-produto-de-uma-acao-coletiva/>.
sobre os autores
Fernando Haddad é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1985), com mestrado
em Economia (USP, 1990) e doutorado em Filosofia (USP, 1996). É Professor do Departamento
de Ciência Política da Faculdade de FFLCH-USP; professor do Insper e pesquisador
convidado do Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi subsecretário de Finanças de
São Paulo (2001-2003), assessor especial do Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão
(2003 -2004), Secretário Executivo do Ministério da Educação (2004 -2005) e Ministro da
Educação (2005-2012). Foi Prefeito de São Paulo (2013-2016).
Carlos Leite é arquiteto e urbanista com mestrado e doutorado pela Universidade de São
Paulo (1997 e 2002) e pós-doutorado pela Universidade Politécnica da California
(CalPoly, 2004), onde foi professor visitante. É professor adjunto na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador convidado
no Instituto de Estudos Avançados da USP.
Claudia Acosta é advogada (2001), com mestrado em Estudios Urbanos (El Colégio de
México, 2005) e em Direito e Desenvolvimento (FGV, 2015) e especialista em políticas
fundiárias para América Latina pelo Lincoln Institute of Land Policy (2007) onde é
professora; professora da Universidad del Rosario (Colômbia) e pesquisadora no Centro
de Política e Economia do Setor Público da FGV, onde desenvolve seu doutorado.
Weber Sutti é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP (2005) onde é pesquisador e
desenvolve seu mestrado; especialista em Gestão Pública pela UPIS (2008), trabalhou
como chefe de gabinete na Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das
Cidades (2006-2007), no Iphan (2007-2012) e na Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Urbano da Prefeitura de São Paulo (2013-2015), foi secretário adjunto de Governo
Municipal da Prefeitura de São Paulo (2015-2016). É membro do Conselho Superior do IAB-
SP.