Sunteți pe pagina 1din 76

UNIVERSITÀ DI PISA

DIPARTIMENTO DE GIURISPRUDENZA
CORSO DI ALTA FORMAZIONE IN GIUSTIZIA COSTITUZIONALE E
TUTELA GIURISDIZIONALE DEI DIRITTI

TESINA FINALE

LUIZ ANTONIO RIBEIRO DA CRUZ

O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS COMO EXPRESSÃO DO


DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE: PERSPECTIVAS
HERMENÊUTICAS DE SEU RECONHECIMENTO PELO PODER
JUDICIÁRIO BRASILEIRO.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Javier Díaz Revorio

PISA – ITALIA
2017
DEDICATÓRIA

À minha esposa Emília Barroso Cruz, pelo apoio neste trabalho e pelo amor de
sempre. Sua firmeza e convicção em defender o que é certo e justo me inspiram.
À minha filha Maria Luíza Barroso Cruz, cujos valores éticos em tão tenra idade
me convocam a estar do lado dela nas muitas lutas que virão.
AGRADECIMENTOS

Ao grupo de professores do Corso di Alta Formazione in Giustizia


Costituzionale e Tutela Giurisdizionale dei Diritti, na pessoa do Professor Doutor Roberto
Romboli, em agradecimento pela oportunidade de realizar um curso de tamanha
qualidade.
Ao meu orientador, Professor Doutor Francisco Javier Diaz Revorio, pela
sugestão do marco teórico do trabalho, assim como pela atenção e paciência.nas leituras
e correções necessárias.
Get up, stand up, stand up for your rights!
(Bob Marley in Get up Stand up)
RESUMO

Este trabalho destina-se a compreender se existe ou não um direito ao consumo de


substâncias psicoativas, como expressão do direito fundamental à intimidade, presente na
Constituição Brasileira de 1988.

Para este fim, dedicamo-nos inicialmente a fazer o levantamento do tratamento histórico


dado ao consumo de substâncias psicoativas, com ênfase especial no momento em que
estas foram divididas entre substâncias de consumo lícito por livre decisão do interessado,
substâncias de consumo livre com autorização médica e substâncias de consumo
absolutamente ilícito. Procuramos também destacar a extensão deste hábito em todo o
mundo, e tentar estimar os seus riscos efetivos à saúde e segurança individual e coletiva,
comparando-os com as consequências efetivas já decorrentes da Guerra às Drogas.

Com estes pressupostos fáticos, investigamos o processo histórico de fortalecimento do


Supremo Tribunal Brasileiro neste início do século XXI, associando este momento ao
papel da Corte na afirmação dos direitos fundamentais previstos na Constituição
brasileira de 1988, bem como na ampliação deste rol.

Por fim, tentamos inferir as possibilidades hermenêuticas da Suprema Tribunal Federal


reconhecer que o consumo de substâncias psicoativas pode ser considerado uma
expressão do direito fundamental à intimidade. Para isso, buscamos analisar as decisões
da corte em casos correlatos, assim como precedentes de tribunais estrangeiros sobre o
tema.
ABSTRACT

This work aims to understand if there is a right to use psychoative substances, as an


expression of the funndamental right to intimacy, as it is shown in the Brazilian
Constitution of 1988.

To this purpose, we initially set out to examine the historical treatment given to the
comsunption of psychoative substances, with special emphasis at the time when they were
classified among substances of lawful comsunption by free decision of the interested
person, substances of free comsumption with medical authorization and absolutely ilicit
substances. We also sought to highlight the extent of this habit worldwide, and try to
estimate its efffective risks to individual and collective health and security, comparing
them with the actual consequences already arising form the War on Drugs.

With these factual assumptions, we investigated the historical processos of strengthening


of the Brazilian Supreme Court at the beginning of the 21st century, associatingi this
moment with the Court’s role in affirming the fundamental rights contained in the
Brazilian Constitution of 1988, as well as in its increase.

In the end, we try to infer the hermeneutical possibilities of the Federal Supreme Court
recognizing that the comsumption of psychoative substances can be considered an
expression of the fundamental right to intimacy. To reach this aim, we seek to analyze
the court decisions in related cases, as well as precedents of foreign courts on the subject.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1

1. QUE ESTATUTO JURÍDICO ATRIBUIR AO CONSUMO DE


SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS? UMA QUESTÃO MUNDIAL E
UMA URGÊNCIA BRASILEIRA .................................................................. 4
1.1 DEFINIÇÃO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA. DISTINÇÕES
POSSÍVEIS ENTRE USO E VÍCIO .................................................................. 4
1.2 A CONSTRUÇÃO JURÍDICO-SOCIAL DE UMA PROBIÇÃO .................... 6
1.2.1 Histórico da proibição de substâncias psicoativas no Brasil ........................ 9
1.3 O DIREITO AO CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
COMO UM NOVO DIREITO CONSTITUCIONAL – UMA
CONSTRUÇÃO POSSÍVEL? ............................................................................ 13
1.3.1 De quantas pessoas estamos falando ............................................................... 13
1.3.2 A proibição como dogma jurídico apartado do conhecimento
científico sobre o tema ...................................................................................... 14
1.3.3 O uso de substâncias psicoativas e a intimidade do indivíduo...................... 16

2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA COMO ORDEM ABERTA À


INCORPORAÇÃO DE NOVOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............... 19
2.1 BREVE HISTÓRICO DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO
APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .......................... 19
2.2 OS DIREITO FUNDAMENTAIS COMO INSTRUMENTOS DAS
TRANSFORMAÇÕES DA SOCIEDADE BRASILEIRA POSTAS
COMO OBJETIVO PELA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO ................................. 23
2.3 A INCORPORAÇÃO DE NOVOS DIREITOS À ORDEM
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA A PARTIR DO ARTIGO 5, §2º
DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ......................................................................... 26
2.4 UMA PECULIARIDADE BRASILEIRA: O RECONHECIMENTO DE
UM NOVO DIREITO COMO FUNDAMENTAL TAMBÉM PODE
TORNÁ-LO INTANGÍVEL .............................................................................. 29
3. PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS DA LEGALIZAÇÃO DO
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS NO BRASIL:
ENTRE O AUMENTO DA REPRESSÃO LEGISLATIVA E OS
LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL NA QUESTÃO ............................... 33
3.1 A HESITAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO DE INTERVIR NO
ASSUNTO. O PRECEDENTE DA CORTE CONSTITUCIONAL
ALEMÃ .............................................................................................................. 33
3.2 MANTENDO O DIÁLOGO SOCIAL ABERTO: O SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL E A “MARCHA DA MACONHA” ........................... 35
3.3 UMA CORTE ATIVISTA ................................................................................. 37
3.4 O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS COMO
EXPRESSÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE E À
PRIVACIDADE: UM JULGAMENTO EM ABERTO ..................................... 40
3.5 O EXCESSO DE RIGOR DO LEGISLADOR NO ASSUNTO: UMA
PREOCUPAÇÃO QUE NÃO ABANDONA A SUPREMA CORTE
BRASILEIRA ..................................................................................................... 47
3.6 O PRIMEIRO PRECEDENTE MUNDIAL DE ELIMINAÇÃO DAS
RESTRIÇÕES LEGAIS AO CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS
PSICOATIVAS POR DECISÃO JUDICIAL – O CASO DA ÁFRICA
DO SUL .............................................................................................................. 52

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................ 55

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 61


INTRODUÇÃO

A história do homem contemporâneo é a história do reconhecimento de sua


dignidade como indivíduo, da compreensão de que ele é um fim em sim mesmo, com
múltiplos projetos, ambições e desejos, tão numerosos quanto são os próprios seres
humanos.
Desde o Século das Luzes, as melhores mentes de nosso tempo tentam
compreender este fenômeno no plano filosófico, e, utilizando-se do Direito, buscaram
construir uma esfera de proteção a este Homem: proteção contra o Estado e seus projetos
coletivos totalizantes, proteção contra os empregadores e sua falta de limite na exploração
da dependência econômica, proteção contra as maiorias ocasionais ou permanentes que
juntam à moralidade média à sua vontade, proteção contra instituições de índole benévola
a priori, mas que historicamente têm pouca tolerância com a divergência, como a família
e a igreja.
A experiência dos últimos 250 anos nos relata que toda vez que esta construção
filosófico-jurídica de índole deontológica foi abandonada em nome de um possível bem
maior, fosse ele qual fosse, os resultados revelaram-se desastrosos: guerra, extermínio,
repressão em massa, instabilidade política grave, perda da vitalidade econômica e cultural
dos países – todas estas são consequências bem conhecidas no mundo ocidental
(referimo-nos muito expressamente aqui à Europa e à América) quando os países deixam
de reconhecer aos integrantes de sua população, ou a parte deles, seus direitos
fundamentais decorrentes da simples condição de seres humanos.
De outra parte, o período mais longo de paz e prosperidade que o Ocidente
conheceu é este que, mesmo com percalços, dura desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, e é fortemente calcado, do ponto de vista jurídico e ideológico, no progressivo
reconhecimento de direitos fundamentais aos indivíduos, inclusive em função de
características pessoais historicamente marginalizadas.
Por meio deste processo, cuja vanguarda já pertenceu ao Poder Legislativo, mas
progressivamente foi sendo assumida pelo Poder Judiciário (ainda que em extensão
variável, conforme o país examinado), trabalhadores, mulheres, minorias étnicas e
religiosas, pessoas com orientação sexual homossexual, dentre outros grupos,
conseguiram firmar-se em um mundo hostil (BOBBIO, 1992, p. 55), traduzindo sua luta
contra a opressão na linguagem dos direitos fundamentais.

1
Estes direitos, por certo, não foram positivados todos de uma única vez. E a cada
grupo desses que teve suas pretensões de reconhecimento de dignidade incorporadas aos
ordenamentos jurídicos, as respectivas comunidades político-jurídicas podem ter
imaginado haver chegado ao limite, a partir do qual a sociedade estaria pacificada e o
conjunto de seus direitos fundamentais devidamente estabelecido e estabilizado.
No entanto, nos países que vem cumprindo esta jornada, a experiência vem se
revelando exatamente a oposta. A cada positivação de um novo direito como
fundamental, uma nova pretensão já se coloca à porta, demandando que também seja
reconhecida nesta perspectiva.
É com essa premissa, partindo da estreita ligação entre as características do que
é humano com a sua afirmação em direitos fundamentais, que em nosso trabalho
deparamo-nos com um aspecto do comportamento dos homens que se apresenta como
um desafio insistente às variadas tentativas de suprimi-lo: em grande número, sem
distinção de origem geográfica, e sem variação histórica documentada, o ser humano
manifesta inequívoco apreço pelo consumo de substâncias psicoativas, assim
compreendidas aquelas, naturais ou sintéticas, com o potencial de alterar o estado de
consciência daquele que as ingere (BERGERON, 2012, p. 13). Neste ensejo, expõe-se a
riscos diversos para satisfação deste seu desejo, inclusive a repressão penal quando o
consumo da substância psicoativa de sua preferência é considera uma atividade ilícita.
Nossa indagação é no sentido de avaliar a plausibilidade deste traço da
humanidade, de alguma forma, deixar esta esfera da repressão penal, que é praticamente
a sua única abordagem jurídica hoje, para, de modo radicalmente diverso, ser reconhecido
como base para uma reivindicação de proteção jurídica do mais alto nível, como aquela
conferida aos direitos fundamentais.
Em nosso primeiro capítulo, buscaremos demonstrar o histórico do tratamento
jurídico que este traço do comportamento humano recebeu, primeiramente em âmbito
internacional, e depois no Brasil, com ênfase nas decisões políticas que dividiram as
substâncias psicoativas em completamente lícitas, lícitas com autorização médica, e
completamente ilícitas. Ainda neste capítulo, pretendemos examinar as consequências
jurídicas e sociais desta divisão ocorrida há pouco menos de um século, e examinar a
possibilidade de estabelecer uma relação entre o ato de se consumir substâncias
psicoativas (sejam elas atualmente lícitas ou ilícitas) e algum direito fundamental
reconhecido, especialmente o direito do indivíduo à privacidade e à intimidade.

2
No segundo capítulo, passaremos a demonstrar, tanto pela perspectiva política,
como pela perspectiva hermenêutica, como o Poder Judiciário brasileiro assumiu a
liderança do processo de dar eficácia aos direitos fundamentais previstos na Constituição
de 1988, e, em um segundo momento, passou a agir para reconhecer novos direitos
fundamentais não expressamente proclamados naquele documento.
No terceiro capítulo, procuraremos realizar uma síntese entre os dois primeiros,
examinando as possibilidades hermenêuticas de reconhecimento judicial no Brasil do
consumo de substâncias psicoativas (mesmo aquelas hoje consideradas ilícitas) como
uma expressão do direito fundamental à intimidade e à privacidade. Neste ensejo,
examinaremos o julgamento do tema, iniciado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro
há dois anos e que ainda remanesce inconcluso, assim como outras duas decisões daquela
Corte em que o assunto foi abordado sob a perspectiva da liberdade de expressão e do
excesso de repressão penal. Também são examinados no capítulo dois relevantes
precedentes de direito comparado, um que negou o reconhecimento do consumo de
substâncias psicoativas como projeção dos direitos fundamentais (Alemanha) e outro que
o admitiu (África do Sul).
A metodologia aplicada na consecução de nosso trabalho foi a utilização de
técnicas de documentação indireta, notadamente a pesquisa bibliográfica (revisão de
literatura) e pesquisa documental (jurisprudência).

3
1. QUE ESTATUTO JURÍDICO ATRIBUIR AO CONSUMO DE
SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS? UMA QUESTÃO MUNDIAL E UMA
URGÊNCIA BRASILEIRA

1.1 DEFINIÇÃO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA. DISTINÇÕES POSSÍVEIS


ENTRE USO E VÍCIO.
A substância psicoativa, do ponto de vista médico, é toda aquela substância
natural ou sintética, capaz de mudar o estado de consciência daquele que a ingere
(BERGERON, 2012, p. 13).
O Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais da American
Psychiatric Association inclui nesta categoria todas as drogas capazes de ativar
diretamente o sistema de recompensas do cérebro, produzindo sensações de prazer. Neste
rol estariam, segundo o mesmo manual, 10 classes distintas de drogas: álcool, cafeína,
cannabis, alucinógenos (fenciclidina ou arilciclo-hexilaminas), inalantes, opióides,
sedativos ( hipnóticos ou ansiolíticos), estimulantes (anfetaminas, cocaína e outros),
tabacos e outras substâncias (ou substâncias desconhecidas) (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 481).
A relação do homem com este tipo de substância é imemorial, podendo-se
mesmo afirmar não haver registro histórico de sociedade que não fizesse uso de alguma,
ou mesmo de várias, substâncias psicoativas.
Até onde se sabe, diferentes substâncias com potencial para
alterar essa capacidade sensorial e perceptiva dos homens têm
acompanhado seus passos desde muito cedo. As trocas culturais
imbricadas na dinâmica própria dos deslocamentos,
comunicação,, alimentação, matrimônios e guerras ou ainda o
intercâmbio de crenças e valores dos povos pré-históricos,
forneceram incontáveis recursos e meios para o aperfeiçoamento
do aproveitamento destas substâncias com o fim de combater
enfermidades, proporcionar o bem-estar ou estados de transe e
êxtase, seja pela manifestação de crença religiosa ou expressão de
lazer e ócio. (SILVA, 2015, p. 23)

Todas estas substâncias têm, em comum, o potencial de gerar a adição ou vício,


ou seja, o desejo patológico de repetir sua ingestão (BERGERON, 2012, p. 10), mas esta
não é uma consequência necessária e inevitável do uso, muito menos do primeiro uso de
qualquer uma delas. A ativação do sistema cerebral de recompensas dar-se-á modo
diferente em cada pessoa que venha a consumi-las, não sendo possível estabelecer uma
relação objetiva e válida para todos os indivíduos entre o prazer alcançado, a intensidade

4
do consumo e a disposição do consumidor à pratica de atos irracionais para obtenção de
uma nova dose (HART, 2014, p. 85-86).
Embora, certamente, não se trate de uma atividade completamente isenta de risco
(REE, 1999, p. 90), a imensa maioria das pessoas, em todos os segmentos sociais,
realizará durante sua vida um consumo esporádico - ou mesmo constante - destas
substâncias sem incorrer na toxicomania, ou seja, sem vir a praticar atos irracionais
resultantes da perda de sua autonomia em relação à droga (BERGERON, 2012, p. 14),
não havendo nenhum elemento a priori que distinga a compulsão por substâncias
psicoativas de outras compulsões humanas (HART, 2014, p. 248).
Durante muito tempo, pelo menos até meados do século XIX, a utilização de
substâncias psicoativas permaneceu como uma questão cultural, e eventualmente
comercial, decorrendo deste ultimo campo as poucas proibições de seu consume,
notadamente do café e tabaco (SILVA, 2015, p. 40).
No entanto, desde o final do século XIX, e marcadamente durante o século XX,
foi criado, de modo praticamente simultâneo e universal, um conjunto de regras jurídicas
em torno do consumo das substâncias psicoativas pelos indivíduos, fazendo com que este
tema transitasse para o âmbito médico e jurídico. Esta regulamentação pelos mais
distintos países do globo tem em comum trabalhar sempre com o chamado worst case
scenario possível (WALSH, 2016, p. 84) na relação entre o indivíduo e a droga, em um
constructo a partir dos seguintes axiomas:
a) o uso de substâncias psicoativas (ou, pelo menos algumas delas) conduziria
necessariamente à adição patológica e à violência (SILVA, 2015, p. 18), sendo seu
consumidor sempre uma pessoa irracional (BERGERON, 2012, p. 61);
b) por conseguinte, as pessoas que fizessem uso das substâncias psicoativas
(especialmente aquelas proibidas) seriam classificadas como drogados, doentes incapazes
de conter o processo de autodestruição do seu corpo, e potencialmente perigosas para
sociedade, por agirem de modo irrefletido na busca da satisfação do seu vício (TIBURI,
DIAS, 2013, p. 99). A adição seria sempre um problema individual, resultante da vontade
fraca e desviante (TIBURI, DIAS, 2013, p.261), pois a pessoa teria sempre a possibilidade
de optar por uma vida virtuosa – longe da depravação do vício (SILVA, 2015, p. 78);
c) a única forma de combater o mal causado pelas substâncias psicoativas seria
a promoção da abstinência (STEVENS, 2011, p. 233), desestimulando-se sua
experimentação pelo indivíduo, ou, já tendo ocorrido a experiência, revertendo-se o
hábito (vício) de seu consumo por meio de procedimentos terapêuticos médicos

5
(MIRANDA, 2012, p. 237), ou, no limite, pela repressão estatal que é dispensada a
qualquer outra infração perturbadora da vida da sociedade (TIBURI, DIAS, 2013, p.236).

1.2 A CONSTRUÇÃO JURÍDICO-SOCIAL DE UMA PROBIÇÃO


A ideia de que as substâncias psicoativas são sempre agentes de destruição do
indivíduo, bem como responsáveis pelas mazelas e atrasos sociais dos povos tolerantes
ao seu uso, é o centro de uma corrente política, de lastro também moral e religioso, a que
se atribuiu o nome de proibicionismo (TIBURI,DIAS, 2013, p. 271). Segundo esta
corrente, o consumo de substâncias psicoativas é um ato intrinsecamente errado
(WALSH, 2015, p. 83), sendo a proibição estatal – e a consequente repressão dos
insubmissos ou daqueles que não conseguem decidir por si - o melhor meio para deter o
uso da substância psicoativa no plano individual, e proteger a sociedade como um todo
dos efeitos nefastos do vício (MENA, HOBBS, 2010, p. 61).
Esta corrente tem suas primeiras manifestações durante a colonização europeia
do continente americano, sustentando ideologicamente a repressão da Igreja Católica ao
consumo pelos indígenas das substâncias psicoativas que estavam associadas aos seus
costumes religiosos de suas tribos (CARNEIRO, 2005, p. 17). Após esta etapa histórica,
sustentou também repressões pontuais a costumes de grupos específicos, como o
consumo de haxixe pelos população local egípcia e soldados franceses durante a ocupação
napoleônica, assim como o de Cannabis pelos escravos negros no Brasil no início do
século XIX (FRANÇA, 2015, p. 30), associando tais costumes a comportamentos
antissociais e agressivos, nocivos, respectivamente, aos propósitos militares e
econômicos do Estado.
A concepção de que a proibição de consumo de substâncias psicoativas (ou, pelo
menos, sua restrição na maior extensão possível) seria um bem para todo o conjunto
social, e não apenas para grupos sociais específicos que precisavam ser controlados, tem
seu berço nos Estados Unidos da América no final do século XIX.
Enumeram-se diversas causas desse “pioneirismo” norte-
americano, ainda que nenhuma delas tenha se dado lá
exclusivamente: a profunda antipatia cristã por algumas
substâncias antigas e os estados alterados de consciência,
agravado diretamente pelo puritanismo asceta da sociedade norte-
americana; a preocupação das elites econômicas e políticas com
os “excessos” das classes ou raças vistas como inferiores ou
“perigosas”; o estímulo a determinados psicoativos, em
detrimento de outros , como decorrência de interesses nacionais
ou econômicos. (FIORE, 2005, p. 259)

6
Na transição para o século XX, o controle dos vícios (aí incluídos, além das
substâncias psicoativas, também a prostituição e o jogo) torna-se um dos principais temas
de debate público nos Estados Unidos, com a mobilização da sociedade em associações
voltadas para abstinência, e até partidos políticos1 centrados em torno do tema (FIORE,
2005, p. 260), culminando com a promulgação da 18ª Emenda Constitucional, que
vigorou entre 1920 e 1933, período em que proibiu completamente a produção e
comercialização de álcool no país2.
Além do álcool, associado majoritariamente à população branca local e aos
imigrantes irlandeses, os Estados Unidos acreditavam também estar sendo invadidos por
outras duas substâncias psicoativas essencialmente ligadas a grandes grupos imigrantes
específicos: a Cannabis, consumida pelos mexicanos e o ópio pelos chineses (FIORE,
2015, p. 260).
Neste contexto, os Estados Unidos tomaram para si também a tarefa de
internacionalizar o proibicionismo como forma de combate aos reflexos internos que
imaginava decorrente do consumo de substâncias psicoativas, sendo os principais
protagonistas dos dois primeiros acordos internacionais destinados ao seu controle legal.
O movimento internacional de proibição teve início com a chamada Convenção
Internacional do Ópio, convocada pelos Estados Unidos em 1909, e realizada em Haia
em 1912 (FIORE, 2015, p. 266), que introduziu as primeiras restrições internacionais ao
comércio de ópio. Por pressão do Reino Unido, foram incluídas restrições também ao
comércio de alcaloides industrializados, como a morfina e a e cocaína (CARVALHO,
2014, p. 156). A convenção, que entrou em vigor em 1919, foi assinada por um número
pequeno de países, mas de grande relevância no cenário mundial, incluindo todas as
potências econômico-militares da época, como os próprios Estados Unidos, a Alemanha,
França, Reino Unido, Itália, Rússia e China3.

1
O Proibihtion Party chegou a contar com representação legislativa no Congresso Americano, entre 1915
e 1921
2
Texto da 18ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América
Section 1. After one year from the ratification of this article the manufacture, sale, or transportation of
intoxicating liquors within, the importation thereof into, or the exportation thereof from the United States
and all the territory subject to the jurisdiction thereof for beverage purposes is hereby prohibited.
Section 2. The Congress and the several States shall have concurrent power to enforce this article by
appropriate legislation.
Section 3. This article shall be inoperative unless it shall have been ratified as an amendment to the
Constitution by the legislatures of the several States, as provided in the Constitution, within seven years
from the date of the submission hereof to the States by the Congress.
3
Para a íntegra do Tratado e a relação de todos os países signatários, ver
http://www.worldlii.org/int/other/LNTSer/1922/29.html, acesso em 10.07.2017.

7
Em 1925 foi iniciada, em Genebra, uma revisão deste primeiro tratado, revisão
esta que extrapolou o simples tratamento do comércio de ópio e cocaína para passar a
abarcar restrições internacionais também à folha de coca e, pela primeira vez, à Cannabis
(FRANÇA, 2015, p. 62).
Os países envolvidos na discussão, praticamente todos aqueles independentes na
época, voltaram-se a se reunir em Genebra em 1931 e 1936, reuniões que culminaram
com a assinatura da “Convenção para Repressão do Tráfico Ilícito de Drogas Nocivas” 4,
na qual a questão finalmente deixou a esfera estrita das restrições comerciais para tratar
da repressão penal àqueles indivíduos que realizassem na sua mercancia (CARVALHO,
2014, p. 162), fosse na esfera internacional, fosse dentro das fronteiras de cada país
signatário. Importante notar que até este momento, os textos das convenções eram
extremamente vagos sobre como os Estados signatários deveriam proceder em relação
aos usuários, somente indicando como potencialmente ilícito o ato de compra da
substância psicoativa, nada mencionando sobre a simples posse, ou o seu recebimento a
título gratuito.
A expressa menção à necessidade de providências também em relação ao usuário
de substâncias psicoativas somente surgiu com a Convenção de Nova York, em 1961 5.
Juntamente com as Convenções de Viena de 1971 6 e 1988 7 , ela forma a atual base
normativa internacional relativa à proibição internacional de venda e consumo das
substâncias psicoativas: definem os efeitos físico-psíquicos que potencialmente
caracterizam uma substância psicoativa, indicam o rol daquelas que devem ser
consideradas ilícitas ou sob estrito controle estatal a priori, e, finalmente, dão os termos
gerais da repressão jurídico-penal não só de traficantes, mas também de usuários, mesmo
aqueles não envolvidos de forma alguma em qualquer tipo de relação comercial em torno
das substâncias consideradas ilícitas - ainda que em relação a estes últimos admitam
também sua submissão a medidas terapêuticas e educativas destinadas à sua reintegração
social.

4
Para a íntegra do Tratado, ver
http://www.oas.org/juridico/MLA/pt/bra/pt_bra_1936_convencao_repressao_trafico.pdf, acesso em
10.07.2017
5
Texto completo disponível em http://www.unodc.org/pdf/convention_1961_en.pdf , acesso em
10.07.2017.
6
Texto completo disponível em http://www.unodc.org/pdf/convention_1971_en.pdf, acesso em
10.07.2017
7
Texto completo disponível em http://www.unodc.org/pdf/convention_1988_es.pdf, acesso em
10.07.2017.

8
A partir destas bases, cada país signatário é responsável pela concretização em
sua legislação nacional dos compromissos assumidos nestes tratados. Na sequência,
passaremos a examinar como isso se dá na legislação brasileira.

1.2.1 Histórico da proibição de substâncias psicoativas no Brasil


Desde sua independência em 1822, até o início do século XX, a única legislação
brasileira restritiva ao consumo de qualquer tipo de substância psicoativa foi a proibição
aos escravos negros do consumo da Cannabis (então conhecida como “pito de pango”) a
que já nos referimos acima.
A primeira proibição geral, ou seja, não restrita a um grupo específico da
população, deu-se em 1921, adaptando a legislação penal brasileira à Convenção de Haia
de 1912, introduzindo restrições à comercialização de ópio, cocaína e morfina,
classificados como “substâncias venenosas”.
De modo que não voltaria a se repetir na legislação brasileira, o consumidor só
era punível em caso de se apresentar publicamente em estado de embriaguez habitual, ou
esporádica que causasse escândalo, desordem ou pusesse em risco a segurança própria ou
alheia, não havendo previsão de repressão penal em outras circunstâncias8.
Outra peculiaridade também nunca mais repetida na legislação era equiparar,
para efeitos da punição acima - que não era exatamente uma prisão com fins penais, mas
uma internação compulsória para tratamento - o entorpecimento resultante das
substâncias denominadas nocivas identificadas na lei (ópio, cocaína e morfina) àquele
oriundo do consumo de álcool9.
A Cannabis, mais conhecida no Brasil pelo nome de “maconha”, somente veio
a ser incluída em 1932 no rol de substâncias de consumo irrestritamente proibido,
acompanhando o quanto fora disposto pela Convenção de Genebra de 1925.
Nessa nova legislação, pela primeira vez, introduziu-se a possibilidade de prisão
não apenas dos comerciantes, como também daqueles que simplesmente estivessem na
posse das substâncias psicoativas indicadas em seu artigo 1º 10 , ali denominadas

8
Artigo 2º do Decreto 4.294, de 6 de julho de 1921, cujo texto está disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-4294-6-julho-1921-569300-republicacao-
92584-pl.html, acesso em 17.07.2017.
9
Artigo 6º do mesmo Decreto da nota anterior.
10
Texto completo do Decreto 20930 de 1932, disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-20930-11-janeiro-1932-498374-
publicacaooriginal-81616-pe.html, acesso em 17.07.2017.

9
“substâncias tóxicas de natureza analgésica ou entorpecente”, ainda que aquelas pessoas
não apresentassem nenhum sinal de intoxicação, ou mesmo uso dessas substâncias.
Destacamos ainda que, não obstante o álcool não tenha sido incluído no rol de
substâncias tóxicas a que nos referimos acima, a norma ainda equiparava a embriaguez
habitual por álcool como um equivalente à toxicomania (o vício em qualquer das
substâncias expressamente proibidas), sujeita à punição quasi penal da internação
compulsória para tratamento terapêutico11.
A criminalização do consumo de substâncias psicoativas foi, pelo menos
aparentemente, revogada pelo Código Penal promulgado em 1940. Não obstante, esta
mesma norma introduziu dois elementos responsáveis por grande parte do problema
vivido atualmente no Brasil em relação à questão, e que serão debatidos com mais vagar
abaixo: a) deixou a critério do Poder Executivo, por ato seu independente da aprovação
do Poder Legislativo, a definição de quais substâncias psicoativas seriam consideradas
lícitas e quais seriam consideradas ilícitas; b) definiu os atos de “guardar” e “trazer
consigo”, potencialmente associados também ao consumo próprio, como atos típicos do
comércio de substâncias psicoativas, independentemente da quantidade “guardada” ou
“trazida consigo”12.
Em 197613 foi restabelecida a distinção legal entre traficante e usuário, sendo
este aquele que adquire, guarda ou traz consigo para uso próprio substância definida
como ilícita pelo Poder Executivo brasileiro. De outra parte, foi também trazida de volta
a possibilidade de condenação penal do usuário, salvo se comprovadamente dependente
física ou psiquicamente da substância psicoativa ilícita, hipótese em que poderia ser
sujeito à internação compulsória para tratamento terapêutico.
Finalmente, em 2006, entrou em vigor a Lei 11.34314, que se anuncia, em seu
título, como uma norma voltada para repressão ao tráfico de drogas e instituidora de uma
“Política Pública Nacional sobre drogas”. Entre seus pontos principais, destacamos: a) a
manutenção a cargo do Poder Executivo da definição do que é substância psicoativa
ilícita; b) a elevação da pena mínima para o tráfico, independentemente da prática de

11
Artigos 44 e 45 do Decreto 20930/1932
12
Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito,
transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo
substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis.
13
Lei 6368/1976, íntegra disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6368.htm, acesso em
17.07.2017.
14
Texto completo em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm, acesso
em 12.07.2017.

10
qualquer ato simultâneo de violência, para 5 (cinco) anos de reclusão em regime
carcerário fechado15, sem direito a progressão de regime de cumprimento de pena ou
qualquer tipo de sursis; c) a exclusão da possibilidade de prisão ou internação compulsória
do usuário, sujeito apenas a medidas penais alternativas, como frequência a palestras e
trabalhos comunitários; d) a utilização dos verbos/locuções verbais “adquirir”, “guardar”,
“ter em depósito”, “transportar” e “trazer consigo” tanto para descrever as atividades
inerentes ao consumo quanto àquelas outras inerentes ao tráfico; e) a ausência de
definição de quantidades máximas de posse das substâncias psicoativas ilícitas, para
definição da distinção entre usuário e traficante.
Esta norma, aparentemente liberal em relação ao usuários, é apontada pelo
Human Rights Watch, em seu relatório de 2017 sobre o Brasil16 como responsável direta
pela explosão da população carcerária brasileira, principalmente a feminina.
Os dados disponíveis sobre Brasil confirmam esta assertiva: em 2006, havia
47.000 homens presos por tráfico de droga no Brasil, elevando-se este número para
180.000 em 2013 (GARZÓN, POL, 2015, p. 4), equivalentes a 30% de toda população
carcerária brasileira em regime completamente fechado naquele ano.
Entre as mulheres presas atualmente no Brasil, 54% delas17 estão recolhidas sob
a acusação de tráfico de drogas, sendo pouco menos da metade desse número por levar
drogas para o parceiro que já se encontrava preso (ORGANIZATION OF AMERICAN
STATES, 2014, p. 33).
O Brasil parece ainda surpreendido por estes dados, sendo escassas, ou mesmo
nulas as pesquisas sociais empíricas que busquem estabelecer uma correlação mais
precisa entre a atual lei que trata do uso e tráfico de substâncias psicoativas ilícitas no
país e o aumento maciço do número de encarceramentos depois de sua promulgação.
Em nossa análise, fundada nos limites deste trabalho monográfico lastreado
apenas em pesquisa bibliográfica, vemos como elemento principal causador desta
situação a contradição entre praticamente descriminalizar o uso, mas não ter no
ordenamento jurídico a definição da quantidade máxima que cada pessoa poderia ter

15
Para efeito de comparação, a pena mínima do crime de homicídio no Brasil é de 6 (seis) anos, sem
nenhum obstáculo à progressão do regime fechado de encarceramento ou à obtenção de sursis.
16
Relatório disponível em inglês em https://www.hrw.org/world-report/2017/country-chapters/brazil,
acesso em 12.07.2017.
17
Aproximadamente 20.000 (vinte mil mulheres) de um total de aproximadamente 37.000 reclusas no
Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, órgão administrativo de cúpula do Poder Judiciário
Brasileiro, disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80853-populacao-carceraria-feminina-
aumentou-567-em-15-anos-no-brasil, acesso em 12.07.2017.

11
consigo, o que tem levado à criminalização da posse de pequenas quantidades como se
tratasse de tráfico (ORGANIZATION OF AMERICAN STATES, 2014, p. 47), com
elevada penalização, sem direito a progressão de pena ou sursis.
Isso tem levado à prisão e nela mantido por longos períodos, na condição de
microtraficantes, milhares de brasileiros que meramente fazem uso compartilhado da
substância psicoativa definida como ilícita (LEAL, LEAL, 2010, p. 90), ou, no na pior
das hipóteses, ocupam posições periféricas no comércio destas substâncias, para sustento
da própria adição (ORGANIZATION OF AMERICAN STATES, 2014, p. 33)
É cada vez mais evidente a obsessão do aparato jurídico-policial brasileiro com
o pequeno tráfico local18, quando não com comportamentos individuais (LARANJEIRA,
2010, p. 623), obsessão alimentada ideologicamente pelo proibicionismo, degenerado em
uma retórica de guerra às drogas (GARZÓN, POL, 2015. p.3), e materialmente sustentada
pelo aumento dos gastos públicos destinados a incrementar uma repressão policial-penal
que nunca é suficiente (TIBURI, DIAS, 2013, p. 271, e MENA, HOBBS, 2010, p. 71).
Assim, paradoxalmente, embora se imaginasse de início que a norma de 2006
iria levar à redução do encarceramento por extinguir a possibilidade de prisão do usuário,
suas deficiências técnicas aliadas ao rigor de sua aplicação, levaram exatamente à situação
oposta: um crescimento geométrico do número prisões (DE JESUS ET AL., p. 7, 2011),
encarcerando-se milhares de pessoas cujo comportamento costumava ser classificado
como de meramente consumidores das substâncias psicoativas ilícitas, e que agora estão
sendo submetidas agora a medidas penais extremamente severas, completamente fora da
escala relativa de sua possível ofensa social.

1.3 O DIREITO AO CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS COMO UM


NOVO DIREITO CONSTITUCIONAL – UMA CONSTRUÇÃO POSSÍVEL?

1.3.1 De quantas pessoas estamos falando


A evidência do fracasso das políticas jurídico-policiais de repressão às
substâncias psicoativas definidas como ilícitas pode ser deduzida da completa ausência
de impacto da multitude de prisões de realizadas a seu pretexto (tanto de usuários quanto

18
Segundo a pesquisa “Prisão Provisória e Lei de Drogas” realizada na cidade de São Paulo, a maior do
Brasil, no ano de 2009 (DE JESUS ET AL., p. 14, 2011), 39,97% das prisões por tráfico de cannabis
realizadas naquele ano apreenderam no máximo 100 gramas da planta. Em relação à cocaína, as apreensões
abaixo de 100 gramas alcançam o total de 69,46% das ações policiais. Chama ainda a atenção que 69% por
cento das intervenções policiais resultaram na prisão de 1 única pessoa, demonstrando empiricamente o
que afirmamos acima sobre a fixação no microtráfico/comportamento individual de uso compartilhado
caracterizado como tráfico.

12
de traficantes) sobre a disponibilidade das substâncias psicoativas ilícitas àqueles
interessados em seu consumo (BOITEUX, 2015, p. 133). Em verdade, nem mesmo os
mais entusiasmados proibicionistas conseguem demonstrar qualquer relação apurável
entre a repressão e a diminuição do número de usuários dessas substâncias em questão
(HART, 2015, p. 27).
Pode-se afirmar hoje com segurança que o consumo de substâncias psicoativas
proibidas é a atividade ilícita mais praticada no mundo, não havendo mais qualquer
associação entre este ato e qualquer sinal de rebeldia social ou geracional
(LARANJEIRA, 2010, p. 627). Mesmo com todas as dificuldades de se pesquisar um
comportamento considerado a margem da lei em praticamente todos os ordenamentos
jurídicos, a Organização das Nações Unidas estimava, em 2009, que entre 172 e 250
milhões de pessoas haviam consumido, no ano imediatamente anterior à pesquisa, algum
tipo de substância psicoativa proibida em seus respectivos países (FÉLIX, PORTUGAL,
2017, p. 121).
Em regra, a substância ilícita em questão é a Cannabis (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 514). De modo a exemplificar a assertiva,
estima-se que ela tenha sido consumida diariamente ou esporadicamente no ano
imediatamente anterior às pesquisas por cerca de 7,67% da população adulta norte-
americana (CAULKINS, 2017, p. 54), 9,6% da população espanhola (RIVERA, CASAL,
CURRAIS, 2017, p. 94), 9,2% da população italiana (EUROPEAN MONITORING
CENTRE FOR DRUGS AND DRUG ADICITION, p. 18, 2017) e 2,4% da população
brasileira (INPAD, 2012a, p. 3).
O consumo de cocaína geralmente alcança números mais modestos, mas ainda
relevantes. Segundo os mesmos critérios metodológicos: pouco mais de 2 por cento dos
norte- americanos, espanhóis, italianos e brasileiros (CENTER FOR BEHAVIORAL
HEALTH STATISCS AND QUALITY, 2016, p. 7) (RIVERA, CASAL, CURRAIS,
2017, p. 94) (EUROPEAN MONITORING CENTRE FOR DRUGS AND DRUG
ADICITION, p. 18, 2017a) (INPAD, 2012b, p. 3).
Outras substâncias como heroína e drogas sintéticas (anfetaminas e
ecstasy/MDMA) têm um registro de uso ainda menor, sendo consumidas por
aproximadamente de 1% da população adulta dos Estados Unidos da América (CENTER
FOR BEHAVIORAL HEALTH STATISCS AND QUALITY, 2016, p. 8 e 12), 1,3% da

13
população brasileira 19 , 1,2% da população italiana (EUROPEAN MONITORING
CENTRE FOR DRUGS AND DRUG ADICITION, p. 18 e 19, 2017a) e 1.8% da
população espanhola (EUROPEAN MONITORING CENTRE FOR DRUGS AND
DRUG ADICITION, p. 18 e 19, 2017b)20
Todos estes números devem ser vistos como um piso estatístico, formado apenas
por pessoas que declaradamente consomem estas substâncias. Como já destacado acima,
a ilegalidade e o estigma associado à conduta provavelmente induz a uma contagem
subestimada, não alcançando o que se convencionou chamar de hidden population
(BERGERON, 2012, p. 59): grupos de pessoas que mantêm ocultos na esfera estritamente
privada seus hábitos de consumo de substâncias psicoativas, não se identificando de
qualquer forma às autoridades sanitárias e/ou jurídicas como usuários, ante o estigma de
proibição normativa da atividade.

1.3.2 A proibição como dogma jurídico apartado do conhecimento científico sobre


o tema
Considerados os ordenamentos jurídicos ocidentais (europeus e americanos), as
substâncias reconhecidas como psicoativas pelo já citado Manual de Diagnóstico e
Estatística de Transtornos Mentais da American Psychiatric Association (2014),
poderiam ser divididas, a priori21, em três grandes grupos:
a) substâncias lícitas, de consumo possível a partir de simples decisão do
usuário: assim compreendidas aquelas para as quais não há qualquer restrição à
comercialização (salvo, eventualmente, a idade do consumidor), podendo ser adquiridas
independentemente de autorização específica de autoridade administrativa ou sanitária –
cafeína, tabaco, álcool;
b) substâncias lícitas, mas cujo consume depende de autorização médica
específica: sedativos e anfetaminas;

19
Conforme registrado em http://obid.senad.gov.br/obid/drogas-a-a-z/opio-e-morfina, acesso em
19.07.2017.
20
Em relação à Espanha e à Itália, as estatísticas referem-se apenas ao uso de anfetaminas e ecstasy. Os
estudos da União Europeia citados nas referências e bibliografia não faz uma estimativa da população
consumidora de heroína, mas apenas apenas das internações hospitalares em que foi constatada a presença
de opióides. Não localizamos outra fonte que realizasse a estimativa do total de consumo nas populações
destes países.
21
Esta divisão já não é mais absoluta, prevalente em todos os países, mais ainda é a mais comum, sendo a
prevalente no Brasil, objeto precípuo de nossa análise.

14
c) substâncias ilícitas, que na quase totalidade dos países do mundo, não
podem ser consumidas nem mesmo com autorização médica específica: Cannabis,
alucinógenos, opióides e cocaína.
Veja-se que, entre as substâncias consideradas lícitas e consumidas
independentemente de autorização médica, o álcool e o tabaco são até mesmo,
frequentemente enaltecidos como hábitos sociais aceitáveis e agregadores. Não obstante,
do ponto de vista científico são também reconhecidamente viciantes, e potencialmente
problemáticos para a saúde, podendo seu abuso levar à autodestruição do usuário.
(TIBURI, DIAS, 2013, p. 38 e 174).
Já o consumo das demais substâncias, é, desde o primeiro contato do usuário,
retoricamente associado à catástrofe e, principalmente à perda do seu autocontrole
(TIBURI, DIAS, 2013, p. 56 e 242) (STEVENS, 2011, p. 235), o que somente poderia
ser evitado com a sua supervisão médica, e assim mesmo, apenas para algumas
substâncias e não para outras.
Esta divisão não tem nenhum fundamento farmacológico evidente (HART,
2014, p. 235) (BOITEUX, 2015, p.2): do ponto de vista estritamente científico, não se
pode afirmar, de modo objetivo e válido indistintamente para a média das pessoas, que
qualquer uma delas seja mais viciante, ou resulte em problemas de saúde mais graves ao
conjunto de seus usuários, na exata escala da sua classificação normativa como
completamente lícitas/lícitas com supervisão médica/completamente ilícitas, que
procuramos expor acima. A título de exemplo, a partir das evidências existentes hoje
existentes, vemos que vai se formando um consenso médico no sentido de apontar que a
demonizada Cannabis apresenta um risco de dependência e de overdose, em média,
claramente inferior ao do toleradíssimo álcool (HALL, 2017, p. 58) (ČEVERŃY et al.,
2017, p. 122).
Como já exposto acima, não se trata, de modo algum, de experiência isenta de
risco, mas o fato científico é que as substâncias psicoativas trarão experiências subjetivas
diferentes a cada indivíduo que mantenha contado com elas (HART, 2014, p. 85),
conforme a dose consumida, o ambiente em que utilizada, e principalmente, conforme a
fisiologia do usuário (HART, 2014, p. 202).
A distinção que levou cada uma das substâncias a ser classificada em um dos
grandes grupos acima somente pode ser compreendida a partir de critérios históricos
(MACRAE, 1997, p. 328), consolidados em uma dogmática jurídica (BERGERON, 2012,
p. 16), como procuramos expor nos itens 1.2 e 1.2.1 acima.

15
Ou seja, a definição da norma jurídica substitui a biologia: se a norma diz que é
livre a substância psicoativa é boa, ou, no mínimo, neutra do ponto de vista individual e
social. Se diz que é proibida, é ruim (TIBURI, DIAS, 2013, p. 65 e 86). O caso brasileiro
é ainda mais grave, pois a lei do país sequer especifica quais são as substâncias proibidas,
delegando isso a ato do Poder Executivo que não é precedido de qualquer discussão
pública pertinente ao regular processo legislativo (MACRE, 1997, p. 329).
Deste modo, consideramos que esta é uma escala aleatória, construída de modo
irracional, e apartada do conhecimento científico sobre o tema como em nenhum outro
assunto, com graves consequências para todos, usuários ou não destas substâncias.

1.3.3 O uso de substâncias psicoativas e a intimidade do indivíduo


O artigo 12 da Declaração Universal de Direitos Humanos diz que “ninguém
sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, e que “contra tais intromissões
ou ataques, toda a pessoa tem direito à proteção da lei”. No direito brasileiro, o tema é
tratado pelo artigo 5º, X da Constituição de 1988, segundo o qual são invioláveis a
intimidade e a vida privada dos brasileiros e estrangeiros residentes no país.
O trato normativo das substâncias psicoativas ilícitas, especialmente no Brasil,
tem representado um grave desafio a este princípio internacional de convivência humana.
Trata-se de um caso singular, em que um desejo humano, concretizado pela
disposição de um adulto de seu próprio corpo e destino (BERGERON, 2012, p. 121), não
é considerado expressão da sua intimidade e da vida privada, mas sim um crime,
independentemente de sua realização causar ou não prejuízo físico ou moral a terceiros
individualizáveis ou mesmo à coletividade onde o usuário viva (WALSH, 2016, p. 83).
É verdade que, durante o século XX, já estiveram em sua companhia outros
comportamentos, como a prática de jogos de azar, o consumo de pornografia, o vínculo
a religiões distintas daquela da maioria da população, o ateísmo, a manutenção de relações
extraconjugais, o divórcio, qualquer prática homosssexual, e até mesmo a celebração de
casamentos interraciais (CAULKINS, 2017, p. 53).Em todos estes casos, a regulação
também se dava sempre sob o argumento de que se tratariam de práticas desviantes,
nocivas para a vida pessoal e social (BERGERON, 2015, p. 50), e que a fraqueza, o vício
das pessoas que nelas se perdiam justificava a invasão de sua esfera de intimidade para
coibi-los de incorrer nessas atitudes problemáticas para si e para sociedade (REE, 1999,
p. 93).

16
Pretendemos expor nos capítulos seguintes que a marca central do
constitucionalismo moderno é a proteção ao indivíduo e ao seu ideal de uma boa vida,
com a legitimação de seus modos de vida, desejos e valores emergentes, por meio do
reconhecimento a ele de direitos fundamentais invioláveis. Esta ideologia político-
jurídica, prevalente após a queda dos princípios mais totalizantes à direita e à esquerda
do espectro político no hemisfério ocidental, levou ao paulatino reconhecimento de que
nenhum destes comportamentos descritos no parágrafo anterior pertencia ao espaço
remanescente, necessariamente restrito, de regulação do desejo individual pelo interesse
coletivo, campo do direito penal.
Contudo, tal onda de alargamento da privacidade individual, com ao prestígio da
autorregulação (MALHEIROS, 2012, p. 84) e a descriminalização progressiva do desejo
e impulso humanos que não causassem prejuízo evidente e imediato a terceiros não
alcançou, salvo em raríssimos ordenamentos jurídicos, o consumo das substâncias
psicoativas tornadas ilícitas na primeira metade do século passado.
O caso brasileiro parece-nos ainda mais grave. Sob uma capa aparentemente
liberal no trato com o usuário, por suas deficiências técnicas já tratadas acima, a legislação
que trata da política de drogas no Brasil praticamente equiparou a punição decorrente da
posse de dois cigarros de Cannabis àquela dada ao homicídio e ao estupro, e fez explodir
a população carcerária do país, com reflexos sociais ainda por serem descobertos nas
próximas décadas.
O aparato jurídico-policial brasileiro parece impermeável a argumentos lógicos
e científicos (BECCARIA, ROLANDO, 2015, p. 668), estabelecendo quase uma
interdição sobre o assunto e soluções paliativas (TIBURI, DIAS, p. 225), como a
definição legal de quantidades mínimas de posse de substâncias psicoativas que pudessem
distinguir usuários de traficantes.
No Brasil ou em qualquer parte do mundo, ante a severidade da repressão
possível, a consequência para o indivíduo que tem o contato com a substância psicoativa,
principalmente o jovem, acaba sendo o seu isolamento, ou, na melhor das hipóteses, a
restrição de seu círculo social a grupos sociais homogêneos de usuários, onde todos têm
a mesma experiência com droga em questão, nos quais: a) não chegam experiências e
riscos pertinentes àquele comportamento, aumentando o risco de um consumo
descontrolado e realmente nocivo à saúde; b) não chega nenhum outro tipo de reforço
negativo que não seja a lei penal); (HART, 2014, p. 96, 99 e 302).

17
Cumpre destacar ainda que, embora o risco social representado pelo consumidor
preso normalmente seja muito pequeno, sua prisão o desintegra da sociedade, levando à
formação de uma autoidentidade como toxicômano e, potencialmente, como criminoso
(BERGERON, 2012, p. 49 e 71), em um processo de objetivação de sua intimidade e
privacidade, que passa a estar submetida ao controle jurídico-policial.
A clínica evidencia uma relação dialética entre a lei que interdita
o uso e a busca pela droga ilegal, lei que sentencia o usuário a
uma condição de criminalidade, seja ela veiculada pela justiça,
pelo pai ou mesmo pelo social. Se usar, é criminoso: essa sentença
implica o indivíduo com o ato, não restando para ele outra
possibilidade de existência. (MIRANDA, 2012, p. 241)

Em suma, acreditamos que o consumo de substâncias psicoativas - sejam elas


presentemente consideradas lícitas, lícitas sob supervisão médico ou completamente
ilícitas do ponto de vista jurídico, é uma característica inerente ao humano desde qualquer
época historicamente identificável (NERY FILHO, 2012, p. 18).
Daí inferimos que a prática deste ato, por pessoa mentalmente capaz, com idade
legal para ser responsabilizada juridicamente, em âmbito privado e sem reflexos diretos
sobre a vida de terceiros, é um comportamento que potencialmente pode ser trazido para
a esfera do lícito, sob a perspectiva do seu reconhecimento como a projeção de um direito
fundamental, ainda que não previsto pela literalidade do texto constitucional brasileiro.
Nos próximos dois capítulos, buscaremos demonstrar as bases teóricas para tanto.

18
2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA COMO ORDEM ABERTA À
INCORPORAÇÃO DE NOVOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 BREVE HISTÓRICO DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO APÓS A


PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A atual Constituição Brasileira foi promulgada em 1988, três anos após o
encerramento do último período ditatorial ocorrido no país.
No momento de sua elaboração e subsequente promulgação, ela era percebida
como um marco fundamental para estruturar a redemocratização política do país, por
meio do restabelecimento e ampliação dos direitos aos cidadãos brasileiros.
Mas, naquele momento, claramente era compreendida pelas forças políticas que
participaram da sua elaboração como um “marco de chegada”, como o limite máximo do
que poderia ser alcançado na esfera jurídica. Por isso, todos os grupos sociais envolvidos
esforçaram-se arduamente para estabelecer naquele documento, de modo abrangente e
com o maior nível de detalhe possível, suas pretensões e objetivos nesta nova ordem
político-jurídica que ela viria estabelecer (NOBRE, 2008, p. 98).
A Assembleia Constituinte convocada para sua elaboração durou um ano e oito
meses 22 , sem a presença de uma força política hegemônica que tivesse uma maioria
evidente e coerente a controlar os assuntos que seriam tratados. O resultado foi um texto
longo (são 245 artigos definitivos e 70 transitórios no texto original), difícil de ser alterado
(em geral mediante maioria qualificada de 3/5 do Congresso, mas há extensas partes que
sequer podem ser objeto de emenda), mas com dezenas de dispositivos sujeitos a posterior
regulamentação por legislação ordinária (BRASIL, 1988).
Entre sua promulgação e os primeiros anos da década de 1990, o debate
acadêmico no Direito Constitucional Brasileiro, por seus principais autores daquela época
(SILVA, 1994, p. 46; BONAVIDES, 1996, p.472) tinha por pressuposto os mesmos
raciocínios que permearam a disputa política durante a Assembleia Constituinte: o texto
de 1988 era o limite último do que fora concedido ao povo brasileiro, e mesmo em relação
a este texto haveria dúvidas severas sobre a eficácia de todas as normas positivadas
(BARROSO, 2009, p. 224).
Neste sentido, destacamos a obra de José Afonso da Silva, que chegou a
desenvolver uma classificação extensa e algo bizantina das normas constitucionais
segundo sua eficácia, classificando-as empiricamente em normas de eficácia plena,

22
Os trabalhos iniciaram-se em fevereiro de 1987 e foram até outubro de 1988.

19
eficácia contida e eficácia limitada (SILVA, 2001, p. 63), de acordo com a possibilidade
de sua aplicação no mundo real.
Mesmo autores reputados como mais progressistas, como Paulo Bonavides
(1996, p. 211) não alcançavam o conceito de aplicação plena e imediata da totalidade da
Constituição, limitavam-se a adaptar o conceito de Constituição Dirigente de Canotilho
(2003, p. 217), indicando que todas as normas constitucionais seriam eficazes, mas parte
delas não seria invocável pelos cidadãos como destinatários, mas se dirigiriam apenas ao
legislador ordinário, para que este tomasse as providências para sua implementação, sem
maiores esclarecimentos sobre o que aconteceria no caso em que este legislador insistisse
em ignorar o comando constitucional.
Retrospectivamente, vemos que os teóricos brasileiros de então praticamente
negavam a autonomia do Direito Constitucional em relação à política e à economia.
Do ponto de vista institucional, a postura do Supremo Tribunal Federal, tribunal
que acumula as funções de corte de vértice e tribunal constitucional no Brasil, não era
distinta: nos primeiros anos seguintes à promulgação da Constituição de 1988, a postura
de seus integrantes era claramente de autorrestrição de seus poderes decisórios
(BRANDÃO, 2014, p. 241), com a preservação da historicamente tradicional hegemonia
do Poder Executivo na condução da vida jurídico-política do país (BRANDÃO, 2012,
p.129). Certamente contribuía para isso a circunstância de a Corte, composta por 11
membros, ainda ter em sua composição naquele momento histórico, 9 ministros
nomeados durante o período de exceção militar23, composição que chegou a se recusar a
declarar inconstitucional até mesmo um confisco da poupança da população realizado
pelo Governo Central em 1990 (BRASIL, 1991).
Neste contexto, a conclusão que se impõe é que a doutrina e a prática
constitucional brasileiras no período imediatamente após a promulgação da Constituição
de 1988 permanecia quase no mesmo nível de subdesenvolvimento em que se encontrava
no período ditatorial que antecedeu a mudança de regime jurídico-político: a questão
central ainda era dizer se direitos expressamente indicados na Carta tinham ou não
eficácia, eram ou não exigíveis. E como não se estabelecia com clareza sequer a
supremacia jurídica e social da Constituição já positivada, nem longinquamente se
pensava em se deduzir novos direitos do texto constitucional, sendo expressões hoje

23
Informação disponível em
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoMinistroApresentacao/anexo/linha_sucessoria_tab
ela_atual_mar_2017.pdf. Acesso em 11.04.2017

20
corriqueiras, como “judicialização” ou “mutação constitucional” inteiramente
desconhecidas então.
O ponto de inflexão desta postura foi a intensa crise econômico e política
ocorrida no Brasil entre 1991 e 1994: neste curto espaço de tempo o país foi varrido por
uma hiperinflação acompanhada de uma recessão profunda, denúncias variadas de prática
de corrupção por parte de agentes do Poder Executivo e Legislativo, tudo culminando
com o impeachment do presidente eleito e o expurgo de mais de uma dezena de
deputados.
Simultaneamente, o Poder Judiciário de primeiro grau expandiu
formidavelmente sua presença no primeiro grau de jurisdição (VIANNA, CARVALHO;
MELO, 1999, p. 153), com a contratação de novos juízes (que também eram juízes mais
novos em idade, formados já na democracia que sucedeu à ditadura) para novos órgãos
jurisdicionais.
Estes juízes, a partir do pressuposto teórico da supremacia formal e material da
Constituição de 1988 no ordenamento jurídico nacional (BRANDÃO, 2014, p. 140), e
interpelados diretamente pelos cidadãos (VIANNA; CARVALHO; MELO, 1999, p. 22),
pouco hesitavam em exercer os poderes que acreditavam que a Carta conferia a eles:
reconhecer e declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de ações e omissões dos
Poderes Executivo e Legislativo, tanto em nível local quanto em nível nacional,
independentemente da consideração de conveniências políticas ou econômicas.
Paulatinamente, durante o correr da década de 1990 e o início da primeira década
do século XXI, com a adesão tardia porém decidida da Suprema Corte Brasileira 24
(CAMPOS, 2014, p.247) tanto na jurisdição constitucional difusa quanto naquela de
caráter concentrado, foi sendo estabelecido um novo padrão de relacionamento entre os
Poderes, em que a antiga autorrestrição, e porque não, reverência do Judiciário ao
Executivo e Legislativo no Brasil, cedeu lugar às tentativas do primeiro de impor aos
outros o efetivo e integral cumprimento da Constituição de 1988, mediante a
“constitucionalização” de todas as áreas do direito, em todos os conflitos relevantes
(SILVA, 2014, p. 73).

24
Finalmente renovada de modo integral após a ditadura militar, com aposentadoria em 2003 do último
julgador nomeado durante aquele período de exceção, conforme
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoMinistroApresentacao/anexo/linha_sucessoria_tab
ela_atual_mar_2017.pdf. Acesso em 11.04.2017

21
Do ponto de vista metodológico, o que a Suprema Corte Brasileira fez foi
abandonar ideias que sustentaram seus votos por décadas, como a utilização da subsunção
exegética (BRANDÃO, 2014, p. 132) e o da completude do ordenamento jurídico,
dogmas que lhe reservavam apenas o papel de legisladora negativa (CAMPOS, 2014,
p.276).
Sob alegações genéricas de estar agindo de acordo com as teorias do
“neoconstitucionalismo” ou “pós-positivismo”, o Supremo Tribunal Brasileiro passou a
combinar em suas decisões doses variáveis pragmatismo (CARVALHO, 2007, p. 251),
teorias da argumentação formuladas por autores variados (BARROSO, 2009, p. 339) e
teorias relativas à integridade dos precedentes na interpretação da Constituição
(BRANDÃO, 2014, p. 78).
Suas decisões acerca do tema neste século XXI têm como ponto em comum
atribuir densidade a estes princípios, levando em conta as transformações estruturais
sociais ocorridas desde a promulgação da Constituição de 1988, independentemente de
qualquer nova intermediação legislativa (CAMPOS, 2014, P. 285).
Este processo não foi isento de crítica por diversos atores sociais brasileiros, que,
no início deste século XXI, enxergavam algo de patológico nesta atuação expansiva do
Poder Judiciário a partir da interpretação expansiva do texto constitucional (BARROSO,
2009, p. 264), em processo denominado pejorativamente por vezes de “judicialização da
política e das relações sociais”, ou simplesmente de “ativismo judicial”.
Afirmava-se que, na ânsia de se impor, o Poder Judiciário estaria constantemente
invadindo as atribuições dos demais Poderes (RODRIGUEZ, 2013, p. 183), substituindo
inteiramente partidos e instituições políticas na mediação social e adjudicação da
cidadania (VIANNA; CARVALHO; MELO, 1999, p. 22).
Esta crítica esvaziou-se completamente no início do século XXI, quando o
principal partido de oposição no momento imediatamente subsequente à promulgação da
Constituição de 1988, o Partido dos Trabalhadores (PT) tornou-se governo. Como ele,
quando na oposição, fazia uso sistemático do questionamento judicial dos atos do governo
da época (CAMPOS, 2014, p. 260), ao assumir o Poder Executivo central não lhe restou
nenhum argumento que justificasse questionar coerentemente a intervenção do Poder
Judiciário na política e nas relações sociais (CAMPOS, 2014, p. 263), fosse a partir da
iniciativa dos integrantes do governo anterior, ora na oposição, fosse pela iniciativa direta
dos cidadãos.

22
Somando-se a isso a desconfiança estrutural dos brasileiros em relação à política
tradicional (BRANDÃO, 2014, p. 119), vista pela população, não de todo
equivocadamente, como corrupta e autocentrada, e alcançamos as condições ideais
institucionais para um papel de protagonismo político (STRECK, 2013, p. 47) do Poder
Judiciário brasileiro na sociedade nacional, capitaneado pela sua Suprema Corte.
As críticas a seu papel concentram-se hoje praticamente ao mundo acadêmico e
à perspectiva hermenêutica, com a afirmação de que os juízes estariam a interpretar com
demasiada liberdade o texto constitucional, descambando metodologicamente para o
realismo jurídico (STRECK, 2013, p. 59), a resultar em várias decisões diferentes sobre
o mesmo tema, tornando inteiramente imprevisível o desfecho das demandas, no limite
corrompendo o próprio texto da Constituição sob o pretexto de efetivá-la (STRECK,
2012, p. 36). Sobre estas críticas, voltaremos a elas no capítulo final deste trabalho, na
abordagem de nosso tema central.

2.2 OS DIREITO FUNDAMENTAIS COMO INSTRUMENTOS DAS


TRANSFORMAÇÕES DA SOCIEDADE BRASILEIRA POSTAS COMO
OBJETIVO PELA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO
O principal veículo utilizado pelo Poder Judiciário brasileiro para conduzir esta
mudança completa de posição, narrada no item anterior, foi o amplo catálogo de Direitos
Fundamentais previstos na Constituição de 1988, redigido pela Assembleia Constituinte
como um conjunto de princípios vagos e indeterminados (CAMPOS, 2014, p. 259), que
se conseguiu mover da condição de manifesto político programático para aquela de norma
jurídica vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos (GUASTINI, 2009, p. 53).
Ainda que considerados apenas aqueles direitos expressamente enunciados no
Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” da Constituição Brasileira25, estamos
tratando de mais de uma centena de dispositivos redigidos de forma ampla e carregados
de elementos axiológicos (DIAZ REVORIO, 2009a, p. 225), que, como vimos acima,
foram introduzidos no texto pelos constituintes com a expectativa singela de
representarem ideais de justiça (ZAGREBELSKY, 2008, p. 97), ou, no máximo, um
limite negativo para a futura legislação ordinária, que serviriam somente para negar
validade àquela que lhe viesse a ser contrária (BARCELLOS, 2013, p. 101).
Cada um destes dispositivos sintetizava uma grande quantidade de informação
(BARCELLOS, 2013, p. 98) sobre o que se esperava como estatuto jurídico do cidadão

25
Que abrange os artigos 5 a 17 do texto constitucional brasileiro

23
na relação entre o cidadão e o Estado, e dos cidadãos entre si (PEREZ-LUÑO, 2004,
p.22). Quando o Poder Judiciário brasileiro, neste movimento histórico-político de deixar
de ser o menos perigoso dos poderes 26 , percebeu este conjunto de dispositivos
constitucionais como um sistema com coerência interna e unidade axiológica (SARLET,
2006, p. 86), considerou-os representativo dos princípios subjacentes e compromissos
institucionais da sociedade (DOUZINAS, 2009, p. 253), e passou a tratá-los como
instrumento privilegiado para interação com as novas realidades que enfrentava.
Ou seja, para além do seu uso tradicional como elementos de estruturação,
constituição e estabilização do ordenamento jurídico, o Poder Judiciário brasileiro passou
também a considerar a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais como meios
de absorver as mudanças sociais já havidas (DIAZ REVORIO, 2009a, p. 91), e, em não
poucos casos, também como uma forma provocá-las.
No caso brasileiro, este processo tem uma peculiaridade que potencializa este
movimento e fundamenta de modo ainda mais claro a ideia de uma ordem jurídica aberta
- o reconhecimento pela própria Carta de que a situação social havida no momento de
sua promulgação era injusta, e que caberia ao futuro realizador dos seus princípios atuar
de modo a modificar aquele quadro. Neste sentido, transcrevemos o artigo 3º da
Constituição Brasileira de 1988:
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de disciminação.”
(BRASIL, 1988)

Em nada diferente do restante da Carta Brasileira, é certo que este artigo também
foi pensado e redigido sob a perspectiva teórica da constitucionalismo dirigente
(STRECK, 2013, p. 148), cuja influência no texto constitucional de 1988 discutimos mais
detalhadamente acima. Mas mesmo naquela perspectiva, chama a atenção o fato de ele
abandonar completamente o caráter deontológico que é inerente tanto a regras quanto
princípios jurídicos, para se apresentar de modo teleológico (HABERMAS, 2003, p. 316-

26
“O menos perigoso dos poderes” é nossa tradução livre para “The least dangerous branch”, expressão
cunhada pelo jurista norte-americano Alexander Bickel, em seu livro homônimo, para enaltecer as virtudes
de uma Corte Suprema (e um Poder Judiciário) pouco ativista, que deixasse reservada à política a solução
dos problemas substantivos do país.

24
317), esclarecendo ao agente responsável pela subsequente concretização da Constituição
que ela não tem uma avaliação neutra sobre a sociedade que irá regular, mas sim que a
considera profundamente imperfeita e carecedora de transformações (STRECK, 2013, p.
148).
Quase três décadas depois, quando definitivamente consolidada pelo Poder
Judiciário a decisão institucional de intervir na sociedade brasileira a partir de uma
perspectiva da supremacia da Constituição, o texto do artigo 3º vem a lhe calhar, no
mínimo, como critério hermenêutico irradiador (SARMENTO, 2016, p. 80) e justificador
de sua intervenção. E, no limite, como critério metaético (FERRAJOLI, 2011, p. 90)
pronto e posto, que lhe permite, em conjunto com o catálogo de Direitos Fundamentais,
as mais ousadas construções jurisprudenciais.
Embora o artigo 3º da Constituição Brasileira demande a necessidade de
mudanças sociais sob várias perspectivas, tanto no trato de questões concernentes ao
indivíduo, como daquelas de caráter difuso e metaindividual (FAUTH; CALZADILLA,
2013, p. 281), o rumo das transformações efetivamente ocorridas no Brasil desde 1988
não se mostrou desconectado com o espírito do tempo predominante mundialmente.
Aqui, como no restante do mundo, a marca central das questões em torno dos
direitos fundamentais também foi a demanda de reconhecimento público do desejo do
indivíduo (DOUZINAS, 2009, p. 261), que quer ter sua identidade acolhida em suas
características singulares (DOUZINAS, 2009, p. 326), e exige a neutralidade do Estado
diante de sua liberdade individual e bem estar, recusando-se a assumir qualquer
compromisso cultural com ele que ultrapasse o respeito pelo catálogo dos direitos
fundamentais (CITADINO, 2004, p. 129).
Em uma perspectiva mais ampla, pode-se afirmar que o Brasil inseriu-se em
processo que teve como ponto de partida o fim da Segunda Guerra Mundial (TATE;
VALLINDER, 1995, p. 19), e enorme aceleração após a derrocada da União Soviética e
o encerramento da Guerra Fria, pelo qual a imensa maioria dos países da América e
Europa (HISRCHL, 2004, p.1) aderiu ao que antes era uma peculiaridade institucional
muito exclusiva dos Estados Unidos da América: um Poder Judiciário que vai bastante
além de atuar na execução de leis infraconstitucionais (KOOPMANS, 2003, p. 16), e que,
utilizando-se de expressões amplas e polissêmicas do texto constitucional faz valer esses
direitos mediante sua explicitação (KOOPMANS, 2003, p. 223), ou até mesmo pela
dedução de novas regras a partir dos princípios ali consagrados (DWORKIN, 2002, p.
215).

25
A par da perspectiva institucional, releva por em destaque a situação do
indivíduo que vive em uma sociedade de altíssima complexidade, na qual não existem
mais critérios políticos gerais universalmente aceitos de orientação das expectativas em
relação a seu próprio comportamento, e nem tampouco de como os demais cidadãos e o
Estado devem se comportar em relação a ele (NEVES, 2013, p. 74/75).
Este tipo de cenário, de aumento do individualismo e enfraquecimento de
ideologias mais totalizantes (HIRSCHL, 2004, p.154) , afeiçoou-se perfeitamente com
um novo padrão de ordem constitucional: uma ordem aberta, dinâmica, que seja um
corolário do novo pluralismo admitido (PEREZ-LUÑO, 2004, p. 134), na qual
legisladores e juízes têm funções cada vez mais assemelhadas no desenvolvimento do
texto constitucional (DIAZ REVORIO, 2009a, p. 2), de modo a permitir que se possa,
com rapidez, estabelecer ou reforçar a proteção de situações antes não tuteladas, ou
tuteladas de modo insuficiente (DIAZ REVORIO, 2009, p. 200).

2.3 A INCORPORAÇÃO DE NOVOS DIREITOS À ORDEM CONSTITUCIONAL


BRASILEIRA A PARTIR DO ARTIGO 5, §2º DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A confluência da elevação dos direitos fundamentais a tema central do direito
brasileiro com o exponencial agigantamento do Poder Judiciário, como veículo principal
de sua efetivação, conta ainda com um último, mas não menos relevante impulso da
ordem constitucional de 1988, lançado no texto do artigo 5º, §2º da Carta:
§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.

Textos similares fizeram parte de todas as Constituições republicanas brasileiras


desde 1891 (SARLET, 2013, p. 516)27, inspirando-se, em sua estrutura, no texto da nona
emenda à Constituição Norte-Americana: “The enumeration in the Constitution, of
certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the
people”28.
Mas em um contexto de pouca ou nenhuma efetividade dos direitos expressos
no texto constitucional, contexto rompido há menos de duas décadas, como explorado

27
LIVRO GRANDE
28
Conforme disponível em http://constitutionus.com/, acesso em 16.05.2017. Em tradução livre nossa: ” A
enumeração na Constituição, de certos direitos, não deve ser considerada como causa de negativa ou
menosprezo de outros direitos detidos pelo povo”.

26
acima, a referência a possível status constitucional de outros direitos não expressos na
Constituição era pouco mais do que uma emulação do texto norte-americano.
Com o novo paradigma do direito constitucional brasileiro, este dispositivo
ganhou sentido finalmente, abrindo a porta para o reconhecimento jurisprudencial,
independentemente do tradicional processo de reforma legislativa da Carta, de direitos de
nível constitucional não expressamente proclamados no texto de 1988, mas que dele
possam ser deduzidos como implícitos (DIAZ REVORIO, 2009b, p. 34/35), ou que
fossem resultado de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Resta-nos tentar definir que sentido é este. O artigo 5º, §2º nos indica três fontes
de onde podem ser deduzidos novos direitos com status constitucional: o próprio regime
da Constituição, seus princípios, e, por último os tratados internacionais de que o Brasil
faça parte. Pedimos licença para tratá-los na ordem exatamente inversa do texto
constitucional, por imaginarmos que isso facilitará a compreensão.
Em relação aos direitos veiculados por tratados internacionais de que o Brasil
faça parte, prevaleceu doutrinariamente durante muitos anos a interpretação de que, por
meio deste dispositivo, nosso país estaria aderindo à ideia de “bloco de
constitucionalidade” (SARLET, 2013, p. 516), assim compreendido um conjunto de
normas materialmente constitucionais, que, junto com a Constituição de 1988, formariam
um bloco normativo de hierarquia constitucional, à semelhança do que é reconhecido em
diversos países europeus (LOPES; CHEHAB, 2016, p. 83). Neste conjunto estariam
incluídos, pois, por determinação constitucional expressa, os direitos reconhecidos em
tratados dos quais o Brasil fizesse parte, ampliando-se nossa ordem constitucional a cada
compromisso internacional que assumíssemos.
Este entendimento nunca foi acolhido com firmeza pelo Poder Judiciário
brasileiro, e foi deixado de lado quando pela quase unanimidade da jurisprudência
quando, em 2004, foi promulgada uma emenda constitucional, adicionando um novo
parágrafo ao artigo 5º da Constituição Brasileira, deixando claro que apenas os tratados
relativos aos direitos humanos que fossem aprovados pelo mesmo procedimento
legislativo pertinente às emendas constitucionais alcançaria o status de integrantes da
Constituição (LOPES; CHEHAB, 2016, p. 85). Até a presente data, o único que alcançou
esta condição foi a Convenção Internacional de Pessoas com Deficiência, com a qual o
Brasil se comprometeu em 2007, e ratificou internamento nos moldes do 3º do artigo 5º
da Constituição em 2009.

27
Evidenciado que o Brasil, por sua Constituição, pelo menos desde 2004, aderiu
sim à ideia de bloco de constitucionalidade mediante a incorporação, com status
constitucional de tratados internacionais, debate-se a doutrina brasileira hoje apenas com
uma questão residual: a maior parte considera que o parágrafo terceiro revogou
tacitamente o trecho do parágrafo segundo que tratava da abertura de nossa ordem
constitucional aos direitos previstos em tratados internacionais assinados pelo Brasil, ao
apresentar novo regramento, mais específico e mais rígido. Alguns poucos,
principalmente aqueles que se preocupam com o status da incorporação das normas do
Pacto de San José da Costa Rica ao direito interno brasileiro, pugnam pelo
reconhecimento da vigência plena deste trecho do parágrafo 2º, pelo menos até 2004
(CARVALHO, 2016, p. 138).
Seguindo na análise do texto do artigo 5º, §2º da Constituição de 1988, o segundo
elemento de abertura da ordem constitucional brasileira estaria na dedução de novos
direitos fundamentais de status constitucional a partir dos princípios adotados pela Carta
em seu texto positivado.
Trata-se do reconhecimento de que a declaração constitucional de direitos
brasileira, como todas aquelas herdeiras da tradição dos direitos humanos, tem um
elevado grau de abstração, apresentando-se como um quase vazio semântico que não
oferece solução com suporte linguístico evidente (CANDIA FALCON, 2015, p. 882), que
torna a literalidade uma impossibilidade técnica, e a recriação jurisprudencial uma
necessidade constante (REVENGA SANCHEZ, 2002, p. 103).
As soluções jurisprudenciais devem ser aqui, necessariamente, um continuum da
norma constitucional que traz o princípio invocado (CANDIA FALCON, 2015, p. 883),
adaptando-a à nova realidade factual que se apresenta (AVANCI, 2013, p. 71), sem perder
a conexão lógica com a norma fundamental que confere a legitimidade à decisão (DIAZ
REVORIO, 2009, p. 242).
Um procedimento mais complexo é reconhecer novos direitos de status
constitucional a partir do regime da Constituição de 1988.
Por óbvio, se os princípios constitucionais como fonte de novos direitos são
tratados em termo específico, não se pode imaginar que o regime a que se refere o
dispositivo seja uma expressão sinônima a esta denominação dada às normas
fundamentais de conteúdo linguístico indeterminado, mas positivado, sob pena de
admitirmos que o dispositivo em exame é tautológico.

28
A nosso ver, trata-se de algo ainda mais intangível: o reconhecimento de que a
Constituição tem um valor central, que busca proteger os indivíduos contra riscos e
ameaças que não poderiam ser nem remotamente identificados por ocasião da
promulgação da Carta (SARMENTO, 2016, p. 74).
Em uma sociedade multicultural, tanto em suas origens quanto em suas
manifestações atuais, a ideia de “direitos decorrentes do regime” somente pode estar
ligada ao único elemento que a unifica, qual seja, a ideia de que todos nós, seus cidadãos,
temos o mesmo valor. Esta ideia-chave virá suportar e conferir status de direito
fundamental constitucional a novos direitos que institucionalizem e estabeleçam a
mediação entre ideais divergentes do que é uma boa vida.
Em uma sociedade multicultural, que está obrigada a conviver,
simultaneamente, com o “sonho americano”, os “óculos
ingleses”, o “pensamento francês”, a “filosofia alemã” e o “jeito
brasileiro”, só se pode supor que toda pessoa, enquanto pessoa,
tem o mesmo valor. Nessa perspectiva, portanto, os novos direitos
são aqueles que não colonizam o “mundo vivido”, quer dizer,
aqueles direitos polidiscursivos que mediam as tensões entre
ideias de boa vida divergentes através de procedimentos
juridicamente instituídos sob as condições ideais de discussão.
(PEREIRA; SIMIONI, 2008, p. 229-230)

Com essa abertura, poderão ser apropriadas pela linguagem dos direitos
fundamentais (BOBBIO, 1992, p. 10) as novas necessidades individuais, coletivas ou
metaindividuais que vierem a surgir nessa sociedade plural, legitimando modos de vida,
desejos e valores emergentes no curso da história (WOLKMER, 2007, p 102).
Em seu conteúdo, este processo nada tem de distinto daquele que é responsável
pela permanente universalização e multiplicação dos direitos fundamentais desde a
Segunda Guerra Mundial (BOBBIO, 1992, p. 67). Sua distinção, a todo ver, dá-se na
forma de sua operação, na qual o Poder Judiciário do Brasil (mas não apenas de nosso
país) usa em seus limites máximos as autorizações constitucionais de que dispõe, para se
por, no mínimo, na mesma posição do Poder Legislativo na construção da pauta e
definição do conteúdo dos direitos fundamentais.

2.4 UMA PECULIARIDADE BRASILEIRA: O RECONHECIMENTO DE UM


NOVO DIREITO COMO FUNDAMENTAL TAMBÉM PODE TORNÁ-LO
INTANGÍVEL
A quase totalidade das Constituições distingue-se da legislação ordinária, do
ponto de vista formal, pela chamada rigidez constitucional, a exigência contida no próprio

29
texto constitucional de que sua reforma se dê por um procedimento mais rigoroso do que
aquele destinado à revogação ou alteração de outras normas
La rigidez constitucional no es, propiamente, una garantía, sino
un rasgo estructural de la constitución ligado a su ubicación en el
vértice de la jerarquía de las normas; de modo que las
constituciones son rígidas por definición, en el sentido de que una
Constitución no rígida no es, en realidad, una Constitución sino
una ley ordinaria. Se identifica, en suma, con el grado de las
normas constitucionales supraordenado al de todas las otras
fuentes del ordenamiento, es decir, con la normatividad de las
primeras respecto de las segundas (FERRAJOLI, 2006, p. 23)

A rigidez tem o objetivo é dar estabilidade ao texto constitucional (SARLET;


BRANDÃO, 2013, p. 1124), mantendo-se a segurança jurídica (BRANDÃO, 2007, p.
26), mediante o estabelecimento de que o diploma central definidor das características
jurídicas da sociedade não esteja sujeito a alterações por maiorias precárias e ocasionais.
O propósito de uma Constituição rígida em contraposição a maiorias populares
momentâneas encontra na literatura constitucional metáforas explicativas eloquentes
como “o apelo do povo bêbado ao povo sóbrio” (HAYEK, 2011, p. 268), ou “a estratégia
de Ulisses de se amarrar ao convés para não ceder ao canto das sereias (ELSTER, 2009,
p. 66)”. Estas expressões ilustram este procedimento, de um Poder Constituinte
Originário que se supõe racional, de resguardar a norma central do ordenamento jurídico
de um país da comoção social ou da transitória falta de racionalidade no trato de assuntos
específicos, problemas que periodicamente afligem as sociedades modernas (CONSANI,
2014, p. 149).
A Constituição Brasileira de 1988 deu um passo além, e, por seu artigo 60, §4º,
estabeleceu que uma expressiva parte do seu texto, inclusive os direitos e garantias
individuais, tema que nos interessa aqui, comporiam um núcleo ultrarrígido de normas,
em relação às quais não seria nem mesmo possível deliberar-se sobre proposta de emenda
tendente a aboli-las
Art. 60. ...
...
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais

30
Quanto aos três primeiros itens, voltados para a das características principais do
Estado que a Constituição pretende estruturar, já constavam eles, de forma mais ou menos
explícita, do núcleo intangível das diversas Constituições brasileiras havidas desde a
independência do país (ANDRADE, 2009, p. 208). A novidade da Constituição de 1988
foi a extensão desta característica aos direitos e garantias individuais, que, inspirando-se
no disposto pelo artigo 79-3 da Constituição Alemã de 1948 29 e no artigo 290 da
Constituição Portuguesa de 1976 30 , apontou-os como completamente insuscetíveis de
supressão futura, ainda que por iniciativa do Poder Constituinte Derivado (DURANGO
ÁLVAREZ, 2015, p. 102).
A cláusula foi aplicada pelo Supremo Tribunal brasileiro pela primeira 31 vez
apenas cinco anos depois de sua promulgação, no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 939 (BRASIL, 1993b), no qual aquela Corte reconheceu que o
princípio da anterioridade tributária era uma garantia individual fundamental, não
podendo ser suprimido, e nem mesmo excepcionado, como propunha a Emenda
Constitucional 03 (BRASIL, 1993a).
Este julgamento é fundamental para compreender que o Supremo Tribunal
Federal brasileiro, ao preservar o texto originário de um princípio situado no capítulo da
Constituição destinado ao sistema tributário, permite-se incluir na proteção da
intangibilidade não apenas os direitos nominados formalmente pela Carta Constitucional
como fundamentais, mas a estende a todos aqueles que considera como parte do núcleo
material de garantias do cidadão brasileiro.

29
Diz o Art. 79-3 da Lei Fundamental de Bonn.” Uma modificação desta Lei Fundamental é inadmissível
se afetar a divisão da Federação em Estados, o princípio da cooperação dos Estados na legislação ou os
princípios consignados nos artigos 1 e 20.” . Imperioso destacar que entre os artigos 1 a 20 estão lançados
os direitos fundamentais dessa Carta,
30
Art. 290: As leis de revisão constitucional terão de respeitar: a) A independência nacional e a unidade do
Estado; b) A forma republicana de governo; c) A separação das Igrejas do Estado; d) Os direitos, liberdades
e garantias dos cidadãos; e) Os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações
sindicais; f) O princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos
recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios; g) A planificação democrática da
economia; h) Ò sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos
órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação
proporcional; i) O pluralismo de expressão e organização política, incluindo partidos políticos, e o direito
de oposição democrática; j) A participação das organizações populares de base no exercício do poder local;
l) A separação e a interdependência dos órgãos de soberania; m) A fiscalização da constitucionalidade por
acção ou por omissão de normas jurídicas; n) A independência dos tribunais; o) A autonomia das autarquias
locais; p) A autonomia político-administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.
3131
Desde então, sucederam-se dezenas de julgamentos na Suprema Corte brasileira com este fundamento,
a inconstitucionalidade de emendas constitucionais por ofensa aos direitos e garantias individuais, não
representando nada mais de extraordinário na doutrina e jurisprudência constitucional brasileira
apresentação deste tipo de argumento, até mesmo na via incidental de controle de constitucionalidade.

31
Na sequência, a pergunta que se põe é: admitida a Constituição Brasileira como
uma ordem aberta à incorporação de novos direitos, estes também, se e quando
reconhecidos, receberão este mesmo tratamento, convertendo-se em norma inderrogável
até nova manifestação do Poder Constituinte originário?
Não há, até o momento, precedente judicial que nos possa guiar. O legislador
ordinário brasileiro tem sido mais do que respeitoso com as decisões judiciais que
reconheceram direitos fundamentais não expressos na Constituição de 1988, como no
notável (mas longe de único) exemplo da incorporação ao direito nacional da
possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, decidida pela Suprema Corte
Brasileira em 2011, e em relação ao qual as esparsas tentativas de backlash legislativo
nunca prosperaram.
Resta-nos arriscar uma projeção a partir da doutrina constitucional brasileira
sobre o tema “direitos constitucionais implícitos”, que examinamos acima. Como vimos,
o reconhecimento do novo direito fundamental dá-se em razão da verificação pelo Poder
Judiciário de que uma determinada pretensão deduzida em juízo guarda unidade
axiológica com o catálogo estabelecido de direitos fundamentais (SARLET, 2006, p. 86):
ou se tratam de situações já anteriormente existentes para as quais houve uma mudança
de sua percepção social (DIAZ REVORIO, 2009, p. 200), ou se trata da absorção pelo
ordenamento jurídico de uma novidade completa do ponto de vista factual (PEREIRA;
SIMIONI, 2008, p. 236). Em todo caso, sua assimilação aos direitos fundamentais pelo
Poder Judiciário somente terá sentido retórico e político (DIMOULIS; MARTINS, 2014,
p. 5) se também lhes for estendida a especial proteção ultrarrígida atribuída àqueles que
já se encontram explícitos no texto constitucional.

32
3. PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS DA LEGALIZAÇÃO DO
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS NO BRASIL: ENTRE O
AUMENTO DA REPRESSÃO LEGISLATIVA E OS LIMITES DO
ATIVISMO JUDICIAL NA QUESTÃO

3.1 A HESITAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO DE INTERVIR NO ASSUNTO. O


PRECEDENTE DA CORTE CONSTITUCIONAL ALEMÃ
No início deste século XXI, após décadas de prevalência de um proibicionismo
cada vez mais estrito, alguns países têm revisado o status jurídico do uso de substâncias
psicoativas tradicionalmente consideradas ilícitas.
Este movimento pode ser notado pelo menos em relação àquela que
demonstramos acima ser a droga ilícita mais consumida em todo mundo, a Cannabis:
entre a simples descriminalização para uso pessoal e a liberdade até para comerciá-la,
destacam-se as experiências portuguesa 32 , uruguaia, sulafricana e de 8 Estados dos
Estados Unidos da América (inclusive o mais populoso deles, a Califórnia) como aquelas
em estágio mais avançado. Outros tantos países, comoa a Austrália, Canadá, Alemanha,
Itália e 16 Estados dos Estados Unidos, têm normas autorizando o uso medicinal da
Cannabis. 33 Em todos estes países citados acima, a alteração do status jurídico da
Cannabis decorreu de alterações na legislação ordinária, à exceção da África do Sul, único
país em que isso decorreu de decisão judicial34.
Do ponto de vista do positivismo jurídico, mesmo em suas vertentes mais
recentes, o melhor caminho para o tratamento da definição da (i)licitude do consumo de
substâncias psicoativas seria, sem dúvida, o caminho legislativo: a alteração da legislação
permitiria que cada sociedade, por seus parlamentos ou, até diretamente, em campanhas
políticas que antecedem referendos e plebiscitos, fosse exposta às várias visões sobre o
tema, podendo contrapô-las, internalizando os argumentos morais e pragmáticos em torno
da questão (BUSTAMANTE, 2016, p. 33), para finalmente, aceitar ou não a ampliação
do rol das substâncias consideradas lícitas (WALDRON, 1999, p. 40). Este debate público

32
Em nossa pesquisa, Portugal, por meio de sua Lei 30 de 2000 (texto completo em
https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-
/lc/1509/201704151434/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_LegislacaoConsolidada_WAR_drefrontoff
iceportlet_rp=indice) e por sua prática cotidiana, parece ser o único país que estende a liberalidade a
pequenas quantidades de outras substâncias psicoativas internacionalmente consideradas ilícitas, como a
cocaína e heroína.
33
Para o status legal em cada país, consultamos a tabulação existente no site
https://en.wikipedia.org/wiki/Legality_of_cannabis_by_country, acesso em 01.08.2017.
34
A íntegra desta decisão encontra-se em http://www.saflii.org/za/cases/ZAWCHC/2017/30.html , acesso
em 01.08.2017

33
teria o potencial de fazer surgirem as bases para uma decisão civilizada, segura, com
autoridade, e com ampla possibilidade de ser respeitada (WALDRON, 1999, p.106),
tendo em vista que a anuência decorreria da representação popular (MAUS, 2010, p. 43).
As críticas tradicionais que o positivismo jurídico tem ao neoconstitucionalismo
e ao pós-positivismo são reiteradas de forma especialmente marcante quando se pensa em
qualquer alteração do tratamento jurídico da questão por meio do Poder Judiciário: a
legalização do consumo de alguma substância psicoativa hoje proibida seria um assunto
a causar severo desacordo social, que somente pode ser solucionado com mínima
perspectiva de sucesso pelo processo legislativo, e nunca pela imposição do ponto de vista
moral de uma Corte de Justiça, sob pena de grave atentado à democracia
(BUSTAMANTE, 2016, p. 62). Deste modo, a definição de onde seria a linha da licitude,
no que se trata do consumo das substâncias psicoativas, deveria pertencer exclusivamente
aos poderes eleitos, em especial o Poder Legislativo.
Neste sentido decidiu, em 1994, o Tribunal Constitucional Alemão quando
chamado a se pronunciar sobre a constitucionalidade da Betäubungsmittelgezetz (Lei de
Narcóticos/Substâncias Tóxicas), em caso no qual firmou, de modo bastante cabal, em
precedente até hoje não superado, a inexistência de um direito ao consumo de substâncias
psicoativas não autorizadas pela lei ordinária
O princípio da igualdade não leva a que todas as drogas que
sejam igualmente nocivas devam ser proibidas de modo idêntico.
A legislatura pode regular o uso de produtos derivados da
Cannabis de modo diferente do trato que dá aos produtos
derivados do álcool ou da nicotina sem que com isso esteja
ferindo a Constituição.
...
Pertence essencialmente à legislatura determinar que tipos de
comportamento são puníveis em cada caso específico, após a
devida consideração da situação específica. O Tribunal
Constitucional não pode examinar se a decisão da legislatura foi
a mais adequada, razoável ou justa forma de resolver o problema
em questão. O papel do Tribunal é meramente examinar se o
conteúdo da norma penal é compatível com as previsões da
norma constitucional e seus valores fundamentais, inclusive
aqueles não-escritos (ALEMANHA, 1994).35

Quando até mesmo o mais ativista dos Tribunais Constitucionais da Europa (e


provavelmente do mundo) considera que a definição de quais substâncias psicoativas
podem ser consumidas licitamente é um tema exclusivo do Parlamento, é preciso admitir

35
Tradução livre minha de trechos selecionados da decisão. Também são meus os negritos.

34
que as perspectivas de uma revisão judicial do tema em outros países, principalmente no
Brasil, país objeto central de nosso estudo e onde aquela Corte tem enorme influência,
podem parecer muito baixas.

3.2 MANTENDO O DIÁLOGO SOCIAL ABERTO: O SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL E A “MARCHA DA MACONHA”
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal, que é simultaneamente Corte
Constitucional e órgão recursal ordinário máximo do sistema judicial brasileiro, nestes
últimos anos tem emitido sinalizações de que pode vir a deixar de lado a resposta
hermenêutica tradicional de meramente confirmar a autoridade exclusiva do legislador
sobre o tema, e chamar para si esta decisão.
O primeiro destes sinais foi a decisão tomada em 2011 pela Corte, no caso
conhecido como “Marcha da Maconha”. Até aquela data, nenhuma questão relativa a
substâncias psicoativas ilícitas havia sido tratada sob o prisma constitucional, limitando-
se os julgamentos daquela corte aos aspectos penais do tema, nos poucos recursos que
alcançavam aquela última instância jurisdicional.
A “Marcha da Maconha” é a versão brasileira de um evento internacional
conhecido por Global Marijuana’s March36, cujo objetivo é reunir, em cada país e cidade,
os interessados em se manifestar pela liberação do consumo da Cannabis.
No Brasil, a primeira marcha que adotou explicitamente este nome foi
organizada em 2007, na cidade do Rio de Janeiro, logo se espalhando o movimento pelo
restante do país. Seguiu-se intensa repressão policial e judicial, sob a fundamentação de
que os organizadores (a até os participantes) das Marchas praticavam o crimes de
“apologia ao crime”37 e de “instigação ao uso de drogas”38

No geral, três foram as razões centrais alegadas para a


incriminação: (i) o sítio eletrônico da Marcha

36
Aparentemente não se trata de um movimento unificado e institucionalizado, tanto que não conseguimos
localizar nem mesmo um site que tivesse as informações básicas sobre sua organização e objetivos. O site
http://cannabis.shoutwiki.com/wiki/Global_Marijuana_March (acesso em 04.08.2017), normalmente
indicado como a página oficial do evento, é um site do estilo colaborativo (wiki), limitando-se a indicar as
cidades de todo o mundo onde já ocorreram e/ou estão programadas marchas.
As marchas, aparentemente, são organizadas de modo local, utilizando-se do nome Marijuana March mais
como uma “marca” comum, do que como o indicativo de filiação dos participantes a um movimento político
ou organização.
37
Artigo 287 do Código Penal Brasileiro: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de
crime. Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”.
38
Artigo 33, §2º da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas Brasileira): “Induzir, instigar, ou auxiliar alguém ao
uso indevido de drogas. Pena – detenção de 1 a 3 anos e multa de 100 a 300 dias-multa”

35
(http://marchadamaconha.org/) continha, à época, um vídeo com
uma “convocação” geral para participar do evento de maio que,
segundo entendimento dos promotores, veiculava imagens
apologéticas e fazia expressamente referência ao induzimento do
consumo de maconha; (ii) não seria possível indicar um
representante que pudesse responder legalmente por quaisquer
problemas que pudessem vir a ser causados nos eventos28; e (iii)
a Marcha não poderia ser vista como um movimento social
porque seus organizadores se utilizariam da liberdade de
expressão como pretexto para promover a incitação ao uso de
drogas, ou, ainda, porque as atividades conduzidas pela Marcha
acabariam criando um ambiente favorável ao consumo que
dificulta o controle pelas autoridades. (MACHADO, SILVA,
OTERO, 2015, p. 7).

Em julho de 2009, a Procuradora Geral da República em exercício naquela data,


ajuizou uma ação perante o Supremo Tribunal Federal 39 , com vista a que a Corte
declarasse que a defesa pública da legalização das substâncias psicoativa não constitui
crime, mas sim reflexo possível do direito fundamental à liberdade de expressão e
reunião.
O pedido foi acatado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em junho de
2011, sob o fundamento de que a “Marcha da Maconha” é uma expressão legítima da
liberdade de reunião e da liberdade de expressão, com vista ao debate acerca da abolição
da punibilidade penal que incide atualmente sobre o consumo de Cannabis
É por isso que a defesa, em espaços públicos, da legalização das
drogas, longe de significar um ilícito penal, supostamente
caracterizador do delito de apologia de fato criminoso, representa,
na realidade, a prática legítima do direito à livre manifestação do
pensamento, propiciada pelo exercício do direito de reunião,
sendo irrelevante, para efeito da proteção constitucional de tais
prerrogativas jurídicas, a maior ou a menor receptividade social
da proposta submetida, por seus autores e adeptos, ao exame e
consideração da própria coletividade. (BRASIL, 2011a)

Ainda que sob a perspectiva mais estritamente positivista, a decisão nos parece
irretocável: alegando dar cumprimento à proibição legal de se consumir determinadas
substâncias psicoativas, vários órgãos policiais e judiciários brasileiros estavam negando
à população brasileira até mesmo a possibilidade de manifestar sua inconformidade com
o trato legislativo do tema, violando, por meio de sua ação repressora a norma permissiva

39
Uma “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental”, ação constitucional manejável
diretamente perante o Tribunal Constitucional Brasileiro para defesa de direitos fundamentais difusos que
estejam sendo desrespeitados pelo Poder Público.

36
contida na norma de topo do ordenamento jurídico, a Constituição (BOBBIO, 1999, p.
187).
As garantias constitucionais negativas, impostas pelo princípio da
estrita legalidade, são aquelas da inderrogabilidade da
Constituição por parte do legislador ordinário, impedindo a este a
produção de antinomias, isto é, de normas com ela em contraste.
São garantias negativas primárias as proibições da legislação
ordinária de produzir normas que contrariem as normas
constitucionais, sejam as proibições incondicionadas ou
condicionadas à adoção de um processo legislativo especial. São
garantias secundárias as normas sobre o controle jurisdicional de
constitucionalidade, consistentes na obrigação a cargo da
jurisdição de anular ou deixar de aplicar as normas em contrate,
por razões de forma ou substância, com normas constitucionais e
que, portanto, violam as garantias constitucionais negativas
primárias. (FERRAJOLI, 2015, p. 72)

Assim, constatando a ausência de suporte constitucional formal e material à


restrição de facto que se estava estabelecendo sobre a liberdade de expressão, o Supremo
Tribunal Federal decidiu pela possibilidade de debate público amplo (ELY, 2010, p. 140)
sobre a conveniência e justiça da proibição do consumo de determinada substâncias
psicoativas no Brasil, declarando que os interessados e não importa aqui o seu número,
têm o direito democrático elementar de criticar um ato legislativo vigente (HABERMAS,
2003, v.1, p. 164).

3.3 UMA CORTE ATIVISTA


Analisada, ainda que brevemente, a adequação da decisão do Supremo Tribunal
Federal sobre a Marcha da Maconha a uma perspectiva juspositivista, é o momento de
lembrar que, todavia, ela está inserida temporalmente no exato momento da guinada
ativista daquele Tribunal, a que nos referimos no segundo capítulo de nossa monografia:
apenas um mês antes, em decisão que é considerada a mais emblemática deste novo
momento institucional do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a Corte, 23 anos após a
promulgação da Constituição de 1988, reconhecera a constitucionalidade da união civil
de casais homossexuais, diretamente a partir da interpretação do conceito constitucional
de família e sem que tivesse havido qualquer alteração da legislação ordinária ou do
próprio texto de topo do ordenamento jurídico brasileiro.
Além disso, em um intervalo de 10 anos (2007-2016), também em interpretações
derivadas exclusivamente da interpretação do texto constitucional originário, o Supremo
Tribunal Brasileiro:

37
a) Impediria o Congresso Nacional de limitar a criação de novos partidos,
com suporte no princípio da liberdade de associação;
b) também a partir deste princípio, autorizaria a greve no serviço público,
independentemente da edição de lei a regulamentá-la;
c) ampliaria a possibilidade de aborto legal no Brasil às hipóteses de gravidez
de feto anencéfalo, com base no princípio da dignidade da pessoa humana;
d) autorizaria a pesquisa com células-tronco embrionárias, negando-se a
reconhecer a existência de vida na concepção extrauterina protegida pelo direito
constitucional à vida;
e) com suporte no princípio da igualdade material declararia a
inconstitucionalidade da norma que exigia a autorização da vítima para processar
penalmente o marido/companheiro que comete ato de violência doméstica;
f) também com base no princípio da igualdade material, validaria decisões
administrativas de universidades públicas que introduziram cotas raciais em favor de
negros e indígenas em suas seleções para cursos de graduação;
g) declararia que os presídios brasileiros encontram-se em um “estado
inconstitucional”, ferindo a dignidade da pessoa humana, determinando aos Poderes
Executivos Central e Regionais a tomada de providências;
h) com base no mesmo princípio, redefiniria os critérios de avaliação da renda
dos beneficiários da assistência social estatal;
i) redefiniria os critérios de demarcação das terras indígenas, estabelecendo
um equilíbrio entre os princípios da proteção à população ancestral brasileira, ao meio
ambiente e à defesa nacional;
j) negaria aos estabelecimentos particulares de ensino a possibilidade de
cobrar mensalidades mais altas dos alunos com deficiência física ou mental, a partir da
incorporação ao texto constitucional brasileiro da Convenção Internacional das Pessoas
com Deficiência (IOTTI, 2016)
Este substancioso rol de exemplos, e muitos outros julgados da Suprema Corte
Brasileira que tiveram menor repercussão política, mas foram igualmente fundados na
aplicação direta de princípios constitucionais, demonstra a disposição desta Corte
Suprema em estabelecer, na última década, um novo senso de protagonismo do Poder
Judiciário na cena institucional brasileira, puxando para si uma pauta de assuntos
estagnados no Poder Legislativo, e estabelecendo novos direitos fundamentais (ou
vertentes deles) que não estavam explícitos. Os Poderes eleitos da Repúbica, por sua vez,

38
como também visto no segundo capítulo, encontravam-se (e ainda se encontram) em forte
momento de descrédito, resultante de sucessivos escândalos de corrupção, e sem nenhum
apetite para decisão de temas potencialmente polêmicos e divisivos , que possam resultar
em perda de eleitorado(SANT’ANNA, 2014, p. 13).
As implicações políticas mais amplas deste rearranjo institucional para a ainda
jovem democracia brasileira escapam dos limites deste trabalho monográfico, mas o que
delas exsurge para o assunto que aqui tratamos permite-nos pelo menos duas inferências,
com as quais passamos a trabalhar.
A primeira delas, extraída da lista histórica de julgados relevantes posta acima,
é que a possibilidade de se examinar a alegação de inconstitucionalidade da repressão
penal ao consumo de substâncias psicoativas hoje reputadas ilícitas (e, eventualmente,
afastar essa proibição) é coerente com a atuação da Corte nos últimos anos: trata-se de
demanda relevante para uma minoria expressiva ainda que difusa, a que o Poder
Legislativo tem sido historicamente indiferente ou até refratário, e que pode ser
associada, pelo menos pretensamente, a direitos fundamentais com previsão
constitucional, como a liberdade e a privacidade/intimidade. Além disso, há também
indicativos de que a repressão penal ao tema, como tratada pela legislação ordinária hoje,
é a principal responsável pela explosão da população carcerária, outra ameaça consistente
aos direitos humanos no Brasil.
A segunda delas, que já exploramos em parte segundo capítulo e passaremos a
detalhar mais a partir de agora, é que, do ponto de vista hermenêutico, uma pauta material
tão ambiciosa (embora não mais do que outras já decididas pelo Supremo Tribunal
Federal) dificilmente coaduna com a metodologia hermenêutica do positivismo jurídico,
precisando se socorrer de outras teorias, normalmente associadas ao que se convencionou
chamar de pós-positivismo ou neoconstitucionalismo, com maior escopo a justificar os
novos poderes de que a Corte se investiu.

39
3.4 O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS COMO EXPRESSÃO DO
DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE: UM
JULGAMENTO EM ABERTO
Como o trato legislativo ordinário brasileiro continua persistentemente incapaz
de dar conta da extensão de todo fenômeno histórico e social relativo ao comércio e
consumo de substâncias psicoativas ilícitas a que nos referimos no capítulo 1 e no início
deste capítulo 3 – consumo ascendente e espraiado em todas as camadas sociais, dúvidas
científicas sobre os verdadeiros efeitos do consumo, liberação parcial do consumo até em
países vizinhos, encarceramento em massa como resposta estatal local - era previsível que
as questões envolvendo o tema voltassem ao Supremo Tribunal Brasileiro.
Isso de fato veio a ocorrer em dois casos recentes: em agosto de 2015, iniciou-
se o julgamento do Recurso Extraordinário40 635659, no qual um cidadão brasileiro, de
nome Francisco Benedito de Souza, defendido por um advogado integrante do órgão
estatal de assistência judiciária (Defensoria Pública) do Estado de São Paulo, e com apoio
de uma série de associações não governamentais admitidas ao processo como amicus
curae41 pede a reforma da sentença que o condenou a dois meses de prestação de serviço
comunitário, em razão da posse de três gramas de Cannabis, apreendidas em seu poder
quando já cumpria pena privativa de liberdade por outro crime, em uma unidade prisional
daquela mesma unidade federativa brasileira. Contra o pedido encontrava-se o órgão
estatal autônomo responsável pela acusação (Ministério Público do Estado de São Paulo),
coadjuvado também por uma série de associações na condição de amicus curae
(TAVARES, GORAYB, 2015, p. 1).
Alega o Defensor Público que a punição imposta pela posse de substâncias
psicoativas ilícitas para consumo próprio viola o direito constitucional do cidadão à
intimidade e à vida privada, pois nossa Constituição protegeria qualquer escolha neste
âmbito que não seja ofensiva a terceiros, assim compreendidas aquelas que não tenham
nenhuma aptidão para violação de bens jurídicos alheios. Sua argumentação pode ser
sumariada no extrato abaixo, extraído do recurso apresentado a exame do Supremo
Tribunal Federal:

40
O Recurso Extraordinário é o último recurso possível dentro da estrutura jurídica brasileira, levando uma
questão que já foi debatida constitucional que já foi debatida em todas as instâncias do Poder Judiciário de
nosso país ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal na condição de órgão de topo deste sistema.
41
Na legislação brasileira o amicus curae (“amigos do juízo”) é um estranho ao processo, sem interesse
imediato na causa, mas com reconhecida militância no assunto, admitido ao processo com a possibilidade
de de se manifestar no dia do julgamento.

40
À conduta de portar drogas para uso próprio falta a necessária
lesividade. Deveras, o comportamento tipo criminoso retrata
apenas o exercício legítimo da autonomia privada, resguardada
constitucionalmente pelo direito à vida íntima. O porte de drogas
para uso próprio não afronta a chamada “saúde pública” (objeto
jurídico do delito tráfico de drogas), mas apenas, e quando muito,
a saúde pessoal do próprio usuário. Seu comportamento não
extravasa seu próprio âmbito, estando em núcleo intangível ao
Estado, em seu chamado status libertatis. Nessa esfera, não pode
ingressar o Estado, especialmente da aguda intervenção penal
(ESTADO DE SÃO PAULO, 2010)42

O órgão acusador rebate as alegações do defensor, apontado que a conduta de


consumir substâncias psicoativas ilícitas, ainda que estritamente sozinho, viola o direito
fundamental difuso à saúde pública, contribuindo para propagação do vício. Ainda,
relembra a opção do legislador em manter a posse de substâncias psicoativas ilícitas como
crime, mesmo que sujeita a penalidades brandas (BRASIL, 2011b).
Nenhuma das duas partes preocupa-se em desenvolver mais longamente seus
argumentos de lado a lado, tendo a estrutura argumentativa das peças um caráter
nitidamente jurisdicional, de exposição sumária e direta das teses, largamente apartado
do desenvolvimento acadêmico possível do tema.
No entanto, entendemos ser possível afirmar que o órgão defensor esgrime
argumentos de caráter pós-positivista, buscando a redefinição da extensão do princípio
constitucional que garante a intimidade/privacidade do indivíduo, e fazendo uma
ponderação (ainda que bastante sumária) deste princípio na extensão almejada com o
também constitucional princípio da proteção do Estado à saúde pública. Embora não haja
menção expressa no recurso a qualquer filósofo pós-positivista, esta linha de
argumentação afigura-nos como um pragmático mix das ideias dos dois jusfilósofos
positivistas com maior influência no Direito Brasileiro: Ronald Dworkin e Robert Alexy.
Das ideias substancialistas de Ronald Dworkin vê-se o apelo ao reconhecimento
de que novas formulações jurídicas podem ser realizadas pelos juízes para
aperfeiçoamento do direito, em especial em favor das minorias que encontram obstáculos
para terem reconhecidos seus direitos no processo legislativo (DWORKIN, 2003, p. 9 e
2001, p. 28); das ideias procedimentalistas discursivas de Alexy, antevemos o
reconhecimento de que pode estar havendo, no caso concreto, a colisão de princípios
fundamentais da Constituição, sugerindo-se como possível resposta hermenêutica a

42
Como o processo ainda não teve seu julgamento concluído, optamos por citar cada uma de suas peças
separadamente, realizando a respectiva indicação bibliográfica.

41
ponderação entre eles (ALEXY, 2014, p. 146), com vantagem para o princípio
constitucional que garante a intimidade e a vida privada do cidadão brasileiro, ante os
indícios de ofensa mínima ou nula à saúde pública decorrente do ato de portar substância
psicoativa ilícita para consumo próprio.
Na resposta, o órgão estatal responsável pela acusação mostra sua discordância
com a proposta de ponderação formulada pelo defensor, reafirmando a primazia do
princípio constitucional da saúde pública perante o direito individual ao consumo de
substâncias psicoativas hoje definidas como ilícitas pela legislação ordinária. Mas seus
argumentos são predominantemente de caráter positivista, em sua vertente mais
tradicional, batendo-se pela autoridade do legislador ordinário em realizar as escolhas das
condutas reputadas como sujeitas a sanções penais no Brasil, ante a ausência de restrição
constitucional expressa a este seu poder (BOBBIO, 1999, p. 162).
Em dezembro de 201143, o Supremo Tribunal Federal escolheu este caso como
leading case para fixação ou não da tese da descriminalização do porte de drogas no
Brasil, por possível ofensa desta previsão legislativa ordinária ao texto constitucional.
Desde então, o julgamento vem se arrastando, não estando encerrado até o
momento em que concluímos a presente monografia.
A primeira tentativa de julgá-lo deu-se apenas em agosto de 2015, quando o
Ministro Gilmar Mendes, relator do processo44, apresentou seu voto, no qual concluiu
pela inconstitucionalidade completa de qualquer sanção penal imposta ao consumo de
qualquer substância psicoativa ilícita (BRASIL, 2015a).
Seu primeiro pressuposto é o descarte do ideário estritamente positivista em que
se empenhou a acusação: ainda que o texto constitucional não trate diretamente de um
assunto, entende o julgador que o espaço jurídico para as escolhas do legislador ordinário,
mesmo do legislador ordinário penal, não é completamente discricionário, podendo e
devendo ele ser controlado do Poder Judiciário a partir da noção de proporcionalidade em
sentido estrito (ALEXY, 2008, p. 119) de suas escolhas de incriminação de conduta,
quando examinadas pela perspectiva dos direitos fundamentais

43
O andamento do processo, desde seu ingresso no Supremo Tribunal Federal, pode ser consultado no link
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&n
umeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506, que acessamos em 16.08.2017.
44
Os julgamentos do Poder Judiciário brasileiro, em grau de recurso, dão-se predominantemente em
colegiados. Quando do ingresso do processo nos Tribunais, é sorteado um “relator”, ou seja um dos
julgadores do colegiado, que será responsável por sumariar o caso e apresentar uma primeira proposta de
sua solução aos seus pares.

42
A Corte reconheceu, nesse caso, a difícil legitimação de um
controle de constitucionalidade a esse nível, visto que isso
demandaria um amplo conhecimento de todas as relações sociais
a serem ordenadas, como, também, de todas as possibilidades da
legislação. É com base nessa concepção que pretendem, por
vezes, limitar a competência da Corte Constitucional, sob o
argumento de que o Tribunal, por causa da utilização de uma
ampla competência de exame, interferiria na esfera do legislador
e, com isso, se chocaria contra o princípio da divisão de poderes.
...
Nesse terceiro nível, o Tribunal examina, portanto, se a medida
legislativa interventiva em dado direito fundamental é
necessariamente obrigatória, do ponto de vista da Constituição,
para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes. O
controle, aqui, há de ser mais rígido, pois o Tribunal adentra o
próprio exame da ponderação realizada pelo legislador. Um juízo
definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar,
dessa forma, do possível equilíbrio entre o significado da
intervenção e os objetivos perseguidos (proporcionalidade em
sentido estrito) (BRASIL, 2015a)

Ao passar para a questão central, o Ministro-Relator utiliza-se de um roteiro


evidentemente alexyano (Autor que é mesmo citado expressamente, e mais de uma vez,
em transcrições no corpo da decisão), com o propósito primeiro de saturar a argumentação
que justificará sua decisão (ALEXY, 2005, p. 140).
Neste ensejo, primeiramente apresentou sucessivas camadas de argumentos
empíricos (ALEXY, 2005, p. 186), com considerações sobre o que classificou como
fracasso da política de combate ao consumo e tráfico de substâncias psicoativas ilícitas
no Brasil e no restante do mundo.
Na sequência, o julgador passa ao exame dos direitos fundamentais
potencialmente ligados ao tema, em perspectiva analítico-lógica (ALEXY, 2005, p. 226
e 245): o que são os direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, e quais são
as possibilidades de limitá-lo ou restringi-los. Em sua substância, novamente se evidencia
que o Ministro reproduz, em grande medida, as ideias de Robert Alexy sobre o tema, em
especial aquelas expostas na obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”, no capítulo que,
na edição brasileira, tomou o nome de “Direitos Fundamentais e suas Restrições”
(ALEXY, 2008, p. 276-300).
Por fim, como pedido pelo defensor do acusado, realiza o procedimento de
ponderação, também de inegável matriz alexyana, como visto acima. Expõe que, de um
lado, estão os direitos fundamentais à privacidade e a intimidade daquele que consome
substâncias psicoativas, mas, de modo algo inovador, resolve confrontá-lo não somente

43
com o princípio constitucional que obriga o Estado a proteger a saúde coletiva, mas
também a segurança pública.
Suas conclusões são que, em relação a ambas as situações, o risco de dano é
mínimo, quando não meramente potencial, não sendo suficiente para ensejar a restrição
ao direito fundamental à intimidade e privacidade
As ponderações dos autores citados ajustam-se como uma luva ao
caso em análise. Afigura-se claro, até aqui, que tanto o conceito
de saúde pública, como, pelas mesmas razoes, a noção de
segurança pública, apresentam-se despidos de suficiente
valoração dos riscos a que sujeitos em decorrência de condutas
circunscritas a posse de drogas para uso exclusivamente pessoal.
(BRASIL, 2015a)

Expostos ao colegiado os argumentos e a conclusão do Ministro Relator, o


julgamento foi suspenso a pedido do Ministro Edson Fachin, que, pela organização da
Corte, seria o próximo a apresentar suas razões45. Vinte dias depois, o julgamento foi
retomado, com a manifestação de concordância em parte de Edson Fachin com o voto do
relator, por entender o segundo julgador que apenas o consumo de Cannabis deveria ser
considerado uma expressão do direito fundamental à privacidade e intimidade,
autorizando-se o legislador ordinário a manter a proibição de consumo de todas as demais
substâncias psicoativas consideradas ilícitas no Brasil (BRASIL, 2015b).
Fachin parte da mesma premissa pós-positivista tomada por Gilmar Mendes:
ainda que a Constituição não traga uma vedação expressa à criminalização de uma
conduta, o legislador penal ordinário não está isento do controle judicial da
proporcionalidade de suas escolhas.
O processo de constitucionalização do direito penal, ainda
embrionário no Brasil, passa diretamente pelo controle de
constitucionalidade das hipóteses de criminalização primária - ou
seja, aquelas que tratam da criação de tipos penais e incriminação
de condutas pela legislação (BRASIL, 2015b)

Quanto à pretensão deduzida no recurso, propriamente, Fachin realiza a


ponderação entre o direito fundamental à intimidade\privacidade do usuário e o direito
igualmente relevante à saúde, tanto sob a perspectiva individual, quanto coletiva.

45
As decisões da mais alta corte brasileira têm a peculiaridade de permitir a cada um dos onze ministros
que a compõem expor individualmente seus argumentos, ao contrário de outros países, onde, no máximo
dois julgadores apresentam, respectivamente, a tese vencedora e a vencida, construída em conjunto e em
uma única peça com aqueles que tenham aderido a um ou outro lado.

44
Partindo também de dados estatísticos sobre encarceramento (em especial
decorrentes da posse de Cannabis) e sobre programas públicos de atendimento a usuários
de drogas no Brasil, conclui que o direito à saúde, tanto individual quanto coletiva, não
seria, de modo algum prejudicado pelo reconhecimento do consumo de Cannabis como
expressão da privacidade/intimidade do cidadão brasileiro. No sentido exatamente
oposto, favoreceria à expansão deste direito, na medida em que os dependentes desta
substância psicoativa sentir-se-iam mais confortáveis em procurar atendimento de saúde
público para se afastarem do vício (perspectiva individual), como também poderiam ser
legalmente informados e educados sobre as consequências deste (perspectiva coletiva).
Disso se extrai que o acesso à saúde é universal, frise-se bem, e,
por conseguinte, deve abarcar todos os indivíduos que
necessitarem dos seus serviços para preservação da própria
integridade física e mental. Ao referir-se a “todos”, em tal
significante se inclui a integralidade dos cidadãos, sem qualquer
pecha discriminatória sobre a patologia acometida ou sua origem,
sua raça ou sua cor que os prive de tratamento ou cuidado. Ter
acesso legal à saúde é direito fundamental. Repita-se: toda droga,
lícita ou ilícita, traz sequelas, e pode fazer mal, seja afetando o
sistema de recompensa, seja gerando dependência física ou
psíquica.
...
Relevante, por conseguinte, é a resposta de informação,
educação, atenção e cuidado da saúde dos usuários de drogas. Vê-
se indispensável, assim, a atuação do Poder Público, da
sociedade, das famílias em sua dimensão expandida, das
entidades religiosas e de benemerência, no incremento das redes
de atenção e cuidado à saúde das pessoas que abusam de
substâncias e que causam dependência, e especialmente no campo
da prevenção e proteção de crianças e adolescentes. (BRASIL,
2015b)

A opção do julgador por limitar a decisão apenas e exclusivamente à Cannabis


tem fundamentação empírica e extremamente precária: diz ele que está examinando
apenas a droga que estava na posse do condenado que recorreu àquela Suprema Corte,
sem explicitar do ponto de vista hermenêutico uma justificativa para que o texto legal
ordinário continue sendo considerado constitucionalmente válido em relação às demais
substâncias psicoativas definidas como ilícitas no Brasil.
Ainda, observamos que, do ponto de vista prático, admitindo sua opção por
aquilo que a doutrina brasileira chama de “interpretação do texto legal ordinário conforme
a Constituição” (NERY JÚNIOR; ABBOUD, 2017, p. 684), ou seja, a manutenção do
texto ordinário em sua maior extensão possível que não afronte a Constituição em vez de

45
sua simples invalidação, a opção do julgador revela-se mesmo contraditória, pois todos
seus argumentos empíricos relativos às questões de saúde individual e coletiva
decorrentes do uso da Cannabis poderiam ser aplicados (por vezes, até em maior
extensão) ao consumo de outras substâncias hoje consideradas ilícitas, como a cocaína e
a heroína.
A limitação do julgamento à Cannabis também é o pressuposto do último
julgador a se manifestar naquela sessão, o Ministro Luís Roberto Barroso. Também ele
fundamenta sua opção a partir do fato de ter sido aquela a substância psicoativa ilícita
encontrada com o réu.
Sua manifestação tem estrutura argumentativa pós-positivista similar àquela
proferida pelo Ministro-Relator, que já examinamos acima: a saturação do discurso pelo
empilhamento de argumentos eminentemente empíricos, seguido de considerações
analítico-lógicas sobre o texto constitucional, culminando com a ponderação do direito
fundamental à privacidade/intimidade com os direitos à saúde e à segurança públicas
(BRASIL, 2015c).
Sob a perspectiva empírica, cita o que chama de fracasso universal da guerra
contra as drogas, o possível estímulo ao tráfico dado pela manutenção do consumo de
Cannabis na ilicitude, e a explosão da população carcerária brasileira após a alteração,
em 2006, da legislação que regula a política de drogas no país. Há também a preocupação
de refutar, ainda que sumariamente, os argumentos empíricos mais comuns dos opositores
da liberação: risco de aumento de consumo da substância, aumento da criminalidade,
riscos para a convivência no trânsito.
Na sequência, procura definir a extensão dos direitos fundamentais à intimidade
e privacidade no Brasil, para definir se o consumo de Cannabis pode ser incluído como
uma projeção deles, tal como a utilização de álcool e tabaco.
Então, pondera que prejuízo a utilização da Cannabis traz à saúde e segurança
públicas, para concluir que elas não são agravadas por este ato de modo a justificar a
restrição ao direito fundamental à intimidade e privacidade concretizada pela previsão de
sua punibilidade na esfera criminal. Com estes fundamentos, conclui que a previsão penal
ordinária deve ser invalidada, ou pelo menos conformada à Constituição (eis que somente
invalidada em relação à Cannabis) a partir da ideia de que não é proporcional ao seu fim
declarado.
O teste da proporcionalidade inclui, também, a verificação da
adequação, necessidade e proveito da medida restritiva. A

46
criminalização, no entanto, não parece adequada ao fim visado,
que seria a proteção da saúde pública. Não apenas porque os
números revelam que a medida não tem sido eficaz – o consumo
de drogas ilícitas, inclusive da maconha, tem aumentado
significativamente –, como pelas razões expostas acima: a saúde
pública não só não é protegida como é de certa forma afetada pela
criminalização. (BRASIL, 2015c)

Ao final, avança para o que não conseguimos classificar senão como um ato de
forte ativismo judicial de fundo pragmático, pois não são apresentados fundamentos
empírico-científicos ou lógico-jurídicos quaisquer: adianta-se ao legislador e se posiciona
não apenas pela inconstitucionalidade da proibição legislativa ordinária relativa ao uso da
Cannabis, como também define que o novo marco adequado para distinguir entre o porte
e o tráfico da substância seria seria a posse de até 25 gramas por usuário.
Encerrada a manifestação do Ministro Barroso, a sessão foi novamente
interrompida, a pedido daquele que seria o quarto julgador a se manifestar, Ministro Teori
Zavascki. Até a data de conclusão desta monografia (agosto de 2017), este julgamento
não foi retomado, faltando ainda oito votos a serem apurados. Zavascki faleceu em janeiro
deste ano 46 , sendo sucedido por um jurista (Alexandre de Moraes) que, durante seu
exercício do Ministério da Justiça no Brasil entre 2016 e 2017, revelara-se um forte
opositor a qualquer alteração na política pública relativa ao combate do tráfico e uso de
substâncias psicoativas ilícitas no Brasil47. Não existe um prazo legalmente previsto para
o reinício deste julgamento.

3.5 O EXCESSO DE RIGOR DO LEGISLADOR NO ASSUNTO: UMA


PREOCUPAÇÃO QUE NÃO ABANDONA A SUPREMA CORTE
BRASILEIRA
Entrementes, a Corte decidiu outro caso envolvendo a questão das substâncias
psicoativas ilícitas no Brasil. Em junho de 2016 , tratou da proporção da resposta penal
ao crime de tráfico de droga praticado por réu primário, sem violência, principal causa de
encarceramento feminino no Brasil.
Conforme exposto no capítulo , item 1.2.1, o Brasil adotou em 2006 uma lei de
drogas que excluiu a possibilidade de prisão do usuário de substâncias psicoativas ilícitas,

46
Ver noticia em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/01/19/morre-teori-
zavascki.htm, acesso em 17.08.2017.
47
Ver notícia em http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-quer-erradicar-comercio-e-uso-de-
maconha-no-brasil,10000095265, acesso em 17.08.2017

47
ao mesmo tempo em que endureceu fortemente as sanções e o respectivo regime de seu
cumprimento àqueles definidos como traficantes:
a) a pena mínima foi fixada em cinco anos de prisão, prazo que pode ser
reduzido pelo juiz quando comprovado que o traficante era primário e não exercia o
comércio de substâncias ilícitas inserido em organização criminosa;
b) em qualquer caso (primário ou não, atuando individualmente ou em
organização criminosa), a prisão cautelar processual do traficante tornou-se obrigatória
quando ocorre o flagrante policial, sendo impossível o pagamento de fiança, ou a
concessão judicial de qualquer tipo de liberdade provisória até a conclusão do processo,
independentemente da quantidade ou qualidade da substância psicoativa ilícita
comercializada;
c) também foi retirada a possibilidade de concessão de sursis, graça, indulto,
anistia durante o cumprimento da pena, sendo ainda vetada a conversão da pena de prisão
em cumprimento de qualquer medida alternativa (admitida no Brasil para penas de até 4
anos quando da prática de qualquer outro crime)48, apresentando-se como única medida
repressiva possível o regime de reclusão completamente fechado, ou seja sem qualquer
perspectiva de saída da prisão, pelo tempo mínimo equivalente a dois terços da
condenação atribuída em sentença.
No julgamento do Habeas Corpus 118.533 49 (BRASIL, 2016), o Supremo
Tribunal Federal concluiu que o legislador ordinário não poderia ter equiparado o tráfico
de substâncias psicoativas ilícitas praticado por réu primário e fora de organização
criminosa aos chamados “crimes hediondos”, conceito contido no artigo 5º, XLIII da
Constituição Brasileira de 1988 para nomear aqueles crimes que deveriam ser mais
severamente reprimidos no ordenamento nacional.
Chama nossa atenção o fato de que o dispositivo constitucional não indica quais
seriam os crimes passiveis de serem considerados hediondos, nem tampouco os
parâmetros para esta especial repressão penal, delegando expressamente ambas as
decisões para o legislador ordinário. Consequentemente, prima facie, não parecia haver
qualquer obstáculo formal à decisão do legislador brasileiro de 2006, no sentido de
reprimir com especial intensidade qualquer tipo de tráfico de substância psicoativa ilícita,

48
Conforme previsão dos artigos 33, §2º, “b” e 44, I do Código Penal Brasileiro, disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm, acesso em 09.08.2017.
49
Como visto no início deste capítulo, o Supremo Tribunal Federal acumula no Brasil as funções de
Tribunal Constitucional e última instância do Poder Judiciário.

48
independentemente da quantidade e qualidade comercializada, ou mesmo das condições
individuais do réu.
Ou seja, em termos hermenêuticos juspositivistas, o legislador ordinário
brasileiro não encontrava nenhuma restrição ao exercício de sua autoridade para fixação
da repressão penal ao comércio de substâncias psicoativas ilícitas nos exatos termos
descritos nos itens “a” a “c” da página anterior, eis que não nenhuma norma constitucional
válida o impedia a tanto. Não obstante, depois de 10 anos de vigência da atual lei brasileira
de combate ao tráfico de drogas, o Supremo Tribunal Federal invalidou este seu aspecto,
por decisão da maioria dos ministros daquela Corte.
Como visto acima, nas decisões colegiadas da Suprema Corte brasileira, cada
ministro pode expor individualmente seus argumentos, ao contrário de outros países,
onde, no máximo dois julgadores apresentam, respectivamente, a tese vencedora e a
vencida. Deste modo, no caso em exame, há oito arrazoamentos distintos em favor da
invalidação da norma ordinária e três contrários, não havendo propriamente um voto que
possa ser considerado o condutor de cada tese.
Relativamente à posição vitoriosa, a fundamentação das manifestações dos
julgadores deu-se de três formas diferentes: quatro deles 50 adotaram como teoria
hermenêutica central o que poderia ser classificado de “positivismo lógico-sintático”
(SIMIONI, 2014, p. 191), declarando a inconstitucionalidade da especial repressão ao
crime de tráfico de drogas praticado por réu primário e não participante de organização
criminosa, por não se encontrar esta situação alcançada pela moldura (KELSEN, 2003, p.
390) da expressão “crime hediondo” prevista na Constituição brasileira, tendo o
legislador ultrapassado os limites de autorização jurídica contida na expressão
interpretada, quando tomou a decisão de ali incluí-lo. Selecionamos o trecho abaixo como
seu extrato mais representativo
A própria etiologia do crime privilegiado é incompatível com a
natureza hedionda, pois não se pode ter por repulsivo, ignóbil,
pavoroso, sórdido e provocador de uma grande indignação moral
um delito derivado, brando e menor, cujo cuidado penal visa
beneficiar o réu e atender à política pública sobre drogas vigente
(BRASIL, 2016)51

Como se trata do método mais tradicional, e ainda o mais aplicado pelo Poder
Judiciário brasileiro, os ministros sequer indicam uma fonte doutrinária que sustente este

50
Ministras Carmen Lúcia e Rosa Weber, e Ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes
51
Trecho do voto da Ministra Carmen Lúcia

49
padrão de raciocínio. Não obstante, localizamos este paradigma em Hans Kelsen, em
especial em sua obra central, “Teoria Pura do Direito”. O Supremo Tribunal Federal,
reconhecendo-se, por autorização da própria Constituição, como intérprete autêntico e
último da norma constitucional, faz uso de sua prerrogativa deduzida da obra deste
filósofo central para a compreensão do positivismo jurídico, e escolhe (e
subsequentemente impõe), entre as interpretações possíveis da expressão “crime
hediondo” constante da Carta de 1988, aquela que será aplicada ano direito ordinário daí
em diante, excluindo do campo de sua incidência a situação fática sob exame.
Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos
tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas de modo
inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos
aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do direito por
um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma
operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com
um ato de vontade em que o órgão aplicado do direito efetua uma
escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma
interpretação cognoscitiva. Com esse ato é produzida uma norma
de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído
pela norma jurídica aplicanda. (KELSEN, 2003, p. 394)

Outros dois julgadores52 fundamentaram sua posição em argumentos de caráter


que podem ser classificados como pós-positivistas: definição da Constituição como uma
norma de princípios, apelo ao princípio da proporcionalidade como um “supraprincípio”
inerente a toda interpretação constitucional, ponderação entre princípios constitucionais.
O trecho abaixo ilustra o raciocínio
Nesse diapasão, observo que a aferição da compatibilidade da
norma frente ao Princípio da Proporcionalidade, que materializa
a vedação ao excesso, mormente nas hipóteses voltadas a atingir
o direito de locomoção, pode legitimar, excepcionalmente, o
implemento do controle jurisdicional. Isso porque, o princípio da
proporcionalidade não constitui, apenas, um critério de orientação
das políticas criminais, mas também de controle sobre o
legislador por parte de uma Corte Constitucional. (BRASIL,
2016)53

O raciocínio transcrito é praticamente uma paráfrase da obra de Robert Alexy


Princípios são mandamentos de otimização, em face das
possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade
em sentido estrito, ou seja, a exigência de sopesamento, decorre
da relativização em face das possibilidades jurídicas. Quando
uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide

52
Ministros Ricardo Lewandosky e Edison Fachin
53
Trecho do voto do Ministro Edson Fachin

50
com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para
realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se
chegar a uma decisão é necessário um sopesamento, nos termos
da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos –
caso sejam aplicáveis – é obrigatória, e visto que para essa
aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o
caráter princípiológico das normas de direito fundamental implica
a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com
princípios antagônicos (ALEXY, 2008, p. 117)

Por fim, dois ministros 54 manifestaram de modo extremamente sumário sua


concordância com a invalidação da norma ordinária, sem expressarem com maior detalhe
a fundamentação de sua decisão.
Quanto aos Ministros que se manifestaram pela constitucionalidade das
restrições excepcionalmente severas ao tráfico de drogas, dois deles 55 adotaram uma
postura positivista bastante tradicional, prestigiando a escolha legislativa ordinária ante a
inexistência de norma constitucional que impedisse esta opção (BOBBIO, 1999, p. 199).
Dessas decisões, transcrevemos o seguinte extrato ilustrativo
Aqui, não. Aqui houve uma opção objetiva legislativa no sentido
de que tráfico é tráfico e deve ser tratado igualmente, salvante a
peculiaridade de se conferir uma causa de redução da pena para o
traficante esporádico, primário, de bons antecedentes, coisas que
ainda não conseguimos enxergar ainda nesses anos de justiça
penal na Primeira Turma.56

E também este outro


Houve opção normativa, pelos legisladores, pelo Congresso
Nacional, partindo da premissa de que o tráfico é crime causador
de muitos delitos. Chegou-se a rigor maior quanto ao tráfico de
entorpecentes.57

Quanto ao último Ministro, Dias Toffolli, de modo bastante inusitado em relação


aos parâmetros hermenêuticos mais comuns da Corte (que normalmente divide-se entre
positivismo e pós-positivismo de matriz alexyana) admite que seu raciocínio para negar
o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma é de caráter empírico-
consequencialista (POSNER, 2007, p. 477), voltado ao desestímulo da prática desse
crime
Então, minha preocupação é - ao se afastar a hediondez para o
tráfico privilegiado, com a causa de redução da pena do § 4º do

54
Ministros Teori Zavascki e Rosa Weber
55
Ministros Luiz Fux e Marco Aurélio
56
Trecho do voto do Ministro Luiz Fux
57
Trecho do voto do Ministro Marco Aurélio

51
art. 33 - estimular as organizações criminosas a agregar cada dia
mais pessoas à organização criminosa. Por essa razão
consequencialista e, também, por se tratar de tráfico, não dá para
distinguir: se o tráfico como um todo é equiparado a crime
hediondo, como afirmar que essa, que é uma causa de redução da
pena, é diferente e não seria, também, um crime hediondo?

3.6 O PRIMEIRO PRECEDENTE MUNDIAL DE ELIMINAÇÃO DAS


RESTRIÇÕES LEGAIS AO CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
POR DECISÃO JUDICIAL – O CASO DA ÁFRICA DO SUL
Durante a elaboração deste trabalho, a inconclusa discussão judicial brasileira
sobre as possibilidades de se reconhecer que o consumo de substâncias psicoativas hoje
ilícitas pode ser uma expressão do direito fundamental à privacidade/intimidade perdeu
seu caráter de ineditismo mundial.
Em março deste ano de 2017, a High Court of South Africa (Western Cape
Division, Cape Town) 58 reuniu três processos distintos, no qual cinco jurisdicionados
requeriam que fosse declarada a invalidade, face à Constituição, das restrições legais
impostas ao consumo por eles de Cannabis, substância psicoativa considerada ilícita
também naquele país.
Assim como o Brasil, a África do Sul tem uma Constituição jovem (promulgada
em 1996, apenas oito anos mais velha que a brasileira), um Poder Judiciário bastante
ativista 59 (ROUX, 2016, p.6), assim como um problema de explosão da população
carcerária em função das prisões por porte de pequenas quantidades de Cannabis,
elementos que serão mais detalhados abaixo.
Os juízes começam o julgamento (ÁFRICA DO SUL, 2017, p.15) recordando-
se que a questão mais próxima a esta já examinada por uma Corte sul-africana deu-se em
2002, quando a Corte Constitucional60 daquele país examinou (e negou, por 5 votos a 4)
a possibilidade de liberação do consumo de Cannabis aos adeptos da religião Rastafari.
No entanto, o precedente seria inaplicável ao caso, pois lá se decidira sobre a
constitucionalidade da proibição em si, mas simplesmente sobre a inviabilidade de o

58
A Western Cape Hight Court, situada na Cidade do Cabo, é uma das 14 Cortes Regionais da África do
Sul, conforme pode ser conferido no link http://www.judiciary.org.za/high-courts.html, acesso em
18.08.2017. Trata-se de um Juízo Recursal Colegiado Ordinário, equivalente ao segundo grau de jurisdição
no Brasil.
59
Sendo especialmente notável a coincidência de que, em ambos os países, foi o Poder Judiciário e não o
Poder Legislativo que autorizou as uniões conjugais entre pessoas do mesmo sexo. Também neste caso, a
decisão do Poder Judiciário sulafricano antecedeu a brasileira.
60
Última instância do Poder Judiciário Sul-africano para casos envolvendo questões constitucionais.

52
governo identificar os possíveis adeptos da religião beneficiários da exceção que se
demandava judicialmente.
Descartado o precedente de 2002, o que passa a ser tratado (ÁFRICA DO SUL,
2017, p. 17) é o confronto entre a proibição legal ordinária ao consumo de Cannabis e o
direito à privacidade dos cidadãos, garantido pela Seção 14 da Constituição Sul-
Africana61.
Segue-se uma explanação de que o direito constitucional à privacidade é uma
especificação dos direitos igualmente fundamentais à dignidade e à liberdade (ÁFRICA
DO SUL, 2017, p. 18-19), premissas que os julgadores utilizam-se para estabelecer a tese
da possível desproporcionalidade da restrição legal ao consumo privado da Cannabis
(ÁFRICA DO SUL, 2017, p. 20-23). Daí, indicam a necessidade de que o Poder
Executivo do país, que se opõe à liberação, apresente evidência clara e plausível,
adaptada ao contexto histórico atual62, para justificar a restrição que pretende manter
ao direito à privacidade (ÁFRICA DO SUL, 2017, p.24).
A antítese apresentada pelo Poder Executivo Sul-Africano funda-se em
argumentos relativos ao prejuízo à saúde individual de seus consumidores, com especial
destaque para o raciocínio de que a Cannabis seria a porta de entrada de outras substâncias
psicoativas ilícitas mais periogosas. Trata ainda o Poder Executivo dos riscos que enxerga
à segurança pública que potencialmente decorreriam da liberação pretendida (ÁFRICA
DO SUL, 2017, p. 24-28).
Preparando a síntese final, inicialmente os julgadores tratam da questão do ponto
de vista empírico: expõem as considerações médicas independentes recebidas pela Corte
em análise daquelas apresentadas pelo Poder Executivo e tratam do problema carcerário
gerado pela proibição da Cannabis, que teria gerado mais de 250.000 prisões no país entre
2014 e 2015 (ÁFRICA DO SUL, 2017, p.29-37).
Sucedem-se, então, argumentos jurídicos, com o exame de precedentes judiciais
estrangeiros sobre o tema (Canadá/Argentina/México/Estado do Alasca nos Estados
Unidos), e também do parecer do órgão estatal sul-africano (National Prosecuting
Authority)63 assegurando que o uso de medidas alternativas à prisão tem maior potencial

61
Texto disponível em http://www.gov.za/documents/constitution/chapter-2-bill-rights#14
62
No original: The State must provide clear and plausible evidence tailored to the contemporary context to
justify of an important right. Tradução livre nossa.
63
Órgão responsável pela persecução penal na África do Sul, com funções e garantias bastante similares
ao Ministério Público Brasileiro. Sua composição e detalhes de sua atuação está disponíveis em
https://www.npa.gov.za/node/8, acesso em 18.08.2017

53
de efetividade na diminuição dos riscos do consumo do que a simples criminalização da
conduta (ÁFRICA DO SUL, 2017, p. 38-55).
Não obstante a fundamentação da decisão não faça referência explícita a
qualquer balizamento hermenêutico específico, observamos que, assim como os juízes
brasileiros que iniciaram o julgamento de caso análogo aqui, seus homólogos sulafricanos
foram fortemente inspirados pelos métodos pós-positivistas de Robert Alexy, em pelo
menos dois aspectos centrais de sua argumentação: a) a preocupação com a
(des)proporcionalidade das restrições legais a direitos fundamentais (ALEXY, 2008, p.
117); b) no reconhecimento de que o assunto atingia também outro direito fundamental
(o direito à saúde), e que com ele deveria ser ponderado, pelo sopesamento dos interesses
conflitantes (ALEXY, 2008, p. 95).
Ao final, com estes fundamentos e métodos, concluem por unanimidade os
julgadores que é inconstitucional a proibição legal ordinária a que adultos possuam ou
cultivem Cannabis em âmbito privado, por se tratar de injustificável restrição ao direito
constitucional à intimidade.
A decisão precisa ser ainda confirmada pela Corte Constitucional Sulafricana,
mas as persecuções penais relativas ao fato discutido, em todo território do país, estão
cautelarmente suspensas por dois anos, a contar de 31 de março de 2017 (ÁFRICA DO
SUL, 2017, p. 66).

54
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciarmos nosso trabalho, estabelecemos como premissa que o


extraordinário sucesso dos direitos fundamentais como base jurídico-ideológica das
sociedades ocidentais modernas está diretamente relacionado na sua capacidade de
traduzir na linguagem do Direito, e, subsequentemente proteger, os traços daquilo que
constitui o humano em sua diversidade, ainda que eles sejam destoantes dos padrões da
maioria da sociedade.
A partir daí, valendo-nos das estatísticas e estudos científicos disponíveis,
buscamos compreender, do ponto de vista histórico, geográfico e social, a extensão da
propensão dos seres humanos ao consumo de substâncias psicoativas, sem distinguir, em
princípio, aquelas cujo consumo é considerado lícito, daquelas usualmente interditadas
pela legislação dos diversos países.
A análise destes estudos nos fez concluir que o consumo de substâncias
psicoativas é um hábito historicamente arraigado, espalhado geograficamente por todo o
mundo, sem distinção evidente de origem social. Em outras palavras, um comportamento
inequivocamente humano. Mais ainda, que os homens intimidam-se muito pouco com a
regulamentação ordinária que separa as substâncias psicoativas em lícitas ou ilícitas:
conforme apuramos, a própria ONU estima que mais de 200 milhões de pessoas, no ano
imediatamente anterior à pesquisa, consumiram substâncias psicoativas legalmente
proibidas em seus respectivos países, o que torna este proceder, com toda certeza, o ato
ilícito mais praticado em todo o mundo. Outras pesquisas abrangendo especificamente a
Comunidade Europeia, os Estados Unidos e o Brasil confirmam (ou até ampliam) este
número.
Isto indica que a resposta jurídica na esfera do Direito Penal, na melhor das
hipóteses, tem se mostrado ineficaz em dissuadir as pessoas deste hábito. Especificamente
no Brasil, o endurecimento da repressão jurídico policial observado desde 2006 já pode
ser diretamente responsabilizado por problemas mais graves, como a explosão da
população carcerária, especialmente a feminina.
Ainda sob a perspectiva factual, nosso próximo passo foi tentar compreender se
esta repressão a um hábito tão difundido é justificada.
De modo algum podemos avançar até dizer que é completamente injustificada.
O consumo excessivo de substâncias psicoativas ilícitas está na origem de diversos
prejuízos aos indivíduos e à sociedade em que ele está inserido, notadamente à saúde e à

55
capacidade de trabalho. Quanto ao frequentemente alegado risco à segurança pública e
individual, concluímos ser precipitado, no mínimo, estabelecer uma relação de causa e
consequência entre seu consumo e a prática de violência sem considerar também a relação
entre a repressão a seu consumo e a prática de atos de violência, principalmente por parte
de agentes estatais.
No entanto, no ensejo da avaliação destes riscos, chamou-nos a atenção o corte
legal bastante arbitrário entre substâncias psicoativas lícitas e ilícitas nos diversos
ordenamentos jurídicos, principalmente no cotejo entre os potenciais prejuízos causados
pelo álcool (substância psicoativa lícita amplamente difundida)e a Cannabis (substância
psicoativa ilícita mais difundida em todo o mundo). A linha que diferencia o lícito do
ilícito, estabelecida na década de 20 do século passado, pareceu-nos ter fundamentos
muito mais históricos e sociais do que propriamente farmacológicos e médicos,
especialmente em relação ao consumo de Cannabis.
Retornando à análise jurídica, concluímos que a propensão ao consumo de
substâncias psicoativas (lícitas ou ilícitas) não pode ser reconhecida como traço inato e
irrenunciável do sujeito humano, como seu gênero, raça ou orientação sexual. Mas pode,
em grande medida, ser assimilado à pulsão íntima do humano à crença de corte
metafísico, ou seu ímpeto à associação a outras pessoas, para defesa de projetos coletivos.
Como nestes dois últimos casos, há muitas pessoas que conseguem viver
perfeitamente bem sem religião, ou sem participação política/associativa. Ou que se
adaptam completamente às situações históricas em que estes direitos são parcialmente
limitados, tendo uma vida feliz e profícua.
Mas há outras pessoas que não. Estas pessoas se sentirão profundamente
frustradas ao serem impedidas de exercer sua pulsão íntima, sua escolha particular,
quando esta lhes é completamente vedada ou restrita a opções que elas considerem
inadequadas ou insuficientes. O reconhecimento deste problema está dado sob a forma de
uma liberdade cada vez mais ampla de manifestação religiosa e associação política nas
Constituições dos países europeus e americanos.
A diferença evidente é que a prática religiosa e a prática política dão-se, em
regra, coletivamente, ou de modo mais preciso, para a criação e fortalecimento de uma
identidade coletiva. Enquanto o ato de consumir substâncias psicoativas dá-se de modo
individual, para satisfação pessoal, ainda que praticado em momento de socialização.
Resta-nos indagar se esta peculiaridade, somada aos já reconhecidos riscos à
saúde, importam em justificativa suficiente para manter este hábito fora da esfera

56
protetiva dos direitos fundamentais, relegando-o ao espaço repressivo do Direito Penal,
no qual ele já se encontra há quase um século.
Ainda de modo tímido, alguns países têm decidido no sentido do que se poderia
classificar como um caminho intermediário, alterando a legislação de regência do
assunto, e reconhecendo que não dispõe de razões objetivamente verificáveis para manter
a proibição, a saber, um risco à comunidade empiricamente mensurável consequente à
prática. Isso se dá em especial no que se refere ao consumo da Cannabis.
Desta forma, a questão de consumir ou não a substância psicoativa é transferida
para a esfera da liberdade íntima do cidadão, sem intervenção repressiva do Estado, mas
também sem nenhuma forma de apoio ou prestação específica em socorro do indivíduo
que tomou esta decisão, como poderiam ser a regulamentação do mercado fornecedor, ou
a avaliação da qualidade da substância consumida.
Isso não significa desconhecer os riscos inerentes a este hábito, mas reservar a
intervenção estatal penal para situações de risco efetivo e não meramente presumido ou
imaginado. Permitimo-nos retomar a alusão à liberdade de crença e de associação política:
não se reprime qualquer crença religiosa em abstrato, mas sim atos que possam atentar
contra a integridade física dos crentes e das demais pessoas da comunidade; não se
reprime uma associação política em abstrato, mas sim eventuais práticas delas que
busquem suprimir os direitos dos demais cidadãos. Assim também é levantada a repressão
ao uso de substâncias psicoativas, pelo menos enquanto seu consumo não cause (nem
potencialmente) risco à integridade física ou moral de qualquer outra pessoa que não seja
o próprio consumidor.
No Brasil, no entanto, este caminho parece completamente interditado, havendo,
no sentido exatamente oposto, uma tendência do Poder Legislativo de,
independentemente de avaliação dos resultados empíricos desta decisão, ampliar a
repressão em vez de diminuí-la, tendência exacerbada pela ativa atuação da polícia e do
Poder Judiciário ordinário neste sentido.
Como visto acima, sendo a propensão humana ao consumo de substâncias
psicoativas um problema aparentemente impermeável a este tipo de tratamento, o
resultado tem sido completamente desastroso, resultando na recente elevação do já alto
patamar de violência social e encarceramento.
Isso leva que os grupos interessados em alguma possível alteração deste
tratamento jurídico no Brasil voltassem seus olhos para o Poder Judiciário, especialmente
sua instância constitucional final, representada pelo Supremo Tribunal Federal.

57
Em um primeiro momento, este parecia um caminho bastante promissor. Neste
século XXI, especialmente no decênio compreendido entre 2007 a 2016, o Supremo
Tribunal Federal brasileiro demonstrou grande apetite político, assumindo uma postura
ativista na afirmação não somente dos direitos fundamentais expressos na Constituição
de 1988, assim como na expansão deste rol, sendo o ápice deste movimento o
reconhecimento das relações conjugais entre pessoas do mesmo sexo.
Neste ensejo, pelo menos duas decisões daquela Corte Suprema colaboraram
para atenuar a repressão às substâncias psicoativas atualmente ilícitas no Brasil: em uma
delas apontou claramente que discutir publicamente a sua legalização não era uma ação
criminosa, como pretendia a polícia, mas sim um debate constitucionalmente legítimo;
em outra, foram atenuadas severíssimas restrições aplicadas durante o processo penal e
no cumprimento da pena àqueles definidos como traficantes, conceito que padece de
dolorosa indeterminação em nosso país desde o ano de 2006, podendo abranger quantias
muito reduzidas de porte de drogas desde quando entrou em vigor a atual lei que trata da
política pública sobre este assunto.
Em nossa análise, verificamos que estas decisões, embora ousadas do ponto de
vista político, em termos hermenêuticos deram-se de forma bem tradicional, com a
utilização da metodologia mais estrita do positivismo jurídico, em seu propósito de
preservação da literalidade do texto Constitucional contra atos e normas inferiores que a
ele se opunham.
No momento em que encerramos nosso trabalho, a Suprema Corte brasileira tem
pendente, já há dois anos, um julgamento em que poderia dar o passo final, e associar
definitivamente o consumo de qualquer substância psicoativa (ou, pelo menos, da
Cannabis, substância que motivou o recurso discutido) aos direitos fundamentais à
liberdade e à intimidade\privacidade. No entanto, após três dos onze julgadores daquela
Corte manifestarem sua posição favorável, o julgamento encontra-se suspenso desde
setembro de 2015.
Acreditamos que isso possa estar se dando por dois motivos. Primeiramente, do
ponto de vista metodológico-hermenenêutico, os julgadores que já se manifestaram
abandonaram completamente o positivismo e fundaram sua argumentação no pós-
positivismo de corte alexyano, ponderando a restrição percebida à liberdade e intimidade
com os riscos que o consumo das substâncias traria à saúde e segurança pública, que
também são direitos fundamentais no Brasil. A aparente ausência de uma solução em um

58
paradigma tradicionalmente utilizado pelos julgadores no Brasil, o positivismo jurídico,
pode ser um dos fatores dessa paralisia.
De outra parte, após um decênio de grande ativismo no campo dos direitos
fundamentais, nossa Suprema Corte se vê prostrada, neste momento histórico, pelo
próprio excesso de atribuições que a Constituição lhe conferiu: composta por apenas 11
julgadores, além de ser Corte Constitucional e também última instância recursal ordinária,
é ainda o único juízo penal previsto constitucional para exame de acusações de qualquer
tipo contra deputados e senadores no Brasil, processos urgentes, imensamente trabalhosos
e de complexa instrução, e que já superam a casa da centena em nosso país.
Neste entretempo, no início deste ano de 2017, coube à África do Sul o
pioneirismo de ter a primeira decisão judicial de um tribunal com jurisdição nacional a
afirmar categoricamente a relação entre o consumo da Cannabis no recesso da casa dos
cidadãos e o direito à intimidade, decisão estruturada sob a forma de ponderação pós-
positivista de direitos fundamentais, na qual se concluiu pela desproporcionalidade da
vedação estatal.
Voltando ao caso brasileiro, por tudo que expusemos em nosso trabalho,
acreditamos haver fundamento hermenêutico-constitucional suficiente para que seja
tomada uma decisão judicial similar, especialmente considerando-se a obstinada recusa
do Poder Legislativo em examinar a questão, e os agravos que uma multitude de cidadãos
vem sofrendo em razão desta sua propensão rigorosamente humana ao consumo de
substâncias psicoativas hoje reputadas ilícitas.
Não obstante, a dificuldade da Corte em transitar de uma metodologia
hermenêutica mais tradicional para outra pós-positivista, somadas às dificuldades
estruturais de sua agenda, assim como aos melindres inerentes ao próprio assunto
resultantes de quase um século de forte ideologia proibicionista, levam-nos a crer que
lamentavelmente nada deverá ser alterado, pelo menos no curto prazo.
Muito provavelmente restará aos brasileiros aguardarem que a recente
liberalização do tema em vários países, em especial nos Estados Unidos da América, e
pelo menos em relação à Cannabis, que é a substância ilícita mais consumida no mundo
todo, firme-se como uma tendência mundial que altere o consenso jurídico em torno do
assunto, e ajude a reverter aqui essa proibição que tanto prejuízo social tem causado.

59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁFRICA DO SUL. High Court of South Africa (Western Cape Division). Case
8760/2013. Gareth Prince vs Minister of Justice and Constitutional Development,
Minister of Police, Minister of Health, Minister of Trade and Industry, Diretoctorate of
Public Prosecutions. Relatores: Juízes Davis, Saldanha e Boqwana. Cidade do Cabo
(África do Sul), 31 de março 2017. Disponível em:
<http://www.saflii.org/za/cases/ZAWCHC/2017/30.html>. Acesso em: 22 ago. 2017.

ALEMANHA. Corte Constitucional Federal. BVerfGE 90, 145, Urt. V. 09.03.1994, Az:
2 BVL 43/92. Assinada pelos Juízes Marenholz, Boeckenfoerde, Klein, Grasshof, Kruis,
Kirchhof, Winter and Sommer. Disponível em:
<https://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=85>. Acesso em: 21 ago. 2017.

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2005.

_________. Teoria Discursiva do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária,


2014.

_________. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de


Transtornos Mentais. 5ª ed. Porto Alegre, Brasil: Artmed, 2014.

AVANCI, Tiago Felipe S. Uma nova tônica nos direitos fundamentais: acesso
internacionalizado de um direito fundamental. Opinión Jurídica, Medellín, Colômbia,
vol. 12, n 24 , p. 69-86, 2013.

BARCELLOS, Ana Paula de. Anotação Preliminar sobre o conteúdo e as funções dos
princípios. In CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo
Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São
Paulo; Coimbra: Editora Saraiva; Editora Almedina, 2013. p. 97-102.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os


conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

BECCARIA, Franca, ROLANDO, Sara. The italian politics of alcohol: the creation of a
public arena at the end of the 20th century. International Journal of Drug Policy,
Londres, Reino Unido, vol. 26, n. 7, p. 662-669, 2015.

BERGERON, Henri. Sociologia da droga. Aparecida (Brasil): Editora Ideias e Letras,


2012

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1992.

_________. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone


Editora Ltda, 1999.

BOITEUX, Luciana. El antimodelo brasileño: prohibicionismo, encarcelamiento y


selectividad penal frente al tráfico de drogas. Nueva Sociedad, Buenos Aires, v. 255, p.
132-144, 2015.

60
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1996.

BRANDÃO, Rodrigo. Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: uma


proposta de justificação da aplicação do artigo 60, 4º, IV da Constituição de 1988. Revista
Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Bahia, p. 1-44, 2007. Disponível em
http://www.direitodoestado.com.br/artigo/rodrigo-brandao/direitos-fundamentais-
clausulas-petreas-e-democracia-uma-proposta-de-justificacao-e-de-aplicacao-do-art-60-
-4o-iv-da-cf88, acesso em 04 set 2017.

BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos judiciais: a quem cabe a


última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro


de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>.
Acesso em: 07 mai. 2017.

_________. Emenda Constitucional 03: promulgada em 17 de março de 1993. Diário


Oficial da União. Brasília, 17 mar. 1993. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc03.htm>. Acesso
em 30 de mai de 2017.

_________. Ministério Público Federal. Parecer no Recurso Extraordinário n. 636.559.


Autor do Parecer: Subprocurador Geral da República Wagner Gonçalves. Brasília, 31 mai
2011 (b). v. 1, p. 199-202. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarPro
cessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4034145>. Acesso em 22 ago 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 534.


Partido Socialista Brasileiro vs Presidente da República e Congresso Nacional. Relator:
Ministro Celso de Mello. Acórdão de 27 de jun de 1991. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1521582#>.
Acesso em: 30 de mai de 2017.

_________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939.


Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio vs Presidente da República e
Congresso Nacional. Relator: Ministro Sidnei Sanches. Acórdão de 15 de dez. de 1993.
Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1571506>.
Acesso em: 30 de mai de 2017.

_________. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental n. 187. Requerente: Procurador Geral da República. Requerido: Presidente
da República. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 15 de junho de 2011 (a).
Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5956195>.
Acesso em: 22 ago 2017.

_________. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 118.533. Requerente:


Procurador Geral da República. Requerido: Defensoria Pública Federal em favor de

61
Ricardo Evangelista Vieira de Souza e Robinson Roberto Ortega. Requerido: Superior
Tribunal de Justiça. Relatora: Ministra Carmen Lúcia. Brasília, 23 jun 2016. Disponível
em: <http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4432320>.
Acesso em: 22 ago 2017.

_________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 636.559. Voto do


Ministro Edson Fachin. Brasília, [s. d.], 2015 (b). Disponível em:
<http://s.conjur.com.br/dl/leia-voto-ministro-fachin.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2017

_________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 636.559. Voto do


Ministro Gilmar Mendes. Brasília, [s. d.], 2015 (a). Disponível em:
<http://s.conjur.com.br/dl/re-posse-drogas-pra-consumo-voto-gilmar.pdf>. Acesso em:
22 ago. 2017.

_________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 636.559. Voto do


Ministro Luís Roberto Barroso Brasília, [s. d.], 2015 (c). Disponível em:
<https://jota.info/docs/leia-o-voto-do-ministro-barroso-no-julgamento-das-drogas-
10092015>. Acesso em: 22 ago. 2017.

BUSTAMANTE, Thomas. On the difficult to ground the authority of Constitutional


Courts: Can Strong Judicial Review be Morally justified? in BUSTAMANTE, Thomas;
FERNANDES, Bernardo Gonçalves (eds). Democratizing constitutional law:
perspectives on legal theory and the legitimacy of Constitucionalism. Switzerland:
Springer, 2016.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. Rio


de Janeiro, Editora Forense, 2014.

CANDIA FALCON, Gonzalo. Derechos implícitos y Corte Interamericana de Derechos


Humanos: uma reflexión a luz de la noción de Estado de Derecho. Revista Chilena de
Derecho, Santiago, Chile, v. 42, n. 3, p. 873-902, 2015.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed.


Coimbra: Editora Almedina, 2003.

CARNEIRO, Henrique. Transformações do significado da palavra “droga”: das


especiarias colônias ao proibicionismo contemporâneo. In: VENÂNCIO, Renato Pinto,
CARNEIRO, Henrique (Org.). Álcool e drogas na História do Brasil. Belo Horizonte:
Editora Puc Minas, 2005. p. 11-28.

CARVALHO, Feliciano de. O Bloco de Constitucionalidade no Brasil. Orientadora:


Natércia Sampaio Siqueira. 2016. 266 f. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) –
Centro de Ciências Jurídicas, Universidade de Fortaleza. Fortaleza, Brasil 2016.
Disponível em
<http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFOR_8f5e2e18c61d5d2483c959d2b183ed41/Detai
ls>. Acesso em: 17 mai. 2017.

CARVALHO, Jonatas Carlos de. A emergência da política mundial de drogas: o Brasil e


as primeiras conferências internacionais do ópio. Revista Oficina do Historiador,
EDIPUCRS Porto Alegre, Brasil, vol. 7, n.1, p. 153-176. 2014

62
CAULKINS, J. P. Recognizing and regulating Cannabis as a temptation good.
International Journal of Drug Policy, London, v. 42, p. 50-56, 2017.

CENTER FOR BEHAVIORAL HEALTH STATISCS AND QUALITY. Key Substance


use and mental health indicators in the United States: results from the 2015. National
Survey on drug use and health. US Department of Health and Human Services.
Washington, 2016. Disponível em
https://www.samhsa.gov/data/sites/default/files/NSDUH-FFR1-2015/NSDUH-FFR1-
2015/NSDUH-FFR1-2015.pdf, acesso em 04 set 2017

ČEVERŃY, Jakub, CHOMINOVÀ, Pavla, MRAVČIK,Viktor, VAN OURS, Jan C.


Cannabis descriminalization ad the age of onset of cannabis use. International Journal
of Drug Policy, London, v. 43, p. 122-129, 2017.

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos de filosofia


constitucional contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

CONSANI, Cristina Foroni. A crítica de Jeremy Waldron ao constitucionalismo


contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, p. 143-173, 2014

DE JESUS, Maria Gorete Marques, OI, Amanda Hildebrand, ROCHA, Thiago Thadeu,
LAGATTA, Pedro. Prisão provisória e Lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de
tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: Núcleo de Estudos de Violência da
Universidade de São Paulo, 2011.

DIAZ REVORIO, Francisco Javier. Interpretación de la Constitución y Justicia


Constitucional. México: Editorial Porrúa, 2009.

DIAZ REVORIO, Francisco Javier. Los Derechos Humanos ante los nuevos avances
científicos y tecnológicos: genética e internet ante la Constitución. Valência: Tirant lo
Blanch, 2009.

DOUZINAS, Costas. O fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo, Brasil: Editora
Unisinos, 2009.

DURANGO ALVAREZ, Gerardo A. Cláusulas de intangibilidad de proteción de los


derechos fundamentales como garantia frente a las mayorias-minorias democráticas.
Análisis Político, Bogotá, n. 84, p. 102-114, 2015.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_________. O Império do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

_________. Uma questão de princípio. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.

ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de


constitucionalidade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

ESTADO DE SÃO PAULO. Recurso Extraordinário da Defensoria Pública do Estado de


São Paulo em favor de Francisco Benedito de Souza. Autor do recurso: Defensor Público
do Estado de São Paulo Leandro de Castro Gomes, Diadema (Estado de São Paulo,

63
Brasil), 09 ago 2010. Vol. 1, p. 168-188. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarPro
cessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4034145> Acesso em: 22 ago. 2017.

EUROPEAN MONITORING CENTRE FOR DRUGS AND DRUG ADDICTION –


Italy, Country Drug Report 2017. Publications Office of the European Union,
Luxemburgo, 2017a. Disponível em http://www.emcdda.europa.eu/publications/country-
drug-reports/2017/italy_en, acesso em 04 set 2017.

EUROPEAN MONITORING CENTRE FOR DRUGS AND DRUG ADDICTION –


Spain, Country Drug Report 2017. Publications Office of the European Union,
Luxemburgo, 2017b. Disponível em
http://www.emcdda.europa.eu/publications/country-drug-reports/2017/spain_en

FAUTH, Gabriela, CALZADILLA, Paola Milenka Villavicencio. Una reflexión sobre lós
nuevos derechos: perspectivas y desafios en el siglo XXI. Derecho PUCP, Lima (Perú),
n. 70, p. 279-289, 2013.

FÉLIX, Sónia, PORTUGAL, Pedro. Drug descriminalization and the price of ilicit drugs.
International Journal of Drug Policy, London, v. 39, p. 121-129, 2017.

FERRAJOLI, Luigi. A Democracia através dos direitos: o constitucionalismo


garantista como modelo teórico e como projeto político. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2015.

FERRAJOLI, Luigi. Las garantías de los derechos fundamentales. Doxa – Cadernos de


Filosofía del Derecho, Alicante, España, n. 29, p. 15-31. 2006.

FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

FIORE, Maurício. A medicalização da questão do usos de drogas no Brasil: reflexões


acerca de debates institucionais e jurídicos In VENÂNCIO, Renato Pinto, CARNEIRO,
Henrique (Org.). Álcool e drogas na História do Brasil. Belo Horizonte: Editora Puc
Minas, 2005. p. 257-290.

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. História da maconha no Brasil. São Paulo: Editora
Três Estrelas, 2014.

GARZÓN, Juan Carlos, POL, Luciana. The elephant is in the room: drugs and human
rights in Latin America. Sur International Journal on Human Rights, São Paulo,
Editora Conectas, v. 21, p. 1-7, 2015.

GUASTINI, Riccardo. La “Constitucionalización” del ordenamento jurídico: el caso


italiano. In CARBONELL, Miguel (Org.) Neoconstitucionalismo (s). 5ª ed. Madrid:
Editorial Trotta, 2009. p. 49-73.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2ª ed. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 2 v.

64
HALL, Wayne. Alcohol and Cannabis: comparing their adverse health effects and
regulatory regimes. International Journal of Drug Policy, London, v. 42, p. 57-62,
2017.

HART, Carl. Um preço muito alto. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

HAYEK, F. A. The constitution of liberty: the definitive edition. Edited by Ronald


Hamowy. Chicago: Chicago University Press, 2011.

HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new
constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

INPAD – INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA


POLÍTICAS PÚBLICA DO ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS. II Levantamento
Nacional de Álcool e Drogas: o uso de Maconha no Brasil. Universidade Federal de São
Paulo, São Paulo, 2012a. Disponível em http://inpad.org.br/wp-
content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relat%C3%B3rio.pdf, acesso em 04 set 2017

INPAD – INSTITUTO NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA


POLÍTICAS PÚBLICA DO ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS. II Levantamento
Nacional de Álcool e Drogas: o uso de Cocaína e Crack no Brasil. Universidade Federal
de São Paulo, São Paulo, 2012b. Disponível em http://inpad.org.br/wp-
content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relat%C3%B3rio.pdf, acesso em 04 set 2017.

IOTTI, Paulo. STF: um tribunal amigo apenas de liberdades individuais de autonomia


privada?. Justificando, São Paulo, 28 out. 2016. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/28/stf-um-tribunal-amigo-apenas-de-
liberdades-individuais-de-autonomia-privada/>. Acesso em: 22 ago. 2017.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

KOOPMANS, Tim. Courts and political institutions. A comparative view. Cambridge:


Cambridge University Press, 2003.

LARANJEIRA, Ronaldo. Legalização de drogas e saúde pública. Ciência e Saúde


Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 621-632, 2010.

LEAL, João José, LEAL, Rodrigo José. Controle penal das drogas: Estudos dos crimes
descritos na Lei 11.343/06. Curitiba: Editora Juruá, 2010.

LOPES, Ana Maria D’Avila, CHEAB, Isabelle Maria Campos Vasconcelos. Bloco de
constitucionalidade e controle de convencionalidade: reforçando a proteção aos Direitos
Humanos no Brasil. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo (Brasil), n.12, p. 82-94,
2016.

MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, SILVA, Felipe Figueiredo Gonçalves da,


OTERO, Lorena. O debate público sobre a descriminalização do uso de drogas no Brasil:
esfera pública em jogo, democracia em disputa e a atuação do sistema de justiça. Revista
de Estudos Jurídicos UNESP, Franca (Brasil), v. 19, n.30, p.1-30. 2017

65
MACRAE, Edward. A excessiva simplificação da questão das drogas nas abordagens
legislativas. In: RIBEIRO, M., SEIBEL, S. (Org.). Drogas: Hegemonia do cinismo. São
Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1997. p. 327-333.

MALHEIROS, Luana. Tornando-se um usuário de crack. In NERY FILHO, Antonio,


MACRAE, Edward, TAVARES, Luiz Alberto, RÊGO, Marlize, NUÑES, Maria Eugênia
(Org.). As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador:
Editora da Universidade Federal da Bahia, 2012. p. 79-100.

MAUS, Ingeborg. O direito como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010.

MENA, Fernanda, HOBBS, Dick. Narcophobia: drugs prohibition and the generation of
human rights abuse. Trends in Organized Crime, New York, v. 13, p. 60-74. 2010

MIRANDA, Maria Luíza Mota. A clínica da toxicomania no paradigma da ilegalidade.


In NERY FILHO, Antonio, MACRAE, Edward, TAVARES, Luiz Alberto, RÊGO,
Marlize, NUÑES, Maria Eugênia (Org.). As drogas na contemporaneidade:
perspectivas clínicas e culturais. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia,
2012. p. 233-246.

NERY FILHO, Antônio. Por que os humanos usam drogas? In: NERY FILHO, Antonio,
MACRAE, Edward, TAVARES, Luiz Alberto, RÊGO, Marlize, NUÑES, Maria Eugênia
(Org.). As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador:
Editora da Universidade Federal da Bahia, 2012. p. 11-22.

NERY JR., Nelson; ABBOUD, Georges. Direito Constitucional brasileiro: Curso


Completo. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2017.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Martins Fontes,


2013.

NOBRE, Marcelo. Os 20 anos da Constituição Federal e as tarefas de pesquisa em direito.


Novos Estudos, n. 82 São Paulo, 2008. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002008000300005,
acesso em 04 set 2017.

ORGANIZATION OF AMERICAN STATES. Women and drugs in the Americas: a


policy working paper. Washington DC, OAS Official Records Series, 2014.

PEREIRA, Agostinho Oli Koppe, SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A especificidade dos


novos direitos na multiplicidade de suas referências. Revista Sequência, Florianópolis
(Brasil), n.56, p. 225-244, 2008.

PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 8ª ed. Madrid. Editora
Tecnos, 2004.

POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007

REE, Eric van. Drug as a human right. International Journal of Drug Policy, London,
v. 10, p. 89-98, 1999.

66
REVENGA SANCHEZ, Miguel. Sobre (viejos) modelos de justicia constitucional y
creación de (nuevos) derechos. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid,
n.64, p. 99-110, 2002.

RIVERA, Berta, CASAL, Bruno, CURRAIS, Luiz. The social cost of ilicit drugs use in
Spain. International Journal of Drug Policy, London, vol. 44, p. 92-104, 2017.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes: para uma crítica do direito
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

ROUX, Theunis. Constitutional Courts as Democratic Consolidators: insights from South


Africa after 20 years. Journal of Southern Africa Studies. The Netherlands, v. 42 n. 1,
p. 5-18. 2016

SANT´ANNA, Lara Freire Bezerra de. Judiciário como guardião da Constituição:


democracia ou guardiania? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários à Constituição do Brasil – Artigo 5º, §2º. In


CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang;
STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo;
Coimbra: Editora Saraiva; Editora Almedina, 2013. p. 516-518.

SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários à Constituição do Brasil – Artigo 5º, §2º. In


CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang;
STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo;
Coimbra: Editora Saraiva; Editora Almedina, 2013. p. 516-518.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e


metodologia. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016.

SILVA. José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 1994.

SILVA, José Afonso da. Teoria do Conhecimento Constitucional. São Paulo:


Malheiros Editores, 2013.

SILVA, Maria de Lourdes da. Drogas: da medicina à repressão policial: a cidade do Rio
de Janeiro entre 1921 e 1945.Rio de Janeiro: Editora Outras Letras, 2015.

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea: do


positivismo clássico ao pós-positivismo jurídico. Curitiba, Brasil: Editora Juruá, 2014.

STEVENS, Alex. Drug Policy, Harm and Human Rights: a rationalist approach.
International Journal of Drug Policy, London, v. 22, p. 233-238, 2011.

67
STRECK, Lênio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil – Artigo 3º. In
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang;
STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo;
Coimbra: Editora Saraiva; Editora Almedina, 2013. p. 97-102.

STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias


Discursivas. 4ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

TATE, Chester Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of judicial power.
New York; London: New York University Press, 1995.

TAVARES, Diego Alves, GORAYB, Leandro.RE 635659: A descriminalização do porte


de drogas. 12f. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito - Faculdade
Eduvale de Avaré – São Paulo, Brasil, 2015.

TIBURI, Márcia, DIAS, Andréa Costa. Sociedade fissurada: para pensar as drogas e a
banalidade do vício. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel
Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das
relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999

WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999.

WALSH, Charlotte. Psychedelics and cognitive liberty: reimagining drug policy through
the prisma of human rights. International Journal of Drug Policy, Londres, v. 29, p.
80-87, 2016.

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo, justiça e legitimidade dos novos Direitos.


Revista Sequência, Florianópolis (Brasil), n.54, p. 95-106, 2007.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: leys, derecho, justicia. 8ª ed. Madrid:


Editora Trotta, 2008.

68

S-ar putea să vă placă și