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PERSONAGENS
FAY
MCLEAVY
HAROLD
DENNIS
TRUSCOTT
MEADOWS
PRIMEIRO ATO
Sala na moradia dos McLEAVY. À tarde. Porta envidraçada à
direita. Porta à esquerda. Um caixão de defuntos apoiado
sobre cavaletes. McLEAVY, em traje de luto, sentado junto a
um ventilador. FAY, enfermeira uniformizada, entra pela
direita.
SEGUNDO ATO
McLEAVY (Para Fay) – Uma coisa eu sei: você vai para a lista
negra. Vou fazer com que nunca mais consiga um emprego de
enfermeira.
TRUSCOTT – Não há necessidade de ser vingativo. Seja um
pouco tolerante.
McLEAVY – Esta assassina vai ficar sem castigo?
TRUSCOTT – Receio que sim, cavalheiro. Porém, tenho um
trunfo na manga. Para a lei e a ordem, a situação, embora difícil,
não é de modo algum, desesperadora. Ainda há uma hipótese,
embora remota, de eu relacioná-la a outro crime. Um crime que
aos olhos da lei é bem mais grave do que o de tirar uma vida.
McLEAVY – O que é que há de mais grave que o assassínio em
massa?
TRUSCOTT – Roubar dinheiro público. E foi justamente isso
que o seu filho e os cúmplices dele fizeram.
McLEAVY – O Harold jamais faria uma coisa dessas. Ele é
membro dos Filhos da Divina Providência.
TRUSCOTT – Isso pode ser relevante para a Divina
Providência, mas a mim não me aquece nem arrefece. (Retira o
olho do bolso.) No curso das minhas investigações vim a
deparar-me com este objeto. Poderá o senhor dizer-me o que é
isto?
McLEAVY (Examinando o olho) – É uma bola-de-gude.
TRUSCOTT – Não. Uma bola-de-gude não. (Olha para
McLeavy calmamente.) Parece-me suspeitosamente parecido
com um olho. A questão que eu gostaria de ver respondida é: a
quem isto pertence legalmente?
McLEAVY – Não estou certo de que seja um olho. Parece-me
mais uma bola-de-gude pisoteada.
TRUSCOTT – É um olho, cavalheiro. (Tira o olho das mãos de
McLeavy.)
O nome do fabricante é claramente decifrável: J. & S. Frazer,
Fabricantes de Olhos para Profissionais.
FAY – É meu. O meu pai deixou-o para mim, de herança.
TRUSCOTT – É um estranho legado para um pai fazer.
FAY – Sempre gostei muito desse objeto. Diz-se que pertenceu,
originalmente, a uma bem amada figura do mundo do
espetáculo.
TRUSCOTT – És uma mulher muito esperta, McMahon.
Desgraçadamente, não o suficiente. E eu não sou nenhum
idiota.
FAY – O seu segredo ficará bem guardado comigo.
Suspeito fortemente de que conheço a procedência deste olho.
(Sorri. Para Fay.) Tu também o conheces, não é?
FAY – Não.
TRUSCOTT – Não me mintas! Pertence à tua boneca, não é?
FAY (Rindo) – Indeferido, inspetor. O senhor é demasiado
esperto.
TRUSCOTT – Ainda bem que finalmente decidiste dizer a
verdade. Temos que devolver o olho à sua legítima proprietária.
Desembrulhem a boneca.
FAY – Não, não! Não vai despi-la à frente de quatro homens. Eu
própria o farei. Em particular.
McLEAVY – Um momento. (Para Truscott.) Deixe-me ver esse
olho. (Truscott entrega-lhe. Para Fay.) Quem lhe deu isto?
FAY – É da minha boneca. Não ouviu o que o inspetor disse?
McLEAVY (Para Truscott) – Acha plausível que eles ponham
olhos num manequim? Isso o convence?
TRUSCOTT – A mim, nunca, nada me convence. Escolho
sempre a explicação menos improvável e registro-a nos
arquivos.
McLEAVY (Para Fay) – Quem lhe deu isto? Vamos, responda!
DENNIS – Fui eu. Uma mulher havia me dado de recordação.
McLEAVY – Recordação de quê?
DENNIS – De uma ocasião especial.
McLEAVY – Para chegar ao ponto de lhe oferecer um olho,
deve ter sido uma ocasião muito especial. Desembucha que eu
não sou da polícia. Quero uma resposta palpável. Quem te deu
isto?
HAROLD – Fui eu.
McLEAVY (Gritando) – Tu... Filho da mãe, não!
TRUSCOTT – Estamos tendo uma discussão séria, caro senhor.
Obscenidades, não.
McLEAVY – Isto é propriedade roubada. Este olho pertence à
minha esposa.
TRUSCOTT – Em que é que baseia essa afirmação?
McLEAVY – A minha esposa tinha olhos de vidro.
TRUSCOTT – Uma mulher notável, caro senhor. E quantos ela
tinha na data de sua passagem?
McLEAVY – Nenhum.
TRUSCOTT – E então?
McLEAVY – Estes foram postos depois dela morrer. Os que ela
tinha foram levados.
TRUSCOTT – Para onde?
McLEAVY – Não sei.
TRUSCOTT – E o senhor não averiguou?
McLEAVY – Não.
TRUSCOTT – Para quem afirma ter tido um casamento feliz, o
senhor comporta-se de uma maneira singularmente desumana.
McLEAVY – Oh, inspetor (emocionando-se.) – o meu filho, o
senhor ouviu-o confessar, roubou os olhos da falecida,
uma prática desconhecida fora da ciência médica.
Criei um vampiro sob o meu teto. (Silêncio. Truscott medita.).
TRUSCOTT – Diga-me: que deseja o senhor que eu faça?
Dê-me uma chave de fendas. Temos que abrir o caixão. Quero
saber até onde é que chegou este saque. É de esperar que
também lhe tenham levado a cabeça.
DENNIS – Deixe-me aconselhar-lhe cautela, Sr. Mcleavy, do
ponto de vista profissional. O caixão foi muito maltratado, sabia?
FAY – É bem possível que ela esteja desmanchada.
McLEAVY – Dêem-me uma chave de fendas.
HAROLD – Não se poderia enterrar o olho separado?
McLEAVY – Não posso pedir ao Padre que faça orações
fúnebres para um olho. Dêem-me uma chave de fendas.
(Ninguém se move. Truscott respira fundo.).
TRUSCOTT – Que bem é que isso nos fará, caro senhor?
McLEAVY – Não estou interessado em fazer bem nenhum. Já
existem organizações devotadas a esse fim. Uma chave de
fendas! Terei que repeti-lo como um almuadem (muçulmano
que da torre da Mesquita chama os fiéis à oração.)? (Dennis
dá a McLeavy uma chave de fendas. McLeavy devolve o
olho a Truscott e começa a desparafusar o caixão.).
TRUSCOTT – Esta interferência nos direitos da morta é
ilegítima. Como policial, devo pedir-lhe que pondere
cuidadosamente os seus atos.
McLEAVY – Ela é minha mulher. Posso fazer com ela o que
quiser. Com um cadáver qualquer coisa é legal.
TRUSCOTT – Isso é que não é. Os direitos conjugais cessam
com o último suspiro. Julguei que o soubesse. (Mcleavy
começa a desparafusar o segundo lado do caixão.) Devo
dizer, cavalheiro, que estou aterrado com o seu comportamento.
Equivalente à pilhagem de túmulos, na verdade. Que espera
ganhar com isso? Uma subida ao céu destituída de olhos tem
tantas expectativas de sucesso, como qualquer outra. O seu
pároco poderá confirmar. (McLeavy baixa a cabeça,
prosseguindo com o trabalho.) O senhor me dá a impressão
de ser um indivíduo absolutamente irresponsável. Sempre
arranjando problemas desnecessários.
HAROLD – Vamos ficar com a casa cheia de agentes. Metade
dos nossos bens vai desaparecer. É para isso que o uniforme
deles tem bolsos tão grandes.
TRUSCOTT – O seu filho parece ter - do mundo em que
vivemos -, uma visão mais equilibrada do que a sua.
McLEAVY – O meu dever é claríssimo.
TRUSCOTT – Só as autoridades podem decidir quando é que o
seu dever é claríssimo. Palpites no escuro, da parte de pessoas
como o senhor, só aumentam a confusão.
(McLeavy levanta a tampa do caixão.).
HAROLD – Vai ser um choque para ele.
Vejam como se presta a isso. Muito gosta a geração dele de ser
ultrajada.
(McLeavy espreita o caixão, dá um gemido de descrença e
cambaleia para trás, incrédulo.).
DENNIS – Agarrem-no que ele vai desmaiar! (Ele e Fay
seguram McLeavy e arrastam-no até a cama. McLeavy, em
estado de choque, deixa-se cair ao lado do cadáver.).
McLEAVY – Onde? (Desvairado.) Onde? (Segue o olhar de
Harold para o cadáver e recua horrorizado.) Oh, o fim do
mundo está próximo quando crimes destes são cometidos.
TRUSCOTT – Não há de ser o abrir de um caixão que vai servir
de trombeta do Apocalipse. Recomponha-se, cavalheiro.
FAY (Para Truscott) – A condição do cadáver deteriorou-se
devido ao acidente. Deseja verificar o fato?
TRUSCOTT – Não, muito obrigado, menina. Já sofro dissabores
suficientes no cumprimento do dever, sem me pôr à procura
deles.
FAY (Para Dennis) – Fecha o caixão. (Dennis obedece.).
McLEAVY (Para Harold) – Vou deserdar-te.
Vou espalhar aos quatro ventos que fui traído.
FAY (Para Truscott) – Isto foi, para ele, uma experiência
dolorosa.
TRUSCOTT – Foi avisado, antecipadamente, das
conseqüências dos seus atos.
HAROLD (Ajoelhando-se perante McLeavy) – Estou sendo
prejudicado, papai. Não me importo de confessar tudo. Não me
descarte, por favor?
McLEAVY (Para Harold) – Lamento muito ter te criado. Teria
parado na hora da concepção, se soubesse o que sei hoje.
TRUSCOTT – Essas fantasias ociosas não lhe ficam bem,
cavalheiro. (McLeavy sufoca os seus soluços.) Os pais já
descobriram iniqüidades mais graves nos filhos do que o roubo
de um olho. Este episódio não é isento de elementos instrutivos.
Onde foi que eu errei? Dei-lhe uma educação irrepreensível.
(Para Dennis.) Foste tu que o desencaminhaste?
DENNIS – Eu era inocente até conhecê-lo.
HAROLD – Tu me conheceste com três dias de idade.
McLEAVY (Para Harold) – Onde estão as tuas lágrimas? Ela
era tua mãe.
HAROLD – Agora é cinza, papai. (McLeavy abana a cabeça
em desespero.) Um punhado de cinzas.
McLEAVY - Eu a amava.
HAROLD – Tu não tiveste o mínimo escrúpulo em transformá-la
num adereço. Como é que se pode ter afeto por uma mulher
fútil?
McLEAVY (Gemendo) – Oh, Jesus, Maria, José: guiai-me na
minha tribulação e ponde fim a isto.
HAROLD – Não perdeste nada. Começaste o dia com uma
mulher morta. Acabas o dia com uma mulher morta.
McLEAVY – Oh malvado, malvado! (Desvairado.) Estes
cabelos (aponta.) estão brancos por tua causa. Eu hoje seria
ruivo se não tivesses feito contabilidade.
TRUSCOTT (Tirando o cachimbo da boca) – Não podemos
aceitar uma explicação tão improvável para a cor do seu cabelo,
cavalheiro. (McLeavy solta um grito de angústia.) O seu
comportamento indica um crescente descontrole. É vergonhoso,
num homem com a sua idade e o seu passado. Estou inclinado
a registrá-lo aqui no meu bloco, por distúrbio da ordem. (Fay
estende um lenço a McLeavy. Este se assua, recompõe-se e
se endireita.).
McLEAVY – Peço desculpas, inspetor. O meu comportamento
deve parecer-lhe inusitado. Vou me empenhar no sentido de
explicá-lo. O senhor faça, então, o que achar melhor.
FAY – Veja bem o que está fazendo, antes de dizer a verdade.
O Padre Jellicoe ainda vai desta para melhor.
DENNIS – Os meus pombos morrem se eu for apanhado. Não
há mais ninguém para alimentá-los. (Silêncio. Truscott abre o
bloco de notas e olha para McLeavy.).
McLEAVY – Desejo fazer algumas acusações.
HAROLD (Desesperado) – Se a Tia Bridie sabe disto, deixa o
dinheiro todo para um orfanato. Conheces bem o egoísmo dela.
TRUSCOTT – Quem é que o senhor deseja acusar?
McLEAVY (Pausa. Luta com a consciência e por fim) – A
mim mesmo.
TRUSCOTT (Olhando por cima do bloco de notas) – Que
crime é que cometeu?
McLEAVY – Eu... Eu... (Suando.) Dei falsas informações à
polícia.
TRUSCOTT – Que informações?
McLEAVY – Declarei que o olho pertencia à minha mulher. Não
é verdade. (Censurando-se.) Oh, meu Deus, perdoa-me este
desvario.
TRUSCOTT – Se o olho não pertence à sua esposa, então
pertence a quem? (McLeavy, incapaz de responder, olha à
volta, perplexo.).
FAY (Com um sorriso) – Pertence à minha boneca, inspetor. A
sua primeira dedução estava correta. (Truscott, com toda a
calma, guarda o lápis e o bloco.).
TRUSCOTT – Eu devia fazer um exame à minha cabeça, por vir
meter-me num caso como este. (Para McLeavy.) A sua conduta
é escandalosa, cavalheiro. Com o senhor como pai, as
possibilidades deste jovem tinham que ser muito reduzidas. Não
admira que tenha acabado roubando bancos.
McLEAVY (Coberto de vergonha) – Que vai o senhor fazer?
TRUSCOTT – Fazer? Abandonar esta casa, imediatamente.
Nunca tinha cruzado com uma gente destas. Comportam-se,
todos, como se fossem acionistas de um hospício.
McLEAVY – Mas... E o assalto ao banco... Damos o caso por
encerrado?
TRUSCOTT – Não, caro senhor, nós não damos o caso por
encerrado. Nós não desistimos com essa facilidade. Vou
mandar virarem este lugar de pernas para o ar.
McLEAVY – Valha-me Deus. Que transtorno. Uma casa de luto,
ainda por cima.
TRUSCOTT – A sua esposa já não estará mais aqui, cavalheiro.
Eu vou apropriar-me dos restos mortais.
FAY – Para que é que precisa dos restos mortais? Não pode
provar que a Sra. McLeavy tenha sido assassinada.
TRUSCOTT – Não há razão para alarme. É uma simples
formalidade. Estás fora de perigo. (Sorri. Para McLeavy.) Não
há nada mais tocante do que esta sua criminosa inveterada.
(Guarda o cachimbo.) Estarei de volta dentro de dez minutos.
Receio que o seu patrimônio venha a sofrer alguns baques. Vai
levar meses até pagar as contas da reparação.
Recentemente, um suspeito, com pouca sorte, ficou sem o
telhado da casa.
McLEAVY – Não há nada que eu possa fazer para evitar este
terrível assalto à minha privacidade?
TRUSCOTT – Que tal, meu caro, sugerir algum local onde o
dinheiro possa estar escondido... (McLeavy deixa cair a
cabeça.).
McLEAVY (Quase num suspiro) – Não posso inspetor.
TRUSCOTT – Muito bem. Essa ignorância terá as suas
conseqüências. (Toca no chapéu.) Já volto. (Sai pela direita.).
McLEAVY – Oh, que coisa terrível fui eu fazer. Obstruí um
agente da lei no cumprimento do seu dever.
HAROLD (Abraçando-o) – Estou orgulhoso de ti. Nunca mais
vou sentir-me envergonhado de trazer os meus amigos aqui em
casa.
McLEAVY – Não vou ser mais capaz nem de me olhar no
espelho.
FAY – Vá confessar-se. Marque uma hora com o Padre Mac.
HAROLD – Oh, esse não. Três conhaques e sai a contar tudo. A
empregada do King of Denmark anda a chantagear metade da
cidade.
McLEAVY – Não direi nada do que sei, se devolveres o dinheiro
ao banco. Não ficas nem com um tostão. Ouviste?
HAROLD – Sim, papai. (Pisca o olho para Dennis.).
McLEAVY – Vou telefonar ao Padre Jellicoe. Tenho a alma
atormentada. (McLeavy sai pela direita.).
HAROLD (Fechando a porta, para Fay) – Desembrulha o
corpo. Assim que o pusermos outra vez no caixão estaremos a
salvo. (Fay dispõe o biombo em torno da cama. Põe-se atrás
dele para desembrulhar o cadáver.).
DENNIS – O que é que fazemos com o dinheiro?
HAROLD – Mete na urna.
DENNIS – E ele não vai querê-la?
HAROLD – Ele já viu que ela está vazia.
(Dennis mostra a tampa da urna.).
DENNIS – Por que é que não começamos logo a colocá-lo aqui?
HAROLD – Porque as vísceras da minha mãe estavam aí
dentro. A umidade danificaria as notas. (Harold abre a urna.)
Tens aí um lenço? (Dennis atira-lhe um lenço. Harold limpa o
interior da urna.).
DENNIS – Agora abusaste! Usar um lenço para isto? Foi um
presente de aniversário. (Harold atira-lhe o lenço.).
HAROLD – Calma, querido. Vais ter mais aniversários.
(Dennis atira os maços de notas a Harold. Harold mete-os
dentro da urna.) Logo à noite acompanho o meu pai à
confissão, para purgar a minha alma dos acontecimentos desta
tarde.
DENNIS – É nessas horas que lamento não ser Católico.
HAROLD – Depois te levo a um bordel maravilhoso que eu
encontrei. Maravilhoso mesmo. Dirigido por três paquistanesas
entre os dez e os treze anos. Fazem tudo em troca de doces.
Faz parte da religião delas. Encontra comigo às sete. Vê se
levas alguns chocolates Mars. (Fay surge de trás do biombo,
dobrando a cobertura do colchão.).
FAY – Não olhes agora, Harold.
HAROLD – Por que não?
FAY – A tua mãe está nua. (Fay coloca a cobertura dobrada
por cima do biombo. Harold arruma o último maço de notas
dentro da urna.).
HAROLD – Estamos livres. (Fecha a tampa com uma batida.)
Aqui ninguém vem xeretear. (Truscott entra pela direita.).
TRUSCOTT – Está tudo combinado. Em breve estarão aqui os
meus homens. Já que eles são perfeitamente capazes de
causar estragos não supervisionados, retiro-me então da vossa
presença. (Faz uma vênia. Sorri.).
FAY (Aperta-lhe a mão) – Adeus, inspetor. Gostei de revê-lo.
TRUSCOTT – Adeus. (Acena com a cabeça para Harold e
Dennis.) Essa urnazinha é melhor vir comigo.
HAROLD – Está vazia!
TRUSCOTT – Tenho que comprovar esse vazio antes de fechar
o meu relatório.
FAY – Estamos tentando invalidar a sua sacralidade. O Sr.
McLeavy foi telefonar ao padre para tratar disso.
TRUSCOTT – Os nossos rapazes do forense não estão
interessados na santidade.
Dêem-me a urna! (McLeavy entra pela direita. Vê Truscott e
intimida-se.).
McLEAVY – Já está aqui de novo? Decidiu me prender?
TRUSCOTT – Eu não o prenderia nem que fosse a última
criatura viva. (Para Harold.) Dê-me a urna! (Arranca a urna de
Harold. Para McLeavy.) Depois lhe mando o recibo, cavalheiro.
(Olha em torno à procura de algum lugar onde possa
colocar a urna. Vê o caixão vazio e a coloca em cima.) Onde
está a Sra. McLeavy?
FAY – Atrás do biombo. (Truscott espia atrás do biombo e
ergue as sobrancelhas.).
TRUSCOTT – Ela pediu para ser enterrada daquela maneira?
McLEAVY – Sim.
TRUSCOTT – Ela acreditava neste tipo de coisas?
McLEAVY – Sim.
TRUSCOTT – O senhor também?
McLEAVY – Bom, não. Eu, da minha parte, não sou membro.
TRUSCOTT – Membro? Ela então pertencia a um grupo?
McLEAVY – Oh, sim. Reuniam-se duas vezes por semana.
Fartavam-se fazendo o bem pelas redondezas. Angariavam
dinheiro para obras de caridade, organizavam festas nos dias
santos. Os idosos, sem elas, estariam perdidos.
TRUSCOTT – Já ouvi muitas desculpas para o nudismo,
cavalheiro, mas essa, nunca.
McLEAVY (Pausa) – Nudismo?
TRUSCOTT – Quer dizer que a sua mulher era nudista?
McLEAVY – A minha mulher, em toda a sua vida, nunca tirou a
roupa em público.
TRUSCOTT – Porém pediu para ser enterrada assim?
McLEAVY – Assim como?
TRUSCOTT – Despida.
McLEAVY (Com dignidade) – Devo pedir-lhe que abandone
essa casa, inspetor. Não admito que insulte a memória da minha
falecida esposa.
TRUSCOTT (Rasgando uma folha do bloco) – O senhor me
irrita muito. De verdade. (Entrega a folha a McLeavy.) Os seus
pertences serão devolvidos em seu devido tempo. (Pega a
urna, a tampa se solta e os maços de notas caem no chão.
Truscott fita em silêncio as notas espalhadas a seus pés.)
Quem é o responsável por esta situação vergonhosa?
HAROLD – Eu.
TRUSCOTT (Abaixa-se e apanha um maço de notas) – Você
vai-me dizer que estava se prestando a ficar quieto e a consentir
que sepultassem este dinheiro em terreno sagrado?
HAROLD – Sim.
TRUSCOTT – Como é que se atreve a me envolver numa
situação, para a qual não existem modelos de requerimentos
próprios? (Dá voltas em torno das notas.) Em toda a minha
longa prática, nunca vi um caso como este. Cada uma destas
notas de cinco traz um retrato da Rainha. Nem quero pensar.
Vinte mil tiaras e vinte mil sorrisos enterrados vivos! Ela é uma
monarca constitucional, sabia? Não pode defender-se.
DENNIS – Será que ela vai nos mandar um telegrama?
TRUSCOTT – Estou certo que sim. (Apanha outro maço e fixa
o olhar nas notas.).
McLEAVY – Bom, inspetor, o senhor encontrou o dinheiro e
desmascarou os criminosos. Cumpra o seu dever: prenda-os.
Eu cumprirei o meu, comparecendo como testemunha de
acusação.
HAROLD – O senhor é casado, inspetor?
TRUSCOTT – Sou.
HAROLD – A sua esposa não deseja mais excitação na vida
dela?
TRUSCOTT – Ela, uma vez, exprimiu o desejo de conhecer os
moinhos de vento e os campos de tulipas, na Holanda.
HAROLD – Com uma esposa tão inteligente, o senhor precisa
de maiores rendimentos.
TRUSCOTT – Eu nunca disse que a minha esposa era
inteligente.
HAROLD – Ela, portanto, não é inteligente?
TRUSCOTT – A minha esposa é uma mulher. A inteligência não
é chamada para o caso.
HAROLD – Se a sua esposa for - como o senhor afirma -, uma
mulher, então é indubitável que o senhor precisa de maiores
rendimentos. (Truscott tira o cachimbo do bolso e coloca-o
no canto da boca.).
TRUSCOTT – Esta brincadeira inquisitorial é, supostamente,
para levar-nos onde?
HAROLD – Eu estaria prestes a sugerir um suborno. (Truscott
tira o cachimbo da boca. Ninguém fala.).
TRUSCOTT – Quanto?
HAROLD – Vinte por cento.
TRUSCOTT – Vinte e cinco por cento. Senão, logo pela manhã
aparece um relatório pormenorizado deste caso, na escrivaninha
do meu superior.
HAROLD – Pois então, que seja vinte e cinco por cento.
TRUSCOTT (Apertam as mãos) – Negócio fechado.
DENNIS (Para Truscott) – Posso ajudá-lo a repor o dinheiro na
urna?
TRUSCOTT – Muito obrigado, jovem. Muito gentil da sua parte.
(Dennis empilha o dinheiro dentro da urna. Fay tira as
roupas da Sra. McLeavy do vaso acessório à cadeira de
rodas, e vai para trás do biombo. Truscott mordisca o
cachimbo. Harold e Dennis levam o caixão para trás do
biombo.).
McLEAVY – Será que no meio disto tudo ninguém se preocupa
com os meus sentimentos?
TRUSCOTT – Qual é a percentagem que quer?
McLEAVY – Não quero dinheiro. Sou um homem honesto.
TRUSCOTT – Nesse caso, tem que corrigir a sua maneira de
ser.
McLEAVY – Vou denunciar vocês todos!
TRUSCOTT – Que é isso, cavalheiro? Seja razoável! O que
acaba de acontecer é perfeitamente escandaloso e o melhor é
que não saia de dentro destas paredes. Não é bom para a
opinião pública ver a sua confiança na polícia, minada.
Estaria causando um grave transtorno à comunidade se
divulgasse as assustadoras incidências deste caso em toda a
sua extensão.
McLEAVY – Que conversa é essa? O senhor não tem bom
senso.
TRUSCOTT – Quem é que tem?
McLEAVY – Vou telefonar ao padre. Ele tem. Pelo menos para
mim.
TRUSCOTT – E tem bom senso para ele mesmo? Isso é muito
mais importante.
McLEAVY – Se não posso confiar na polícia, sempre posso
contar com os padres. Eles irão aconselhar-me! (Sai pela
direita. Harold surge detrás do biombo.).
HAROLD – Minha mãe está de volta à sua morada final.
TRUSCOTT – Perfeito. A operação foi executada com rapidez e
eficiência. Dou-lhes os meus parabéns. (Dennis surge detrás
do biombo.).
DENNIS – Estamos prontos para o olho. Se quiser ter a
bondade de nos acompanhar...
TRUSCOTT (Retirando o olho do bolso) – Encarregue-se
você disso, jovem. Tem mais experiência nesses assuntos que
eu. (Dá o olho a Dennis.).
HAROLD – É melhor levares isto também. (Dá a Dennis a
dentadura. Dennis leva o olho e a dentadura para trás do
biombo.).
TRUSCOTT – O seu sentido de desapego é assustador, jovem.
A maior parte das pessoas, no mínimo, tremeria ao ver os olhos
e os dentes da própria mãe passar de mão em mão, como
amêndoas de Páscoa. (Fay surge de trás do biombo.).
FAY – E quanto ao padre? Já pensaram nisso?
TRUSCOTT – Não podemos metê-lo nisto, menina. A nossa
percentagem ficaria insignificante.
FAY – O Sr. McLeavy ameaçou denunciar-nos.
TRUSCOTT – Já fui denunciado antes.
FAY – E o que aconteceu?
TRUSCOTT – Prendi o homem. Está cumprindo doze anos.
HAROLD – Se deseja prender o meu pai, terá em mim uma
testemunha exemplar.
TRUSCOTT – Que brilhante idéia. Temos vagas na corporação
para jovens do seu calibre. (Para Fay.) Estás conosco,
McMahon?
FAY – Sim. Parece-me a melhor solução para todos. (Dennis
recolhe o biombo. O caixão está em cima da cama.).
TRUSCOTT – E o senhor?
DENNIS – Eu nunca vi o panorama da bancada das
testemunhas. Seria uma experiência nova. (A porta da direita
abre-se com um estrondo. McLeavy entra com Meadows.).
McLEAVY (Apontando para Truscott) – É aquele homem.
Prenda-o.
TRUSCOTT – Boa tarde, Meadows. Por que é que abandonou o
seu posto?
MEADOWS – Fui abordado por este indivíduo, caro senhor.
Fazia questão de que eu o acompanhasse a uma Igreja
Católica.
TRUSCOTT – E o que é que você respondeu?
MEADOWS – Recusei-me.
TRUSCOTT – Fez muito bem. Você é da Igreja Metodista.
Prossiga com a declaração.
MEADOWS – O indivíduo tornou-se ofensivo. Fez uma série de
comentários depreciativos sobre a polícia em geral, e sobre o
senhor, em particular. Tive que pedir reforços.
TRUSCOTT – Excelente, Meadows. Farei com que o Quartel
General saiba disso. Você, Meadows, capturou um
perigosíssimo criminoso em plena fuga. Como sabe, vigiamos
esta casa durante um bom tempo. Estava eu prestes a
desmascarar o principal delinqüente, quando esse homem
abandonou a sala com uma desculpa qualquer, e desapareceu.
MEADOWS – Pois já estava dando uma de pluma, caro senhor,
e sendo levado pela brisa.
TRUSCOTT – Muito bem. Conseguiste exprimir muito bem a
situação, Meadows.
Agora, ponha-lhe as algemas. (Meadows algema McLeavy.)
Estás fodido, meu canalha. Aprendeste às tuas custas que os
padrões de exigência da polícia inglesa estão mais altos que
nunca.
McLEAVY – De que é que me acusam?
TRUSCOTT – Não deves te preocupar com isso por enquanto.
Preencheremos os detalhes mais tarde.
McLEAVY – O senhor não pode fazer isto. Sempre fui um
cidadão cumpridor das leis. A polícia serve para proteger as
pessoas comuns.
TRUSCOTT – Não sei onde é que foi buscar esses clichês.
, cavalheiro. Deve tê-los lido em alguma ordem oficial.
McLEAVY – Exijo aqui alguém que tenha autoridade.
TRUSCOTT – Eu tenho autoridade.
McLEAVY – Alguém superior.
TRUSCOTT – O senhor pode exigir quem quiser, desde que me
convença primeiro que a sua exigência é justificada.
McLEAVY – Você é louco!
TRUSCOTT – Disparate. Ainda ontem fiz um checape. O
médico da corporação assegurou-me que eu estava
perfeitamente são.
McLEAVY – Eu estou inocente. (Algo inseguro de si mesmo,
com o pânico a instalar-se.) Isso nada significa para você?
TRUSCOTT – Você conhece os regulamentos, Meadows.
Reviste-lhe os bolsos e registre-o na Delegacia. (McLeavy é
arrastado por Meadows.).
McLEAVY – Estou inocente! Estou inocente! (À porta, pausa,
um último lamento.) Oh, que coisa terrível de acontecer a um
homem que já foi beijado pelo Papa. (Meadows sai com
McLeavy.).
DENNIS – De que é que vai acusá-lo, inspetor?
TRUSCOTT – Qualquer coisa serve.
FAY – Será que podemos arranjar-lhe uma morte acidental?
TRUSCOTT – Na prisão pode-se arranjar de tudo.
HAROLD – Exceto uma gravidez.
TRUSCOTT – Bem, aí é claro que o sistema de visitas íntimas
nos passa a perna. (Pega a urna.) O lugar mais seguro para pôr
isto, é o meu escaninho, na Delegacia. É uma máxima da
Corporação: “nunca investigues o teu próprio quintal; podes
encontrar o que procuras”. (Já à porta, vira-se para trás, com
a urna debaixo do braço.) Telefonem-me logo à noite. A essa
altura, já poderei dar-lhes notícias de McLeavy. (Entrega um
cartão a Fay.) Aí está o meu endereço. Sou bastante conhecido
por lá. (Cumprimenta com a cabeça, sorri e sai. Som da
porta da frente batendo. Pausa.).
HAROLD (Com um suspiro) – É um homem muito decente.
Discreto à sua maneira.
DENNIS – Tem um espírito sincero, tolerante, em contraste com
o que é comum nos funcionários públicos. (Harold e Dennis
retiram o caixão da cama e colocam-no sobre os cavaletes.).
HAROLD – É reconfortante saber que ainda podemos contar
com a polícia, quando estamos metidos em apuros.
(Permanecem atrás do caixão. Fay no meio.).
FAY – Podemos enterrar o teu pai junto com a tua mãe. Isso
seria agradável, para ele, não acha? (Ergue o terço e baixa a
cabeça em oração.).
HAROLD (Pausa. Para Dennis) – Agora podes ficar por aqui,
querido. Vai sobrar muito espaço. Podes trazer as tuas coisas
esta noite. (Fay ergue os olhos.).
FAY (Cortante) – Quando eu e o Dennis nos casarmos, vamos
ter que nos mudar.
HAROLD – Por quê?
FAY – As pessoas iam falar. Temos que ter cuidado com as
aparências. (Volta às suas orações, movendo os lábios,
silenciosamente. Dennis e Harold, cada um no seu lado do
caixão.).
FIM