Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Ler Marx!
Os textos mais importantes
de Karl Marx
para o século XXI
Editados e comentados
por Robert Kurz
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 1/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 2/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
Deutsch
Robert Kurz,
Marx lesen. Die wichtigsten Texte von Karl Marx fur das 21. Jahrhundert
Editora: Eichborn, AG, Frankfurt
1ª edição 12/2000, ISBN 3-8218-1644-9
2ª edição 03/2006, ISBN 3-8218-5646-7
Tradução francesa:
Lire Marx. Les textes les plus importants de Karl Marx pour le XXIe siècle. Choisis et
commentés par Robert Kurz, La Balustrade, 2002, ISBN 2-9518505-0-6 (Reedição em 2013)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 3/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 4/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 5/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
Índice
Nota do tradutor
Prefácio
1. Eles não sabem, mas fazem-no: O modo de produção capitalista como fim em si
mesmo irracional (aqui)
Introdução
As leis naturais da produção capitalista e as suas criaturas
- O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Prefácio à primeira edição,
1867
- Manuscritos económicos, 1863-1867
A forma elementar da riqueza capitalista
- Para a crítica da economia política, 1º caderno, Primeira edição, 1859
Trabalho abstracto – A objectividade fantasmagórica
- O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
- Para a crítica da economia política, 1º caderno, Primeira edição, 1859
- Linhas gerais da crítica da economia política [Grundrisse]. Rascunho. 1857-1858
O valor dos diamantes pode cair abaixo do dos tijolos
- O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
As subtilezas teológicas de uma mesa e os hieróglifos sociais dos produtores de
mercadorias
- O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
- O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por
Friedrich Engels, 1894
O enigma do dinheiro ou as relações entre casaco e linho
- O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 6/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 7/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 8/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 9/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 10/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
- O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por
Friedrich Engels, 1894
O negócio vai sempre bem, até que de repente ocorre o colapso
- O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por
Friedrich Engels, 1894
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 11/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
- O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por
Friedrich Engels, 1894
- O Capital. Crítica da economia política, Livro segundo, Segunda edição, editada por
Friedrich Engels, 1893
- Crítica do Programa de Gotha, escrito em 1875
A emancipação só se realizará quando o ser humano real retomar em si o cidadão
abstracto
- A questão judaica, 1844
- Crítica do direito do Estado de Hegel, escrito em 1843
Tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública; obrigar as relações a
dançar, entoando-lhes a sua própria melodia: a radicalidade da crítica
- Crítica da filosofia do direito de Hegel, Introdução, escrito em 1843/44
- Cartas dos “Anais Franco-Alemães”, 1844
Crítica impiedosa e exaustiva das primeiras tentativas, começar de novo
repetidamente...
- O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 1869
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 12/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 13/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 14/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 15/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
Nota do tradutor
Março de 2018
Boaventura Antunes
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 16/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
Prefácio
Karl Marx está hoje quase completamente desaparecido das livrarias, ainda que as
edições dos seus livros se comparem às da Bíblia. Também falta uma antologia dos
textos de Marx, que poderia no entanto ser útil, não em último lugar para uma geração
jovem, tanto a Leste como a Oeste, que já não cresceu com a leitura e a discussão de
Marx, mas que afinal pretende por uma vez debater-se com o autêntico pensamento de
Marx, que supostamente quase teria arruinado a história mundial. Já houve muitas
edições de textos de Marx, mas na maior parte dos casos entendendo, como
pressuposto tácito, que Marx se identificaria com o “marxismo” dos partidos
socialistas operários e estatistas. Esse socialismo está hoje tão morto como o
movimento operário. As fórmulas “do ponto de vista do trabalho” e da “luta de
classes” tornaram-se arcaicas; já não desencadeiam quaisquer paixões, nem positivas
nem negativas, provocam apenas bocejos.
Mas isso constitui somente uma determinada leitura da teoria de Marx e uma
determinada linha da sua argumentação, efectivamente ligadas a uma época agora
passada (ainda que totalmente incompreendida) e que por isso não passam de história
da teoria. O que, no entanto, é apenas metade de Marx. Pelo menos sabe-se hoje que
Marx disse de si mesmo: “Eu não sou marxista”. E há uma abordagem, desaparecida
do mapa e completamente por esclarecer, da teoria crítica radical dum “outro” Marx,
um Marx que continuou estranho e obscuro, tanto para o “marxismo do movimento
operário” como para os ideólogos socialistas que tudo justificavam durante a guerra
fria. Até hoje ninguém tentou preparar, a partir da considerável quantidade de textos
por ele deixados, uma edição deste Marx desconhecido e da sua crítica bem diferente
do capitalismo. Também não havia razão para o fazer, dado que a recepção de Marx se
limitou no essencial ao contexto da história da modernização. Pelo contrário, o que se
fez, dum lado e do outro, foi apenas repelir e deixar escondido aquilo que na teoria de
Marx se revelava demasiado incómodo para as necessidades da discussão política e da
legitimação de posições que reflectiam interesses precisos. No entanto é precisamente
este alter ego mergulhado no escuro do Marx completo, por assim dizer com cabeça
de Jano, que ainda pode ser importante para o futuro.
Por isso, nesta recolha, os textos de Marx são deliberadamente isolados do contexto
da massa de textos compatíveis com o marxismo do movimento operário. O que nos
valerá, provavelmente, a crítica de que os textos apresentados estão fora do seu
contexto. Reconheçamos de imediato que é essa a nossa intenção: arrancar a “outra”
crítica do capitalismo do Marx desconhecido, mais radical e largamente posto de parte
no debate oficial, daquilo que se conhece do Marx do movimento operário e dos
partidos já sem objecto, para a poder conhecer e assim a desenvolver.
É claro que apenas aí chegaremos imperfeita e rudimentarmente, tal como não
poderemos pretender ser exaustivos. Por vezes é simplesmente inevitável que o Marx
“oficioso” apareça nesta recolha de textos, e que a sua maneira de se exprimir pareça
ambígua, incompleta ou contraditória. Inversamente, quem se interessa por Marx no
seu conjunto, pelo Marx integral em toda a sua contradição, e privilegia uma leitura
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 17/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 18/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
Introdução:
Os destinos do marxismo – ler Marx no século XXI
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 19/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
Os que foram dados como mortos vivem mais. (1) Na qualidade de teórico activo e
crítico, Karl Marx já foi dado como morto mais de uma vez, mas sempre escapou da
morte histórica e teórica. A razão é simples: a teoria de Marx só pode morrer em paz
juntamente com o seu tema, o modo de produção capitalista. Esse sistema social é
"objectivamente" cínico, está francamente cheio de imposições tão descaradas de
comportamentos às pessoas, produz ao lado de uma riqueza obscena e insípida uma
pobreza em massa de tal dimensão e está marcado em sua dinâmica furiosa pelo
potenciamento de catástrofes tão incríveis que a simples continuação da sua existência
tem de fazer ressurgir sempre, inevitavelmente, motivos e pensamentos de crítica
radical. E o alfa e ómega dessa crítica é justamente a teoria crítica daquele Karl Marx
que, já há quase 150 anos, analisou insuperavelmente a lógica destrutiva do processo
de acumulação capitalista nos seus fundamentos.
Todavia, como para todo pensamento teórico que ultrapasse o prazo de validade de
um determinado espírito do tempo, também para a obra de Marx vale o seguinte: é
sempre necessária uma aproximação sempre nova, que descubra novas facetas e
repudie velhas interpretações. E não só interpretações, mas também determinados
elementos dessa mesma teoria ligados ao tempo. Todo o teórico sempre pensou mais
do que ele próprio sabia, e não seria sério chamar teoria a uma teoria isenta de
contradições. Assim, não apenas os livros individualmente têm os seus destinos, mas
também as grandes teorias. Entre uma teoria e os seus receptores, tanto adeptos como
adversários, sempre se desenvolve uma relação de tensão, na qual se desdobra a
contradição interna da teoria, só assim sendo promovido o conhecimento.
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 20/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
evasiva que só pode ter carácter passageiro; o pensamento crítico acabará por ser
implacavelmente reconduzido ao obstáculo que terá de ultrapassar. E este obstáculo é
obviamente tão difícil de enfrentar sobretudo porque o pensamento marxista praticado
até hoje também tem de saltar por cima da própria sombra. Poder-se-ia trocar esta
metáfora um tanto estranha por outra: o marxismo esconde um esqueleto no armário,
que já não pode ficar escondido. Ou seja, tanto a contradição entre a teoria de Marx e
a sua recepção pelo antigo movimento operário, como as contradições no interior da
própria teoria de Marx chegaram a tal ponto de maturação no final do século XX que
a reactivação desta teoria e a sua actualização renovada já não pode ocorrer à maneira
antiga.
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 21/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 22/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
como tal", por maioria de razão a consciência prática, inevitavelmente envolvida nas
necessidades quotidianas, equiparava inevitavelmente o capitalismo com as
manifestações sociais directas, que no entanto ainda estavam impregnadas das
impurezas de resíduos pré-modernos em muitos aspectos. Se, deste modo, justamente
para os interesses dominantes em cada época e seus apologistas (as autoridades
patriarcais e os clãs capitalistas do início do século XIX, por exemplo, dificilmente
conseguiriam reconhecer-se nas figuras dos actuais capitalistas dotcom da
globalização) o capitalismo parecia ser a própria identidade de cada fase do seu
desenvolvimento ainda não concluído, inversamente, para as forças progressistas
surgidas em cada fase, o repúdio desse estado de coisas tinha de assumir o nome de
crítica ao capitalismo, ainda que, na verdade, se tratasse apenas da continuação do
desenvolvimento do próprio capitalismo.
Por essa razão, o conceito de modernização não era tão unidimensional como hoje,
mas sim carregado com uma espécie de crítica endocapitalista (poder-se-ia até dizer:
uma autocrítica interna progressista do capitalismo ainda não concluído). Isso ainda
fazia mais sentido quando se tratava de uma luta de classes aparentemente muito fácil
de definir. Por um lado, os próprios sujeitos-capitalistas dos séculos XVIII e XIX,
ainda com modelos pré-modernos de pensamento e de comportamento, tendiam a
tratar os assalariados por eles explorados com paternalismo e ares senhoriais
autoritários, como dependentes pessoais, embora, no "trabalho assalariado livre", pela
sua forma, tivesse de tratar-se de contratos jurídicos entre iguais. Por outro lado, os
assalariados e as suas organizações, que primeiramente foram oprimidas pelo Estado,
reivindicavam justamente esse carácter de relações contratuais em pé de igualdade
jurídica, em oposição ao carácter dominador e manifestamente pessoal da relação de
capital, que empiricamente ainda não correspondia ao seu conceito lógico. Contudo,
exactamente por esse motivo, a luta de classes tornou-se o motor da história da
imposição do capitalismo, e a crítica ao capitalismo face aos capitalistas-proprietários
pessoais só equivalia, na verdade, à pura lógica do próprio capitalismo, ou seja, à
lógica de um sistema de igualdade formal estrita de indivíduos abstractos, que de certo
modo são postos como átomos de um processo deles autonomizado.
Não obstante, além das posturas de domínio pessoal paternalistas e dos resquícios de
relações sociais corporativas, também ainda havia outros factores de não-
simultaneidade interna, como, por exemplo, modelos culturais pré-modernos, que sob
diversos aspectos se mostravam um estorvo, face ao tempo contínuo abstracto da
economia empresarial, ao dia de trabalho abstracto, ao conjunto de regras político-
económicas unificadas, à normalização do quotidiano e das coisas, à redução
funcionalista da estética, etc. Mesmo independentemente da luta de classes e da crítica
imanente ao capitalismo a ela associada, o contexto sistémico capitalista ainda não
estava suficientemente amadurecido, pois mesmo nos países capitalistas mais
desenvolvidos (com a Inglaterra à frente) o modo de produção capitalista ainda não
atingira integralmente todos os ramos da produção, e as esferas sociais fora da
produção empresarial directa (Estado, família, vida cultural, corporações extra-
económicas etc.) não estavam suficientemente adaptadas às necessidades capitalistas,
nem eram continuamente reformuladas à imagem da racionalidade capitalista.
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 23/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 24/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 25/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 26/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
teoria como conceitos (por exemplo, na economia política burguesa). Por isso o
subtítulo de O Capital de Marx, "Crítica da Economia Política", também pode ser
entendido de duas maneira: por um lado, como crítica das relações objectivas reais,
existentes antes ou independentemente de qualquer teoria, nas suas formas
elementares de relacionamento socioeconómico; e, por outro, como crítica às formas
de pensamento e de consciência a elas ligadas e delas resultantes, tanto do "senso
comum" como da ideologia e da ciência.
É bastante fácil nomear as categorias capitalistas elementares, mas é bastante difícil
submetê-las a uma crítica fundamental. A abstracção "trabalho", o "valor" económico,
a representação social dos produtos como "mercadorias", a forma geral do dinheiro, a
mediação através de "mercados", a reunião desses mercados em "economias
nacionais" com determinadas unidades monetárias (moedas), os "mercados de
trabalho" como requisito para uma vasta economia de mercadorias, de dinheiro e de
mercado, o Estado como "comunidade abstracta", a forma do "direito" geral e
abstracto (codificação jurídica) em todas as relações pessoais e sociais e como forma
da subjectividade social, a forma estatal pura e plenamente desenvolvida da
"democracia", o irracional disfarce cultural-simbólico da coerência do Estado e da
economia nacional como "Nação" – todas essas categorias elementares da
socialização capitalista moderna, por um lado desenvolvidas através de processos
históricos cegos, foram, por outro lado, impostas aos seres humanos pelos respectivos
protagonistas e detentores do poder (eles próprios sem consciência do todo) num
processo de pedagogização, habituação e interiorização ao longo de séculos,
resultando daí o facto de essas categorias cedo terem surgido como constantes
antropológicas inultrapassáveis, zombando de toda a crítica.
Conseguir vender o contexto da forma social capitalista, antes totalmente inexistente,
como uma lei natural da convivência humana, que em princípio já teria existido
sempre, foi indubitavelmente uma grande façanha da filosofia iluminista burguesa e
da teoria económica a ela vinculada, entre o final do século XVIII e o início do século
XIX. Como se dizia, essas categorias verdadeiramente eternas apenas teriam sido
usadas de maneira equivocada e incompleta no passado, porque teria faltado a
compreensão necessária (a razão despertada pelo iluminismo). Mas depois de essa
razão, por sorte, finalmente ter sido encontrada, a história dos erros teria um fim, e a
humanidade poderia então marchar em direcção a um futuro glorioso, obedecendo aos
princípios válidos da sociedade por excelência (entenda-se: do capitalismo), que
sempre teriam existido e vigorado.
Hegel modificou essa hipótese refinadamente, redefinindo as condições sociais pré-
modernas, que para os iluministas ainda figuravam como erros e equívocos, como
outros tantos "estádios de desenvolvimento necessários" que, naturalmente, em seu
conjunto só teriam o sentido de apontar para a maravilhosa era moderna, como ponto
culminante e final do desenvolvimento humano. O facto de Hegel ter considerado esse
estádio já alcançado em plena monarquia constitucional prussiana é prova clara de que
também ele confundia a Idade Moderna ou o capitalismo (que para ele não leva esse
nome, mas merece denominações muito mais pretensiosas, como por exemplo
“espírito do mundo” [Weltgeist]), como fim da história, com a situação real do seu
tempo, ainda não totalmente amadurecida.
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 27/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 28/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 29/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
das duas guerras mundiais e da crise económica mundial (1929-33), não chegou a
representar o século da maturidade de crise e da transformação do capitalismo, mas
sim essencialmente a época de uma segunda onda de "modernização atrasada". Só
então as grandes regiões mundiais da periferia capitalista, a grande maioria da
humanidade, entraram para a história mundial, como previra Marx dezenas de anos
antes.
Esta segunda modernização atrasada dividiu-se em dois movimentos entrelaçados: por
um lado, a ascensão do socialismo de Estado (vulgo capitalismo de Estado) no Leste,
que levou a esboços de um sistema mundial próprio, e, por outro, o movimento de
libertação nacional dos países coloniais do Sul, cuja descolonização e independência
como Estados nacionais burgueses só pôde ser concluída no final do século (em
definitivo com a devolução de Hong-Kong à China). O big bang dessa história
mundial do século XX foi a grande revolução russa de Outubro no fim da I Guerra
Mundial, seguida da revolução chinesa no decorrer da II Guerra Mundial e das
grandes guerras de libertação anticoloniais (Argélia, Vietname, África Austral) nas
décadas do pós-guerra.
Era inevitável que o Marx exotérico, cuja teoria imanente da modernização já se
desvanecera um pouco dentro do movimento social-democrata ocidental e fora
mesclada com clichés das ciências positivistas burguesas, revivesse uma segunda
Primavera na segunda onda histórica da modernização atrasada. Pois, ao entrar no
horizonte global do capitalismo, as regiões periféricas não podiam recorrer apenas às
suas próprias tradições culturais limitadas. Pelo contrário, careciam de uma teoria
ocidental universal, como pano de fundo legitimador que, ao mesmo tempo, enquanto
teoria de legitimação universal voltada para a história mundial capitalista, devia ter
um carácter historicamente oposicionista, para poder ser instrumentalizada na
concorrência da periferia atrasada com os centros do capital já estabelecidos.
O Marx exotérico voltou assim a ser retomado por teóricos como Lenine, Estaline e
Mao Zedong, sendo então adaptado às necessidades da nova corrida histórica na
periferia capitalista. Tais necessidades diferiam das do movimento operário ocidental,
na medida em que não se tratava apenas do reconhecimento dos assalariados num
capitalismo já estabelecido, mas sim da implantação atrasada das próprias categorias
sociais capitalistas, e muito para além das exigências do processo semelhante de
modernização atrasada ocorrido na Alemanha, Itália e Japão do século XIX. Pois, em
primeiro lugar, o atraso no grau de socialização capitalista moderna era muito maior
do que nas anteriores discrepâncias na Europa; em segundo lugar, a "corrida" tinha de
ser realizada num prazo muito mais curto e num nível de desenvolvimento do capital
mundial muito mais elevado; e, em terceiro lugar, isso só podia acontecer numa
concorrência precária com um círculo dominante já global, formado por poderes
centrais capitalistas altamente desenvolvidos e altamente armados.
Nesse contexto, a teoria de Marx sofreu mais uma deformação e redução. Os
momentos esotéricos da crítica categórica já nem surgiam como reflexão filosófica,
fora da realidade e distante das exigências práticas; desapareceram quase totalmente
da discussão, no caminho entre Lenine e os teóricos da libertação nacional. Embora a
relação social com o movimento operário se tenha mantido do ponto de vista formal,
ela reduziu-se praticamente a grupos relativamente pequenos e organizações sindicais,
no contexto de uma industrialização ainda frágil. Os próprios partidos operários
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 30/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 31/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
como uma simples filial, uma espécie de tropa auxiliar da União Soviética, e por isso
não conseguiu aí passar do estatuto de uma nota de rodapé histórica, enquanto
mantinha o seu verdadeiro poder de irradiação nas grandes regiões da periferia
mundial. A social-democracia ocidental, pelo contrário, saturada pela múltipla
participação na administração de seres humanos e aterrorizada com as formas brutas
da ditadura desenvolvimentista do marxismo periférico, aos poucos removeu
completamente o seu marxismo, tendo sofrido após a II Guerra Mundial uma mutação
na sua legitimação e na sua programática, para uma teoria do Estado social keynesiana
fraca, sem retórica de luta de classes nem de revolução: o Marx exotérico tornou-se,
de certo modo, propriedade privada dos retardatários históricos.
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 32/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 33/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 34/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 35/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
infatigavelmente sobre a diferença qualitativa, para ele ainda óbvia, entre o socialismo
real desrealizado e o modo de produção capitalista, embora a identidade qualitativa
tenha ficado provada na prática, pelo facto de esse socialismo só ter podido fracassar
pelos critérios capitalistas porque estes eram também os seus.
Na actualidade delineia-se uma nova frente de retirada da esquerda global, em que se
pretende ligar conceitos do Marx exotérico ("luta de classes", etc.) com elementos da
doutrina económica keynesiana (intervenções parciais do Estado e flanqueamento do
capitalismo pelo Estado social, etc.). À frente dessa tendência, destaca-se o sociólogo
francês Pierre Bourdieu, que proclamou justamente a "defesa da civilização
keynesiana" contra a marcha triunfal do neoliberalismo. Perante a maioria dos
"realistas" ex-esquerdistas que agora concordam cegamente com tudo o que exige o
capitalismo, desde a exigência de sectores de baixos salários até à intervenção bélica
da NATO, este apelo feito com integridade pessoal por Bourdieu à resistência
intelectual e social parece extremamente simpático. Mas esse posicionamento de
oposição de esquerda já não dispõe de nenhuma autonomia histórica, de nenhuma
substância nem de nenhuma perspectiva social.
A iniciativa de Bourdieu, em oposição à dogmática invocação dos mortos dos últimos
"crentes" que vivem fora da realidade, só pode apresentar-se como não dogmática e
nova porque se trata de uma liga ideológica de dois conteúdos antigos e decrépitos
outrora antagónicos. A referência ao Marx exotérico já só aparece aqui como
evocação ritual da luta de classes, permanecendo como retórica de acompanhamento,
enquanto, no tocante ao conteúdo, não se trata de nada mais que uma opaca nostalgia
keynesiana. Assim se repete, por exemplo, na reivindicação desesperadamente
ingénua de um "controlo político dos mercados financeiros transnacionais", aquele
mesmo modelo da época passada, ou seja, a ideia de uma regulação e moderação pela
política estatal das categorias reais capitalistas não abolidas, num mundo que há muito
passou por cima disso. O deficit spending da moderação estatal keynesiana foi
devorado pela inflação dos anos 1970 e 1980, enquanto o controle monetário do
Estado nacional foi derrubado pela globalização. Por isso este modelo já não tem
nenhum teor de realidade dentro do capitalismo. Permanece como reminiscência
ideológica, e só por isso é possível um estranho casamento misto entre Marx e o
keynesianismo, casamento que já fora objecto de escárnio do marxismo dos anos de
1970, ele próprio um eco histórico. Na realidade, o keynesianismo ocidental fracassou
tanto como o capitalismo de Estado do Leste da segunda modernização atrasada.
Só porque o sistema de coordenadas do desenvolvimento e da consciência social
entretanto se deslocou é que esta posição pode aparecer de novo formalmente como
quase "radical de esquerda". Contudo, a esquerda reunida sob este signo para mais um
combate de retaguarda já não se apresenta, na verdade, em seu próprio nome marxista,
mas apenas vai apanhar na lixeira da história os trapos usados e jogados fora pela
economia política burguesa. O facto de não estarmos de modo nenhum perante mais
um retorno do Marx exotérico também pode ser depreendido da constatação de que a
perspectiva de Bourdieu já não se refere ao futuro de um novo impulso de
desenvolvimento capitalista febrilmente discutido, que devesse, como naquele Maio
de outrora, ser presumivelmente ligado a "anticapitalismo", mas apenas ao passado
desaparecido do boom capitalista do pós-guerra, às suas regulamentações do Estado
social e à sua expansão dos serviços públicos.
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 36/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 37/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 38/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
O conceito central do Marx esotérico, que representa essa tematização crítica e assim
a rejeição emancipatória da modernidade, é o conceito de "fetichismo". Marx mostra
aqui que a aparente racionalidade da modernidade capitalista só representa de certo
modo a racionalidade interna de um sistema alucinado objectivado: uma espécie de
crença secularizada em demónios, que se manifesta nas abstracções tornadas tangíveis
do sistema produtor de mercadorias, das suas crises, absurdos e resultados destrutivos
para o ser humano e para a natureza. Na autonomização da chamada economia, na
fetichização do trabalho, do valor e do dinheiro, opõe-se aos seres humanos a sua
própria sociabilidade, enquanto poder alheio e externo.
O escândalo consiste em que essa medonha, fantasmagórica e destruidora
autonomização de coisas mortas e economificadas coagulou numa obviedade
axiomática. Com o seu conceito de fetiche, que ele também estende ao Estado, à
política e à democracia, o Marx esotérico produz o que todo o grande descobridor
produz nas coisas humanas: ele torna estranho, carecido de explicação e falso o
aparentemente simples, o quotidiano, a "dimensão silenciosa" do óbvio.
O Marx esotérico, ao contrário do seu sósia exotérico imanente da modernização,
retira a modernidade da sua posição de rainha da história, não justificando nem
idealizando, como os críticos meramente reacionários da modernidade, as relações das
sociedades agrárias pré-modernas, mas sim inserindo a era moderna no contexto de
uma história social de sofrimentos humanos ainda não suprimida, no horizonte de um
"ainda não" que continua válido.
Quando o Marx clássico examina a história como um todo, no sentido do conceito
hegeliano virado materialista de desenvolvimento e de progresso, fá-lo com o conceito
de "história das lutas de classes", assim projectando, portanto, o processo de
desenvolvimento e imposição do capitalismo para toda a história anterior. Só com o
conceito de fetiche empregado pelo Marx esotérico se torna possível denominar, num
nível teórico de abstracção mais elevado, uma comunidade de todas as formas sociais
até hoje, não simplesmente através de retroprojeções da era moderna: por mais
diferentes que as suas relações possam ter sido, nunca houve sociedades
autoconscientes, que pudessem decidir livremente sobre a utilização das suas
possibilidades, houve sempre apenas sociedades que foram dirigidas por meios
fetichistas dos mais diferentes tipos (rituais, personificações, tradições determinadas
pela religião, etc.). Ter-se-ia de falar aqui de uma "história de relações de fetiche". O
moderno sistema produtor de mercadorias, com a sua economia autonomizada
irracionalmente, representa, portanto, apenas a última forma de fetichismo social,
fustigada pela sua própria dinâmica cega.
Apenas a verdadeira dimensão da crise mundial no século XXI esclarece, finalmente,
a tarefa que aqui se põe. Trata-se, nas próprias palavras de Marx, dito com esta
audácia, não só do fim da história capitalista, mas do problema de suplantar a história
existente até agora em geral, problema comparável, quando muito, com a chamada
revolução neolítica, ou com o revolucionamento da "era axial". Chegou ao fim não só
a época da Guerra-Fria, mas também a história mundial da modernização em geral, e
não apenas essa história especificamente moderna, mas a história mundial de relações
de fetiche em geral.
A pretensa redução de complexidade através da máquina social capitalista, que
sempre representou mais ideologia que realidade, acaba por se transformar em
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 39/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
destruição. Também por isso o salto é tão grande e rodeado de medo. Mas as relações
de crise, que se tornaram reconhecíveis através da sua contínua evolução, reclamam
implacavelmente que onde havia inconsciência social (desde a invisible hand do culto
aos antepassados à invisible hand do mercado capitalista mundial) tem de surgir
consciência social. No lugar de um meio cego, tem de surgir um processo de decisão
social consciente, organizado por instituições autodeterminadas (não estabelecidas a
priori), para além do mercado e do Estado.
Por mais voltas que se dê, não há como esquivar-se de Marx, mesmo se de momento o
"regresso a Marx" já só pode referir-se à crítica radical categórica do fetichismo da era
moderna, uma crítica que tem sido reprimida até aos dias de hoje. E também não
atingiria esse Marx esotérico se, por exemplo, fosse levantada a suspeita de um mau
utopismo da parte dele. Exactamente ao contrário do Marx exotérico da
modernização, que acolheu complacentemente os utopistas no panteão de seus
precursores. A utopia, na história da modernização, pode ser lida sempre como um
apelo ao ideal capitalista (ideológico) perante a má realidade capitalista. A utopia é a
doença infantil do capitalismo, não do comunismo.
Por isso também o Marx esotérico é totalmente não utópico e anti-utópico. A questão
para ele não é o paraíso na Terra, nem a construção de um Homem novo, mas sim a
ultrapassagem dos desaforos capitalistas para com os seres humanos, o fim das
catástrofes sociais produzidas pelo capitalismo. Nem mais nem menos. O facto de isto
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 40/41
23/09/2018 Robert Kurz - Ler Marx! (Índice; Prefácio; Introdução)
só ser possível indo além de toda a história até ao presente, como história de relações
de fetiche, não se deve à arrogância da crítica, mas sim à arrogância do próprio
capitalismo. Mesmo após o capitalismo, continuará a haver doença e morte, desgostos
de amor e gente idiota. Mas não haverá mais pobreza em massa paradoxalmente
criada pela produção de riqueza abstracta; não haverá mais um sistema autonomizado
de relações fetichistas e formas sociais dogmáticas. O objectivo é grande, exactamente
porque se mostra relativamente modesto se comparado com a exaltação utópica, e não
promete nada mais que a libertação de sofrimentos totalmente desnecessários.
(2) RAF (Rote Armee Fraktion, Fracção do Exército Vermelho), grupo armado alemão de
extrema esquerda fundado em 1970.
(3) “Kaufhaus des Westen”, grande centro comercial em Berlim Ocidental que, a partir dos anos
cinquenta do século XX, se tornou o símbolo da abastança e do luxo da RFA contra a penúria da
RDA.
http://obeco-online.org/
http://www.exit-online.org/
http://www.obeco-online.org/rkurz417.htm 41/41