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Na vasta correspondência de Sade, há uma carta em especial, datada de 1791, que seus
intérpretes consideram, em uníssono, uma declaração de princípios. Ou uma “profissão de
fé”, para empregar os termos do próprio escritor, que assim se define para seu advogado:
Em seguida, o marquês expõe suas ideias políticas, dizendo odiar os jacobinos e adorar o
Rei, ao mesmo tempo em que faz questão de anotar seu desprezo pelos antigos abusos e
seu apreço por uma “infinidade de artigos da Constituição”. Longa, a lista de suas
contradições termina com uma questão franca e provocante: “Aí está minha profissão de
fé. O que sou eu agora? Aristocrata ou democrata? Queira dizer-me, advogado, pois
quanto a mim, nada sei.” 2
1
Este texto foi originalmente publicado em A Ideia – Revista de cultura libertária, números 77-80,
Évora (Portugal): Coletivo Libertário, Outono de 2016, pp. 201-205.
2
Sade, Correspondance In OEuvres Complètes du Marquis de Sade. Tomo 11. Paris: Cercle du
Livre Précieux, 1967.
2
“qualidade de homem de letras”, o marquês deixa claro que seus compromissos como
escritor estão acima de qualquer outra obrigação. Ou seja, a inconstância aí afirmada diz
respeito, antes de tudo, à essência do trabalho ficcional, atividade móvel por excelência, já
que ditada pelas leis da imaginação.
Se a carta de 1791 faz eco a uma conhecida passagem da ficção sadiana – “toda
felicidade do homem está na imaginação” –, sua leitura não deixa de sugerir as dificuldades
por que passam os intérpretes de um escritor cuja “maneira de pensar” foi efetivamente
marcada pelo movimento. Em termos literários, convém lembrar, os textos sadianos
valem-se de tal diversidade de opções formais – do romance epistolar ao panfleto político,
do roman noir aos diálogos filosóficos, incluindo escritos inclassificáveis, como é o caso de
Os 120 dias de Sodoma – que se torna realmente impossível catalogá-los neste ou naquele
gênero. Tal pluralidade se repõe no campo das afinidades filosóficas, já que ele trabalha
com as matrizes mais diversas e até contraditórias: ora alinhado aos enciclopedistas, ora
seu mais ferrenho crítico, o autor de A filosofia na alcova funda um domínio próprio de
pensamento, alheio às exigências da coerência conceitual.
Não estranha, pois, que essa mobilidade ecoe igualmente nas interpretações de sua
obra: alguns viram nela uma expressão singular do espírito clássico, outros preferiram
alinhá-la às sinuosidades do barroco, e já houve quem a considerasse surrealista avant la
lettre. A se crer na carta do marquês, essas alternativas seriam todas válidas, uma vez que
cada qual indicaria um pouso desse pensamento indomável, que insiste em afirmar seu
nomadismo. Mas, ainda que sempre se possa descobrir uma nova face de sua vertiginosa
imaginação, essa lista não estaria completa se deixássemos de aludir a um Sade filiado à
sensibilidade romântica, cujo apogeu inclusive coincidiu com a sua maturidade literária.
Afinal, essa é a via privilegiada para se abordar o escritor maldito, subversivo, satânico,
vivendo à margem da sociedade, à qual sua figura se associou de forma definitiva.
3
Por isso, além de indicar mais uma importante afinidade do autor, a persona
romântica que habita seu gênio múltiplo supõe particular interesse na medida em que
autoriza a interpretação de seus escritos tendo em vista as intrincadas relações entre vida e
obra. Escusado dizer que, ao valorizar os contatos entre a produção textual e a instância do
vivido, o Romantismo faz eco ao criador da “Sociedade dos amigos do crime” que, avesso
às abstrações, só validava as ideias quando estas eram colocadas à prova da experiência.
Vale lembrar, pois, que a virada do século XVIII para o XIX testemunhou uma
transformação fundamental na literatura e na arte, por certo antecipando o espírito
romântico, como bem define Renato Janine Ribeiro: “a vida, que antes de apagava e
desfazia ante a obra, vai-se tornando quase tão relevante quanto esta, em artistas que
certamente, como hoje, não passam de uma minoria, mas mesmo assim significativa. Faz
parte, portanto, da obra sadiana a sua vida irrequieta, à beira do crime e da reclusão —
como fazem parte da biografia de Sade seus livros; mais tarde, também será impossível
falar de Gauguin sem a ruptura que ele efetua com o mundo bem-pensante e sua partida
para Taiti, ou de Van Gogh sem a orelha cortada e o suicídio, ou de Toulouse-Lautrec
sem o aleijão”.3
Ora, como continua o ensaísta, tudo isso assume então uma relevância sem
paralelos nos escritores da era chamada clássica, ou talvez barroca: “até o século XVIII a
biografia pode em certos casos ser importante para conhecer o autor, mas ela é apenas
explicativa (como no caso do jansenismo de Pascal e Racine), ao passo que em autores
mais recentes ela adquire uma densidade quase comparável à da obra. Ou, melhor
dizendo: ela é inquietante como a obra”. E esta é, seguramente, a segunda característica
que se descortina desde Sade: “a presença da vida na obra, e por vezes da obra na vida,
3
Renato Janine Ribeiro, “Apresentação” In Eliane Robert Moraes, Sade: a felicidade libertina, São
Paulo: Iluminuras, 2015, p. 15.
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não é de ordem neutra. Não se limita a esclarecer, a sanar pontos obscuros. Ao contrário,
amplia até a desmedida o obscuro, o perturbador. Traz o espectro da loucura ou, pelo
menos, o dos limites fraturados da razão”. 4
Ser libertino, para um nobre francês setecentista, não era então motivo de surpresa.
Pelo contrário: já desde o final do século XVII as relações entre nobreza e libertinagem se
consolidavam numa corte que, dando ao prazer o estatuto de dever e de arte, aplicava-se
de forma exemplar na pesquisa dos deleites sensuais. Ainda que tais relações tenham
4
Idem, Ibidem, p. 15.
5
Sade, Aline et Valcour, OEuvres complètes, Paris: Pauvert, 1986, Tomo 4.
5
marcado intensamente o reinado de Luís XIV, não foi o monarca a testemunhar suas
ocorrências mais ousadas e sim aqueles que sobreviveram à sua morte e assistiram, durante
o período da Regência, ao espetáculo da devassidão no poder.
Para tanto, ele elegeu como personagem central de sua ficção a figura do libertino.
Por certo, entre seus contemporâneos não havia quem melhor expressasse o egoísmo
aliado ao prazer na crueldade. Mas o marquês não se contentava em ser apenas um
historiador da libertinagem: sua literatura filosófica, a exemplo de outras obras do Século
das Luzes, pretendia examinar o homem em profundidade, conhecê-lo nas singularidades
mais obscuras, dissecá-lo se necessário. Sade levou a extremos os ideais da razão
iluminista, dotando seus devassos de uma liberdade absoluta para realizar a mais acabada
fantasia sobre os limites da condição humana.
chegou a sonhar com uma simples virtude, como ainda as considerava com horror
e muitas vezes afirmava que, para ser verdadeiramente feliz neste mundo, o
homem deve, além de entregar-se a todos os vícios, nunca se permitir uma virtude,
e que não é apenas uma questão de fazer sempre o mal, mas também, e acima de
tudo, de nunca fazer o bem”.6
É curioso pensar que o homem que concebeu tal grau de liberdade individual,
desembocando na apologia do isolamento, tenha escrito sua obra, quase toda, na prisão.
Aos treze anos passados em Vincennes e na Bastilha, somam-se outros quatorze de
confinamento, boa parte deles vivida no sanatório de Charenton, onde morreu em 1814.
Seria fácil concluir, como muitos já fizeram, que a literatura sadiana é um reflexo das
6
Sade, Les 120 Journées de Sodome, In OEuvres complètes, Paris: Pauvert, 1986, tomo 1.
7
Sade, La philosophie dans le boudoir , OEuvres complètes, Paris: Pauvert, 1986, tomo 3.
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condições nas quais ela foi produzida. Seria fácil e confortador dizer que a liberdade sem
limites de seus devassos nada mais é que o candente protesto de um homem privado de
sua própria liberdade.
8
Desenvolvi o tema em Lições de Sade – Ensaios sobre a imaginação libertina, São Paulo:
Iluminuras, pp. 69-74.
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particular na “vontade geral da nação”, reduzindo o indivíduo ao cidadão. Por isso mesmo,
fica difícil acatar outro mal entendido, este ainda mais grave, que faz do marquês um
precursor da suposta “liberdade sexual” contemporânea. Isso porque, se ele insistia na
realização plena das fantasias eróticas – para além de qualquer limitação de ordem moral,
política ou social – era sobretudo por acreditar na irredutibilidade do desejo.
9
Simone de Beauvoir, “Deve-se queimar Sade?”, in Jamil Almansur Haddad (org.), tradução de
Augusto de Sousa, Novelas do marquês de Sade, São Paulo, Difel, 1961.
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