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Revista Portuguesa de Filosofia

O Desafio Metodológico de Husserl, o Exercício Generalizado da "Epoché" e o Estatuto


Transcendental da Objetividade Fenomenológica
Author(s): CARLOS DIÓGENES C. TOURINHO
Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 71, Fasc. 1, Fenomenologia e Filosofia Prática /
Phenomenology and Practical Philosophy (2015), pp. 11-25
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
Stable URL: http://www.jstor.org/stable/43410688
Accessed: 25-11-2015 19:20 UTC

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Revista deFilosofía,
Portuguesa Vol.71(1),p.11-25
2015,
©2015byRevista Allrights
deFilosofia.
Portuguesa reserved.
1
DOI10.17990/RPF/2015_71_1_001

O Desafío Metodológico de Husserl, o Exercício


Generalizado da Epoche e o Estatuto Transcendental
da Objetividade Fenomenològica*

CARLOS DIÓGENES C. TOURINHO**

Resumo
O presente artigoabordao desafioque conduzHusserlà elaboraçãode uma estratégia
metodológica parainiciaro projetode fundamentação da filosofia
comociênciade rigor.
Analisaos principais
aspectos bemcomoo seualcanceprincipal:
destaestratégia, a abertura
do campofenomenal e a relaçãointencional
comos objetos.Porfim,o artigoapresenta
o
estatuto
transcendental destanovadimensão da relaçãoobjetivacomo mundo.
: epoche,
Palavras-chave Husserl,mundo, transcendental
objetividade,

Abstract
Thepresent paperdealswiththechallenge
thatleadsHusserltodevelopinga methodological
thatmight
strategy providethefoundationofphilosophy
as rigorousscience.Itanalyzes
the
mainaspectsofthisstrategy,
mainly,theopeningofthephenomenal field
andtheintentional
withobjects.
relationship itpresents
Finally, thetranscendental
statusofthisnewdimension
ofobjectiverelation
withtheworld.
Keywords: epoche,Husserl, world
transcendental,
objectivity,

1. O desafio metodológico de Husserl

ode-se dizer que, a partir das primeiras décadas do século XX, ao


anunciar, com a "nova fenomenologia" [neuen Phänomenologie], a
P partir de 1907 e, definitivamente,de 1913, a especificidade de um
novo modo de consideração, bem como de um metodo de evidenciação do
mundo, Edmund Husserl (1859-1938) estaria diante do seguinte desafio
metodologico: ao tomar como ponto de partida a relação entre a consci-

*0 presentetextofoiapresentado
numaconferenciarealizadanoXIXSimposio deFilosofia
Moderna e Contemporâneada Universidade
do Oestedo Paraná(UNIOESTE/ Toledo-PR,
Brasil),nodia9.10.2014.
**DoutoremFilosofia Universidade
(Pontifícia CatólicadoRiodeJaneiro
/PUC-Rio). Professor
doDepartamento deFilosofia
e doPrograma
dePós-Graduação emFilosofia
da Universidade
FederalFluminense - UFF(Niterói-RJ
/Brasil).Coordenadordo GTde Fenomenologiada
AssociaçãoNacionaldePós-GraduaçãoemFilosofia
/ANPOF.
E-mail:cdctourinho@yahoo.com.br

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Q RPF 2015
Fasc.1 ļ 11-25

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12 Carlos Diógenese. Tourinho

ência empírica e o mundo natural, ao constatar que tal relação nos impõe,
obrigatoriamente, limitações (na medida em que tudo o que se mostra
empiricamente se mostra "parcialmente", revelando-nos apenas "traços"
ou "esboços" da coisa percebida a partir de uma dada perspectiva), ao
considerar tudo isso, qual a especificidade do recurso metodológico a
ser adotado, sem que fosse negada a existência do mundo, para que este
mesmo mundo pudesse "aparecer verdadeiramente", isto é, para que ele
pudesse reaparecer em sua "totalidade", revelando-se, portanto, como
"fenómeno"? Eis o desafio que se impõe a Husserl: a exigência de adotar
uma estratégia metodológica por intermédio da qual pudesse se abrir um
"campo" [ Feld], especificamente,o que poderíamos chamar, num primeiro
momento, de "campo fenomenal", em cuja imanência tudo aquilo que
aparecesse pudesse, então, se dar originariamentee, portanto,com eviden-
ciação máxima, como "coisa inteira" - ou como o próprio Husserl prefere
nos dizer,no § 3 de Ideias /,pudesse aparecer em sua "ipseidade de carne e
" "
osso" [in seiner leibhaften SelbstheitY- livre das limitações que a relação
empírica com o "mundo circundante" [Umwelt] insiste em nos impor.
Se Husserl se depara com tal desafio metodologico e se vê na
iminência de elaborar uma estratégia para superá-lo e porque elege, em
seu projeto filosóficoanunciado sob o nome de "fenomenologia transcen-
dental", a intenção primária de constituira filosofiacomo uma "ciência de
rigor"- ambição que segundo o próprio autor acompanha a filosofiadesde
as suas origens2- de constituí-la como uma ciência primeira assentada
em fundamentos absolutos e que serviria de referência para as demais
ciências. Tal intenção faria com que a busca por tais fundamentos fosse
de uma ordem tal que obrigasse Husserl a não se contentar com "eviden-
ciações parciais" obtidas através da relação empírica com o mundo, a
não se contentar,portanto, com nenhuma evidência que ficasse aquém de
uma "evidenciação absoluta", própria do que se mostra como dado origi-
nário no campo fenomenal que não é senão o próprio domínio da cons-
ciência intencional. Nas primeiras décadas do século XX, Husserl partia,
então, da ideia de que para fazer da filosofiauma ciência rigorosa, para
construir uma filosofialivre de todas as divergências, livre da ameaça de
um ceticismo que, segundo ele, seria nocivo à própria filosofia,fazia-se

1. Cf.,Husserl,E. -Ideen zu einerreinenPhänomenologie undphänomenologischen


Philosophie. ErstesBuch:Allgemeine Einführung TheHague:
in diereinePhänomenologie.
Mārtiņus Nijhoff,[1913]1976,§ 3,pp.14-15.
2. "Desdeo seucomeço,a filosofiasempretevea ambiçãode serumaciênciarigorosa".
Cf.,Husserl,E. - Philosophie als strenge Frankfurt:
Wissenschaft. Klostermann,[1911]
1965,p. 7.

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Fasc.1

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de Husserl
O DesafioMetodológico 13

necessário alicerçar a filosofiaem bases sólidas, apoiando-a, para usar os


termos de Husserl, em evidências absolutas (ou "apodíticas"), ou seja, em
uma "ausência absoluta de dúvida" [absolute Zeifellosigkeit ].3 Tal anseio
por uma ausência absoluta de dúvida se refieteclaramente nas palavras do
próprio Husserl, em suas anotações de diário datadas de 25 de setembro
de 1906: "Os tormentosda obscuridade, da dúvida que vacila de um para
o outro lado, já bastante os provei. Tenho de chegar a uma íntima firmeza
[...]".4 O ideal de constituição da filosofiacomo ciência rigorosa estaria,
portanto,diretamenteligado à busca de tal fundamentação e, com isso, ao
anseio husserliano em alcançá-la.
Mas, se o ponto de partida da fenomenologia é a relação empírica
do homem - enquanto ente psicofisico, o homem efetivo,um objeto real
entreoutros - com o mundo natural e se tal relação nos impõe constantes
limitações (na medida em que perceber empiricamente algo consiste em
perceber o que quer que seja "parcialmente",em uma espécie de "misto de
visto e não visto"), considerando ainda que Husserl não visa, em momento
algum, "negar a existência do mundo", pois, se assim o fizesse,estaria, em
seus próprios termos, no § 32 de Ideias /, agindo como um Cético ou um
Sofista,quais as condições a serem contempladas pela estratégia metodo-
lógica husserliana para que, ao menos, se pudesse iniciar este projeto de
constituição da filosofiacomo ciência de rigor? Afinal,de algum modo,
levar adiante o referidoprojeto filosóficorequereria o êxito em alcançar
tais fundamentos,anseio husserliano que seria, por sua vez, indissociável
da possibilidade de que as coisas pudessem se mostrar originariamente,
ainda que sob outro modo de existência - o de existir(ou "in-existir")5sob
o modo de "coisa intencionada" na consciência - em evidenciação máxima
e, portanto, a possibilidade de que as coisas pudessem se mostrar "por si
mesmas, naquilo que lhes é próprio" tal como aparecem à consciência.
Tal desafio não poderia deixar, conforme dissemos, de impor a
Husserl a exigência de elaborar uma estratégia metodológica que contem-
plasse, ao menos, as seguintes condições: (1) tomar como ponto de partida
a relação empírica com o mundo circundante,antes mesmo que houvesse,

3.Cf., Husserl,E . - Cartesianische


Meditationen und PańserVorträge.Husserliana
(BandI). DenHaag:Mārtiņus [1931]1973,§3, p. 55.
Nijhoff,
4. Conferir o textode apresentaçãoe introduçãode WalterBiemelà ediçãoalemã
das "CincoLições".Cf.,Husserl,'E.-Die IdeederPhänomenologie - FünfVorlesungen.
Husserliana(BandII). DenHaag:Mārtiņus [1907]1950,p. VIII.
Nijhoff,
5. Trata-seaí de uma"in-existência" masno sentido
não no sentidode "nãoexistir",
de "existirem": o objetointencionado "in-existe"como tal no própriopensamento.
A in-existência
intencional de umobjetopresente emtodoato mentaldeveser,portanto,
entendida em termosde uma "objetividade imanente" [¡immanenten Gegenständlichkeit].

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por parte de uma consciência ingènua, qualquer tematização em torno do


mundo que, por sua vez, segundo Husserl, seria permanentemente vivido
como uma "tese" (mais especificamente,como "tese do mundo");6 (2) cons-
tatar as limitações que tal relação empírica obrigatoriamente nos impõe
no que se refere ao grau de evidenciação de tudo aquilo que se mostra
para uma consciência empírica; (3) exercer sobre o mundo um procedi-
mento cuja especificidade consistiria em renunciar,sem negar a existência
do mundo, a um modo ingénuo de consideração do mundo para que o
mesmo pudesse reaparecer em sua "totalidade", livre das tais limitações
que a relação empírica insiste em nos impor
Se a evidenciação parcial - poder-se-ia dizer "perspectivista"ou "exis-
tencial" - proveniente da relação empírica com o mundo não seria, aos
olhos de Husserl, suficiente para fundamentar a filosofia como ciência
rigorosa, ao atender as condições acima, a estratégia metodológica
husserliana elaborada para superar o desafio de fazer com que as coisas
(sob o modo de existência de "coisas intencionadas") pudessem aparecer
originariamente, implicaria em um deslocamento da atenção para uma
"nova região", sobre a qual a própria fenomenologia lançaria o seu olhar.
Uma vez apercebida, tal região revelaria, em sua imanência, a relação
intencional da consciência com tudo aquilo que aparecesse nela e para
ela como "fenómeno". Daí Husserl dizer, no § 33 de Ideias /: "Mantemos,
pois, o olhar firmementevoltado para a esfera da consciência e estudamos
o que nela encontramos de modo imanente".7 Ao se abrir pelo exercício
desta estratégia metodológica, este tal "campo fenomenal" revelaria,
enquanto campo de uma "objetividade imanente", uma nova dimensão da
relação objetiva com o mundo no seio da qual tudo aquilo que aparecesse

6. O pontode partidade Husserlé a tesesegundo a qualo que chamamos de "mundo"


encontra-se aí, diantede nós,tudoistoque,da maneiraa maisimediatae direta,nos é
reveladoatravésda experiência sensível:as coisas situadasem uma dimensãoespaço-
-temporal,cada umadas quaiscomas suaspropriedades, relações,etc.Trata-se
do mundo
que nos cerca,constituído de entesmundanos, frente aos quaispodemostomaratitudes
variadas,quernos ocupemoscomelesquernão. Vivenciamos, portanto,a todoinstante,
a chamada"Tesedo Mundo".Mas,se alémda vivência dessatese,fazemosuso da mesma,
passamos, então,a exercer o queHusserl chamoude"atitude natural"
[;natürliche ].
Einstellung
Na atitudenatural, atribuo a mimumcorpoemmeioa outroscorpose meinsironomundo
atravésda experiência sensível.ParaHusserl, tantoa consciênciado sensocomumquanto
a consciência das ciênciasditas"positivas" encontram-se, aindaque de modosdistintos,
mergulhadas na atitudenatural, cujo exercícioexpressaa relaçãoentreuma consciência
espontânea (empírica ou psicológica)
e o mundonatural, reveladoempiricamente paraessa
consciênciaemsuafacticidade.
7. Cf.,Husserl,'E.-Ideen zu einerreinenPhänomenologie undphänomenologischen
Philosophie,ed.cit.,§ 33,p. 68.

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de Husserl 15

como "objeto" pudesse, então, se mostrar em sua "pureza irrefutável"e,


assim, mostrar-secomo "fenómeno". Tratar-se-ia,portanto, como nos diz
Husserl, do campo de uma nova ciência - a fenomenologia. Examinemos,
mais precisamente, então, a peculiaridade desta tal estratégia metodo-
lógica elaborada por Husserl.

2. A epoche fenomenologica e o seu exercício generalizado

Como estratégiapara o alcance de evidenciações apodíticas, condição


para a fundamentação da filosofiacomo ciência rigorosa, Husserl opta pelo
exercício da epoche,isto é, pelo exercício de "suspensão de juízo" em relação
à posição de existência das coisas. Husserl recupera, já nas "Cinco Lições"
(lições proferidas em abril-maio de 1907) e, posteriormente,em Ideias I
(1913), o conceito de epoche do ceticismo antigo, porém, para pensá-lo
não como um modus vivendi (como um princípio ético a ser praticado
como "hábito virtuoso") - conforme propunha o ceticismo pirrónico no
período Helénico - mas sim, como um recurso metodológico. Com o exer-
cício da epoche, abstemo-nos de tecer considerações acerca da posição
de existencia das coisas. Nos termos de Husserl, promovo a "colocação
da atitude natural entre parênteses", a facticidade do mundo fica "fora de
circuito".Ao suspender o juízo em relação à facticidade do mundo, eu não
deixo de vivenciar a "tese do mundo", também chamada por Husserl de
"tese natural" [natürlichenThesis] - segundo a qual o que chamamos de
"mundo" encontra-se simplesmente aí, diante de nós, tudo isto que, da
maneira a mais imediata e direta, nos é revelado através da experiência
sensível. No entanto, apesar de vivenciar a "tese do mundo", como diz o
§ 31 de Ideias /, não faço mais uso dessa tese, procuro mantê-la fora de
circuito: "[...] a tese é um vivido, mas dele não fazemos nenhum uso [...]".8
Tal renúncia implica, de certo modo, em uma espécie de "conversão filo-
sófica", por meio da qual adotamos um novo procedimento em relação
ao mundo. Renunciamos a um modo ingénuo de consideração do mundo
(no qual se encontram mergulhadas tanto a consciência do senso comum,
quanto a consciência das ciências positivas), no qual o mundo aparece,
em sua versão empírica, como "mundo de fatos", para reavê-lo como
"fenómeno" no campo da consciência intencional, através do exercício da
epoche fenomenològica que, segundo Husserl, "[...] me impede totalmente
de fazer qualquer juízo sobre existência espaço-temporál".9 Daí o próprio

8. Cf.,ibidem,
§ 31,p. 63.
9. Cf.,ibidem,
§32,p. 65.

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autor afirmar,na conclusão de suas Meditações Cartesianas (1931), ao final


do § 64, que: "É preciso primeiro perder o mundo, graças a epoche, para
recuperá-lo seguidamente na auto-reflexãouniversal."10
Mas, se a epoche husserliana assume um papel decisivo enquanto
estratégia metodológica (ou "operação necessária") que, nos termos de
Husserl, no § 33 de Ideias /, nos permite o acesso a esta nova região sobre
a qual a fenomenologia - enquanto uma "nova ciência" - irá concentrar
o foco de suas investigações, através de uma atitude cuja especificidade
consistiria em elucidar, determinar e distinguiro sentido íntimo de tudo
aquilo que se revela, originariamente, como um "dado" na imanência
da consciência intencional, é preciso dizer também que tal estratégia ou
operação deverá obedecer a uma certa "radicalização", ou seja, a uma
peculiar generalização, obrigando Husserl a exercê-la, portanto, a partir
de passos sucessivos com níveis de generalidade cada vez maior, visando,
fundamentalmente,com tal estratégia, eliminar quaisquer possibilidades
de dúvidas e incertezas em relação aquilo que aparece para a consciência.
Como nos diz Husserl, no § 32 de Ideias /: "Em lugar do ensaio
cartesiano de dúvida universal, nós poderíamos fazer surgir agora a
epoche universal."11Neste sentido, no que se refere à estratégia meto-
dológica adotada, Husserl se encontra, até certo ponto, intimamente
determinado pela filosofiacartesiana. No § 2 de Meditações Cartesianas ,
Husserl afirma-nos que: "Desenvolveremos as nossas meditações ao
modo cartesiano, como filósofosque procuram pelos fundamentos mais
radicais [...]". 12Husserl busca em Descartes esta inspiração, o que fez
da fenomenologia uma espécie de "herdeira da modernidade" em pleno
século XX. Nos termos de Husserl, "poder-se-ia quase chamá-la um neo-
-cartesianismo [...]". 13Porém, faz-se necessário ressaltar que a radicali-
zação da qual resultou a fenomenologia transcendental somente se tornou
possível a partir de uma certa superação da filosofiacartesiana, ou como
prefere Husserl, no § 1, logo no início da Introdução de suas Meditações :
"[...] devido a um desenvolvimento radical de temas cartesianos".14
Afinal,era preciso ir além da certeza do cogito, da chamada "evidência
da cogitado ", do que Descartes apenas intuíra sem, no entanto, adentrar,
deixando de explorar as "riquezas" de sua grande descoberta, não apre-

10. Cf.,Husserl,E. - Cartesianische


Meditationen
undPariser ed. cit,,p. 183.
Vorträge,
11. Cf.,Husserl,E.- Ideenzu einerreinen und
Phänomenologie phänomenologischen
ed.cit.㤠32,p. 65.
Philosophie,
12. Cf.,Husserl,E. - Cartesianische
Meditationen
undPariser ed.cit㤠2,p.48.
Vorträge,
13. Cf.,ibidem,
§ 1,p. 43.
14. Cf.,ibidem.

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O DesafioMetodológico
de Husserl 17

endendo o verdadeiro sentido e, consequentemente, não ultrapassando


os portais da genuína filosofia transcendental. Daí o próprio Husserl
comparar humoristicamenteDescartes a Colombo, em um texto dedicado
à ideia kantiana de "filosofiatranscendental",no primeiro volume de sua
Filosofia Primeira (1923-1924): "também este fez uma grande descoberta
- a descoberta dum novo continente,mas não penetrou no alcance dela,
pois julgou ter descoberto apenas um novo caminho da velha índia".15
Afinal,em ambos os autores, encontramos o anseio de "busca por funda-
mentos" (anseio que poderia ser expresso nos seguintes termos: "reforma
total da filosofiapara fazer desta uma ciência de fundamentosabsolutos").
Além disso, encontramos, tanto em um quanto em outro, a aceitação de
um "recurso cético" como estratégia metodológica. Enquanto Descartes
adota, em suas Meditações Metafísicas ([1641] 1642), nos parágrafos 3 a 9
da "Meditação Primeira", a chamada "dúvida hiperbólica" (sistematizada
e generalizada), Husserl exerce, a partir de 1907 e, definitivamente,de
1913, a epoche fenomenologica. Ambos procuram, com isso, radicalizar
o recurso adotado, generalizando-o em níveis crescentes de intensidade.
Enquanto Descartes inaugura, no § 4 da "Meditação Segunda", a ordem
das razões, apreendendo intuitivamenteuma primeira certeza imune à
dúvida cética, especificamente,o que se convencionou chamar de "certeza
do cogito" - nos termos do § 4 da referida Meditação: Je suis, je exist16-
ao generalizar a epoche, conformeveremos, Husserl vai além da chamada
"evidência da cogitatio", deslocando-nos a atenção para o domínio de
uma imanência intencional que não é senão o próprio campo fenomenal,
domínio da consciência intencional (porém, não de uma consciência
empírica, mas sim, de uma consciência "pura" ou "transcendental",inde-
pendente de - e anterior a - toda descrição psicológica). Se em Descartes
nos deparamos com a apreensão intuitivada certeza do cogito e o que ela
"implica" dedutivamente na ordem das razões, em Husserl, a fenomeno-
logia investigaránão o que o cogito implica, mas o que ele "inclui". Porém,
como se notará, tratar-se-áde um cogito transcendental. Afinal,como o
próprio Husserl nos diz, logo na Introdução de Meditações Cartesianas
(1931), a fenomenologia somente se tornou possível a partirde uma radi-
calização de temas cartesianos. Vejamos, então, mais detalhadamente, as
etapas da generalização desta epoche fenomenologica.

15. Cf.,Husserl,E. - "Kantetl'idéedela Philosophie


Transcendantale".In:Philosophie
première. 1923-1924:
Histoire critiquedesidées.Appendice.
3.aed. Paris:PUF,[1924]1970,
p. 340,CollectionEpimethée.
16. Cf.,Descartes,R.-Les Méditations Paris:Bordas,[1642]1987,§4,
Métaphysiques.
p. 19.

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Inicialmente, como nos mostram as "Cinco Lições", o exercício da


epoche se lança sobre tudo o que é transcendente, no sentido do que se
encontra fora do ato cognitivo e, portanto,do que não se encontra contido
na própria vivência cognoscitiva. Nos termos de Husserl: "[...] esta trans-
cendência pode, por um lado, querer dizer que o objeto do conhecimento
não está contido efetivamenteno ato de conhecimento [...]". 17Desloco a
atenção para o que se revela no interiorda cogitado , para o que é viven-
ciado por mim enquanto sujeito empírico (ou psicológico). Encontro-me
continuamente como alguém que percebe, representa,pensa, sente, deseja,
etc. Portanto, a atenção é deslocada do que é "transcendente" (no sentido
do que se encontra fora da minha vivência cognoscitiva) para o que é
"imanente" (para o que se revela dentroda minha vivência). Há aqui uma
espécie de "redução" que promove a passagem do que é transcendente
(do que se encontra "fora de mim") para o domínio de uma imanência
que poderíamos chamar de "imanência real" (ou psicológica), ou seja, para
o que se revela em mim, a partir das minhas vivências, enquanto sujeito
psicológico. Em outras palavras, posso duvidar da posição de existência do
que se encontra fora de mim; só não posso duvidar de que estou tendo esta
vivência no exato momento em que ela ocorre. Eis o que Husserl designará,
na segunda lição de A Ideia da Fenomenologia, sob o título de "evidência da
cogitatio" [Evidenz der cogitation Portanto, segundo Husserl, uma consi-
deração breve, e ainda inicial, dos conceitos de "imanência" [Immanenz]
e de "transcendência" [Transzendenz] permitirá ao iniciante conceber o
imanente como o que "está em mim" e o transcendente como o que se
encontra "fora de mim".19
Mas Husserl - impulsionado pelo projeto de fundamentação da filo-
sofia como ciência rigorosa - vai além da evidência da cogitatio ao gene-
ralizar a suspensão de juízo, afirmando-nosque mesmo a nossa vivência
psicológica deverá cair sob o golpe da epoche fenomenologica, pois tal
vivência é a vivência de um "sujeito empírico" - de um ente psicofisico,
objeto de estudo da ciência psicologica - e, portanto, encontra-se inserido
em meio a outros entes mundanos, submetido, da mesma forma, a uma
dimensão espaço-temporal. A vida psíquica de que trata a Psicologia,
sempre se concebeu e é concebida como vida psíquica no mundo.
Sendo assim, Husserl defende o exercício generalizado da epoche em
relação aos fatos,ao eu psicológico que os vivencia e as próprias vivências
desse eu. Tal radicalização da epoche é motivada pela exigência de que a

17. Cf.,Husserl,E. - DieIdeederPhänomenologie,


ed.cit.,p. 35.
18. Cf.,ibidem,
p. 33.
p. 5.
19. Cf.,ibidem,

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Fasc.1

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O DesafioMetodológico
de Husserl 19

imanência - enquanto "imanência psicológica" e, portanto, considerada


como "acontecimento real" [¡reales Vorkommnis] - fosse despojada de todo
o resquício de transcendencia que em si mesma pudesse ainda conservar.
O transcendenteserá entendido agora não apenas como o que se encontra
fora da vivência intelectiva, mas sim, como o domínio de onde não se
pode eliminar por inteiro a possibilidade da dúvida em relação à posição
de existência das coisas e do próprio eu que as vivencia empiricamente.
O transcendentepassa a ser,neste segundo sentido, nos termos de Husserl,
entendido como "conhecimento não-evidente",como fontede dúvidas e de
incertezas, porém, abrangendo agora o eu empírico em sua relação com o
mundo natural.20
Constata-se, então, que o exercício generalizado da epoche fenome-
nologica impõe-nos, obrigatoriamente,variações no sentido do que vem a
ser,em Husserl, o "transcendente":se inicialmente consiste em tudo aquilo
que se encontra fora de nós (especificamente, de nossos vividos psico-
lógicos), a radicalização da epoche abrangerá todo o domínio empírico-
-naturalque, como tal, não elimina inteiramentea possibilidade da dúvida
em relação à posição de existência das coisas. Husserl pergunta-nos,então,
ao elevar a epoche fenomenologica a um grau máximo de radicalização, no
§ 33 de Ideias /: "O que pode, pois, restar,se o mundo inteiro é posto fora
de circuito,incluindo nós mesmos com todo nosso cogitare?".21
É somente a partir desta pergunta resultante da radicalização da
epoche, que se abrirá, definitivamente,para Husserl, uma dualidade
ontologica fundamental, que coloca, de um lado, o domínio empírico-
-natural sobre o quai se lança a epoche, enquanto domínio transcendente
de dúvidas e de incertezas, e de outro lado, o campo fenomenal que não é
senão o próprio domínio da consciência intencional, em cuja imanência
tudo aquilo que se mostra,sob o modo de "coisa intencionada" e, portanto,
Como cogitatum,se revela apoditicamente em seu sentido originário. Daí o
próprio Husserl dizer, no § 20 de Ideias /, em tom de uma "ironia séria",
que se por "positivismo"entendemos o esforço de fundaras ciências sobre
o que é suscetível de ser conhecido de modo originário,nós é quem somos
os verdadeiros positivistas!22No seio desta autêntica imanência, do que se
mostra na auto-reflexãoda consciência, dar-se-á uma nova dimensão da
relação objetiva com o mundo, que não é propriamenteempírica, mas sim

20. Cf.,ibidem, p. 35.


21. Cf.,Husserl,E. Ideenzu einerreinenPhänomenologie
undphänomenologischen
Philosophie,ed.cit.,§ 33,p. 66.
22. Cf., ibidem, §20,p. 45.

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"transcendental". Vejamos, então, o estatuto transcendental de tal objeti-


vidade fenomenologica.

3. O estatuto transcendental da objetividade fenomenologica

Pode-se dizer que a ampliação da ideia de "auto-reflexão da cons-


ciência 'assume um papel de suma importância no projeto husserliano
da fenomenologia transcendental. Afinal, a fenomenologia -tal como
Husserl a concebe - somente se tornou possível por uma superação do
que poderíamos chamar de uma "fenomenologia meramente empírica" da
consciência. Conformevimos, o exercício generalizado da epoche fenome-
nologica submete à suspensão de juízo não apenas a posição de existência
de tudo aquilo que se encontra fora da vivência cognoscitiva do mundo,
mas também a posição de existência do próprio homem como ente psico-
-físico situado em meio a outros entes mundanos, objeto de estudo da
ciência psicológica, bem como de suas vivências empíricas. Portanto, para
além de uma reflexividade meramente psicológica, o exercício genera-
lizado da estratégia metodológica adotada pela fenomenologia promoveria
o deslocamento da atenção para a esfera de uma auto-reflexão transcen-
dental dentro da qual e a partirda qual os objetos - enquanto idealidades
meramente significativas- seriam apreendidos e constituídos intuitiva-
mente. Tal ampliação desta auto-reflexão da consciência remete-nos, em
Husserl, para a influência que a leitura de Kant exercerá, sobretudo, a
partir da primeira década do século XX, sobre o projeto filosóficohusser-
liano (A despeito de consideráveis diferenças nas concepções funda-
mentais entre os dois autores, tais diferenças não excluiriam, nos termos
de Husserl, no § 16 de Ideias /,uma "íntima afinidade" entre eles).23
Trata-se da ampliação da ideia leibniziana de "apercepção" (derivada
do francês s apercevoirde), da qual resulta, em Kant, já na primeira edição
de sua Crítica da Razão Pura , em 1781, a distinção entre uma "autocons-
ciência empírica" (ou "psicológica") e uma "autoconsciência transcen-
dental". Tal ampliação kantiana encontrar-se-á,de certo modo, presente
na fenomenologia husserliana devido às influências que a leitura de
Kant exerceu sobre Husserl, sobretudo, a partir de 1907. Conforme nos
lembra o editor alemão Walter Biemel, em sua introdução ao texto das
"Cinco Lições": "Husserl, nesta época, ocupou-se detidamente de Kant;
desta ocupação veio-lhe a ideia da fenomenologia como filosofia trans-

§ 16,p. 37.
23. Cf.,ibidem,

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O DesafioMetodológico
de Husserl 21

cendental, como idealismo transcendental [...Y-24No § 57 de Ideias I, tais


influenciaskantianas se fazem notar,a partirdo momento em que Husserl
nos descreve o lugar reservado, bem como o papel exercido pelo eu puro
(ou transcendental) no fluxo dos vividos. Afirma-nosHusserl que, como
resultado da radicalização da epoche, nos vividos que permaneceram
como resíduo desta redução fenomenologica, tomando a forma explicita
do cogito, neles não encontramos o eu puro em parte alguma, nem como
um vivido entre outros, nem tampouco como parte própria de um vivido
qualquer. Apesar disso, afirma-nosque, nos diversos vividos, este mesmo
eu puro "parece estar ali de maneira constante e até necessária".25Em cada
vivido que chega e escoa, o olhar deste eu puro se dirige ao objeto "através"
de cada cogito atual. "O raio de luz desse olhar muda a cada cogito, ilumi-
nando-se de novo a cada novo cogito e desaparecendo junto com ele".26
O eu puro, porém, adverte-nos Husserl, "permanece idêntico". Husserl
deixa-nos claro que, em princípio, toda cogitatiopode variar,pode ir e vir;
em contrapartida, o eu puro parece ser algo necessário por princípio e,
na medida em que é absolutamente idêntico em toda mudança real ou
possível dos vividos, ele não pode, em sentido algum, ser tomado por parte
ou momento real dos próprios vividos. Em linguagem kantiana, Husserl
afirma-nos,então, a propósito do papel exercido por este "eu penso" trans-
'
cendental, que: "O 'eu penso deve poder acompanhar todas as minhas
representações".11 Trata-se, portanto, de um eu penso que não flui com as
suas vivências (antes sim, as acompanha permanentemente), fato que
ressalta a oposição e, ao mesmo tempo, a união entre este eu puro e as
vivências nas quais permanece o mesmo.
Apesar de se expressar em linguagem kantiana no que se refere à
doutrina do eu puro, Husserl apresenta-nos uma concepção própria do
que seja o "transcendental". Para Kant, o "transcendental" remete-nos
para o que não deriva da experiência e, portanto,para o que não pode ser
tomado em termos de dados empíricos, não deixando, contudo, de estar
relacionado à própria experiência como condição de possibilidade do
legítimo conhecimento: "Transcendental significa possibilidade ou uso a
priorido conhecimento".28Daí Kant afirmar:"Chamo transcendentala todo

24. Cf.,Husserl,E. - DieIdeederPhänomenologie,


ed.cit.,p. VIII.
25. Cf.,Husserl,E. Ideenzu einerreinenPhänomenologie undphänomenologischen
ed.cit.,§ 57,p. 123.
Philosophie,
26. Cf.,ibidem.
27. Cf.,ibidem.
28. Cf.,Kant,1.-KritikderreinenVernunft.Leipzig:VerlagvonFelixMeiner,
[1781/
1787]1994,A56/B 80,p. 101.

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o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso


modo de conhecê-los, na medida em que este deve ser possível a priori".29
Já em Husserl, o transcendental refere-senão à possibilidade do legítimo
conhecimento, mas ao próprio domínio do conhecimento, domínio de
uma autêntica objetividade, do "dar-se em si mesmo" das coisas em sua
doação originária.30Ainda assim, vale lembrar que, no curso das "Cinco
Lições", Husserl emprega correntementea palavra "imanente", ao invés
de "transcendental". Porém, trata-senão de uma "imanência psicológica",
mas sim, de uma "autêntica imanência", domínio do "dar-se em si mesmo"
das coisas em sua doação originária.
Diferentemente de Kant, para quem há um prejuízo ontológico do
fenómeno em relação à coisa em si, de modo que "[...] nenhum objeto em
si mesmo nos é conhecido [...]",31para a fenomenologia transcendental de
Husserl, a redução fenomenologica viabiliza a intuição do fenómeno na sua
pureza, enquanto um dado absoluto que se revela na e para a consciência
pura. Na autêntica imanência da subjetividade transcendental,aquilo que
aparece e aquilo que é não mais se distinguem. Husserl mostra-nos que a
epoche fenomenologica proporcionará, em seu exercício generalizado, o
deslocamento da atenção, inicialmente voltada para os fatos contingentes
do mundo natural, para o domínio de uma subjetividade transcendental,
"[...] domínio absolutamente autónomo do ser puramente subjetivo [...]",32
dentro do qual e a partir do qual os "fenómenos" - enquanto idealidades
puras - se revelarão como "evidências absolutas" para uma consciência
transcendental, dotada da capacidade de ver verdadeiramente estes fenó-
menos tal como se apresentam em sua plena evidência. Trata-se, como o
próprio Husserl insiste em ressaltar,em diferentesmomentos de sua obra,
de um "puro ver" das coisas [eines reinen Schauens)]. Ainda nos termos
do § 35 de Ideias /, trata-se "[...] não exatamente e meramente do olhar
' 9
físico, mas do olhar do espírito [...]".33Nas "Cinco Lições", Husserl nos
diz: "A fenomenologia procede elucidando visualmente, determinando e
distinguindoo sentido... Mas tudo no puro ver."34Esse "novo olhar" tornará
explícito para a consciência, o que permanecia implícito (ou desaper-

29. Cf.,ibidem, A 12,p. 63.


30. Cf.,FragataSJ,J.- AFenomenologia deHusserlcomofundamento dafilosofia. Braga:
LivrariaCruz,1956,p. 85.
31. Cf.,Kant,I. - Kritikderreinen ed.cit.,A30/B 45,p. 78.
Vernunft,
32. Cf.,Husserl,E. - "Kantetl'idéedela Philosophie
Transcendantale" , art.cit.,p. 321.
33. Cf.,Husserl,'E.-Ideenzu einerreinen Phänomenologie undphänomenologischen
Philosophie,ed.cit.,§ 35,p. 72.
34. Cf.,Husserl,E. - DieIdeederPhänomenologie,ed.cit.,p. 58.

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de Husserl
O DesafioMetodológico 23

cebido), até então, no modo ingenuo de consideração da atitude natural.


Nos termos de Husserl, no § 36 de Ideias /, trata-se, com esta mudança
do olhar, de um "direcionamentodo olhar atento para algo no qual não se
atentaraantes...".35
Na subjetividade transcendental,no § 55 de Idéias I, dirá Husserl que
a consciência pura será no fundo uma "consciência doadora de sentido"
[sinngebendes Bewußtsein].36 Quando pensamos a relação desta cons-
ciência doadora com os seus objetos (que rigorosamentefalando, nada mais
são do que "conteúdos intencionais da consciência"), pensamos primeira-
mente em uma relação de imanência (não mais em uma "imanência psico-
lógica", mas em uma "autêntica imanência", domínio de uma claridade
absoluta, do dar-se em si mesmo), pois, o objeto - na sua versão reduzida,
agora entendido como "fenómeno puro" - se revela de forma absoluta e
imediata na consciência transcendental. Mas, nesta mesma relação entre
a consciência e o seu objeto, pensamos também em uma relação de "trans-
cendência", pois, este mesmo objeto que se revela na consciência requer,
enquanto objeto de pensamento, uma atribuição de sentido, de um sentido
constituído por essa mesma consciência. A partir do modo de conside-
ração transcendental, poderíamos, então, dizer que, na relação inten-
cional da consciência pura com o seu objeto, há uma relação da ordem de
uma "transcendência na imanência" [eine Transzendenzin der Immanenz].
Apesar de ser constituído na imanência da subjetividade transcen-
dental, o objeto intencionado não perde, em sua versão reduzida, a sua
álteridade. Aqui, deparamo-nos, então, com um terceiro emprego do
conceito de "transcendente"em Husserl. O objeto visado se revela, em sua
versão reduzida, na e para a consciência intencional. Ainda assim, o objeto
não se confunde com ela. Portanto,conformeanuncia Husserl na "Quinta
Lição" de 1907, as coisas intencionadas, apesar de não serem os atos de
pensamento, constituem-se, contudo, nesses atos, tornando-se presentes
neles mesmos, de modo que "somente assim constituídas se mostram
como aquilo que elas são".37
Portanto, suspendendo o juízo em relação à posição de existência
das coisas e, ao mesmo tempo, sem negar qualquer relação a um mundo
exterior,Husserl considera o fenómeno na sua pureza absoluta como
aparecimento em si mesmo, isto é, como a própria coisa simplesmente
enquanto revelada à consciência. Caberá à investigação fenomenologica

35. Cf.,Husserl,E. -Ideenzu einerreinen


Phänomenologie undphänomenologischen
ed.cit.,§ 36,p. 74.
Philosophie,
36. Cf.,ibidem, § 55,p. 120.
37. Cf.,Husserl,E. - DieIdeederPhänomenologie,
ed.cit.,p. 72.

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-tomada por sua ânsia de clarificação- apreender intuitivamente e


analisar o eidos da coisa, atualizado intencionalmente no pensamento,
explicitando as significações que se encontram ali virtualmenteimplicadas
em cogitos inatuais, bem como as diferentesmodalidades de aparecimento
(modalidades do "dar-se") desta mesma coisa intencionada na consciência.
Em suma, a fenomenologia prescindirá de tecer considerações acerca da
"
posição de existência das coisas - tirandode circuito todas as ciências que
se referema esse mundo natural"1*- para direcionar,então, a atenção para
os "fenómenos",tal como se revelam (ou como se mostram), em sua pureza
irrefutável,na auto-reflexão da consciência transcendental. O exercício
generalizado da epoche - na condição de um "instrumentode depuração
do fenomeno" a serviço de uma reflexividaderadical (uma vez que se trata
de uma reflexividadetranscendental e não meramente psicológica) -, fará
com que o campo fenomenal se abra, revelando, em sua imanência, a refe-
rência intencional aos objetos. Tratar-se-á,como o próprio Husserl insiste
"
em nos dizer, no § 33 de Ideias /, da conquista de uma nova região do ser
até agora não delimitada naquilo que lhe é próprio 39O "mundo como
fato" [die Weltals Tatsache] e posto fora de circuito e, com isso, o "mundo
fenomenologico" [phänomenologischen Welt)] -que, até então, perma-
necia um mundo desconhecido e até quase não pressentido - se revela
em sua totalidade como "fenómeno" (como um "horizonte de sentidos").
Conforme faz questão de destacar o próprio Husserl, em um curso inédito
proferidona Universidade de Göttingen,na Alemanha, em 1909:
Perdemoso mundo,para o ganharde um modomaispuro,retendoo seu
sentido.A fenomenologia põe forade circuitoa realidadeda natureza,
mesmo a realidade do céu e da terra,dos homense dos animais, do
próprioeu e do eu alheio,mas retém,por assimdizer,a alma, o sentido
de tudoisso com o qual estouimediatamente em contato,de modo que
os objetos assim consideradosnão só estão presentesdiantede mim,
mas brotamde mimmesmo.40

38. Cf.,Husserl,E .-Ideen zu einerreinen undphänomenologischen


Phänomenologie
Philosophie,ed.cit.,§ 32,p. 65.
39. Cf.,ibidem, § 33,p. 67.
40. CitadoporFragataSI, J.-AFenomenologiadeHusserl dafilosofía,
comofundamento
ed.cit.,p. 113.

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O DesafioMetodológico 25

4. Conclusão

A título de conclusão, vemos, então, a relação indissociável que há,


em Husserl, entre um certo desafio de cunho metodológico, a elaboração
de uma estratégia metodológica para superação deste desafio e o alcance
gerado pela radicalização de tal estratégia, por intermédio da qual é
revelada uma nova dimensão da relação objetiva com o mundo. Conforme
vimos, o desafio de tomar como ponto de partida a relação empírica com
o mundo, constatar as limitações que tal relação nos impõe e fazer,sem
negar a existência do mundo, com que este mesmo mundo pudesse se
mostrar em sua totalidade, livre das referidaslimitações, foi o que impul-
sionou Husserl a elaborar uma estratégia metodológica para superação
deste desafio. Tal estratégia consistiu, conforme abordado, na opção por
um recurso metodológico cuja especificidade consistiria em suspender,em
níveis generalizados, o juízo em relação à posição de existência das coisas.
O exercício desta estratégia impõe-nos, conformedestacado, variações na
ideia de "transcendente".E é justamente a radicalização desta estratégia
que viabiliza, em Husserl, a abertura de um campo fenomenal em cuja
imanência se daria a relação intencional com os objetos, revelando, assim,
uma nova - e por que não dizer "autêntica" - dimensão da relação objetiva
com o mundo. Esta "nova região" sobre a qual a fenomenologia lançaria
o seu olhar seria, enquanto região transcendental, o domínio no qual as
coisas - sob o modo de existência de "coisas intencionadas" - se revelariam
em sua "doação originária". A adoção da epoche fenomenologica impli-
caria em uma espécie de "conversão", por meio da qual assumiríamos
um novo modo de orientação em relação ao mundo, deslocando o olhar
para algo que, até então, não atentávamos. Sem negar qualquer relação
externa como o mundo, enquanto ciência clarificadora, a fenomenologia
retém,por assim dizer, pelo exercício radicalizado da epoche, nos termos
de Husserl, "o sentido de tudo isso com o qual estou imediatamente em
contato", de um sentido que não só está diante da consciência, mas que
brota dela mesma, na medida em que é constituído pelos próprios atos
intencionais da consciência, revelando e constituindo,assim, a dimensão
fenomenologica ou, como Husserl preferedizer,a "alma do mundo".

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