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FICHA CATALOGRÁFICA
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AGRADECIMENTOS
“La temporalité ne se laisse pas dire dans le discours direct d'une phénoménologie, mais
requiert la médiation du discurs indirect de la narration2”
(Paul Ricoeur).
1
Shaman Tarot da Editora Lo Scarabeo – carta 6 de arcos : jornadas inesperadas.
Fonte: <http://shop.loscarabeo.com/index.php?id_product=108&controller=product&id_lang=3>
2
―A temporalidade não se permite dizer em um discurso fenomenológico direto, requer a mediação do discurso
indireto da narrativa‖.
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RESUMO
Os grupos de Neoxamanismo urbano se multiplicam a cada dia. Nossa tese é que esses grupos
produzem sua própria narrativa, desde o universo do xamanismo indígena até religiões
diversas, por meio de hibridismo discursivo produzido em visões místicas religiosas e
arranjos sócio-culturais. A partir da experiência de constituição de modos narrativos, esses
grupos criam um conjunto híbrido de manifestações, num ato poiético (produtivo e criativo),
o que determina por sua vez o Neoxamanismo urbano como um novo movimento religioso.
Essas narrativas visionárias de grande intensidade e mobilização do ser, estruturalmente,
transfiguram a realidade imediata e possibilitam uma alternativa ao pensamento cotidiano por
meio do processo de redescrição da vida, explicitanto as condições de possibilidade do
fenômeno religioso em si. Esta pesquisa contribui para a compreesão de como a identidade
narrativa garante a aquisição de espaços de constituição da vontade numa relação criativa com
as narrativas mencionadas. A partir dos estudos de Paul Ricoeur, verifica-se que para a
superação da finitude em busca do homem capaz, o ser humano recria os modos de ser. Em
virtude de uma ―cura pessoal‖, se encontra o redimensionamento do mundo em outros
mundos através de uma teia metafórica facilitada pelas narrativas curativas. Este estudo
utiliza-se da fenomenologia hermenêutica, leituras antropológicas, psicologia etc., na medida
em que tais narrativas determinam eixos essenciais para as percepções dos fenômenos que
formam a nova realidade, e determinam a aquisição de práticas comunitárias. Existem
possíveis que são alcançados por intermédio dessas transfigurações diversas, nesse contexto,
provoca-se uma mudança de paradigma, tanto epistemológico como ético, a partir do
contraste e vivência com o pensamento nativo.
Figueiredo, William Bezerra. Metaphorical web: the poetics of narration and the shamanic
ethos in the urban environment/ William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018.
267 fl. Thesis (Doctorate in Religion Sciences) - Methodist University of São Paulo - School
of Communication, Education and Humanities Postgraduate Program in Religion Sciences
São Bernardo do Campo, 2018.
ABSTRACT
The Neoshamanism groups are multiplying each day. Our thesis is that these groups produce
their narratives, since the Shamanism universe until to the different religions, through the
discursive hybridism produced in religious mystic visions and socio-cultural arrangements.
From the experience of constitution of narrative modes, these groups criate a hybrid set of
manifestations, in a poietic act (produtive and criative), what stablishes the Urban
Neoshamanism as a new religious moviment. These visionary narratives of high intensity and
mobilization of being, structurally, transfigure the immediate reality and alow an alternative
to the daily thinking through the redescription process of life, explaining conditions of
possibility of the religious phenomenon itself. This research contributes to the comprehetion
of de way the narrative identity ensures acquisitions of the spaces of constitution of will in a
criative relation with the mentioned narratives. From the Paul Ricouer‘s studies, it is verified
to achieve the overcoming of the finitude in search of the capable man, the human being
recreates the ways of being. As a result of a ―personal cure‖, it finds the resizing of world to
others worlds through of a web metaphors facilitated by the healing narratives. This study
uses the hermeneutic fenomenology, antropologic readings, psychology etc., in sofar as those
narratives stablish essential points to the perceptions of the phenomena that form the new
reality, and determine the acquisition of community practices. There are possibles tha are
achieve from this diferent transfigurations, in this context it causes a change of paradigma,
both epistemologic as such ethical, from the contrasct and experience with the native thinking.
Key words: Hermeneutic Phenomenology; Paul Ricoeur; Visionary Narrative; Poetic of will;
Urban Neoshamanism.
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RÉSUMÉ
Les groupes de Neochamanisme urbain se multiplient chaque jour. Notre thèse est que ces
groupes produisent leur propre narrative, de l'univers du chamanisme indigène aux religions
diverses, en passant par l'hybride discursif produit dans des visions mystiques religieuses et
des arrangements socioculturels. De l'expérience de la constitution des modes narratifs, ces
groupes créent un ensemble hybride de manifestations, dans un acte poétique (productif et
créatif), qui à son tour, détermine le Neochamanisme urbain comme un nouveau mouvement
religieux. Ces narratives visionnaires de grande intensité et de mobilisation de l'être,
transfigurent structurellement la réalité immédiate et permettent une alternative à la pensée
quotidienne à travers le processus de redescription de la vie, explicitant les conditions de
possibilité du phénomène religieux en soi. Cette recherche contribue à la compréhension de la
façon dont l'identité narrative garantit l'acquisition d'espaces de constitution de la volonté
dans une relation créative avec les récits mentionnés. Des études de Paul Ricœur, on vérifie
que pour le dépassement de la finitude à la recherche de l'homme capable, l'être humain
recrée les manières d'être. En vertu d'un "remède personnel" se trouve le redimensionnement
du monde dans d'autres mondes à travers un réseau métaphorique facilité par les narrative.
Cette étude utilise la phénoménologie herméneutique, les lectures anthropologiques, la
psychologie, etc., dans la mesure où ces narratives déterminent des axes essentiels pour la
perception des phénomènes qui forment la nouvelle réalité et déterminent l'acquisition des
pratiques communautaires. Il y a des possibles qui sont atteints à travers ces diverses
transfigurations, dans ce contexte, un changement de paradigme, à la fois épistémologique et
éthique, est provoqué par le contraste et l'expérience avec la pensée indigène.
LISTA DE FIGURAS
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15
1.4 Visão narrativa e narrativa visionária como etapas narrativas da jornada xamânica
........................................................................................................................................ 53
2.5 A subida pelo arco-íris – subida aos céus e descida aos infernos ....................... 92
INTRODUÇÃO
abrindo campo para estudos futuros de análise narrativa de fenômenos religiosos, a partir da
metodologia ricoeuriana.
Observa-se que os mythos antigos se formavam a partir de situações similares ao que
descrevemos nestes capítulos, todo processo de intersecção de discursos sempre ocorreu ao
longo da história, assim como no Neoxamanismo urbano, os mitos antigos também bebiam
em práticas anteriores, e assim por diante. Abordamos neste caso o Xamanismo clássico não
como um fenômeno que existiu no passado e que hoje é inspiração aos novos movimentos,
pelo contrário, o Xamanismo indígena é vivo, em centenas de comunidades e ainda é fruto de
estudos, constantemente, e chegando a novas conclusões. O modelo de Xamanismo, que se
adota aqui, é o do Xamanismo como discurso e não a prática étnica em si. O modelo
apresentado por Mircea Eliade é estruturado a partir da metodologia fenomenológica e
hermenêutica, o que favoreceu uma aproximação teórica e a empregabilidade conceitual.
Nesse sentido, buscou-se tanto a leitura de mundo Eliadiana, e suas tipologias morfológicas,
como também as leituras posteriores de autores como Michael Harner, que relê o autor e
introduz novos discursos em uma literatura Neoxamânica.
Outro ponto relevante de ser levantado é que Xamanismo urbano sempre houve, nas
diversas cidades nas Américas, principalmente na América Latina (URQUIDI, 2008), nas
comunidades de língua quéchua e aimará, no Peru, Bolívia, Equador etc. A função do xamã
urbano é bem comum nessas comunidades, em que a população indígena é proporcionalmente
grande, muito diferente de quando se identifica uma prática de Neoxamanismo urbano em
países fora do continente, por exemplo, conduzido por um não índio. ―Em alguns países como
a Guatemala, a Bolívia, o Peru e o Equador, a população indígena equivale, e pode até
superar, à dos indivíduos não indígenas. Em outros, a superfície habitada por comunidades
indígenas é considerada proporcionalmente superior à ocupada pelo resto da sociedade‖
(URQUIDI et al., 2008, p. 200). Poderia-se conjecturar como seria a prática no império Inca e
suas relações com outras religiões no continente, e o contato com as diversas comunidades
que compunham o império, ou os Astecas e Maias em suas cidades, mas seriam apenas
conjecturas.
A riqueza do método se encontra no aplicar o conceito de configuração da Mimesis
narrativa em diversos casos e, por isso, ópta-se pelo modelo, utilizando termos no formato
clássico, como Mythos, Mimesis, Catharsys, Phronesis e Éthos. O Neoxamanismo urbano,
com sua riqueza de configurações urbanas, de saberes indígenas entre não índios, realiza
rearranjos e redescrições com os métodos do xamanismo indígena empregado pelos não
índios. Os resultados desta interação são revelados pela aplicação metodológica da análise da
17
3
SCURO, Juan; RODD, Robin. Neo-Shamanism. Encyclopedia of Latin American Religions, p. 1-6, 2014.
18
como são articuladas. Elegeu-se, portanto, pelo termo urbano, para designar não índio. O que
não quer dizer uma antinomia com o meio rural, mas uma tentativa de manter um lastro
teórico com os termos usados em diversas publicações desde a década de 1980. O termo
urbano é aqui requerido como sinônimo de não índio, falante de língua europeia ou anglófono
e que não foi criado dentro de comunidades ou reservas indígenas.
Define-se, por conseguinte, quem é o sujeito da ação no nosso texto. Além disso, esse
sujeito urbano não índio estrutura esta prática ao longo de três décadas aqui no Brasil.
Formando uma religiosidade própria, autônoma, que tem expandindo muito nos últimos dez
anos, se destacando de outros campos de referência, como a New Age, por exemplo, que lhe
foi incubadora.
Nesse sentido é um Neoxamanismo, utilizando o prefixo neo para designar um novo
movimento religioso. Pelo acréscimo do prefixo ―neo‖, pretendeu-se expressar algumas
ênfases que os grupos identificados como Neoxamanismo Urbano, em geral, fazem uso:
abandono da relação com a hierarquia e iniciação tradicional indígena, valorização dos
saberes da cultura ocidental, utilização de gestão liberal, terapêutica, e comercial; ênfase na
saúde e bem-estar e também discurso de prosperidade material; utilização da rede social para
o trabalho de divulgação, propaganda religiosa e tratamento virtual à distância (aos modos das
cyber churches) e centralidade na promoção de narrativas visionárias em temáticas indígenas,
sobretudo hibridismo com as religiões afro-brasileiras, hinduísta e o Espiritismo. Promovendo
uma desterritorialização dos temas e técnicas do xamanismo indígena para o campo
discursivo e na vida cotidiana das cidades.
Diz-se, portanto, que o Neoxamanismo urbano é uma prática religiosa, híbrida,
polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de
religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de
narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio.
Quando se trata da formação desse movimento, utiliza-se o termo hibridismo para
designar a reciprocidade semântica e criativa de constituição de discursos geograficamente
sedimentados nas metrópoles, e por se tratar de bricolagens transculturais. O modo de
constituição do discurso neoxamânico obedece às normativas do que foi designado nos
estudos culturais como discursos de fronteira e de identidade. O sujeito que busca estes
nichos urbanos para praticar o Neoxamanismo urbano está constituindo uma identidade
narrativa híbrida, e pluritópica, o que será abordado nos capítulos seguintes. Segundo Rogério
Haesbaert:
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Tratamos, aqui, por sua vez, do híbrido como discurso e campo semântico, e menos
como utilizado nas teorias culturais como mestiçagem, migração, sincretismo etc. Pois
identificamos o fenômeno religioso, neste caso, como uma construção de identidade narrativa,
não coletiva no primeiro momento, em que tais hibridizações se formam nos sujeitos e depois
encontram formas de prática comunitária. Hibridismos culturais tem relação forte com a
territorialidade, e com os indivíduos que carregam a cultura para outra localidade e tendem a
amalgamar-se com os símbolos e modos culturais locais, buscando introduzir suas práticas de
origem com o mínimo de perdas possível, o território e a identidade tem uma relação
intrínseca.
Tem-se, consequentemente, uma sobreposição de entendimentos conceituais, e usos do
termo, os hibridismos ocorrem aqui como uma intersecção de discursos, mas, não se abdica de
identificar o Neoxamanismo urbano como um movimento maior e culturalmente provedor de
sentido, inclusive, quando se trata do caso de intersecções de discurso com a comunidade
Guarani, ou outras etnias, em que o contato com o Neoxamanismo urbano promove
sincretismos inovadores e desterritorialidades desde o meio urbano às reservas indígenas.
Quando citado, o Neoxamanismo urbano é intermezzo, e com isso oferece uma porta
de entrada para o mundo indígena, os indígenas também vêm abrindo a entrada à aldeia, e o
não índio está buscando cada vez mais o contato com estas comunidades, como comenta um
pajé (COUTINHO, 2016) Huni Kuin durante uma cerimônia:
Estamos reunidos aqui para pedir permissão para entrar no mundo da boa
branca, sempre respeitando seus caminhos e escolhas, pedindo permissão do
povo Huni Kuin para o "povo da cidade grande‖ para aprender um pouco
dessa sabedoria, que é boa sabedoria. (Fabiano Kaxinawá) (COUTINHO,
2016, p. 165).
positivas dos Yuxibu, seres encantados da floresta4. Essa interação entre o índio e o não índio
gera hibridismos discursivos, intersecções de sentido. Segundo Coutinho:
4
Segundo Erika Mesquita,: ―Haux significa a força vital, força da vida que o pajé passa a outrem e ao espírito
da natureza, ao vento, feita através da fala da palavra e de assopros ao vento, captando e enviando força do
espírito ao ambiente. Força da palavra e do ar em forma de assopro, segundo o pajé, é a força captada do yuxin e
que ele ajuda a propalar. Haux vem sendo comumente usado por outras etnias – cuja língua está ―quase morta‖
em sessões de ayahuasca para chamar a força da floresta. Muitos indígenas a utilizam sem saber ao certo seu
significado, apenas por imitação proveniente da língua e cultura Huni Kuin.‖ (MESQUITA, 2012, p. 391, nota
de rodapé). In: MESQUITA, Erika et al. Ver de perto pra contar de certo. As mudanças climáticas sob os
olhares dos moradores da floresta do Alto do Juruá. Campinas, S.P., 2012.
5
O uso da palavra Haux vem sendo muito popularizada pela vinda dos Huni Kuin aos grupos de Neoxamanismo
Urbano, e aos poucos se tornou um jargão muito difundido entre os não índios. É utilizada principalmente em
grupos que fazem uso de medicinas da floresta, como rapé indígena e ayahuasca, a partir da visão Hui Kuin.
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interesse por práticas autóctones e o termo ―caiu‖ em uso popular saindo do mundo
acadêmico. Com o avanço da chamada ―antropologia interpretativa‖ muitos pesquisadores e
estudiosos das práticas indígenas se colocaram a viver com estes os povos nativos, e alguns
aprenderam suas práticas espirituais, tais como os conhecidos autores: CASTAÑEDA e
HARNER. Criaram escolas de pensamento, cada uma a sua maneira, e popularizaram as
práticas de transe induzido, como mecanismo de tratamento de saúde na cultura ocidental,
principalmente através da produção de uma literatura neoxamânica.
Tem-se, no entanto, que toda tentativa de tradução é lida com algum grau de perda de
significado. Existem modos de ser próprios dos nativos, que não podem ser traduzidos mesmo
que com a máxima similaridade. Tal perda torna-se considerável perto do que seja a
espiritualidade nativa e seu modo de ser no mundo muitas vezes é irreversível.
Outro dado é que certos movimentos religiosos sempre têm uma relação com os meios
de produção vigente, nesse caso o capitalismo. Tudo depende de dinheiro para que possam
realizar algo, esse é o sistema que temos hoje. Assim como o não índio, o indígena também
precisa do comércio. Venda de artesanato e a prestação de serviços ritualísticos, que na maior
parte das religiões são pagos, como por exemplo, as vendas de ex-votos nas igrejas católicas,
ou os serviços de ordem espiritual nos terreiros de candomblé, salário de sacerdotes cristãos
etc. É claro que isso não inviabiliza as trocas simbólicas, a reciprocidade e a mutualidade, em
muitos casos o valor financeiro não supera as relações qualitativas dos encontros. Obviamente
que todo tipo de relação comercial, simbólica ou não, que se estabelece, como o consumo em
nossa sociedade, se estrutura como produto. Os bens de consumo sempre obedecem alguma
norma de consumo, sempre há algum modo de consumo e produção de bens materiais
simbólicos.
O Neoxamanismo urbano não está isento de todo esse contexto. A partir desse
processo, percebe-se a distância do Neoxamanismo urbano dos Xamanismos praticados nas
comunidades originárias, sendo que entre eles, os modos de produção são bem diferentes. Isso
é muito complexo, pois como foi dito, existe uma rede de trocas simbólicas em que os
próprios nativos, bem ou mal, estão envolvidos, e que os incentivam. Os núcleos, rodas e
grupos de Neoxamanismo urbano encontram-se permeados de hibridismos, construindo sua
identidade como uma prática religiosa que está para os Xamanismos indígenas como a Igreja
Universal do Reino de Deus está para o Protestantismo europeu de séculos atrás. São,
portanto, novos movimentos religiosos, e não um braço dos Xamanismos indígenas, ainda que
continue usando o vocativo ―xamanismo‖ em seu nome, e que mantenha certa rede de leitura
simbólica com os povos autóctones.
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Acredita-se, portanto, que possa haver uma autonomia, e que os velhos preconceitos
sobre isso ser ―coisa de índio‖ sejam superados. Primeiramente pelo fato de que ―coisa de
índio‖ já é uma preconcepção errada, há que se estudar cada cultura e etnia em seu modo de
ser e não esperar que uma releitura urbana atual, com todas as intersecções de discurso, seja
uma reprodução ipsis litteris do modo de ser indígena. Pois então, esbarra-se em uma questão
ética. Em tal caminho, a resolução se dá pela ética, em saber que se está usando o nome de
outrem em seu benefício (no sentido de auxílio e proveito). Pois ao fazer o vocativo ao termo
xamanismo, esses grupos estão de alguma forma se filiando ao mundo indígena. E diante
dessa filiação, mesmo que seja de um ―parente distante‖, o DNA continua por aí. E como
seres éticos, dever conta à história desses povos que viveram antes de nós, sua ancestralidade,
e que mantêm a ―cultura xamânica‖ viva até os dias atuais, é uma obrigação moral.
Neste sentido, observa-se que se aproximar de forma ética dessa cultura é fundamental
para que o Neoxamanismo urbano consiga estruturar raízes sólidas, e que os grupos possam
trabalhar em equanimidade com a história, entendendo que o homem ocidental ainda costuma
deturpar e usurpar as culturas alheias para seu proveito próprio. Os usos e abusos da memória
tradicional dos povos originários devem ser bem percebidos e discutidos, assim como exigida
a máxima ética junto às fontes de estudo.
O que hoje se percebe como fundamento das novas espiritualidades é o modo ético e
suas relações com suas origens, do mesmo modo que as matrizes africanas têm com a
terra mater, o Neoxamanismo Urbano também, como espiritualidade de matrizes indígenas.
Deve-se prestar conta aos povos originários, assim como se reconhecer ter uma dívida
histórica com essas comunidades e com a manutenção do seu modo de vida.
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denominado pragma, que é a antecipação pela imaginação, não como uma invasão dos
sentidos, mas como um projeto, um uso linguístico, fático da imaginação. Esse uso
antecipatório da imaginação existe como uma marca da autonomia do sujeito capaz, que pode
dizer, ―eu poderia ter feito isso‖, ―ou aquilo‖, e nesse sentido rompe o pragma como fato
consumado, podendo abrir novos horizontes. O xamanista atua, dessa forma, em dois níveis
distintos, primeiro como meio de recepção e, em segundo momento, como narrador. Segundo
Teixeira:
O «pragma» é o correlato intencional do agir, o «agido» do agir. O objecto
da «realização» não é um gesto avulso, um movimento (aliás a acção não é
um somatório de movimentos nem uma «forma motora»), mas sim o termo
da acção, o factum do facere (paralelo do dictum da dictio), o «facto» ou
«feito por mim», o pragma. Neste sentido, a acção é um aspecto do mundo
(TEIXEIRA, 1994, p. 198).
possíveis, espaço de potência e criação ilimitada, Corpos sem Órgãos, espaço por excelência
do homem capaz. Como afirma Ricoeur, é um ―pensar a mais‖, e o símbolo ―dá a que pensar‖
(RICOEUR, 2011, p. 482). Na medida em que é meio de orientação para tudo que é estranho,
para as profundidades existenciais, dos símbolos insondáveis. A tradução entre campos
semânticos é rica, visto que não trai esse elemento fundamental que distingue o pensamento
ocidental do pensamento do indígena, a capacidade de não estacionar a metáfora, a vontade de
se manter sempre criador, sempre extático, sem se agarrar a verdades metafísicas,
possibilitando a produção de narrativas proféticas.
O acento forte dessa teoria é a observação se a apropriação do universo do xamã é uma
tentativa de instaurar a metáfora viva no seio da sociedade, ou se é uma tentativa de legitimar
a ideologia vigente, neste caso, a metáfora cai num abismo dos usos e abusos, e ao invés de
vermos a metáfora viva, vemos apenas uma máscara. Para não cair nesse entrelaçamento é
necessário desnudar a metáfora, e empregar novos usos, tantos quantos forem necessários,
para fugir dos maus usos. Deve-se buscar a melhor metáfora possível (RICOEUR, 2000, p.
385).
Finaliza-se, por uma proposta ética apontada por Ricoeur, a pequena ética, ou
sabedoria prática (phrónesis). Tal modelo de ética, contextualista-interacionista,―a saber, que
o único meio de dar visibilidade e legitimidade ao fundo primordial da ética é projetá-lo no
plano pós-moral das éticas aplicadas‖ (RICOEUR, 2008, p. 57); tem-se, então, um pequeno
lema, partindo do horizonte aristotélico, ―viver bem, com e pelo outro, em instituições justas‖.
(RICOEUR, 2008, p. 62). Ricoeur reverte o conceito de epistemologia, onde o objeto era o
centro do conhecimento do sujeito, o autor pressupõe que o outro é a fonte do saber, ou
melhor, a própria condição humana de existir como sujeito narrativo.
O ponto de conexão entre os dois mundos se dá pela possibilidade de uma criatividade
moral. Para o pensamento xamânico, o outro é mais amplo, não é somente parte da sociedade
de humanos, falantes e de imputabilidade da ação, mas também tudo que existe, e nesse
sentido a proposta aqui é alcançar uma revisão teórica, a partir da mente indígena; analisar a
pertinência de uma ética em que a alteridade seja ampliada para abarcar o todo existente, uma
hermenêutica pluritópica do éthos xamânico.
A hipótese apresentada nesta tese, é que o emprego, da metodologia ricoeuriana de
metáfora continuada, pode mostrar nuances da manifestação religiosa, e nesse desvelar das
intersecções dos discursos torna-se possível observar a formação da manifestação em si,
inclusive sua autonomia. A capacidade narrativa, por sua vez, aliada à possibilidade de
criação de mundo do ser humano, é ampliada nesta análise aplicada, e levanta a necessidade
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Observaram-se ao longo do percurso, que fundamentam nossas leituras acerca do
Neoxamanismo Urbano, fenômenos e perspectivas da visão extática designados na
fenomenologia como fenômenos limite. Estão para além da redução eidética, ou de qualquer
abordagem, como se escapassem pelos dedos como água. Esses fenômenos esquecidos, que
neste trabalho se apresenta uma tentativa de dar um contorno, na visão extática são remetidos
às archés, arquivos de humanidade, que estão sedimentados há milênios. São símbolos que
compõem o bloco metafórico que constrói a casa da narrativa.
Quando se é traçado um percurso autobiográfico, torna-se mais nítido esse processo.
São vivências que só podem ser tratadas pela poética. Uma etnopoética é necessária quando
falamos desses fenômenos, pois não estamos buscando os dados empíricos, mas o sentido de
tais vivências. O vivido é poiésis, criativo e doador de sentido, o símbolo dá a pensar
(Ricoeur) e, nesse contexto, é preciso elaborar uma metodologia que possa perpassar esses
fenômenos limite.
Por tanto, visa-se traçar um relato pessoal do autor desta tese, como metodologia de
intersecção de sentidos e buscas nas metáforas limite, para se compreender o percurso que
leva ao caminho do trabalho religioso, e como algumas narrativas de vida podem estar
intrincadas, mesmo que em momentos diferentes, em um único círculo hermenêutico:
Analfabeta). Achava muito mágico e misterioso os livros de meu pai, tinham uma aura que
me convocavam para a leitura, mas que nunca me atrevi a ler. Um deles “Luzes e Trevas da
Alma” me chamou muito a atenção. Hoje, sei que se trata de um livro de psicologia
convencional. Mas na época, significava a abertura para outro mundo. Outra questão que me
trouxe muitas vivências foi a religiosidade de minha mãe, católica, ela me levou em muitos
lugares. A formação que ela recebera na infância era um misto de espiritismo e Cristianismo
popular. Eu tinha uma relação muito estranha com as imagens dos Santos, Cristo ou Maria,
que tinha em casa, ou nas casas das outras pessoas, eram imagens que me causavam medo e
admiração.
Eu tinha uma forte bronquite. Essa enfermidade fez com que meus pais buscassem
entre as “simpatias” uma melhora milagrosa. Não resolveu muito no âmbito físico, mas, para
mim, trouxe um olhar plural sobre a vida e a prática religiosa inserida no cotidiano. Entre
sessões espíritas, de candomblé ou nas batidas e benzimentos, conheci a polissemia dos
símbolos religiosos. Lembro-me de uma experiência que tive aos seis anos, quando, em um
dia, andando num terreno baldio atrás da escola sofri uma queda e ao me levantar, me
deparei com uma aranha toda dourada. Essa imagem me petrificou. Em seguida saí
correndo, mas em meio à confusão decidi voltar e contemplar mais um pouco. Bom, ela não
estava mais lá!
Hoje tenho muitas leituras dessas histórias. Todas têm uma forma simbólica muito
forte na minha formação. Encontrava com meus espíritos guardiões, visão dos mortos, e
sonhos que depois se mostravam na realidade. Sempre tinha muito medo desses fenômenos.
Outra paixão da adolescência que persiste até hoje é o estudo pelas escolas místicas.
Pesquisa sobre os místicos medievais e da antiguidade sempre estiveram entre as minhas
leituras. Agora, como terapeuta e facilitador de cerimônias religiosas Neoxamânicas, eu vejo
como tal formação híbrida me ajudou a construir minha história.
Nos dias de hoje, atuo como sacerdote realizando cerimônias sazonalmente, assim
como venho sistematicamente atendendo pessoas que vêm em busca de tratamento para
diversas enfermidades. Nesse período, estudei com mestres do Neoxamanismo urbano, como
Leo Artese, Sthan Xannia Tehuantepelt, em escolas de Neoxamanismo, e principalmente com
mestres indígenas: Ramiro Ponce (herbalista peruano), Maestro Fermin (Xamã Peruano),
Wyanã Uia Thé (Mestre de Cerimônia Fulkaxós), Luiz Canê Mingue Guaiana (Pajé Guaiana,
Historiador), Os Huni Kuin (diversas lideranças, Tadeu, Bainawa, Tuwe), os índios Fulniôs
etc. Também pude fazer uma imersão com os índios Guarani, e tive a oportunidade de
receber financiamento para realizar um projeto de intercâmbio, onde trocamos práticas
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em diante tudo começou a se abrir, sentia o fluxo de energia que era gerado pela roda, a
dança frenética circular criava vórtices de forças centrípetas e centrífugas.
O texto que líamos no hinário parecia saltar do papel e dançar na minha frente, as
palavras tinham um sentido totalmente fora do que podemos observar com a leitura
convencional, o sentido era profundo e amplo, ancestral. Nesse fluxo, fomos por horas, numa
energia que tomava meu corpo. Depois de algumas horas, paramos e tivemos um momento de
descanso. Fui andar pelo sítio, onde percebi como os caminhos, estradas tinham
personalidades diferentes, foi quando comecei a conversar com as árvores e a pedir
instrução de como lidar com aquele conhecimento novo. Naquele momento, fomos chamados
para reagrupar. Toda a leitura era baseada num contexto de Cristianismo popular, caboclo,
cheio de referências da vida na mata, mas também de elementos da doutrina cristã. Não
conseguia entrar na mesma sintonia e fui buscar elementos mais universalistas no conteúdo,
como a grande mãe, para representar a Nossa Senhora da Conceição, etc. Porém, fui tomado
por um sentimento numinoso profundo, de conexão com o Cristo. Sentia meu peito arder de
emoção, entendia sua jornada pela terra e pensava em como era grande sua majestade, seu
poder, e ao mesmo tempo, grande humildade e pobreza dos bens materiais. Continuamos por
toda a noite, até às dez da manhã. Naquele momento, pude ver várias formações, que tinham
características fractais, eram imagens soltas, mas que abriam para outra dimensão de
sentido, nada do que podemos relatar ou transpor num texto.
Ao amanhecer, ao lado da fogueira, conseguia acompanhar o movimento da fumaça,
não sei se era eu que a movia ou se tinha me integrado a tal ponto ao mundo hilético que
poderia controlá-lo. Uma jornada que me impressionou muito e, por anos, refleti sobre essa
experiência, retornando anos depois para o Xamanismo. Meu retorno foi bem mais intenso,
comecei a participar de cerimônias mais profundamente, e a estudar mais a fundo a tradição,
porém, agora buscando refúgio no Neoxamanismo urbano. Ao total, foram 15 anos desde a
primeira vivência, e estive na presença de lideranças indígenas que me deram a formação
para conduzir as cerimônias. Isso foi algo que mudou muito o perfil dos trabalhos, desde
visões proféticas, sobre conduta a ser proferida, à adivinhação, esta em especial tem ajudado
muito nos trabalhos de cura. Visões são frequentes, com um campo semântico mais definido,
e o contato com o mundo espiritual é muito mais eficaz, desde aprendizados até canções que
são aprendidas durante a experiência extática, são canções sagradas de medicina, que são
entregues aos líderes de cerimônia, homens de medicina.
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Depois de vários dias sofrendo por uma grave crise respiratória, fui levado ao
hospital. Logo que entrei na ambulância, desmaiei e só me lembro de estar em uma gruta,
onde havia várias pessoas desorientadas. Ao perceber tal situação, me pus a procurar uma
saída do local. Andei por dias, até ter sido levado para outro andar, acima de onde
estávamos e lá andei por horas, até que localizei uma grande câmara, onde tinham centenas
de pessoas sentadas. Estavam estudando. Sentei ali e comecei a prestar atenção numa
imagem com dezenas de metros de altura, que movia centenas de braços. Quando suas mãos
passavam na nossa frente projetava hologramas com uma codificação que lhes dava
aparência de hieróglifos ou as mandalas orientais, que eram de fácil entendimento naquele
momento. Quando terminei os estudos, fui orientado a voltar. Foi quando acordei no
hospital, depois de ter passado por duas mortes, uma morte de cinco minutos e outra parada
de três, e quatro dias de coma.
Acredita-se que o caminho ao mundo dos mortos seja necessário para que o homem de
medicina possa ter intimidade com essa dimensão da existência. O sonho passa, portanto, a ter
uma importância dentro dessa perspectiva onírica, mágico-religiosa, refere-se ao sonho como
um modelo possível de compreender tal vivência que se conecta com experiências visionárias
de gênero apocalíptico. O sonho pode ser um espaço para onde se pode direcionar para um
autoentendimento e para acompanhar um momento da vida, isto é, um espaço para
compreensão, e abarca tanto um escape do cotidiano quanto uma profecia. Em diversas
culturas, ele representa um espaço iniciático, ou seja, espaço para acesso a regiões
desconhecidas do ser. É também o acesso ao inconsciente feito por intermédio da psicanálise.
Desde os tempos arcaicos até os dias atuais, o sonho é mistério. É símbolo em transformação,
em movimento. O sonho é uma encenação de símbolos, é performático.
31
O caminho que nos leva a uma fenomenologia da origem da visão extática, que está
para além do ato religioso, para os xamãs se apresenta na doença iniciática, nos sonhos e, em
outros casos, nas cerimônias, mas está mais além, a realidade empírica não é mais vista como
se vê em consciência ordinária. O real em ato após a experiência de redescrição do fenômeno
limite, pela variação imaginativa, prolonga de forma continuada à metáfora pelo percurso da
vida, tem um lastro na identidade narrativa, marcando o eu longitudinalmente, estabelecendo
horizontes de sentido novos e que serão por sua vez redescritos diante de novos fenômenos
limite que virão.
***************************************
Neste caminho que apresentamos a partir deste ponto uma descrição introdutória sobre
os capítulos. Primeiramente, portanto, de uma aproximação entre o Xamanismo tradicional e
o Neoxamanismo urbano, mostrando o estudo sobre a narrativa a e temporalidade, sobre as
aporias das visões extáticas narrativas, as categorias que encontramos permeiam a cultura
material e são subsídios para tipologias referentes as visões extáticas e as narrativas
visionárias. Em segundo plano, são abordadas as categorias do Xamanismo strito senso
apresentadas por Mircea Eliade; esta perspectiva visa apresentar categorias morfológicas
apresentadas pea filósofo romeno, e que partem de uma leitura hermenêutica de tradição
fenomenológica. Num terceiro momento, exemplificando o Neoxamanismo urbano – e em
defesa dos argumentos aqui expostos – sua característica de um discurso mixotrófico, que ao
6
Grifo nosso
33
como empregar a narrativa que surge da experiência xamânica, a partir da teia metafórica
apresentada durante a vivência.
Por último, chega-se ao campo do discurso ético, onde se pretende mostrar a
pertinência de adotar novos paradigmas para a sociedade contemporânea, para que seja
possível introduzir um éthos xamânico, um pensamento decolonial, que é possível pela
capacidade criativa do sujeito capaz de constituir novos arranjos sociais, como ser em tarefa a
partir da ampliação do conceito de outro, que é apresentado por Ricoeur na pequena ética e
num contexto hermenêutico pluritópico Ameríndio. Posto isto, espera-se que o leitor possa
neste caminho encontrar propostas de estudo para a questão da formação dos fenômenos
religiosos, nos estudos da consciência, da cultura urbana das vivências extáticas, assim como
possa, através de uma abordagem pluritópica, ampliar horizontes de sentido e constituição de
mundos éticos.
35
Fonte: http://www.ayahuascavisions.com/pablo-amaringo-paintings-1.html
1.1 Introdução
Como nosso tema é a poiesis, falamos mais da estruturação que da estrutura, pois a
temporalidade se faz em estruturações mediadas pela narrativa, pelo relato. Como afirma
Ricoeur em seus estudos:
A poiesis opera uma complexa relação de mediação com o tempo, e que propicia as
sedimentações narrativas. A conexão entre as abas temporais, presente, passado e futuro, são
possíveis pela possibilidade de narração. A história é um processo de sucessão:
Mas não podemos dizer que o ―potencial hermenêutico‖ das narrativas desse
tipo encontra senão uma consonância, pelo menos uma ressonância nas
histórias não ditas de nossa vida? Não há uma cumplicidade escondida entre
o ―segredo‖ engendrado pela própria narração – ou pelo menos pelas
narrativas próximas das de Marcos e de Kafka – e as histórias ainda não
ditas de nossas vidas que constituem a pré-história, o pano de fundo, a
imbricação viva da qual a história narrada emerge? Em outros termos, não há
uma afinidade escondida entre o segredo de onde a história emerge e o
segredo ao qual a história retorna? (RICOEUR, 2012 p. 310).
É preciso, portanto, abordar mais de perto o tema do tempo e da narrativa sempre com
horizonte no referencial ricoeuriano, sem perder de vista o intuito fenomenológico do estudo e
retomando, sempre que possível, as coisas mesmas. O tempo é um dos temas principais do
estudo da fenomenologia, e seu desdobramento consequente à intencionalidade. Neste campo
aberto de estudo há diversos autores que navegaram em águas profundas. Aplica-se aqui a
metodologia Husserliana e se alcança diversas teses. O intuito deste texto de abertura é
apresentar a temática que nutre esta pesquisa e traçar uma rota de compreensão para entender
o fenômeno do Neoxamanismo urbano e suas características principais, entre elas a
experiência extática visionária, além de mostrar como o quesito tempo e também a narrativa
aparecem dentro da perspectiva xamânica e do Neoxamanismo urbano. O desdobramento e a
compreensão deste estudo irão possibilitar os estudos seguintes.
O tempo se apresenta como fenômeno do tempo vivido, que por sua vez é narrado. Ele
– o tempo – não se doa à consciência de forma pura, ele é sempre mediação pela narrativa e é
um fenômeno de constituição de possibilidades, de temporalização. No caso das narrativas
visionárias, há ainda elementos endógenos, que ultrapassam a coleta de dados pelos sentidos.
E nesse desenvolvimento apresenta-se o sentido maior do mesmo, como condições de
possibilidade estruturantes da constituição de mundo do ser. O método de observação deste
fenômeno apresentado por Husserl em Ideias (2006) é significativo, que em seguida foi
aprimorado pelo autor e pelos seus sucessores a partir de novas abordagens.
Da mesma forma, o conceito de narrativa ricoeuriano é fundamental para podermos
abarcar o tema das narrativas visionárias xamânicas, as narrativas de poder e os aspectos
soteriológicos e éticos resultantes. Ademais, na continuidade deste primeiro capítulo, se
verificará como o fenômeno da experiência extática visionária se apresenta na recepção da
narrativa, na produção da cultura material, e em experiências autobiográficas, como uma
tentativa de alcançar o fenômeno da origem da visão extática. O desdobramento desse estudo
será aplicado nos capítulos subsequentes, seguindo a proposta de tipologias narrativas de
Richard Kearney.
39
haveria tempo pensado que não fosse narrado‖ (RICOEUR, 2010, p. 411), e nesse contexto é
por si o campo de maior legitimidade para compreensão do sentido do vivido.
Como nesse campo da temporalidade e da constituição da narrativa é possível
identificar a experiência xamânica e as narrativas e imagens visionárias? Esse problema se
apresenta de forma singular, visto que a temporalidade xamânica atua fora do contexto de
uma normalidade, de uma consciência ordinária que visa uma evidência de mundo
fenomenológica.
Esta falta de evidência imediata não permitiria uma epoché característica da
fenomenologia extática, pois não há o que se colocar entre parênteses senão a própria noção
de tempo, ou mesmo não há um elo possível de uma temporalidade longitudinal e, por isso, o
tema será abordado a partir das narrativas visionárias, mas também com o suporte da cultura
material, como mecanismo de contato com o mundo das coisas, numa análise comparada e
mostrando as relações entre narrativa visionária, consciência ordinária e patológica, visando
distinguir três modalidades da consciência de tempo, com a proposta de apresentar um
segundo momento da fenomenologia, como genética, que busca o sentido da experiência no
campo de mediação simbólica e suas origens e, por consequência, uma fenomenologia
generativa, na medida em que entende as intersecções do discurso na tradição e na história.
Identificando uma possível metodologia para uma análise das narrativas visionárias
xamânicas e como a intersecção entre a narrativa e a cultura visual podem se intercruzar num
ato intencional, segue-se de categorias fenomenológicas para chegar a uma análise
fenomenológico-hermenêutica das visões xamânicas, ou seja, das experiências da percepção
em geral para o sentido estrito.
Adota-se a proposição que essas visões são narrativas, pois partem de uma articulação
da temporalidade dentro de um mundo não ordinário, mas que sincronicamente participa da
temporalidade vivida, e que ambos os tempos são visíveis à existência sem serem
contraditórios. O mesmo tema, associado a um transtorno psicopatológico, como foi dito em
muitos momentos da história da etnologia, e mesmo hoje entre muitos médicos e cientistas
naturais, também precisa ser superado.
Analisar narrativas visionárias é sempre um desafio, por esse motivo vamos utilizar
exemplos da cultura material, e em seguida tentarmos aplicar a uma narrativa propriamente
dita. Inicía-se este estudo com a descrição de uma obra de Pablo Amaringo (1943 – 2009),
42
natural de Puerto Libertad. Pablo Amaringo é um dos maiores artistas visionários do mundo e
é conhecido por suas pinturas altamente complexas, coloridas e intrincadas de suas visões ao
participar de cerimônias xamânicas com a bebida Ayahuasca.
Pablo Amaringo treinou como curandero (curandeiro) na Amazônia, curando-se e
outros desde a idade de dez anos, mas desistiu da profissão espiritual em 1977 para se tornar
um pintor e professor de arte em tempo integral em sua escola Usko-Ayar. A obra Em
conexão com os curadores no tempo e espaço exemplifica o que queremos mostrar. Vejamos
uma descrição da imagem:
Esta é uma visão produzida pela ayahuasca cielo [ayahuasca céu]. Nós
vemos xamãs de diferentes partes do mundo, todos mediadores vegetais e
espirituais praticantes. Da esquerda para a direita estão três seções verticais:
no topo da primeira seção, nós temos uma mulher mestiça da região
amazônica que pratica Rosacrucianismo e faz uso de plantas. Abaixo, vemos
um ayahuasquero mestiço da selva Amazônia que pratica medicina com
alma e coração puros. Abaixo dele está um Shipibo da selva Ucayali que
realiza cura por meio da ayahuasca e seus aditivos, o piripiri (Cyperus sp.),
O dedo do pé (Brugmansia sp.) e o chiriksanango (Brunfelsia grandiflora).
7
Obra reproduzida do livro de Howard Charing e Peter Cloudsley. ―The Ayahuasca Visions of Pablo
Amaringo‖. Inner Traditions. Vermont, 2011. p. 34.
43
sentido, um tempo narrado. Para avançar nesse campo é necessária uma distinção entre
normal e patológico, e também o visionário como categoria narrativa para podermos
estruturar uma metodologia que possibilite uma análise de narrativas visionárias.
8
Binswanger utiliza este conceito para demonstrar esta perda do contato com a experiência ordinária com o
mundo, veja também: DE SERPA JR, Octavio Domont. Subjetividade, valor e corporeidade: os desafios da
psicopatologia. 2007. E BINSWANGER, Ludwig. O Sonho e a Existência. Natureza humana, v. 4, n. 2, p. 417-
449, 2002.
9
Determinamos experiência ordinária a apreensão da temporalidade e do senso comum, fora da redução
fenomenológica, o que podemos afirmar que haja condições de possibilidade de apreensão do mundo da vida,
sem nenhuma distorção, o que ocorre nos estados psicopatológicos. À experiência ordinária se opõe o estado de
consciência alterado, o transe, êxtase e o estado xamânico de consciência.
46
A psicose e a experiência mística são díspares pelo fato de haver uma protensão que
permite ao místico uma depuração posterior e uma introdução no vivenciado da nova
narrativa, sem que a mesma seja fruto de um processo de intencionalidade primeira, seria uma
intencionalidade segunda, que opera sem o campo da lembrança, contudo, como dado novo a
consciência. Assim como ver algo nunca antes visto, mas que se busca introduzir no horizonte
de sentido vivido.
10
Itálico nosso.
48
11
O estudo de Carlo Severi referido é intitulado: Cosmologia, crise e paradoxo: da imagem de homens e
mulheres brancos na tradição Xamânica Kuna, publicada em 2000 na revista digital Mana – Estudos de
Antropologia Social.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132000000100005
49
Partimos para a aplicação do estudo em uma narrativa oral. Serão analisados dois
exemplos díspares, mas que são relevantes do ponto de vista da apropriação da narrativa como
determinação da realidade e a aplicação projetiva da mesma. No primeiro caso, aponta-se o
exemplo de visões espirituais, num caso jurídico de demarcação de terras pela Funai, na
reportagem de 30 de setembro de 2012, com o título ―Antropóloga bebe chá em ritual
xamânico e tem 'visão' para laudo‖:
Esse relato que mais parece uma anedota (no sentido que ocorre à margem de
narrativas mais importantes), mostra como é possível vincular a visão com aspectos
existênciais, no caso da antropóloga – não identificada na reportagem – definiu o resultado de
uma ação judicial. A decisão por sua vez tem um impacto importante para os indígenas, visto
que é positiva a seu favor, por outro lado, abre um conflito com os agricultores que querem a
propriedade das terras.
Não se tem acesso à visão em si, somente que se trata dos ancestrais daquele povo e,
nesse sentido, categoriza-se como uma visão espiritual e ou sobrenatural, pois para as culturas
indígenas a ancestralidade é sempre de cunho espiritual. Porém, pode-se dizer que, do ponto
de vista do ―homem branco‖, se trata de uma visão cultural, partindo do princípio que a
12
http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=283082
Acesso em 13 de Agosto de 2017.
51
antropóloga estava envolvida na pesquisa para a escrita do laudo, e dessa forma, teria se
dando conta da ancestralidade da terra durante o ritual mencionado, propondo uma saída à lá
consciência histórica (RICOEUR, 2010). Nesse contexto, pode-se demonstrar que a visão tem
um olhar duplo e pode ser validada de mais de uma forma.
Outro exemplo, mais emblemático, é a visão do Padrinho Sebastião. Sebastião Mota
de Melo, mais conhecido como Padrinho Sebastião, é um líder religioso brasileiro fundador
da entidade religiosa CEFLURIS. Visão relatada por Alex Polari no livro O evangelho
segundo Sebastião Mota:
Tomei o Daime e fui para o meu cantinho. Era uma Concentração. Estava
todo mundo concentrado e eu como besta, de vez em quando dava uma
olhada. Via tudo quieto, aí eu me aquietava também ... Não sentia nada ...
Olhava os outros, tudo quieto. Com um pouco começou uma fervilhança de
um lado do corpo, passou pro outro, eu pensei: "o tal negócio tá chegando."
Eu fui criando medo e me deu uma desimpaciência, comecei reparar nos
outros. Eu quis sair do lugar onde estava, andei na pontinha do pé, mas
quando chego bem perto de onde a gente tomava o Daime ele me deu um
assopro. Eu achei tão fedorento! Ai voltei para trás. Quando eu vou
chegando no banco para me sentar de novo, uma voz falou: "o homem
perguntou se você era homem e você só fez é gemer!" Foi aí que o negócio
aconteceu. O mundo acabou-se! O corpo velho foi abaixo. O corpo no chão,
e eu, já fora do corpo, fiquei olhando para ele. E me sentia alegre, não tinha
nada de doença só quem sofria era o corpo que estava lá estirado. Nesse
momento se apresentaram dois homens que eram as duas coisas mais lindas
que eu já vi na minha vida! Brilhavam como o Sol! Mesmo que fossem
feitos apenas de fogo não era nada, porque o ser era muito mais bonito
ainda! Traziam uma aparelhagem que parecia muito pesada. Quando eles
chegaram, pegaram meu esqueleto todinho na mão. Puxaram meus ossos por
inteiro, que nem uma espinha de peixe. Olhavam e reviravam aquela ossada,
separando a costela do espinhaço, depois danaram-se a tirar tudo. Viravam e
limpavam tudo. Me mostravam tudo. De repente os ossos sumiram, quando
dei conta já estavam no corpo. Ai, viraram a carcaça que sobrou e partiram
em pedaços, pendurando tudo nuns ganchos. Puxaram para fora o intestino e
ficaram com ele todo na mão. Depois pegaram o fígado, cortaram, abriram, e
me mostraram. Tinham três bichos do tamanho de um besouro. Eram eles
que andavam para cima e para baixo, provocando todo aquele mal. Um dos
homens veio bem pertinho de mim, que a tudo observava fora do corpo, e
disse: "Estão aqui, quem estavam lhe matando eram esses três bichos, mas
não tenha medo que desses você não morre mais." Ai eles meteram os
órgãos e o esqueleto dentro do corpo e fui acordar já dentro dele. Não sabia
mais pra onde tinham ido os doutores, nem por onde tinha estado, levantei e
bati a poeira. Foi assim que fiquei bom e você ainda hoje não vê remendo
dessa operação que recebi. Graças a Deus fiquei bonzinho, igual um menino.
Já no dia seguinte era como se eu nunca tivesse tido nada e estou aqui ate
hoje (POLARI, 1998, 59-60).
despedaçado e reunido novamente, como ocorre nas visões tradicionais dos xamãs siberianos
(ELIADE, 2002) que têm seus corpos costurados e seus esqueletos cozidos em grandes
caldeirões etc. Constata-se o quadro geral da visão.
A experiência de cura aqui é fundamental, pois Sebastião tinha uma enfermidade da
qual buscava tratar no trabalho espiritual. Durante a visão, ele pôde ver seu corpo sendo
curado da tal doença e afirma que o ocorrido se efetivou na realidade material. Sebastião
seguiu como membro da religião. Como constatado nos quadros de Amaringo, seres
sobrenaturais realizam as curas durante as sessões com poderes fora desta realidade ordinária,
que vêm e vão deste mundo como passe de mágica.
Essa narrativa é bem figurativa e demonstra o impacto que causa sobre a consciência,
as imagens são vivas e pertencem a um território imagético próprio do narrado, que por sua
vez se torna lembrança e flerta com a imaginação. Mas não se trata de uma visão inventada, e
sim uma visão que precisa ser contada para que outros tenham acesso à experiência de uma
temporalidade distendida da consciência ordinária.
O sentido amplo da narrativa é imagético, por mais que exista em algum momento o
diálogo entre os seres de fogo e Sebastião, a visão é totalmente material, são exemplos do
imaginário, mas que se intercalam com imagens não conhecidas do sujeito, produções
imagéticas típicas de jornadas xamânicas, principalmente com uso de plantas enteógenas.
Apesar de tratar-se de um relato oral, e posteriormente escrito, permite-se traçar uma
análise fenomenológica partindo do relato e voltando para a experiência de temporalidade do
padrinho durante a visualização. Pode-se citar que o mesmo se viu tomado por uma grande
ansiedade, a temporalidade está totalmente tomada pela relação de intersubjetividade com o
grupo, como se comportam e como reagem a seus movimentos. Sebastião se vê tomado por
uma compressão da espacialidade, que pede certa lentidão de movimentos (uma
concentração) e certo cuidado com o silêncio no local, sem movimentos extravagantes. Um
maneirismo toma conta do padrinho, que se vê envolto a um grupo desconhecido e têm
reações diversas de espanto com situações adversas (ser defumado).
Esse ambiente de ansiedade é rapidamente tomado por um ambiente de extrema
tranquilidade, momento em que Sebastião se vê desmaiando e sua alma saindo do corpo, e
passa a observar seu corpo doente. Sua consciência, por sua vez, se mantém tranquila, em paz,
com a sensação de que se libertou do corpo moribundo. Experiência maior é a chegada dos
seres de fogo. Sebastião observa de forma muito tranquila enquanto seu corpo é despedaçado
e reconstruído, sem nenhuma perturbação, na verdade, com certa curiosidade.
53
Quando se da conta, já está no próprio corpo e nesse processo não se passaram nem
minutos, porém, uma cirurgia complexa acaba de ser executada. Não há neste sentido
nenhuma crítica sobre a duração da narrativa, pois do ponto de vista visionário a
temporalidade é fora do nosso escopo de evidência natural. Ou ainda, que a narrativa
visionária inaugura outro campo de evidência sobrenatural, que demanda temporalidades
diversas da ordinária, e que compreenda aspectos não coerentes com a realidade cotidiana.
Todos esses elementos ocorrem enquanto Sebastião está deitado, e toda a
temporalidade se sobrepõe, entre mundo vivido, vivenciado e visão espiritual. Nesse campo
de composição narrativa, a consciência que figura a temporalização vai e vem de tempos
míticos ao ordinário numa passagem poética para a narratividade da experiência. A visão é
sobreposta à realidade e vice-versa, transportando sentidos que participam de ambos os
planos, e movimentos de categorias naturais e espirituais de um quadro a outro num presente
contínuo.
Aponta-se aqui uma aplicação da metáfora como mecanismo de observação do
fenômeno narrado, onde o diagrama esquemático da experiência é disposto como duração à
consciência de forma poética, em que a intersecção de discursos ordinário/extraordinário e a
tripartite doação da temporalidade é comprimida num eterno agora, que se enraíza como
protensão no horizonte de sentido. Esse desenho é a metáfora, como capacidade de
constituição e elo de transposição entre as abas temporais. A duração permite que se institua a
consciência como memória de fluxo de vividos. Porém esses vividos são um sentido maior, de
ordenação da temporalidade. Dessa forma, a narrativa tem função fundadora e não secundária
na constituição da consciência humana.
Tal fenômeno, observado em um estado xamânico de consciência, tem elementos
totalmente diversos do ponto de vista ordinário, e é elemento de uma composição temporal
específica, que deve ser estudada sobre novas bases fenomenológicas, cujo movimento só é
possível com a introdução de uma perspectiva hermenêutica.
1.4 Visão narrativa e narrativa visionária como etapas narrativas da jornada xamânica
“Aixo era y no era”.
13
Podemos afirmar que a visão narrativa extática é formada e se apresenta com conteúdos do campo da
linguagem corrente, podendo ter elementos que dizem respeito à realidade ordinária, porém não é fruto de
memória, mesmo entendendo que existem conteúdos que a consciência não mais lembrava e que estavam
sedimentados na inconsciência (num contexto psicanalítico), porém, em geral as visões narrativas do mundo
espiritual apresentam conteúdo totalmente inédito ao sujeito, elementos e entidades não existentes na realidade
ordinária.
57
Por sua vez a metáfora e a linguagem religiosa são correlatas que compõem a
realidade e a ―linguagem religiosa é uma metáfora-limite. Ou melhor, toda e qualquer
abordagem dialética dessa linguagem se abre ao poder de redescrição.‖ Ademais, ―há,
entretanto, uma tensão semântica que está entre a forma narrativa e o processo que impele a ir
além dos limites da narração, criando uma incoerência narrativa. Esse processo é o processo
metafórico deflagrado pela presença das expressões limite‖ (PACHECO, 2017, p. 154-155).
As jornadas (como imagem narrativa) e as narrativas visionárias derivam de um tipo
de linguagem não ordinária, uma linguagem extática (MÜNERA; BIDOU; PERRIN, 1985). Ela
se diferencia da narrativa mítica, pois têm a função de quebra, de recondução da comunidade.
E a redescrição é criativa, pois como discurso poético recria as ordens sociais. As jornadas e
narrativas de poder são desse tipo de metáfora limite, como exemplo:
Pero hay una importante diferencia entre el discurso de los mitos y las
palabras del chamán. El primero relata los sucesos que provocaron el estado
actual del mundo, cuenta cómo se instauró, se estableció. Es, implícita o
explícitamente, un discurso normativo, común a toda la sociedad. Las otras
son específicas y tienen la capacidad de actuar, de crear, de modificar. El
poder del chamán -sobre todo el de interpretar y de oponerse a las desgracias
humanas emana de sus palabras y depende de su capacidad de comunicarse
con el ―otro mundo‖ (BIDOU; PERRIN, 2000, p. 6).
palabras que no describen únicamente las cosas sino que las tocan
concretamente, en sus constituciones que los desmenuzan en principios
elementales, constituyentes de todo ser. El trabajo del chamán exige una
extrema energía para reproducir, a través de la sinergia de los ritmos y de las
fornidas de sus palabras, los movimientos que animan desde el interior los
cuerpos de los seres y de las cosas. Para estudiar bien las palabras del
chamán, se debe, en cierta manera entender. Entender que los elementos del
mundo están ligados los unos con los otros, a lá manera de los motivos del
mito que el chamán con su mente descompone y compone incesantemente
para descubrir los movimiéntos que los animan. y entender que aquellos
motivos y movimientos ño son, en el plano del pensamiento, más que la
duplicación de las formas y de los flujos que constituyen y reconen el
universo de la material (BIDOU; PERRIN, 2000, p. 6-7).
Esse universo de narrativas compõe o diálogo necessário para que haja um ponto de
comunicação entre o mundo ordinário e o não ordinário, possibilitando a nova acepção do
discurso no mundo vivido.
Segundo Múnera:
ameaça anunciada pelo profeta, não há nenhuma síntese racional, mas uma confissão
dupla e plena que somente a esperança pode unir (PACHECO, 2017, pg 153).
14
Plantas e preparos naturais que promovem a expansão da consciência ordinária e favorecem a comunicação
extática. No caso do Neoxamanismo urbano a planta mais conhecida é a Ayahuasca de tradição amazônica.
60
que me hizo sentir que él sabia que me iba a curar. Cuando me rezaba
llamaba a San Gabriel, creo. Llamaba para que lo ayude en la curación.
Después se ponia a hablarle a lo que yo tenia adentro que me hacia daño. 'Sal
de alli', le decía. 'Sal de alli y déjala en paz. Ella ya te conoce, ya te ha
sentido, y no le gusta, no quiere ya nada contigo. ¡Ella no quiere que te
quedes adentro!', así le hablaba hasta que lo fué sacando. Y después me daba
unas aguas para que me bañara en mi casa y al usarlas yo tenia que ir
rezando el Credo‖. Y concluyó, pensando, ―Así me curó, me dejó en paz y
tranquilidad‖ (KREIMER; BIDOU; PERRIN, 1985 p. 169).
A partir dos problemas até aqui apresentados, nos parece claro que a visão extática
tem origem endógena e que se estrutura a partir de uma linguagem extática. Sua origem é uma
aporia, visto que não temos acesso ao fenômeno primeiro, e pudemos perceber que existem
diversos fatores que estruturam de forma semântica essa vivência. O vivido da visão extática
não parte de uma intencionalidade sensível, mas de uma intencionalidade extática, onde as
vivências involuntárias tomam papel principal.
Observa-se que existe durante a vivência extática, nos estados xamânicos de
consciência, uma integração entre corpo e consciência. Como vivência endógena, ela só pode
ocorrer no corpo, que é onde faz sentido toda a estrutura do ser. O corpo é a porta de entrada
para a jornada interior. São diversas as possibilidades para provocar o estado xamânico de
consciência, seja por intermédio de dança, exaustão física, jejum, meditação prolongada,
ingestão de plantas enteógenas etc. A corporeidade é a porta por onde se instaura o estado de
consciência que permite a visão extática. No entanto, ele não é mero mediador, é também
sobre ele que se efetua toda a vivência. As sensações de leveza, a embriaguez, a vivência de
não sentir o corpo, e até o desligar-se do corpo têm como horizonte de possibilidade a
corporeidade.
Por outro lado, é muito rica a reflexão que compreende a visão extática como uma
vivência que não foi mediada a princípio pelos sentidos. O que é ―visto‖ durante a vivência é
totalmente alheio à memória, a qualquer lembrança, em outras palavras, é uma
intencionalidade na temporalidade extática. Uma semântica narrativa com suas
62
especificidades. Percebe-se que não há vivência que não passe por uma temporalização, e
este papel narrativo fundamenta nosso estudo.
A linguagem extática é resultante desse ambiente, em que não há uma retenção
sensível, ou mesmo imaginativa, é uma vivência de total alteridade e involuntariedade. Nesse
campo endógeno é que ancoramos este debate, na perspectiva de aproximação desse
fenômeno pré-reflexivo, que tem tamanha importância para a história humana.
Após algum tempo, mediante estas diversas técnicas, o ser se aprofunda
gradativamente no estado visionário, e passa a se comportar com outra estrutura de
compreensão. Essencialmente, a temporalidade, espacialidade e ipseidade são altamente
modificadas, propiciando uma linguagem extática que garante este novo mapeamento de uma
pré-reflexividade. No campo de metáforas limite, onde toda linguagem é pura criação que se
fundamenta a relação entre estrutura e antiestrutura (TURNER). A antiestrutura se introduz na
estrutura como forma de reestruturação, de redescrição. Como é formada na antiestrutura a
partir de vivências endógenas, e como o involuntário propõe sem consultar elementos
fundadores à consciência do ser, a partir desta linguagem extática a visão é um fenômeno de
difícil recorte. Pode-se dizer que esta é uma experiência de mistério, e que essas imagens são
arquétipos muito antigos, do início da consciência humana. A estrutura depois de formada,
como nossas interações narrativas, passado e futuro, temporalizam o vivido, mas ainda assim,
existem elementos da antiestrutura que nos causam espanto e interesse.
A visão se assemelha a uma vivência dos sentidos, são imagens que se formam
diretamente no nosso campo mental, sem que haja interferência. Porém, dependendo do nível
de aprofundamento é possível dialogar nessa linguagem extática, buscando compreensão e
conexão com esse universo. Nesse campo é que existem as comunicações espirituais, onde o
xamã navega entre os mundos. Tal interação entre a intencionalidade da consciência ordinária
e a linguagem extática é fruto de um treinamento, e os xamãs aprendem uma nova forma de
comunicação, a conexão com o mundo espiritual, a linguagem dos espíritos.
É uma vivência que prescinde de doação, não pode haver muito interferência, o ser
precisa de certa disposição para o involuntário, sem julgamento ou fuga. Essa disposição e
pedagogia próprias para a compreensão dessa linguagem extática são frutos de treinamento
tanto espiritual, ou seja, de permanência nesse lugar, como de instrução cultural específica.
Dessa forma, o Neoxamanismo urbano têm se estruturado em torno de uma nova
tradição, que possa dar conta da codificação necessária para que esta vivência faça sentido
para os participantes, que hoje, democraticamente buscam acesso a este horizonte de sentido.
63
O objetivo deste capítulo é mostrar o pano de fundo que dá suporte para as narrativas
do Neoxamanismo urbano. O Xamanismo tradicional praticado por diversas etnias pelo
mundo são um manancial, arquivos de humanidade, que são a base do enredo que figura as
narrativas dos participantes desses grupos. Nesse sentido, segue-se primeiramente do Mythos
para tratar dos aspectos que fundamentam o ―mundo antes do texto‖; em verdade existe um
mundo da vida que é chão da manifestação xamânica Strictu Sensu, mas, aqui, refere-se a
uma segundidade dos símbolos, onde ocorre a configuração destas narrativas no horizonte
urbano das grandes metrópoles.
As narrativas que encontradas no Neoxamanismo urbano bebem nesse manancial e,
por esse motivo, é preciso dar uma atenção especial ao vocativo do Neoxamanismo urbano,
mesmo que, como será visto no capítulo seguinte, o Neoxamanismo urbano não tenha origem
no Xamanismo indígena. O fato é que esse manancial sobrevive como infraestrutura das
narrativas que tocam as vidas dos praticantes, num processo de desvelamento da
espiritualidade de cada indíviduo que participa das rodas de Neoxamanismo urbano. Há uma
rede temática que percorre cada um desses centros espirituais e que constitui uma teia de
metáforas que contribuem para essas narrativas.
As narrativas têm importância crucial nesse processo, pois:
Toda existência humana é uma vida em busca de uma narrativa. Isto, não
apenas porque ela se empenha em descobrir um padrão com o qual lidar com
a experiência do caos e da confusão, mas, também, porque cada vida humana
é quase sempre implicitamente uma história. Nossa própria finitude nos
constitui enquanto seres que, em resumo, nascem no começo e morrem no
final. E isso dá a nossas vidas uma estrutura temporal que busca algum tipo
de significação em termos de referências ao passado (memória) e ao futuro
(projeção). Assim, poderíamos dizer que nossas vidas estão constantemente
interpretando a si próprias – pré-reflexivamente e pré-conscientemente – em
termos de começos, meios, e fins (ainda que não necessariamente nessa
ordem). Em síntese, nossa existência já segue de algum modo um enredo
prévio, antes mesmo que conscientemente busquemos uma narrativa na qual
reinscrever nossa vida como história de vida (KEARNEY, 2012 p. 412).
e toda história de vida tem um corpo, parafraseando Binswanger (2002), as narrativas são
fundamentos mais que importantes para a vida do sujeito, não há uma bifurcação entre a
mente e o corpo, ou mesmo entre as narrativas das diversas pessoas, pois se narrando e sendo
narrado é que se estrutura a própria indentidade.
As narrativas são primordiais nas comunidades indígenas, em que a oralidade é a
principal ferramente de perpetuação da cultura, dos saberes. Sendo assim, narrar e ser narrado
é fundamentalmente à prática cotidiana. Mas também narrar os mitos fundadores e etiológicos
é fundamental nas mudanças de ciclos como ações exemplares.
Como salienta Kearney:
Mas a questão que mais precisamos ter em mente é que, desde a descoberta
grega da vida humana (bios) como ação significativamente interpretada
(praxis) até as mais recentes descrições da existência enquanto
temporalidade narrativa, existe um perpétuo reconhecimento de que a
existência seja inerentemente narrativa. A vida está prenhe de histórias. Ela é
um enredo nascente em busca de uma parteira. Porque dentro de cada ser
humano existem inúmeras pequenas narrativas tentando escapulir.
(KEARNEY, 2012, p 413).
66
Por isso, nas comunidades siberianas o xamã não pode ser confudido com um mago ou
um medicine man, um feiticeiro ou qualquer outro sacerdote, ele tem especificidades, usa
ferramentas de transe específicas, como comenta o antropólogo Michael Harner:
Esse processo é mediado pela formação e instrução do xamã, que obedece a uma
estrutura tradicional, segundo Eliade (1998), na Sibéria e no nordeste da Ásia, as principais
vias de recrutamento dos xamãs são: 1) transmissão hereditária da profissão xamânica e 2)
vocação espontânea (o ―chamado‖ ou ―escolha‖). Há também casos de indivíduos que se
tornam xamãs por vontade própria (como, por exemplo, entre os altaicos) ou por vontade do
clã (tungues etc.). Mas, estes últimos são considerados mais fracos do que aqueles que
herdaram a profissão ou atenderam ao ―chamado‖ dos deuses e dos espíritos. Qualquer que
tenha sido o método de seleção, um xamã só é reconhecido como tal após ter recebido dupla
instrução: 1) de ordem extática (sonhos, transes, etc.), 2) de ordem tradicional (técnicas
xamânicas, nomes e funções dos espíritos, mitologia e genealogia do clã, linguagem secreta,
etc.). Essa dupla instrução, a cargo dos espíritos e dos velhos mestres xamãs, equivale a uma
iniciação. A partir dessas definições, Mircea Eliade, partiu para um olhar pormenorizado de
detalhes das práticas xamânicas em outras culturas, e também se aprofundou no uso das
indumentárias, do tambor, os mitos, as experiências visionárias etc.
69
Fonte: https://ahmetustanindefteri.blogspot.com.br/search/label/%C5%9Faman
A figura da gruta de Les Trois Frères nos Pirineus franceses, que foi chamada de
Feiticeiro Dançador, é considerada por alguns estudiosos como representando um xamã.
Outra interpretação possível é a de que represente um espírito Senhor dos Animais
personificando simultaneamente a essência de todas as espécies. Sabemos que, até hoje, em
diversas reservas indígenas norte-americanas, ou em alguns casos, como na América do Sul,
70
Fonte: https://ahmetustanindefteri.blogspot.com.br/search/label/%C5%9Faman
Em qualquer caso, a vista fantástica do homem leão como uma relíquia única para o
mundo espiritual do povo da última era do gelo, mesmo sem a possibilidade de decifrar a sua
visão de mundo complexo, é significativa, como um processo de narração das ações, de um
xamã, ou de uma visão com o espírito animal.
Para Eliade, no momento em que o homem simboliza a realidade, esta, ganha um
sentido totalmente diferenciado, e tal sentido possibilita a temporalidade. (Eliade, 1971) A
possibilidade de investigar a sua experiência e se projetar no mundo, e desse processo culmina
a narrativa, que se alimenta de símbolos para revelar o ser:
15
A figura maior e mais espetacular de marfim é o leão-homem, uma criatura mítica de animais e seres
humanos. Fragmentos de escultura tinham sido descobertos na Caverna Stadel em Hohlenstein no vale de Lone,
no último dia da campanha de escavações em 1939, que foi cancelado por causa da eclosão da Segunda Guerra
Mundial. Apenas cerca de 30 anos mais tarde, as peças de marfim foram identificadas como partes de uma
figura, mais de duas décadas se passaram até que a estatueta foi restaurada profissionalmente. No entanto, ainda
carecia de partes importantes da figura.
71
aforadas e invadidas, indo buscar refúgio junto aos Kariri da outra margem
do rio.16
16
Artigo pesquisado, site: http://www.karirixoco.com.br/2006/index.php
17
Podemos encontram mais elementos no texto: MOTA, Clarisse Novaes da. e ALBUQUERQUE, Ulysses P.
de. (ORGs). As Muitas Faces da Jurema – de espécie botânica à divindade afro-indígena. Ed. Bagaço. Recife/PE,
1996 ver também LANGDON, E. Jean Matteson. Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis:
UFSC, 1996.
73
Devereux, que sustenta com firmeza que não há motivo para não considerar
os xamãs neuróticos, e até mesmo psicóticos; e Silverman, que associa o
estado xamânico de consciência à esquizofrenia aguda. Por outro lado, Jilek
acha o rótulo de patologia ―absolutamente insustentável‖, após seus anos de
experiência com xamãs na América do Norte, África, Haiti, América do Sul,
Tailândia e Nova Guiné. Ele tem formação em psiquiatria e antropologia, e
acredita que a opção pela patologia será progressivamente refutada, à medida
que se expandir o campo da psiquiatria transcultural. Um artigo da autoria de
Richard Noll recapitula as colocações dos dois polos da controvérsia e
conclui que metáfora da esquizofrenia de um fracasso em discriminar
diferenças fenomenológicas entre o estado xamânico de consciência e o
estado esquizofrênico de consciência. Ele afirma que a distinção mais
importante é pertinente à violação: o xamã, como ―mestre do êxtase‖, entra e
sai conforme deseja do estado alterado; o esquizofrênico não tem controle
algum sobre esta atividade e é uma infeliz vítima da desilusão, com uma
notável deterioração no desempenho dos papéis. Harner enfatiza que o xamã
deve comportar-se de modo apropriado tanto na realidade ordinária, como no
estado xamânico de consciência para ser uma pessoa em que se possa
acreditar e manter seu status na comunidade. Distinguir conteúdos dos
diferentes níveis de realidade é impossível para o esquizofrênico, mas,
conforme coloca Noll, ―a validade de ambos os reinos é reconhecida pelo
xamã, cuja mestria deriva de sua capacidade de não confundir os dois‖.18
De certa forma existe a propensão para uma relação entre os dois estados pra quem está
olhando sem compreensão do fenômeno, o que era comum desde o início das pesquisas
etnológicas no século dezenove. Como comenta Eliade, alguns teóricos chegam mesmo ―a
fazer a distinção entre um Xamanismo ártico e um subártico, dependendo do grau de doença
mental de seus representantes‖ (ELIADE, 2002, p. 37-38).
Entre tribos australianas e os esquimós é comum o caso de membros que tenham epilepsia
sejam direcionados para se tornarem xamãs. Isto pelo fato que têm de entrar num estado de
consciência alterado.
18
Em: http://www.xamanismo.com/universo%20xamanico/o-xamanismo-e-a-esquizofrenia-2/
74
como grave erro que quase certamente findará em morte (FROTA, p. [26],
[200?].19
Por serem figuras que transitam entre os dois mundos, e em geral permanecem nesse
estado de ambiguidade durante a vida toda, tendem a se assemelharem a pessoas antissociais,
introvertidos etc. Casos de transe também são comuns, como atos histéricos, onde eles saem
pela aldeia às vezes imitando o animal guardião, se aprofundam na mata etc. O xamã não é
um doente. É um curador, que primeiro curou a si mesmo. Quando ocorre nos casos o ataque
epilético, é sinal que a iniciação teve início. Muitas vezes o xamã tenta ser tratado por outros
xamãs e curandeiros da aldeia, mas não têm resultado, ele precisa curar a si mesmo como
parte do processo iniciático.
Isso pressupõe que ele passe a ter domínio sobre a doença, ou seja, passa a ter controle
sobre os maus, e sobre espíritos malígnos. As doenças por vezes iniciadas por espíritos
malignos, logo que são tratadas pelo empenho do xamã, passam a serem seus aliados. A
singularidade da doença xamânica já evidencia o fato do sujeito ser um vocacionado para tal
finalidade. Nesse sentido, pode-se dizer que o xamã se torna um mestre das enfermidades. Ele
conhece muito bem a doença, e tem domínio sobre ela. Por isso se fala de um curador ferido,
ou seja, aquele que teve o corpo dilacerado para que pudesse ter o conhecimento e o domínio
no processo da doença, acaba por curar os outros, sendo que doou sua própria sanidade e
bem-estar para ser um portal de tratamento dos membros da comunidade.
Sabe-se que de um modo geral todas as religiões, e mesmo as formas mágicas das
religiões dos primitivos, são psicoterapias, são formas de cuidar e curar os sofrimentos da
alma e os padecimentos corporais de origem psíquica. E o efeito simbólico no corpo é
impressionante, e pode ajudar a aliviar diversas enfermidades:
19
http://www.xamanismo.com.br/Teia/SubTeia1191316319It001
75
Lévi-Strauss em sua análise nos diz que a experiência do doente na cura xamanística é
menos importante que a crença coletiva, no entanto, sem desconsiderar que este pode torna-se
76
um xamã após a cura20. ―As experiências do doente representam o aspecto menos importante
do sistema, se excetua o fato de que um doente curado com sucesso por um xamã está
particularmente apto para se tornar, por sua vez, xamã [...]‖ (LÉVI-STRAUSS, 1967 p. 208).
Dentre esses modos básicos de aquisição dos poderes xamânicos, algumas explicações
apontaram para patologias como fatores determinantes. Algumas teses indicaram o meio
ártico como motivo geográfico para a manifestação de doenças nervosas que passariam a
caracterizar o Xamanismo. Outras afirmam que se tratava de uma doença real, que passou a
ser imitada dramaticamente. Eliade não considera essa visão patológica, pois conclui que há
um equilíbrio mental entre os atores do fenômeno, ao contrário do que até então se propalava
em outros estudos. A iniciação de um xamã dá-se pela cura e pelo poder de autocura; cura-se
pelos espíritos que se tornam protetores e auxiliares (ELIADE, 2002).
Os indivíduos podem buscar a cura xamânica para muitas doenças diferentes. Se eles
estão vivendo dentro de uma cultura xamânica, a cura xamânica é tipicamente parte de uma
abordagem multidisciplinar usada para qualquer doença ou desequilíbrio, em parceria com
curandeiros, utilizando medicamentos botânicos, mudanças na dieta e outras terapias.
Na sociedade ocidental contemporânea, a cura xamânica é desconhecida para a
maioria dos indivíduos não-indígenas. Apesar disso, as pessoas estão encontrando seu
caminho no Neoxamanismo urbano para todos os tipos de problemas de saúde, mas
especialmente quando eles não estão tendo melhorias satisfatórias com a medicina alopática.
A perspectiva sobre a doença no indivíduo é diferente no Xamanismo do que na visão
médica alopática. Em uma visão xamânica:
20
Para ampliar o assunto, consultar Lewis (1977) e Maués (1990)
77
Certas doenças são mais propensas a ter um componente espiritual que pode responder
a técnicas de cura xamânicas. Essas incluem diagnósticos psicológicos como depressão,
ansiedade, vícios etc.
Doenças que se manifestam fisicamente ainda podem ter fundamentos espirituais
significativos. Isto é especialmente verdadeiro para as doenças que têm apresentações atípicas
ou prematuras em adultos, ou jovens, tal como no caso de doença degenerativa, que
normalmente ocorre em pessoas mais velhas.
A sensação de que algo está ―ausente‖ ou que ―eu não tenho sido a mesma pessoa
desde...‖ muitas vezes pode ser um indicativo de uma perda de energia de algum tipo,
incluindo perda da alma.
O trabalho de cura xamânica requer duas fases distintas:
O diagnóstico preciso das energias visíveis e invisíveis na raiz do problema.
Realização da ritualística específica para resolver o problema.
O xamã pode remover energias que estão inadequadamente presentes, ou devolver
energias que foram perdidas. Isso inclui a recuperação da alma para alcançar a cura através do
retorno de partes perdidas. Esse processo, em sua totalidade, é mediado pela narrativa, e
prioritarimante pela linguagem apropriada:
Quando um indivíduo está vivendo dentro de uma comunidade que existe esse tipo de
trabalho, há tempo e apoio para a integração e processamento que um indivíduo deve fazer
para completar a maioria dos processos de cura. Na sociedade contemporânea, o xamã e o
―cliente‖ devem criar os recursos e estrutura para o indivíduo ajustar-se à mudança simbólica
no ambiente totalmente diferente e sem lastro de crenças, criando um trabalho muito mais
complexo de ser realizado. Nesse sentido, o Neoxamanismo urbano precisa encontrar uma
linguagem própria ao ambiente de seu domínio.
78
A cura xamânica é um método de cura espiritual que lida com o aspecto também
espiritual da doença. Do ponto de vista xamânico, há três possíveis causas para uma doença.
Uma pessoa pode ter perdido seu poder, o que causa depressão, doenças crônicas, ou uma
série de desventuras. Nesse caso, o xamã realiza uma jornada para restaurar o poder da
pessoa. Ou a pessoa pode perder parte de sua alma ou de sua essência, o que causa a perda da
alma, e isso geralmente ocorre durante um trauma físico ou emocional, como um acidente,
uma cirurgia, abuso, trauma da guerra, presenciar um desastre natural, a morte de um ente
querido, ou outras circunstâncias traumáticas.
A perda de alma pode resultar em dissociação, síndrome pós-traumática de estresse,
depressão, indisposição, problemas de deficiência imunológica, vícios, aflição interminável,
ou coma. A perda da alma impede que se criem relacionamentos saudáveis, ou a vida que se
deseja. É esta a função do xamã: rastrear as partes que partiram e se perderam devido ao
trauma, através de uma cerimônia de recuperação da alma. Outra causa de doença, segundo a
perspectiva xamânica, seria qualquer obstrução espiritual ou energias negativas que um
cliente absorve, devido à perda de seu poder ou sua alma. Essas obstruções espirituais
também causam doenças, geralmente em uma área localizada do corpo. Esta é a função do
xamã: extrair e remover as energias prejudiciais do corpo.
―Doença = desintegração‖, essa fórmula ajuda a compreender esse processo, é um
modo diferente do ocidental de pensar o tempo, a doença iniciática tem contextos diferentes.
Vejamos um exemplo, em entrevista21 o Pajé Sapaim (Kamayurá) comenta como foi sua
iniciação:
Sapaim: Olha eu... é... tem muito pajés na tribo...e...pajé não aprendeu com
eles. Eu fui escolhido por Mamaé. Mamaé que significa o espírito.
Na época que eu nasci de minha mãe.... o espírito estava lá olhando quando
eu nasci... quando eu nasci de minha mãe o espírito sentiu minha energia...
quando eu nasci. Disse que para ela eu nasci forte e muito bom. Então o
espírito me escolheu..... para eu ser pajé. E, eu não sabia que ele tinha me
escolhido para ser pajé.... e eu cresci ...andei...e eu acho... que eu tinha mais
ou menos nove anos de idade. E chegou meu sonho... primeira coisa eu
sonhei.....eu fumava charuto...um charuto grande...eu fumava....e voava...e
corria no sonho. Eu cai dentro da lagoa e vi todos os espíritos dos peixes, os
espíritos que vivem na água. E com isso eu ficava sonhando...
sonhando...sonhando.... até que me deu medo esse sonho. E... meu pai já foi
pajé também. Meu pai ele entrou....
21
http://www.xamanismo.com.br/Aldeia/SubAldeia1192137359It007
79
Continua
Aí eu cresci... e fiquei rapaz... eu acho que mais ou menos 12 anos... que
aconteceu. Eu acompanhei meu irmão mais velho... ele é pajé também...o
nome dele é Tacumã. O meu pai já tinha falecido. Aí eu lembrei muito meu
pai e fiquei muito triste... e lembrava o que ele dizia de eu ser pajé....e
acompanhava meu irmão...no começo... e a gente fou plantar mandioca,
milho, melancia, abacaxi, banana...e de manhã, por volta das 10h não tinha
vento...e de repente veio a luz do Mamaé, bem grande, onde nasce o Sol...
Aí veio bem branco e caiu em nosso lado... caiu e estourou.... bummm...aí
subiu...e de repente eu recebi uma energia dele...Como se a gente está com
febre né...aí eu falei: Meu irmão...eu não to bem...to com febre . Ele disse:
Então...vamos para a nossa oca. Vamos voltar. Aí nós chegamos tarde... por
volta das 4:30h...quando eu cheguei na minha oca, piorei muito...Piorei
bastante. E, deitei na rede.... e quando o Sol acabou...ele veio....Mamaé veio.
Entrou e foi direto onde eu estava... onde estava a minha rede...aquele
charutão grande e comprido... (...) Aí Mamaé sentou...s ó que a família da
oca não viu ele entrar...Ele sentou ao meu lado e ...minha irmão e meu
irmão...fizeram fogueirinha para me esquentar... eu tava tremendo... e eu via
ele....Ele disse: Você ficou com medo de mim quando eu cai de seu lado
(tratava-se de uma queda)...eu que cai de seu lado...eu que escolhi você para
ser pajé. Aí não tem como fugir né? Do que ele falou!
Após várias tentativas de cura Sapaim continuou caído da enfermidade até
que o Mamaé decidiu passar a sua força pra ele: (...) E ele ficou passando a
energia em meu corpo e eu fiquei um mês na rede sem comer, sem beber,
sem falar, sem enxergar. Depois de um mês ele disse... Ele me chamava de
neto... Ele disse: Neto! Você agora está bem preparado, você agora está
muito forte, e você vai ser o maior curandeiro da tribo. Os pajés daqui
diziam que era tudo mentira, Que ele não mostrava energia. Que ele tem que
mostrar. Aí depois de um mês ele me fez mais uma vez desmaiar. Eu fiquei
mais de uma hora desmaiado. Depois ele soprou e eu respirei. Aí ele disse:
Agora você já está bom e pode levantar. Aí eu não sentia mais aquela
energia toda na cabeça e fiquei livre. Fiquei bom.
Depois ele disse: Agora você já está bom e eu vou tirar aqui (olhos). Tirou
pendurou soprou e sumia. Depois tirou daqui (boca) soprou e sumiu. Ele
disse: É assim que você vai tirar a dor de seu povo e de toda a sua família.
Você tem que mostrar para todos os pajés da aldeia. (...) E aí fiquei bom!
Fiquei bom e nunca senti mais nada. Aí ele disse: Agora, você vai ficar na
sua oca, não pensa em sai, não pensa em pescar, não pensa em caçar...
(...) Sem comer, sem beber... Ele ficava jogando a fumaça... para eu não
sentir fome. Daí... fiquei bom . Aí ele disse: Agora eu não vou dizer para
você ficar um mês, dois meses na sua oca não! Agora você vai ficar dentro
da sua oca um ano. E, fiquei um ano... (...) Aí eu não saia nem de dia e nem
de noite. Ficava lá preso. Eu só ficava rodando dentro da casa.... da oca. Aí
depois de um ano ele mandou sair: Pode sair!
(...) Não sei quantos anos eu tenho (gargalhadas...). E eu saí e depois ele
mandou voltar para eu ficar mais dois anos dentro da minha oca.
espíritos, os pajés que visitam o menino não têm pressa. Todos estão num estado de espera
interminável, não existe o caos, tudo é previsto e têm seu desenlace natural.
O tempo dentro do modo de ser indígena é muito mais cíclico, com isso se quer dizer
que é um tempo que segue os ciclos naturais, as estações do ano, as marés etc. Não está fora
do tempo da natureza, isso num sentido geral, afinal sabemos que o indígena pratica um
tempo por ele estabelecido e não necessariamente o tempo da natureza, mas ele se esforça por
observar os tempos, e por tentar reproduzir e se tornar parte desses ciclos naturais. O mesmo
se dá para as iniciações para a vida adulta, eles vão acompanhar o amadurecimento biológico,
como dado predominante para esse fim.
O mesmo pode ser observado nas religiões de herança africana:
E continua:
pelo roubo feito por um espírito ou ainda um xamã de outra tribo, que prende a alma do
indígena. E onde está a alma? Os três mundos conhecidos do xamã, citados anteriormente,
ficam no eixo do mundo, na àrvore do mundo, onde o xamã irá realizar sua jornada, e
resgatar, onde quer que estejam, as almas perdidas ou aprisionadas.
Quando a alma retorna ao corpo o xamã pode perceber, pelo relinchar de um cavalo,
pelo vento nas árvores, pois há diversos sinais que contribuem para o xamã ter a assertiva que
a alma está de volta ao doente. Nesses casos, o xamã então direciona a alma ao corpo com um
sopro forte, às vezes no peito ou no topo da cabeça.
Para os gregos, o destino se dava através dos sonhos, ou ―incubação dos deuses‖, onde
passavam pelo menos uma ou mais noites dormindo no solo sagrado, em templos como o de
Delfos, para receber um recado, que sempre vinha através do sonho. Os oráculos de Zeus
eram transmitidos, entre outros, por incubação das sacerdotisas. Estas, para estarem em
contato com o deus num aspecto ctônico (o que demonstra sua antiguidade), deviam dormir
no chão, andar descalços e não lavar os pés.
Entre os índios Siona na Amazônia boliviana, existe um complexo de imagens
metafóricas capaz de explicar todos os sonhos, um conjunto bem elaborado de símbolos e
significados (LANGDON, 1999). O sonho aqui vivenciado pelo grupo é catártico, é como se
todos estivessem vivendo o mesmo sonho. Os símbolos remetem a todos.
Durante esses retiros profundos que podem durar anos, o xamã fica isolado; no Brasil
pajés chegam a ficar dois ou três anos dentro de uma oca, sem contato com o mundo exterior.
Pajé Sapaim da Nação Kamayurá é o Pajé geral do Xingu e pertence a uma categoria especial
de Pajés, pois não aprendeu seu ofício de outro Pajé, mas sim de um ―Mamaé‖ – espírito guia.
Seu aprendizado veio através de sonhos, durante o período em que ficou recolhido em sua oca
ou no meio da mata sem ter contato com pessoas. Até hoje, esse ―Mamaé‖ está a seu lado,
trazendo orientações sobre os casos que atende, seja dizendo o que deve ser feito na
continuidade do tratamento, ou na indicação de folhas, vegetais (remédio) adequados para
cada caso.
Eu curo pela mão, eu sinto a energia da pessoa pela mão. A dor da pessoa
passa na minha mão, dá choque. Os locais que eu sinto, coloco fumaça em
cima, jogo a fumaça na minha mão e aperto, essa energia aparece na minha
mão e eu mostro. Jogo a fumaça, sopro e some. Isso é o meu trabalho.
Depois disso, eu rezo as pessoas. Eu sinto energia diferente quando pode
tratar e quando não vai curar, mas pode melhorar.24
22
Texto pesquisado em: http://amigosdacura.ning.com/profiles/blogs/paj-sapaim
23
Texto pesquisado em: http://amigosdacura.ning.com/profiles/blogs/paj-sapaim
24
Pajé Sapaim, O Mensageiro do Tempo, programa exibido pela TV Cultura em 07/Fev.2010, na série de
documentários Janela Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=nweYxWG72ew
25
Exemplo de uma entrevista em: http://www.xamanismo.com.br/Aldeia/SubAldeia1192137359It027
84
Percebe-se que o xamã pede ao mestre para recebê-lo em sua casa. Tal gesto
representa esse estado de discípulo de um curador mais velho, que detém a sabedoria da
comunidade. Ele recebe as práticas e os exercícios que devem fazer parte do seu treinamento,
e começa a realizar o treinamento a partir das indicações do ancião. Simultaneamente ao
treino tradicional, o xamã atua com os espíritos, em geral tais espíritos são pássaros, que
ajudam o xamã a realizar os primeiros voos:
Como afirma Eliade:
26
http://www.xamanismo.com.br/Universo/SubUniverso1191052266It003
86
Em outra assertiva:
Mais que uma relação direta com o voo, o xamã descende desse espírito criador:
A árvore do mundo é central, dela nasce todo o poder do xamã, e por intermédio dela
encontra-se o espírito. O voo é elemento preponderante, e, por isso, é preciso o retorno ao
centro do mundo para acessar os mundos possíveis:
O espírito e o xamã criam um elo fundamental, que defini sua força, sua capacidade de
interagir com mundo espiritual está vinculada à realidade profunda dessa conexão. Por sua
vez, Reichel-Dolmatoff descreve um ritual Desana:
Os dois exemplos – dos Desana e dos Arawete – mostram como existe uma conexão
profunda entre o xamã e o espírito aliado. Os Asurini têm uma relação direta com esses
espíritos, são como aliados, que ajudam o xamã nos trabalhos de cura. Tais espíritos servem
de alimento energético para esses pajés, que utilizam sua energia para se fortalecerem:
Ver os espíritos é mais que uma relação imaginativa, é uma realidade que transcende a
nossa forma de conhecer o mundo. Isso porque o ―ver‖ no Xamanismo é o ver profundo, e
esses espíritos se apresentam de forma real neste mundo, e através deles se pode iniciar a
conexão que irá se aprofundar no mundo espiritual. Talvez não haja uma divisão entre os
mundos e sejam, na verdade, uma continuidade um do outro, e os xamãs podem acessar esse
processo imeditamente durante o transe. O espírito tem uma materialidade, e é o que ocorre
no chamado casamento celeste, onde esses espíritos se reúnem ao xamã de uma forma
amalgamada.
27
Pesquisa em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/arawete/110
28
Pesquisa em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/asurini-do-xingu/1284
89
Geralmente sua presença é evidenciada pela imitação feita pelo xamã das
vozes dos animais ou de seu comportamento. O xamã tungue, que têm uma
serpente como espírito auxiliar, esforça-se por imitar através de mímicas os
movimentos do réptil durante a sessão; [...] Aparentemente essa imitação
xamânica dos gestos e das vozes dos animais pode passar por ―possessão‖,
mas talvez fosse amis exato dizer que o xamã toma posse de seus espíritos
auxiliares: é ele que se transforma em animal, do mesmo modo como obtém
resultado semelhante usando uma máscara de animal; ou então poderia falar
de nova identidade do xamã, que se torna animal-espírito e ―fala‖, canta ou
voa como os animais e pássaros. A ―linguagem dos animais‖ não passa de
uma variante da ―linguagem dos espíritos‖, linguagem xamânica secreta [...]
Gostaríamos de chamar a atenção para o seguinte aspecto: a presença de um
espírito auxiliar na forma animal, o diálogo com este numa língua secreta ou
a encarnação desse espírito-animal pelo xamã (mascaras, gestos, danças etc.)
são também meios de mostrar que o xamã é capaz de abandonar sua
condição humana, que é capaz, em suma, de ―morrer‖ (ELIADE, 2002, p
112-113).
Essa linguagem secreta representa uma linguagem metafórica, que o xamã toma
contato ao se relacionar com o mundo espiritual, é uma linguagem universal, no sentido que
convoca imagens materiais que podem ser observáveis pela audiência de observadores do
transe xamânico. O conhecimento e poder sobre esses animais são muito importantes, visto
que ―aprender a linguagem dos animais, sobretudo a dos pássaros, equivale, em qualquer
parte do mundo, a conhecer os segredos da natureza e, portanto, a ser capaz de profetizar‖
(ELIADE, 2002, p 117).
O domínio sobre a natureza, e como diz Eliade, a principal característica de que o
xamã pode viajar pela àrvore do mundo, entre mundo subterrâneo, intermediário e superior,
representa para muitos uma capacidade extra-humana, que tem um chamariz muito forte
dentro dos grupos de Neoxamanismo urbano, e que não pode deixar de figurar como uma das
90
Esse encontro ocorre durante a Vision Quest, lamento por uma visão, busca da visão,
uma cerimônia tradicional em que o índio vai para as planícies e cânions, e fica em jejum por
uma dezena de dias em busca de uma profecia, ou em torno de uma missão que deverá guiá-lo
na comunidade, essa visão em geral pode vir acompanhada da revelação do espírito guardião.
O espírito é um elemento importante de aquisição de poder no Xamanismo, mas a conexão é
através da ida do xamã ao mundo espiritual, esses espíritos, quando se apresentam nesta
realidade, são bem palpáveis. Como mencionado, um espírito animal é muito importante para
o xamã adquirir poder, e mesmo para toda comunidade.
91
O futuro xamã, um ―louco‖ ou não, em conexão e a dedicação para passar por certo
numero de testes e receber instruções - às vezes extremamente complexas, não pode
necessariamente ser um doente comum. Como expõe Eliade:
Acredita-se que ele é ensinado pelos deuses, e, claro, é algo incomum para o homem
moderno compreender essa forma de instrução mística. Mais frequentemente toda a
aprendizagem começa com o aparecimento de um distúrbio mental ou distúrbios de
comportamento do futuro xamã, considerados como um sinal de eleição para a ―profissão‖
xamânica, e ainda requer uma iniciação especial, ―iniciação‖, que também é levada a cabo em
sonhos e transes (Estados Xamânicos de Consciência) de natureza dolorosa:
A seleção xamânica nos Andes pode ser realizada por uma série de
indicadores. Acredita-se que uma pessoa tem vocação xamânica e talento
para ver além dos limites da realidade empírica. Profissionais muitas vezes
alegam ser descendentes de uma longa linha de xamãs, como uma forma de
demonstrar tanto o seu poder e autenticidade aos potenciais clientes. A
vocação também pode ser indicada por ser apontada no nascimento de
alguma forma. Nascendo um irmão gêmeo, que tem marcas de nascença
visíveis, ou ter defeitos de nascimento óbvios são exemplos dessa marcação
xamânica. Outros indicadores de vocação incluem as visões ou sonhos
(inspirados ou não pela ingestão de enteógenos) que sinalizam um chamado
divino para servir sua comunidade. Essas visões ou sonhos podem revelar
uma tendência para ver o mundo espiritual, adivinhar o futuro, curar o
doente, ou comandar falanges espirituais. Porém a vocação xamânica é mais
frequentemente revelada para o futuro praticante através da experiência de
quase morte, na chamada doença do xamã. A sobrevivência de uma
enfermidade com risco de vida que se foi curado por outro xamã ou por
autocura é um exemplo disso. Sobreviver a um acidente ambiental incomum
(especialmente o de ser atingido por um raio) fornece outro.29
2.5 A subida pelo arco-íris: subida aos céus e descida aos infernos
A subida pelo arco-íris é uma das mitologias mais comuns entre os xamãs, os
Wapichana tratam deste tema, para poder acessar a partir dos índios brasileiros, por exemplo:
Esta variação de subida aos céus é muito difundida, Eliade fala sobre a subida aos céus
na iniciação do xamã siberiano, que é levado pelo xamã mais velho até o topo do arco-íris e
de lá é jogado para que se despedace, em seguida é remontado, como parte do processo de
renascimento. ―Deve-se ter em mente um fato: durante a sessão, o xamã restabelece só para si
uma situação que na origem era de todos‖ (ELIADE, 2002, p. 196).
Está intrínseca em todo o trabalho da viagem do xamã a árvore como simbolismo do
centro do mundo, uma passagem para o cosmos. Verificou-se, sucintamente, a ascensão pela
árvore. No seguimento, será observado como ela se dá através do arco-íris.
O xamã sobe pelo arco-íris; o arco-íris tem ligação com um animal, a serpente, é como
montar numa grande serpente colorida. Ainda que de modo indireto, esses mitos fazem alusão
ao tempo em que a comunicação entre o Céu e a terra era possível. Percebe-se, também, o
simbolismo da ponte apresentado pelo arco-íris (ELIADE, 2002).
30
EQUIPE DE EDIÇÃO DA ENCICLOPÉDIA POVOS INDÍGENAS NO BRASIL, dez. 2008. Edição a partir
do texto: FARAGE, Nádia. Os múltiplos da alma: um inventário de práticas discursivas wapishana (1998).
Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/wapichana/2007
94
31
Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/853
95
A vestimenta do pajé Waiãpi se torna instigante nesse sentido, ele carrega elementos
que são visíveis neste mundo, mas que têm efeito no mundo espiritual. Esse caso é muito
interessante (GALLOIS, 1996), o que ele chama de i-paie, que representa a força espiritual,
32
ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 169.
97
como em redes. O xamã pode, por exemplo ter uma adaga, ou mesmo uma arma de fogo
costurada em sua indumentária, para que esta seja utilizada no mundo espiritual.
Nota-se que nas mesas andinas (tecidos que são dispostos no chão em frente ao xamã)
também são colocados objetos congêneres, que também buscam representar esta força do
xamã. A mesa andina não é necessariamente uma vestimenta, mas é uma extensão dos
adereços do xamã. De qualquer forma, na cultura Waiãpi pode-se observar essa dinâmica das
forças espirituais:
2.6.2 O esqueleto
primeiro xamã nasceu da união de uma águia com uma mulher e, por outro,
o próprio xamã trata de transformar-se em pássaro e voar; na verdade, ele é
um pássaro, porquanto tem acesso, como este último, às regiões superiores.
No caso em que o esqueleto – ou a máscara – transforma o xamã em outro
animal (cervo etc.), trata-se de teoria similar, pois o animal-ancestral mítico
é concebido como matriz inesgotável da vida da espécie, matriz reconhecida
nos ossos desses animais (ELIADE, 2002, p. 184-185).
Os ossos são uma forma de eternizar o processo iniciático e como comenta Eliade, este
processo de portar esqueletos ou visualiza-los é uma forma de representação do contanto com
o mundo espiritual:
O esqueleto tem forte representação dentro da prática xamânica, e não se pode deixar
de tratar dele neste módulo.
Como partes da indumentária têm as máscaras, mas também em muitos casos o uso de
pinturas corporais, em todos os casos elas carregam a mesma simbologia que discutimos até
aqui, vejamos uns exemplos:
Pintar o rosto para a guerra, para espantar os maus espíritos, ou mesmo para adquirir
uma nova identidade é todas características do trabalho xamânico. Cobrir o rosto de fuligem é
um dos meios:
Por essas razões, e considerando os múltiplos valores que ela assume nos
rituais e nas técnicas do êxtase, pode-se concluir que a máscara desempenha
o mesmo papel que a indumentária do xamã e dizer que os dois elementos
são intercambiáveis. De fato, em todas as regiões onde é utilizada (e fora da
ideologia xamânica propriamente dita), a máscara proclama manifestamente
a encarnação de um personagem mítico (ancestral, animal mítico, deus). A
indumentária, por sua vez, transubstancia o xamã, transformando-o diante
dos olhos de todos em ser sobre-humano, seja qual for o atributo
predominante que se procure ressaltar: prestígio de um morto ressuscitado
(esqueleto), capacidade de voar (pássaro), situação de marido de ―esposa
celeste‖ (roupas de mulher, atributos femininos) etc (ELIADE, 2002, p. 193).
2.6.4 O palhaço
33
Fonte: http://www.xamanismo.com.br/Teia/SubTeia1192610740It003
102
Heyokas, por exemplo, lembram seus povos que Wakan Tanka, o grande mistério, está
além do bem e do mal; que a sua natureza primordial não corresponde a limites humanos de
certo e errado. Heyokas agem como espelhos, refletindo as dualidades misteriosas do cosmos
de volta para seu povo. No caso, nem sempre o indivíduo deve seguir os preconceitos do que
é esperado e adequado. Como exemplo desses povos, realmente eles não se preocupam com
os problemas e preocupações humanas. Palhaços sagrados são adeptos a unir alegria com dor,
agindo sobre os imperativos mais altos e inescrutáveis do grande mistério. Eles tendem a
governar transição, introduzir paradoxo, fronteiras, e misturar o sagrado com o profano. Eles
são chamados a restabelecer a ponte entre os mundos físico e espiritual.
Eles se atrevem a fazer as perguntas que ninguém quer respostas. Eles são os avatares
incontroláveis do arquétipo Malandro, imagem constante de contingência e arbitrariedade da
ordem social, abrindo buracos em qualquer coisa levada muito a sério, especialmente
qualquer coisa assumindo o disfarce de poder. A ambiguidade e a integração dos opostos: Que
é a verdade? Essa questão impulsiona o palhaço na dimensão sagrada. Ele se torna sagrado,
abrindo-se. Como uma criança, ela é vulnerável, fluido e aberto à força da vida. Ao contrário
de uma criança, no entanto, ela aprendeu a proteger-se e mover-se com segurança através de
um mundo insano usando máscaras, disfarces, truques e transformações. Em um mundo são
ele poderia arriscar um pouco mais de exposição.
Os nativos americanos dizem que os Palhaços Sagrados são grandes amantes de
crianças, curando-as e protegendo-as. Além disso, um dos seus poderes é trazer fertilidade
para pessoas estéreis. Se o Guerreiro Sagrado personifica o Sol, o palhaço sagrado personifica
o vazio da grande abertura negra do espaço, o grande útero do qual todos nós nascemos.
(ARBOR, 1974).
Na sociedade Lakota o heyoka, o palhaço é visto como uma pessoa muito poderosa, e
importante quando se tem uma visão dos seres trovão, ele é chamado por Wakinyan, o Ser
34
Fonte: http://www.xamanismo.com.br/Teia/SubTeia1192610740It003
103
Trovão. Com esse serviço, ele deve fazer tudo ao contrário do que se entende. Isso muitas
vezes significa violar normas.
Por ser o veículo de contato com o mundo espiritual ele é considerado o cavalo, aquele
que carrega o xamã nas costas. Ele é o elo entre os mundos, o meio pelo qual se pode navegar
pela arvore cósmica:
Visto por esse prisma, o tambor pode ser equiparado à árvore xamânica de
vários degraus pela qual o xamã sobe simbolicamente ao Céu. Escalando a
bétula ou tocando o tambor, o xamã aproxima-se da Árvore do Mundo e a
escala efetivamente. Os xamãs siberianos também possuem suas árvores
pessoais, que outra coisa não são senão representantes da Árvore Cósmica;
alguns deles utilizam ainda "árvores invertidas" (fixadas com as raízes para
cima), que estão sabidamente entre os símbolos mais arcaicos da Árvore do
Mundo. Todo esse conjunto, somado às relações já notadas entre o xamã e as
bétulas cerimoniais, mostra os estreitos vínculos existentes entre a Árvore
Cósmica, o tambor xamânico e a ascensão celeste (ELIADE, 2002, p. 194-
195).
O toque do tambor leva ao transe, suas batidas repetidas de 180 a 200 batidas por
minuto levam o xamã a um estado xamânico de consciência. Este processo como dizíamos
anteriormente têm relação direto com in ilo tempore, no tempo sem tempo, nos primórdios da
criação. Ele não tem somente a finalidade de acompanhamento musical, mais que isso, ele
104
representa a cosmologia do xamã, é a entrada nos mundos, é o preparativo para a jornada. Por
ora, é suficiente mostrar que,
Muito comum vermos os tambores com desenhos, e suas representações estão ligadas
aos processos Iniciáticos do xamã, os ornamentos do tambor, com objetos mágicos, espíritos
aprisionados, referência aos ciclos naturais etc.:
Como dito anteriormente, o tambor também é utilizado como escudo, por espantar os
maus espíritos, e por ser utilizado como veículo. O trabalho com o tambor é muito rico, e sua
representação é pontencialmente relevante para iniciar e finalizar uma cerimônia xamânica, de
fato, o tambor às vezes,
[...] é utilizado para expulsar os maus espíritos (Harva, p. 537), mas nesses
casos seu emprego particular é esquecido, e o que ocorre é ―magia do ruído‖,
com a qual se expulsam os demônios. Exemplos semelhantes de modificação
de função são bastante frequentes na história das religiões. Mas não nos
parece que a função original do tambor fosse a de afugentar espíritos. O
tambor xamânico distingue-se justamente de todos os outros instrumentos da
―magia do ruído‖ por possibilitar uma experiência extática. A possibilidade
de essa experiência ter sido preparada, na origem, pelo encanto dos sons do
tambor – encanto ao qual se atribuiu o valor de ―voz dos espíritos‖ – ou de a
ela se ter chegado em decorrência da concentração extrema provocada por
uma tamborilada prolongada é problema de que não trataremos por
enquanto. Uma coisa é certa: o que determinou a função xamânica do tambor
foi a magia musical, e não a magia do ruído antidemoníaco (ELIADE, 2002,
p. 200).
cósmica, assim como as sementes, que representam os seres, e sua abóboda representa mundo.
Quando o xamã toca a maracá ele está movimentando o universo, ou o ―pluriverso‖ Por isso,
os grandes tocadores de maracás são bem respeitados nas tribos:
Toda grande história merece ser contada, e também vivida. A ação humana, não
pretende somente a narração, mas a ação da narração. A imitação de história de vida, de
Mythos é fundamental para a perpetuação da cultura e, nesse sentido, da espiritualidade
nativa. Este capítulo e o seguinte se ocuparão em retratar a recepção do discurso e da
linguagem própria do Xamanismo indígena no meio urbano, da Mímesis das narrativas
estudadas, até então, neste trabalho.
Todas estas histórias são potentes no imáginario humano, pode-se dizer que são ações
exemplares, e que valem ser replicadas, e ―é por isso que a ação de toda pessoa pode ser lida
como parte de uma história em desdobramento, e que cada história-de-vida clama por ser
imitada, ou seja, transformada na história de uma vida‖ (KERNEY, 2012, p. 413).
A Mimesis ―refaz o mundo, por assim dizer, à luz de suas verdades potenciais‖
(KEARNEY, 2012, p. 414) da experiência cumulativa da humanidade, e o entretecer das
histórias afirmando a necessidade da vida de se inscrever no futuro, e ela mesma agente de
sua interpretação. O conflito é movimento que define o ser humano como sujeito que se
constitui narrando e sendo narrado, mas também agindo e recriando as histórias de vida.
Esse processo é comum em comunidades indígenas, visto que a oralidade sofre
mudanças ao longo dos tempos, sem com isso ter algum problema com as práticas, que
evoluem com as narrativas tradicionais. Obviamente que não é uma mudança brusca, são anos
de pequenas mudanças até chegar aos novos paradigmas. Mesmo assim, há mudanças
consideráveis.
No Neoamanismo urbano, o processso é muito mais rápido e muito mais diverso. O
Neoxamanismo urbano se distingue do Xamanismo tradicional encontrado em sociedades
indígenas por adaptações ocidentais que se baseiam em raízes contemporâneas e modernas. O
Neoxamanismo urbano é praticado principalmente por pessoas que não se originam de uma
sociedade indígena tradicional e que criam métodos únicos que não seguem ou reivindicam
autenticidade em qualquer tradição anterior. O Neoxamanismo urbano enfatiza a manutenção
de respeito pelas tradições indígenas, reconhecendo enraizamento profundo das sociedades
indígenas em contato imediato com o mundo natural.
O Neoxamanismo urbano traça os seus começos para chegarem a um acordo com as
experiências de plantas psicoativas e de expansão da consciência usando seus próprios
quadros modernos de referência cultural influenciado pelos ritos indígenas em que a medicina
108
Este poder de recriação mimética mantém uma conexão entre ficção e vida,
ao mesmo tempo em que reconhece a diferença entre elas. A vida pode ser
adequadamente compreendida apenas ao ser recontada mimeticamente
através das histórias. Mas o ato de mímesis que nos permite passar da vida
para a história-de-vida introduz uma lacuna (ainda que mínima) entre a vida
e seu recontar. A vida é vivida, como nos relembra Ricoeur, enquanto as
histórias são contadas. E, em certo sentido, a vida não contada talvez seja
menos rica do que uma vida contada. Por quê? Porque a vida recontada abre
perspectivas inacessíveis à percepção ordinária. Ela marca uma extrapolação
109
35
O tema já foi tratado no trabalho de 2013: FIGUEIREDO, William Bezerra. Performance e Símbolo: uma
análise da folia de reis. São Bernardo do Campo, 2013.129 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2013.
110
Esse quadro mostra a variedade de práticas religiosas. E que podem ser atualizadas
desde a publicação deste artigo. Tal quadro também está repleto das diversas modalidades do
Cristianismo, não só da cultura popular, mas também dentro do Protestantismo, que mesmo
tendo uma narrativa de origem mais ou menos definida (Lutero, Calvino etc.), está imersa na
diversidade e pluralismo de ritualidades brasileiras.
A exemplo disso são as chamadas igreja Neopentecostais, que mesmo tendo como
discurso o ataque á diversas designações religiosas, bebem da prática mágico religiosa
popular, como banhos de ervas, uso do sal grosso, arruda, sete águas etc (LOPES, 2012).
Tais religiosidades neocristãs têm um espaço de autonomia em sua narrativa, e mesmo
que em muitos casos busquem sua origem até no antigo testamento (IURD) ainda têm a
preocupação de se tornarem independentes do Cristianismo ―oficial‖. Nesta ―luta‖ por espaço
religioso, tem ganhado quem mais oferece liberdade do ponto de vista social, grupos mais
ortodoxos vêm perdendo fiéis devido à rigidez do cânon e por não abrir espaço para
inovações. Um exemplo relevante é a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus):
Ou seja, existe abertura para o consumo e para ―tempos modernos‖ da vida mundana.
E em contrapartida deste movimento de diversidade religiosa vêm os ―sem religião‖. Que
cada vez mais aumentam nas pesquisas do senso, sendo já um fenômeno que deve ser
pesquisado com aproximação:
Esse universo laico também orienta a busca por práticas religiosas mais libertárias e
menos dogmáticas. O que, acredita-se, seja um elemento importante que está levando muitas
pessoas, principalmente jovens, para a prática do Neoxamanismo urbano. Um dado
importante é apresentando nesta pesquisa publicada na Revista Horizonte:
“O Índio, antes massacrado, transfigura-se no hierofante de uma nova revolução planetária, revela-
se como o bom selvagem de Rousseau, que é não apenas bom, mas também sábio, e que, visto assim,
passa a inspirar uma nova ordem cosmológica, proposta pelos nativos urbanos, estes modernos
tradutores e críticos” (Wesley Aragão de Moraes).
A Nova Era é ‗esse algo de novo e de antigo‘, que está hoje em nossa
sociedade: ela é uma moda e uma cultura, um lampejo espiritual e uma
colagem de sentimentos; é, ou desejaria ser, sobretudo um mundo religioso
novo que supera a estagnação e o impasse da secularização selvagem destas
ultimas décadas, trazendo alívio e oxigênio para a visão espiritual
enfraquecida pelos vários derreamentos e desfalecimentos da religião
provocados pelos ‗emancipados‘ dos grandres maîtres a penser, iluministas
ou não, que até ontem erguiam a voz em nome da razão contra tudo aquilo
que cheirava a religião e experiência religiosa [...] O novo e o antigo se
misturam, e, se o novo é fascinante, o antigo vem de longe, de épocas
anteriores ao próprio exercício tirânico e despótico da razão, vem do mundo
do transe religioso e extático, da dança sagrada, traz consigo reminiscências
da velha religiosidade ‗materna‘ e ‗natural‘ dos milênios que precederam o
patriarcado e se veste de tudo aquilo que ontem parecia ridículo e irracional
(Terrin, 1996, p. 14-15).
Portanto, observa-se que existe uma circularidade que expande a simples atuação
como um fenômeno urbano, de certas classes sociais, ditas abastardas que se orientam pelos
orientalismos e pelas escolas de Yoga etc. É um complexo fenômeno, que possivelmente é
anterior a pós-modernidade, mas que encontra neste momento histórico um aporte
metodológico e social para ampliar sua presença, em grande parte das cidades.
115
36
"Visión Chamánica" número 1 - Bogotá, fevereiro de 1999.
116
que utilizavam a planta sagrada, criando as religiões que se estabeleceram após os ciclos da
borracha (MIKOSZ, 2009).
A partir das religiões fundadas após o ciclo da borracha, o Alto Santo, a Barquinha, o
Santo Daime (CEFLURIS) e a UDV, surgem muitos outros grupos que, se formaram,
buscando uma abordagem mais independente das religiões, os quais deram origens a grupos
descendentes.
Acredita-se que este processo, através dos hibridismos e sincretismo está presente e
ativo há muitas décadas. Assim, também devemos dizer que os nativos, entre si, têm práticas
Neoxamânicas, que ocorrem no contato da aldeia com o meio urbano, e a religiões
neoxamanistas (ROSE, 2012)37. Por fim, Magnani oferece um modelo muito útil de tipologias
para a nossa realidade local; oportunamente, este estudo avançará e introduzirá novos
elementos a este modelo:
Essas atividades são representativas, grosso modo, das cinco linhas em que,
a partir de indícios autorreferenciais, foram divididas, numa primeira
classificação, as principais práticas do Neoxamanismo urbano com presença
na cidade de São Paulo:
a) ―Norte-americana‖: sua principal referência são os ritos, mitos e práticas
xamânicas atribuídas a povos indígenas situados no território dos Estados
Unidos e Canadá.
b) ―Andina‖: sua referência é a cultura de povos da região dos Andes,
incluindo sua porção amazônica e também práticas xamânicas do território
do México e da América Central; em alguns casos faz-se alusão a plantas
psicoativas, como peyote, ayahuasca, don Pedrito, etc. e em outros trabalha-
se evocando principalmente as cosmologias daqueles povos.
37
Ver: Rose, Isabel Santana de. Tata endy rekoe – Fogo Sagrado: Encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o
Caminho Vermelho - Tese de Doutorado em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, Outono de 2010.
118
Não é de estranhar que o Neoxamanismo urbano figure como uma prática muito
comum entre classes altas, mas hoje, com o avanço e popularização desta prática em espaços
terapêuticos, há uma grande oferta, e se torna comum entre classes mais baixas como
mencionado anteriormente.
Fernández também concorda com o fato de o Neoxamanismo figurar como um
movimento pós-moderno de superação da crise contemporânea por identidade religiosa, como
se costuma dizer, o ―fim das grandes narrativas‖. Fernández também lembra que existe uma
inovação, no sentido que muitos podem aprender a ―xamanizar‖, sendo assim, a experiência
xâmanica aparece como um modo de ser, que é acessível para além das comunidades
autóctones:
Frente al malestar de la época y a la situación de crisis que experimenta el
mundo moderno, el Neochamanismo posiciona al chamán como fuente de
alivio o salud. Pero el presupuesto último es devenir chamán por si mismo o
convertirse en el propio agente de curación (...) La figura del chamán solo se
retoma como modelo y desaparece su papel como agente activo del proceso.
Aprender a «chamanizar» equivale entonces a «encontrar el chamán que hay
en mi interior», «descubrir mis potencialidades internas» y de esa manera
«curar el malestar que me embarga». Pero solo yo como individuo puedo
experimentar el proceso. Es en este sentido que la experiencia terapéutica se
convierte también en una búsqueda de trascendéncia que concibe la curación
como forma de emancipación y que hace deslizar la dimensión terapéutica
hacia uma dimensión puramente espiritual e individual (FERNÁNDEZ,
2009, p. 22).
Além desta predisposição para a aceitação das práticas no meio urbano secularizado,
temos atualmente muitos mestres indígenas que vêm para os centros urbanos divulgar a
cultura tradicional e promover encontros nesse circuíto neoxamânico, os índios em situação
121
urbana também são hoje um caso a parte, pois muitos vêm para São Paulo, para ficarem na
casa de indígenas que já se fixaram na metrópole. Porém, muitos ficam hospedados em
espaços Nova Era, em geral, têm por objetivo conduzir cerimônias e vender artesanato nativo,
que é um produto muito procurado nesses espaços. Como exemplo se verifica na citação de
Tiago Coutinho Cavalcante, professor colaborador do departamento de Antropologia da
UFRJ, sobre o caso da apropriação do ritual Nixi Pae, que é como se intitula a ayahuasca,
yagé entre os Huni Kuin (Kaxinauas):
Os ritos urbanos do Nixi Pae são antecedidos por uma outra cerimônia
oferecida aos participantes a um custo extra por um dos sócios do espaço
Nova Era, junto com a esposa do pajé que promove os encontros. A chamada
―tenda do suor‖, ―sweat lodge‖ ou ―cerimônia do temazcal‖ é oriunda das
tradições do Xamanismo americano e foi introduzida no rito urbano do Nixi
Pae por um terapeuta iniciado na tradição lakota. Em um período de quatro
anos, os pajés saíram do Acre e rapidamente foram acolhidos em centros de
espiritualidade Nova Era, que incluíram o ritual do Nixi Pae no seu mosaico
de saberes tradicionais ao lado de ioga, biodança, acupuntura, shiatsu,
xamanismo dos povos norte-americanos, massagens de diversas correntes e
terapias alternativas. Despesas com alimentação, moradia, transporte, escola
e cursos de inglês são pagas pelos próprios índios a partir do montante
mensal obtido pelos rituais, de consultas particulares, aplicações de kampô e
workshops. Nos anos de 2006 e 2007, os encontros urbanos do Nixi Pae
aconteciam simultaneamente nessas duas importantes capitais brasileiras,
formando um público heterogêneo que tem em comum o interesse em
preservar a cultura do povo kaxinawa (CAVALCANTE, 2013, p. 97).
Outro exemplo pode ser visto numa página de internet, o espaço ―Neo Xamanismo‖,
que fica localizado em Mairiporã. Esse espaço comumente realiza encontros com as chamadas
―medicinas da floresta‖ e promove intercâmbios, como mencionado circuito do
Neoxamanismo urbano:
Nesses casos observa-se como é comum a saída da aldeia para a cidade de São Paulo,
e como é possível encontrar espaços, que recebem estas atividades e ajudam a divulgar as
culturas nativas. Em muitos casos configuram processos migratórios, pois muitos indígenas,
vislumbrados com a possibilidade de avanço financeiro, querem se estabelecer na cidade onde
são tratados de forma diferenciada. Nesse processo vão se criando redes sociais (FOLLÉR,
2002), que como fala o professor Magnani, configuram o circuito neoesotérico, ou uma rede
social neoxamânica. Essa rede propicia que certos indígenas, lideranças locais em suas
comunidades, tenham agendas anuais em São Paulo, onde fazem turnês em espaços de
Neoxamanismo urbano.
Nosso diagnóstico é que existe um grande apelo pela participação nessas atividades
em dezenas de cidades por todo o país, mas com o enfoque em São Paulo. Tais grupos
desenvolvem suas próprias metáforas, onde podem compartilhar símbolos e relações
coletivas. A pluralidade de experiências e práticas xamânicas em diversas categorias e
tipologias demonstram a polissemia do Neoxamanismo urbano e dos xamanismos que através
de processos de hibridismo, contaminam a religiosidade contemporânea nos centros urbanos.
38
Fonte: https://www.facebook.com/neoxamas. Último acesso em 28 de Abril de 2014.
39
Fonte: https://www.facebook.com/events/490993181029903/?notif_t=plan_user_invited. Visitado em 28 de
Abril de 2014
123
Os encontros, que vendo do ponto de vista nativo são apenas produtos de curta
duração, do ponto de vista da sociedade contemporânea que vive nas metrópoles, são
verdadeiros oásis de tempo. Dessa forma, encontra-se no gráfico acima um modelo de como
essa relação se estabelece.
De um lado os grupos tradicionais podem ver tais encontros como uma deturpação dos
modos cíclicos naturais à prática do Neoxamanismo urbano. Por sua vez, para a sociedade
capitalista também é ruim, visto que é uma tentativa de retomada, mesmo que temporária, do
40
Fonte: acervo pessoal.
124
modelo anterior. Porém, como é patente, tudo de alguma forma vira mercadoria neste
turbilhão.
Por essas premissas não se quer dizer que exista uma divisão tão clara em todos os
campos, mas é possível traçar um corte conceitual para compreender como esse processo
pode ser exemplificado de forma geral.
O xamã futuro não opta por ser um xamã, se ele se É voluntária a escolha. Se uma pessoa se recusa a
recusa a ser um xamã, os espíritos podem deixá-lo ser um xamã, ela não ficará doente.
doente. É um presente que não se pode recusar.
Um número significativo de tabus, a sua violação Tabus são quase inexistente, exceto para os
pode ter consequências perigosas. acordos com o espíritos auxiliares, violando um
tabu leva a pior perda do espírito auxiliar. Existem,
porém, tabus importados de outras religiões.
O xamã pode trabalhar apenas em seu grupo O xamã pode praticar sozinho, ele não está
étnico. vinculado a uma localização geográfica.
O contexto simbólico e cultural é um imperativo O xamã não está ligado a um contexto simbólico
para o xamã. ou cultural.
Foram levantados até aqui alguns antecedentes e conceitos gerais sobre estudos feitos
a respeito do fenômeno do Neoxamanismo urbano, desde redes sociais e grupos religiosos
―Nova Era‖, às cerimônias com indígenas em situação urbana, cujo assunto, atualmente, tem
ganhado interesse nos meios acadêmicos. Há, porém, uma defesa de que o Neoxamanismo
urbano seja uma espécie de xamanismo, uma variação do Xamanismo tradicional, indígena.
Portanto, o termo Neoxamanismo urbano, como um Xamanismo que acontece na cidade, pode
causar confusão, como por exemplo, cerimônias indígenas nas cidades, ou mesmo o caso dos
indígenas em situação urbana realizando cerimônias (LOPES, 2011); em alguns casos, o uso
do termo Neoxamanismo quer designar que se trata de um tipo de inovação, distinção da
vertente indígena, mas entre os membros não se busca essa distinção, mas sim uma
aproximação com o Xamanismo tradicional. Entretanto, o tema pode ser tratado como um
caráter de continuidade entre a prática urbana e o modelo tradicional nativo. Acredita-se que
seja algo mais amplo, ou na verdade, que exista certa confusão ao se tratar do tema com tal
abordagem.
Pode-se definir, a princípio, o Neoxamanismo urbano como uma prática religiosa,
híbrida, polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de
religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de
narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio.
126
41
Importante notar que uma mulher como representante do movimento no país é muito significativo, visto que
em sua maioria as religiões têm homens em posição de lideranças, a flexibilidade as práticas místicas e
esotéricas abrem espaço para estas práticas de inserção de gênero. Muitas mulheres vão assumir a posição de
lideranças religiosas dentro do Neoxamanismo Urbano, inclusive um avanço em relação ao modo de ser do
Xamanismo indígena, onde em sua totalidade o xamã é um homem. Segundo ATKINSON esta é uma das
características do neoxamanismo. Como afirma a autora ―Explorar a dialética do poder xamânico em relação ao
gênero deve levar em conta as ambigüidades e multivalências do poder xamânico e antecipar complexidades
relacionadas em idéias e práticas de gênero.‖ (ATKINSON, 1992, p. 319)
129
42
Fonte: da pesquisa: http://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/04/lamentavel_veja_glauco_labate.pdf
130
43
http://www.xamasconet.com.br/
133
44
O ―XamãsConet‖ é um bom exemplo da representatividade de lideranças do Neoxamanismo urbano, com mais
de cem palestrantes que são representantes do fenômeno religioso. (Ver anexo no final da tese)
134
45
http://www.xamanismo.com.br/Universo/WebHome
Acesso em Ago 2016.
46
http://www.shamanicstudies.net/Page/ID/219. Acesso em Ago 2016.
135
Pode-se concluir que essa metodologia passa então a ser divulgada para diversas
pessoas de diversas partes do país, além de outros países. A metodologia da roda de estudos
passa pelo conteúdo aplicado atualmente nas diversas rodas de Neoxamanismo. Dividido em
16 módulos, um por semana, além de grupo de e-mail (conteúdo Web), desafios e vivências
pessoais e convite para participar da cerimônia Voo da Águia. Tais encontros semanais e
tarefas são denominados Rodas de Fogo, A Tribo Virtual, O Passo do Guerreio e o Voo da
Águia (Opcional).48 Esses conteúdos são importantes para a formação do xamã urbano.
O caso do Aos Filhos da Terra é um pouco diferente, o líder Sthan Xannia tem uma
preocupação de tratar sua formação a partir de um modelo mais próximo da tradicional,
sempre com a presença de nativos nos trabalhos e conduzindo cerimônias, mas também
oferece esporadicamente uma formação para neoxamãs. Não tem um espaço urbano, e apenas
o ―Ecocentro multicultural‖, como chama a chácara onde ocorrem as atividades.
47
http://www.xamanismo.com.br/Voo/SubVoo1323113008 . Acesso em agosto/ 2016.
48
http://www.xamanismo.com.br/Espaco/SubEspaco1277983424 . Acesso em agosto/ 2016.
136
49
http://www.aosfilhosdaterra.com/vision-quest-2017 . Acesso em agosto/ 2016.
50
http://www.inatekie.com.br/
51
http://www.neoxamanismo.com.br/
52
http://www.aldeiadeshiva.org/
137
Cada ser humano tiene dos lados, dos entidades distintas, dos partes
contrarias que toman fuerza en el momento del nacimiento; una se llama tonal,
la otra nagual [...] El nagual es aquella parte de nosotros para la cual no hay
descripción, ni palabras, ni sentimientos, ni conocimiento (Don Juan in
Castañeda,1975).
O bater monótono dum tambor é uma via eficaz de acesso à outra realidade
(Michael Harner).
53
Cuando menos al principio, los textos de Castañeda fueron considerados verídicos por algunos científicos
sociales. Su influencia, sumada a la de Eliade (1986) y Harner (1980), propulsó la generación de investigaciones
138
Foundation for Shamanic Studies, como uma escola pós-moderna de Xamanismo essencial
(Xamanismo Core, como é identificado pelo autor).
Pretende-se mostrar nesta análise que ambos os autores têm um discurso formador
sobre os procedimentos ritualístico e ideológico de vários grupos, para tanto, será atido o
discurso adotado por cada um deles. Os autores vivenciaram experiências muito intensas de
transe e se aprofundaram nas técnicas nativas de tratamento da saúde, mas cada um teve um
caminho diferenciado, sendo que Castañeda se aprofundou no uso das chamadas plantas de
poder, enquanto Harner se afastou do uso desses veículos de expansão da consciência e se
aprofundou no uso do tambor, assim como do uso de técnicas de psicologia transpessoal.
Nos dois casos existe a utilização do que Harber chama de Estados Xamânicos de
Consciência (EXC), em oposição ao Estado Cotidiano de Consciência (ECC) (HARNER,
1995, p. 15-16), o que para Castañeda seria o Nagual e o Tonal respectivamente. Mesmo
utilizando-se de estados alterados de consciência, ideologicamente os dois autores seguem
caminhos diversos:
en torno al uso de estados de conciencia alterada en el misticismo indígena mexicano (GONZÁLEZ, 2006, p.
109).
139
54
Fonte: FSS Portugal: www.xamanismo.net
Visitado em Agosto de 2014.
55
O Tensentricidade é a versão moderna do caminho do navegador, ou seja, os princípios e práticas de apoio à
pesquisa e viagem sobre o caminho do coração que Don Juan Matus ensinou a seus quatro estudantes: Carlos
Castaneda, Florinda Donner-Grau, Taisha Abelar e Carol. Don Juan era um índio Yaqui vidente e líder de um
grupo de homens e mulheres cuja linhagem remonta aos videntes mexicanos dos tempos antigos. Para caminhar
ao longo de um caminho que nós realmente gostamos, disse Don Juan, é necessário paixão, coragem,
imaginação, assiduidade, disciplina, autoconhecimento, a graça, a força, o criatividade, eficiência, paciência,
capacidade de adaptação e humildade do navegador. Isto é o que os praticantes de Tensentricidade aspiram: O
espírito da navegação, o ser que tem engajamento contínuo para percorrer o caminho da consciência a cada
instante. A luta do navegador não é com os outros, disse Don Juan. Nem consigo mesmo. E isso não é,
finalmente, uma luta. Em vez disso, uma aceitação das correntes de energia do mar da consciência do universo.
56
Fonte: http://www.cleargreen.com/fr/ .Visitado em Setembro de 2014.
140
Como indicado, ambos os casos têm elementos relativos. Como afirma Gonzáles,
muitos destes ―ditos‖ ensinamentos não são necessariamente uma versão do Nahualismo, pelo
contrário, é uma crença, desenvolvida dentro dos grupos de Neoxamanismo, leitores da obra
do autor, que atribuem um grau de veracidade ao universo do simbólico apresentado por
Castañeda:
Por quanto que esses autores, como antropólogos, fizeram uma leitura da obra de
Mircea Eliade, pode-se dizer que o apoio teórico serviu como modelo para elaborar um
universo próprio a partir de suas experiências durante o trabalho de campo antropológico.
Como afirma, em sua apresentação, ele propõe uma leitura fenomenológica. Harner afirma
que:
Percebeu-se que há similaridades entre o discurso dos dois autores, mesmo que
tenham escolhido seguirem por caminhos diferentes. Michael Harner tem uma preocupação
ainda acadêmica, apesar de optar por uma abordagem típica das culturas nativas, de qualquer
forma, mantém publicações de artigos, e ainda a manutenção da Fundação. Carlos Castañeda
torna-se uma espécie de ―Guru‖ Nova Era, e mantém grupos de trabalhos como se fosse uma
sociedade secreta. Apesar disso, ambos dialogam em suas obras.
Um ponto crucial a ser apontado no trabalho de Harner é seu trabalho sobre o transe
xamânico através do uso do tambor. O tambor é um objeto significativo dentro da iconografia
e do simbolismo xamânico de muitas nações. Primeiramente, é um instrumento de poder, ou
seja, é um objeto que é revestido de forças sobrenaturais, podendo atuar como oráculo, como
escudo de proteção etc.. Em segundo lugar, é o instrumento que induz o transe, pois através
das batidas (em média 150 por minuto), leva à alteração do estado de consciência. Em terceiro
lugar, seu simbolismo é relativo ao voo xamânico, para alguns é considerado um cavalo, que
leve o xamã para outras dimensões, e, dentro do universo siberiano, é associado às batidas do
coração da baleia.
Em todos esses casos o tambor, e neste sentido outros instrumentos que provocam o
ritmo, são poderosos, induzem o transe e são carregados metafórica e simbolicamente com
símbolos relativos à viagem xamânica. O trabalho sobre o tambor é valorado por Harner como
um exemplo de trabalho prioritariamente estruturante do Xamanismo.
57
Lombardi, Denise. Neo-chamanismo: el ritual transferido. halshs-00562253, version 1 - 2 Feb 2011.
142
Michael Harner ainda discorda levemente de Mircea Eliade, quando afirma que a
técnica xamânica é muito mais ampla que o êxtase, que é um conceito ocidentalizado e que
carece de elaboração, como é aplicado pelos nativos onde realizou a pesquisa de campo.
Harner afirma:
Tal como Mircea Eliade observa, o xamã distingue-se dos outros tipos de
mágicos e curandeiros pelo uso que faz de um estado de consciência que
Eliade, a exemplo da tradição mística ocidental, chama de ―êxtase‖. Porém,
apenas a prática do êxtase, como ele enfatiza com propriedade, não define o
xamã, porque o xamã tem técnicas específicas para o êxtase. [...] O EXC não
só envolve um ―transe‖ ou um estado transcendente de discernimento, mas
também um sábio discernimento dos métodos e suposições quando se está
nesse estado alterado. O EXC se opõe ao Estado Comum de Consciência
(ECC) ao qual o xamã retorna depois de ter feito seu trabalho característico.
O EXC é a condição cognitiva na qual a pessoa percebe a ―realidade
incomum‖, de Carlos Castañeda e as ―extraordinárias manifestações da
realidade‖, de Robert Lowie. O que se sabe sobre o EXC inclui informação
sobre a geografia cósmica da realidade incomum, para que seja possível
saber para onde viajar no intuito de encontrar o animal, a planta ou outros
poderes apropriados. Isso inclui o conhecimento de como o EXC dá acesso
ao Mundo Profundo xamânico (Harner, 1995, p. 50 e 51).
Este debate é intenso e leva toda a obra o Caminho do Xamã de Michael Harner, mas
aqui não se aterá a esta contenda, e sim, o que se propõe é observar como esses discursos são
formadores de opinião. No convívio com os praticantes do Neoxamanismo urbano,
Neoxamanismo, Nova Era etc., pode-se observar a presença de discursos como esse.
Exemplo:
Ao encontrarmos o nosso Animal de Poder, a energia vital e a criatividade
começam a interagir e podemos enfrentar velhos e insolúveis problemas com
a sabedoria da ―entrega‖, o grande aprendizado que o Animal de Poder nos
lega. Após o seu encontro, estamos prontos para iniciar o caminho do Xamã.
Como passo inicial nesta jornada, precisamos fazer uma viagem de autocura.
Essa viagem consiste em soltar algum animal que esteja preso. Um dos
princípios básicos do Xamanismo é que só podemos realizar curas se
buscarmos primeiro o que precisa ser curado em nós. As doenças, em grande
número, são decorrentes da prisão do Animal de Poder. A nossa capacidade
de curar, de produzir, de concluir um objetivo, também pode estar bloqueada
por um animal que nos dá a força naquela área e que precisa ser solto e
curado. Só após a nossa autocura podemos estar a serviço do outro com a
força animal, pois além da ―entrega‖, ele nos ensina a humildade de primeiro
olhar em nós o que está preso e ferido (o Xamã é Um Curador Ferido) e
curar, com a dor da nossa ferida, que nos abre o coração e traz a compaixão
por todos os seres sencientes.58
58
Fonte: http://www.pazgeia.org.br/arquivos/textos/animais.htm. Visitado em Outubro de 2014.
143
59
Fonte: http://www.neoxamanismo.com.br/pages_artigos_03.htm. Visitado em Outubro 2014.
144
como facilitador xamânico, mas ele abandonou utilização de plantas para se dedicar ao uso do
tambor. No caso de Don Juan, as plantas são espíritos que auxiliam na aprendizagem, mesmo
afirmando em vários momentos que xamãs mais velhos não precisam mais delas. De qualquer
forma, o movimento de contra cultura se apropriou desse discurso, como uma forma de
contrapor o pensamento moderno que tanto lutavam. A prática com psicodélicos assume uma
importância estratégica para vários grupos que na época estavam se posicionando contra a
racionalidade tecnicista (VALDERRAMA , 2009).
A saída para uma pós-modernidade era, então, se aproximar das culturas não
ocidentais e o uso das plantas seria uma forma de afirmar e definir uma identidade.
Nesse horizonte de sentido, cabe uma reflexão, qual o olhar que os pesquisadores
devem admitir sobre a verossimilhança dos escritos de Castañeda com a ―realidade‖
científica? Não se pode afirmar, pois, que o universo simbólico apresentado pelo autor alude a
uma prática empírica que dificilmente a ciência conseguiria acessar. Porém, é preciso se ater
aos fatos, e é fato que o livro A erva do Diabo vendeu milhões de cópias a mais de trinta anos.
Ainda é um livro de referência para muitos adeptos ao Neoxamanismo.
Nesse universo de significações, se assume duas linhas fundamentais da teoria de
Castañeda a partir das anotações de campo. Um dos pontos cruciais é a distinção entre o
Nagual e o Tonal (RAMO Y AFFONSO, 2008). Estas duas linhas formam o que falamos
anteriormente como a linha do cotidiano mecanicista e o universo inexplorado dos mundos de
uma Estranha Realidade60. Onde podemos especificar dois modos de ser. Sendo que o xamã
tem domínio sobre o segundo.
60
Título de uma das obras de Carlos Castañeda.
145
O Nagual, a outra parte, a outra face, de cada ser humano (Castañeda RP:
161) é aquilo que não conhecemos, para o qual não há descrição, nem
palavras, nem nomes nem sensações. (RP: 168). O Nagual não tem limites;
ele nunca acaba, nem mesmo após a morte. O Nagual é puro efeito; ele é
acessível a nós unicamente através do efeito que ele causa, o que faz com
que o entendamos melhor em termos de poder (RP: 187). Se no contexto do
presente trabalho chamamos o Tonal de forma, podemos nos aventurar
também a chamar o Nagual de força, mas, por muito tentadora que seja esta
tradução, devemos segurar o nosso impulso comparativo e aceitar as
premissas colocadas pelo mestre, já que a única coisa que podemos fazer em
relação ao Nagual é sermos testemunhas de seus efeitos. (RP: 188)
(DELEUZE E GUATARRI, 1999, p. 23).
Ou seja, a força que se move por entre as coisas sem se notar, enquanto Tonal, parece
ter uma extensão disparatada: ele é o organismo e também tudo o que é organizado e
146
O Tonal é o veículo pelo qual se acessa a total imanência, sem ele o sujeito seria
desintegrado. Porém, é justamente este o princípio da técnica xamânica para Castañeda, é
desconstruir tudo que seja o sujeito, para dali nascer pura energia e impulso. É o exemplo da
grande águia de luz que devora as mônodas, que somos nós, como afirma Don Juan. Essas
linhas de saída são, por sua vez, o caminho esperado pelos praticantes, que buscam novos
olhares sobre a vida, sobre o cotidiano, ou a superação do mesmo. Por esse motivo, ―a palavra
‗transe‘ será quase sempre evitada aqui, porque as concepções culturais que temos no
Ocidente quanto a essa palavra, muitas vezes levam consigo a implicação de que se trata de
um estado não consciente‖ (HARNER, 1995, p. 87), o que é justamente o contrário
empregado por Harner e Castañeda, que enxergam nos EXCs um mecanismo de
conhecimento muito claro. Dom Juan pregava que os EXCs eram a única forma de adquirir
conhecimento.
Aqui também se permite empregar outro termo muito utilizado na obra de Castañeda,
que é o fato de Don Juan chamar esta Estranha Realidade de Segunda Atenção. Assim, defini-
se o Tonal como Primeira Atenção, ou ECC, e o Nagual como Segunda Atenção, ou EXC. A
Segunda Atenção é então o domínio do xamã, e é o que os grupos de Neoxamanismo vêm
buscando, como metodologia de acesso a realidades não comuns.
Esse conjunto de práticas, que os xamãs da antiguidade tinham acesso, era chamado
por Don Juan de ―A arte de sonhar‖, por se referir a esta Segunda Atenção, e por definir-se
como um caminho não racional, não regrado, e sem limites. Importante notar, que a
147
linguagem de Castañeda é bem diferente de Harner, por tratar de temos muitos abstratos,
termos como percepção, energia, consciência etc., ao contrário, Harner mostra mais em seu
trabalho imagens arquetípicas, modelos exemplares de mitos, animais, plantas, totens
minerais, vegetais etc. Mais comuns nas cosmologias nativas.
Esses padrões que são encontrados na narrativa de Castañeda trazem em si uma única
intenção, a de mostrar que tudo no trabalho do Nagual opera na maneira como se dispõe
diante da realidade, é o Intento. O que Castañeda chama de Intento é um modo de ser, de agir,
de uma Impecabilidade da consciência, da vontade, que opera sobre o Tonal e obriga-o a agir
de acordo com o desejo. Assim como a Espreita, é uma arte de se tornar invisível aos olhos
alheios, e que possibilita, através do próprio corpo, reestruturar a ―realidade‖ circundante.
Mas descobrir esse Intento demora muitos anos, e tem muitas provações, que num
futuro podem garantir ao Homem de Conhecimento a saída para a morte de forma honrosa, ele
só pode ser atingido pela prática constante, e pelo aprendizado realizado na Segunda Atenção,
com o uso das plantas de poder, plantas mestras, enteógenos etc. A Drª em antropologia,
Beatriz Caiuby Labate, cita algumas pistas sobre a continuidade da obra de Castañeda:
Castañeda, além de sua fama de romancista, representa uma vião sobre a pesquisa com
os índios Yaqui62, uma leitura de mundo, que encontramos nos grupos de Neoxamanismo
urbano.
61
Fonte : http://www.bialabate.net/news/o-xamanismo-de-carlos-castaneda-apropriacao-ruptura-ou-continuidade
Visitado em Outubro de 2014.
62
Os Yaqui ou Yoeme são uma tribo indígena dos Estados Unidos e do México que vivia originalmente no vale
do rio Yaqui no norte do estado mexicano de Sonora. Don Juan Matos é dentro da obra de Castañeda um
indígena desta tradição.
148
Como explica Labate não é o seu status que importa aqui, mas como determinou um
comportamento, e uma época, pois desde a publicação de Erva do Diabo em 1968, que
milhares de jovens começaram a fazer peregrinações para os desertos do México em busca
dos conhecimentos aprendidos com o Brujo. Como aponta Bia Labate, existe um universo
totalmente diferente nos escritos de Castañeda, e que podem ser tomados como inverossímeis:
Como Harner, Castañeda caiu num bojo de livros esotéricos, de uma literatura das
bordas (FERREIRA, 2011), que não entram no universo acadêmico por carecerem de uma
metodologia científica. Porém, dentro de um horizonte hermenêutico, pode-se observar que
suas implicações históricas, posturas comportamentais, são aceitas e praticadas por centenas,
talvez milhares de grupos por todo o Brasil, talvez seja impossível determinar com precisão
quantos há pelo mundo. No seguimento, se direcionará para um novo ponto, sendo este dentro
do campo da Mimesis, as intersecções desses discursos no campo do Neoxamanismo urbano e
as implicações críticas sobre a apropriação cultural.
63
http://www.bialabate.net/news/o-xamanismo-de-carlos-castaneda-apropriacao-ruptura-ou-continuidade.
Visitado em Outubro de 2014.
149
64
Axis Mundi. (Mircea Eliade, 2002).
150
65
―A medicina rústica é resultado de uma série de aculturações de medicina popular de Portugal, indígena e
negra.‖ (Araújo, 1979, p. 43)
151
passam a adotar o discurso do Neoxamanismo urbano para poder dialogar com o público que
frequenta tais espaços, por vezes fazendo a distinção entre o horizonte de sentido nativo e do
ser urbano. Esses mundos se chocam e entram em diálogo promovendo ainda mais o
hibridismo nesses grupos.
Leo Artese, que citamos no estudo anterior, afirma praticar um Xamanismo cristão:
O uso das redes sociais favorece em muito a pesquisa; há mais de três anos o grupo
―Xamanismo urbano, Neoxamanismo e práticas independentes‖ é mantido no Facebook, onde
permanece uma grande parcela de lideranças. Sempre sendo atualizada, a rede chega a mil e
quatrocentos membros, que divulgam os mais diversos chamamentos de workshops, cursos,
vivências, rituais etc.
Algumas informações: 49.6 % Mulheres (azul escuro), 49.3 % Homens (azul claro).
Membros por país: Brasil 1.355, Camboja 11, Portugal 7, Estados Unidos 6, México 6,
Alemanha 4, Austrália 3, Peru 3, Espanha 2, Angola 2. Uma faixa de 13 a 65 anos de idade,
com uma concentração entre 25 e 44 anos.
66
66
Dados do facebook sobre o grupo xamanismo urbano, neoxamanismo e práticas independentes.
153
Nota-se nesse exemplo um discurso permeado por: busca por equilíbrio, buscas
interiores, qualidade de vida etc. Também aparecem nos discursos termos próprios do
esoterismo, ―corpo sutil‖, ―alinhar‖, ―equilíbrio energético‖, ―despertar interior‖ etc., que
estão distantes de termos utilizados pelos indígenas, mas que são comuns dentro de vivências
do Neoxamanismo urbano a partir de um processo de releitura.
67
Publicação em grupo do Facebook: https://www.facebook.com/groups/439257639573441/ visualizado em 28
de Agosto de 2015.
154
Essa busca pela alteridade, pelo novo para o qual se engaja e alimenta outro universo
dos possíveis, esse horizonte de sentido busca construir novas perspectivas e orienta para
novas formas de ser no mundo. O encontro propriamente dito da cultura indígena com a
cultura popular e a cidade cria um modelo de experiência que inova no sentido de arranjos
novos que podem ser elaborados pelos jogos de identidade.
Observa-se a imagem:
Fonte: https://m.facebook.com/XamadasMontanhas?photos/a
68
Observação pessoal.
155
Fonte: https://m.facebook.com/graphsearch/str/spa+maria+bonita/photos-keywords?media-
combined=first&tsid=0
A imagem acima é outro exemplo típico, o indígena no cartaz, o que representa uma
total autoridade, principalmente se tratando de um ancião/anciã da comunidade. O termo
jornada também muito utilizado aparece como no conceito de Jornada do Herói, onde passa
por círculos de provação para alcançar sua missão, isto tudo dentro de um spa.
O domínio dos possíveis é facilitado pela possibilidade da atuação da memória. Esses
discursos, e tantos outros que serão ainda vistos, estão repletos de informações que são
entretecidas, numa relação entre memória coletiva e narração, um processo que ocorre em
uma teia de contato desde a aldeia, pela leitura de livros, na prática das vivências e na relação
com outras religiões e práticas espiritualistas, como a yoga, por exemplo. Esse processo só é
possível, pois, a memória que é perpetuada através da narrativa encontra lugar na cultura que
a recebe e é reinterpretada.
O encadeamento de apropriação de uma memória coletiva é atualizado nas narrativas
individuais. Também é possível afirmar que nesse processo de hibridismo os grupos
selecionam o que consideram pertinente divulgar ou perpetuar de uma tradição específica,
com isso escolhendo entre o que narrar ou não, dessa forma, cria uma memória do grupo, com
base na memória partilhada. Esse seguimento de narrar a tradição promovendo uma
configuração, que é operada pela metáfora, favorece o resgate de uma mentalidade indígena,
fruto de uma hermenêutica complexa no processo de apropriação e exclusão, e isso favorece
156
que cada grupo mantenha uma prática diversa do outro, não criando em si um corpo
dogmático.
Por outro lado, é importante salientar que Ricoeur busca uma filosofia da ação com
esse trabalho, levando a cabo um objetivo maior de sua obra que é a filosofia da vontade
humana e, para tanto, precisa definir claramente que é o sujeito que atua sobre a memória, ou
melhor, como esse sujeito faz usos da memória, assim como o esquecimento é um norte, pois
é dele que fugimos, e ao tratar de uma fenomenologia da memória, esse sujeito é questionado
sobre o que se escolhe para lembrar e o que deixa para trás:
do possível, pois ao passo que a memória é exercida, dentro de um aspecto social, o sujeito
tem a tarefa de optar por este ou aquele aspecto da narrativa, da lembrança, e nesse, estabelece
rastros da memória, como será demonstrado mais adiante. O que de fato importa neste
momento é mostrar que há uma preocupação com a verdade da lembrança:
em seguida comunica esta ação para ―os próximos‖ que tratam de refigurar as narrativas que
passam ao manancial do mundo. O que aprofunda esta discussão é o fato de que esse sujeito é
ligado à memória pela ação, pelo ato de lembrar, o que vai levar Ricoeur a afirmar a
individualidade da lembrança, que está presente apenas no universo do sujeito que é imputado
sobre a ação de lembrar-se de algo. Ricoeur avança num primeiro momento para a
demonstração da particularidade da memória e da singularidade do sujeito que lembra:
Como aponta Ricoeur, Locke por sua vez avança não como continuador do conceito
de Cogito de Descartes, mas como um elemento novo, que pode ser propiciado pelo campo
linguístico da língua inglesa, abrindo e ampliando o léxico que o autor vai adotar para tratar
do conceito de memória, como lugar de imputação dos atos de um sujeito, pois ―a invenção da
consciência por Locke tornar-se-á a referência confessa ou não das teorias da consciência, na
filosofia ocidental, de Leibniz e Condillac, passando por Kant e Hegel, até Bergson e Husserl.
Pois se trata mesmo de uma invenção quanto aos termos consciousness e self, invenção que
recai sobre a noção de identidade que lhes serve de quadro‖ (RICOEUR, 2007, p. 113).
O passo seguinte é dado quando Ricoeur compartilha com Maurice Halbwachs a ideia
de que ―cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que esse
ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda
segundo as relações que mantenho com outros meios‖ (RICOEUR, 2007 p. 133-134) as
memórias são compartilhadas e essa noção de memória coletiva apresentada pelo sociólogo
ajuda a compreender muitos aspectos que a escola idealista deixa de olhar:
Ricoeur admite que Halbwachs tenha limitações teóricas que não permitem sua plena
convicção sobre o tema da memória coletiva, ―o que finalmente enfraquece a posição de
Maurice Halbwachs, é seu recurso a uma teoria sensualista da intuição sensível. Esse recurso
se tornará mais difícil depois da virada linguística, da virada pragmática efetuada pela
epistemologia da história‖ (RICOEUR, 2007, p. 134). Partindo da aporia existente entre os
estudos da sociologia e da filosofia modernas, Ricoeur propõe uma filosofia da ação,
ampliando a relação entre a sociologia e o idealismo fenomenológico, em que a memória é ao
mesmo tempo um espaço de efetivação da consciência do sujeito, assim como espaço da
pertença desse sujeito no meio social:
161
Ricoeur avança, no sentido de orientar a análise para um espaço não dicotômico entre
memória individual ou coletiva, ele vai além e propõe uma ―tríplice atribuição da memória: a
69
Aqui Ricoeur aponta para a importância que será dada aos rastros psíquicos, ―impressão, no sentido de
afecção‖ mesmo entendo que os rastros escritos tenham sua importância. O traço cortical tem a mesma
finalidade material que o documental, pois pode ser destruído, e daí a necessidade de arquivos. O que orienta é
para a discussão entre os rastros psíquicos e corticais, onde mora a problemática do esquecimento (RICOEUR,
2007, p. 425).
162
si, aos próximos, aos outros‖ e partindo de uma leitura de Alfred Schutz, aproxima o eu dos
próximos nas ―relações de contemporaneidade‖ (RICOEUR, 2007, p. 142):
No contexto geral do que foi apresentado até aqui, a memória em seus usos e abusos
está inscrita no sujeito, mas esse sujeito é quem se imputa o ato de lembrar e nesse sentido,
atribui valor a essa lembrança, definindo o que decide esquecer. Será analisada a seguir a
163
[...] que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode chamar original,
com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimentos fundadores,
são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um Estado
de direito precário, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por
sua vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para
uns e humilhação para outros. À celebração, de um lado, corresponde à
execração, do outro. É assim que se armazenam, nos arquivos da memória
coletiva, feridas reais e simbólicas (RICOEUR, 2007, p. 95).
Deduz-se, de forma geral, que a memória, materialmente falando, seja através do ato
de lembrar ou através da documentação, escolhe o que valoriza. E nessa acepção, observa-se
como esse conceito de rastro do exercício da memória atua em alguns casos.
Segue-se o canto da etnia Kariri-Xocó:
Lá no pé do cruzeiro, ô Jurema,
Eu danço com o maracá na mão,
Pedindo a Jesus Cristo,
Com Cristo em meu coração.
Os índios viajam para fora da aldeia e o cocal é o seu abrigo, é a representação da sua
cultura e, por isso, tem o status de casa, de abrigo. O maracá é um instrumento musical,
responsável pela perpetuação da musicalidade e, por essa razão, se diz que bate com
70
Observação pessoal. Em contato com os indígenas, aprendi diversos cantos que são utilizados em sessões de
Neoxamanismo urbano.
164
o seu coração, ele acende o cachimbo (xanduca), que atrai índios de sua tribo e de outras
tribos para uma união, pois ao ver um indígena com o cachimbo acesso é comum acontecer a
reunião de um grupo para partilhar. Culturalmente o cachimbo é utilizado para mediação de
conflitos, para conversar com as divindades e para efetuar tratamento de doenças.
O antropólogo australiano Michael Taussig (1940) encontrou muitos elementos como
esses que citados acima, e de forma mais ampla apresenta alguns dados, a serem estudados
nesta pesquisa, como o seu trabalho com os indígenas da região de Putumayo, sudoeste da
Colômbia:
Minha experiência com os xamãs do Putumayo sugere que é assim que eles
agem, e que o poder mágico de uma imagem como a dos Huitoto está no fato
de que ela questiona e solapa insistentemente a busca da ordem. Na medida
em que a imagem Huitoto, na cantiga do xamã das montanhas, pode
incorporar uma narrativa da redenção, a partir do terror colonial, ela
funciona como uma alegoria que enreda a desordem do infortúnio em sua
própria desordem, evocando as técnicas implicadas nas ―imagens dialéticas‖
de Benjamin, bem como o que existe de artístico nesses rituais xamânicos,
que se fazem acompanhar de montagem e das risadas. [...] A questão pode
ser brevemente resumida se compreendermos a imagem dos Huitoto, no
cântico do xamã, enquanto imagem de uma selvageria domável, que sugere
o paradoxo, a contradição e a magnitude do esforço desconstrutivo, na
história da civilização do Putumayo, e os termos segundo os quais a
companhia exploradora da borracha (com sua terrível violência) e depois a
igreja (com o extraordinário emprego da magia) representaram a história e a
selvageria civilizadoras [...]. A questão é que para a criação do poder
mágico, nos ritos de cura, o importante é que a imagem dos Huitotos torna
virtualmente impossível ignorar a dependência do significado da política –
neste caso uma política colonial, racista, de opressão de classes. O
surgimento da imagem dialética dos Huitotos no cântico do xamã das
montanhas tem como alvo, por meio de uma precisão surreal, a presunção da
moderna história mundial no sentido de domar a selvageria. É uma imagem
que detém o fluxo do pensamento não por meio da ordem, mas com uma
interrogação: ordem de quem, selvageria de quem? Ao contrair um pacto
com os Huitotos, bem como um com um cão de guarda, o xamã doma a
selvageira, não para eliminá-la, mas para adquirí-la (TAUSSIG, 1993, p.
366-367).
A passagem mostra muito bem como a magia do xamã cita a história, não para apontar
continuidades, mas para exemplificar ―o entrelaçamento das memórias dos vencedores com as
dos vencidos‖ (TAUSSIG, 1993 P. 353). Isso significa, por um lado, que são os próprios
―colonialistas brancos e não os índios que inculcariam em suas tradições àquilo que eles
consideravam magia e religião indígenas‖ (TAUSSIG, 1993 P.363); mas, por outro, que os
índios incorporariam elementos do imaginário colonizador e da própria história, já que a
―história do boom da borracha, que incluía o terror e a diáspora, prontos para serem moldados
165
no espaço da morte – a morte do pecador, o Juízo Final, o céu e o inferno‖ (TAUSSIG, 1993,
p. 363).
Nessa lógica, o tema inicial de sua abordagem, o espaço da morte no qual o paciente
procura o xamã (ou curador), é elaborado como um espaço dos rastros da memória e cita o
espaço da morte do início do século, porém com uma diferença brutal e mesmo redentora. O
colonizador, em nome da religião, tinha o poder de dominar e anular o nativo, como visto no
caso da Jurema, a memória do sujeito é domada, alterada, mesmo que de forma ritualística se
mantenha a pratica corporal, o conteúdo sofre transformações. O xamã, um nativo,
apropriando-se da religião do dominador, tem o poder de, na hora da morte, trazer alívio aos
pacientes, brancos católicos. E não é incomum vigários clamarem pela ajuda dos xamãs em
momentos de doença, como será indicado adiante. Ricoeur comenta que:
No que se refere a essa história e a essas práticas, isto é, os índios que são
convocados para propiciar um poder mágico que neutralize os males da
desigualdade no restante da sociedade, existe uma dúvida relativa à
realidade. A incerteza quanto àquilo que poderíamos denominar a fonte do
sistema de cura mágica possui efeitos surpreendentes curativos para nós,
pois nos previne contra a busca do poder mágico em um ser unitário tal qual
o xamã índio. Em vez disso ela nos aconselha quanto ao local em que esse
poder se cria, isto é, na relação entre xamã e o paciente, entre a figura que
vê, mas não falará daquilo que vê, e afigura que fala, muitas vezes com
166
grande beleza, mas não consegue ver. É isto que precisa ser trabalhado, se
alguém deve tornar-se um curador (TAUSSIG, 1993 p.417).
A presença dos cultos protestantes no meio das práticas populares modificou discurso
visual, e a patir disso, podemos falar de uma política de memória, que vem sendo adotada
pelas igrejas, como veículo de chamariz para a população local. A mudança no discurso visual
apresenta a qualidade das instituições de admitirem a ocorrência de mudanças na memória
coletiva do grupo, criando uma nova demanda. Os próximos, como diz Ricoeur, é que podem
afetar diretamente a prática da igreja, através dos usos da memória e, aqui, fala-se também do
esquecimento forçado. Em entrevista, Wachtel comenta um caso onde observa a prática ritual
de uma comunidade no Brasil, que utilizam de práticas judaicas num universo tipicamente de
Catolicismo popular:
Wachtel aponta para uma síntese das individualidades, o que, como visto, não é
metodologicamente aplicado por Ricoeur, que acredita que esse processo anda de forma
imbricada e sobreposta, mas nunca chegando a uma síntese unificadora, privilegiando a
aporia. Mas, o relato é muito interessante e podemos pensar nessas possibilidades de interação
dos grupos, por intermédio dos indivíduos, num processo híbrido em constante movimento.
168
Na introdução da obra ―Le retour des ancêtres‖ Wachtel coloca algumas questões importantes
sobre a pesquisa e sobre a postura do autor em campo:
71
Este livro de Nathan WACHTEL, Le retour des ancêtres. Les indiens Urus de Bolivie, XXe-XXVIe siècle.
Essai d‟histoire régressive (1990), oferece uma abordagem dupla, tanto etnográfica quanto histórica. – A análise
da sociedade atual em princípio para melhor identificar o objeto estudado. A pesquisa de campo permite em
efeito observar práticas e representações devido à natureza dos documentos, além da palavra escrita, tal como o
uso de certas técnicas, o comércio por permuta, o funcionamento do sistema de trocas religiosas, ritos mais ou
menos clandestinos etc. Não devemos somente recolher uma coleção de dados justapostos uns aos outros: eles
estão dentro do âmbito da sociedade vivente, que é importante para revelar as consistências internas,
contradições e lógica subjacente. Inversamente a questão histórica esforça-se por descobrir que a tradição oral
não registra ou não se transmite: além de dados históricos gerais (contextos de entendimento variáveis ,
condições demográficas e econômicas, etc), o processo de esquecimento, de aculturação até mesmo de negação.
A restituição do destino consiste então, em evidenciar as mudanças entre os ritmos temporais, continuidades,
rupturas, gestações em curso ou abortadas, as diferenças entre mortos e vivos.
169
Destáca-se que neste trabalho se optou por adotar o conceito de Sentido de modo
amplo, pois ao contrário do Significado, o Sentido, é uma reflexão, um Sentido Interno, e,
170
além disso, pressupõe os órgãos receptores. Seria possível também destacar a famosa
metáfora que diz respeito à orientação, quando se busca um sentido, está também se buscando
uma direção, seja norte, sul, leste ou oeste, ou quando perguntamos para o motorista do
ônibus ―este ônibus vai sentido centro?...‖ etc. Portanto, entende-se que Sentido abarca os
significados, que são fixos, associados aos signos da linguagem, e amplia os seus contextos,
na medida em que o Sentido compõe realidades linguísticas inovadoras e que podem
estabelecer novos significados em velhas acepções.
Trabalhando sobre a filosofia de Paul Ricoeur, chega-se à teoria geral das
intersecções das esferas do discurso. Esta dialoga diretamente com a discussão do Sentido e
suas interrelações com a metáfora, narrativa e de sua multiplicidade regulada, pois não é um
processo desordenado, é mais que isso, é um processo da cultura que amplia os significados e
os conceitos pré-concebidos, é uma encruzilhada das esferas de discurso entretecidas.
O estudo busca um entendimento adequado do discurso especulativo, pois onde se
encontra uma polissemia de sentidos e uma pluralidade de significados, busca-se uma teoria
que compreenda essa multiplicidade que não age de forma desordenada (RICOEUR, 2000).
A partir dessas premissas, inclina-se a inferir que o sistema que adota o discurso
especulativo como motor do intelectivo, redutor da metáfora, em medida que submete ao
logos as formações da linguagem; porém, esse processo se fundamenta desta maneira, devido
a não pureza do pensamento e da linguagem, e que, portanto, só na interferência entre ambos
é que podemos estabelecer uma análise coerente e possível no campo teórico.
É no campo da interpretação que podemos introduzir uma interferência, como ―licença
poética‖ e promover uma conversação, onde estes dois campos, o especulativo e o metafórico,
constituem um lugar de desafio para a produção do Sentido:
O que podemos definir como campo de ação do Sentido é essa intersecção, este um no
outro. A intencionalidade de um no outro é um espaço de ampla significação, no contexto da
171
Principalmente quando se fala em ritos e mitos de povos originários, em que se torna preciso
ter visões menos empiristas e mais alinhadas com o Sentido:
Quando Ricoeur propõe a leitura metafórica do mito ele não o faz por
recusar as alternativas linguísticas e históricas. Entretanto ele quer sublinhar
fortemente que essas leituras não podem substituir a leitura hermenêutica
que parte do texto e sua relação com o leitor e entra no processo genético da
produção metafórica de sentido. Essa é uma leitura da nova retórica que
toma o texto com sua autonomia estruturadora de sentido. A leitura
metafórica nos obriga a uma nova genealogia do sentido ou prestar atenção à
gênese do sentido guiado por uma matriz metafórica. As leituras históricas,
semióticas e estruturais são provisoriamente desconectadas (uma epoché). O
processo metafórico engancha o movimento genético do sentido que
acompanha a metaforização do mundo (JOSGRILBERG, 2014, p. 87).
Com base nos contexto teórico apresentado até aqui, realiza-se uma leitura
aprofundada da Temazcal Guarani, e sua denominação social dentro da perspectiva do
fenômeno do Neoxamanismo urbano e do Neoxamanismo Indígena.
Trataremos da construção da Temazcal, a partir da cultura material dos povos aqui
citados. A história cultural e material destes grupos é muito rica, e dá origem a uma linha de
pesquisa chamada de antropologia material. O estudo introdutório da Suma Etnológica
Brasileira, editada por Darcy Ribeiro, é um compêndio de estudos de expoentes da
antropologia e etnologia nas Américas. Nesse estudo introdutório a profª. Dª Dolores Newton,
emérita da University of New York at Stony Brook, relata alguns casos de formação das
residências entre os Tupi, Xavante, Karajá, Yawalapití etc:
173
Tanto a INIPI como o rito da pipa sagrada fazem parte de um conjunto de sete
cerimônias trazidas pela Mulher Búfalo-Branco, uma mitologia muito difundida entre os
Oglala, Lakota, Sioux etc. Divulgadas por Black Elk, liderança e pajé do povo Sioux, em seu
livro The Sacre Pipe: Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux (BRAGA, 2010).
A construção da Temazcal obedece a um conjunto de procedimentos cosmológicos,
por exemplo, a sua entrada tem que estar virada para o leste onde fica a fogueira sagrada que
aquece as pedras. Além das varas de bambu internas que correspondem a uma complexa
disposição imitando as constelações estelares. O formato é de iglu, e sua cobertura é de couro
de animais, atualmente os grupos de Neoxamanismo urbano usam cobertores e plásticos para
isolar e manter a temperatura necessária para a ritualidade.
Nesse caso, tem-se uma cultura material muito rica, que como visto, traduz muito dos
hábitos, ideias e manejo de uma produção social e estética, é um conjunto de elementos que
compõe a memória coletiva do grupo. Também está repleto de Sentido, pois entrar na
Temazcal é uma metáfora para o útero materno. Dentro das práticas do Neoxamanismo
urbano é uma volta à primeira infância e contato com ―pachamama‖ (Mãe Terra).
O caso Guarani é muito rico, a partir da interferência dos modos de ser da aldeia com a
doutrina do Santo Daime, e do Fogo da Verdade, ambas as religiões contemporâneas de
revivalismo presentes no Neoxamanismo urbano. A introdução da Temazcal na aldeia
Guarani de Águas Claras iniciou com a troca ritualista do uso da ayahuasca como contato
intercultural, em seguida foi adotado a Temazcal e o Vision Quest, outra cerimônia indicada
dentro dos sete ritos sagrados que pressupõe um retiro ritual com jejum durante um tempo
determinado de dias para adquirir visões proféticas, como comenta Rose e Langdon:
A aldeia de Águas Claras faz parte do território Guarani tradicional, mas foi
reocupada por uma família extensa indígena no início da década de 1980 e
hoje constitui um ponto central na rede das aldeias Guarani do litoral sul-
catarinense. Atualmente, os moradores desta comunidade encontram-se
engajados em um amplo processo de ―revitalização da tradição‖. O Santo
Daime é um movimento religioso que teve início nos anos 1930, no Acre. A
partir do final da década de 1970 começou a expandir-se por todo o país e,
posteriormente, nos anos 1990, para o exterior. Seu simbolismo combina
elementos provenientes do Catolicismo popular, do Espiritismo kardecista,
dos cultos afro-brasileiros, de grupos indígenas e do universo New Age, entre
outros. O grupo espiritual que chamamos aqui de Fogo da Verdade foi
oficializado no início dos anos 1980, nos Estados Unidos, e começou suas
atividades no Brasil, no final da década de 1990, realizando rituais que
combinam elementos que teriam origem em diferentes tradições do
continente americano e sendo influenciados principalmente pelas práticas
dos grupos indígenas das planícies norte-americanas (ROSE, LANGDON,
2010, p. 84).
175
72
momento, estando dentro da Opy, é o lugar onde ocorrem os batismos das crianças e da
sagrada ka‘á (erva mate).
Como um processo de apropriação a Temazcal sofre transformações de um novo
campo de sentido. Para poder se referenciar à Temazcal os Guaranis tiveram de estabelecer
uma releitura da tradição e introduzir novas nomenclaturas para a comunicação, entretecendo
novos processos de tradução.
Sabe-se que, das muitas etnias presentes no Brasil, os Guarani são das poucas que
matêm a língua de forma constante e cotidiana, assim adotando e criando neologismos para
algumas das palavras da cultura ocidental. Além da língua, a espacialidade da aldeia é
importante campo de trocas e traduções. Essa intencionalidade do espaço é importante, pois a
pessoa está no espaço, assim como o espaço está na pessoa e não há uma divisão clara da
percepção e da intelecção do espaço:
Neste ponto, recorre-se a Milton Santos, pois concebe a inovação no estudo do homem
e do espaço, e essa ―natureza‖ do espaço está repleta de Sentido e Metáforas. O contexto
fenomenológico, e neste caso hermenêutico dos Guarani, está associado à ideia de
apropriação de um novo espaço, ou seja, a Temazcal que passará a se chamar Opydjere. Ou
seja, casa de reza circular. Como completam Rose e Langdon:
73
73
Fonte:
https://www.facebook.com/383593725098602/photos/a.383594345098540.1073741825.383593725098602/3835
94365098538/?type=3&theater
178
Buscou-se, até então, demonstrar como o discurso está repleto de história e memória
de grupos que estão sempre em mutação, porém, quando se fala de uma interpretação
metafórica percebe-se que os discursos têm uma intersecção que podem criar novos modelos
de práticas, como é o caso dos Guarani de Aguas Claras, ou dos grupos de Neoxamanismo
urbano. Partindo de culturas que não são puras, as principais influências dos grupos de
Neoxamanismo urbano, pode-se dizer que são bem variadas, e que como no caso dos nativos
74
Fonte: http://www.johntwohawks.com/blog/the-meaning-of-life-the-simple-answer visto em Ago 2015.
179
norte-americanos, são um povo que pratica trocas culturais entre si, nas diversas
comunidades, os famoso Pow Wow, festivais tradicionais onde as diversas etnias se reúnem
para trocarem sementes, trançados de seus bordados, medicinas, passos de dança, artesanato
etc.
Quando se trata da relação entre duas culturas complexas, como é o caso das culturas
indígenas e a cultura ocidental, tem-se um resultado nada previsto, é uma incógnita quando
esses encontros acontecem. Mas aqui se tem que é possível haver uma correlação entre as
culturas, que permita a troca cultural. Esse processo, em tese, ocorre através da configuração
de práticas nativas no universo do mundo urbano. E esta tradução não existe sem que haja
perdas, em ambas as culturas. Afirma-se, pois, que o trabalho de tradução é um processo de
luto, em que algo se perde, e como foi possível perceber, pode ou não ser fruto de uma
política de memória, pode ser uma falha ontológica do esquecimento.
Mas, é bem provável que exista interesse em poder, em relações de dominação,
principalmente por parte dos mediadores dos grupos de Neoxamanismo urbano. Há interesses
em discursos que propiciem a formação de um grupo, mesmo que não exista um dogma
operador dos grupos, cada grupo dispõe de uma ideologia mais ou menos fixa. Portanto, esse
processo de constituição da teia metafórica é acompanhado por uma política de memória.
Uma narrativa caminha entretecida em vários grupos, e tal processo é operado pela metáfora,
como principal ferramenta que possibilita o processo de contato com o sentido da experiência
primeira e os usos da memória em ordem prática no receptor final.
Um exemplo disso é a prática de indicação dos ―animais aliados‖, ou ―animais
guardiões‖, ou ―totem animal‖, ―espirito animal‖ etc. Essa prática é comum entre os nativos
norte-americanos e aparece de diversas formas em várias culturas. Mircea Eliade comenta que
―esses espíritos auxiliares de forma animal desempenham papel importante no preâmbulo da
sessão xamânica, ou seja, na preparação da viagem extática aos céus ou aos infernos‖
(ELIADE, 2002, p 111).
É recorrente entre os grupos de Neoxamanismo urbano a conhecida Jornada em Busca
do Animal de Poder. Uma prática comum que praticamente todos os grupos utilizam como
mecanismo de apropriação do Xamanismo. Eliade descreve com mais profundidade essa
experiência:
Geralmente sua presença é evidenciada pela imitação feita pelo xamã das
vozes dos animais ou de seu comportamento. O xamã tungue, que têm uma
serpente como espírito auxiliar, esforça-se por imitar através de mímicas os
movimentos do réptil durante a sessão; [...] Aparentemente essa imitação
xamânica dos gestos e das vozes dos animais pode passar por ―possessão‖,
180
mas talvez fosse amis exato dizer que o xamã toma posse de seus espíritos
auxiliares: é ele que se transforma em animal, do mesmo modo como obtém
resultado semelhante usando uma máscara de animal; ou então poderia falar
de nova identidade do xamã, que se torna animal-espírito e ―fala‖, canta ou
voa como os animais e pássaros. A ―linguagem dos animais‖ não passa de
uma variante da ―linguagem dos espíritos‖, linguagem xamânica secreta [...]
Gostaríamos de chamar a atenção para o seguinte aspecto: a presença de um
espírito auxiliar na forma animal, o diálogo com este numa língua secreta ou
a encarnação desse espírito-animal pelo xamã (máscaras, gestos, danças etc.)
são também meios de mostrar que o xamã é capaz de abandonar sua
condição humana, que é capaz, em suma, de ―morrer‖ (ELIADE, 2002, p
112-113).
Tal linguagem secreta representa uma linguagem metafórica, que o xamã toma contato
ao se relacionar com o mundo espiritual, é uma linguagem universal, no sentido que convoca
imagens materiais que podem ser observáveis pela audiência de observadores do transe
xamânico. ―Aprender a linguagem dos animais, sobretudo a dos pássaros, equivale, em
qualquer parte do mundo, a conhecer os segredos da natureza e, portanto, a ser capaz de
profetizar‖ (ELIADE, 2002, p 117). Esse domínio sobre a natureza – e como diz Eliade, a
principal característica de que o xamã pode viajar pela árvore do mundo, entre mundo
subterrâneo, intermediário e superior – representa para muitos uma capacidade extra-humana,
que tem um chamariz muito forte dentro dos grupos de Neoxamanismo urbano, e que não
pode deixar de se figurar como uma das características marcantes da ideologia de um grupo.
Os animais aliados também são conhecidos como animais de poder, por trazerem força
para o praticante de xamanismo. Também podem ser associados às quatro sagradas direções,
ou em relação aos mundos visitados pelo xamanista durante o trabalho espiritual. Ademais, os
animais são usados como veículo de adivinhação, como oráculos, curandeiros peruanos do
norte usam o porquinho da índia para adivinhar onde está a doença, adivinhação pelo
movimento dos pássaros, pelas formigas, por restos de vísceras de animais, horóscopo chinês
etc.
Os animais também são adorados como divindades, como vistos em muitos casos de
religiões orientais. Portanto, podemos dizer que os animais aliados são muito importantes
dentro da prática xamânica. Encontrar o animal aliado não é uma tarefa fácil ou instantânea,
depende da conexão do praticante e depende de uma relação contínua com o aliado, desde que
esse se apresente ao praticante. Depende também de uma postura, por parte do praticante
xamanista, e a possibilidade de um animal permanecer por muitos anos ao lado do praticante,
como também pode aparecer durante um trabalho e depois ir embora, ou ficar atuando por um
período de meses etc. Como tudo que se relaciona com o xamanismo, esta busca não é uma
ciência exata, depende de muitas circunstâncias.
181
O exemplo acima do grupo Neo Xamanismo, podemos ver que o animal de poder
aparece como resultado de um tratamento e objetiva representar obtenção de poder pessoal,
com o direcionamento do animal que será acoplado ao chacra cardíaco. Além de ser uma
prática bem diferenciada das culturais tradicionais, inova ao introduzir o conceito de chacra,
próprio da cultura hindu, na medicina ayurvédica
Fonte: https://m.facebook.com/XamadasMontanhas?photos/a.
Fonte:76
75
Fonte: http://www.neoxamanismo.com.br/pages_atendimentos_curaxamanica.htm
76
http://avozdocorvonegro.blogspot.com.br/2014/11/orientacao-2015-cartas-xamanicas.html
182
Normalmente se indica uma Jornada ao som do tambor, onde a pessoa é orientada por
uma meditação que corresponde ao caminho interior em busca do animal guardião. Um
exemplo disso é proposto por Leo Artese:
77
Fonte: http://www.xamanismo.com/xamanismo/animais-do-poder/ Acesso em agosto/ 2015.
183
de poder, poderá agora voltar ao cotidiano com novas características que irão auxiliar no
desempenho do dia a dia.
Assim, as metáforas ajudam a compor a leituras dos conceitos de espírito animal,
encontrado nas planícies e nos gelo da Sibéria, no ambiente urbano, com uma nova roupagem
e com finalidades diversas. Enquanto que entre os Tungues o animal tem a função espiritual
de fornecer elementos linguísticos proféticos, aqui na cidade ele tem a função de equilibrar as
emoções, e fornecer motivação pessoal para o mundo do trabalho. Se a águia tem o poder de
produzir um voo xamânico para o oglala, para o médico, advogado, mestre de obras, etc; terá
a finalidade de produzir uma visão empreendedora, determinada, de olhar por todos os
ângulos etc. É a metáfora operando através das narrativas, criando uma teia metafórica, em
que os sentidos vão se assentando conforme a necessidade cultural de usos da memória e das
políticas, que é empregada nos discursos. Visto isso, torna-se necessário entende com
acuidade a possibilidade de ampliar o sentido e estabelecer metáforas vivas.
Como se ocupar com a questão da memória com o problema encontrado acerca das
aporias entre memória coletiva, das comunidades nativas, e a memória individual? E ainda:
Como traduzir o horizonte de mundo nativo e o nosso horizonte ocidental? E a questão da
apropriação cultural?
São questões que podem aparecer esparsamente no texto até aqui, porém, percebe-se
que esta relação é uma problemática tensa. É possível dizer que não há uma relação direta
entre esses dois mundos, assim, e a metáfora seria a maior ferramenta de transposição de
mundos. No campo das intersecções do discurso pode-se ver claramente operando a
tarnsposição de horizonte de sentido de cada modo de ser. Mas, no final, ainda ocorrem
muitas perdas. Primeiro pelo fato de ambas as culturas prioritariamente caminharem em
sentido oposto. Por um lado, a historiografia, o modo de ser ocidental é teleológico. O fim é
mais importante, e tudo tende para a tarefa final. Nas culturas nativas, o mundo é cíclico, se
renova anualmente através dos rituais e o presente é fundamentalmente prioritário que o
futuro. Por outro lado, tem-se a questão do individualismo das sociedades ocidentais, a vida
urbana e seus castelos de arame farpado. A cultura nativa pouco se fala do Eu, o Nós é inicial,
e as relações comunitárias são prioritárias. E mais uma questão importante é a relação do
nativo com a terra, enquanto no modelo capitalista ocidental ―você é o que você pode
comprar‖, na cultura nativa você é a terra.
185
O pensamento índio se difere das ciências humanas por vários aspectos. Assim como
se acredita que possa haver algumas metáforas propiciadas pela experiência xamânica que
possibilita, através da metáfora do voo xamânico, aproximar tais horizontes de sentido.
Jürgen W. Kremer78, num conjunto de textos publicados entre 1993 e 1996,
compilados sobre o título de ―Mensagem Xamânica como Recuperação da Mente Indígena:
rumo a uma sociedade igualitária de intercâmbio de conhecimentos‖, publicado originalmente
em 1999, analisa a colonização, genocídio, evangelização, e racismo em populações
indígenas. Ele busca nesse encontro com as comunidades nativas, restabelecer bases
78
Jürgen W.Kremer, doutor pela University of Hamburg; é um editor executivo da ReVision, revista fundada em
1978, e autor de Towards a Person-Centered Resolution of Intercultural Conflicts . Ele é presidente do
Departamento de Psicologia da Santa Rosa Junior College, ex-reitor da Faculdade e Vice-Presidente de Assuntos
Acadêmicos do Instituto Saybrook; Academic Dean, Integral Studies Program, East-West Psychology Program,
California Institute of Integral Studies, CIIS; e Co- Diretor do Ph.D. program for Traditional Knowledge, CIIS.
Editou na ReVision special issues on Peace and Identity; Paradigmatic Challenges; Culture and Ways of
Knowing; Indigenous Science; Trance and Healing; and Transformative Learning.
186
respeitosas para o contato entre o europeu, vivendo nos Estados Unidos da América e o
conhecimento nativo. Como estabelecer relações saudáveis entre as ciências nativas e as
ocidentais? Kremer indica algunas sugestões:
Existe uma divergência entre o pensamento ocidental e o nativo, Kremer entende que
como europeu pode encontrar nesta tarefa de restituição da memória o passo para recuperar a
mente indígena. Assim como as ciências devem se ocupar de ―pensar‖ sobre o ―pensamento‖
em exercício, também deve descolonizar o pensamento de forma permanente79. Como
salienta o antropologo Eduardo Viveiros de Castro:
79
O pensamento está investido das metodologias que aplica durante a abordagem do objeto, e para nós o
trabalho sobre a memória crítica é uma forma de rever estes métodos, olhando a partir da orientação do
pensamento dos povos estudados.
187
travei com meu amigo Philippe Descola em janeiro de 2009, mediado por
Bruno Latour. Não lembro por que exatamente, as horas tantas retorqui:
―não, temos que fazer a descolonização: a antropologia é a descolonização
permanente do pensamento‖. A palavra ―permanente‖ remete é claro ao
topos trotskista da revolução permanente. A alusão à revolução permanente
era provocativa; o que eu queria dizer era: ―nós não estamos aqui para fazer
taxonomia, nem para organizar cognitivamente o mundo; nós estamos aqui
para fazer uma revolução permanente‖. Uma revolução ―em pensamento‖,
―no pensamento‖. Uma descolonização permanente do pensamento
(BARCELLOS ; LAMBERT, 2012, p 254).
Kremer, por outro lado, está interessado em construir um discurso de intersecção entre
os dois mundos, mas de forma respeitosa, e procurando compreender o horizonte de sentido
dos nativos americanos do norte, e como traduzir estes saberes para a prática das ciências
humanas ocidentais. O que Kremer está preocupado é como restabelecer suas próprias raizes,
em relação ao que ocorreu com o nazismo na Alemanha, com o Cristianismo como base da
cultura de colonização, e como encarar o pensamento europeu e mesmo assim se estruturar
internamente para se qualificar nesse diálogo. Esse processo pode empedir o avanço da atual
condição mundial colocada em cheque pelo desenvolvimentismo atual, que degrada o meio
ambiente, causa as guerras, o êxodos etc. :
Falar de cura é falar de doença. Ora, poderá falar de doença alguém que não
seja médico, nem psiquiatra, nem psicanalista? Creio piamente que sim. As
noções de trauma ou de traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade
pertencem à consciência comum e ao discurso ordinário. É exatamente a este
fundo tenebroso que o perdão propõe a cura. Mas de que maneira? Gostaria
de situar o perdão na enérgica ação de um trabalho que tem início na região
da memória e que continua na região do esquecimento. É pois das ―doenças‖
da memória que gostaria de partir. O que me incitou a colocar o ponto de
partida no coração da memória é um fenômeno inquietante, que se pode
observar à escala da consciência comum, da memória partilhada (se se quiser
evitar a noção bastante discutível de ―memória colectiva‖). Este fenômeno é
particularmente característico do período pós-guerra fria, em que tantos
povos foram submetidos à difícil prova de integração de recordações
189
Observa-se a similaridades entre as propostas dos dois autores. A cura de uma doença
histórica, que é a alienação com relação aos povos nativos, deve ser enfrentada colocando a
questão da memória como tarefa. Primeiramente, como comenta Fausto Reinaga, existe a
necessidade de uma revolução indígena, onde os povos possam retomar sua soberania
cultural. Sua história sempre foi de conflito, o processo de expropriação colonizador e o
projeto missionário europeu e americano conseguiram retirar dos indígenas suas verdadeiras
raizes. Percebe-se claramente que esse processo ainda continua em andamento, com as
dificuldades que enfretam os povos indíginas no Brasil, falta de saúde, de educação, não
existe interesse em demarcação de terras, entre outros percalços.
A importância da memória está ligada ao processo de lembrança, dos traços que
caracterizam essas comunidades. Como praticar e entender tal vergonha, essa dívida histórica
e poder praticar o esquecimento. Ricoeur explica que não é um esquecimento comum, é um
perdão:
pretação de contas através do luto. É um caminho de ida e de volta, mas sabendo que pode-se
não ser aceitos. O trabalho de prestar contas consigo mesmo e com a sociedade nem sempre
significa que será resolvido o problema. O perdão pode ou não ser aceito:
Ou seja, este assunto se encerra no campo da política, e das políticas de memória, pois
é um dever dos que virão se redimir com as vítimas. Kremer quer explicitar esse processo
terapêutico, como afirma Ricoeur, quando se debruça sobre sua história e de seus ancestrais, e
dos usos feito pelo nazismo da mitologia e do folclore alemão. Como ferramentas de
dominação e guerra. E entender tal processo significa enfrentar dívidas históricas:
A tarefa da memória crítica é uma etapa para a abertura do diálogo, defende-se nesta
tese que para ir ao diálogo é necessário estar com a prestação de contas em dia. E também que
se sabe de onde se fala, e assim, estabelece-se claramente as relações, pontos de contato e as
aporias que existem inevitavelmente entre o pensamento nativo e o pensamento ocidental.
Pergunta-se se é possível fazer esta observação, sem ter a perda de muitos fatores essenciais
para o modo de ser indígena. No entendimento, que alcançou com esta pesquisa, sobre os
indígenas passa pelo advento do fenômeno do Neoxamanismo urbano nas últimas décadas, e
como esse fenômeno religioso vem se propagando com grande rapidez. Identificou-se que as
intersecções entre o discurso indígena e a medicina rústica são atrativos para o ser humano
que vive desintegrado no meio da metrópole contemporânea.
Então, o ponto de partida, aqui, precisa levar em consideração que o que leva as
pessoas a estes grupos é o interesse em práticas curativas de ―origem‖ indígena, ou seja, não
ocidentais. E como é possível se analisar meio de conhecimento tradicional? Quais
ferramentas teóricas e métodos permitem pensar sobre esse fenômeno? Kremer enfrenta a
mesma dúvida, ―es la manera Euro-americana de conocer las prácticas curativas indigenas
compatible con la comprensión y uso nativos de estas prácticas? E continua:
192
americana Pam Colorado, Kremer procura estabelecer quais são as principais características
da ciência indígena:
feminina, por ser relacional e lunar. Mas podemos identificar indivíduos de ambas culturas
transitarem entre horizontes de sentido diversos de sua matriz:
abertura conceitual, visto que não temos a pretensão de validar prática de medicina rústica,
ciência indígena ou culturas tradicionais.
As medicinas indígenas são cerimônias de renovação do mundo. As culturas não
ocidentais, não historiográficas tendem a manter ciclos anuais de restituição do tempo
primordial; as medicinas não são diferentes disso, elas tendem para a busca de integração
renovada. Esse processo cíclico do tempo permite acompanhar os ritmos naturais, de
plantação, de pesca, nascimentos, morte, batismos etc.
O indígena pode se relacionar com o modo de ser natural, ou seja, caso esse nativo
venha a perder-se do ritmo natural, ficar confuso e desorientado (pra muitas comunidades da
região do Acre se chama ―panima‖), as medicinas tendem a reorganizar o universo de sentido
do sujeito para a normalidade. Mas, se tratando de um sujeito que vive no meio urbano, que
está totalmente alijado desse universo de sentido, é uma reversão, pois para ele é uma
recuperação de uma origem perdida, que há muito está dentro de si, mas que ainda não tinha
se revelado. É a busca pela ancestralidade, por uma brasilidade, poderia se dizer. O sujeito
revertido tende a compreender o mundo como algo totalmente novo, mas como se sempre
tivesse sido dessa forma. Comumente ocorre mudança de hábitos, de vestimenta, alimentares,
de comportamento social etc.
Esse fenômeno é comum em muitas religiões, mas o que se quer trazer é a diferença
do termo reversão do uso comum em outras práticas religiosas que é o termo conversão. Neste
caso a pessoa não deixa uma vida para assumir outra, ela encontra a si mesma, algo que estava
adormecido dentro de si mesma e que não vai interferir na sua vida mundana, em verdade
pode até qualificar sua vida cotidiana, suas relações no trabalho, familiares etc. Uma das
tonantes do Neoxamanismo urbano é não se identificar como movimento religioso,
entendendo o Xamanismo como uma prática universal, sem contra indicações.
Pode-se, portanto, determinar, que a metáfora opera uma esfera de concretude, onde
universos de sentido se encontram numa materialidade cultural. Percebe-se que a figura do
xamã é fundamental no trabalho de transposição, e esse processo ocorre na prática tradicional,
quando se propõe a traduzir esse universo de sentido, dos muitos mundos, para a comunidade.
Também é o veículo, por onde a ciência indígena se insere no universo urbano.
197
A empatia pelo outro é um processo que atinge seu auge no sistema de sentido
metafórico como ambiente simbólico e poético. Em que o sistema simbólico realiza um
conjunto de operações da linguagem, de intersecções de discurso, e aqui, mais uma vez o
xamã aparece como aquele que promove a conversação, o diálogo, e com isso sanador de
enfermidades:
Como na epígrafe deste capítulo80, somos aquilo que podemos contar e recontar sobre
nós mesmos. O processo de catarse é extremamente rico, pois a narrativa é operadora de
transformações profundas no ser humano. E a narrativa operando a catarse tem a finalidade de
purificar nossas dores da alma, e a possiblidade de ouvir a narrativa do outro, seja o xamã,
seja o participante do grupo, pois nas cerimônias de Neoxamanismo urbano as personagens
xamã e participante se misturam, em uma única teia de metáforas, onde todos são ouvintes e
produtores de narrativas de poder.
A empatia é chave importante desse processo, ―esse poder de empatia com seres vivos
que não nós mesmos – quanto mais estranhos, melhor – é um teste supremo não só de nossa
imaginação poética, mas também de nossa sensibilidade ética‖ (KEARNEY, 2012, p. 418),
que para entendimento, proporciona a possibilidade de uma reversão do pensamento e da
memória ultrajada, para uma leitura crítica da história em torno de um ethôs xamânico, pois
todos os ―genocídios e as atrocidades pressupõem um fracasso radical da imaginação
narrativa‖, e ―[...] essa função narrativa de tornar presentes coisas ausentes pode servir a um
propósito terapêutico‖ (KEARNEY, 2012 p. 419-421).
Sobre essa questão, aprecia-se a oportunidade de trazer um relato de Kearney, que se
acredita fundamental para entender a função de liberação da catarse narrativa:
Todo o sentido literal de acender um cachimbo e andar dentro de uma casa perde a
importância, tudo é poético. O caminhar é poético em medida que constitui novos mundos, e
quando inicia o trabalho xamânico, nada é literal. Diante disso, remete-se a um ―esquema‖ da
linguagem no modo xamânico. A palavra dita no trabalho xamânico já não é mais denotativa,
nada pode ser literal, agora o reino do símbolo é que determina a teia metafórica. Quando
evocada, a palavra xamânica cria um novo campo de referência, tudo passa a ter novo sentido,
e tudo o que acontece tem um novo campo de constituição, um ―magnetismo‖ para que a
―realidade‖ empírica seja antropofagicamente refeita.
A palavra xamânica cria um modelo, como Ricoeur quer designar, uma metáfora
continuada, rede de metáforas, e não um enunciado estático, mas um campo sistêmico
simbólico. Uma tensão vivificada, onde a relação entre as diversas operações da linguagem
configuram a metáfora como modelo para o discurso por fundição, aproximação e
combinação de termos (RICOEUR, 2000, p. 381). As conexões da rede metafórica caminham
num campo próprio ao xamânico, e toda palavra, todo gesto remete ao ato ―mágico‖ que
constitui a realidade em ato. Essa poética é uma poética do possível, da constituição de
possibilidades diversas, a partir de olhares intencionais. E a existência do ser humano já é um
êxtase temporalizante intencional, em medida que:
Assim, segue-se para o cerne da questão, que é se, nessa experiência controlada,
dentro de uma teia metafórica podemos constituir uma poética do si. Relação esta que se está
estabelecendo com a possibilidade de uma interpretação que vise uma abertura de mundo, que
justifique uma poética contemporânea, que vença a ideologia vigente e possibilite narrativas
criadoras de novos modelos sociais, através do processo de redescrição, como apresentado no
primeiro capítulo. E neste momento retoma-se o estudo inicial, das narrativas visionárioas,
mas com outra perspectiva, a de um desdobramento ético e da imaginação social.
81
Tommy Akira Goto é professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas (2007), Mestre em Filosofia e Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo (2002).
208
é retomado como estilo de vida. A metáfora existencial é uma ação que foi gerada por uma
narrativa dentro do modo Catharsis narrativo, que opera a transformação em ato de
recepcionar a mesma.
Essas narrativas se são modos endógenos à memória, que passa por um processo
crítico; rastros de memória que são reelaborados com vistas à metáfora continuada, ora, se a
metáfora opera em diversos campos de constituição de discursos, desde a visão de mundo,
realidade psíquica, ela também atua nos processos de apropriação de traumas e memória
ferida, transpondo a metáfora sobre a memória danosa e propondo reconciliações interiores.
Outro exemplo a se considerar:
Eu sei que... tem me feito muito bem, eu tenho tido muita saúde desde então.
[...] Eu sempre fui a pessoa que me enfermava muito... Curei... praticamente
tudo. Minhas alergias, minhas asmas, bronquites... A partir do momento que
eu reconheci quem eu era e comecei a me respeitar, meus tempos internos.
(...) A partir do momento que você começa a se curar, naturalmente você vai
curando seu entorno (SIC, C1, p. 4) (GOTO; RIBEIRO, 2007, p. 23).
Existe uma encarnação do cogito, ele não é pura abstração, há seguramente raízes
corporais que fundamentam a experiência vivida. O ser é em sua definição um realizador da
vida, mas não é só um sentido a se realizar, é também uma vida a si fluir. Como comenta
Ricoeur, ―reconhecemos aqui o movimento do pensamento de Gabriel Marcel que une a
redescoberta da encarnação a um reflexo do pensamento no objeto, a uma conversão da
‗objectividade‘ na ‗existência‘ ou, como ele dirá mais tarde, a uma conversão do ‗problema‘
em ‗mistério‘‖ (RICOEUR, 1967, p. 18). Esta postura pede a saída do posicionamento
solipsista, e envereda pelo aspecto involuntário.
O involuntário existe como uma força hostil. Não é domável, pelo contrário é
observável somente diante da decisão, diante do inesperado. Só é possível, portanto, conhecer
a vontade pelo fato de que se é tomado endogenamente por elementos incontroláveis. Nesse
211
82
Tarik Ganizev Jimenez frequenta a centro xamânico Porta do Sol, e decidiu fazer o trabalho de conclusão de
curso em Psicologia estudando seus relatos pessoais de visões extáticas a partir de uma leitura fenomenológica
com base no pensamento Heideggeriano.
212
Sobre estas experiências passadas, vale antes de mais nada, uma nota: houve
um ritual em que eu me deparei com formas e rostos muito similares. Porém,
naquele ritual, mesmo os reconhecendo como ―malignos‖, eu sorri para eles
e os permiti ―passarem‖, não ofereci qualquer resistência ou mesmo me
coloquei em qualquer via de reflexão durante acontecimento. Mais adiante,
213
me percebi sendo maltratado por aqueles ―seres‖ durante horas após o ritual.
Desta experiência, aprendi, entre outras coisas, que é preciso tomar cuidado
com os contatos que eventualmente travamos no estado-de-transe. Tendo em
vista esta experiência passada, agi diferentemente nesta oportunidade. Vale
notar que minha atitude durante o acontecimento não foi a de os mandar
embora, ou mesmo, de simplesmente tentar mudar de ―visão‖: resolvi olhar
firme para aqueles rostos, e assumir a minha posição perante eles. Este novo
modo de responder ao fenômeno tem em seu fundamento minhas
experiências passadas, portanto, vale dizer que se apresenta como resultado
de um processo de aprendizado. Mas, também, tem em seu fundamento um
sentido que pré-reflexivamente sempre carreguei comigo, desde o início de
minhas experiências nos rituais: a noção de que absolutamente tudo com o
que me deparo, tudo que me é apresentado durante o ritual, tem a ver
propriamente comigo e com a minha existência. Nada é por acaso, afinal,
tudo se apresenta já a partir de um sentido. Sendo assim, por alguma razão
eu me deparava com aqueles rostos e formas. Eles possuíam algo ali para me
contar, logo, eu deveria mergulhar naquele acontecimento a fim de descobrir
o aprendizado que eu haveria de colher. Tendo isso em vista, eu não poderia
simplesmente os mandar embora (JIMENEZ, 2017, p. 60-61).
O sujeito precisa constituir memória para se formar, para se modular como sujeito
inteiro. O ato de lembrar constitui mundos que se originam nas experiências vividas, no
mundo da vida e a ―passagem, pelas obras do espírito (cultura) é essencial. É por aí que o ser
humano se traduz e se interpreta. De algum modo o ser humano investe muito na preservação
216
dos testemunhos de si mesmo através dos tempos, por que intui a importância de preservar
suas preciosidades culturais‖ (JOSGRILBERG, 2013, p. 32).
As práticas em que nativos, de dezenas de comunidades tradicionais, vêm a público
trazer são metodologias de apropriação dessas técnicas, que visam expandir o si mesmo, e
deve-se olhá-las exatamente como o que são, como técnicas que visam aprimorar essa
capacidade de ato, de proximidade entre intenção e ação. São técnicas que lutam contra, o mal
ontológico, a falibilidade humana:
comunidade aprende por meio do canto, da dança, enfim, através do mito/rito, que é uma
forma eficaz de fixação do saberes.
A comunicação dessas narrativas ocorre de forma a garantir a perpetuação da tradição,
mas ao mesmo tempo é preciso que haja um movimento de adaptação desta para os novos
desafios da história, em constante mudança, ou seja, na medida em que há um esquecimento
ontológico, existe a capacidade de criação e transmissão das narrativas, como as técnicas
específicas dos memorialistas, dos contadores de histórias, dos curandeiros xamânicos. E esse
processo é predominantemente metafórico.
A produção da linguagem nessa acepção é estritamente poética, pois parte de uma
elaboração da realidade a partir de metáforas. É um texto poético, uma tessitura construída
dentro da tradição e da comunidade, através dos mitos e da ritualidade. Pelo olhar do discurso
e da reestruturação da realidade, é possível desestabilizar o conceito solidificado de mundo, e
restabelecer novos limites, mais extensos, para a construção de sentido.
O conceito de metáfora não é uma definição encerrada. A princípio o conceito só
existirá na condição de ser, na sua essência, como uma adaptação contínua e
consequentemente uma exposição sobre o que ultrapassa o plano da palavra, da espécie, do
gênero, etc. Assim, conceituações sobre a metáfora, observadas em momentos diferentes,
podem corresponder a interpretações diversas. Nesse sentido, Ricoeur propõe um passo à
frente, pois o discurso constitui obra na medida em que o discurso é metáfora, pois se
estabelece nos campos de referência, nos mundos onde se institui e recria realidades.
Nesse campo, a interpretação, como discurso que melhor opera no universo da
metáfora, é quem pode, a partir de suas estruturas de análise, propiciar um entendimento do
modo de ser da narrativa, assim como dos modos de sua transmissão na comunidade.
Portanto, podemos dizer que neste caminho entre ouvir, interpretar e escrever há um
processo hermenêutico, que possibilita o entendimento metafórico. No campo da narrativa,
contar uma história é buscar por si mesmo, e no ato de narrar, constituir-se como ser de
historicidade e um processo terapêutico que possibilita o resgate do sujeito como pleno da
capacidade da memória:
mito etc., o grupo devolve essa informação como outra narração e daí em diante, numa
circularidade que, dentro de uma possibilidade de inovação, mantém a tradição viva, a
metáfora viva. Além disso, esse processo de mutualidade é amplamente rico e importante para
a comunidade, pois representa a possibilidade de constituição de estratégias de convívio,
como afirma Ricoeur:
O recurso ao conceito de reconhecimento mútuo equivale, neste estágio da
discussão, a uma argumentação em favor da mutualidade das relações entre
os atores da troca, em contraste com o conceito de reciprocidade situado pela
teoria acima dos agentes sociais e de suas transações. Por convenção de
linguagem, reservo o termo ―mutualidade‖ para as trocas entre indivíduos e
o termo reciprocidade para as relações sistemáticas em que os vínculos de
mutualidade não constituiriam senão uma das figuras elementares da
reciprocidade. Esse contraste entre reciprocidade e mutualidade é agora em
diante considerado um pressuposto fundamental da tese centrada na ideia de
reconhecimento mútuo simbólico (RICOEUR, 2006, p. 246).
Isso nos deixa a questão sobre a maneira pela qual essas experiências
pacíficas de reconhecimento mútuo se baseiam em mediações simbólicas.
Surge um problema se tentamos pensar no mútuo reconhecimento como um
presente que nos damos uns aos outros. O problema aqui é se toda dádiva
resulta numa lógica de reciprocidade, numa espera de troca de presentes, o
que possibilita novos conflitos. Ricoeur diz que, ao contrário, devemos
pensar na dádiva como mútuo reconhecimento como uma surpresa, como
amor que não pede coisa alguma em troca, um amor que não calcula e se
caracteriza mesmo pela despreocupação, que vai além das demandas de
justiça. Além do mais, há geralmente um toque cerimonioso no ato de
presentear (PELLAUER, 2007 p. 177).
Vou concluir com algumas reflexões sobre o papel ético de contar histórias.
A questão mais básica a recuperar aqui é, creio, a de que as histórias tornam
possível a partilha ética de um mundo comum com os outros, na medida em
que elas são invariavelmente uma forma de discurso. Todo ato de contar
histórias envolve alguém (um narrador) contando algo (uma história) a
alguém (um ouvinte) sobre algo (um mundo real ou imaginário)
(KEARNEY, 2012, p. 426).
Essa especialidade de alguns membros das culturas nativas mostra que a sociedade
moderna perdeu a capacidade de elaborar suas narrativas de forma pacífica, e pode-se
aprender muito com o ensinamento nativo, na medida em que se permite utilizar metodologias
hermenêuticas, capazes de expandir o espaço conceitual, ou mesmo recriando a metodologia
com elementos narrativos, e até mesmo poéticos que mutuamente constituem mundos. A
justiça e a capacidade criativa da poética que perpassa a vontade humana, talvez dando uma
chave interpretativa que ajude a superar, ou compreender de forma saudável as limitações que
são impostas pela fragilidade da existência humana, são caminhos viáveis para um ethos
contemporâneo.
Todos os processos evidenciados nos relatos e testemunhos mostram a capacidade de
redescrição da vida presente no modo xamânico, e este modelo de atuação na realidade só é
possível pela adoção, ou a tentativa de inserção do modo de pensamento ameríndio nos rituais
221
dos grupos de Neoxamanismo urbano. Tais trocas de sentido também representam recriações
semânticas e epistêmicas, em que o hibridismo cultural não é só do ponto de vista dos bens
materiais, mas também da visão de mundo, e da reversão dos sentidos a novos horizontes de
possibilidade.
Sendo um povo que vive muito próximo do modo de vida ocidental, permite prever as
agruras para manter-se íntegro a suas tradições comunitárias. Amplia-se o modo de ver em
medida que se aproxima do pensamento indígena, e pode-se adotar a ética prática, proposta
por Ricoeur, e aqui se propõe ampliar sua noção de alteridade:
Essa alteridade ampliada, é que fundamenta um Ethos xamânico. Este modo de ser
nativo encontra suas relações em cosmologias diversas da ocidental, como a suspensão de
tempo e espaço. Tal característica, comum ao trabalho xamânico, é estruturante para o
encontro de si mesmo. Segundo o filósofo argentino Rodolfo Kusch, o encontro divino com si
mesmo se dá desta forma, quando observa na cultura quechua:
A Talidade seria uma forma de pensar a ipseidade pelo Ethos ampliado pela visão
sistêmica xamânica, de um ponto de vista de dentro do sujeito que observa a passagem da
mesmidade, sem perder a permanência no tempo, e reagindo pela vontade ao involuntário
contemplativamente. Observar a si mesmo e ao mundo nas interconexões. No universo dos
povos ameríndios tudo está conectado e não há pensamento que não afete a realidade sensível.
E essa conexão está em toda parte e interligada ás direções sagradas do mundo. Esse vínculo
de conexão ultrapassa e amplia a noção de consciência e o termo Ser filosoficamente situado,
tenta ser superado pelo estar, como um modo fluente e não teleológico; não têm um fim em si,
mas está aí, é um ponto de chegada e não de partida. Segundo Kusch:
Ser assim, estar assim, como ponto de chegada, ajuda a intercruzar o ser em tarefa de
Ricoeur e o mero-estar de Kusch, diante da realidade complexa que se tem entre pensamento
ameríndio e ocidental, simultaneamente presentes no Neoxamanismo urbano. Esse mundo
―mandálico‖ de Kusch, em que as direções sagradas se identificam com a identidade
narrativa, este que é diante do mundo cosmológico. A outridade da natureza, e a assimilação
da finitude como campo simbólico de infinitude.
A mândala, como modelo de um sujeito que aparece em estudos contemporâneos, do
ponto de vista da psicologia, é o centro do self, do si mesmo; para Kush se assemelha às
teorias junguianas, em que é possível observar as mândalas como modelo do sujeito. O que é
muito interessantemente, e foram observadas por C.G. Jung, as mândalas ocidentais não têm
um centro. E isso diz muito da cultura ocidental; como comenta Kusch:
originários dessas terras perderam muito mais que ganharam. Além disso, este processo de trocas sempre
vem acompanhado de violência, principalmente do discurso dominante, que busca impor-se sobre os
demais.‖ (FIGUEIREDO, 2017, p. 180).
Sendo a questão ética o centro da problematização, e a identidade narrativa sua fundamentação,
sempre termina, portanto, numa postura ética e a crítica se faz como necessariamente objeto de constituição
da ipseidade histórica. Seja como empoderamento ou fragilidade, mas com a devida reflexividade entre o
que e o quem do ser humano. Superar epistemologicamente o que, para propor um quem que se
movimenta e criativamente é recriação de si, essas tentativas de reverter a metafísica presente na filosofia
ocidental são executadas com propósito de constituir uma ontologia quebrada, desse self que se executa
como tarefa entre involuntários e vontade, entre finitude e liberdade, de um cogito ferido. Segundo
Kearney:
(1999) refere que para o indígena, a Fagocitose é natural, e tem nesse entendimento uma
vantagem de entender que tudo é passageiro. Os indígenas trazem o conhecimento de que o
ser alguém é transitório e de nenhum modo é imutável e eterno‖ (VIÇOSA, 2015, p. 185),
sendo viável pensar nesse horizonte de sentido, de usos e abusos da memória indígena, que
apesar de aceitar como transitório o processo, hoje vive sobre grande ameaça, principalmente
no Brasil, em que a população indígena é muito inferior ao resto da América Latina, e a
relação com o índio é totalmente diferente. Porém, Kusch parece otimista com relação a esta
mutação. Segundo Kusch:
Pero esta misma oposición, en vez de parecer trágica, tiene una salida y es la
que posibilita una interacción dramática, como una especie de dialéctica, que
llamaremos más adelante fagocitación. Se trata de la absorción de las pulcras
cosas de Occidente por las cosas de América, como a modo de equilibrio y
reintegración de lo humano en estas tierras. La fagocitación se da por el
hecho mismo de haber calificado como hedientas a las cosas de América. Y
eso se debe a una especie de verdad universal que expresa, que, todo lo que
se dá en estado puro, es falso y debe ser contaminado por su opuesto. Es la
razon por la cual la vida termina en muerte, lo blanco en lo negro y el dia em
la noche. Y eso ya es sabiduria y más aun, sabiduria de América (KUSCH,
1962, p. 18).
ateus, e podem criar uma política de memória de forma arbitrária, o que não se relacionaria
com um processo de fagocitação histórico, mas num nível pessoal há possibilidades de
aproximação.
O que se pode afirmar é que com a capacidade de interação e inovação do
Neoxamanismo urbano há sempre a possibilidade de criação de outros modelos de
socialização e dos usos e abusos da memória. Uma das conhecidas neoxamãs, a psicóloga
Marise Dantas, conhecida como xamã Yatamalo, de João Pessoa, Paraíba, fundadora do
espaço holístico Taba da águia – coordena estudos e práticas xamânicas em Brasília e João
Pessoa desde 1995; ela comenta como foi legitimada ao conhecer o pajé Sapaim:
[...] depois veio o pajé Sapaim, que é o grande pajé brasileiro da nação
Kamayurá do alto Xingu, que me reconheceu como Yatamalo e aí vem, o
que nós chamamos, assim dizemos, que é importante no Xamanismo, que
você não se diz um xamã, você é reconhecido um xamã por outro xamã, por
um xamã que é reconhecido. É quase como a hierarquia na tradição.... e aí o
pajé Sapaim me reconheceu como Yatamalo. Que significa esta palavra
Yatamalo? Uma mulher de cura da nação Kamayurá, uma antiga curandeira
que viveu há tempos... Ele despertou a medicina que havia dentro de mim e,
não me tornou uma médica tradicional, nem a psicóloga que sou,... Coisa
que a psiquiatra, que eu queria ser desde criança, não alcançava, mesmo
sendo uma curandeira como eu [...] (CARDOSO et. Al., 2012 p. 12).
Todo o processo de solidez do discurso pode ser inviabilizado pela opressão, pela
retirada do direito de si dizer, amarradas que adoecem a ipseidade individual e comunitária
dos povos originários. Como Kearney, interessa-se, aqui, mais pela justiça que pela validação
dos discursos, e os mecanismos de validação dessas narrativas partem de uma posição
anticolonial, antiopressão. Das narrativas segue-se para a ação, assim com o texto, adota-se
uma postura crítica para, então, agir no mundo; a metáfora tem a função aqui de partir do
campo existêncial para o da ação efetiva no mundo. Esta posição tem inspiração no modelo de
inscrição no texto, a ação, como proposto por Ricoeur, o autor complementa:
Dussel admite que esta perspectiva ricoeuriana contribuísse para a constituição de sua
filosofia da libertação. Em ambas a modalidades do discurso, se sedimenta a necessidade de
tomar corpo a postura ética e política, não como horizonte totalizante, mas como uma
Phronesis, que quer dar voz a cada envolvido, de forma poética e não enrijecida. Este
comprometimento é pedagógico e uma ética situacionista que ao mesmo tempo esta
comprometida com a experiência vivida executando por completo a tarefa da ipseidade, como
funcionalidade primordial de constituição de mundos. Pois toda tentativa totalitária de
redução da ipseidade individual ou comunitária é adoecimento.
Eduardo Restrepo e Axel Rojas explicam que, da mesma forma que é preciso
fazer uma distinção analítica entre colonialismo e colonialidade, não se deve
também confundir descolonização com decolonialidade. Por descolonização
entende-se o processo de superação do colonialismo, geralmente associado
às lutas anticoloniais no marco dos Estados que resultaram na independência
política das antigas colônias. A decolonialidade refere-se ao processo que
busca transcender historicamente a colonialidade e, de acordo com estes
autores, supõe um projeto com um projeto mais profundo e uma tarefa
urgente para o nosso presente de subversão do padrão de poder colonial
(2010, p. 16-17). Nesta tese, adota-se a expressão descolonização (em
itálico) no sentido de decolonialidade, pois é a expressão usada pelo
movimento indígena de alguns países da América Latina e que aparece na
Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia de 2009
(REZENDE, 2014, p.52-53).
Sendo objetivamente caracterizado como um pensamento que visa observar não uma
relação de trocas culturais, mas sim uma relação de dominação assimétrica, que configure o
pensamento decolonial não como uma filosofia subalterna ou panfletária, ou ainda marxista,
mas como um movimento de pensadores recriando a filosofia não a partir dos gregos, mas dos
povos originários e seu pensamento. Ainda numa tentativa de superação de um modelo
importante, que como apontado por Ricoeur, precisa de um olhar local, e a singularidade de
cada grupo, propõe-se uma hermenêutica que abarque ambos os pontos de vista. Persevera-se
para que haja essa nova hermenêutica, sendo essencial que seja adotado o pensamento crítico
da memória e da história, como comenta Kremer, que chega a mesma conclusão a partir de
perspectivas europeias:
Gostaria de ser o mais claro possível sobre o ponto de vista a partir do qual
escrevo: o quadro é a) decolonização e b) a cura da masculinização dos
fenômenos da realidade percebida. Qualquer consideração em relação às
raízes indígenas para as pessoas que são excluídas por diversas gerações
deve incluir dimensões como política, economia, direito, práticas culturais,
cerimônias, iniciação, ciência, psicologia. Cicatrizar o processo do
pensamento do eurocêntrico a partir da sua dissociação ou separação de uma
participação integrada, nutrida ou holística nos fenômenos não pode ser
apenas um processo individualista – deve ser um processo cultural, comunal
e social. Estou escrevendo como um homem de ascendência nórdico-
germânica lutando com as profundezas das cicatrizes das patologias
modernas à medida que se mostram em indivíduos fisicamente como
doenças, câncer, toxicomanias, síndrome de fadiga crônica e anomias sociais
(no sentido de Durkheim) crises ecológicas, o contínuo genocídio físico e
cultural dos povos indígenas, as crises de conhecimento, a persistência do
sexismo, a violência institucionalizada e o racismo, etc. Estou usando os
termos raízes indígenas, consciência indígenas e similares, sem qualquer
presunção de que isso é algo que eu consegui para mim, ou que cheguei ao
fechamento do meu processo pessoal de decolonização (não acredito que
seja possível fechamento individual sem a cura dos contextos culturais e
comunais) (KREMER, 2000, p. 2).
sujeito. Tal pensamento está nas próprias línguas nativas, e através destes termos talvez
permita que se associe a esta modalidade de discurso. Será bordado o pensamento pelo bem
viver, o conceito Guarani de Teko Porã, e o quéchua Sumak Kawsay, para exemplificar como
estabelecer parâmetros para uma ética do bem viver, com e pelo outro em instituições justas.
O resultado de uma vida plena interligada com a terra, e com a vida comunitária, o
conceito de bem viver, do modo de ser belo, intrinsicamente relacionado com o modo de vida
indígena favorece uma reflexão em torno da sedimentação do sujeito no mundo. Esse sujeito
incarnado só encontra felicidade no meio social e na natureza. O paradigma do Teko Porã está
vinculado ao modo de vida que busca a integração dos opostos, mas também, dentro de uma
perspectiva decolonial é uma saída do modo capitalista, da esfera do consumo, e das relações
de opressão do colonizador. O Teko só é possível quando eticamente compreende tudo que é
externo a mim como vida e beleza. A vida comunitária dever ser uma prática de mutualidade
pela beleza do estar coletivo.
Tal estima social é fundamental para se alcançar a as capacidades plenas. Para que o
Guarani alcance sua maestria como pessoa, é preciso espaço comunitário onde aplicar suas
potencialidades o Nhanderecó, o modo de ser. Essas ipseidades comunitárias nos mostram
visões de mundo que fortalecem o estar capaz. A disponibilidade comunal inverte o modelo
ocidental solipsista. A identidade como Teko é uma ipseidade em construção, é engendrada na
materialidade da vida na dialética com a mesmidade, fora deste espaço/tempo o que resta é o
Teko Axy (existência imperfeita). O modelo ocidental de viver, de consumo, solipsista,
desintegrado da natureza é uma terra do modo de ser imperfeito, é yvy teko axy (SOUZA
PRADELLA, 2009, p. 108), que se opõe ao modo autêntico de ser o ñande reko katu.
Segundo Regazzoni:
Deve-se destacar que a arete dos Guarani era um tempo autêntico porque
recolhia e repartia os frutos do seu tempo cotidiano. Na festa, os frutos da
terra e do trabalho são oferecidos como dom e graça (aguyje). Por meio
dessa graça, a pessoa alcança o desejado bem-estar e tem a virtude do bem-
viver, que tem muitas manifestações: teko porã (ser bom), teko joja (ser
igual, ser justo); teko ñemboro‟y (ser sereno), teko marangatu (ser santo,
bom)... Esse bem-viver não era algo teórico. Traduzia-se em bondade e
239
sabedoria prática. Vemos isso, por exemplo, na sua arte de cultivar a terra,
conhecendo e classificando perfeitamente todas as espécies vegetais e
animais, as características ecológicas dos diversos lugares. O grande
botânico suíço-paraguaio Moisés S. Bertoni dá testemunho disso em sua
obra de classificação das plantas (depois do grego, o guarani é o idioma que
mais contribuiu com terminologia para a nomenclatura botânica). Os bons
conhecimentos práticos dos Guarani tornavam-nos hábeis ―agrônomos‖. E,
em vez de explorar a natureza, preferiam emigrar: nunca deixaram desertos
atrás de si. O colono europeu acabou pedindo emprestado esses
conhecimentos aos Guarani (MELIÁ, 2004, p.20) (REGAZZONI, 2010,
p.16).
Mais que viver bem é viver de forma integrada com a terra e com a comunidade,
colhendo para todos e deixando a terra sempre saudável. Encontramos definições semelhantes
no termo Kawsay (vida) na cultura quéchua. O termo da cultura quéchua utilizado designa a
vida, mas não estática, é uma vida em movimento, é o estar sendo. É uma perspectiva de
observação da vida pela comunidade, pela postura ética. Este termo tem sido utilizado pelos
povos da América Latina para designar o movimento anti-imperialismo, em busca de prática
de resgate e salvaguarda dos povos autóctones. De acordo com Esperanza Martinez:
Viver a favor da vida dos povos e da preservação de suas culturas e modos de vida. A
excelência da vida é a integridade dos modos materiais e espirituais; o avanço com relação à
ambiguidade, à dicotomia existencial. A reciprocidade e mutualidade são funções
fundamentais dos saberes comunitários, e sua relação com uma estrutura do Ethos xamânico.
O Sumak Kawsay é plenitude, e superação do modo colonial, ademais:
A leitura de mundo, suas visões, sistemas de vida próprios, que demandam uma
interpretação situacionista, que observa a materialidade das relações sociais, e da natureza,
assim como as demandas de sentido da consciência em ato demandam um modo de leitura
diferenciado. A complexidade destas aproximações, entre o individuo, a comunidade, a
natureza e as entidades sobrenaturais, todos agindo de forma integrada, e criando horizontes
de possibilidade amplos e transformadores entre as ipseidades individual e comunitária, são
avanços aos modelos hermenêuticos ocidentais. Propõe-se que estas visadas de mutualidade e
de visão plural exibiram a necessidade de uma hermenêutica que consiga atuar de forma
multitemática, de forma criativa, e tendo em vista características estereoscópicas; podemos
ver o fenômeno a partir de dois pontos de vistas simultâneos, multilateralmente e sobrepondo
os saberes.
Fonte: https://blogs.20minutos.es/codigo-abierto/2012/03/18/america-invertida-america-libre/
242
Falar desde Abya Yala é um trabalho de duplo sentido: primeiro, mostrar as culturas
vivas e suas heranças e ancoragens pré-colombianas, segundo, buscar uma hermenêutica de si,
a partir de uma memória crítica, eticamente compromissada com a libertação e saúde da
psique. Um braço tem a função politica, de impor uma crítica ao que se produz teoricamente
e, o outro, a busca do cuidado de si, e da reversão para uma ipseidade capaz de produzir
histórias saudáveis. Ambas as abordagens são terapêuticas da história e de si mesmo. Segundo
Kremer:
Estar ameaçado pelo outro pode ser uma patologia contemporânea, onde todos tentam
manter seu modo de vida, de consumo, como único caminho viável, a ética do mérito
defendida pela ideologia burguesa, onde cada um pode ser o que quiser desde que acumule
capital. Modelos que veem nos indígenas uma afronta ao progresso, ao desenvolvimento da
indústria agrária etc. As reservas indígenas são vistas como grandes espaços de consumo e
abuso, e que estão sendo protegidos por um pensamento antiprogressista. Tem-se que adotar
uma postura crítica que seja possível aprofundar uma hermenêutica pluritópica, avançando em
empatia com as narrativas dessas comunidades. Como confirma Kearney:
84
http://www.ihu.unisinos.br/533148-o-controle-dos-corpos-e-dos-saberes-entrevista-com-walter-mignolo
247
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percorreu-se uma jornada ao longo da escrita deste texto, e neste momento, busca-se
entretecer as diversas tarefas que foram levantandas no desenrolar da pesquisa. Como
observado, os horizontes de sentido são muito amplos, e toda tentativa de recorte, para que se
atenha ao campo da narrativa e metáfora é sempre assaltada por novos ramos de debate. O
Mythos xamânico ajuda nesta tarefa de desconstrução e futura reconstituição de modos de
discurso. Pode-se dizer que se foi levado através deste universo pluritópico a várias incursões
a mundos distantes, mas sempre retomando a missão de observar os modos narrativos e suas
intersecções com os modos de ser, de estar e suas hermenêuticas.
O contexto de grandes mudanças sociopolíticas deste continente demanda um olhar
sobre novos atores, a novos pensamentos, e analisar criticamente a colonialidade, como uma
estratégia de produção de conhecimento. Devemos aportar nosso pensamento sobre tais
fenômenos no contexto multicultural das Américas. O pulsar de novas teorias, que visam
romper com modelos enrijecidos e integrar os povos originários nos processos modernos,
pode ser uma rua de mão dupla, pois jogados no meio da pobreza, os indígenas não têm meios
de sobreviver a este sistema, visto que não há uma mudança social real. Nesse sentido, toda
atuação relacionada com os povos tradicionais precisa de mediação. A mudança, portanto,
iniciada pelo movimento cultural, que procura vencer a violência do agro negócio e avançar
através de formas de participação.
Políticas de estado por sua vez têm pouco apoiado esse movimento, sendo que esse
campo social, político e cultural tem pouca mudança. Alguns governos vêm avançando,
porém com a constante retomada dos modelos culturais hegemônicos, que vem imponto um
processo de retrocesso em Abya Yala; vista sempre como espaço do mundo para trabalho
barato e exploração, sem perpesctivas de horizontes de melhoras, não temos grandes
mudanças.
Intercambiar ideias entre o pensamento eurocêntrico e as teorias decoloniais pode ser
muito rico, e entende-se que neste ponto da pesquisa empenha-se ao máximo para dar conta
do fenômeno e traduzí-lo para o universo das ciências. Como salienta Mignolo o pensamento
decolonial é um modo de agir, e por isso não está preso a um modelo teórico, e o que se
observa ao longo do estudo é justamente a perspectiva pluritópica nos diversos exemplos, a
capacidade de fazer surgir o novo da interação do ocidental com as culturas originárias, em
suas escalas de possibilidade. E percebe-se que é possível o diálogo sul/norte para uma
interculturalidade do pensamento.
248
Por isso afirma-se que a missão aqui incumbida não é ―civilizadora‖, de criar um
modelo para o que é (ontologicamente) o Neoxamanismo urbano, um canon; não é criar um
modelo de ética que deve ser aplicado aos grupos, é ao contrário, a tentativa de mapeamento e
descrição, de dar voz ao movimento, e deixar que o intercâmbio entre poética e texto
especulativo possa dialogar. Talvez não haja muito o quê dizer aos grupos estudados, eles têm
de alguma maneira sua forma de agir e seu desenvolvimento tem um lugar de saber. Interessa
aqui dizer algo às ciências, ao pensamento dominante, que este modelo hegemônico precisa
abrir mão da dominação, e que é possível propor novas aberturas de mundo.
O Neoxamanismo urbano precisa de um tratamento diferenciado, seu campo de
referência é muito rico, amplo, mesmo que esteja em constante transformação e hibridização,
como qualquer outra prática religiosa, sua estrutura permite uma fluidez muito ágil, que
acompanha rapidamente as tendências atuais, como foi comprovado com os temas das
palestras do congresso virtual Xamãsconet.
Por meio dos exemplos apresentados, foi observado como os grupos dialogam com a
atual demanda social por tecnologia, por sua vez oferecendo a interação com a Web, assim
como o diálogo com diversas religiões urbanas, e com as grandes correntes religiosas. A
constante produção e recepção de imagens contribuem com o ambiente universalista do
Neoxamanismo, ampliando a perspectiva de demanda e público que procura tais espaços
religiosos.
Outro dado importante é a retroalimentação, a autoformação, que em determinado
momento dependia de outros movimentos religiosos, como a Nova Era, e que hoje gera seu
próprio campo de referências e formação. A formação, por sua vez, é um ponto crucial, pois
na medida em que o movimento religioso gera suas próprias imagens, seu próprio discurso, e
lideranças iniciam formações continuadas, já se pode falar de uma tradição interna ao
Neoxamanismo urbano.
Uma primeira geração de xamãs urbanos estudou com iniciadores, vindos de diversas
tradições, visões do Xamanismo formaram outra geração de lideranças religiosas que hoje
formam uma terceira geração, totalmente formada dentro do Neoxamanismo urbano, em
―Kivas‖, onde o conteúdo já está formatado, e a partir destes espaços criam também suas
tradições, rompendo com estas escolas ou dando continuidade a elas como multiplicadores,
mas sempre trazendo novidades e experiências contextuais. O Neoxamanismo urbano como
campo autônomo é amplo em diversos sentidos, principalmente na possibilidade de estudo da
religiosidade contemporânea e suas diversas pluralidades.
249
85
Os autótrofos produzem seu próprio alimento ou nutrientes por meio da fotossíntese ou então da
quimiossíntese. Como exemplo de organismos autótrofos, podemos citar: as algas, plantas, cianobactérias e
alguns protistas (Euglena). Quando um organismo depende de materiais orgânicos pré-formados de outros seres
vivos para obtenção de energia e síntese das biomoléculas de que necessita, como todos os animais, é
denominado heterótrofo. Fonte de pesquisa: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/02/lesma-do-mar-
incorpora-genes-de-alga-para-conseguir-fazer-fotossintese.html
86
Existem seres na natureza que se utilizam da fotossíntese para gerar alimento, mesmo que sejam heterótrofos
de nascimento. O primeiro animal capaz de realizar fotossíntese é a lesma marinha conhecida pelo nome
cientifico Elysia chlorotica, a lesma rouba os cloroplastos da alga Vaucheria litorea. Quando se alimentam dessa
alga, as lesmas mantêm os cloroplastos intactos e os armazenam no interior das células de suas glândulas
digestivas. As lesmas que possuem cloroplastos não são capazes de passar os cloroplastos para seus
descendentes, que sempre nascem incapazes de realizar fotossíntese. Devido a este ―pequeno‖ detalhe, alguns
especialistas ficam com o pé atrás e preferem não classificar a Elysia chlorotica como um ser fotossintetizante,
mas o fato de que, ao longo de sua vida, a lesma se torna um ser mixotrófico (autótrofo e heterótrofo ao mesmo
tempo) é inegável. Fonte de pesquisa: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/02/lesma-do-mar-
incorpora-genes-de-alga-para-conseguir-fazer-fotossintese.html
251
87
Há casos de grupos que se identificam com comunidades não indígenas, principalmente nos casos do
Neoxamanismo como base na cultura hindu.
252
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Sites consultados:
Anexo: Lista de nomes dos participantes do Xamasconet 2015 -2017 e seus respectivos
temas
Taita Oscar Giovanny Queta Osso Kófan. YAGÉ, REZOS E ÍCAROS NA TRADIÇÃO
KÓFAN
Tânia Gori. BRUXARIA NATURAL
Tania Ramalho. XAMANISMO DE CORPO E ALMA
Theresa Thomas. A CURA PELOS ANCESTRAIS / ELEMENTOS NA TRIBO DAGARA
Timberê Aryanã XAMANISMO – A FORÇA ARYANÃ
Tony Paixão. CAMINHO NATIVO – SABEDORIA CHEYENNE
W
269