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Catalogação: GAP/DEPAB
p.152.
CDD 616.89
ISBN 85-7172-017-7
Contribuição legal
Impresso no Brasil
Março 1991
SUMÁRIO
A transferência e a cura
A interpretação"
A psicose
1
Conferência em Estrasburgo em 15 de novembro de 1985. Publicada em Pa/ea
N °2,Secretaria da Escola da Causa freudiana em Estrasburgo.Revisão de Jairo
Gerbase
8 A transferência e a cura
rio dizer pois, que o que se repete é alguma coisa sempre nova. Ver
na repetiçã'o a verdadeira variedade, não é um paradoxo, não é um
jogo de palavras. O que se repete para o sujeito, e que segue as vias
significantes do discurso no qual ele está preso, é sempre o mesmo
impecilho que faz que alguma coisa se imponha como traumatismo,
que alguma coisa se encontre, ao acaso, que não está programada
e que no entanto retorna, como hiato, aquilo que condiciona a falta
de relação sexual. Hiato entre tudo que pode-se dizer e alguma coi
sa que não se diz, entre o significante e o real, que se apresenta origi
nariamente sob a forma do traumatismo sexual.
A transferência, é outra coisa. Por quê Lacan diz que a transferên
cia não é a repetição? É no sentido em que, enquanto ela depende
do sujeito suposto saber, que não é aliás o todo da transferência, as
sim como o autômaton não é o todo da repetição, na medida em que
ela depende do sujeito suposto saber, não depende da tiquê, mes
mo se pode a ela conduzir. A transferência é mesmo um recurso con
tra a repetição-tiquê. Dirigir-se a alguém que é um intérprete, isto é
um suposto, senão saber, pelo menos um suposto saber fazer vir à
tona o saber, dirigir-se a um intérprete, a um psicanalista, é pedir ao
saber para vir cobrir o real, o real do primeiro trauma. Todavia o ape
lo ao saber conduz ao centro da repetição como tiquê. Lacan o ilustra
com o belo sonho: Pai, não vê que estou queimando? É uma frase
transferencial: não há pois de modo algum Outro que responda pelo
As modalidades da transferência 1 3
rna da transferência:
s(virtudes militares)
O que é que acontece com o homem dos ratos? Ele faz um en
contro, tiquê, o do capitão cruel e de seu relato do suplício dos ratos,
o q ual é de natureza bem diferente daquele da significação das supos
tas virtudes militares. No lugar desta vem a evocação de um gozo
mau, cruel. Em outras palavras, o capitão cruel vem representar um
14 A transferência e a cura
mente se lhe autoriza, mas se lhe pede para fazer o que é sua própria
inclinação: pensar Naturalmente, isso não é tão simples, já que ele
pensa mais para ocultar seus verdadeiros pensamentos e é o que fre
quentemente dá a impressão de que ele faJa para não dizer nada, a
impressão de palavra vazia, ruminativa, desabitada. É um grande es
forço para impedir o sentido de aparecer, mas ele volta de galope,
nos próprios pensamentos que a ele se impõe, apesar dele, em seu
sintoma. Nesse sentido, este é homogêneo à regra de fazer passar
ao significante, até ao ponto em que se poderia dizer que o sonho
do sujerto obsessivo é: nada a saber: Eu o digo assim, porque isso
me permitirá fazer simetria com o histérico. Nada a saber é um sonho
de transferência: cobrir o referente pelo significante. Isso quer dizer
que ele não se presta à interpretação, aquela que visa o reaJ. Como
se sabe, o obsessivo não é mutuante. Ele tem um lado retentivo em
muitos aspectos e mesmo a respeito do que seria uma oferta a inter
pretar. Todo o seu esforço é para reduzir a dimensão do sentido, na
medida em que esse sentido se opõe à significação, se opõe à se
mântica, na medida em que o sentido é o que vem do objeto. O ob
sessivo trabalha para o signo, contra o sentido, para o signo, no sen
tido de signo linguístico. Isso implica uma posição em relação ao
Outro, ao desejo do Outro, que é uma posição de anulação. Resulta
do, o analista com o qual o obsessivo sonha, é um anaJista morto. É
outra coisa que o pai morto já que é uma verdade transindividual que
o pai seja o pai morto. O Outro com o quaJ sonha é um outro que
não mexe, que se mantém morto, ou seja, a interpretação o incomo
da, como um fracasso do pensamento, e isso se torna imediatamen
te um osso duro de roer para o trabalho mental. Poder-se-ia absoluta
mente aplicar-lhe quanto à interpretação, a frase de Cirano de Berge
rac à respeito das piadas: ºEu mesmo me sirvo com bastante verve,
mas não permito que outro as sirva a mimº . Observem por exemplo
Theodor Reik que se propõe ilustrar em si mesmo a obsessão e que
diz ter-se feito uma divisa do conselho de Shakespeare: uPergunta a
teu coração o que ele sabeº . Ele pergunta a seu coração. Ele não per
gunta ao analista. Todo esse trabalho para fazer passar todo o gozo
ao significante, e para denegar a interpretação - que é idêntica ao de
sejo do analista - implica que o obsessivo viva sobre o modo do já
terminado. Com efeito, o que se inscreve permanece como os livros
das bibliotecas. Mas a divisão ocultada de um lado volta do outro e
As modalidades da transferência 19
torna necessário uma outra testemunha, já que o que está escrito, su
põe ser oferecido a um olhar, donde a necessidade de olho universal
colocado sobre todas as ações e seu gosto pela história com H mai
úscula. Muitos traços de caráter entram nessa dimensão, especialmen
te o temperamento de arquivista. A manobra de transferência, eviden
temente, está em identificar o analista em relação à morte. Em Reik é
o olhar da posteridade por definição silencioso. É o objeto que con
vêm por excelência a essa modalidade da transferência que consiste
em se manter na ou em restaurar a alienação significante, em privile
giar o significante contra o gozo e em fazer do Outro um lugar desabitado.
Na histeria é muito diferente, ainda que, afinal de contas, a obses
são seja uma variante da histeria; é que o sujeito histérico, se presta
a interpretar, oferece seu ser à interpretação. É preciso dizer também
que a demanda do amor é uma demanda de ser. A histérica, diz La
can, exige o ser, e o seu tormento é experimentar sua falta a ser. Quan
to mais o sujeito é histerizado, mais ele tem o sentimento do seu vazio
e de sua falta a ser. Este sujeito falta a ser, o demanda.e ao Outro.
Contrariamente ao obsessivo, ele dá, portanto, lugar ao intérprete, e
mais, ele o invoca desesperadamente. Quer dizer que o sujeito histéri
co situa-se decididamente na transferência sobre o fundo da separa
ção, numa relação ao desejo do Outro que é um pedido de ser. Esta
posição parece mais favorável à análise. De uma certa maneira seu
ponto de mira é o mesmo da interpretação, e de fato, a única coisa
que interessa ao sujeito histérico é o intervalo significante, não é o sa
ber, não é o que se articula em significante, ainda que o seu discur
so produz saber - é o que se diz entre as palavras, nas entrelinhas e
que se oferece a ser decifrado; é isso que cativa, a verdade rebelde.
Ele chama a interpretação e não se toma pelo sujeito suposto saber..
o sentido. Ele demanda ao Outro, que lhe é preciso vivo, presente
e cuja falta o coloca em sérias dificuldades. Entretanto, ainda que se
preste a interpretar, seja pela profusão dos seus vaticínios, seja pelo
silêncio que presentifica o mistério de seu ser, o problema é que com
esse ser ele faz desafio ao sujeito suposto saber. Se o sonho do ob
sessivo é nada a saber, o sonho da histérica é de preferência: saber
nada; levar o sujeito-suposto-saber a se render, a revelar sua impotên
cia para saber o que ele é; levar a articulação do inconsciente até o
limite onde se revela que todo o ser não pode se dizer. Nesse senti
do ele coloca na posição de mestre o sujeito suposto verdade. Isto não
20 A transferência e a cura
1
Artigo p u bl icado i n Como se analisa hoy?, Ed. Manantial, Buenos Aires, 1 987,
p.1 00- 1 23. Revisão de Maria Luiza Motta Miranda, referenciada na tradução de Flora
Emilia Nascimento de Queiroz, publicada in Só Depois, do Colég io freudiano de Vitória.
22 A transferência e a cura
O modelo berlinense
Oposição e Crfticas
O modelo americano
A falta de fundamento
Entrevistas preliminares
O algorrtmo da transferência
Os controles
O controle e a instituição
mesmo u .
O único princípio certo a delinear, diz Lacan, e tanto mais por te,r
sido desconhecido, é que a psicanálise se constitui como didática pe
lo querer do sujeito, o q ual deve ser advertido de que a anáHse ques
tionará esse querer, na mesma medida da aproximação do deseJc
que encobreu . (Note adjointe à u/ 'A cte de Fondation", in Annualre
de /'ECF, P.24). Ao estabelecer esse princípio na base da fundação
de sua escola em 1 964, Lacan coloca no centro do probierna da foi·
mação do analista a própria questão de seu dese,_!c:.. Ssu prolongE:
mento em um 11quererª - que pode ser o de tornar-.se analista - depsn
de apenas de uma única formação; a que Lacan escreve assim: ;:A
psicanálise, didática11 de nossos antecedentes, am Écrits, p. 7i ) ;
(
A responsabilidade da Escola
A prática do controle
No pólo oposto, enquanto analista, em seu ato, supõe-se que não po
de safar-se do postulado da transferência. Isto é o que quer dizer
efetivamente: uo analista só se autoriza a si próprioº . Não há sujerto
suposto saber do ato. O analista não opera a partir de um saber, mes
mo quando o inconsciente é saber, e ainda, mesmo quando há um
saber do analista.
Qual pode ser, a partir desse ponto, a transferência que susten
ta o trabalho do analista controlante? Uma única resposta é cabível:
a transferência sem rodeios. Não há outra; e ºnão há transferência
da transferênciau ecompte rendu de l'Acte analytique u in Ornicar,
nº . 29,p. 25), diz Lacan. Isto significa que, tanto no controle como na
análise, visa-se ao sujeito e que a este se ponha a trabalhar. Entre
os poucos textos em que Lacan evoca o controle, nos deteremos
em dois: o primeiro em º Função e campo da palavra e da lingua
gemº , onde Lacan propõe uma equivalência entre a posição do contro
le e a posição do analista. O segundo, de 1967, no ºDiscurso à EFP º ,
onde Lacan evoca o ºprocessamento do sujeito: uÉ diferente controlar
um caso: um sujeito (eu sublinho) que supera seu ato, o qual nada
é, mas que, se supera seu ato, cria a incapacidade que vemos pros
perar no jardim dos psicanalistasº (Discurso à EFP in Sci/icet, nº.
2/3,p. 14).
Proponhamos o seguinte: o controle indica a posição do sujeito
em relação a seu ato, mais do que ao ato em si, que, sem dúvida
está em jogo; porém, disto, tanto o controle como o controlado só po
dem tomar conhecimento. Depois da destituição, ao final da cura, do
sujeito suposto saber do sintoma, talvez ainda falte destituir ao sujei
to suposto sab�r do ato, para que o analista possa preocupar-se com
a divisão do sujeito. Nesse caso, a finalidade do controle é estritamen
te igual à da análise. Fundamentalmente, não é nem transmissão do
saber, e nem estimação dos dons individuais, mas sim o lugar onde,
dado o caso, os efeitos sobre o sujeito dessa prática que requer o ato,
é posto à prova. O que podemos chamar em uma primeira aproxima
ção, sua capacidade subjetiva de sustentar esse ato, mas com a con
dição de acrescentar, de imediato, que essa capacidade é produzida
pela própria análise, e, por isso mesmo, sujeita ao que Lacan chama
ºuma correlação do desejo do psicanalistaD (ibid) pela análise.
Assim controle e cura estão atados. Isto nada prescreve no tocan
te aos enunciados do sujeito controlante, quer estes se refiram ou não
38 A transferência e a cura
Não-sem-o-tempo
Tempo reversivo
Trabalho do inconsciente
A pulsação
A função da pressa
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44 A transferência e a cura
Os c o ntro les
1
P u b l icado in Actes de l ' École V I ; An gers, j u n h o 1 984. Revisão de M. A n gélia Teixei ra.
46 A transferên cia e a cura
diria. os fins.
Vou retomar uma fórm ula que já utilizei quando falei da resistência
de transferência em IRíviA: a interpretação, de uma certa maneira, con
siste em contrariar a transferência, e é uma coisa bem diferente da
contra-transferência. Isto pode parecer paradoxal porq ue também po
demos dizer que a interpretação sustenta a transferência, inclusive
que a condiciona; e é aliás verdadeiro que não pode contrariar-se
mais elo que aí está "Contrariar a transferência11 não é naturalmente "su
focar a transferência11 Eu ii1es proporia urna imagem: poder-se-ia di
•
notadamente, cf. uKant com Sade11 e mais perto de nós Hitchcock, por
exemplo. Hitchcock, na ocasião, dá luz sobre a fantasia Isso interes
sa aos psicanalistas evidentemente, mas isso não é psicanálise. A clí
nica psicanalítica não consiste em colocar o projetor sobre a fantasia,
mas em obter uma modificação do sujeito na sua relação com a fantasia.
Parece-me pois que o que de fantasia vem nos ditos, é um efeito
secundário e que a técnica analitica não opera pela fantasia em ple
na luz. É mais uma clínica da verificação - termo que· Lacan propôs e
que eu sublinho. Na psicanálise, verifica-se alguma coisa, mas isto
não quer dizer que se chegue ao saber, já que verifica-se também a
falha do saber.
Isto coloca o problema do manejo é aliás absolutamente a ques
tão que levantava Agustin Menard. Lacan emprega esse termo: mane
jar o objeto. Pois bem, a interpretação, em relação, não mais agora
com o saber, mas com o real da fantasia, opera também contrarian
do a transferência. É que esse objeto real, está presente na psicanáli
se, como colocação em ato da transferência. Existe um Agieren -funda
mental da transferência, na qual alguma coisa busca satisfazer-se, na
qual o analista está correlacionado a uma satisfação. Se utilizamos es
se termo manobra da transferência, eu teria tendência a dizer que a
manobra é a do analisando - o analisando manobra na transferência
para lhe fazer produzir a satisfação que habita a fantasia. Esta satisfa
ção quando se obtém é um momento - momento de fechamento do
inconsciente, não é um gozo que fala, mas um gozo silenciosos co
mo o é precisamente, a pulsão.
Com relação a esta manobra do analisando, que regula a tempora
lidade pulsátil da transferência, parece-me que poder-se-ia dizer que
a posição do analista é primeiramente de se deixar dirigir -por oposi
ção à direção da cura- ele deixa-se dirigir, até poder objetar, achar o
modo interpretativo de objeção à satisfação que procura realizar-se.
É aliás neste sentido que a sua intervenção é correlativa a um relan
ce, abrete-sésamo do inconsciente, ela convida dizer ... mais.
Deste modo, parece-me que o manejo da transferência, pelo ana
lista desta vez, consiste em deixar a fantasia insatisfeita - e, no caso,
a angústia. Deixar a fantasia insatisfeita, tem como correlato designar
o ponto de satisfação, manifestar de alguma maneira a presença de
uma positividade que não é uma positividade do significante,que é
uma positividade que nós chamamos de gozo. Isso a manifestéli a faz
50 A transferência e a cura
voltar para que ela seja dita ainda que não sem resto. Ela faz ºpare
seru (parêtre) com o equívoco ortográfico que Lacan utiliza, e que traz
o aparecer, assim como o barrar o ser, o ser do gozo. A interpretação
opõe-se alternativamente ao saber e à fantasia para que a impotência
de um correlacione-se à segurança da outra, o que Lacan chama o
nó do ininterpretável. Q uer dizer que a certeza da qual falamos a res
peito da fantasia, seria vão visá-la como uma certeza de saber, é uma
certeza que só se certifica quando ela passa ao ato.
O acting out na cura1
2
N . R . : n o ori g i nal : . . . "écrire le 'se' d u 'se d i re' avec u n e, le e du 'ce q u e c'est' ,
q u e l 'on retro uve d ' ailleurs dans ça".
O acting out na cura 53
gro na cura.
Talvez não seja inútil retomar Freud desde o ponto de onde vem
o termo acting out. Acting out é o termo que Strachey utilizou para o
agieren freudiano, na sua tradução do texto de Freud: ªRememoração,
repetição e perlaboração u . A idéia de sempre de Freud é que a análi
se deve preencher as lacunas da memória; digamos que ele lhe atri
bui a tarefa de restaurar a completude de uma história. É o levanta
mento do recalque que lhe parece conduzir ao levantamento da amné
sia. Ele o lembra neste texto: uA finalidade da anáJise, do ponto de vis
ta descritivo, é preencher as lacunas da memória e, do ponto de vis
ta dinâmico, é vencer as resistências do recalque•.
Ora, Freud observa que se acaba por encontrar na cura o caso
que se configura da seguinte forma: o paciente não tem nenhuma lem
brança do que ele esqueceu e recalcou e não faz senão traduzí-lo
ern atos. Strachey traduziu por acting out. Esse out, não deve ser en
tendido como fora do campo da análise, não existe um fora da análi
se desde que o sujeito esteja sob transferência. Isso também não
quer dizer fora do consultório do analista, quer dizer, inicialmente, fo
ra da esfera das lembranças. Digamos, de preferência, tora da esfera
do que se diz.
Entretanto, o que é enganador, é que o agieren freudiano é mui
to mais· amplo, mais ambíguo que o uso consagrado ao termo acting
out. O agieren freudiano, quando lemos o texto em questão, é um mo
do da transferência, a transferência-resistência O recalcado não retor
na no pensamento, retorna na ação, no fazer, no agir. Somos obriga
dos a nos interrogàr sobre o que Freud chama, nesse momento, o re
calcado. Os primeiros textos, uA interpretação dos sonhos•, ·A psicopa
tologia da vida cotidiana• etc, ensinaram-nos a reconhecer, no incons
ciente, os pensamentos. Mas mesmo se naquele momento, Freud não
11
tinha ainda introduzido 0 isso" que ele promove em 1 920, contudo,
desde o início, esses pensamentos são correlatos do que Freud cha
ma moções pulsionais. É o que encontramos neste texto onde ele dis
tingue, junto às lembranças, o que ele chama um ªoutro grupo de pro
cessos psíquicosº : são as fantasias e as emoções conexas. A idéia
de Freud é que a finalidade da análise é fazer chegar à representa
ção, ao pensamento, pelo viés da associação livre, as moções pulsio
nais. Ele se dá conta, então, neste texto, de que há uma via que não
é a via do pensamento e é o que ele chama o agieren. As moções
56 A transferência e a cura
pulsionais impõe-se aí, de uma certa maneira, sem passar pelo verbo.
Esse elemento real e atual faz curtocircuito entre o passado e a lem
brança Freud vê nisso uma resistência, um obstáculo ao imperativo
do dizer . .· É uma alternativa para o analisando, ou bem ele pensa, ou
bem ele age seu inconsciente.
Para F reud, a via da análise é pensar o inconsciente, e é por aí
que passa a eficácia da psicanálise. Ele sempre sustentou a idéia de
que a rememoração era ao mesmo tempo, uma exigência e um sinal.
Além do mais, posso dar (entre parênteses) um exemplo simples do
que é uma mudança do sujeito que não é uma mudança da pessoa:
uma vez que o sujeito rememorou, pode-se dizer que jamais tinha es
quecido. Não foi o passado que mudou foi o lugar do sujeito. As re
presentações do seu passado que ele tinha abandonado, onde ele
não se reencontrava, onde ele não se reconhecia, ele volta a habitá
las. Por isso Lacan propõe escrever souvenir com duas palavras,vir
sob as representações que o sujeito tinha habitado antigamente e
que ele tinha podido abandonar. O materna da rememoração é o mes
mo que o da representação significante do sujeito:
S1
$
Na análise, ele vem produzir, reencontrar e ejetar simultaneamente
os significantes a partir dos quais ele se construiu. Para isso a psica
nálise pode mudar tudo para o sujeito sem mudar nada na realidade.
A vida que o an:ilisando teve não se refaz. Ao contrário, o que modifi
ca é a maneira como ele se sítua nela e o sentido que lhe dá
Em Freud, a questão do acting out deve, portanto, ser tomada
em três termos: o recalcado e sua manifestação, seja no pensamen
to, seja na ação. A abordagem da questão é consideravelmente deslo
cada por Lacan, mesmo se há uma homologia aparente. Lacan formu
lou a transferência como dependente do sujeito suposto saber. O ana
lisando parte ao encontro do saber inconsciente do qual ele supõe
que pode tornar-se sujeito. A suposição da transferência, é que eu
posso vir aí onde não estava, mas onde estava o inconsciente como
saber. É o eixo que corresponderia em Freud à rememoração pela
associação livre. A homologia deve-se a que, a este eixo do sujeito
suposto saber, Lacan também opõe um outro eixo em que a passa
gem ao ato está concernida - Cf. o Seminário XI onde a transferência
é definida como ua passagem ao ato da realidade do inconsciente u
O acting out na cura 57
ting out é, quando ocorre, uma verdade solta; ele mostra, indica, da
verdade, o que sobra. Religa-se pois fundamentalmente, a uma estru
tura precisa: aquela que faz a verdade não-toda, sempre meio-dita.
Eis porque sua medida vai bem mais além dos erros do analista.
Há, com o acting out na cura, uma dificuldade de manejo. Os ana
listas o têm notado desde muito tempo. O acting out é interpretável,
porém não se deve interpretar, porque a sua interpretação não é rece
bida pelo analisando. Contudo, o analista tem que responder-lhe, pois
enquanto o analisando acte out ele não está na posição de analisan
do. O analista deve responder-lhe e inclusive evitar que ele aconteça.
É o que Freud faz com Dora quando ela vem lhe contar o pequeno
quarteto entre ela, seu pai, Sr.K. e Sra.K. A primeira coisa que Freud
faz, Lacan o observou no seu texto sobre a transferência, não é inter
pretar, é dizer à Dora ºvocê tem a ver com issou . Ele maneja o acting
out tentando tomá-lo na transferência, fazer com que Dora perceba
aí um sentido, portanto um saber a articular com o sujeito. É dizer-lhe
que não é por acaso que ela está aí, que ela tem parte nisso. Não é
uma interpretação. Digamos que é uma tentativa de sintomatizar o ac
ting-out, ou melhor, uma tentativa de ºRetificação subjetivau , segundo
a expressão que Lacan emprega na uoireção da curaº .
Agora, algumas breves considerações sobre as duas grandes neu
roses: histeria e obsessão. Pode-se falar da obsessão como uma for
ma da histeria, mas aqui oponhamo-las. O sujeito obsessivo está cheio
de pensamentos, mas não de pensamentos do inconsciente, pensa
mentos de absolutamente nada que desfilam sem consequência. A
histérica, pelo contrário, tem seu modo fenomenológico que é o va
zio, ela experimenta o seu vazio. O primeiro encontra-se mais do la
do do ºeu não penso, ºeu não penso o inconscienteº , do lado de seu
ser petrificado ou dubitativo, ou os dois ao mesmo tempo. Ele não tem
o sentimento de seu vazio, porém tem um sentimento muito forte de
não existir, de estar longe, cortado da vida, que acompanha sua posi
ção de ser na petrificação. O segundo agrega ao vazio o sentimento
de ºeu não sou". Diria que, por estrutura, o obsessivo oscila, preferen
cialmente, entre inibição e passagem ao ato, o que não quer dizer
que não se encontre acting out na neurose obsessiva, enquanto que
o histérico está mais sujeito ao acting out. Creio que esta constatação
fenomenológica é bastante coerente com a posição do sujeito que es
tá implicado nos dois casos.
O acting out na cura 6 1
-
$ ---- -
S1
a
82
o sujeito dividido encontra-se no lugar do agente, no lugar do que co
manda, para um benefício que é de produção de saber. Mas, há aí
algo assim como uma simulação do discurso. O sujeito histérico pare
ce demandar o saber, mas o que ele quer é o ser, o ser que ao mes
mo tempo faz falta (défaut) - falta a ser - e desafio(défi) - questão.
Sua maneira de remediar a falta de ser, é o laço social pelo qual ele
tenta alojar-se no vazio do Outro. É necessário toda uma estratégia
(intriga, diz Lacan) , marcada, de um lado, por sua obsessão de ser
excluído, excluído das casas, das famílias, das associações, dos cora
ções etc., do outro, por sua intolerância feroz a respeito de tudo o
que possa obturar essa falta do Outro. No que concerne ao desafio,
o histérico e sobretudo o histérico em análise, o sustenta até o fim.
Ele se faz de herói (o mais frequentemente a heroína) desta verdade
que seu ser é incomensurável ao saber, alojado no lugar inefável da
verdade apreensível; o que escreve a linha inferior do discurso histérico.
Pois bem, o acting out parece-me ser, por excelência, na histeria,
o instrumento clínico deste desafio: uma ficção que permite ler esta
verdade do ser, que permanece fora dos alcances do verbo, e que
é, ao mesmo tempo, derrisão e apelo ao saber. É acting-out do ser
em busca do parceiro que tem a chance de responder º.
II
A angústia na cura1
Vou interrogar o ato psicanalítico sobre seus fins . Para fazer isto,
perguntemo-nos o que ele promete como fim de análise. Esse Ato,
que Jacques Lacan promoveu como o correlato da sua lógica da fan
tasia, eu vou submetê-lo à questão da insistência repetitiva do sinto
ma Em 1968, com efeito, Jean Robert Rabanel o relembrava há pou
co, Lacan colocava que o fim do ato é produzir o incurável. Em 1975,
ao contrário, ele situa o final da análise como identificação ao sinto
ma É esta variação que eu quero interrogar. Como espero, nesses
vinte minutos conseguir lhes dizer o que tinha previsto, vou andar
um pouco rápido.
Observarei, primeiramente, que o ato e o sintoma, em sua diferen
ça, têm um ponto de ligação comum na estrutura. O materna desse
ponto é S(A ) , a saber o materna que inscreve a falta do Outro e nota
damente a impossibilidade de escrever a relação sexual. É o materna
da foraclusáo do sexo no O utro, que nós podemos chamar foraclusão
generalizada. O Ato é um dizer que responde neste ponto, onde o
Outro faz falta; origina-se pois do real, mesmo que seus efeitos este
jam, às vezes, no simbólico. O sintoma, enquanto tal, esta condiciona
do por esta mesma foraclusão, mas é um outro modo do real. É o
modo do necessário, a saber, o que não cessa de se inscrever co
mo uma suplência da relação vazia. Em outras palavras, cada sujeito
inventa ou pelos menos adota � se inventar é dizer demais - um ºem
lugar deº , alguma coisa que vem no lugar da relação �azia, no lugar
1
P ubli cado in Actes de l 'Écol e de la Cause freudienne. L 'actes et la répetitíon,
Paris, 1 987, p.1 8-20. Revisão de Jairo Gerbase.
68 A transferência e cura
toma - que variação então o Ato faz passar ao sintoma na cura? Rapi
damente, serei levada a explicar esta asserção de Lacan: a psicanáli
se é a operação do sintoma, no duplo sentido, a saber, que se ope
ra sobre o sintoma e que se opera pelo sintoma
Dessas variações do sintoma, vou situar três: uma de entrada, e
isto não é uma novidade, uma que eu diria do longo curso da análi
se, e uma de saída. Isto supõe então duas básculas.
Naturalmente, tomar as coisas assim implica que se postule que,
se o sintoma é suplência, todas as suplências não se equivalem. O
problema sendo, desde aí, definir o valor. A ética da psicanálise não
sendo uma éti"ca das normas, o que é que dará o padrão de valor?
Claro que temos uma primeira resposta: a escala de valor, para nós,
é o valor de uso de gozo mas ele cria problemas já que este uso es
tá cheio de paradoxos. E já dever-se-ia dizer gozo para quem? Já que
o valor de gozo não está, para o falaser, sem relação com o valor de
troca. Há o Outro ineliminável. Concretamente, isto quer dizer que o
autismo não se sustenta. Há, certamente, gozos autistas mas são obri
gatoriamente locais; Freud o tinha notado há tempo, estranhando que
se a doença por não poder amar0 ele dizia, ou seja, por não poder
11 ,
ele faz suficiente - já que satis, quer dizer suficiente em latim -suficien
te suplência de gozo. Ele supre suficientemente à ausência de relação
sexual. Esta satisfação do sintoma perverso não exclui a queixa, nem
mesmo o sofrimento do sujeito perverso. Tomo aqui como protótipo
M. O Maldito, esse filme maravilhoso de Fritz Lang. A função de suplên
cia impõe-se na sua simplicidade: seu personagem, não podendo tran
sar com mulheres, estrangula as meninas. Ele sofre porém com autên
tico sofrimento, que é aliás em parte o eco disto, que os primeiros a
sofrer de seu sintoma, são os outros, suas vítimas, efetivas e poten
ciais, e seus próximos. Seu sofrimento é autêntico porém impotente
para tamponar a satisfação diabólica do sintoma. Este exemplo desve
la bem que um sintoma que satisfaz como suplência, sejam quais fo
rem as dores que o sujeito deva pagar por ele, não se presta para s
análise. Em outras palavras, não se analisa Jack o estripador, mes
mo se está muito triste, até arrependido das consequências de seus
atos. Aviso aos psicanalistas que passeiam nos cárceres: é preciso
que saibam que há atos sem apelo. Assim é, em todo caso, que eu
me explico porque Jacques Lacan pôde, sem mais informação, desa
conselhar radicalmente a receber a um sujeito que tinha matado seu pai.
Entre esse sintoma da normalidade que satisfaz ao O utro, e o sin
toma da perversão que satisfaz à ausência de relação sexual, enire
os dois, há naturalmente, um terceiro lugar, o sintoma neurótico. E!e
é esse sintoma neurótico - que Freud consagrou com o termo compro
misso duplamente insatisfatório a respeito do gozo e a resperto das
normas. Nesse sentido ele é anormal - aliás, o neurótico se sente anor
mal - mas ele também não chega a ser perverso, somente sonha com
sê-lo e justamente porque não o é. Entre essas duas insatisfações, o
sujeito se queixa. Assim, o sintoma neurótico, por excelência, é, eu
acho, o que Lacan chamava num momento, a histeria sem sintoma,
pelo menos sem sintoma no sentido clássico e nosográfico do termo.
A histeria sem sintoma, é o sujeito que eleva a queixa à dignidade
do sintoma. Aí está verdadeiramente o pedestal do sintoma, porque
temos a ver com um sujeito que não cessa de demandar a relação
que falta e que, ao mesmo tempo, rechaça toda suplência neste lugar,
que ele marca somente com a sua queixa inextinguível. É uma posi
ção que denuncia, em verdade, o caráter supletivo de toda suplência
de gozo. Este rechaço, quando tenaz vai às vezes até à própria bele
za, até à morte, que não é sem relação com ela (ct. aqui, Sócrates) .
70 A transferência e cura
1
Art i g o p u b l icado em An alytica, vo l . 4 '1 , N avarin edite u r, Paris, 1 98 5 , p. 1 5-23.
Revisão de fVlario Al m e i da.
As regras da interpretação 75
O equívoco
A resistência à interpretação
Suspender a resposta
mas o ªChe voui?º sob sua forma de x, sob sua forma de desconhe
cido. O efeito obtido é pois o inverso do primeiro exemplo que tomei,
que consiste em dar a resposta: você quer sua merda. A interpreta-
As regras da interpretação 8 1
1
Traduzido do m a n u scrito da autora. Revisão de M aria Luiza M i randa, baseada
na trad ução para o castelhano d e Graciela B rod osky, publ icada i n Fínales de ana
lísís , Ed. Manantial, Buenos Aires, 1 988, p. 1 45.
Lacan na Inglaterra 83
latim que designa a queda. Ela cai, com efeito, ao lado. Onde? Sobre
o saber que alíngua recepta e que ela faz aparecer separado do sujei
to. Longe de preencher, portanto, a interpretação divide. Ela º rescin
de", diz Lacan, ela rescinde o Sujeito e o Saber. Precisemos: primeira
mente, o equívoco não diz o que isso quer dizer. Ele faz índice, apon
tando um existe, inscrito como saber ºn'alínguaº . Mas, em segundo lu
gar, não é o sujeito que esse saber determina; ele não se entrega
mais do que ao seu engano, onde se experimenta que o dois do su
jeito suposto saber é um inacessível. O correlato aí é, em terceiro lu-
88 A interpretação
1
Publ icado em Actes de l ' École XI; Paris, 1 986. Aevisado por Sonia Vicente.
90 A interpre tação
castração.
O falo é, então, o único significante do desejo. Entretanto, é preci
so acrescentar que as identificações das quais ele é a chave, vão jun
tas com o que chamarei, as figuras ou melhor, os registros do dese
jo. Lacan no mesmo momento em que correlaciona o desejo com o
significante fálico na ºDireção da curaº , fala-nos de Freud como homem
de desejo, de um desejo que ele seguiu contra a sua vontade, ele diz
nos caminhos onde ele (o desejo) se mira, no sentí-lo, dominá-lo
11 . . .
ção pela qual Freud lhe diz, até lhe repete, que tudo começou na sua
neurose, pelo fato de que seu pai é o obstáculo aos seus desejo se
xuais. Em outras palavras, Freud faz uma interpretação na qual ele le
va o significante do pai como significante que objeta o gozo. Quer di
zer que ele introduz o significante fálico e a castração como a palavra
final do sintoma. É uma interpretação de um mais-de-gozar por falta
da-gozar.
Estão me indicando que meu tempo é cronometrado. Deixo
pois de lado o exemplo de histeria que devia contrabalançar o exem
plo do Homem dos ratos. A identificação na histeria com efeito, não
funciona de maneira absolutamente idêntica Na ºPsicologia coletiva
e análise do euº , a segunda e terceira identificações que Freud distin
gue, são identificações pelo sintoma, e cada vez, ilustradas pela histe
ria. No segundo tipo de identificação, aquela do traço sintomático, te
mos a tosse da qual Freud diz que ela pode ser, seja uma identifica
ção com a rival, a mãe, seja uma identificação com o objeto de amor,
o pai. E também há o terceiro tipo no qual trata-se de uma identifica
ção com o desejo. O que explica esta identificação pelo sintoma? Nos
três casos, Freud nota o mesmo traço que anteriormente, a saber, a
interdição e a culpa. Por que identrficação com a rival pelo sintoma?
Porque isto assina a presença da interdição edipiana. Por que a iden
tificação com o sintoma do pai? Porque isto assina que trata-se de
um objeto proibido. E por que a identificação com o desejo do Outro
pelo sintoma? Porque é preciso pagar o fato de que é um desejo proi
bido. Freud não interpreta dizendo diretamente que é por causa do
pai, tal como fez para o Homem dos ratos, mas que é por causa da
transgressão. Evidentemente, esse ºpor causa da transgressãoº supõe,
no seu sentido, o significante do pai.
Quanto a mim, não vou ultrapassar a hora por muito tempo. Que
ria chegar a ºser o falo ° , a essa fórmula à qual Lacan chega quando
ele nos propõe a interpretação do desejo, seja este, de uma histérica
ou de um obsessivo: ºSer o falo (quando se trata da Bela Açougueira,
ele acrescenta "mesmo se um pouco magro º), eis a identificação últi
ma com o significante do desejo º. O que é que conta aqui ? É esse
ºum pouco magroº ? Em relação ao caso que nos foi exposto ontem
por Geneviêve Morei, poderíamos dizer do mesmo modo: ser o falo
mesmo se um pouco russo. Não é tanto nem o significante ºmagro º ,
nem o significante russo 0 que importam, já que eles não são inamomí-
11
96 A interpretação
veis. O que é muito mais é o desejo e notem que esse desejo é equi
valente recusa da castração. Resumindo, não há outra semântica da
identificação a não ser a significação fálica, digamos: a castração.
Penso que o efeito da interpretação sobre as identificações pode
dizer-se assim: lá onde ele estava, onde estava o sujeito no sentido
da identificação - porque esta fixa uma parte de ser, mesmo se se tra
ta de um ser emprestado - lá onde ele estava, o que a interpretação
da metáfora do sintoma faz vir é ( - <p ) , é a castração. ºPor causa do
pai° , ºpor causa da transgressãoº ou ºser o falo º não são interpreta
ções equívocas. São interpretações que dizem o que elas querem di
zer. Entretanto, podemos já dizer delas que fazem ºpareserº . Elas fa
zem aparecer o significante da falta. Ao mesmo tempo, elas barram o
ser, esse pouco de ser que assenta a identificação, da qual elas desta
cam o significante no seu nonsense.
Sobre a interpretação'
O equívoco
Che vuoi?
NOTAS
1
Pu blicado in La Lettre Mensue/le, nº63, nov. 1 987, p. 7-9. Revisão de Sonia Maria
Coni Campos Magalhães.
Uma dificuldade da psicanálise de criança 1 05
pria cifra do seu gozo e que o desenho faça escrita Uma criança, cu
jo sintoma pelo quaJ ela foi trazida, era problemas de limpeza, e que
jubila em traçar incansavelmente, sobre a folha, tripas cheias de dejetos,
não estaria longe disso. O problema é que esta escrita é, em si, sinto
ma que não demanda nada a ninguém e que nada tem a saber. Este
exemplo, se o trago aqui é somente para demonstrar que há desenho
e desenho, e que é preciso, para a psicanáJise, obter um desenho
que seja uma palavra - condição sem a qual não há psicanáJise. Supo
nham, pois, que se tenha obtido o que eu chamo um desenho-palavra
em oposição a um desenho-escrita. Resta, então, o problema da dis
ciplina da leitura· do desenho. Como não somos jungianos não pode
mos nos contentar com o simbolismo das formas e também não é su
ficiente isolar significantes nessas formas.
Devemos resolver o seguinte problema: Como a estrutura se ins
creve no desenho? Esta pergunta me parece capitaJ, especialmente
para o diagnóstico das crianças pequenas. No exemplo que foi apre
sentado por Patrick Valas e que é bem-vindo para o que eu tenho a
dizer aqui, temos sobre a folha o grande canhão fálico - o símbolo fáli
co - em todo seu esplendor. Mas é este o índice de que a criança
se inscreve na função fálica, a saber, na castração, ou o contrário?
Se tivéssemos feito Schreber desenhar ele que estava tão ocupado
pelo seu órgão, não está excluído que teria desenhado silhuetas fáli
cas. Lacan, a esse respeito, dá uma indicação precisa no que concer
ne o pequeno Hans. Sua indicação é que é o traço transversal que ris
ca a unidade das formas e que no desenho é o índice da castração.
Não é seguro que o teríamos encontrado em Schreber. Assim, sabe
mos o que é a decifração de um sintoma na articulação da palavra.
Mas, para as palavras desenhadas, não se tem o mesmo tipo de apoio.
Um último ponto agora, no que se refere ao alcance da interpreta
ção num sujeito que não escreve. A interpretação, se seguimos Lacan,
visa o que ele chama de ao lado da enunciação, os quais se inscre
vem pelos equívocos da linguagem. Ora, esses equívocos, sejam ho
mofônicos, gramaticais ou lógicos, não existem senão em função da
escrita Como jogar, por exemplo, sem a escrita, a diferença entre
deux (dois) e d'eux (deles) ? Não é por acaso que o que Freud cha
mou de período de latência - a se entender como latência da libido -
coincide com a idade escolar. Pois a escrita tem uma incidência sobre
a palavra. Ela instala aí o recalque ao mesmo tempo que cuida do re-
Uma dificuldade da psicanálise de criança 107
torno do recalcado. Nesse sentido, uma criança que não escreve não
é interpretável como uma outra. Existe aí um ponto que eu me limito
a indicar mas que mereceria ser elaborado pelos psicanalistas de crianças.
A psicose: problemática 1
1
Esta conferência foi feita no q uadro das conferênci as de quarta-feira da seção
clínica, em Paris,em novembro de 1 982. Revisado por Maria Luiza Mota M iranda.
A psicose: problemática 109
mento, entrou numa igreja para rezar e ouviu, precisamente, uma voz
que lhe dizia ugozasº . Não era nem o imperativo, nem a questão; era,
eu diria, o que Lacan chama, a respeito de Schreber, uma voz uanna
listau , com 2 n e sem y, uma voz que sustenta a crônica do fenômeno.
Na outra extremidade de seu ensino, Lacan, nesse texto dos Ca
hiers pour l'analyse, introduz uma nova definição da paranóia, co
mo º identrricando o gozo no lugar do Outrou como tal. É a idéia da
aproximação da psicose por uma outra localização do gozo. A pergun
ta é esta: a tese da foraclusáo ficaria invalidada? Será que esta abor
dagem, pelo viés do real, implicaria numa ultrapassagem da aborda
gem pelo significante? Creio que é bem evidente que não. Mesmo se
neste texto Lacan dá indicações absolutamente novas, que estão em
ruptura com tudo o que antecede, pode-se acentuar um elemento de
continuidade porque,desde o início, isto é, desde a questão prelimi
nar, era ressaltada, ou pelo menos implicada, a incidência do Nome
do Pai sobre o gozo, incidência que se exerce no sentido de uma li
mitação do gozo. Além de que é bem o que significa a interdição do
incesto. No artigo du Trieb de Freud, Lacan diz: u É graças ao Nome
do-Pai que o homem não fica preso ao serviço sexual da mãeº . Des
de o começo temos uma série: Nome-do-Pai, castração -, a ser enten
dida como castração de gozo - desejo - o desejo definido claramen
te como barreira ao gozo. Pode-se dizer que o Nome-do-Pai opera
uma espécie de separação, a priori, entre o desejo, por um lado e o
0
gozo, por outro; 0 Desejo é do Outro, o gozo está do lado da coisau .
Isto, ele escreveu antes de ter elaborado esta questão do gozo até
colocá-la no plural, como pôs no plural os Nomes-do-Pai. A foraclusão
é colocada como a causa de que o gozo permanece no Outro.
Quando Lacan introduziu sua nova definição da paranóia, ele se
apoia sobre o texto de Schreber, onde este nota que é preciso que
ele pense sem cessar para que Deus goze sempre. Eu cito: ºLemos
sob a pena de Schreber que é para que Deus ou o Outro goza de
seu ser tornado passivo ao qual ele dá um suporte. Ele, aqui é Schre
ber, na medida em que ele se ocupa de jamais se deixar ceder a uma
cogitação articulada e que é suficiente que ele se abandone a pensar
em nada, para que Deus, esse Outro feito de um discurso infinito, se
esquive e que, desse texto despedaçado, em que ele mesmo se tor
na, se eleve o urro qauHficado por ele de miraculoso, para nos teste
munhar que a angústia que o traspassa, não tem mais nada a ver com
A psicose: problemática 1 15
sujeito algum º . Vemos que o Outro aqui, no qual o gozo está incluído
é tanto Schreber quanto Deus. O discurso infinito de Deus é equivalen
te a Schreber como texto despedaçado, no momento em que Deus
se retira. Em outras palavras, Schreber mesmo, está incluído. Pode
se dizer que o sujeito Schreber faz um uso do significante que não o
separa do Outro, ao serviço sexual do qual ele permanece. E precisa
mente o que obtém como efeito a elevação do gozo ao nível do as
pecto do fenômeno.
Gostaria, agora, de indicar que esta nova abordagem proposta
por Lacan também permite fazer uma nova abordagem das suplên
cias dos Nomes-do-Pai. Na questão preliminar já existe a idéia de que
a ausência da metáfora paterna, a foraclusão, pode ser compensada.
Isto se deduz, aliás, do fato mesmo de que a psicose se desencadeia
num momento dado. De onde a questão de saber o que permitiria
ao sujeito manter seu equilíbrio antes do desencadeamento. Em 1 956,
Lacan responde: uma identificação; pela qual o sujeito assume o dese
jo da mãe - cf. pg. 565 dos Écrits. Primeira tese pois, o apelo em vão
feito ao Nome-do-Pai, tem como efeito, abalar a identificação que, até
aí, sustentava o sujeito. Aqui existe a idéia de uma compensação pe
lo imaginário, pelo ª como seu , evocada desde o Seminário Ili. A psicó
tica faria Dcomo seu . Poder-se-ia falar de uma espécie de identificação
postiça, posto, se na neurose uma identificação abalada dá lugar a
uma outra, lá a identificação abalada dá acesso à dissolução do ima
ginário.
Correlativamente, o restabelecimento, por exemplo, o restabeleci
mento final de Schreber, se apresenta como uma estabililzação do
mundo imaginário. Entretanto, ela está conectada, por um lado, com
o gozo transexual, pelo outro com a fantasia de copulação divina; ela
é, pois, induzida pelo que ele chama ªa metáfora deliranteª , reencon
trando aqui a tese freudiana do delírio como cura. O trabalho do delí
rio constrói uma metáfora de substituição. O "tu serás uma mulher"
que Schreber realiza vem no lugar da significação fálica que aí falta.
Podemos situá-lo como suplência significante tendo efeitos imaginá
rios. Esta noção de suplência significante, Lacan jamais deixou de
acentuá-la, passando, primeiramente, do Nome-do-Pai no singular,
aos Nomes-do-Pai no plural, os Nomes-do-Pai designando, por uma
vez, diferentes ocorrências de uma função única e, finaimente, consi
derando o Nome-do-Pai como um elemento suplementar do caráter no-
1 1 6 A psicose
1
Co nferê n cia no ensino de Clínica Psican alítica, em 6 de m arço de 1 982, p u bl ica
da em Quarto N°8. Revisão de Mª Luiza Miranda.
120 A psicose
caª . Por outro lado, para Lacan, o Édipo sempre foi o que condiciona
va a relação do sujeito com a realidade, realidade aí, no sentido ba
nal da palavra Desde 1936, no texto sobre a família que ele publicou
na Enciclopédia, ele precisava que era a relação com o pai, no Édi
po, que permitia afirmar o que ele chamava o sentimento da realida
de em um sujeito. O que é o sentimento da realidade? É, a grosso
modo, o que faz com que se distinga, de maneira mais ou menos co
mum, o que é inerte do que é significativo, que aliás, as significações
que asseguram a relação de cada um com seu próximo, sejam mais
ou menos estáveis. Lacan emprega a expressão acomodaçáou , o que
0
+ ' ..
sobre esta célula, ele coloca o Outro à direita, à esquerda a mensa
gem, a saber, o efeito retroativo de significação. O Nome do Pai deve
ria ser srtuado à direita Ele é o significante sobre a cadeia significan
te horizontal a partir do quaJ, retroativamente, virá desenhar-se uma
significação, a do faJo. Situar o Nome do Pai com o ponto de basta
não é contraditório com a idéia de que o que introduz o Nome do Pai
é a metáfora Isto não é contraditório pela seguinte razão: é que, no
fundo, Lacan define dois aspectos do ponto de basta: encontraremos
sua função diacrônica na estrutura da frase. A saber, no fato de que
a frase toma sua significação a partir de seu último termo. E em se
gundo lugar, encontraremos a estrutura sincrônica na metáfora Portan
to, para dizê-lo rapidamente, a metáfora, deve ser incluída na descri
ção pelo ponto de basta Por isso, que eu digo que desde esse mo
mento Lacan nos apresentava um Nome do Pai que tinha por função
atar o simbólico e o imaginário, se, pelo menos, vocês me permitem
a assimilação entre significado, significante e o simbólico e entre o sig
nificado denominado o imaginário. Dizer-nos que o Nome do Pai é o
que atava significante e significado é dizer, antes de tudo, que ata o
imaginário e o simbólico. Em seguida, com o nó borromeano, Lacan
vai acrescentar a consistência do reaJ. Fará, então, do Nome do Pai
um suplemento, um elemento suplementar, quarto círculo que vai atar
os três outros (RSI). É aí que poderíamos situar a passagem para o
plural, do Nome do Pai aos Nomes do Pai. A partir do momento em
que Lacan distingue entre o significante propriamente dito e a função
que lhe pertence - que tentei aí condensar ao máximo por uma função
de nó -, imediatamente pode-se conceber que outros significantes
possam ter a mesma função. Quer dizer que a distinção entre o signi
ficante e sua função faz a passagem para o pluraJ. Ele diz em R.S. I. :
Abordagens do Nome do Pai 127
ta que põe ordem no mundo, que põe uma ordem particular entre os
sexos, que permite definir os lugares e que portanto permite ao sujeito
vir a se alojar, ao mesmo tempo, sobre o plano simbç,lico e o imaginá
rio. É pois uma resposta que apazigua A castração não deve ser abor
dadp. exclusivamente pelo seu lado de angústia, seu lado de pathos,
seu lado patético. Ela tem seu lado de apaziguamento. É por isso que
Lacan podia dizer, só comparo _o pai ao pior (on ne parie que du
pêre ou pire) . Não há alternativa para o pai senão o pior. E esta al
ternativa pior talvez seja o Supereu, uma das formas do Supereu ...
A que é que responde o Nome do Pai? Ao significante que falta?
Responde pois a uma dupla questão, a do desejo e a do gozo. O
desejo se apresenta de início como uma pergunta, enigma, enigma
do desejo do Outro. Eis porque, quando constrói seu grafo, Lacan
em um de seus desenhos, desenha o ponto de interrogação do de
sejo. A este enigma, o significante falo responde: é o falo escrito
em minúscula. O falo como significante do desejo. O pai fornece o
significante do desejo, a operação do pai fornece o significante do
desejo. Mas isto responde também à questão do gozo. Não se po
de dizer que o gozo se apresenta. É mais um lugar em branco (Cf.
usubversão do Sujeitou , p. 819 dos Écrits) . O gozo não se apresen
ta como uma pergunta, porém existe bem uma pergunta. É •o que
é que eu sou?u Pergunta pois, do sujeito. Não uma pergunta que o
sujeito se coloca, mas, pergunta do sujeito: o que é que eu sou? La
can responde, de maneira. muito bonita: º ... eu sou no lugar desde
onde se vocifera que o universo é uma falta na pureza do não-seru .
É Valéry, o universo é uma falta na pureza do não-ser. Pergunta pois
do nada que aí se perfila. Mas ele acrescenta: º ... este lugar chama
se o gozo. E é ele cuja falta faria vão o universoª . Ele acrescenta
mais adiante: u ... este gozo cuja falta faz o Outro inconsistente, o
Outro com A maiúsculau .Portanto, vejam que há um lugar, o lugar
do gozo no Outro, precisamente, neste lugar, há uma falta. No fun
do é o que Lacan escreve com sua barra sobre o Outro, quando es
creve, no grafo S(�) . Pois bem, a segunda vertente da operação do
pai, é fazer presente o significante que vem neste lugar que é o Fa
lo escrito com maiúscula, desta vez: o ti maiúsculo, significante do
gozo, que é aqui equivalente à falta do Outro, que vem especificar
a falta do Outro. Vocês vêem pois o falo em minúsculo ( cp ) signifi
cante do desejo; o falo maiúsculo ( <I> ) significante do gozo. De qualquer
Abordagens do Nome do Pai 129
são todas na função fálica, o outro gozo, o gozo que não é gozo fáli
co, elas não podem fazê-lo passar para o inconsciente. Pois Lacan
define a psicanálise assim: fazer passar o gozo ao inconsciente, a sa
ber, fazê-lo passar pelo signfficante. Um gozo que passou pelo signifi
cante do homem dos ratos dá exemplo disto: o rato, este significante
que o representa, ele e seu gozo, é ao mesmo tempo um significante
com o qual ele contabiliza: tantos ratos. Deixo vocês com toda a pe
quena contabilidade do homem dos ratos, a respeito dos ratos. Retor
no à função do pai. A histeria e a psicose são, penso, duas soluções
inversas. A histérica, Lacan frequentemente o diz, a histérica faz o ho
mem. A histérica faz o homem, quer dizer simplesmente que, dado
que a sua pergunta é uo que é uma mulher?\ e que não existe signifi
cante d'A mulher, para identificar-se ou tentar indentfficar-se com o
seu sexo, seu sexo anatômico, seu sexo do estado civil, para tentar
identificar-se com seu sexo, ela passa pelo universal d'O homem;
quer dizer que ela se serve de pelo menos-um-homem que faria uma
mulher parceira. Quer dizer que sua definição d'A mulher na falta de
um significante da mulher (é uma definição mínima) , é ao menos, a
de ser a parceira do homem, de um homem. Observem, é suficiente
um. Por que um é suficiente? De preferência, um ou tudo, uma série,
é exatamente equivalente visto que o homem pode ser dito no singu
lar: há uma universal do homem. Como me dizia uma delas: 'eu procu
ro um homem neste momento. Aliás os encontro aos montes u . Se me
permitem dizê-lo, jogando com a língua, o homem é sempre qualquer
um. Ele é o apêndice da função fálica, de alguma forma. Isso explica
pois o que Lacan diz: eles andam em turma A turma, a turma de to
dos os que têm a mesma identidade fálica As mulheres também em
bora não andem em turma, mas aos pares, não podem parar , como
Lacan dizia em uma época, para arrancar um em seu batalhão, o
u
um u que será suficiente. Então, u a histérica faz o homem º , de fato ela
faz o homem porque, para ela, é o homem faz a mulher, na falta do
significante da mulher. Eis porque eu dizia, é o pai quem faz a mulher.
É o pai quem faz a mulher visto que é o pai quem faz o homem que
faz a mulher, se vocês preferem. Isto esclarece muitas coisas. Por exem
plo, o que se chama a dependência das mul heres, a dependên
cia d ita afetiva das mulheres. É um grande erro. As mulheres não
são afetivamente dependentes, elas são, pelo contrário, depen
dentes de maneira significante, é q ue lhes é preciso passar pelo
134 A psicose
produziu. E vemos bem que ela o Nome do Pai, efeito que não existia
no início do delírio e que é um efeito de pacificação, de restabeleci
mento. Lacan insiste sobre o fato de que a chave da reviravolta de
Schreber não é a megalomania, e ele critica Freud por ter aceito esta
solução. Não é somente porque ele se torna mulher de Deus que ele
pode aceitar ser mulher, porquanto há um outro traço que me pare
ce muito importante, é a referência à ordem do universo. Sem dúvida
vocês se lembram de que Schreber termina por elaborar penosamen
te a idéia de que a sua transformação em mulher é necessitada pelo
bom ordenamento do universo e que,no fundo, é a condição para que
ele seja, de alguma sorte, o redentor de uma humanidade futura. O
que quer dizer, muito exatamente, a mulher vem para ele no lugar do
ldeaJ do Eu. Isto implica seu eu ideal feminino correlato ao gozo tran
sexual no qual ele se estabiliza.
Marlene1
1
Trad uzido da tradução castel h an a de Diana S . Rabinovi ch. R evisado por B er
nardino Horn e. P u b l i cad o in Psicosis y Psicoanalisis ; Ed. Manantial, Buenos Aires,
1 985, pg.1 39-1 44.
Marlene 137
Schreber sabe sempre quem lhe faJa. Para Marlene, tudo ocorre
como se o tempo da atribuição subjetiva das vozes, sua imputação a
um emissor, faltasse. Quando se lhe coloca a pergunta, ºQuem diz is
so? º , responde com um gesto evasivo. Duas vezes, porém, em oito
anos, indicou haver-se colocado, ela mesma, a pergunta, sob uma for
ma precisa. A primeira vez: ªera um homem ou uma mulher", a segun
da ªera eu ou um outro? ª . A resposta fica porém hipotética, instável,
incerta, quase indiferente. Ausência de pergunta ou, quando há per
gunta, resposta frouxa que contrasta nitidamente com a certeza de
Schreber. Para Marlene a interlocução está aí, mas o interlocutor não.
De repente nada unifica essas vozes. Para Schreber, as vozes são
evidentemente múltiplas, mas todas, apesar de muito diversas, consti
tuem o canal de seus intercâmbios com esse emissor ºúnico, em sua
multiplicidade e múltiplo em sua unidadeº , que é seu deus. Todos os
enunciados não são nunca senão ocorrências da voz, em singular,
de Deus. Para Marlene, as vozes, plurais, não definem um emissor.
Elas presentificam uma espécie de emissão onipresente, quase coex
tensiva ao banho significante. Nesse sentido acredito poder dizer que,
do lugar do Outro, ela não faz um deus. Nada a ver, porém, com o ateísmo.
Ou seja, também, a mensagem do Outro, falta. Para Schreber, as
vozes dizem a vontade divina. No horizonte das figuras sucessivas
dos perseguidores, Deus o quer mulher. Para Marlene, lamentavelmen
te, se lhe é passivei acreditar nisso, as vozes nada dizem. Não têm
nenhum imperativo, não a consagram a nada que possa curar sua
perplexidade. Há mensagem, mas não contém uma mensagem. Elas
presentificam a dimensão pura da enunciação, como enunciação va
zia, enunciação de ninguém.
Quando Schreber, recebe a cominaçáo divina que o consagra à
feminilidade, encontra a significação delirante em relação à qual se si
tua, protestando ou aceitando-a. Ela o permite suprimir sua não inscri
ção na função fálica e fDCar seu ser. Para ele é claro que o efeito signi
ficante que é sua inscrição como mulher de Deus, tem como correla
to a localização do gozo devastador, do qual era primeiramente pre
sa, sua fixação sobre a imagem do corpo próprio, sob forma do que
Lacan chama um gozo transexual. Para Marlene, ao vazio da enuncia
ção do lado das vozes, responde, de seu lado, o defeito de identida
de e a indeterminação de seu ser. Uma espécie de ºser abandonado\
permanente. Ela é uma esquecida pela memória dos deuses e ocor-
Marlene 139
mado aqui, de supereu auxiliar, pois tudo ocorre como se, na faJta
de uma representação significante, se buscasse o socorro de um man
dato feito por outro e que, cumprido pelo sujeito, o asseguraria uma
aparência de estado civil.
É surpreendente que as sete eventuaJidades retidas por Marlene,
longe de serem gratuitas, enumeram a série de ordens recebidas da
queles que, através do tempo, ocuparam, para ela, o lugar do Outro.
Todos aqueles que lhe significaram um 'tu serás... a, incluíndo alí um
'tu serás psicanalista•, estão ai. Seria possível mostrar o caráter verda
deiramente superegóico desses mandamentos, que não somente pres
crevem um significante, mas que impõem um ªgoza•. A demostração
implicaria na utilização dos mesmos termos de Marlene. Com a finali
dade de evitá-los, darei um modelo disto, a partir de um outro exem
plo. Suponhamos que se lhe tivesse sido transmitido um 'tu serás do
cente• (enseignante) ; isto se traduziria, após o confronto, com a fun
ção sustentada pelo significante, em um 'tu estarás ensanguentadau
(ensaignante) que a libertaria do gozo vampírico. Dessa forma, funcio
naram os imperativos aos quais ela se amarrou. $urge, em todo ca
so, que o tempo anterior à sua enfermidade foi a sucessão desses em
parelhamentos com um supereu supletivo. Viveu assim, sob uma su
cessão de reinados. Todos estão controlados com uma vivência de
opressão subjetiva e, a cada um, lhe corresponde um modo de apre
sentação dela mesma, que, de um para o outro, fazem-na às vezes ir
reconhecível.
Porém como ela passou, de um supereu para outro? É surpree
dente ver que essa continuidade não é aJeatória. O deslizamento se
operou cada vez, a partir de um significante que governa o outro. Utili
za, se podemos dizer, um significante mestre emprestado. Para esque
matizar, ao nível das relações, o terceiro supereu é o mestre do segun
do, que é o mestre do primeiro. Esta solução revelou-se, porém, insus
tentável, e finalmente desembocou nos fenômenos psicóticos da voz
que evoquei no começo, com seu correlato de apelo ao imperativo,
agora dirigido ao anaJista Como o analista não responde a esse ape
lo, ela confirma perfeitamente qual é o problema, dirigindose então
ao Outro das bibliotecas. Isso foi o que aconteceu depois que ela enu
merou suas identidades impossíveis, em resposta ao silêncio manti
do pelo analista, frente a sua demanda de supereu: noite e dia come
ça a ªengolirª livros que nela ªdesfilamª , sem que encontre aJi sua res-
Mar/ene 1 4 1
1
Publicado in Actes de L 'École XIII; Paris, 1 987. Revisada por Mª L uiza Miranda.
144 A psicose
o termo - exigir que ela ganhasse sua vida. Este ponto pode parecer
delicadíssimo porque tínhamos a idéia enraizada de que a análise de
. ve visar negativar o gozo em excesso na psicose e que o pagamen
to é uma cessão de gozo.
Noto que essa pessoa sempre achou justo pagar a sua análise,
mas ªganhar a sua vidaª era outra coisa para ela, a saber, uma signifi
cação tomada na sua relação delirante com o O utro perseguidor que
a tornava equivalente a um assassinato. Os dados da biografia vinham
aqui em meu socorro. Um discurso sobre a dívida estava presente já
que se conjugavam nele uma falência - estranha - do lado paterno e,
do lado matemo, a idéia de uma culpa excessiva, a ser vingada, que
ela encarna em seu ser. Ela que foi entregue para ser criada, se pos
so dizer, à tia lesada, diz: ª Eu sou uma dívida viva•. Nada a ver com
a dívida do falo em falta da neurose. Falta do sacrifício simbólico que
somente a vida real poderia quitar a conta É bem dela que seria apro
priado dizer, segundo a expressão de Lacan, q ue o legado virou liga
Não me esqueço de ter detido em outra ocasião, para minha grande
surpresa, devo dizer, uma crise de pânico suicida que não parecia
deixar outra alternativa se não a de uma hospitalização imediata, por
essa simples palavra de autoridade concernente aos propósitos de
um perseguidor do momento: ªEle não tem o direito11 Efeito estupefa
•
Problemática
Um pouco de história . . .
rior do objeto ganha todo seu valor4° . Este acento encontra-se confir
mado por uma resposta a Daniel Lagache, em dezembro de 1935,
no Grupo da evolução psiquiátrica, fazendo eco a uma exposição des
te sobre o tema: Paixão e psicose passional. Ele insiste em dizer que
ªa paixão não pode ser estudada (...) fora do objeto que a qualificaº .
Assim, para o Lacan psiquiatra daquela época, é da particularidade
do objeto que é preciso dar conta. A sua tese o faz por uma interpre
tação em dois níveis. Ela coloca primeiramente que a situação eleva
da do objeto revela seu sentido se consideramos o que ela implica
como afastamento, como abstrqçáo, como despersonalização deste.
Deduz-se que a sua função é assegurar a •não reaJização sexualº . A
escolha de objeto interpreta-se pois pela ·satisfação encontrada em
um platonismo radicalº . Quanto a esse platonismo, parece-lhe não
ser senão a manifestação fenomenaJ dos problemas da identificação
sexual, designada então, a respeito de Aimée, como a ºneutralização
da categoria sexual com a qual ela se identificaª . São, pois, os embara
ços do sexo que dão conta aqui, tanto do ªtema francamente erotoma
níaco º , referindo-se ao Príncipe de Gales, quanto da ºverdadeira eroto
mania homossexualº que a liga às suas perseguidoras. Notamos que,
para o Lacan de 1932, que ainda não distinguiu pequeno outro, gran
de Outro e objeto a, e que tampouco elaborou a função fálica, é - co
mo para Freud - a questão da libido, e mais precisamente, da relação
com o sexo, que é crucial. Entretanto, é certo que a explicação de
então, e a noção muito vaga da neutralização da categoria sexual,
não permitiam fazer a partilha com a histeria, essa mesma que o se
minário sobre as psicoses elabora, graças ao desvio pelo simbólico.
O exemplo de Schreber
em que ele instaura uma relação sujeito a sujeito, (cf. Encore), é nota
velmente ausente do laço que une Schreber a Deus. Lacan sublinhou
os traços negativos - mistura voracidade, desgoto - que distinguem a
erotomania schreberiana do júbilo e da iluminaçao mística. A erotico
mania é, no sentido do amor, uma eroticodeficiência, embora revelado
ra de uma estrutura, já que, no encontro com Deus, frente à coisa,
uma palavra de injúria surge, - luder - pelo que impõe na experiência
o que o neurótico desconhece, a saber, que o insulto se verifica co
mo, •ser do diálogo tanto a primeira palavra como a última• 5 .
Em seguida, o trabalho do delírio elabora uma fórmula completa
da da relação ao Outro absoluto, digamos: Deus me goza como sua
mulher. Não é uma palavra de amor, é um nome do gozo que, na fal
ta de inscrição fáJica, interpõe-se entre Schreber e Deus. A eroticoma
nia, correlata desta vez ao significante do sexo, instaura uma quase
relação sexual com Deus, na qual Schreber não é tanto a Mulher que
lhe falta quanto aquela que não lhe falta, porque ele a tem. Ela tam
bém condiciona a restauração de um quase efeito da palavra plena,
em um utu és minha mulher" (·tu es ma femme·), emitida diretamen
te do Outro - é Deus que o quer- e ao qual Schreber consente. É pre
ciso sublinhar o restabelecimento correlativo da sua relação com a re
alidade. Esta se torna possível de ser vivida na medida da estabiliza
ção e da pacificação da sua relação ao Outro. A regulação não me
nos surpreendente do seu gozo, acompanha isso. Ela se localiza no
roteiro transsexual. No espelho, Schreber testemunha um gozo que,
por ter encontrado sua inscrição como feminino, liga-se doravante à
imagem e à pulsão escópica. Assim encontra-se restaurada uma ver
são sexuada do gozo que, por não ser versão edípica, não deixa de
ser menos regulado.
O efeito de empuxo-à-mulher, produzido pela falta de uma existên
cia que funda o universal da função fálica como função de castração
é o pivô estrutural da dita erotomania de Schreber. É surpreendente
constatar que a mulher na qual Schreber se torna, distingue-se pelas
características de seu gozo. Ele o sublinha com insistência e preci
são: ela deve encarnar a exceção de uma volúpia sem limites, enquan
to que, para todos, diz Schreber textualmente, os limites se impõem.
Citemo-lo: ºNo que me concerne, esses limites cessaram de se impor
e, num certo sentido, se transformaram em seu contrárioº , a saber,
num dever de gozo6 . Schreber transformou-se em Um, ou antes, em
Fênomenos e estruturada erotomania 1 57
Uma a quem é permitido gozar sem limites. Como dizer mais clara
mente que a mulher-Schreber supre a função do pai? A falta da exce
ção paterna que, fundando o universal da castração, teria feito Schre
ber ingressar na ordem da castração para todos, a lógica da estrutu
ra não permite outra alternativa ao sujeito, senão encarnar a exceção.
Para isto, ele tem à mão, por assim dizer, o significante da mulher,
com o que conota um gozo em excesso, em relação àquele que a
castração condiciona Ocasião para verificar que a anatomia não tem
muito peso na estrutura Ela impõe somente a Schreber, porque é ma
cho, esta condição suplementar da transformação em mulher. O traba
lho do delírio, parindo esse titulo •mulher de Deusª , fornece a Schre
ber um novo sintoma, no qual o gozo até aí coextensivo à cadeia dos
pensamentos dispersos no infinito do delírio, ex-siste.
do, e para o qual o sujeito recorre às vezes ao analista, por outro la
do, o empuxo-à-mulher e à mania de amor como próteses, diferentes,
mas às vezes combinadas, dos efeitos da foraclusão. São duas solu
ções autógenas da psicose. Por mais delirantes e episódicas que elas
sejam, seu efeito de moderação não é negligenciável. O clínico encon
trará nelas o próprio modelo de sua mira, a saber, a instauração de
uma função de limite do gozo.
Notas
1 J. Lacan , Séminaire Ili, ed. Seuil, p.289. Seminário Ili, JZE, p.289.
2 S. Freud, cinq psychanalyses, éd.P.U.F. 1 966, p.309.0 caso Schreber, ESB, vol. XII, p.86.
3 lbdem p.95.
6 D.P. Schreber, Mémoires d'un névropathe, ed. Seuil, p.239. Memórias de um neu
ropata, ed. G raal, p.239.
Para Laca n, a tra nsferência não é repe
tição. Est a precisão é fundamental . Há em
suma uma dupl a vertente da repetição co
mo uma d u pla vertente da transferência. A
d u pla vertente d a repetição ele a isol o u no
Sem i n á r i o XI . P a ra que possam os dizer que
o m esmo se repete, é preciso q ue u m a ar
q u itetura significante permita del i m itá-lo;
u o a utômaton u l eva e m conta a estrutura, a
rede de s i g nificantes sem os q u a is não have
ria cam i n h o traçado para o sujeito. O sign ifi
cante cava as vias pel as quais ele pode re
tornar, passar de novo. H á para u m dete r m i
nado s uj e ito, se ass im se pode d izer, pai
néis indicadores que não são os mesmos
para um o utro s uj e ito. Há, portanto, u m a via
s i g n ificante na re petição, porém a ve rdadei
ra repetição lacan iana, que ele isola d o ema
ranhamento fre udiano, é a que ele chama
de ut iquê u , o que repete sem pre a fa l h a . Por
isso é preciso d izer q u e o que se repete é
algo sempre novo. Ver n a repetição a verda
deira variedade, não é um paradoxo, n ão é
u m jog o d e pal avras. O q ue se repet e para
o sujeito, e q ue seg ue as vias s ig nificantes
do discurso no qual e l e está preso, é sem
pre o mesmo obstác ulo que faz com que al
go se im ponha como tra u m atism o, q ue algo
se e ncontre, ao acaso, que não está progra
mado e por isso retorna, com o h i ato, que
condiciona a falta da relação sexual. H iato
e ntre tudo o que pode-se dizer e a l g o que
não se d iz, entre o sig nificante e o rea l , q u e
se apresenta na origem sob a f o r m a do trau
matism o sexu al.
A transferência é outra coisa. Por quê
Lacan diz q ue a transferên cia não é a repeti
ção?