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Arti gos Clínicos de Collete Soller

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5 672 Soler, Colette


Artigos Clínicos/ Colette
Soler; trad. Elena Lopes Cólb.
- Salvador: Fator, 1991

p.152.

1. Psicanálise. 2. Neuroses. 3. Psicoses


1. Título

CDD 616.89

ISBN 85-7172-017-7
Contribuição legal
Impresso no Brasil
Março 1991
SUMÁRIO

A transferência e a cura

As modalidades da transferência ................................................................ 7


Standards e não standards ......................................................................... 21
Transferência e interpretação na neurose ...............................................45
O acting oLJt na cura ..................................................................................... 51
A angústia na cura ........................................................................................ 62
Os fins próprios do ato analítico ................................................................67

A interpretação"

As regras da interpretação ..........................................................................74


Lacan na Inglaterra ....................................................................................... 82
Identificação e interpretação ....................................................................... 89
Sobre a interpretação ...................................................................................97
Uma dificuldade da psicanálise de criança .......................................... 104

A psicose

A psicose: problemática ........................................................................... 108


Abordagens do Nome-do-Pai .................................................................. 119
Marlene .......................................................................................................... 136
Uma estabilização sob transferência ..................................................... 143
Fenômenos e estrLJtura da erotomania ................................................. 150
As modalidades da transferência1

Nenhum psicanalista, mesmo da Associação Psicanalítica Interna­


cional, discordaria com qualquer um outro sobre esse ponto: não há
psicanálise sem transferência Por isso achei apropriado falar desse
tema a vocês, um público novo para mim.
Eu tomo modalidade no sentido banal que designa as manifesta­
ções diferentes de uma mesma coisa Qual é essa coisa: a transferên­
cia ? Existe um certo número de fenômenos que se observam, mas
dizer o que é, no sentido do ser, aí começam as divergências. Minha
referência sobre o assunto é o ensino de Jacques Lacan. Há muitas
fórmulas sobre a transferência em Lacan e não farei histórico da trans­
ferência. Para Lacan, a transferência é uma estrutura; abordemo-la a
partir da escritura do discurso analítico que é para nós, o que orde­
na a experiência Esse discurso analitico escreve um sujeito que está
ligado ao signrficante, à linguagem, por um lado, e por outro, a um objeto:
--ª---.L
S2 S1
Esta escritura nos permite situar os fenômenos de transferência.
Eles são múltiplos e a maioria dos psicanalistas tem salientado as
suas variações; variações especialmente segundo os tipos clínicos,
neurose, perversão, psicose. Podemos também evocar, na história
do movimento psicanalítico, as variantes no interior da neurose, entre
a transferência pré-genital e genital, a transferência narcísica e objetal.
Poder-se-ia estabelecer uma lista Há ainda variantes segundo o mo-

1
Conferência em Estrasburgo em 15 de novembro de 1985. Publicada em Pa/ea
N °2,Secretaria da Escola da Causa freudiana em Estrasburgo.Revisão de Jairo
Gerbase
8 A transferência e a cura

·mentó da cura; mesmo Lacan em A direção da Curaº evoca três tem­


11

pos considerados manifestos: o enamoramento primário, o segundo


tempo colocado sob o signo da frustração, e o tempo pré-terminal
de uma satisfação difícil de romper, diz ele. A transferência não é pois
um fenômeno simples. Os autores fabricam duplas: transferência nega­
tiva e positiva, rememoração e agieren, transferência condição da cu­
ra e transferência resistência, transferência erótica e transferência su­
blimada, amor e ódio de transferência. Há portanto alguma coisa a
se le'{ar em consideração: além de suas diferenças, esses autores ca­
em sobre polaridades opostas e isso já é indicativo. Elas se acham
ordenadas em Lacan no binário alienação-separação.
Em primeiro lugar a modalidade repetitiva. Vou começar por falar
de Freud; partirei de um texto de 1914: ºRememoração, repetição e
perlaboração". Texto famoso no qual ele traz novidades sobre a trans­
ferência. Também famoso porque serviu de apoio para toda uma cor­
rente da psicanálise para separar-se de Freud e se vocês tomam um
volume que Lacan evoca nos Escritos com as iniciais P D A, Psicanáli­
se de hoje, volume que se refere à Internacional, lerão nele particular­
mente os artigos de Nacht, e verão que os autores pensam que a vira­
da da técnica é 1914, e não 1920 com o ºEu e o Issoº.Neste texto,
Freud introduz a idéia de que há duas modalidades de transferência:
.uma transferência rememoração e uma transferência referida ao ter­
mo agieren. Ele partiu da idéia que a psicanálise é uma técnica de in­
terpretação que consiste em trazer à tona o recalcado, o qual perten­
ce, segundo ele, ao passado. Neste texto ele percebe que isso não
é tão simples. Há dois modos do passado: a lembrança e o agieren,
a atuação. No essencial, Freud identifica a rememoração com a condi­
ção da cura, e a atuação com a resistência É pois uma dupla bastan­
te simples. Qual é a relação com a transferência? O texto é categóri­
co: a transferência é a repetição. Ele identifica pois transferência e re­
petição. Esta tese tem por si mesma uma certa evidência. O fenôme­
no concernido é o "desdobramento" da pessoa do analista pela trans­
ferência, o analisando imputando a seu analista um certo número de
posições nas quais se reconhecem as dos Outros primordiais do su­
jeito. Temos exemplos prínceps: Dora 1905, transfere para Freud as
ofensas que faria a seu pai num momento dado da cura. Quanto ao
homem dos ratos, tão impressionado pela crueldade do capitão.fica
desconfiado da crueldade de Freud a ponto de esperar que Freud le-
As modalidades da transferência 9

vante a mão e lhe aplique um corretivo. Freud toma essa transferência­


repetição de uma maneira simples, ele vê nisso a atuação dos protóti­
pos infantis. Ele também emprega o tenno ªclichê; há atuação de cli­
chês já prontos nos quais encontra-se coagulado aquilo que um sujei­
to espera da parte do Outro. Não é, há sujeitos que esperam sempre
o pior e outros que esperam tão pouco que é preciso verdadeiramen­
te que isso caia em sua cabeça para que acreditem...
Porque Freud considera que essa transferência-repetição é uma
resistência à cura ? Dois traços distinguem a atuação da rememora­
ção. No agieren o sujeito não sabe que repete. Um sujeito pode se
lembrar que foi insolente com figuras de autoridades: isto é rememora­
ção. Mas pode ser absolutamente insolente com seu analista sem per­
ceber que está sendo, nem perceber que é uma repetição. É um exem­
plo de Freud. Segundo traço: na rememoração não há a º exigência
de satisfaçãoº já que temos de lidar com outros apenas pensados. A
atuação, sim, vem junto com a demanda, já que o que ele chama exi­
gência de satisfação é a demanda de amor, inclusive a demanda eró­
tica. Com efeito, a própria implica um fator duplo, ela comporta o ele­
mento significante sem o qual não se poderia falar de desdobramen­
to da pessoa do analista: é preciso que haja um traço pelo qual o ana­
lista apareça identificado com a pessoa do passado. Isto é uma coi­
sa; em seguida há outra coisa, um elemento diferente que Freud qua­
lifica como "atual" e que é a exigência pulsional efetiva. É uma parte
do que faz resistência, a exigência pulsional atualizada.
Isso se verifica experimentalmente no manejo da cura que consis­
te em interpretar a resistência de transferência. Começou como uma
fiada de pólvora, depois do artigo de 1914, a idéia de que era preci­
so interpretar a resistência de transferência A interpretação da resis­
tência de transferência leva a um duplo impasse, técnico e teórico.
Dizer ao paciente: ºVocê exige de mim o que você não pôde obter
do pai11 , por exemplo, é uma interpretação da transferência repetição
e da transferência resistência. Qual é o resultado disso? Não é nulo.
Pode permitir ao analisando isolar os traços significantes que ordenam
o seu mundo. É pois uma interpretação que pode ter um efeito signifi­
cante. Qual é o passo seguinte? Freud o obseNa, deixa do mesmo
modo a exigência de satisfação não começada no atual, inclusive ati­
vada até a reivindicação. O impasse teórico pode ser formulado assim:
se a transferência repete, como evitar repetir sempre a mesma saída
1 O A transferência e a cura

neurótica ? Se a transferência reedita o passado, como considerar


que uma análise chegará a um fim? A repetição é uma coisa que não
pára e a fínálidade da análise é obter uma mudança Ferenczi1 foi um
dos primeiros a perceber isso. Se a transferência é repetição, é preci­
so que haja alguma coisa que não seja repetição.
A asserção segundo a qual o que se repete é o passado tem uma
certa evidência, mas é uma evidência falaciosa, pois o que é o passa­
do? Cremos explicar dizendo: Tudo isso vem do meu passadoº .Ob­
11

servem que se disséssemos a um sujeito: lsso vem de seu presente11


11

ele ficaria muito confundido. Lacan não diz: O inconsciente é o passa­


do, mas o inconsciente tem uma estrutura de linguagem, o que impli­
ca ainda outra coisa. Para Lacan é muito simples, a estrutura de lin­
guagem dá conta da perduração do passado. Então se o inconscien­
te é o passado, como Freud diz na ocasião, perguntemo-nos o que
é o passado. Para responder a essa pergunta podemos tomar o tex­
to de 1915: º Considerações atuais sobre a guerra e a morteº in Essais
de psychanalyse, onde Freud resume sua concepção do psiquismo
humano naquele momento. Há aí algumas linhas interessantes de
Freud. Primeiramente a afirmação que vocês conhecem, reacentuada:
o fundo do homem é a pulsão, idêntica em cada um, mas com essa
idéia a mais que 0 psiquismo primitivo é, no sentido mais pleno, impe­
11

recível". Eis portanto, afirmado de maneira muito forte, o núcleo pulsio­


nal do inconsciente, mas com traço da permanência que não se en­
contra em nenhum outro lugar no simples mortal; ora, diz Freud, isso
supõe que o que se apresenta como uma sucessão implica uma coe­
xistência. O que se inscreve no tempo da vida de um sujeito, é algu­
ma coisa que, a nível do inconsciente, se apresenta como uma coexis­
tência. Freud observa que esta é uma estrutura paradoxal, mas que
é ela que condiciona a regressão assim como o retorno ao passado.
Nesta dupla, sucessão-coexistência, de Freud, Lacan reconheceu
uma outra, a de Saussure: sincronia-diacronia, e sugere por seu tur­
no a imagem da loto: o inconsciente como um saco de onde vão sain­
do signos, um por um, durante um tratamento, durante uma vida. Freud
mesmo, evoca a imagem de um jogo de paciência do qual extrairía­
mos os elementos, um por um, por uma fenda estreita, para tentar re­
constituir o conjunto sincrônico dos elementos. Remetam-se a essas
"Considerações sobre a guerra e a morteº. Não é preciso forçar o tex­
to para dizer que o que ele chama o recalcado, é uma realidade du-
As modalidades da transferência 1 1

pia, composta pela pulsão e pela inscrição das representações incons­


cientes às quais a pulsão adere e que o ·Projeto de psicologia cientifi­
caº de 1895, largamente comentado por Lacan, tentava descrever.
Da maneira como Freud nos falou do passado, reencontramos esse
componente duplo: por um lado a história, o discurso, o que está arti­
culado em significante, e do outro, a satisfação pulsionaJ.
Poder-se-ia ser tentado a fazer paralelismos apressados e dizer: a
rememoração é o significante e o agieren é o objeto.Pois bem, é o
que não se pode fazer, primeiramente porque o próprio agieren impli­
ca um significante; se não o implicasse, não poderíamos dizer que ele
é repetitivo, não poderíamos lê-lo. No agieren , como na rememoração,
o Outro está presente. É por isso aliás, que interpretar a repetição atua­
da é uma maneira de fazer sair os significantes. Em segundo lugar
porque a rememoração tem seu próprio limite, chamado recalque ori­
ginário. O inconsciente é tal que está excluído que nos lembremos
de tudo; isso evidencia a exigência da rememoração completa; com
o significante há sempre alguma coisa perdida; a rememoração nun­
ca pode igualar-se à sincronia, ela somente consegue aderir-se a uma
parte desta. É preciso agora precisar as relações entre memória e in­
consciente. É o inconsciente que faz que esqueçamos e que nos lem­
bremos. A amnésia histérica ou a sua variante obsessiva, o isolamen­
to, é a manifestação fenomênica do inconsciente. Lembrar-se, diz La­
can, é vir sob um significante: �1 , vir sob a barra, a ser representa­
11
do por um significante. Remeto-lhes a uma página muito bonita do E­
quivocação do sujeito suposto saber º in Sci/icet 1'eu não me lem­
bro º quer dizer que ao apelo de um significante que deveria me repre­
sentar e a partir do qual poderia me lembrar, que vivi neste discurso,
ao chamado desse significante eu não respondo presente. C oncebe­
se que o inconsciente se traduza em amnésia; já que o inconsciente
é significante certamente - do saber, diz Lacan; dos pensamentos, diz
Freud - mas é significante sem sujeito, significante sob o qual o sujei­
to não vem se fazer representar: S2 . O inconsciente é significante do
qual o sujeito é º apagado·, e o que Freud chama tomada de consciên­
cia, não é um termo totalmente adequado. Alguma coisa resiste à re­
memoração integral, é um fato, e a bipolaridade que remete à estrutu­
ra do significante, e que exclui que possamos nos lembrar de tudo,
dá conta disso. Não se pode pois identificar completamente a facilita­
ção de transferência ao significante e a resistência de transferência
12 A transferência e a cura

ao objeto: há aí uma chicana. Lacan ordena isso de uma maneira de­


cisiva colocando as disjunções no seus devidos lugares.
Para Lacan, a transferência não é repetição. Esta precisão é funda­
mental. Hâ em suma uma dupla vertente da repetição como uma du­
pla vertente da transferência.
A dupla vertente da repetição, ele a isolou no Seminário XI. Para
que possamos dizer que o mesmo se repete, é preciso que uma ar­
quitetura significante permita delimitá-lo; •o autômaton• leva em cada
estrutura, a rede dos significantes sem os quais não haveria caminhos
traçados para um sujeito. O significante cava as vias sobre as quais
ele pode voltar, passar de novo. Há para um sujeito dado, se assim
pode-se dizer, painéis indicadores que não são os mesmos para um
outro sujeito. Há portanto um lado significante na repetição; mas a
verdadeira repetição lacaniana, que ele isola do emaranhado freudia­
no, é o que ele chama a ptiquê11 que repete sempre a falha. É necessá­
,

rio dizer pois, que o que se repete é alguma coisa sempre nova. Ver
na repetiçã'o a verdadeira variedade, não é um paradoxo, não é um
jogo de palavras. O que se repete para o sujeito, e que segue as vias
significantes do discurso no qual ele está preso, é sempre o mesmo
impecilho que faz que alguma coisa se imponha como traumatismo,
que alguma coisa se encontre, ao acaso, que não está programada
e que no entanto retorna, como hiato, aquilo que condiciona a falta
de relação sexual. Hiato entre tudo que pode-se dizer e alguma coi­
sa que não se diz, entre o significante e o real, que se apresenta origi­
nariamente sob a forma do traumatismo sexual.
A transferência, é outra coisa. Por quê Lacan diz que a transferên­
cia não é a repetição? É no sentido em que, enquanto ela depende
do sujeito suposto saber, que não é aliás o todo da transferência, as­
sim como o autômaton não é o todo da repetição, na medida em que
ela depende do sujeito suposto saber, não depende da tiquê, mes­
mo se pode a ela conduzir. A transferência é mesmo um recurso con­
tra a repetição-tiquê. Dirigir-se a alguém que é um intérprete, isto é
um suposto, senão saber, pelo menos um suposto saber fazer vir à
tona o saber, dirigir-se a um intérprete, a um psicanalista, é pedir ao
saber para vir cobrir o real, o real do primeiro trauma. Todavia o ape­
lo ao saber conduz ao centro da repetição como tiquê. Lacan o ilustra
com o belo sonho: Pai, não vê que estou queimando? É uma frase
transferencial: não há pois de modo algum Outro que responda pelo
As modalidades da transferência 1 3

que consome o sujeito? A invocação d a criança que q ueima designa


e repete a falta do bom encontro -tiquê.
Se me permitem 1 vou retomar a partir da escritura da transferência,
do materna que Lacan construiu a partir do algorítimo do significante
e do seu significado �
Um significante, que ele chama de significante da transferência, re­
presenta o sujeito que ele supõe S, junto de um outro significante,
que ele escreve Sq, um analista qualquer, o que engendra a significa­
ção do saber suposto no inconsciente S 1 , S2 , S n -

Para esclarecer o significante da transferência, tomemos o homem


dos ratos como exemplo. Antes do desencadeamento, nosso homem
dos ratos é um sujeito mais ou menos em equilíbrio, bem assentado,
como se diz, e isso repousa sobre uma identificação. Os detalhes que
ele dá a Freud mostram-nos que ele está identtticado com o oficial
que ele é. Oficial da reserva chamado ao exército, ele procura demons­
trar aos oficiais de carreira e além deles, sem dúvida, a este Outro ide­
al que é o chefe dos exércitos, que os da reserva podem lhes substi­
tuir. Pode-se escrever isso como o efeito semântico no qual se encon­
tra preso o homem dos ratos e que vai se achar traumaticamente aba­
lado. O significante uoficialu representa nosso sujeito homem dos ratos,
com uma significação que evocaria em condensado pelo termo de vir­ 11

tudes militares11 Escrevemos esse equilíbrio sobre o modelo do mate­


rna da transferência:

Oficial de reserva _____..,_ Oficiais da ativa . .. Outro Ideal

s(virtudes militares)

O que é que acontece com o homem dos ratos? Ele faz um en­
contro, tiquê, o do capitão cruel e de seu relato do suplício dos ratos,
o q ual é de natureza bem diferente daquele da significação das supos­
tas virtudes militares. No lugar desta vem a evocação de um gozo
mau, cruel. Em outras palavras, o capitão cruel vem representar um
14 A transferência e a cura

certo real traumático que não é, um significado do Outro - as virtudes


militares são um significante do Outro, o gozo não; é um truque que
o significante não pega direito, é preciso um cenário para evocá-lo,
no caso o cenário suplício; notem porém que ainda não é o que acon­
tece depois, a saber o grande cenário da dívida que se situa do lado
sintomático. O homem dos ratos que não é louco sabe que isso lhe
diz respeito, que isso lhe representa, a significação permanece enig­
mática e faz questões surgirem. Ele vai assediar Freud, especialmen­
te co m esta: sou um criminoso? Assim o que chamarei de equilíbrio
semântico do sujert:o encontra-se, duplamente abalado: pelo signifi­
cante capitão cruel que representa um gozo inadmissível mas do la­
do de um outro e pelo cenário da dívida que representa para o pró­
prio sujeito o enigma do sujeito atualizado pela ressonância do gozo
encontrado num outro, o sujeito pois desconhecido para si próprio
que faz o furo nas significações constitutivas do seu mundo. No come­
ço de uma psicanálise achamos sempre este abalo semântico. Tomei
esse exemplo do homem dos ratos, porque cada um pode verificar;
evocarei outro, que tomei emprestado e já antigo: alguém contava is­
so: um homem começa sua análise no seguinte contexto: sua mulher
o enganava, ele a aturava muito mal, mas a suportava desde bastan­
te tempo até o dia em que soube que o amante de sua mulher fazia
erros de ortografia Sim ... o rival udisortográfico D faz rir. Mas vocês não
vêem que por ter valor para sua mulher, ele introduz no Outro, neste
caso, pelo viés do parceiro, a mesma falha, o mesmo abalo semânti­
co que tem para o homem dos ratos o relato do capitão cruel?
Pois bem, a transferência restaura um efeito semântico. Quer dizer
que lá onde o sintoma fazia vir um ponto de interrogação,um furo nas ·
significações como eu já disse para o homem dos ratos, a transferên­
cia é a hipótese, a pressuposição, de que deve haver um saber que
vai tapar esse furo. A hipótese da transferência, é a suposição de que
se vai poder responder à pergunta: o que isso quer dizer? Eis porque
Lacan diz que o sujeito suposto saber é uma significação (Proposição
de 67) que vai se acrescentar como terceiro ao binário significante
da transferência-sujeito significado. Neste sentido, a transferência é
uma rolha, certamente, especial para fazer apelo ao saber inconscien­
te, embora chamado pela divisão do sujeito. É aí onde se vê que é
um recurso, quando há efeitos de apaziguamento imediato. Um sujei­
to pode chegar num desvario completo e uma semana depois recuperar
As modalidades da transferência 15

seu equilíbrio. Assim acontece com o transe do homem dos ratos:


desde que ele chega a Freud acabou, caiu. A transferência veio fe­
char a hiância surgida, introduzindo o sujeito numa estrutura temporal
de espera e de promessa, cujo interesse reside em fazê-lo trabalhar,
em fazê-lo elaborar uma parte do saber inconsciente.
O que chamamos no fim da análise a queda do sujeito suposto
saber, é evidentemente uma suspensão do efeito semântico da transfe­
rência Nesse sentido a dita travessia da fantasia é um efeito semânti­
co. É por isso que Lacan pode dizer que o sujeito como efeito de sig­
nificação é ºresposta do realª , ou seja, não do Outro. O movimento
da cura vai ser o de substituir na significação de saber da transferên­
cia, o que Lacan chama em sua Proposição de 67, o referente ainda
latente, ou seja, o objeto a que, latente no início da cura, se torna paten­
te no final. Esse referente, esse objeto que centra a fantasia é o pivô
desta outra vertente da transferência que Lacan chama de separação
em oposição à alienação significante. Não é o sujeito suposto saber
que conduz à fantasia, é o sujeito suposto desejo, aquele que o signi­
ficante locçiliza mas não agarra, aquele que assedia o que Lacan cha­
ma o intervalo significante. É uma bela palavra, assediar, ela evoca
os fantasmas, esses habitantes inatingíveis mas que sabemos que es­
tão lá, na casa mal-assombrada, sem que jamais os possamos agar­
rar ; percebemos uma ponta do vestido, ouvimos o rangido da porta,
mas o habitante que está lá permanece inatingível. Lacan emprega
esse termo quando fala do desejo ou da causa do desejo que asse­
dia a metonímia dos enunciados, que se deixa portanto ouvir além
ou aquém do que se diz sempre como outra coisa Esse referente é
idêntico ao próprio ser do sujeito. N a medida em que está representa­
do pelo significante, o sujeito não é mais do que falta a ser. Lá onde
está, é somente nesta causa, esta causa do desejo que é o segredo
de transferência. Vou ler essa frase capital para a compreensão da
transferência, em ªPosição do inconscienteª , à página 844 dos Écrits.
Lacan que articula então a operação da separação e que acaba de
evocar a opacidade do ser do sujeito observa: •A espera do advento
deste ser em sua relação com o que nós designamos como o dese­
jo do analista no que ele tem de não vislumbrado, pelo menos até ho­
je, por sua própria posição, eis o verdadeiro e último pivô do que cons­
titui a transferênciaª .
Portanto o verdadeiro e último pivô do que constitui a transferên-
1 6 A transferência e a cura

eia, não é a espera do saber, é a espera do ser. Seu surgimento su­


põe, evidentemente, que o analisando fale, que ele faça a sua tarefa,
isto é, que se insira completamente na estrutura do sujeito suposto
saber. A psicanálise não é uma mística Não se considera na psicaná­
lise que há uma via direta rumo a causa do desejo, que seria por exem­
plo de ordem efusiva, ou que seria uma espécie de prova do indizível.
A psicanálise segue uma via rotineira passando pela famosa associa­
ção livre. Neste nível da transferência como separação, seria necessá­
rio se colocar a questão das suas afinidades com a 91:iquêº . É uma
questão... vocês sabem...
Chega-se a uma psicanálise com uma demanda dirigida ao saber
inconsciente, para que o saber inconsciente diga o que há, diga o
que é o sujeito para ter tais sintomas; mas, quem é que responde?O
paradoxo é que o ser que responde, não é o saber; o ser que respon­
de é, precisamente, a pulsão, na medida em que ela é colocada em
frase e em imagem no cenário da fantasia Vocês conhecem essa fra­
se: ºA transferência é o amor dirigido ao saber mas que se oferece a
um parceiro que tem chance de responder° ... O parceiro que tem chan­
ce de responder é o analista, certamente, mas é o analista enquanto
o analista opera desde o lugar do objeto a. O analista é também aque­
le que pela mediação da interpretação faz o objeto responder, já que
a interpretação para Lacan, não é interpretação que se diria significan­
te, assim como a repetição não é a repetição que se chamaria simbó­
lica. No m�io lacaniano fala-se muito da repetição simbólica. É preci­
so observar bem, que a tiquê, é a repetição não simbólica, é a insis­
tência do real, desse real do simbólico que é o º não há relação se­
xual º. Da mesma maneira, a interpretação não é interpretação signifi­
cante porque a interpretação significante é de duas uma: ou ela isola
S1, os significantes mestres do sujeito, que têm governado em sua
vida, seus ideais e as identificações correlativas; ou então ela produz
efeitos semânticos, digamos efeitos de verdade. Eis o que pode ser
a interpretação significante. Mas a interpretação verdadeira, mesmo
operando através do significante, não visa o saber, visa o ser, visa fa­
zer aparecer, parecer o indizível, o que assedia o discurso do sujeito,
mas que, em si, permanece rebelde ao enunciado. Acredito poder
achar um exemplo no próprio Freud e sem forçar muito as coisas; vol­
temos ao homem dos ratos; como opera Freud com ele no que se tra­
ta de localizar o gozo, isso se faz imediatamente. A partir do momen-
As modalidades da transferência 1 7

to e m que o homem dos ratos lhe relata a história d o capitão cruel,


Freud se dá conta do que ele designa como a expressão de um go­
zo ignorado por si próprio. Freud logo vê que esse gozo horrífico que
está vinculado a esse significante capitão cruel concerne ao sujeito.
Ele porém nao faz uma interpretação selvagem. A interpretação selva­
gem teria sido lhe significar: pois bem, meu velho, se você pudesse
se ver, você saberia que de fato, esta representação do suplício lhe
causa júbilo. Freud não diz nada disso; ele escuta e segue. Ao contrá­
rio, qual é a interpretação freudiana para o homem dos ratos, no fim
da análise? Há duas coisas. Primeiramente, ela se fixa ao significante
pai. Lacan obseNa que isso é o contrário da exata história do sujeito.
Quando ele diz ao homem dos ratos: tudo se deve ao conflito com
seu pai por causa de uma dama, isso é inexato, mas o alcance des­
sa interpretação atinge o significante pai. Em segundo lugar, do lado
da pulsão, Freud se exprime em tennos de ódio, ou melhor de confli­
to ambivalente, o conflito entre o amor e o ódio. Eis os dois ingredien­
tes da interpretação freudiana do homem dos ratos. No lugar da inde­
terminação semântica do início da análise, ele põe aí o ódio · ao pai.
O procedimento de qualquer maneira é muito interessante: de saída,
ele não disse nada do gozo patente, visível, mas ele consegue colo­
cá-lo em correlação com a história suposta do sujeito, ou seja, com
o significante, não qualquer um, mas aquele que implica a castração.
Vou passar agora a considerações um pouco diferentes. Depois
de ter falado da modalidade significante e da modaJidade objeta! da
transferência, gostaria de fazer algumas observações rápidas sobre
as variantes da transferência, segundo as estruturas neuróticas, histe­
ria e obsessão. Os neuróticos têm uma inclinação a transferência,
uma inclinação a correlacionar o sintoma à transferência, é o que os
torna analisáveis. Podemos nos perguntar como cada uma das gran­
des vertentes da neurose reflete essa estrutura da transferência. Co­
mo o histérico e o obsessivo se situam em relação ao sujeito supos­
to saber e em relação ao objeto que dá o sentido.
É preciso dizer que na neurose obsessiva, a transferência entra
bem como uma luva Entra bem como uma luva porque o obsedado,
é o homem do pensamento, é a máquina de pensar. ª É por isso tal­
vez que ele gosta tanto de informáticaª . Emprego máquina de pensar
em relação à máquina psicótica O obsessivo não é psicótico, absolu­
tamente, mas a associação livre para ele é uma pechincha; não so-
1 8 A transferência e a cura

mente se lhe autoriza, mas se lhe pede para fazer o que é sua própria
inclinação: pensar Naturalmente, isso não é tão simples, já que ele
pensa mais para ocultar seus verdadeiros pensamentos e é o que fre­
quentemente dá a impressão de que ele faJa para não dizer nada, a
impressão de palavra vazia, ruminativa, desabitada. É um grande es­
forço para impedir o sentido de aparecer, mas ele volta de galope,
nos próprios pensamentos que a ele se impõe, apesar dele, em seu
sintoma. Nesse sentido, este é homogêneo à regra de fazer passar
ao significante, até ao ponto em que se poderia dizer que o sonho
do sujerto obsessivo é: nada a saber: Eu o digo assim, porque isso
me permitirá fazer simetria com o histérico. Nada a saber é um sonho
de transferência: cobrir o referente pelo significante. Isso quer dizer
que ele não se presta à interpretação, aquela que visa o reaJ. Como
se sabe, o obsessivo não é mutuante. Ele tem um lado retentivo em
muitos aspectos e mesmo a respeito do que seria uma oferta a inter­
pretar. Todo o seu esforço é para reduzir a dimensão do sentido, na
medida em que esse sentido se opõe à significação, se opõe à se­
mântica, na medida em que o sentido é o que vem do objeto. O ob­
sessivo trabalha para o signo, contra o sentido, para o signo, no sen­
tido de signo linguístico. Isso implica uma posição em relação ao
Outro, ao desejo do Outro, que é uma posição de anulação. Resulta­
do, o analista com o qual o obsessivo sonha, é um anaJista morto. É
outra coisa que o pai morto já que é uma verdade transindividual que
o pai seja o pai morto. O Outro com o quaJ sonha é um outro que
não mexe, que se mantém morto, ou seja, a interpretação o incomo­
da, como um fracasso do pensamento, e isso se torna imediatamen­
te um osso duro de roer para o trabalho mental. Poder-se-ia absoluta­
mente aplicar-lhe quanto à interpretação, a frase de Cirano de Berge­
rac à respeito das piadas: ºEu mesmo me sirvo com bastante verve,
mas não permito que outro as sirva a mimº . Observem por exemplo
Theodor Reik que se propõe ilustrar em si mesmo a obsessão e que
diz ter-se feito uma divisa do conselho de Shakespeare: uPergunta a
teu coração o que ele sabeº . Ele pergunta a seu coração. Ele não per­
gunta ao analista. Todo esse trabalho para fazer passar todo o gozo
ao significante, e para denegar a interpretação - que é idêntica ao de­
sejo do analista - implica que o obsessivo viva sobre o modo do já
terminado. Com efeito, o que se inscreve permanece como os livros
das bibliotecas. Mas a divisão ocultada de um lado volta do outro e
As modalidades da transferência 19

torna necessário uma outra testemunha, já que o que está escrito, su­
põe ser oferecido a um olhar, donde a necessidade de olho universal
colocado sobre todas as ações e seu gosto pela história com H mai­
úscula. Muitos traços de caráter entram nessa dimensão, especialmen­
te o temperamento de arquivista. A manobra de transferência, eviden­
temente, está em identificar o analista em relação à morte. Em Reik é
o olhar da posteridade por definição silencioso. É o objeto que con­
vêm por excelência a essa modalidade da transferência que consiste
em se manter na ou em restaurar a alienação significante, em privile­
giar o significante contra o gozo e em fazer do Outro um lugar desabitado.
Na histeria é muito diferente, ainda que, afinal de contas, a obses­
são seja uma variante da histeria; é que o sujeito histérico, se presta
a interpretar, oferece seu ser à interpretação. É preciso dizer também
que a demanda do amor é uma demanda de ser. A histérica, diz La­
can, exige o ser, e o seu tormento é experimentar sua falta a ser. Quan­
to mais o sujeito é histerizado, mais ele tem o sentimento do seu vazio
e de sua falta a ser. Este sujeito falta a ser, o demanda.e ao Outro.
Contrariamente ao obsessivo, ele dá, portanto, lugar ao intérprete, e
mais, ele o invoca desesperadamente. Quer dizer que o sujeito histéri­
co situa-se decididamente na transferência sobre o fundo da separa­
ção, numa relação ao desejo do Outro que é um pedido de ser. Esta
posição parece mais favorável à análise. De uma certa maneira seu
ponto de mira é o mesmo da interpretação, e de fato, a única coisa
que interessa ao sujeito histérico é o intervalo significante, não é o sa­
ber, não é o que se articula em significante, ainda que o seu discur­
so produz saber - é o que se diz entre as palavras, nas entrelinhas e
que se oferece a ser decifrado; é isso que cativa, a verdade rebelde.
Ele chama a interpretação e não se toma pelo sujeito suposto saber..
o sentido. Ele demanda ao Outro, que lhe é preciso vivo, presente
e cuja falta o coloca em sérias dificuldades. Entretanto, ainda que se
preste a interpretar, seja pela profusão dos seus vaticínios, seja pelo
silêncio que presentifica o mistério de seu ser, o problema é que com
esse ser ele faz desafio ao sujeito suposto saber. Se o sonho do ob­
sessivo é nada a saber, o sonho da histérica é de preferência: saber
nada; levar o sujeito-suposto-saber a se render, a revelar sua impotên­
cia para saber o que ele é; levar a articulação do inconsciente até o
limite onde se revela que todo o ser não pode se dizer. Nesse senti­
do ele coloca na posição de mestre o sujeito suposto verdade. Isto não
20 A transferência e a cura

torna menos difícil ,terminar sua análise, porque sua posição é a de


demonstrar e de mostrar ao mundo que seu ser está sempre alhures
e que anos de interpretação o deixa apesar de tudo inatingível. Ele
aliás está certo e neste sentido ele nos presentifica algo da estrutura,
a saber, que tudo não pode se dizer, que há o impossível de dizer.
Mas o fim da análise consiste de todo modo a passar ao ato. E quan­
do Lacan diz que o analisando é preciso se fazer ser, isso supõe que
seja interinado este limite-destrtuição, enquanto q ue seu desafio histé­
rico se sustenta apenas ao fomentar, sempre de novo, o sujeito supos­
to saber.
Standards e não standards 1

A pro pósito das e ntrevistas p relim inares . d o co ntrole


e da d uração das sessões.

Este texto , red i g i do po r C olette So ler,


fo i preparado com a col aboração de Jacques Adam,
Jos eph Attié, G uy Clastres, Hugo Freda,
F ranz Kalte n beck, Jean Pierre Klotz, G uy Leres , R o n aldo Portillo,
Antonio Q u i n et de A nd rade , C harles Schreiber,
Françoise S h rei ber, Esth etla S o l an o S u arez,
A n n i e Staricky, H erbert Wach sberger.

Standards e não standards é um título que adquire seu sentido a


partir da polêmica introduzida na psicanálise pelo ensino de Jacques
Lacan. A questão que suscita é do Outro , a IPA, da qual extrai a opo­
sição de seus termos. De fato é a IPA que , por haver promovido uma
regulamentação standard , susceptível a seus olhos de identificar a
psicanálise , acreditou poder lançar fora do campo da psicanálise,
como dissidente , não standard , a própria prática de Jacques Lacan.
No entanto , Lacan havia partido de um retorno a Freud , ou seja , de
uma exigência de ortodoxia. A questão, reformulada nos termos
do começo de seu ensino, torna-se: freudiana ou não freudiana.
O q ue é que está em jogo? Algo essencial. Trata-se, nada menos
que de definir as condições requeridas para que uma psicanálise se­
ja uma psicanálise. Ou, de outra maneira, em que consiste o caráter

1
Artigo p u bl icado i n Como se analisa hoy?, Ed. Manantial, Buenos Aires, 1 987,
p.1 00- 1 23. Revisão de Maria Luiza Motta Miranda, referenciada na tradução de Flora
Emilia Nascimento de Queiroz, publicada in Só Depois, do Colég io freudiano de Vitória.
22 A transferência e a cura

analítico, de uma prática? Primeira resposta, evidente: a base de uma


psicanálise é o procedimento freudiano. Mas ocorre que o procedi­
mento inventado por Freud fez surgir uma dissimetria: o analisando
tem sua uregra fundamental\ o analista não. O primeiro não fica sem
saber o que tem que fazer, já que a associação livre é a exigência,
podemos dizer, standard, que define o seu trabalho. Nada semelhan­
te existe do lado do psicanalista
É certo que Freud define sua função com um termo - interpreta­
ção, com que se prescreve uma finalidade - a decifração, a qual. se
opõe às duas finalidades maiores de domínio: governar e educar. No
entanto, isto nada revela sobre o que deve dosar a intervenção do
analista, sobre como efetuar esta função-interpretação. De fato, a ques­
tão sobre o que deve regulameniar a intervenção do analista apresen­
ta-se, de imediato, para os psicanalistas, ficando bem claro que se
a associação é chamada livre, a interpretação não o é. Tem na trans­
ferência suas condições, embora deixe à discrição do analista os mo­
mentos, o número, os termos e o campo de suas intervenções; a as­
sociação, em troca, não deixa ao analisando escolha alguma e, a de­
termina. O como fazer? fica a cargo do analista, pois não há regra fun­
damental que o diga.
Há pois, inscrita no procedimento freudiano, uma lacuna entre o
saber e o analista, quanto às finalidades e a efetivação de sua inter­
venção. Esta lacuna prepara no núcleo do dispositivo analítico o lugar
da impostura virtual. O ensino de Lacan não deixou de rodeá-la e de
reformulá-la; e, desde o início, os analistas afirmaram que a sentiam.
Neste ponto, a história o registra, localizaram, em primeiro lugar, o
modelo - solução individual - e depois o standard - solução institucio­
nal. Isto significa que, na falta de saber quando e como fazer, esforça­
ram-se por fazer-como. Da mesma forma que Freud, inicialmente, se­
gundo afirmações dos seus primeiros discípulos; posteriormente, co­
mo as regras instituídas o prescrevem para cada um, depois de pres­
crito para seu didata.
Lacan descarta esse como-os-outros e sua pretensão de suprir a
garantia que falta, com um: usimples hábitos•. Une-se nisto a Freud
que jamais evocava sua técnica sem o cuidado de alertar contra a
imitação, esclarecendo que não fazia dela uma regra Trata-se da por­
ta aberta a uma prática sem regras? Pergunta mal colocada que o
ensino de Lacan nos permite corrigir : a verdadeira é saber o que as
Standards e não standards 23

justifica A pergunta não é standards ou não standards, mas eficaz, ou não.


Lacan responde às perguntas formuladas pela prática analítica a
partir dos próprios fundamentos da experiência, em relação aos quais
os hábitos e pressões de grupo carecem de peso, ainda que de não
efeitos. Assim, em sua prática, modifica de fato o tempo das sessões,
em função de um ponto essencial de doutrina Também mantém, por
exemplo, a regra de deitar o paciente. Por que? Freud a justifica vaga­
mente como favorável à associação. Lacan a fundamenta, desde o iní­
cio de seu ensino, em sua diferenciação do outro imaginário, o seme­
lhante, do Outro da palavra, ao qual a rejeição frente a frente deixa o
campo livre. Assim como acrescenta às regras estabelecidas, a das
entrevistas preliminares, e modifica aquelas outras, prévias, que orga­
nizam os controles. Abandonada, mantida, promovida ou modificada,
no ensino de Lacan, uma regra é julgada por seus fuf'!damentos e
em função das finalidades da experiência.
Desde então, toda regulamentação heterogênea à experiência re­
vela-se como o que é: irrisão da sua legalidade. Os standards devem
ser medidos em relação ao que a própria psicanálise estabelece.

O nascimento dás standards

O modelo berlinense

Recordemos, em primeiro lugar, alguns fatos e datas sobre a gêne­


se dos standards.
No congresso de Budapeste em 1 91 8, Freud, em sua comunica­
ção, uos caminhos da terapia psicanalíticaº , previa a aplicação da psi­
canálise às massas populares. Em 1 920, Eitington convence a associa­
ção berlinense da necessidade de fundar, em Berlim, uma policlínica
para o tratamento psicanalítico das enfermidades nervosas. Esperava,
deste modo, e, logo depois da efêmera experiência de Ferenczi em
Budapeste, transformar em realidade a previsão de Freud.
O projeto terapêutico da clínica foi aprontado rapidamente: um
analista consultor examina e distribui as solicitações. A sessão dura
de quarenta e cinco m�nutos a uma hora, três ou quatro vezes por
semana. A tentativa de reduzir as sessões a meia hora não foi consu­
mada; também fracassaram as tentativas para encurtar a duração
24 A transferência e a cura

das análises, e a solução foi adotar as ªanálises fracionadasº : alcança­


do o objetivo terapêutico, a análise seria suspensa, porém o pacien­
te poderia retomá-la, se julgasse sua melhora insuficiente.
Paralelamente, para responder a esta extensão da psicanálise e
a partir da abertura da clínica, cogitou-se o projeto de formar os analis­
tas da segunda geração. Procedimentos uniformes de formação ad­
quiriram sua forma quase definitiva desde 1 924. Foram dados como
modelos à comunidade analítica e são, essencialmente, os que se
mantém até nossos dias. Assim, Eitington foi o verdadeiro promotor
dos standards. Neste contexto surgiram, para confronto, duru; ques­
tões: a adequação da cura às urgências terapêuticas e,contrariamen­
te à opinião de Freud, a formação analítica passa a subordinar-se à
formação médica, sendo administrada pela instituição que, por sua
vez, cria para isso a comissão de ensino. A formação é tripartida: didá­
tica, ensino, controle. Em seus três aspectos está submetida à autori­
zação e está regulamentada e controlada no que se refere a sua or­
dem, sua duração, seu ritmo e seus agentes.
Em 1 925, no congresso de Bad Hamburg, Eitington propõe ampliar
o projeto e elaborar standards internacionais. Para isso, e segundo
proposta de Rado, nomeia-se uma comissão internacional. Esta apre­
sentará, em 1 932, no congresso de Wiesbaden, as regras de admis­
são e de formação de candidatos que serão ampliadas pelas de Lu­
cerna em 1 934. No essencial, retomam a forma berlinense, sempre em uso.
Seu interesse para nós radica nos novos, ou novamente acentua­
dos, índices de uma orientação e de pontos de resistência Reteremos
cinco deles:
1 . O surgimento de novos critérios de seleção. Não só dever-se-á pres­
tar atenção, se necessária, à qualificação profissional, mas à integra­
ção do caráter, à maturidade da pessoa, à estabilidade do uego u , à
capacidade de u insighe.
Vemos aqui que a ego-psycho/ogy, como tendência data da pré­
guerra
2. Insiste-se no compromisso necessário e prévio do candidato, de
não se valer da sua formação antes de haver recebido o aval da co­
missão de controle. Sinal, sem dúvida, de que se quer acabar com
algumas veleidades de indisciplina.
3. Admitem-se não médicos, porém sob tutela: não poderão decidir
a análise, mas receberão seus pacientes de um médico. Compromis-
Standards e não standards 25

so, pois, com a objeção.


4. Será admitido somente um candidato estrangeiro em um instituto,
em conformidade com seu instituto de origem. Prepara-se já a emigração.
5. Por último, a comissão internacional terá o poder de autorizar e su­
pervisionar os institutos e centros de formação. Assim completa-se a
construção da pirâmide internacional que será tão propícia a difusão
de um credo comum, prontamente ego-psicológico.

Oposição e Crfticas

Como foram recebidas essas normas ?


Encontram-se dois tipos de objeção:
Por um lado foram questionados quanto a seus fundamentos ana­
líticos, especialmente pela escola húngara. F erenczi e Rank crri:icaram 1
por exemplo, a oposição didático-terapêutico. Vilma Kovacs protesta­
rá, em 1 935, contra a disjunção didata-controle, enquanto que1 à mar­
gem dos congressos oficiais, prosseguirá a discussão sobre a dupt2
polaridade do controle: como elucidação das dmcu!dades do analis­
ta kontrol/analyse e como aprendizagem técnica Analysenkontro!!e.
Por outro lado, as crfticas americanas foram completamente de
outra ordem, e referiam-se ao poder institucional. Os membros ameri­
canos recusavam a ingerência do comitê internacionaJ de formação.
Este protesto, já expresso em 1 936, em Marienbad, terminou na ruptu­
ra com a IPA, 1 938, no congresso de Paris. A associação americané\
que então cria uma comissão de standards profissionais, produz, nes­
sa ocasião, um texto de treze páginas sobre a formação cujas obriga.­
ções e rigor ultrapassam em muito o que conheciam as sociedades
européias.

O modelo americano

Em 1 949, no congresso de reconciliação, em Zurich, o equilíbrio


de forças modificou-se. A América tornou-se então o foco da ativida­
de analítica, a língua inglesa a da psicanálise e a ego-psychofogy é,
desde então, a corrente dominante. A American Psych oanafytic As­
sociation instala sua liderança sobre o modelo recusado em i 938 -
da Comissão Internacional.Os standards permanecem iguais. São aque­
les aos q uais Lacan aponta explícita e especialmente em "Variantes
26 A transferência e a cura

da cura-tipo u . Trata-se do modelo berlinense enrijecido pelos critérios


de adaptação da ego-psychology, que completam a colusão da psi­
canálise com a psiquiatria e a higiene mentaJ. A prova disso é um tra­
balho encomendado em 1951, chamado de revisão das práticas exis­
tentes nos institutos, e que culminou com a promulgação, em 1956,
dos standards mínimos para a formação psicanalítica dos médicos.
O plano de formação não satisfez a ninguém. É o que revela, em
1 960, o Comitê de ensino, logo após o estudo dos programas de
uma vintena de institutos. Lamenta-se o número crescente de candida­
tos não analisáveis e inaptos, dos métodos de seleção ineficazes (for­
mulários de candidaturas, testes psicológicos, entrevistas de grupos) etc.
Porém, aos efeitos produzidos pelo enfoque avaliativo e seletivo,
a Instituição não sabe responder, a não ser redobrando seus próprios
critérios. Deste modo, e sempre para obter mais objetividade, instalar­
se-ão, por volta de 1964, comitês de seleção encarregados de super­
visionar e concluir as informações redigidas pelos anaHstas, sobre en­
trevistas realizadas com um candidato. Chega-se então a um fenôme­
no tão aberrante como este: a eliminação, às vezes, de até 90% dos
candidatos apresentados com opinião favorável do anaJista. A critérios
aperfeiçoados, falta candidato! Sob essa ótica, não parece que os ins­
titutos tenham avançado muito desde então.

A falta de fundamento

Esta rápida revisão histórica sugere algumas observações.


Vemos, em primeiro lugar, que a preocupação em definir standards
que permitam regulamentar a prática analítica foi sempre uma preocu­
pação da comunidade internacional. Os problemas de formação de
analistas e as questões concernentes ao tempo em psicanálise estive­
ram, desde o início, no centro dos debates. Surpreende notar que qua­
renta anos mais tarde constituem os mesmos obstáculos, uma vez
que, a respeito deles, Lacan pôde aparecer como um insubmisso da
psicanálise. Em todo caso, é patente que o esforço da Associação In­
ternacional para controlar a prática analítica tomou, como meio de
ação, a standardização dos procedimentos de formação. O objetivo
é claro e lógico: para regulamentar a psicanálise, regulamentar o psi­
canalista. A Instituição colocou-se, desde o começo, como o agente
desta regulamentação e como o sujeito suposto saber as normas.
Standards e não standards 27

Como não observar, na implantação dessas normas, o peso de


razões externas e a falta de fundamento intrínseco?
De tudo isso vemos que as razões provenientes do campo da psi­
canálise em extensão foram primordiais. Assim, estavam preparados,
em 1 920, para mudar os hábitos de tempo e para coord�nar uma for­
mação rápida, a fim de atingir um maior número de pessoas o mais
rapidamente possível. Da mesma forma é o realismo, inclusive o opor­
tunismo que, no contexto político da década de pré-guerra, acerta as
condições de emigração para os analistas e sustenta o projeto de in­
ternacionalizar a formação. Quanto ao diálogo América/Europa, fica
bem claro que es�á pautado pela relação de torça institucional. Daí a
observação de Lacan em 1 953: A manutenção das normas cai mais
11

e mais no orbe dos interesses de grupo, como se manifesta nos Esta­


dos Unidos onde esse grupo representa um poder. Então se trata me­
nos de um ºstandard" que de um ustanding". (UVariantes da cura-tipo",
in Écrits , Paris, Seuil, 1 966, p. 327) .
Esses fenômenos surgem, sem dúvida, da inevitável isenção da
psicanálise no mundo. N o entanto, sua contingência histórica, junto
à falta de critérios analíticos, acentua por contraste a notável estabilida­
de do modelo proposto, assim como a exigência incondicional a ele
ligada. Como se o legalismo mais contingente e inerte concentrasse
em si mesmo a própria dádiva da experiência. Surpreende ver como
as críticas feitas em nome da psicanálise e pelas personalidades
mais eminentes no interior da IPA (cf. Glover, citado a respeito por La­
can) - não afetou os procedimentos instituídos. É de suspeitar-se que
uma forma de entrada tão definitiva e tão rebelde à evolução deve de­
pender de um modelo que já estava aí e que está sustentado por nu­
merosas razões de estrutura: precisamente o que F reud reconheceu
na Igreja e no Exércrto e que estabelece vínculos diferentemente da
psicanálise (cf. Situation de la psychanalyse et formation du psycha­
nalyste en 1 956, in Écrits , p. 475) . Discurso do Amo, dirá Lacan.

Entrevistas preliminares

O algorrtmo da transferência

Não há entrada possível na análise sem entrevistas preliminares,


28 A transferência e a cura

d izia Lacan em 1 971 , em uma série de conferências intituladas Le sa­


voir du psychanalyste. Historicamente. esta prática é uma inovação.
É certo que, no começo de uma análise, a todo analista sempre foi
colocada a questão de aceitar ou não a demanda feita, e esta aceita­
ção sempre teve também suas implicações diagnósticas; é o que La­
can formulava com um ºa quem deitamos ª . Mas das entrevistas preli­
minares esperava-se outra coisa.
As entrevistas preliminares constrtuem a modalidade técnica q ue
responde a: ª no começo da psicanálise está a transferênciaª Proposi­
tion de 09 octobre 1 967 sur /e psychana/yste de / 'Éco/e, in Scili­
cet, nº . 1 , Paris, Seuil, 1 968, p. 1 8. É preciso partir daí: uma psicanáli­
se é o trabalho da transferência e nas entrevistas preliminares o que
está em jogo é fazer trabalhar a transferência.
Entre a q ueixa que pede alívio e a entrada em análise que supõe
o trabalho do analisando, não há continuidade. Aos analisandos, d izia
Lacan, ªtrata-se de fazê-los entrar pela porta. que a análise seja o u m­
bral, que haja para eles uma verdadeira buscaº . Esta busca: de que
é que querem livrar-se? Um sintoma. ( ... ) Eu faço com que essa bus­
ca os leve a fazer um esforço ... É preciso, de fato, que algo os empur­
re. Conférence à Yale University in Sci/icet, no. 6/7. 1 975, p. 32.
Pois bem, só o sujeito suposto saber, como pivô da transferência, per­
mite situar aquilo que faz do sintoma uma ºdemanda verdadeira11 De •

fato, o sintoma torna-se analisável somente com a condição de incluir­


se na transferência.
Partamos do algoritmo da transferência: onde o S , ºSignificante da
s ____..,_ Sq
s(S 1 , S2... Sn )
°
transferência , escreve a manifestação sintomática do sujeito que o
paciente apresenta ao analista e cuja demanda mantém. Notemos que
leva essa manrfestação a um analista q ualquer (Sq) isto é reduzido à
1

sua definição de intérprete, de decrfrador. A própria direção até o de­


cifrador, marcada pela flecha, implica em uma dupla postulação: fica
suposto, por um lado, o caráter cifrado do sintoma (decifração supõe
cifração) e, por outro lado, a representatividade do sintoma É dado
de experiência que o sintoma não conduz a análise a não ser q uan­
do questiona, quando o analisando capta esse incompreensível cor­
po estranho como próprio e portador de um sentido obscuro que o repre-
Standards e não stan dards 29

senta como sujeito desconhecido para si mesmo. Neste sentido, o sin­


toma é questionamento do sujeito, ou melhor representante do sujei­
to barrado e não uesgotado por seu cogito u Subversión du sujet et
dia/e ctique du désir, in Écrits , p. 81 9. Deste modo, pela transferên­
cia, o sintoma é posto em forma de pergunta, pergunta do sujeito,
no duplo sentido do partitivo.
No entanto, a transferência assim é frequentemente, para dizer a
verdade, prévia à análise. Está aí desde que o sintoma seja apenas
pensado como analisável. Poder-se-ia quase falar de transferência
com a psicanálise. Seria preciso, evidentemente, reservar aqui um lu­
gar aos casos particulares, e sobretudo à exceção, Freud como inven­
tor da psicanálise.
O momento da busca da análise é aquele em que um particular,
analista qualquer, substitui-se à psicanálise em geral. A partir daí res­
ta ainda por produzir a fixação na transferência e fazê-la trabalhar.
É preciso, de fato, que esse analista venha a sustentar para o ana­
lisando a função de sujeito suposto saber. Ocorre, sabe-se, que o ana­
lisando tenha se enganado de direção e que a função esteja para ele
já fixada em outra parte. A nível fenomênico, frequentemente, é o
amor de transferência que testemunha essa fixação, porém o fenôme­
no de estrutura é outro: é uma trans'ferência do lado do anaJista - no
sentido de deslocamento - do saber que se supõe poder responder
à pergu nta. Efeito de histerização induzido, Lacan a assinala, pelo dis­
positivo anal�ico. A transferência fixada no analista é uma transferên­
cia primariamente demandante: demanda ao O utro que responda. A
análise supõe ainda que dessa transferência demandante se faça uma
transferência produtora, pelo desvio da chamada associação livre. O
analisando está , na análise, no lugar daquele que trabalha - esforço,
diz Lacan - para que se elabore o saber que responda a pergunta
do sujeito; enq uanto que a operação do analista consiste em provo­
car esse trabalho. O que escreve o algoritmo do discurso do analista:
a --:i-- $
82 81
(Radiophonie ín Scilicet, no. 2/3, i 970, p. 99) .
São essas condições de análise - transferência analítica (ou seja,
pergunta do sujeito) , fixação da transferência e trabalho de transferên­
cia - as que dão às entrevistas preliminares seus objetivos para cadâ
caso. Nada a ver com a medição de uma capacidade.
30 A transferência e a cura

O que é preciso sublinhar, de fato, é a incidência do analista na­


quilo que se quer obter. O ato analítico está em jogo a partir dessas
entrevistas; localiza-se aí, no lugar da causa, e seu efeito é o empu­
xo ao trabalho da transferência. Não podemos desconhecer, desde
o começo a ação do analista quanto a esse empurrão provocado por
Lacan. A adequada inserção do paciente na transferência não é da
ordem da aptidão. Depende, por certo, da posição do sujeito em sua
relação com o Outro ! porém, não está menos determinada pela res­
posta do ºpaternaireº analista
A esse respeito, Freud está do lado de Lacan, contra a ego-psychology.

Aliança terapêutica e analisabilidade

Fora do campo do ensino de Lacan, a prática das entrevistas pre­


liminares não prossegue. Não obstante, em toda parte está presente
o problema dos requisitos para entrar em análise. A ego-psycho/ogy
0
promoveu duas noções que são a ºaliança terapêuticaº e a analisabili­
dade11 .
Seu aparecimento nos anos 60 responde, evidentemente, às difi­
culdades criadas pela própria prática desses ego-psicólogos. O reen­
contro desse estorvo provoca a pergunta: o que é que condiciona
uma psicanálise? Resposta: a aliança terapêutica é aquilo sem o que
a análise não é possível. De que se trata? a idéia foi introduzida, sem
que existisse o termo, por Sterba, em 1 934. A expressão uAliança tera­
pêutica" foi proposta, ao que parece, em 1 956, por Zetzel, enquanto
que em 1 965, Greenson deu preferência ao termo ualiança de trabalho".
De um autor a outro há variações. Greenson a apoia no eu pen­
sante do paciente, enquanto para Leo Stone pressupõe o grupo de
funções evoluidas do eu, e nenhum se situa exatamente do mesmo
modo em suas relações com a transferência. Mas pouco importam
essas variações. A concepção desta aliança necessária repousa na
idéia de que a transferência é homogênea com a vivência patogênica
do paciente, caracterizada pela presença de aspectos uregressivosº .
Por conseguinte, é necessário algum outro modo de relação do pacien­
te com o analista, um modo sadio, de onde possa ser analisada a
transferência. A aliança terapêutica não só é diferente da transferên­
cia, como é um ponto hipotético fora dela, que pod�rá ser-lhe opos­
to, e de onde somente poderá ser reduzida.
É evidente 1 em todos esses trabalhos, que não é a transferência !
Standards e não standards 3 1
mas o aparecimento da aliança, q u e marca a entrada em análise e
a analisabilidade do paciente. Surpreend ente inversão, pois, da po­
sição freudiana, estando a transferência e a analisabilidade em rela­
çã? inversa uma a outra, a primeira termina por aparecer como o
obstáculo à cura. Contrariamente, aliança e anaiisabilidade correm
paralelas.
Q uanto ao mais, é nos mesmos anos sessenta que leitor das
três grandes revistas am ericanas, lnternational Journal of Psycho­
analysis, Journal of the American Psichoanalytic Association, Psycho­
0
analytic Quaterly, vê aparecer esse vocábulo novo: analisabilidê1-
de 0 , que deve sua promoção aos seríssimos trnbalhos do ºKrís Study
Group 11 de N ova York, dirigido por Loewenstein, mas cujo êxito de­
ve-se sobretudo à preocupação em restringir as aplicações da p�t­
canálise e em produzir um esquema de seleção que perm itisse b�­
trair o melhor candidato que houvesse.
O raciocínio é o seguinte: o paciente, em análise, enfrenta urna
situação particular, sem dúvida, mas q ue se inscreve em uma série
de experiências precedentemente encontradas. A analisabilídacfo
põe à p rova a capacidade de seu eu para enfreni:ó-las. A b iograíia
do paciente permite calcular como as receberá. O acento prin10r­
0
diai já não está colocado sobre o wist1 ª inconsciente, mas sotre::
o "will ° de um ªq uerer ser analisado 11 próprio do eu autônomo.
Assim, tanto na analisabilidade como na é:lliança terapêutica, ir;::;­
ta-se sempre do eu autônomo como condição da psicanálise. /-\o
mesmo tempo supõe-se q ue a análise depende de uma aptidão,
de um prévio talento pessoal do analisando, e cujo diagnóstico ime­
diato deveria permitir delinear o prognóstico de uma experiência
ainda por fazer, então, não a transferência, m as o eu fora da transfe­
rência, a partir do qual a psicanálise poderá soliar-se como o que
poderemos chamar um trabalho contra a transferência._ U m sinal
positivo, no entanto, não só esta analisabilidade parece inexequível
aos p róprios autores, red uzida à critérios ridículos ou problemáticos,
m as que, além do m ais, parece que o analisável far-se-á cada vez
m ais raro. Não poderiam essas perplexidades levar ao abrupto ªno
começo da psicanálise está a transferênciaª de Lacan?
Poderia ser o retorno deles a Freud.
32 A transferência e a cura

Freud com Lacan

Na verdade, alguns textos de Freud, escalonados desde Estudos


sobre a Histeria até os textos agrupados no volume Técnica Psicanalí­
tica, nos dão uma idéia sobre o q ue este exigia na entrada de uma
cura. Em Os leigos podem analisar?, lembra o •acordo do paciente"
e a ª preparação para a curaª , que orienta no sentido de ªfazê-lo acei­
tar a regra fundamental, fazendo-o perceber que sabe mais do que
diz º . Não é isso, por certo, delinear, •explicitamenteª que a regra funda­
mental implica que se suponha um saber ao analisando, cuja manifes­
tação é esperada pelo atalho da associação livre, e que, ao fazer en­
trar o paciente nessa suposição, é que ele é introduzido na regra?
Em O I nício do Tratamento, Freud evoca uma técnica que lhe é
nova, ªo tratamento de ensaioq . muito próximo, em sua inspiração, das
entrevistas preliminares e que, em todo o caso, acentua a idéia das
condições prévias. Reteremos disto duas determinações:
Uma refere-se ao que se deve esperar do paciente: que se ape­
gue, diz Freud, ao seu analista.
A outra refere-se à posição do próprio analista. A respeito disso,
Freud esclarece que durante o tratamento de ensaio não comentará
os dizeres do paciente •mais do que o indispensável para a continua­
ção do relato ª . Frequentemente voltará sobre essas idéias de que as
primeiras comunicações não devem ser feitas antes de haver estabele­
cido uma poderosa transferência
Sublinhemos, em primeiro lugar, q ue Freud situa as condições
de entrada na cura unicamente em relação à questão da transferência.
Em segundo lugar, podemos reconhecer claramente distintas a neces­
sidade de fixação da transferência (apego ao médico) e a colocação
à prova do trabalho de transferência (aplicação da regra) . Ao que se
acrescenta uma indicação técnica notável: Freud dá lugar a certo silên­
cio do analista. Se a regra implica o saber analisando, o fato de sus­
pender as revelações do analista situa o saber deste em uma posição
particular, quase de encobrimento. É um saber que nem se expõe,
nem se manifesta, que permanece, por conseguinte, apenas na reser­
va, digamos ... hipotético.
É surpreendente notar que Freud correlaciona o apego transferen­
cial do paciente precisamente com esse silêncio questionador do ana­
lista; o mesmo que Lacan reconhecerá em Sócrates, como antecipan­
do a função do analista como sujeito suposto saber. É então correto,
Freud com Lacan.
Standards e não standards 33

Os controles

Os controles existem desde que há analistas. Parece, inclusive,


haver precedido a criação do termo, se nos limitarmos os primeiros
psicanaiistas que rodearam Freud.
Trata-se de uma prática que Lacan n unca questionou e cuja neces­
sidade, inclusive, sublinhou. O que se discute em seu ensino é a fun­
ção institucional do controle, tal como foi codificada pela lPA. Ao mu-­
dar os modos da habilrtação, Lacan mudou também e lugar e a �\.ffi­
ção do controle.

O controle e a instituição

Essa mudança tem como pivô seu: 0 analista se autoriza por si


11

mesmo u .
O único princípio certo a delinear, diz Lacan, e tanto mais por te,r
sido desconhecido, é que a psicanálise se constitui como didática pe­
lo querer do sujeito, o q ual deve ser advertido de que a anáHse ques­
tionará esse querer, na mesma medida da aproximação do deseJc
que encobreu . (Note adjointe à u/ 'A cte de Fondation", in Annualre
de /'ECF, P.24). Ao estabelecer esse princípio na base da fundação
de sua escola em 1 964, Lacan coloca no centro do probierna da foi·­
mação do analista a própria questão de seu dese,_!c:.. Ssu prolongE:­
mento em um 11quererª - que pode ser o de tornar-.se analista - depsn­
de apenas de uma única formação; a que Lacan escreve assim: ;:A
psicanálise, didática11 de nossos antecedentes, am Écrits, p. 7i ) ;
(

aqui a vírgula, em inciso, apaga a dicotomia habitualmente concebi­


da em psicanálise pessoal e psicanálise didática lsto é, que a insfüut­
ção não é, não deve ser, não poderia ser o agente que institui o psica­
naJista.
O que não quer dizer que a instituição se desobrigue de garantir
a formação. Somente desloca seu ponto de aplicação. Uma vez que
Lacan reconheceu e colocou que em sua atitude o analista, se é analis­
ta, não se vale de nenhum O utro, extraiu as consequências; resta à
instituição garantir o analista ºque tenha fetto suas provasº . Garantia
pois, mas retroativa, e não caução antecipada, como é o caso dos
candidatos quando são selecionados na entrada da psicanálise ou
do controle.
34 A transferência e a cura

A não ser a condição obrigatória de uma habilitação, o controle


se une ao campo da psicanálise em prol do que dependa a formação
do analista. Encontra-se, a partir de então, profundamente modifica­
do. Para fazê-lo ter vaJidade, formulemos, a propósito do controle, qua­
tro simples perguntas, tanto às práticas standards como à Escola que
Lacan criou, em 1964, e voltou a lançar, para uma contra experiência,
em 1981: para que, para quem, quando e como?
Uma olhadela nos documentos contemporâneos da IPA, especial­
mente a uma informação apresentada em 1981, pré IX congresso so­
bre o didático, por Anne-Marie Sandler, a propósito da 'Seleção e fun­
ção do analista didático na Europaº , prova, ser necessário, as constân­
cias do fenômeno apesar de algumas breves variantes no tempo e
de um instituto para outro. Os institutos europeus, por exemplo, pe­
dem dois ou três controles, quando os americanos pedem quatro.
Não obstante, em toda parte estão submetidos à autorização, e tam­
bém, em toda parte, o controle, garantido pelo comitê didático do ins­
tituto, é um didacta.
As respostas, por conseguinte, são simples. Para que o controle?
Para a habilitação (acrescenta-se, às vezes, porém subsidiariamente,
uma finalidade de garantia para o paciente) . Quem vai ao controle?
Um candidato ao reconhecimento analítico. Quando? Quando está au­
torizado a receber seus primeiros pacientes. Como? Com um contro­
le reconhecido por e segundo as normas (duração, frequência, núme­
ro de casos) próprios do seu instituto. Deste modo, o controle é, ao
mesmo tempo, olho do instituto e ºbaby-srtterª de um analista sob vigi­
lância

A responsabilidade da Escola

A modificação operada por Lacan é completa e seus alinhamen­


tos encontram-se no ºActe de Fondation•, da Escola e em sua ªNote
Adjointeª .
Em primeiro lugar, o controle não é obrigatório. A instituição não
o impõe, assim como não estabelece lista de controle nem lista de
didatas. Isso significa que o sujeito pede um controle segundo o seu
parecer, e ao analista de sua escolha Contrariamente, a obrigação -
pois por certo_ que há uma obrigação - é para a Escola Obrigação
de responder à demanda de controle ªdesde o começo e em todos
Standards e não standards 35

os casos", diz Lacan CUActe de Fondation•, p. 72), o que quer dizer


sem condições prévias de antiguidade na carreira analisando e sem
exclusividade. A razão disto é que o controle, se não é imposto, ªse
impõe" (Note Adjointe, p. 75). Impõe-se, porque é um fato recon1·1eci­
do que ªa psicanálise tem efeitos sobre toda a prática do sujeito com­
prometido com elau . Corresponde, então, a uma Escola, o dever de
assegurar "um controle qualificado" (e não qualificante) a todo sujeito
cuja prática suponha transferência, quer seja institucional ou privGcL1,
e em qualquer fase em que esteja do seu andamento.
Uma demanda de controle, então, se é verdadeira, não se recuJ.a
Porém sua prática adapta-se à posição do sujeito sem standards pré-·
estabelecidos. Porque há uma necessidade de controle, a responSGbi­
lidade da Escola não é recusar as solicitações, mas aceitá-las.
Uma única limii:ação deve ser assinalada evidentemente: a respon­
sabilidade da Escola é correlativa com a seriedade do compromisso
do sujeito na experiência, e, sobre esse ponto, a opinião eventual
do analista pode ser determinante.
Por que o controle? Porque o controle é um dispositivo comple­
mentar da cura, daí tratar analiticamente os efeitos da experiência ana­
lítica; aberto a qualquer que o procure, quando o procuram, pelo fa­
to de estar sujeito às influências de seus efeitos. Que relação existe
então entre o controle baseado em uma necessidade interna da práti­
ca anaJítica e a garantia institucional? D e fato 1 uma relação apenas
eventual. Quando se trata de discernir se um analista ufez suas pro­
vas11, o controle pode, sem dúvida, dar fé, nesse sentido, mas de ma­
neira não obrigatória, e só entre outros testemunhos.

A prática do controle

Não é abusivo supor que além das particularidades individuais,


as finalidades institucionais orientam sua prática.
Para os analistas da IPA o controle tem objetivos de aprendizagem.
Fala-se de ªdiagnóstico educaçãoª , de ºpsicanalistas educadoresª , de
ºaliança de aprendizagem ª . Propõe-se insolúveis problemas de objeti­
vidade e de critérios, pois se pretende instruir, ajudar, avaliar, obser­
var. O controle está centrado prioritariamente na produção e avaliação
de uma competência
Não obstante, impõe-se a todos que a suposta competência não
36 A transferência e a cura

deixa de estar relacionada com a análise do analista O termo análise


de controle, proposto por Eitington, já implicava nisso. Sessenta anos
depois, se tomarmos como referência a ªEncyclopedia of Psychoanaty­
sisº de Ludwig Eidelberg, de 1 981, esta idéia não mudou. Distinguem­
se os •erros que resultam da falta de experiência, dos causados pelos
problemas inconscientes próprios do candidatoº, pelo pontos cegos•
11

que dependem de sua própria análise.


O controle apresenta-se então como um lugar de prova dos limi­
tes da cura, que repercutem sobre a prática do analista Esta reper­
cussão é geralmente focalizada a partir da noção de contra-transfe­
rência Sublinhemos, no entanto, que os teóricos da ego-psychology
distinguem um dos seus motores como pertencente ao registro da
identificação do paciente. Isto é sustentado, por exemplo, por David
H. Sachs e Stanley G. Shapiro, referência tomada de autores tão dife­
rentes como Searles e Arlow. Entra-se, deste modo, na idéia de um
controle que completará a tarefa do analista, e que é, ao mesmo tem­
po, indicador e corretor de identificações. Há, neste ponto, uma coe­
rência da doutrina: a uma análise que opera contra a transferência res­
ponde-lhe o esforço para reduzir a contra-transferência do analista.
Uma análise que se propõe como fim a identificação do eu autôno­
mo do analista, se completa com a idéia de um aprendiz de psicana­
lista ainda atrapalhado por identificações com o analisando.

Controlar a posição do sujeito

Para nós o problema se coloea de maneira 11_1uito diferente.


Uma psicanálise supõe a transferência, cuja estrutura foi esclareci­
da por Lacan, no postulado do sujeito suposto saber: Mediante-a trans­
ferência, um sujeito é suposto saber, ele mesmo suposto, como po­
dendo responder pelo sintoma no qual se apresenta, na entrada de
cada cura, a pergunta do sujeito. Mas entre analisando e analista exis­
te o que Lacan chama de ªdivergênciaº da suposição,_ porque o analis­
ta não compartilha o postulado analisado, ao que, no entanto, susten­
ta Assim, chegamos à posição paradoxal do que podemos chamar
analista controlante que recorre a um controle. Vem falar sobre sua
prática de anaJista Enquanto é o que busca e fala no controle, está
em posição de anaJisando já particular, sem dúvid� porque sua re­
gra não é dizer tudo, mas, ao contrário, focalizar seus comentários.
Standards e não standards 37

No pólo oposto, enquanto analista, em seu ato, supõe-se que não po­
de safar-se do postulado da transferência. Isto é o que quer dizer
efetivamente: uo analista só se autoriza a si próprioº . Não há sujerto
suposto saber do ato. O analista não opera a partir de um saber, mes­
mo quando o inconsciente é saber, e ainda, mesmo quando há um
saber do analista.
Qual pode ser, a partir desse ponto, a transferência que susten­
ta o trabalho do analista controlante? Uma única resposta é cabível:
a transferência sem rodeios. Não há outra; e ºnão há transferência
da transferênciau ecompte rendu de l'Acte analytique u in Ornicar,
nº . 29,p. 25), diz Lacan. Isto significa que, tanto no controle como na
análise, visa-se ao sujeito e que a este se ponha a trabalhar. Entre
os poucos textos em que Lacan evoca o controle, nos deteremos
em dois: o primeiro em º Função e campo da palavra e da lingua­
gemº , onde Lacan propõe uma equivalência entre a posição do contro­
le e a posição do analista. O segundo, de 1967, no ºDiscurso à EFP º ,
onde Lacan evoca o ºprocessamento do sujeito: uÉ diferente controlar
um caso: um sujeito (eu sublinho) que supera seu ato, o qual nada
é, mas que, se supera seu ato, cria a incapacidade que vemos pros­
perar no jardim dos psicanalistasº (Discurso à EFP in Sci/icet, nº.
2/3,p. 14).
Proponhamos o seguinte: o controle indica a posição do sujeito
em relação a seu ato, mais do que ao ato em si, que, sem dúvida
está em jogo; porém, disto, tanto o controle como o controlado só po­
dem tomar conhecimento. Depois da destituição, ao final da cura, do
sujeito suposto saber do sintoma, talvez ainda falte destituir ao sujei­
to suposto sab�r do ato, para que o analista possa preocupar-se com
a divisão do sujeito. Nesse caso, a finalidade do controle é estritamen­
te igual à da análise. Fundamentalmente, não é nem transmissão do
saber, e nem estimação dos dons individuais, mas sim o lugar onde,
dado o caso, os efeitos sobre o sujeito dessa prática que requer o ato,
é posto à prova. O que podemos chamar em uma primeira aproxima­
ção, sua capacidade subjetiva de sustentar esse ato, mas com a con­
dição de acrescentar, de imediato, que essa capacidade é produzida
pela própria análise, e, por isso mesmo, sujeita ao que Lacan chama
ºuma correlação do desejo do psicanalistaD (ibid) pela análise.
Assim controle e cura estão atados. Isto nada prescreve no tocan­
te aos enunciados do sujeito controlante, quer estes se refiram ou não
38 A transferência e a cura

a seu paciente, porque, na mesma forma que na análise, visa-se ao


sujeito em sua en unciação.

Duração das sessões

A IPA incluiu dois fatores de tempo nos dados standard do contra­


to analítico. Com o correr do tempo, regulamentou-os. cada vez mais.
Ao final, são fixados, não só a duração das sessões, mas também, tra­
tando-se do didático, seu ritmo, e a duração das curas. A opção con­
siste, por conseguinte, em subtrair a avaliação e sobretudo a interven­
ção do analista; o tempo proposto, implicitamente, entre analisando
e analista, um tempo standard para o trabalho de transferência, se au­
tojustffica vagamente em nome das garantias que o paciente tem di­
reito a esperar.
Para Lacan os deveres do analista - q ue certamente existem - prin­
cipalmente o de estar aí, devem definir-se em função das finalidades
da experiência e de seus fundamentos.

Não-sem-o-tempo

O ponto de partida é o seguinte: tomar nota do que a experiência


freudiana testemunha, ou seja, que falar tem efeitos sobre o que fala,
e principalmente sobre seu sintoma. A partir disso Lacan produz seu:
"o inconsciente está estruturado como uma linguagem u O simbólico
é o que "estrutura e limitau o campo psicanal itico. Isto posto, ele ain­
da assinala: remeter a experiência analítica à palavra e à linguagem
como seu fundamento interessa à sua técnica (Fonction et Champ
de la parole et du langage, in Écrits , p.289) . A questão da d uração
das sessões, transformada em problema crucial da polêmica é aborda­
da a partir daí; já em Função e campo da palavra e da linguagem,
Lacan afirma em uma nota de 1 966: ºPedra de refugo ou pedra angu­
lar, nossa força é não haver cedido nesse pontou (ibid, p.31 5) .
É preciso partir d o sujeito involucrado na psicanálise. Lacan o dife­
renciou de entrada do vivente. É o que do vivente se produz como
efeito da palavra no campo da linguagem. Pois bem, dizer desse su­
jeito que necessita tempo para manifestar-se, é insuficiente. Melhor
dizer que esse sujeito não é sem o tempo. Um tempo que Lacan qua­
lifica primeiramente de subjetivo 11 para opô-lo ao tempo espacializa-
0
Standards e não standards 39

do do vivente. Esse não-sem-o-tempo significa que o sujeito como


efeito de linguagem é, por essência, temporal. O sujeito que resulta
da palavra implica o efeito de tempo. Efeito intrínseco (cf. neste pon­
to o tempo lógico) , que deve ser diferenciado do tempo necessário a
todo processo e, por exemplo, do tempo necessário para o desenvol­
vimento das articulações de um silogismo, que continua sendo estra­
nho aos elementos da dedução e, por conseguinte, alheio à conclu­
são, mas necessário. O tempo é, pois, inerente à dialética do sujeito.
A partir daqui, os problemas do tempo em análise _ são estritamente
co-extensivos ao que Lacan chamou º as metamorfosesª do sujeito no
processo de cura. Em conclusão: os problemas de duração não po­
dem ser regulamentados nem º a prioriº nem a a partir do exterior.

Tempo reversivo

Segundo assunto: esse tempo interno ao sujeito, Lacan o situou


como um tempo determinado pela estrutura. D eu diversas fórmulas
desta estruturação ao longo do tempo, e haveria, indubitavelmente,
diferenças a assinalar entre a temporalidade da palavra inter-subjeti­
va situado em função e campo da palavra e da linguagem e a tempo­
ralidade que em Posição do Inconsciente se refere à alienação signifi­
cante do sujeito.
Retenhamos apenas a tese fundamental: o tempo do sujeito falan­
te é a "retroação do significante em sua eficácia• (Position de l'incons­
cient, em Écrits, p.838) que regula seus fenômenos. É ela a causa
desse ºtempo reversivoª (ibid,p.838) que dá conta tanto dos fenômenos
11
de aprês-coupº como da sobre-determinação, e que deixa o sujeito
suspenso entre esta antecipação e essa retroação, cuja fórmula gra­
matical nos brinda o futuro anterior (ªele terá sidoª e que encontra sua
definição e seu estilo no ponto de basta) .
Esse tempo contém um momento privilegiado, o da escansão que,
qual uma pontuação, ratifica ou também desloca, interrompe o almofa­
dado do efeito de significação. A escansão precipita o momento de
concluir e decide o sentido. É, pois, idêntica à interpretação e compe­
te ao analista, já que dele se espera uma resposta. É em Função e
campo da fala e da linguagem• onde Lacan explicitou melhor essa re­
lação entre a incidência do analista no tempo do sujeito e a duração
11
das sessões: É uma pontuação afortunada e que dá sentido ao dis-
40 A transferência e a cura

curso do sujeito. Por isso a suspensão da sessão, da qual a técnica


atual faz um ato puramente cronométrico, e, como tal, indiferente à tra­
ma do discurso, desempenha nele um papel de escansão que tem
o valor de uma intervenção, para precipitar os momentos concluden­
tes. E isso implica liberar esse termo de seu sentido rotineiro, para
submetê-lo a todas as finalidades úteis da técnicaº (ibid).
Sem dúvida posteriormente Lacan modificou essa idéia de que o
sujeito possa encontrar sua consistência em uma palavra plena: mas
à medida em que a experiência da cura põe em jogo, em todos os
casos, a dialética do sujeito que se historiza retroativamente, o tem­
po longe de formar parte do que os analistas chamam o ªenquadr�­
mentoU , forma parte do próprio processo, e a incidência do analista
nesse processo é sempre correlativa de um efeito de tempo, q ue só
possa ser julgado em função da dialética em que intervém. Isto exclui,
tanto para a sessão, como para a cura, o tratamento standard , defini­
do 11 a priori".

Trabalho do inconsciente

É necessário no entanto, um passo mais para fundar a sessão


chamada "curta", da qual, no entanto, Lacan nunca fez uma norma.
Faz-se-lhe objeção, em geral, em nome do tempo que necessitaria o
inconsciente. Não se trata aqui de igualá-los, se for levado em conta
o seguinte: o inconsciente não tem horários e, trabalhador ideal, traba­
lha perfeitamente bem sem descanso. A sessão deve situar-se, por
conseguinte, como um tempo de registro, tempo de ºrecepção do
produto desse trabalho º . A elaboração é remetida para fora da sessão.
Sua interrupção adquire sentido e valor como ºsançãoº do produto
que se analisa e é experimentada como tal.
U m comentário nesse ponto: esta resposta do analista, sem a
qual, digamos, sem a qual a palavra do sujeito não é, por que fazê-la
coincidir com a finalização da sessão? Por que uma resposta atuada
em vez de uma resposta somente vocalizada? Sublinhemos que, a
respeito desse ponto, Lacan também assinalou que o tempo depen­
de do real. Já o formula em Função e campo da palavra e da lingua­
gem, texto onde, no entanto, o tempo parece estar mais reabsorvido
pelo registro simbólico do sujeito. A função do tempo está ali, junto
Standards e não standards 4 1

com a ªabstençãoº do analista, situada como conjunção do simbóli­


11

co com o realº (ibid.,p.309/310) , esta conjunção provando que a trans­


ferência, como foi assinalada por Freud, não é simples repetição do
passado mas inclui o que Lacan chamou então de ªum fator de reali­
dade\ situado, de início, do lado do analista.

A pulsação

Isto nos leva a situar a questão da duração das sessões em rela­


ção àquilo que na experiência não é simbólico, mas real. A esse ele­
mento outro que não o simbólico, que configura a gravitação da dialé­
tica do sujeito, e onde se concentram seu ser e seu gozo, Lacan deu
um nome: o objeto a. Deve-se ver nele o que o próprio Lacan desig­
nou como sua invenção própria realizada a partir de um novo exame,
não do conceito de inconsciente, mas do conceito de pulsão (cf.Semi­
nário XI) .
O sujeito definido primeiramente como o que o significante repre­
senta para outro significante, embora não esteja destinado a nenhu­
ma relação sexual não carece, contudo, de parceiro, parceiro a-se­
xual, desprendidoº do corpo do vivente pela captura significante. Da­
11

qui em diante, a temporalidade da transferência se esclarece de ma­


neira diferente.
Sem dúvida, diz Lacan: ºO sésamo do inconsciente é ter efeito
de palavra, ser estrutura de linguagem, mas exige que o analista se
detenha no seu modo de fechar. Lacuna, palpitação, uma alternância
de sucção seguindo certas indicações de Freud, isto é, aquilo que te­
mos de dar contaº . (as itálicas são nossas, ibid.).
Há aqui um fato: o tempo ºreversivoº do sujeito que se torna a en­
contrar, em toda experiência de discurso, coordena-se na experiência
de transferência com uma ªpulsaçãoº de fechamento e abertura, da
qual não dá conta, por si só, a uretroação significanteu . A espera que
estrutura a relação de transferência por dirigir-se ao saber, não deixa
de estar governada por uma busca do ser perdido pelo vivente sexua­
do que fala u À espera do advento desse ser em relação ao que desig­
namos como o desejo do analista. [... ] , tal é o recurso verdadeiro e
último do que constitui a transferência. Por isso a transferência é uma
relação essencialmente ligada ao tempo e ao seu manejo• (as itálicas
são nossas) (Posição do Inconsciente, Écrits , p.838).
42 A transferência e a cura

A função da pressa

A partir desse ponto, as elaborações de Lacan se desenvolverd


cada vez mais no sentido de indicar q ue é o objeto que volta sempre
ao mesmo lugar na transferência e na fantasia, ao mesmo tempo, con­
densador do gozo e causa do desejo, o que concede a chave dessa
espera. O tempo lógico não tem, desde então, mais ªem siº do que
esse objeto (Radiofonia in Scilicet 2/3,p. 79) que preside ao encontro
falido da repetição (Encore,p.47),e amamenta a função da pressa. (Se­
minário 20 p.67)
Isto posto, em todos os casos, a temporalidade das suas emergên­
cias é a do instante, instante quase de ruptura na duração do encade­
amento dos significantes. Concebe-se assim que a última forma produ­
zida por Lacan, no que se refere ao lugar do analista como ao do ob­
jeto, se acomode a uma sessão pontual quase reduzida ao instante
em que encontro e separação se conjugam.
Preconizaremos então a sessão curta ? Deve-se assinalar que La­
can nunca o fez, ainda q ue a mesma fosse coerente com o seu ensi­
no. De maneira geral, Lacan nunca formulou preceitos técnicos para
uso do analista. Não retrocedeu diante de alguns imperativos, haven­
do além disso, retomado frequentemente o proposto por Freud. Mas
se são seguidas as fórmulas de seu ensino, desde, por exemplo, seu
é preciso tomar o desejo ao pé da letraº {A direção da cura, in
11

Écrits,p.620) ver-se-á que as mesmas se referem sempre aos únicos


"direitos de um fim primordial" (Ou Trieb du psychanalyste, Écrits,
p. 854).
A técnica não se ensina onde o ato impõe a falha do sujeito su­
posto saber e supõe a ética.
Standards e não standards 43

ELEM ENTOS D E B I B LIOGRAFIA

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Transferência e interpretação na neurose 1

Gostaria de tentar dizer alguma coisa sobre a certeza. Esses dois


termos. transferência e interpretação. é preciso tomá-los juntos. Aliás,
dispomos do materna desse par, que é a própria escrita do discur­
so analitico, tal qual Lacan o deixou.
Nesse materna, do lado do analista, há dois termos: a e s2 :
a
S2
Pode-se dizer que está escrita do lado do analista, a dupla causa do
sujeito, a sua causa significante e sua causa objetal. Esse desdobra­
mento da escrita faz com que se pudesse hesitar sobre a definição a
ser dada, da interpretação. Podemos, seja tomar uma definição restri­
ta, que qualificaria como interpretação somente a inteNenção signifi­
cante do analista ao nível do saber, seja tomar uma definição mais am­
pla que consistiria em chamar interpretação, a própria função do ana­
lista. Mas, para designá-la, Lacan introduziu outro termo: ºo ato".
Já que a interpretação está aí, escrita no singular, acredito que is­
to nos leva a tomá-la não ao nível da sua técnica, mas ao nível da sua
mira. E gostaria desde o início de fazer notar uma aporia na própria
definição da interpretação tal qual Lacan a propôs: a interpretação
opera pelo significante, mas incide sobre o objeto, sobre o real. Por
outro lado ela opera no significante pelo equívoco - seria preciso de­
monstrá-lo porque há vários tipos eventuais de interpretação, mas le­
vemo-la de volta à essência do equívoco embora ela aponte para a
certeza; ela visa o sujeito na certeza, como costuma-se dizer, º visar

1
P u b l icado in Actes de l ' École V I ; An gers, j u n h o 1 984. Revisão de M. A n gélia Teixei ra.
46 A transferên cia e a cura

ao coração 11 Há pois aí uma espécie de tensão entre os meios e, eu


diria. os fins.
Vou retomar uma fórm ula que já utilizei quando falei da resistência
de transferência em IRíviA: a interpretação, de uma certa maneira, con­
siste em contrariar a transferência, e é uma coisa bem diferente da
contra-transferência. Isto pode parecer paradoxal porq ue também po­
demos dizer que a interpretação sustenta a transferência, inclusive
que a condiciona; e é aliás verdadeiro que não pode contrariar-se
mais elo que aí está "Contrariar a transferência11 não é naturalmente "su­
focar a transferência11 Eu ii1es proporia urna imagem: poder-se-ia di­

zer que o analista está um pouco na posição do bombeiro piromanía­


co: ele sopra sobre a cl1ama da transferência, mas o término da ope­
ração é de toda maneira a queda da transferência.
Essa oposição, podemos abordá-la sobre dois eixos: aquele do
saber inconsciente e aquel8 do objeto real. No começo a transferência
define-se pelo algoritmo elo sujsito suposto saber. No final, a operação
analítica leva-nos à destituição desse sujeito suposto saber. Donde
uma primeira pergunta: como opera o analista em relação ao saber
na interpreiação?
No q ue concerne à outra polaridade da transferência, no início, te­
mos um objeto dito latenteU, no final, urn objeto revelado, portanto pa­
11

tente. E é o amor de transferência que dissimula e cobre o tem po to­


do a presença deste objeto. E aí, temos como outra pergunta: como
entender esta revelação do objeto?
Deixo pois a!Jsolutamente ele lado a vertente: a interpretação susten­
ta a transferência, para me colocar na vertente: a interpretação contra­
ria a transferência, no sentido do verbo contrariar.
Em relação ao saber, primeiramente. Os ditos do analisando, o
que chamamos de associação livre, produzem uma elaboração de sa­
ber, isto sob a forma de significação pertence ao campo do significan­
te, ela provém da sua "relatividacle11

Ela obedece à lei da deriva significante, do relance, do reenvio sem­


pre possível sobre um outro. Donde a pergunta, com esta produção
de sig nificação na análise, uma pergunta que finalmente, o analisan­
do se coloca em múltiplas oportunidades: com que satisfazer-se?
Pois b2m, eu direi que a interpretação enquanto ela visa �ustentar
o processo do dizer, não se satisíaz com nenl1uma elaboração de sa­
ber. Pelo contrário, ela intervém pelo equívoco cada vez que uma esta-
Transferência e interpretação na neurose 47

se sobre uma significação de saber se apresenta Neste sentido, ela


responde por um "não suficiente 11 Digamos que o equívoco abala a

segurança das significações adquiridas. E é neste sentido aliás que


ela presentifica, que ela indica a dimensão de outra coisa Esta Outra
coisa articulada mas inarticulável, que está aí sem estar subjetivada,
Lacan a chamou primeiramente desejo, e depois mais-de-gozar. Dese­
jo em latência na cadeia e que interfere de alguma maneira com as
significações produzidas. Parece-me pois que poclemos dizer que se
a associação livre sob transferência supõe, sob o sintoma analítico, o
saber ao qual ela se dirige, a interpretação inteNém, certamente pelo
significante, mas supondo sob o sintoma analítico desejo e gozo, que
ela tem por função desvelar.
É na medida em que ela abala a segurança conseguida sobre as
significações adquiridas, que ela relança o que chamarei o trabalho
do querer dizer. É preciso então dizer que a interpretação trabalha pa­
ra a incerteza? Será ela a servente de um deus dubitativo? Muito pe­
lo contrário, e isto se vê particularmente, parece-me, a um certo mo­
mento da análise: quando a análise produz essa significação particu­
lar, que quase se poderia chamar uma significação de incerteza, que
Lacan escreve A , e que escreve em seu grato como a significação
que responde à pulsão. Quando pois se revela esta significação du­
ma falta no saber, sejam quais forem as modalidades próprias a ca­
da caso particular de analisando, é bem preciso dizer que o analista
não faz disso a sua última palavra. Lacan insistiu muito neste ponto:
a ilusão do saber não é a resposta do analista, ele não considera que
essa seja a última palavra. É preciso dizer que ele objeta esta significa­
ção com toda sua presença. Ele objeta quando é solicitado para inte­
rinar um final de análise que eu qualificaria de cético, que concluiria
do fato de que sempre podemos dizer algo mais em uma dúvida infi­
nita. Solicitado para interinar este final, o analista objeta. A menos que
ele seja um defensor da análise infinita. Pois é divertido observar que
a tese da análise infinita tem por modalidade técnica a parada sobre
esta significação de incerteza. Parada prematura portanto.
É claro que não fazer do "Sem-Fé da verdadeª como Lacan diz, a
última palavra da análise, só faz sentido porque há uma outra verten­
te da transferência, a deste objeto do qual não há saber e para o
qual a lógica comanda. Mas qual é o modo de revelação deste obje­
to já que Lacan emprega esse termo: a interpretação revela o objeto?
48 A transferência e a cura

Onde estão os fenômenos da fantasia, para retomar a oposição


fenômeno/estrutura; onde estão os fenômenos da fantasia na cura?
Penso que é necessário introduzir uma distinção entre a fantasia en­
quanto ela passa nos ditos do sujeito, a fantasia enquanto que, ao
menos parcialmente, faz parte do que se chama o material, isto é, do
que o paciente diz, e por outra parte o que da fantasia não vem nos
ditos do paciente e que chamaremos, o real. É absolutamente certo
que há um afloramento da fantasia nas narrações do paciente, e sob
duas formas que Lacan isolou sucessivamente, imaginária e simbóli­
ca Quer dizer, que entre o que se mexe na associação livre, com efei­
to, vê-se, aparecer uma imagem, por exemplo, que se apresenta, na
ocasião, como o que Freud chamou lembrança encobridora ou tam­
bém como um sonho de infância, uma imagem surgida de não se sa­
be onde, como sem motivo, que está à flor do fenômeno, que resiste
ao deslocamento e que o significante faz voltar sempre. Evidentemen­
te, esta imagem é para ser pensada como tomada no significante e
carregada de significação. Significação absoluta, que não deriva, que
escapa à relatividade significante, que é inamovível, que é quase co­
mo um cisto nas significações e que Lacan formulou como axioma,
em outras palavras, princípio da inteligibilidade do conjunto da relação
desse sujeito com o mundo.
Esta significação absoluta fundamenta a segurança do sujeito: é
disso que ele não duvida. No mar do contestável, é o seu ponto de
certeza Farei entretanto notar que certeza não quer dizer evidência.
A certeza pode ser perfeitamente ignorada tanto ser coextensiva à po­
sição do sujeito na sua realidade e a operação da análise seria mais
de fazer vir esta certeza à evidência.
A pergunta é a seguinte: como tornar operatória esta certeza que,
no fundo, compensa o lado Sem-Fé da verdade que, pela sua inamo­
vibilidade corrige a deriva significante? Parece-me que é preciso acen­
tuar que esta fantasia como material, não é por aí que isso opera na
análise. Quero dizer que, apesar de tudo, é um material -isto não é
novo- que é ininterpretável e que, além disso, o analista não tem na­
da a dizer, a rigor, pode apontá-lo com o dedo, pode designá-lo, o
que voltaria a acrescentar a evidência à certeza. Sem efeito, porém,
a não ser de redobrar a inércia da fc!ntasia Aliás, para tornar eviden­
te a certeza da fantasia, não há absolutamente necessidade da psica-:
nálise. Existem, às vezes, emergências que nos mostram isso. Sade
Transferência e interpretação na n eurose 49

notadamente, cf. uKant com Sade11 e mais perto de nós Hitchcock, por
exemplo. Hitchcock, na ocasião, dá luz sobre a fantasia Isso interes­
sa aos psicanalistas evidentemente, mas isso não é psicanálise. A clí­
nica psicanalítica não consiste em colocar o projetor sobre a fantasia,
mas em obter uma modificação do sujeito na sua relação com a fantasia.
Parece-me pois que o que de fantasia vem nos ditos, é um efeito
secundário e que a técnica analitica não opera pela fantasia em ple­
na luz. É mais uma clínica da verificação - termo que· Lacan propôs e
que eu sublinho. Na psicanálise, verifica-se alguma coisa, mas isto
não quer dizer que se chegue ao saber, já que verifica-se também a
falha do saber.
Isto coloca o problema do manejo é aliás absolutamente a ques­
tão que levantava Agustin Menard. Lacan emprega esse termo: mane­
jar o objeto. Pois bem, a interpretação, em relação, não mais agora
com o saber, mas com o real da fantasia, opera também contrarian­
do a transferência. É que esse objeto real, está presente na psicanáli­
se, como colocação em ato da transferência. Existe um Agieren -funda­
mental da transferência, na qual alguma coisa busca satisfazer-se, na
qual o analista está correlacionado a uma satisfação. Se utilizamos es­
se termo manobra da transferência, eu teria tendência a dizer que a
manobra é a do analisando - o analisando manobra na transferência
para lhe fazer produzir a satisfação que habita a fantasia. Esta satisfa­
ção quando se obtém é um momento - momento de fechamento do
inconsciente, não é um gozo que fala, mas um gozo silenciosos co­
mo o é precisamente, a pulsão.
Com relação a esta manobra do analisando, que regula a tempora­
lidade pulsátil da transferência, parece-me que poder-se-ia dizer que
a posição do analista é primeiramente de se deixar dirigir -por oposi­
ção à direção da cura- ele deixa-se dirigir, até poder objetar, achar o
modo interpretativo de objeção à satisfação que procura realizar-se.
É aliás neste sentido que a sua intervenção é correlativa a um relan­
ce, abrete-sésamo do inconsciente, ela convida dizer ... mais.
Deste modo, parece-me que o manejo da transferência, pelo ana­
lista desta vez, consiste em deixar a fantasia insatisfeita - e, no caso,
a angústia. Deixar a fantasia insatisfeita, tem como correlato designar
o ponto de satisfação, manifestar de alguma maneira a presença de
uma positividade que não é uma positividade do significante,que é
uma positividade que nós chamamos de gozo. Isso a manifestéli a faz
50 A transferência e a cura

voltar para que ela seja dita ainda que não sem resto. Ela faz ºpare­
seru (parêtre) com o equívoco ortográfico que Lacan utiliza, e que traz
o aparecer, assim como o barrar o ser, o ser do gozo. A interpretação
opõe-se alternativamente ao saber e à fantasia para que a impotência
de um correlacione-se à segurança da outra, o que Lacan chama o
nó do ininterpretável. Q uer dizer que a certeza da qual falamos a res­
peito da fantasia, seria vão visá-la como uma certeza de saber, é uma
certeza que só se certifica quando ela passa ao ato.
O acting out na cura1

Reivindicar , hoje em dia, o ensino de J . Lacan não é uma rari­


dade, pode-se mesmo dizer que os l acanianos proliferam. Se
me coloco , porém em nome do ensino de J. Lacan, o faço a du­
plo título : na qualidade de membro da Esco l a da Causa freudia­
na e na medida em que me encontro engajada no trabalho da
Fundação do Campo freudiano. Essas duas instituições tem um
proj eto, uma ambição que é a de fazer com o ensino de Lacan,
coisa diferente do 0 usucapir 0 Eis um termo de J. Lacan, evoca­

do em um momento do ensino da psicanálise. Ele observava que,


frequentemente fazia-se uso-capião de seu ensino. Chegando­
se a fazer del e um al bergue. P ois bem, de um ensino pode-se
esperar mais, e sobretudo, efeitos, se ao menos fosse reconheci­
do o estatuto idêntico da psicanálise didática e de seu ensino.
Este estatuto idêntico deve-se primeiramente ao fato de que a
psicanálise didática e seu ensino fazem-se pela virtude do anali­
sando, ou seja, o sujeito dividido n o trabalho. O docente, dizia
Lacan, não é o mestre, é um sujeito que põe sua divisão à tare­
fa. Qual ? A de dizer e, mais precisamente, a de ºse dizer º quan­
do é uma cura. Mas esta tarefa tem um limite, aquele do impossí­
vel , porque não se pode dizer tudo. Há pois, durante a cura e
ao seu término, uma questão concernente ao que poderíamos
chamar a cl ínica do impossível de ser dito. Por isso, escol hi falar
do acting out. Entre o que, em uma cura, cessa de não se dizer -
contingência - e o
1
P u bl icad o in Travaux nº 1 , N ov.1 986; Histérie et obsession . Organizado pelo G ru­
po de Estudos da Escola da Causa freudiana de Nantes, durante o ano· 1 985-86. Revi­
são de Maria Luiza Mota Miranda
52 A transferência e a cura

que resta impossível de se dizer, qual é o lugar do acting out?


Há no ensino de Lacan numerosas evocações do par: passagem
ao ato e acting out. Minha referência de hoje encontra-se no resu­
mo do seminário sobre ºA lógica da fantasiaª que antecede em um
ano, o do "Ato analitico". Após ter dado (ORNICAR?29,p.1 5) uma defi­
nição do ato e da passagem ao ato, Lacan observa: ºisso deixa de la­
do o acting out onde o que se diz não é sujeito senão verdade". Ora,
na psicanálise, se exige do sujeito que se diga como inconsciente. Is­
so não é natural, é uma tarefa que vai completamente contra-corren­
te de tentar, como diz Lacan, de ºpor em claro o inconsciente ao qual
vocês estão sujeitosº . Esta expressão, é preciso tomá-la quase que
da mesma forma que quando se diz º estar sujeito a desfalecimentos º :
é o inconsciente que determina o sujeito que deve ser posto em cla­
11 11
ro. Entretanto, há uma ambiguidade do se dizer•, porque o seª pode­
ria designar tanto o remetente quanto o destinatário. Pode significar
seja ª dizer o que ele é° , seja ª dizer a si º . Para excluir essa última pos­
sibilidade dever-se-ia cometer um erro de ortografia e escrever o 0 se11
do º se dizerº com um c, o e do ºo que é isso ª que encontramos, aliás
no ºiSS011 •
Pois bem, o paradoxo da tarefa do analisando é que se deman­
da ao sujeito dizer ºissoº que ele é aí onde ele não é, quer dizer aí on­
de está o inconsciente, o inconsciente que, seguindo a linha do ensi­
no de Freud, relido por Lacan, é do saber, do saber porque ele se de­
cifra, mas do saber sem sujeito. É do saber sem ninguém para sabê­
lo, sem ºeu (moo, euue) º , mais ainda, é do saber que se diz sem nin­
guém para dizer pois o sujeito, aquele que diz eu11 não pode se con­ 0

siderar nem (ªjeº) agente de seu inconsciente, nem como agente do


seu sintoma, de seu lapso ou de seu sonho. O inconsciente é um sa­
ber reconhecido unicamente pelo fato de que se pode lê-lo. Para di­
zer a verdade, isso talvez não seja suficiente, é preciso mesmo acres­
centar que o inconsciente é um saber que se revela porque sua leitu­
ra provoca efeitos, especialmente efeitos terapêuticos. Não é primor­
dial na psicanálise ser terapêutica, e, · em todo caso, não se trata de
uma terapêutica como as outras. Contudo, a dimensão terapêutica
da psicanálise não pode ser eliminada, pois é ela que permite verificar

2
N . R . : n o ori g i nal : . . . "écrire le 'se' d u 'se d i re' avec u n e, le e du 'ce q u e c'est' ,
q u e l 'on retro uve d ' ailleurs dans ça".
O acting out na cura 53

que a leitura do inconsciente tem uma tomada sobre o sintoma. Se


não houvesse aí efeito terapêutico, nada distinguiria o deciframento
de um delírio. Este saber que o sujeito carrega sem poder nele se re­
conhecer. é ele que a análise. paradoxalmente, o impõe de dizer. Na
escrita do discurso analítico, a flecha que tem por alvo o sujeito dividi-
do a ______ $, mas representa também a coerção que é a regra da as-
sociação livre, a imposição feita ao sujeito de se por a dizer de tal sor­
te que ele possa dizer o inconsciente. (E é preciso assinalar que é
uma mudança colocar-se nesta posição de analisando, porque a posi­
ção natural do sujeito, o que Lacan denomina sua posição primária,
é afastar o inconsciente, desconhecê-lo de maneira essencial). O que
faz o cotidiano dos seres falantes é uma escolha que Lacan qualifica
como escolha do º eu não pensou , a ser entendido como ueu não pen­
so o inconscienteu , que, porém, é do pensamento. A posição natura[
é a posição "mim serº (m'être) , esse jogo de escrita inscrevendo o re­
calque do eu não souº que funciona no inconsciente. Porque, quan­
11

do o inconsciente fala, o sujeito não é no sentido do ºeuº emoi jeº) .


Esse recalque primário dos pensamentos do inconsciente é u m recal­
que também da falta a ser. Há portanto uma resistência natural, espon­
tânea ao inconsciente, que faz o que se chama a boa saúde e na
qual o ºeu não penso °, aflora, por esse traço, a saber: não se coloca­
rem questões ou questões em demasia. É com efeito, um fato, o neu­
rótico se faz demasiadas perguntas, está que ele é embaraçado por
seu inconsciente. Pois se o sujeito não pensa seu inconsciente, é pre­
ciso dizer que o que acontece é que o inconsciente pensa por ele,
sob uma forma precisa. que são as formações do inconsciente. A es­
se sujeito que se queria mestre, na certeza do seu ser. lhe acontece
ter sintomas mais ou menos molestas: lapsos, atos talhos. sonhos...
O sintoma é um transtorno do ºeu não pensoº . Ele vem molestar o
pensamento e a procrastinação do obsessivo sob a forma de pensa­
mentos parasitas ou de compulsões de certos atos. Ele vem desorde­
nar o corpo da histérica sob a forma do que Freud chamou somatiza­
ção. Ele vem transtornar o sono sob a forma do sonho, etc.. .
Esse inconsciente que se evoca na boa lembrança do sujeito
mestre de si próprio, a psicanálise tenta fazer a junção entre os dois.
E a transferência, essa transferência que Lacan remete por um lado
ao sujeito suposto saber, é o que induz o sujeito a voltar-se para seu
inconsciente. É por isso que a psicanálise não ocorre sem transferên-
54 A transferência e a cura

eia O imperativo analítico implica numa mudança de posição do sujei­


to, que ele queira renunciar ao seu eu não pensou . Não é que a psica­
11

nálise tenha como efeito, ao término, mudar o sujeito, é que desde a


entrada supõe que o sujeito tenha mudado. Uma das funções das en­
trevistas preliminares é assegurar que o sujeito possa mudar de posi­
ção, possa colocar-se nesta posição que é a de escravo, - escravo
da associação livre, possa assumir o seu ueu não sou•. Ninguém pa­
ra dizer a verdade, assume seu "eu não sou•, mas o analisando, em
todo caso, aceita fazer a prova, pois a prova, ele já a realizou pelo
seu dissabor no sintoma. Ele pode deixar o campo livre, por um lado,
à manifestação desta verdade que fala nas formações do inconsciente.
11
Há, pois, uma pergunta de início que é: como dizer ? ª . Como che­
gar a dizer este inconsciente que apaga o sujeito? Pode-se dar pri­
meiramente uma resposta empírica. Há dois grandes eixos do dizer
inconsciente que são representados em Freud. Primeiramente, o que
ele isolou como a série das formações do inconsciente. O termo ºfor­
mações do inconsciente" não é de Freud, é o nome que Lacan deu
à série constituída, por Freud, dos lapsos, sonhos, sintomas, atos ta­
lhos; essas formações resultantes do trabalho do inconsciente são
as formações espontâneas do ºeu não souº . Por outro lado, existe a
manifestação forçada do ºeu não sou" que é a associação livre. A as­
sociação livre implica em uma renúncia que cada analisando experi­
menta desde o início - renunciar a controlar seus pensamentos, a go­
verná-los. Quando dirigimos o pensamento, o fazemos por múltiplas
razões, razões, talvez, de decência ou de lógica, para não dizer coi­
sas incoerentes ou fora de lugar ... De fato, dirigir seu pensamento é
fazê-lo sempre governado por um ideal, quer dizer censurá-lo. É colo­
car um significante mestre (S 1 ) em posição de ordenar o º blá-blá-bláº
interior. A associação livre implica em renunciar. isso para. deixar agir
uma outra causalidade, pois o que se im põe, neste caso, é que os
pensamentos liberados das censuras da lógica e das conveniências,
nem por isso estão desgovernados, aleatórios. Eis portanto a pergun­
ta: entre essas manifestações espontâneas do inconsciente, que são
as formações do inconsciente e esta manifestação forçada: palavra
que deixa um lugar ao dizer da verdade que o sujeito não s�e, q ual
é o lugar do acting out?
O paradoxo do acting out é que a verdade aí está,· mas de tal
maneira que, desde o início, os analistas reconheceram nele um maio-
O acting out na cura 55

gro na cura.
Talvez não seja inútil retomar Freud desde o ponto de onde vem
o termo acting out. Acting out é o termo que Strachey utilizou para o
agieren freudiano, na sua tradução do texto de Freud: ªRememoração,
repetição e perlaboração u . A idéia de sempre de Freud é que a análi­
se deve preencher as lacunas da memória; digamos que ele lhe atri­
bui a tarefa de restaurar a completude de uma história. É o levanta­
mento do recalque que lhe parece conduzir ao levantamento da amné­
sia. Ele o lembra neste texto: uA finalidade da anáJise, do ponto de vis­
ta descritivo, é preencher as lacunas da memória e, do ponto de vis­
ta dinâmico, é vencer as resistências do recalque•.
Ora, Freud observa que se acaba por encontrar na cura o caso
que se configura da seguinte forma: o paciente não tem nenhuma lem­
brança do que ele esqueceu e recalcou e não faz senão traduzí-lo
ern atos. Strachey traduziu por acting out. Esse out, não deve ser en­
tendido como fora do campo da análise, não existe um fora da análi­
se desde que o sujeito esteja sob transferência. Isso também não
quer dizer fora do consultório do analista, quer dizer, inicialmente, fo­
ra da esfera das lembranças. Digamos, de preferência, tora da esfera
do que se diz.
Entretanto, o que é enganador, é que o agieren freudiano é mui­
to mais· amplo, mais ambíguo que o uso consagrado ao termo acting
out. O agieren freudiano, quando lemos o texto em questão, é um mo­
do da transferência, a transferência-resistência O recalcado não retor­
na no pensamento, retorna na ação, no fazer, no agir. Somos obriga­
dos a nos interrogàr sobre o que Freud chama, nesse momento, o re­
calcado. Os primeiros textos, uA interpretação dos sonhos•, ·A psicopa­
tologia da vida cotidiana• etc, ensinaram-nos a reconhecer, no incons­
ciente, os pensamentos. Mas mesmo se naquele momento, Freud não
11
tinha ainda introduzido 0 isso" que ele promove em 1 920, contudo,
desde o início, esses pensamentos são correlatos do que Freud cha­
ma moções pulsionais. É o que encontramos neste texto onde ele dis­
tingue, junto às lembranças, o que ele chama um ªoutro grupo de pro­
cessos psíquicosº : são as fantasias e as emoções conexas. A idéia
de Freud é que a finalidade da análise é fazer chegar à representa­
ção, ao pensamento, pelo viés da associação livre, as moções pulsio­
nais. Ele se dá conta, então, neste texto, de que há uma via que não
é a via do pensamento e é o que ele chama o agieren. As moções
56 A transferência e a cura

pulsionais impõe-se aí, de uma certa maneira, sem passar pelo verbo.
Esse elemento real e atual faz curtocircuito entre o passado e a lem­
brança Freud vê nisso uma resistência, um obstáculo ao imperativo
do dizer . .· É uma alternativa para o analisando, ou bem ele pensa, ou
bem ele age seu inconsciente.
Para F reud, a via da análise é pensar o inconsciente, e é por aí
que passa a eficácia da psicanálise. Ele sempre sustentou a idéia de
que a rememoração era ao mesmo tempo, uma exigência e um sinal.
Além do mais, posso dar (entre parênteses) um exemplo simples do
que é uma mudança do sujeito que não é uma mudança da pessoa:
uma vez que o sujeito rememorou, pode-se dizer que jamais tinha es­
quecido. Não foi o passado que mudou foi o lugar do sujeito. As re­
presentações do seu passado que ele tinha abandonado, onde ele
não se reencontrava, onde ele não se reconhecia, ele volta a habitá­
las. Por isso Lacan propõe escrever souvenir com duas palavras,vir
sob as representações que o sujeito tinha habitado antigamente e
que ele tinha podido abandonar. O materna da rememoração é o mes­
mo que o da representação significante do sujeito:
S1
$
Na análise, ele vem produzir, reencontrar e ejetar simultaneamente
os significantes a partir dos quais ele se construiu. Para isso a psica­
nálise pode mudar tudo para o sujeito sem mudar nada na realidade.
A vida que o an:ilisando teve não se refaz. Ao contrário, o que modifi­
ca é a maneira como ele se sítua nela e o sentido que lhe dá
Em Freud, a questão do acting out deve, portanto, ser tomada
em três termos: o recalcado e sua manifestação, seja no pensamen­
to, seja na ação. A abordagem da questão é consideravelmente deslo­
cada por Lacan, mesmo se há uma homologia aparente. Lacan formu­
lou a transferência como dependente do sujeito suposto saber. O ana­
lisando parte ao encontro do saber inconsciente do qual ele supõe
que pode tornar-se sujeito. A suposição da transferência, é que eu
posso vir aí onde não estava, mas onde estava o inconsciente como
saber. É o eixo que corresponderia em Freud à rememoração pela
associação livre. A homologia deve-se a que, a este eixo do sujeito
suposto saber, Lacan também opõe um outro eixo em que a passa­
gem ao ato está concernida - Cf. o Seminário XI onde a transferência
é definida como ua passagem ao ato da realidade do inconsciente u
O acting out na cura 57

(de sua realidade sexual) e não mais como dependente unicamente


do sujeito suposto saber. Nesta passagem ao ato da realidade se­
xual do inconsciente q ue é do registro da pulsão e do objeto relativa­
mente distinto do registro do significante, pode-se reconhecer nela o
agieren freudiano ? Observo primeiramente que não há dúvida de que
a dimensão da reconstituição do passado depende do sujeito-supos­
to-saber. Reconstituir sua história é reencontrar a sucessão das identi­
ficações do sujeito (S 1 ... S1 ... S 1 . . .) e a cada etapa, a verdade que aí
se liga. Quanto ao agieren, é pre.c iso dizer que, na medida em que é
legível, e legível como repetição, ele não deixa de participar também
do mesmo registro do sujeito-suposto-saber, ou seja da decifração
significante. O ra, este não é o caso, segundo Lacan, da transferência­
passagem ao ato da realidade sexual do inconsciente - que não é re­
petição e não depende da decifração. É uma transferência atual, ou
antes sem referência ao passado, ao presente e ao futuro, que partici­
pa do fora do tempo da pulsão, disso que Freud designa como impul­
so constante, digamos, sua face de gozo.
Assim, em relação à dicotomia lacaniana, rememoração e acting
out estão, pelo menos por uma parte, do mesmo lado, o lado do in­
consciente. O que está claramente do lado da transferência - passa­
gem ao ato, não é o acting out, é a passagem ao ato já que ele se
opõe ao trabalho do significante. O ato analítico em si mesmo não de­
pende do inconsciente, no sentido estrito ele está do lado onde o sujei­
to não pensa Quanto à passagem ao ato, é o que não uquer dizeru .
O que se recusa a dizer passa ao ato. A passagem ao ato é a altera­
ção básica do imperativo analltico. O suicídio é uma delas. É essa re­
cusa de saber e esse por à parte, fora do jogo radical do Outro. Q uan­
do Empédocles se joga no vulcão, ele realiza a única separação verda­
deiramente bem sucedida do Outro, o suicídio.Há passagens ao ato
que, evidentemente, têm menos consequência, mas em todos os ca­
sos o ato exclui o apelo ao saber e põe fora de jogo aquele que na
ocasião encarna a instância Dora passa ao ato uma primeira vez, quan­
do rompe suas relações com o pequeno quarteto onde ela estava en­
tre Sr.K., S ra.K. e seu pai - chega um momento em que o jogo termi­
na. Do mesmo modo, quando decididamente deixa de reverenciar
Freud, apesar de tudo. É também o caso, quando Ana O. salta ao
pescoço de Breuer ... Sem seu aval! O sujeito,na passagem ao ato, é
paixão da ignorância. Ele faz um risco na dialética das perguntas e
58 A transferência e a cura

das respostas. Ele é também recusa da interpretação. Em todos os


casos os atos recusam o saber. Há porém, uma grande diferença en­
tre o ato analítico e a passagem ao ato: o primeiro, o ato analltico,
amarra-se sobre um impossível de saber reconhecido, o segundo so­
bre uma recusa de reconhecer o saber que não é impossível. O ac­
ting out é outra coisa, está do lado so inconsciente, de uma manffesta­
ção selvagem do inconsciente. Lacan o evoca muitas vezes durante
seu ensino: toda a ligação de Dora, seu quarteto com seu pai, Sra K,
Sr.K. O amor demonstrativo e exaltado da jovem homossexual por
sua dama. O ardil confessado pelo paciente de Kris a respeito dos
miolos frescos, até a uperversão transitória11 do paciente de Ruth Lebo­
vlci. Em cada caso uma verdade pode ser lida, sobretudo quando o
acting out se impõe como réplica a uma intervenção do analista. De­
ver-se-ia acrescentar ainda o acting out do anaJista, deixando-o de la­
do, contudo, pois é a verdade desconhecida do ato anaHtico em si
mesmo que vem ai manifestar-se: "falta de sentido indicada pelo ato
psicanalítico", diz Lacan. "0 analista chega a elevar uma prece idolátri­
ca à sua escuta, fetiche no seu seio surgido de uma via hipocondría­
ca\ Alusão feita àqueles que, em 1 967 objetaram seu passe. Porém,
mais além da ocasião particular, Lacan lê aí que o objeto promovido
a fetiche continua sozinho a testemunhar a antinomia que separa o
ato do saber inconsciente e que faz do analista, na experiência, um objeto.
Em todos os casos do acting out a verdade fala de forma anôma­
la, portanto, é quase um ºhaja o que houverº . Para D ora, ela diz seu
ser algures, alí onde está a outra mulher, a SraK, ou melhor, a esco­
!i1ida de Deus, a Madona. Para a jovem homossexual, a verdade se
faz mais demonstrativa. Ela mostra, substituindo-o, o que é o amor
ao qual se aspira. Para o paciente de Kris é um ºnada a fritarª (a ser
aplicado à interpretação) que entrega a chave das suas relutâncias,
enquanto que a suposta peNersão do homem dos mictórios faz colo­
fãa da castração feminina. Há pois uma questão: como situar a dife­
rença do acting out com as formaçó�s do inconsciente e, sobretudo,
com o sintoma, já que nos dois casos, a verdade aflora ao ponto de
se prestar à interpretação? Para dizer a verdade, o que é que não é
interpretável? Mesmo com a morte que é o que há de mais fora de
sentido. é suficiente acrescentar um segundo significante, morto para
a França e, imediatamente, é uma interpretação; o acontecimento o
mais fora de sentido, o mais real, toma então lugar no registro signifi-
O acting out na cura 59

Também vocês podem dizer morto como um cachorro, ·não terá o


mesmo efeito, mas terá também um efeito de verdade. Evidentemenc­
te, nem toda interpretação é desse tipo e, na análise, para ser correla­
ta à decifração, ela se avalia pelo seu alcance, pelos seus efeitos, se­
gundo ela atinja ou não o alvo sobre o sujeito. Ora, a experiência mos­
tra que a interpretação do acting out, ainda q ue possível, não pode
ser recebida pelo sujeito. E isso por falta de subjetivação. Volto, por-
0
tanto, à frase inicial: 0 que diz não é sujeitoº . Situemos a diferença
com o sintoma sob transferência. Ela pode ser descrita clinicamente.
Primeiramente, do sintoma o sujeito se queixa Carrega-o com sua
moléstia e mais ainda com sua pergunta. Ao contrário, do acting out
ele não se queixa. Passa mesmo despercebido e, mais frequentemen­
te, é contado como uma casualidade e sem que se coloque a ques­
tão de seu sentido. Por outra parte, o sintoma, mesmo se ele é opaci­
dade, é uma ºopacidade subjetivaº , retomando uma expressão de Jac­
ques Lacan. Ele é reconhecido pelo sujeito por encobrir uma parte
0
da sua verdade, visto que ele se interroga com um 0 que isso quer
dizer", dirigido, na ocasião, ao analista. Em uma palavra, ele é supos­
to legível. Nada disso para o acting out. O sujeito não sabe o que is­
so diz, nem mesmo que isso diga. O acting out fala, mas ele fala tão
bem o impessoal º seº que o sujeito frequentemente desconhece que
isso faça sentido. Nisso, ele está mais próximo do sintoma fora da
transferência. O sujeito, pois não aparece sequer como denegador, a
denegação sendo, segundo Freud, o seu modo de estar presente no
que se diz do inconsciente. No ºnão é... o que eu quero ou o que eu
quero dizer", da denegação, o sujeito afirma (Bejahung) ainda que
sem assumí-lo, sem tomar a seu cargo um conteúdo inconsciente.
Aqui o acting out não é nem sequer suposto legível. Seja o que for
q ue ele diga, não é considerado. Sintomas e acting out, se ambos têm,
como fatos de verdade, estrutura de ficção, diferem, no entanto, quan­
to ao lugar do sujeito: em um, este está representado, em outro não.
O sintoma, com efeito, constitui sua mensagem como metáfora (é a
nossa hipótese de base) e nesse sentido o sujeito está aí ainda que
de forma desconhecida. O acting out não tem estrutura de metáfora.
Porém não há dúvida de que ele ocupe um lugar da dialética da rela­
ção com o Outro: muito frequentemente lhe é destinado e lhe respon­
de igualmente bem, sobretudo quando a interpretação se perde e ele
se oferece a ser interpretado ao bom entendedor que faz falta. O ac-
60 A transferência e a cura

ting out é, quando ocorre, uma verdade solta; ele mostra, indica, da
verdade, o que sobra. Religa-se pois fundamentalmente, a uma estru­
tura precisa: aquela que faz a verdade não-toda, sempre meio-dita.
Eis porque sua medida vai bem mais além dos erros do analista.
Há, com o acting out na cura, uma dificuldade de manejo. Os ana­
listas o têm notado desde muito tempo. O acting out é interpretável,
porém não se deve interpretar, porque a sua interpretação não é rece­
bida pelo analisando. Contudo, o analista tem que responder-lhe, pois
enquanto o analisando acte out ele não está na posição de analisan­
do. O analista deve responder-lhe e inclusive evitar que ele aconteça.
É o que Freud faz com Dora quando ela vem lhe contar o pequeno
quarteto entre ela, seu pai, Sr.K. e Sra.K. A primeira coisa que Freud
faz, Lacan o observou no seu texto sobre a transferência, não é inter­
pretar, é dizer à Dora ºvocê tem a ver com issou . Ele maneja o acting
out tentando tomá-lo na transferência, fazer com que Dora perceba
aí um sentido, portanto um saber a articular com o sujeito. É dizer-lhe
que não é por acaso que ela está aí, que ela tem parte nisso. Não é
uma interpretação. Digamos que é uma tentativa de sintomatizar o ac­
ting-out, ou melhor, uma tentativa de ºRetificação subjetivau , segundo
a expressão que Lacan emprega na uoireção da curaº .
Agora, algumas breves considerações sobre as duas grandes neu­
roses: histeria e obsessão. Pode-se falar da obsessão como uma for­
ma da histeria, mas aqui oponhamo-las. O sujeito obsessivo está cheio
de pensamentos, mas não de pensamentos do inconsciente, pensa­
mentos de absolutamente nada que desfilam sem consequência. A
histérica, pelo contrário, tem seu modo fenomenológico que é o va­
zio, ela experimenta o seu vazio. O primeiro encontra-se mais do la­
do do ºeu não penso, ºeu não penso o inconscienteº , do lado de seu
ser petrificado ou dubitativo, ou os dois ao mesmo tempo. Ele não tem
o sentimento de seu vazio, porém tem um sentimento muito forte de
não existir, de estar longe, cortado da vida, que acompanha sua posi­
ção de ser na petrificação. O segundo agrega ao vazio o sentimento
de ºeu não sou". Diria que, por estrutura, o obsessivo oscila, preferen­
cialmente, entre inibição e passagem ao ato, o que não quer dizer
que não se encontre acting out na neurose obsessiva, enquanto que
o histérico está mais sujeito ao acting out. Creio que esta constatação
fenomenológica é bastante coerente com a posição do sujeito que es­
tá implicado nos dois casos.
O acting out na cura 6 1

A posição obsessiva consiste em tamponar a inconsistência do


Outro, alí onde não há significante no Outro, em cobrir todo o real com
significante. A partir daí, o que acontece com o real fora do significan-
. te que, não obstante, existe? Passa ao ato, com frequência, irruptiva­
mente, sendo suas formas extremas o ato suicida, o ato criminal. O
ponto de inconsistência do Outro inspira ao sujeito obsessivo ódio e
terror; tenta encobrí-los pela maré de seu trabalho mental e por suas
inibições, mas elas se dilaceram na irrupção da passagem ao ato.
O histérico é o próprio sujeito, o sujeito dividido, o inconsciente
em exercício. Sua relação com a verdade e com o sentimento de sua
divisão posta no lugar do 0semblante11 , difere completamente e é isso
o que escreve o discurso histérico:

-
$ ---- -
S1
a
82
o sujeito dividido encontra-se no lugar do agente, no lugar do que co­
manda, para um benefício que é de produção de saber. Mas, há aí
algo assim como uma simulação do discurso. O sujeito histérico pare­
ce demandar o saber, mas o que ele quer é o ser, o ser que ao mes­
mo tempo faz falta (défaut) - falta a ser - e desafio(défi) - questão.
Sua maneira de remediar a falta de ser, é o laço social pelo qual ele
tenta alojar-se no vazio do Outro. É necessário toda uma estratégia
(intriga, diz Lacan) , marcada, de um lado, por sua obsessão de ser
excluído, excluído das casas, das famílias, das associações, dos cora­
ções etc., do outro, por sua intolerância feroz a respeito de tudo o
que possa obturar essa falta do Outro. No que concerne ao desafio,
o histérico e sobretudo o histérico em análise, o sustenta até o fim.
Ele se faz de herói (o mais frequentemente a heroína) desta verdade
que seu ser é incomensurável ao saber, alojado no lugar inefável da
verdade apreensível; o que escreve a linha inferior do discurso histérico.
Pois bem, o acting out parece-me ser, por excelência, na histeria,
o instrumento clínico deste desafio: uma ficção que permite ler esta
verdade do ser, que permanece fora dos alcances do verbo, e que
é, ao mesmo tempo, derrisão e apelo ao saber. É acting-out do ser
em busca do parceiro que tem a chance de responder º.
II
A angústia na cura1

Em psicanálise o problema é: como, operando com o significante,


operar sobre o Real? Neste caso, sobre o ReaJ do gozo, do ser de
gozo. Como operar já que o significante engana sempre; engano es­
trutural, produto de seu caráter binário. Pois bem, neste problema, a
angústia ocupa um lugar privilegiado, pois ela é o afeto da certeza
Certeza coordenada, não obstante, com o significante, ou melhor, com
o que desliza no significante, o desejo. Quer dizer que ela é o ponto
de junção e, por isto, é um sinal essencial.
O que é que angustia em uma psicanálise? É o psicanalista. Ele
é o "ancoradouroº da angústia, segundo a expressão de Lacan. Com
efeito, é preciso observar que os termos com os quais Lacan localiza
a angústia, são os mesmos com os quais define a função do analista:
desejo do Outro, em primeiro lugar, e objeto a
O psicanalista angustia duplamente: pelo ato e pela interpretação.
Primeiramente, angustia porque o ato em si mesmo ordena, leva con­
sigo um imperativo, presentffica uma exigência. Outros discursos su­
portam outros mandamentos, por exemplo, o de marcar o mesmo pas­
so que os demais; o discurso analitico ordena dizer. Seu imperativo
é ºdiga!", mas não qualquer coisa, não o que for, como pode-se ima­
ginar a partir da noção de uassociação livre º . O rdena, diz Lacan, que
a causa do desejo seja o agente do discurso. Isso implica um dizer
especial, cujo vetor é o Che vuoi?, que não se obtém apenas através
do automatismo da associação livre. Por isso Lacan fala de •trabalho·.
É preciso dizer que uma parte da técnica consiste em ordenar, não desde
1
Trad ução do man u sc rito em caste lhano Dei uso de la angustia.co mparad a à tra­
d u ção de D i a n a Rabinovích do Transferência y angustia (Finales de analisis, M a­
nanti al) . Rev i s ão de Maria Lu iza M ota M i randa.
A angústia na cura 63

o significante mestre, senão desde o objeto. Que o analista opere com


este no enquadre (mais ou menos tempo, mais ou menos dinheiro,
mais ou menos sessões), ou com o silêncio, ou com a interpretação
no sentido próprio, qualquer que seja o caso, o ato diz não à tagareli­
ce, à palavra vã. Podemos aqui evocar a maneira pela qual Freud acos­
sa o ºhomem dos ratosª . Experimentamos, além disso que o analisan­
do também o registra assim, pois responde às vezes com angústia,
por exemplo, quando inicia a sua cura, vivendo a psicanálise como
uma demanda de resultados, como um udevo chegar°. A presença
mesma do analista equivale então a um ºnão é suficienteº . Esta é a
primeira vertente.
A segunda é a da interpretação. Ela mesma, ao ser verdadeira, é
ancoragem da angústia. Entendo a interpretação não enquanto diga
a significação, ou sublinhe os significantes mestres, mas a interpreta­
ção que, pelo equívoco, aponta a latência na metonímia dos ditos do
analisando, do que Lacan chama "outra coisa".
O "não te faço dizer• que Lacan dá como o protótipo da interpreta­
ção, não angustia menos que o "diga", do ato. Porque é equívoco,
porque tem duplo sentido, e também deixa indetenTiinado o ªoª do 0 0

que se diz no que se escuta".


Neste sentido a interpretação aponta, faz surgir a presença de al­
go, que o paciente não sabe e que, não obstante, diz metonímicamen­
te. Este 11x" também é angústia como presentificação do desejo do Outro.
Então, a operação analrtica que não se reduz à interpretação, vai
buscar o ponto de angústia do paciente; não pode evitar procurá-lo,
ainda que sua meta não seja a angústia mesma, mas, o real que é o
referente comum da experiência analítica e da angústia Por isso, se
tivéssemos tempo poderíamos ordenar as diversas orientações dos
psicanalistas segundo a maneira de tratar a angústia, porque essa
maneira é sintomática da finalidade que dão à psicanálise, e da apos­
ta que fazem no tocante ao Outro.
Porém, prossigamos. Na cura, temos de conhecer a angústias sob
transferência. Quer dizer que podemos ordenar os fenômenos da an­
gústia segundo os momentos da transferência e, em cada momento,
segundo a estrutura do analisando, isto e, segundo a sua posição a
respeito da fantasia.
Vou dedicar-me a três pontos:
- Podemos comprovar que, desde Freud, nenhum analista define o fi-
64 A transferência e cura

nal da análise a partir da angústia. Se a saída da transferência possui


um afeto, este é antes a depressão ligada ao luto do objeto (qualquer
que seja a forma com que se defina esse objeto) . Lacan precisa, a res­
peito, uma tonalidade maníaco depressiva que integra a elaçáo11 de Balint.
11

- A respeito da entrada em análise direi que tampouco ela começa pe­


la angústia. Isto é menos evidente e até pode parecer paradoxal, pois
sabemos que, às vezes, a angústia pode motivar uma demanda de
análise. Mas, precisamente, quando se inicia pela transferência que,
enquanto relação ao saber, tempera a angústia. O sujeito suposto sa­
ber, em si mesmo, não angustia. O vemos, mais uma vez, no caso
do ºhomem dos ratos ª . Isto, podemos verificá-lo no fenômeno e situá­
lo na estrutura.
No fenômeno, vemos, por exemplo, que a entrada na transferência
substitui a certeza e a iminência da angústia é substituída por uma tem­
poralidade de espera, que significa também um aprazamento da certe­
za. A associação livre permite ao sujeito deslizar na cadeia significan­
te e esquecer através da alienação significante o que não engana. Es­
te efeito apaziguador da relação epistêmica da transferência (segun­
do a expressão de Jacques-Alain Miller) se traduz, como sabemos,
em amor de transferência. Amor que também cobre, oculta o objeto
angustiante que é o analista.
Podemos situar estruturalmente esse fenômen_o se pensamos no
que Lacan precisa acerca do algoritmo da transferência,ou seja, que
a significação do saber ocupa o lugar do objeto ainda latente. A an­
gústia surge quando o objeto se faz patente.
- Terceiro ponto. No movimento da transferência deve-se dizer que o
analista tem a seu cargo a tarefa de angustiar o paciente. Explico-me:
a inclinação da transferência consiste em desenvolver uma série de
significações que se manifestam quando o paciente reconstitui sua
história, tentando estabelecer uma continuidade temporal e explicati­
va A intervenção do analista aponta a essa outra coisa que se mani­
festa nas rupturas do significante. Na medida em que essa operação
inclina a transferência rumo à vertente da separação, ela faz retornar
também momentos de angústia. Ela é o ºempuxo-à-angústiaº . Tenta
fazer com que o sinal de angústia surja como resposta, pois ela indi­
ca o registro da relação com o objeto do desejo do Outro, desejo que
a fantasia, como cenário imaginário, encobre. A finalidade, evidente­
mente, não é a angústia; é bem, extrair da angústia sua certeza.
A angústia na cura 65

Darei agora um pequeno exemplo paradigmático, o de uma pes­


soa que, após cinco anos de análise, pensava ter chegado ao final e
que seus sintomas estavam resolvidos. Ao mesmo tempo sentia dor
e a impressão de que seus objetos lhe faltavam, apesar de estarem
com ela. Solicitava a aprovação para interromper a análise e a garan­
tia de poder regressar se fosse preciso. Ocorreu o seguinte fenôme­
no: durante as sessões a angústia era maior, dizia correr perigo e co­
meçou a produzir o que chamarei de frases interrompidas. Suas fra­
ses começavam e se rompiam com a voz desfalecida. O protótipo se­
ria: uEu ... ".
Haveria muito que dizer a respeito. Observo que deste modo é
aberto o intervalo significante (impedindo a produção da significação) .
Evidentemente, o efeito é ter o outro suspenso, de um modo tipica­
mente histérico. Quero porém sublinhar que a angústia surge alí on­
de, ao mesmo tempo, se manttesta para o sujeito como pura clivagem,
descontinuidade, ali onde, descobre o intervalo significante, ali onde,
precisamente, se aloja outra coisa. Devo acrescentar que as sessões
terminavam com uma incursão até a geladeira, ação que podemos
considerar quase um acting-out, isto é como uma posta em evidência
do objeto, (neste caso, do objeto da pulsão).
Desse modo, coloca-se uma questão: é possível analisar alguém
q ue o analista não possa angustiar? (Caso haja tempo, darei um exem­
plo na discussão) .
Pois bem, se o analista tenta fazer surgir a angústia como respos-
1a. devemos ter claro que o manejo da transferência para o analisan­
do se orienta na direção inversa: o analisando resiste com a sua fantasia.
Sua fantasia está destinada a isso: encobrir a angústia. Lacan o
assinalou na ºSubversão do sujeito", e o precisou na sua apresenta­
ção do seminário sobre º A lógica da fantasiaº, quando se refere à fan­
tasia como real. Inverte, naquele momento, (1 969) , sua avaliação do
neurótico, assinalando que o neurótico é um covarde, que olha sua
fantasia de "binóculos\ "pois está ocupado em sustentar o desejo do
Outro. Q uer dizer que o neurótico mantém sua relação com o desejo
do O utro de tal forma que não se produza o ponto de angústia Nes­
se sentido, não se termina uma psicanálise sem modificar essa posi­
ção a respeito da fantasia Ou seja, cada estrutura, mais além da par­
ticularidade de cada caso, responde de maneira típica à chamada da
outra coisa, outra coisa que o analista presentffica
66 A transferência e cura

O que faz o neurótico - obsessivo ou histérico - na transferência?


Acentua precisamente a indeterminação do sujeito. Cada um deles,
por certo, de maneira muito diferente. O obsessivo trabalhando na
busca do significante impossível de seu ser, e a histérica mostrando
a impotência do significante em alcançar seu ser. Evidentemente a his­
teria tem vários modos de fazê-lo; pode calar presentificando, às ve­
zes chorando, o mistério de seu ser, quer dizer, pede ao outro que fa­
le em seu lugar. Ou, pelo contrário, pode falar abundantemente, com
esmero e por amor, encantando-se com as possibilidades do signffi­
cante para conter seu insondável mistério: isto é, acentuar o desliza­
mento significante e dizer ao outro "busca-me!" Podemos, portanto, fa­
lar do falso trabalho dos dois, falso no sentido que trabalham - quan­
do trabalham - inutilmente no que concerne à revelação do seu ser.
É aqui onde o psicanalista pode não se fazer cúmplice, o que supõe
provocar o ponto de angústia que surge, quando a presença do dese­
jo do O utro faz iminente a revelação da sua determinação.
Os fins próprios do Ato analítico 1

Vou interrogar o ato psicanalítico sobre seus fins . Para fazer isto,
perguntemo-nos o que ele promete como fim de análise. Esse Ato,
que Jacques Lacan promoveu como o correlato da sua lógica da fan­
tasia, eu vou submetê-lo à questão da insistência repetitiva do sinto­
ma Em 1968, com efeito, Jean Robert Rabanel o relembrava há pou­
co, Lacan colocava que o fim do ato é produzir o incurável. Em 1975,
ao contrário, ele situa o final da análise como identificação ao sinto­
ma É esta variação que eu quero interrogar. Como espero, nesses
vinte minutos conseguir lhes dizer o que tinha previsto, vou andar
um pouco rápido.
Observarei, primeiramente, que o ato e o sintoma, em sua diferen­
ça, têm um ponto de ligação comum na estrutura. O materna desse
ponto é S(A ) , a saber o materna que inscreve a falta do Outro e nota­
damente a impossibilidade de escrever a relação sexual. É o materna
da foraclusáo do sexo no O utro, que nós podemos chamar foraclusão
generalizada. O Ato é um dizer que responde neste ponto, onde o
Outro faz falta; origina-se pois do real, mesmo que seus efeitos este­
jam, às vezes, no simbólico. O sintoma, enquanto tal, esta condiciona­
do por esta mesma foraclusão, mas é um outro modo do real. É o
modo do necessário, a saber, o que não cessa de se inscrever co­
mo uma suplência da relação vazia. Em outras palavras, cada sujeito
inventa ou pelos menos adota � se inventar é dizer demais - um ºem
lugar deº , alguma coisa que vem no lugar da relação �azia, no lugar

1
P ubli cado in Actes de l 'Écol e de la Cause freudienne. L 'actes et la répetitíon,
Paris, 1 987, p.1 8-20. Revisão de Jairo Gerbase.
68 A transferência e cura

onde o parceiro falta. Assim é resumida a função do sintoma, função


renovada e reelaborada por Lacan, sobretudo no Seminário, R. S.J . . Is­
to quer dizer que não não há sujeito sem sintoma, na medida em que
a função do sintoma é a de fazer prótese à foraclusão do sexo. Eis
pois a questão: como opera o Ato sobre esta função necessária do
sintoma, em outras palavras, que variação - Lacan diz ºvariedadeº e,
para equivocar com a ºvariávelº da função, ele forja a varidade0 do sin­
0

toma - que variação então o Ato faz passar ao sintoma na cura? Rapi­
damente, serei levada a explicar esta asserção de Lacan: a psicanáli­
se é a operação do sintoma, no duplo sentido, a saber, que se ope­
ra sobre o sintoma e que se opera pelo sintoma
Dessas variações do sintoma, vou situar três: uma de entrada, e
isto não é uma novidade, uma que eu diria do longo curso da análi­
se, e uma de saída. Isto supõe então duas básculas.
Naturalmente, tomar as coisas assim implica que se postule que,
se o sintoma é suplência, todas as suplências não se equivalem. O
problema sendo, desde aí, definir o valor. A ética da psicanálise não
sendo uma éti"ca das normas, o que é que dará o padrão de valor?
Claro que temos uma primeira resposta: a escala de valor, para nós,
é o valor de uso de gozo mas ele cria problemas já que este uso es­
tá cheio de paradoxos. E já dever-se-ia dizer gozo para quem? Já que
o valor de gozo não está, para o falaser, sem relação com o valor de
troca. Há o Outro ineliminável. Concretamente, isto quer dizer que o
autismo não se sustenta. Há, certamente, gozos autistas mas são obri­
gatoriamente locais; Freud o tinha notado há tempo, estranhando que
se a doença por não poder amar0 ele dizia, ou seja, por não poder
11 ,

transferir a libido para fora de si próprio.


Vou tratar um primeiro ponto: o sintoma sem o Ato analítico, quer
dizer, o sintoma antes da entrada em anáJise. É notável que há vários
tipos de sintomas. E primeiramente o Outro do discurso propõe sinto­
ma. O sintoma que o Outro propõe é a normalidade. A normalidade
consiste em colocar normas como remédio à não-relação, mais frequen­
temente são normas-males (normes mâ/es,normas machos), dizia La­
can. A normalidade é a suplência por excelência, que satisfaz ao Ou­
tro e quando ela chega também a satisfazer ao sujeito - é uma reser­
va de peso - é um sintoma evidentemente incurável. No outro extre­
mo, a outra forma que eu gostaria de evocar em segundo lugar, é a
perversão. A perversão, é um sintoma satisfatório, no sentido em que
Os fins próprios do ato analítico 69

ele faz suficiente - já que satis, quer dizer suficiente em latim -suficien­
te suplência de gozo. Ele supre suficientemente à ausência de relação
sexual. Esta satisfação do sintoma perverso não exclui a queixa, nem
mesmo o sofrimento do sujeito perverso. Tomo aqui como protótipo
M. O Maldito, esse filme maravilhoso de Fritz Lang. A função de suplên­
cia impõe-se na sua simplicidade: seu personagem, não podendo tran­
sar com mulheres, estrangula as meninas. Ele sofre porém com autên­
tico sofrimento, que é aliás em parte o eco disto, que os primeiros a
sofrer de seu sintoma, são os outros, suas vítimas, efetivas e poten­
ciais, e seus próximos. Seu sofrimento é autêntico porém impotente
para tamponar a satisfação diabólica do sintoma. Este exemplo desve­
la bem que um sintoma que satisfaz como suplência, sejam quais fo­
rem as dores que o sujeito deva pagar por ele, não se presta para s
análise. Em outras palavras, não se analisa Jack o estripador, mes­
mo se está muito triste, até arrependido das consequências de seus
atos. Aviso aos psicanalistas que passeiam nos cárceres: é preciso
que saibam que há atos sem apelo. Assim é, em todo caso, que eu
me explico porque Jacques Lacan pôde, sem mais informação, desa­
conselhar radicalmente a receber a um sujeito que tinha matado seu pai.
Entre esse sintoma da normalidade que satisfaz ao O utro, e o sin­
toma da perversão que satisfaz à ausência de relação sexual, enire
os dois, há naturalmente, um terceiro lugar, o sintoma neurótico. E!e
é esse sintoma neurótico - que Freud consagrou com o termo compro­
misso duplamente insatisfatório a respeito do gozo e a resperto das
normas. Nesse sentido ele é anormal - aliás, o neurótico se sente anor­
mal - mas ele também não chega a ser perverso, somente sonha com
sê-lo e justamente porque não o é. Entre essas duas insatisfações, o
sujeito se queixa. Assim, o sintoma neurótico, por excelência, é, eu
acho, o que Lacan chamava num momento, a histeria sem sintoma,
pelo menos sem sintoma no sentido clássico e nosográfico do termo.
A histeria sem sintoma, é o sujeito que eleva a queixa à dignidade
do sintoma. Aí está verdadeiramente o pedestal do sintoma, porque
temos a ver com um sujeito que não cessa de demandar a relação
que falta e que, ao mesmo tempo, rechaça toda suplência neste lugar,
que ele marca somente com a sua queixa inextinguível. É uma posi­
ção que denuncia, em verdade, o caráter supletivo de toda suplência
de gozo. Este rechaço, quando tenaz vai às vezes até à própria bele­
za, até à morte, que não é sem relação com ela (ct. aqui, Sócrates) .
70 A transferência e cura

Q uai é a incidência do ato sobre o sintoma na entrada da psicaná­


lise? A incidência primeira do ato, é tornar o sintoma analisável. É uma
troca torná-lo analisável e ºtornarº deve ser aqui entendido no senti­
do de uma produção. Notem que quando os psicanaJistas da Interna­
cional tentam diagnosticar.antes de uma psicanáJise, os sujeitos anali­
sáveis e os sujeitos inanalisáveis, de uma certa maneira eles falham
quanto ao ato analítico, já que é a este que incumbe em parte fazer
virar o sintoma neurótico para a análise. Constata-se que isso não é
possível em todos os casos, mas não se deve confundir os obstácu­
los de fato com os obstáculos de estrutura.
O que é preciso para que um sintoma seja analisável ? Proponho
isto: é preciso que esteja em perda de gozo como se diz em perda
de velocidade. Eis o que lhe permite "fazer signoº , signo que na oca­
sião acha um qualquer um, um qualquer um psicanalista, como diz
Lacan em ºRadiofoniaº . Por pouco que esse signo seja assim recebi­
do, o sintoma muda de uso, quer dizer q ue ele troca seu vaJor de go­
zo insuficiente contra um valor de saber: é a entrada na transferência.
Sublinho que o º desejo decidido 11 do quaJ Lacan faJa, tem como condi­
ção uma falha do sintoma, no sentido que acabo de dizer, duma fra­
queza de sua função-tampa, já que a função de suplência é uma fun­
ção-tampa para a hiância do sexo. Na entrada, pode-se bem dizer
que o Ato analítico tem por efeito proceder a uma dissociação do sin­
toma, se ela já não foi feita, a uma separação entre seu núcleo de go­
zo e seu envelope formal. E uma primeira mudança - precisemo-lo, re­
tornando um termo de Lacan - é uma "desaificação° , no sentido da ex­
tração do a. Por esta desaificação, o ato faz arranque para a palavra.
Em outras palavras, ele permite que, aí onde havia o gozo do sinto­
ma, e onde por pouco, teria havido vazio, ele permite que venha o
que vai produzir o trabalho da transferência, a saber retaJhos de sa­
ber inconsciente. Eis a entrada.
O segundo tempo, é pois o trabaJho da transferência Eu acho
que pode-se dizer que se trata da reconstituição de um sintoma, ou
se se quer dum equivalente. É assim que Lacan o formulou na oca­
sião. Com efeito, ·o laço analista-analisando é um laço a dois, um biná­
rio que vem pois no lugar da relação sexuada. O analisando fixa-se a
esse binário, inédito antes de Freud. E é importante q ue nesse acasa­
lamento o analista saiba o que do gozo o determina A hemorragia
_d e gozo que supõe a entrada na psicanáJise acha-se compensada
Os fins próprios do ato analítico 71

por um outro gozo, e primeiramente, aquele da decifração, tanto que


Freud têve a intuição profunda de que a fala a ser não renuncia nun:
ca a nada. O sintoma analítico faz vir o saber inconsciente no lugar
do sintoma. A transferência como amor desse saber transferido ao
analista, faz do analista o depositário, o suporte suposto desse saber
como dessa cifração. Não seria pois excessivo dizer que o upsicanalis­
ta11 é um nome do real. Desde aí e nesse sentido posso compreender
que seja bem o sintoma que opera na cura O problema é que o sinto­
ma da cura deve ser um sintoma transitório, e que, se o nome do ana­
lista é um nome do real numa cura, é um nome para ser perdido, co­
mo o Nome-do-Pai. Daí, talvez, um problema, quando o psicanalista
tem um nome próprio. Um nome que pode fazer obstáculo, no mo­
mento, para que se desate o binário sintomático.
O terceiro tempo que imputo à operação do ato, é uma operação
contra o sintoma. Depois de ter feito o sintoma analítico, trata-se de
desfazê-lo. É preciso, para que isto aconteça, que o analista não pa­
re de encarnar o que falta na cifraçáo, é uma outra desaificação. Isto
supõe uma disciplina no manejo da interpretação, no manejo do equí­
voco, já que o equívoco é uma tentação. Em todo caso, é bem por­
que a operação do Ato é o que deve desfazer o sintoma analítico que
se pode dizer, como faz Lacan, que o ato não é verdadeiramente su­
posto senão ao final, mesmo se ele está ao alcance de cada entrada
na psicanálise. Ainda é preciso que a saída seja boa A boa é aquela
que satisfaz. ºHá uma satisfação de fim a fornecer com urgênciaº dizia
Lacan, colocando assim uma urgência final como contrapartida da ur­
gência subjetiva que motiva a entrada na cura. Aquela que não é boa,
eu a definirei pois como aquela que não satisfaz. Talvez a sua aparên­
cia mais frequente seja a saída no desgaste, de longo tempo, de guer­
ra cansada, aquela que se faz sobre um ºchegaº de pura resignação.
Existe mesmo o caso onde é o analista quem profere esse ªchega",a
escrever como queiram (c 'est assez, cétacé,cetáceo} para equivocar
com a ªbaleia da impostura11 que não é o atributo de Schreber. A saí­
da que é boa é aquela que satisfaz. Como entendê-lo? Eu correlacio­
no isto à identificação com o sintoma. Que o paciente se identifique
com seu sintoma é a expressão literal de Lacan em R. S. I. a satisfação
que procura a restauração, não direi dum novo sintoma, mas em to­
do caso, a restauração nova duma outra suplência sintomática que
não a da transferência.
72 A transferência e cura

O que supõe como modo de intervenção a identificação com o


sintoma? Eu acho que é tratando de definir uma intervenção analítica
que consiga por um termo à decrfração infinita do inconsciente que
Lacan foi levado, não somente a elaborar mais adiante a sua catego­
ria do Real, mas a introduzir o nó borromeano, e a formular uma para­
da pensável da dimensão da única cifração em termos de sutura ou
de costura, em outras palavras, em termos de nó entre o real da cifra­
ção, que remete. ao simbólico, e um outro real, aquele do objeto a -
mais de gozar, o qual não vai ele próprio sem o imaginário. Isto quer
dizer que é preciso chegar, na psicanálise, a correlacionar o efeito
de sentido ao real. O simbólico dá a dimensão do sentido, mas de
um sentido que permanece com vários sentidos. O imaginário do cor­
po e de suas hiâncias determina bem um sentido - e nesse sentido,
é o objeto que distingue o verdadeiro e o falso na psicanálise - é pre­
ciso, por outro lado, um real que fixe o sentido e, talvez, seja essa a
função da letra.
O incurável é aquele cujo sintoma compensa ªsuficientemente11 a
ausência da relação, é um sintoma endurecido. Será um retorno ao
statu quo ante ? Seguramente não. Em primeiro lugar, porque é um
sintoma aceitável - seria necessário precisar em que sentido - e para
o neurótico, é uma mudança, se se chega lá Em segundo lugar, es­
sa satisfação do sintoma é uma satisfação, não sem sabê-lo, e há
uma satisfação própria, suplementar, que se ata ao saber. É uma satis­
fação que não exclui o ato, já que o ato surge do que eu chamei na
0
ocasião 0 athoismo do analista - com um h para equivocar com ateis­
0
mo. O athoismo surge do saber que 0 um dizerº não diz mais que
um, mesmo que seu sujeito não esteja sem o objeto a , donde a satis­
fação possível.
Eu acredito pois que o sintoma deixa de fazer signo quando assim
tornou-se um nome, e é um objetivo que poder-se-ia se propor no fi­
nal de cura: poder dizer o nome de cada analisando, seu nome de
sintoma. Para tornar sensível a distinção entre o fazer signo do sinto­
ma e o nome de sintoma, volto a M. O Maldito. Isto me permitirá si­
tuar uma diferença entre neurose e perversão .. Não é genial que no fil­
me de Fritz Lang se encontre uma indicação desta diferença entre o
sintoma como signo e c·o mo nome? O que faz signo para M.O Maldi­
to é a musiquinha que acompanha sua deambulação, que anuncia o
assassinato mas que somente os cegos escutam, aqueles que não
Os fins próprios do ato analítico 73

estão cativados pelo gozo da visão. Eis aí o signo do sintoma. E de­


pois há a letra M. que se imprime nas costas de M. O Maldito , é seu
nome maldito, do qual é preciso dizer, não que se identifica mas que
o outro se lhe identifica, e esta é uma diferença com o neurótico no fim
da psicanálise.
As regras da interpretação 1

Antes de chegar ao meu propósito exato desta noite, preciso en­


quadrar um pouco a questão e lembrar primeiramente que a interpre­
tação não é a única função do analista. Por isso não acho inútil rees­
crever a fórmula do discurso analítico:
a� $
S2 S1
pela qual Lacan formaliza o laço que é a análise, e que tem a vanta­
gem de visualizar o que chamarei a "função desdobrada do analista.
a
S2
D esde os prirnórdios de seu ensino, os traços deste desdobramen­
to, que não data dos anos setenta, são observados em Lacan. O ter­
mo pelo qual ele comenta a posição do analista como objeto a é um
termo preciso, silêncio: isto ern 1975, no seu pequeno texto intitulado
silên c io a� $
s; �
lmpromptu sur /e disco urs analytique, (Scilicet, 6/7) . Evidentemen­
te, esta é urna função, que primeiramente se reduz a ser aí, que não
é a interpretação. Mas corn2ntá-la longamente não é meu objetivo des­
(a noite.
Poderíamos situar o analistêt entre dois polos: onde? Primeiramen­
te no seu consultório; mas o consultório, é apenas a imagem de outra

1
Art i g o p u b l icado em An alytica, vo l . 4 '1 , N avarin edite u r, Paris, 1 98 5 , p. 1 5-23.
Revisão de fVlario Al m e i da.
As regras da interpretação 75

coisa. É que o analista é alguém que está estabelecido num domicílio,


por alguma coisa que vem do analisando e que se apresenta, da for­
ma mais simples e mais visível, como demanda Esse ser aí (être /'a),
Lacan acabou por _escrevê-lo ser o a, isto é, o a-desenvolvimento que
afasto, mas que é necessário para enquadrar esta' intervenção sobre
a interpretação.
A interpretação intervém a nível desse saber escrito no lugar da
verdade. Baseio-me para isto no que diz Lacan no L 'envers de la
psychanalyse: "0 saber enquanto verdade define o que deve ser a
estrutura de uma interpretaçãoú . Sublinho primeiramente, para justifi­
car meu título, esse lado imperativo da fórmula As º regras da interpre­
tação", também é uma fórmula que tomei emprestada de Lacan, já
que na p. 594 dos Écrits, em11A direção da cura° , ele observa: ºnão
formularei aqui as regras da interpretaçãoº , não que isso seja impossí­
vel mas porque seria necessário fazer muitas considerações prévias.
Portanto, a interpretação deve ser regulada.
Observem aliás, que eu abordo a questão colocando a interpreta­
ção no singular (poderíamos certamente definir tipos, modalidades
de interpretação). Aliás é isso que faz Lacan a maior parte do tempo
e, especialmente nesse grande texto sobre a interpretação que é L 'É­
tourdit, ele põe a interpretação no singular e a distingue assim do
que procede do analisando: seus ditos, no plural. Ele não fala dos ºdi­
tos" do analista, mas do 1 dizer1 da interpretação, no singular.
1 1

Tentarei esta noite dar destaque a algumas observações sobre es­


ta fórmula absolutamente essencial: ºA interpretação concerne à cau­
sa do desejo". Ele antecipou essa fórmula - ele lembra disso no L 'É­
tourdit - a partir do Seminário sobre UA identificação\ em 1961-1962;
desde então sempre voltando a ela Como entendê-la. Esta fórmula
produz confusões, do mesmo modo que aquelas que ele adiantara,
no início do seu ensino,sobre a interpretação enquanto significante:
elas produziram, por parte de alguns analistas, um uso do jogo signffi­
cante na técnica analítica que não se assemelha em nada à prática
de Lacan. E esta outra fórmula: ºA interpretação concerne à causa
do desejo" - tenho algumas razões para pensar assim poderia bem
produzir confusões idênticas - antes, análogas.
Lacan, portanto, a partir de 1960, diz: ºA interpretação concerne
à causa do desejo". Por outro lado, temos esta outra fórmula: A estru-
76 A interpretação

tura de uma interpretação ,é o saber no lugar da verdade u . Aqui, um


ajuste é necessário.
Observem que todos os exemplos da interpretação que Lacan
dá passam pelo jogo significante. Tentemos primeiramente nos aproxi­
mar da idéia de que a estrutura de uma interpretação é o saber no lu­
gar da verdade, para desembocar no problema: em que isso tocaria
ao objeto a ?

Entre enigma e citação

Em 1 7 de dezembro de 1 969, em uo avesso da psicanálise\ quan­


do Lacan antecipa a idéia que a estrutura da interpretação é o saber
no lugar da verdade, ele próprio tenta se fazer compreender - o que
fazia frequentemente, contrariamente ao que se imagina -, e eis o que
ele disse: qual poderia ser o tipo de enunciado que responderia a es­
se modelo. Pois bem, ele o situa ªentre enigma e citação u . O enigma
consiste em colocar uma enunciação, não um enunciado. O enigma
é: presença da enunciação, de uma enunciação que não é de nin­
guém e que não corresponde .a nenhum enunciado de saber. D ito
de outro modo, o enigma é quase a verdade sem saber - ou, se se
quer, a verdade cujo saber está latente, ou suposto; o ouvinte tem
por exemplo Édipo, produzir o enunciado. Vemos bem no enigma, o
convite a produzir - o quê? isto resta precisar que se pode esperar
de uma interpretação, convite latente. Quanto à citação , poderia se
estranhar de achá-la aqui. A citação, é quase o inverso, é mais um
enunciado de saber, saber afirmado, excetuando que o enunciado
que vocês citam, vocês o referem a um nome de autor. E por esta re­
ferência, com efeito, a citação introduz a dimensão da enunciação,
de uma enunciação latente que ela mesma faz vir a luz.
Portanto, de um lado, da verdade com um saber latente - está o
enigma; do outro, a citação - seja o saber como verdade, ou a enun­
ciação latente. Nos dois casos há semi-dizer. Quando uum enunciado
é colhido na trama do discurso do analisandoº , - Lacan não conside­
ra, portanto, que o analista interprete com seus próprios significantes
esse enunciado, se for achado - portanto, de algum modo posto entre
áspas, qualquer que seja a técnica empregada - leva ao enigma. Dito
de outro modo, o analista faz surgir alguma coisa que é mais do que
As regras da interpretação 77

é dito, enunciado. Ele introduz - este procedimento é aditivo - algo mais .

O equívoco

Vamos ao L 'Étourdit, a essas duas páginas sobre a interpretação:


Lacan escreve aí que a interpretação joga com uo equívoco o qual se
inscreve ao lado de uma enunciaçãoº . A interpretação procura a enun­
ciação que se inscreve pelo equívoco. O equívoco é triplo: a homofo­
nia, a gramática e a lógica.
- Ao nível da hom ofonia, o equívoco é a ambiguidade homofôni­
ca, isto é, o que a ortografia torna impossível, o q ue a ortografia bor­
deja a homofonia o deriva Lacan nos fornece exemplos: deux, dois
e d'eux, deles; faillir, falir e falloir, dever, sembler, semear, semelhar
e s 'embler (que conduz ao verbo embler) semear-se, assenhorar-se,
paraitre, aparecer e parêtre, pareser, etc. - onde ele joga com o ºcris­
talº linguístico, isto é, com o fato que a homofonia difrata as signrfica­
çóes e, portanto, introduz automaticamente, a partir desta desmultipli­
cação, uma dimensão que chamarei de interrogativa
- Do lado da gramática, o mínimo de intervenção interpretativa é
º
eu não te faço dizerº . Em que é mínimo? Pelo duplo sentido, a ambi­
guidade portanto. Com ºeu não te faço dize� o ouvinte não sabe se
eu digo: ºvocê disseu , ou: ºeu não te soprei° , já que eu digo os dois.
- No plano da lógica, o equívoco do paradoxo lógico permanece
sem dúvida o ponto mais difícil de ilustrar.
Nos três casos, o equívoco durante um tempo - tempo de suspen­
são, mesmo se pontual -, faz vacilar o indecidido, que só se precipita­
rá em certeza pela resposta que o sujeito produzirá, e que decidirá
sobre o dito da interpretação. Isto supõe, evidentemente, a transferên­
cia. Não há interpretação váJida sem transferência. A interpretação não
opera sem o saber suposto. Acontece que analistas ou analisandos,
por entusiasmo sem dúvida, tentam levar a interpretação para um cam­
po onde não há saber suposto; então, evidentemente, ela falha em to­
dos os lances e cai no ridículo.
Portanto, não há interpretação sem saber suposto, mas é preciso
acrescentar imediatamente que a interpretação nunca é o enunciado
de um saber. O saber fica aí em reserva. O melhor termo é talvez alu­
são. Lacan o emprega no fim de ºA direção da curau : ºa virtude alusi-
78 A interpreta ção

va da interpretação º, e ele a figura pelo dedo levantado de São João,


de Leonardo, que apenas indica Esta idéia no ensino de Lacan, que
a interpretação joga com o equívoco, foi facilmente transmitida; talvez
não quanto ao seu manejo, mas quanto à tese. Permanece entretan­
to a pergunta: o que é que regula este uso? Já que com este tipo
de exemplo poder-se-ia imaginar um analista impetuoso que fizesse
jogos de palavras sobre jogos de palavras, que jogasse com a homo­
fonia, com a gramática, introduzindo deste modo uma confusão com­
pleta numa cura.

Não interpretar em nome do saber

Crtemos aqui uma observação de Lacan, página 48 do L 'Étourdit:


ºSustento que todos os lances são permitidosº - quando se trata de
jogar com o equívoco -ºpelo fato de que qualquer um que esteja ao
seu alcance (ao alcance dos lances do equívoco significante) sem po­
der se reconhecer aí, são eles que nos jogam, saJvo os poetas que fa­
zem cálculo, e que o psicanalista se serve aí onde lhe convém - e La­
can precisa - ºonde é conveniente para seu fim º . Esta é a questão:
onde lhe convém, quando lhe convém, se servir do equívoco significante?
Lacan nos deu um exemplo de má interpretação, de uma interpre­
tação que precisamente não é uma - no sentido do equívoco - pelo
que ela opera em nome do saber - já que intervir a nível do saber su­
posto, não é inteNir em nome do saber. O exemplo desta interpreta­
ção que seria um enunciado de saber e que ele considera falha, se
acha no "Discours à L 'E. F. P .°, página 14 de Scilicet:2/3. Ela manifes­
ta o que ele chama ºa incapacidade do psicanalistaº . Trata-se de uma
interpretação onde justamente o objeto parece concernido, tão con­
cernido que ele é o objeto de um saber. Ele diz, para qualificar esta
incapacidade. uela se manifesta por exemplo frente ao assédio do ob­
sessivo de ceder à sua demanda de falo, ao interpretá-lo em termos
de coprófago e deste modo fixá-lo ao seu excremento, a isso que faz,
enfim, falta ao seu desejo 11 É uma interpretação que, frente a insistên­

cia da demanda, responde por um saber sobre o objeto: nomeando


aqui o objeto. A interpretação em termos de ucoprofagiaº é falha, já
que é uma forma de dizer ao obsessivo: você se empanturra com sua
merda. Não que isto seja falso na oportunidade, podemos mesmo es-
As regras da interpretação 79

crevê-la com a fórmula da fantasia ($ <> a) . Mas, ao nomear deste


modo o objeto. só se faz consolidar a fantasia sobre a vertente onde
ela não é sustentáculo mas, limite do desejo. Dito de outro modo, rati­
fica-se como solução do desejo isto que chamarei seu casamento com
um objeto de demanda, o que, justamente, não convém para o fim
da análise. É faltar ao objeto causa, causa do desejo, que antes quer
dizer.para ficar na mesma metáfora, divórcio. É faltar ao desejo do pa­
ciente e à tarefa do analista. A psicanálise não opera como ciência
do objeto. É, pois, de outro modo que o objeto está presente na in­
terpretação enquanto equívoco.
No ºL 'envers de la psychana/yse u . falando do discurso universi­
tário, Lacan faz uma espécie de amálgama entre a criança educada
e o estudante padecendo suas ºhumanidadesº , como se dizia antiga­
mente; podemos acrescentar: uma certa posição do analisando. Ele
faz esta obseNação divertida: se é a partir do saber que vocês visam
o objeto, que é que resta a fazer, a ele a esse infeliz que é apanhado
aí nesse lugar? E responde lindamente: ele late. Q uer dizer que não
lhe resta mais que se produzir como protesto do sujeito dividido. Es­
ta interpretação equívoca incide sobre o objeto causa, mas não fala
dele, não faz nenhuma pregação a seu respeito. Ela leva luz ao ser
que falta ao sujeito-suposto- saber. Neste sentido, toda interpretação
atinge o sujeito-suposto-saber. Eu disse: não há interpretação sem su­
jeito-suposto-saber, mas a interpretação também lhe atinge.
Primeiramente, ela enceta a suposição de que haveria um sujeito
do saber, no sentido de um sujeito sabendo esse saber. Ela procura
o sujeito aí onde há saber, certamente, mas não há um sujeito para
saber esse saber. Dito de outro modo, ela acentua a separação, a dis­
tância, a oposição entre a posição do sujeito e a posição do saber.
A interpretação - operando com a sobredeterminação que faz surpre­
sa - não leva o sujeito a juntar saber, ela provoca o sujeito a medir
sua separação do saber. Mas, inversamente, ela designa, mobiliza, a
falha do saber na medida em que deixa ao sujeito sua parte na elabo­
ração do saber.

A resistência à interpretação

Este é um ponto que mereceria desenvolvimento mas. antes


80 A interpreta ção

eu queria introduzir a noção de resistência à interpretação. Ela se ma­


nifesta quando o sujeito está particularmente agarrado a uma convic­
ção de saber.
Eu encontro o exemplo num texto do quaJ já tive a ocasião de fa­
lar e que Éric Laurent me havia indicado, aquele onde Guntrip dá con­
ta de sua análise com Ferdern e Winnicott, e que se encontra na Re­
vue lnternationale de Psychanalyse de 1 975, no. 2. Aí se vê Guntrip
chegar à análise com uma certeza concernente ao traumatismo que
causou sua doença e não abandoná-la do início até o fim. Ele che­
gou com um saber que diz que a causa de suas desgraças é sua
malvada mãe, e todo o seu trabalho consiste em fazer avalisar esta
certeza por seus dois analistas. Ao tempo em que ele os usou, ambos,
justo no momento da morte de Winnicott ele faz dois sonhos, que
supõe, provarem, que lhe permitem a publicação deste artigo cujo títu­
lo poderia ser CQD 0 Quer dizer que, trinta anos depois ele mantém
11 •

o saber fixado, não suposto mas perfeitamente enunciado. A respos­


ta do sujeito - categórica - ao enigma de sua doença não mudou. Eis
aí um tipo de resistência que certamente cria problemas técnicos. Je­
an Jacques Gorog, na época de sua conferência na IAMA, em 28 de
novembro, evocava a carta de um analista a uma paciente onde dizia:
por que você precisa crer que sua mãe não lhe amou? Pode-se su­
por que o analista tentava aí, desastradamente por certo, abalar uma
fixação de saber do mesmo tipo.

Suspender a resposta

A interpretação, justamente, atinge a identificação do saber e tem,


de preferência, por efeito, que o sujeito não se reconheça aí. Quando
o sujeito se reconhece no que vocês lhe dizem, podem estar seguros
que isto não é uma interpretação. A interpretação divide: quer a rea­
o
ção seja riso, o estupor, a indignação ou outra coisa Ela não firma
as identificações. Ela faz surgir um: que é que isto quer dizer? que tam­
bém pode-se bem modular em: que é que eu queria dizer dizendo is­
to? ou: que é que ele quer me dizer? Ela presentifica o Che vuoi? 11
11

mas o ªChe voui?º sob sua forma de x, sob sua forma de desconhe­
cido. O efeito obtido é pois o inverso do primeiro exemplo que tomei,
que consiste em dar a resposta: você quer sua merda. A interpreta-
As regras da interpretação 8 1

ção é uma resposta cujo efeito é mais de suspender a resposta. Dito


de outro modo, o objeto aí está concernido certamente, mas enquanto
esvaziado. Assim, ao encetar o sujeito-suposto-saber, a interpretação
atinge também a fantasia, a sutura que ela constrtui. ºEsvaziamento
ºé um termo que Lacan utiliza precisamente para situar esta questão
do objeto no discurso analitico. Esvaziamento, e não produção.
Nesse momento pode-se dizer que em relação a este desejo co­
mo x, a interpretação, que certamente visa a solução, opera contu­
do por um efeito de suspensão. Suspensão de que ? Da solução;
e isso o tempo que fôr preciso, e repetitivamente, para que o anali­
sante elabore a última resposta Ela se inscreve portanto em falso con­
tra tudo o que deveria preencher o lugar do objeto causa, bem longe
de nomeá-lo ou de dizer o que ele é. Mas, como eu disse no início, is­
so não é tudo que o analista tem a fazer. Ú ltima observação: a inter­
pretação não é para manejar em qualquer momento. Freud sem dm­
culdade antecipou - e Lacan o retoma, especialmente no seminário
XI - que a interpretação é correlativa da resistência Isto é bem coeren­
te com o que eu sublinhava ao dizer que o anaJista joga com a inter­
pretação cada vez que isso resiste ao efeito de divisão, cada vez que
a fenda do sujeito acharia meio de se colmatar. Nesses momentos
precisos a interpretação empenha-se em operar, digamos como colo­
tão da enunciação.
Lacan na lnglaterra1

O titulo é suficiente para indicar que se Lacan ainda não se encon­


tra em sua casa na I nglaterra, pelo menos ele consegue acostar gra­
ças à acolhida de alguns.
Quis então um tema propício para marcar as linhas de orientação
e de clivagem no seio do movimento analítico. Escolhi falar-lhes da in­
terpretação. Inicialmente porque não há analista que não esteja de
acordo com isto: a interpretação pertence ao analista. Sobre isto há
um consenso. Em seguida, a idéia que se tem da interpretação e o lu­
gar que lhe é concedido manifesta da melhor maneira, eu diria, o al­
cance prático de cada doutrina. É aí que sua eficácia é julgada; é tam­
bém aí que o ecletismo - ou a indiferença - doutrinária deveria encon­
trar seu limite. Enfim, a concepção que se faz da interpretação é a pe­
dra de tropeço das epistemologias psicanalíticas, sejam elas explícitas
ou implícitas. Certamente seria uma questão saber aquilo que dos gran­
des filósofos empiristas e aquilo que dos grandes logicistas ingleses
foi transm itido para os psicanalistas nascidos ou estabelecidos - já
que muitos foram emigrantes - sobre o seu solo. Em todo caso, vocês
sabem que o lacanismo não é um empirismo. A estrutura, dizia o Dou­
tor Lacan, é o que não se aprende da experiência Tampouco não é
um idealismo; é antes, um realismo do significante, poder-se-ia qua­
se dizer, um materialismo do significante. E um termo que Lacan utili­
za na ocasião e do qual ele prolonga aquele de material, consagrado

1
Traduzido do m a n u scrito da autora. Revisão de M aria Luiza M i randa, baseada
na trad ução para o castelhano d e Graciela B rod osky, publ icada i n Fínales de ana­
lísís , Ed. Manantial, Buenos Aires, 1 988, p. 1 45.
Lacan na Inglaterra 83

pela doutrina É esse realismo do significante que funda, para nós,


os poderes da interpretação.
Ora, a Inglaterra viu desenvolverem-se duas veias opostas:
- de um lado o kleinismo como sistema interpretativo novo que se pre­
tende consistente e complementar daquele de Freud.
- do outro,as teorias da regressão na cura, as quais implicam - eu
lhes mostrarei - numa desvalorização da interpretação; conforme Win­
nicott e Balint, mesmo que de forma diferente.
São três psicanalistas aos quais Lacan rendeu homenagem em
diversas oportunidades, mas aos quais ele também criticou.Para si­
tuar as coisas, digamos que M. Klein, com uma coragem notável, pos­
tula um todo poder• da interpretação que se pode dizer todo o real,
11

o real aqui em jogo enquanto aquele da pulsão dita pré-genital. O pos­


tulado é aquele da reabsorção possível desse real pela verdade. É o
que dá a alguns - sobretudo a Balint - a impressão de um sistema louco.
Os teóricos da regressão pretendem avançar numa zona onde a
interpretação perde seus direitos e seus poderes. Certamente, aos
seus olhos, não existe análise sem interpretação, mas o coração da
experiência, o osso, o núcleo - as metáforas são diversas - ali, onde
em todo caso acontecem, segundo eles, as coisas sérias, trata-se de
um nível onde a interpretação é inútil, diz Winnicott, ou até nociva, diz
Balint, que possui um de seus capítulos intitulado: ºthe hazards inhe­
rent in consistem interpretation". O registro crucial da experiência
é aquele em que a linguagem - que define, para nós, o campo da in­
terpretação - não mais vale.
Essas duas posições extremas - das quais depende a possibilida­
de mesma da análise ou, em todo caso, os seus limites - constituem,
teoricamente falando, uma alternativa, mesmo se por uma boa sorte,
a instituição inglesa tivesse sabido proceder a seu respeito com um
equânime 11 dexem-nos viver11 • Desta alternativa, o ensino de Lacan pro­
porciona a saída.
Vocês vêem, meu propósito de hoje aponta não tanto para a téc­
nica da interpretação quanto para o seu alcance sobre o que Freud
chamava o isso.
Lacan, o Lacan primeiro do "inconsciente estruturado como uma
linguagem u , evoca as metamorfoses produzidas pela interpretação.
Há, de fato, um aspecto da experiência onde essas metamorfoses são
primeiramente indubitáveis e, em segundo lugar, concebíveis na estru-
84 A interpretação

tura da palavra. Elas o são, indubitáveis e concebíveis, a título de des­


locamento do significado. Mas, é isto toda a ambição analítica? Certa­
mente que não. A interpretação verdadeira, segundo Lacan, visa um
efeito sobre o real em jogo na experiência. É precisamente sobre es­
se ponto que se dá a grande dúvida, que a opinião faz pesar sobre
a psicanálise, e não somente a opinião que acabo de evocar, mas a
dos psicanalistas daqui.
Tomarei Balint, como exemplo, na sua obra The basic fault. Seu
esquema é simples:
Existe a técnica chamada clássica, a de Freud, que ele, por outro
lado, não distingue da técnica da Ego-psicologia, a qual lhe parece
melhor encarnada por Lowenstein, referência precisa apreendida quan­
do da contribuição deste no XX Congresso Internacional de 1958, em
Paris - (observem que isso ocorre 5 anos após uFunção e campo da
fala e da linguagem º e no mesmo ano da ºDireção da curaº). Esta téc­
nica visa a fantasia edipiana genital - o mais superficial e o mais recen­
te - a nível da qual a linguagem é válida e a interpretação operante,
já que o eu se encontra estruturado.
Depois há o nível em que opera a técnica drra moderna Ele é pré­
edipiana e pré-genital. É o que os kleinianos reconheceram. Balint acres­
centa: pré-verbal. É a zona que escapa ao ºimpério das palavrasº e on­
de se atesta, segundo ele que: o inconsciente não tem vocabulárioº. Fór­
mula estupefaciente que remete à futilidade todas as obras prínceps de
Freud: ºA interpretação dos sonhos° , a ºPsicopatologia da vida cotidianaº ,
ºOs chistes e suas relações com o inconscienteº. Que há, portanto, aí?
E, antes,onde? Balint nos adverte que isso não é tanto nos ditos dos
analisandos quanto nos seus não-ditos, comportamentos, acting-outs,
etc. O que se indica aí, é como uma aspiração não exprimida, algo assim
como uma demanda sem palavra, até uma exigência, já que o paciente.
ele observa, considera que tem direito à sua satisfação. Não pergunte­
mos a Balint como a noção de direito subsiste fora da linguagem. Para
ele, este puro ºpetitioº pulsionaJ não tem relação com o Outro da lingua­
gem e, consequentemente.é ininterpretável. Resta, pois, somente. reali­
zá-la Traduzindo: obturar a falta-a-ser do sujeito.
Uma distinção simples se impõe: face ao que se percebe do la­
do do analisando como uma obscura aspiração, um não formulado,
de duas coisas, uma: ou a análise procura dizer o que isso quer, ou
ela aceita satisfazer em silêncio, sem mesmo saber a que ela satisfaz.
Lacan na Inglaterra 85

Os kleinianos tomam a primeira via, mais próximos nisto de uma éti­


ca do dizer. B alint, com seu ºdeixar regredi ri, toma a outra via. É a via
mística. Quem teria acredrtado na figura tão tranquila e racional de Ba­
lint? É que erradamente imaginamos o místico como parente do subli­
me, mas ele tem a sua versão terra-a-terra. Para medir sua distância,
ponham lado a lado a Santa Teresa do Bernini e Balint que confessa
- um pouco constrangido, entretanto - que este avanço no silêncio
subjetivo pode culminar, por exemplo, no aperto irrisório de um dos
dedos do analista !
Para justificar esta opção, Balint se autoriza de um pretenso impas­
se da interpretação.
Ela decorre, por um lado, do que como ele postula uma exteriori­
dade, um fora do campo das pulsões em relação à linguagem, e por
outro lado, do fato de que a natureza da interpretação lhe escapa.
Ele a define como ºa sentence consisting of words with agre­
ed meaning", with ºthe sarne sense " para o analisando e o analista,
numa palavra "unequivocal ° . É o oposto literal da fórmula de Lacan.
A líng�a sem equívoco com a qual Leibnitz sonhava, Balint a encontra
realizada na linguagem chamada º adulta", mas é com a condição de
reduzir - paradoxo - o que a associação livre veicula, "the clusters
of associatíons 11 fonte de todos os mal-entendidos. Assim definida,
,

a interpretação não se distingue aos seus olhos de uma sugestão uni­


versalizante e alienante.
Deste modo ele reconhece, por exemplo, falando dos kleinianos,
que ºthese analysts offer, and often suceed in giving, names to
things and experiences that did not have names betore ° , mas é
para acrescentar que se trata de uma ºmad Janguage º que se intro­
duz a força na cabeça do analisando. Não mais que a criança que
não faz a escolha da linguagem materna, o analisando não faz a esco­
lha da linguagem analítica: será a do seu analista, já que, para ele, in­
terpretar, informar, ensinar é um todo. Não há melhor forma de denun­
ciar uma interpretação de metalinguagem em que, b que se perde, é
a particularidade do analisando e, sem dúvida, ele não está errado
ao deplorar uma interpretação "préte-à-porter". A estrutura que ele
designa aí, podemos srtuá-la sobre o grafo de Lacan, no seu patamar
inferior que inscreve a regência absoluta do código do Outro sobre a
mensagem do sujeito, o qual se escreve a partir disso= s(A) significa­
do do Outro.
86 A interpretação

A sugestão, certamente, é inerente ao fato de falar, irredutivelmen­


te; mas ela não é métis que uma particularidade da estrutura do dis­
curso e é por isso que interpretação e sugestão se distinguem. A al­
ternativa construída por Balint - ou a sugestão ou o silêncio, ou as fic­
ções conformável, - ou a particularidade indizível- não deixa de ter so­
lução. Todo o ensino de Lacan o impõe como uma falsa alternativa.
Nas premissas da solução lacaniana há uo inconsciente estrutura­
do como uma linguagemº que implica que a interpretação opera no
campo do significante e pelo significante. O problema pode então for­
mular-se assim: como a interpretação - sempre significante - é apro­
priada ao que Lacan acabou por designar como ªum discurso sem
palavraº ? É colocar a questão de uma interpretação que conduz ao
métis . além da verdade, uma interpretação pela qual eu cito ªo real se
asseguraº .
Esta problemática supõe que se tenha operado, no ensino de La­
can, o que chamarei seu segundo retorno a Freud, no qual · se indica
que, se o inconsciente está estruturado como uma linguagem, porém
tudo não é linguagem na estrutura, o alguma coisa que não ó é se
identifica desde a origem - freudiana - com a satisfação da pulsão, a
qual não ocorre sem o corpo. ·
Colocarei primeiramente dois eixos pelos quais Lacan resolve, pa­
ra nós, o impasse acima evocado por Balint:
- sendo a ambiguidade a lei do significante, há um limite para a sugestão.
- se a pulsão - por métis primitiva que seja concebida - não é lingua-
gem, ela não é fora da linguagem.
O primeiro ponto, então:
Balint não percebe que o inconsciente é em si mesmo um limite
à sugestão. É certo que o significante tem uma função irredutivelmen­
te sugestiva, já que, uma vez colocado, ele obriga, ele é ananké ° , ne­
0

cessidade. Mas o equívoco a partir do quaJ Balint constrói a sua cruz


é essa outra função do signrficante, não menos irredutível, que entra­
va a função sugestiva; ela se torna possível pela ambiguidade básica
que decorre da estrutura binária do significante que Lacan simboliza
com o seu S 1 - S2. É ela o equívoco que condiciona em relação aos
enunciados sugestivos, a escansão da enunciação em que se reco­
nhece o inconsciente. O inconsciente, eu cito, é ªassujeitadoª ao inte­
gral dos equívocos ªd'alínguaº (em uma palavra). Assujeitar é uma ou­
tra regência que aquela da sugestão, e a imerpretação verdadeira é
Lacan na Inglaterra 87

feita da mesma lenha. Eis porque será necessário situá-la em relação


à função da verdade.
O segundo ponto, agora. O real em jogo na cura não é fora da lin­
guagem. De início, isto quer dizer que a pulsão não é instinto e que
o corpo não é simplesmente organismo, mas um organismo que, ten­
do incorporado o significante, perde o seu estatuto de natural. A elabo­
ração de Lacan permite repensar o enigmático objeto perdido desde
o início, de Freud, de onde deriva seu objeto causa de desejo. Ela
permite situá-lo, como um efeito produzido pelo simbólico, por uma
operação de antecipação corporal, a ser reproduzido na cura. Ela ten­
ta conceber como o real, que não é linguagem - digamos gozo -, vem
atar-se ao real da estrutura significante.
Consequência prática: não é que tudo possa ser drt:c;>, mas que o
indizível, o que se qualifica negativamente, como inominável, como in­
dizível, como inarticulável etc., não é um real anterior à palavra. N u­
ma prática que opera pelo dizer, o real é assegurado pelo limite des­
se dizer, impelido ao impossível. É pois não tanto do registro do que
se experimenta, mas do que se prova logicamente e que se impõe
então, não à entrada mas ao término, como um resto, diz Lacan, um
resto do dizer. Ou seja: na psicanálise, o impossível do real não se
demonstra sem a contingência. É o que Lacan explicita em 1973: "Co­
mo não considerar que a contingência ou o que cessa de não se es­
crever, não saia por onde a impossibilidade se demonstra ou o que
não cessa de não se escreverº .
A interpretação se coloca nessa junção. Operando pois com o
equívoco homofônico, gramatical e lógico que a linguagem permite,
ela visa o objeto causa que divide o sujeito pelo saber inconsciente
que não menos o divide. Ela ºpredica o falso ª diz Lacan, que ele pró­
prio equivoca aí entre o falso que se opõe ao verdadeiro e o falsus"
11

latim que designa a queda. Ela cai, com efeito, ao lado. Onde? Sobre
o saber que alíngua recepta e que ela faz aparecer separado do sujei­
to. Longe de preencher, portanto, a interpretação divide. Ela º rescin­
de", diz Lacan, ela rescinde o Sujeito e o Saber. Precisemos: primeira­
mente, o equívoco não diz o que isso quer dizer. Ele faz índice, apon­
tando um existe, inscrito como saber ºn'alínguaº . Mas, em segundo lu­
gar, não é o sujeito que esse saber determina; ele não se entrega
mais do que ao seu engano, onde se experimenta que o dois do su­
jeito suposto saber é um inacessível. O correlato aí é, em terceiro lu-
88 A interpretação

gar, fazer valer o um de um sozinho, do ºhá o umu que desde 1956


Lacan anunciava pelo seu significante assemântico.
Assim, o efeito da interpretação se distingue do efeito de verdade,
se ao menos nós o definimos como produzido de um entre dois signi­
ficantes em que o sujeito se indica, na ocasião, na iluminação.
Identificação e interpretação 1

Eu me coloquei a seguinte pergunta: como a interpretação do de­


sejo, já que é do lado do desejo que se interpreta, opera sobre as iden­
tificações do sujeito? É uma pergunta justificada. Ela é clinicamente
justificada somente pelo fato de que há uma maneira de interpretar
que tem como efeito a identificação com o analista. É uma tese da
qual Lacan falou frequentemente. Entretanto, outros autores tinham fa­
lado nela antes dele. Balint sobretudo. Isto pode talvez lhes surpreen­
der, mas Balint, precisamente a respeito da interpretação kleiniana,
desenvolveu, de forma absolutamente precisa e coerente, que tratava­
se dum modo de interpretação que tinha como efeito a identificação
com o analista e mais precisamente, a identificação com um analista
idealizado e todo-poderoso. Por que segundo Balint ? Por um moti­
vo que justamente ele enuncia, a saber, que os kleinianos identificam
os objetos do desejo. Porque eles os nomeam; esses objetos ditos
parciais, eles obtêm uma identificação com o analista. Eu não gostaria
de falar de Balint. Trata-se aqui simplesmente duma recordação: Ba­
lint que nos mostra uma identificação com o poder supremo da de­
manda. Temos um Outro que representa o poder-supremo da deman­
da, precisamente sob a forma da demanda de saber.
Lacan, naturalmente, não diz a mesma coisa que Balint mas há
entretanto alguma coisa que vai no mesmo sentido; precisamente quan­
do na ºDireção da cura" ele observa que o que ele chama a dialética
dos objetos parciais tende a se traduzir em termos de identificação.
Eu não quero desenvolver este ponto, mas, há uma maneira de inter-

1
Publ icado em Actes de l ' École XI; Paris, 1 986. Aevisado por Sonia Vicente.
90 A interpre tação

pretar que sustenta as identificações. Lacan tentou naturalmente defi­


nir outra; eminentemente aquela que ele chamou a interpretação pe­
lo equívoco que é ferta para não se prestar à identificação. Ela é tão
pouco feita para isto que é uma interpretação que não diz o que ela
quer dizer; de forma que é da incumbência do analisando dizê-lo. É
um modo de interpretação que é coerente com o discurso analítico,
o qual questiona as identificações. É preciso lembrá-lo: o discurso ana­
lítico não questiona o objeto mais-de-gozar. É o contrário. Esse dis­
curso submete diz Lacan, à questão do mais-de-gozar a passagem
do sujeito ao significante do mestre. Fiz essas lembranças para indi­
car que temos razões para nos colocar a questão da incidência da in­
terpretação ou dos modos de interpretação sobre as identificações.
É certo que, da identificação ao desejo, podemos fazer valer uma
série de oposições. Já se falou muito sobre a identificação nestas Jor­
nadas. Não vou retomar tudo. Lembro primeiramente a estrutura depu­
rada da identificação tal qual Lacan nos a propõe. É a escrita de S 1,
um significante, representando um sujeito: S1

Eis o que conduz basicamente a estrutura da identificação à estrutu­


ra de uma metáfora elementar. Isto deixa inteira, por enquanto, pelo
menos, a questão da função da identificação, mas também a questão
do saber qual é o Outro que se presta à identificação: E ai, natural­
mente, pode-se classificar. Pode-se mesmo, em última instância fazer
um tipologia de identificações, segundo seja identificação a um Outro
da demanda, grande A não barrado, ou ao Outro da falta a ser do
amor, ou ao desejo do Outro. Em todos os casos o sujeito identifica­
se por um significante e a identificação está governada pela relação
com o Outro. Isto lembrado, vemos bem uma série de oposições que
se desenham. Se pomos a identificação mais do 1ado da rttetáfora
do sujeito; ela se opõe diretamente à metonímia do desejo. Ela se
opõe diretamente também na medida em que ela tem relação ao ser
(de uma maneira que dever-se-ia sem dúvida precisar) , enquanto que
a metonímia deriva da falta-a-ser. É necessário observar também que
a identificação determina o sujeito enquanto que o desejo basicamen­
te, não é subjetivável; não é subjetivável e é por isto que Lacan pode
dizer que ele é idêntico à interpretação. Enfim, as identificações .escan­
dem o ritmo do que se inscreve da diacronia, da história do sujeito,
enquanto que o desejo é abandonado a um objeto não dialético. Po-
Identificação e interpretação 91

demos pois colocar aí a relação da historicidade das identificações


com esta fixidade transtemporal do desejo inconsciente tal qual fala Freud.
Eu não desenvolvo essas oposições mas observo, em segundo
lugar, que também há correlações. Uma questão coloca-se no que diz
respeito ao modo de solidariedade que pode haver entre a identifica­
ção do sujeito e o desejo que o habita. O que apareceu para Freud
primeiramente foi a discordância, uma correlação feita à maneira do
conflito, do discurso, entre um sujeito identificado - e sobretudo identi­
ficado pelos significantes ideais - e um desejo que somente lhe apare­
ce - a este sujeito, sob uma forma velada, no sintoma, ou na série de
formações do inconsciente ou também nas passagens ao ato. Em ou­
tras palavras, é um desejo o que aparece, seja sob uma forma dene­
gada, desmentida, seja como o que o sujeito não quer.
Entretanto, mesmo se Freud partiu do conflito psíquico, há de qual­
quer maneira esta tese que Lacan nos lembra no seu ºDu Trieb ... de
Freudº e que coloca que as identificações se determinam a partir do
desejo sem satisfazer a pulsão. Lacan observa isto como um comentá­
rio da segunda tópica de Freud já que nos remete essencialmente ao
ºAlém do princípio do prazer11 e a 0 ego e o ld11 As identificações de­
11 •

terminam-se do desejo especialmente aquelas que Freud isolou co­


mo as identificações historicamente primordiais, quer dizer as identifi­
cações edipianas. Efetivamente, o que comove Freud no ºO Ego e o
ld", no que concerne à identificação edipiana, é que ela difere da iden­
tificação que já reconheceu bem antes, a saber, a identificação a um
objeto de amor renunciado. Freud encontra uma identificação que não
corresponde à sua expectativa - é sua expressão - e que é uma iden­
tificação não com o objeto renunciado, mas com o Outro suporte da
interdição, suporte do obstáculo, àquele que fenomenologicamente
se apresenta como rival, especialmente o rival paterno. Evidentemen­
te, apenas para lembrá-lo, podemos ver que esta identificação, se ela
está correlacionada com o desejo edipiano é também quase sinôni­
mo do surgimento do desejo propriamente dito, tal qual Lacan nos
ensina a reconhecê-lo, ou seja, como oposto ao gozo. Freud precisa,
com efert:o, que esses dois modos de identificação básicos do Édipo
estão correlacionados à renúncia ao objeto de satisfação. Esta identifi­
cação edipiana não somente determina-se do desejo mas ela é corre­
lativa da determinação mesma do desejo por uma subtração de gozo.
É bem o que dizemos quando correlacionamos o Nome-do-Pai à
92 A interpretação

castração.
O falo é, então, o único significante do desejo. Entretanto, é preci­
so acrescentar que as identificações das quais ele é a chave, vão jun­
tas com o que chamarei, as figuras ou melhor, os registros do dese­
jo. Lacan no mesmo momento em que correlaciona o desejo com o
significante fálico na ºDireção da curaº , fala-nos de Freud como homem
de desejo, de um desejo que ele seguiu contra a sua vontade, ele diz
nos caminhos onde ele (o desejo) se mira, no sentí-lo, dominá-lo
11 . . .

e sabê-1011 É lindo como expressão, não é? - o d�ejo se mira. Sentí­


lo nos evoca o gozo; dominá-lo nos evoca o poder. Para o saber, é


certo que o desejo que preside a transferência é um desejo que se
mira no saber, mais do que no dominar. Eu não desenvolvo este ponto.
Observem ainda que, mais tarde, quando Lacan coloca o desejo
no singular por sua causa - a causa do desejo -, isto não impede que
haja objetos dialetizáveis na relação com o Outro e que entram no cir­
cuito dos transitivismos do eu ideal. Penso lhes ter evocado suficiente­
mente a complexidade da questão e diferentes abordagens disponí­
veis. O que gostaria de tomar hoje, é um ponto particular. Interpreta­
mos o desejo, deciframos o sintoma, as identificações, as denuncia­
mos; ou melhor: elas são denunciadas. A fórmula passiva tem eviden­
temente aqui todo o seu valor. Elas são denunciadas, essas identifica­
ções, durante o processo analítico. Esse termo ºdenunciadasº tem res­
sonâncias interessantes já que ele nos evoca um fazer aparecer, um
desvelar, um trazer à tona, mas também um culpado, culpado da iden­
tificação.
Há outras expressões no ensino de Lacan concernentes às identi­
ficações; a escrita do discurso analítico, os inscritos como ºproduzi­
das", os significantes mestres vindo no lugar da produção. Ocasional­
mente, encontra-se também a expressão: identificações reduzidas.
Mas, talvez, não sejam quaisquer umas.
Para abordar precisamente este ponto, fui levada a me interrogar
sobre o sintoma, do qual Lacan nos diz que é uma metáfora. Quer
dizer que tem a mesma estrutura da identificação, mas ao mesmo tem­
po, sabemos que é correlacionado ao desejo. É o be-a-bá freudiano
já que é no sintoma, em geral, nas formações do inconsciente e emi­
nentemente nos sonhos, que Freud, decifrando, interpreta o desejo.
O que é que o sintoma identifica ? Jogo aqui com os diferentes usos
do termo. É verdade que no início de uma cura o sintoma se apresen-
Identificação e interpretação 93

ta como representando - digamos assim - uma parte não identrficada


do sujeito, como representando o que um sujeito não sabe de si pró­
prio. De uma certa maneira, pode-se dizer que o sintoma identifica
uma parte do sujeito, mas isto não nos diz tampouco qual. Eu gosta­
ria de desembaraçar um pouco este ponto: o efeito, sobre a identifica­
ção, do deciframento do sintoma até a interpretação do desejo que
ele traz em si. Pensei que o melhor era tomar um exemplo e um exem­
plo de vocês conhecido. Perguntei-me de novo sobre a maneira co­
mo se resolve a obsessão pelos ratos do Homem dos ratos. Q uando
Freud, o Homem dos ratos está na orla do processo anaJitico; isola a
incidência de uma identificação bem precisa, a saber a identificação
com o oficial. Temos o detalhe disso na cura com a oposição dos ofi­
ciais da ativa e dos oficiais da reserva, e com esse traço, evidentemen­
te capital, que o próprio pai era oficial. Podemos dizer que há na nar­
ração do Homem dos ratos indicações absolutamente precisas do
que está regido nesse momento pelo que nós bem podemos chamar
o ideal militar, um ideal do Outro, l (A) ao qual evidentemente, nos da­
dos da sua história opõe-se em surdina - a própria continuidade do
caso informa-nos disso -ao que do lado do pai apareceria como faltas
a esse ideal de probidade militar.
Vamos agora ver a obsessão dos ratos. O rato, é um significante
que l he foi insuflado por um Outro, o famoso Capitão cruel, no relato
do suplício. Podemos então dizer que urato ° , é o significante de um
encontro, o significante de um gozo ruim, correlacionado à figura de
um O utro cruel. É pois no começo um significante que identifica - não
há, me parece, outras palavras para dizê-lo - um gozo do O utro. Certa­
mente, podemos, graças às anotações de Freud, perceber que o su­
jeito não é indiferente a este gozo, mas para o sujeito é, pelo menos
no começo, um significante do Outro e não um significante dele. En­
tão, qual é a solução da obsessão?
Se retomam o texto de Freud, verão que Freud desenvolve todos
os derivados metonímicos que aparecem a partir do significante "rato u :
o dinheiro, o excremento, tudo o que Freud chama o complexo anal,
e, em seguida, o pênis. Há pois uma abundância significante. Ele ob­
serva que toda essa riqueza permanece inoperante sobre a obsessão
e precisa que o momento em que a solução da obsessão se perfila
é muito precisamente quando alguma coisa de novo é introduzida no
decrframento. Antes de precisá-lo, é preciso notar que o surgimento
94 A interpretação

dessa alguma coisa foi precedida por uma interpretação de Freud.


Voltarei a isto depois. Essa alguma coisa de novo, vocês sabem, é a
evocação da senhorita dos ratos do conto. Esta evocação permite es­
tabelecer a equivalência do rato com a criança e a partir daí vem arti­
cular-se que o rato é o sujeito. Rato representa a criança que ele foi,

a sua parte lúbrica cruel. Em outras palavras, é no momento em
que esse significante "rato" que era um significante representando
um gozo do O utro, vem no lugar do sujeito, no momento em que se
tem a ver, falando com propriedade, com uma metáfora do sujeito,
que a obsessão se desfaz; Freud insiste sobre esse ponto. Poderia
se formular isto linguísticamente: O que é que se revela a não ser que
110 Oficial era um rato". É construido como º O amor é uma pedra que
ri no sol" que Lacan dá como exemplo de metáfora, o passado do ver­
bo "era" preservando o fato de que isto não foi sabido sempre, de
que houve efeito de desvelamento. E "rato º dá a verdade do ideal que
era o oficial, não tão ideal quanto isto, podemos ver.
Esta verdade é primeiramente referida ao Homem dos ratos, não
no real - não é um psicótico - mas na realidade e isto, pelo viés de
um outro, de um semelhante. É aliás um mecanismo bastante frequen­
te na neurose obsessiva: a verdade recalcada lhe vem de volta do la­
do do semelhante. Daí, às vezes, a sua tendência para estigmatizar tu­
do o que há de ruim no mundo.
Acredito pois que a resolução da obsessão dos ratos mostra-nos
a passagem de um sintoma representando uma parte não identifica­
da do sujeito ao desvelamento da sua natureza de metáfora do sujei­
to. Onde é que é justo dizer que a identificação é denunciada? Várias
coisas justificariam esse termo. Por um lado, a identificação ideal com
a probidade militar revela sua função de cobertura, de engodo a res­
perto da parte que Freud chama "lúbríca11 do sujeito. Por outro, o que
é denunciado, é uma verdade desmentida até então : é a função do
gozo desse significante não para o O utro, ou o outro, mas para o pró­
prio sujeito. Fica claro aqui que identificando uma parte do gozo reti­
ra-se a escora da identificação Ideal do Sujeito.
Gostaria de acrescentar uma palavra sobre a interpretação de
Freud que condiciona essa mutação. É uma interpretação da qual po­
de-se dizer que ela concerne ao desejo e sobre à causa do desejo,
mas não ao objeto causa. Ela incide sobre o que nós bem podemos
chamar de significante causa do desejo, a saber o pai. É a interpreta-
Identificação e interpretação 95

ção pela qual Freud lhe diz, até lhe repete, que tudo começou na sua
neurose, pelo fato de que seu pai é o obstáculo aos seus desejo se­
xuais. Em outras palavras, Freud faz uma interpretação na qual ele le­
va o significante do pai como significante que objeta o gozo. Quer di­
zer que ele introduz o significante fálico e a castração como a palavra
final do sintoma. É uma interpretação de um mais-de-gozar por falta­
da-gozar.
Estão me indicando que meu tempo é cronometrado. Deixo
pois de lado o exemplo de histeria que devia contrabalançar o exem­
plo do Homem dos ratos. A identificação na histeria com efeito, não
funciona de maneira absolutamente idêntica Na ºPsicologia coletiva
e análise do euº , a segunda e terceira identificações que Freud distin­
gue, são identificações pelo sintoma, e cada vez, ilustradas pela histe­
ria. No segundo tipo de identificação, aquela do traço sintomático, te­
mos a tosse da qual Freud diz que ela pode ser, seja uma identifica­
ção com a rival, a mãe, seja uma identificação com o objeto de amor,
o pai. E também há o terceiro tipo no qual trata-se de uma identifica­
ção com o desejo. O que explica esta identificação pelo sintoma? Nos
três casos, Freud nota o mesmo traço que anteriormente, a saber, a
interdição e a culpa. Por que identrficação com a rival pelo sintoma?
Porque isto assina a presença da interdição edipiana. Por que a iden­
tificação com o sintoma do pai? Porque isto assina que trata-se de
um objeto proibido. E por que a identificação com o desejo do Outro
pelo sintoma? Porque é preciso pagar o fato de que é um desejo proi­
bido. Freud não interpreta dizendo diretamente que é por causa do
pai, tal como fez para o Homem dos ratos, mas que é por causa da
transgressão. Evidentemente, esse ºpor causa da transgressãoº supõe,
no seu sentido, o significante do pai.
Quanto a mim, não vou ultrapassar a hora por muito tempo. Que­
ria chegar a ºser o falo ° , a essa fórmula à qual Lacan chega quando
ele nos propõe a interpretação do desejo, seja este, de uma histérica
ou de um obsessivo: ºSer o falo (quando se trata da Bela Açougueira,
ele acrescenta "mesmo se um pouco magro º), eis a identificação últi­
ma com o significante do desejo º. O que é que conta aqui ? É esse
ºum pouco magroº ? Em relação ao caso que nos foi exposto ontem
por Geneviêve Morei, poderíamos dizer do mesmo modo: ser o falo
mesmo se um pouco russo. Não é tanto nem o significante ºmagro º ,
nem o significante russo 0 que importam, já que eles não são inamomí-
11
96 A interpretação

veis. O que é muito mais é o desejo e notem que esse desejo é equi­
valente recusa da castração. Resumindo, não há outra semântica da
identificação a não ser a significação fálica, digamos: a castração.
Penso que o efeito da interpretação sobre as identificações pode
dizer-se assim: lá onde ele estava, onde estava o sujeito no sentido
da identificação - porque esta fixa uma parte de ser, mesmo se se tra­
ta de um ser emprestado - lá onde ele estava, o que a interpretação
da metáfora do sintoma faz vir é ( - <p ) , é a castração. ºPor causa do
pai° , ºpor causa da transgressãoº ou ºser o falo º não são interpreta­
ções equívocas. São interpretações que dizem o que elas querem di­
zer. Entretanto, podemos já dizer delas que fazem ºpareserº . Elas fa­
zem aparecer o significante da falta. Ao mesmo tempo, elas barram o
ser, esse pouco de ser que assenta a identificação, da qual elas desta­
cam o significante no seu nonsense.
Sobre a interpretação'

Gostaria de propor alguns comentários acerca desta fórmula ver­


dadeiramente essencial: ºa interpretação concerne à causa do dese­
jo0 1. Lacan já a havia exposto - ele cita isso no L 'Etourdit - na época
do Seminário sobre ºA identificação ° , em 1961-62, e a partir de então
a retomou sempre. Como entendê-la? É uma fórmula que se presta
a confusão.
ºA interpretação concerne a causa do desejo º é uma fórmula que,
por outro lado, podemos situar em relação a esta outra: º A estrutura
de uma interpretação é a do saber no lugar da verdade º . E preciso,
neste ponto, fazer um ajuste.
A 17 de dezembro de 1969, em º O Avesso da psicanálise° , quan­
do Lacan propõe a idéia de que a estrutura da interpretação é aque­
la do saber no lugar da verdade, ele explica por quê. Que tipo de enun­
ciado poderia responder a esse modelo? Ele o situa ºentre enigma e
citação º . O enigma consiste em formular uma enunciação, que não é
de ninguém, e que não corresponde a nenhum enunciado de saber.
Em outras palavras, o enigma é verdade sem saber. Ou, se assim pre­
ferem, é a verdade cujo saber é latente. Édipo por exemplo. Vê-se cla­
ramente o convite latente no enigma a produzir (o que? ainda está
por precisar-se) o que se pode esperar de uma interpretação. No que
se refere à citação, poderia surpreender-nos encontrá-la aqui. A cita­
ção é quase o inverso. E mais um enunciado de saber afirmado, sal­
vo que se refere a um nome de autor. A citação por ser referida a um
1
Traduzido da tradução castelhana de Diana Rabinovich publicada in Acto e interpre­
tación , Ediciones Manantial, Buenos Aires, 1 984, p. 1 8-23. Revisado por João Batista
Rios Soares.
98 A interpretação

nome de autor, introduz a dimensão da enunciação, uma enunciação


latente que é preciso fazer surgir.
Por um lado, temos o enigma, verdade com o saber latente. Por
outro, a citação, um saber com a verdade ou a enuciação latente.
Em ambos os casos há um semi-dizer. Quando uum enunciado é reco­
lhido na trama do discurso do analisando u - do que se deduz que La­
can não considera que o analista interpreta com os seus próprios sig­
nificantes - esse enunciado, por ser recortado, torna-se enigma. De
alguma maneira, ele é posto entre aspas, seja qual for a técnica em­
pregada; isto pode ser feito, entre outras, pelo corte. Assim, vocês fa­
zem surgir algo que é mais que o dito, introduzem um mais.

O equívoco

Outra referência é a do L 'Etourdit. Lacan escreve ali que a inter­


pretação joga com u esses equívocos com os quais se inscrevem o
debrum de uma enunciação ... u2. Ele dá três tipos de equívocos os
da homofonia, os da gramática e os da lógica A nível da homofonia,
o equívoco é a ambiguidade homofônica, isto é, o que a ortografia tor­
na impossível; o que a ortografia fixa (rive) a homofonia deriva (déri­
ve) . Lacan deu exemplos: deux, dois e d'eux, deles; faíllir, falir e fal­
loir, dever; sembler, semear, semelhar e s 'embler (que conduz ao
verbo embler) semear-se, assenhorar-se, paraitre, aparecer e par
être, pareser ... são exemplos onde joga com o ªcristalª linguístico,
porque a homofonia difrata as significações e introduz, automaticamen­
te, através dessa desaceleração, uma dimensão interrogativa Do la­
do da gramáti<.:a, a mínima intervenção interpretativa é ªNão te faço
dizer u3. Por quê é o mínimo? Sem dúvida, pelo duplo sentido, pela am­
biguidade. Com uNão te faço dizer u , o ouvinte não sabe se digo ºtu
dissestes 11 ou eu não te soprei", pois digo ambos. No plano lógico
11

permanece o equívoco do paradoxo lógico.


Nos três casos o equívoco, durante um tempo, tempo de suspen­
são - mesmo que seja apenas pontual - faz vacilar o indecidido que
se precipita na certeza unicamente pela resposta do sujeito, quem de­
cidirá sobre o dito da interpretação. Isto supõe, evidentemente, a trans­
ferência A interpretação não opera sem o saber suposto. Acontece
que analistas e analisandos, sem dúvida por entusiasmo, tentam levar
Sobre a interpretação 99

a interpretação para um campo onde não há saber suposto. Evidente­


mente, isto sempre falha, e acarreta o ridículo. Não existe portanto, in­
terpretação sem saber suposto, mas é preciso acrescentar imediata­
mente, e é isto o que acabo de enfatizar, que a interpretação não é
nunca o enunciado de um saber. O saber, nela, fica em reserva. Alu­
são é talvez o melhor termo. A interpretação alude a ... Lacan empre­
ga esse termo no final da uDireção da curau ... u a virtude alusiva da in­
terpretaçãou . Ilustra com o dedo levantado do São João de Leonardo,
que apenas indica. Que a interpretação joga sobre o equívoco é uma
tese sedutora que, dentro do ensino de Lacan, foi facilmente transmiti­
da. Não estou me referindo ao seu manejo mas à tese. Porém a per­
gunta é a seguinte: o que regula esse emprego? Porque ao desenca­
dear o equívoco pode-se introduzir uma total confusão em uma cura.
Quero citar agora um comentário de Lacan, na página 64 do L 'E­
tourdit: usustento que aqui todas as jogadas são permitidasu - no que
diz respeito a jogar com o equívoco - ºpela simples razão de que, por
estar ao seu alcance qualquer umu - ao alcance das jogadas do signi­
ficante - usem poder nelas se reconhecer somos jogados por elas. A
não ser que os poetas as tornem cálculo e o psicanalista as empre­
gue onde convému e precisa: ºonde convém para seu fimu. Esta é a
pergunta: onde convém, quando convém se servir do equívoco signifi­
cante?

A incapacidade e o sujeito suposto saber

Lacan nos deu um exemplo de má interpretação. Um exemplo do


que, justamente, não é uma interpretação no sentido do equívoco -
de uma interpretação que opera em nome do saber; porque intervir
em nome do saber suposto não é intervir em nome do saber. O exem­
plo dessa interpretação que seria um enunciado de saber e que ele
considera defeituosa, está no Discours à l'EFP, na página 14 de Sci­
/icet 2/3. Ela manifesta o que denomina a ªincapacidadeº do psicanalis­
ta. É uma interpretação na qual o objeto parece estar involucrado, tão
involucrado que é o objeto de um saber. Para qualificar esta incapaci­
dade ele diz: ºela manifesta, por exemplo, diante do assédio do obses­
sivo, ao ceder à demanda de falo, ao interpretá-la em termos de co­
profagia, se fixa assim a sua escória e, finalmente, se faz falhar seu
100 A interpretação

desejoº . É uma interpretação que, frente à insistência da demanda, res­


ponde com um saber acerca do objeto, neste caso, nomeando-o. A
interpretação em termos de . coprofagia é defeituosa, é um modo de
dizer ao obsessivo: tu comes tua merda. Às vezes isso é certo, inclu­
sive podemos escrevê-lo com a fórmula da fantasia ($ <> a). Mas ao
nomear desse modo o objeto, não se faz, exatamente, mas do que
consolidar a fantasia, na vertente em que esta é limite e não suporte
do desejo. Em outras palavras, avalisa como solução do desejo o que
eu chamaria seu matrimônio com um objeto da demanda. Isto é justa­
mente o que não convém no fim da análise. É fazer falhar o objeto
causa do desejo, o que quer dizer mais precisamente, para continuar
com a mesma metáfora, divórcio. A psicanálise não opera como ciên­
cia do objeto. Entretanto, o objeto está presente na interpretação co­
mo equívoco, de outra maneira.
Se implicamos o objeto a partir do saber - como no discurso uni­
versitário - que recurso resta ao infeliz capturado nesse lugar? Latir.
Seu único recurso é se produzir como protesto ou como sujeito dividido.
Esta interpretação que não se faz em nome do saber, que se faz
como semi-dizer, esta interpretação equívoca concerne ao objeto cau­
sa, mas não fala dele, não predica nada acerca dele. Faz surgir o ser
que falta ao sujeito para remediar sua divisão operando a nível da fa­
lha do saber-suposto. Nesse sentido toda interpretaçao menospreza
o sujeito-suposto-saber. Eu disse que não há interpretação sem sujei­
to-suposto-saber. Em primeiro lugar, altera a suposição de que have­
ria um sujeito do saber no sentido de um sujeito sabendo desse sa­
ber, mas onde não há sujeito para saber esse saber. Dito de outro
modo, acentua a separação, a distância, a oposição entre a posição
do sujeito e a posição do saber. A interpretação - operando a partir
da sobredeterminação que surpreende - não leva o sujeito a alcançar
o saber, provoca o sujeito a medir sua separação do saber. Mas, in­
versamente, designa, mobiliza a falha do saber na medida em que
deixa o sujeito a parte que lhe corresponde na elaboração do saber.
Deve-se a isto uma eventual resistência à interpretação. Esta acon­
tece quando o sujeito está particularmente enganchado a uma convic­
ção de saber. Pensem, por exemplo, no texto em que Guntrip dá con­
ta da sua análise com Fairbairn e com Winnicott. Guntrip chega à aná­
lise com uma certeza no que se refere ao traumatismo que causou
sua doença; certeza a respeito da qual nunca dá o braço a torcer. Is-
Sobre a interpretação 1 0 1

to termina então quando já é alguém maior, depois de muitos anos.


Chegou com um saber acerca da causa das suas desgraças - trata­
se de sua má mãe - e todo seu trabalho consistiu em fazer com que
seus dois analistas engulissem esse saber. Quando esgotou ambos
e Winnicott está morto, justamente nesse momento tem dois sonhos,
que supõe são probatórios, que lhe permitem publicar esse artigo cu­
jo título poderia ser: C.Q .F.D. Trinta anos depois mantém o saber fixa­
do, não suposto mas perfeitamente enunciado. A resposta do sujeito,
resposta categórica, ao enigma da sua enfermidade não se moveu.

Che vuoi?

A interpretação justamente faz desdém, na identfficação do saber,


e de preferência deve ter como efeito que alguém não se reconheça
nela. Quando o sujeito se reconhece no que vocês lhe dizem, podem
estar seguros de que não se trata de uma interpretação. A interpreta­
ção divide, mesmo se a reação diante dela for o riso, o estupor, a in­
dignação ou alguma outra coisa. Ela não reassegura as identificações.
Faz surgir um - o que isso quer dizer? que pode igualmente modular­
se como - o que quero dizer dizendo isso? ou - o que quer me dizer?
Nesse sentido torna presente o Che vuoi? sob a forma de x, em sua
forma desconhecida. O efeito obtido é então inverso ao que descrevi
anteriormente. Este consistia em dar a resposta: tu queres tua merda.
A interpretação é uma resposta cujo efeito é mais o de suspender a
resposta. Em outras palavras, certamente concerne ao objeto, mas
enquanto esvaziado (évide). Deste modo, ao desdenhar o sujeito-su­
posto-saber, a interpretação também · deprecia a fantasia, a sutura que
esta constitui.
Com relação a esse desejo como x, a interpretação que, certamen­
te, visa a solução, opera, porém, através de um efeito de suspensão.
Suspensão de que? Da solução, e o faz, todo o tempo que for neces­
sário, e repetitivamente, para que o analisando elabore a resposta últi­
ma. Ataca como falso tudo o que venha a ocupar o lugar do objeto
causa Está longe de nomeá-lo ou de dizer qual é.
Isto indica também que a interpretação não deve ser usada em
q ualquer momento. Freud propôs desde o início e Lacan o retomou
especialmente no Seminário XI, que a interpretação é correlativa da
102 A interpretação

resistência. Isto é coerente com o que estou sublinhando. Diria que


se joga com a interpretação cada vez que a divisão do sujeito che­
ga a colmar-se. Estes são os momentos precisos nos quais a interpre­
tação tenta operar, digamos, como colofão na enunciação.
Sobre a interpretação 103

NOTAS

1 Jacques Lacan, E/ atolondrado, e/ atolondradicho o las vueltas dichas. ln Escan­


sion n ° 1 , Ed. Paidós, Bs. As., 1 984, p.45. Cf. L 'Etourdit, Scilicet 2/3, Ed. Seui l ,
Paris, 1 973, p.30.
2 l bi d , p. 64. Cf L 'Etourdit, p.48
3 l bid.
4 Jacques Laca n , La dirección de la cura, i n Escritos /, Siglo XXI, México, 1 976.
Cf. Écrits , Ed. Seu i l , Paris, 1 966.
5 Op. cit, p.64
6 J acques Lacan, Discours à L 'EFP. Scilicet 2/3, Ed. Seu i l , Paris, 1 973 .
Uma dificuldade da psicanálise de criança1

A experiência de alguns anos de prática psicanalítica com crian­


ças me leva a submeter-lhes algumas reflexões que se referem à difi­
culdade que nela encontrei. Achei que as crianças colocavam a psica­
nálise à prova em algo que concerne à sua ética, na condição de es­
pecificar a ética da interpretação.
Gostaria de apresentar algumas obseNações a respeito da análi­
se desses analfabetos que são as crianças não escolarizadas, que ain­
da não escrevem. Minha questão não se colocará sob a transferência,
já que acredito estar a mesma presente desde a tenra idade. Isto não
me parece duvidoso. Aí Melanie Klein, tinha razão contra Anna Freud
que, aliás, concordou com isso. É o que implica a feliz expressão pro­
posta por Robert e Resine Lefort da ucriança analisandaº . A interpreta­
ção, ao contrário, é que me parece ter particularidades e, talvez, limi­
tes, pelo fato de que um sujeito não sabe escrever. Quero levantar,
hoje, questões que são, unicamente, questões de método. Elas me
parecem essenciais no que diz respeito à disciplina da interpretação.
Esse termo disciplina está justificado já que, como diz Lacan, a inter­
pretação não está aberta a tudo. Ela deve ser regulada e é uma ques­
tão saber o que a regula com as crianças pequenas.
Quando falamos da função da escrita ou da letra na psicanálise,
nós lhe damos uma definição que não se confunde com a caligrafia
e a gramática que se aprendem na escola. O sintoma como escrita,
como traço, testemunha, vetor, condensador de gozo, pode, certamen-

1
Pu blicado in La Lettre Mensue/le, nº63, nov. 1 987, p. 7-9. Revisão de Sonia Maria
Coni Campos Magalhães.
Uma dificuldade da psicanálise de criança 1 05

te, preceder a escrita que se aprende na escola O problema da psica­


náJise é, precisamente, operar sobre esta letra do sintoma. Ela o faz
pelo viés da decifração que supõe as associações transferenciais do
sujeito. Podemos tomar como exemplo prínceps desta estrutura a de­
cifração feita por Freud da obsessão dos ratos. O equívoco significan­
te faz passar de uratoº a ºcotaº e ao tema do dinheiro, enquanto que
a polissemia nos faz deslizar da sujeira ao excremento e da maldade
à criança que morde. Esta soletração do gozo, esta decifração, acon­
tecem pelo que a letra do sintoma condensava1 a saber, o significan­
te e o gozo, que faz derivar na cadeia dos significantes associados o
gozo que o sintoma fixava Freud revela, de vez, ao sujeito que o hor­
ror do suplício dos ratos era uma figura de seu gozo - aquele que,
precisamente, ele ignorava de início. A isto ele acrescenta o que é pro­
priamente a sua interpretação - o que chamarei um upor causa do
paiu, subentendido: do pai que interdita O sentido proferido aqui sen­
do o dessentido da castração. Vemos que é uma coisa muito diferen­
te, evidentemente, do que fez Melanie Klein. O que ela fez, podemos
medí-lo com o seu caso ºDick u. Ela começa por lhe dizer: eis aqui o
trem papai, a estação mamãe, etc. Ela fabrica, pois, um código, aliás,
conforme a semântica do inconsciente. Ela lhe dá uma espécie de lé­
xico para falar juntos, ela lhe dá um vocabulário. Dito de outra forma,
ela se coloca como o Outro do código. Em função do que ela vai po­
der, em seguida, intepretar e dizer o sentido do que a criança vai fa­
zer com os vagões e com a estação. Se o carro entra na estação ela
vai dizer: papai entra em mamãe. É uma injeção da relação entre os
sexos que poderíamos aliás inscrever no Grafo de Lacan e que tem
um nome: sugestão. Ela tem efeitos que não são negligenciáveis nem
negativos mas com os quais não podemos tampouco, nos contentar.
Volto, pois, ao problema da decifração e da interpretação no ca­
so de nosso analfabeto. Duas questões. Primeira: pode-se tratar o en­
cadeamento dos jogos, os comportamentos e, especialmente, os de­
senhos da criança como uma cadeia associativa? É, de qualquer for­
ma, uma suposição, no mínimo, necessária, sem a qual não haveria
psicanálise de crianças pequenas. Quero dizer daquelas que, ainda
que presas como todos os sujeitos na estrutura da palavra, não estão
em condições de associar verbalmente na transferência A segunda
questão é a da leitura do desenho e do seu uso. O que é que a crian­
ça põe sobre a folha? Não está excluído que seja na ocasião a pró-
106 A interpretação

pria cifra do seu gozo e que o desenho faça escrita Uma criança, cu­
jo sintoma pelo quaJ ela foi trazida, era problemas de limpeza, e que
jubila em traçar incansavelmente, sobre a folha, tripas cheias de dejetos,
não estaria longe disso. O problema é que esta escrita é, em si, sinto­
ma que não demanda nada a ninguém e que nada tem a saber. Este
exemplo, se o trago aqui é somente para demonstrar que há desenho
e desenho, e que é preciso, para a psicanáJise, obter um desenho
que seja uma palavra - condição sem a qual não há psicanáJise. Supo­
nham, pois, que se tenha obtido o que eu chamo um desenho-palavra
em oposição a um desenho-escrita. Resta, então, o problema da dis­
ciplina da leitura· do desenho. Como não somos jungianos não pode­
mos nos contentar com o simbolismo das formas e também não é su­
ficiente isolar significantes nessas formas.
Devemos resolver o seguinte problema: Como a estrutura se ins­
creve no desenho? Esta pergunta me parece capitaJ, especialmente
para o diagnóstico das crianças pequenas. No exemplo que foi apre­
sentado por Patrick Valas e que é bem-vindo para o que eu tenho a
dizer aqui, temos sobre a folha o grande canhão fálico - o símbolo fáli­
co - em todo seu esplendor. Mas é este o índice de que a criança
se inscreve na função fálica, a saber, na castração, ou o contrário?
Se tivéssemos feito Schreber desenhar ele que estava tão ocupado
pelo seu órgão, não está excluído que teria desenhado silhuetas fáli­
cas. Lacan, a esse respeito, dá uma indicação precisa no que concer­
ne o pequeno Hans. Sua indicação é que é o traço transversal que ris­
ca a unidade das formas e que no desenho é o índice da castração.
Não é seguro que o teríamos encontrado em Schreber. Assim, sabe­
mos o que é a decifração de um sintoma na articulação da palavra.
Mas, para as palavras desenhadas, não se tem o mesmo tipo de apoio.
Um último ponto agora, no que se refere ao alcance da interpreta­
ção num sujeito que não escreve. A interpretação, se seguimos Lacan,
visa o que ele chama de ao lado da enunciação, os quais se inscre­
vem pelos equívocos da linguagem. Ora, esses equívocos, sejam ho­
mofônicos, gramaticais ou lógicos, não existem senão em função da
escrita Como jogar, por exemplo, sem a escrita, a diferença entre
deux (dois) e d'eux (deles) ? Não é por acaso que o que Freud cha­
mou de período de latência - a se entender como latência da libido -
coincide com a idade escolar. Pois a escrita tem uma incidência sobre
a palavra. Ela instala aí o recalque ao mesmo tempo que cuida do re-
Uma dificuldade da psicanálise de criança 107

torno do recalcado. Nesse sentido, uma criança que não escreve não
é interpretável como uma outra. Existe aí um ponto que eu me limito
a indicar mas que mereceria ser elaborado pelos psicanalistas de crianças.
A psicose: problemática 1

Freud, ao reencontrar em Schreber o complexo paterno, escusa­


va-se da monotonia - dizia ele - das soluções que a psicanálise apor­
ta Não obstante, a literatura consagrada a esta questão mostra bem
uma proliferação de teses sem referência ao Édipo. Em relação a es­
ta diversidade, o ensino de Lacan nos serve de via romana. Ele fala
de um texto central, ºA questão preliminar a todo tratamento possível
da psicoseº ao que é preciso juntar, naturalmente, os seminários que
rodeiam esse texto, o que antecede, Lacan classificou chamando-os
de seus antecedentes. Para o que se segue, vocês sabem que uns
dez anos mais tarde, na sua apresentação da tradução de Schreber
que foi publicada no nº 5 dos Cahiers pour l'analyse, texto sobre o
qual J.-A Miller chamoua atenção, Lacan evocava ªa plena continuida­
deª que seria conveniente dar à questão preliminar. Esta continuida­
de, podemos dizer que ele não a deu de maneira explícita, mas que,
sem embargo, podemos esperar deduzí-la. Podemos deduzí-la, por
um lado a partir de indicações que ele deu, parciais é verdade, contu­
do precisas, por outro lado, a partir da orientação de conjunto de
suas elaborações nos dez últimos anos.
Partamos da doutrina da foraclusão; é a pedra angular do edíficio.
Com a questão preliminar. ·Lacan inclui a psicose no que ele chamou:
uFunção e campo da fala e da linguagem º . EI� coloca aí que a relação
ao Significante, o fato de linguagem, é o que faz a unidade da neuro­
se e da_ psicose. O que faz sua unidade e também sua diferença Noto, de

1
Esta conferência foi feita no q uadro das conferênci as de quarta-feira da seção
clínica, em Paris,em novembro de 1 982. Revisado por Maria Luiza Mota M iranda.
A psicose: problemática 109

passagem ! que esta inclusão da psicose no campo dos fatos da lin­


guagem, ele a situa como fazendo parte do •aspecto do fenômeno\
do que aparece, pois1 enquanto que, na neurose, ao inverso, a estrutu­
ra º linguageiraº do sintoma aparece somente pelo viés do deciframen­
to. No que concerne a esta tese da foraclusão, examinarei aqui duas
questões: qual é o seu alcance operatório e o que acontece com ela
desde que Lacan, a partir de um certo momento de seu ensino1 procu­
rou cercar o que, na experiência não se origina no Significante? Para
dizê-lo em outras palavras: º que vem a ser a foraclusão para aquele
que J.-A Miller chamava. em Caracas, um outro Lacan?º QuaAdo o
que Lacan designa por estrutura não é mais unicamente, a estrutura
da linguagem! mas a estrutura do discurso, quando ele inclui nisso
então1 um elemento heterogêneo ao Significante, a foraclusão conti­
nua sendo a chave universal da aproximação da Psicose? É a ques­
tão da retroação da definição da psicose como ºfora do discursoº so­
bre a tese da foraclusão.
A foraclusão 1 Lacan a definiu como uma falta, como uma ausência
0
ao nível do Outro; a ausência de um Significante, 0 Nome-do-Paiº e
de seu efeito metafórico. Este acidentei ele diz, dá à Psicose ºsua con­
dição essencial, com a estrutura que a separa da neurose º . Esse ter­
mo de condição indica que a foraclusão não é um fenômeno. A fora­
clusão não faz parte do que se obseNa: é uma hipótese causal. É a
hipótese pela qual Lacan designa a causalidade significante da psico­
se. Esse ponto tem a sua importância no que concerne à questão
do diagnóstico. Se a foraclusão não faz parte do tenômeno 1 isso signi­
fica que não é pela foraclusão que se diagnostica a psicose; daí a inu­
tilidade dos esforços que visam, nos casos indecisos, procurar a fora­
clusão para definir o diagnóstico. Não se detecta a foraclusão, mas
os seus efertos. O problema do diagnóstico é isolar esses efeitos. Es­
ta foraclusão é como um axioma que dá conta do fenômeno. Lacan
a elaborou a partir de uma tese anterior, que é aquela da incidência
do Significante quanto ao sujeito. A pergunta é1 pois, esta: que aconte­
ce a nível do Sujeito 1 quando no O utro, o Outro do qual depende o
que acontece a nível do Sujeito 1 existe essa falta da metáfora ? Situar
a Psicose desta forma, tem conseqüências.
Isto quer dizer, primeiramente! que a Psicose, e Lacan o observa
na questão preliminar1 não é um caos, não é uma desordem, é o que
ele chama, na página 572, ºuma ordem do Sujeitoº . Uma ordem, catas-
1 1 0 A psicose

trófica em relação ao que é a ordem do sujeito neurótico, contudo,


uma ordem. Isto implica logo de início que os bons sentimentos na­
da têm a ver, particularmente, em relação ao psicótico. Isto denuncia
a espécie de condescendência que existe sempre naquele que diz ucar­
regar o fardo 11 da Psicose; esta tese lacaniana implica a igualdade de
planos do psicótico e daquele que o estuda. O analista não sendo (cf.
final do texto intitulado ªDu trieb º de Freud) nem um padre, nem um
médico. Esta igualdade de planos é precisamente a única maneira
II
de se divertir às custas de A segregação política da Anomaliaª . É tam­
bém dizer, independentemente desta posição ética, ante o psicótico,
que a Psicose pode nos ensinar quanto ao que Lacan chama aí uma
ordem do sujeito, e é nisto que temos motivos para estar interessados.
Tomar a psicose como uma ordem do sujeito exclui, além disso,
que seja considerada como um fenômeno orgânico. Na página 572
da questão preliminar, em 1 956, Lacan precisava: ªa única organicida­
de interessada é aquela que motiva a estrutura da significaçãoª .A orga­
nicidade interessada é aquela do significante. Esta organicidade ele
a adiantou em oposição ao organodinamismo, mas é preciso notar
que é uma questão que continua sendo atual, notadamente·, em razão
dos sucessos da farmacologia. Os autores anglo-saxões estão longe
de excluir uma causalidade orgânica da Psicose. Meltzer, por exemplo,
coloca a idéia de um transtorno sensorial, na origem da psicose, en­
quanto que Margaret Malher evoca uma deficiência dos aparelhos per­
ceptivos.
Como ordem do Sujeito, a psicose não é um fenômeno que real­
ce unicamente o imaginário. Esta tese, Lacan a colocou contra aque­
11
les que ele evoca no seu capitulo intitulado Após Freud ª . Quer dizer,
contra aqueles que tentaram apagar, até denu�ciar, a insistência obs­
tinada com a qual Freud tentava trazer de volta a referência ao Pai.
Com a metáfora paterna, Lacan situa-se absolutamente na continuida­
de desta obstinação de Freud e é uma questão que permanece com­
pletamente atual, visto que, muitos autores continuam a reter na psico­
se somente seus aspectos imaginários. Evidentemente, Lacan não ne­
ga os fenômenos imaginários da psicose: ele os designa, no desenca­
deamento, como dissolução imaginária e, no momento da establiza­
ção, como urestauração imagináriau . Eles formam parte, também eles,
do ºaspecto º do fenômeno, simplesmente ele os situa como efeitos,
como resultados, insistindo sobre ºa concepção subordinada que de-
A psicose: problemática 1 1 1

vemos fazer da função da realidade·. Em outras palavras, a estabilida­


. de e o bom ordenamento da relação perceptiva com a realidade não
é tão natural como se poderia imaginar, ela é função dos fenômenos
significantes.
São esses mesmos efeitos ude indução do Significante• sobre o
imaginário que determinam essa catástrofe do sujeito que a clínica de­
signa sob o termo de crepúsculo do mundo necessitando, para res­
ponder a isso, novos efeitos de Significante. Há aí uma seqüência:
perturbações significantes, efeitos imaginários, compensações signifi­
cantes. A incidência causal do significante aplica-se ao conjunto do
processo: desencadeamento, desenvolvimento.estabilização. Se o ima­
ginário está doente no psicótico e de uma certa maneira o está, não
obstante ele não se trata pelo imaginário. Assim, levando a sério ape­
nas o que exclui esta tese da foraclusão, seremos conduzidos a defi­
nir algumas regras, que poderíamos quase dizer, a priori, da boa con­
duta do clínico.
Volto agora à questão de saber o que a falta no O utro que é a fo­
raclusão produz a nível do sujeito. Para responder a isto, é preciso
passar pelos efeitos da não foraclusáo, pelos efeitos da presença su­
posta de um significante que uduplica no lugar do Outro o significan­
te do próprio Outro, u. A primeira etapa é a da escrita da metáfora pa­
terna, a segunda é a das fórmulas da sexuação que situam, graças a
duas articulações lógicas, a inscrição do sujeito na função fálica De
uma para a outra há, evidentemente, um passo graças ao apoio da ló­
gica, pelo uso, novo, da função proposicional11 Entretanto, há também

uma continuidade. As fórmulas da sexuação reescrevem o mito edipia­


no, como modalidade da inscrição do sujeito na função fálica Ora, a
metáfora paterna, ao inscrever que o efeito metafórico do significante
Nome-do-Pai é a produção da significação fálica, implicaria, desde en­
tão, a inclusão do sujeito nesta significação. Pode-se ler isto na pági­
na 575 dos Écrits, no começo do post scriptum da questão prelimi­
nar. Havendo Lacan lembrado que reconheceu, no que Freud chama­
va o Inconsciente, o lugar do Outro, a saber, a instância da cadeia
significante, ele precisa: • esta cadeia se desenvolve segundo ligações
lógicas, das quais a tomada sobre o que deve ser significado, o ser
do Ente, se exerce pelos efeitos de Significantes, descritos, por nós,
como metáfora e como metonímia•. Três temas aqui são distinguidos:
o Significante e o Significado, o binário bem conhecido e, por outra
1 12 A psicose

parte, o referente a significar, designado aqui como o ser do Ente. Te­


mos aí, a distinção entre Simbólico, Imaginário, Real se identifico Sig­
nificante à Simbólico, significado à Imaginário e ser do Ente à Real. A
metáfora paterna é colocada como o que pennite ao ser do Ente, que
deve significar, inscrever-se no significado fálico. Pelo esforço metafó­
rico, o ux11 que se acha escrito na parte esquerda da metáfora como
significado do desejo da mãe, esse ªXª que marca também o lugar pri­
meiro onde o sujeito é chamado.enquanto que é produzido inicialmen­
te como objeto, criança desejada, esse ªX' pois, vem se especificar
como significação fálica É o que a foraclusão torna impossível. Pode­
se então dizer que a Psicose nos apresenta um sujeito não inscrito
na função fálica Desse fato, ela nos dá acesso, eu diria, um acesso
quase-experimental, um acesso, pela falt� dos efeitos desta função fálica.
Tomemos o exemplo maior, Schreber. Schreber nos mostra o que
acontece com o significante do Outro e do objeto, quando não se en­
contram coordenados a esta função fálica Pudemos ler que isto não
excluía a fantasia, esta não-inscrição do sujeito na função fálica Dever­
se-ia antes dizer que ela é evidenciada, ainda que modificada. Aliás,
pela negativa, a função do ªponto de bastaª que a metáfora paterna
possui, é aí afirmada. Em dois momentos, especialmente,desencadea­
mento e estabilização, vemos isolar-se as três dimensões, simbólica,
imaginária, real. O próprio Schereber: distingue, no início de sua doen­
ça, por um lado, sua nomeação como Presidente do TribunaJ de Gran­
de Instância, eis o simbólico; por outro lado este devaneio ºcomo se­
ria belo ser uma mulher submetendo-se à cópulaª eis o imaginário ;
enfim, capital para esse desencadeamento, ele diz, é a famosa noite
na qual ele teve não sabe quantas poluções noturnas, onde ele fica
indignado com a emancipação do órgão. No final, Schreber se resta­
belece. Ele não deixa de ser delirante mas se restabelece a ponto de
poder restaurar suficientemente sua relação com a realidade e seus
semelhantes, para defender e ganhar seu processo. Pois bem, no mo­
mento dessa estabilização vemos que as três ordens separadas, no
início, vêm-se coordenar novamente pelo viés do delírio. O delírio con­
segue tomar o gozo na rede de um roteiro fantasioso, pelo qual ele
está coordenado à imagem e ao simbólico. É o que Lacan designa
como gozo transexuaJ. Gozo coordenado à imagem do corpo próprio,
por um lado e, por outro lado, coordenado ao simbólico pela convic­
ção de ser a mulher de Deus, graças à qual, de uma certa maneira,
A psicose: problemática 1 1 3

Schreber se renomeia Desses poucos traços, podemos tirar conclu­


sões no que diz respeito ao diagnóstico. Lacan, para a psicose co­
mo para a neurose, insistiu sempre na necessidade de se fl)(ar ao que
0
ele chamou 0 envelope formal do sintoma•. Para a psicose ele subli­
nhou especialmente a necessidade de isolar, de marcar o fato de lin­
guagem. Mas é preciso obseNar que esse diagnóstico significante,
essa vertente significante do diagnóstico, ele o situa como uma abor­
dagem pré-freudiana; no seu texto de 56, ele evoca esse ponto num
capitulo uem direção a Freudº , e ele rende homenagem a Clérambault
por isto. Se tentamos agora, com Freud relido por Lacan, abordar a
q uestão do diagnóstico pela definição da metáfora pertence como º
ponto de bastaº , podemos nos dar como objetivo exame do paciente
psicótico, detectar em cada caso, desde o aspecto do fenômeno, o
isolamento dessas três dimensões.
Com respeito ao imaginário, é o mais visível; com respeito ao fa­
to de linguagem, não é sempre fácil. Para a terceira dimensão, a di­
mensão real, neste caso sob as formas do gozo, o que acontece?
Quando relemos Schreber com as elaborações posteriores de Lacan
sobre o objeto a e o gozo, não precisamos forçar o texto para encon­
trar nele uma acentuação desse registro, mesmo que Lacan, na ºques­
tão preliminarº , não tenha acentuado esse aspecto. Ele não o acen­
tuou embora haja aí um certo número de notações a isolar. É certo,
em todo caso, que Schreber acentua esta presença do gozo. Ela es­
tá muito claramente pronunciada e, desde o começo, ao contrário do
que acontece na neurose, onde não se pode dizer que o gozo se di­
ga tão facilmente. Aí, via Schreber, ela está declarada ao nível do de­
sencadeamento; ela está estendida ao longo dos temas da fantasia
delirante da qual todas as fórmulas sucessivas podem se reunir em
uma só: º quer-se gozar de Mim º esse Se, é bem diferente, de Fleschig
a Deus; ela é, enfim, insistente na restauração final da estrutura imagi­
nária sob a forma deste gozo transexual. O fenômeno é inverso da
neurose em que o problema é mais o de fazer aflorar seu ser de go­
zo mesmo que seja num tempo relâmpago. Aqui ele se mostra; poder­
se-ia mesmo falar de uma exibição de gozo que tem um ponto de afi­
nidade com os místicos. Uma das pretensões do tratamento é, sem
dúvida, a de atá-lo, portanto, encetá-lo, mas no que concerne ao diag­
nóstico, é conveniente situá-lo de início. Ele é aliás, às vezes bastan­
te manifesto, como naquele sujeito que, no momento do desencadea-
1 1 4 A psicose

mento, entrou numa igreja para rezar e ouviu, precisamente, uma voz
que lhe dizia ugozasº . Não era nem o imperativo, nem a questão; era,
eu diria, o que Lacan chama, a respeito de Schreber, uma voz uanna­
listau , com 2 n e sem y, uma voz que sustenta a crônica do fenômeno.
Na outra extremidade de seu ensino, Lacan, nesse texto dos Ca­
hiers pour l'analyse, introduz uma nova definição da paranóia, co­
mo º identrricando o gozo no lugar do Outrou como tal. É a idéia da
aproximação da psicose por uma outra localização do gozo. A pergun­
ta é esta: a tese da foraclusáo ficaria invalidada? Será que esta abor­
dagem, pelo viés do real, implicaria numa ultrapassagem da aborda­
gem pelo significante? Creio que é bem evidente que não. Mesmo se
neste texto Lacan dá indicações absolutamente novas, que estão em
ruptura com tudo o que antecede, pode-se acentuar um elemento de
continuidade porque,desde o início, isto é, desde a questão prelimi­
nar, era ressaltada, ou pelo menos implicada, a incidência do Nome
do Pai sobre o gozo, incidência que se exerce no sentido de uma li­
mitação do gozo. Além de que é bem o que significa a interdição do
incesto. No artigo du Trieb de Freud, Lacan diz: u É graças ao Nome­
do-Pai que o homem não fica preso ao serviço sexual da mãeº . Des­
de o começo temos uma série: Nome-do-Pai, castração -, a ser enten­
dida como castração de gozo - desejo - o desejo definido claramen­
te como barreira ao gozo. Pode-se dizer que o Nome-do-Pai opera
uma espécie de separação, a priori, entre o desejo, por um lado e o
0
gozo, por outro; 0 Desejo é do Outro, o gozo está do lado da coisau .
Isto, ele escreveu antes de ter elaborado esta questão do gozo até
colocá-la no plural, como pôs no plural os Nomes-do-Pai. A foraclusão
é colocada como a causa de que o gozo permanece no Outro.
Quando Lacan introduziu sua nova definição da paranóia, ele se
apoia sobre o texto de Schreber, onde este nota que é preciso que
ele pense sem cessar para que Deus goze sempre. Eu cito: ºLemos
sob a pena de Schreber que é para que Deus ou o Outro goza de
seu ser tornado passivo ao qual ele dá um suporte. Ele, aqui é Schre­
ber, na medida em que ele se ocupa de jamais se deixar ceder a uma
cogitação articulada e que é suficiente que ele se abandone a pensar
em nada, para que Deus, esse Outro feito de um discurso infinito, se
esquive e que, desse texto despedaçado, em que ele mesmo se tor­
na, se eleve o urro qauHficado por ele de miraculoso, para nos teste­
munhar que a angústia que o traspassa, não tem mais nada a ver com
A psicose: problemática 1 15

sujeito algum º . Vemos que o Outro aqui, no qual o gozo está incluído
é tanto Schreber quanto Deus. O discurso infinito de Deus é equivalen­
te a Schreber como texto despedaçado, no momento em que Deus
se retira. Em outras palavras, Schreber mesmo, está incluído. Pode­
se dizer que o sujeito Schreber faz um uso do significante que não o
separa do Outro, ao serviço sexual do qual ele permanece. E precisa­
mente o que obtém como efeito a elevação do gozo ao nível do as­
pecto do fenômeno.
Gostaria, agora, de indicar que esta nova abordagem proposta
por Lacan também permite fazer uma nova abordagem das suplên­
cias dos Nomes-do-Pai. Na questão preliminar já existe a idéia de que
a ausência da metáfora paterna, a foraclusão, pode ser compensada.
Isto se deduz, aliás, do fato mesmo de que a psicose se desencadeia
num momento dado. De onde a questão de saber o que permitiria
ao sujeito manter seu equilíbrio antes do desencadeamento. Em 1 956,
Lacan responde: uma identificação; pela qual o sujeito assume o dese­
jo da mãe - cf. pg. 565 dos Écrits. Primeira tese pois, o apelo em vão
feito ao Nome-do-Pai, tem como efeito, abalar a identificação que, até
aí, sustentava o sujeito. Aqui existe a idéia de uma compensação pe­
lo imaginário, pelo ª como seu , evocada desde o Seminário Ili. A psicó­
tica faria Dcomo seu . Poder-se-ia falar de uma espécie de identificação
postiça, posto, se na neurose uma identificação abalada dá lugar a
uma outra, lá a identificação abalada dá acesso à dissolução do ima­
ginário.
Correlativamente, o restabelecimento, por exemplo, o restabeleci­
mento final de Schreber, se apresenta como uma estabililzação do
mundo imaginário. Entretanto, ela está conectada, por um lado, com
o gozo transexual, pelo outro com a fantasia de copulação divina; ela
é, pois, induzida pelo que ele chama ªa metáfora deliranteª , reencon­
trando aqui a tese freudiana do delírio como cura. O trabalho do delí­
rio constrói uma metáfora de substituição. O "tu serás uma mulher"
que Schreber realiza vem no lugar da significação fálica que aí falta.
Podemos situá-lo como suplência significante tendo efeitos imaginá­
rios. Esta noção de suplência significante, Lacan jamais deixou de
acentuá-la, passando, primeiramente, do Nome-do-Pai no singular,
aos Nomes-do-Pai no plural, os Nomes-do-Pai designando, por uma
vez, diferentes ocorrências de uma função única e, finaimente, consi­
derando o Nome-do-Pai como um elemento suplementar do caráter no-
1 1 6 A psicose

dai dos elementos Imaginários, Reais, e Simbólicos. Além do que ela


está presente antes da •questão preliminarª , no estudo do caso do
pequeno Hans pela idéia de que o sintoma fóbico de H ans é uma cons­
trução que aporta uma contribuição à metáfora paterna; não uma su­
plência completa, já que Hans traz não é um psicótico, mas uma con­
tribuição. É o que bem mais tarde reencontramos com Joyce: a idéia
de que, pela sua arte, Joyce conseguiu tapar o buraco da foraclusão
paterna, o que situa a arte de Joyce como operando antes do desen­
cadeamento - porque se Joyce é um psicótico - é um psicótico não
desencadeado - já o delírio de Schreber opera depois. As conclu­
sões também impõem-se aí no que diz respeito aos objetivos even­
tuais de um tratamento do psicótico. Elas vão no sentido de lhe pres­
crever, como finalidade, de construir, precisamente, um sintoma de su­
plência. No caso da estabilização efetiva, marcar este esforço sintomá­
tico curador, poderia ser uma tarefa preliminar.
Entretanto, a aproximação que Lacan nos indica, da psicose, pe­
lo viés do gozo, permite-nos observar um outro aspecto dessas suplên­
cias, um outro aspecto além de seu aspecto signficante: aquele que
se constitui numa operação de restrição do gozo, ou, uma locaJização.
É absolutamente visível em Schreber. Ao começo do delírio, temos
um sujeito verdadeiramente imerso no gozo que o acomete aí por to­
dos os lados. É, aliás, um gozo pouco atraente. Por fim, ele conse­
guiu localizá-lo. Isto corresponde, finalmente, ao que na clínica psiquiá­
trica é abordado como delírio parcial. Está localizado nos marcos da
sua fantasia de copulação com Deus e, concretamente, isso quer di­
zer que é reservado, como ele o indica, aos momentos de sua soli­
dão, aos momentos em que não há nada mais a fazer. Então, sozinho,
frente ao seu espelho, ele contempla sua imagem feminina. Diria que,
de uma certa maneira, ele a contempla com o olhar de Deus. Igual­
mente, para Joyce, a sua arte é o lugar de onde ele localiza, de on­
de ele segura, por assim dizer, seu gozo. Eis porque eu dizia que,
em frente ao gozo, o tratamento visaria, antes, fazê-lo tomar a entrar
nos limites. Esses limites não viriam de outra coisa senão de sua coor­
denação a um significante.
Essas novas luzes, tanto sobre a questão do diagnóstico quanto
sobre a dos objetivos do tratamento, deixam , contudo, em suspenso,
uma questão capital. O que se opera livremente no delírio de Schre­
ber e na arte de Joyce, pode-se operar na transferência? Tal é a per-
A psicose: problemática 1 1 7

gunta do tratamento. Além do que, há uma dificuldade absolutamen­


te particular que Lacan observa em seu texto. É que a transferência,
na psicose, é um elemento desencadeante. Freud designa na transfe­
rência que o sujeito operou sobre a pessoa de Flechsig, o fator que
precipitou Schreber na psicose. Quer dizer que a perseguição, o sur­
gimento das figuras persecutórias, é em Schreber, desde então, um
efeito de transferência. Deduz-se, da mesma forma, que a homosse­
xualidade delirante não é uma causa da doença, e sim uma manifesta­
ção desta Por consequência, como operar pela transferência, se a
transferência é patógena para o psicótico? No seminário Ili, Lacan in­
dicava que, com efeito, tomar um sujeito pré-psicótico em análise tem
por efeito, geralmente, desencadear a psicose. Isto quer dizer que a
mobilização do sujeito suposto saber, na associação livre, é equivalen­
te ao que ele designa como um chamado ao Nome-do-Pai. Se a análi­
se pode ser pensada como uma paranóia dirigida, para o psicótico o
problema é que a transferência é a paranóia desencadeada Sem dú­
vida, dever-se-iam fazer distinções entre o que acontece com um su­
jeito dito pré-psicótico, isto é, antes do desencadeamento, e com um
sujerto cuja psicose já está desencadeada. Nesse caso, o analista po­
de considerar participar ou incluir-se no trabalho de restauração. A
questão é saber como o analista pode ser situado neste laço com
um psicótico. É a questão que propomos para estudo. A titulo de aber­
tura, levanto uma pequena indicação na questão preliminar. Lacan
se interroga sobre o que somos para Schreber enquanto leitores a
quem ele se dirige. Há dois lugares possíveis. Seja o do perseguidor,
seja o do leitor. Evidentemente, dever-se-ia precisar qual é este lugar
do leitor. Ele parece se apresentar como um lugar de testemunha,
de recurso quase assimilado à ºordem do universoº que Schreber
opõe à desordem de Deus. Este aspecto é reencontrado, fato notá­
vel, em um outro paranóico célebre: Rousseau. É neste mesmo lugar
que ele invoca a justa posteridade, depois, Deus, além de seus perse­
guidores contemporâneos. A questão aberta, naturalmente, é a de sa­
ber se podemos operar desde este lugar, de modo distinto do perse­
guidor.
Espero ter-lhes dado a idéia de que temos boas razões para nos
interessar pela psicose. A paranóia tem, para nós, um interesse capi­
tal, dado, sobretudo, as questões sobre as quais se deteve o ensino ·
de Lacan, a saber, a questão da incidência do Significante sobre o
1 1 8 A psicose

Real. Podemos com o Significante tocar o Real, aqui, Real de gozo?


Para esse fim eis o que concerne igualmente ao fim da análise e ao
destino da fantasia. Tocar o Real, isso pode simplesmente querer di­
zer clarificá-lo num vislumbre mas, eventualmente, poder-se-ia querer
dizer mais, a saber, modificá-lo, modificar alguma coisa na relação com
a fantasia Pois bem, o delírio, como tentativa de cura, é um exemplo,
a arte de Joyce talvez seja um outro, onde vemos, efetivamente, ope­
rar uma modificação sobre o gozo, a partir do significante.
Abordagens do Nome do Pai1

Estou muito contente de vir falar em Bruxelas, logo após o encon­


tro de Paris, no mês de fevereiro, pois era um encontro que ratificava
o alcance translinguístico do ensino de Lacan. Bruxelas também tem
essa particularidade em relação a Paris, a de estar mais além de uma
fronteira mas, ao mesmo tempo, em parte, na mesma unidade linguís­
tica O que explica aliás que seja em Bruxelas que a Escola da Cau­
sa desejou dispor de um local que fosse o local da Escola da Causa
em Bruxelas.
Vou lhes falar hoje, a partir do título que me foi proposto: ·Aborda­
gens do Nome do Paiª . Falar do Nome do Pai supõe o ensino de La­
can e, como este ensino inclui a releitura de Freud, a releitua do Édi­
po em especial, há, é seguro, várias maneiras de abordadar esta ques­
tão, e poderíamos ter pensado em considerá-la no ensino de Lacan.
Não digo que não teria sido um bom caminho, mas não é o que vou
seguir. Gostaria de tomar uma via mais clínica e adiantarei primeira­
mente esta pergunta: pode existir uma clínica do Nome do Pai?
A priori, poder-se-ia dizer que não existe objeção em falar de clíni­
ca do Nome do Pai, que a clínica de Lacan é uma clínica do significan­
te - uma clínica do significante na medida em que ele aborda o sinto­
ma como um fato de linguagem. O nome do Pai é um significante,
por que, então, não se poderia falar de uma clínica desse significante
do Nome do Pai? Porque caímos imediatamente nisso: é um significan­
te que não representa o sujeito. A clínica do sintoma é uma clínica do signi-

1
Co nferê n cia no ensino de Clínica Psican alítica, em 6 de m arço de 1 982, p u bl ica­
da em Quarto N°8. Revisão de Mª Luiza Miranda.
120 A psicose

ficante na medida em que este representa o sujeito; poderíamos dizer


que é um .s ignificante que não se apresenta. A abordagem é pois difí­
cil e particular.
Este significante que não se apresenta possui duas maneiras de
não estar à disposição do sujeito: a primeira maneira é a maneira neu­
rótica - é a de estar recalcado; e a segunda maneira- na psicose - é
a de estar foracluído. Retomo pois, ar, o b... a .. ba do ensino de Lacan.
Recalcado, quer dizer que não se apresenta senão ao nível do re­
torno do recalcado. E, com efeito, se partimos de Freud, é preciso di­
zer que é nos sintomas da histérica primeiramente e nos dos obsessi­
vos em seguida, nos sintomas, nas lembranças e nas fantasias dos
neuróticos que Freud começou a acercar-se da questão do Pai. Ele
começou a abordar a questão do Pai quando caiu sobre a cena da
sedução histérica por um lado e, por outro lado, sobre o ódio obses­
sivo. Nos termos de Lacan, seria preciso dizer que o Nome do Pai
na neurose se apresenta na metonímia, mesmo se ele o supõe introdu­
zido pela metáfora. Então ele se apresenta, faz retorno no simbólico
ao nível da metonímia. Dever-se-ia colocar isto em nuance pois ele es­
tá também presente na metáfora do sintoma. Voltarei sobre isto. Do
lado da psicose, ele se apresenta no que Lacan chamou o real, quer
dizer que ele se apresenta no campo exterior ao sujeito. Isto é particu­
larmente visível desde o caso Schreber em que uma figura paterna
desencadeia o delírio.
Se este significante possui duas maneiras de não estar ali comple­
tamente, o recalque e a foraclusão, é preciso dizer que nos dois ca­
sos, ele é uma hipótese, é um suposto. Ele é o significante cuja pre­
sença é suposta para dar conta do que apareceria no retorno do re­
calcado, e ele é o significante cuja ausência é suposta para dar con­
ta do desastre imaginário que é o desencadeamento do delírio. Este
Nome do Pai é um suposto. Freud inventou o Édipo. Ele inventou o
Édipo, certamente, a partir do que se apresentava nos ditos dos neu­
róticos, entretanto, ele o inventou. É por isso, aliás, que Lacan, em seu
seminário sobre a ética da psicanálise, dizia que o É dipo era, em
Freud, uma sublimação criacionista. Acredito que, no presente, tería­
mos a maior dificuldade para representar o estado de um discurso
em que o Édipo não tivesse sido inventado, de tal sorte que estamos
impregnados por esta invenção. Esta invenção do Édipo levou Freud
a um ponto que está perfeitamente isolado no seu ensino e que La-
Abordagens do Nome do Pai 121

can sublinhou especialmente. Isto o levou ao termo do seu trabalho:


por um lado, a extrair a castração como um botaréu, o rochedo da
castração, um botaréu incontornável e, pelo outro, o levou à pergun­
ta sobre a qual ele ficou em suspenso: que quer a mulher?
Sublinho este ponto: esta invenção, esta promoção do Édipo por
Freud que o conduziu ao termo da sua obra a: castração e enigma
da mulher. É o que permitiu Lacan afirmar que o dizer de Freud, não
os ditos, mas o dizer de Freud, era: não há relação sexual. Freud ja­
mais o disse, mas, diz Lacan, pode-se deduzi-lo de tudo o que ele dis­
se. Não há relação sexual, isso quer dizer que há um significante que
falta. Há um significante que falta ai onde há o significante no Outro,
o Outro como lugar da sincronia significante, lugar do simbólico, dizia
Lacan no início do seu ensino. O Outro como lugar da sincronia signi­
ficante é um lugar hiante. Não se pode representá-lo por um círculo
que se fecha E é, aliás, o que no fundo, Freud havia tocado através
da questão do recalque original. Portanto, um significante falta no Ou­
tro. Lacan o disse e o escreve de muitas maneiras. Não me detenho
nisto, mas é o que ele escreve com seu S {/:/. ) ; é o que ele diz com
sua fórmula º não há Outro do Outroº ; é o que ele diz ainda com a ex­
pressão ºa mulher não existeº. Falta pois um significante que permitiria
fundar uma relação, urna relação entre esses dois significantes que
são homem e mulher.
Este significante que falta, ele permitiria - se ele não faltasse, mas
ele falta - escrever um gozo que fosse um gozo do cônjuge - retomo
ai um termo que Lacan empregava na oportunidade. Mas falta esse
significante, corno o disse Lacan, não há senão o gozo do um, não o
e
gozo do cônjuge mas o gozo do um, que é fálico, o gozo do Outro
que é, ele dizia, louco, enigmático. O que quer dizer sem significante,
simplesmente, fora do significante. É em relação � esta falta de signifi­
cante que é preciso situar a questão desse significante privilegiado
que é o Nome do Pai. É com relação a esta falta de significante funda­
mental do Outro que este significante privilegiado do Nome do Pai to­
ma sua função. Vou retomar um pouco cada ponto: eu disse ºsignifi­
cante privilegiadou e ªa sua função1 •
Primeiramente é um significante. Isto quer dizer que ele se encon­
tra no Outro. Mas ele não representa o sujerto. É verdadeiramente
uma particularidade. É uma particularidade porque, concretamente, is­
to quer dizer alguma coisa muito precisa: isto quer dizer que não há
122 A psicose

subjetividade paterna. Digo unão representa o sujeitoª , mas isto não


exclui que ele seja a condição para que o sujeito venha a ser repre­
sentado pelo significante. E vemos isto em Schreber, na hipótese da
foraclusão. Em Schreber onde o Nome do Pai está foracluído, vemos
significante por toda parte. Vemos significante que lhe chega como
vozes, desde o exterior; mas esses significantes não o representam.
Estes significantes representam exatamente o Outro. É bem o que
me permite dizer aí que, no fundo, o Nome do Pai deve ser também
a condição para que o sujeito possa estar representado pelo signifi­
cante. Era meu primeiro ponto.
11
O segundo ponto; digo se ele não representa 9 sujeito isto quer
dizer que não há subjetividade paterna•. Não é mais do que um no­
me. Há pais; seguramente. Há pais, há em abundância; há pais reais,
e aliás ·há pais imaginários. Conhecemos destes várias figuras. Mes­
mo em Freud há vários pais: há o pai de Totem e Tabu, o pai obsce­
11
no e feroz, o pai onigozador' (tout-jouissant) e, depois, há o pai do
Édipo, o pai da sedução, o pai da Lei, o pai do interdito. Não são os
mesmos. Há pais mas não há subjetividade paterna O corte, a hiân­
cia entre a função do Nome do Pai e os seres que venham a ser pais,
não é possível ser preenchida. Em outras palavras, não há pai igual
à sua função, não há educação possível dos pais. Se no século XVIII
os filósofos tinham sonhado com a educação das mulheres (Rousse­
au, Voltaire começaram a sonhar em educar as mulheres), Rousseau
até fazia disto a condição para que a sociedade não caminhasse pa­
ra a sua ruína; era preciso educar as mulheres. Não se pode dizer
que isto teve êxito pode-se dizer que o século XX, enfim, no pós-freu....
dismo, é o século em que se quis educar os pais. E os efeitos não
são os melhores, eles são mesmo, eu diria, piores. Todos os discur­
sos sobre a autoridade do pai, sobre o que deve ser o pai, sobre co­
mo a mãe deve se comportar em relação ao pai de seus filhos, co­
mo ela deve respeitar ou não sua palavr� ser da mesma opinião ou
não ser da mesma opinião, se ela pode contradizê-lo diante das crian­
ças ou não etc... , todas essas pequenas questões, eu diria que fazem
o cotidiano e as instituições e as famílias, as instituições para crianças
em particular, reedificam-se mesmo na idéia de que poderia existir
uma educação dos pais, ou pais que seriam não-carentes. As carên­
cias paternas, verdadeiramente, ouvimos muito falar delas. Pois bem�
é uma questão que, no modo de ver do ensino de Lacan, é um con-
Abordagens do Nome do Pai 123

tra-senso. É um contra-senso porque nada é pior do que um pai edu­


cado! O que quer dizer, nada é pior do que um pai que aspiraria igua­
lar-se à sua função de pai, que aspiraria igualarse ao nome que ele le­
va como pai. Sou um bom pai? Lacan formula que o voto do histéri­
co é ºser o falou ; então, se por analogia, em alguns casos, chega-se
a formular o voto do sujeito desta forma; ªser pai•, não haveria nada
mais devastador! Isto não me impedirá mais tarde de lhes dizer o mí­
nimo requerido, segundo Lacan, para ser um pai. Não O pai, mas ser
um pai. Era o meu primeiro ponto concernente a esse caráter signifi­
cante do Nome do Pai. Poderia concluir relembrando a expressão bem
conhecida de Lacan, o pai é o pai morto . ... Morto quer dizer, o mo­
mento em que o nome é aliviado do peso de seu suporte, e aliviado
do peso do vivente que o fez de suporte.
O segundo ponto: é um significante privilegiado. Isto é visível em
todas as fórmulas do pai dadas por Lacan. É um significante inteira­
mente à parte. Vêmo-lo claramente nas fórmulas da sexuação, visto
que ele próprio diz ali: é a exceção. Ele o formula em termos de exce­
ção. Em termos do pelo-menos-um que escapa de alguma maneira
do universal e que o funda Que funda o universal do homem, em sen­
do a exceção. Já tínhamos visto nos escritos anteriores de Lacan es­
ta função privilegiada. Reescrevo aqui a fórmula da metáfora paterna:

Nome-do-Pai . Desejo da Mãe � Nome-do-Pai A


Desejo da Mãe significado ao falo
sujeito

Nesta escrita da metáfora, Lacan, simplesmente, escreve que o


Nome do Pai vem para metaforizar o Desejo materno e fazer passar
por baixo da barra o Desejo materno. Vemos que à esquerda (o efei­
to da metáfora está escrito à esquerda) o Nome do Pai está fora do
Outro. Há o Outro e o Nome do Pai está fora, está escrito ao lado. Eis
o que de uma certa maneira visualiza na escrita a posição de exceção
desse significante. A escrita visualiza o que Lacan dirá bem depois,
quando dos nós borromeanos, a saber: O Nome do Pai é um signifi­
cante suplementar. Seguramente escrever o Nome do Pai fora do Ou­
tro é um problema, pelo motivo que, quando Lacan nos dá a definição
do significante, e inclusive do significante do Nome do Pai, ele diz: es­
tá no Outro. Se ào final do 8Tratamento possível da psicose• ele defi-
124 A psicose

ne assim o significante do Nome do Pai: ªé o significante - página 583


dos Écrits - que, no Outro, enquanto lugar do significante, é o signifi­
cante do Outro, enquanto lugar da leiª .· É uma definição que implica
também a posição absolutamente excepcional do significante pater­
no. Porque, como vocês podem ver, isto implica em uma distinção en­
tre o Outro como lugar do significante e o Outro como lugar da lei.
Então, isto quer dizer que se o Outro fosse figurado por um círculo,
o Nome do Pai estaria no interior. Mas, posto no interior, Lacan o dis­
tingue, entretanto, por duas definições do Outro.
Ou bem ele o põe sobre as margens do Outro, ou bem, quando
ele o põe no Outro, ele dá uma definição do Outro que é particular.
Observem aliás que esta dupla definição do Outro nos permitiria mui­
to bem fazer a distinção entre o Nome do Pai e o Supereu, já que, es­
te ano, em Paris, trabalhamos na Seção Clínica sobre o Supereu. E,
evidentemente, Lacan sempre opôs o Nome do Pai ao Supereu. Pare­
ce-me que estamos bem perto de abordar esta distinção, quer dizer
que o lugar do significante, por si próprio, faz mandamento porque o
significante, como diz Lacan, manda. À primeira vista o significante é
oracular. Portanto, de uma certa forma, há um mandamento que co­
manda do significante, que já está presente no Outro simplesmente
como lugar do significante. E eu diria que é ai que seria preciso situar
o mandamento do Supereu. Enquanto que o Nome do Pai, no lugar
da lei, se é um mandamento, é bem do Outro enquanto ele comanda,
mas de outra forma Há ur:n redobramento, há duas leis. Há a lei do
significante e há a lei do Pai que regula a lei do significante e na qual
dever-se ia colocar a interdição do incesto.
Continuo a minha enumeração de todas as fórmulas em que La­
can tentou acentuar o estatuto privilegiado do Nome do Pai. Acrescen­
taria pois, para finalizar que, no momento em que Lacan escreve os
quatro discursos com estas quatro letras S1 , S2, $ , a, vocês podem
ver que, nestas quatro letras o Nome do Pai não está situado. O No­
me do Pai não está situado, podendo ser encontrado apenas de ma­
neira contingente. Ou seja, do mesmo modo, pode também não estar;
foraclusão, portanto. Haveria evidentemente a questão de saber on­
de colocá-lo, em S1 ou em S2. Lacan sempre definiu o significante,
do Nome do Pai como um significante sem par. Isto é, como um sig­
nificante que escapa ao próprio estatuto do significante já que a sua
definição de significante é que eles vão sempre, no mínimo, dois a
Abordagens do Nome do Pai 1 25

dois. Há sempre um uqualquer doisu . A expressão ªsignificante sem


par', é uma expressão de Lacan a respeito do falo, na ªDireçáo da cu­
raª . Pois bem, este significante sem par (sans pair) , o falo, tem um
pai (pêre), o qual é também um significante sem par. Ocupo-me ago­
ra da função deste significante. Lembrarei primeiramente uma coisa
que Lacan diz em R.S.I. e também em outros lugares: 0 Édipo de
0

Freud é a realidade psíquicaª . O Édipo é a realidade psíquica que


Freud nos descreveu desde o ensaio de psicologia científica Em seu
seminário sobre a Ética, Lacan dedicou um trimestre para comentar
esta realidade psíquica Para mostrar que era o que ele chamava a
estrutura significante, constitutiva do sujeito. Então, quando ele nos
diz: uo Édipo é a realidade psíquica em Freudu , é mais ou menos equi­
valente a dizer: 0 Édipo é a estrutura significante, a estrutura simbóli­
0

caª . Por outro lado, para Lacan, o Édipo sempre foi o que condiciona­
va a relação do sujeito com a realidade, realidade aí, no sentido ba­
nal da palavra Desde 1936, no texto sobre a família que ele publicou
na Enciclopédia, ele precisava que era a relação com o pai, no Édi­
po, que permitia afirmar o que ele chamava o sentimento da realida­
de em um sujeito. O que é o sentimento da realidade? É, a grosso
modo, o que faz com que se distinga, de maneira mais ou menos co­
mum, o que é inerte do que é significativo, que aliás, as significações
que asseguram a relação de cada um com seu próximo, sejam mais
ou menos estáveis. Lacan emprega a expressão acomodaçáou , o que
0

faz a acomodação de cada um em seu pequeno mundo e refere isto


ao Édipo, ao Nome do Pai. Eis a abordagem a mais geral desta fun­
ção do pai, tanto em Freud quanto em Lacan: acomodar-se à realida­
de de cada um. Aliás é bem porque ele o apresentou assim, como o
significante que permite ao mundo de cada um sustentar-se, que ele
explica a desordem da psicose, a perturbação da relação com a reali­
dade na psicose, pela foraclusão. De que maneira Lacan tentou apro­
ximar esta função de acomodar-se à realidade de cada um? Sobre
este ponto vou dar alguns referências rápidas, lembretes. De uma pon­
ta a outra do seu ensino, ele sempre deu, sempre definiu esta função
do pai como uma função de nó e isto antes de ter falado em nós. Por
que? Porque, num primeiro tempo, isto é, nos textos que se encontram
nos Escritos, ele aborda o Nome do Pai a partir do ponto de basta.
E o ponto de basta é o que ata, o que faz se manterem juntos, o que
faz manterem-se juntos o significante e o significado. Quer dizer que
126 A psicose

é com o ponto de basta que Lacan tenta explicar a incidência do sig­


nificante sobre o significado, que ele tenta explicar que é o significan­
te que ordena e inclusive que produz as significações, que traça as
suas linhas, os eixos. Nesse caso, certamente, a célula elementar do
ponto de basta é a célula elementar do grafo de Lacan, a saber, o
que ele desenha assim:
s (A) Q A

+ ' ..
sobre esta célula, ele coloca o Outro à direita, à esquerda a mensa­
gem, a saber, o efeito retroativo de significação. O Nome do Pai deve­
ria ser srtuado à direita Ele é o significante sobre a cadeia significan­
te horizontal a partir do quaJ, retroativamente, virá desenhar-se uma
significação, a do faJo. Situar o Nome do Pai com o ponto de basta
não é contraditório com a idéia de que o que introduz o Nome do Pai
é a metáfora Isto não é contraditório pela seguinte razão: é que, no
fundo, Lacan define dois aspectos do ponto de basta: encontraremos
sua função diacrônica na estrutura da frase. A saber, no fato de que
a frase toma sua significação a partir de seu último termo. E em se­
gundo lugar, encontraremos a estrutura sincrônica na metáfora Portan­
to, para dizê-lo rapidamente, a metáfora, deve ser incluída na descri­
ção pelo ponto de basta Por isso, que eu digo que desde esse mo­
mento Lacan nos apresentava um Nome do Pai que tinha por função
atar o simbólico e o imaginário, se, pelo menos, vocês me permitem
a assimilação entre significado, significante e o simbólico e entre o sig­
nificado denominado o imaginário. Dizer-nos que o Nome do Pai é o
que atava significante e significado é dizer, antes de tudo, que ata o
imaginário e o simbólico. Em seguida, com o nó borromeano, Lacan
vai acrescentar a consistência do reaJ. Fará, então, do Nome do Pai
um suplemento, um elemento suplementar, quarto círculo que vai atar
os três outros (RSI). É aí que poderíamos situar a passagem para o
plural, do Nome do Pai aos Nomes do Pai. A partir do momento em
que Lacan distingue entre o significante propriamente dito e a função
que lhe pertence - que tentei aí condensar ao máximo por uma função
de nó -, imediatamente pode-se conceber que outros significantes
possam ter a mesma função. Quer dizer que a distinção entre o signi­
ficante e sua função faz a passagem para o pluraJ. Ele diz em R.S. I. :
Abordagens do Nome do Pai 127

ªColoquei os Nomes do Pai no plural para indicar que se poderia su­


prir esta função do significante u , isto é, suprir este significante que já
é, ele próprio, suplementar. Em outras palavras, poderíamos prescin­
dir do Nome do Pai. Isto foi sempre uma idéia de Lacan, uma esperan­
ça, talvez, eventualmente, um desejo, prescindir do N ome do Pai. Efe­
tivamente, se dizemos que a função é fazer manter junto, pode-se ime­
diatamente dizer que talvez existam outras maneiras de fazer manter
junto além da do viés desse significante. E, o nó borromeano, tinha­
se também a idéia de que o nó podia manter-se sozinho, sem o quar­
to que figurava a intervenção suplementar do Nome do Pai. O signifi­
cante faz manter a ordem significante. Ele implica na produção de
úm certo efeito, de um efeito maior, a produção do falo, a produção
do significante fálico. O Nome do Pai produz um outro significante sem
par, o falo. Ele o produz, como vocês podem ver, sobre o ponto de
basta, no lugar da significação. Ele o produz como significação. Isto
pode ser observado igualmente na escrita da metáfora - o falo está
debaixo da barra, no lugar do significado. Portanto, produção do falo
como significação, mas também, produção da significação como fáli­
ca D izer que o Nome do Pai ata (capitonne) a ordem simbólica é di­
zer q ue toda significação remete-se à significação fálica. O pretenso
pan-sexualismo de Freud era isto, seja o que for que se interprete, re­
torna-se ao falo, é o efeito risível da interpretação analítica, da interpre­
tação significativa, pelo menos. As pessoas um pouco alheias ao cam­
po da psicanálise,quando lêem as narrações dos analistas da época
anterior, aí onde abunda a interpretação significativa, riem. Têm razão.
O riso é o sinal de que toda significação remete sempre à significação
fálica. Freud observava: ºeu não sou responsável pela monotonia das
soluções que a psicanálise aporta: caímos sempre sobre o pai e o falo... º
O nome do Pai é, pois, um princípio de resposta O que não quer
dizer que seja o pai quem responde, quem formula as respostas. An­
tes, é ele o respondente. Ele é o respondente em relação à falta de
significante no Outro, do qual eu parti bem no início de minha exposi­
ção, em relação a esse significante que falta e que faz com que não
haja relação sexual, o pai, eu diria, faz um enxerto de resposta. Ele
dá uma resposta que está enxertada. É por isto que ela também po­
de faltar. Esta resposta do pai é o falo, com sua implicação, a castra­
ção. Mas é uma resposta, observem-no que, em Freud e em Lacan -
Lacan a acentuou muito - é uma resposta pacificadora É uma respos-
128 A psic;ose

ta que põe ordem no mundo, que põe uma ordem particular entre os
sexos, que permite definir os lugares e que portanto permite ao sujeito
vir a se alojar, ao mesmo tempo, sobre o plano simbç,lico e o imaginá­
rio. É pois uma resposta que apazigua A castração não deve ser abor­
dadp. exclusivamente pelo seu lado de angústia, seu lado de pathos,
seu lado patético. Ela tem seu lado de apaziguamento. É por isso que
Lacan podia dizer, só comparo _o pai ao pior (on ne parie que du
pêre ou pire) . Não há alternativa para o pai senão o pior. E esta al­
ternativa pior talvez seja o Supereu, uma das formas do Supereu ...
A que é que responde o Nome do Pai? Ao significante que falta?
Responde pois a uma dupla questão, a do desejo e a do gozo. O
desejo se apresenta de início como uma pergunta, enigma, enigma
do desejo do Outro. Eis porque, quando constrói seu grafo, Lacan
em um de seus desenhos, desenha o ponto de interrogação do de­
sejo. A este enigma, o significante falo responde: é o falo escrito
em minúscula. O falo como significante do desejo. O pai fornece o
significante do desejo, a operação do pai fornece o significante do
desejo. Mas isto responde também à questão do gozo. Não se po­
de dizer que o gozo se apresenta. É mais um lugar em branco (Cf.
usubversão do Sujeitou , p. 819 dos Écrits) . O gozo não se apresen­
ta como uma pergunta, porém existe bem uma pergunta. É •o que
é que eu sou?u Pergunta pois, do sujeito. Não uma pergunta que o
sujeito se coloca, mas, pergunta do sujeito: o que é que eu sou? La­
can responde, de maneira. muito bonita: º ... eu sou no lugar desde
onde se vocifera que o universo é uma falta na pureza do não-seru .
É Valéry, o universo é uma falta na pureza do não-ser. Pergunta pois
do nada que aí se perfila. Mas ele acrescenta: º ... este lugar chama­
se o gozo. E é ele cuja falta faria vão o universoª . Ele acrescenta
mais adiante: u ... este gozo cuja falta faz o Outro inconsistente, o
Outro com A maiúsculau .Portanto, vejam que há um lugar, o lugar
do gozo no Outro, precisamente, neste lugar, há uma falta. No fun­
do é o que Lacan escreve com sua barra sobre o Outro, quando es­
creve, no grafo S(�) . Pois bem, a segunda vertente da operação do
pai, é fazer presente o significante que vem neste lugar que é o Fa­
lo escrito com maiúscula, desta vez: o ti maiúsculo, significante do
gozo, que é aqui equivalente à falta do Outro, que vem especificar
a falta do Outro. Vocês vêem pois o falo em minúsculo ( cp ) signifi­
cante do desejo; o falo maiúsculo ( <I> ) significante do gozo. De qualquer
Abordagens do Nome do Pai 129

sorte é a dupla resposta do pai. O Nome do Pai dá seu significante


ao gozo. Existe um gozo coordenado ao Nome do Pai. é o gozo fáli­
co. Em Schreber. vê-se bem a coisa em negativo. Não somente perce­
be-se no desastre do imaginário o desencadeamento das significa­
ções. sua desestabilização geral, mas vê-se também surgir um gozo
absolutamente desencadeado, por não estar especificado pelo falo,
gozo mortal. mortífero, que Schreber nos descreve com detaJhes, co­
mo uma palpitação, uma alternância entre instru1tes que estão sobre
a vertente da voluptuosidade e instantes que, ao contrário, estão so­
bre a vertente do que ele chama de um arrebatamento, segundo
Deus se aproxime ou se afaste. Gostaria de tentar abordar um pou­
co mais clinicamente este fato de que o pai é um princípio de respos­
ta Inicialmente apresentarei algumas obseryações sobre esta noção
de apelo ao Nome do Pai. Será que poderíamos fazer uma clínica do
apelo ao Nome do Pai? Pois vocês sabem que, a respeito da psico­
se, Lacan diz que se desencadeia quando o Nome do Pai é chama­
do e não há significante para responder a esse apelo. Parece-me que
temos pelo menos dois exemplos de uma clínica de apelo ao nome
do Pai em Lacan: Schreber e Hans.
O apelo ao Nome do Pai em Schreber, vê-se efetivamente como
se produz. Produz-se pelo surgimento, em seu mundo, da figura de
um pai e de um pai que se coloca logo ali, o professor Flechsig. Tu­
do se passa como se a figura desse professor fizesse surgir uma per­
gunta: o que é um pai? Será que é isto o pai? E que na falta do signi­
ficante que responderia ali. vemos aparecer o perseguidor. Um outro
pai, se quisermos, mas encarnando o imperativo superegóico, de ha­
ver sob uma forma muito pura: o perseguidor diz a Schreber: ºGoza
como uma mulherº . Ele quer que ele esteja no lugar do gozo de uma
mulher. Vê-se bem em relação a um pai real, que quando o nome do
Pai não responde, é o Supereu, o imperativo do gozo impossível, que
responde.
O segundo exemplo, diria que é um caso de desencadeamento
de neurose - a do pequeno Hans. Hans, no momento em que explo­
de a sua angústia, se encontra confrontado à castração materna; ele
se encontra face ao desejo da mãe que Lacan escreve, num determi­
nado momento, como vocês sabem, ºA maiúsculo barrado, fi minúsculoº :
.Ji... Ele está frente ao desejo fálico da mãe é, ele se coloca uma du­
pl� pergunta. Ele se encontra, diz Lacan, diante ºdo enigma subitamen-
1 30 A psicose

te atualizado por ele de seu sexo e de sua existênciaª . Há pois duas


perguntas para Hans: a existência e o sexo. Observem serem quase
as duas perguntas das duas grandes neuroses: ·o que é ser mulher?ª
na histeria, e ª estou-vivo ou mortou no obsessivo. Hans encontra-se fren­
te às duas perguntas ao mesmo tempo: Por outro lado essas duas
perguntas estão formuladas em Freud. Uma, quando ele nos diz: o
grande problema da infância é - de onde vêm os bebês? Diz sobretu­
do em ª Leonardo\ questão, pois, da existência. Consequentemente
vemos Hans interrogar-se sobre o papel do pai, nisso. Cf. suas per­
guntas sobre a cegonha, ou quando ele chateia seu pai ao lhe fazer
responder a esta questão: ªDe quem é Ana? Ela é de Mamãe? Ela é
tua? ª Resposta: ª ela é dos trêsª . Vemos, então, aí uma grande distân­
cia entre a resposta que dá um pai e a resposta do Nome do Pai.
De onde vêm os bebês, em outras palavras, qual a função do pai na
geração? Quanto à pergunta sobre seu sexo, para Hans, é uma ques­
tão absolutamente concreta, no momento em que o órgão vem existir
para ele, na masturbação. Uma espécie de gozo do órgão pois, a res­
peito do qual ele começa a perguntar-se o que fazer com este troço?
O que fazer frente ao desejo do Outro, frente à castração materna? A
pergunta de Hans, já é, de uma certa maneira, ª O que g uer a mulher? u
que Freud, por sua vez, fórmula ao início da sua obra E nesta conjun­
tura, em volta desta dupla questão, que se vê bem em Hans, o recur­
so ao pai. Do mesmo modo capta-se bem a clivagem entre o Nome
do Pai e seu pai, seu pai que tenta responder, do jeito que. pode.,
Mas, evidentemente, para que haja uma resposta do Nome do Pai, se­
ria preciso ... Seria preciso a única coisa que pode produzir um efei­
to de resposta, um efeito de significação, a saber, uma operação sig­
nificante, a metáfora Ora, é exatamente a falta desta operação que faz
Lacan dizer: é ulaissé en plan u como Schreber (ele retoma a expres­
11
são que Schreber utiliza falando de si mesmo) : Hans é abandonado
pelas carências simbólicas do seu círculou . Ele é deixado abandona­
do, porque isso não faz metáfora; não há a metáfora que produziria
a resposta a essas duas perguntas, resposta fáJica, certamente.
Rapidamente evocaria agora dois outros aspectos da função do
Nome do Pai, o pai da existência e o pai do sexo. Que seja o pai da
existência - no sentido comum da palavra - é, finalmente, o que é
mais o visível, superficialmente, quando se o evoca como genitor. Po­
rém o pai não é o genitor, é antes o criador, de qualquer modo um
Abordagens do Nome do Pai 1 3 1

criador, já que a Mãe do mundo existe tanto quanto o Pai do mundo.


Mas Deus o Pai, é bem aquele que responde à pergunta: porque algu­
ma coisa antes que nada? Se há na psicose um empuxo-à-mulher co­
mo se diz frequentemente não há, do mesmo modo, um empuxo-ao­
nada sob a forma do fim do mundo do psicótico, correlativo precisa­
mente ao desfalecimento desse significante do Nome do Pai. Isso não
deixa de ter relação com a nomeação, na medida em que a criação
não é somente criação do significante e dos lugares que esse deter­
mina. Vocês sabem que Lacan diz: a função do pai é de .,n 'hommer .
Aí, a escrita do francês presta-se a significar. Isto me condiziria a fa­
zer algumas observações sobre o que eu poderia chamar Bfazer o
paiª . Adianto esta expressão por analogia com o ª fazer o homemª , na
histérica, com o ªfazer o mortoº no obsessivo, e com o -fazer a mu­
lher a, no psicótico. No fundo, poderíamos definir uma certa maneira
de fazer o pai, o que não quer dizer fazer semblante de pai. Fazer o
pai, afinal de contas, é o que Freud faz. É o que Freud faz quando in­
venta o Édipo. Durante muito tempo não compreendi porque Lacan
dizia na Ética que o Édipo é uma sublimação criacionista de Freud,
que ele reata à criação ex-nihilo a partir das palavras. Efetivamente,
Freud nomeou o Édipo e é nesse sentido que, de uma certa maneira,
ele o inventou. Ele não inventou a relação com o pai, mas ele inventou
o Édipo. Será que toda criação do nome faz o pai? É bem por isso
que é interessante falar dos escritores. De Joyce, por exemplo, Lacan
nos diz: ele faz o pai. Houve foraclusão para Joyce e ele se mantém
fora do delírio psicótico pela sua arte. Poder-se-ia também evocar a
escrita nos psicóticos, este traço que frequentemente é observado,
essa propensão às vezes absolutamente incontrolável para escrever,
toda operaçao sobre o nome, os nomes da nomeação, isso toca ao
pai. Ou mesmo quando Lacan nos diz, no final de seu trabalho, nos
últimos anos, que ele procura um significante novo quando ele promo­
ve o nó borromeano, é a sua maneira de procurar fazer a mesma coi­
sa que Freud, inventando um significante novo para a metáfora. La­
rn.rto ir tão rápido sobre um ponto, para dizer a verdade, muito deli­
cado, -que mereceria muitas nuances, porquanto se poderia por exem­
plo, dizér igualmente que toda criação vai em oposição ao pai. Não
posso desenvolver esse ponto, evocarei, somente da memória, o pre­
tenso desfalêcimento feminino face à criação cultural que tanto deso­
la as feministas. Sem dúvida, a posição diferente dos sexos, em rela-
132 A psicose

ção ao Nome o Pai, não é à toa.


Último ponto: o pai do sexo. Isto afinal de contas está em Freud.
Desde Freud, como pai do sexo, é preciso dizer que ele é o pai do
NÃO (NON) - não mais N-0-M-E (NOM) , mas N-Ã-0 (NON) - quer
dizer que ele é aquele que interdita, interdita a mãe. A função desta in­
terdição é muito clara em Freud: é a mesma coisa que dizer que, in­
terditando a mãe, ele sustenta a repartição dos sexos. De um lado,
pela castração, ele sustenta a identificação masculina do homem e,
do outro lado, a identificação da mulher com o outro sexo. O Édipo
é uma maneira de dizer que o desejo do pai faz a lei, o pai põe ordem
nos sexos.
Gostaria de insistir sobre isto: se a Mulher não existe, é o pai quem
faz a mulher. Eu digo assim, vou me explicar. A Mulher não existe,
quer dizer que falta um significante que permitiria universalizar as mulhe­
res, tal como podemos dizer O homem (para designar todos os ho­
mens, pode-se dizer O homem) . Eis porque Lacan escreve /i. com
uma barra em cima Das mulheres, sabe-se apenas em que não é to­
da na função fálica. Mais simplesmente, só se sabe delas o que se ins­
creve na função fálica O que Freud abordou, desde início, como inve­
ja universal do pênis. A única vertente em que ela se universaliza é
pelo viés do que não se origina no seu sexo anatômico; ela quer o fa­
lo, mas talvez ela queira mais do que isto. É o que Lacan diz: ºela
quer o falo, mas ela não o quer todaº . Não se sabe tudo pois, da mu­
lher, sabe-se somente dela o que se inscreve na função fálica. Pelo
contrário, do homem, sabe-se tudo. Do homem enquanto se diz o ho­
mem, no singular, sabe-se tudo. Isto explica as fórmulas de Lacan tais
como esta: as mulheres são reais, elas não são senão isto mesmo,
ele diz. O que quer dizer? No fundo, as mulheres são um sexo negati­
vo. No plano imaginário, definem-se pela ausência de apêndice imagi­
nário. Não há outra definição da anatomia feminina. E, plano do signifi­
cante, definem-se por esta ausência do signifciante d'A mulher. Em
outras palavras, se elas não são definidas nem no imaginário, nem
no simbólico, efetivamente, logicamente, não resta senão uma alterna­
tiva: elas são reais, se este Real é o que está fora do simbólico. Além
do que Lacan assim o define como impossível, e dizemos bem que
as mulheres são impossíveis! É engraçado ver como todas as fórmu­
las que Lacan empregou recaem umas sobre as outras: enquanto re­
ais, fora simbólico, elas são impossíveis. Se portanto as mulheres não
Abordagens do Nome do Pai 1 33

são todas na função fálica, o outro gozo, o gozo que não é gozo fáli­
co, elas não podem fazê-lo passar para o inconsciente. Pois Lacan
define a psicanálise assim: fazer passar o gozo ao inconsciente, a sa­
ber, fazê-lo passar pelo signfficante. Um gozo que passou pelo signifi­
cante do homem dos ratos dá exemplo disto: o rato, este significante
que o representa, ele e seu gozo, é ao mesmo tempo um significante
com o qual ele contabiliza: tantos ratos. Deixo vocês com toda a pe­
quena contabilidade do homem dos ratos, a respeito dos ratos. Retor­
no à função do pai. A histeria e a psicose são, penso, duas soluções
inversas. A histérica, Lacan frequentemente o diz, a histérica faz o ho­
mem. A histérica faz o homem, quer dizer simplesmente que, dado
que a sua pergunta é uo que é uma mulher?\ e que não existe signifi­
cante d'A mulher, para identificar-se ou tentar indentfficar-se com o
seu sexo, seu sexo anatômico, seu sexo do estado civil, para tentar
identificar-se com seu sexo, ela passa pelo universal d'O homem;
quer dizer que ela se serve de pelo menos-um-homem que faria uma
mulher parceira. Quer dizer que sua definição d'A mulher na falta de
um significante da mulher (é uma definição mínima) , é ao menos, a
de ser a parceira do homem, de um homem. Observem, é suficiente
um. Por que um é suficiente? De preferência, um ou tudo, uma série,
é exatamente equivalente visto que o homem pode ser dito no singu­
lar: há uma universal do homem. Como me dizia uma delas: 'eu procu­
ro um homem neste momento. Aliás os encontro aos montes u . Se me
permitem dizê-lo, jogando com a língua, o homem é sempre qualquer
um. Ele é o apêndice da função fálica, de alguma forma. Isso explica
pois o que Lacan diz: eles andam em turma A turma, a turma de to­
dos os que têm a mesma identidade fálica As mulheres também em­
bora não andem em turma, mas aos pares, não podem parar , como
Lacan dizia em uma época, para arrancar um em seu batalhão, o
u
um u que será suficiente. Então, u a histérica faz o homem º , de fato ela
faz o homem porque, para ela, é o homem faz a mulher, na falta do
significante da mulher. Eis porque eu dizia, é o pai quem faz a mulher.
É o pai quem faz a mulher visto que é o pai quem faz o homem que
faz a mulher, se vocês preferem. Isto esclarece muitas coisas. Por exem­
plo, o que se chama a dependência das mul heres, a dependên­
cia d ita afetiva das mulheres. É um grande erro. As mulheres não
são afetivamente dependentes, elas são, pelo contrário, depen­
dentes de maneira significante, é q ue lhes é preciso passar pelo
134 A psicose

significante onde há um universal, o significante do homem, para se


significar como mulher. É uma dependência significante. E é bem o
que explica aquilo que Lacan observa em Télévision : não há limite
para as concessões que uma mulher está prestes a fazer por um ho­
mem; seus bens, seu corpo, sua reputação, sua honra. Tomem ain­
da a inveja, sobre a qual se insistiu muito na teoria psicanalítica, sobre­
tudo os kleinianos. A tese de que as mulheres têm uma propensão
para a inveja é uma tese particular de Melanie Klein. Ela fez um gran­
de esforço para tentar justamente distinguir a inveja do ciúme e da ri­
validade. É verdade que há uma grande diferença entre a rivalidade
que pode amarrar o obsessivo ao seu alter ego, (este alter ego com
o qual ele se embaraça sem cessar), e a relação de inveja fascinada
que ligq uma mulher a outra Mas é preciso ver como isto se situa
Precisamente, esta inveja, que não é ciúme, origina-se no fato de que
as mulheres não são quaisquer. Antes, inimitaveis. Nada de traço de
universalizacão, o que quer dizer que uma mulher não vale para uma
outra. Para situar precisamente a diferença entre a rivalidade masculi­
na e a inveja feminina, eu diria isto: para o que se classifica do lado
dos homens, há uma identidade simbólica no duplo sentido do ter­
mo: um traço que lhes dá identidade e que os fazem idênticos uns
com os outros. Em compensação, há diferenças imaginárias, até reais
e é aí que se situa sua rivalidade. Nas mulheres, é o inverso: nada
de identidade simbólica por que não se pode dizer iodas as mulhe­
res" e, de repente, a questão da relação com a outra mulher, não se­
melhante, resolve-se por um esforço de identidade imaginária ou real.
É isto a inveja: o esforço de paliar a ausência de identidade, simbóli­
ca e, evidentemente, não há limites para as tentativas de se identificar
com outras mulheres, nas mulheres.
Vou terminar com Schreber. Absolutamente, ao contrário da histé­
rica, que faz o homem por falta do significante da mulher, Schreber,
por falta do Nome do Pai, faz a mulher. É o efeito de Empuxo-à-mu­
lher da psicose. Desde o início do delírio o perseguidor lhe diz: ugo­
za como uma mulheru . · É a perseguição contra a qual ele luta É no fim,
chegamos a um Schreber apaziguado, restabelecido, reconciliado com
o mundo e com o universo: é o Schreber que se tornou a mulher de
Deus. Podemos ver o efeito do apaziguamento, da aceitação deste lu­
gar de mulher de Deus. Lacan fala aqui da metáfora delirante. Quer
dizer que, na ausência da metáfora paterna, uma outra metáfora se
Abordagens do Nome do Pai 135

produziu. E vemos bem que ela o Nome do Pai, efeito que não existia
no início do delírio e que é um efeito de pacificação, de restabeleci­
mento. Lacan insiste sobre o fato de que a chave da reviravolta de
Schreber não é a megalomania, e ele critica Freud por ter aceito esta
solução. Não é somente porque ele se torna mulher de Deus que ele
pode aceitar ser mulher, porquanto há um outro traço que me pare­
ce muito importante, é a referência à ordem do universo. Sem dúvida
vocês se lembram de que Schreber termina por elaborar penosamen­
te a idéia de que a sua transformação em mulher é necessitada pelo
bom ordenamento do universo e que,no fundo, é a condição para que
ele seja, de alguma sorte, o redentor de uma humanidade futura. O
que quer dizer, muito exatamente, a mulher vem para ele no lugar do
ldeaJ do Eu. Isto implica seu eu ideal feminino correlato ao gozo tran­
sexual no qual ele se estabiliza.
Marlene1

A exposição se baseia em um exemplo: o de uma jovem mulher


cuja psicose apresenta certos traços que me pareceram suscetíveis
de serem elevados, segundo a expressão de Lacan, ao nível de para­
digma.
Ao seguirmos as indicações de Lacan, devemos avaliar em que im­
plica o caráter u fora do discurso u da psicose, correlativa da não-ins­
crição do sujeito na função fálica. Ao escutar a jovem de quem falo,
a quem chamarei de Marlene, impõe-se o que já se podia deduzir, a
titulo de hipótese, das fórmulas de Lacan: o º fora do discursoº se ma­
nifesta no fenômeno a nível das identificações, como defeito, pertuba­
ção da representação significante do sujeito.
Correlativamente, veremos como o delírio é uma tentativa de cura.
Marlene, contrariamente a Schreber, sofria, e cada vez mais com o
passar do tempo, de uma espécie de impotência para sustentar o edi­
fício de um delírio no qual ela poderia situar-se.
Há também de se avaliar, com este exemplo, que a utilização da
biografia, ertendida como relato da história individual, é quase supérflua
para a abordagem do tema. Poderia, sem dificuldade, suprimir a gran­
de quantidade de informação de que disponho nesse sentido e que,
longe de ajudar-nos a entender, antes, nos extraviaria na indiscrição.
Querendo evitar isto, espero ao mesmo tempo fazer-lhes sentir como
a estrutura não é indiscreta, enquanto que a anedota anamnésica o é.

1
Trad uzido da tradução castel h an a de Diana S . Rabinovi ch. R evisado por B er­
nardino Horn e. P u b l i cad o in Psicosis y Psicoanalisis ; Ed. Manantial, Buenos Aires,
1 985, pg.1 39-1 44.
Marlene 137

Junto a isto, quis também evitar restituir-lhes a particularidade desses


termos demasiado identifícaveis e lamento o que com isso, por exem­
plo, possa perder, em valor demonstrativo.
Primeiramente, as vozes. Estão aí, e Marlene se prende a elas.
Não têm, porém, a complexidade ordenada das vozes de Schreber.
Especialmente a distincão estruturada, colocada por Lacan, das men­
sagens sobre o código e do código das mensagens, não se encon­
tram no caso. O que as impõe como alucinações é o seu caráter de
ºcadeia rotaº , rasgo suficiente, diz Lacan, para que a irrupção do sím­
bolo no real seja indubitável. Usualmente, não são as vozes ameaça­
doras do delírio; tampouco o comentário dos atos, mais bem, fragmen­
tos que formam um outro texto e que a acompanham permanentemente.
Ela isola três tipos de fenômenos: primeiramente, enunciados para­
sitas que se impõem como voz, classicamente eu diria, fazendo irrup­
ção no silêncio, ou em incisos nas conversas. Lamentavelmente, de­
vo evitar os exemplos para não trair a pessoa.
Há outra modalidade que Marlene distingue das frases impostas:
são as amostras da escuta que, no meio sonoro, nas conversas inter­
ceptadas, no metrô, sobre as calçadas, no rádio etc., isolam fragmen­
tos que, autonomizados e separados, se animam com uma significa­
ção estranha, sem que com isso ela perca o fio das significações me­
tonímicas comuns, às quais ela continua, na maior parte das vezes,
mostrando-se adaptada. Indiquemos que esses fragmentos que ue­
mergemº para se impôr à escuta, não são necessariamente sustenta­
dos pela fonação, pelo canal sonoro. Surgem também de um texto
escrito, não vocalizado, a partir de simples fragmentações da sintaxe,
o cinzel que recorta o texto em sentido estrito, é suficiente para engen­
drá-los.
Do efeito desta trituração significante, quase automática, testemu­
nha como se fosse um talento muito surrealista, muito pesado de car­
regar, por outra parte, uma aptidão vertiginosa para captar as sobre­
determinações significantes, que a preserva do desencadeamento da
polissemia Cada texto lido, poemas, extratos literários, jornais, tornam­
se um ºAqui Londres! u generalizado, no quaJ todos os níveis de com­
preensão se transtornam, sem confusão é verdade, mas, inspirando medo.
Se as comparamos com as de Schreber, aparecem as particulari­
dades dessas vozes: não estão identificadas, não são unificadas e
são ... sem mensagem.
13 8 A psicose

Schreber sabe sempre quem lhe faJa. Para Marlene, tudo ocorre
como se o tempo da atribuição subjetiva das vozes, sua imputação a
um emissor, faltasse. Quando se lhe coloca a pergunta, ºQuem diz is­
so? º , responde com um gesto evasivo. Duas vezes, porém, em oito
anos, indicou haver-se colocado, ela mesma, a pergunta, sob uma for­
ma precisa. A primeira vez: ªera um homem ou uma mulher", a segun­
da ªera eu ou um outro? ª . A resposta fica porém hipotética, instável,
incerta, quase indiferente. Ausência de pergunta ou, quando há per­
gunta, resposta frouxa que contrasta nitidamente com a certeza de
Schreber. Para Marlene a interlocução está aí, mas o interlocutor não.
De repente nada unifica essas vozes. Para Schreber, as vozes são
evidentemente múltiplas, mas todas, apesar de muito diversas, consti­
tuem o canal de seus intercâmbios com esse emissor ºúnico, em sua
multiplicidade e múltiplo em sua unidadeº , que é seu deus. Todos os
enunciados não são nunca senão ocorrências da voz, em singular,
de Deus. Para Marlene, as vozes, plurais, não definem um emissor.
Elas presentificam uma espécie de emissão onipresente, quase coex­
tensiva ao banho significante. Nesse sentido acredito poder dizer que,
do lugar do Outro, ela não faz um deus. Nada a ver, porém, com o ateísmo.
Ou seja, também, a mensagem do Outro, falta. Para Schreber, as
vozes dizem a vontade divina. No horizonte das figuras sucessivas
dos perseguidores, Deus o quer mulher. Para Marlene, lamentavelmen­
te, se lhe é passivei acreditar nisso, as vozes nada dizem. Não têm
nenhum imperativo, não a consagram a nada que possa curar sua
perplexidade. Há mensagem, mas não contém uma mensagem. Elas
presentificam a dimensão pura da enunciação, como enunciação va­
zia, enunciação de ninguém.
Quando Schreber, recebe a cominaçáo divina que o consagra à
feminilidade, encontra a significação delirante em relação à qual se si­
tua, protestando ou aceitando-a. Ela o permite suprimir sua não inscri­
ção na função fálica e fDCar seu ser. Para ele é claro que o efeito signi­
ficante que é sua inscrição como mulher de Deus, tem como correla­
to a localização do gozo devastador, do qual era primeiramente pre­
sa, sua fixação sobre a imagem do corpo próprio, sob forma do que
Lacan chama um gozo transexual. Para Marlene, ao vazio da enuncia­
ção do lado das vozes, responde, de seu lado, o defeito de identida­
de e a indeterminação de seu ser. Uma espécie de ºser abandonado\
permanente. Ela é uma esquecida pela memória dos deuses e ocor-
Marlene 139

re que o chamado à uma significação supletiva, manifesta-se nela cla­


ramente.
Isto se produz há oito anos, cada vez - foram três vezes - que
uma veleidade de delírio fracassa. No momento que aborta o esforço
para construir um delírio, não chegando a fixar uma mensagem susce­
tível de recheiar esta enunciação do Outro que se apresenta, mas que
permanece vazia, então, experimenta a sua falta de paranóia. Esta che­
ga a formular-se explicitamente, com uma tonalidade patética, na per­
gunta: uque ser? u . Isolo aqui a ocasião na qual ela a formulou, da ma­
neira mais exemplar, ainda que limitada, às suas identfficaçóes sociais,
profissionais. Perplexa, enumera sete eventualidades, ou seja, sete sig­
nificantes sob os quais se localiza - aqui também vou me abster de
precisar os termos -. Bem, sou S1 , ou S1 , ou S1 .... até sete. Enuncia
a impossibilidade de se fazer representar por cada um deles. Chega
então à saída da oitava eventualidade: me mato ( tue ). Quer dizer,
não havendo recebido do Outro o que Lacan chama o ªtu do apelo,
sem o qual o sujeito se envia suas próprias intimaçõesª . separo-me
pelo mato (tue), do salto real fora da cadeia. Senão, nona possibilida­
de, volto ao número um, e giro em círculo. Notemos aqui, que o núme­
ro um designa o seu estado social, desde o fim de seu primeiro delírio
que a conduziu até a análise. Sobre esse ª girar em círculoª surge o
pedido de ajuda dirigido ao analista: é um pedido de resposta que,
tampando ªesse buraco social, esse silêncio, essa ausência•, fará de­
la ª uma entre os outros•. O analista é solicitado aqui a ocupar o lugar
de Deus de Schreber, aquele desde o qual lhe dirá: tu serás ... isto
ou aquilo. Demanda-se, ao analista, um imperativo superegóico que
substituirá o vazio da enunciação e proverá, talvez ao sujeito, o pon­
to de apoio de uma identificação. Não é surpreendente que, confronta­
dos nas psicoses não paranóicas a esse apelo ao supereu, os analis­
tas tenham ficado, às vezes, tentados a responder-lhe. Se a resposta
prévia à pergunta, ªo que sou eu aqui?ª , está articulada no inconscien­
te do neurótico e se decifra para ele a partir de seu sintoma; e se ela
se impõe, na construção do delírio paranóico, como mensagem anô­
mala do O utro, respondendo ao abismo percebido, primeiro, no caso
em que, como em Marlene, esta resposta do delírio falta, o outro que
está ali, pode se sentir convidado a dar a ajuda de um imperativo.
Por outro lado Marlene, bem antes de ter o menor episódio psicó­
tico, havia encontrado a solução de se unir a quem bem pode ser cha-
140 A psicose

mado aqui, de supereu auxiliar, pois tudo ocorre como se, na faJta
de uma representação significante, se buscasse o socorro de um man­
dato feito por outro e que, cumprido pelo sujeito, o asseguraria uma
aparência de estado civil.
É surpreendente que as sete eventuaJidades retidas por Marlene,
longe de serem gratuitas, enumeram a série de ordens recebidas da­
queles que, através do tempo, ocuparam, para ela, o lugar do Outro.
Todos aqueles que lhe significaram um 'tu serás... a, incluíndo alí um
'tu serás psicanalista•, estão ai. Seria possível mostrar o caráter verda­
deiramente superegóico desses mandamentos, que não somente pres­
crevem um significante, mas que impõem um ªgoza•. A demostração
implicaria na utilização dos mesmos termos de Marlene. Com a finali­
dade de evitá-los, darei um modelo disto, a partir de um outro exem­
plo. Suponhamos que se lhe tivesse sido transmitido um 'tu serás do­
cente• (enseignante) ; isto se traduziria, após o confronto, com a fun­
ção sustentada pelo significante, em um 'tu estarás ensanguentadau
(ensaignante) que a libertaria do gozo vampírico. Dessa forma, funcio­
naram os imperativos aos quais ela se amarrou. $urge, em todo ca­
so, que o tempo anterior à sua enfermidade foi a sucessão desses em­
parelhamentos com um supereu supletivo. Viveu assim, sob uma su­
cessão de reinados. Todos estão controlados com uma vivência de
opressão subjetiva e, a cada um, lhe corresponde um modo de apre­
sentação dela mesma, que, de um para o outro, fazem-na às vezes ir­
reconhecível.
Porém como ela passou, de um supereu para outro? É surpree­
dente ver que essa continuidade não é aJeatória. O deslizamento se
operou cada vez, a partir de um significante que governa o outro. Utili­
za, se podemos dizer, um significante mestre emprestado. Para esque­
matizar, ao nível das relações, o terceiro supereu é o mestre do segun­
do, que é o mestre do primeiro. Esta solução revelou-se, porém, insus­
tentável, e finalmente desembocou nos fenômenos psicóticos da voz
que evoquei no começo, com seu correlato de apelo ao imperativo,
agora dirigido ao anaJista Como o analista não responde a esse ape­
lo, ela confirma perfeitamente qual é o problema, dirigindose então
ao Outro das bibliotecas. Isso foi o que aconteceu depois que ela enu­
merou suas identidades impossíveis, em resposta ao silêncio manti­
do pelo analista, frente a sua demanda de supereu: noite e dia come­
ça a ªengolirª livros que nela ªdesfilamª , sem que encontre aJi sua res-
Mar/ene 1 4 1

posta Ela define sua busca, assinala sistematicamente, na lingua em


geraJ, na literatura mais particularmente, e especialmente na Bíblia, as
formas do utuª de apelação. Cada vez mais perplexa ao perceber que
certos utuª excluem a mulher, dirigindo-se somente aos homens e que
todos em sua multiplicidade, excluem a certeza, e a deixam à sua deriva.
Porém, as aptidões de Marlene para a paranóia não são nulas.
No espaço de aJgumas semanas teve três recaídas. Deixo de lado o
estudo desses três delírios, cujos temas e termos são tão completa­
mente diferentes que, ao relatá-los, poder-se-ia acreditar-lhes surgidos
de pessoas diferentes. Nas três, porém, era manifesto que, como pa­
ra Schreber, vinham ocultar com uma mensagem o vazio da enuncia­
ção. Cada vez, o fracasso da tentativa delirante remete-a à sua carên­
cia de identidade.
Impõe-se o problema do emaranhamento desses fenômenos na
transferência e dos efeitos desta Está claro, para começar, que o de­
sencadeamento da psicose antecedeu sua chegada à análise. Ela aí
foi conduzida, por uma das ordens que evoquei, após um primeiro
episódio delirante, consequência do seu encontro com a terceira figu­
ra superegóica de seu passado.
Em oito anos de análise delirou duas vezes. Em ambos os episó­
dios encontramos uma mesma conjuntura: estava em perigo de per­
der seus recursos financeiros, abandonada pele mãe pátria, proteto­
ra de seus filhos (uso aqui as suas próprias imagens) e, por outra par­
te, havia interrompido há alguns meses suas entrevistas, não retoman­
do à análise senão no momento da eclosão dos fenômenos delirantes.
Durante a análise, por outro lado, quando se mostra sempre discreta­
mente alucinada, não delira Pareceria então que seu laço com a ana­
lista impede-a de delirar e podemos nos perguntar qual é a função
do silêncio do analista, considerando o que apresentei antes como
um chamado a receber a mensagem que seu ser lhe diria Abrirei so­
mente esta pergunta mediante alusões.
Como o analista, se não se presta ao papel do supereu, pode,
por sua presença conjugada ao seu silêncio, fazer outra coisa aJém
de encarnar a enunciação enquanto vazia? O estranho é que o delírio
parece aqui se encontrar contido, mais do que exacerbado e isto,
em beneficio de uma derivação significante, perfeitamente ilustrada
pelo "chamado ao Outro das bibliotecasª e sobre a qual, a questão é
saber se a análise poderia centrá-lo. Aqui, ocorre que a gente se dá
142 A psicose

conta de que ao emprestar a sua presença, empresta mais do que


pode se imaginar. Isso é o que ela me dá a entender durante um am­
plo inventário sobre o belo e a imagem da mulher - questão de vida
ou morte para ela - quando me diz que, segundo a confissão de sua
mãe, ela devia chamar-se Marlene, ªa mulher mais solar da Históriau .
Isto é o que, por minha vez, dou a entender, nada mais.
Uma estabilização sob transferência1

QUE LUGAR PARA O ANALISTA ?

Vou lhes apresentar simplesmente um exemplo.Trata-se da estabi­


lização sob transferência de uma psicose. Tentarei discernir a estrutu­
ra e os componentes desta estabilização e ver o que a condiciona
na ação analitica Trata-se de uma psicose revelada desde doze anos,
com um automatismo mental caracterizado.
Vários episódios delirantes agudos requereram hospitalizações e
foram seguidos por uma inteNenção medicamentosa contínua, embo­
ra atualmente episódica. Esta mulher que nos seus delírios esteve,
na ocasião, acasalada com a lua em experiências orgásticas totais,
que, em outro momento, carregou o céu, sobre as costas etc. encon­
tra-se hoje, do ponto de vista pragmático, numa relação com a realida­
de suficientemente restabelecida afim de poder dirigir-se, e viver sozi­
nha de uma forma relativamente adaptada, retomando os estudos nos
quais ela é brilhantemente bem secedida. Paralelamente, ela se enga­
jou numa tentativa de obra artística sobre a qual, além do mais, ela
escreve. Vocês compreenderão que esta pessoa não é qualquer uma
À sua inteligência, e à sua cultura, ela acrescenta uma posição subjeti­
va de elaboração notável, em todos os sentidos e, particularm_ente, fa­
vorável ao tratamento.
A demanda de análise se faz na recaída do primeiro episódio deli­
rante e sobre o fio deste episódio. Ela se dirige a um analista mais ,a­
lém do qual, há para ela o nome do analista com A maiúsculo, o pró-

1
Publicado in Actes de L 'École XIII; Paris, 1 987. Revisada por Mª L uiza Miranda.
144 A psicose

prio Lacan ... A demanda é conotada, ela própria, da nota delirante e


de uma elação eufórica a respeito deste outro único que permanece­
rá por muito tempo no horizonte da análise. Mas pouco a pouco se
produz uma outra demanda que é um pedido socorro, patético. De
que ela quer ser curada? Não do seu delírio que a sustenta e a libe­
ra do que ela considera como seu estado nativo, primeiro, aquele que
recai sobre si desde que a camisola medicamentosa faz abater a re­
messa do delírio.
O que é esse estado do qual ela quer curar-se? Ela o diz clara­
mente. É o vivido de uma falta íntima, mais ou menos correlata a um
acento de dilaceração, evocado como uma espécie de morte subjeti­
va. ºEu não existo, eu flutuo ou eu durmo, eu sou uma pura ausência,
não tenho papéis, nem funções, o que posso eu ser?ª . Não é a inde­
terminação subjetiva do neurótico, é, ela diz, •que não me deram a
vida·. Reconheço aí o que um outro psicótico, Jean-Jacques Rousse­
au chamava de •o vazio inexplicável ª , e muito também o que Schre­
ber evocava com um ªassassinato da almaª : essa ªdesordem provoca­
da na junção mais íntima do sentimento da vidaº que a falta do signifi­
cante fálico instala, segundo Lacan, no sujeito psicótico: ª De uma ques­
tão preliminar a todo tratamento possível de psicoseª . É uma falta,
pois há uma falta na psicose. Não é a da castração, mas é, também,
uma falta, aquela que Lacan escreve de maneira bem precisa <l>o. Falar
aqui de falta pode surpreender, já que a falta significante traduz-se
por um excesso de gozo no Real, ou seja, o contrário de uma falta, e
este excesso aí, este mesmo excesso, que faz apelo à simbolização,
impõe-se, às vezes, nos fenômenos como inércia e falta de subjetiva­
ção. A inércia é uma das figuras primárias do gozo que a clínica atual
confunde muito amiúde com a dita depressão psicótica
Neste estado, como ela conseguiu se proteger até ao delírio? Ela
conseguiu se proteger por uma espécie de relação de objeto real, per­
secutória, um acasalamento a um Outro único e sustentante que ela ·
11
define como o O utro que sabe o que lhe é preciso• e que se lhe im­
põe. Deste Outro, ela foi a ºmassaª a ªmarioneten , ela passou assim
de mão em mão através de uma série de ligações pigmalionescas.
Todas as figuras que vieram ocupar este lugar são figuras do saber,
universitários, ou médicos. Ela viveu esses relacionamentos como
uma violência abusiva, originariamente mortífera, pois isto começou
no início de sua vida. Longe de se sentir como uma neurótica, a mu-
Uma estabi/izaqão sob transferêncía 145

sa inspiradora do sujeito suposto saber, ela viveu aí, como um objeto


de tormento desse saber gozoso (jouissif) do Outro. Podería-mos es­
crevê-lo S2 � a. Dessas figuras do saber chamado como em
Schreber de paliativo da foraclusáo, ela diz: •eles falam de mim e pa­
ra mim, eu sou apenas um ser falante, já que somente o outro fala•.
Efetivamente, um de seus grande sintomas é ficar, na ocasião, muda
e petrificada frente a um Outro ao qual ela está, diz ela, suspensa a
todo momento, e do qual ela espera tu_çiq . Da primeira das figuras des­
ta série, ela diz: ºEla era a única na imênsidáo do universoª .
É em ruptura com este equilíbrio pelo acasalamento, que apare­
ce o primeiro episódio. É surpreendente constatar que é no momen­
to em que ela se separa do seu último parceiro, único, um, que encar­
nava para ela o que chamarei o olho do saber, é nesse momento que
as vozes alucinatórias vêm revezar a voz até então encarnada por
um outro do seu meio e que, no real, lhe dizem o que ela é e o que
ela deve fazer. Ela vem então à análise. Durante toda uma fase do. iní­
cio da análise sua vida vai oscilar num batimento, numa pulsação que
não é a do inconsciente, mas a do delírio. Nas alternâncias de fases,
este sucede ao vazio da inércia, à conotação depressiva. A decolagem
das significações lhe fazem, então, promessa e arrancam-na da mor­
te subjetiva, sobre a vertente, ao mesmo tempo, erotomaníaca e redentora
A que lugar o analista é chamado nas recaídas da primeira elação
delirante? É muito claro. Ele é chamado do lugar onde Schreber en­
contra Flechsig. Ele é chamado a vir suprir, pelas suas predicações, _.
o vazio da foraclusão repentinamente. Ela pede que o analista se fa­
ça de oráculo, e legisle para ela. Ela diz: ªEu vou lhe fazer perguntas
e tomarei a resposta como verdadeiraº . Como dizer melhor que não
apenas ela crê nisto, mas crê neles no analista e nas vozes. Melhor,
ela quer acreditar neles, diferença capital com a neurose, diz Lacan.
O analista é, então, chamado aqui a se constituir como suplente, e até
como concorrente das vozes que falam dela e que a ela se dirigem.
Em outras palavras, ela estende ao analista o assento do perseguidor,
o assento daquele que sabe e que goza ao mesmo tempo. Que ele
aí se sente, e com toda certeza estará, de súbito, na erotomania mor­
tífera, ou seja, para esta paciente, o retorno ao ponto de partida, por­
que ela partiu daí na sua vida A erotomania mortífera não é inevitável
no tratamento dos psicóticos.
Vou tentar precisar que manobra da transferência permitiu barrar
146 A psicose

a sua emergência Evidentemente não operei pela interpretação! des­


de que não há lugar para ela q uando temos de lidar com um gozo
não recalcado. I nterpreta-se unicamente o gozo recalcado. O que não
o é não pode ser elaborado. Um primeiro modo de intervenção foi
um silêncio de abstenção e isto a cada vez que o analista foi solicita­
do como o Outro primordial do oráculo! em outras palavras 1 cada vez
que ele foi invocado como o saber no real. Este silêncio, esta recusa
de predicar sobre seu ser tem a vantagem de deixar terreno para a
construção do delírio, sobre o qual voltarei. Isto coloca o analista co­
mo um outro Outro que não pode ser confundido com o Outro do
Outro, outro que não seja o que ela chama a ºfera\ o perseguidor.
Sem dúvida, nada é, a não ser uma testemunha. É pouca coisa e é
muito, porque uma testemunha é um sujeito q ue é suposto não saber,
não gozar1 e portanto, representar um vazio onde o sujeito vai poder
colocar seu testemunho. Um segundo tipo de intervenção destaca o
que chamarei: orientação do gozo. Uma1 limitativa, tentando servir de
prótese ao interdito, à falta, consistiu em dizer não, em obstar, o mo­
mento em que ela parecia cativada pela tentação de se d�ixar estran­
gular pelo homem que, manifestamente, pensava nisso. A outra, posi­
tiva, em que sustentei seu projeto artístico, incitando-a a considerar
que era este o seu caminho. Não deixamos de reconhecer, neste ca­
so, o recurso à sugestão. A terceira intervenção é a que teve um al­
cance decisivo. Ela provocou um giro na relação transferencial, do
mesmo modo que na elaboração da cura O giro é notado no fato
de que, na cura, nunca mais ela solicitou o analista como O utro e co­
meçou a construir seu delírio, isto é, a depurá-lo e a reduzi-lo. Enquan­
to que, paralelamente, os episódios agudos desapareciam , pelo me­
nos nos últimos cinco anos, igualmente, na sua vida, o batimento que
descrevi entre o vazio e a decolagem do delírio foi praticamente iguali­
zado. Considero que a partir desse momento entramos na recontru­
çáo do sujeito em torno do buraco no simbólico. Só decidi fazer esta
intervenção problemática, delicada, depois de haver estabelecido mi­
nha crença, e ela ocorreu em vários tempos.
Primeiramente vou lhes dar o tema, em seguida, o fundamento.
No primeiro tempo sustentei sua recusa de trabalhar e sua correlati­
va demanda de obter uma pensão. Não entrei no acordo das pesso­
as que queriam fazê-la trabalhar. Mais ainda, sustentei categoricamen­
te, com a minha aprovação, a idéia de q ue era um abuso - sublinho
Uma estabilização sob transferência 147

o termo - exigir que ela ganhasse sua vida. Este ponto pode parecer
delicadíssimo porque tínhamos a idéia enraizada de que a análise de­
. ve visar negativar o gozo em excesso na psicose e que o pagamen­
to é uma cessão de gozo.
Noto que essa pessoa sempre achou justo pagar a sua análise,
mas ªganhar a sua vidaª era outra coisa para ela, a saber, uma signifi­
cação tomada na sua relação delirante com o O utro perseguidor que
a tornava equivalente a um assassinato. Os dados da biografia vinham
aqui em meu socorro. Um discurso sobre a dívida estava presente já
que se conjugavam nele uma falência - estranha - do lado paterno e,
do lado matemo, a idéia de uma culpa excessiva, a ser vingada, que
ela encarna em seu ser. Ela que foi entregue para ser criada, se pos­
so dizer, à tia lesada, diz: ª Eu sou uma dívida viva•. Nada a ver com
a dívida do falo em falta da neurose. Falta do sacrifício simbólico que
somente a vida real poderia quitar a conta É bem dela que seria apro­
priado dizer, segundo a expressão de Lacan, q ue o legado virou liga
Não me esqueço de ter detido em outra ocasião, para minha grande
surpresa, devo dizer, uma crise de pânico suicida que não parecia
deixar outra alternativa se não a de uma hospitalização imediata, por
essa simples palavra de autoridade concernente aos propósitos de
um perseguidor do momento: ªEle não tem o direito11 Efeito estupefa­

ciente de acalmia. As noções de abuso e de direito são dela Tomo­


as emprestadas já que são portadoras da significação de um limite
acerca das pretençóes do O utro sobre a sua vida, limite que vem no
mesmo lugar que, em Schreber, se chama a Ordem do universo.
A manobra analltica tentada por mim e que sustentou a operativi­
dade desta cura, consistiu, primeiramente, em abster-me da resposta,
quando o analista é chamado na relação dual a suprir para o sujeito,
pelo seu dizer, o vazio da foraclusão e a preencher o vazio de seus
imperativos. Somente a este preço se evita a erotomania Em segun­
do lugar em intervir, proferindo uma função de limite ao gozo do Ou­
tro, sendo possível apenas, a partir de um lugar desde então inscrito
na estrutura O voluntarismo aqui seria em vão. Esta intervenção, em
verdade, não é bem fundada É um dizer, pelo qual o analista se faz
o guardião do limite do gozo sem os quais, como ela diz em todos
os tons, é o horror absoluto. O analista pode fazê-lo somente susten­
tando a única função que resta: fazer limite ao gozo, a saber, o gozo
do significante ideal, único elemento simbólico que, na falta da lei pa-
148 A psicose

terna, pode fazer barreira ao gozo. Esse significante, q uando o analis­


ta se serve dele como eu o fiz, toma-o de empréstimo ao próprio psi­
cótico, e não faz mais do que apoiar o que é a posição do próprio su­
jeito, não tendo outra solução senão a de tomar para si a responsabi­
lidade da regulação do gozo. Ela mesma formula: ªSou obrigada a fa­
zer a minha própria leiª . É o que Schreber faz quando toma sob sua
responsabilidade a O rdem do universo, é o que faz Rousseau, o Re­
formador, quando ele q uer regular a sociedade desregulada Esta al­
ternância das intervenções do analista entre um silêncio testemunha
e um apoio do limite, é outra coisa que a vacilação calculada da neutra­
lidade benevolente. É o que eu chamarei a vacilação da implicação
forçada do analista. Implicação forçada - se ele não quer ser o outro
perseguidor -, entre a posição de testemunha que entende e não po­
de mais e o significante ideal que vem suprir o q ue Lacan escreve
Po no seu esquema 1. É certo que, a partir daí, esta paciente subsu­
me o anaJista que ela distingue cuidadosamente da minha pessoa,
sob esse significante, ela o dirá, na ocasião, quase explicitamente.
Gostaria agora de terminar d izendo algumas palavras muito rápi­
das, pois não tenho tempo de me estender sobre o caso. Doze anos
de análise é muito tempo e gostaria apenas de dar-lhes uma idéia
de onde desembocou esta análise a partir desta intervenção, é uma
estabilização certamente precária, mas, não obstante, manifesta. A
pergunta em uma estabilização é: o que acontece com o gozo exces­
sivamente real que se encontrava no início da cura? Situarei esta esta­
bilização entre três termos. Primeiro, a ficção do delírio; segundo, a fi­
xação do gozo e, terceiro, a fixão, com x, do ser.
O delírio que esta paciente cerceio, no finaJ, tem duas vertentes.
Uma constrói o mito da desordem ou da falta original, o que ela cha­
ma, após múltiplas elaborações, ªos dois pilares da sua existência\
ou se preferem, diz ela, ºos dois abismos de minha existênciaº . É, por
um lado, a idéia de que sua mãe, da qual ficou órfã desde muito pe­
q uena, foi assassinada pelo primeiro perseguidor, e por outro lado, a
idéia de q ue, do lado do seu pai, há uma falta enorme e original que
a transformou em uma dívida viva. Esta elaboração delirante merece­
ria por si só uma vasta exposição. Vemos nela os fatos da biografia
infantil coordenados aos nomes de família das diferentes linhagens, in­
trincando-se a essas duas convicções finais dos dois abismos.
Q ual é o efeito desta construção do delírio? Um efeito de tranquili-
Uma estabilização sob transferência 149

zação manrfesta Correlativamente, ela se sustenta num ac'asalamen­


to paralelo àquele que tinha com a fera de origem. É acasalamento
duplo, com o analista e com um homem que é preciso escrever com
H maiúsculo. Ela o formula de muitas maneiras: é •o Anjo•, o puro opos­
to ao império do pior. Ela nota que somente participa nesse significan­
te por procuração, porque ela é uma mulher; somente um homem e
o analista podem dele participar. O acasalamento com este homem
tem um efeito de fixação do gozo em uma cena (cêne) escrita com
c,é uma cena (scêne) na quaJ come, e seu laço com este homem,
que tem muitos aspectos, possui um pivô inamovível há anos, é que
se come, de uma forma rituaJizada, um dia fixo. Não há dúvida algu­
ma, aliás, quanto à dominância da pulsão oral. O a reaJ, é um ªaª , pa­
ra ser comido; todas as suas imagens de gozo o confirmam e ela pró­
pria é a pastagem última do outro. Acrescenta-se a isto uma cultura
da imagem da criatura que ela se empenha em sustentar no campo
escópico. Isto aliás, se vê em sua pessoa e ela encontra seus supor­
tes numa série de estrelas e de celebridades. Passo sobre esse lado
imaginário.
Resta finalmente o que eu chamo de fixão do gozo. É a sua obra
plástica que ela, implica uma ejeção do Outro, grande A , como do ou­
tro pequeno a . No seu campo plástico, ela trabaJha para libertar-se
de tudo o que poderia transmitir-se de inércia formaJ. O que ela procu­
ra? Ela o diz de maneira absolutamente notável, concernente ao seu
ser: ºEu procuro a metáfora plástica pur� o auto-retrato pulsionalª e
inclusive o ªretrato sem o olhar', tentando dizer de todas as formas
que ela procura uma letra plástica que fixe uma parte de seu gozo, e
que eu situaria sobre o esquema I de Lacan, em torno do buraco do
simbólico, como as criaturas que são, para Schreber, as criaturas da
palavra Para el� são as criaturas plásticas. Todos esses dados pode­
riam ser transportados ao esquema 1.
Uma palavra de conclusão. Esta estabilização psicótica é fragil
porque é demasiado ligada à função da presença e isto, apesar da
sublimação artística: presença deste homem e presença do analista
É como dizer que é uma estabilização que não promete nenhum finaJ
de análise.
Fenômenos e estrutu ra da erotomania1

Problemática

A definição mais fenomenológica da erotomania como convicção


delirante de ser amado, nos indica, desde já, que se trata de uma po­
sição do sujeito - psicótico.
Ela se encontra em quadros clínicos muito diversos e também, se­
gundo os casos, situa-se diversamente na estrutura e na evolução de­
lirante. Incipientes ou terminais, prevalentes ou acessórios, transitórias
ou estáveis, acomodando-se em um plantonismo radicaJ do mesmo
modo que nos transbordamentos eróticos, presentes tanto nos ho­
mens quanto nas mulheres, e encarregada de eleger um parceiro q ue
será único ou múltiplo, próximo ou longinquo, real ou imaginário. As
manifestações erotomaníacas são, na psicose, ao mesmo tempo tão
frequentes e tão polimorfas que a questão da unidade e do aJcance
do fenômeno é posta.
A questão é a seguinte: em que o amor do sujeito erotômano se
distingue do amor chamado normal? Mas amplamente, é a pergunta
sobre o ºEros do psicótico 1 ª que se coloca O bservemos que ela atra­
vessa todo o ensino de Lacan. Antes mesmo do inconsciente estrutu­
rado como uma linguagem, a paciente da sua tese se denomina, para­
digmaticamente, Aimée. Em 1955, ele sublinha a impossibilidade de
conceber a natureza da loucura sem recorrer à teoria medievaJ do
amor e, sobretudo, ao que se articulou de uma relação estática ao Outro,
1
Trabalho apresentado no 5° E n contro I ntern aci o n a l do Campo fre u d i a n o, Bue­
nos Aires , 1 3-1 6 d e j u l h o d e 1 988. Publ icado i n Cli n iq u e D ifferentiel d es Psycho­
ses. Tradu ção revisada por M aria L u iza Miran d a
Fênomenos e estruturada erotomania 151

implicando na abolição das finalidades naturais da criatura. Enfim, no


outro extremo, em 1 975, nas suas conferências em U.S.A, ele observa­
va ainda que a psicose é uma espécie de falência do amor.

Um pouco de história . . .

Três datas e três nomes 1 920: D e Clérambault e o postulado eroto­


maníaco. 1 91 1 : Freud e a gramática da libido psicótica 1 936: Lacan
psiquiatra e os embaraços do sexo.
De Clérambault não é o único na psiquiatria européia, nem mes­
mo francesa, a se interessar pela erotomania. Contudo, ele é singular,
porque Lacan o reconheceu seu mestre de psiquiatria, porque ele es­
teve, nos anos vinte, na origem e no centro de um debate sobre esta
questão, porque se mostra como aquele que deu a fórmula lógica
do fenômeno passional. Na França é ele quem elabora a síndrome
erotomaníaca, da quaJ acreditou poder descrever uma sequência-tipo:
esperança, despeito, rancor, ao mesmo tempo em que forjava a cate­
goria nosográfica das psicoses passionais, nas quais a erotomania
se coloca ao lado dos delírios de ciúme e de reivindicação. O debate
da época e a discussão de suas teses versaram sobre vários regis­
tros: sobre os traços eletivos do parceiro, sobre o platonismo - ele é
a regra, como acreditava Esquirol, ou acessório, como pensa De Clé­
rambault? E,sobretudo, sobre a descrição do tipo de delírio em si - tra­
ta-se de uma entidade mórbida autônoma, existindo sob uma forma
pura e evoluindo de maneira típica, ou sob forma mixta, associada às
manifestações interpretativas e alucinatórias e de prognóstico variado?
Mas a fórmula mesma da erotomania não nos vem daí. Nós a rece­
bemos de Freud, em seu caso Schreber. É a do erotômano homem:
ela me ama. Ela se integra à sua famosa dedução dos diferentes delí­
rios paranóicos, a partir de uma fórmula origina:, a da pulsão homos­
sexual, na quaJ Freud acredita poder identificar a causa libidinaJ das
psicoses. O desfalecimento do Édipo e a fixação narcísica estão im­
plicados nesta tese que faz, por outro lado, da gramática uma máqui­
na linguística para transformar a libido. No caso da erotomania, esta
gramática das pulsões tem uma função que ele enuncia muito precisa­
mente: ela restabelece, a título de cobertura, ·um semblante de heteros­
sexualidade. Se esta, e para Freud é o traço diagnóstico decisivo,
1 52 A psicose

não se presta à confusão com a neurose, é que iodas esses amores


não se iniciam pela percepção de que se ama, mas pela percepção,
vinda do exterior, de que se está sendo amado2•. Tal é o traço da es­
trutura, pelo qual, a erotomania, da qual Freud, aliás, pouco se ocu­
pa, inclui-se no mecanismo geral da psicose, taJ como ele então o enu­
cia: uo que foi abolido internamente retorna desde fora3ª . A imputação ao
outro é aqui crucial.
De Clérambault não divergia de Freud sobre este ponto quando,
ele dava, como paradigma da posição erotomaníaca, as afirmações
de uma de suas pacientes: ªnão fui eu quem procurouª . Entretanto, o
que resta de singular em sua contribuição, mais além das suas des­
crições da síndrome, do seu enriquecimento e de sua correção suces­
sivas é a formulação, não gramatical mas lógica, da erotomania. A
pahcão erotomaníaca é um postulado, ele diz, ao qual acrescentam­
se, por via de dedução, proposições derivadas, evidentes ou demons­
tradas. Postulado, evidência, demonstração, De Clérambault rompe
com o vocabulário psicológico da crença. Postulado, um ponto funda­
dor, fora de demonstração, do qual todas as significações são deriva­
das. Aqui ele faz justiça à lógica psicótica. Não é que o sujeito psicóti­
co seja rebelde às lições da experiência ou que raciocine mal, como
o supunha uma certa psiquiatria Pelo contrário, ele se empenha em
ajustar os fatos e, sobretudo, os desmentidos que lhe chegam do ob­
jeto e que ele constata, como qualquer um, com uma premissa -ele
ou ela me ama- que os faz aparecereram paradoxais e que, ela, é tran­
sexperimentaJ, constituinte de sua relação com o Outro.Com o postula­
do passional que Lacan, em seus Escritos, situa ao lado do automatis­
mo mental. De Clérambault terá isolado os dois traços celementares
da estrutura que especificam o laço do SLJjeito psicótico com o Outro.
Lacan está no fio desta estrutura quando ele nomeia a pacien­
te da sua tese, Aimée. É ela, pensando bem, quem o soprou, já que
é o nome da heroína do seu primeiro romance e que, para colocar
os pontos nos is, o segundo evoca um parceiro de nome Jaime 1. En­
tretanto, é surpreendente constatar que, nessa data, Lacan não distin­
gue o postulado do sujeito como traço decisivo de estrutura. Ele o
subtrai mesmo da definição do que ele chama a erotomania ºsimples º ,
para reter somente como crucial o traço de eminência do objeto, nota­
do desde muito tempo pelos psiquiatras. Nesse caso, ele diz, a inicia­
tiva atribuída ao objeto está ausente enquanto que •a situação supe-
Fênomenos e estruturada erotomania 153

rior do objeto ganha todo seu valor4° . Este acento encontra-se confir­
mado por uma resposta a Daniel Lagache, em dezembro de 1935,
no Grupo da evolução psiquiátrica, fazendo eco a uma exposição des­
te sobre o tema: Paixão e psicose passional. Ele insiste em dizer que
ªa paixão não pode ser estudada (...) fora do objeto que a qualificaº .
Assim, para o Lacan psiquiatra daquela época, é da particularidade
do objeto que é preciso dar conta. A sua tese o faz por uma interpre­
tação em dois níveis. Ela coloca primeiramente que a situação eleva­
da do objeto revela seu sentido se consideramos o que ela implica
como afastamento, como abstrqçáo, como despersonalização deste.
Deduz-se que a sua função é assegurar a •não reaJização sexualº . A
escolha de objeto interpreta-se pois pela ·satisfação encontrada em
um platonismo radicalº . Quanto a esse platonismo, parece-lhe não
ser senão a manifestação fenomenaJ dos problemas da identificação
sexual, designada então, a respeito de Aimée, como a ºneutralização
da categoria sexual com a qual ela se identificaª . São, pois, os embara­
ços do sexo que dão conta aqui, tanto do ªtema francamente erotoma­
níaco º , referindo-se ao Príncipe de Gales, quanto da ºverdadeira eroto­
mania homossexualº que a liga às suas perseguidoras. Notamos que,
para o Lacan de 1932, que ainda não distinguiu pequeno outro, gran­
de Outro e objeto a, e que tampouco elaborou a função fálica, é - co­
mo para Freud - a questão da libido, e mais precisamente, da relação
com o sexo, que é crucial. Entretanto, é certo que a explicação de
então, e a noção muito vaga da neutralização da categoria sexual,
não permitiam fazer a partilha com a histeria, essa mesma que o se­
minário sobre as psicoses elabora, graças ao desvio pelo simbólico.

Estrutura da posição erotomaníaca

Consideremos como aceito o que implica o postulado do erotomaníaco.


- Primeiramente, uma relação com o Outro, na qual este se impõe
como o lugar de emissão da libido que toma o sujeito como alvo, do
mesmo modo que no automatismo mental, em que ele se impõe co­
mo o emissor direto da palavra alucinada que acomete o sujeito.
- Em segundo lugar, um sujeito que não é questão, mas certeza.
Esta não se ergue, propriamente falando, do registro da crença, já
que esta última não ocorre sem um ponto de indeterminação. A certe-
1 54 A psicose

za escapa à problemática do saber, e ex-siste à diaJética da verifica­


ção. Não é que ela exclua toda questão, é antes que ela as detenni­
na, todas, e que não são as mesmas. Podemos ressaltar aí, da histe­
ria à erotomania, uma notável inversão clínica na relação com o par­
ceiro. O sujeito histérico interroga o sentido dos fenômenos - aqui,
os signos emitidos pelo objeto. O sujeito erotômano interroga os mes­
mos fenômenos sobre seu afastamento no que diz respeito ao senti­
do postulado. Um demanda o que isso quer, para aí encontrar seu
ser, o outro o sabe, e demanda somente porque isto aparece sob for­
mas, às vezes, muito contrárias. Opõem-se, pois, aqui a questão do
sujeito e a certeza do Outro.

Ambíguidade da fórmula erotomaníaca.

Escrevamó-la sob sua forma generalizada: Ele - o objeto - me ama.


Mas o que é este amor? Ninguém pensa em reconhecer nele o ºverda­
deiro amor u , como Lacan faz quanto ao amor de transferência, nem
tampouco em identificá-lo com o amor dos místicos.
A propósito há certamente anaJogias, mas também diferenças, não
porque seja um amor delirado, mas porque é um •amor morto\ ou
mortificante, ou que malogra, diz Lacan em 1955, 1966, 1975. E, o que
é amor? A polissemia do termo francês manifesta bem a ambiguida­
de do fenômeno. Eros, ele mesmo, é um termo ambíguo. Faz laço,
por certo, mas não é unívoco, já que ele designa tanto o corpo a cor­
po da volúpia, quanto as capturas da imagem e os encontros dos sujeitos.
A partir daí, uma questão se apresenta em nosso tema, e é preci­
so distinguirmos os registros que se encontram intrincados no nor­
mal, o do gozo, que pode ser sexual ou fora do sexo, do registro do
amor propriamente dito. Será que é, antes, mania de amor ou mania
de gozo, e se os fenômenos se repartissem, não se lhes deveria su­
por, segundo os casos, entre essas duas polaridades, funções e indi­
cações de tratamento diferentes?

O exemplo de Schreber

Erotomania divina, erotomania mortificante, efeito de empuxo-à-


Fênomenos e estruturada erotomania 155

m ulher, são as três expressões sucessivas pelas quais Lacan situou


a posição final de Schreber, na qual ele consente em ser a esposa
de deus, esse novo estatuto objetal q ue implica a sua feminização -
feminização da sua imagem, dos seus sentidos, dos seus pensamentos
oferecidos para satisfazer a volúpia divina -, e o anúncio de uma fecun­
dação redentora, pela qual as entranhas espirituais de Schreber darão
vida a uma humanidade futura. É uma solução da sua posição ante­
rior que fazia dele o supliciado de deus. Entretanto, em momento al­
g um do delírio, nem mesmo na fase de aceitação, trata-se de amor.
A fórmula justa do laço que une Schreber a seu Outro nos parece ser
esta: Deus me goza É uma eroticomania Conforme a tese que Lacan
introduz em 1 966, dizendo que a paranóia identifica o gozo no lugar
do Outro. Identificação que deve ser tomada no seu duplo sentido
de localização - é deus quem goza - e de anexação de- seu suporte.
O Outro que º não existeª , que é ªdeserto de gozo9 , a paranóia o faz
existir como gozador. Assim vemos Schreber, muito exemplarmente,
definir seu Deus pela soma dos discursos seculares - tesouro do sig­
nificante - precisar que ele ignora o vivente - mas no sentido das fun­
ções homeostáticas da sua sobrevivência - e experimentar que ele
não ignora o gozo. É aí que o delírio procederá a uma elaboração
q ue desemboca na dita erotomania.
N um primeiro tempo, este gozo do Outro, imposto deletéreo, em
relação às fronteiras do corpo e perturbador das suas funções, está
ligado à ameaça de eviração - Entmannung - que conota - não a cas­
tração, Lacan insistiu nisto - mas a sua falta, seja a significação de
um gozo não fálico que exclui que Schreber seja gozado como ho­
mem, e que, mais além do que ele chama sua honra, seja mortal pa­
ra o sujeito. Um gozo foracluído do simbólico que retoma desde o re­
al, e que�m si mesmo não é sexual. Não mais, aliás, do q ue aquele
que se vincula às pulsões parciais, que não se referencia na polarida­
de sexual mais do que pelo viés da regulação fálica Igualmente, o go­
zo divino, no primeiro tempo do delírio, não possui outra referência
ao sexo que a falta desta regulação que a eviração evoca. Localiza­
do no Outro, ele está inscrito, identificado, somente porque Schreber
dedica-se a fazê-lo. E quanto a Schreber, não há meio de chamá-lo
ºAiméº . ªJoui ª , que faz equívoco tônico, com o imperativo do supereu,
seria mais seu nome de sintoma, aquele, pensamos, que atenta a seu
nome próprio, já que o atentado aí existe. Para o amor, na medida
1 56 A psicose

em que ele instaura uma relação sujeito a sujeito, (cf. Encore), é nota­
velmente ausente do laço que une Schreber a Deus. Lacan sublinhou
os traços negativos - mistura voracidade, desgoto - que distinguem a
erotomania schreberiana do júbilo e da iluminaçao mística. A erotico­
mania é, no sentido do amor, uma eroticodeficiência, embora revelado­
ra de uma estrutura, já que, no encontro com Deus, frente à coisa,
uma palavra de injúria surge, - luder - pelo que impõe na experiência
o que o neurótico desconhece, a saber, que o insulto se verifica co­
mo, •ser do diálogo tanto a primeira palavra como a última• 5 .
Em seguida, o trabalho do delírio elabora uma fórmula completa­
da da relação ao Outro absoluto, digamos: Deus me goza como sua
mulher. Não é uma palavra de amor, é um nome do gozo que, na fal­
ta de inscrição fáJica, interpõe-se entre Schreber e Deus. A eroticoma­
nia, correlata desta vez ao significante do sexo, instaura uma quase
relação sexual com Deus, na qual Schreber não é tanto a Mulher que
lhe falta quanto aquela que não lhe falta, porque ele a tem. Ela tam­
bém condiciona a restauração de um quase efeito da palavra plena,
em um utu és minha mulher" (·tu es ma femme·), emitida diretamen­
te do Outro - é Deus que o quer- e ao qual Schreber consente. É pre­
ciso sublinhar o restabelecimento correlativo da sua relação com a re­
alidade. Esta se torna possível de ser vivida na medida da estabiliza­
ção e da pacificação da sua relação ao Outro. A regulação não me­
nos surpreendente do seu gozo, acompanha isso. Ela se localiza no
roteiro transsexual. No espelho, Schreber testemunha um gozo que,
por ter encontrado sua inscrição como feminino, liga-se doravante à
imagem e à pulsão escópica. Assim encontra-se restaurada uma ver­
são sexuada do gozo que, por não ser versão edípica, não deixa de
ser menos regulado.
O efeito de empuxo-à-mulher, produzido pela falta de uma existên­
cia que funda o universal da função fálica como função de castração
é o pivô estrutural da dita erotomania de Schreber. É surpreendente
constatar que a mulher na qual Schreber se torna, distingue-se pelas
características de seu gozo. Ele o sublinha com insistência e preci­
são: ela deve encarnar a exceção de uma volúpia sem limites, enquan­
to que, para todos, diz Schreber textualmente, os limites se impõem.
Citemo-lo: ºNo que me concerne, esses limites cessaram de se impor
e, num certo sentido, se transformaram em seu contrárioº , a saber,
num dever de gozo6 . Schreber transformou-se em Um, ou antes, em
Fênomenos e estruturada erotomania 1 57

Uma a quem é permitido gozar sem limites. Como dizer mais clara­
mente que a mulher-Schreber supre a função do pai? A falta da exce­
ção paterna que, fundando o universal da castração, teria feito Schre­
ber ingressar na ordem da castração para todos, a lógica da estrutu­
ra não permite outra alternativa ao sujeito, senão encarnar a exceção.
Para isto, ele tem à mão, por assim dizer, o significante da mulher,
com o que conota um gozo em excesso, em relação àquele que a
castração condiciona Ocasião para verificar que a anatomia não tem
muito peso na estrutura Ela impõe somente a Schreber, porque é ma­
cho, esta condição suplementar da transformação em mulher. O traba­
lho do delírio, parindo esse titulo •mulher de Deusª , fornece a Schre­
ber um novo sintoma, no qual o gozo até aí coextensivo à cadeia dos
pensamentos dispersos no infinito do delírio, ex-siste.

Eroticomania e erotomania propriamente dita

O empuxo-à-mulher schreberiano dá o modelo do que nas ditas


erotomanias é mania de gozo. A sua função é reatar ao significante
do sexo, o gozo, de início, foracluído do simbólico, que retornaria des­
de o real. A experiência mostra que Deus, como figura do Outro supre­
mo, tolera substitutos na série dos objetos, tendo esta ªsituação eleva­
daª que Lacan isolava justamente como determinante, desde 1 932. A
investigação psiquiátrica recenseou aí as ocorrências, médico, sacer­
dote, personalidades públicas, figuras principescas ou reais etc. A mu­
lher erotômana encontra o Homem em carne e osso, mas ele se pres­
ta tão bem à confusão com deus, que, em tal eleita, ele se encarna
paradigmaticamente em Júpiter, o ª rei dos deuses\ no dizer do sujei­
to, mas também para nós, o deus à imagem do homem que não se
satisfaz com lhe falar para além do tempo e do espaço, mas que ain­
da a visita tão camalmente como a sua mulher. Quanto ao homem ero­
tômano, ele faz aí surgir uma que, aliás, pode reduplicar-se ao infinito,
à dignidade da deusa original, da qual ele é o objeto único e sacrifi­
cial, ao mesmo tempo em que o duplo.
Resta dar conta das erotomanias platônicas que existem. Elas têm
em comum, com o que nós chamamos de eroticomanias, a inscrição
da polaridade sexual. Elas se distinguem pela elisão da dimensão do
gozo. O parceiro eleito pelo postulado ama, mas não goza Ele é, pelo
1 58 A psicose

contrário, o recurso último contra a ameaça do gozo. Esse traço de


elisão do gozo se apresenta diversamente na experiência. Em tal su­
jeito, é, na entrada, que o objeto se encontra distinguido sobre um pro­
pósito onde o amor, que mais paternal, parece prevalecer sobre as
captações do sexo. Em Aimée, se seguimos a análise que dela faz La­
can, os fenômenos erotomaníacos se desdobram entre o que Lacan
chama uma uverdadeira erotomania homossexual•, aquela que vai li­
gá-la às suas perseguidoras como figuras de gozo, e o que ele distin­
gue nisso como, "tema francamente erotomaníaco• que a conecta com
o Príncipe de Gales, a título de uma figura tutelar do amor. Finalmem­
te, como outra, antierotômana aparente, leva ao explícito a função des­
te apelo ao amor: ela vai proclamando, 'nenhum homem pode amar
uma mulher\ o que fica esclarecido pelo contexto de seu discurso,
com um complemento, apenas: ele quer gozar dela Em todos esses
casos, não é gozar de uma mulher, é o amor de uma mulher que é
chamado, senão para regular, ao menos para compensar a mortifica­
ção subjetiva que o gozo implica.
O exemplo feminino é aqui ainda prevalente, mas é uma outra con­
sequência do não-toda que serve de modelo. Não é o gozo outro da
mulher, é a sua exigência correlativa de ser a única que a psicose
erotomaníaca eleva, até o postulado de ser a única do amor. Esses
registros do gozo e do amor, sempre mais ou menos trançados na
neurose, a psicose os desata e os revela na sua pureza Isto feito, às
vezes ela parece liberar o amor da sua impotência, quando, por exem­
plo, o postulado se mantém não incetado sobre décadas.
Não é, porém, mais do que uma aparência, já que o amor não tém
a mesma função na neurose e na psicose. Na primeira, ele é chama­
do para corrigir a ausência da relação sexual, enquanto que na segun­
da, é mais invocado para evitar a iminência de uma relação mortífera
A experiência prova, em geral, que mais do que alhures, é um amor
que não pode mais. Longe de responder ao apelo e de bordear o go­
zo que faz retorno no real, ele se reduz como pode, a lhe fazer compa­
nhia, mas companhia compensadora. Pedimos emprestado a Schre­
ber, para situar sua função, o termo indenização (Schreber o aplica,
não para o amor, mas para a parte de gozo que lhe corresponde) .
Concebe-se que esses referenciais de estrutura sejam suscetíveis
de orientar a prática do analista. Eles conduzem a opor, por um lado,
a eroticomania persecutiva que é sintoma impossível de ser suporta-
Fênomenos e estruturada erotomania 159

do, e para o qual o sujeito recorre às vezes ao analista, por outro la­
do, o empuxo-à-mulher e à mania de amor como próteses, diferentes,
mas às vezes combinadas, dos efeitos da foraclusão. São duas solu­
ções autógenas da psicose. Por mais delirantes e episódicas que elas
sejam, seu efeito de moderação não é negligenciável. O clínico encon­
trará nelas o próprio modelo de sua mira, a saber, a instauração de
uma função de limite do gozo.

Notas

1 J. Lacan , Séminaire Ili, ed. Seuil, p.289. Seminário Ili, JZE, p.289.

2 S. Freud, cinq psychanalyses, éd.P.U.F. 1 966, p.309.0 caso Schreber, ESB, vol. XII, p.86.

3 lbdem p.95.

4 J. L..acan, De la psychose paranoiaque dans ses rapports avec la personnalité ,


éd. Seuíl, p 263-4. Da psicose paranóica em suas relações com a personalida­
de , ed. Forense Universitária, p.265.

5 J. L..acan, L 'Eto urdit, Scilicet IV, ed. Seuil, p.44.

6 D.P. Schreber, Mémoires d'un névropathe, ed. Seuil, p.239. Memórias de um neu­
ropata, ed. G raal, p.239.
Para Laca n, a tra nsferência não é repe­
tição. Est a precisão é fundamental . Há em
suma uma dupl a vertente da repetição co­
mo uma d u pla vertente da transferência. A
d u pla vertente d a repetição ele a isol o u no
Sem i n á r i o XI . P a ra que possam os dizer que
o m esmo se repete, é preciso q ue u m a ar­
q u itetura significante permita del i m itá-lo;
u o a utômaton u l eva e m conta a estrutura, a
rede de s i g nificantes sem os q u a is não have­
ria cam i n h o traçado para o sujeito. O sign ifi­
cante cava as vias pel as quais ele pode re­
tornar, passar de novo. H á para u m dete r m i­
nado s uj e ito, se ass im se pode d izer, pai­
néis indicadores que não são os mesmos
para um o utro s uj e ito. Há, portanto, u m a via
s i g n ificante na re petição, porém a ve rdadei­
ra repetição lacan iana, que ele isola d o ema­
ranhamento fre udiano, é a que ele chama
de ut iquê u , o que repete sem pre a fa l h a . Por
isso é preciso d izer q u e o que se repete é
algo sempre novo. Ver n a repetição a verda­
deira variedade, não é um paradoxo, n ão é
u m jog o d e pal avras. O q ue se repet e para
o sujeito, e q ue seg ue as vias s ig nificantes
do discurso no qual e l e está preso, é sem­
pre o mesmo obstác ulo que faz com que al­
go se im ponha como tra u m atism o, q ue algo
se e ncontre, ao acaso, que não está progra­
mado e por isso retorna, com o h i ato, que
condiciona a falta da relação sexual. H iato
e ntre tudo o que pode-se dizer e a l g o que
não se d iz, entre o sig nificante e o rea l , q u e
se apresenta na origem sob a f o r m a do trau­
matism o sexu al.
A transferência é outra coisa. Por quê
Lacan diz q ue a transferên cia não é a repeti­
ção?

uAs modal idades da transferên c ia u .

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