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Le Monde
Diplomatique Brasil. Edição 128. Março, 2018. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/poder-judiciario-ponta-de-lanca-da-luta-de-classes/. Acesso em
12 jun. 2018.
Diante das dificuldades para elevar a educação política média dos brasileiros, a
Ficha Limpa parecia um atalho seguro para a “moralização” do Estado. Trata-se de um
elemento constante: o elogio da ação política do Poder Judiciário, no momento em que ela
alavancava causas progressistas, é tingindo por uma percepção elitista (juristas capacitados
podem decidir com mais competência) e pelo desânimo quanto à possibilidade de produzir
uma opinião popular mais engajada e esclarecida.
Outra característica do Brasil é que o ativismo judiciário não é privilégio das cortes
superiores. Até mesmo juízes de primeira instância podem tomar decisões de enorme
repercussão coletiva – os casos de bloqueio de aplicativos de smartphones com milhões de
usuários servem de exemplo. Na crise política brasileira, o juiz paranaense Sérgio Moro
ocupou posição central ao liderar a Operação Lava Jato. Embora a justificativa para o
impeachment nada tivesse a ver com a operação, apoiando-se em operações de crédito
junto a bancos estatais (as chamadas “pedaladas fiscais”), ela foi instrumental para criar o
clima de opinião que sustentou a derrubada do governo. Declaradamente inspirado na
operação italiana Mãos Limpas, Moro julga que é importante dar grande visibilidade
midiática e obter o “apoio da opinião pública” ao combate à corrupção.
A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira por meio de
operações espetaculares que, no entanto, atingiram de forma muito desproporcional o PT e
seus aliados. Seu modus operandi privilegiado, a “delação premiada”, dá grande margem a
que o agente da lei oriente o curso da investigação. Muitas vezes, seus resultados
dependem da desobediência ao devido processo legal e de formas de intimidação contra
testemunhas e suspeitos.
Não custa lembrar que Moro é o tradutor do artigo de um juiz norte-americano que
ensina como coagir acusados para que denunciem seus cúmplices. 1 Em vários momentos,
sua atuação se mostrou claramente casada com o cronograma da derrubada da presidenta
Dilma, culminando na divulgação do áudio de uma escuta telefônica ilegal, com uma
conversa entre ela e Lula. Embora o juiz tenha sido obrigado a um envergonhado pedido de
desculpas e ao reconhecimento de que a divulgação da conversa fora “equivocada”, ele
continuou chefiando a operação. Atualmente, como se sabe, Moro e o tribunal de recursos
ao qual sua vara está vinculada, o TRF-4, são instrumentais no impedimento à candidatura
presidencial do ex-presidente Lula, que é outro importante passo no esvaziamento do que
restava de esperança de respeito ao princípio básico da democracia liberal – a consulta ao
povo para a escolha dos governantes.
É preciso ponderar, porém, que se trata de uma situação difícil, não algo que se
pudesse resolver por um mero ato de vontade do ocupante da Presidência da República. Por
um lado, a indicação de juristas abertamente comprometidos com as causas populares seria
encarada como rompimento do pacto que permitia a permanência do PT no poder e a
implantação de políticas tímidas (mas mesmo assim importantes) de resgate da dívida
social. A atuação do Supremo como avalista dos retrocessos é um indício, entre muitos
outros, de que as condições de manutenção desse pacto foram erodidas. Essa é a ficha que
falta cair para parcela da esquerda brasileira.
Por outro lado, o campo jurídico possui seus próprios filtros e mecanismos internos
para forçar a adaptação às posições mais conformistas, mormente quando se alcançam
funções de mais prestígio, poder e visibilidade. Como em outros campos (o jornalismo
serve de exemplo), o conservadorismo transita como “imparcialidade”, mas visões críticas
e comprometidas com a justiça social aparecem como sectárias, dificultando, portanto, a
ascensão na carreira. Certamente há juízes progressistas, mas estão em situação parecida à
de oficiais militares progressistas nos anos 1960. As iniciativas do Conselho Nacional de
Justiça com vistas à perseguição de dissidentes ainda têm encontrado resistência, mas
mostram que, na conjuntura aberta com o golpe, é possível que o Poder Judiciário se torne
ainda menos arejado.
No início deste ano, dois eventos dissimilares apontaram para mudanças no cenário.
Um deles foi a exposição, pela mídia hegemônica, de vantagens imorais auferidas por
grande parte dos juízes, incluído aí o próprio Sérgio Moro, em particular um “auxílio -
moradia” dado a quem evidentemente não precisa dele. Ao que parece, setores da coalizão
golpista decidiram indicar ao Judiciário que ele não é intocável. O outro foi o anúncio, pelo
ocupante da Presidência, da intervenção federal no Rio de Janeiro, que concede peso e
visibilidade a um ator que, até agora, era mantido à sombra: as Forças Armadas.
Quaisquer que sejam as mudanças a que levem as disputas internas entre os grupos
que deram o golpe em 2016, é ilusório pensar que o Judiciário pode ser um agente do
retorno à democracia. Recursos ao STF, como ocorreram quando da deposição de Dilma e
ocorrem agora com a condenação de Lula, cumprem muito mais um papel de denúncia, já
que a corte demonstrou mais de uma vez seu desprezo pela legalidade fraturada.