Marxismo e Ciências Humanas quistas. E, é possível dizer, excluiria
reúne trabalhos apresentados no “Se- marxistas históricos e contemporâneos gundo Colóquio Marx e Engels”, orga- que, explícita ou implicitamente, sepa- nizado em novembro de 2001 pelo Cen- ram o reino ordenado da Teoria, com T tro de Estudos Marxistas (Cemarx) do maiúsculo, da desordem empírica, “sem IFCH, Unicamp. Como se observa na rima e sem razão”, do mundo cotidia- apresentação da obra, a definição das no, comezinho, da história vivida: mar- ciências humanas é um primeiro cam- xistas para os quais o marxismo resu- po de embates. Daí partirem os edito- me-se à “ciência do capitalismo” como res de, por um lado, um critério práti- seu objeto de fato, sendo o socialismo re- co-acadêmico: identificando as ciências legado ao mundo da imaginação, da fan- humanas tal como aparecem no pano- tasia, dos desejos, da imaturidade, da mera rama institucional universitário atual, “utopia”. e, por outro lado, assinalando uma uni- Os três ensaios iniciais examinam dade mínima no campo marxista: a as relações entre marxismo e dialética. concepção do socialismo como neces- O mais unilateral destes é o de Orlando sidade ou possibilidade histórica. Tambosi, cujo esquematismo está mui- Definição ampla na qual caberiam to aquém de seu objeto. O autor con- – devemos ressaltar – outras correntes trasta o “projeto científico” do marxis- do socialismo não-marxista; por exem- mo às armadilhas do idealismo hege- plo: os socialistas libertários ou anar- liano “corruptor”, por assim dizer, da
*Professor no Goddard College, EUA.
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obra “econômica e sociológica” de Platão no Sofista, abrindo espaço ao Marx. O ensaio de Tambosi é uma es- não-ser, segundo Benoit, “arruinaria pécie de panfleto em que seu autor toma pela raiz” o “projeto ontológico” da tra- posição contra a dialética e, ao infor- dição parmenidiana, centrado na “he- mar o leitor de sua posição, de suas pre- gemonia do Ser”. A dialética platônica ferências filosóficas, tem por concluído mescla-se com a tradição parmenidiano- o assunto. Não deixa de ser significati- aristotélica em Hegel, herdeiro e vo que o ensaio seja dedicado ao filóso- continuador dos hibridismos dialéticos fo italiano Lucio Colletti. Colletti, como da tradição antiga. é sabido, iniciou sua trajetória política A dialética em Marx seria, final- e intelectual no Partido Comunista ita- mente, um “modo de exposição” liano, publicou importantes trabalhos (Darstellungsweise) que restituiria, após críticos sobre Marx e Hegel e terminou o trabalho da análise, a “totalidade vi- sua vida como deputado do partido de vida do real”. O papel da dialética se- Silvio Berluscconi. Em Tombosi, a ins- ria, em sentido forte, contradizer o piração anti-hegeliana e antidialética é, discurso empírico-abstrato da Economia nitidamente, como no último (?) Col- Política, ou seja, das formas “científicas” letti, conservadora. burguesas e, deste modo, expressar a Também para Hector Benoit, no experiência revolucionária da classe ope- ensaio que abre o volume, a dialética rária. em Marx é um problema a ser confron- Ainda que o autor considere “mais tado e, de certo modo – tendo em vista modesta” a sua caracterização da dialéti- sua estratégia conceitual, no que diz ca em Marx do que as explicações (subs- respeito à questão de sua matriz tancialistas) que recusa – a da lógica he- hegeliana –, um problema a ser “explai- geliana e da ontologia marxista –, a no- ned away”, para utilizarmos a (intra- ção da dialética marxista como Darstel- duzível) expressão inglesa; quer dizer, lungsweise não deixa de ter seus “pres- resolvido de uma vez por todas, ou seja, supostos” não-explícitos ou, mais mo- recusado como falsa questão cujo índi- destamente, suas próprias zonas de obs- ce é a sua própria insistência, persistên- curidade. Caberia talvez o exame da cia e irresolução conceitual e histórica. própria noção de Darstellungsweise Deste modo, para o autor, a dialética como noção explicativa fundamental. em Marx não seria uma lógica herdada O que se expressa no discurso da luta de Hegel, como também não constitui- de classes? Algo mais, talvez, do que ria uma “filosofia marxista” seja como uma tautologia como: o próprio “dis- “epistemologia” geral ou, sobretudo, curso da luta de classes”. Pensamos que enquanto “ontologia” dialética, verda- não é excessivo afirmar que o presente deira contradição nos termos, já que a ensaio se desenvolve em dois registros dialética inicial, por exemplo, a de distintos e divergentes: de um lado, te-
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mos o recurso à história das idéias, uma idealismo, mas igualmente oposição for- espécie de “aventura milenar da dialé- mal, trata-se de procedimentos diversos e tica” cujos conflitos passados informam mesmo, de modo específico, contraditó- a dialética de Hegel, e, de outro, o mar- rios. xismo enquanto teoria e práxis da mo- Em Hegel, a contradição deter- derna luta de classes. Dois registros cuja mina os seus termos, o positivo e o ne- articulação crítica seria necessário de- gativo, como termos determinados de monstrar (e não apenas, num certo sen- uma contradição determinada, ou seja, tido, “pressupor” de modo mais ou dupla determinação de um pelo outro, menos vago e geral). A dialética em que é, ou constitui, o seu fundamento Marx não é simplesmente uma lógica contraditório. Nesta estrutura, os termos, herdada de Hegel, mas, segundo Lênin, positivo e negativo, “se incluem mutua- citado por Benoit, a lógica específica, mente como momentos e se excluem ou seja, a prática teórica de O capital. como totalidades” (segundo Theunissen), O próprio Lênin afirmou, igualmen- isto é, os momentos são momentos espe- te, a necessidade imperiosa do estudo cíficos, determinados, de totalidades profundo da lógica hegeliana para a com- específicas, determinadas, que, como preensão de O capital : a compreensão tais, como totalidades, se excluem e da dialética, elemento fundamental do devem se excluir ou não subsistiriam marxismo ausente, segundo Lênin, nos como totalidades próprias. A contradi- discípulos imediatos de Marx. O que ção envolve a mútua inclusão e exclu- nos remete ao ponto de partida, à ques- são, isto é, a mútua dependência que tão inicial sobre as relações entre a revela o movimento do negativo, a ne- dialética hegeliana e o marxismo, quer gação do outro, como negação de si, dizer, entre filosofia e revolução. autonegação: o resultado é a determi- A noção da inversão materialista de nação plena da contradição como con- Hegel por Marx, recusada como “mera” tradição posta, “para-si”. Em Hegel, o imagem ou metáfora por muitos, é preci- todo se separa em duas totalidades (se- samente um dos objetos da análise de Jor- gundo Theunissen) e estas são o funda- ge Grespan. Segundo Grespan (a partir mento da contradição dialética. das análises de Fulda), inverter (umstülpen) Marx recusa a dupla totalidade: não é simplesmente pôr “de cabeça para no capitalismo só o capital se põe como baixo”, o que manteria uma simetria de totalidade ao subsumir o trabalho. Este relações, mas, na imagem da luva, “pôr não é a mera alteridade (totalidade ou- do avesso”, exteriorizar o interno e inter- tra) do capital. A contradição dialética nalizar o externo: ou seja, entre a dialética em Marx assume a forma da assimetria hegeliana e a dialética marxista haveria como sua estrutura essencial. O que não apenas oposição material, de conteú- significa, de modo breve, desvendar o do, a que opõe (substitui) materialismo e capital como poder sobre o trabalho,
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resultado da separação do trabalho e dos recíprocas, um outro lugar, uma outra meios de produção, da acumulação (o posição, uma nova dialética que apon- capital como trabalho acumulado), da te para além do movimento de repro- exploração do trabalho vivo pelo traba- dução da sociedade burguesa. lho morto (capital constante). A uni- Se nos detivermos de início na dade da sociedade capitalista é dada na análise das relações entre marxismo e esfera jurídica na forma do contrato dialética, não quer dizer que esta pri- entre proprietários livres de mercadorias, meira parte ocupe um espaço excessivo o capital de um lado, a força de traba- na organização do volume. Trata-se, ao lho do outro. A igualdade jurídica ex- nosso ver, de uma questão exemplar na pressa e camufla, ao mesmo tempo, a sua própria dificuldade que, por assim desigualdade essencial, a subordinação dizer, sob certos aspectos, resume, his- na esfera da produção, que funda a pro- tórica e conceitualmente, os destinos te- dução como produção capitalista. Aqui óricos do marxismo e seus impasses pas- desvendamos o ponto de vista da dialé- sados e presentes. No passado, algo de tica hegeliana; a contradição dialética decisivo se manifestou na “disputa so- plenamente desenvolvida em Hegel, isto bre Hegel” no interior do marxismo, “a é, posta para si, é aquela posta pelo ca- querela da dialética”, que, entre outros pital como princípio do seu desenvol- aspectos fundamentais, distinguia (e vimento e como resolução da contradi- igualmente confundia, por vezes opon- ção: a negação (subordinação) do tra- do a letra e o espírito da dialética) por balho que põe em marcha a produção um lado a consolidação do marxismo do capital. O capital pode então apare- como ideologia institucional (de parti- cer, invertendo o processo real, “excluin- do, de Estado, de aparelho sindical etc.) do” o trabalho, como motor do proces- e por outro como ideologia revolucio- so da produção, como autovalor. nária, para além dos seus limites insti- Podemos resumir esta breve e in- tucionais, como utopia de classe. completa exposição do denso ensaio de O encerramento (ao menos em Grespan, assinalando que em Marx tra- alguns de seus aspectos mais salientes) ta-se de fazer explodir (ou implodir) os de um ciclo histórico em que o marxis- limites da dialética hegeliana de seu “in- mo institucionalizado teve um papel re- terior”, examinando de perto, seguin- levante (e contraditório) deve servir a do, reproduzindo-lhe os movimentos re-significar as disputas teórico-políti- dos conceitos e suas estruturas, e des- cas, de ontem e de hoje, no interior do vendar nas contradições que ela é inca- marxismo. No melhor destes ensaios, paz de “dominar”, na contradição ma- manifesta-se, algo que poderíamos cha- terial entre capital e trabalho, e não sim- mar de uma vitalidade clandestina, seja plesmente na contradição formal entre na não-coincidência do marxismo com a parte e o todo, ou entre totalidades sua identidade histórica estabelecida,
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seja no confronto com a diversidade, a “desordem” conceitual e prática do pre- sente. Para além das aporias filosóficas (reais ou aparentes), o marxismo, ou algo semelhante, como o negativo da autoconsciência (ideologia) do tempo presente, continua a revigorar o traba- lho da antropologia, da história, e re- percutir indiretamente em outros cam- pos. Com efeito, alguns dos trabalhos de maior interesse da presente coletâ- nea dizem respeito às áreas de interface “empírica” da antropologia, da histó- ria, e aos temas da atualidade, como as transformações e os impasses na pro- dução, no mundo do trabalho, na cul- tura e na estrutura de classes do capita- lismo hoje, sobre os quais o marxismo teria (ainda) algo a dizer e talvez ainda algo inédito no confronto com a auto- complacência dos representantes inte- lectuais (conscientes e inconscientes) da ideologia dominante.