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no Brasil: 1960/1980
Introdução
Mário Augusto Medeiros da Silva é doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), São Paulo, Brasil. Agência de financiamento
FAPESP (marioaugustomed@yahoo.com.br).
Artigo recebido em 30 de junho e aprovado para publicação em 4 de setembro de 2013.
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Em que momento se pode dizer que surge uma literatura negra? Seu ar-
gumento paulatinamente se sofistica, alcançando a espinhosa discussão da dupla
consciência do escritor negro – desenvolvido do repertório fanoniano sobre a
dupla consciência do intelectual colonizado. No que tange ao escritor, o proble-
ma se dá na forma e conteúdo expressivos. O escritor negro, para se libertar do
molde de sua contraliteratura, deveria criar uma nova forma de expressão, não
conservadora como sua contraparte. Além disso, de acordo com a interpretação
de Barbosa, ele deve conscientizar-se de sua condição, historicamente subalter-
na, para poder se libertar.
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literatura afro-brasileira. Que eu acho que é uma coisa, pra mim, que
vem de Fanon. Que ele fala ‘negro só se torna negro a partir do domínio
do branco’. Porque você não tinha um negro, você tinha o africano, você
tinha lá o zulu, você tinha o haussai, enfim mina, esse tipo de coisa. E Fa-
non fala isso. Então, eu acho que é por aí também. Negro só se torna ne-
gro a partir do domínio do branco. É a identidade contraposta (Barbosa,
2010).
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Que outro material é este de que fala o autor? Ele evidencia que se trata
das apreensões, a posteriori, pelo escritor, do que seria a vida de seu grupo social
no Brasil.19 Contudo, entre o vivido e o narrado existem ao menos dois proble-
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mas: o das formas de viver e o das formas de dizer. Quem é o escritor de literatura
negra e de que linguagem ele se vale para sua confecção literária? Barbosa nos
oferece uma resposta, no contexto das discussões dos anos 1980.
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negro/ ruim ser proletário./ Bom ter esta cor,/ este jeito, este som./ Ruim ter esta
fome, o frio, este não ter./ Manter a raça,/ Mudar a classe.” (Cadernos Negros,
1988: 55).
A palavra de ordem final se faz ouvir com mais intensidade na produção
de outros autores publicados em 1990, no volume 13:
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abaixo, que reflitam criticamente sobre o passado e o presente daquele grupo so-
cial.
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Notas
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10. Paulistano, nascido em 1959, formado uma cultura nacional futura” (Fanon,
em filosofia (USP), Barbosa também é de- 1979: 173-175).
senhista e escritor. Desde 1982 é membro
do Quilombhoje Literatura e atualmente é 13. “Numa primeira etapa, o intelectual
um dos coordenadores da série Cadernos colonizado prova que assimilou a cultura
Negros, onde publicou poemas, contos e ar- do ocupante. Suas obras correspondem
tigos. Em 1987 publicou o romance Pai- exatamente às dos seus colegas metro-
xões crioulas. No ano 2000 teve um conto politanos. A inspiração é europeia e pode-
seu selecionado para a antologia Os cem se facilmente vincular essas obras a uma
melhores contos brasileiros do século XX, cor ren te bem de fi ni da da literatura
organizada por Ítalo Moriconi para a edi- metropolitana” (Fanon, 1979: 184).
tora Objetiva. 14. “Numa segunda, o colonizado sofre um
abalo e resolve recordar. Este período cor-
11. Prosseguindo: “Precisamos perder o
responde aproximadamente ao mergulho
hábito, agora que estamos em pleno com-
que acabamos de descrever [...] Velhos
bate, de minimizar a ação de nossos pais ou
episódios da infância surgirão do fundo da
de fingir incompreensão diante de seus
memória, velhas lendas serão reinter-
silêncios ou de sua passividade. Eles se
pretadas em função de uma estética de
bateram como puderam, com as armas que
empréstimo e de uma concepção do mun-
então possuíam, e se os ecos de sua luta não
do descoberta sob outros céus. Algumas
re per cu ti ram na are na in ter na ci onal,
vezes essa literatura de pré-combate será
cumpre ver a razão disso menos na au-
dominada pelo humor e pela alegoria.
sência de heroísmo que numa situação
Período de angústia, de mal-estar, ex-
internacional fundamentalmente dife -
periência de morte, experiência também
rente. Foi necessário que mais de uma tri-
da náusea. Vomita-se, mas já por debaixo
bo se rebelasse, mais de uma manifestação
engatilha-se o riso” (Fanon, 1979: 184-
reprimi da para que pudéssemos hoje
188).
erguer a cabeça com esta confiança na vi-
tória” (Fanon, 1979: 172). 15. “Enfim, num terceiro período, cha-
mado de combate, o colonizado depois de
12. “[...] Concedo que no plano da exis- ter tentado perder-se no povo, perder-se
tência o fato de ter havido uma civilização com o povo, vai, ao contrário, sacudir o
asteca não altera muito o regime alimentar povo. Em vez de privilegiar a letargia do
do camponês mexicano de hoje. Concedo povo, transformar-se em despertador do
que todas as provas que pudessem ser da- povo. Literatura de combate, literatura
das da existência de uma prodigiosa civi- re vo lu ci o ná ria, literatura nacional”
lização songhai não mudam o fato de que (Fanon, 1979: 185).
os songhai de hoje são subalimentados,
analfabetos, vivem entre céu e água com a 16. “O intelectual colonizado que retorna a
cabeça vazia, os olhos vazios [...] Incons- seu povo através das obras culturais com-
cientemente, talvez, os intelectuais coloni- porta-se de fato como um estrangeiro. Por
zados, não podendo enamorar-se da histó- vezes não hesitará em valer-se dos dialetos
ria atual de seu povo oprimido, não poden- para manifestar sua vontade de estar o
do admirar sua presente barbárie, delibe- mais perto possível do povo, mas as ideias
raram ir mais longe, mais fundo, e foi com que exprime, as preocupações que o ha-
alegria excepcional que descobriram que o bitam não têm nada em comum com a si-
passado não era de vergonha, mas de dig- tuação concreta que conhecem os homens
nidade, de glória e de solenidade. A reivin- e as mulheres de seu país [...]Querendo
dicação de uma cultura nacional passada ajustar-se ao povo, ajusta-se ao reves-
não reabilita apenas; em verdade justifica timento visível” (Fanon, 1979: 185).
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17. “Este racismo que se quer racional, ter alguma finalidade exterior, esta con-
individual, determinado pelo genótipo e siste, no nosso caso, em tornar visível este
pelo fenótipo se transforma em racismo acúmulo de experiências opressivas, cola-
cultural. O objeto do racismo não é mais o borando dessa maneira para sua extirpa-
homem particular, mas uma forma de ção” (Barbosa, 1987: 131).
existir [...]” (Fanon, 2001: 40. Tradução
minha). 20. O trecho de Fanon está em “Racismo e
cultura”.
18. “Quando aplico a categoria ‘intelectual
negro’ à realidade brasileira, vejo a neces-
sidade de respeitar as devidas diferenças 21. Trechos gravados por mim da palestra e
de proporção, o mesmo ocorrendo com das intervenções de Cuti durante o I En-
noções como ‘luta política’, já que a luta contro dos Cadernos Negros: ferramentas
política africana pressupõe a tomada do para excelência na avaliação dos textos,
aparelho de Estado. Essa noção de inte- Sindicato dos Professores do Estado de
lectual negro inclusive, para o caso bra- São Paulo, São Paulo, 5 de julho de 2008.
sileiro, é mais metodológica do que real, já
que uma reivindicação de especificidade 22. Florentina de Souza chamou atenção
como essa exigiria que constasse de algum para este aspecto: “Vale ressaltar, no entan-
programa, já que deve ser deliberada e to, que existe uma forte consciência de mis-
consciente e exigiria, por outro lado, um são a cumprir – um desejo ‘pedagógico’ de
reconhecimento por parte da sociedade, contribuir para que outros afro-brasileiros
pois só isso a legitimaria. Ainda seguindo despertem a atenção para a necessidade de
Fanon, intelectual é aquele que abraça em lutar contra o racismo e a discriminação e
si as contradições e o que se faz voz do de reverter os mecanismos étnicos-segre-
povo, coisa que exige uma potencialidade gadores utilizados pela sociedade bra-
criadora e crítica, conhecimento e visão sileira nas suas práticas e discursos. Essa
profundos, atributos que só podem ser ad- espécie de ‘missão’ justifica-se pela ur-
quiridos através da dedicação constante, gência de desconstruir as imagens secu-
do debate sistemático e do reconheci- lares, negativas e inferiorizantes dispostas
mento honesto da própria ignorância. pelos sistemas de representação e que são
Assim sendo, enquanto os homens de assimiladas e introjetadas por ‘brancos’ e
cultura permaneceram preocupados em ‘negros’. Acrescente-se, ainda, o empenho
aparentar uma importância excessiva em de conscientizar negros e não-negros da
relação ao trabalho que são capazes de fragilidade do mito da democracia racial
desenvolver, só poderemos falar em ‘in- no Brasil, apontando as implicações deste
telectual negro’ no sentido figurado” (Bar- discurso para a continuidade na estru-
bosa, 1987: 122). turação do poder e na sedimentação das
desigualdades e injustiças sociais. Com tal
19. “[...] se existe alguma característica objetivo, fazem uso de termos como cons-
marcante na literatura negra é exatamente cientizar, reflexão, mobilizar, organizar, resga-
o fato extremamente rico de a obra vir tar, lutar, combater, palavras de ordem que se
assinalada pelas cicatrizes que a existência repetem em artigos do Jornal do MNU e
numa sociedade discriminatória impõe ao em poemas e contos dos CN” (Souza, 2005:
autor [...] Então se a literatura pode e deve 64).
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Resumo
O artigo pretende contribuir para o debate sobre a recepção do pensamento do
intelectual e ativista Frantz Fanon (1925-1961) no Brasil. Neste sentido, busca
acrescentar subsídios a discussões anteriores e confirmar algumas de suas
hipóteses, demonstrando que na década de 1980 existiu um momento de
aproximação e uso de algumas ideias daquele pensador no ativismo político e
cultural negro brasileiro, notadamente entre intelectuais do coletivo
Quilombhoje Literatura.
Palavras-chave: Frantz Fanon; ativismo político-cultural negro; intelectuais
negros – Brasil.
Abstract
The article intends to contribute to the debate about the reception of the ideas
of the intellectual and activist Frantz Fanon (1925-1961) in Brazil. In this
sense, it seeks to offer subsidies to previous discussions and to confirm some
of their hypotheses, demonstrating that in the 1980’s there was a moment of
approach and use of some of Fanon’s ideas in Brazilian black political and
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Résumé
L’article vut contribuer au débat sur la réception de la pensée de l’intellectuel
et militant Frantz Fanon (1925-1961) au Brésil. En ce sens, il cherche à offrir
des apports aux discussions précédentes et à confirmer certaines de leurs
hypothèses, en montrant qu’aux années 1980 il y a eu un moment de
rapprochement et d’utilisation de quelques idées de Fanon par l’activisme
politique et culturel noir brésilien, en particulier parmi les intellectuels du
collectif Quilombhoje Literatura (1978-).
Mots-clés: Frantz Fanon; activisme politique et culturel noir; intellectuels
noirs – Brésil.
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