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AS CARTAS PASTORAIS

INTRODUÇÃO
As pessoas a quem Autoria
são dirigidas As três cartas atribuem sua autoria ao
Embora essas cartas sejam em geral conhe- apóstolo Paulo. Não há evidência do con-
cidas por Epístolas Pastorais, esse nome trário na igreja primitiva. Mas desde o
só começou a ser usado a partir do século início do século XVIII muitos estudiosos
XVIIl. A descrição é antes uma questão de têm questionado se Paulo escreveu essas
conveniência do que de precisão, visto que cartas como as temos agora. Têm havido
as cartas não são manuais de cuidado pas- dois tipos principais de teorias alterna-
toral. Timóteo e Tito eram ambos assisten- tivas, uma tratando as cartas como fictí-
tes próximos de Paulo, e essas cartas diri- cias, e a outra afirmando que algum tipo
gidas a eles são os únicos exemplares de tal de material genuíno foi incluído. Ambas
gênero incluídos no NT. Não há como saber essas teorias necessariamente consideram
quantas outras cartas desse gênero - se é as cartas como pseudônimas, isto é, atri-
que [as] houve - o apóstolo escreveu. A buídas ao apóstolo mas escritas por outro
carta endereçada a Filemom constitui ou- autor. Em geral defendem os que afirmam
tro gênero por si só. ser a carta de autoria não paulina que esse
Timóteo é mencionado não somen- procedimento era perfeitamente aceitável
te em Atos, mas também em muitas das naqueles dias e não teria incorrido em cul-
outras cartas de Paulo. É provável que pa moral. Mas isso é questionável. Quais
[ele] tenha se convertido à fé cristã du- são, então, as razões que levaram a teorias
rante a primeira viagem missionária de de não autenticidade?
Paulo. Ele já era seu companheiro próxi-
mo nas duas viagens missionárias seguin- 1. As referências
tes. Em Filipenses 2.19,20, Paulo fala de históricas nas cartas
forma carinhosa do cuidado e preocupa- Essas pressupõem que Paulo tinha visita-
ção de Timóteo. Não é de admirar, por- do Éfeso e Creta recentemente. O proble-
tanto, que tenham sido preservadas duas ma surge porque é dificil encaixar essas
cartas pessoais dirigidas ao seu amado alusões na história de Atos. Alguns pres-
companheiro. supõem que Paulo foi liberto do aprisio-
É estranho que não haja alusão alguma namento mencionado no final de Atos, e
a Tito em Atos, mas ele é mencionado em que os eventos mencionados nas Pastorais
Gálatas 2.1,3, onde ficamos sabendo que ocorreram depois dessa libertação. Paulo
era grego, e em 2Coríntios 8.23, onde deve ter sido então preso de novo, em data
Paulo o descreve como seu parceiro e coo- posteríor, e finalmente morto como mártir.
perador na obra (cf também 2Co 12.18). Muitos estudiosos, no entanto, rejeitam
Dentre esses dois companheiros de Paulo, esse ponto de vista porque ele não tem
Tito parece ter sido o de personalidade apoio algum fora dessas cartas. Houve ten-
mais forte, enquanto em I e 2Timóteo há tativas, portanto, de encaixar as referências
diversas alusões à natureza mais tímida históricas na história de Atos, mas isso de
de Timóteo. forma alguma está livre de dificuldades. Os
1941 AS CARTAS PASTORAIS

que não consideram essas reconstruções 4. A posição doutrinária


convincentes simplesmente tratam todas A posição doutrinária refletida nessas car-
as referências históricas como fictícias e já tas é tida como não conforme à do após-
não fazem esforço algum para associá-las tolo Paulo. Chega-se a essa conclusão por
à história de Atos. comparação da teologia de outras cartas de
Paulo à teologia das Pastorais. Afirma-se
2. A menção a posições que há várias características nas outras car-
de liderança na igreja tas, que estão ausentes das Pastorais, que
Argumenta-se que as referências nas car- atribuí-Ias a Paulo está fora de questão.
tas aos "bispos" e "presbíteros" reflitam Há, no entanto, uma fraqueza fundamental
um período posterior à era apostólica. nesse argumento. Ele Não leva em conta a
Aqui também há ampla divergência nas diferença entre as pessoas a que foram diri-
diversas teorias. É dificil obter certeza gidas nem o propósito das diversas cartas.
do que esses títulos significaram em di- Não se pode esperar que Paulo inclua um
ferentes estágios da história da igreja pri- resumo de toda a sua teologia em cada uma
mitiva, e as Pastorais não fazem nenhuma de suas cartas. Não há nada nas Pastorais
distinção real entre eles. O argumento, que conflite com a posição teológica refle-
portanto, é inconclusivo. Mas teria o ver- tida nas outras cartas paulinas. A ausência
dadeiro Paulo tido necessidade de passar de temas como justiça de Deus ou a vida
aos seus assistentes pessoais instruções no Espírito Santo precisam ser vistas à luz
sobre as qualidades requeridas para os lí- desse pano de fundo. O que é menos fácil
deres da igreja? Se considerarmos essas de explicar é a ocorrência do que parecem
cartas semipúblicas, não há dificuldade afirmações estereotipadas introduzidas por
alguma em supor que Paulo desejasse expressões como: "Fiel é esta palavra",
destacar por escrito o que já instruíra aos que não ocorrem em nenhuma outra das
seus assistentes. cartas de Paulo. Mas isso exclui a autoria
paulina? Para que seja assim seria preciso
3. As referências a falsos demonstrar que Paulo nunca usou tais afir-
ensinamentos mações, e a evidência simplesmente não é
Alguns comentaristas supõem que essas suficiente para tanto.
referências pertencem ao período das he-
resias desenvolvidas no século 11 e não 5. Linguagem e estilo
podem, por isso, ser associadas à época Argumentos fundamentados na linguagem
de Paulo. Mas as evidências não dão sus- são geralmente considerados conclusi-
tentação a essa teoria, pois não há relação vos contra a autenticidade dessas cartas.
entre os mitos e as genealogias citadas nas Contudo, mesmo aqui há maneiras dife-
Pastorais e as heresias gnósticas poste- rentes de pesar a evidência. Precisamos
riores. O interesse principal de Paulo era admitir, são usadas muitas palavras novas
advertir os seus colegas a que não desper- nessas cartas que não ocorrem em nenhum
diçassem o seu tempo com esses falsos outro lugar dos escritos de Paulo, e há di-
ensinamentos. Se, como supõem alguns versas que não ocorrem em nenhum outro
estudiosos, essas cartas foram escritas para lugar do NT. A pergunta que importa, no
responder às heresias do século n, por que entanto, é se Paulo as teria usado ou não.
então não há mais referências diretas ao Visto que há exemplos contemporâneos
tipo de erro prevalecente nesse período? do uso de todos menos uns poucos desses
Uma conclusão legítima seria que os fal- termos, não há razão por que Paulo não pu-
sos ensinamentos não fornecem nenhuma desse tê-los usado. Argumentos baseados
pista para a datação das Pastorais. no uso de palavras são inconclusivos.
COMENTÁRIO BíBLICO VIDA NOVA 1942

Uma importância maior foi dada ao eventos aludidos nas Pastorais ocorreram
estilo, e novamente vários métodos di- durante esse breve período de liberdade.
ferentes foram usados no seu exame. Certamente, 2Timóteo soa como que es-
Alguns chamaram a atenção ao uso ou crito por alguém que sabia que o seu tem-
omissão de certos tipos de palavras (como po era breve.
preposições), enquanto outros recorreram
à frequência de certas palavras ou à ex- Propósito
tensão das frases. Em termos gerais, qual- Dentre as três cartas, a que mais facilmente
quer cálculo estatístico é dificultado pela revela o seu propósito é 2Timóteo, pois essa
insignificância da amostra disponível nas carta foi claramente escrita enquanto Paulo
Cartas Pastorais. Alguns comentaristas, aguardava o resultado do seu julgamento.
que com base em outros argumentos são Trata-se de um apelo urgente a Timóteo
favoráveis à autoria paulina, tendem a al- para que este tente encontrá-lo enquanto
gum tipo de "hipótese do secretário" para ainda é tempo. Há alguns pedidos pessoais
explicar a mudança de linguagem. em 2Timóteo 4 associados a uma capa, al-
Mesmo que essas linhas de evidência guns livros e pergaminhos. Toda a carta é
sejam consideradas suficientes para con- um encorajamento a Timóteo para que leve
cluir a autoria não paulina, ainda existe o adiante a obra do seu ministério.
problema do que teria impelido alguém a Em 1Timóteo, o propósito aparente-
escrever essas cartas em nome de Paulo e mente é dar alguma direção acerca de
o que o levou a escolher três. Até agora, questões como a escolha dos líderes da
nenhuma resposta satisfatória foi dada, igreja e o enfrentamento dos falsos ensina-
e na ausência desta não parece injusto mentos. Paulo declara o seu propósito em
aderir ao ponto de vista tradicional de 1Timóteo 3.14,15. Ele tinha a intenção cla-
que Paulo escreveu essas cartas aos seus ra de dar a Timóteo a orientação necessária
assistentes próximos com um propósito caso este não o encontrasse em breve. Na
histórico específico. carta a Tito, uma situação semelhante está
em vista, pois assim como Timóteo tinha
Data ficado com a responsabilidade pela igre-
A data das Cartas Pastorais está inextrica- ja em Éfeso, assim Tito tinha uma tarefa
velmente ligada à sua autoria. Se não foi ainda mais difícil em Creta. A carta teria
Paulo quem as escreveu, então qualquer ajudado, portanto, a fortalecer a Tito nessa
data entre meados do século I e o início difícil tarefa.
do século II é possível. Como vimos,
alguns autores concluem que essas cartas Canonicidade
foram escritas tão tardiamente que Paulo Há fortes evidências do uso dessas cartas
não pode tê-las escrito. Na opinião deles, pastorais na igreja primitiva. Os parale-
a data dessas cartas resolve a questão da los nos autores eclesiásticos não são nada
autoria. Mas se Paulo foi o seu autor, tal- mais que alusões, mas isso é igualmente
vez usando um secretário, então a data verdadeiro em relação a outras cartas de
mais provável de sua composição é a me- Paulo. Há alguns paralelos entre essas car-
tade da década de 60 (os anos exatos são tas e JClemente, que dariam evidências do
disputados), quando Paulo estava preso seu uso antes de 95 d.C., embora alguns
em Roma. Desse ponto de vista, é comum estudiosos questionem essa conclusão.
argumentar que Paulo foi liberto do apri- Certamente, Policarpo parece ter citado a
sionamento mencionado no final de Atos partir de duas delas, e depois desse tempo
mas foi aprisionado novamente logo de- há forte apoio não só para seu uso mas para
pois e morto como mártir, e que alguns sua autoridade.
1943 AS CARTAS PASTORAIS

No entanto, duas linhas de argumenta- As referências a Cristo estão igualmen-


ção são citadas com frequência para con- te em conformidade com o ensino comum
testar a canonicidade antiga dessas cartas. de Paulo: sua humanidade (l Tm 1.15), sua
Uma é o fato de que Marcião as excluiu paciência (l Tm 1.16), sua obra salvífica
do seu cânon (metade do século II d.C.). (2Tm 1.10; Tt 2.13; 3.6), sua função de
Visto que Tertuliano diz que Marcião "as mediador (l Tm 2.5,6) e sua ressurreição
cortou", parece razoável crer que ele as (2Tm 2.8).
conhecia mas desaprovava. Com base no Há menos referências ao Espírito Santo
cânon de Marcião, concluímos que ele era do que na maioria das cartas de Paulo, mas
extremamente seletivo. A outra linha de sua obra não é omitida. A obra prenuncia-
argumentação cita o fato de que as Cartas dora do Espírito Santo é mencionada em
Pastorais não aparecem nos papiros de 1Timóteo 4.1, e o texto diz que ele confiou
Chester Beatty. A evidência do uso e auto- a verdade a Timóteo e que o Espírito Santo
ridade dessas cartas é tão forte, contudo, habita neles (2Tm 1.14). Ele é responsá-
que dúvidas suscitadas por esse tipo de vel pela obra de regeneração e renovação
evidência são insuficientes para desban- (Tt 3.5).
car a opinião de que essas cartas tenham As Pastorais deixam claro que a salva-
sido preservadas e estimadas numa data ção é o resultado da misericórdia divina
muito antiga como cartas genuínas do mediada pela fé (l Tm 1.16). Na verdade,
apóstolo Paulo. não há nada nessas cartas que se oponha ao
ensino de Paulo nos outros escritos.
Teologia Ver também artigo "Lendo as Cartas".
Embora alguns dos grandes temas paulinos
estejam ausentes nessas cartas, há nelas
muitos trechos doutrinários perfeitamente Leitura adicional
alinhados à teologia de Paulo. Eles reve- STOTT, 1. R. W. A mensagem de lTimóteo e
lam uma visão elevada de Deus, observada Tito. BFH. ABU, 2004.
especialmente na doxologia extraordiná- _ _o A mensagem de 2 Timóteo. BFH.
ria de lTimóteo 1.17. A sua paternidade ABU, 1989.
é mencionada, bem como o seu papel de GUTHRIE, D. The Pastoral Epistles. TNTC.
Salvador (lTm 4.10; Tt 1.3; 2.10,13; 3.4) e Inter-VarsityPress/UK/Eerdmans, 1990.
de justo Juiz (2Tm 4.8). FEE, G. D. 1 e 2Timóteo, Tito. Vida, 1994.
1TIMÓTEO

ESBOÇO
1.1-20 Paulo e Timóteo
1.1,2 Saudação pessoal
1.3-11 O evangelho e as suas imitações
1.12-17 A experiência pessoal de Paulo com Cristo
1.18-20 Uma ordem e uma advertência para Timóteo

2.1-15 O culto e as mulheres


2.1-8 Culto público
2.9-15 Conselho para mulheres cristãs

3.1-13 Exigências para quem aspira posições de liderança na igreja


3.1-7 Qualificações para bispos
3.8-13 Qualificações para diáconos

3.14-16 A casa de Deus


4.1-16 Ameaças iminentes
4.1-5 A natureza das ameaças
4.6-16 Como Timóteo deve lidar com as ameaças

5.1-6.2 Instruções para diversas classes


5.1,2 Diversos grupos etários
5.3-16 Instruções sobre as viúvas
5.17-20 Presbíteros
5.21-25 Conselhos pessoais a Timóteo

6.1-21 Instruções diversas


6.1,2 Sobre escravos e senhores
6.3-5 Sobre falsos mestres
6.6-10 Sobre o dinheiro
6.11-16 Sobre buscar as coisas certas
6.17-19 Sobre as riquezas novamente
6.20,21 Palavras finais a Timóteo

COMENTÁRIO uma referência ao seu apostolado. Ele esta-


belece a sua autoridade com uma menção
1.1-20 Paulo e Timóteo ao seu chamado especial por Deus. Não foi
Paulo que se designou a si mesmo e não
1.1,2 Saudação pessoal estava, portanto, escrevendo com base em
Paulo começa, como em outras cartas, com sua própria autoridade. Ele sabia que era um
1945 lTIMÓTEO 1

apóstolo de Cristo Jesus, usando uma for- dutividade nos falsos ensinamentos que se
mulação de palavras que ressalta que Jesus opunha frontalmente à fé verdadeira. Paulo
foi o Cristo, i.e., o Messias. Ele expressa de chama a atenção para algumas caracterís-
forma intensa a parte de Deus nisso, pelo ticas nas pessoas que estavam promoven-
mandato de Deus, mostrando Paulo como do esse ensino - sua falta de conteúdo e
um homem que está debaixo de ordens. sua inadequabilidade como mestres (6,7).
Observe como Paulo se refere a Deus como O que nos impressiona é a irrelevância
Salvador, uma ideia que aparece em outros do ensinamento deles. Inserida no centro
trechos dessas cartas pessoais. desse trecho (5), encontramos a declara-
A descrição de Timóteo como verda- ção de Paulo sobre a natureza da tarefa de
deiro filho na fé aponta para o relaciona- Timóteo (produzir amor) e o seu conselho
mento próximo entre os dois homens e para nutri-lo (pureza, consciência boa e
sugere também que foi por meio de Paulo fé). O teste de uma boa discussão não é se
que Timóteo se tomou cristão. A combina- gostamos da batalha verbal, mas que ela
ção de graça e paz na abertura das cartas tenha estimulado a compreensão e o amor
de Paulo é normal, mas aqui ele inclui tam- mútuos; que ela tenha sido sincera, aberta
bém misericórdia (como em 2Timóteo). e baseada na fé.
Paulo fala de Deus como Pai (tão familiar 8-11 No v. 7, Paulo menciona o dese-
nas suas outras cartas) e de Jesus como jo desses falsos mestres de serem mestres
Senhor, o que ecoa as palavras de uma an- da lei, e isso o leva a discutir a natureza e
tiga confissão de fé cristã (cf Rm 10.9). propósito da lei. Paulo admite aqui (como
em Rm 7.12) que a lei é boa, embora em
1.3-11 O evangelho outros textos ele deixe claro que ela não
e as suas imitações consegue conduzir à salvação. A função
3-7 Em primeiro lugar, Paulo lembra principal da lei é condenar os transgres-
Timóteo da ocasião quando ele o deixou sores (9-11). O lado negativo da lei é por
em Éfeso com uma tarefa específica, que demais proeminente. Os diversos tipos de
incluía ordenar a outros que não ensinas- ofensores mencionados são todos aqueles
sem falsas doutrinas. Doutrinas erradas já contra quem a lei pode operar por terem
estavam circulando nesse estágio inicial da cometido transgressões específicas. Paulo
vida da igreja, e isso é um lembrete de que destaca exemplos extremos, mas ao menos
em todas as épocas a verdade é desafiada e ninguém poderia negar o ponto que ele es-
questionada por imitações. Há muito sobre tava ressaltando - que todas essas trans-
falsos ensinamentos nessa carta e na ende- gressões fazem parte de tudo que se opõe
reçada a Tito. Embora elas fossem especí- à sã doutrina.
ficas para a época, lançam luz sobre certos Embora a lei tenha sido suplantada
princípios que são relevantes ainda hoje pelo evangelho, Paulo não nega que ela
no tratamento de alguns tipos de falsos ainda tenha uma função. Ele dá uma defi-
ensinamentos. Independentemente do que nição positiva da sã doutrina como a que
se queira dizer comfábulas e genealogias é segundo o evangelho da glória do Deus
sem fim (4), está claro que Paulo as con- bendito (11). Isso significa ou que o evan-
siderava o exato oposto do conteúdo sério gelho consiste em um tema glorioso ou que
do evangelho. À luz do fato de que em Tito é provido por um Deus glorioso. A ênfase
1.14 Paulo menciona "fábulas judaicas", é aqui parece cair sobre Deus e não sobre o
possível que ele tenha tido em mente his- evangelho, mas a origem divina do evan-
tórias míticas, como o Livro dos Jubileus gelho é inegável. Isso está perfeitamente
judaico. Observe o contraste entre discus- alinhado com a posição de Paulo em rela-
sões e serviço de Deus. Havia uma impro- ção ao evangelho em suas outras cartas.
lTlMÓTEü 1 1946

1.12-17 A experiência pessoal de Deus. Tais pessoas se tomam demons-


de Paulo com Cristo tração vívida do que Deus é capaz de fa-
Paulo quer que Timóteo saiba o quanto zer. O apóstolo não poderia ter percebido
estima o seu chamado para o serviço de toda a amplitude em que a misericórdia de
Cristo. Isso seria um encorajamento para Deus por ele teria conduzido outros à fé
ele. As cartas de Paulo estão repletas de em Cristo, mas ele mostra um vislumbre
irrupções repentinas de louvor a Deus. disso. A palavra que é fiel ainda é digna de
Essa gratidão era espontânea. Aqui temos toda a aceitação como um resumo conciso
uma compreensão da misericórdia de Deus da essência do evangelho.
contra o pano de fundo do passado. Antes A doxologia repentina do v. 17 é digna
blasfemo e violento, Paulo agora se ale- de nota, pois contém diversas caracterís-
gra que Deus o tenha escolhido para o seu ticas significativas. Somente aqui Paulo
serviço (12,13). O livro de Atos fornece chama a Deus de Rei eterno (lit. "Rei das
o comentário aqui, pois descreve a per- eras"). A expressão pode ter vindo da ideia
seguição cruel encabeçada por Paulo aos judaica das duas eras - a era presente e
cristãos antes da sua dramática conversão a era por vir. Os outros adjetivos usados,
(At 8-9). Ele nunca esqueceu o milagre imortal e invisível, chamam atenção para
que Deus realizou ao escolhê-lo. A palavra a natureza exaltada de Deus, e a descrição
usada aqui para ministério é muito geral e único aponta para a sua unicidade.
cobre os muitos aspectos do trabalho de
um apóstolo. A sua lembrança do que ele 1.18-20 Uma ordem e uma
tinha feito na ignorância, na incredulidade advertência para Timóteo
serviu para elevar a sua percepção da mi- Paulo agora dirige uma palavra pessoal a
sericórdia e graça de Deus. O que o deixa Timóteo descrita como Este é o dever. A
atônito é a abundância dessa misericórdia. palavra usada transmite um sentido de ur-
Isso nos lembra de que Deus não usa o gência e está no contexto de uma metáfora
nosso passado contra nós quando estamos militar. Mas quais foram as profecias acer-
em Cristo Jesus. ca de Timóteo de que antecipadamente
Alguns encontram dificuldade nesse foste objeto? Provavelmente é uma alusão
apelo de Paulo à palavra quando diz fiel é a predições concernentes a ele que prece-
a palavra (15), visto que ele não usa essa deram o seu chamado ao ministério, talvez
expressão fora das cartas pastorais. Não dadas no seu comissionamento. Está claro
há nada, no entanto, aqui que esteja em que o ministério de Timóteo tinha o apoio
desacordo com o ensino de Paulo em ou- de outros cristãos à parte do próprio Paulo.
tros textos. O fato de que Cristo Jesus veio A metáfora do combate [...] o bom combate
ao mundo para salvar pecadores está no encontra paralelos em outras cartas (cf Ef
âmago do evangelho. Mas quando Paulo se 6.10-18), e encontra outro eco em 2Timóteo
refere a si mesmo como o principal dos pe- 4.7. Paulo estava consciente de que a vida
cadores (16), não está exagerando? Não é cristã é um conflito espiritual. Acerca de
preciso pensar isso à luz da menção anterior boa consciência e fé (19), cf v. 5.
à violenta perseguição que ele empreendeu A mudança de metáfora de combate
à igreja. Sua apreciação da misericórdia para naufrágio é chocante (19,20). O caso
de Deus foi aprofundada pela sua própria dos dois homens citados é triste, pois o
experiência de perseguidor do povo de naufrágio foi causado por uma rejeição
Deus. Os que estão mais conscientes da definitiva da fé. Mas o que Paulo quer di-
sua oposição anterior a Deus geralmente zer com entregá-los a Satanás? Essa é uma
se tomam os mais francos e falantes na sua questão reconhecidamente difícil, mas
compreensão da completa longanimidade a melhor solução parece a que considera
1947 lTIMÓTE02.--
li.

a igreja o domínio de Deus e o mundo in- declaração acerca do desejo de Deus de que
crédulo o domínio de Satanás. Os que não todos os homens sejam salvos não está ime-
creem abrem mão de todo e qualquer di- diatamente clara, mas a associação parece
reito de permanecer na comunidade cristã. estar na relação do todos no v. 1 e o todos
Mas Paulo deixa a porta aberta para eles no v. 4. Mas essa afirmação dá sustentação
aceitarem a disciplina de não mais blas- ao universalismo? Pode-se argumentar que
femarem. Alguns comentaristas entendem o que Deus quer certamente acontece. Mas
aqui uma alusão a desastre físico, segun- é importante lembrar que tanto o AT quanto
do paralelos em Atos 5.1-11 e 1Coríntios o NT falam do "desejo" ou da "vontade" de
11.30. Mas é melhor pensar aqui em dis- Deus de formas muito diversas, determi-
ciplina moral e espiritual. Paulo trata do nadas pelo contexto. Às vezes a "vontade"
mesmo tipo de questão em 1Coríntios 15. de Deus não pode ser diferenciada do seu
A disciplina de igreja hoje é tudo menos decreto: o que ele quer que aconteça acon-
uniforme. Alguns líderes de igreja são tece. Outras vezes, a "vontade" de Deus é
autoritários demais; outros parecem não um mandamento seu (e.g., lTs 4.3). Ainda
exercer disciplina alguma. A ênfase de outras vezes, refere-se à sua postura. O
Paulo está na responsabilidade da igreja Deus que exclama: "Não tenho prazer na
por seus membros errantes e também pelo morte de ninguém [...] Portanto, convertei-
bem geral de todo o corpo. vos e vivei" (Ez 18.32) é também o mes-
mo de quem se diz que quer que todos os
2.1-15 O culto e as mulheres homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade.
2.1-8 Culto público Certamente é possível ordenar essas
Paulo se ocupa aqui com a forma apropria- afirmações num tipo de padrão contradi-
da de se lidar com a adoração pública, es- tório. Na verdade, elas fazem parte de um
pecialmente a oração pública. Ele usa uma quadro bíblico consistente em que Deus é
série de palavras para denotar a oração (1), apresentado como ao mesmo tempo total-
mas não há grande diferença entre elas. mente soberano e distintamente pessoal.
Duas considerações que se destacam são Contrapor sua soberania à sua interação
a inclusão de ações de graças e o amplo pessoal conosco, portadores da sua ima-
escopo da questão em consideração. Paulo gem, é destruir o retrato bíblico de Deus.
não somente está desejoso de incluir a to- No contexto de 1Timóteo 2, Paulo está
dos, mas chama atenção especial aos que desejoso de ressaltar a compaixão divina
exercem autoridade (2). O que é signifi- para com todas as pessoas independente-
cativo é que Paulo não faz distinção entre mente de raça, posição ou condição so-
os governantes justos e os que não o são. cial. Ele provavelmente está combatendo
Ele considera que o cristão tem a respon- uma tendência ao elitismo que tenta li-
sabilidade de orar por aqueles cujos atos mitar inadequadamente a compaixão de
influenciam todos os cidadãos. Mas o pro- Deus. Não importa o que Paulo e outros
pósito da oração é que os cristãos vivam autores do NT digam sobre a eleição, cer-
vida tranquila e mansa, com toda piedade tamente fazia parte da pregação da igreja
e respeito (2). Há muitos casos, no entanto, primitiva a convicção de que Deus de-
em que o ambiente tem sido tudo menos seja que todos venham ao conhecimento
tranquilo mas em que, apesar disso, muita da verdade.
piedade tem sido demonstrada. Uma segunda afirmação de natureza
Há uma interjeição inesperada nos v. teológica segue imediatamente (5,6). A
3-7 em que Paulo faz uma afirmação teoló- primeira parte destaca a unicidade de Deus
gica. A conexão entre oração universal e a de forma tal que ganharia o apoio tanto de
1TIMÓTEO 2 1948

judeus quanto de cristãos. Mas a segunda Paulo considera primeiramente a ques-


afirmação é especificamente cristã ao cha- tão de vestimenta e enfeite (9,10). Parece
mar atenção para a função singularmente que algumas mulheres estavam atraindo
mediadora de Jesus Cristo. A ideia de me- muita atenção para si pela forma como se
diador não é proeminente em Paulo, mas vestiam. Levando em consideração a liber-
é ressaltada na carta aos Hebreus. Aqui é dade maior que as mulheres tinham como
associada à ideia de Jesus entregando-se a resultado do evangelho, sem dúvida havia
si mesmo como resgate (6), o que lembra necessidade de orientações acerca de como
as palavras de Jesus em Marcos 10.45. A elas deviam se apresentar. Paulo insiste na
metáfora do resgate é extraída do merca- modéstia, decência e propriedade, que são
do de escravos, onde um escravo obteria todas contra a extravagância. São dados
a sua liberdade se alguém pagasse o preço conselhos sobre detalhes práticos como
do resgate. Presumivelmente, os tempos arranjo do cabelo, uso de joias e vestuário.
oportunos a que se alude aqui é a "plenitu- Paulo não é contra qualquer dessas coisas,
de do tempo" de Gálatas 4.4. Quando Jesus mas sublinha o valor maior de uma vida
veio trazer salvação à humanidade, foi o piedosa. Em outras palavras, as boas obras
ponto de virada da história mundial. devem cativar mais a atenção dos olhos do
A referência de Paulo à sua designação que a aparência exterior.
como pregador (7) ecoa sua constante per- A segunda questão de que Paulo trata
cepção da comissão especial que ele rece- (11-15) tem gerado muito assunto de de-
bera. A referência adicional a sua posição bate, visto que alguns comentaristas argu-
como mestre dos gentios aponta para uma mentam que Paulo é anti mulher. Mas uma
forte convicção pessoal de seu lugar espe- compreensão atenta do que ele ensina não
cial nos planos de Deus. dá apoio a essa acusação. Se supusermos
Na frase final (8), Paulo volta ao tema que as mulheres, recém-emancipadas pela
da oração pública, chamando atenção para fé em Cristo, tinham começado a dominar
três condições importantes. Em primeiro os homens e estavam em perigo de levar à
lugar, o levantar de mãos santas sugere a igreja ao descrédito, o conselho de Paulo
aproximação com fé, sendo que a verdadei- se toma mais inteligível. As mulheres pre-
ra santidade só pode ser atingida por meio cisam primeiro aprender em silêncio, com
da justiça de Cristo. Em segundo lugar, a toda a submissão (11). Será que Paulo ti-
verdadeira oração não pode coexistir com nha experimentado interrupções desordei-
a ira. Em terceiro lugar, oração e animo- ras por parte de mulheres no culto públi-
sidade não andam juntas. A nossa atitude co? A proibição de mulheres ensinando a
para com os outros afeta nossa aproxima- homens (12) parece pertencer ao mesmo
ção de Deus. contexto, embora Paulo aqui apele mais ao
que é apropriado e cite a história da criação
2.9-15 Conselho para em Gênesis.
mulheres cristãs Dois fatos são destacados ~ a priori-
Visto que essa seção segue imediatamente dade de Adão e a fraqueza de Eva por ter
a da adoração pública, alguns comentaris- sido enganada. O primeiro (13) aponta
tas têm sugerido que a discussão sobre as para o ato criador de Deus ao formar o ho-
mulheres precisa ser considerada à luz da mem antes da mulher, embora Paulo não
seção anterior. Parece provável, contudo, se refira aqui ao fato de que Eva foi desig-
que Paulo esteja pensando no comporta- nada como ajudadora do homem e de for-
mento das mulheres num contexto mais ma nenhuma inferior a ele. De acordo com
amplo, mas a conexão com a seção ante- Gênesis, Eva foi a primeira a ser tentada e
rior não deve ser negligenciada. a cair (14), mas Adão não pode se absol-
1949 1TIMÓTE03

vido de toda responsabilidade. Aliás, em corremos o risco de nos tomar irrelevan-


Romanos 5 Paulo associa a introdução do tes para a vida moderna, se não ridículos.
pecado no mundo firmemente a Adão. Não Nossa tarefa é discernir cuidadosamente os
obstante, aqui ele vê algum significado no princípios bíblicos básicos que não mudam
papel que Eva teve na Queda e sugere que e aplicá-los de forma cuidadosa à nossa si-
de alguma forma todas as mulheres herda- tuação presente, levando em consideração
ram essa desvantagem. que é melhor, em última análise, parecer
É o v. 15, no entanto, que apresenta a ridículo do que ser desobediente aos pro-
maior dificuldade. Paulo transfere o seu pósitos amorosos de Deus.
pensamento de Eva para as mulheres em
geral. Mas o que ele quer dizer com as pa-
3.1-13 Exigências para
lavras [a mulher] será preservada através quem aspira posições de
de sua missão de mãe? Se não quer dizer liderança na igreja
nada mais que, apesar da parte de Eva na
Queda, a geração de filhos por parte das 3.1-7 Qualificações para bispos
mulheres não será desfavoravelmente afe- A função pastoral representada pela pala-
tada, isso já harmonizaria com o relato de vra traduzida por bispo aqui não deve ser
Gênesis. Mas o acréscimo das palavras se confundida com o bispado que surgiu pos-
ela permanecer em fé é desconcertante, teriormente, embora os bispos depois exer-
pois não se pode supor que mulheres cris- cessem a supervisão. A ideia de um cargo
tãs recebam promessa de segurança maior investido de autoridade como o que pode-
do que as outras mulheres. Outra possibi- mos observar depois, ao longo da história
lidade é que a geração de filhos se refira à cristã, não cabe no pensamento neotesta-
concepção especial ocorrida no nascimento mentário. Paulo estava escrevendo àqueles
de Cristo, e nesse caso Paulo está dizendo cuja tarefa era supervisionar, mas que não
que por meio de Cristo a salvação virá às possuíam autoridade independente. Não
mulheres. A dificuldade aqui é que as mu- há sugestão de que houvesse somente um
lheres não estão em posição diferente dos bispo em cada igreja e certamente nenhu-
homens no que tange à base de sua salva- ma sugestão de que um supervisor, como
ção, embora Paulo possa estar mencionan- ocorreu no caso de bispos posteriores,
do as mulheres aqui porque está refletindo supervisionasse diversas igrejas. Mas por
sobre a parte de Eva na Queda. que Paulo diz novamente que Fiel é esta
A associação de fé, amor e santificação palavra (l)? Visto que esse parece ter sido
é digna de nota, visto que apresenta um um dito conhecido em geral, ele provavel-
resumo conciso da vida cristã. Essas qua- mente estava usando-o aqui para sublinhar
lidades certamente não estão confinadas a importância do ofício da supervisão para
às mulheres. A aplicação dessas verdades o benefício daqueles que o estavam su-
bíblicas à vida de igreja hoje causa mui- bestimando. Paulo valoriza esse trabalho
tos debates. Se dizemos que Paulo estava como uma tarefa nobre.
culturalmente condicionado, assim que se Tal ofício necessita do tipo certo de
ele escrevesse hoje ressaltaria somente a pessoas. Precisamos lembrar que os pri-
igualdade dos sexos, tomamos a revelação meiros cristãos vinham de diversos con-
de Deus dependente de costumes transi- textos, e isso explica a natureza aparente-
tórios - que mudam de ano em ano. E mente elementar de algumas exigências,
quem pode dizer o que Paulo escreveria especialmente as negativas do v. 3. Há
se estivesse aqui hoje? Se, por outro lado, condições sobre a vida pessoal do candida-
insistimos numa aplicação precisa de cada to em potencial. Ele precisa ser temperan-
característica da prática do primeiro século, te, sóbrio, modesto ("respeitável", NVI) (2).
1TIMÓTEO 3 1950

Ele precisa ser irrepreensível. Devemos Diabo" (NVI) é provavelmente a melhor


esperar todas essas qualidades em qualquer maneira de interpretar a expressão que
cristão sério, mas especialmente em líderes lit. quer dizer: condenação do diabo, que
cristãos, pois qualquer pessoa cujas quali- possivelmente seria o juízo sofrido pelo
dades morais e espirituais não a recomen- diabo. A formulação da NVI deve ser pre-
darem aos seus contemporâneos não terá ferida aqui em virtude da ênfase no orgu-
grande influência como ministro cristão, e lho. Um recém-convertido numa posição
se tiver, é provável que seja negativa. exaltada pode ser tentado a cair no mesmo
Além disso, a vida doméstica do líder engano que o diabo.
é igualmente importante - ele precisa Outra exigência é um bom testemu-
ser esposo de uma só mulher (2) e deve nho dos de fora. Paulo conhece o perigo
ser alguém que governe bem a própria de apontar líderes a quem os seus con-
casa, criando os filhos sob disciplina (4). temporâneos não respeitem. Grande dano
A primeira dessas qualidades excluiria tem sido causado por aqueles cuja vida in-
qualquer bígamo, mas o melhor é inter- consistente tem sido vista e criticada pelo
pretarmos essas palavras como uma con- mundo não cristão. Mas o quer dizer o
dição de que o ministro precisa estabele- laço do diabo? Parece melhor interpretá-lo
cer um padrão elevado de relacionamento como a armadilha que o diabo prepara para
marital. Paulo não está tratando aqui do os que não vivem à altura do seu compro-
problema daqueles que eram polígamos misso cristão, e não a armadilha em que o
antes de se tomar cristãos. Mesmo assim, próprio diabo caiu, i.e., o orgulho.
é necessário que se reconheça que as po-
sições de responsabilidade na igreja cristã 3.8-13 Qualificações para diáconos
exigem pessoas cujo exemplo pode ser Paulo menciona os diáconos em associa-
seguido por outras pessoas. ção com bispos (no sentido aqui exposto
A segunda exigência - governar bem a de supervisores) em Filipenses 1.1, e está
própria casa ou família - é especialmente claro que os dois ofícios estavam proxi-
digna de nota visto que Paulo parece con- mamente ligados. Na verdade, a lista de
siderar a casa, de certa forma, uma tipifica- qualidades desejáveis afirmadas aqui é
ção da igreja (5). Casas desgovernadas não semelhante à dos bispos. Novamente, ser
oferecem o tipo certo de experiência de digno do respeito dos outros é de impor-
treinamento para governar a igreja. Esse é tância fundamental, bem como a sincerida-
um princípio que com demasiada frequen- de e os padrões morais gerais. Visto que os
cia se tem ignorado na hora da escolha de candidatos para as duas funções precisam
ministros em potencial. ser não inclinados a muito vinho, isso su-
Outras exigências são mencionadas gere que o consumo excessivo de vinho era
nos v. 6,7. Um neófito ("recém-converti- um problema entre as pessoas em Éfeso.
do", NVI) está fora de questão, por falta Mais importante é que os diáconos preci-
de experiência cristã. Salta aos olhos que sam ter fé sólida (9), um ponto ignorado
numa lista semelhante em Tito essa exi- com frequência no preenchimento de fun-
gência é omitida, presumivelmente por- ções cristãs menos significativas. O teste
que igreja era tão recente que teria sido (sejam [00'] experimentados) a que se alude
difícil aplicá-la. Sempre que possível é no v. 10 é presumivelmente feito pela as-
claramente indesejável dar demasiada sembleia cristã para se garantir que as qua-
responsabilidade a novos-convertidos até lidades necessárias estejam evidentes.
que sejam estabelecidos na fé. Paulo men- O v. 11 parece um interlúdio, e alguns
ciona especialmente o perigo da soberba. sugerem que aponta para uma ordem de
A "mesma condenação em que caiu o diaconisas. Embora tal ordem não seja
li
1951 1TIM6TE04.·
...
impossível, a referência primária prova- Há dúvidas sobre o início do hino visto
velmente é às esposas dos diáconos (NVI, que algumas variantes trazem "Deus" (v.
mg.). Estas precisam ser sérias no pensar NVI) em vez de Aquele que. A essência do
e cuidadosas no falar para que não preju- hino é claramente associada a Cristo em-
diquem o trabalho dos seus maridos. As bora ele não seja mencionado. Pode ser
exigências restantes para diáconos encon- que tenha havido uma alusão a ele numa
tram um paralelo próximo na seção sobre parte anterior do hino, agora perdida. A
bispos. Será que ajusta preeminência (13) primeira linha aponta para a encarnação.
significa estar à vista da comunidade cristã, Há também alguma discordância acerca
ou à vista dos de fora, ou à vista de Deus? do significado da segunda linha (foi justi-
A segunda opção parece a mais provável, ficado em espírito). Isso poderia ser uma
não no sentido de levar a uma promoção referência ao espírito de Jesus (e nesse
futura, mas no exercício da influência. Isso caso as palavras deveriam ser traduzidas
concorda melhor com a referência à intre- por "no espírito") e a afirmação apontaria
pidez da sua fé. então para a sua vindicação por Deus na
ressurreição. Isso proveria um bom parale-
3.14-16 A casa de Deus lo para a primeira linha. É menos provável
Aqui Paulo interrompe suas instruções di- que fale do Espírito Santo como o agente
retas para descrever a natureza da igreja, da vindicação.
colocando o seu ensino em perspectiva. É A terceira linha também é dificil.
altamente provável que Paulo já passara a Poderia ser entendida como referência à
essência dessas instruções a Timóteo, mas glorificação de Jesus, embora essa ideia
ele as registrou por escrito para dar base a apareça na sexta linha. Também poderia
Timóteo na sua ausência. O uso da metáfo- ser uma referência ao Cristo triunfante que
ra da casa para descrever a igreja ecoa o v. se apresenta aos anjos caídos, mas isso não
5 e explica por que Paulo está interessado encaixa bem no contexto. Não é imprová-
em que um líder na igreja governe bem a vel que a intenção era traçar um paralelo
sua família. Ele agora amplia a ilustração entre as linhas 3 e 6, e nesse caso a pri-
com a introdução de uma metáfora dupla: meira interpretação deveria ser preferida.
coluna e baluarte (15). Certamente, as linhas 4 e 5 andam juntas; a
Paulo não está atribuindo mais peso pregação entre os gentios e a fé no mundo
aqui à igreja do que à verdade. Se o sig- ambos se referem ao ministério apostólico
nificado é que a tarefa da igreja é dar tes- ilustrado em Atos. Tem sido sugerido que
temunho da verdade bem como combater a linha 5 poderia ser entendida como "no
os falsos mestres, a palavra traduzida por mundo todo", mas isso é menos provável.
baluarte ("fundamento", NVI) precisa ser A linha final - recebido na glória - po-
entendida com o sentido de uma proteção deria ser uma referência à ascensão, mas
que serve para defender a verdade. isso seria estranho depois da referência
A introdução aqui do que parece um à pregação. Talvez tudo que se tenciona
hino é inesperada. Mas resume o que Paulo seja terminar com a glória do Cristo que
descreve como o mistério da piedade (16). é pregado.
Ele usa a palavra mistério no sentido de
um segredo que agora foi revelado, mas 4.1-16 Ameaças iminentes
em nenhum outro lugar ele o associa à pie-
dade. À luz da sua ênfase no serviço, ele 4. 1-5 A natureza das ameaças
deve ter em mente os aspectos práticos da Há aqui mais uma predição acerca dos
piedade. Ele pressupõe que a grandeza do falsos mestres, que virão nos últimos tem-
mistério seja autoevidente. pos (i.e., depois do tempo do apóstolo).
HIMÓTEO 4 1952

Observamos primeiramente que o Espírito chamados a tratar de falsos ensinamentos,


é o revelador desses mestres (1). Ele traz à embora os conselhos aqui sejam de valor
memória o ensino de Jesus (cf Me 13.22). especial para lidar com erros semelhantes
Paulo tinha sido conduzido anteriormente aos que Paulo está enfrentando. Timóteo
pelo Espírito a contar com falsos mestres deve destacar aos irmãos cristãos o que
(cf 2Ts 2.1-12). Há uma conexão aqui Paulo acabou de dizer sobre a ameaça
com o hino recém citado no aspecto de que iminente (6). Para fazê-lo com eficácia,
o ensino falso colocará em cheque a sua Timóteo precisa recorrer ao seu conheci-
essência. Paulo associa o ensino contrário mento da verdade. (Sobre um eco disso ver
com espíritos enganadores e ensinos de 2Tm 3.15, em que seu treinamento inicial
demônios, e ressalta da forma mais clara é mencionado.) A isso precisa ser acresci-
possível o contraste entre o Espírito men- do o valor da instrução que ele recebeu do
cionado em 3.16 e 4.1 e a atividade satâni- apóstolo. Paulo pressupõe que Timóteo sa-
ca descrita imediatamente depois. berá lidar com os falsos mestres. Ele con-
Três coisas são ditas aqui sobre o falso sidera necessário advertir Timóteo a que
ensino (2,3). Em primeiro lugar, ele vem não desperdice o seu tempo com mitos e
por meio de agentes hipócritas. Eles estão fábulas que não se fundamentam na verda-
propagando a falsidade em vez da verdade, de (7). Claramente, Timóteo precisará de
embora a sugestão seja que eles pensam sabedoria para distinguir entre o que ele
que estão promovendo a verdade. A cons- precisa ressaltar e o que evitar. Paulo faz
ciência deles está tão calejada que eles pa- uma comparação entre exercícios físicos e
raram de ser capazes de distinguir entre as exercícios espirituais como comentário so-
duas. A segunda característica é a proibi- bre o treinamento na piedade (8). Embora
ção do casamento, e a terceira é a insistên- o valor daqueles seja reconhecido (estava
cia em certas restrições alimentares. Essas Timóteo propenso a negligenciá-los ou a
características eram comuns entre grupos exagerar neles?), eles são suplantados no
que ressaltavam o valor da abstinência seu valor pela piedade, que tem valor tanto
como meio de salvação. A resposta de futuro quanto presente.
Paulo a isso dá uma advertência concreta Surge um problema com a expressão
àqueles que refutam o propósito de Deus. Fiel é esta palavra no v. 9, pois não se sabe
O casamento é um decreto de Deus, e os com certeza se está associada ao v. 8 ou
alimentos foram providos pelo Criador. Os ao v. 10. O v. 10 contém a afirmação mais
crentes devem receber tudo com ações de teológica e poderia ter sido parte de um
graças (4). Isso está em harmonia com a provérbio. Por outro lado, alguns estudio-
exigência judaica de que antes de comer sos têm ressaltado que a segunda metade
deve haver a bênção. Qualquer ensino que do v. 8 tem a natureza de uma declaração
envolva uma visão mesquinha de Deus proverbial e que o v. 10 é na realidade um
deve ser rejeitado. Se a palavra de Deus desenvolvimento disso. Os dois verbos
e a oração no v. 5 se referem à oração de - labutamos e nos esforçamos - são am-
gratidão antes das refeições, a referência à bos verbos fortes e sugerem que a busca
palavra seria ao uso das Escrituras na ora- da piedade merece os melhores esforços.
ção de gratidão. Mas a alusão pode ser à Quando Paulo diz que Deus é o Salvador
palavra criadora de Deus em Gênesis 1. de todos os homens e aí destaca os crentes
(especialmente os fiéis), ele parece estar
4.6-16 Como Timóteo deve usando a palavra Salvador com o sentido
lidar com as ameaças tanto de preservação quanto de salvação
Os conselhos que Paulo dá a Timóteo têm espiritual. Em 2.3,4, Paulo ressalta o es-
relevância para todos os servos de Deus copo universal da salvação, mas aqui ele
1953 nlM6TEOS

focaliza a necessidade da fé para a sua importante era o próprio dom. Pode haver
realização. O tema da esperança em Deus uma sugestão aqui de que Timóteo não
é frequente nos escritos de Paulo. Aqui a estava fazendo o uso completo dos seus
base da esperança é o Deus vivo, o que é dons espirituais, mas visto que a palavra
encorajador visto que nele não há possibi- está no singular é melhor supor que o seu
lidade de mudança. dom de ministério estava particularmente
O restante da seção é dirigido direta- em consideração. A imposição de mãos
mente a Timóteo. Independentemente da sobre Saulo e Barnabé no início dos seus
sua personalidade, deve haver um tom de esforços missionários (At 13.1-3) fornece
autoridade no seu ensino (11). O anseio cla- o pano de fundo para a presente afirmação,
ro do apóstolo é que o ensino de Timóteo visto que também estava associada à pro-
transmita o mesmo tipo de autoridade que fecia e ao Espírito. Timóteo é lembrado da
o de Paulo mesmo. Mas ele reconhece que ocasião quando ele foi consagrado para o
pode haver problemas devido à mocida- ministério e é instado a se encorajar nesse
de de Timóteo (12). Mas a mocidade não evento (v. também 2Tm 1.6).
precisa ser empecilho se o comportamen- Nos v. 15,16, Paulo sugere maneiras
to inspirar confiança. Paulo dá orientação em que Timóteo pode desenvolver o dom
aqui em cinco áreas. mencionado no v. 14. Paulo ressalta aqui
A fala (palavra) é importante, mas pre- a sinceridade. A palavra traduzida por sê
cisa estar associada à vida (procedimen- diligente pode significar "meditar", mas o
to), ou seja, é necessária uma combinação significado mais comum é "praticar", o que
de palavras corretas com ações corretas. chama atenção para o valor da persistência,
Acrescente-se a essa combinação de qua- um eco da ideia do treinamento atlético ao
lidades exteriores as qualidades interiores qual o autor aludiu no v. 6. O ministro cris-
do amor, fé e pureza, e isso resume o pa- tão não escapa dos olhos do público, e todo
drão de uma vida cristã aceitável. o progresso que ele fizer (ou sua ausên-
O v. 13 recomenda três atividades pú- cia) será testemunhado. Paulo espera que
blicas. A "leitura pública da Escritura" (NVI) Timóteo faça verdadeiro progresso.
com vistas à instrução dos crentes, poucos O cuidado e a perseguição no v. 16 res-
dos quais tinham eram alfabetizados. Essa saltam novamente o mesmo ponto. Paulo
prática dava continuidade à prática da si- não está incentivando a introspecção, mas
nagoga, onde a leitura pública da Escritura a vigilância constante, tanto na vida quan-
formava uma parte importante do culto ju- to na doutrina. As duas coisas são inse-
daico. A palavra traduzida por exortação paráveis. A doutrina correta sem a vida
é traduzida de outras formas, como, e.g., piedosa não tem valor algum, enquanto a
"pregação do evangelho" (NTLH); o ensino vida piedosa sem a doutrina correta é im-
com grande probabilidade está associado à possível. Paulo está consciente do perigo
transmissão da doutrina cristã ("ensino cris- de negligenciar a sua própria salvação (cf
tão", NTLH). Todas essas três atividades são lCo 9.27). Se o ministro não se esforça
da maior relevância para o pastor cristão. em perseverar, é improvável que os ou-
Depois dessas recomendações positi- tros sejam influenciados por ele.
vas vem uma negativa: Não te faças ne-
gligente com o dom que há em ti (14). O 5.1-6.2 Instruções para
dom (charisma) é associado com a capa- diversas classes
citação de Timóteo pelo Espírito Santo no
momento em que foi separado para o servi- 5.1,2 Diversos grupos etários
ço. Mesmo que isso tivesse acontecido na Esboça-se aqui um princípio geral que se
hora da imposição de mãos, o aspecto mais aplica a pessoas de diversas faixas etárias.
lTIM6TEO 5 1954

Timóteo deve tratar as outras pessoas negativo sobre os crentes como um todo
como trata membros da sua própria fa- (7,8). O fato de cristãos não proverem o
mília. Esse princípio exclui a ideia de sustento para as suas próprias famílias tem
superioridade e promove uma abordagem consequências comprovadamente desas-
mais natural. O verbo "repreender" usado trosas - é a negação da fé e um exemplo
aqui é um termo forte que sugere censura, pior do que o dos incrédulos. Paulo não
e deve-se evitar esse procedimento com poderia ter expressado em termos mais
os homens idosos. Paulo acrescenta uma contundentes a importância da responsabi-
precaução em relação às mulheres mais lidade social dentro da família cristã.
jovens, em que é essencial a manutenção 5.9,10 Viúvas na obra cristã. Não
da pureza no relacionamento. está claro se havia uma ordem distinta de
viúvas que realizavam tarefas específicas,
5.3-16 Instruções sobre as viúvas mas a afirmação acerca de se inscrever viú-
5.3-8 Viúvas necessitadas. Paulo está vas com ao menos sessenta anos de idade
preocupado primeiramente com viúvas poderia sugeri-lo. O limite de idade é um
que não têm recursos para o seu sustento. tanto desconcertante, pois Paulo certa-
Numa época em que não havia previdên- mente não queria dizer que nenhuma vi-
cia social por parte do governo, a mitiga- úva com menos de sessenta teria direito à
ção da pobreza era um problema real, e ajuda da igreja. A inscrição deve ter ser-
Paulo reconheceu que os cristãos tinham vido para algum tipo de obra cristã espe-
responsabilidade por isso. Mas se uma vi- cífica. A experiência passada exigida é de
úva tivesse família para sustentá-la seria um tipo essencialmente prático. Refletia o
evidentemente um procedimento errado impacto social vital das mulheres cristãs
a igreja intervir. Na verdade, o apoio da na igreja primitiva.
família é agradável a Deus. A responsabi- 5.11-16 Viúvas mais novas. As viúvas
lidade social é vista como uma exigência mais novas apresentavam um problema di-
religiosa. O ensino aqui está em harmo- ferente por causa da possibilidade de um
nia com o quinto mandamento, que exige novo casamento. Esse fator as excluía da
que se honrem os pais. No v. 5, Paulo está lista oficial mencionada no v. 9. Não há su-
descrevendo uma viúva necessitada de um gestão alguma aqui de que qualquer viúva
tipo particularmente piedoso que está dis- mais nova que estivesse vivendo abaixo
posta a confiar em Deus. Essa descrição da linha da pobreza não teria direito a al-
sem dúvida tem o propósito de contrastar guma ajuda. Paulo parece estar pensando
de forma vívida com a viúva que se entrega naquelas que faziam ofertas para a obra
aos prazeres do v. 6. cristã (como parece sugerir "sua dedica-
Paulo sabia que havia viúvas que vi- ção a Cristo", v. 11, NVI), mas que estariam
viam para o prazer. Ele certamente não numa posição difícil se quisessem casar de
esperava que a igreja sustentasse esse tipo novo. Essa é a interpretação de primeira
de estilo de vida, particularmente se algum promessa no v. 12, ou seja, o seu compro-
elemento de imoralidade está associado às misso com algum tipo de obra cristã. Se
palavras. A ideia da expressão mesmo viva, elas abrissem mão disso para casar, esta-
está morta é paradoxal, mas o estar morto riam incorrendo em censura (são culpadas).
é espiritual. Timóteo deve dar instruções O duplo perigo da ociosidade e da fofoca
claras em tais questões para ajudar essas pode estar associado ao seu programa de
mulheres a evitar a culpa. Nessa questão visitação (13). Em outras palavras, não se
essencialmente prática Paulo não está preo- poderia confiar nelas, embora não esteja
cupado somente com o indivíduo, mas claro por que viúvas novas são destacadas
também com o impacto de um exemplo especialmente para essa advertência.
111
1955 HIMÓTEO 5-:
l1li

A orientação positiva às viúvas novas de recompensa pelo trabalho realizado, um


para que casem novamente e se dediquem princípio que nem sempre tem sido segui-
às responsabilidades domésticas (14) pode do na história da igreja cristã. Essa asso-
contradizer aparentemente a preferência de ciação de uma citação do AT com um dito
Paulo pelo estado solteiro (cf lCo 7.8,9), de Jesus é significativa visto que reflete a
mas devemos lembrar que essas viúvas elevada estima em que se tinha o ensino
estariam classificadas entre as que não de Jesus.
conseguiam exercer o autocontrole. Mais Mas Paulo reconhece que é necessário
uma vez, o interesse maior de Paulo aqui mais do que apoio financeiro. É preciso
é evitar a vergonha da igreja. A referência também manter um elevado padrão moral.
ao adversário (14) e a Satanás (15) apon- Mas deve-se tomar cuidado com qualquer
ta claramente para os resultados possíveis acusação (19,20). As duas ou três teste-
de as viúvas mais novas agirem de forma munhas servem para garantir algum tipo
não sábia. Satanás está sempre pronto para de proteção contra acusações falsas de
aproveitar as oportunidades de caluniar a indivíduos. Esse conselho segue a prática
obra de Deus. judaica normal. Nos casos em que hou-
Paulo afirma aqui novamente o que ele ver comportamento inadequado, precisa
já disse nos v. 4 e 8 com o sentido de que ser apresentado em público, i.e., diante de
os parentes devem ajudar as suas viúvas; toda a igreja. Paulo novamente mostra a
não é a igreja que precisa ser sobrecarre- sua preocupação pela reputação da igreja.
gada (14-16). A responsabilidade de ajudar A disciplina não serve apenas para o be-
viúvas na família não era deixada necessa- neficio do indivíduo, mas para servir de
riamente para as mulheres (como o v. 16 advertência para os outros.
poderia sugerir). Alguns escribas antigos
perceberam essa dificuldade e emendaram 5.21-25 Conselhos
o texto para incluir os homens. pessoais a Timóteo
A ordem no v. 1 é expressa de forma sur-
5.17-20 Presbíteros preendentemente incisiva. Por que tanta
Essa é a primeira menção de presbíteros seriedade? Talvez Timóteo não era muito
nessa carta. Às vezes são chamados de forte em fazer as coisas sem "parcialida-
"anciãos" (principalmente em versões de de" ou "favoritismo" (NVI). Talvez ele era
língua inglesa e alemã), mas está claro fraco demais para aceitar a orientação
com base no contexto que eles eram líderes dos v. 19,20. À luz de uma ordem seme-
da igreja e não simplesmente homens de lhantemente incisiva em 2Timóteo 4.1
idade avançada. O termo é suficientemen- (mas sem referência a anjos) podemos
te amplo para incluir tanto bispos quanto perguntar por que aqui são mencionados
diáconos, já mencionados em 3.1-13. A anjos. Possivelmente é uma alusão à cren-
expressão dobrados honorários (17) causa ça em que anjos vigiam as ações huma-
perplexidade. Parece que o autor tinha em nas (v., e.g., Mt 4.6, citando SI 91.11,12;
mente algum tipo de remuneração, e que Mt 18.10).
dobrados significava uma provisão gene- A advertência para não impor as mãos
rosa. Por outro lado, o uso da palavra "[du- precipitadamente (22) pode ser uma re-
plicada] honra" (ARe, NVI) pode sugerir que ferência à ordenação de presbíteros ou à
o autor tem em mente mais do que remu- reintegração no corpo dos que tiveram de
neração, e que o respeito, não somente o ser disciplinados. A segunda parte do ver-
salário, está incluído aqui. As citações (18; sículo sugere que os que impõem as mãos
uma de Dt 25.4 e outra paralela de Lc 10.7) sobre pessoas indignas compartilham da
têm a intenção de dar sustentação à ideia responsabilidade da indignidade delas.
HIMÓTE06 1956

o conselho pessoal a Timóteo para se escravos cristãos continuavam a servir sob


manter puro reforça esse aspecto, pois os seus senhores não cristãos, e se exigia
a pureza é requerida dos que impõem as deles que tratassem esses senhores como
mãos bem como daqueles sobre quem as dignos de toda honra. Como ocorre fre-
mãos são impostas. quentemente nessa carta, a preocupação
O conselho quanto à pureza é seguido aqui é manter tanto a homa do nome de
imediatamente do conselho a beber vinho Deus quanto a da doutrina cristã. Nesses
(23), e isso pode sugerir que Paulo tenha primórdios da igreja, qualquer ação ou
temido que Timóteo caísse na armadilha atitude que levasse as pessoas de fora a
das práticas ascéticas dos falsos mestres. pensar menos da igreja do que ela repre-
Também é possível que não haja conexão sentava tinha de ser evitada.
alguma entre esse versículo e o anterior. A Talvez fosse até mais difícil para os
referência a beber água talvez se deva ao escravos cristãos que tinham senhores
fato de que a enfermidade de Timóteo ti- cristãos atingir esse equilíbrio, visto que
vesse sido causada por água contaminada também eram irmãos e irmãs em Cristo.
ou talvez porque estava sob forte tensão. Mas Paulo sugere que nesses casos o
Não sabemos. Paulo não adverte a que escravo deve prestar um serviço melhor
não se tome água alguma e sugere o suple- ainda porque um irmão em Cristo se be-
mento de um pouco de vinho. A saúde de neficiará disso. Por outro lado, era possí-
Timóteo evidentemente não era resistente. vel que o escravo também se beneficiasse
Pode parecer que os v. 24,25 sejam dos resultados disso. Isso não serve para
continuação do v. 22. Paulo menciona dois negar o fato de que todo o sistema deveria
aspectos diferentes dos pecados. Alguns ter sido questionado, mas naqueles dias
pecados são facilmente identificáveis, e não era imediatamente praticável levar a
ninguém se surpreende pelo julgamento essa reviravolta.
subsequente deles. Outros são descritos
como os que só mais tarde se manifes- 6.3-5 Sobre falsos mestres
tam. Esses pecados talvez não sejam evi- Paulo não consegue esquecer o tópico dos
dentes imediatamente, mas mesmo assim que estão enganando os outros, e agora
serão revelados mais tarde. O juízo aqui volta ao tema. Ele pressupõe que haverá
mais provavelmente é o juízo de Deus e uma marca divisória clara entre o que é
não o juízo de Timóteo e de outros. A con- falso (outra doutrina) e o que é sadio (sãs
traposição de boas obras a pecados tem palavras). Isso é saudável em qualquer
o propósito de ressaltar a necessidade de época em que tenha havido um embaça-
cuidado na avaliação tanto de boas obras mento da doutrina cristã. Em Paulo não há
quanto de pecados. espaço para concessões. Sua descrição dos
falsos mestres é específica - eles são or-
6.1-21 Instruções diversas gulhosos, falta-lhes o conhecimento, eles
têm um interesse doentio por controvérsias
6.1,2 Sobre escravos e senhores e são profundamente maus nas suas pala-
Na história do início da igreja havia mui- vras e atitudes (4). Ele não poderia ter sido
tos escravos cristãos e alguns senhores de mais devastador. O que ele diz ilustra um
escravos cristãos nas igrejas locais, e era princípio universal - que mestres sem o
essencial que relacionamentos corretos e conhecimento adequado ou o calibre moral
adequados fossem estabelecidos e manti- necessário dificilmente manterão a sã dou-
dos nos casos em que escravos e senho- trina. Além disso, sempre que a piedade é
res estavam em pé de igualdade dentro da vista como um meio de lucro financeiro,
comunidade cristã. Por um lado, alguns nunca conduzirá à verdade. Mas a questão
1957 HIMÓTE06<

do ganho financeiro é um tema por si só, e riquezas, e assim por diante. É significa-
Paulo trata dele logo em seguida. tivo que Paulo fale dos afetados por isso
como os que se atormentaram com mui-
6.6-10 Sobre o dinheiro tas dores. O uso do verbo na voz reflexiva
O elemento importante no v. 6 é o conten- mostra os resultados inevitáveis de se amar
tamento. A piedade em si traz grande sa- a coisa errada.
tisfação. O evangelho cristão fornece uma
base adequada para o contentamento. Isso 6.11-16 Sobre buscar
formula a ideia do lucro em termos espiri- as coisas certas
tuais e fornece uma introdução apropriada Aqui está a ordem séria para o próprio
à discussão sobre o dinheiro. A referência Timóteo. Há um lado negativo e outro
a alimentos e roupa (8) ecoa as palavras de positivo (11). A fuga destas coisas, embo-
Jesus em Mateus 6.25-34 num trecho que ra primeiramente uma referência à busca
trata das preocupações da vida, a antítese das riquezas, provavelmente inclui todas
do contentamento. As posses materiais são as advertências anteriores quanto ao que
consideradas pelo que realmente são, bas- se deve evitar. O lado positivo é expres-
tando para isso lembrar a sua irrelevância so em termos espirituais. As seis palavras
ou na entrada ou na saída deste mundo (7). do v. 11 resumem o caráter do cristão do
Há um paralelo aqui de Jó 1.21. qual Timóteo deve ser exemplo. Paulo
A busca das riquezas traz consigo a acrescenta a isso mais um apelo positivo
tentação, a cilada e muitas concupiscên- ~ a vida cristã inclui um combate (12).
cias insensatas (9; "desejos descontrola- Quando Paulo insta Timóteo a que tome
dos", NVI). Considerado do ponto de vista posse da vida eterna, para a qual também
da morte, todo o processo de busca das foste chamado ele está pensando mais no
riquezas parece tolo. As consequências de desfrutar final dessa vida eterna do que na
ruína e perdição (i.e., perdas irreversíveis) sua aceitação inicial.
mostram a futilidade da busca das riquezas Talvez seja surpresa encontrar uma re-
por si só. Quando Paulo descreve o amor ferência a Pôncio Pilatos no v. 13, mas o
do dinheiro como a raiz de todos os males evento histórico do julgamento de Jesus
(10) é importante estabelecer uma distin- fornece o melhor exemplo do tipo de
ção entre o dinheiro em si e o amor por boa confissão que Paulo deseja ver em
ele. Como ferramenta não há nada de er- Timóteo. O fato de que ele lhe dá uma or-
rado com o dinheiro, mas quando se toma dem (Exorto-te) mostra a seriedade com
o objeto de desejo superior a tudo aí leva que ele considera a questão do comporta-
ao mal. Não há sugestão aqui de que o mento de Timóteo. O mandato deu origem
amor ao dinheiro é a única causa do mal a diversas sugestões. Alguns o consideram
~ nem mesmo a principal. O interesse de uma referência a algum tipo de ordem ba-
Paulo aqui é ressaltar os riscos espirituais tismal ou de consagração, mas isso não
incluídos na avidez pelo dinheiro. É isso harmoniza com o contexto. Pode ser uma
que ele quer dizer com desviar-se da fé. referência ao conselho dos v. 11,12 ou a
Paulo quer que vejamos, no entanto, que todo o conselho de Paulo a Timóteo nessa
sempre que ocorre algum tipo de mal, o di- carta. A referência aqui à manifestação de
nheiro facilmente se mistura a ele. O sexo nosso Senhor Jesus Cristo (14) fornece um
ilícito se toma o negócio da prostituição; aspecto futuro da afirmação precedente.
o problema do abuso de drogas é tão for- A ideia de esse mandato ser imaculado,
temente intensificado pelo dinheiro quanto irrepreensível na vinda do Senhor encon-
o é pela dependência; o amor pelo poder tra outros paralelos nas cartas de Paulo (cf
está inevitavelmente ligado ao manejo das lCo 1.8; Fp 2.15,16; lTs 3.13; 5.23).
1TIMÓTE06 1958

A inserção de uma doxologia nesse que as pessoas não devam desfrutar do que
ponto (15,16) é típica de Paulo. Mas há Deus deu. Mas o reconhecimento de que
características aqui que são incomuns. tudo vem de Deus é uma boa forma de
O uso da palavra bendito não ocorre lidar com os perigos. As exigências posi-
nas cartas de Paulo fora das Pastorais. tivas das pessoas ricas são claras: precisa
Na verdade, a doxologia como um todo haver bondade e generosidade, qualidades
soa como um hino cristão que Paulo que geralmente andam de mãos dadas.
está citando. A descrição de Deus como A afirmação do v. 19 lembra o ensino
único Soberano é inesperada visto que a de Jesus em Mateus 6.20. Temos aqui a
palavra Soberano geralmente se aplica combinação de metáforas entre os tesou-
a príncipes ou reis, mas aqui claramente ros e um bom fundamento. Mas o contras-
tem um significado singular como mos- te está claro entre a vida sustentada pelos
tra a palavra único. Visto que Rei dos recursos materiais e a verdadeira vida que
reis e Senhor dos senhores ocorre em continuará na era por vir.
Apocalipse 17.14 e 19.16, pode ter sido
uma expressão cristã muito conhecida. 6.20,21 Palavras finais a Timóteo
Há paralelos dela no AT (cf Dt 10.17; Timóteo já recebeu a ordem de guardar o
SI 136.3). O uso da palavra imortalida- que lhe foi confiado. Paulo evidentemen-
de com referência a Deus já apareceu em te pensa que esse aspecto é tão importan-
1.17. Está Paulo sugerindo que ninguém te que ele precisa reforçá-lo. Novamente
mais tem imortalidade? Ele parece querer adverte-o a que não se envolva com os
dizer que Deus somente é inerentemen- falsos ensinamentos. A expressão "do que
te imortal, enquanto toda a imortalidade é falsamente chamado conhecimento"
restante é derivada. A ideia de Deus ha- (NVI) talvez seja um eco da reivindicação
bitando em luz inacessível provavelmente de "conhecimento" especial, por parte
é derivada de Salmos 104.2, mas Paulo dos mestres, semelhante à dos gnósticos
pode ter tido em mente a descrição vívi- posteriores. A expressão traduzida por as
da da glória de Deus em Êxodo 33.17-23, contradições do saber foi usada mais tar-
pois Moisés recebeu a informação de que de pelo herege Marcião para descrever o
não poderia ver a Deus. A combinação de seu ensino. Mas sem dúvida já foi usada
honra e poder numa doxologia também de forma semelhante numa época ante-
pode ser encontrada em Apocalipse 5.13. rior, e certamente os falsos ensinamentos
a que alude Colossenses mostram que
6.17-19 Sobre as riquezas ensinamentos semelhantes eram corren-
novamente tes no tempo de vida de Paulo. O fato de
A seção anterior tratou dos que queriam fi- que Paulo descreve os falsos ensinamentos
car ricos, mas esta se concentra nos que já como o desviar-se da fé mostra que são um
são ricos. Paulo aponta para dois perigos: caminho errado. Chama a atenção o fato
arrogância e dependência do dinheiro. Os de que a saudação de despedida está no
que têm posses materiais muito facilmen- plural: A graça seja convosco, o que pode
te acham que o dinheiro é a segurança de sugerir que mais pessoas além de Timóteo
tudo, e a verdadeira esperança em Deus é estavam incluídas. Mas há ocorrências do
descartada. Não há sugestão aqui de que uso do plural na saudação a indivíduos
as riquezas em si mesmas corrompem ou nessa época.
2TIMÓTEO

ESBOÇO
1.1-18 Encorajamento à fidelidade
1.1,2 Saudação
1.3-5 Ações de graças
1.6-10 Desenvolvendo o dom
1.11,12 O testemunho pessoal de Paulo
1.13,14 Uma ordem a Timóteo
1.15-18 Paulo e diversos cooperadores

2.1-26 Conselho especial a Timóteo


2.1-13 Um apelo a Timóteo
2.14-26 Tornando-se um obreiro aprovado

3.1-17 Predições e ordens


3.1-9 Predições acerca dos últimos dias
3.10-17 Mais ordens a Timóteo

4.1-22 Paulo se despede de Timóteo


4.1-5 Uma ordem final
4.6-8 Um testemunho pessoal
4.9-18 Observações pessoais
4.19-22 Saudações finais

1.1-18 Encorajamento à fidelidade ações de graças, só nesta das Cartas Pas-


torais é que Paulo o faz. Sua menção aos
1.1,2 Saudação seus antepassados mostra a importância
Há uma pequena diferença entre a abertura que ele atribui à herança judaica por meio
dessa carta e a de 1Timóteo. Aqui Paulo da qual veio a fé cristã. É típico por parte
se refere ao seu apostolado como pela do apóstolo encorajar os seus leitores aos
vontade de Deus, um fato que ele não se lhes contar de suas orações constantes por
cansa de repetir. Quando ele acrescenta: eles. Pode parecer um tanto exagerado da
de conformidade com a promessa da vida, parte dele afirmar que faz isso noite e dia,
as palavras têm significado duplo, referin- mas veja em Atos 20.31 uma afirmação
do-se a uma esperança futura bem como à todo-inclusiva semelhante. A sua oração
realidade presente. A descrição de Timóteo contém uma lembrança das lágrimas de
como amado filho acrescenta um tom de Timóteo e também da sua fé sem fingimen-
proximidade pessoal. to. Essas lágrimas de Timóteo são testemu-
nhas do seu forte apego ao apóstolo, que
1.3-5 Ações de graças é claramente retribuído pelo próprio Paulo.
Embora fosse normal nas cartas incluir Um reencontro é altamente desejável. Nos
2TIMÓTEO 1 1960

relacionamentos em que as emoções são temas - o poder de Deus, salvação, vida


fortes, lágrimas e alegria conseguem con- santa, o propósito e a graça de Deus. A
viver bem. expressão não segundo as nossas obras é
Paulo evidentemente conhecia a mãe e característica da percepção que Paulo tem
a avó de Timóteo, pois sabia da fé que elas de que a salvação é pela graça. Timóteo
professavam (5). Embora não seja impossí- é lembrado de que sofrer na causa de tal
vel que essa seja uma referência à fé judai- verdade é algo que deve ser esperado, mas
ca, faz mais sentido no contexto se é a fé acontecerá segundo o poder de Deus e não
cristã que o autor tem em mente. Podemos pelas próprias forças.
concluir no mínimo de 3.14 que o contex- Paulo desenvolve a ideia da graça
to familiar de Timóteo não era só devoto (9,10). Ela está centrada em Cristo Jesus;
mas bem conduzido pela compreensão das é de origem antiga (antes dos tempos eter-
Escrituras. Mesmo assim, Paulo está con- nos); ela é revelada por meio do Cristo en-
victo de que Timóteo não deveria confiar carnado que destruiu a morte. Paulo está
na fé dos pais, mas exercer fé própria. certo de que tudo isso aconteceu não por
esforços humanos, mas pelo favor gratuito
1.6-10 Desenvolvendo o dom de Deus. O seu conceito do evangelho está
Embora Paulo use uma metáfora extraída fundado na provisão divina de vida e imor-
das brasas de um fogo que está apagando talidade. Essas provisões maravilhosas de
e precisam ser sopradas para encorajar Deus se tomaram evidentes pelo evange-
Timóteo a desenvolver o seu dom, não po- lho, que lançou luz sobre elas.
demos concluir disso que a fé em Timóteo
estava apagando. Paulo pode ter pensado 1.11,12 O testemunho
que ele precisava de estímulo para fazer pessoal de Paulo
completo uso do dom recebido quando foi Por que Paulo deveria lembrar Timóteo da
consagrado ao ministério. Esse dom foi sua incumbência de pregar o evangelho?
claramente associado ao Espírito Santo, Ele também a mencionou em 1Timóteo
como mostra o v. 14, e, portanto, era mais 2.7. Pode ser que o lembrete tenha a in-
que um dom natural. É digno de nota que tenção de encorajar a Timóteo. Se o gran-
mesmo com o dom do Espírito alguma coo- de apóstolo, com a sua percepção clara
peração humana é necessária se a chama de missão, foi mesmo assim chamado a
deve ser aumentada. Que Timóteo tinha sofrer, Timóteo não deve se surpreender
uma natureza tímida parece claro com base que o mesmo lhe aconteça. O v. 12 é uma
no v. 7, ao passo que o Espírito traz po- grande declaração que já se mostrou inspi-
der, amor e moderação ("equilíbrio"). O radora a muitas pessoas. Tendo estimulado
Espírito não transforma um homem tími- a Timóteo no v. 8 a não se envergonhar,
do numa personalidade poderosa, mas ele Paulo agora afirma que ele mesmo não se
provê os recursos para cada situação. envergonha do seu sofrimento. Ele sobre-
A seção seguinte (8-10) mostra um pou- vive pela convicção de que Deus é podero-
co da aplicação da última seção. A timidez so para guardar o que Paulo lhe confiou. A
é capaz de fomentar a vergonha, e Paulo sua convicção aqui está fundamentada no
adverte contra isso. O apelo a Timóteo que seu conhecimento pessoal de Deus. Paulo
se junte a ele nos sofrimentos [...] a favor não dá espaço para a falta de segurança.
do evangelho é um lembrete pungente de Sua convicção aqui significa praticamente
que Paulo estava preso quando escreveu uma certeza.
essa carta. A mera menção ao evangelho Mas o que é esse depósito que Paulo
leva o apóstolo a refletir sobre o poder e confiou a Deus? O grego de fato fala de
a salvação de Deus. Ele conecta diversos depósito. Alguns consideram que isso está
1961 2TIMÓTE02

associado ao que Deus confiou a Paulo, Onesíforo tinha sido muito mais en-
i.e., o seu comissionamento ou sua dou- corajador. Paulo fala dele no tempo pas-
trina, e isso estaria em concordância com sado, e não está claro se ele ainda estava
o uso da mesma palavra no v. 14. Mas o por perto, visto que a referência é à casa
texto anterior fará melhor sentido se se de Onesiforo. Mas não há necessidade de
considerar o "depósito" de Paulo algo que separar Onesíforo da sua casa. Paulo men-
Paulo está confiando a Deus, i.e., a si mes- ciona diversas formas em que esse homem
mo e o sucesso e continuação da sua mis- o ajudou, e menciona especialmente que
são, na verdade tudo que lhe é precioso. As não se envergonhou das algemas de Paulo
palavras até aquele Dia precisam ser uma e até o tinha procurado solicitamente em
referência ao dia em que Paulo sabe que Roma. Duas vezes Paulo ora por miseri-
terá de prestar contas da sua mordomia. córdia por ele (16,18), e na segunda vez
Ele estava vivendo e trabalhando com vis- associa a oração àquele Dia, que necessa-
tas ao dia final de prestação de contas, mas riamente é uma referência ao dia do juízo
sabia que podia confiar o resultado a Deus. de Cristo. À vista da referência à ajuda de
Isso deveria transmitir verdadeiro encora- Onesíforo em Éfeso, pode parecer que ele
jamento a Timóteo. era assistente constante do apóstolo.

1.13, 14 Uma ordem a Timóteo 2.1-26 Conselho


Paulo ainda está ciente da ameaça dos especial a Timóteo
falsos mestres e quer dar apoio a Timóteo
para combatê-la. A coisa mais urgente a 2.1-13 Um apelo a Timóteo
fazer é [manter] o padrão das sãs pala- 2.1-7 O chamado a ser forte. Em certo
vras, padrão definido como das palavras sentido, Timóteo serve como contraste
que de mim ouviste. Paulo não precisa acentuado com aqueles que desertaram o
estar sugerindo com isso que basta sim- apóstolo. A ideia de ser forte ocorre em
plesmente passar adiante o seu próprio Efésios 6.10. Em vista da oposição ao
ensino, pois ele deixa claro em outro evangelho, uma abordagem forte é sempre
texto que esse ensino foi passado a ele necessária. Mas essa força está na graça
(cf 1Co 15.3). A tarefa de Timóteo é que está em Cristo Jesus, que quer di-
"guardar" o depósito no sentido de man- zer: com o apoio do favor imerecido, não
tê-lo em segurança. Paulo sabe muito com a confiança da capacidade natural.
bem que só se consegue isso por meio Não está claro o que Paulo tem em mente
da ajuda do Espírito, que é o verdadeiro quando menciona as muitas testemunhas.
guardião da verdade. Alguns enxergam nisso uma referência
às testemunhas da ordenação de Timóteo,
1.15-18 Paulo e diversos mas a tradução "na presença de muitas
cooperadores testemunhas" (NVI) não é a compreensão
Sua confiança em Timóteo lembra o após- mais natural da preposição usada aqui no
tolo da sua experiência com alguns outros grego. É mais provável que a referência
cooperadores, e alguns deles não tinham seja às muitas testemunhas que poderiam
se provado tão confiáveis. Ele pressupõe testificar o tipo de ensino que Paulo tinha
que Timóteo esteja ciente de que todos dado a Timóteo (através de muitas teste-
os da Asia o abandonaram. Essa deser- munhas). A instrução de confiar o ensino
ção tão ampla deve ter sido traumática a outros mestres é importante para a nossa
para Paulo. A menção especial a Figelo e compreensão do desenvolvimento da igre-
Hermógenes (15) pode sugerir que esses ja primitiva. Homens especialmente esco-
eram os cabeças. lhidos que tinham as duas qualidades da
2TIMÓTEü2 1962

fidelidade e da habilidade de ensinar deve- sa dos eleitos, ele considera o seu próprio
riam ser separados para a tarefa de passar sofrimento contra o pano de fundo da-
adiante o ensino. Paulo entendia que essa queles que viriam a crer em Cristo como
tarefa tão importante deveria ser ordenada resultado da pregação do evangelho.
adequadamente. Talvez a sua referência à salvação que
As três ilustrações que seguem (3-6) está em Cristo Jesus tenha o propósito de
foram designadas para encorajar a Timó- distingui-la do tipo de salvação ofereci-
teo a perseverar mesmo que a tarefa fosse da pelos falsos mestres. As palavras em
difícil. A metáfora militar mostra a res- Cristo Jesus não somente definem essa
ponsabilidade de se perseguir somente salvação como cristã, mas também mos-
um propósito; a metáfora do atletismo, a tram que é a possessão de todos os que
necessidade de se obedecer às regras; e a estão em Cristo. Observe que em outros
da lavoura, a certeza de alguma recom- textos Paulo associa a salvação à glória
pensa pelo trabalho duro realizado. Todas (cf 2Ts 2.13,14).
as três metáforas, extraídas da vida coti- 2.11-13 Fiel é esta palavra. Está claro
diana, complementam-se umas às outras. que o dito (palavra) citado aqui consis-
Paulo estimula a reflexão sobre essas coi- te nos versículos que seguem, visto que
sas porque a experiência lançaria mais luz esses versículos estão em forma rítmica.
sobre elas, na proporção em que o Senhor Eles soam como parte de um hino cris-
desse mais compreensão delas (7). As pa- tão (cf lTm 3.16 e 6.16,17). Mas qual é
lavras seguintes sugerem que Paulo está a conexão entre esse hino e os versículos
falando aqui de sua própria experiência. precedentes? A conexão provavelmente
Esse trecho de quase dois mil anos não está na ideia da glória futura. As quatro
embotou a apropriabilidade desses para- seções do hino falam de um futuro que
lelos do cotidiano. recompensará os sofrimentos presentes.
2.S-10 Reflexões sobre o sofrimento O "morrer com ele" lembra Romanos
pelo evangelho. No v. 8, Paulo apresenta 6.8, que usa a expressão do batismo. A
um resumo muito breve do seu evange- conexão entre morrer e viver representa
lho. Ele consiste em três elementos: Jesus a identificação do cristão com a morte e a
era o Cristo, o ungido de Deus, o Messias; ressurreição de Cristo.
ele foi ressuscitado de entre os mortos A segunda afirmação acerca da perse-
(uma afirmação que naturalmente inclui a verança conecta com o v. 10 e traz a certe-
morte dele); ele era descendente de Davi. za da vitória futura. A ideia é exatamente
O único outro trecho em que Paulo men- paralela a Romanos 8.17. A advertência
ciona esse fato é Romanos 1.3. Pode ter acerca de negá-lo e ser negado por ele ecoa
sido incluído aqui para chamar atenção a advertência de Jesus em Marcos 10.33.
ao cumprimento das promessas de Deus. A afirmação final, contudo, é encorajado-
Como afirmação isolada, ela seria inade- ra. A fidelidade de Cristo não depende da
quada como um resumo do evangelho, nossa fidelidade, porque ele não consegue
mas Timóteo certamente seria capaz de agir de maneira contrária à sua natureza.
preencher as lacunas. Esse hino, por conseguinte, termina num
Paulo contrasta as suas próprias alge- tom otimista, baseado no caráter de Cristo.
mas com a natureza não algemada da Se, como sugerido acima, esse trecho fazia
palavra de Deus (9). Com isso ele certa- parte de um hino mais completo, não po-
mente quer dizer que apesar de ele estar demos adivinhar o conteúdo da parte que
em cadeias, o evangelho mesmo assim falta. Mas Paulo se contentou em citar essa
será pregado por outros. Quando no v. 10 parte que serviu ao seu propósito imediato
Paulo diz que suporta tudo isso por cau- de encorajamento a Timóteo.
1963 2TIM6TE02(

2. 14-26 Tornando-se um como um todo, a igreja em Éfeso em parti-


obreiro aprovado cular, ou toda a verdade de Deus, incluindo
A expressão estas coisas no v. 14 deve refe- a sua obra salvífica? A terceira opção deve
rir-se a mais do que a verdade do hino nos ser preferida, embora em outros trechos
v. 11-13. Incluía todo o ensino que Paulo Paulo use a metáfora em relação à igreja.
passou a Timóteo nessa carta. Que Paulo Parece que os registros mencionados no
considera essa ordem com muita serieda- v. 19 são de Números 16.5,26, embora o
de fica claro nas palavras perante Deus. O segundo não seja uma citação precisa e po-
apóstolo está profundamente ciente de que deria vir de Isaías 52.11. O selo é usado
discussões sobre palavras são um desper- por Paulo em outra parte como sinal de que
dício de tempo e queria advertir Timóteo algo é verdadeiro (cf Rm 4.11; lCo 9.2).
contra elas. Nem sempre fica evidente que A ilustração nos v. 20,21 continua a me-
debates triviais são prejudiciais, mas Paulo táfora da construção do v. 19. Mas Paulo
usa uma palavra intensa aqui (corrói), que agora se concentra nos utensílios usados
ressalta o efeito desastroso sobre os outros. numa casa grande. Os diversos materiais de
O v. 15 é uma pérola de orientação positi- que são feitos representam diversos propó-
va à pessoa segundo o coração de Deus. O sitos, alguns "honrosos" (NVI), outros "de-
alvo é produzir um obreiro aprovado (i.e., sonrosos" (NVI). A aplicação aqui é um tanto
aprovado por Deus). Isso requer esforços confusa, porque os utensílios de madeira
- contudo, ninguém consegue fazer mais são tão necessários quanto os de ouro e na
do que o seu melhor. Há duas exigências: realidade são mais usados. Mas Paulo pen-
uma abordagem que não tem de que se en- sa nos obreiros cristãos como preciosos aos
vergonhar e o manejo correto da palavra olhos de Deus. Mas o que Paulo quer dizer
da verdade. Este reforçará aquela. O verbo com purificação de uso desonroso? Talvez
grego traduzido por maneja bem na ver- a melhor explicação seja que Paulo ainda
dade significa fazer (cortar) uma estrada estivesse pensando em Himeneu e Fileto
reta e sugere a exegese clara e direta. Esse (cf lCo 5.7 para um uso paralelo do ver-
precisa ser o alvo de todos os verdadeiros bo significando purificar ou limpar). Aqui
mestres da palavra. "Ler para dentro do Paulo olha para a situação de forma positi-
texto" o que claramente não está ali não va. Observe as descrições santificado, útil e
serve a ninguém, mas é deprimentemente preparado, que mostram as características
comum. de um utensílio para honra. Paulo clara-
A ideia da compreensão correta da pa- mente tem o ministério em alta estima.
lavra leva Paulo a refletir novamente sobre O último parágrafo dessa seção (22-26)
os que se desviam dela (16-19). Os amea- destaca a natureza geral do comportamen-
çadores ensinamentos alternativos, descri- to do servo de Deus. Novamente o aspecto
tos como inúteis e profanos e comparados negativo (Foge [...] das paixões da moci-
ao câncer nos seus efeitos, precisam ser dade, repele as questões insensatas) está
evitados. O exemplo de Himeneu e Fileto associado ao positivo (Segue a justiça e ou-
é citado, e o cerne do seu erro é afirmado: a tras virtudes). Paulo já traçou um contraste
ressurreição já se realizou. Esse exemplo semelhante em 1Timóteo 6.11. Aqui ele ex-
é digno de nota como um caso de falso en- pressa um aspecto corporativo dos que de
sinamento específico citado nas Pastorais. coração puro, invocam o Senhor, i.e., to-
Apesar dos efeitos danosos desse tipo de dos que professam ser cristãos. Novamente
ensinamento, Paulo destaca a verdade po- Paulo adverte contra as discussões (24), e
sitiva de que o firme fundamento de Deus novamente acrescenta um conselho positi-
permanece. Surge uma pergunta sobre a vo que inclui atitudes (bondade e não res-
identidade do fundamento. Seria a igreja sentimentos) e habilidade (dom de ensino).
2TIMÓTEO 3 1964

Uma abordagem branda é recomendada O contraste entre as primeiras e as últimas


para com os que se opõem, a fim de que se palavras da lista ressalta de forma vívida
gere um resultado positivo. Paulo sabe que a diferença entre o amor a si mesmo e o
a brandura não pode produzir o arrependi- amor a Deus. Essa lista mostra, na verda-
mento, mas que Deus pode concedê-lo se de, as consequências desastrosas do auto-
se adotar uma atitude conciliatória. Ele ex- centrismo. Há diversas palavras aqui que
pressa o resultado desejado de forma posi- apontam para a arrogância: jactanciosos
tiva (conduzi-los a conhecerem plenamente [...] blasfemadores [...] atrevidos, [...] en-
a verdade) e também de forma negativa fatuados. A pior característica é que essas
(escapar dos laços do diabo). pessoas reivindicam algum tipo de forma
A afirmação final (26) já gerou muitos de piedade, pretendendo ser religiosas mas
debates. O grego não está claro porque não tendo intenção alguma de colocar as
dois pronomes diferentes são usados sig- suas convicções em prática. A mera forma
nificando "ele" e "sua". Se não houvesse sem o poder é altamente prejudicial. Não
uma distinção intencional, ambos seriam é de admirar que Paulo advirta Timóteo a
referências ao diabo. Mas outra interpreta- que fuja deles (5). Isso mostra que ele está
ção é possível no sentido de que "sua von- pensando num problema iminente.
tade" pode ser uma referência à vontade de 6,7 Depois dessa lista Paulo comenta
Deus, que também é visto como aquele que outras características que precisarão ser
capturou os que fogem do diabo. Mas essa notadas. Os métodos desses falsos mestres
interpretação é difícil porque sugere que os são traiçoeiros como mostra a expressão
que escapam de uma armadilha caem em espantosa: penetram sorrateiramente nas
outra. A terceira possibilidade é interpretar casas. Além disso, a sua escolha de pes-
a palavra no sentido de ser levado cativo soas ingênuas como receptores é caracte-
pelo diabo para fazer a vontade de Deus, rística da maioria dos falsos mestres. Aqui
assim distinguindo os pronomes. Mas essa "mulheres instáveis" (NVI) são ressaltadas,
ideia parece estranha, e a primeira inter- e essas mulherinhas (ARA) estão sobrecar-
pretação é preferível. regadas de pecados. Isso sugere que as
mulheres referidas estavam tão abaladas
3.1-17 Predições e ordens na sua consciência que elas pediriam ajuda
a qualquer pessoa, embora claramente não
3. 1-9 Predições acerca fossem motivadas pelo bem. Essas mulhe-
dos últimos dias res parecem ter tido um desejo pelo conhe-
1-4 Paulo menciona com certa frequencia cimento, mas eram incapazes de chegar à
os últimos dias, com o que ele parece que- verdade. Pode-se supor que elas estavam
rer dizer o tempo imediatamente anterior buscando experiências que produzissem
à consumação desta era. Mas em outros sensações. Os falsos mestres não são ca-
trechos do NT, os últimos dias represen- pazes eles mesmos de transmitir o conhe-
tam o início da era cristã (v. At 2.17-21; cimento da verdade, visto que são defi-
Hb 1.1). Há claramente uma conexão entre cientes na sua própria compreensão dela.
o presente e o futuro porque embora nes- O quadro que Paulo pinta aqui é relevante
se trecho Paulo fale dos falsos mestres no em qualquer época em que falsos mestres
futuro, anteriormente ele se referiu a eles estejam operando.
no presente. Ele está muito preocupado 8,9 A referência a Janes é Jambres
com a degeneração moral que se instala (8) é interessante visto que eles não são
como consequência do falso ensino. Na mencionados em nenhum outro lugar da
lista que aparece nos v. 2-4, há uma mis- Bíblia, embora ocorram no Targum de
tura de ações erradas com atitudes erradas. J ônatas em Êxodo 7 .11. (Os targuns eram
11
1965 2TIM6TEO 3 ri'
11I11I

interpretações da Bíblia Hebraica, escri- evangelho. Quando Paulo diz: De todas,


tos em aramaico, embora a maioria tenha entretanto, me livrou o Senhor, Timóteo
sido composta depois da carta de Paulo a certamente sabia, de observação pessoal,
Timóteo.) No tempo de Paulo, suposta- o quanto isso era verdadeiro.
mente era conhecimento comum que dois Com base numa referência à sua pró-
dos mágicos do faraó tinham esses nomes. pria experiência de sofrimento Paulo afir-
A semelhança entre esses mágicos e os ma a Timóteo que qualquer pessoa que
atuais falsos mestres é que ambos rejeita- se propõe a viver uma vida piedosa será
ram a verdade e, por consequência, pre- perseguida (12). Com isso ele não faz nada
cisaram ser rejeitados. Como no caso de mais do que repetir o ensino de Jesus. Paulo
todos os falsos mestres, há uma certeza de sabe que impostores continuarão a atuar
que o seu suposto progresso não passa de nesta era. É da natureza dos enganadores
ilusão. O seu desvario derradeiro a todos ir de mal a pior (13). Uma vez começado
será manifesto, mesmo que haja um in- o processo, é difícil parar. Os que enganam
tervalo de tempo antes que isso aconteça. os outros acabam se enganando a si mes-
Paulo está convicto de que o erro não pode mos. Isso se aplica a todos os estágios do
triunfar no final. desenvolvimento do falso ensinamento.
Mais uma vez Paulo traça um forte
3.10-17 Mais ordens a Timóteo contraste entre esses impostores e Timóteo,
Nessa seção, as recomendações de Paulo que recebe encorajamento para se preve-
a Timóteo estão em contraste acentua- nir contra ser enganado. Basicamente ele
do com a descrição dos falsos mestres na precisa continuar no que aprendeu e sabe
seção anterior. Isso é ressaltado pelo uso de convicção pessoal (14). Tal conselho é
enfático do pronome tu. Timóteo recebe aplicável a todo líder cristão. Naturalmente
primeiro um lembrete histórico (10-12). a fonte do conhecimento transmitido é im-
Ele teve a vantagem de observar o ensino portante - Timóteo não somente tinha tido
e o modo de vida de Paulo. O fato de que a vantagem de aprender muito do evange-
Paulo comenta que Timóteo sabe tudo so- lho cristão dos apóstolos, mas tinha sido
bre o seu ensino deveria nos prevenir con- ensinado nas Escrituras desde os primeiros
tra conclusões não autorizadas da ausência anos de vida. Essa ênfase nas Escrituras é
de alguns dos grandes temas de Paulo nas importante aqui porque o próprio Paulo se
Cartas Pastorais como um possível argu- baseava enfaticamente no testemunho das
mento contra a autoria dele. É digno de Escrituras. Ele não espera que Timóteo
nota, ainda, que as qualidades espirituais simplesmente confie no que aprendeu de
referidas (fé, longanimidade, amor, per- Paulo, sem fundamentá-lo nas Escrituras.
severança) que Paulo tinha demonstrado Há um lembrete aqui de que uma base boa
são exatamente as mesmas qualidades e confiável de instrução é indispensável
que ele já havia recomendado ao próprio para o ministro do evangelho.
Timóteo (cf lTm 6.11). Com respeito aos Deve-se observar que no v. 15 Paulo
seus sofrimentos, Paulo cita os incidentes usa a expressão sagradas letras, cha-
da sua primeira viagem missionária, su- mando atenção especial à sua natureza
postamente porque foi nessa vez que ele sagrada, supostamente em contraste com
conheceu a Timóteo. Timóteo com cer- as fontes seculares dos falsos ensinamen-
teza lembrava vividamente que Paulo ti- tos que acaba de mencionar. Um aspecto
nha sido obrigado a exercer perseverança importante é a função das Escrituras para
e não é impossível que essa experiência tomar sábio para a salvação, que pode
tenha sido um fator poderoso na persua- ser fartamente demonstrado nas tantas
são de Timóteo a se envolver na obra do vezes que Paulo, em suas cartas, recorre
2TIMÓTE04 1966

às Escrituras na sua exposição da obra de sendo tão aplicáveis aos ministros do


salvação de Deus em Cristo. evangelho hoje quanto o eram a Timóteo.
O v. 16 formula uma clara afirmação Paulo começa com a pregação porque ele
sobre a natureza das Escrituras e de sua uti- reconhecia que esse aspecto era básico (cf
lidade. Mas o significado preciso tem sido Rm 10.14). A necessidade de se estar cons-
muito debatido. Alguns questionam se a pa- tantemente preparado sugere que o homem
lavra grega graphê é necessariamente uma de Deus precisa estar de serviço sempre.
referência às Escrituras. Poderia significar As outras três incumbências (corrige, re-
qualquer escrito. Mas o uso do termo no NT preende, exorta) se complementam. Há
para denotar Escrituras está bem estabeleci- uma combinação de severidade e brandura
do. Mas o termo se refere a toda a Escritura aqui. Toda a obra requer paciência e cui-
ou somente a uma parte? O uso da palavra dado. A intenção de Paulo é que Timóteo
toda é determinante. Se toda aqui significa tenha um quadro claro das exigências do
"cada" é possível entendê-la como refe- serviço cristão. O quadro é concluído no v.
rência a partes distintas da Escritura. Mas 5, em que há mais quatro ordens. Timóteo
usos paralelos no NT sugerem que "toda" é deve demonstrar sobriedade e atenção em
a tradução correta. Sendo assim, Paulo está todas as situações e a disposição para su-
supondo que a Escritura na sua inteireza é portar as aflições. O ministério cristão não
inspirada. Mas por que ele precisa passar é um mar de rosas. A obra de um evange-
essa informação a Timóteo? Seria melhor lista é essencialmente pregar o evangelho,
supor que o ponto principal do texto não enquanto as palavras finais requerem dedi-
é a inspiração da Escritura, mas a sua uti- cação aos diversos aspectos do ministério.
lidade. Timóteo certamente sabia da sua Os v. 3,4 são um tipo de digressão no
inspiração, e isso acentuaria a sua utilida- pensamento de Paulo. Ele insere uma ad-
de. As quatro funções da Escritura cobrem vertência final sobre os falsos mestres. Ele
grande extensão desde o ensino de doutrina está ciente de que muitos não irão querer
até treinamento na justiça, passando pelo o ensino sólido, desejando ouvir somente
desafio ao comportamento. Essas funções o que der coceira nos ouvidos. Paulo mais
ainda são o propósito válido da Escritura uma vez menciona as fábulas que essas
e são vitais na capacitação do homem de pessoas farão circular.
Deus, um termo que representa de forma
particular todos os mestres cristãos, mas se 4.6-8 Um testemunho pessoal
aplica a todo o obreiro cristão. Observe o Essa seção está conectada à anterior como
destaque significativo dado à seriedade no o mostra a palavra "Porque" (ARC, ACF;
preparo para a obra de Deus. primeira palavra do v. 6). O que Paulo
está para dizer deve ser um exemplo para
Timóteo. Ele usa a mesma metáfora da li-
4.1-22 Paulo se despede
de Timóteo bação já usada em Filipenses 2.17. É uma
imagem vívida do apóstolo que está para
4.1-5 Uma ordem final derramar o seu sangue vital pela causa de
À luz do fato de que ele está próximo do Cristo. Ele sente que o fim está próximo.
fim da sua vida, Paulo deseja expressar-se Ele rapidamente muda da metáfora do sa-
com a maior seriedade possível. A ordem crifício para as do combate e da pista de
está associada a três fatos: a realidade do corrida (7). Em ambos os casos ele sabe
juízo de Cristo, a certeza da volta dele e o que as tarefas estão praticamente con-
estabelecimento do seu reino. cluídas. Mas há uma grande certeza aqui.
O conteúdo da ordem é exposto no v. Paulo não está de forma alguma envergo-
2 e consiste em cinco incumbências, todas nhado do que fez. As palavras guardei a
111
1967 2TIM6TEO 4 . :
11

fé são paralelas às duas outras afirmações, Podem ter sido textos do AT, ou talvez do-
o que sugere que fé aqui é o depósito do cumentos pessoais de Paulo, ou um pouco
ensino cristão que Paulo já tinha confiado de cada.
a Timóteo. Ele pode querer dizer também Os v. 14,15 são uma advertência contra
que foi leal à sua fé. Alexandre, o latoeiro. Esse homem pode
O v. 8 contém um tom triunfante. Paulo ser identificado com o Alexandre mencio-
não tem dúvida alguma quanto à coroa. nado em Atos 19.33,34 ou em lTimóteo
Ele provavelmente está pensando na coroa 1.20. Paulo se refere aqui ao grande pre-
de louros obtida por aqueles que compe- juízo que causou, que é definido ainda
tiam nas corridas de atletismo. A descrição como resistência à mensagem de Paulo. A
dela como de justiça, no entanto, mostra última parte do v. 14 ecoa as palavras de
a natureza espiritual do prêmio com que Salmos 62.12.
ele será honrado. A justiça não é obtida A terceira seção (16-18) é uma referên-
pelo próprio Paulo, mas é algo que lhe é cia à posição presente de Paulo. Aprimeira
dado. Visto que Deus é um reto juiz, ele defesa deve ter sido um interrogatório pre-
não pode conferir nada que não seja justo. liminar. Visto que Paulo não dá informa-
O Dia aqui é o dia final da vinda de Cristo. ções mais detalhadas, é impossível precisar
Aponta para o que Paulo chama em outros a ocasião. O que o preocupa mais é o fato
trechos de "tribunal de Cristo". Ele enxer- de que ninguém veio apoiá-lo. Há alguns
ga esse dia futuro como aplicável a todos paralelos aqui com o aprisionamento de
os cristãos, que ele supõe desejarão esse Paulo em Cesaréia, mas não há menção al-
evento glorioso. guma no registro de Atos a ele ser abando-
nado então. É melhor supor um julgamento
4.9-18 Observações pessoais anterior em Roma. Se isso quer dizer que
Na seção seguinte (9-13), Paulo pressu- os cristãos de Roma não vieram assisti-lo,
põe a possibilidade de encontrar Timóteo isso pode ter ocorrido porque eles não es-
novamente, apesar de estar ciente de que tavam inteiramente cientes da sua posição,
o seu fim está próximo. Ele ainda espera ou então ficaram hesitantes em se envolver.
que Timóteo consiga vir visitá-lo. O seu Visto que o apóstolo fala de ser abandona-
desejo de ver a Timóteo é acentuado pelos do, ele evidentemente sentiu que tinha sido
movimentos de seus outros cooperadores. terrivelmente desamparado.
O mais triste de tudo é o breve comentá- Em contraste com a deserção de ou-
rio acerca de Demas, que o abandonou. tros, ele foi encorajado pelo fato de que o
Esse homem era um dos assistentes mais Senhor estava do seu lado. Isso reflete um
próximos de Paulo quando ele escreveu pouco dos recursos espirituais que susten-
Colossenses 4.14. Precisamos supor que tavam a Paulo nas suas tribulações, e eles
o caminho foi duro demais para ele, e a podem servir como encorajamento para
atração do mundo, forte demais. Dentre todos os servos de Deus quando sofrem
os outros mencionados aqui, a referência por causa dele. No caso de Paulo, ele afir-
a Lucas é significativa visto que era a essa ma ter recebido coragem para proclamar
altura o único que amparava a Paulo. Tanto o evangelho até mesmo no seu julgamen-
ele quanto Marcos, bem como Demas, são to. Quando ele diz: para que [...] todos os
mencionados em Colossenses. Há uma gentios a [pregação] ouvissem, surge uma
pungência no pedido que ele faz a Timóteo dificuldade. Claramente, se ele está se re-
para que este traga a sua capa. Isso sugere ferindo ao seu julgamento, não é verdade
que ele estava passando frio na prisão? Há que todos os gentios ouviram a pregação,
também interesse especial nos livros e per- se as palavras devem ser interpretadas
gaminhos. É impossível dizer o que eram. literalmente. No entanto, ele pode estar
2TIM6TE04 1968

dando a entender o sentido metafórico de 4. 19-22 Saudações finais


que com a pregação do evangelho no cen- Paulo menciona uma série de seus amigos
tro do império todo o mundo gentílico es- íntimos. Prisca, e Áquila lhe eram espe-
taria ao "alcance da voz". As palavras que cialmente preciosos pois tinha se hospeda-
[...] a pregação fosse plenamente cumpri- do com eles em Éfeso (At 18). Onesíforo já
da podem dar a entender que Paulo talvez tinha sido elogiado em 1.16. Erasto é men-
pensasse que quando chegasse a Roma a cionado como um cooperador de Timóteo
sua missão de pregação estaria concluída. em Atos 19.22. Trófimo é mencionado duas
Alguns comentaristas pensam que o vezes em Atos - em 20.4 em Mileto, e em
leão de que Paulo foi libertado tenha sido 21.29 em Jerusalém. Visto que Trófimo era
o imperador Nero, mas essa é uma me- de Éfeso, é provável que ele tivesse tido a
táfora comum referente ao perigo e pro- intenção de acompanhar a Paulo nas suas
vavelmente a intenção do autor não tenha viagens recentes, mas tinha sido impedido
passado disso. Em outros lugares do NT, disso em virtude de enfermidades. Parece
o leão simboliza Satanás (IPe 5.8). Paulo que Timóteo não estava ciente disso e pre-
conclui em tom confiante que o leva a cisa ser informado.
uma doxologia espontânea. À luz do que Há mais um chamado urgente a Ti-
ele já escreveu, o livramento de toda obra móteo para que se apresse a estar com
maligna não pode significar que ele es- Paulo (21). Pode ser que a referência ao
tava esperando a libertação, mas precisa inverno que está se aproximando se deva
ser entendido no sentido espiritual. Isso ao fato de que viagens de navio eram in-
estaria em harmonia com a sua referência terrompidas durante o inverno. Nada se
ao reino celestial de Deus. Há aqui um sabe das quatro pessoas mencionadas no
contraste acentuado entre são tribulações v. 21. Na bênção final (22), a primeira
atuais de Paulo sob um reino terreno e parte é dirigida a Timóteo no singular, en-
aquele reino celestial permanente e vito- quanto a graça desejada aos cristãos em
rioso pelo qual ele está ansiando. geral está no plural.
TITO

ESBOÇO
1.1-4 Saudação
1.5-9 Nomeação de líderes de igreja
1.10-16 Como lidar com os falsos mestres
2.1-10 Instruções para os diversos grupos
2.1-3 Os homens idosos
2.4-8 Os mais jovens
2.9,10 Os escravos

2.11-3.8 O pano de fundo doutrinário para a vida cristã


2.11-15 A graça como mestre
3.1,2 Os cristãos na comunidade
3.3-8 O evangelho contrastado com o paganismo

3.9-11 Mais advertências


3.12-15 Observações finais

1.1-4 Saudação Por que Paulo insere aqui a afirmação


Essa é uma saudação consideravelmente que não pode mentir, com referência a
mais longa do que a de ITimóteo e também Deus? Tito certamente não tinha dúvidas
de 2Timóteo. Na verdade é mais teológi- sobre isso. Sua intenção deve ter sido su-
ca. Somente aqui Paulo se descreve como blinhar a confiabilidade das promessas de
servo de Deus, embora em outros lugares Deus. As outras palavras antes dos tempos
se intitule "servo de Jesus Cristo". O qua- eternos chamam atenção ao fato de que as
lificativo mais comum apóstolo de Jesus promessas estão fundamentadas nos pro-
Cristo é mesmo assim acrescentado e então pósitos eternos de Deus. Associado a essa
desenvolvido. Aqui Paulo apresenta como perspectiva eterna dos propósitos de Deus
o propósito do seu apostolado uma com- está o tempo designado para a manifesta-
binação de fé e conhecimento, no sentido ção da sua palavra (3), isto é, a encarnação.
de se fomentar a ambos (2). Sua tarefa era As palavras aqui são semelhantes à aber-
proclamar o evangelho, e ele reconheceu tura do Evangelho de João. Paulo nunca
que tanto a fé quanto a compreensão eram consegue ficar longe da importância da
a resposta apropriada. O conhecimento pre- pregação (3) na difusão das novas da ação
cisa de qualificação mais detalhada, pois de Deus, nem do privilégio que ele sentia
somente o que conduz a uma vida piedo- por ser chamado a servir a Deus dessa for-
sa está em vista aqui. Além disso, tanto fé ma. A descrição de Tito como verdadeiro
quanto conhecimento têm uma referência filho, segundo afé comum (4) sugere que
posterior (esperança da vida eterna) bem ele era cooperador próximo do apóstolo,
como uma realidade presente. embora ele não seja mencionado em Atos.
TITO 1 1970

Ele é mencionado, no entanto, tanto em pendia dela. O v. 9 deixa claro como eram
2Coríntios quanto em Gálatas. importantes a compressão e o domínio da
sã doutrina para aqueles que exerciam a
1.5-9 Nomeação de liderança sobre outros na igreja. Só é pos-
líderes de igreja sível refutar os falsos mestres se a doutrina
As instruções a Tito são semelhantes às correta foi bem compreendida. Do ponto
dadas a Timóteo em !Timóteo 3, mas há de vista de Paulo, as coisas deviam estar
algumas variações significativas, que re- bem definidas.
sultaram da situação diferente em que Tito
estava em Creta. Sua tarefa era dupla: pôr 1.10-16 Como lidar com
em ordem as coisas restantes e constituir os falsos mestres
presbíteros (5). Não está claro o que Paulo Novamente temos algumas diferenças en-
tinha deixado incompleto, a não ser que tre essa seção e os trechos em 1 e 2Timóteo
ele esteja se referindo à constituição de que tratam dos falsos mestres. Aqui há uma
presbíteros. Paulo não dá indicação algu- ênfase mais clara na natureza judaica do
ma de quantos deviam ser apontados, mas ensino. O grupo da circuncisão e também
evidentemente já instruíra Timóteo acer- as fábulas judaicas são mencionados (14).
ca desse assunto. Ele está mais interessa- Mesmo assim, as características mais evi-
do nas qualidades exigidas (6). O que se dentes dos falsos mestres são o vazio e a
destaca aqui é não somente a necessidade nulidade do seu palavrório, a tendência ao
de irrepreensibilidade moral (mencionada engano, os resultados destruidores e a mo-
duas vezes), mas uma vida familiar es- tivação do dinheiro (10,11). A situação em
tável. Supostamente, se uma pessoa não Creta foi agravada pelo caráter do povo,
conseguia controlar os próprios filhos, expresso no v. 12 por um dos seus próprios
seria considerada inadequada para a lide- poetas, que em geral é identificado com
rança na igreja. A palavra traduzida por Epimênides, um filósofo do século VI a.c.
crentes pode conter a conotação "fiel" Em vista do caráter dificil desse povo,
(ARe: "fiéis"). Certamente é improvável Paulo aconselha ação severa. É preci-
que Paulo tivesse a intenção de desqua- so fazê-los calar (11); eles precisam ser
lificar líderes de igreja cujos filhos ainda repreendidos severamente (13); e Tito não
precisavam professar a fé. deve dar atenção a eles (14). Paulo não
A mudança de presbíteros no v. 5 para acredita que valha a pena discutir com eles,
bispo no v. 7 é importante visto que parece mas Tito deve se concentrar em repreendê-
não haver diferença essencial entre os dois los para que eles sejam sadios na fé. Essa
oficios. O presbítero exerce a função da su- é uma repreensão positiva que ainda é de
pervisão. Há uma mistura de atitudes erra- grande valor quando tratamos com os que
das e ações erradas que tomariam a pessoa se desviam da verdade. O v. 15 apresen-
inelegível para o ministério (8,9). É digno ta mais uma observação para ajudar Tito,
de nota que Tito não receba a orientação pois os que estão com a mente corrompida
de não apontar recém-convertidos como não reconhecerão a pureza. Depois que a
Timóteo em Éfeso, possivelmente porque mente está corrompida, a consciência se-
a comunidade de Creta tinha sido constituí- gue o mesmo caminho rapidamente. Paulo
da havia menos tempo. Se o v. 7 apresen- percebe que os falsos mestres são sutis no
ta o lado negativo, o positivo está nos v. aspecto de que dão toda aparência de reli-
8,9. As qualidades mencionadas são as que giosidade (professam conhecê-lo [Deus]),
devem ser vistas num cristão comprome- mas suas ações mostram que isso é falso
tido. A ênfase na hospitalidade é digna de (16). Pode-se achar que Paulo fala de ma-
nota visto que a igreja primitiva tanto de- neira particularmente depreciativa deles na
1971 TITO 2

segunda parte do v. 16, mas isso mostra o impressão de interferência. A instrução se


seu horror por aqueles que desviam as pes- concentra no amor ao marido e a seus fi-
soas da fé. A importância da compreensão lhos. Isso não pode ser tomado por certo,
correta da doutrina cristã não poderia ser especialmente nos nossos tempos moder-
afirmada de forma mais intensa. nos em que a taxa de divórcio cresce ra-
pidamente e o cuidado dos filhos tantas
2.1-10 Instruções para vezes é menos importante que a carrei-
os diversos grupos ra. As qualidades requeridas de mulheres
mais jovens são as adequadas para o ce-
2.1-3 Os homens idosos nário doméstico, onde o autocontrole, a
Aqui Paulo usa novamente a figura da sã pureza e a bondade são de tão grande valor
doutrina (cf 1.9). Isso contrasta com o no lar cristão (5). Como em outros trechos,
ensino "enfermo" dos falsos mestres. A Paulo pressupõe que a mulher cristã seja
expressão o que convém à chama atenção submissa ao seu marido. Todo o tópico é
para a apropriabilidade do ensino, sugerin- dominado por motivação religiosa, para
do que o falso ensinamento estava discor- evitar qualquer afronta à palavra de Deus.
dante nesse aspecto. Paulo procede então Numa discussão mais ampla do relacio-
a dar exemplos do que ele quer dizer com namento marido-mulher (Ef 5.22,23, v.
ensino adequado. Ele é essencialmente comentário), Paulo coloca a submissão da
prático. Homens idosos precisam mostrar mulher no contexto do amor sacrificial do
pela sua vida que o seu comportamento marido. Então, e agora, o relacionamen-
concorda com a sua doutrina (2). Isso in- to ideal implica que os dois se doem um
clui um comportamento que resultará no ao outro. Sempre que o amor sacrificial é
respeito dos outros. Mas a essa ideia Paulo abandonado, o casamento sério ou sofre ou
acrescenta a necessidade de que sejam sa- sucumbe completamente.
dios na fé, no amor e na constância, uma Ao tratar com os moços, depois de in-
combinação que ocorre em outros trechos centivar o autocontrole (uma exigência
das Pastorais e em outras cartas paulinas para qualquer idade), Paulo coloca a maior
(cf lTs 1.3). Nas suas orientações para as ênfase no padrão de Tito (7; "exemplo"
mulheres idosas, Paulo concentra a aten- nvi). Como ministro do evangelho, pesa
ção na necessidade da seriedade do proce- sobre ele uma grande responsabilidade
dimento (3). para mostrar integridade e reverência,
A proibição da calúnia e do excesso de especialmente na maneira de falar. Aqui
vinho reflete a situação contemporânea em também há uma forte motivação religiosa,
Creta. O fato de que Paulo usa uma pala- i.e., para que outros não tenham motivo de
vra (escravizadas [a muito vinho]) que falar mal dos cristãos.
sugere dependência de muito vinho leva a
crer que o problema era mais agudo entre 2.9,10 Os escravos
as mulheres de Creta do que na situação Paulo tratou do assunto da escravidão em
correspondente em Éfeso (cf lTm 3.8,11), 1Timóteo 6, e o que ele diz aqui é seme-
em que se usa uma expressão mais branda. lhante. A palavra traduzida aqui por "se su-
No aspecto positivo, as mulheres idosas jeitem" (ARe) é mais forte do que sejam [...]
devem ser boas mestras em casa. obedientes (ARA) e reflete a estruturação
social da época. Os escravos cristãos têm
2.4-8 Os mais jovens uma responsabilidade a mais, que é ten-
Na opinião de Paulo, é tarefa das mulheres tar agradar os seus senhores e não discutir
idosas instruir as jovens recém-casadas. com eles. O fato de que os escravos são
Isso claramente requer tato para evitar a estimulados a não furtar sugere que eram
TITO 2 1972

particularmente suscetíveis a essa tenta- vida piedosa e justa neste século. Mas no
ção. Paulo enxerga a possibilidade de os v. 13 o foco é o futuro. A bendita esperan-
escravos recomendarem o evangelho pela ça e a manifestação da glória claramente
sua atitude, uma possibilidade que sem dú- ainda não aconteceram, embora tenham
vida é igualmente aplicável a todo cristão. um impacto específico sobre o presente.
A palavra grega traduzida por ornarem é Paulo mostra um bom equilíbrio entre as
usada no contexto de joias para apresentá- gloriosas expectativas futuras dos cristãos
las da forma mais atraente possível. e as suas responsabilidades presentes. A
expectativa da volta de Cristo é fundamen-
tal para a doutrina de Paulo sobre o futuro.
2.11-3.8 O pano de fundo
doutrinário para a vida cristã É significativo aqui que Paulo fala de nos-
so grande Deus e Salvador Cristo Jesus,
2. 11-15 A graça como mestre pois a associação de Deus e Jesus Cristo
É característica de Paulo mudar para uma na mesma expressão sugere que Paulo está
observação teológica quando está tratando convicto da divindade de Jesus, uma ideia
do comportamento, visto que ele nunca que está em harmonia com a compreensão
se afasta muito das considerações doutri- mais provável de Romanos 9.5. Alguns es-
nárias nas suas discussões. Aqui ele usa a tudiosos separam Deus de e Salvador, mas
expressão a graça de Deus para resumir to- esse não é o significado manifesto do texto
das as ações de Deus a nosso favor. Numa grego. Outra possibilidade é tomar "Jesus
afirmação concisa, Paulo chama atenção Cristo" como uma explicação da "glória",
tanto para a encarnação quanto para a e nesse caso Deus e Jesus não seriam tão
expiação e as associa à segunda vinda. A claramente identificados. Mas é mais natu-
manifestação da salvação aponta para a ral associar "Salvador" com Jesus em vista
primeira vinda de Jesus; mas em que sen- da afirmação seguinte.
tido devemos interpretar a expressão a to- No v. 14, Paulo olha para o passado,
dos os homens? Está Paulo querendo dizer para o ato histórico da redenção que cons-
que todos são salvos? Se a manifestação da titui o fundamento da posição cristã. Ele
salvação é considerada um fato histórico, toca nesse assunto quando reflete sobre o
certamente é verdade que a vinda de Jesus que Cristo já fez por nós. Em 1Timóteo
teve significado universal. O significado 2.6, Paulo mencionou que Cristo se deu
provável é que Deus na sua graça tomou a si mesmo como "resgate", e aqui ele
possível a oferta de salvação a todas as segue uma ideia semelhante, usando o
pessoas. O escopo da graça de Deus não verbo (remir-nos) derivado do substan-
é a ideia principal do texto, mas o ponto tivo. A redenção é um tema predileto do
de que o comportamento cristão resulta da apóstolo. Transmite a ideia de livramento
graça de Deus. Daí a intensidade do v. 12. da escravidão, nesse caso resumida como
A coibição da impiedade é um dos grandes toda iniquidade. Paulo enxerga a obra de
propósitos da graça de Deus. Na verdade é Cristo como fazendo algo por nós que nós
impossível viver de maneira autocontrola- não poderíamos fazer por nós mesmos.
da a não ser pela graça de Deus. O auto- A libertação é do pecado no sentido mais
controle não pode ser atingido meramente amplo. Mas para Paulo a libertação tem
pelo esforço próprio. Isso distingue ime- dois lados: não somente de [do] pecado,
diatamente a ética cristã do estoicismo que mas para uma vida de pureza. A metáfo-
exaltava a autodeterminação. ra da purificação é outro artifício predileto
Nesse trecho, Paulo conecta o presente de Paulo para explicar a obra de Cristo.
com o passado e o futuro. A tarefa presente O cristão é uma pessoa purificada (v.
pode ser vista no v. 12: a exigência de uma Ef 5.25,26). A ideia de povo de Deus como
1973 TITü3

uma possessão muito especial para Jesus cios) aponta para a falta de compreensão;
Cristo é ressaltada vividamente aqui. (Y. desobediência e engano são vistos no rela-
expressão semelhante em Êx 19.5). O ob- cionamento humano com Deus, e todo esse
jetivo cristão de fazer o bem é motivado modo de vida é resumido como escravidão
fortemente pela ideia de que o fazemos es- de paixões e prazeres. É importante reco-
sencialmente porque pertencemos a Jesus nhecer a naturalidade desse modo de vida
Cristo de forma especial. pré-cristão a fim de enxergarmos de forma
O v. 15 é um tipo de conclusão das mais vívida a mudança que o cristianismo
instruções práticas, embora Paulo ainda produz. O clímax é atingido na multiplica-
não tenha terminado as suas reflexões teo- ção do ódio, que serve como contraste para
lógicas, pois volta a elas no cp. 3. Tito é descrever o amor de Deus.
lembrado da necessidade de exercer auto- Na afirmação teológica dos v. 4-7,
ridade a fim de fundamentar o ensino. A Paulo ressalta o que a benignidade de
autoridade é baseada no ensino apostólico Deus e o seu amor fizeram para combater
e deve capacitar Tito a resistir às tentati- o ódio crescente do mundo natural. O foco
vas, por parte dos outros, de desprezá-lo. principal do amor de Deus está na vinda e
missão de Cristo, mas nesse contexto a ên-
3.1,2 Os cristãos na comunidade fase está na experiência cristã desse amor.
Presumivelmente Tito já tinha instruído as Ao falar de Deus como nosso Salvador,
pessoas acerca de suas responsabilidades Paulo talvez esteja contrastando Deus com
para com as autoridades de Estado, pois o imperador, que no mundo daquela épo-
ouve aqui a instrução: Lembra-lhes. Mas ca às vezes recebia o título Salvador. Mas
talvez os cretenses tivessem esquecido de à luz de 2.11-14, é mais provável que em
que se esperava dos cristãos a sujeição às todo o tempo sua mente esteja voltada para
autoridades. Paulo reconhece que a deso- a salvação cristã. No v. 5, Paulo funda-
bediência política, exceto por questões de menta a salvação na misericórdia de Deus
consciência, levaria o evangelho ao descré- e não nos esforços humanos (a justiça aqui
dito. A ideia principal do v. 2 é que o com- representa aquilo que se atinge por meio
portamento deve recomendar o evangelho. das obras da lei), o que está em harmonia
A pessoa de fora deve receber a impressão com o seu ensino em outros textos (espe-
de um bom cidadão que se sujeita às leis. cialmente em Romanos).
Observe especialmente as qualidades de Há muito debate acerca da expressão
cortesia e humildade, que geralmente não mediante o lavar regenerador e renovador
aparecem em primeiro lugar nos relaciona- do Espírito Santo (5). Essa combinação de
mentos sociais. termos apresenta o aspecto dúplice da sal-
vação cristã. A regeneração é a entrada na
3.3-8 O evangelho contrastado nova vida, e a renovação é a efetuação da
com o paganismo nova vida propriamente dita. Aquela pode
Com frequência, nas suas cartas, Paulo con- ser compreendida como associada à con-
trasta o que os cristãos eram antes da sua versão e esta à concessão do Espírito Santo.
conversão com o seu novo potencial em Há muito a favor de se compreender aqui
Cristo. O v. 3 chama atenção para o pas- a "regeneração" (ARe) no sentido em que
sado. A lista de males enumerados aqui é encontrado no ensino de Jesus (10 3.5).
como típicos da experiência pré-cristã Tem havido diferenças de opinião sobre a
talvez sejam um tanto exagerados. Mas interpretação de lavar, visto que nem to-
há evidências dessas mazelas na experiên- dos consideram o termo uma referência à
cia pré-cristã de todos os cristãos, e ainda conversão. Poderia ser uma referência so-
ficam resquícios delas depois. A tolice (nés- mente ao batismo, e nesse caso ambos os
TITO 3 1974

termos poderiam ser referências ao que é 3.9-11 Mais advertências


efetuado no batismo pelo Espírito Santo. Há um eco aqui da advertência de 1.10.
Ou poderia ser interpretado como referên- Paulo não consegue terminar sem mais
cia metafórica à purificação espiritual. uma advertência. Visto que ele ressalta
O v. 6 é claramente uma alusão ao a inutilidade dos falsos ensinamentos, é
derramamento do Espírito Santo em Pen- provável que ele os considere um contras-
tecostes. Ao refletir sobre a sua própria ex- te com o ensino positivo que acaba de ser
periência e a de seus cooperadores (observe dado. Ele aconselha a Tito, como já acon-
as palavras sobre nós), Paulo está atônito selhara a Timóteo, que evite desperdiçar
diante da generosidade do dom. O Espírito tempo com tais argumentos inúteis. Mas
nunca é dado de fonna parcimoniosa. Esse ele traça uma distinção entre o ensino e as
versículo destaca a atividade tríplice de pessoas envolvidas. Todo pastor precisa
Deus, Jesus Cristo nosso Salvador e do estar preocupado com pessoas, especial-
Espírito Santo. mente as que estão causando dificuldades
Paulo conclui essa breve afirmação teo- na comunidade, e essas precisam ser ad-
lógica com uma referência à justificação. vertidas. Mas Paulo considera suficiente
É típico da parte de Paulo ressaltar que a uma advertência dupla. Os que estão pro-
justificação é por meio da graça, pois esse pensos a atividades divisórias raramente
é um dos seus temas prediletos. Isso se re- respondem além disso. Tal pessoa, na opi-
fere essencialmente à nossa nova posição nião de Paulo, está condenada a ter uma
com Deus e aponta para o nosso futuro. mente pervertida.
Esse é mais um dos temas de Paulo: cha-
mar atenção para a nossa herança, e aqui 3.12-15 Observações finais
ele se concentra na vida eterna. Ele a cha- Claramente estava previsto que Ártemas
ma de esperança, no sentido de algo que ou Tíquico substituiriam a Tito em Creta.
é certo. Paulo menciona a sua intenção de passar o
Essa seção termina com a fórmula: Fiel inverno em Nicópolis, que se imagina ge-
é esta palavra (8), que precisa ser asso- ralmente ter sido uma cidade na costa oci-
ciada à afirmação teológica que acaba de dental da Grécia. Não se dá razão alguma
ser considerada. Mas isso é seguido de um para a escolha de um lugar tão fora de mão.
pedido direto a Tito de destacar estas coi- Zenas não é mencionado em outro lugar do
sas, expressão que é mais bem interpreta- NT. Apolo é conhecido de Atos e ICoríntios
da como uma referência a tudo que Paulo como cooperador do apóstolo. É óbvio que
escreveu na carta. Ele está mais do que de alguma forma Tito deve ter tido condi-
desejoso de atingir um resultado prático: a ções de dar a esses dois homens alguma
devoção atenta à prática de boas obras. A assistência material para a sua viagem.
implicação é que uma sólida base teológica Paulo então se dirige aos cristãos de Creta
é indispensável para as ações corretas. Há em geral e destaca novamente o valor das
certa ambiguidade quanto ao significado de boas obras. Não está claro quem são os ne-
estas coisas no final do v. 8. Se são as mes- cessitados que ele tem em mente. É possí-
mas coisas que as da primeira parte do ver- vel que tenham sido situações específicas
sículo, então são uma referência às verda- de necessidade, e nesse caso o chamado é à
des essenciais do evangelho. Mas se estão caridade. Isso faria sentido da última parte
aí para contrastar com a inutilidade dos fal- do versículo (que eles não se tomassem in-
sos ensinamentos, então podem ser as boas frutíferos). As saudações finais são gerais e
obras dos crentes. Visto que a ênfase no v. 9 a graça final incomumente breve.
está nas discussões insensatas, parece que
a primeira opção é a mais provável. Donald Guthrie
FILEMOM

INTRODUÇÃO
A carta a Filemom é a mais breve das cartas Eles se associavam a bandos de ladrões,
de Paulo e está mais proximamente ligada tentavam desaparecer na subcultura das
às cartas particulares e pessoais comuns da grandes cidades, tentavam fugir para lu-
época do que a outras dirigidas por Paulo a gares distantes para serem absorvidos na
igrejas ou a grupos de igrejas. Isso não sig- força de trabalho ou buscavam refúgio em
nifica, no entanto, que é simplesmente um algum templo. Onésimo entrou em contato
item de correspondência privada. Assim com Paulo, talvez como companheiro de
como as cartas mais longas do apóstolo, cela, que se interessou por ele e isso levou
ela é um meio de trabalho missionário da à conversão de Onésimo (10). O apóstolo
igreja primitiva e um substituto da presen- realmente passou a gostar dele (cf v. 12) e
ça pessoal de Paulo. se beneficiou do seu serviço (11,13). Ele
sinceramente queria que Onésimo ficas-
Ocasião se com ele para que tomasse o lugar de
A carta é dirigida a Filemom que é descrito Filemom a seu lado no serviço do evan-
por Paulo como "amado [...] também nosso gelho. No entanto, ele não tinha direito
colaborador" (1). Outros mencionados na algum de segurar Onésimo do seu lado.
saudação são Áfia, que provavelmente era Isso não somente teria sido ilegal segundo
a esposa de Filemom, Arquipo, "compa- as leis romanas, como também teria causa-
nheiro de lutas" de Paulo (e possivelmente do uma ruptura de comunhão cristã entre
filho de Filemom e Áfia) e a comunidade ele e Fi1emom.
da igreja (ekklêsiai que se reunia na casa Assim Paulo enviou Onésimo de volta
de Filemom (2). ao seu senhor Filemom, e enviou também
A ocasião da carta a Filemom pode ser uma carta. Com linguagem amável e pa-
deduzida do seu conteúdo, embora nem lavras cuidadosamente escolhidas, Paulo
todos os detalhes estejam claros. Um es- pediu que Filemom recebesse o seu escra-
cravo chamado Onésimo tinha prejudica- vo como se estivesse recebendo o próprio
do o seu proprietário, Filemom, um cristão Paulo (17), isto é, um "irmão caríssimo"
que morava perto de Colossos (v. 1,2; cf (16). Ele não queria que a reconciliação
Cl 4.9,17). Não se sabe exatamente qual entre senhor e escravo caísse por terra em
foi a ofensa de Onésimo, mas geralmen- virtude de alguma exigência de compensa-
te se conclui com base no v. 18 que ele ção, assim pediu que qualquer dívida em
roubou dinheiro do seu senhor e depois aberto devido às ações de Onésimo fos-
fugiu. É possível, no entanto, que as pala- se colocada na conta dele, Paulo. Afinal,
vras: "se algum dano te fez ou se te deve Filemom não devia a sua própria vida a
alguma coisa" simplesmente indiquem que Paulo, visto que este era responsável pela
Onésimo tinha sido enviado para cumprir sua conversão (19)? A decisão pertencia
uma missão e tinha ficado longe além do completamente a Filemom, assim Paulo se
tempo permitido. negou a ordenar ou coagi-lo de qualquer
No mundo romano dos dias de Paulo forma (14). O apóstolo estava certo de que o
os escravos às vezes fugiam do seu senhor. seu amigo agiria de forma adequadamente
FILEMOM 1976

cristã e cria que faria mais do que ele pe- e outros, proprietários de escravos. Ainda,
disse (21). Essas palavras são atordoantes, nenhum programa revolucionário foi su-
mas ao lermos nas entrelinhas concluímos gerido por Paulo ou outros para lidar com
que o "mais" de que Paulo fala é a dispo- os males da escravidão ou para a abolição
sição de Filemom de devolver Onésimo a total. Em vez disso, o foco está nos relacio-
Paulo para o serviço do evangelho (21). namentos pessoais transformadores dentro
Uma interpretação alternativa é a de do sistema.
S. C. Winter (NTS, 33 [1987], p. 1-15), Em 1Coríntios 7.21-24, Paulo men-
que sugere que a carta foi escrita à igreja ciona, não a questão mais ampla da escra-
em Colossos, não a um indivíduo, e que vidão, mas a possibilidade de alforria de
Onésimo estava na prisão com Paulo por- escravos cristãos. Embora muitos afirmem
que ele fora enviado por Arquipo em nome que Paulo estava incentivando escravos
da igreja. Paulo pediu que Onésimo fosse cristãos a buscar a sua liberdade, é mais
alforriado (sua liberdade fosse comprada) provável que ele estivesse encorajando-os
e liberto das suas obrigações em Colossos a viver segundo a sua nova posição em
para poder permanecer com Paulo na obra Cristo (o "chamado") que é mais funda-
do ministério (Winter). Mas há dificulda- mental que qualquer mudança social, legal
des consideráveis com essa interpretação ou outra qualquer.
com relação à suposta natureza pública da A carta a Filemom, como o restante
carta, às circunstâncias da sua composição do NT, não trata especificamente da ques-
e à natureza do pedido de Paulo (v. comen- tão mais ampla da escravidão. Antes, nos
tário adiante). v. 16,17, Paulo trata da questão do amor
fraternal no corpo de Cristo. O relaciona-
Autoria, lugar e data mento de escravo e seu senhor, dentro das
A autoria de Paulo raramente foi questio- estruturas existentes, deve ser conduzido
nada no passado. A carta evidentemente à luz de pertencerem ao mesmo Senhor.
exala o genuíno apóstolo no seu tratamen- Esse relacionamento foi agora superado. A
to carinhoso de uma difícil situação pes- liberdade terrena de Onésimo pode ser jus-
soal e social. tamente desejada e valorizada; mas o que é
A carta foi enviada do mesmo lugar de importância suprema é que ele aceitou
que a carta a Colossos, e entre as três pos- o chamado de Deus e o seguiu (cf v. 16
sibilidades - Roma, Cesaréia ou Éfeso e 1Co 7.21-24), independentemente de ele
- a tendência provavelmente é para a pri- ser escravo ou não. A carta a Filemom ope-
meira opção. A datação mais provável das ra no âmbito dos relacionamentos pessoais
duas cartas é logo no início do (primeiro) em que a instituição da escravidão estava
encarceramento de Paulo em Roma, i.e., fadada a definhar e morrer.
60-61 d.e. Ver também artigo Lendo as cartas.

o Novo Testamento
e a escravidão Leitura adicional
Nenhum autor do NT comenta sobre as WRIGHT, N. T. Colossians and Philemon.
origens da escravidão. Além disso, não há TNTe. Inter-Varsity Press, 1986.
nenhum apoio teológico para a escravidão, MARTIN, R. P. Colossenses e Filemom.
nem a justificação para que seres humanos SCR Vida Nova, 1984.
sejam proprietários de outros seres huma- O'BRIEN, P. T. Understanding the basic
nos no NT, embora haja evidência direta que themes of Colossians, and Philemon.
mostra que alguns cristãos eram escravos QRBT. Word, 1991.
1977 FILEMOM

ESBOÇO
1-3 Saudação de Paulo
4-7 Ações de graças e intercessão por Filemom
8-20 O apelo de Paulo por Onésimo
21-25 Observações finais e saudações

COMENTÁRIO mento especial para realizar o ministério


que tinha recebido do Senhor (CI4.l7).
1-3 Saudação de Paulo 3 A saudação de Paulo indica a séria
1,2 Paulo segue o padrão encontrado em preocupação por Filemom e seus amigos
outros lugares de suas cartas (v. comen- cristãos para que eles entendessem e apre-
tário de Cl 1.1) com sua menção ao autor ciassem mais amplamente a graça de Deus
(e seus cooperadores), receptor(es) e uma na qual estavam e a paz com a qual ele os
saudação. Prisioneiro de Cristo é uma re- firmou (cf Rm 5.1,2).
ferência ao encarceramento atual de Paulo
do qual ele espera ser liberto logo (22), e 4-7 Ações de graças e
não a uma prisão metafórica. Assim logo intercessão por Filemom
de início se faz menção à situação do após- O parágrafo de ações de graças de Paulo
tolo: ele está na prisão por causa do evan- (4-6) é o mais breve nas suas cartas e está
gelho (13). De Cristo Jesus significa "por mais proximamente ligado às cartas parti-
causa de Cristo". Paulo associa Timóteo ao culares e pessoais comuns da época. Os v.
seu próprio nome no cabeçalho da carta, 4-7 têm o propósito de preparar o caminho
não como coautor, mas porque ele tinha para o assunto específico com que a carta
estado em sua companhia durante grande está mais ocupada, isto é, o pedido acerca
parte do ministério em Éfeso e talvez te- de Onésimo.
nha encontrado Filemom ali. Este é descri- 4 Dar graças é de suma importância
to como amado Filemom, também nosso para a mente de Paulo no início desse tre-
colaborador, termos que indicam que ele cho. É ao único e verdadeiro Deus que
era um colega especialmente estimado ele oferece sua gratidão e, destacando a
do apóstolo no ministério do evangelho. consciência de uma relação pessoal com
A carta é dirigida especificamente a ele. ele, Paulo acrescenta o pronome meu (cf
Embora Afia, Arquipo e a igreja que está Rm 1.8; Fp 1.3). O que recebe a gratidão
em tua casa estejam incluídos na saudação pelo progresso de Filemom é o Deus dos
de Paulo (cf v. 25), isso se deve à sua po- salmistas, conhecido a Paulo por meio de
lidez, e o corpo da carta é dirigido a uma Jesus Cristo como "Pai" (3). Sempre su-
pessoa, Filemom. Afia pode ter sido a es- gere gratidão regular e não incessante e é
posa de Filemom. Arquipo, companheiro explicado pela expressão: lembrando-me
de lutas, evidentemente tinha tido papel [...] de ti nas minhas orações.
importante em ajudar a Paulo no seu traba- 5 Paulo recebeu boas notícias (estando
lho missionário e tinha ficado ao seu lado ciente está no presente; "ouço", NVI) sobre
fielmente apesar de perseguição e tribula- o amor e afé que Filemom tinha e que le-
ções - talvez até na prisão. Ele era resi- vam Paulo a dar graças a Deus. A infor-
dente em Colossos, possivelmente filho de mação provavelmente veio de Epafras (Cl
Filemom e Áfia (embora não possamos ter 1.4,7,8) e possivelmente de Onésimo. Fé
certeza disso), que recebeu um encoraja- (fidelidade) e amor têm sido interpretados
FILEMOM 1978

às vezes como dirigidos tanto ao Senhor ralidade do seu colega resulte em algum
Jesus Cristo quanto ao povo de Deus. tipo de ação no caso de Onésimo). Por sua
Como alternativa, amor e fé têm sido pro- vez, isso ajudaria Filemom a ter uma com-
ximamente ligados (e traduzidos por "pie- preensão e apreciação mais profunda de
dade" e "devoção") numa atitude que é todas as bênçãos que pertenciam a ele (e
demonstrada ao Senhor Jesus por um lado a todos os outros que estão incorporados)
e ao povo de Deus por outro. Talvez seja em Cristo.
melhor ver aqui um "quiasmo" (o padrão 7 Voltando-se ao discurso direto Paulo
a b b a) em que o amor de Filemom é diri- diz a Filemom por que ele tem sido reno-
gido a todo povo de Deus e sua fé está no vado e confortado. O amor de Filemom
Senhor Jesus. Paulo normalmente coloca a foi demonstrado de forma concreta aos
fé antes do amor. Mas aqui, em virtude da cristãos em Colossos, e Paulo conse-
situação que originou a carta, sua atenção gue se identificar com esses irmãos na fé
está focalizada no amor de Filemom (cf v. (alguns dos quais ele nunca conhecera; cf
7,9). Isso leva àfé do seu amigo (demons- Cl 2.1) pois ele afirma que alegria e con-
trada por alguém que tem fé para com o forto dados a eles foram também recebi-
Senhor Jesus), e a fé, por sua vez, dirige os dos por ele. Quando os cristãos fazem um
seus pensamentos ao âmbito e abrangência sacrifício para demonstrar amor e cuidado
do amor, isto é, tem sido demonstrado no pelos outros, isso tem um efeito profundo
passado a todo o povo de Deus. que gera afeto e gratidão.
6 A gratidão de Paulo o leva diretamen-
te ao seu pedido: uma petição ligada à ge- 8-20 O apelo de Paulo
nerosidade de Filemom. É como se Paulo por Onésimo
não pudesse dar graças por seu colega sem Num parágrafo cuidadosamente estrutura-
interceder por ele. O versículo é de difí- do em que ele pesa cada palavra, Paulo faz
cil interpretação, e portanto as sugestões a a sua súplica por Onésimo, o escravo fo-
seguir são tentativas. A palavra comunhão ragido de Filemom. Ele começa com uma
(gr. koinõnia) é entendida no sentido ativo breve descrição da sua situação (8-12).
e geral significando "generosidade" "li- 8 O caráter cristão refinado de Filemom,
beralidade". Tua fé aponta para a fonte de mencionado explicitamente nos versículos
onde vem a fé, enquanto a palavra eficiente anteriores ("Pelo que" [ARe] mostra a liga-
é uma tradução melhor do que "operante". ção próxima), significa que Paulo podia fa-
Paulo agora quer que sua fé seja eficiente lar aberta e afetuosamente. A sua amizade
em relação a Onésimo. Todo bem se re- pessoal provavelmente começou na época
fere a todas as bênçãos que pertencem a da conversão de Filemom quando Paulo
Filemom como cristão, enquanto o pleno foi a ferramenta usada por Deus (19). Sua
conhecimento (lit. "em conhecimento") responsabilidade como apóstolo aos gen-
aqui transmite tanto a ideia de compreen- tios também o capacitou a falar de maneira
são quanto a de experiência. A última ex- ousada em Cristo. O que convém aponta
pressão (para com Cristo, lit. "em Cristo") para o que é adequado a Filemom, como
provavelmente se refere a ser unido com cristão, fazer nas circunstâncias referentes
ele e por isso é corretamente traduzida por a Onésimo. Paulo não formula o conteúdo
"em Cristo" na NVI. Era o grande desejo do disso. Ele somente indica que poderia ter
apóstolo que Filemom entendesse e expe- uma ordem em relação a essa situação.
rimentasse os tesouros que lhe pertenciam 9 Em vez disso, ele fundamenta a sua
por ser crente. Assim o seu pedido é que petição (gr. parakalõ) em outra base, isto
a generosidade de Filemom o conduza de é, o amor de Filemom. Duas vezes esse
forma eficaz (isto é, ele deseja que a libe- termo foi usado no parágrafo anterior para
1979 FILEMOM

denotar o amor de Filemom demonstrado de volta" significa que Paulo está recomen-
de forma concreta aos santos, e é mais que dando Onésimo de volta a Filemom para
natural interpretá-lo no mesmo sentido uma "decisão" com a esperança de que ele
aqui, e não amor como princípio ou mes- tenha permissão de voltar a Paulo.
mo o amor de Paulo. Precisamente por- 13 Ele descreve brevemente o que
que ele sabe da generosidade de Filemom, aconteceu antes de escrever a carta e enviar
Paulo pode suplicar em vez de ordenar e Filemom de volta. Eu queria conservá-lo
ele espera que o amor do seu amigo seja expressa o desejo ou a preferência pessoal
demonstrado mais uma vez, desta vez de reter Onésimo com ele. Ele tinha pres-
com relação a Onésimo. Por trás da pe- tado serviço fiel ao apóstolo e tinha sido o
tição está um que é tanto "embaixador" desejo deste que ele continuasse a servi-lo
(que parece mais provável do que o ve- no lugar do ausente Filemom. A expressão
lho) quanto prisioneiro de Cristo Jesus, em teu lugar é arriscada pois pressupõe que
ou seja, alguém que compartilha dos so- Filemom teria desejado realizar esse servi-
frimentos agora mesmo. Assim, este é um ço para ele (especialmente o ministério no
apelo convincente. evangelho) se lhe tivesse sido possível.
10 Paulo agora menciona o seu pedido 14 Mas por mais que Paulo estivesse
e, portanto, o seu propósito específico em propenso a conservar Onésimo com ele,
escrever a carta. Filemom, não a congre- não faria nada sem o consentimento de
gação, é a pessoa endereçada (tratamento Filemom. No mínimo teria significado uma
dirigido a uma pessoa no singular), e o pe- ruptura da comunhão cristã. Ele não queria
dido é por alguém que se converteu pelo coagir o seu irmão ou interferir na decisão
seu ministério enquanto estava na prisão dele. De livre vontade é uma referência a
e que se tomou muito próximo e precioso uma decisão tomada livremente, enquanto
dele - Onésimo. A figura do parentesco não [00'] por obrigação mostra que Paulo
espiritual é usada também em relação aos se absteve de exercer qualquer pressão
coríntios (1Co 4.15), Timóteo (1Co 4.17) e externa que forçasse Filemom a agir de
Tito (Tt 1.4) que se converteram por meio alguma maneira em particular. A polidez e
do evangelho. o tato de Paulo são uma lição a todos que
11 Como escravo frígio - e eles eram lidam com relacionamentos sensíveis.
conhecidos como especialmente inconfiá- 15 Dá-se mais uma razão da decisão de
veis e infiéis - Onésimo anteriormen- Paulo de não reter Onésimo: ele poderia ter
te tinha sido inútil a Filemom. Mas uma agido contra o propósito secreto de Deus.
grande mudança havia acontecido, e Paulo O passivo ser afastado aponta para a ação
a descreve pelo contraste antes-agora. Essa secreta de Deus como a pessoa responsável
transformação poderosa ocorreu na con- pelo que aconteceu. A atenção de Filemom
versão de Onésimo a Cristo como Senhor, é desviada agora de erros individuais que
e ele pode agora ser chamado de útil, uma Onésimo possa ter cometido para a provi-
descrição que é adequada ao seu nome, dência de Deus que tomou esses erros em
pois Onésimo significa "útil". bem (cf Gn 45.4-8). Se (observe "Talvez",
12 Paulo envia de volta a Filemom NVI; "bem pode ser", ARe) o propósito
com uma carta aquele que se tomou muito secreto de Deus esteve por trás desse in-
precioso para ele. Aliás, ele se tomou tão cidente, então a intenção divina era que
apegado a Onésimo que Paulo fala dele Filemom recebesse Onésimo de volta para
como o meu próprio coração. É como se um novo relacionamento (como irmão em
o apóstolo estivesse fazendo um ato de au- Cristo) para sempre.
tossacrifício ao devolvê-lo ao seu senhor. 16 Temos aqui o primeiro uso na car-
Alguns comentaristas sugerem que "enviar ta da palavra escravo com referência a
FILEMOM 1980

Onésimo. Mas isso é qualificado imedia- 18 O apóstolo agora tenta evitar qual-
tamente: não como escravo; antes [...] quer empecilho possível à recepção favo-
como irmão carissimo. Paulo escolheu rável de Onésimo por parte de Filemom.
cuidadosamente as suas palavras; ele não Ele não quer que a reconciliação fracasse
está afirmando que Filemom deve receber por causa de alguma exigência de com-
Onésimo de volta como homem livre e não pensação. Paulo pede a Filemom que
mais como escravo, ou que deve libertá- este debite qualquer dívida resultante da
10 imediatamente depois da sua volta. Mas fuga ou ausência de Onésimo na conta
não importa se Onésimo continua escravo do apóstolo. Lança tudo em minha conta,
ou não, ele já não pode ser tratado como ele diz. Como um pai pelo seu filho (cf v.
escravo. Uma mudança ocorreu nele in- 10), Paulo diz que está preparado a bancar
dependentemente da sua possível liberta- qualquer prejuízo.
ção. Ele é um irmão caríssimo e é tratado 19 Como que entre parênteses ele inclui
exatamente da mesma forma que Filemom a sua própria nota promissória: Eu pagarei.
(7,20) pois ele também é um membro do Então, retomando a ideia do v. 18, ele lem-
corpo de Cristo. O relacionamento entre bra a Filemom que é este que tem dívida
senhor de escravo e escravo deve ser con- para com o apóstolo, pois foi por meio dele
duzido à luz desse pertencimento ao mes- que Filemom se converteu. Este, portanto,
mo Senhor. devia a sua vida espiritual a Paulo e essa
Paulo não está na realidade tratando era uma dívida muito maior do que a que
da questão da escravidão como tal ou Onésimo havia contraído e pela qual Paulo
da resolução de um caso específico de seria responsável. A mensagem está clara.
escravidão. Em vez disso, ele trata aqui Filemom vai entender que ele experimen-
da questão do amor fraternal. Embora a tou a mesma graça de Deus quando se con-
liberdade terrena de Onésimo possa ter verteu. Ele deveria receber Onésimo como
valor positivo, em última análise não tem irmão em Cristo e não ficar irado com ele
significado definitivo para ele como cris- mesmo que tivesse havido bons motivos
tão se ele é escravo ou livre. O que im- para tal.
porta é ter aceito o chamado de Deus de 20 Paulo conclui o corpo da sua carta
segui-lo (ICo 7.21-24). ao sublinhar o seu pedido e expressar o de-
17 Embora Paulo tenha mencionado o sejo de que Filemom renove o seu próprio
fato do seu pedido por Onésimo a Filemom coração em Cristo.
no v. 10, somente aqui ele detalha o seu
conteúdo e vai ao ponto central da carta. 21-25 Observações
Ele fundamenta o seu apelo no elo próxi- finais e saudações
mo que existe entre ele e Filemom - como Nas breves frases finais da carta, Paulo
companheiro. Essa não é uma referência à expressa mais uma vez a sua confiança
parceria em transações comerciais nem a de que Filemom fará o que é certo e então
laços especiais de amizade. Antes, a co- anuncia que planeja visitá-lo (21,22). Uma
munhão dele e de Filemom é com o Filho breve lista de saudações (23,24) e a bênção
de Deus, Jesus Cristo, para a qual ambos concluem a carta (25).
foram chamados (lCo 1.9). Esse relacio- 25 Paulo está confiante na obediência
namento os atraiu a atividades conjuntas de Filemom, não à sua própria autoridade
de modo que companheiro aqui pode ter a apostólica, supostamente embutida no pe-
nuança de "cooperador". Paulo não só in- dido ou apelo da sua carta, mas à vontade
tercede por Onésimo; ele também se iden- de Deus. Ele já orou (6) pela compreensão
tifica com ele: recebe-o, como se fosse a mais profunda de Filemom da vontade de
mim mesmo. Deus e da prática dela em amor. Tinha ha-
1981 FILEMOM

vido evidências claras dessa obediência no isso acontecer será porque Deus respondeu
passado, demonstrada tão concretamente generosamente às orações da igreja nessa
na sua generosidade contínua quando en- casa. O anúncio dessa esperança dá cer-
corajou o coração dos santos (7). Paulo ta ênfase à intercessão dele por Onésimo
agora espera que ela se mostre mais uma visto que o capacitará a ver por si mesmo
vez. Na verdade, ele crê que Filemomfará como as coisas aconteceram.
mais do que estou pedindo, uma pista, mas 23,24 Os que enviam saudações são
nada mais, de que Onésimo pode ser de- também os mencionados em Colossenses
volvido a ele para o serviço do evangelho. 4.10-17, enquanto a conclusão (25) é igual
22 A menção a pousada ("um aposen- à conclusão de Gálatas.
to", NVI) sugere que Paulo considerava o
seu encarceramento temporário. Ele espe-
ra vir em pessoa e visitar Filemom, e se Peter T. O'Brien
HEBREUS

INTRODUÇÃO
À primeira vista, Hebreus é aparente- vida contemporânea. Hebreus mostra que
mente um dos livros do NT de mais difí- a advertência e o encorajamento eficazes
cil compreensão e relação com o nosso estão fundamentados em boa teologia.
mundo moderno. Inúmeras citações do AT
e alusões a ele enchem as suas páginas, Que tipo de literatura é essa?
e muitos detalhes acerca do sacerdócio e Seria Hebreus de fato uma "carta" em es-
do sistema sacrificial de Israel controlam tilo e formato? Certamente termina como
a argumentação. Na hora que alguns lei- muitas cartas do NT (13.18-25), com ins-
tores chegam à comparação entre Cristo truções e encorajamentos específicos para
e Melquisedeque em Hebreus 7, sentem- os endereçados. Além disso, diversos tre-
se totalmente perdidos e ponderam se chos de advertência e apelo em todo o livro
tudo isso é de fato relevante! Além disso, mostram o conhecimento pessoal da situa-
muitos se sentem desconfortáveis com os ção dos leitores originários e uma enor-
trechos de advertência (e.g., 2.1-4; 3.7- me preocupação pelo seu bem-estar (e.g.,
4.11; 6.4-8; 10.26-31; 12.14-17), que pa- 5.11-6.3; 6.9-12; 10.32-39; 12.4-13).
recem minar as certezas estabelecidas por Contudo, o livro começa de forma nor-
outros trechos e sugerem que os crentes mal (1.1-4), sem palavra alguma acerca de
podem cair e se desviar de Cristo. quem é o autor ou quem são os receptores,
A argumentação é complexa, mas e sem pista alguma da relação entre eles. O
Hebreus é uma mina de ouro para aqueles autor não oferece orações pelos seus leito-
que querem cavar mais fundo. Há muitos res nesse momento e não há expressão de
tesouros aqui para enriquecer o nosso en- gratidão (cf as introduções à maioria das
tendimento de Deus e de seus propósitos. cartas de Paulo).
Cada seção cuidadosamente estruturada Hebreus é um tratamento ordenado
contribui para o desenvolvimento do tema e sistemático da pessoa e obra de Cristo,
central, fornecendo percepções distintas fundamentado na exposição de certos tre-
e importantes acerca da pessoa e obra do chos-chave do AT. Por exemplo, Salmos
Senhor Jesus Cristo e da natureza da nos- 8.4-6 é central para o argumento de 2.5-18,
sa salvação. Embora sejam empregados Salmos 95.7-11 é exposto em certa ex-
muitos textos do AT, algumas seções de tensão em 3.1-4.13, Salmos 110.4 é o
Hebreus estão fundamentadas na exposi- texto-chave em 4.14-7.28, e Jeremias
ção de um único texto, com outros sendo 31.31-34 é fundamental para o argumen-
usados como apoio. Dessa forma, o autor to de 8.1-10.39. Cada texto é usado para
nos mostra como interpretar o AT à luz do mostrar como os ideais e instituições do AT
seu cumprimento, e podemos entender encontram o seu cumprimento em Cristo.
como estão conectadas as duas divisões Assim, seria Hebreus mais um ensaio ou
da Bíblia cristã. Visto que o autor associa tratado teológico?
regularmente as suas percepções às neces- Considerando o seu estilo retórico
sidades dos primeiros leitores, podemos (particularmente as referências ao autor
aprender a aplicar esse argumento à nossa como alguém "falando" à sua plateia, e.g.,
1983 HEBREUS

2.5; 5.11; 6.9; 8.1; 9.5; 11.32) e o uso de temas e argumentos tipicamente paulinos
trechos do AT como base para o argumen- estão faltando em Hebreus. Mesmo quan-
to na maioria das divisões principais do do são discutidos temas semelhantes, são
livro, o livro parece mais um sermão ou tratados de forma diferente. E Paulo, que
homilia em forma escrita, com algumas tanto ressalta a sua posição de apóstolo
observações pessoais no final. Isso está em e testemunha ocular do Cristo ressurreto
harmonia com a própria descrição do autor (e.g., Gl 1.11-16; lCo 15.8), dificilmente
da sua obra como uma "palavra de exorta- poderia ter escrito que tinha recebido a
ção" ou palavra de encorajamento (13.22). mensagem de Cristo de segunda mão: "foi-
Encontramos a mesma expressão em Atos nos depois confirmada [a salvação] pelos
13.15 para denotar um sermão após a lei- que a ouviram" (2.3).
tura das Escrituras na sinagoga judaica em Na igreja ocidental, o escritor Tertuliano
Antioquia da Pisídia. Hebreus foi escrito do século II sugeriu Barnabé como o autor
por um pregador de grande percepção pas- de Hebreus, e essa solução com frequên-
toral, desejando aplicar as convicções das cia tem sido atraente aos eruditos. Como
Escrituras às necessidades de um grupo levita de Chipre, esse "filho de exortação"
particular de cristãos pelos quais estava (At 4.36) pode bem ter sido responsável
preocupado. por essa "palavra de exortação" (13.22)
V. também o artigo "Lendo as cartas". que trata de forma tão exaustiva o tema
do sacrificio, do sacerdócio e da adoração.
Quem escreveu o livro? Como judeu da dispersão, ele muito possi-
Os exemplares mais antigos do NT colocam velmente tinha contato com o ensino hele-
esse documento entre as cartas de Paulo, nista e filosófico do judaísmo alexandrino
mas o próprio livro de Hebreus não faz com o qual o autor de Hebreus parece ter
reivindicação alguma de autoria paulina. tido alguma familiaridade.
Os escritores do século n, Clemente de Martinho Lutero foi o primeiro a
Alexandria e Orígenes, confirmam que propor Apolo como autor, e essa teoria
Paulo era amplamente reconhecido como o também atraiu alguns apoiadores. Como
autor na parte oriental do Império Romano. judeu alexandrino de ótima formação aca-
Contudo, eles perceberam o quanto Hebreus dêmica, Apolo era "eloquente e poderoso
difere dos escritos de Paulo em conteúdo e nas Escrituras" e atuava na mesma esfera
estilo. Eles propuseram que Paulo foi, de missionária de Paulo (At 18.24-28). Ele
alguma forma, responsável pela obra, mas poderia muito bem ter escrito uma obra
que outra pessoa de fato a compôs. A acei- como Hebreus.
tação de Hebreus como um livro paulino No entanto, no final das contas, preci-
não era muito difundida na igreja ociden- samos dizer que as evidências a favor de
tal até o século v. Depois disso, a tradição Barnabé ou Apolo não são conclusivas.
permaneceu praticamente incontestada até Aliás, não precisamos saber a identidade
a Reforma do século XVI, quando foi am- do autor para apreciar a sua obra e aceitar a
plamente questionada de novo. sua autoridade. O próprio livro de Hebreus
Estudiosos da atualidade em geral con- indica que a autoria humana das Escrituras
cordam que os argumentos contra a autoria é de importância secundária. Assim, por
de Paulo são conclusivos. À parte de dife- exemplo, ao reconhecer Davi como au-
renças de estilo, Hebreus desenvolve um tor de Salmos 95, Hebreus sustenta que o
retrato de Jesus como sumo sacerdote e de Espírito Santo foi o seu primeiro e prin-
sua obra como o cumprimento do ritual cipal autor (4.7; 3.7). Em outro exemplo,
sacrificial do AT que encontra poucos para- a autoria humana do salmo 8 não é men-
lelos em Paulo. Ao mesmo tempo, muitos cionada (2.6) e não é importante para a
HEBREUS 1984

compreensão dele como escritura divina- em perigo de endurecer o seu coração


mente inspirada e profética. De modo se- pela incredulidade, desviando-se, assim,
melhante, devemos estar dispostos a acei- do Deus vivo, e perdendo o "descanso"
tar que pouco importa quem Deus usou celestial prometido por Deus (3.7---4.11).
para escrever Hebreus. Sintomático dessa enfermidade espiritual
foi a sua falta de disposição para progredir
Quando o livro foi escrito? para uma compreensão mais profunda da
Quando Hebreus foi escrito, os leitores já mensagem cristã e de suas implicações,
eram cristãos havia algum tempo (5.12) junto com a relutância de compartilhar
e tinham sofrido um período significa- essa compreensão com outros (5.11-14).
tivo de perseguição (10.32-34). Alguns Alguns estavam se afastando dos encon-
dos seus primeiros líderes já tinham fa- tros regulares dos crentes para encoraja-
lecido (13.7), mas Timóteo ainda estava mento mútuo (10.24,25).
vivo (13.23). Talvez tivessem transcor- O problema, contudo, não era simples-
rido algumas décadas desde o início do mente de crescimento espiritual lento. O
movimento cristão. A primeira alusão a autor fala em tom entusiasmado da fé, da
Hebreus na literatura cristã primitiva está esperança e do amor que eles tinham prati-
na carta escrita por Clemente de Roma, cado em épocas anteriores, quando foram
que data de c. 96 d.e. ou um pouco de- publicamente expostos ao insulto e perse-
pois. Mas há razões para crer que Hebreus guição (10.32-34). Ele desafia à renovação
foi escrito muito antes disso. daquele zelo em todos os sentidos (6.11,12;
A destruição do templo de Jerusalém e 13.1-19). Os que estavam em perigo de
a interrupção do sistema sacrificial ocorre- lançar fora sua confiança em Deus e es-
ram em 70 d.e., mas não há referência al- corregando para longe de tal compromisso
guma a esse estado de coisas em Hebreus. estavam ficando fatigados e precisavam de
Embora grande parte dos detalhes rituais todo o encorajamento possível para perse-
encontrados em Hebreus seja tomada do verar na fé e suportar as provações, para
relato veterotestamentário do tabernácu- que pudessem obter o que fora prometido
lo, e o ritual do templo era o ritual do ta- (10.35-39; 12.1-13). Talvez tinham sido
bernáculo, o nosso autor escreve como se desgastados por hostilidade contínua por
este ritual ainda estivesse sendo praticado parte dos incrédulos, e sua esperança es-
(e.g., 9.6-9; 10.1-4). Algumas alusões aos tava enfraquecida pela demora da volta de
eventos de 70 d.e. certamente teriam for- Cristo (10.35-39).
talecido o seu argumento de que o primeiro Quando nos voltamos para os trechos
concerto era agora "antiquado e envelheci- que expõem temas teológicos, podemos
do" (8.13). Por conta disso, parece melhor discernir algo mais acerca das necessida-
concluir que Hebreus foi escrito em algum des dos leitores e do propósito do autor ao
momento na década antes de 70 d.e. escrever a eles. Hebreus começa com a ên-
fase na superioridade e finalidade (conclu-
Qual era a situação dos sividade) da revelação que veio por meio
primeiros receptores e por do Filho de Deus (1.1-14). Os leitores são
que Hebreus foi escrito? instados a não se afastar da mensagem que
Uma análise dos trechos de exortação e suplanta até mesmo a "palavra falada por
encorajamento revela algo da situação meio de anjos" (2.1-4). É uma mensagem
dos endereçados. Ao menos alguns de- acerca da salvação eterna, obtida pelo Filho
les estavam em perigo de se desviar do de Deus no seu sofrimento e na sua exalta-
evangelho e da salvação que ele oferece ção celestial (2.5-18). De diversas formas,
(2.1-4). Mais especificamente, estavam o autor se empenha em ressaltar que o cris-
1985 HEBREUS

tianismo é o cumprimento de tudo que foi Tendo dito tudo isso, é dificil ter cer-
revelado pelo Deus de Israel na Lei e nos teza acerca da exata localização dos pri-
Profetas. meiros leitores ou acerca da exata forma
Como encorajamento a que os leitores de judaísmo do qual eles se voltaram a
se apeguem firmemente à sua fé, o autor Cristo. Aparentemente eram judeus da dis-
então começa a desenvolver a ideia de que persão, e não judeus da Palestina. As suas
Jesus é um "misericordioso e fiel sumo Escrituras muito provavelmente eram o
sacerdote" (2.17,18; 4.14-5.10). Esse re- AT grego, e não o hebraico. A expressão:
trato de Jesus como sumo sacerdote conti- "Os da Itália vos saúdam" (13.24) prova-
nua no cp. 7, em que se argumenta que a velmente quer dizer que alguns crentes da
"perfeição" não poderia ser atingida pelo Itália estavam com o autor e queriam en-
método de aproximação de Deus associado viar uma saudação aos que estavam loca-
ao sacerdócio tradicional judaico. O cp. 8 lizados em algum lugar da sua terra natal.
vai adiante e estabelece que o sacerdócio Mais especificamente, é sustentável que os
superior de Jesus inaugura a nova aliança receptores tenham sido uma seção judaica
prometida em Jeremias 31.31-34. A morte na comunidade cristã de Roma.
e a exaltação celestial de Jesus são apre- Como observado anteriormente, as ci-
sentadas como cumprimento e substituição tações mais antigas que conhecemos de
de todos os rituais sacrificiais da "primeira Hebreus aparecem numa carta escrita
aliança", proporcionando o perdão eterna- por Clemente de Roma. Também, a refe-
mente eficaz dos pecados e a certeza de rência à perseguição em 10.32-34 (sem
obtenção da "promessa de eterna herança" derramamento de sangue, 12.4) poderia
(9.1-10.18). estar associada aos problemas em Roma
Essa seção central de Hebreus é argu- quando Cláudio se tomou imperador. O
mentada com tal seriedade e é fundamen- historiador romano Suetônio registra
tada com tantas comparações específicas que os judeus estavam "constantemente
entre as provisões da lei mosaica e a rea- se metendo em revoltas, instigados por
lização de Cristo que é provável que os Chrestus". Em geral se concorda que es-
leitores tenham sido predominantemen- sas revoltas resultaram da introdução da
te judeus cristãos. Embora o título "Aos mensagem de Cristo (representado por
Hebreus" remonte ao século 11, provavel- Suetônio como "Chrestus") na colônia
mente não fazia parte do texto original. judaica em Roma. Atos 18.2 menciona
No entanto, a maioria dos comentaristas dois judeus cristãos, Áquila e Priscila,
argumenta que aponta na direção correta. que estavam entre os judeus expulsos da
Ao menos alguns dos receptores da carta capital por Cláudio em 49 d.e. Hebreus
haviam sido tentados a se afastar e voltar pode ter sido escrito algumas décadas
ao judaísmo ou estavam relutantes em mais tarde a um grupo de tais pessoas em
cortar os últimos laços com a sua religião Roma, quando a perseguição anticristã
ancestral. Talvez tenha havido pressão de estava se intensificando novamente.
origem judaica para fazerem isso ou tal- Em certo nível, Hebreus continua a fun-
vez foi simplesmente a tentação de voltar cionar como uma advertência acerca das
ao conforto e à segurança da forma antiga consequências de os cristãos se afastarem
que os motivou. Da perspectiva do autor, da comunhão cristã, de negarem a Cristo
recair na religião do AT é de fato se afastar e de abandonarem a esperança nele. Do
do Deus vivo (3.12), visto que o Filho de lado positivo, funciona como um encora-
Deus inaugurou a perfeição da nova alian- jamento à perseverança na fé, na esperan-
ça (9.11-15) e obteve realidades que o AT ça e no amor, independentemente das lutas
só prenunciava (l 0.1). e dificuldades que enfrentamos. O autor
HEBREUS 1986

busca promover tal perseverança ao fixar "Sumo sacerdote" também é uma palavra-
o olhar dos leitores em Jesus (3.1; 12.2,3). gancho, um termo que inicia e conclui am-
Como Filho de Deus e sumo sacerdote da bas as subdivisões (3.1; 4.14; 4.15; 5.10),
nova aliança, ele é a revelação definitiva e é característica da seção toda. Depois de
de Deus e dos seus propósitos e aquele que uma breve comparação entre a fidelidade
somente pode nos levar a compartilhar do de Jesus e a fidelidade de Moisés (3.1-6),
seu governo celestial. o autor apresenta uma longa exortação aos
leitores para que mantenham a sua fé em
Qual é a estrutura da Jesus (3.7---4.14). A compaixão de Jesus
argumentação? como um sumo sacerdote celestial o capa-
O estudo detalhado da estrutura de Hebreus cita a ser misericordioso para com os peca-
revela um padrão cuidadosamente equi- dos do seu povo e prover-lhes a ajuda para
librado e intricadamente entretecido de perseverarem em fidelidade (4.15-5.18).
temas. Albert Vanhoye, que fez a contri- A sua compaixão (4.15) pela situação deles
buição mais significativa a essa área de foi obtida durante seu período terreno de
pesquisa, observa que o autor anuncia sofrimento (5.8) e provação.
regularmente o tema de uma nova seção Em 5.9,10, o tema da terceira seção
enquanto conduz a anterior à sua conclu- principal de Hebreus é anunciado: Jesus, o
são. Esses "anúncios do tema" podem ser sumo sacerdote aperfeiçoado na ordem de
encontrados em 1.4; 2.17; 5.9,10; 10.36- Melquisedeque e autor de salvação eterna.
39; 12.12,13. Algumas "palavras-gancho" Antes de o autor se empenhar na exposição
fazem o elo entre o começo da nova seção desses grandes temas, ele exorta os seus
e a precedente. Em cada seção principal leitores a que não se tomem preguiçosos
da argumentação há "termos característi- e relutantes em crescer para a maturidade
cos" que podem ser, em grande parte, res- em Cristo (5.11-6.20). A intenção clara é
tritos àquela porção do livro. Finalmente, motivá-los a que tomem nota do ensino que
há indicações do final de cada segmento. segue e o apliquem à sua própria situação.
Assim, o livro pode ser dividido em gran- Isso conduz à explicação do que significa
des seções como segue. chamar Jesus de sumo sacerdote "segun-
Assim que conclui a breve mas pro- do a ordem de Melquisedeque" (7.1-28).
funda introdução de Hebreus (104), o autor Em termos gerais, os cp. 8 e 9 mostram
indica que a seção seguinte vai tratar de como o aperfeiçoamento de Jesus como
uma comparação entre o Filho e os anjos. sumo sacerdote, pelo seu sofrimento, sua
"Anjos" é um tema característico da argu- morte e sua exaltação celestial, conduz à
mentação de 1.5 a 2.16 e somente ocorre perfeição da nova aliança para os crentes.
novamente no livro em 13.2. "Anjos" é Em seguida, o autor desenvolve a noção de
também a palavra-gancho que conecta 1.4 que Jesus é o "Autor da salvação eterna"
com 1.5 e a palavra que conclui a seção (5.9; "causa de eterna salvação", ARe) em
toda (2.16). No meio das seções, há um 10.1-18. Por causa da simplicidade, não é
chamado (2.1-4) à resposta adequada à adequado entrar em detalhes aqui acerca
mensagem trazida por aquele que é maior das palavras e subdivisões-chave nesses
do que os anjos. capítulos. A seção central de Hebreus con-
Em 2.17, o autor anuncia que o tema clui o chamado (10.19-39) que expressa as
da seção seguinte (3.1-5.10) será Jesus implicações do ensino precedente.
como o misericordioso e fiel sumo sacer- Fé e perseverança é o tema da quar-
dote. "Fiel" é o termo característico da pri- ta seção principal (11.1-12.13) e isso é
meira subdivisão (3.1---4.14) e também é a anunciado em 10.36-39. A fé é o foco na
palavra-gancho que conecta 2.17 com 3.2. primeira subdivisão dessa seção (11.1-40),
11
1987 HEBREUS . : .

com a perseverança sendo ressaltada mais Leitura adicional


na segunda (12.1-13). A quinta seção de BRüWN, R. The Message ofHebrews. BST.
Hebreus (12.14-13.17) não é tão fácil de Inter-Varsity Press, 1982.
identificar em termos dos critérios usa- GOODING, D. An Unshakeable Kingdom -
dos anteriormente. No entanto, os seus the Letter of Hebrews for today. Inter-
apelos estão claramente dirigidos tanto à Varsity Press, 1989.
remoção de todos os obstáculos à fé e à GUTHRIE, D. Hebreus: introdução e comen-
perseverança quanto à busca da vida pie- tário. SCR Vida Nova, 1984.
dosa. O anúncio do tema em 12.12,13 su- BRUCE, F. F. The Epistle to the Hebrews.
gere que é um desafio para que se façam NICNT. Eerdmans, 1990.
"caminhos retos para os pés". Em termos HUGHES, P. E. A commentary on the Epistle
mais gerais, podemos dar-lhe o título de to the Hebrews. Eerdmans, 1977.
"Apelos para um modo de vida que honra LANE, W. L. Hebrews. 2 v. WBC. Word,
a Deus". Alguns pedidos e saudações pes- 1991.
soais formam a conclusão da obra como
um todo (13.18-25).

ESBOÇO
1.1-4 Introdução: A palavra final de Deus
1.5-2.18 O Filho e os anjos
1.5-14 A superioridade do Filho em relação aos anjos
2.1-4 O desafio para que os leitores se apeguem firmemente ao
Filho e à sua mensagem
2.5-18 A humilhação e a exaltação do Filho

3.1-5.10 Jesus como o misericordioso e fiel sumo sacerdote


3.1-6 A Cristo
3.7-4.13 O desafio à fidelidade
4.14-5.10 A compaixão de Cristo

5.11-10.39 Jesus, o sumo sacerdote aperfeiçoado na ordem de Melquisedeque e


autor de eterna salvação
5.11-6.20 O desafio para que os leitores aprendam e progridam
7.1-28 O eterno sumo sacerdócio de Cristo
8.1-13 O mediador da nova aliança
9.1-10 As limitações da antiga aliança
9.11-28 O que Cristo realizou na sua morte e exaltação
10.1-18 Os benefícios da nova aliança
10.19-39 O desafio para que os leitores se apeguem aos benefícios
da nova aliança

11.1-12.13 Fé e perseverança
11.1-40 A celebração da fé
12.1-13 O desafio à perseverança
HEBREUS 1 1988

12.14-13.25 Apelos para um modo de vida que honra a Deus


12.14-17 Uma exortação final contra o fracasso
12.18-29 Resposta ao chamado de Deus
13.1-17 A adoração e a vida cotidiana
13.18-25 Saudações pessoais e bênção final

COMENTÁRIO ele é herdeiro de todas as coisas (2, cf SI


2.7,8). Embora muitos neguem a sua auto-
1.1-4 Introdução: ridade e continuem a rejeitá-lo, no fim ele
A palavra final de Deus certamente triunfará. Como o resplendor
Vivemos num mundo em que muitas pes- da glória e a expressão exata do seu Ser,
soas duvidam de que se possa conhecer a o Filho revela na sua pessoa, não somen-
Deus e em que há muitos pontos de vista te nas suas palavras, como Deus é de fato
religiosos e filosofias conflitantes. Mesmo (3). Ele continua a sustentar a criação e a
entre cristãos professos às vezes há reivin- ordem dos eventos da história pela mesma
dicações de revelação adicional que contra- palavra do seu poder que trouxe tudo à
dizem ou afirmam ir além das Escrituras. existência no início (3).
No entanto, Hebreus não nos deixa dúvida Visto que o alvo da revelação divina
alguma acerca do fato de que Deus falou sempre tem sido a comunhão entre Deus
de forma decisiva a Israel pelos profetas e e os seres humanos, Hebreus logo deixa
de que ele revelou total e conclusivamente claro que o papel do Filho foi prover puri-
o seu caráter e vontade pelo Filho (1,2). A ficação dos pecados (3). Isso prenuncia o
revelação do AT veio muitas vezes por meio argumento de 2.14-18 e textos posteriores,
da história de Israel e de muitas maneiras, que falam da necessidade de que o Filho
como sonhos, visões e mensagens de anjos. compartilhe completamente da nossa hu-
Mas a revelação definitiva veio nestes últi- manidade, que sofra e morra, para que
mos dias da história humana, por meio de assim possa cumprir a função de sumo
Jesus Cristo. O autor vai prosseguir e su- sacerdote de fazer expiação pelos nossos
gerir que o AT foi um preparo para essa re- pecados. Em outras palavras, a palavra fi-
velação definitiva, como também o funda- nal de Deus a nós não é simplesmente a
mento para ela (e.g., 8.5; 10.1). Aliás, Deus perfeita revelação do seu caráter em Jesus
continua a falar aos cristãos por meio das Cristo, mas também a sua obra salvífica,
Escrituras do AT em uma grande diversida- tomando possível que desfrutemos de tudo
de de circunstâncias (e.g., 3.7-11; 12.5,6). que foi prometido por Deus para o seu
No entanto, para destacar a finalidade (con- povo nestes últimos dias.
clusividade) da revelação por meio de Jesus A continuação dessa obra expiatória foi
Cristo, o autor aponta para a sua incompa- o seu assentar-se à direita da Majestade,
rável grandeza como Filho de Deus. nas alturas (cf SI 110.1). Tão significati-
Como aquele que estava com Deus des- va é a entronização celestial do Filho de
de o início, ele foi aquele por meio de quem Deus que Hebreus aqui não faz menção
Deus fez o universo (gr. aiõnas, "eras" ou alguma da ressurreição e da ascensão que
"mundos", é usado de forma semelhante a tomaram possível. Antes, à medida que
como referência ao universo todo de tem- a introdução chega ao seu final, o autor
po e espaço em 11.3). Além disso, o Filho indica que está prestes a expressar as
- que fora originariamente instrumento implicações dessa entronização. Ele vai
na criação de todas as coisas - foi agora estabelecer a absoluta superioridade do
designado para possuí-las e governá-las: Filho em relação aos anjos, aqueles seres
11
1989 HEBREUS 1 1111
1lII.

sobrenaturais que Israel pensava serem os Deus na satisfação dessa necessidade são
mais próximos de Deus (4). destacados. A ideia do governo celestial de
Cristo está em proeminência de novo, para
1.5-2.18 O Filho e os anjos nos assegurar de que no final tudo será co-
É útil e aconselhável ler antes toda essa locado "debaixo dos seus pés" (2.8) e que,
seção de Hebreus para enxergar melhor apesar dos obstáculos, os verdadeiros dis-
como as peças se encaixam, para depois cípulos reinarão com ele.
focalizar nos detalhes. As pessoas a quem
a carta foi enviada aparentemente tinham 1.5-14 A superioridade do Filho
alguma dificuldade em entender o relacio- em relação aos anjos
namento entre Cristo e os anjos, mas não Os textos bíblicos citados nesse trecho têm
há forma de identificar com certeza a na- o efeito de reforçar e expor alguns dos te-
tureza exata do problema deles. Com base mas importantes já mencionados na intro-
em 2.5-9, poderia parecer que o fato de o dução (1-4). Em particular, a referência à
Filho, "por um pouco, ter sido feito menor entronização celestial do Filho (3) muito
que os anjos" na época do seu nascimento naturalmente conduz à explicação da po-
precisava de alguma explicação. Como po- sição dele em relação ao mundo dos anjos.
deria ele ser maior do que os anjos e com- Salmos 11 0.1 fornece o quadro referencial
partilhar totalmente da nossa natureza? Por em que esses diversos textos do Ar devem
que aquele que era maior do que os anjos ser compreendidos. Faz-se uma referên-
tinha de sofrer e morrer, como anuncia o cia a ele no v. 3 ("assentou-se à direita da
evangelho cristão? A natureza e o propósi- Majestade, nas alturas") e é citado inteira-
to do que tecnicamente é chamado de "en- mente no v. 13. Assim, o tema da entroni-
carnação" continuam a ser um tema muito zação e do governo celestial de Cristo é o
debatido na nossa época, e Hebreus forne- foco dessa seção. Jesus usou Salmos 110.1
ce percepções distintivas para o assunto para apontar para a posição exaltada e ce-
nesse ponto. lestial do Messias ou Cristo na perspectiva
Com base em 2.1-4, parece que os lei- do Ar (e.g., Me 12.35-37; 14.61,62), e o
tores originários defendiam a crença popu- trecho foi então empregado regularmen-
lar judaica segundo a qual os anjos tinham te pelos primeiros cristãos para fazer tais
se envolvido na entrega da lei a Moisés afirmações acerca do Jesus ressurreto (e.g.,
(cf At 7.53; Gl3.19). Eles precisavam ser 10.12-14; At 2.34-36; 1Co 15.25). Há mais
firmados na convicção da posição e do ca- alusões a esse texto-chave em 8.1 e 12.2.
ráter superiores daquele que foi o agente 5 Salmos 2.7 é citado porque é uma
da nova revelação. De forma semelhante, profecia aplicável ao Messias como Filho
muitas pessoas hoje precisam ser conven- de Davi e Filho de Deus. A base teológica
cidas de que Jesus Cristo é mais do que um dessa afirmação extraordinária é a promes-
profeta ou mensageiro angélico. Nenhuma sa especial de Deus a Davi e sua dinastia
revelação maior de Deus pode ser dada em 2Samuel 7.14, trecho que também é
nem pode ser esperada. Por isso, é perigo- citado. Quando os filhos de Davi eram en-
so desconsiderar a mensagem de salvação tronizados como representantes de Deus
que veio dele. em Jerusalém, desfrutavam de um rela-
Em 2.5-18, o texto nos diz que a obra cionamento especial de filiação de Deus.
terrena do Filho foi obter a salvação do Jesus é o que cumpre definitivamente essas
pecado e suas consequências, capacitando Escrituras porque ele é o eterno Filho de
os crentes a compartilhar a glória e honra Deus (como em 1.2,3), cuja ressurreição
dele no "mundo que há de vir". O tamanho e ascensão o levaram novamente ao lugar
da nossa necessidade e a incrivel graça de de toda a autoridade e poder no universo,
HEBREUS 2 1990

"à direita" do Pai (cf o uso de SI 2.7 e que eles sirvam aos propósitos dele e exe-
At 13.33). cutem as ordens dele. Aliás, eles servem a
6 Promessas semelhantes a essa nun- Deus ao servir àqueles que hão de herdar a
ca foram feitas aos anjos. A tarefa deles salvação. Os anjos são maiores do que nós
sempre foi adorar a Deus (cf Dt 32.43; na ordem da criação (SI 8.4-6), mas eles
SI 96.7). Por consequência, eles precisam foram comissionados a nos ajudar de for-
adorar o Filho que está assentado à direita mas que estão além da nossa compreensão,
dele. Ao compartilhar completamente da assim que possamos obter a nossa herança
nossa humanidade, ele se tomou por um celestial (cf 13.2).
período "menor que os anjos", mas agora
está "coroado de glória e de honra" (2.9). 2. 1-4 O desafio para que os
A introdução do primogênito de Deus no leitores se apeguem firmemente
mundo (gr. oikoumenê, como em 2.5) é ao Filho e à sua mensagem
mais bem interpretada no contexto como Esse parágrafo desenvolve diretamente
uma referência à entrada de Cristo naquilo as consequências práticas do capítulo an-
que para nós ainda é "o mundo que há de terior. É o primeiro de diversos trechos
vir" (2.5). Isso aconteceu quando ele subiu de advertência, revelando a preocupação
às "regiões celestiais". do autor acerca da situação de ao menos
7-9 O texto grego de Salmos 104.4 su- alguns dos seus leitores. Positivamente,
gere que os anjos foram criados para le- o encorajamento é: importa que nos ape-
var as ordens de Deus com a rapidez dos guemos, com mais firmeza, às verdades
ventos e a força do fogo. Eles são parte da ouvidas (1). Negativamente, à advertência
ordem criada e precisam ser subordinados é para que delas jamais nos desviemos,
ao Filho, pois ele compartilha com o Pai como pessoas num barco que perdeu as
do governo divino (trono) que é para todo suas amarras e está se aproximando rapi-
o sempre. Salmos 45.6,7, que celebra um damente de quedas d'água. Aqui o ponto é
casamento real, é usado com referência a simplesmente ressaltar que o afastamento
Cristo, o rei de Israel, que cumpre de forma tem consequências desastrosas.
suprema o ideal de participar da equidade A mensagem que Hebreus tem em
e da alegria do reino eterno de Deus. mente é o evangelho da salvação que foi
10-12 A eternidade de Cristo e de anunciada inicialmente pelo Senhor (i.e.,
seu governo é ressaltada novamente em Jesus) e foi-nos depois confirmada pelos
Salmos 102.25-27. Isso é contrastado com que a ouviram (3). O autor e seus leito-
a criação perecível que ele fundou e que res não faziam parte da primeira geração
um dia vai enrolar como vestes. Hebreus de cristãos, mas certamente receberam o
interpreta o texto grego de ambos esses evangelho daqueles que dela tinham feito
salmos como significando que o Pai se parte. Quando a mensagem foi anuncia-
dirige ao seu Filho como Deus e Senhor. da a eles pelos que a receberam de Jesus,
Salmos 110.1 pode ter influenciado essa Deus testificou da sua origem sobrenatu-
interpretação, visto que ali o Senhor se di- ral por sinais, prodígios e vários milagres
rige a alguém outro como "meu Senhor" e e por distribuições do Espírito Santo, se-
o convida a se sentar à sua direita. gundo a sua vontade (4).
13,14 Ao voltar ao texto que parece O evangelho é de importância maior
ter sido o ponto de partida para as suas do que a palavra falada por meio de an-
reflexões, o autor usa Salmos 11 0.1 para jos a Israel no monte Sinai. É a mensagem
sustentar em que os anjos não exercem a anunciada pelo próprio Filho de Deus,
autoridade e o governo do Filho. Como concernente à eterna salvação e à forma
espíritos ministradores, a função deles é em que se pode obtê-la. Se toda trans-
1991 HEBREUS 2

gressão ou desobediência recebeu justo Deus, e não a anjos (cf 1.13). No entanto,
castigo sob os termos daquela revelação Hebreus sugere que a era vindoura na ver-
anterior, como poderia haver escape para dade já foi estabelecida pela entronização
aqueles que ignoram ou negligenciam os de Cristo à direita de Deus. Seus benefí-
termos da revelação final de Deus (2,3)? cios estão sendo experimentados de forma
O juízo que enfrentarão aqueles que dão as adiantada pelos crentes (e.g., 2.4; 6.4-6;
costas a Deus precisa ser maior do que o 12.22-24), enquanto esperam a volta de
castigo experimentado por Israel nos tem- Jesus para conduzi-los ao completo desfru-
pos do AT. O autor diz mais a respeito disso te da salvação que ele já obteve para eles
em 10.26-31. (e.g., 9.28; 10.36-39).
6-8 Salmos 8.4-6 é citado para explicar
2.5-18 A humilhação como o Filho obteve e firmou o seu gover-
e a exaltação do Filho no messiânico. No contexto originário, es-
Tendo indicado que a mensagem do Filho ses versículos celebram a posição exaltada
é acerca da salvação, nessa seção o autor dos seres humanos na criação de Deus. No
passa a explicar como essa salvação foi entanto, o salmista fala em termos ideais,
realizada e o que ela significa para nós. visto que o pecado, a morte e o diabo nos
O tema da entronização e do governo ce- impedem de exercer domínio neste mun-
lestial de Cristo é retomado, e o texto nos do como era a intenção de Deus (cf Gn
mostra por que o Filho tinha de ser, por um 1.26-31 e 3.14-19). O domínio completo
tempo, menor que os anjos antes de ser co- é prometido ao Messias em Salmos 110.1,
roado de glória e de honra. Salmos 8.4-6 é e Hebreus interpreta esse texto como uma
o texto-chave, com outras três citações do pista para o significado definitivo e a apli-
AT sendo usadas como apoio (cf 2.12,13). cação de Salmos 8.4-6. O papel do Filho é
Jesus é o homem que "cumpre" o salmo 8, cumprir o destino da raça humana. Agora,
ao sofrer a morte e ser exaltado à direita porém, ainda não vemos todas as coisas a
de Deus. Hebreus então explora as impli- ele sujeitas. Como podemos ter certeza de
cações desse "aperfeiçoamento" de Cristo que o mundo por vir estará sujeito a ele?
para nós (2.10-16). O Filho precisou com- 9 O autor interpreta por um pouco, ten-
partilhar de nossa humanidade, sofrer e do sido feito menor que os anjos como uma
morrer, para que nós pudéssemos compar- referência à humilhação do Filho de Deus,
tilhar da glória dele. Em 2.17,18, esse en- experimentada quando ele veio para com-
sino é expresso novamente em termos do partilhar inteiramente da nossa humanida-
chamado do Filho para ser misericordioso de (cf 2.14-18). Observe a introdução do
efiel sumo sacerdote. nome humano Jesus nesse ponto da argu-
S O mundo que há de vir lembra a espe- mentação. Coroado de glória e de honra é
rança de Israel pela gloriosa "era por vir", uma referência à exaltação celestial que ele
incluindo a renovação da criação ou o esta- experimentou por causa do sofrimento da
belecimento de "novos céus e nova terra" morte. A ascensão do Messias crucificado
(e.g., Is 65.17-25), às vezes associados es- à direita de Deus é a garantia de que Deus
pecificamente com a obra do Messias (e.g., vai finalmente sujeitar todas as coisas. A
Is 11.1-9). Em outros trechos, Hebreus morte foi o caminho para tal glória para
fala acerca do "descanso" prometido por ele, mas, pela graça de Deus, é também o
Deus (4.1-11), da esperança de uma "pá- meio de salvação para nós. Os versículos
tria celestial" (11.16) ou da "cidade que há seguintes explicam o que significou para
de vir" (13.14). Essas diferentes imagens ele [provar] a morte por todo homem.
são usadas para descrever a nova ordem 10 O plano de Deus para a humanida-
do mundo, que estará sujeita ao Filho de de foi cumprido por meio de um homem,
HEBREUS 2 1992

Jesus Cristo (cf Rm 5.12-21). Convinha de frase de Isaías 8.17 (Eu porei nele a mi-
forma soberana a Deus, como aquele que nha confiança) como um sinalizador para
criou todas as coisas para os seus próprios a fiel confiança de Jesus no Pai na execu-
propósitos, conduzir muitos filhos à gló- ção do seu ministério terreno (13). Isaías
ria dessa forma. Jesus é o cabeça de um 8.18 é então usado para identificar a igreja
grande grupo de pessoas destinadas a com- como os filhos dados por Deus a Jesus. A
partilhar da sua honra e glória. Eles são sua perseverança em fé, mesmo a ponto de
diversamente denominados filhos (10,13), morrer, toma possível que eles tenham fé.
irmãos (11,12) e descendência de Abraão A fé vincula e une a família de Cristo.
(16). Jesus é o Autor (gr. archêgon, como 14-16 Para obter a salvação para os
em 12.2) da salvação deles, ou talvez mais seus filhos, e para atraí-los para si como a
precisamente "o pioneiro da salvação de- comunidade da fé, o Filho teve de compar-
les". Ele certamente realizou algo singular tilhar inteiramente da humanidade (carne
a favor de outros (9) e é de maneira jus- e sangue) deles. O propósito dessa "encar-
ta chamado de "fonte da salvação eterna" nação" (tomar-se humano) foi que ele pu-
(NTLH) em 5.9. Mas o autor também quer desse morrer e, por sua morte, destruísse
ressaltar que Jesus é em alguns aspectos o aquele que tem o poder da morte, a saber,
líder que agiu como alguém que desbravou o diabo. Isso lembra o ensino de Gênesis 3
a trilha, abrindo assim o caminho para que acerca do papel de Satanás na rebelião da
outros seguissem (cf 6.20; 12.1-3). Três humanidade contra Deus e a imposição da
vezes lemos que ele foi tomado perfeito morte como o castigo divino pelo peca-
(gr. teleiõsai, cf 5.9; 7.28). Não há aspecto do. Hebreus indica que o diabo continua
algum em que ele fosse moralmente im- a manter os homens sujeitos à escravidão
perfeito, mas pelo seu sofrimento e ten- por causa do seu pavor da morte (15). Só
tação, sua morte e exaltação celestial, foi podemos ser soltos do poder de Satanás e
"qualificado" ou "tomado completamente libertos para servir a Deus pelo perdão ou
adequado" como o salvador do seu povo. purificação tomados possíveis pela morte
As implicações desse ensino profundo se de Jesus (cf 9.14,15,27,28; 10.19-22). Ele
tomarão mais claras à medida que o argu- remove a ameaça do juízo e da condena-
mento avançar. ção para aqueles que confiam nele e lhes
11-13 Como o salvador "aperfeiçoado", dá a segurança da vida no mundo por vir.
Jesus santifica ou "consagra" um povo a O autor conduz a sua extensa comparação
Deus (cf 10.10,14,29; 13.12). Hebreus usa entre Cristo e os anjos à conclusão ao di-
três textos do AT para mostrar como isso zer: Pois ele, evidentemente, não socor-
acontece. Salmos 22.22 fala acerca da pro- re anjos, mas socorre a descendência de
clamação da libertação realizada por Deus Abraão (16). Esta expressão não se refere
por meio de alguém que experimentou ter- à humanidade em geral, nem à nação de
ríveis sofrimentos e rejeição. Essas pala- Israel em particular, mas a todos os que
vras se aplicam de forma sublime a Cristo lançaram mão "da esperança proposta" em
como o Senhor ressurreto e exaltado, pro- Jesus, que são "herdeiros da promessa" a
clamando a vitória obtida por meio da sua Abraão (6.17,18).
morte. Ao fazer isso, ele ajunta ao redor de 17,18 O título sumo sacerdote é dado
si e sustenta uma congregação ou igreja de a Jesus pela primeira vez nesse trecho
seus irmãos e irmãs espirituais (12). Isaías em que o autor anuncia o tema da divisão
8.16-18 fala a respeito de Isaías e seus dis- principal seguinte da sua obra (3.1-5.10).
cípulos sendo unidos pela sua confiança em A primeira menção ao sumo sacerdócio
Deus, assim se tomando sinais e símbolos de Jesus está vinculada proximamente ao
para o incrédulo Israel. Hebreus toma uma ensino de que convinha que, em todas as
1993 HEBREUS 3

coisas, se tornasse semelhante aos irmãos (4.11). A fé na palavra de Deus é a cha-


(17). Somente porque ele compartilhou da ve. A exortação mútua é necessária para
nossa natureza, experimentou a fragilidade se evitar o endurecimento do coração em
humana e sofreu, tendo sido tentado, é que incredulidade contra a palavra. Somente
é capaz de prover a ajuda adequada para assim é possível entrar no "descanso" pro-
os que são tentados (18). No entanto, o metido e desfrutar dele. De forma subli-
clímax da sua luta terrena foi a sua mor- me, somos assegurados da "misericórdia"
te, pela qual ele foi capaz de fazer propi- e da "graça" oferecidas por Jesus corno o
ciação pelos pecados do povo (17). Essa "grande sumo sacerdote que penetrou os
expressão é a primeira indicação de que céus" (4.14-16). A comparação entre o sa-
Jesus cumpriu o papel de sumo sacerdote cerdócio do AT e o sacerdócio de Cristo a
no Dia da Expiação celebrado anualmente seguir apoia essa afirmação (5.1-10). Mais
(cf Lv 16), ao oferecer um sacrificio para urna vez, Hebreus demonstra a grandeza
purificar o povo da sua profanação pelo pe- incomparável da pessoa e da obra do Filho
cado, e para aplacar a ira de Deus (cf 7.27; de Deus.
9.11,12,24-26; 10.1-14).
3.1-6 A fidelidade de Cristo
3.1-5.10 Jesus como Santos irmãos sugere o relacionamento de
o misericordioso e fiel família entre os verdadeiros crentes, tanto
sumo sacerdote homens quanto mulheres. Eles são peregri-
Nesse segmento principal da argumenta- nos que participam da vocação celestial (1)
ção, os ternas aventados em 2.17,18 são para reinar com Cristo no "mundo que há
expostos e aplicados à situação dos pri- de vir" (2.5). O maior encorajamento para
meiros leitores. O foco é primeiramente que continuem firmes na jornada da fé é:
na fidelidade de Jesus corno o "Apóstolo e considerai atentamente [...] Jesus. Assim
Sumo Sacerdote da nossa confissão" (3.1- o autor expõe de forma muito simples a
6). Isso é desenvolvido pelo contraste entre preocupação central da sua palavra de en-
Jesus e Moisés, que foi a figura-chave no corajamento ("exortação", 12.5). Os cris-
estabelecimento de Israel corno a "casa" tãos devem fixar os seus olhos em Jesus
(ou família) de Deus na época do êxodo. corno o Apóstolo, enviado por Deus para
O argumento do autor teria tido um ponto ser a revelação definitiva do seu caráter e
especial para os judeus cristãos que esta- da sua vontade, e corno o Sumo Sacerdote,
vam sendo tentados a recair no judaísmo que tomou possível um relacionamento
em que Moisés e a revelação que ele trou- eterno com Deus. Esse ensino está desig-
xe a Israel eram tidos em tão alta estima. nado a encorajar os cansados, a desafiar os
Mas o texto tem urna aplicação mais ampla preguiçosos e desobedientes, e a reanimar
por causa das coisas positivas que são ditas os que estão duvidando e se afastando.
acerca de Jesus. 2-5 A fidelidade de Jesus a Deus corno
A exortação que segue (3.7-4.13) àquele que o constituiu é comparada à fi-
chama a atenção para a incredulidade e re- delidade de Moisés. Tal fidelidade nos con-
belião dos israelitas que deixaram o Egito vida a confiar completamente em Jesus. O
sob a liderança de Moisés e não entraram autor alude a Números 12.7, onde é des-
na terra prometida. Os cristãos também es- tacado o papel de fundador que Moisés
tão numa jornada em direção à herança ou exerceu corno aquele que revelou a von-
ao "descanso" provido por Deus. Por isso, tade de Deus a Israel. No entanto, Jesus é
o autor encoraja os seus leitores a perseve- digno de tanto maior glória do que Moisés
rar em fé, "a fim de que ninguém caia" por porque, corno Filho de Deus, ele foi na
seguir o exemplo dos israelitas no deserto verdade aquele que [...] estabeleceu a casa
HEBREUS 3 1994

ou "família" em que Moisés serviu. Foi preocupado com algumas tendências no


por meio do seu Filho que Deus "fez o grupo a quem se dirige. Assim o perigo de
universo" (1.2) e por meio do seu Filho desviar-se de Cristo, brevemente mencio-
ele salvou e estabeleceu a comunidade nado em 2.1-4, é exposto mais detalhada-
da fé (3,4). O papel de Moisés na casa de mente. Não obstante, apesar da seriedade
Deus foi agir como servo e testemunha da advertência, o poder das Escrituras de
(gr. eis martyrion) das coisas que haviam desafiar e mudar os que creem é destaca-
de ser anunciadas. Até mesmo o sistema do. Deus sustenta o seu povo por meio das
de adoração que Moisés iria inaugurar palavras que ele lhes disse e por meio do
foi um preparo para as realidades que vi- ministério do encorajamento que eles po-
riam com o Messias e um prenúncio delas dem exercer uns aos outros.
(cf 8.5; 10.1). O descanso que Cristo obteve para
6 O Filho agora governa sobre a casa o seu povo é interpretado em termos de
de Deus. Isso abarca todos os verdadeiros Gênesis 2.2. É o descanso do sábado em
crentes desde o início da história humana que Deus entrou depois de concluir a fun-
até o presente - todos os que são salvos dação do mundo. A terra de Canaã, onde
ou aperfeiçoados pela obra do Filho. No Josué estabeleceu os israelitas no seu tem-
entanto, uma nota de advertência pode ser po, era um prenúncio desse descanso defi-
ouvida nas palavras se guardarmos firme, nitivo para o povo de Deus. Com mais uma
até ao fim, a ousadia e a exultação da advertência aos leitores para não perderem
esperança. Isso forma uma ponte com o esse descanso, o autor faz uma afirmação
trecho que segue, onde é discutida a pos- final acerca do poder da palavra de Deus
sibilidade de alguém se afastar de Cristo. de expor e julgar o coração humano.
"Confiança" (assim na NVI) seria uma pa- 7-11 O Espírito Santo é reconhecido
lavra melhor para traduzir o termo grego como aquele que falou "por Davi" na com-
(parrésiai do que ousadia. O sacrifício de posição de Salmos 95 (3.7; 4.7). O Espírito
Jesus nos dá "intrepidez ['confiança', NVI] continua a falar às gerações subsequentes
para entrar no Santo dos Santos" (10.19; de cristãos mediante essa Escritura, adver-
cf 4.16). O direito do acesso a Deus tindo-os para que façam de cada dia um
é o seu presente a nós em Cristo e não novo "Hoje" em que ouvem a voz dele para
deve ser desprezado por razão alguma que, assim, vivam. Aqueles que deixaram
(10.35,36). Precisamos nos apegar a ele o Egito com Moisés tinham muito frescas
e exercê-lo para que assim perseveremos nos seus ouvidos as palavras de promessa
em fazer a vontade de Deus e obtenhamos e de advertência, mas endureceram o seu
o que ele prometeu. De forma semelhan- coração e não reagiram com fé e obediên-
te, há uma esperança objetiva que nos foi cia. Provocação e tentação são traduções
dada no evangelho. Isso deve continuar dos nomes hebraicos Meribá e Massá (Êx
sendo a nossa exultação ou base para nos 17.1-7; cf Nm 20.1-13). No começo e no
gloriarmos (cf NVI). fim da sua peregrinação no deserto, os is-
raelitas se mostraram particularmente in-
3.7-4.13 O desafio à fidelidade crédulos nesses lugares. Eles tentaram a
Salmos 95.7-11 nos apresenta uma séria Deus, pondo-o à prova no sentido de que
advertência acerca de resistirmos à voz de foram até onde puderam para provocar a
Deus, e de nos tomarmos endurecidos em Deus até que este os julgasse (9). O perío-
incredulidade e assim não alcançarmos o do de 40 anos no deserto foi uma expres-
descanso que ele prometeu ao seu povo. O são da ira de Deus contra essa geração,
autor é bem impetuoso na sua exposição do mas também foi uma oportunidade para
trecho do salmo porque está evidentemente que eles experimentassem os caminhos da
11
11
1995 HEBREUS 411
1111

graça dele (lO). Visto que eles se negaram 14,15 Pela graça de Deus, os crentes se
a se arrepender e confiar nele, ele jurou tomaram participantes de Cristo e de tudo
na sua ira que esse povo não entraria no que ele oferece. Isso é paralelo à afirmação
seu descanso na terra que tinha prometido "a qual casa somos nós" (6): a bênção já foi
como herança aos seus antepassados (l l ; conferida! Contudo, assim como no v. 6,
cf Nm 14). Esse privilégio seria estendido a ideia de mais uma condição ou fato é
somente aos filhos deles. introduzida no v. 14. Demonstramos que
12,13 O autor quer que os seus irmãos verdadeiramente pertencemos a Cristo se
de fé (irmãos evidentemente inclui as ir- depois de tudo, de fato, guardarmos firme,
mãs) tenham tal cuidado uns pelos outros até aofim, a confiança que, desde o princí-
que ninguém deles se perca. É necessário pio, tivemos. É a fé que provê o fundamen-
o compromisso de entender e ajudar os ou- to de tal confiança. Perseverar na fé é uma
tros na igreja local. O maior perigo é que marca da verdadeira conversão (cf Mc
alguém na congregação tenha um coração 13.13). A fé não é uma boa obra que nos
de incredulidade que o afaste do Deus vivo. salva, mas o meio pelo qual nos apegamos
Assim como os israelitas mencionados em às promessas de Deus e permanecemos
Salmos 95.7-11, cristãos professos às ve- nesse relacionamento que ele tomou pos-
zes se afastam de Deus em apostasia (gr. sível para nós por meio do seu Filho. Os
apostênaii, isto é, em rebelião propositada que abandonam a sua confiança em Cristo
e persistente. Isso pode ser provocado por e se afastam dele mostram que nunca fo-
sofrimento ou perseguição ou pela pressão ram genuínos participantes de Cristo. Por
da tentação, mas a raiz sempre é a incre- consequência, o autor ressalta novamente
dulidade. O objetivo da advertência pode a necessidade de que os leitores obedeçam
ser expresso de outra forma: a fim de que à voz de Deus diariamente e não sejam en-
nenhum de vós seja endurecido pelo enga- durecidos pela incredulidade (15).
no do pecado. O pecado é uma força ativa 16-19 Com uma série de perguntas
e agressiva que precisa ser resistida. Se os bem instigantes, as implicações de Salmos
leitores endurecerem o coração contra a 95.7-11 são elaboradas ainda mais. Os
palavra de Deus (8), o pecado terá o con- que, tendo ouvido, se rebelaram, foram
trole, e eles serão endurecidos (13). Acerca os que experimentaram de primeira mão a
de mais comentários sobre a apostasia, v. bondade de Deus quando este os tirou do
notas de 6.4-6; 10.26-31; 12.15-17. O an- Egito. Eles tiveram todo o encorajamento
tídoto é exortar-se mutuamente cada dia, possível para perseverar durante a sua jor-
durante o tempo que se chama Hoje. Esse nada para a terra prometida. Mas se des-
encorajamento precisa ser feito com base qualificaram a si mesmos de entrar no seu
nas Escrituras, seguindo o exemplo do pró- descanso porque foram persistentemente
prio autor (gr. parakaleite, "exortai", lem- desobedientes.
bra a descrição do livro de Hebreus como 4.1,2 A promessa de entrar no descan-
logos paraklêseõs, "palavra de exortação", so de Deus nos foi transmitida pelo evan-
em 13.22). Pode ocorrer no contexto mais gelho. A nossa situação é tão parecida com
formal das reuniões cristãs (cf 10.24,25) a dos israelitas no deserto que o autor pode
ou nos contatos informais diários que cris- dizer: também a nós foram anunciadas as
tãos têm uns com os outros. De qualquer boas-novas, como se deu com eles. Eles
forma, um ministério fundamentado na receberam a promessa de entrar na terra
palavra é a chave para a fidelidade e a per- prometida (e.g., Êx 3.7-10; 34.10-14) e
severança. Essa não é só uma responsabili- foram chamados a viver pela fé nessa pala-
dade da liderança da igreja, mas uma tarefa vra de Deus. Nesse sentido, eles ouviram a
de cada cristão. pregação do evangelho, ou seja, eles foram
HEBREUS 4 1996

"evangelizados" (2; cf GI3.8,9). Portanto, mesma tensão entre o "já" e o "ainda não"
enquanto a promessa durar, temamos [...] que encontramos em outros lugares do NT.
que [...] suceda parecer que algum de vós Jesus tomou possível que desfrutássemos
tenha falhado. Sempre há a possibilidade de certas bênçãos no presente, como uma
de que algum membro do grupo deixe de garantia de que no final vamos possuir tudo
chegar ao descanso prometido pela mesma que nos foi prometido (cf Ef 1.13,14).
razão que os israelitas sob a condução de 6-8 O descanso que os israelitas ex-
Moisés não obtiveram a sua herança: mas perimentaram no tempo de Josué foi uma
a palavra que ouviram não lhes aprovei- prefiguração terrena do descanso celestial
tou, visto não ter sido acompanhada pela definitivo. Hebreus continua na sua argu-
fé naqueles que a ouviram. A nota mrg. da mentação segundo a qual o caminho para
NVI traz uma variante que é bem atestada essa herança definitiva nos foi garantido
em alguns manuscritos antigos: "pois não pelo Senhor Jesus Cristo (e.g., 6.19,20;
compartilharam da fé daqueles que obede- 9.15; 10.19-22). Um longo tempo depois
ceram". Isso provavelmente se refere ao da conquista, Salmos 95 designou um ou-
fato de que a maioria não compartilhou tro dia como o dia (Hoje) para se ouvir
da fé que Josué e Calebe tiveram quando a sua voz e entrar no descanso de Deus.
chegou a hora de entrar na terra de Canaã Isso prova que Davi tinha em mente um
(Nm 14). Ambas as formulações indicam descanso além do desfrute da vida na terra
que ouvir a mensagem com fé é essencial de Israel. Se Josué tivesse dado ao povo o
para a salvação (cf Rm 10.14). seu descanso definitivo na época da con-
3-5 Nós, porém, que cremos, entramos quista, Deus não falaria, posteriormente,
no descanso do qual fala Salmos 95.11. a respeito de outro dia. A esperança do
Visto que os israelitas já estavam estabe- povo de Deus é um descanso celestial, não
lecidos em Canaã quando Davi escreveu o o restabelecimento dos judeus na terra de
salmo, sua advertência acerca de não obter Israel. As promessas fundamentais da an-
o descanso de Deus precisa ser uma refe- tiga aliança são cumpridas de forma trans-
rência a algo além daquela posse material. formada em Cristo.
Gênesis 2.2, em que se encontra o verbo 9-11 Deus quer que o seu povo com-
relacionado "descansou", é usado como a partilhe do seu próprio descanso (descanso
chave para desvendar o significado. O des- de Deus). Isso inclui o descanso do traba-
canso prometido no salmo é um comparti- lho que nos foi designado para o presente
lhar sabático do próprio descanso de Deus, (cf Ap 14.13), como também ele mesmo
após a sua obra de criação (v. adiante co- descansou das suas obras. Contudo, não
mentário de 4.9-11). Na argumentação de devemos pensar no descanso de Deus
Hebreus, o descanso de Deus é equivalen- como inatividade. As Escrituras deixam
te à "pátria superior" (11.16), à "Jerusalém claro que ele continua sustentando, diri-
celestial" (12.22), ao "reino inabalável" gindo e mantendo a sua criação, depois
(12.28), e outras descrições parecidas da de ter completado a obra de estabelecê-la
herança cristã. De um ponto de vista, esse (e.g., 1.3; SI 104; Jo 5.17). A imagem é
descanso já existe para nós nas regiões mais de estarmos livres da labuta e da luta,
celestiais, descanso no qual podemos "en- para desfrutarmos com Deus da satisfação
trar" agora pela fé (3; 12.22). Ele já existe e perfeição da sua obra quando nos criou e
desde a criação do mundo. De outro ponto nos redimiu. Posto de outra forma, seremos
de vista, estamos numa peregrinação para libertos de todas as provações e pressões
a cidade "que há de vir" (13.14), e estamos da nossa existência presente para servir a
esperando para ser recebidos no "mundo Deus sem empecilhos e viver com ele eter-
que há de vir" (2.5). Hebreus apresenta a namente (cf Ap 7.13-17). Há, portanto, a
1997 HEBREUS 4

necessidade de nos esforçarmos por entrar do coração. Ela é o "crítico" (gr. kritikos)
naquele descanso. Visto que a fé é o meio pelo qual todos são julgados. Aliás, quando
pelo qual entramos no descanso de Deus somos confrontados pela palavra de Deus,
(3), o autor está claramente reafirmando a somos confrontados pelo próprio Deus, e
advertência acerca do endurecimento do não há criatura que não seja manifesta
nosso coração pela incredulidade. Não está na sua presença. Quando o autor diz to-
nos aconselhando a garantir a nossa salva- das as coisas estão descobertas e paten-
ção pelas boas obras. Por outro lado, se a tes aos olhos de Deus, a imagem é de um
fé é genuína, será expressa em obediência. animal com a cabeça inclinada para trás e
Assim, a nossa preocupação deve ser que com o pescoço à mostra, pronto para ser
ninguém caia, seguindo o exemplo da de- sacrificado! Posto de forma simples, não
sobediência dos israelitas, como ressaltado podemos esconder o nosso rosto daquele a
em Salmos 95.7-11. quem temos de prestar contas. Se a palavra
12,13 Esse segmento conclui com uma de Deus tem o seu efeito dissecador e re-
reflexão acerca da palavra de Deus (gr. ho velador na nossa vida agora, não seremos
logos tou Theou) e do que ela pode reali- endurecidos pelo engano do pecado e não
zar. Não há fundamento algum no contexto apareceremos despreparados naquele dia
para identificar esse termo com a palavra na presença dele para prestar contas. Na
de Deus pessoal mencionada em João 1.1- análise final, então, esse trecho sugere que
14. É mais óbvio que essa expressão seja a função negativa ou julgadora da palavra
uma referência ao evangelho, que é descri- de Deus pode ser uma ajuda na busca da
to no v. 2 como "a palavra que ouviram" jornada da fé.
(gr. ho logos tês akouêsy. O evangelho traz
a promessa da salvação como também a 4.14-5.10 A compaixão de Cristo
advertência do juízo (cf 2.1-4). No en- Sumo sacerdote é uma palavra-gancho,
tanto, também está claro que Salmos 95 que conecta o argumento em 4.14 com o
pode funcionar como a voz de Deus, cha- início da seção anterior (3.1; cf 2.17), e in-
mando-nos à fé e advertindo-nos acerca troduz um novo segmento. É também um
do endurecimento do nosso coração. Essa termo característico em 4.14-5.10, em
Escritura é a particular palavra de Deus que o foco está particularmente em Cristo
que o autor de Hebreus quer que os seus como um sumo sacerdote misericordioso.
leitores ouçam nos capítulos 3---4. Assim, A exaltação de Jesus e sua entrada no céu
o que está dito nos v. 12,13 pode se aplicar são a base para o chamado conservemos
tanto à palavra pregada quanto à palavra de firmes a nossa confissão (14). A experiên-
Deus escrita nas Escrituras. Em linguagem cia humana dele o qualifica para ser com-
parecida com Isaías 55.11, diz-se da pala- passivo e misericordioso para com aqueles
vra de Deus que ela é viva e eficaz, signi- que se achegam, confiadamente, junto ao
ficando que ela atinge o propósito para o trono da graça (15,16). Em 5.1, o autor nos
qual foi pronunciada por Deus. Contudo, apresenta uma definição geral do papel do
Hebreus não sugere que todo aquele que sumo sacerdote no AT. Em seguida, ele nos
ouvir a mensagem vai automaticamente mostra como era importante que o sumo
crer e entrar no descanso de Deus. A me- sacerdote fosse capaz de condoer-se dos
táfora da espada de dois gumes é usada ignorantes e dos que erram (2,3) e insis-
para pintar o que inicialmente parece um te em que o homem que assume tal ofício
retrato assustador. A palavra de Deus pene- precisa ser chamado por Deus (4). Então,
tra nos recantos mais profundos do nosso em ordem invertida, ele aplica os mesmos
ser, abrindo-nos e discernindo (original: critérios a Jesus, ressaltando as semelhan-
"criticando") os pensamentos e propósitos ças e diferenças no seu sumo sacerdócio.
HEBREUS 4 1998

o chamado de Deus a Jesus foi que fosse de Jesus, sua ascensão ao céu e sua obra
sacerdote para sempre, segundo a ordem de intercessão à direita de Deus (cf espe-
de Melquisedeque (6). Ao aprender a con- cialmente 7.25-28; 9.11,12).
fiar em Deus e a lhe obedecer em meio ao 15 O versículo anterior poderia suge-
sofrimento (8), ele adquiriu tal compreen- rir um distanciamento de Jesus das lutas
são da nossa situação e tal compaixão que do seu povo na terra. Mas o nosso sumo
fazem dele um sumo sacerdote perfeito sacerdote celestial é capaz de compade-
(7,8; cf 4.15,16). Em termos gerais, então, cer-se das nossas fraquezas porque ele foi
Jesus é descrito como o sumo sacerdote [...] tentado em todas as coisas, à nossa
que se tomou o Autor da salvação eterna semelhança, mas sem pecado. O tempo
para todos os que lhe obedecem (9). verbal passado no grego (pepeirasmenon,
Os leitores precisam considerar que "foi tentado") sugere que o Cristo exaltado
o segmento doutrinário (1-10) é incluído carrega consigo a sua experiência terrena
para dar apoio e intensidade às exortações de resistir ao pecado: ele continua a saber
que o precedem (4.14-16). Além disso, é o que significou ser testado à nossa seme-
interessante observar que uma grande se- lhança. Mas o conhecimento que Jesus
ção de Hebreus (7.1-10.18) conclui com tem das nossas fraquezas não vem de ter
exortações semelhantes (10.19-23). Isso ele mesmo pecado (cf 9.14; Jo 8.46; 2Co
prova que o ensino do autor acerca do 5.21; 110 3.5). Ele se tomou semelhante
sumo sacerdócio de Jesus foi projetado a nós "em todas as coisas" (2.17; gr. kata
fundamentalmente para encorajar a perse- panta) e foi tentado como nós fomos em
verança contra o pecado e a incredulidade. todas as coisas (gr. katapanta) (4.15). No
Somos encorajados por esse trecho a nos entanto, ser tentado não é pecar. Jesus foi
apegar a todos os recursos espirituais dis- como Adão antes que este se rebelou contra
poníveis a nós em Cristo. Deus: ele não tinha um histórico de pecado
14 O grande incentivo para conservar- e tinha a liberdade de não pecar. Isso não
mos firmes a nossa confissão é o conhe- o tomou menos humano! Aliás, somente
cimento de que Jesus é o Filho de Deus, aquele que resiste ao pecado até o final
como grande sumo sacerdote que pene- conhece o seu peso total. Visto que Jesus
trou os céus. Como o Filho de Deus, ele lutou para fazer a vontade do Pai em meio
é a revelação definitiva de Deus e aquele a todas as dificuldades (5.7,8; 12.2,3), ele
em quem os propósitos de Deus para o mostrou que era um homem com uma di-
universo estão completos. Como o sumo ferença e o único que poderia nos salvar do
sacerdote definitivo, ele foi fiel a Deus poder e da condenação do pecado.
mesmo em face do sofrimento e da ten- 16 O desafio Acheguemo-nos, portan-
tação, sofrendo a morte "para fazer pro- to, confiadamente, junto ao trono da gra-
piciação pelos pecados do povo" (2.17). ça é baseado particularmente no ensino
Na sua ascensão, ele penetrou os céus e de que Jesus é capaz de compadecer-se
foi à presença de Deus, "para comparecer, das nossas fraquezas. Ele está entroniza-
agora, por nós" como o nosso represen- do com Deus como o governante celes-
tante (9.24). No Dia da Expiação anual tial, cujo trono ou governo é caracteriza-
(Lv 16), os sumos sacerdotes judeus ofe- do pela graça. A ideia de "achegar-se" a
reciam sacrifícios fora do tabernáculo ou Deus é proeminente em Hebreus (7.19,25;
do templo e então entravam no santuário 10.1,22; 11.6; 12.18,22). A antiga aliança
ou tabernáculo interior para interceder fornecia acesso limitado a Deus por meio
pelo povo com base nas ofertas que eles do sistema sacrificial no tabernáculo ou
faziam. Em diversos textos, Hebreus su- no templo. Mas a obra sumo sacerdotal de
gere o cumprimento desse ritual na morte Jesus introduz uma "esperança superior,
pela qual nos chegamos a Deus" (7.19). Ir
1999 HEBREUSS

sária ao seu ministério, o autor volta ao seu


<
a Deus por meio de Jesus significa receber chamado. A honra de tal ofício é dada so-
pela fé a salvação que ele toma acessível mente por Deus: o postulante precisa ser
a nós (7.25; 12.22-24). Achegar-se conti- chamado por Deus, como aconteceu com
nuamente (o significado literal do tempo Arão (cf Êx 28.1; Lv 8.1; Nm 16-18).
verbal presente de proserchõmetha aqui 5,6 Em ordem inversa, as qualificações
e em 10.22) significará então expressar para o sacerdócio mencionadas nos v. 1-4
esse novo relacionamento de aliança com são agora aplicadas a Jesus. Assim, tam-
Deus diretamente em oração, buscando bém Cristo a si mesmo não se glorificou
misericórdia para os fracassos do passado para se tornar sumo sacerdote, mas foi de-
e graça para socorro em ocasião oportu- signado por Deus para essa função, como
na. Esse aproximar-se de Deus para buscar está indicado em Salmos 110.4. Contudo,
socorro na corrida cristã é ir a ele "com antes de Hebreus citar esse versículo, são
toda a confiança" (NVI; gr. meta parrêsia, citadas as palavras de Salmos 2.7. Isso
cf 3.6; 10.19), a despeito do mais sincero lembra o argumento do cp. 1, em que o sal-
reconhecimento de nossos pecados. mo 2 foi empregado para afirmar a sobera-
5.1-4 Algumas qualificações para o nia absoluta do Filho de Deus sobre toda a
sumo sacerdócio sob a antiga aliança são criação, incluindo os anjos (1.5). Salmos
ressaltadas aqui como base para explicar 110.1-3 de maneira semelhante assevera o
mais detalhadamente como Jesus pode governo triunfante do rei messiânico que
ser o sumo sacerdote da nova aliança. Os está à direita de Deus. No entanto, Salmos
sumos sacerdotes eram escolhidos dentre 110.4 acrescenta a perspectiva incomum
os homens e constituídos para agir como de que o Messias será sacerdote para sem-
mediadores entre o povo de Israel e Deus. pre, segundo a ordem de Melquisedeque.
Eles eram responsáveis, nas coisas con- Ao combinar essas citações dos salmos,
cernentes a Deus, a favor dos homens, por Hebreus novamente conecta a ideia de
oferecer tanto dons como sacrifícios pelos Jesus como Filho e sumo sacerdote (cf
pecados. No Dia da Expiação, o sumo sa- 4.14), mas deixa claro que o seu sacer-
cerdote deveria oferecer sacrifícios pelos dócio pertence a uma ordem diferente da
pecados, tanto do povo como de si mesmo de Arão e dos sacerdotes levíticos. Jesus
(cf Lv 16.6,11-14). Isso era uma indicação cumpre o papel e a função do sacerdócio
de que o sumo sacerdote também estava judaico como sumo sacerdote segundo a
rodeado de fraquezas, como o restante da ordem de Melquisedeque. A aplicação de
comunidade, e de que necessitava de puri- Salmos 110.4 a Jesus é desenvolvida em
ficação do pecado. Tal ritual deveria enco- mais detalhes em Hebreus 7.
rajá-lo a condoer-se dos ignorantes e dos 7,8 Esses versículos explicam como
que erram. O verbo grego traduzido por o nosso sumo sacerdote celestial é capaz
"condoer-se" significa literalmente "abran- de "compadecer-se das nossas fraquezas"
dar a ira". A comparação e o contraste com sem nunca ter pecado (cf 4.15). Mesmo
Cristo estão claros: os sumos sacerdotes que Jesus tenha sido severamente testado
judeus deveriam ao menos controlar a ira no curso de toda a sua vida (lit. nos dias
quando estivessem tratando com os que da sua carne), sua experiência no jardim
tinham pecado, mas o nosso sumo sacer- do Getsêmani pode estar em vista aqui.
dote na verdade vai compadecer-se das Referências às suas orações e súplicas
nossas fraquezas (4.15). Com base numa acrescentadas de forte clamor e lágri-
afirmação acerca da função geral do sumo mas [...] a quem o podia livrar da mor-
sacerdote na comunidade israelita e de um te lembram a angústia de Jesus quando
comentário a respeito da qualidade neces- ele enfrentou a cruz e suplicou para que
HEBREUS 5 2000

"o cálice" do sofrimento fosse tirado dele de Deus para nós em Cristo, mas aque-
(cf Me 14.34-36 e paralelos). O pavor de les que olham para ele como o Autor da
ser abandonado pelo seu Pai na morte (cf salvação eterna vão querer expressar a
Me 15.34) deve ter exercido pressão espe- sua fé em obediência contínua como ele
cial sobre ele naquela ocasião. Assim Jesus fez (cf 12.1-4). A fé em Cristo nos com-
orou por libertação da crise iminente, mas promete em compartilharmos da sua luta
depois prontamente se submeteu à vonta- contra o pecado.
de do Pai para que ele pudesse se tomar
o Autor da salvação eterna para os outros 5.11-10.39 Jesus. o sumo
(9). Esse segundo estágio da experiên- sacerdote aperieiçoado na
cia de Jesus no Getsêmani provavelmen- ordem de Melquisedeque
te está refletido na afirmação de que ele e autor de eterna salvação
foi ouvido por causa da sua piedade (gr. Como sugere o título, essa seção central
eulabeia pode ser traduzido também por de Hebreus é na verdade uma exposição
"temor piedoso"). A resposta à sua ora- dos temas anunciados em 5.9,10. Depois
ção de submissão foi força para suportar de chamar atenção para a necessidade de
a amarga provação que tinha pela frente e progresso na compreensão e obediência
então triunfar na glória da sua ressurreição. (5.11-6.20), o autor mostra como Jesus
Embora fosse o Filho de Deus (8; cf v. 5), cumpriu o papel de "sumo sacerdote se-
experimentou a tentação de desviar-se de gundo a ordem de Melquisedeque" (7.1-
fazer a vontade do seu Pai por causa do 28). Aqui, Salmos 110.4 é o texto-chave,
sofrimento que isso incluía. Ele necessita- com Gênesis 14.18-20 sendo usado como
va aprender o que era a obediência a Deus apoio. O aperfeiçoamento de Cristo como
na prática, nas condições da vida humana o nosso sumo sacerdote celestial é men-
na terra, para que pudesse compadecer-se cionado em 7.26-28 como ponte para os
daqueles semelhantemente testados e nos dois capítulos seguintes, em que o autor
ensinar pelo seu próprio exemplo em que examina mais detalhadamente o que sig-
profundidade se deve submeter a Deus e nifica dizer que Jesus foi "aperfeiçoado".
lhe obedecer (cf 12.1-11; 13.13). Aqui, Jeremias 31.31-34 entra em foco,
9,10 Ao aprender a obediência pelas e as implicações para nós são considera-
coisas que sofreu, Jesus foi aperfeiçoado, das. A ide ia de que Cristo é "o Autor da
i.e., "qualificado" ou "tomado inteira- salvação eterna" é desenvolvida em 10.1-
mente adequado" como o salvador do seu 18, com Salmos 40.6-8 sendo usado para
povo (cf 2.10). Mais especificamente, ele explicar como Cristo cumpriu a profecia
foi aperfeiçoado como o Autor da salva- de Jeremias.
ção eterna. Cada experiência de teste o Essa seção termina com mais um apelo
preparou para o ato final de obediência ao (10.19-39), ressaltando as consequências
Pai na sua morte sacrificial (cf 10.5-10). práticas dos complexos argumentos dou-
Por meio disso, ele atingiu a salvação do trinários do autor. É interessante observar
pecado, da morte e do diabo, capacitando como esse trecho expressa novamente al-
aqueles que confiam nele a compartilhar guns dos encorajamentos e advertências
com ele da vida do mundo que há de vir. A dos trechos anteriores (particularmente
ideia de que Cristo estabelece um padrão 4.14-16 e 5.11-6.20). Enquanto você
de obediência a ser seguido por todos é ler a seção como um todo, e então exa-
sugerida pelas palavras para todos os que minar atentamente o significado das suas
lhe obedecem. No entanto, essa expressão diversas partes, mantenha em mente que
não indica que a salvação deva ser obtida as exortações revelam o propósito do en-
pela obediência. A salvação é o presente sino teológico.
2001 HEBREUS 6

5.11-6.20 O desafio para que os mais profundas do evangelho e a reagir


leitores aprendam e progridam com fé e obediência (cf 2.1-4; 3.1---4.2,
Antes de mergulhar na argumentação em que a questão crucial é responder ao
dos cp. 7-10, o autor oferece tanto ad- que se ouviu). Um sinal dessa preguiça em
vertências (5.11-6.8) quanto encoraja- progresso é sua indisposição ou incapaci-
mentos (6.9-20). O seu ensino acerca da dade de ser mestres. Depois de certo tem-
obra sumo sacerdotal de Cristo não pode po, qualquer pessoa instruída na fé deveria
ser compreendida ou aplicada por aqueles ser capaz de explicá-la a outros (cf 3.13;
que se tornaram tardios em ouvir ("lentos 10.24,25; lTs 5.11; lPe 3.15). Quando as
para aprender", NVI) e indispostos para de- pessoas ainda querem que se lhes ensinem
senvolver as implicações mais profundas os princípios elementares dos oráculos
da sua fé. Qualquer pessoa que continua de Deus - quando na verdade elas de-
a evitar tal alimento sólido nunca pode veriam estar transmitindo o ensino básico
ser um cristão adulto (5.11-14). Aliás, a cristão a outros e desejando alimento sóli-
resistência ao crescimento espiritual pode do para si mesmas - desenvolveu-se um
levar as pessoas a cair da fé ou a se re- sério caso de travamento do crescimento
belar completamente contra Deus, porque espiritual. Como no domínio físico, o lei-
estão endurecendo o seu coração contra te é o alimento adequado para a criança,
Deus (6.1-8). mas o alimento sólido é para os adultos.
A despeito da seriedade da advertên- O autor equipara o leite espiritual com o
cia, o autor está convicto da realidade do que ele descreve como (lit.) "os princípios
compromisso daqueles a quem se dirige. elementares dos oráculos de Deus" (gr. ta
Mas ele quer que cada um deles mostre a stoicheia tês archês tõn logiõn tou Theou).
mesma diligência que eles mostraram no Isso poderia significar que os leitores pre-
passado, desenvolvendo e praticando as cisavam de algumas orientações para a in-
implicações da sua esperança cristã no co- terpretação do AT ("os oráculos de Deus")
tidiano, e persistindo na fé e na paciência do ponto de vista cristão. Mais especifica-
até o fim (6.9-12). Tendo atingido certo mente, a expressão pode ser um paralelo
nível de maturidade, alguns pareciam es- do que 6.1 descreve como os princípios
tar indispostos a avançar. Para encorajá- elementares da doutrina de Cristo (gr. ton
los a renovar a sua confiança em Deus, o tês archês tou Christou logon). Alimento
autor os lembra de que Deus confirmou a sólido inclui a compreensão mais profunda
sua promessa a Abraão com umjuramen- da verdade bíblica fundamental (como nos
to e de que ele da mesma forma garantiu cp. 7-10). Uma criança espiritual é prati-
o sumo sacerdócio de Jesus em Salmos camente definida como alguém que é inex-
1l0A. A esperança que isso nos oferece periente na palavra da justiça, ou seja, o
é como uma âncora da alma, segura e ensino que pode motivar a pessoa à justiça
firme (6.13-20). Somente a incredulidade (cf 12.11). Além disso, cristãos imaturos
pode fazer com que as pessoas percam o não têm suas faculdades exercitadas para
que foi obtido por nós pelo nosso grande discernir o bem do mal pela prática cons-
sumo sacerdote. tante de responder à revelação de Deus.
11-14 Os leitores se tornaram "lentos 6.1-3 Embora o autor tenha acusado os
para aprender" (NVI) ou mais literalmente leitores de imaturidade e tenha insistido
"obtusos com respeito ao que se ouve". em que o alimento sólido é para os adul-
Apesar do seu entusiasmo inicial como tos (5.14), ele tem a intenção de lhes servir
cristãos, certa preguiça se infiltrou, e o au- alimento sólido para que possam avançar
tor teme que eles agora estejam indispos- para o que é perfeito (lit. "possam ser car-
tos a desenvolver e praticar as implicações regados para a maturidade ['perfeição',
HEBREUS 6 2002

ARe]")! Eles precisam das percepções e do apostasia (cf 3.12), porque se excluem do
compromisso que o alimento sólido pode único sacrifício pelos pecados sob a nova
fornecer. Quando ele diz: pondo de parte aliança e da única esperança de vida eter-
os princípios elementares da doutrina de na em Jesus Cristo. Tais pessoas de novo
Cristo, não quer dizer: "abandonem com- [...] estão crucificando o Filho de Deus,
pletamente as verdades básicas alistadas a rejeitando-o tão propositadamente quanto
seguir". O progresso se faz ao não se lan- o fizeram os executores dele, e expondo-o
çar, de novo, a base do ensino elementar, à ignomínia, abertamente colocando-se na
mas ao se edificar sobre esse fundamento. posição de inimigos dele. Nada é impos-
É interessante observar que os princípios sível para Deus, mas ele não nos dá espe-
elementares mencionados aqui não são rança alguma para recuperar os que tomam
distintivamente cristãos. Praticamente cada uma posição contínua e rebelde contra
item poderia ter sido endossado pelo juda- Cristo. Como foi observado em conexão
ísmo ortodoxo. No entanto, cada item ad- com 3.12,13, os que endurecem o seu co-
quiriu um significado novo à luz do ensino ração contra Deus podem atingir um ponto
cristão acerca de Jesus como o Messias de em que estão "endurecidos" além de qual-
Israel. Assim se dá a impressão de que as quer retomo. O autor não acusa os seus
crenças e práticas judaicas existentes fo- leitores de ter atingido esse ponto, mas o
ram usadas como fundamento para se ex- destino dos apóstatas é algo que eles e nós
por a verdade cristã. O alimento sólido de não devemos esquecer. No seu contexto, o
Hebreus é o desenvolvimento de temas bí- trecho serve como uma advertência sobre
blicos como o do arrependimento de obras o que pode levar à apatia espiritual.
mortas e da fé em Deus [...] da ressurrei- Mas cristãos genuínos podem se tomar
ção dos mortos e do juízo eterno à luz do apóstatas? Hebreus certamente sugere que
ensino de Jesus como o Filho de Deus e os que caem e se desviam podem ter to-
sumo sacerdote da nova aliança. O ensino das as aparências de ser verdadeiramente
de batismos (plural) pode ser uma referên- convertidos. Eles uma vez foram ilumina-
cia às purificações cerimoniais dos judeus dos, indicando a entrada concreta da luz
(cf 9.10) e seu cumprimento em Cristo. A do evangelho na sua vida. Eles provaram
imposição de mãos era uma prática judai- o dom celestial, que pode significar que
ca, associada à oração, que foi adaptada receberam o próprio Cristo e todas as bên-
de diversas formas pelos primeiros cris- çãos espirituais que ele oferece. "Provar"
tãos (e.g., At 8.17; 9.17,18; 13.3). Sob a sugere experimentar algo de forma real
pressão de perseguição, os convertidos do e pessoal (não simplesmente uma degus-
judaísmo devem ter sido tentados "a fazer tação). Eles se tornaram participantes
mais e mais concessões dessas característi- do Espírito Santo, assim que a sua rebel-
cas da fé e prática que eram distintivas ao dia inclui o insulto ao Espírito da graça
cristianismo, e a mesmo assim ainda sentir (10.29). Finalmente, lemos que eles prova-
que não haviam abandonado os princípios ram a boa palavra de Deus e os poderes
básicos do arrependimento e da fé, das rea- do mundo vindouro. Isso sugere uma ex-
lidades denotadas pelas abluções religio- periência concreta dos benefícios da nova
sas e da imposição de mãos, da expectativa aliança. No entanto, os que desfrutaram de
da ressurreição e do juízo da era por vir" tal relacionamento com Deus não podem
(F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews abusar desse relacionamento, crendo que
[Eerdmans, 2.ed, 1990], p. 143). estão imunes à possibilidade da apostasia.
4-6 A advertência severa desses ver- Promessas como João 10.28,29 e Filipenses
sículos (que ecoam em 10.26-31; 12.15- 1.6 são a garantia de que Deus vai manter
17) é para aqueles que caem ou cometem os seus filhos fiéis até o final. Hebreus tem
11
2003 HEBREUS 6 1111
1111

a sua própria forma de encorajar a confian- Pela graça de Deus eles são espiritualmen-
ça na capacidade divina de nos sustentar te frutíferos. (2) A terra ruim, que produz
na nossa fé. Mas todos precisamos ser de- espinhos e abrolhos e é rejeitada e perto
safiados a "confirmar a [nossa] vocação e está da maldição; ela nunca reage ao cul-
eleição" (2Pe 1.10), e esse é o significado tivo, e o seu fim é ser queimada. Isso des-
prático e pastoral dos textos de advertência creve o destino daqueles que endurecem
em Hebreus. o coração em incredulidade e se afastam
Podemos talvez desejar que todos os de Deus (cf 10.26-31). O autor não tolera
que foram verdadeiramente regenerados solo intermediário para os preguiçosos e os
nunca vão cair, mas a genuinidade do novo desleixados. Ele quer que os seus leitores
nascimento é provada pela persistência se certifiquem de que todos pertencem à
na fé. O autor de Hebreus está muito con- primeira categoria!
fiante em que a verdadeira obra de Deus 9,10 Palavras de encorajamento agora
ocorreu na congregação a quem está se di- seguem as severas advertências dos v. 4-
rigindo (6.9; 10.39). "Mas isso não exclui 8. O autor está convicto das coisas que
a possibilidade de que algumas pessoas são melhores no caso dos seus amados.
entre eles sejam rebeldes de coração e, a Mais especificamente, ele está sugerindo
não ser que ocorra uma mudança radical, que, como grupo, eles de fato se encaixam
vão descobrir que chegaram ao ponto da na categoria do solo bom do v. 7. Tais pes-
apostasia irremediável" (P. E. Hughes, A soas recebem as bênçãos de Deus perten-
Commentary on the Epistle to the Hebrews centes à salvação. A confiança dele está
[Eerdmans, 1977], p. 212). É possível ser fundamentada parcialmente na lembrança
levado pelo embalo da experiência espi- do comportamento passado e presente de-
ritual de um grupo sem ser genuinamen- les e parcialmente na justiça de Deus. O
te convertido. Às vezes, as pessoas mos- trabalho e o amor que eles expressaram
tram todos os sinais de conversão, mas se foram demonstrados literalmente para
afastam de Cristo depois de um tempo e com o seu nome [nome de Deus]. Isso
mostram que nunca foram filhos de Deus incluiu ministrar e continuar ministrando
de verdade. Mais especificamente, o autor aos santos (gr. tois hagiois). Um exemplo
tem em vista os que enxergam claramente extraordinário é registrado em 10.32-34.
onde está a verdade, se conformam a ela Quando o autor diz Deus não é injusto
por um período e então, por diversas ra- paraficar esquecido de tais coisas, o foco
zões, renunciam a ela. A persistência é o não está simplesmente na recompensa pe-
teste da realidade. Os que perseveram são los serviços prestados. Deus sabe a reali-
os verdadeiros santos, e um trecho como dade da vida espiritual deles, e, se ele de
esse será usado por Deus para mantê-los tal forma motivou expressões de cristia-
na sua fé. nismo genuíno no passado, ele é confiável
7,8 Jesus usou a parábola dos quatro para fazer assim no futuro. O motivo para
"solos" para explicar as diferentes reações a fidelidade de Deus é desenvolvido ainda
que as pessoas têm frente ao evangelho mais nos v. 13-20.
(Me 4.1-20 e paralelos). Hebreus somente 11,12 O autor expressa novamente o
se refere a duas possibilidades. (I) O solo seu desejo sincero de que cada um dos
bom, que absorve a chuva que frequente- seus amigos persevere como cristão. A
mente cai sobre ela e produz erva útil para fidelidade deles a Cristo e a preocupação
aqueles por quem é também cultivada e, prática uns pelos outros foram inspiradas
assim, recebe bênção da parte de Deus. por uma esperança convincente (10.34).
Isso é uma referência àqueles que persis- Agora, quando os seus maiores inimigos
tem em ouvir e obedecer à palavra de Deus. aparentemente são a preguiça e a lerdeza,
HEBREUS 6 2004

eles precisam demonstrar a mesma diligên- mão da esperança proposta em Jesus,


cia (lit. "zelo") para manter a esperança to- somos os herdeiros definitivos do que foi
talmente viva até ao fim. Uma esperança prometido a Abraão (cf G13.26-29).
viva é a base para a vida cristã eficaz em 19,20 Esses versículos precisam ser
qualquer contexto. Os que tiverem tal mo- lidos à luz de 7.20-22, em que se argu-
tivação não serão vencidos pela preguiça menta que Deus confirmou o sumo sacer-
(gr. nõthroi é usado aqui como também em dócio do Messias em Salmos 110.4 com
5.11, mas sem qualificações). Aliás, eles se um juramento semelhante ao usado em
tomarão imitadores daqueles que, pela fé Gênesis 22.16. Visto que Jesus é o sumo
e pela longanimidade, herdam as promes- sacerdote prometido segundo a ordem de
sas. Esse tipo de linguagem prenuncia o Melquisedeque, ele se tomou "a garan-
argumento de 11.1-12.13. tia" (NVI; "o fiador", ARA) das bênçãos da
13-15 A base da esperança cristã não é o nova aliança (7.22). Os que confiam nele
pensamento positivo acerca do futuro, mas podem de fato entrar além do véu, aonde
a promessa solene de Deus. O fundamento ele foi adiante de nós e entrou por nós.
da atividade salvífica de Deus no mundo Jesus é literalmente o precursor, abrindo
foi a promessa particular feita a Abraão em o caminho para que possamos seguir! O
Gênesis 12.1-3 e repetida em diversos está- santuário interior (Santo dos Santos) do
gios da história dos ancestrais de Israel de tabernáculo e posteriormente do templo
diferentes formas (e.g., Gn 15.1-21; 26.2- representava a presença de Deus com
4; 28.13-15; Êx 3.6-10). Deus multiplicou o seu povo na terra (cf Êx 26.31-34;
os descendentes de Abraão, transforman- lRs 8.6-11). Hebreus usa essa lingua-
do-os numa grande nação, estabelecendo- gem para se referir ao santuário celestial,
os na sua própria terra e abençoando-os onde Deus está entronizado em toda a sua
para que assim pudessem se tomar fonte de glória. Podemos nos aproximar dele com
bênção para todas as nações. Em uma oca- confiança agora mesmo porque Jesus, o
sião em particular, Deus confirmou a ve- nosso sumo sacerdote celestial, ofereceu
racidade de sua promessa com juramento o sacrifício perfeito e está à direita de
(cf Gn 22.16: "Jurei por mim mesmo, diz Deus (cf 4.14-16; 10.19-22). Contudo,
o SENHOR"). Hebreus observa que Abraão as figuras em 6.19,20 também transmi-
foi encorajado por isso a esperar com pa- tem a ideia de que o nosso destino é viver
ciência pela promessa. Deus começou a para sempre na santa e gloriosa presença
cumprir a sua promessa durante a vida de de Deus. Podemos ir literalmente aonde
Abraão, mas a bênção final veio na pessoa Jesus foi. Assim, o santuário celestial é
de Jesus, o Messias. mais uma forma de descrever "o mundo
16-18 Nas questões humanas, o jura- que há de vir" (2.5), o "repouso para o
mento [serve] de garantia e é o fim de toda povo de Deus" (4.9) e a "pátria superior"
contenda. Assim Deus usou essa forma ou "Jerusalém celestial" (11.16; 12.22-
particular de discurso para mostrar mais 24; 13.14), que tem sido a esperança final
firmemente aos herdeiros da promessa a e definitiva para o povo de Deus em todas
imutabilidade do seu propósito. Ele usou as épocas. Esse alvo tão esperado foi ob-
duas coisas imutáveis. nas quais é impos- tido e colocado à nossa disposição pelo
sível que Deus minta, a saber, sua promes- nosso Salvador. Jesus como a nossa espe-
sa e seu juramento, para dar o melhor en- rança entrou no santuário e permanece lá
corajamento possível ao seu povo para que como âncora da alma, segura efirme.
depositasse a sua confiança nele. Está cla- Assim o antídoto para a apatia espiri-
ro com base no que segue que nós que já tual e a apostasia é a renovação da espe-
corremos para o refúgio, a fim de lançar rança. A esperança é a motivação para a
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2005 HEBREUS 7 ' :
11

fidelidade e o amor. A base para a nossa dizer com sacerdote perpetuamente segun-
esperança é a promessa de Deus, confir- do a ordem de Melquisedeque, Hebreus
mada com juramento. Visto que as pro- volta a Gênesis 14.18-20, ressaltando ape-
messas salvíficas de Deus já se cumpriram nas algumas características da narrativa de
para nós na morte e exaltação celestial do Gênesis. O nome Melquisedeque signifi-
Senhor Jesus Cristo, isso nos dá todo o tipo ca rei de justiça, e o fato de que ele era
de encorajamento para crer que aqueles rei de Salém (derivado do heb. shãlõm,
que confiam em Jesus compartilharão com "paz") significa que ele era rei de paz. No
ele da prometida e eterna herança. nome, ao menos, ele prefigurava e prenun-
ciava o reino do Messias de justiça e paz
7.1-28 O eterno sumo (e.g., Is 9.6,7; Hb 1.8,9). Mais importan-
sacerdócio de Cristo te, ele é identificado como sacerdote do
Diversas indicações já foram dadas de Deus Altíssimo, que abençoou a Abraão
que Jesus é "sacerdote para sempre se- e recebeu o dízimo de tudo de Abraão, o
gundo a ordem de Melquisedeque" (cf grande antepassado e patriarca de Israel.
5.6,10; 6.20). Esse tema é agora desen- Além disso, no registro das Escrituras,
volvido completamente à medida que o Melquisedeque é sem pai, sem mãe, sem
autor chega ao cerne da sua mensagem e genealogia; que não teve princípio de
começa a alimentar os leitores com "ali- dias, nemfim de existência. Ele aparece do
mento sólido" que promove a maturidade nada e desaparece sem deixar rastro. Não
espiritual (cf 5.11-14). A primeira par- tem predecessor nem sucessor. Visto que a
te desse capítulo trata do encontro entre legitimidade do sacerdócio de um homem
Abraão e Melquisedeque em Gênesis 14, no mundo antigo dependia de tais coisas,
focalizando no significado do sacerdó- o silêncio das Escrituras nesse ponto é
cio de Melquisedeque naquele contexto incomum. Melquisedeque é semelhante
(1-10). A segunda parte do capítulo trata ao Filho de Deus no sentido de que ele
da promessa específica de Salmos 110.4, prefigura o seu sacerdócio singular e que
acerca do Messias sendo sacerdote como nunca tem fim. Em termos técnicos, ele
Melquisedeque, e a aplica ao Senhor Jesus é um "tipo" ou padrão de Cristo. Salmos
(11-28). Aperfeição não era possível sob o 110 vislumbrou a aparição de outro rei de
sacerdócio levítico, mas o sumo sacerdó- Jerusalém ("cidade de Salém"), exercendo
cio de Jesus substitui todo o sistema do AT um sacerdócio como o de Melquisedeque,
de aproximação de Deus e "aperfeiçoa" os evidentemente não baseado em descen-
crentes no relacionamento com ele (11-19). dência física de qualquer sacerdócio co-
O significado do juramento confirmando o nhecido, mas, não obstante, divinamente
sacerdócio do Messias é explorado (20-22) apontado. Hebreus proclama Jesus Cristo
e então são esboçadas as implicações da como o prometido sacerdote-rei, que reina
promessa de que ele será sacerdote para perpetuamente para abençoar o seu povo
sempre (23-25). O capítulo conclui ao (cf 5.4-6; 7.13-17).
mostrar como um sacerdote como este, 4-10 Ao tratar do tópico do dízimo pago
em contraste com os sumos sacerdotes da por Abraão a Melquisedeque, Hebreus
antiga aliança, supre a nossa necessidade observa que a lei de Moisés exige que os
como pecadores (26-28). O cp. 7 é o ter- que dentre os filhos de Levi recebem o sa-
ceiro estágio no desenvolvimento da ideia cerdócio têm mandamento de recolher, de
de que Jesus é o sumo sacerdote da nova acordo com lei, os dízimos do povo (cf Nm
aliança (cf 2.17,18; 4.14-5.10). 18.21-32). No entanto, Melquisedeque,
1-3 Salmos 110.4 é o texto-chave nesse cuja genealogia não se inclui entre eles,
capítulo. Para indicar o que o salmo queria recebeu dízimos de Abraão, o antepassado
HEBREUS 7 2006

de Levi! Aliás, Melquisedeque é tão gran- significava que haveria, necessariamente,


de que ele abençoou a Abraão, aquele a também mudança de lei (12). Aqui se deve
quem Deus tinha dado as promessas con- observar que o autor de Hebreus enxerga
cernentes aos seus propósitos salvíficos a lei como essencialmente um conjunto
(cf Hb 6.13,14). Visto que o inferior é de regulamentações sacrificiais e sacerdo-
abençoado pelo superior (7), isso coloca tais para a manutenção do relacionamen-
Melquisedeque numa posição muito signi- to de Israel com Deus. As limitações do
ficativa. Os dízimos pagos ao sacerdócio sistema como um todo são esboçadas nos
levítico eram recebidos por homens mor- cp. 9-10.
tais, mas Abraão pagou o dízimo a alguém 13-17 Somente algumas pessoas eram
de quem se testifica que vive (8). Isto é, no autorizadas a servir no altar, de acordo
registro bíblico, Melquisedeque é repre- com a lei mosaica (e.g. Lv 8-9; Nm 1.47-
sentado como aquele que não teve fim de 54). Jesus, nosso Senhor, pertencia à tribo
existência (3), e isso sugere que o seu sa- de Judá, e a essa tribo Moisés nunca atri-
cerdócio foi superior. Até se poderia dizer buiu sacerdotes. Assim, se Jesus é sacer-
que Levi, e por consequência o sacerdócio dote, ele precisa pertencer a outra ordem.
levítico, pagou dízimos a Melquisedeque Ao tratar dessa objeção, o autor destaca
por meio de Abraão. Isso prepara para novamente a predição de Salmos 110.4 de
o argumento nos v. 11-19 segundo o qual o que o sacerdócio messiânico seria segundo
sacerdócio de Jesus é superior ao sacerdó- a ordem de Melquisedeque. O descendente
cio levítico e seu ministério e o suplanta. de Levi se tomava sacerdote conforme a
11,12 Quando Salmos 110.4 falou acerca lei de mandamento carnal. Jesus se tomou
da necessidade de se levantar outro sacer- sacerdote para sempre, segundo a ordem
dote, segundo a ordem de Melquisedeque, de Melquisedeque, com base no poder de
e que não fosse contado segundo a ordem vida indissolúvel. Esta última expressão é
de Arão, a dedução foi que algo faltava ao mais bem interpretada como uma referên-
sacerdócio existente. Aliás, o sacerdócio cia à ressurreição de Jesus e sua exaltação
que descendia de Arão e era exercido por celestial. Ele claramente agiu como sumo
alguns dos levitas foi incapaz de prover a sacerdote da nova aliança na terra quando
perfeição. Pela primeira vez, a linguagem se ofereceu a si mesmo como um sacrifí-
da perfeição (aplicada a Cristo em 2.10; cio perfeito pelos nossos pecados. Mas ele
5.9; 7.28) é aplicada à situação dos cren- teve de ser trazido à vida novamente para
tes. A lei de Moisés nunca aperfeiçoou exercer a função de sacerdote para sempre,
coisa alguma, mas em Jesus Cristo se in- servindo no santuário celestial, à direita de
troduz esperança superior, pela qual nos Deus (cf 8.1,2).
chegamos a Deus (19). Esta referência 18,19 A anterior ordenança é a lei que
sugere que o aperfeiçoamento dos cren- estabelece o sacerdócio do AT com base na
tes inclui "qualificar" esses crentes para linhagem adequada e na pureza física. Em
se aproximarem de Deus ou para capaci- virtude de sua fraqueza e inutilidade, os
tá-los a desfrutar da certeza do relaciona- sacerdotes eram impedidos pela morte de
mento da nova aliança com Deus. Adiante, continuar (23), e sua própria fraqueza tor-
diremos mais acerca desse importante nava continuamente necessário que sacri-
conceito. Em termos simples, o sacrifício ficassem por seus próprios pecados como
de Cristo trata do problema do pecado de também pelos pecados do povo (27). Aliás,
uma forma que o sacerdócio levítico e a a lei nunca aperfeiçoou coisa alguma
lei de Moisés não eram capazes de tratar. (v. comentário de 7.11,12), porque era ape-
Aliás, a lei e o sacerdócio estavam tão nas "sombra dos bens vindouros" (10.1).
conectados que a mudança do sacerdócio A regulamentação que estabelece o sacer-
2007 HEBREUS 7

dócio do AT foi revogada quando Deus sacerdote para sempre segundo a ordem de
inaugurou um novo sacerdócio e proveu Melquisedeque. Jesus pode salvar total-
um sacrifício para encerrar todos os sacri- mente os que por ele se chegam a Deus.
fícios (cf 10.5-10). A esperança superior A ideia de "chegar-se", "aproximar-se" ou
é introduzida com o ministério do sumo "vir" a Deus é proeminente em Hebreus
sacerdócio de Jesus, pela qual [esperan- (cf 4.16; 7.19; 10.1,22; 11.6; 12.18,22).
ça] nos chegamos a Deus. A certeza de Fundamentalmente expressa a ideia de um
uma purificação definitiva do pecado e relacionamento com Deus. O sacerdócio e
da possibilidade de continuar no relacio- o sistema sacrificial do AT faziam provisão
namento eterno com Deus está no cerne apenas imperfeita para tal relacionamento,
dessa esperança superior. mas Jesus é capaz de salvar totalmente
20-22 A promessa que estabelece o sa- aqueles que se relacionam com Deus por
cerdócio do Messias foi confirmada com meio dele. A linguagem de salvação aqui
um juramento O Senhor jurou e não se ar- sugere libertação da alternativa, que é o juí-
rependerá (81110.4). Um juramento asso- zo de Deus (cf 2.1-4; 9.27,28; 10.26-31).
ciado a uma promessa mostra "firmemente De fato, os cristãos podem buscar a ajuda
aos herdeiros da promessa a imutabilidade de Jesus em todos os estágios da sua pe-
do seu propósito" (6.17). Assim a eterni- regrinação terrena, porque ele vive sempre
dade do sacerdócio de Jesus é estabeleci- para interceder por eles (cf Rm 8.34; 110
da. Por isso mesmo [desse juramento], se 2.1,2). A imagem do intercessor celestial é
pode dizer que Jesus se tem tornado fia- usada para destacar a prontidão e a capaci-
dor de superior aliança. Quando o autor dade de Cristo de aplicar a nós os benefí-
retoma essa superior aliança em alguns cios do seu sacrifício que ele fez "uma vez
trechos adiante, ele descreve Jesus como por todas" (27) por nós (cf 2.18; 4.14-16;
o "Mediador" de uma nova aliança (8.6; 10.19-22). No entanto, a figura não deve
9.15; 12.24). Isso significa que ele inaugura ser forçada exageradamente. Jesus está à
as bênçãos da aliança preditas em Jeremias direita de Deus, reivindicando o cumpri-
31.31-34 (citado em 8.8-12). A palavra mento das promessas da aliança para os
fiador ("garantia", NVI; 22) sugere ainda seus filhos, e não suplicando por sua acei-
mais: o ministério sacerdotal de Jesus con- tação diante do trono do Pai!
tinua a testemunhar do fato de que aquelas 26-28 Jesus supre as nossas necessida-
bênçãos estão prontamente disponíveis. A des como sumo sacerdote primeiro porque
superior aliança é a base para a esperança ele é santo, inculpável, sem mácula. Esses
superior do cristão. três adjetivos lembram o ensino acerca da
23-25 A singularidade e eternidade do sua impecabilidade (4.15) e explicam por
sacerdócio de Cristo tem sido de fato o que o seu sacrifício foi tão perfeito, não
cerne do argumento nesse capítulo compli- havendo necessidade de repetição. Ele
cado. Havia muitos sacerdotes sob a antiga continuou obediente a Deus ao longo de
aliança, porque eram impedidos pela morte toda uma vida de teste. Como sacerdote
de continuar. No entanto, visto que o Jesus inculpável, ele sacrificou pelos pecados do
ressurreto e exaltado continua para sem- povo de Deus uma vez por todas, quando
pre, ele tem um sacerdócio imutável. Ele a si mesmo se ofereceu (27; cf 9.14). Essa
permanece o mesmo (cf 1.8-12; 13.8), e o é uma ideia nova, explicando exatamente
seu ofício e obra sacerdotais são absolutos como ele fez a "purificação" ou "propicia-
e imutáveis. A expressão Por isso no iní- ção pelos pecados do povo" (2.17). Observe
cio do v. 25 introduz a consequência lógica o destaque dado à natureza definitiva (uma
de tudo isso. Aqui está a aplicação prática vez por todas) do seu sacrifício aqui e em
do ensino do autor acerca de Jesus como 9.12,26,28; 10.10. Ao contrário dos sumos
HEBREUS 8 2008

sacerdotes do judaísmo, ele não tem neces- cumprida porque é a base do nosso rela-
sidade, como os sumos sacerdotes, de ofe- cionamento com Deus por meio do Senhor
recer todos os dias sacrificios, primeiro, Jesus Cristo.
por seus próprios pecados, depois, pelos 1,2 O ponto essencial do autor é que
do povo. A perfeição do seu sacrifício é as- nós temos o tipo de sumo sacerdote descri-
sociada com a perfeição da vítima. Jesus to no capítulo anterior, um que se assentou
também supre a nossa necessidade como à destra do trono da Majestade nos céus.
sumo sacerdote porque ele foi separado Esta expressão é uma forma reverente e so-
dos pecadores e feito mais alto do que os lene de descrever Deus como o governante
céus. A sua exaltação celestial significa que majestoso de todas as coisas. Cristo com-
ele vive para sempre para aplicar os bene- partilha desse governo celestial, mas tam-
fícios da sua obra salvadora por nós (25). bém serve como ministro (gr. leitourgos
A lei de Moisés apontou sumos sacerdotes significa que ele é lit. um "servo"), como
a homens sujeitos à fraqueza, mas o jura- esboçado em 7.25. A sala do trono celes-
mento de Salmos 1l0A apontou o Filho a tial pode assim ser retratada como um san-
ser sacerdote de uma ordem diferente. Ele tuário ou "lugar santo", que é o verdadeiro
estava qualificado para cumprir esse papel tabernáculo que o Senhor erigiu, não o ho-
ou foi feito perfeito para sempre (28; cf mem. O verdadeiro tabernáculo é a reali-
comentário de 2.10; 5.9) por intermédio da dade celestial que serviu de modelo para o
sua vida obediente, da sua morte sacrificial tabernáculo no tempo de Moisés (cf v. 5).
e da sua entrada na presença celestial de Embora Deus tivesse mostrado a Moisés
Deus (como sugerem os v. 26,27). o padrão a seguir, o resultado foi somen-
te um santuário feito por homens (gr.
8.1-13 O mediador da nova aliança cheiropoiêta, lit. "feito por mãos", 9.24).
Nos cp. 8 e 9, o autor mostra como o "aper- O tabernáculo que o Senhor erigiu não é
feiçoamento" de Jesus possibilita que nós feito por homens e, portanto, "não desta
desfrutemos dos benefícios da nova alian- criação" (9.11). Com essa figura, o autor
ça. Jeremias 31.31-34 é citado inteiramen- indica que o propósito de Jesus ao entrar
te aqui, e de forma abreviada mais adiante no céu foi "comparecer [...] por nós, diante
(10.16,17), demonstrando a centralidade de Deus" (9.24). O seu ministério na terra
desse texto para o argumento da seção o equipou para esse serviço celestial.
central de Hebreus. Antes de o autor co- 3-5 O princípio geral de que todo sumo
meçar a sua reflexão acerca da profecia sacerdote é constituído para oferecer tanto
de Jeremias, ele observa que a esfera do dons como sacrificios (cf 5.1) significa que
ministério presente de Jesus é o verdadei- Jesus precisa ter o que oferecer. Está claro
ro tabernáculo que o Senhor erigiu, não com base em 7.27 que ele "a si mesmo se
o homem (1,2). Isso conduz a mais uma ofereceu", mas o autor só vai desenvolver
comparação entre o sacerdócio de Jesus esse tema mais tarde. Ele meramente insis-
e o sacerdócio dos que oferecem os dons te de novo que o sacerdócio de Jesus é de
segundo a lei e servem no santuário que é uma ordem diferente. Aliás, se ele estives-
somente figura e sombra das coisas celes- se na terra, nem mesmo sacerdote seria,
tes (3-5). A superioridade do ministério de visto que já existem aqueles que oferecem
Jesus é vinculada ao fato de que está foca- os dons segundo a lei. Alguns leitores de
lizado no santuário celestial. O seu minis- origem judaica talvez tenham achado que
tério também é superior porque estabelece faltava algo ao cristianismo porque não
a nova aliança (6-12), tomando a primeira apresentava uma cerimônia elaborada em
antiquada (13). Os cristãos precisam en- um santuário terreno. Hebreus destaca
tender como a profecia da nova aliança é exatamente o oposto. Cristo introduz as
2009 HEBREUS 8

realidades espirituais e definitivas para as (cf GI 3-4; Rm 9-11). Contudo, está


quais apontava o antigo ritual da aliança, bem claro que qualquer pessoa que tiver
cumprindo e substituindo todo o sistema confiança em Jesus Cristo e no que ele
prescrito na lei de Moisés. Os sacerdotes obteve vai compartilhar do cumprimen-
levíticos operavam num santuário que era to das promessas de Deus ao seu antigo
apenas sombra das coisas celestes (5), ao povo (e.g., 3.14; 4.3; 5.9; 7.25).
passo que Cristo serve num verdadeiro ta- 10-12 A prontidão de Deus para resta-
bernáculo (2). Êxodo 25.40 é usado para belecer o seu relacionamento especial com
fundamentar o argumento de que o taber- Israel é expressa nas palavras-chave: e eu
náculo terreno haveria de ser um esboço serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
obscuro do modelo celestial. No entanto, ao renovar a aliança ele pro-
6 O autor parece mudar de método a mete: na sua mente imprimirei as minhas
essa altura, deixando de lado as imagens leis, também sobre o seu coração as ins-
do sacerdócio, santuário e sacrificio, e creverei, para lhes dar o desejo e a capa-
identificando Jesus como o Mediador de cidade de agradá-lo (10). Hebreus enxerga
uma aliança melhor. No entanto, uma co- o cumprimento dessa promessa no fato de
nexão entre o sacerdócio e a lei ou aliança Jesus purificar o coração do seu povo da
foi estabelecida em 7.11,12, e o tema do consciência culpada, para que assim eles
ministério sumo sacerdotal de Jesus está possam servir "ao Deus vivo" (9.14; cf
proximamente vinculado ao cumprimento 10.19-25). Deus também prometeu por in-
das promessas de Jeremias 31.31-34 nos termédio de Jeremias que cada membro da
cp. 9-10. Jesus inaugura ou media os be- comunidade da nova aliança o conheceria
neficios da nova aliança por meio da sua direta e pessoalmente, desde o menor de-
morte e exaltação celestial (cf 7.22; 9.11- les até ao maior (lI). Hebreus sugere que
15; 10.12-18). Essa aliança é superior à essa promessa é cumprida no fato de nos
antiga porque está instituída com base aproximarmos diretamente de Deus "com
em superiores promessas. Essas promes- confiança", acesso que Jesus toma possí-
sas estão registradas na longa citação de vel (4.16; 7.25; 10.19-22; cf 12.22-24).
Jeremias que segue. Finalmente, a palavra Pois no v. 12 mostra
7-9 No tempo do exílio babilônico, no que a base dessas promessas é a certeza da
século VI a.c., as palavras de Jeremias purificação decisiva do pecado para com
indicavam que "Deus achou o povo em as suas iniquidades, usarei de misericór-
falta" (NVI, 8). Quando ele prometeu uma dia e dos seus pecados jamais me lembra-
nova aliança, a implicação era que havia rei. Está claro com base nos cp. 9-10 que
algo errado com aquela primeira aliança, o sacrificio de Jesus obteve o cumprimen-
estabelecida no tempo do êxodo do Egito. to daquela promessa fundamental (e.g.,
O problema essencial estava com o povo 9.14,26,28; 10.10,14).
- eles não continuaram na minha alian- 13 A necessidade do sacerdócio, santuá-
ça (9) - e assim seguiu o juízo do exílio. rio e sistema sacrificial da antiga aliança
Hebreus vai adiante e mostra que parte do é agora removida. Isso toma possível que
problema era o ritual, que fora designado crentes de qualquer raça e cultura se apro-
ao povo "até ao tempo oportuno de refor- ximem de Deus por meio de Jesus. Embora
ma" (9.10), mas que era limitado nos seus Deus não diga nada especificamente acerca
efeitos. Deve-se observar aqui que a nova disso na profecia de Jeremias, quando ele diz
aliança é feita com a casa de Israel e com Nova, torna antiquada a primeira. Assim as
a casa de Judá. Nada é mencionado espe- provisões rituais da antiga aliança estão no
cificamente acerca da forma como os gen- cerne daquilo que se torna antiquado e en-
tios vêm a compartilhar dessas bênçãos velhecido e está prestes a desaparecer.
HEBREUS 9 2010

9.1-10 As limitações da doados", NTLH) e esse era o foco do ritual


antiga aliança do Dia da Expiação anual. Aqui o sangue
Esse capítulo desenvolve o contraste entre dos animais sacrificiais era aspergido pelo
o que é velho e o que é novo, entre o terreno sumo sacerdote para fazer expiação pelos
e o celestial. Em 9.1, o autor anuncia dois pecados (cf Lv 16.14-17). Os querubins
aspectos da primeira aliança que ele então da glória que, com a sua sombra, cobriam
trata em ordem inversa: santuário terres- o propiciatório, apontavam para a presen-
tre (2-5) e os preceitos de serviço sagra- ça invisível de Deus, e se pensava que ele
do (6-10). A natureza terrena do santuário estivesse "entronizado entre os querubins"
mosaico e de seu ritual limitou os efeitos (ISm 4.4; cf Êx 25.17-22).
como um meio de se relacionar com Deus. 6,7 O foco muda do conteúdo do ta-
Na verdade, todo o sistema era somente bernáculo para os serviços que eram rea-
um símbolo do que a nova aliança traria. lizados ali. A primeira aliança exigia que o
Os seus rituais eram, no tocante à cons- povo se aproximasse de Deus por meio dos
ciência [...] ineficazes para aperfeiçoar seus representantes, os sacerdotes. Esses
aquele que presta culto, mas estavam re- homens entravam regularmente no primei-
lacionados somente a coisas exteriores da ro tabernáculo para realizar os serviços
carne, estando em vigor até ao tempo opor- sagrados. Isso incluía conservar em ordem
tuno de reforma. Embora à primeira vista as lâmpadas (Êx 27.20,21), substituir se-
essa seção não pareça relevante ao cristão, manalmente os pães (Lv 24.5) e oferecer
provê a base para o argumento do restante os sacrifícios diários (Êx 29.38-46). O pa-
do capítulo, em que são desenvolvidas as pel singular do sumo sacerdote era entrar
perspectivas maravilhosas da pessoa e da no segundo tabernáculo uma vez por ano
obra do Senhor Jesus. no Dia da Expiação. A entrada no Santo
1-5 O santuário da primeira aliança era dos Santos nunca era sem sangue, que o
terrestre ou "terreno" no sentido de que era sacerdote oferecia por si e pelos pecados
feito por mãos humanas (cf 8.2; 9.11,24) de ignorância do povo (cf Lv 16). Esse ri-
e provia somente um esboço obscuro das tual deixava perfeitamente claro que Deus
realidades celestiais ou espirituais ago- só permitia que as pessoas se aproximas-
ra disponíveis por meio do ministério de sem dele nos termos dele.
Jesus Cristo (cf 8.5,6; 9.11,12). O autor S-10 O autor afirma ter percepção es-
se detém nas características do tabernácu- pecial do Espírito Santo quanto ao signi-
lo construído por Moisés no deserto. Mas ficado e propósito dessas provisões do AT.
muito do que se diz aqui também pode ser Enquanto o primeiro tabernáculo [conti-
aplicado ao templo posterior em Jerusalém, nuava] erguido, não havia revelação con-
que usou o tabernáculo como modelo. Ao clusiva do caminho do Santo Lugar ["do
preparar para o argumento nos v. 6-10, o santuário", ARe], significando o caminho
autor expressa o mais distintamente possí- para o santuário verdadeiro e celestial (cf
vel as duas divisões do santuário, o Lugar 9.12; 10.19,20). O primeiro tabernáculo
Santo e o Santo dos Santos. Cada espaço geralmente descreve o tabernáculo exterior
continha móveis necessários para os di- do santuário terreno de Israel. No entanto,
versos rituais, associados a símbolos da aqui evidentemente o termo é usado para
condução de Deus na história de Israel e se referir a todo o sistema de sacrifícios e
da sua presença contínua com eles. O item ao ministério sacerdotal associado com o
mais importante no santuário era a arca tabernáculo e o templo. Assim o taberná-
da aliança totalmente coberta de ouro. A culo exterior é uma parábola para a época
tampa da arca era chamada de propicia- presente. Num nível literal, o tabernáculo
tório ("o lugar onde os pecados eram per- exterior obstruía o caminho para dentro do
2011 HEBREUS9(

segundo tabernáculo. No nível simbólico, seu sangue inaugura a nova aliança, com
o tabernáculo e todo o seu ritual obstruíam sua promessa do perdão "uma vez por to-
o caminho do acesso direto e permanente a das" e decisivo dos pecados (16-23). Ele
Deus. Em alguns aspectos, a lei prefigura- entrou no céu para comparecer, agora, por
va o ministério de Cristo e preparava para nós, diante de Deus (9.24,25), tendo trata-
ele. Mas quando a nova aliança foi inau- do do problema do pecado pelo sacrificio
gurada, as inadequabilidades do culto da de si mesmo (26). Quando ele reaparecer
antiga aliança se tomaram gritantemente do santuário celestial, trará a completa
óbvias. Uma fraqueza particular dos ser- experiência da salvação aos que o aguar-
viços daquele santuário terreno é então dam para a salvação (27,28). Assim, com
destacada. Os dons e sacrifícios oferecidos a aplicação de diversos conceitos e figuras
eram ineficazes [no tocante à consciência] do Ar, esse trecho tem muito a nos ensinar
para aperfeiçoar aquele que presta culto acerca dos benefícios da obra salvífica de
("aperfeiçoar" como em 10.1; cf 10.14; Jesus por nós, agora e no futuro.
11.40; 12.23). Os rituais na verdade dei- 11,12 Com o comparecimento de
xavam os participantes com consciência Cristo como sumo sacerdote dos bens já
culpada pelos seus pecados (10.2), porque realizados, as coisas prefiguradas no Ar
eram orientados por regulamentações exte- se tomaram realidade! O autor explica
riores, ou seja, ordenanças da carne (10). isso primeiramente ao mostrar mais pre-
Elas foram impostas até ao tempo oportu- cisamente como Cristo cumpriu o papel
no de reforma, até que Cristo viesse "como do sumo sacerdote no Dia da Expiação
sumo sacerdote dos bens já realizados" anual (cf 7.26,27; 9.7; Lv 16.1-19). Os
(11). A capacidade de Cristo de purificar sumos sacerdotes passavam pelo taberná-
a consciência é destacada em 9.14 e 10.22. culo exterior para o Santo dos Santos. Ali
Com essa remoção da carga da culpa, que aspergiam no propiciatório o sangue dos
nos libera para servir a Deus com confian- animais sacrificados do lado de fora do ta-
ça e gratidão (9.14; 12.28), a profecia de bernáculo e intercediam pelo povo. Jesus,
Jeremias da nova aliança é cumprida. por outro lado, passou pelo maior e mais
perfeito tabernáculo, não feito por mãos,
9.11-28 O que Cristo realizou quer dizer, não desta criação. O seu mi-
na sua morte e exaltação nistério sacerdotal abre o caminho para o
Como sequência ao que foi tratado na pri- santuário celestial ou o próprio céu (24; cf
meira metade do capítulo, se pode dizer 8.1,2). Depois de ter sido sacrificado como
que essa seção trata do "santuário celes- sacrifício pelos nossos pecados, ele subiu
tial" e de suas "regulamentações para a e "penetrou os céus" (4.14), para se assen-
adoração". Jesus Cristo é o sumo sacerdo- tar à direita de Deus e "interceder" por nós
te que subiu e entrou no Santo dos Santos (7.25). Ele entrou na presença celestial de
no domínio celestial (12). Pelo sangue que Deus não por meio de sangue de bodes e
derramou na cruz, ele obteve eterna reden- de bezerros, mas pelo seu próprio sangue.
ção para aqueles que confiam nele. Agora, E visto que o seu sacrifício foi tão perfei-
isso significa que a nossa consciência pode to, ele entrou no Santo dos Santos uma vez
ser purificada da corrupção do pecado, e por todas: sua crucificação e exaltação ce-
nós podemos adorar de forma adequada e lestial não precisaram ser repetidas. Aliás,
servir ao Deus vivo (12-14). No final das ele obteve eterna redenção. A palavra "re-
contas, o sacrifício de Cristo toma possí- denção" sugere libertação à custa da vida
vel que aqueles que têm sido chamados dele. Uma expressão semelhante em 9.15 é
também recebam a promessa da eterna traduzida por remissão das transgressões,
herança (15). Assim o derramamento do e está claro com base no contexto que essa
HEBREUS 9 2012

libertação é do juízo e da culpa produzi- mentado no perdão definitivo dos pecados


dos pelo pecado. Assim, eterna redenção (Jr 31.33,34), ecoa no v. 14. Somente a pu-
é mais uma maneira de falar da promessa rificação provida por Cristo pode nos liber-
de perdão constante e "uma vez por todas" tar para servirmos ao Deus vivo da forma
anunciada em Jeremias 31.34. que Jeremias predisse. A natureza desse
13,14 Ao esboçar as consequências "serviço" ou "adoração" (gr. latreuein)
práticas da morte de Cristo, o autor con- será discutida em conexão com 12.28.
trasta o efeito de oferecer sangue de ani- 15 O elo entre a obra sumo sacerdotal
mais ou aspergir a cinza de uma novilha de Jesus e o cumprimento da profecia de
(cf Nm 19). Esses rituais eram para o be- Jeremias é explorado mais a fundo. Por
nefício dos que estavam cerimonialmente meio da sua morte, Cristo é o Mediador da
contaminados, para santificá-los quanto à nova aliança (cf 8.6; 12.24). Primeiro, ele
purificação da carne, ou seja, a purificação morreu para remissão das transgressões
exterior. Os que tinham sido contaminados que havia sob a primeira aliança. Como
podiam ter sua comunhão com Deus res- observado em conexão com o v. 12, a sua
taurada no sentido de que estavam capaci- morte é o preço da libertação do juízo e
tados a participar novamente da adoração da culpa produzidos pelo pecado (cf Jr
na comunidade. A verdade fundamental 31.34). O foco está na redenção daqueles
de que o sangue "purifica" e "santifica", que pecaram sob a primeira aliança, como
mesmo que só num nível cerimonial, for- prometido em Jeremias 31.31,32. De fato,
nece a base para o argumento introduzido o sacrifício de Jesus é retroativo em seus
pela expressão muito mais no versículo efeitos e é válido para todos os que con-
seguinte. O sangue de Cristo é uma for- fiaram em Deus para o perdão dos seus
ma de falar da sua morte como o sacrifí- pecados no antigo Israel (cf 11.40). Mas
cio pelos pecados. Isso foi singularmente sabemos também que, pela graça de Deus,
eficaz porque ele a si mesmo se ofereceu ele experimentou a morte "por todos" (2.9)
sem mácula a Deus. Mais uma vez o autor e ele é capaz de salvar a todos "os que por
alude à vida de Jesus de perfeita obediên- ele se chegam a Deus" (7.25). Em segundo
cia ao Pai, culminando na cruz (cf 5.7-9; lugar, com base na morte dele, que rece-
7.26,27; 10.10). Pelo Espírito eterno mui- bam a promessa da eterna herança aque-
to provavelmente se refere ao poder do les que têm sido chamados. Assim como
Espírito Santo de sustentá-lo e suportá-lo a antiga aliança prometia a terra de Canaã
(cf Is 42.1), embora alguns interpretem a como herança para o povo de Deus, assim
expressão como significando o próprio es- a aliança inaugurada por Cristo abre o ca-
pírito dele, destacando a natureza interior minho para a eterna herança. Isso é equi-
ou espiritual do seu sacrifício. O sangue valente ao "mundo que há de vir" (2.5),
de Cristo é suficientemente poderoso para o "repouso para o povo de Deus" (4.9), a
purificar a nossa consciência de obras "Jerusalém celestial" (12.22) e outras tais
mortas. Deus requer o arrependimento de descrições do nosso destino como cristãos.
tais atos (6.1), pecados que contaminam Jesus abriu o caminho para a sua herança
a consciência e trazem o juízo dele. Mas para nós ao tratar do pecado que nos impe-
os que se arrependem precisam ser puri- de de chegar perto de Deus.
ficados de tal contaminação, e somente a 16-22 A ideia da herança conduz o au-
morte de Jesus pode fazer isso (cf 9.9 com tor a um jogo de palavras. A palavra grega
9.14). O propósito da purificação no AT era diathêkê é primeiramente empregada no
que o povo fosse consagrado novamente sentido técnico e legal de um testamento
ao serviço de Deus. A promessa da nova (16,17). Em questões humanas comuns,
aliança de um "coração" renovado, funda- para que os benefícios do testamento de
111
2013 HEBREUS 10 111111
l1li.
uma pessoa entrem em vigor, é necessário tabernáculo e do Dia da Expiação usadas
que intervenha a morte do testador. A mes- pelo autor é que Jesus entrou [...] no mes-
ma palavra é então usada para se referir à mo céu, para comparecer, agora, por nós,
aliança que Deus fez com Israel no tempo diante de Deus (cf 7.25). Ele toma possí-
de Moisés (18-20). Não havia necessidade vel que nós tenhamos acesso a Deus agora
para que o testador morresse nesse caso, e na eternidade.
mas nem a primeira aliança foi sanciona- 25-28 Os sacrificios [...] superiores
da sem sangue. O autor chama a atenção mencionados no v. 23 são de fato um sa-
para a cerimônia que foi mencionada em crifício singular e único de Jesus Cristo. O
Êxodo 24.1-8, quando Moisés aspergiu o seu sacrifício não precisa ser repetido mui-
altar e o povo com o sangue sacrificial e os tas vezes, segundo a forma dos sumos sa-
chamou a obedecer a tudo que Deus tinha cerdotes no seu ritual anual. É errado suge-
ordenado. Assim, o relacionamento com o rir que o sacrifício dele deva ser oferecido
Senhor foi selado e confirmado com o san- continuamente ao Pai, seja no céu, seja na
gue da aliança e a posição santificada da terra. Jesus não teve de sofrer muitas vezes
nação foi proclamada. Hebreus acrescenta desde afundação do mundo: o seu próprio
ainda outros detalhes do ritual de purifica- sofrimento é suficiente e final para a histó-
ção do AT para indicar a forma abrangente ria toda - passado, presente e futuro. Nos
com que o sangue foi usado para purifica- v. 26,28, o autor usa a expressão uma vez
ção sob a primeira aliança (21). Isso leva a por todas (cf 7.27; 9.12; 10.10) para desta-
uma observação final (quase todas as coi- car a natureza decisiva e completa da obra
sas, segundo a lei, se purificam com san- sumo sacerdotal de Jesus. De fato, o seu
gue) e um princípio fundamental (sem der- comparecimento sinaliza o cumprimento
ramamento de sangue, não há remissão). dos tempos, ou dos últimos dias (cf 1.2).
Embora o sangue fosse usado em grande O propósito da sua vinda foi aniquilar,
escala para a purificação cerimonial (13), pelo sacrificio de si mesmo, o pecado (26).
esses rituais apontavam para as necessida- Posto de outra forma, foi tirar o pecado de
des mais profundas do povo de Deus de li- muitos (28, lit. "carregar o pecado de mui-
bertação do poder e do castigo do pecado. tos"; cf Is 53.12). Assim houve uma de-
23,24 As figuras das coisas que se cisão final quanto ao problema do pecado
acham nos céus - o tabernáculo e tudo pela ação de Jesus em um ponto da história
que era usado nas suas cerimônias - ti- humana e isso dá um significado solene ao
nham de ser purificadas com o sangue presente. Há "certa expectação horrível de
sacrificial. O santuário de Israel era feito juízo" para aqueles que rejeitam o Filho
por mãos e era somente figura do verda- de Deus e o seu sacrifício (10.26-31). Mas
deiro que é o próprio céu (24; cf 8.5). para aqueles que confiam nele e ansiosa-
Quando o autor diz que as coisas que se mente esperam a sua segunda vinda, há a
acham nos céus precisavam ser purificadas perspectiva da salvação - o resgate do
com sacrificios a eles superiores, ele difi- juízo e o desfrute da promessa da eterna
cilmente pode estar querendo dizer que o herança (15).
céu foi contaminado pelo pecado humano,
pois aí Deus teria de deixá-lo! No entanto, 10. 1-18 Os benefícios
ele pode estar sugerindo que o sacrifício da nova aliança
de Cristo teve significado cósmico, remo- À medida que a seção doutrinária central
vendo a barreira de comunhão com Deus de Hebreus chega ao final, o autor continua
que existia no nível da realidade máxima explicando os benefícios da nova aliança.
e não simplesmente no coração humano. A Mais uma vez ele expressa de forma in-
mensagem simples por trás das figuras do tensa as limitações da lei e suas provisões
HEBREUS10 2014

quando alguém tenta se aproximar de Deus Deus e ao seu serviço (v. comentários de
(1-4). Salmos 40.6-8 é então usado para 10.10 e 10.14). Se os sacrificios da primei-
estabelecer que todo o sistema sacrificial ra aliança tivessem atingido esse propósito,
é substituído pelo autossacrificio perfeita- não teriam cessado de ser oferecidos? No
mente obediente de Cristo (5-10). Em con- entanto, os adoradores continuaram tendo
traste com os sacerdotes da antiga aliança, consciência de pecados (cf 9.9). Eles não
que estão diariamente diante do altar para foram purificados uma vez por todas, como
oferecer repetidamente os mesmos sacrifi- alguém pode ser ao confiar na eficácia do
cios, que nunca jamais podem remover pe- sacrificio de Jesus (cf 9.14; 10.17,18).
cados, Jesus está à direita de Deus, tendo 3,4 Embora o ritual do Dia da Expiação
concluído a sua obra sacrificial (11-14). O garantisse a Israel que o Senhor era capaz
resultado disso para os crentes é que nós de perdoar pecados, a cerimônia tinha de
temos sido santificados e ele aperfeiçoou ser repetida ano após ano. O efeito disso
para sempre quantos estão sendo santifi- foi prover uma recordação de pecados
cados. Esses termos são usados para des- todos os anos - um lembrete de que o
crever o tipo de relacionamento com Deus pecado é um empecilho para a comunhão
predito em Jeremias 31.33,34. O autor cita com Deus e traz o seu juízo. Em contras-
esses versículos de forma abreviada (15- te, o próprio Deus promete que sob a nova
18), para sinalizar que o argumento ini- aliança "dos seus pecados jamais me lem-
ciado no cp. 8 chegou ao fim. Visto que o brarei" (Jr 31.34; cf v. 17). O pecado não
sacrificio de Cristo é tão eficaz, não há ne- teve um tratamento definitivo até que Jesus
cessidade de nenhum outro sacrificio pelo morresse na cruz, porque é impossível que
pecado. O perdão prometido por Jeremias o sangue de touros e de bodes remova pe-
está disponível, tomando possível a reno- cados. Deus requereu sacrificios de ani-
vação do coração e da mente que é funda- mais para ensinar Israel a olhar para ele
mental para a nova aliança. em busca de purificação e para mostrar a
1,2 Quando o autor descreve a lei de necessidade de uma pena a ser paga pelo
Moisés como sendo sombra dos bens vin- pecado (cf Lv 17.11). Mas foi o destino do
douros, ele quer dizer que ela prefigurava Messias pagar essa pena por meio da sua
as bênçãos da nova aliança que Jesus traria. morte e assim prover a salvação, mesmo
O ritual da lei apontava para a necessidade para aqueles que pecaram na época do AT
da "realidade" (NVI; imagem real das coi- (cf 9.15).
sas, ARA) do ministério sumo sacerdotal de 5-10 As palavras de Salmos 40.6-8 são
Cristo. Há um sentido em que ainda espe- atribuídas a Cristo ao entrar no mundo por-
ramos por desfrutar da completa salvação que encontram cumprimento absoluto na
que foi obtida para nós (9.28; cf 13.14). sua vida. Davi, o salmista, foi além de mui-
Não obstante, muitos dos seus beneficios tos autores do AT ao enfatizar a ineficácia
já podem ser usufruídos de antemão (e.g., dos sacrificios em si mesmos para agradar
9.14; 10.19-25). A inadequabilidade do a Deus. Os quatro termos técnicos que ele
ritual do AT é destacada pelo fato de que usa - sacrificio, oferta, holocausto, ofer-
os mesmos sacrificios eram repetidos ano ta pelo pecado - descrevem os diferentes
após ano, perpetuamente. Como já obser- tipos de sacrificio ordenados pela lei. Mas
vado em 7.11,19 e 9.9, a lei nunca jamais todo o sistema estava projetado para enco-
pode tornar perfeitos os ofertantes dessa rajar e tomar possível o autossacrificio vo-
forma. O aperfeiçoamento dos crentes luntário do povo de Deus, como indicado
está relacionado com a purificação da sua pelas palavras: Eis aqui estou para fazer,
consciência da culpa do pecado, assim que ó Deus, a tua vontade. No corpo que foi
possam ser completamente consagrados a preparado para o Filho de Deus, ele viveu
11
2015 HEBREUS 10 1111
11III.

uma vida de obediência perfeita ao Pai, com uma única oferta, aperfeiçoou para
culminando na sua morte como um sacri- sempre quantos estão sendo santificados
ficio sem mácula (cf 9.14). Ele veio para (14). Como foi observado anteriormente,
colocar de lado o antigo sistema sacrificial o "aperfeiçoamento" dos crentes inclui a
e produzir a obediência a Deus que sempre sua qualificação para que se aproximem de
tinha sido a intenção por trás dos rituais. Deus e sejam capacitados para desfrutar da
Ele encontrou a vontade do Pai expressa certeza do relacionamento da nova aliança
nas Escrituras (no rolo do livro está escrito com Deus (cf 7.11,12,19; 9.9; 10.1; 11.40;
a meu respeito), e nessa vontade é que te- 12.23). Fundamentalmente, isso significa
mos sido santificados, mediante a oferta do o perdão dos pecados e a purificação da
corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas. consciência, tomando possível a consa-
O seu sacrificio uma vez por todas (10) traz gração ao serviço de Deus daqueles que
a purificação uma vez por todas do pecado estão sendo santificados (v. comentário do
que a lei não podia produzir (2). Tal purifi- v. 10), e finalmente a sua participação na
cação toma possível a consagração e santi- "promessa da eterna herança" (cf 9.15).
ficação definitivas do crente a Deus, o que é 15-18 O Espírito Santo que inspirou
o significado da expressão: temos sido san- os profetas no início continua a falar por
tificados (gr. hêgiasmenoi esmen; tempo meio de seus escritos aos crentes de todas
verbal perfeito). Dessa forma, o autor suge- as gerações (cf 3.7). Por meio da profe-
re o cumprimento da promessa de que Deus cia de Jeremias 31.33,34 (citada aqui de
escreveria a sua lei no seu coração e sobre forma abreviada), o Espírito Santo espe-
a sua mente (16; Jr 31.33). Tal dedicação a cificamente dá testemunho a nós acerca
Deus e ao seu serviço foi obtida para nós das coisas mencionadas nos versículos
por Jesus Cristo, em quem a obediência de anteriores. A promessa de Jeremias do
coração foi perfeitamente expressa. perdão definitivo dos pecados mostra que
11-14 Algumas das ideias expressas em viria um tempo em que já não [haveria]
9.25-28 e 10.1-4 são agora reafirmadas. Os oferta pelo pecado. Mas proximamente
sacerdotes do judaísmo estavam envolvi- vinculado a isso está a promessa de cora-
dos no serviço sagrado diário incluindo a ção e mente renovados, ajudando a definir
oferta repetida dos mesmos sacrificios, que a perfeição e a santificação de que o autor
nunca jamais podem remover pecados. No esteve falando (10, 14).
entanto, Jesus ofereceu um único sacrificio
pelos pecados, que é eficaz para sempre. 10. 19-39 O desafio para que os
Esse contraste é reforçado pelo retrato do leitores se apeguem aos benefícios
sacerdote levítico que se apresenta diante da nova aliança
do altar, para oferecer sacrificios repetidos, Essa seção conclui a divisão maior de
e Jesus que se assentou à destra de Deus, Hebreus que começou com o apelo em
porque a sua obra sacrificial estava con- 5.11-6.20. Depois de vários capítulos
cluída e completa. Como no salmo 110, a de complexa argumentação doutrinária,
função real do Messias é combinada com a o autor elabora as implicações práticas,
sua função sacerdotal, e assim a sua entro- repetindo algumas das advertências e en-
nização celestial significa que ele também corajamentos dados anteriormente. De-
espera que os seus inimigos sejam postos monstra-se, assim, o elo próximo entre
por estrado dos seus pés (cf SI 110.1). Isso boa teologia e vida cristã fiel. A base da
prenuncia o ensino dos v. 26-31, em que se nossa confiança (intrepidez) como cris-
revela que o juízo vindouro irá "consumir tãos é o fato de que temos acesso ao Santo
os adversários" de Deus. Mas a implicação dos Santos em virtude da morte de Jesus e
positiva da entronização de Cristo é que do fato de que ele reina como grande sa-
HEBREUS10 2016

cerda te da casa de Deus. Isso deveria nos Deus (intrepidez para entrar no Santo dos
inspirar a nos aproximarmos de Deus com Santos), baseada no sacrifício singular de
fé em que ele leva a sério as promessas Jesus (pelo sangue de Jesus). Há uma co-
da nova aliança, e a guardarmos firme a nexão íntima entre a entrada de Cristo no
confissão da esperança e a considerarmos santuário celestial e a nossa entrada lá (cf
a melhor forma para nos estimularmos ao 4.14-16; 6.19,20). Ele abriu para nós um
amor e às boas obras. novo e vivo caminho para a presença de
A advertência que segue (26-31) é para- Deus, pelo véu, isto é, pela sua carne ("por
lela em muitos aspectos ao ensino de 6.4-6 meio do véu, isto é, do seu corpo", NVI).
acerca do pecado da apostasia. O argumen- Esse véu no tabernáculo terreno era o meio
to De quanto mais ... também lembra 2.1-5. de acesso do sumo sacerdote ao Santo dos
Se aqueles que rejeitaram a lei de Moisés Santos. Metaforicamente, a morte sacrifi-
experimentaram o juízo de Deus, quanto cial de Jesus era o véu ou meio de acesso
mais severo será o castigo daqueles que ao santuário celestial para ele e para todos
rejeitam o Filho de Deus e as bênçãos da os que confiam nele! A segunda coisa que
nova aliança! O seu sacrifício singular pro- nós como irmãs e irmãos em Cristo temos
vê a base única para o perdão. Abandonar é um grande sacerdote da casa de Deus.
isso é abandonar toda a esperança de sal- Está claro com base em 3.6 que a "casa de
vação. No entanto, como no cp. 6, a ad- Deus" é o povo de Deus. O nosso gran-
vertência é seguida de um encorajamento à de sacerdote toma possível que juntos nos
perseverança (32-39). Os leitores são lem- aproximemos de Deus e que compartilhe-
brados dos sofrimentos, do opróbrio e da mos a esperança da vida eterna na presença
tribulação que experimentaram não muito dele (cf v. 22,23). Mas essa alusão à nossa
depois de se tomarem cristãos. A confiança experiência comum como cristãos signi-
que demonstraram naquela época e o cui- fica também que temos responsabilidades
dado que mostraram uns pelos outros pre- uns com os outros (cf v. 24,25).
cisam ser mantidos. Com uma citação que 22-25 Há três exortações nesses versí-
combina Isaías 26.20 e Habacuque 2.2,3, o culos, mostrando como devemos respon-
autor destaca a necessidade da fé perseve- der às grandes verdades doutrinárias dos
rante, para que assim possamos receber o capítulos anteriores. Estão no tempo ver-
que Deus prometeu. Isso nos prepara para bal presente no grego, indicando que deve-
o desenvolvimento do tema da fé e da per- mos continuamente expressar fé (22), es-
severança na próxima grande seção do ar- perança (23) e amor (24,25). O chamado:
gumento (11.1-12.13). aproximemo-nos, com sincero coração,
19-21 Esses versículos resumem em em plena certeza de fé lembra especifica-
termos muito simples o argumento dou- mente 4.16 e o ensino mais amplo do autor
trinário dos cp. 7-10. Há duas coisas sobre aproximar-se de Deus por meio de
que temos como irmãos e irmãs cristãos, Jesus (v. comentário de 7.25). Nós deve-
e sobre essa base o autor dá a sua ordem mos usufruir dos benefícios do sacrifício e
tríplice em 10.22-25. Em primeiro lugar, do governo celestial dele ao orarmos com
temos intrepidez para entrar no Santo confiança pedindo misericórdia e ajuda em
dos Santos, pelo sangue de Jesus. A pa- tempos de necessidade. Um sincero cora-
lavra traduzida por intrepidez ocorre em ção, em plena certeza de fé, é um coração
quatro contextos importantes em Hebreus que demonstra completa confiança e de-
(3.6; 4.16; 10.19; 10.35). Deus nos dá a voção, cumprindo a promessa de um novo
sua confiança (intrepidez, ousadia) por coração para o povo de Deus em Jeremias
meio do evangelho. Fundamentalmente é 31.33 e Ezequiel 36.26,27. O que toma isso
uma confiança de acesso livre e aberto a possível é ter o coração purificado de má
2017 HEBREUS10

consciência ("os corações aspergidos...", Senhor! Positivamente, podemos estimu-


NVI). A inauguração da antiga aliança foi lar uns aos outros ao amor e às boas obras
associada à aspersão de sangue sobre os ao nos encontrarmos para encorajamento
israelitas (9.18-20). O sangue de Jesus foi mútuo (façamos admoestações; "procure-
derramado para inaugurar a nova aliança mos encorajar uns aos outros", NVI). Como
e é aplicado ao nosso coração, para puri- em 3.13, esse encorajamento é mais bem
ficar a consciência da culpa, quando cre- compreendido se feito como forma de
mos no evangelho e depositamos a nossa exortação fundamentada nas Escrituras,
confiança no sacrifício dele para expiação seguindo o próprio exemplo do autor na
dos nossos pecados (cf 9.13,14). Tendo sua "palavra de exortação" (13.22). A ur-
[...] lavado o corpo com água pura pro- gência disso é destacada por uma alusão
vavelmente é uma referência ao batismo à proximidade do retomo de Cristo e do
como o sinal exterior da "purificação" do juízo final (e tanto mais quanto vedes que
nosso coração. o Dia se aproxima).
O chamado para guardarmos firme a 26-28 Esses versículos retomam a alu-
confissão da esperança, sem vacilar lem- são ao juízo de Deus no final do v. 25 e
bra 4.14. É um lembrete de que a nossa desenvolvem a advertência acerca da re-
salvação ainda está por ser completamente belião contra Deus encontrada em trechos
realizada (cf 4.1; 9.28; 10.37-39; 13.14) e anteriores (cf 2.1-4; 3.7--4.11; 6.4-8). A
que a nossa vida é governada pela espe- formulação da NVI - "Se continuarmos a
rança que professamos. O relacionamen- pecar deliberadamente" - transmite cor-
to entre a fé e a esperança será explorada retamente o sentido do particípio presente
no cp. 11. A base para guardarmos uma no grego, "[continuar] pecando" (o gerún-
confissão de esperança é que quem fez a dio, no caso). No entanto, seria um erro
promessa é fiel. pensar que isso é meramente uma referên-
O terceiro chamado nesse parágrafo é: cia ao comportamento pecaminoso que é
Consideremo-nos também uns aos outros, tristemente óbvio na vida de todos nós. O
para nos estimularmos ao amor e às boas contexto e o paralelo com trechos anterio-
obras. Visto que compartilhamos dos be- res indicam que o autor tem em vista o pe-
nefícios da obra sumo sacerdotal de Cristo cado específico da apostasia ou da rejeição
como irmãs e irmãos em Cristo, temos a contínua de Cristo. Se, por meio do evan-
responsabilidade de ministrar uns aos ou- gelho, as pessoas receberam o pleno co-
tros em amor (cf 3.12,13; 12.15,16). Duas nhecimento da verdade e então dão as cos-
expressões no v. 25 explicam como pode- tas a essa verdade, já não resta sacrificio
mos estimular uns aos outros à vida pie- pelos pecados. Não há forma alternativa
dosa. Negativamente, podemos cuidar uns de perdão e aceitação com Deus à parte da
dos outros ao não abrirmos mão de con- morte do Filho dele. Abandonar esse sacri-
gregar-nos. O autor usa um termo para o fício feito uma vez por todas pelos pecados
encontro deles (gr. episunagõgê, "assem- é abandonar toda e qualquer esperança de
bleia") que é paralelo em sentido a "igre- salvação. Tudo que resta para tais pessoas
ja" e sugere um encontro formal de algum é certa expectação horrível de juízo e fogo
tipo. Alguns dos seus membros estão se- vingador prestes a consumir os adversá-
guindo o costume de negligenciar essa rios. O destino deles é o mesmo do destino
responsabilidade. A advertência acerca da daqueles que nunca se voltaram a Cristo ou
apostasia que segue (26-39) sugere que que ativamente se opuseram ao evangelho!
pessoas que deliberada e persistentemen- Já na primeira aliança, qualquer pessoa
te abandonam a comunhão dos cristãos que rejeitasse a lei de Moisés em rebeldia
estão em perigo de abandonar o próprio propositada morria sem misericórdia pelo
HEBREUS10 2018

depoimento de duas ou três testemunhas constante. A experiência de perseguiçao


(Dt 17.2-7). Quanto mais severo deve ser o deles é descrita com uma metáfora alegóri-
castigo daquele que renuncia e se opõe às ca: foi uma grande luta e com sofrimentos
provisões da nova aliança! (cf 12.1-3). Eles mesmos tinham sofrido,
29-31 A natureza terrível da apostasia sendo expostos como em espetáculo, tan-
é descrita em três expressões paralelas. to de opróbrio quanto de tribulações, e
Aquele que se desvia de Cristo na verdade compartilharam do sofrimento de outros,
calcou aos pés o Filho de Deus, pisando-o estando lado a lado com aqueles que desse
com desprezo ao negar a sua verdadeira modo foram tratados. Na Introdução, argu-
natureza e identidade. Esse também pro- mentamos que essa perseguição, que não
fanou o sangue da aliança com o qual foi incluiu derramamento de sangue (12.4),
santificado. A morte de Cristo inaugura as pode ter tido relação com os problemas em
bênçãos da nova aliança e nos leva a um Roma quando Cláudio se tomou impera-
relacionamento santificado com Deus (cf dor. A compaixão e empatia deles com os
10.10; 13.12). Abandonar tal relaciona- que estavam na prisão e sua alegre acei-
mento é profanar (" ... e tiver por profa- tação do espólio dos seus bens se toma-
no", ARe; gr. koinon, "comum, impuro") o ram possíveis pela certeza que tinham das
sangue e não tratá-lo como o meio sagra- promessas de Deus. Eles sabiam (tendo
do escolhido por Deus para a obtenção da ciência) que Jesus tinha tomado possível
salvação. A pessoa que se desvia de Cristo que eles herdassem patrimônio superior
também ultrajou o Espírito da graça. O e durável (cf 13.14), e isso governava o
Espírito de Deus nos leva a confiar na gra- seu pensamento acerca do presente e dos
ça de Deus e a nos apropriar dos benefi- seus valores.
cios da obra de Cristo para nós mesmos 35,36 Essa recordação da sua fé, es-
(cf 6.4,5). O Espírito também distribui perança e amor em dias passados se toma
os dons gratuitos de Deus, confirmando a a base para o seguinte apelo Não aban-
verdade do evangelho (cf 2.4). A inevita- doneis, portanto, a vossa confiança. A
bilidade do castigo que espera os cristãos confiança do acesso livre e aberto a Deus
apóstatas é então sugerida por duas cita- pelo sangue de Jesus (19; cf 4.16) precisa
ções do AT. É o papel de Deus exercer a ser firmemente mantida e abertamente ex-
vingança. Deus diz: eu retribuirei o peca- pressa (3.6; cf 4.14; 10.23). A confiança
do de qualquer tipo (Dt 32.35). Mas Deus em Deus que os leitores demonstraram an-
revelou especificamente que ele julgará teriormente não pode ser abandonada ou
o seu povo (cf Dt 32.36), vindicando o descartada levianamente, não importam
verdadeiro ao remover o falso. Horrível as dificuldades que estejam encontrando
coisa é cair nas mãos do Deus vivo quan- agora. Ela será ricamente recompensada
do ele age assim no juízo. (cf 6.10). A salvação não depende de es-
32-34 Como no cp. 6, uma advertência forços humanos, visto que é totalmente a
severa é seguida de palavras de encoraja- obra de Deus. Mas, enquanto a salvação
mento e esperança. Aqui obtemos algumas continuar sendo uma promessa, temos ne-
percepções muito úteis acerca da expe- cessidade de perseverança na fé, a fim de
riência dos primeiros leitores, não muito fazermos a vontade de Deus e recebermos
tempo depois da sua conversão (depois a promessa.
de iluminados). Eles são chamados a lem- 37-39 Um encorajamento especial à
brar o que "suportaram" (sustentastes, gr. perseverança na fé está na certeza de que
hypemeinate). Palavras semelhantes são Cristo vai voltar e não tardará em cum-
então usadas no v. 36 e em 12.1,2,3,7 para prir o seu plano salvífico. O autor cita
destacar a necessidade da perseverança Habacuque 2.3,4 de forma tal que dependa
11
2019 HEBREUS 11 - :
11

da tradução grega do AT (LXX). Essa ver- Embora 11.1-40 seja uma unidade
são toma o sujeito uma pessoa, e não bem definida e cuidadosamente elaborada,
uma visão ou revelação como no texto 12.1-13 está intimamente conectado àque-
hebraico e nas versões em português. Em le trecho. O elo entre fé e perseverança que
Hebreus, a implicação é que Jesus Cristo é feito no cp. 11 se toma a base para o cha-
seja aquele que virá e que não tardará. As mado à perseverança em 12.1-13. Como
palavras iniciais Porque, ainda dentro de já observamos, a perseverança de Jesus
pouco tempo, que provavelmente vêm de na cruz e a vergonha que ele suportou são
Isaías 26.20, destacam o ponto e sugerem apresentadas como o exemplo supremo de
que os leitores tinham dificuldades com fé. Em toda essa seção, o autor destaca a se-
a necessidade de esperar pacientemente melhança entre a situação dos crentes dos
pelo retomo de Cristo. Isso teria se inten- tempos do AT e os cristãos esperando pelo
sificado se eles estivessem avistando mais cumprimento dos propósitos de Deus. Não
perseguição e sofrimento no horizonte. O obstante, está claro que a obra de Cristo
autor também inverteu a ordem das frases nos oferece uma certeza maior de que
em Habacuque 2.4 para deixar claro que vamos obter o que Deus prometeu.
a pessoa que vive pela fé (o meu justo),
e não aquele que [...] virá, pode ser ten- 11.1-40 A celebração da fé
tado a retroceder. Deus não se compraz A fé é primeiramente definida (1,2), não de
naqueles que retrocederem em incredu- forma abrangente, mas de maneira tal que
lidade; estes irão para a perdição no juí- prepara para o argumento da seção como
zo vindouro. No entanto, o autor conclui um todo. A doutrina de que o universo foi
o capítulo em tom positivo ao sugerir formado pela palavra de Deus é apresenta-
que os seus leitores são os da fé, para a da como fundamental para o tipo de fé que
conservação da alma ("que creem e são o autor está encorajando (3). Ao tratar sis-
salvos", NVI). tematicamente de personagens de Gênesis
a Josué, ele então destaca o papel da fé na
11.1-12.13 Fé e perseverança vida de indivíduos que foram cruciais para
Depois do trecho de advertência em 6.4-8, os propósitos salvíficos de Deus (4-31).
o autor encoraja os seus leitores à perseve- Atenção especial é dada a Abraão e Sara
rança (6.9-12), concluindo com o encora- (8-19) e Moisés (23-28). Depois segue
jamento a imitarem os que "pela fé e pela uma análise breve da história sacra desde o
longanimidade herdam as promessas". O período dos juízes até as revoltas dos ma-
mesmo padrão está no final do cp. 10. Uma cabeus do século II a.C. (32-38), focalizan-
advertência acerca das consequências de do nas provações sofridas por aqueles que
se rejeitar a Cristo é seguida do encora- permaneceram fiéis a Deus. Os últimos
jamento aos leitores para que mantenham dois versículos comparam a situação dos
a "confiança" e "perseverem" na fé, a fim crentes do AT à dos cristãos (39,40), fazen-
de que "alcanceis a promessa" (10.26-39). do uma ponte com o capítulo seguinte.
Então, no cp. 11, são apresentados diversos Num mundo em que as pessoas des-
modelos de fé do AT. Concluindo essa lista cartam a fé como apenas "pensamento
de honra da fé está o retrato de Jesus como positivo", ou simplesmente a identificam
o "Autor e Consumador da fé" (12.2,3). com as crenças e práticas de uma religião
Os crentes devem olhar para essa "grande em particular (e.g., "a fé muçulmana"), é
nuvem de testemunhas", e particularmen- bom ter um retrato abrangente da fé que
te para Jesus, para encorajamento a fim de de fato agrada a Deus. Hebreus mostra o
suportar a oposição e as provações de to- elo entre fé, esperança, obediência e per-
dos os tipos (12.1-13). severança, ilustrando que a fé é mais do
HEBREUS 11 2020

que concordância intelectual com algu- cada geração de crentes pode confiar nas
mas crenças. A fé que honra a Deus leva suas promessas acerca do futuro, não im-
a sério o que Deus diz e vive em expecta- porta o que isso lhes custar. Quando o
tiva e obediência no presente, esperando autor diz de maneira que o visível veio a
que ele cumpra as suas promessas. Tal fé existir das coisas que não aparecem, ele
resulta em sofrimento e perseguição de faz alusão à definição de fé no v. 1. A fé
diversos tipos. disceme que o universo do espaço e do
1,2 Aqui descobrimos os traços essen- tempo tem uma origem invisível e que ele
ciais da fé do ponto de vista do autor. A continua dependente da palavra de Deus.
fé trata de coisas futuras (coisas que se es- Tal fé é baseada na revelação que ele nos
peram) e coisas não vistas (jatos que se não deu nas Escrituras.
veem). A formulação da NVI ("a certeza 4-6 Ao prosseguir pelas páginas do AT,
daquilo que esperamos") coloca a ênfase o autor observa que a fé que Abel tinha foi
na fé como expressão da nossa confian- expressa quando ele ofereceu a Deus mais
ça nas promessas de Deus. No entanto, excelente sacriflcio do que Caim. A dife-
também é possível traduzir por: "a fé é a rença não foi na substância do sacrificio
substância [hypostasis] das coisas que se (Gn 4.3,4), mas na atitude dos dois irmãos
esperam" (AV), ou "a fé dá substância às (como sugerido em Gn 4.4-7). A Caim foi
nossas esperanças" (NEB). Tal formulação dito que a sua oferta seria aceitável se ele
sugere que aquilo que esperamos se toma fizesse o que era certo (cf Pv 15.8). Mas
real e substancial pelo exercício da fé. Isso Deus comprovou a retidão de Abel e a
não quer dizer que o evangelho é verdadei- fé que o motivou quando este recebeu a
ro simplesmente porque nós cremos nele! aprovação de Deus. Abel ainda fala no
Antes, a realidade daquilo que esperamos é sentido de que testemunha da fé que agra-
confirmada para nós na nossa experiência da a Deus. A experiência de Enoque de ser
quando vivemos pela fé nas promessas de trasladado para não ver a morte foi o si-
Deus. Ainda, fé é a convicção de fatos que nal de que ele obteve testemunho de haver
se não veem. É o meio de "provar" ou "tes- agradado a Deus. Gênesis 5.22,24 insiste
tar" realidades invisíveis como a existên- em que ele "andou com Deus" e Hebreus
cia de Deus, sua fidelidade à sua palavra entende por isso que a vida dele foi carac-
e o seu controle sobre o nosso mundo e o terizada pela fé. Pois, sem fé é impossível
que nele acontece. Se essa definição pare- agradar a Deus (6). Essa generalização
ce abstrata, o seu significado se toma mais corresponde aos dois elementos na defi-
concreto nas ilustrações que seguem. Por nição de fé apresentada no v. 1. É neces-
tal fé os antigos obtiveram bom testemu- sário que aquele que se aproxima (como
nho (2, gr. emartyrêthêsan, cf v. 4,5,39). em4.16; 7.25; 10.22; 12.22) de Deus creia
No registro das Escrituras, Deus testificou que ele existe (ter certeza do que não se vê)
a fé que eles mostraram, e assim fez deles e creia que se torna galardoador dos que
"testemunhas" (12.1; gr. martyres) da fé o buscam (confiam que suas promessas se-
verdadeira para nós. rão cumpridas).
3 O autor começa onde Gênesis come- 7 Quando Noé foi advertido a respei-
ça, porque a fé em Deus como o Criador to de acontecimentos que ainda não se
de tudo que existe é fundamental para a viam, ouviu do juízo iminente do dilúvio
perspectiva bíblica da realidade. Pela (Gn 6.13-22). Ele reagiu a essa palavra
fé, entendemos que foi o universo (gr. de Deus com temor (temente aDeus) ou
aiõnas, como em 1.2)formado pela pala- "com reverente submissão" (o substantivo
vra de Deus. Se Deus está no controle da correspondente é usado para descrever a
natureza e da história, passada e presente, Jesus em 5.9). Ao expressar a sua fé por
2021 HEBREUS 11."
li.
meio da construção da arca, ele salvou a herança terrena. As promessas ("o que foi
sua família e condenou o mundo. Noé se prometido", NVI) só foram vistas e sauda-
tomou herdeiro da justiça que vem da fé das de longe (13). Quando reconheceram
no sentido de que seu comportamento reto que eram estrangeiros e peregrinos sobre
e justo (Gn 6.9; 7.1) foi claramente mostra- a terra (cf Gn 23.4; 47.4,9), eles deixaram
do como expressão da sua fé. claro que estavam procurando uma pátria.
S-10 Abraão é de fato o centro das Se tivessem ansiado pela Mesopotâmia, o
atenções até o v. 19, em parte porque ele é seu lugar de origem, teriam tido oportuni-
um exemplo tão excelente de fé e em parte dade de voltar e estabelecer o seu lar ali.
por causa do seu significado na execução Mas, em vez disso, estavam aspirando uma
do plano de salvação de Deus. A promessa pátria superior, isto é, celestial. Como no
feita a Abraão acerca de um lugar que de- v. 10, o autor estabelece um elo próximo
via receber por herança (Gn 12.1) é lem- entre a fé dos ancestrais de Israel e a fé dos
brada primeiro. Com base nessa promessa, cristãos. Todos somos peregrinos numa jor-
ele obedeceu [...] e partiu sem saber aon- nada de fé, rumo à herança que Deus pre-
de ia. A fé em Abraão foi imediatamente parou para nós. Ao aprender a confiar em
expressa pela obediência ao chamado de Deus na sua situação, os patriarcas olharam
Deus. A motivação para essa obediência foi para uma recompensa que estava além da
a esperança de obter a terra da promessa. sua herança terrena. Eles não tinham uma
Assim, ele peregrinou [...] como em terra promessa tão clara de uma pátria celestial
alheia, habitando em tendas com aqueles como nós, mas Deus teve prazer na sua fé
que eram herdeiros com ele da mesma pro- e, por meio de Jesus Cristo, lhes preparou
messa. Quando o autor descreve Abraão uma cidade (a Jerusalém celestial mencio-
como alguém que aguardava a cidade que nada em 12.22-24).
tem fundamentos, da qual Deus é o arqui- 17-19 A fé que Abraão tinha foi testada
teto e edificador, retrata o destino final ainda mais quando Deus lhe pediu para sa-
dele como a pátria superior ou cidade ce- crificar o seu unigênito (Gn 22.1-8). Visto
lestial mencionada em 11.13-16; 12.22-24 que Deus tinha declarado especificamente
e 13.14. Ao esperar que Deus lhes desse que a sua descendência seria considerada
provisão de uma herança terrena, os pa- em Isaque (Gn 21.12), parecia não haver
triarcas descobriram que esta vida não é esperança se Isaque morresse. No entanto,
um fim em si mesmo mas uma peregrina- Abraão considerou que Deus era pode-
ção para um futuro que somente Deus pode roso até para ressuscitá-lo. Ele esperava
construir para o seu povo. voltar do lugar do sacrifício com Isaque
11-16 A segunda promessa de Deus (Gn 22.5) porque sabia que o cumprimen-
a Abraão foi que lhe daria numerosos to dos propósitos de Deus dependia da so-
descendentes e faria dele uma grande na- brivência de Isaque. Ele confiou que Deus
ção (Gn 12.2; cf. 13.16; 15.5). Apesar de resolveria o problema. Quando Hebreus
Abraão já estar amortecido, e do avan- conclui que Abraão recebeu Isaque de
çado da idade de Sara, pela fé saiu uma volta dos mortos figuradamente (gr. en
posteridade tão numerosa. O fundamento parabolê; cf 9.9), o significado pode ser
dessa confiança foi a palavra de Deus, e que o evento prefigurou a ressurreição do
ele confiou que Deus seria fiel à sua pa- Filho Unigênito de Deus.
lavra (cf 10.23). Assim o nascimento de 20-22 A fé que Isaque teve foi demons-
Isaque foi o início do cumprimento da pro- trada de forma especial em alta idade, quan-
messa acerca dos descendentes (cf 6.15). do ele abençoou os seus dois filhos acerca
Mas Abraão, Isaque e Jacó todos morre- de coisas que ainda estavam por vir (Gn
ram sem receber a terra de Canaã como 27.27-40). Na providência de Deus, e ao
HEBREUS11 2022

contrário da preferência e intenção natural 8189.50,51; lPe 4.12-16). Moisés exempli-


de Isaque, o plano salvífico de Deus seria ficou a fé como ela é definida no v. 1, por-
cumprido pela linhagem de Jacó, o filho que o seu segredo era que ele contemplava
mais novo. A fé que Jacó teve foi expressa o galardão (cf v. 6) e que perseverava por-
de forma semelhante quando estava para que via como quem vê aquele que é invisí-
morrer e ele, apoiado sobre a extremida- vel (26,27). Moisés temeu a Deus, e não ao
de do seu bordão, adorou (Gn 47.31). Jacó rei do Egito! Por crer que um terrível juízo
abençoou os dois filhos de José, conceden- certamente cairia sobre os primogênitos do
do a bênção maior ao mais novo (Gn 48.8- Egito, Moisés obedeceu à ordem de Deus
20). E de novo, próximo do seu fim, José e celebrou a Páscoa e o derramamento do
falou pela fé acerca do cumprimento das sangue (28; cf Êx 11-12). O sangue nas
promessas de Deus no êxodo dos filhos de portas das casas dos israelitas significava
Israel e pediu que os seus ossos fossem en- que o exterminador não tocaria nos pri-
terrados na terra prometida (Gn 50.24,25). mogênitos dos israelitas. A fé que Moisés
Nesses três incidentes, os patriarcas olha- tinha foi um elemento essencial no plano
ram para além da sua própria morte para a salvífico de Deus para o seu povo.
recompensa que Deus tinha prometido ao 29-31 A fé que os israelitas tiveram,
seu povo. quando atravessaram o mar Vermelho
23-28 Nessa seção, a fé é retratada como por terra seca, foi inspirada pelas
como uma força que sustenta o povo de promessas de Deus que Moisés levou a
Deus em tempos de oposição e aflição, ca- eles (e.g. Êx 14.13,14). Quando as tropas
pacitando-os a vencer o medo e a tentação egípcias seguiram, não foram motivadas
e a cumprir os propósitos dele. A atitude por fé e foram esmagadas pelo juízo de
dos pais de Moisés é destacada primeiro. Deus. Dois exemplos finais de fé são então
Eles não tiveram medo algum do decreto apresentados do período em que os israe-
do faraó acerca da matança dos bebês e es- litas invadiram a terra prometida. Ruíram
conderam Moisés durante três meses (23; as muralhas de Jericó porque os israelitas
cf Êx 1.22-2.2). A fé em Deus é incom- agiram como resposta à estranha ordem de
patível com o medo de forças hostis. Deus de marchar em volta delas por sete
Quando Moisés cresceu, demonstrou a dias (Js 6). A fé que teve Raabe, a meretriz,
sua própria fé e recusou ser chamado fi- foi expressa na sua prontidão de demons-
lho dafilha de Faraó (24; cf Êx 2.5-12). trar hospitalidade aos espiões israelitas (Js
Como Abraão, ele rejeitou a segurança e os 2.8-11). Ela temeu o Deus de Israel, e não o
confortos terrenos para servir ao Deus vivo rei de Jericó, e não foi destruída quando o
e verdadeiro. Ele poderia ter desfrutado juízo de Deus caiu sobre os desobedientes
dos prazeres transitórios do pecado (25) e naquela cidade (Js 6.22-25). Como mulher,
de todos os tesouros do Egito (26), mas os gentia e pecadora declarada, ela se ajuntou
seus alvos eram diferentes. De fato, quan- ao grupo dos que foram salvos pela fé.
do se negou a aceitar a sua posição na corte 32-38 Nesse trecho-resumo, o autor
egípcia, ele preferiu ser maltratado junto menciona especificamente quatro juízes
com o povo de Deus. Para Moisés, havia (Gideão, Baraque, Sansão, Jefté), um
uma riqueza maior a ser experimentada no rei (Davi), e Samuel e os profetas como
opróbrio de Cristo ("desonra [...] por amor exemplos de fé. Ele então descreve o que
de Cristo", NVI; lit. "a vergonha do ungi- foi realizado por tal fé nas esferas política
do"). Ao se identificar com o povo ungido e militar (33,34), com uma alusão parti-
de Deus, Moisés experimentou esse estig- cular a Daniel (fecharam a boca de leões,
ma e a vergonha sofridos de forma mais Dn 6.22,23) e aos três que foram jogados
intensa pelo Messias (12.2,3; 13.13; cf na fornalha dos babilônios (extinguiram a
2023 HEBREUS12

violência do fogo, Dn 3.25-28). A realiza- minologia semelhante nos v. 1,2,3,7 (cf


ção suprema da fé é a vitória sobre a morte 10.32,36). Ao desenvolver a figura de uma
na ressurreição (35). Certas mulheres rece- competição do atletismo, o autor encoraja
beram, pela ressurreição, os seus mortos os seus leitores a olhar para a tão grande
nesta vida (e.g., 1Rs 17.17-24; 2Rs 4.17- nuvem de testemunhas no cp. 11, para se-
37). Outros tiveram de suportar torturas, rem, assim, encorajados a correr, com per-
não aceitando seu resgate da prisão, para severança, a carreira da fé (1). Como um
que assim obtivessem superior ressurrei- clímax da sua apresentação dos grandes
ção para a vida eterna. Alguns exemplos heróis da fé, o autor lembra a perseverança
vívidos disso ocorrem nos apócrifos, escri- de Jesus diante do sofrimento extremo, de
tos depois do período da história registrado ignomínia ("vergonha", NVI) e oposição,
no AT (e.g., 2 Macabeus 6.19,28; 7.9,11,14). e associa isso à situação dos seus leitores
Imagens de perseguição e encarceramento (2-4). Isso conduz à meditação acerca da
são alistadas em grande profusão para con- forma como Deus corrige os seus filhos
vencer os primeiros leitores de Hebreus de por meio de provações, com base em
que sua experiência tem sido semelhante à Provérbios 3.11,12 (5-11). O desafio é que
dos crentes em gerações anteriores (36-38; nós reconheçamos o significado e propó-
cf 10.32-34), para, assim, encorajá-los a sito da disciplina de Deus na nossa vida e
perseverar na fé. reajamos com confiança e disposição para
39,40 Uma conclusão adequada ao a obediência. Um apelo final à perseveran-
cp. 11 e uma transição para o desafio no ça é feito em linguagem que destaca a ne-
cp. 12 são proporcionadas por esses versí- cessidade de fortalecer aqueles que estão
culos. Todos estes [...] obtiveram bom tes- fracos ou exaustos e tentados a abandonar
temunho por suafé no sentido de que Deus a carreira (12,13).
aprovou a sua fé e fez deles testemunhas 1 O apelo a correr, com perseverança,
da verdadeira fé para outros (cf v. 2; 12.1). a carreira que nos está proposta sugere
Não obtiveram, contudo, a concretização que a vida cristã é mais uma maratona do
da promessa (13). Embora vissem o cum- que uma corrida de curta distância. Não
primento de promessas específicas nesta devemos imaginar a grande nuvem de
vida (e.g., 6.15; 11.11,33), ninguém expe- testemunhas no cp. 11 como espectadores
rimentou as bênçãos da era messiânica e da num anfiteatro, torcendo e nos animando
nova aliança. Na sua generosa providência, na corrida da fé. "O que nós vemos neles, e
Deus tinha planejado coisa superior a nos- não o que eles veem em nós, é que é o pon-
so respeito no sentido de que a perfeição to principal do autor" (1. Moffat, A Criticai
por meio de Jesus Cristo fosse desfrutada and Exegetical Commentary on the Epistle
por eles junto conosco ("para que conosco to the Hebrews [C1ark, 1924], p. 193). Eles
fossem eles aperfeiçoados", NVI). O pon- são testemunhas (gr. martyres) da fé verda-
to do autor é ressaltar o enorme privilégio deira para nós porque Deus "testemunhou"
de se viver "nestes últimos dias" (1.2). (gr. emartyrêthêsan, 11.2,4,5,39) da fé que
Acerca do aperfeiçoamento dos crentes, v. eles tinham nas páginas da Bíblia. Eles de-
comentário de 10.14. O beneficio máximo monstraram a natureza e a possibilidade
da obra de Cristo para nós é uma parte na da fé para os crentes em todas as gerações.
prometida herança eterna. Como competidores numa corrida, deve-
mos olhar para o exemplo deles para enco-
12. 1-13 O desafio à perseverança rajamento. Devemos nos desembaraçar de
O tema desse trecho é a necessidade da todo peso - de toda associação ou ativida-
perseverança ou persistência em meio às de que nos ponham em desvantagem - e
provações, como é indicado no uso de ter- do pecado que tenazmente nos assedia
HEBREUS12 2024

(o autor tem em mente aqui o pecado em 3.11,12. Essa exortação vale para crentes
si, e não algum pecado insistente em parti- de todas as épocas como filhos de Deus (cf
cular). Senão, corremos o risco de perder o 2.10-13). Isso lhes garante que a filiação e
prêmio, que é o presente generoso de Deus o sofrimento andam de mãos dadas, por-
da vida eterna para todos os que terminam que o Senhor corrige a quem ama. Os cris-
a corrida. tãos são chamados a suportar as provações
2-4 O maior encorajamento vem quan- como disciplina, reconhecendo isso como
do olhamos firmemente para [...] Jesus uma prova prática do seu relacionamento
(cf 3.1). A NVI o descreve como "autor e especial com Deus (Deus vos trata como
consumador da nossa fé", mas a palavra filhos). Disciplina (gr. paideia) às vezes
"nossa" não ocorre no original. O que se inclui repreensão e castigo, como declara
quer dizer aqui é a fé no sentido absoluto o texto de Provérbios. Mas isso também
ou geral (ele é o "autor e aperfeiçoador da inclui o ensino e o treinamento concretos
fé"). Jesus é o exemplo perfeito da fé que que pais amorosos dão aos seus filhos em
nós devemos expressar. A palavra traduzi- grande diversidade de circunstâncias com
da por autor (gr. archêgon, como em 2.10) o fim de levá-los à maturidade. Aliás, na
significa literalmente que ele é o pioneiro experiência humana ordinária, e na relação
ou líder na corrida da fé. No entanto, o con- com Deus, os que não são corrigidos são
texto também sugere que ele é o autor ou bastardos e não filhos.
iniciador da verdadeira fé visto que ele abre 9-11 Quando éramos disciplinados
o caminho para Deus e nos capacita a seguir adequadamente por pais segundo a car-
nas suas pegadas. Quando suportou a cruz, ne ("pais humanos", NVI), nós os respei-
não fazendo caso da ignomínia e se assen- távamos. Quanto mais devem aprender a
tou à destra do trono de Deus, ele atingiu submissão aqueles que são disciplinados
o alvo supremo da fé. Ele é o Consumador por seu Pai espiritual ("Pai dos espíritos",
da fé. Como um que cumpriu e realizou a fé NVI), e assim viverão! Pois a disciplina de
ao máximo do começo ao fim, ele cumpriu Deus é necessária para nos manter nos tri-
as promessas de Deus para todos os que lhos para a vida eterna. A disciplina exerci-
creem, provendo uma base perfeita para a da pelos pais está limitada à nossa infância
fé por meio da sua obra sumo sacerdotal. (por pouco tempo) e talvez nem sempre
Jesus suportou tudo porque ele olhou além tenha sido administrada sabiamente (se-
da vergonha e do sofrimento da cruz para a gundo melhor lhes parecia). Mas Deus, no
alegria que lhe estava proposta. Também seu amor e sabedoria infinitos, nos disci-
devemos ter a mesma perspectiva e ser plina de forma constante e coerente para
encorajados por essa persistência diante aproveitamento, a fim de sermos partici-
da oposição dos pecadores para não nos pantes da sua santidade. A santidade de
fatigarmos, desmaiando em [nossa] alma. Deus é sua vida e seu caráter distintos. Ele
Em vista da experiência passada deles, esse vai compartilhar isso de forma máxima e
encorajamento deve ter tido relevância es- definitiva com todos os que ele levar para
pecial para os primeiros leitores (cf 10.32- o seu reino. No ínterim, ele usa diversas
34), embora não tivessem sido desafiados provações para guardar a fé e produzir fru-
ainda a resistir até ao sangue. to pacifico e fruto de justiça naqueles que
5-8 Mas por que o povo de Deus pre- foram exercitados pela sua disciplina. Em
cisa sofrer insulto, rejeição e perseguição? outras palavras, pela sua graça podemos
Essas experiências não os levam a duvidar começar a compartilhar da vida e do cará-
do amor de Deus e assim desanimar? O ter santos de Deus aqui e agora.
autor prevê essas perguntas quando acusa 12,13 O chamado restabelecei as mãos
os leitores de terem esquecido Provérbios descaídas e os joelhos trôpegos lembra a
2025 HEBREUS12

figura de uma competição do atletismo. É de sacrificio é introduzida novamente (8-


um desafio a abandonar o medo e o deses- 16), para destacar mais uma vez a singu-
pero e a não se fatigar na corrida da fé (cf laridade do sofrimento de Cristo e de suas
Is 35.3,4). A citação de Provérbios 4.26 consequências. Em vez de ser envolvidos
fazei caminhos retos para os pés é uma "por doutrinas várias e estranhas", eles
advertência acerca de seguir o caminho devem permanecer fiéis a Jesus. Ao se po-
que Deus proveu, não se desviando para sicionar com ele, "fora do acampamento"
a esquerda nem para a direita. É especial- do judaísmo, eles precisam estar dispostos
mente importante ajudar aquele que está a suportar a "desonra que ele suportou"
espiritualmente manco a que se mantenha (NVI; vitupério, ARA) e fixar os seus olhos
no caminho certo, para que não seja der- na cidade "que há de vir". A sua religião
rubado e não se extravie, mas seja cura- não deve ser associada a nenhum santuário
do. Em outras palavras, os cristãos têm a ou culto terreno, mas incluirá confessar a
responsabilidade de cuidar uns dos outros Cristo no mundo e compartilhar suas pos-
e de encorajar uns aos outros a não cair e ses com os outros.
não se desviar do caminho. As implicações
práticas de tudo isso são reveladas nas se- 12.14-17 Uma exortação
ções seguintes. final contra o fracasso
Seguir a paz com todos significa, antes de
12.14-13.25 Apelos para um tudo, manter a harmonia na comunidade
modo de vida que honra a Deus cristã (cf 13.1-3,7,16,17). O desafio asso-
A conclusão de Hebreus fornece uma ciado é buscar a santificação. Está claro
combinação já conhecida de advertência e com base no v. 10 que Deus precisa agir
encorajamento. No entanto, a ênfase aqui na nossa vida para tomar possível que
não está simplesmente na necessidade de "compartilhemos da sua santidade" (cf
se perseverar na fé e de se obter o que Deus 13.20,21), mas o v. 14 insiste que temos
prometeu. O plano de Deus de "sermos um papel nisso. Precisamos buscar essa
participantes da sua santidade" (10) colo- santidade prática de vida (gr. hagiasmos,
ca sobre nós a obrigação de sermos santos "consagração", "santificação") que flui
já no presente (14). Assim, as implicações da genuína dedicação ao seu serviço e
morais para a fé cristã são enunciadas e da obediência à vontade dele. Sem essa
explicadas pelo autor. Negativamente, o santificação, ninguém verá o Senhor (i.e.,
exemplo de Esaú é usado para advertir não experimentará a vida eterna). As im-
acerca do perigo de desperdiçar a graça de plicações do v. 14 são desenvolvidas nos
Deus (15-17). Positivamente, a maravi- versículos seguintes.
lhosa certeza de que estamos "recebendo 15 Os cristãos devem estar atentos para
[...] um reino inabalável" se toma a base o bem-estar espiritual dos outros na igreja,
para o chamado à gratidão e à adoração cuidando para que ninguém se separe da
aceitável (18-29). Isso deve ser expresso graça de Deus (lit. "fique aquém da graça
no tipo de modo de vida obediente esbo- de Deus"). A graça de Deus sempre está
çado em 13.1-7. disponível "para socorro em ocasião opor-
Aqueles a quem Hebreus foi origina- tuna" (4.16). Os que deixam de depender
riamente enviado são encorajados a lem- dela e de responder a ela não entrarão no
brar dos seus antigos líderes e a imitar "a reino celestial (cf 3.12-14). Aliás, eles po-
fé que tiveram" (13.7). Isso encontra eco dem se tomar uma raiz de amargura que
mais tarde no chamado à obediência aos causa dificuldades a toda a congregação
líderes atuais e à submissão à autoridade e perturba a muitos. Essas figuras lem-
deles (17). Entre esses apelos, a linguagem bram Deuteronômio 29.18, onde Moisés
HEBREUS12 2026

adverte acerca da amargura que pode se es- partilhar do reino inabalável de Deus de-
palhar por toda a comunidade do povo de veria nos motivar a uma vida de gratidão e
Deus por meio de um membro rebelde. adoração aceitável a ele (28,29).
16,17 Esaú é usado como exemplo trá- 18-21 Os israelitas se aproximaram de
gico de alguém que deu as costas à graça de Deus no monte Sinai para ouvir os termos
Deus e que "por uma única refeição vendeu da aliança dele e descobrir o que signifi-
os seus direitos de herança como filho mais cava servi-lo como uma nação santa (Êx
velho" (NVI; Gn 25.29-34). Não há dúvi- 19.5,6). Hebreus ressalta os terrores físicos
da de que Esaú foi profano, mas Gênesis que fizeram parte daquele evento. Mas o
não dá pista alguma de que ele tenha sido fenômeno central e mais significativo foi a
"imoral" (gr. pomos). Esse termo pode ter voz que falou naquela ocasião (Êx 19.16-
sido usado de forma bem geral, sem refe- 24). Tão aterrorizador foi esse encontro
rência a Esaú, como parte do desafio do com Deus que aqueles que o ouviram falar
autor à santidade prática (cf 13.4). Como suplicaram que não se lhes falasse mais
alternativa, pode ter sido usado de forma (Êx 20.18,19). Até Moisés, o mediador,
metafórica, para descrever a apostasia de tremeu com temor (cf Dt 9.19).
Esaú como uma "prostituição" do seu re- 22-24 Monte Sião, que pode ser en-
lacionamento com Deus (cf Dt 31.16; Jz tendido como o alvo máximo do povo de
2.17). Depois de tal rejeição completa da Deus quando deixou o Egito, é o ponto ao
graça de Deus, quando Esaú quis herdar a qual os cristãos chegaram (tendes chegado
bênção do primogênito, foi rejeitado (Gn ao monte Sião). No entanto, o que se quer
27.30-40). Hebreus não menciona nada dizer é a Jerusalém celestial, a cidade do
acerca do engano de Jacó, mas sugere que Deus vivo (cf GI4.26; Ap 21.2). Homens
Esaú não achou lugar de arrependimento e mulheres de fé no AT esperaram por essa
por causa da sua apostasia anterior. cidade (cf 11.1O, 13-16), mas os que che-
garam a Deus por meio de Jesus Cristo
12.18-29 Resposta ao (o mesmo verbo é usado em 4.16; 7.25;
chamado de Deus 10.22; 11.6) agora fazem parte dessa cena
De forma característica, o autor prossegue celestial. Isso é uma maneira vívida de di-
da advertência para o encorajamento, lem- zer que nos foi garantida a herança eter-
brando os leitores dos privilégios que são na pela fé em Jesus e na sua obra. Nessa
seus pela graça de Deus. Porém, esses pri- cidade celestial estão incontáveis hostes
vilégios requerem uma resposta constante de anjos em alegre assembleia, unidos na
de fé e obediência. Quando Israel se reuniu celebração com a igreja dos primogênitos
no monte Sinai para ouvir a voz de Deus, arrolados nos céus. Aqui está uma visão
foi uma ocasião aterrorizadora (18-21; cf da companhia definitiva e completa do
Êx 19), levando as pessoas a suplicar que povo de Deus, reunido em tomo de Cristo
não se lhes falasse mais. Os cristãos, por nos lugares celestiais (cf Ef 2.6,7; Ap 7).
outro lado, vieram por fé ao monte Sião e Agora podemos desfrutar do fato de ser-
à Jerusalém celestial, onde Deus está em mos membros dessa igreja pela fé. Se os
meio à universal assembleia de anjos e nossos nomes estão inscritos no livro da
santos aperfeiçoados de todas as gerações cidade celestial, vamos um dia desfrutar
(22-24). A ênfase aqui está na aceitação de todos os direitos de cidadania. Deus
por causa de Jesus, o Mediador da nova está ali como Juiz de todos, sugerindo que
aliança, e de sua morte expiatória. Assim o exame minucioso ou o juízo precisam
não temos razão para recusar ao que fala acontecer antes (cf 9.27). No entanto,
ou a nos desviar daquele que dos céus nos essa igreja celestial consiste nos espíri-
adverte (25-27). A certeza de poder com- tos dos justos aperfeiçoados, indicando
111
2027 HEBREUS 13-:'

que são aqueles que foram aperfeiçoados não pode ser restringida à oração e ao lou-
para sempre pelo único sacrifício de Jesus vor no contexto congregacional. Como
Cristo (10.14). Como Mediador da nova ilustra o cp. 13, devemos adorar - ou ser-
aliança, o sangue da aspersão dele provê vir - a Deus pela fidelidade e obediência
purificação completa de toda a profana- em todos os aspectos da nossa vida (obser-
ção do pecado (9.13-15; 10.22). O sangue ve particularmente 13.15,16; cf Rm 12.1).
de Abel clamou por vingança (11.4), mas No entanto, o autor também insiste que a
o sangue de Jesus fala coisas superiores, adoração aceitável é caracterizada por re-
dando-nos a garantia do perdão e da acei- verência e santo temor, e fundamenta o
tação. Todos precisam enfrentar o juízo de seu desafio com uma descrição de Deus
Deus, mas os que confiam no poder ex- como fogo consumidor. Isso é uma alusão
piatório da morte de Jesus podem contar a Deuteronômio 4.24 (cf Dt 9.3; Is 33.14),
alegremente com a absolvição e a vida em que os israelitas foram advertidos a não
eterna na presença de Deus. se perder na idolatria, mas a permanecer
25-27 A observação de advertência fiéis ao Senhor e a servi-lo com exclusivi-
aqui parece muito abrupta depois da cer- dade, para que não o provocassem à ira. A
teza transmitida nos v. 22-24. Mas o ponto certeza da graça de Deus nunca deve nos
do autor é que o Deus que falou no Sinai cegar para a verdade de que um juízo terrí-
(quem, divinamente, os advertia sobre a vel aguarda os apóstatas.
terra) continua a nos chamar da Jerusalém
celestial (que dos céus nos adverte). Não 13.1-17 A adoração e
se deve fazer distinção artificial entre o a vida cotidiana
Deus do AT e o Deus do NT! Visto que pela Os leitores são desafiados a persistir com
sua graça Deus nos fala de perdão e aceita- o tipo de expressões práticas de amor e fé
ção por meio do sangue do seu Filho, não paciente já recomendadas anteriormente
devemos recusar ao que fala. Se os israeli- (e.g., 6.10-12; 10.32-36). Dando sequên-
tas não escaparam da condenação de Deus cia a 12.28,29, o trecho sugere que uma
quando deram as costas a ele, muito me- importante dimensão da nossa adoração
nos [escaparemos] nós (cf 2.1-4)! Quando é servir outros da maneira que Deus nos
Deus falou do Sinai, toda a montanha tre- orienta (16). No entanto, também é verda-
meu de maneira violenta (Êx 19.18). Ageu de que servimos a Deus quando lhe ofere-
2.6 promete que, quando vier a hora do juí- cemos louvor por meio de Jesus Cristo em
zo final e do fim deste mundo, Deus abala- todas as áreas da nossa vida (15). Quando
rá não só a terra, mas também o céu (26). o autor se volta novamente a mostrar como
Tudo que vai permanecer são as coisas que o cristianismo cumpre e substitui a forma
não são abaladas (27), a saber, o reino que de adoração associada com o tabernáculo
Cristo compartilha com aqueles que conti- (10-14), toma-se claro que as formas tra-
nuam a confiar nele (28). dicionais de pensar acerca da "religião"
28,29 A resposta adequada à oferta ge- precisam ser radicalmente transformadas
nerosa de Deus de um reino inabalável é que pelo evangelho.
"sejamos agradecidos" (NVI; retenhamos a 1-8 Nós servimos a Deus ao amar os
graça, ARA). Tal gratidão é a base e a mo- outros crentes com amor fraternal, ao
tivação para que assim "adoremos a Deus exercer a hospitalidade (um ministério às
de modo aceitável" (NVI; sirvamos a Deus vezes recompensado de forma surpreen-
de modo agradável, ARA). O verbo grego dente, como em Gênesis 18-19), ao lem-
aqui (latreuein) também pode ser traduzi- brar dos encarcerados ou dos que sofrem
do por "servir", como em 9.14 (e na ARA maus tratos como se compartilhando das
aqui, como já citado). A adoração cristã experiências deles, ao honrar o matrimônio
HEBREUS13 2028

e ao evitar a imoralidade sexual. Deus tam- adoração, estão perseguindo a "sombra"


bém é honrado por aqueles que se mantêm no lugar da realidade (8.5; 10.1). O autor
distantes da avareza e estão contentes com de Hebreus não faz a dedução aqui de que
o que têm. O segredo de tal contentamento os cristãos podem, mesmo que metaforica-
é confiar em Deus com respeito ao que é mente, "comer" do seu "altar", ou se be-
necessário (como indicam as citações de neficiar sacramentalmente do sacrificio de
Dt 31.6 e SI 118.6,7). Os leitores também Cristo feito uma vez por todas. É notável
são encorajados a agradar a Deus ao lem- que não haja nenhum tratamento da ceia
brar do modo de vida daqueles guias ("lí- do Senhor nesse contexto, nem mesmo no
deres") que primeiro lhes levaram o evan- nível de correção de opiniões falsas acerca
gelho e ao imitar afé que tiveram. Líderes da refeição da comunidade.
vêm e vão, mas Jesus Cristo, em quem 11-14 Mais uma reflexão acerca do ri-
confiam e a quem seguem, é o mesmo hoje tual do Dia da Expiação leva o autor a uma
como o foi ontem. Ele também será o mes- observação muito significativa: os corpos
mo para sempre (cf 1.8-12), o fundamento das vítimas sacrificiais eram queimados
definitivo da fé e da obediência cristã. fora do acampamento (Lv 16.27). Deixar a
9,10 Uma nota negativa é tocada com área em que os israelitas estavam acampa-
a advertência para que os leitores não se dos no deserto, mesmo para essa obrigação
deixem levar por doutrinas várias e es- sagrada, tomava a pessoa impura e neces-
tranhas. O autor só faz referência especí- sitada do ritual de purificação antes que
fica a alimentos ("alimentos cerimoniais", pudesse entrar no acampamento de novo
NVI) e diz em relação a isso que nunca (Lv l6.28).Assim, quando Jesussofreufora
tiveram proveito os que com isto se preo- da porta de Jerusalém, o seu sofrimento foi
cupam. Certos alimentos, e talvez algum impuro e profano de acordo com essas tra-
tipo de refeição cerimonial, estavam sendo dições! Porém, de forma paradoxal, é o seu
apresentados aos leitores como úteis para sacrificio que serve para santificar o povo
o fortalecimento da sua vida espiritual. sob a nova aliança (12; cf 10.10). A morte
Contudo, é pela graça de Deus, e não por de Jesus marca o final de toda uma forma
regras acerca da alimentação, que o cora- de pensar acerca da religião e da adoração.
ção é confirmado (cf Rm 14.17; lCo 8.8; Os cristãos que foram purificados e consa-
C12.l6,20-23). Leis alimentares estão en- grados a Deus pelo sacrificio de Cristo já
tre as "ordenanças da carne" agora suplan- não devem se refugiar em lugares sagra-
tadas e ultrapassadas pela obra de Cristo dos e em atividades rituais, mas precisam
(9.10). Com essa insistência em que possuí- sair a ele, fora do arraial, levando o seu
mos um altar, o autor retoma ao padrão do vitupério ("desonra", NVI; 13; cf 12.2-4).
argumento que predominou nos capítulos Para os primeiros leitores, isso significava
centrais do livro: o sumo sacerdócio, os romper definitivamente com o judaísmo e
sacrificios e o santuário do AT encontram identificar-se com aquele que era conside-
o seu cumprimento na pessoa e obra de rado amaldiçoado por causa da forma da
Jesus Cristo. Altar é mais um termo cúl- sua morte (cf GI 3.13). O lugar do serviço
tico usado de forma abreviada e figurada ou culto cristão é a sujeira do mundo, onde
para se referir ao sacrificio de Cristo. Os há incredulidade e perseguição! Mas em
sacerdotes judeus que ministram no taber- nenhum outro lugar deste mundo vamos
náculo, e que estão autorizados a se bene- encontrar realização das nossas esperanças
ficiar dos sacrificios (e.g., Lv 7.5,6; Nm porque buscamos a [cidade] que há de vir
18.9,10), não têm direito de comer do altar (14; cf comentários de 4.3-5; 12.22-24).
da nova aliança. Eles, junto com qualquer 15-17 O trecho chega ao seu final com
pessoa vinculada àquela forma antiga de mais duas explicações sobre o que significa
2029 HEBREUS 13

a adoração sob a nova aliança. Por meio os mortos a Jesus, nosso Senhor, o grande
de Jesus, os cristãos devem oferecer conti- Pastor das ovelhas (cf lPe 2.25; 5.4). a
nuamente a Deus sacriflcio de louvor. Em Senhor Jesus exaltado é aquele que per-
linguagem tomada de Oseias 14.2 (LXX), manece para sempre como o supremo líder
esse sacrificio é descrito como o fruto de e guia do rebanho de Deus (cf v, 7,8). A
lábios que confessam o seu nome. Em ou- ressurreição de Jesus confirma que o san-
tras palavras, é um sacrificio que consiste gue foi eficaz em estabelecer uma eterna
em louvor, publicamente reconhecendo o aliança pela qual experimentamos a paz
nome ou a natureza de Deus. Isso pode ter de Deus e temos parte no seu reino. Assim
lugar quando os cristãos se reúnem para podemos pedir com confiança que Deus
se encorajar mutuamente (cf 10.24,25), nos capacite em todo o bem para fazermos
ou quando confessam a Cristo diante dos a sua vontade e depender dele para operar
incrédulos deste mundo. A prática do em [nós] o que é agradável diante dele,
bem ou a mútua cooperação também são por Jesus Cristo. A adoração aceitável em
formas aceitáveis de adoração, pois, com todas as suas dimensões só pode ser ofere-
tais sacriflcios. Deus se compraz (cf Tg cida por meio de Jesus Cristo, pela capaci-
1.26,27). Tais sacrificios não podem ser tação de Deus.
tidos como atividades que cultivam o fa- a autor já reconheceu anteriormente
vor de Deus, visto que a adoração cristã que ele tem coisas a dizer que são "difíceis
deve ser uma expressão de gratidão pelo de explicar" (5.11) e ele agora insiste com
amor que ele nos mostrou primeiro (cf os seus leitores em que suportem o que foi
12.28). Embora o autor esteja interessado escrito (22). Considerando a amplitude dos
evidentemente em expressões práticas de seus temas, ele só se expressou resumida-
comunhão entre os crentes (cf 10.32-34; mente, e a sua palavra é essencialmente
13.1-3), há também muitas oportunidades uma palavra de exortação para o encora-
para servir nas necessidades dos que estão jamento deles. As notícias acerca da liber-
fora da comunidade cristã. Em vez de vol- tação de Timóteo sugerem que logo eles
tar a formas judaicas de pensamento ou de possam visitar juntos os seus leitores (23).
ser influenciados por estranhos ensinos de Esse versículo indica que o autor provavel-
outras fontes, os leitores são encorajados mente estava de alguma forma associado
a obedecer aos seus líderes e ser submis- a Paulo e à sua equipe missionária, embo-
sos para com eles (17). Eles devem fazer ra não haja base real para a tradição que o
isso reconhecendo a responsabilidade es- identifica com o apóstolo. Às suas sauda-
pecial dos líderes cristãos e a necessidade ções finais o autor acrescenta as saudações
de encorajá-los na sua função ordenada dos da Itália, sugerindo que ele estava na
por Deus. companhia de cristãos da Itália, talvez em
algum outro país, tentando encorajar os
13. 18-25 Saudações irmãos na fé na sua pátria. A graça seja
pessoais e bênção final com todos vós é uma forma convencional
É a primeira vez que o autor fala de si mes- de despedida nas cartas do NT (e.g. Rm
mo na primeira pessoa, apontando para o 16.20; 2Co 13.13), mas é particularmente
seu próprio exemplo como líder e pedin- apropriada para Hebreus, com sua ênfase
do que os leitores orem para que ele possa contínua na graça de Deus demonstrada
visitá-los logo (18,19). a tom do desejo por nós no Senhor Jesus Cristo.
de agradar a Deus ecoa mais uma vez na
bênção final (20,21). a foco está primeiro
no que o Deus da paz fez ao trazer dentre David Peterson
TIAGO

INTRODUÇÃO
A carta de Tiago nem sempre foi estimada líder de igreja que toma os ensinamentos
na igreja. Aliás, Martinho Lutero a chamou de Jesus e os aplica aos problemas da igre-
de "epístola de palha" (numa referência a ja. A carta de Tiago, então, se toma um mo-
lCo 3.12), porque não soava como Paulo delo para a igreja moderna de como aplicar
nem mencionava o interesse principal de os ensinamentos de Jesus.
Lutero, a salvação pela graça. No entanto, A carta afirma ter sido escrita por
a carta de Tiago é extremamente importan- "Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus
te para a igreja hoje. Cristo". Há diversos líderes cristãos a
O primeiro ponto a ser observado é quem essa descrição se aplicaria. Tiago, fi-
que foi escrita a uma igreja sob pressão. lho de Zebedeu, no entanto, foi executado
Os cristãos não estavam sendo mortos por entre 41 e 44 d.e. (At 12.2) e Tiago, filho
sua fé, mas estavam sofrendo perseguição de Alfeu (At 1.13), é tão pouco conhecido
e opressão econômica, e a igreja estava su- que se fosse ele o autor certamente ter-se-
cumbindo a essa pressão. Há duas formas ia identificado mais claramente. Na verda-
como os membros de igreja podem reagir de, só havia um Tiago na igreja primitiva
à pressão extrema. Eles podem ou se unir que era tão conhecido para poder usar uma
e se ajudar uns aos outros, ou podem fazer saudação tão simples, e esse era Tiago,
concessões ao mundo e rachar em facções filho de José, irmão do Senhor. Esse é o
que se digladiam. Tiago queria que os seus homem que foi visitado pessoalmente por
leitores optassem pela primeira possibili- Jesus depois da ressurreição (lCo 15.7),
dade, mas na realidade era a segunda que e foi provavelmente nessa época que ele
estava acontecendo, enquanto as pessoas se converteu. Ele esteve com os apósto-
lutavam para sobreviver no mundo. Esses los no Pentecostes (At 1.14), e logo foi
problemas tomam a carta muito relevante alçado à liderança da igreja, sendo o líder
para a igreja de hoje. principal da igreja em Jerusalém por volta
Em segundo lugar, a carta está repleta de 50 d.e. (At 15.13-21; o fato de que ele
do ensino de Jesus. Nenhuma outra carta falou por último indica que era conside-
do NT tem tantas referência ao ensino de rado o líder principal), tendo continuado
Jesus por página quanto esta. Não que nessa função até depois da última visita de
Tiago cite a Jesus diretamente, embora às Paulo (At 21.18). Enquanto líder da igreja
vezes o faça (cf 5.12); em geral ele sim- de Jerusalém, Atos o retrata como alguém
plesmente usa expressões e ideias que interessado na unidade da igreja, estando
vêm de Jesus. Os seus leitores certamente disposto a negociar acordos entre grupos
sabiam de memória muitos ensinamentos cristãos (i.e., favoráveis e contrarios a
do Senhor, e assim reconheceriam a fon- Paulo). A referência em Gálatas 2.12 não
te. A maioria dessas expressões e frases contradiz esse quadro, pois não indica que
vêm do ensino de Jesus que encontramos Tiago soubesse qualquer coisa sobre as ati-
no Sermão do Monte de Mateus (Mt 5-7) vidades de Paulo ou de seus mensageiros;
ou no Sermão da Planície de Lucas (Lc 6). somente mostra por que os mensageiros
Não há exemplo melhor no NT de um eram considerados importantes. Relata-se
11III
2031 TIAGO - :
11

que Tiago foi morto como mártir da fé de- propriamente ditos não são os de persegui-
pois da morte de Festo em 62 d.C., tendo ção fisica e martírio, que ocorreram mais
o sumo sacerdote Anás, o Jovem, tirado para o fim do século I, mas os problemas
vantagem da ausência de um governador da perseguição econômica e opressão dos
romano para realizar a execução. pobres, que se encaixam ao período em
Muitos estudiosos não acreditam que Jerusalém anterior à guerra de 66-70 d.C.
Tiago, filho de José, tenha escrito essa car- Quanto a Tiago e Paulo, argumentaremos
ta, ou porque parece se dirigir a uma igreja no comentário que, visto que eles usam
estabelecida demais para a metade do sécu- diversos termos de maneiras diferentes, as
lo I, ou porque a qualidade do grego da car- contradições entre eles são mais aparentes
ta é bom demais. Além disso, Tiago 2.14- do que reais. Tiago pode estar argumen-
26 parece contradizer o que Paulo diz em tando, no entanto, contra uma distorção do
Romanos 4 e Gálatas 4. Só podemos res- ensino de Paulo, o que significa que a carta
ponder brevemente a essas questões, mas deve ter sido escrita antes que Gálatas (c. 50
percebemos em primeiro lugar que, por d.e.) e Romanos (c. 56 d.C) circulassem
volta de 50 d.e., a igreja de Jerusalém já amplamente, pois do contrário Tiago pro-
tinha 20 anos de idade, sendo, portanto, an- vavelmente teria citado o próprio ensino de
tiga o suficiente para ter todos os problemas Paulo contra aqueles que estavam usando
relatados na carta de Tiago. Os problemas de forma equivocada os lemas de Paulo.

Diagrama estrutural da carta de Tiago

I. Duplo enunciado de abertura (1.2-27)


1. Primeiro A provação produz Sabedoria por meio A pobreza excede a
segmento alegria (1.2-4) da oração (1.5-8) riqueza (1.9-11)

~ ~ ~
2. Segundo A provação produz A fala pura não A obediência requer
segmento bem-aventurança contém ira generosidade
(1.12-18) (1.19-21) (1.22-25)
[Resumo e
transição]

11.
(1.26,27)

CORPO (2.1-5.6)
1
A excelência da
pobreza e da
A exigência generosidade
da fala pura (4.13-5.6)
A provação por (3.1-4.12)
meio das rique~zs
(4.13-5.6)

11I. CONCLUSÃO
~
A paciência na provação (resumo dos três temas principais)
(5.7-20) (5.7-11)
Rejeição de juramentos (5.12)
Ajudando uns aos outros pela oração e perdão (5.13-18)
Encorajamento final (5.19,20)
TIAGO 2032

A qualidade do grego na carta de Tiago morte, a igreja pediu que alguém escrevesse
apresenta um verdadeiro problema. Um a carta, a fim de preservar um pouco do en-
camponês galileu como Tiago certamente sino central dessa figura de tanta expressão
teria conhecido o grego, mas é imprová- na igreja primitiva. Esta última possibilida-
vel que ele tivesse sido capaz de escrever de é a mais provável. Isso deve ter sido feito
o alto padrão de grego dessa carta. Talvez logo depois do martírio de Tiago, pois a car-
a explicação esteja em dois fatos. Em pri- ta usa a simples autodenominação de Tiago,
meiro lugar, a carta é dirigida "às doze não os títulos mais elaborados usados para
tribos que se encontram na Dispersão". ele posteriormente na história da igreja.
Tiago estava olhando para a igreja toda A carta se divide basicamente em cin-
como "o Israel de Deus" (cf Gl 6.16), mas co partes. A parte um é uma introdução em
um Israel espalhado pelo mundo. Não foi duas seções que trata de três temas. O pri-
aos cristãos espalhados em Jerusalém que meiro é o das provações e a razão por que
a carta foi escrita, mas àqueles espalhados as pessoas falham no teste. O segundo trata
fora dali. A forma que Tiago usou foi a de da sabedoria e do controle da língua. O ter-
uma carta literária e não de uma verdadeira ceiro trata das riquezas e seu uso em atos
carta. Cartas verdadeiras eram aquelas es- de caridade. Como em lJoão 1.1-4, Tiago
critas a uma igreja ou pessoa em particular discute cada um desses temas e depois faz
e enviadas a elas. Uma carta literária era uma recapitulação deles.
publicada como um livro ou tratado e era A parte dois retoma o tema das rique-
dirigida a uma plateia muito mais ampla e zas e da caridade e apresenta dois sermões,
geral. Por isso, a carta de Tiago reflete me- um discutindo a discriminação com base
nos a igreja em Jerusalém do que as igrejas na riqueza e o outro ressaltando que a fé
que receberiam cópias da carta. que não resultar em boas obras, especial-
Em segundo lugar, há diversos lugares mente caridade, não é fé.
em que diferentes palavras gregas são usa- A parte três discute o uso da língua,
das para a mesma ideia (e.g., "perseveran- particularmente em relação aos mestres
ça, paciência" em 1.3 e 5.7; "cobiça" em que parecem ter reunido grupos à sua vol-
1.14 e 4.3 ["prazeres"]). Também há diver- ta e criticado os outros. Tiago atribui isso
sas partes da carta que parecem esboços à influência demoníaca, enquanto destaca
cuidadosamente estruturados de sermões que a sabedoria de Deus ou do Espírito
como os pregados nas sinagogas judaicas produz paz e unidade na igreja.
(e.g., 2.1-13; 2.14-26). Em outros lugares A parte quatro retoma ao tema das pro-
encontramos ditos breves usados para jun- vações. Os ricos na comunidade da igre-
tar diferentes partes. Parece, então, como se ja são testados pelas suas riquezas. Eles
sermões e ditos de Tiago (e talvez também as usarão exatamente da maneira que o
de Jesus) foram combinados e editados mundo as usa, ou irão a Deus e buscarão a
para formar a carta. Diferentemente, por orientação dele? Os ricos fora da igreja são
exemplo, de Gálatas, a carta de Tiago não condenados ao inferno, não somente por
parece uma obra ditada de uma só vez. sua perseguição aos pobres, inclusive aos
A carta, então, provavelmente é uma co- cristãos, mas também por acumularem te-
leção de ditos de Tiago combinados e edi- souros na terra e viverem em luxo enquanto
tados em uma obra. O próprio Tiago pode outros estão morrendo de fome.
ter pedido a alguém com bom manuseio do Finalmente, Tiago traz uma seção final
grego para coligir o material, talvez para ter na sua carta. O seu resumo chama os leito-
algo a compartilhar com os muitos cristãos res cristãos à paciência. Ele então retoma os
do mundo de fala grega que estavam visi- temas que eram considerados indispensá-
tando Jerusalém. Ou então, depois da sua veis ao final das cartas gregas: juramentos
2033 TIAG01

e saúde (v. Introduções a Colossenses e Leitura adicional


Filemom). Para concluir, ele conta aos MOTYER, 1. A. The Message ofJames. BST.
seus leitores por que escreveu: foi para Inter-Varsity Press, 1985.
trazer cristãos que se desviaram de volta à Moo, D. J. Tiago: introdução e comentário.
verdade. Ele não quer criticar, mas cobrir SCB. Vida Nova, 1990.
pecados, ao levar pessoas ao arrependi- DAVIDS, P. H. James. NIBC. Hendrickson,
mento. Esse chamado ao arrependimento 1989.
caracteriza a carta e unifica a igreja, pois _ _o The Epistle of James. NIGTC.
o propósito de Tiago foi escrever a uma Paternoster/Eerdmans, 1982.
igreja sob pressão e desafiá-la a se posi- ADAMSON, 1. A. The Epistle of James.
cionar com firmeza contra as pressões in- NICNT. Eerdmans, 1976.
ternas e externas. MARTIN, R. P. James. WBC. Word, 1988.

ESBOÇO
1.1 Saudação
1.2-27 Palavras iniciais
1.2-11 Parte um: provações, oração e riquezas
1.12-27 Parte dois: provações, dons e dádivas, ouvir e fazer

2.1-26 Provações por meio da generosidade


2.1-13 Parcialidade e amor
2.14-26 Generosidade e fé

3.1-4.12 Provações por meio da língua


3.1-12 O mal que há na língua
3.13-18 O antídoto para a língua
4.1-10 A fonte do mal e sua cura
4.11,12 Apelo final

4.13-5.6 Provações por meio das riquezas


4.13-17 Provações dos ricos
5.1-6 Provações por meio dos ricos

5.7-20 Conclusão
5.7-11 Resumo sobre a perseverança paciente
5.12 Os juramentos
5.13-18 Oração por saúde
5.19,20 Declaração de propósito

COMENTÁRIO sevo de Deus e do Senhor Jesus Cristo.


Este é, sem dúvida, um título honroso no
1.1 Saudação sentido de que Moisés é repetidamente
Tiago começa se identificando como o au- chamado de "servo do SENHOR" em Josué
tor e então se dirige aos seus leitores. Para e Apocalipse, como o próprio Josué é cha-
si mesmo ele usa a simples designação: mado em Juízes. Mas ao mesmo tempo
TIAG01 2034

é um título simples, um que qualquer cris- tiva que olhasse além da presente vida para
tão poderia usar. Tiago vai além do uso do a recompensa eterna. A "grande alegria"
AT e acrescenta e do Senhor Jesus Cristo a (NVI) não é uma felicidade presente, mas a
servo de Deus. Isso mostra o amadureci- alegria na expectativa do futuro de Deus.
mento na igreja primitiva para o reconhe- A razão por que eles deveriam se alegrar
cimento da igualdade entre Cristo e Deus. era que a provação da sua fé produziria per-
Os leitores são as doze tribos que se en- severança ou paciência. A perseverança é
contram na Dispersão. A expressão doze uma importante virtude cristã, mencionada
tribos provavelmente não quer dizer que os com frequência por Jesus (Lc 8.15; 21.19;
leitores eram todos judeus, mas que Tiago cf Mt 10.22) e Paulo (Rm 5.3,4; 8.25;
pensava neles como o povo de Deus, o 2Co 6.4; 12.12). Para os leitores que conhe-
verdadeiro Israel, não importando se eram ciam as Escrituras, como Tiago certamente
judeus ou gentios (assim também Gl 6.16; conhecia, a importância dessa virtude é su-
lPe 2.9). Os leitores estão espalhados as- blinhada pelo fato de que Abraão é a pri-
sim como os judeus foram espalhados no meira pessoa nas Escrituras a ser provada
exílio, o que provavelmente indica que os (Gn 22.1), e Deus recompensou a sua fide-
leitores não estavam vivendo na terra pro- lidade. Além disso, Jó também foi provado
metida. Há, no entanto, um outro uso de por Satanás, e nas histórias sobre Jó, que
"Dispersão". Em lPedro 1.1, Pedro usa o circulavam no judaísmo do primeiro sécu-
mesmo termo para indicar que, uma vez lo, ele era o exemplo máximo de perseve-
que se tomaram cristãos, os seus leitores rança. Certamente esses cristãos poderiam
gentios já não estavam em casa na sua terra esperar uma recompensa semelhante.
natal; o seu verdadeiro lar agora era o céu. A perseverança por si só já tem o seu
efeito. Ela é como segurar uma espada de
1.2-27 Palavras iniciais aço sobre o fogo até que sua lâmina esteja
Tendo se dirigido aos seus leitores, Tiago completamente temperada. Nesse caso a
introduz os temas da carta. Como em mui- espada é o crente, o fogo a provação e o
tas cartas gregas escritas para publicação, ato de "temperar" serve para que os crentes
ele duplica sua introdução, apresentando os sejam perfeitos e íntegros, em nada defi-
seus temas principais primeiro em 1.2-11 cientes (4). Perfeitos, também traduzido
e depois novamente (com um desenvolvi- por "maduros" (NVI), é a virtude que Noé
mento maior) em 1.12-27 (cf lJoão 1.1-4). demonstrou em Gênesis 6.9 (traduzido por
"íntegro", NVI e ARA). É isso que Jesus tem
1.2-11 Parte um: provações, em mente quando chama os seus seguido-
oração e riquezas res a serem "perfeitos como perfeito é o
1.2-4 Provações. Os cristãos a quem Tiago vosso Pai celeste" (Mt 5.48). Indica um ca-
estava escrevendo estavam passando por ráter semelhante ao de Deus. Esse tipo de
várias provações. Essas provações não maturidade é produzido quando o crente se
eram perseguições severas (e certamente apega firmemente à fé e à virtude cristã,
não eram enfermidades, para as quais se quando está no meio do fogo da persegui-
usam termos diferentes), mas antes perse- ção. As impurezas do seu caráter são quei-
guições de intensidade mediana, como re- madas e eliminadas. O resultado não será
jeição social e boicotes econômicos. Isso somente maturidade, mas completude, o
estava acontecendo simplesmente porque que significa que não faltará nem mesmo
eles eram cristãos. Embora as provações uma parte do caráter que seja semelhante
fossem penosas, Tiago desafia os crentes a ao de Deus. Se esse é o resultado das pro-
se alegrar, não porque a dor seja prazerosa vações do crente, por mais dificeis que se-
mas porque eles deveriam ter uma perspec- jam, de fato há motivos para se alegrar.
11I
2035 TIAGO 1 . : .

A estrutura desses versículos é a de "di- uma pessoa que seja assim. O irmão [...]
tos encadeados" (a produz b que produz c de condição humilde é encorajado a se ver
etc.). Deve ter sido um dito tradicional na a partir da perspectiva de Deus e a se glo-
igreja, pois encontramos versões dele em riar na sua dignidade. O mundo encara essa
Romanos 5.3-6 e lPedro 1.6,7. pessoa como pobre (humilde tem por base o
1.5-8 Oração. Mas o que uma pessoa conceito hebraico dos pobres humildes ou
deve fazer se ela não é "madura e comple- oprimidos). Deus, no entanto, os declarou
ta"? E se a pessoa tiver medo de sucum- ricos. A perspectiva de Deus é a mais ver-
bir à provação? A resposta de Paulo teria dadeira, e assim a pessoa pode se alegrar na
sido que ela deve viver, ou ser dirigida, sua realidade, mesmo quando suas circuns-
pelo Espírito (e.g., Gl 5.16-18,25). A res- tâncias exteriores ainda não mudaram.
posta de Tiago é que ela deve pedir sabe- Em contraste, o rico deve se gloriar na
doria a Deus, pois a sabedoria divina é o sua insignificância. Essa provavelmente é
poder que, segundo Tiago, combate o mal uma afirmação intencionalmente irônica.
na vida humana. Tal oração não será inútil, O termo rico (gr.plousios) em Tiago é usa-
pois Deus é um doador generoso. Sua ge- do somente para incrédulos. Tiago também
nerosidade também não é limitada por um tem conhecimento de alguns cristãos abas-
espírito crítico: "O quê? Você de novo?! O tados (2.2; 4.13), mas ele fala deles sem
que você fez com o que eu lhe dei da últi- chamá-los de "ricos". Embora o versículo
ma vez?". Longe de ter essa atitude, Deus possa significar que o homem rico poderia
simplesmente dá a todos que pedem, vez de fato se orgulhar por ter sido humilhado
após vez. por Deus e levado a conviver com os cris-
Mas há uma exigência se queremos tãos pobres em igualdade de condições, é
receber sabedoria: o pedido deve vir da mais provável que Tiago esteja dizendo
fé em Deus, ou melhor, do compromisso que se a pessoa rica olhar para o mesmo
com ele. A "dúvida", contra a qual Tiago futuro que o irmão de condição humilde, a
adverte, não é a de uma pessoa que está única coisa de que poderá se orgulhar é da
pensando se Deus vai ou não responder sua insignificância, ou o fato de que pas-
esse pedido específico, ou a de alguém in- sará. Neste mundo, o abastado é de fato
trospectivo que duvida e que se angustia na honrado e cortejado (como em SI 73), pois
sua caminhada de fé. Em vez disso, aqui a ele parece tão exaltado, mas quando con-
pessoa que duvida é alguém inconstante, siderado à luz do futuro de Deus, mesmo
semelhante aos homens de Salmos 12.1,2, que viva até idade.avançada, a extensão da
e que reflete o oposto de confiar em Deus sua vida e toda a glória aparente serão tão
de todo o coração (Dt 6.5; 8.3). Em outras breves quanto uma flor que desabrocha no
palavras, esse tipo de cético é a pessoa que alvorecer e já seca devido ao sol antes do
não está completamente comprometida meio-dia; não sobrará nada. (A imagem é
com Deus, mas gosta de se garantir por extraída de Is 40.6-8). Tiago retoma a que-
meio da oração. O seu verdadeiro interesse da do rico novamente em 5.1-6.
é no progresso neste mundo, mas ela tam- Esse tema da "inversão do destino"
bém quer desfrutar de algumas bênçãos de é encontrado com frequência na literatu-
Deus agora e ir para o céu quando mor- ra judaica (e.g., lSm 2.1-10; Lc 1.46-55).
rer. Tal pessoa não obterá sabedoria, diz Quando Deus age, os de condição humil-
Tiago. Aliás, tal pessoa não receberá nada de são exaltados e os exaltados são humi-
de Deus. lhados. José vai da prisão à proeminência;
1.9-11 Riquezas. Tendo falado da de- Nabucodonosor vai do trono ao campo.
voção total a Deus e da alegria nas prova- Deus declara os seus valores, e os valores
ções, Tiago se volta agora ao exemplo de humanos são negados. É assim que será no
TIAG01 2036

final dos tempos. Tiago quer que os seus lei- novamente a mesma palavra]"? A resposta
tores se alegrem nessa realidade vindoura. é que, começando no AT e continuando no
judaísmo do período intertestamentário,
1.12-27 Parte dois: provações, dons tais histórias como a de Abraão eram in-
e dádivas, ouvir e fazer terpretadas como tendo deixado de fora a
Na segunda parte da abertura os três temas verdadeira causa do teste, o diabo. (E.g.,
são discutidos novamente em ordem, mas 2Sm 24.1 diz: "[Deus] incitou a Davi", en-
Tiago não os repete simplesmente. Em vez quanto lCr 21.1 diz: "Satanás [...] incitou a
disso, ele passa a tratar de um aspecto novo Davi"). Por isso no livro intertestamentário
de cada tema. de Jubileus o relato de Abraão em Gênesis
1.12-15 Provações. Tiago volta ao 22 é recontado em forma semelhante à do
tema das provações por meio de uma pro- relato de Jó. Em virtude dessa tradição in-
messa. Bem-aventurado ou "feliz" (NVI) é terpretativa no seu mundo, Tiago, que em
o homem que suporta, com perseverança, 2.21 cita Gênesis 22 explicitamente, podia
a provação. Como essa pessoa pode ser dizer que a verdadeira causa do teste não é
considerada feliz? Não do ponto de vista Deus. A história do AT é verdadeira, mas é
humano, mas de Deus. Deus lhe prometeu uma forma simplificada da realidade.
a coroa da vida, que é a própria vida (como Porém, Tiago também não quer que
em Ap 2.10), pois tal pessoa mostrou que as pessoas culpem o diabo (embora ele o
de fato ama a Deus, ao ser aprovada na mencione em 4.7), mas que assumam dire-
provação. É como no caso de Abraão, que tamente a sua responsabilidade. É a cobiça
perseverou na provação e então recebeu ("mau desejo", NVI) dentro da pessoa que
a promessa de Deus (Gn 22.15-18), pois faz do teste um teste. Esse "desejo" é o que
Deus pôde dizer: "pois agora sei que temes os judeus chamavam de "impulso mau" nas
a Deus" (Gn 22.12). pessoas, ou o que os psicólogos chamam
Nem todos mostrarão uma fé genuí- de "ímpeto", ou o que Paulo em Romanos
na quando provados. Os que falharem ou 7 chama de "pecado"; é simplesmente o
quiserem ceder quando provados talvez "eu quero" indiscriminado. Como uma
o façam culpando a Deus: "Deus está me prostituta, ele seduz, e dá à luz o pecado,
tentando". (As palavras "tentar" e "pro- e o pecado conclui o processo com a mor-
var" são traduções da mesma palavra no te. Essa cadeia desejo - pecado - morte
gr.). Isso foi exatamente o que Israel fez prepara o palco para a seção seguinte.
no deserto; os israelitas se queixaram de 1.16-18 Dons e dádivas. Em contras-
que o que lhes acontecera era por causa de te com coisas más geradas pelo desejo,
Deus e o culparam (Êx 17.2,7). Na verda- Deus só dá dádivas boas e perfeitas. Um
de, fizeram isso dez vezes (Nm 14.22). Os exemplo de tal boa dádiva é a sabedoria
crentes a quem Tiago estava escrevendo mencionada no v. 5, a seção paralela. No
não devem fazê-lo, Tiago diz, primeiro v. 17, Deus é retratado como o Pai das
porque: "Deus não deve ser testado por pe- luzes ou o Criador do universo. Mas di-
cadores!". (Essa é uma tradução melhor do ferentemente da lua e de outros luzeiros
que: Deus não pode ser tentado pelo mal). celestiais que ele criou, o próprio Deus
Foi exatamente o que foi ensinado a Israel não muda. Ele é sempre o mesmo. Assim,
em Deuteronômio 6.16. se ele dá o bem hoje, não dará o mal ama-
A segunda razão por que os crentes não nhã. Sua bondade é vista no fato de que
devem culpar a Deus é que ele mesmo a segundo o seu querer (e não por acaso)
ninguém tenta. Tiago poderia ter escrito ele nos gerou, o que significa o novo nas-
isso, se considerarmos que Gênesis 22.1 cimento, por meio do evangelho (palavra
diz: "pôs Deus Abraão à prova [ou 'tentou', da verdade). Seu alvo foi fazer de nós as
2037 TIAG02.
rI •
••
primícias de tudo que criou. As primícias religiosa é vã. Ela não ama a Deus de fato,
eram consideradas os melhores frutos da de coração. O tipo de piedade que Deus
colheita; assim, Deus está fazendo dos busca tem duas características, que são
seres humanos redimidos o ápice da sua os dois lados de uma mesma moeda. Em
criação. Vemos aqui mais uma cadeia: primeiro lugar, essa piedade cuida dos po-
Deus - palavra da verdade - nascimen- bres (órfãos e viúvas são duas das quatro
to. O desejo e o diabo conduzem à morte. categorias principais de pobres no AT). Em
Deus, em contraste, produz vida. segundo lugar, essa piedade é "incontami-
1.19-27 Ouvir e fazer. Qual será o re- nada do mundo", o que significa que não
sultado dessa vida ou sabedoria de Deus? está buscando segurança ou progresso em
Será uma língua controlada. A raiva huma- termos do que é valorizado pelas pessoas
na, não importa se chamada de "ira justa" no mundo. Visto que não ama o mundo,
ou não, não produz o tipo de justiça de não há necessidade de se apegar ao dinhei-
Deus. Por isso, a pessoa sábia demora para ro. Por isso, tais pessoas podem ser gene-
abrir a sua boca, e demora ainda mais para rosas e dar com liberalidade.
expressar ira. Aliás, como Tiago argumen-
ta, a aceitação humilde do evangelho (a 2.1-26 Provações por
palavra em vós implantada) significa que meio da generosidade
a pessoa se livrará de toda a expressão de O versículo anterior colocou a generosi-
ira (como mostram 3.9 e 4.1,2, a questão dade na ordem do dia, e assim conduziu o
aqui é a explosão irada e não o sentimento leitor ao primeiro tema principal da carta,
interior) e de todos os outros tipos de mal, o chamado à generosidade e a forma como
mesmo que sejam completamente aceitos ela testa a realidade da fé. Tiago lida com
pelo mundo. esse tema em duas partes. Cada uma pro-
Tiago, avançando agora para o seu ter- vavelmente é o resumo de um sermão, pois
ceiro tema, ressalta que não é suficiente ambas seguem o padrão de sermões prega-
simplesmente conhecer as Escrituras ou os dos na sinagoga.
ensinos divinos. O conhecimento por si só
é inútil. É ainda pior do que inútil, pois a 2.1-13 Parcialidade e amor
pessoa que pensa que o fato de conhecer O primeiro sermão trata da generosidade
a Bíblia a toma piedosa engana a si mes- no comportamento. Tiago argumenta que
ma. Em vez disso, é obedecer ao ensino se o comportamento de uma pessoa de-
(ser praticantes da palavra) que toma a monstra parcialidade, então essa pessoa
pessoa piedosa. Qual é a fonte do ensino está vivendo mais como os perseguido-
para Tiago? A lei perfeita. lei da liberdade res da igreja do que como Jesus. Depois
("que traz a liberdade", NVI) é o conteúdo de formular o princípio, ele desenvolve o
a que devemos obedecer, e este é o AT da tema por meio de um argumento teológico
forma como foi interpretado por Jesus em e duas citações bíblicas, antes de chegar ao
conjunto com os outros ensinamentos de resumo de conclusão.
Jesus. Como ele também disse, não é ouvir 2.1 Princípio. Tiago começa o seu ser-
as suas palavras, mas obedecer-lhes que mão com a observação de que Jesus é o
produz bênção (Mt 7.24-27). nosso Senhor da glória. A reivindicação de
Isso significa que se pode reconhecer compromisso com tal pessoa (fé em) é in-
uma pessoa verdadeiramente piedosa pelo compatível com a parcialidade. O próprio
seu modo de vida. Se a pessoa tem uma Deus é totalmente imparcial (Dt 10.17;
língua descontrolada (e por isso com fre- Gl 2.6). O compromisso com aquele que
quência tem explosões de raiva e se en- encarnou perfeitamente um Deus assim,
volve em discussões), toda a sua prática e agora é o glorioso Senhor ressurreto é,
TIAGO 2 2038

portanto, incompatível com qualquer tipo Jesus faz deles o foco da sua proclamação
de favoritismo. do evangelho (Lc 4.18). Tiago deixa claro
2.2-4 Um exemplo. Tiago continua e que os pobres de quem ele está falando são
dá um exemplo do que ele quer dizer. Pela os economicamente pobres, pois eles são
comparação entre o quadro que Tiago pin- pobres somente para o mundo. Diante de
ta das diferenças em vestimenta e postura Deus são ricos em fé. Portanto, nem todas
com fontes judaicas descobrimos que a as pessoas pobres estão incluídas na bên-
cena é de um tribunal de igreja (como em ção, pois nem todos são escolhidos para
lCo 6.1). a salvação (herdeiros do reino), mas so-
O quadro é de dois crentes que têm um mente os que o amam. A ironia é que a
litígio. Um é abastado. Tiago não o cha- igreja está julgando como o faz o mundo,
ma de "rico", pois usa esse termo somente não como Deus. Ela deixou de ver que o
para incrédulos, mas ele observa que esse homem com roupas sujas na verdade é
homem tem anéis de ouro nos dedos e está rico aos olhos de Deus, e que ela com suas
vestindo trajos de luxo (lit. "resplandecen- ações insultou (menosprezastes) o pobre
tes", significando roupa alvejada e não te- e assim insultou exatamente aqueles que
cido grosseiro de um branco encardido). O Deus escolheu como seus herdeiros.
outro homem é pobre. Ele entra vestindo Ao insultar os pobres a igreja tem favo-
"roupas velhas e sujas" (NVI). É tudo que recido os abastados. Mas são os ricos fora
ele tem tanto para trabalhar quanto para da igreja que os oprimem. Isso está liga-
dormir, e estão gastas e manchadas. Ao do ao tema veterotestamentário dos ricos
rico se oferece um lugar para sentar, en- oprimindo os pobres (Jr 7.6; 22.3; Am 4.1;
quanto ao pobre se diz para ficar em pé ou 8.4), que é exatamente o que estava acon-
sentar no chão. tecendo nos dias de Tiago. Além disso, os
Antes mesmo de começar a argumen- ricos arrastavam os cristãos aos tribunais,
tação, todos percebem que esse não é um sabendo que a corte secular seria favorável
julgamento justo. A lei judaica exigia que a eles, pois ninguém gostava dos cristãos.
ambas as partes ou sentassem no mesmo Para acrescentar insulto à injustiça, eles
nível ou ficassem em pé. Também exigia estavam blasfemando o bom nome que ti-
que se um homem fosse mais rico, devia nha sido invocado sobre os crentes no seu
prover para o pobre roupa como a dele, ou batismo. Talvez essa seja uma referência
então devia se vestir com roupa velha e a como eles teriam zombado no tribunal,
suja como a do pobre. Se a igreja aceitasse dizendo que "esse seguidor daquele mal-
e reagisse às diferenças econômicas entre afamado galileu" não poderia estar certo.
esses dois homens, estaria mostrando fa- Assim eram os ricos. Contudo, os cristãos
voritismo. Além disso, os membros seriam se tomam como eles, se fazem discrimina-
chamados de juízes tomados de perversos ção dos pobres nas suas próprias reuniões.
pensamentos. A igreja que afirma que o Os cristãos se tomaram os perseguidores.
glorioso Jesus Cristo é o seu Senhor se tor- 2.8-11 Argumento escrituristico. O
naria assim um juiz injusto e parcial! argumento escriturístico é apresentado em
2.5-7 Argumento teológico. Tiago co- duas partes. Em primeiro lugar, Tiago cita
meça a sua discussão sobre tal favoritismo a lei régia. A referência é a Levítico 19.18:
para com os abastados com uma referência "Amarás o teu próximo como a ti mesmo".
às palavras de Jesus. Deus escolheu os po- Mas por que essa é a lei régia? Enquanto
bres, ele diz, para herdar o reino. Isso vem alguns pensam que é porque essa lei é o
do Sermão da Planície (Lc 6.20). Deus princípio que sintetiza todas as responsabi-
mostra um interesse especial pelos pobres lidades para com o próximo (Me 12.31), é
no AT (e.g., Dt 15; SI 35.10; Pv 19.17), e mais provável que o título se refira ao fato
2039 TIAG02

de ela ser a síntese que Jesus fez das respon- aspecto da vida será excluído do julgamen-
sabilidades, sendo, portanto, a lei do Rei. to. O padrão será a lei do reino, que é o AT,
Afinal, o termo "lei", não "mandamento" como foi interpretado por Jesus, e o pró-
(que aqui cairia melhor, se a questão fosse prio ensino de Jesus. (Nos dias de Tiago, o
a síntese de um resumo) é usado, e o rei- NT ainda não tinha sido escrito). Esse não
no é mencionado em 2.6. Então, é a lei do é um padrão pesado, mas uma lei que nos
Rei (o AT segundo a interpretação de Jesus) liberta para servir a Deus. Contudo, no seu
que é observada ou violada. Fazemos bem, ensino, Jesus deixa claro que a liberdade
portanto, em não violá-la. não é a licença para fazermos o que qui-
Se exercemos favoritismo, portanto, sermos. Todos um dia estarão diante dele
certamente não estamos amando o próximo e responderão por sua obediência ou falta
como a nós mesmos. Aliás, não estamos dela (Mt 7.15-23; Lc 6.43-45).
amando o próximo de forma nenhuma. Por Dois provérbios - O juízo é sem mi-
isso, mostrar favoritismo ou parcialidade sericórdia para com aquele que não usou
é violar a lei do reino e se colocar diante de misericórdia e A misericórdia triunfa
de Cristo, o Rei, como transgressor da lei. sobre o juízo - , talvez vindos da boca do
Isso de fato é sério. próprio Jesus, concluem a seção e fazem
"Mas", o leitor pode questionar, "a par- a ponte com a seguinte. O AT ensina cla-
cialidade certamente não deveria ser vis- ramente que Deus é um Deus de miseri-
ta como um pecado capital. Eu não tenho córdia (Dt 4.31) e que ele ordena ao seu
obedecido a tantos outros mandamentos de povo que aja da mesma maneira (Mq 6.8;
Jesus?". Tiago observa que basta uma vio- Zc 7.9). Jesus disse: "Bem-aventurados os
lação da lei para identificar a pessoa como misericordiosos, porque alcançarão mi-
transgressora. Como exemplo, ele cita um sericórdia" (Mt 5.7). Ele também disse:
segundo trecho bíblico, Êxodo 20.13,14 "Pois, com o critério com que julgardes,
(ou Dt 5.17,18), propositadamente men- sereis julgados; e, com a medida com que
cionando o adultério primeiro e o homicí- tiverdes medido, vos medirão também"
dio depois. Tome, por exemplo, um homem (Mt 7.2). Por isso, ao não serem misericor-
que é perfeitamente fiel à sua mulher, mas diosos com os pobres eles estão acumulan-
mata. Esse homem é um criminoso, mes- do juízo severo sobre si mesmos. Eles não
mo que tenha violado somente um manda- estão mostrando misericórdia na esfera
mento. O mesmo Deus deu ambos os man- do mundo; não receberão misericórdia na
damentos. A escolha dos mandamentos é esfera eterna. Que a misericórdia triunfa
deliberada. Ao demonstrar favoritismo ao sobre o juízo é também princípio ensina-
rico e negar ajustiça ao pobre a igreja pode do por Jesus (Mt 6.14,15; 18.21-35). Ao
estar privando o pobre da sua vida, e assim demonstrar misericórdia a outros agora
na prática o está matando. Essa pode ser (o que significa mostrar o caráter de Deus),
também a forma como o rico mata o justo eles descobrirão que a sua própria senten-
pobre em 5.4-6. O castigo do AT tanto para ça foi reduzida. A causa deles não está
o homicídio quanto para o adultério era a perdida, e não há necessidade de acumular
morte. A execução é igualmente severa, consequências para o seu próprio juízo.
não importa se a pessoa é morta por um
crime ou por muitos. 2. 14-26 Generosidade e fé
2.12,13 Apelo final. A pessoa deve O versículo anterior fez a ponte para esta
falar e agir, então, como alguém que será discussão, pois o termo usado para "mi-
julgado de acordo com a lei da liberdade. sericórdia" está associado ao termo usado
Falar e agir (falai; procedei) cobrem todo para falar da doação aos necessitados. Uma
o comportamento de uma pessoa. Nenhum forma de misericórdia é a doação caridosa.
TIAGO 2 2040

Por isso, se não devemos fazer acepção de palavras vazias. Podemos crer que Deus
contra os pobres, surge a pergunta: Como ama os pobres, mas se não nos importamos
devemos tratá-los? A resposta é, com mi- com eles, nossa fé é morta.
sericórdia, isto é, com doações caridosas. 2.18,19 Argumento teológico. Um
Essa ideia introduz mais um sermão, um exemplo tão forte que ele deu exige funda-
sermão sobre a relação entre as obras, mentação. E Tiago a apresenta agora. Ele
principalmente atos de caridade ou gene- introduz um interlocutor imaginário com
rosidade, e a fé. quem possa argumentar. Esse oponente
2.14 Princípio. Tiago formula o princí- trata fé e obras como se fossem dádivas
pio de forma muito simples: "Qual é o pro- separadas de Deus. Tu tens [a dádiva da]
veito, se alguém disser que tem fé, mas não fé; e eu tenho [a dádiva das] obras. Tiago
tiver obras?". Em outras palavras, se uma responde que a fé que não pode ser vista
pessoa declara que crê em todas as doutri- exteriormente por meio das obras de uma
nas corretas, mas sua vida não mostra obe- pessoa não é diferente da ausência comple-
diência a Cristo, que proveito tem esse tipo ta de fé. Não pode ser vista nem experi-
de fé? A resposta, sugerida na pergunta, é: mentada. É puramente imaginária. Em vez
"Proveito nenhum!". disso, diz Tiago, ele vai demonstrar o seu
Caso não tenhamos entendido, Tiago compromisso com Cristo, isto é, a sua fé,
acrescenta: Pode, acaso, semelhante fé sal- pelas suas obras.
vá-lo? No grego, a maneira como se for- Imagina-se então que o oponente pro-
mula a pergunta sugere a resposta esperada. testa: "Eu creio que Deus é um só!". Esse
Nesse caso, a resposta que Tiago espera é é o credo básico do judaísmo, baseado em
claramente: "Não, não pode salvá-lo". Deuteronômio 6.4,5, recitado duas vezes
2.15-17 Um exemplo. Tiago acrescen- ao dia por todo judeu piedoso. É a fé que
ta um exemplo para tomar claro o que ele notadamente Abraão descobriu. E é tam-
está dizendo. Ele pinta um quadro de um bém a base do cristianismo (Me 12.28-34;
irmão ou irmã em Cristo em real necessi- Rm 3.30; também sugerida no discurso de
dade. Não se está dizendo que essa pessoa Paulo em At 17.22-31). Certamente essa
não tenha roupas boas; o fato é que não tem crença ortodoxa é suficiente. Não, não é,
roupa suficiente para se manter aquecida e Tiago responde, pois os próprios demônios
decente. Não se está dizendo que não te- creem a mesma coisa. As próprias tropas de
nha comida para o restante da semana, mas Satanás são totalmente ortodoxas, pois cre-
que não tem nada para comer hoje. O que em completamente na verdade; aliás, eles
os seus irmãos em Cristo fazem? Fazem professam uma confissão de Cristo muito
uma oração. O Ide em paz é uma bênção. mais abrangente que os apóstolos (e.g., Me
A expressão aquecei-vos e fartai-vos toma 1.24; 5.7). E ao contrário da pessoa que
a bênção específica. É piedosa. É cheia de afirma crer sem demonstrar por atos visí-
fé - Deus proverá. É muito religiosa. É veis, eles agem de forma coerente com sua
teologicamente correta. O que lhe falta é crença - eles tremem. Eles tremem porque
a pessoa ir ao seu próprio guarda-roupa e estão em rebeldia contra Deus e sabem que
despensa e separar da sua própria roupa e vão para o inferno. Talvez, como Tiago su-
comida para compartilhar com a irmã ou gere, os que afirmam crer mas não têm obras
irmão necessitado. Por causa disso, Tiago para mostrar deveriam tremer também.
diz que tal oração é totalmente inútil. E, 2.20-25 Argumento escriturístico.
ele conclui, assim são todas as formas de Tiago agora se dispõe a apresentar prova
fé que não são acompanhadas de ação. escriturística do que ele tem argumentado.
Podemos crer que Jesus é Senhor, mas, se Ele usa uma linguagem tão intensa quanto
não lhe obedecemos, essa crença não passa a de Jesus (Mt 23.17) ou Paulo (Gl 3.1),
2041 TIAG02

que era típica dos debates daqueles dias. A ele destaca em lCoríntios 6.9,10 e Gálatas
evidência que ele apresenta é a de Abraão e 5.19-21. Isso é assim porque para Paulo a
da história em Gênesis 22.1-19. Abraão foi fé não é mera crença em doutrinas ortodo-
justificado ou "declaradojusto" em Gênesis xas, mas é um compromisso com Cristo. E
22.12, quando Deus diz: "pois agora sei um compromisso sempre leva a pessoa a
que temes a Deus". Isso foi declarado por fazer uma coisa: obedecer. E isso é exata-
conta do seu ato de preparar Isaque para o mente o que Tiago está dizendo aqui, a fé
sacrificio. Em outras palavras, a decisão de se toma fé verdadeira ou completa quando
Abraão de seguir a Deus e depositar a sua é associada à obediência em Cristo.
confiança nele foi tão firme que, quando Agora Tiago cita Gênesis 15.6 e vê esse
confrontado com o maior dos testes, ele de- texto cumprido em Gênesis 22. Paulo, em
cidiu ir até o fim e obedecer resolutamente, Romanos 4.3 e Gálatas 3.6, também cita
custasse o que custasse. Gênesis 15.6, mas Paulo está interessado
No entanto, há mais do que isso no tex- em ressaltar que Deus fez essa afirmação
to. Observe que se falam em obras no plu- antes da circuncisão de Abraão. Tiago
ral e não "obra". Tiago não está pensando quer nos dizer que as ações posteriores
em um ato de Abraão. Para os judeus, a dis- de Abraão mostraram que a declaração de
posição para o sacrificio de Isaque foi o fim Deus de que Abraão era justo foi precisa.
de uma longa cadeia de atos de obediência Abraão realmente viveu na prática a sua
que começou em Gênesis 12.1. A pergunta fé e era de fato justo. A isso Tiago acres-
deles foi: Por que Deus ordenou o sacrifi- centa uma paráfrase ou de 2Crônicas 20.7
cio de Isaque e depois não deixou Abraão ou de Isaías 41.8, de que Abraão era ami-
realizá-lo de fato? A sua resposta foi que go de Deus. Amigos precisam concordar,
visto que Abraão tinha sido obediente tan- e ao obedecer a Deus durante toda a sua
tas vezes antes, inclusive, de acordo com as vida, Abraão demonstrou ser um verdadei-
suas histórias, cuidando generosamente dos ro amigo, alguém que vivia em harmonia
pobres, Deus de forma justa compensou as com Deus.
suas obras em Gênesis 22 ao poupar-lhe o Verifica-se, então, que uma pessoa é
filho Isaque. O livramento de Isaque vem, justificada por obras e não por fé somen-
não depois de um único ato, mas depois de te. Paulo usa o termo ''justificado'' com o
uma vida de obediência. sentido da declaração de Deus, pela qual
Tiago agora comenta que a fé e os ele pronuncia absolvido um pecador. Esse
atos (ou obras) não podem ser separa- era um significado novo para esse termo.
dos. A fé que fica apenas na mente ainda Tiago usa a palavra no seu sentido origi-
não está completa. Ela se toma completa nário (o que se encontra no AT grego), o
quando resulta na decisão da vontade e é de que uma pessoa é declarada justa. Essa
colocada em prática. Nisso Paulo e Tiago declaração, ele argumenta, não é feita por
concordam. Paulo é contra as "obras" em causa de algo que não se pode ver e que
Romanos 4 e Gálatas 3-4, mas as obras está no coração de uma pessoa, mas por
contra as quais ele se posiciona são as causa do que se pode ver nos atos dela.
"obras da lei", que são aqueles atos ritu- Tiago se volta agora a um segundo
ais como a circuncisão, regras alimentares texto das Escrituras, a história de Raabe
e a guarda do sábado, que distinguiam o em Josué 2. Essa prostituta tinha ouvido
judeu do não judeu. Os outros não preci- sobre os atos de Deus e crido neles no
sam se tomar judeus para ser considerados seu coração. Mas isso não foi suficiente
justos diante de Deus. Mas quando se tra- para salvá-la. Pode bem ser que muitas
ta de obras de justiça, Paulo não crê que outras pessoas em Jericó creram nas mes-
uma pessoa vá para o céu sem elas, como mas coisas. Raabe, no entanto, agiu com
TIAGO 2 2042

base no que creu, ao proteger os espiões saber e ser exemplo para a igreja, visto que
hebreus. Em virtude de sua fé traduzida na época do NT o mestre ensinava por sua
na prática, ela foi liberta. Para os judeus, vida e exemplo mais do que pela palavra.
ela era considerada a mãe de todos que se Como será grande a responsabilidade de
convertiam do paganismo ao judaísmo, o tais pessoas no dia do julgamento!
primeiro exemplo de conversão. Todos pecam e tropeçam, e o lugar mais
2.26. Apelo final. O resumo de Tiago fácil de tropeçar é no uso da língua. Como
é breve e claro. A fé sem atos (ou obras) é fácil deixar escapar uma palavra crítica!
é como um defunto, um corpo sem es- Se uma pessoa realmente tem a sua língua
pírito ou sopro. Tal coisa é morta, inútil completamente sob controle, de forma que
e só serve para ser enterrada. Tal fé não não peque nessa área, ela de fato é tão au-
salvará a pessoa. A verdadeira fé salvífica tocontrolada como se fosse perfeita, visto
é a que resulta em obras ou atos de obe- que a língua é a última parte do corpo que
diência a Deus. se consegue controlar.
Tiago dá uma série de exemplos que
3.1-4.12 Provações ilustram esse fato. Um cavalo (uma das
por meio da língua "máquinas" mais poderosas da época de
Uma das formas em que o compromisso de Tiago) é controlado por um freio na boca.
uma pessoa com Cristo é testado é o uso da Um navio, o maior veículo de transporte
sua língua. E um dos primeiros problemas daqueles dias, é controlado por um leme,
que podem acontecer numa igreja que está que naqueles dias tinha a forma de uma
sendo perseguida é que os crentes come- língua. A língua também é poderosa, como
çam a discutir entre si. demonstra a sua falta de modéstia.
Tiago muda a direção da sua argu-
3. 1-12 O mal que há na língua mentação nesse ponto e compara a língua
O primeiro ponto que Tiago precisa subli- a uma fagulha que pode pôr fogo numa
nhar é que a língua é uma ferramenta po- floresta inteira. A origem de tal fagulha é
derosa para o mal. Ele faz isso por meio de o próprio inferno. Tiago não está falando
um argumento longo e detalhado. da língua como ferramenta da linguagem
A língua é a ferramenta principal de dada por Deus. Ele está pensando, em vez
um mestre; assim é por esse ponto que disso, na língua como algo corrompido
Tiago começa: não vos torneis, muitos de pela Queda. Muitos pecados, se não to-
vós, mestres. Muitos querem ser líderes e dos, começam com uma palavra. Às vezes
mestres da comunidade cristã. Isso, Tiago é pronunciada, outras é silenciosamente
argumenta, é um impulso perigoso que "falada" no íntimo.
pode conduzir ao conflito dentro da igre- Infelizmente, por ser poderosa, a língua
ja. Uma razão é que, mesmo que o dese- é dificil de ser domada. Tiago afirma uma
jo de se tomar mestre seja motivado pela verdade genérica sobre a habilidade que as
melhor razão possível, o mestre há de re- pessoas têm de domar animais e a compara
ceber maior juízo ("seremos julgados com à sua inabilidade de domar a língua. (Ele
maior rigor", NVI). Tiago se inclui entre os não está fazendo uma observação cientí-
mestres aqui, e nos lembra de Jesus, que fica de que todas as espécies de animais
condenou os mestres judeus (Mt 23.1-33; foram domadas). Mesmo assim, apesar de
Me 12.40; Lc 20.47) e disse que mesmo as toda essa habilidade, não há ser humano
nossas palavras mais despretensiosas serão que consiga controlar a sua própria língua.
julgadas (Mt 2.36). Além disso, Jesus ensi- Mesmo os santos mais perfeitos passam
nou que as pessoas são responsáveis pelo por momentos em que gostariam de poder
que sabem (Lc 12.47,48). O mestre afirma engolir o que acabaram de dizer.
l1li
2043 TIAG03.·
l1li.
A língua, portanto, é inquieta e desas- 3. 13-18 O antídoto para a língua
sossegada. A inquietação é uma caracte- Tiago nos deixou desesperados. Quem
rística do mal e do mundo demoníaco, ao pode controlar a sua língua? Como pode-
passo que a paz é a característica de Deus mos nos libertar desse poder terrível e nos
e do seu bom reino. A língua sempre quer aperfeiçoar? Esse é o mesmo tipo de cla-
dizer alguma coisa; com frequência é ve- mor que talvez tenhamos sentido no final
neno que produz morte. Os homicídios co- de IA. A resposta de Tiago aqui é a mesma
metidos por um tirano ocorrem quando ele que ele deu ali: não precisamos da nossa
emite ordens. Experimentamos algo pare- força, mas da sabedoria de Deus.
cido no nível pessoal quando dizemos algo Tiago começa a sua discussão mostran-
de mal e percebemos que isso nos trouxe do a diferença entre a pessoa que tem sa-
morte em vez de vida. bedoria divina e a que não a tem. A pessoa
Tiago acrescenta mais alguns exem- verdadeiramente sábia é caracterizada por
plos. Na igreja (e ele está escrevendo a condigno proceder ("bom procedimento",
crentes), usamos a nossa língua para louvar NVI), que significa um modo de vida que é
a Deus. Mas aí em seguida falamos mal de bom de acordo com o ensino de Jesus. Essa
(ou proferimos maldição, nas palavras dele pessoa também demonstrará a "humilda-
- e qualquer palavra contra alguém pode de que provém da sabedoria" (13, NVI).
ser de fato uma maldição) outras pessoas, Uma tradução melhor aqui seria "bran-
e elas foram feitas à imagem de Deus (Gn dura" ou "mansidão". Um dos problemas
1.26,27; 9.6). Na época de Tiago, o rei ou nas igrejas que Tiago conhecia era que os
imperador erigia a sua estátua nas cidades mestres estavam se digladiando e sendo
do seu domínio. Se alguém insultasse ou agressivamente defensivos. A brandura é
amaldiçoasse a estátua, era tratado como se o oposto dessa agressividade. Moisés é o
tivesse amaldiçoado o imperador em pes- exemplo principal de uma pessoa branda
soa, cara a cara, pois a estátua era a imagem (Nm 12.3). Na história em que ele é cha-
do imperador. Por isso, o insulto a uma pes- mado de "manso" (ou "humilde"), ele es-
soa, feita à imagem de Deus, é como um in- tava sendo atacado injustamente por dois
sulto ao próprio Deus. Essa dualidade, duas outros líderes. Em vez de retaliar (afinal,
palavras diferentes e contraditórias saindo ele tivera visões e revelações de Deus mui-
da mesma boca, é um tipo de hipocrisia. to além de qualquer coisa que eles tinham
Tiago dá dois exemplos para deixar tido), ele humildemente ficou em silêncio,
claro o seu ponto. O primeiro vem da ter- nem mesmo se defendeu. No final Deus
ra de Israel, onde no vale seco do Jordão interveio e o defendeu. Essa ausência da
se pode ver, à distância, um ribeiro fluin- necessidade de se defender é o exemplo de
do da encosta leste do vale. Corre-se a ele Tiago de uma pessoa cheia de sabedoria.
com a expectativa de se obter água. Às Alguns dos mestres (e outros) que esta-
vezes a água é boa e potável. Outras, está vam tendo discussões nas igrejas que Tiago
cheia de minerais (sal) e é intragável. Mas conhecia, contudo, eram muito diferentes
uma coisa é certa, os dois tipos de água desse exemplo. Eles eram caracterizados
não jorram da mesma fonte. Da mesma por "inveja amarga e ambição egoísta"
forma, não se obtém de uma árvore um (14, NVI). Provavelmente chamavam a sua
tipo diferente de fruto do que aquele que inveja de "zelo", como era zeloso Fineias
é produzido por essa espécie de árvore. A (Nm 25.10), mas enquanto o zelo é bom,
implicação desse argumento é que se es- esse zelo deles na verdade não vinha do
tamos proferindo insultos ou maldições, Espírito de Deus, pois não era caracterizado
essa é a nossa natureza. O nosso louvor é por brandura. Era inveja disfarçada. O que
um disfarce, um tipo de hipocrisia. Tiago descreve como "ambição egoísta"
TIAG04 2044

eles talvez estivessem chamando de "se para Tiago. Deus, sem dúvida, é sempre
posicionar a favor da verdade" ou "manter misericordioso e generoso; assim, os que
o nosso grupo puro". O termo que Tiago estão plenos da sua sabedoria também o
usa para isso também poderia ser traduzido serão. Finalmente, ela é imparcial, semfin-
por "partidarismo", pois eles estavam for- gimento, o que quer dizer que a pessoa tem
mando grupos ou partidos, em vez de luta- um coração unicamente fixado em seguir a
rem pela unidade da igreja toda. Chamar Deus, diferentemente do homem de ânimo
essas atitudes de "sabedoria de Deus" e dobre (que tem "mente dividida", NVI) de
se vangloriar delas é negar a realidade, a 1.8. A expressão sem fingimento ("since-
verdade de Deus. Não foi assim que Jesus ra", NVI) significa que não há falsidade ou
agiu. Essa certamente não é, afirma Tiago, faz de conta nas ações da pessoa. Assim
a boa dádiva divina da sabedoria. O espíri- como a pessoa é face a face, assim ela é
to que inspira tal comportamento não é do quando se lhe dão as costas.
céu, mas é "terreno". Pertence ao mundo Tiago resume todo esse parágrafo com
e a esta era. Além disso, "não é espiritu- uma frase que soa como um provérbio.
al" (15, NVI; é animal, ARA), um termo que Alguns estudiosos creem que ele pode ter
Judas usa para se referir a quem "não tem obtido esse dito de Jesus. Ora, é em paz
o Espírito" (Jd 19). Nem é tal espírito de que se semeia o fruto da justiça, para os
sabedoria falsa simplesmente deste mundo, que promovem a paz. Essa é a solução para
mas é de fato "demoníaco". Reivindicando o problema observado em 1.20; a ira hu-
ser inspiradas por Deus essas pessoas, com mana não produz a justiça de Deus, mas
sua inveja e ambição, na realidade estão a atitude pacificadora sim. Foi também o
inspiradas pelo demônio. Tiago resume que Jesus disse: "Bem-aventurados os pa-
destacando que a inveja e a ambição não cificadores, porque serão chamados filhos
vêm desacompanhadas, mas conduzem à de Deus" (Mt 5.9). Eles são filhos de Deus
confusão (uma característica dos demônios porque estão agindo como o seu verdadei-
que vimos a primeira vez em 3.8) e toda ro Pai, produzindo o tipo de justiça da qual
espécie de coisas ruins, o que um estudo da Deus se orgulha. Isso é muito diferente da
história da igreja pode comprovar. ira e luta típicas das formas meramente hu-
A única proteção contra essa falsa sabe- manas de produzir o que os seres humanos
doria e o mal que há na língua é a sabedoria chamam de "correto". Fazer as coisas à
de Deus. Tiago nos dá uma lista de caracte- maneira de Deus requer a sua sabedoria,
risticas da verdadeira sabedoria que é muito o seu Espírito.
semelhante à que Paulo nos dá para o fruto
do Espírito (Gl 5.22,23). Ela é pura, o que 4. 1-10 A fonte do mal e sua cura
significa que a pessoa é sincera em obede- O propósito da discussão de Tiago sobre
cer a Deus, não tendo motivos deturpados a língua e a sabedoria aparece nessa seção
no seu desejo por santidade. Ela é pacifica seguinte. Havia brigas (guerras e conten-
(Pv 3.17; Hb 12.11), o que significa que das) na comunidade cristã à qual Tiago es-
ela produz paz na igreja. Ela é indulgente tava escrevendo. Cada pessoa queria que
("amável", NVI; Fp 4.5; 1Tm 3.3), o que as coisas fossem feitas do seu jeito, para
quer dizer que não é combativa. É tratável a sua própria vantagem. Tiago deixa bem
("compreensiva", NVI), o que está associado claro que as brigas não vêm de Deus e cha-
a uma pessoa disposta a aprender, ser corri- ma os envolvidos ao arrependimento e a
gida, ou em então reagir prontamente à lide- serem perdoados.
rança divina. Ela está plena de misericórdia Tiago pinta um quadro da igreja como
e de bons frutos, o que se refere à carida- ele o via: cobiçais, matais, viveis a lutar e
de e generosidade que são tão importantes afazer guerras. O "matar" provavelmente
2045 TIAG04

se referia ao matar com palavras e não Nesse ponto, Tiago cita as Escrituras,
ao homicídio literal, mas todo o quadro mas não há ocorrência conhecida desse
é familiar a qualquer pessoa que conheça dito. Ou ele deve estar citando o sentido
a igreja atual. Todas essas guerras e con- geral das Escrituras, ou então um livro de
tendas certamente eram justificadas pelos que ele tem conhecimento mas que agora
envolvidos, talvez como a "luta pela ver- está perdido. A NVI diz: "o Espírito que ele
dade". Mas Tiago as descreve como elas fez habitar em nós tem fortes ciúmes", que
são aos olhos de Deus. Ele traça a origem parece referir-se ao espírito humano e sua
desses conflitos não ao amor dos leitores tendência ao ciúme. Embora isso seja real-
por Deus, mas aos prazeres, aos impul- mente verdadeiro, não parece harmonizar
sos maus dos quais já aprendemos em com o contexto. Uma tradução melhor se-
1.14,15. ria: "Deus anseia com ciúme pelo espírito
Toda a argumentação deles é inútil: que fez habitar em nós". Isso significa que
eles não obtêm o que querem, e Tiago Deus deu a cada pessoa o espírito que ela
diz por que: porque não pedis. "Mas nós tem. Ele anseia com ciúme pela retribuição
oramos!" talvez tenha sido a sua resposta. do amor puro (cf Êx 20.5,6). As Escrituras
"Vocês oram, mas sua oração não é eficaz, não falam sem propósito desse ciúme de
pois a sua motivação está errada". Eles não Deus, como Israel descobriu a duras penas
estão buscando a vontade de Deus ou a sua quando tentou servir tanto a Deus quanto
sabedoria, mas a vontade deles: "Deus, a Baal.
abençoe os meus planos". A motivação de- Tiago nos mostra com que se parece
les são os seus desejos ou prazeres. O alvo essa humildade. Sujeitai-vos, portanto, a
de Deus não é dar aos seres humanos o que Deus. A parte principal do arrependimento
os próprios impulsos deles exigem; o seu é parar de fazer o que se estava fazendo
alvo é que os seres humanos aprendam a e começar a obedecer a Deus. Resisti ao
amar o que ele ama. Não é que Deus não diabo. O diabo é a fonte última do tes-
queira que as pessoas tenham prazer, mas te e da tentação (Mt 4.1-11; Me 8.28-34;
que ele quer treiná-las a ter prazer no que Lc 22.31; Jo 13.2,27), e resistir ao chama-
ele sabe ser realmente bom. Como no caso do do desejo é resistir a ele. Quando se re-
de Cristo, a crucificação vem antes da res- siste a ele, ele foge; ele pode até ameaçar
surreição para o povo de Deus (G15.24). o desastre, mas é tudo mentira. Isso só tem
Ao afirmar que confiam em Deus, em- poder se lhe damos crédito. Chegai-vos
bora vivendo de acordo com os seus pró- a Deus, diz Tiago. Isso soa parecido com
prios desejos, essas pessoas são infiéis. O Malaquias 3.7 e Zacarias 1.3. O retrato é
termo é literalmente "adúlteras", não por- de uma pessoa que vem oferecer um sa-
que todos fossem mulheres, mas porque a crifício no templo e está se chegando a
igreja é a noiva de Cristo (2Co 11.2; Ap Deus na cerimônia. Purificai as mãos. É
19; 21) assim como Israel era a noiva de mais uma figura do AT (Êx 30.19-21), ilus-
Deus (ls 1.21; Jr 3; Os 1-3). Ir atrás de trando a eliminação de práticas pecami-
outro amante é ser infiel a Deus, assim a nosas. Limpai o coração. A purificação é
amizade do mundo é inimiga de Deus (cf mencionada no AT (Êx 19.10), mas esse é
Mt 6.24; 110 3.15). Não é que seja difícil o purificar do coração. A pessoa de âni-
ou penoso servir tanto a Deus quanto ao mo dobre (que tem "a mente dividida",
"desejo" ou ao "mundo"; é impossível. NVI) é a pessoa que tenta servir tanto a
Aquele que tenta se tomar amigo do mun- Deus quanto ao mundo (cf 1.8). Purificar
do na verdade é inimigo de Deus. Ele pode o coração é devotar-se a Deus somente.
ser um inimigo ortodoxo e frequentador de Essas ações da pessoa devem ser acom-
igreja, mas é ainda assim um inimigo. panhadas do pranto pelo próprio estado
TIAG04 2046

pecaminoso. O arrependimento consiste zas também têm uma responsabilidade.


em tristeza pelo pecado acrescida da con- Eles podem até acreditar que estão apenas
versão do pecado e, sempre que possível, tomando decisões de negócios, mas na ver-
restituição pelo dano causado pelo pecado. dade estão sendo provados por Deus. Os
Finalmente, Tiago inclui promessas no seu que forem reprovados no teste receberão
chamado ao arrependimento. Ele se chega- as consequências. Tiago apresenta o seu
rá a vós outros. Ele vos exaltará. Deus não tema em duas seções, cada uma introdu-
deixará que um coração humilde continue zida por Atendei, agora ("Ouçam, agora",
no pranto. Ele aceitará o arrependimento NVI). A primeira trata de cristãos, membros
e responderá com o seu amor, exaltando a da igreja, que estão sendo reprovados no
pessoa do seu pranto para o aconchego do teste. A segunda trata de não cristãos ri-
seu amor. cos, cuja reprovação tanto é mais extrema
quanto mais séria.
4. 11,12 Apelo final
Tendo chamado ao arrependimento, Tiago 4. 13-17 Provações dos ricos
conclui essa seção sobre a língua e a har- O primeiro grupo considerado consiste em
monia na igreja com mais um apelo. Os cristãos de mais posses. Como é comum,
cristãos não devem falar mal uns dos ou- Tiago evita cuidadosamente chamá-los de
tros. Para Tiago, não importa se as coi- ricos, mas é evidente que eles têm mais
sas ditas dos outros são verdadeiras ou posses, pois fazem negócios com outros
não, palavras críticas dividem a igreja e lugares. Os seus planos são planos nor-
não devem ocorrer. Paulo concorda com mais: viajar a tal cidade, vender os bens
isso (2Co 12.20), como também Pedro que levaram consigo e talvez comprar ou-
(IPe 2.12; 3.16). tros, e fazer dinheiro. Não é assim que são
Tiago diz que tal crítica é julgar a lei. feitos os negócios?
Como assim? Levítico 19.18, citado por A crítica de Tiago é que eles estão
Jesus em Marcos 12.31 e ampliado em fazendo negócios exatamente como qual-
Mateus 7.12, afirma que devemos amar quer mercador. Como cristãos ele deve-
o nosso próximo como a nós mesmos. riam estar cientes não só das incertezas
Criticar os outros dificilmente seria amor. do futuro, mas também de quem o con-
Mais importante para Tiago, no entanto, é trola. Embora a figura da brevidade da
o fato de que quando uma pessoa critica a vida seja extraída do AT (e.g., Jó 7.7,9;
outra ela está se colocando como juiz. O SI 39.5,6), a ideia da tolice de fazer pla-
juiz está acima da lei, não debaixo dela. nos sem levar em consideração os va-
Além disso, somente Deus tem o direito de lores de Deus é ensinada por Jesus em
julgar (SI 75.6,7; Jo 5.22,23,30); assim, a Lucas 12.16-21. O ponto de Tiago não
pessoa que critica os seus irmãos em Cristo é simplesmente que devam iniciar todos
está na verdade colocando Deus de lado e os seus planos com Se o Senhor quiser.
assumindo o papel de juiz ao qual somen- Isso seria honrar a Deus somente com os
te Deus tem direito. Como tal pessoa não lábios. Em vez disso, ele quer que eles
deveria esperar como recompensa o juízo busquem o plano de Deus e sigam a von-
de Deus? tade de Deus no uso do seu dinheiro. Isso
aparece no seu comentário: vos jactais
4.13-5.6 Provações das vossas arrogantes pretensões. Que
por meio das riquezas tipo de arrogância é essa? Em 1João 2.16,
Tendo concluído o tema da língua, Tiago vemos o mesmo uso do termo: "a soberba
se volta ao seu último tópico: a provação da vida" ("a ostentação dos bens", NVI).
que vem pelas riquezas. Os que têm rique- Eles estão elaborando planos que Deus
li
fJ
2047 TIAG05.
11
l1li

não fez, reivindicando uma capacidade o problema não é só que eles não terão
de controlar a vida que eles não têm, e a sua riqueza na eternidade. A "corrosão"
se vangloriando das boas obras que farão. da sua riqueza é a evidência de que eles não
Isso não é nada mais, nada menos, do que precisavam dela. Ela há de devorar, como
o amor do mundo. fogo, as vossas carnes no sentido de que,
Um provérbio de apenas uma linha re- como o homem rico na parábola de Jesus
força o ponto. Essas pessoas estão na igre- em Lucas 16.19-31, eles serão lançados no
ja, e certamente cada uma delas sabe que fogo do inferno por não terem obedecido
deve fazer o bem. Por que não consultar a a Deus e compartilhado sua riqueza. Eles
Deus e perguntar a ele o que deve ser feito estocaram riquezas para o dia da necessi-
com o dinheiro? Talvez não o façam por dade, mas estes são os últimos dias. O final
medo de que Deus lhes peça que o compar- desta era veio em Jesus. Agora o juízo final
tilhem com os outros. Como não fazem o foi anunciado. Está na hora de acumular ri-
bem, estão pecando. Não há roubo ou imo- quezas no céu, não de estocá-las na terra.
ralidade ou outro delito manchando as suas Longe de serem generosas, essas pes-
mãos. Eles simplesmente são negociantes soas fizeram pior ainda ao reter o salário
honestos, mas pecam da mesma maneira dos trabalhadores que fizeram a colheita
ao não fazerem o bem que deveriam, como dos seus campos. Pode ser que quisessem
se estivessem de fato cometendo atos pe- esperar até que o preço do cereal subisse
caminosos. Em ambos os casos o ensino de ou que achassem que os trabalhadores não
Deus está sendo ignorado. tinham feito um bom trabalho. O AT diz que
o trabalhador braçal tinha de ser pago ao
5.1-6 Provações por meio dos ricos final de cada dia (Lv 19.13; Dt 24.14,15),
Tiago agora se volta aos abastados fora da mas mesmo no AT empregadores encontra-
igreja. Essas pessoas não somente estão re- vam formas de burlar essa lei (Ir 22.13;
provando no teste de ter riquezas, mas tam- MI3.5). Isso certamente estava sendo feito
bém são a fonte de parte da pressão sobre segundo a lei local, assim nenhum juiz hu-
a igreja por tirarem vantagem dos cristãos mano ouviria as queixas dos trabalhadores.
pobres, ou porque são pobres ou porque Os trabalhadores, no entanto, apelaram ao
são cristãos, ou ambos. Para elas, Tiago céu, e o juiz celestial ouviu o seu clamor.
não tem um apelo; ele tem uma condena- O termo Senhor dos Exércitos lembra os
ção. Como os profetas do AT, ele anuncia o leitores de Isaías 5.9 e da ação que Deus
juízo dessas pessoas. tomou contra os abastados ali. Deus não é
Se o cristão deve viver em alegria an- alguém que ouve e depois não faz nada; ele
tecipada, regozijando-se, apesar das pro- ouve e age com poder impressionante.
vações, por causa da recompensa que está Voltando ao tema de Lucas 16.19-31,
por vir (1.2), os ricos devem viver em la- Tiago comenta sobre o luxo dos abasta-
mento antecipado, pois o seu juízo é tão dos. Para eles, cada dia era como um dia
certo quanto a recompensa dos cristãos. de matança (ou de festa), pois em lugares
Tiago considera a riqueza deles da pers- sem refrigeração a pessoa come a sua por-
pectiva do futuro e assim vê as grandes ção de carne fresca sempre que um animal
provisões das posses deles: corruptas é morto, visto que o restante precisará ser
e comidas de traça. Se ele estivesse es- posto para secar ou será salgado para ser
crevendo hoje, poderia ter incluído algo preservado. Por trás da figura está a impli-
sobre a inflação. Ele está simplesmente cação tenebrosa de Tiago de que o "dia da
aplicando as palavras de Jesus em Mateus matança" será o dia da matança deles, o dia
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TIAG05 2048

Novamente Tiago faz um comentário essa virtude. Em Israel, esperava-se pe-


conclusivo. Esses ricos têm condenado e las chuvas do outono até que se pudesse
matado o justo. Ele não está falando de as- plantar, e aí se esperava que as chuvas da
sassínio literal, pois o termo grego traduzi- primavera viessem e fisessem os grãos
do por "condenado" indica que a corte de amadurecer antes da colheita.
justiça está envolvida. Nem quer ele dizer A espera cristã não é a espera por algo,
que os justos foram executados. Ele prova- mas por alguém. Duas vezes Tiago men-
velmente está pensando em processos judi- ciona a vinda do Senhor e uma vez ele diz:
ciais em que os ricos tomavam o salário ou Eis que o juiz está às portas. O NT se refe-
a terra dos pobres. Deixados sem recursos re com frequência à vinda de Jesus como
adequados, os cristãos pobres morriam de "próxima"(Rm 13.12;Hb 10.25; lPe4.7).
fome, enfraquecidos por alimentação in- Enquanto a maioria dos autores provavel-
suficiente, ou morriam de doenças. Tiago mente esperava que isso acontecesse no
ressalta que os pobres não estavam fazendo seu tempo de vida, é uma tensão que está
resistência aos ricos. Uma outra (e melhor) sempre "no ar", pois ninguém sabe quando
interpretação é: "E eles não se opõem a vo- será, se no próximo segundo ou no próxi-
cês?". Essas vítimas dos ricos opressores mo século (Me 13.32).
podem estar mortas, mas como a alma dos Retoma-se novamente o tema da lín-
mártires em Apocalipse 6.10, estão agora gua, e o autor faz um resumo dele. A ques-
na presença do próprio Deus clamando por tão real é que eles não devem se queixar
justiça. Essa justiça não demorará. uns dos outros (9). Se o fizerem, ignorando
as instruções de 4.11,12, receberão o mes-
5.7-20 Conclusão mo que derem (2.13). A referência a Cristo
O corpo da carta está terminado agora e como o juiz é uma advertência ameaçado-
Tiago está pronto para a conclusão. Uma ra, especialmente se ele está às portas.
carta grega normalmente tinha algumas Os profetas, os quais falaram em nome
partes diferentes na sua conclusão. Em do Senhor, isto é, os profetas do AT, tam-
primeiro lugar, havia um resumo. Depois bém sofreram nas mãos de ricos e po-
vinha o juramento, um desejo de saúde e derosos. Mas agora, reis como Acabe e
uma declaração acerca do motivo da carta. Manassés estão esquecidos ou são insulta-
Todos esses aspectos aparecem nessa con- dos, enquanto profetas como Elias e Isaías
clusão, embora em forma cristianizada. são honrados na terra (e ainda mais no céu;
cf Mt 5.11,12). No caso dos profetas ha-
5.7-11 Resumo sobre via algo por que valia a pena perseverar.
a perseverança paciente O exemplo de Jó, que não era profeta, mas
Os cristãos estão sendo oprimidos pelos um homem justo, é associado a isso. Na
ricos. O que eles devem fazer? Eles po- história do AT, Jó não é muito paciente,
deriam agir em nome de Deus e fazer a pois se queixa muito, mas nas histórias ju-
justiça dele por conta própria, se neces- daicas que circulavam nos dias de Tiago.
sário, mas Tiago já disse antes que a ira Jó é representado como um exemplo pet
dos homens não produz a justiça de Deus feito de perseverança e paciência. Aliás,
(1.20). Em vez disso, os cristãos devem uma dessas histórias, O Testamento de Jó,
ser pacientes ou "suportar com paciência" usa a perseverança como o tema do livro
até que Cristo volte. Essa é a mesma vir- todo. Os leitores de Jó certamente reconhe-
tude que é chamada de "perseverança" em ceram a história.
1.2,3. Deixem que essa virtude amadure- O ponto é que Deus não esqueceu os
2049 TIAGOS •

compaixão e misericórdia de Deus. Deus que sofrem dessa forma, devem orar não
não está tentando tomar a vida complicada necessariamente por livramento, mas por
para os que creem nele, mas em vez disso capacidade para perseverar com paciên-
está lhes mostrando a sua misericórdia, ao cia. Os que estão tendo uma boa vida tam-
ajudá-los a desenvolver o caráter e a de- bém devem orar, mas a sua oração deve
positar os seus investimentos no céu, onde ser de louvores. Isso nos leva ao segun-
durarão para sempre. do grupo de pessoas que experimentam o
mal, os doentes.
5.12 Os juramentos Os doentes devem chamar os presbíte-
O resumo está concluído. Numa carta gre- ros da igreja. Quando uma pessoa está tão
ga, o leitor esperaria ver agora umjuramen- doente que não pode ir à reunião da igre-
to certificando que tudo que tinha sido dito ja, ela quer que as pessoas com maior fé
na carta era verdade. Em vez disso, Tiago na igreja venham e orem. Normalmente,
cita a Jesus (Mt 5.33-37) e argumenta que quando a doença não é severa, a regra é
os cristãos não devem fazer juramentos. "orem uns pelos outros". Os presbíteros
Não é que o juramento em si seja algo er- devem agir como os discípulos em Marcos
rado, mas ele divide a palavra dita em dois 6.13, que o devem ter aprendido com Jesus,
níveis. Algumas afirmações são acompa- e ungir a pessoa doente com óleo quando
nhadas de juramento e, portanto, devem orarem, de modo que a sua oração não seja
ser verdadeiras, enquanto outras são so- somente ouvida, mas sentida fisicamente.
mente palavras comuns e podem não ser O fato importante aqui é que a oração pelo
verdadeiras. Jesus disse que as pessoas enfermo é dirigida ao Senhor e a unção é
dariam conta de toda palavra (Mt 12.36). feita em nome do Senhor. É o Senhor, e
Todas as palavras devem ser verdadeiras. não o poder da oração ou do óleo, que o
Tudo deve ser franco e honesto. Visto que levantará. E é simplesmente assim que
Deus ouve todas as palavras, para o cristão Tiago promete que o Senhor responderá à
todas as afirmações devem ser como jura- oração da fé. Essa não é uma oração do
mentos prestados diante de Deus. tipo "espero que" ou "talvez", mas uma
oração que demonstra confiança e certeza
5.13-18 Oração por saúde de que Deus curará porque os presbíteros
O tópico seguinte na conclusão de uma primeiro ouviram a Deus e receberam essa
carta grega era normalmente desejar, pe- certeza no seu coração. Isso se aproxima
los deuses, que os receptores tivessem boa do dom da fé que Paulo cita em 1Coríntios
saúde. Tiago faz algo melhor. Ele lembra 12.9. Tais orações tomam tempo; não são
os cristãos da provisão que Deus fez para um ritual rápido ou simples rotina.
.l deles. Esse não é um ensinamento Tiago discute a conexão que às vezes
o para os seus leitores, mas um lembre- existe entre a doença e o pecado. Nem toda
c da prática cristã. a doença está necessariamente associada
Como todos os mestres cristãos, Tiago ao pecado (Jo 9.3), mas o pecado pode cau-
divide o mal que uma pessoa pode estar sar doenças (1Co 11.30). Se há pecado en-
sofrendo em duas categorias. A primeira volvido, então se deve lidar com essa raiz
inclui o termo "sofrer" e significa aquelas antes de se prosseguir para o fruto da raiz,
experiências desagradáveis que vêm de a enfermidade propriamente dita. Tiago
fora, sejam as tribulações experimentadas garante aos seus leitores que tais pecados
na propagação do evangelho, seja a per- serão perdoados. Deus não reterá o perdão
seguição por parte de pessoas más. Essas para prolongar a enfermidade. Aliás, Tiago
são o que Tiago discutiu debaixo do tópi- argumenta que seria bom resolver a ques-
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TIAGOS 2050

severa. Confessai, pois, os vossos pecados fé (cf Is 9.16), e não para um deslize oca-
uns aos outros. Não há necessidade de sional no pecado. Se isso acontece a um
presbítero para isso visto que cada crente é crente, alguém deveria convertê-lo, como
um sacerdote. Há grande valor em confes- se espera dos "espirituais" em Gálatas 6.1.
sar o pecado em voz alta e receber de outro Restauração, e não condenação, é o alvo. E
crente a certeza de que ele foi perdoado. é isso que Tiago espera que aconteça.
Pode ser que um leitor da carta diga: Tal restauração tem um resultado ma-
"Isso serve para presbíteros, mas eu sou ravilhoso. Não significa simplesmente que
um cristão simples e comum. Como eu um pecador é afastado do seu caminho
posso orar pela cura de alguém? Como errado e com isso haja menos pecado no
posso ouvir a confissão de outras pes- mundo, mas que a pessoa também é sal-
soas?". No entanto, como crentes somos va da morte, significando a morte eterna
"justos", e assim nossa oração muito pode (lJo 5.16,17; Jd 22,23), embora, sem dú-
e também tem eficácia. Elias, como Tiago vida, pudesse resultar também na morte
observa, também era um homem comum, física (At 5.1-11). Uma multidão de peca-
mas, como os crentes aqui, tinha um Deus dos é coberta. Provérbios 10.12, citado em
extraordinário que ouviu e respondeu à sua 1Pedro 4.8, diz que "o amor cobre todas as
oração. Elias foi uma figura importante transgressões". Com "cobrir" esses autores
não somente no AT, mas também nas len- provavelmente querem dizer "fazer propi-
das judaicas. Nessas lendas ele é com fre- ciação por", visto que a imagem frequente
quência associado à oração. É por isso que do AT é a do sangue de um sacrificio "co-
mesmo que a oração por chuva não seja brindo" o pecado. O oposto do amor é o
explicitamente mencionada em 1Reis 17.1 ódio que espalha boatos e gera dissensões.
ou 18.16-46, Tiago, bem como os judeus Para Tiago, o amor age por meio dos es-
dos seus dias, pressupõem que ela fez parte forços de trazer a pessoa - com a maior
do processo. brandura e tato possíveis - de volta ao
arrependimento. Esse arrependimento será
5. 19,20 Declaração de propósito aceito por Deus, que perdoará os pecados.
Tiago conclui afirmando exatamente por Então a pessoa perdoada pode continuar
que ele escreveu essa carta. O princípio no caminho certo, alegrando-se nas suas
que ele formula é o que ele está seguindo. provações, pois sabe que a recompensa
Alguns dos seus leitores tinham de fato se está próxima.
desviado da verdade, como vimos com base
nos problemas da igreja. Essa expressão é
usada como referência a desvios sérios da Peter H. Davids
1PEDRO

INTRODUÇÃO
Quem escreveu 1 Pedro? fato de que o nome do seu próprio irmão,
O autor diz que ele é "Pedro, o apósto- André, era grego sugere que desde a in-
lo de Jesus Cristo" (1.1) e "testemunha fância Pedro deve ter convivido com essa
dos sofrimentos de Cristo" (5.1). Ele língua. Uns trinta anos de evangelismo e
está escrevendo com a ajuda de Silas ensino numa igreja que continha um gru-
(Silvano) de um lugar que ele chama de po crescente de gentios o teriam tomado
"Babilônia", onde o seu "filho" Marcos mais fluente em grego e preparado para ci-
está com ele (5.12,13). Assim, como essa tar a LXX, a sua "Versão Autorizada". Não
evidência direta de que Pedro, o apósto- temos certeza disso, mas Silvano (5.12)
lo, foi o seu autor, a carta com frequência pode ter trabalhado como amanuense dele
alude à vida e aos ensinos de Jesus (veja (i.e., ter composto as cartas com base em
adiante). O veredicto de F. H. Chase é ideias de Pedro compartilhadas com ele).
o seguinte: "Nenhuma epístola conse- Se esse foi o caso, então o seu pano de
guiu captar tanto do espírito de Jesus" fundo como cidadão romano (At 16.37)
(Dictionary of the Bible, ed. J. Hastings, de alguma posição pode bem ter afetado o
vol, m, p. 780). seu estilo e linguagem.
Muitos dos primeiros autores se refe- Em segundo lugar, com base na lin-
riram a essa epístola e fizeram citações guagem de 4.14-16, alguns elaboraram
dela, mas nos últimos anos cinco razões um argumento para sugerir que a carta foi
principais têm sido postuladas para suge- escrita numa época em que o simples fato
rir que o apóstolo Pedro na verdade não de ser cristão era crime, e sabe-se que isso
foi o seu autor. só veio a ocorrer muito tempo depois da
Primeiramente, Pedro é descrito em morte de Pedro.
Atos 4.13 como um dos "homens iletrados O argumento de Pedro nos cp. 2-4, no
e incultos", e o estilo do grego em que a entanto, é que os cristãos precisam tomar
carta é escrita é considerado sofisticado cuidado para viver uma vida inculpável
demais para ter provindo de um pescador para que, se forem falsamente acusados,
galileu. Além disso, as citações são extraí- esses caluniadores não tenham fundamen-
das da Septuaginta (LXX), o texto grego, e to. O livro de Atos (e.g., 13.50; 14.5,19;
não da versão hebraica do AT. 16.19-24; 17.5,13; 18.12,13; 19.23-29)
O estilo, no entanto, não é tão "erudi- mostra que, desde os primeiros dias, pre-
to" quanto alguns estudiosos gostariam de conceitos pessoais e a rejeição do evan-
imaginar, e em muitos lugares está muito gelho poderiam conduzir à perseguição
mais próximo da linguagem do povo co- "pelo nome de Cristo" (4.14). O texto de
mum. Há evidências de que no tempo de 4.14-16 não precisa ter mais implicações
Pedro, o grego, como também o aramaico, judiciais do que expressões semelhantes
eram falados na Galileia, e como pescador em Mateus 10.22 e Atos 5AI. Aliás, o que
que morava em Cafamaum à beira de uma Pedro diz acerca do papel do Estado em
das grandes rotas comerciais, ele teria sido 2.13,14 sugere que ele não esperava per-
obrigado a falar grego regularmente. O seguições daquele lado. A relação entre a
1PEDRO 2052

igreja e as autoridades indicada na carta é Onde e quando a


basicamente a mesma de Atos. carta foi escrita?
Em terceiro lugar, alguns levantam ob- Em 5.13, o autor envia saudações [dJaquela
jeções porque a carta contém ideias encon- que se encontra em Babilônia, também
tradas nas cartas de Paulo, especialmente eleita. Isso parece uma referência à igreja
em Efésios. local na Babilônia, mas é improvável que
Esse argumento só é válido se aceitar- Pedro tenha ido à antiga capital do impé-
mos a teoria de que os dois apóstolos dis- rio de Nabucodonosor. Na época de Pedro,
cordavam um do outro e nunca se recon- era uma ruína esparsamente habitada (em
ciliaram definitivamente. O ensino básico cumprimento de Is 14.23). Em Apocalipse
na igreja primitiva tinha um cerne padroni- 16.19 e 17.5, "Babilônia" é usado como um
zado, e seria estranho se entre os dois não nome críptico para Roma, e Colossenses
tivesse havido semelhanças. Se aceitarmos 4.10 e Filemom 24 (muito provavelmente
que Pedro e Paulo possam ter estado juntos escritas em Roma) mostram que Marcos
em Roma (veja adiante acerca de onde a estava lá com Paulo.
carta foi escrita) justo antes de a carta ter Em 2Timóteo 4.11, Marcos está na
sido escrita, eles certamente conversaram Ásia Menor, e Paulo manda buscá-lo, mui-
sobre muitos dos assuntos contidos na car- to provavelmente para Roma. O fato de
ta (v. também GI1.l8). que nem Paulo nem Pedro fazem menção
Em quarto lugar, de acordo com Gálatas um ao outro na lista dos que enviam sau-
2.9, Pedro e Paulo concordaram em tra- dações de Roma sugere meramente que
balhar em esferas diferentes, mas mesmo eles não estavam juntos na época em que
assim o destino de 1Pedro supostamente é escreveram suas cartas. Tudo isso aponta
uma área evangelizada por Paulo. para a teoria de que Pedro estava escreven-
O ajuste mencionado em Gálatas foi do de Roma, o que é sustentado pela evi-
feito ao menos dez anos antes que a car- dência de Tertuliano (Contra Heresias, 36)
ta foi escrita, e, nesse ínterim, a distinção e Eusébio (História Eclesiástica, 2.25.8;
entre igrejas judaicas e gentílicas certa- 2.15.2 e 3.1.2-3).
mente se tomou menos clara. O texto de Em vista do que foi dito acima acer-
1.12 sugere que não foi Pedro que levou ca da perseguição dos cristãos, uma data
o evangelho aos seus leitores, mas Atos no reinado de Nero (54-68 d.Cc) parece a
16.6,7 sugere que Paulo também não tinha mais adequada. Visto que Pedro não faz re-
visitado todos eles. ferência alguma ao martírio de Paulo, que
Finalmente, alguns estudiosos dizem supostamente ocorreu durante a irrupção
que essa carta não contém o tipo de refe- da perseguição em Roma em 64, a carta
rências pessoais a Jesus que poderíamos provavelmente foi escrita antes disso (v.
esperar de um autor que o conhecia tão também 2.13). Elos com outros escritos
bem quanto Pedro. supostamente sugerem uma data depois de
Veja, no entanto, e.g., 1.8,13; 2.21-25; 60. Com base nas evidências que temos,
3.14; 4.14; 5.1,2 e outras referências no podemos concluir no máximo que a carta
comentário a seguir. Que os leitores che- foi escrita provavelmente c. 63-64.
guem à sua conclusão enquanto leem a
carta eles mesmos. A quem a carta foi escrita?
Tudo considerado, nenhuma dessas ob- Pedro responde à pergunta em 1.1. A região
jeções é conclusiva. A maioria das evidên- descrita estava localizada em províncias
cias, tanto externas quanto internas, parece romanas na Ásia Menor (a atual Turquia)
apoiar a posição tradicional de que o após- ao norte das montanhas Taurus. É difícil
tolo Pedro escreveu essa carta. ser preciso, visto que os nomes dos lugares
2053 1PEDRO

Rota sugerida que o emissário da primeira carta


de Pedro tomou de Amisus para Calcedônia
1PEDRO 2054

podem se referir tanto a reinos antigos Pisídia e em Icônio vinham da sinagoga


quanto a províncias romanas contempo- (At 13.43; 14.1), e Lucas menciona especi-
râneas de Pedro, e eles nem sempre tive- ficamente no segundo texto que a igreja era
ram as mesmas fronteiras. O mapa ilustra formada tanto de judeus quanto de gentios.
a teoria de Colin Hemer (ExpT 89 [1978], Assim, o escrito de Pedro reflete em gran-
p. 239-43, The Address of 1 Peler) acerca de parte um encontro mesclado de crentes.
da rota que mais provavelmente foi segui- Ele usa o AI para provar os seus pontos
da pelo emissário que levou essa carta às (1.24,25; 2.6,7,8,22-24; 3.10-12; 4.18;
principais igrejas nessas áreas, onde teria 5.5) e faz outras alusões que teriam sido
sido copiada e distribuída aos centros me- significativas para leitores judeus (e.g., em
nores de testemunho cristão (v. CI4.16). 1.1: "dispersos" [ARe] ou "da Dispersão"
A posição social dos receptores prova- [ARA] [gr. diaspora] é o termo técnico para
velmente refletia a posição da maioria das designar a comunidade judaica fora de
igrejas da época, como um corte transver- Israel; v. também 2.4-10 e 3.20). Outros
sal da comunidade. Havia maridos e espo- comentários que ele faz seriam mais re-
sas (3.1,7), escravos (2.18; mas nenhuma levantes para leitores gentios (e.g., 1.18:
referência a senhores como em Ef 6.5-9; "vosso fútil procedimento que vossos pais
CI3.22-4.1), jovens (5.5) e um grupo de vos legaram"; 2.10: "antes, não éreis povo,
presbíteros provendo o cuidado pastoral mas agora, sois povo de Deus"; 4.3: "basta
(5.1-4). Algumas mulheres parecem ter o tempo decorrido para terdes executado a
desfrutado de um estilo de vida confortá- vontade dos gentios").
vel (3.3). A descrição do estilo de pré-cris- Não importa se seus leitores eram ju-
tão dos leitores (4.3,4) sugere que alguns deus ou gentios, Pedro está ansioso para
deles podem ter estado envolvidos nas encorajá-los a crer que eles são o "novo
guildas profissionais pagãs locais. Pedro Israel". Na igreja cristã, eles herdam tudo
os chama de "forasteiros" neste mundo que Deus prometeu ao seu povo escolhido
(1.1; cf 1.17; 2.22) e esse termo técnico do AI (v. 1.1; 2.5,9,10).
levou John H. Elliott em A Home for lhe
Homeless (SCM, 1982) a desenvolver a A carta é uma unidade?
teoria de que eles eram "estrangeiros resi- Os estudiosos que dizem que a carta não é
dentes". Mas esse argumento ficou longe uma unidade seguem três linhas de argu-
de ser demonstrado, e a formulação pode mentação:
ter sido usada figuradamente para refletir a) Alguns dizem que 1.1 e 5.12-14 fo-
a maneira em que o seu estilo de vida cris- ram acrescentados depois que a carta foi
tão os tinha distanciado dos seus vizinhos escrita. Não há evidência nos MSS para
pagãos. Também faz eco à linguagem vete- fundamentar esse argumento, e ainda há a
rotestamentária de Davi e Salomão no sen- referência de 5.1.
tido de que eles consideravam o seu estilo b) Outros dizem que a carta originaria-
de vida nesta terra à luz da eternidade (v. mente terminava em 4.11 e que o restante
SI 39.12 e lCr29.15). foi acrescentado em data posterior. Eles
O pano de fundo religioso dos primei- argumentam que a possibilidade do sofri-
ros leitores parece ter sido tanto judaico mento é remota em 3.17, mas já está sendo
quanto gentílico. Sabemos com base em experimentada em 4.12. Em 1.6, no entan-
Atos 2.9 que havia visitantes judeus da to, temos uma sinalização para a mesma si-
Ásia Menor em Jerusalém no Pentecostes, tuação de 4.12. Parece mais provável que a
e os que entre eles se converteram teriam mente de Pedro estava se movendo entre a
levado a mensagem do evangelho de vol- experiência da igreja como um organismo
ta consigo. Convertidos em Antioquia da corporativo e a dos membros individuais.
2055 1PEDRO

É improvável que 3.17 fosse aplicado a revelados e mediados pelo seu Espírito.
cada leitor. Todas as igrejas podem bem Podemos alistar alguns desses encoraja-
sofrer perseguição num futuro próximo, as- mentos como segue:
sim que todos os membros sofrem uns com O escopo e alvo dos propósitos de Deus
os outros (lCo 12.26), mas poucos indiví- (1.3-9)
duos correm o risco de sofrer em cada onda O entusiasmo dos profetas e a avidez dos
de perseguição. A doxologia de 4.11 não é anjos para compreender esse plano ma-
necessariamente uma conclusão. Romanos ravilhoso (1.10-12)
11.33-36; 15.33 e Efésios 3.20,21 são mais O alto preço da nossa redenção (1.18-21)
alguns exemplos em que o autor estava tão A natureza duradoura das promessas de
empolgado com as verdades que ele esta- Deus (1.22-25)
va expressando que se sentiu conduzido a O privilégio de pertencer ao povo de Deus
uma efusão de louvor. (2.4-10)
c) Outros consideram a carta uma li- O exemplo de Jesus (2.22-25)
turgia escrita para o uso batismal, uma O que Jesus fez por nós (3.18-22)
coletânea de sermões, instruções para re- A confiança que podemos ter no nosso
cém-convertidos ou fragmentos de hinos Criador e na sua fidelidade (4.17-19)
antigos. Pedro pode bem ter citado uma A certeza de que Deus vai triunfar no final,
variedade de fontes para o seu propósito e que os seus vão compartilhar da vitó-
(ou elas podem tê-lo citado!), mas não há ria (5.10,11; cf 1.7).
razão alguma para descartarmos a sua pró-
pria declaração em 5.12. Tais encorajamentos e tal declaração
Quando se lê a carta, tem-se a impres- da graça de Deus apresentam um funda-
são de que é uma unidade escrita para en- mento igualmente firme para os crentes
corajar os cristãos, especialmente os novos cristãos que enfrentarem toda e qualquer
na fé, e para declarar a eles a verdade e a coisa que o século XXI depois de Cristo
realidade da graça de Deus na qual eles possa apresentar.
estão firmes e confiantes.
1 Pedro é como outros
Por que a carta foi escrita? escritos do NT?
Com base no que foi dito na última seção, O autor emerge do texto como alguém que
veremos que há muitas teorias acerca do conhecia bem o seu AT , e estava preparado
propósito da carta. Detalhes mais abran- para fundamentar o seu ensino em citações
gentes podem ser encontrados em outros daquele testamento, especialmente Isaías e
comentários de lPedro. Para o nosso Salmos (v. comentário de 1.18-20,24,25;
propósito aqui, é suficiente tomar as pa- 2.6-8,22ss.; 3.10-12; 4.17,18). Mesmo que
lavras de Pedro em 5.12 pelo seu valor ele não cite diretamente dos evangelhos,
declarado. Pedro com frequência usa palavras e ex-
Pedro vê que os cristãos estão em pressões que nos fazem lembrar incidentes
perigo de perseguição (1.6) e não estão e ensinos que eles contêm. Vamos chamar
preparados para ela (4.12). À luz disso, atenção para isso no comentário.
ele tem como propósito duas coisas: en- Há também semelhanças com os dis-
corajar e testemunhar da verdadeira graça cursos e sermões de Pedro em Atos, e.g.,
de Deus (5.12) na qual ele insta os seus Atos 2.23/lPedro 1.20; Atos 2.31/1Pedro
leitores a permanecer (5.12). Esses dois 1.11; Atos 2.34,35/1Pedro 3.22; Atos
propósitos estão entretecidos na medida 4.1111Pedro 2.7; Atos 4.12/1Pedro 3.21;
em que Pedro dá encorajamento ao decla- Atos 1O.34/lPedro 1.17;Atos 1O.39/lPedro
rar os atos da bondade de Deus em Cristo, 2.24. Esses são os trechos principais em
1PEDRO 2056

que as ideias se sobrepõem, e um estudo crita em termos de redenção (1.18,19), de


detalhado dos textos vai mostrar muito reconciliação e de ser a oferta pelo peca-
mais palavras e expressões em comum. do e o substituto (3.18), e ele foi predes-
Além disso, Pedro usa muitas pala- tinado pelo amor do Pai exatamente para
vras-chave que também encontramos em esse propósito (1.20,21). Ele também é o
Romanos e Hebreus. Pode-se dizer que os fundamento da igreja de Deus, fornecendo
autores desses três escritos "respiravam a base para a fé e a esperança, e inspiran-
a mesma atmosfera espiritual". Na época do os crentes à santidade e ao amor (2.16;
em que Pedro escreveu, certas palavras e 1.21,22).
expressões já tinham se tomado linguagem
aceita da experiência espiritual. Também Doutrina do Espírito Santo
há fortes semelhanças de tema com Efésios O Espírito Santo é visto como o agente da
e Tiago. Essas semelhanças são muito inte- santificação (1.2), o autor das Escrituras
ressantes e podem ser encontradas em um (1.11), o capacitador do ministério cris-
comentário mais extenso, mas não é sábio tão (1.12) e o encorajador dos cristãos que
construir teorias sobre elas. passam por perseguição (4.14).

Qual é a teologia de 1 Pedro? Doutrina das Escrituras


Pedro escreveu, como já vimos, com um A autoridade das Escrituras é destacada
propósito prático, e sem dúvida teria fi- pela forma em que Pedro lança mão do
cado surpreso se alguém tivesse lhe per- AT para fundamentar o seu ensino (e.g.,
guntado acerca do conteúdo teológico da 1.24,25; 2.6-8; 3.10-12; 4.18). A fonte des-
carta. Ele não escreveu para expor uma sa autoridade é apresentada como estan-
teologia (como Paulo fez em Romanos ou do na condução dos autores pelo Espírito
Colossenses), mas, como pastor, funda- Santo (1.11; cf 2Pe 1.21), e sua qualidade
mentou os seus conselhos éticos no seu co- duradoura é destacada por uma citação de
nhecimento do caráter de Deus. Assim, as Isaías 40.6-8 (1.23-25). As Escrituras são
doutrinas expostas na carta são as que for- retratadas também como uma semente pela
necem uma motivação para a vida cristã. qual o novo nascimento é gerado na vida
das pessoas enquanto elas ouvem e res-
Doutrina de Deus pondem à pregação do evangelho (cf 1.23
Em 1.1,2, Pedro expõe claramente a re- com 25), e como o meio para o crescimen-
lação prática entre as três pessoas da to cristão (se 2.2 for traduzido por "leite da
Trindade. Deus é soberano, e por isso é palavra").
confiável (4.19). Ele é santo, e assim deve
ser imitado (1.15,16). Ele é Pai, e assim os Doutrina da igreja
filhos precisam viver à altura do nome da Pedro tem elevada consideração pela natu-
família (1.17), e o fato de que ele redimiu o reza corporativa do povo de Deus, no qual
seu povo é o fundamento para a segurança se entra como crente individual mediante
(1.18-21). o novo nascimento (2.2-5; cf 1.22,23). A
igreja é a edificação de Deus, sobre o fun-
Doutrina de Cristo damento do próprio Cristo (2.4-8), e como
Cristo é sem pecados, obediente e está pre- tal é herdeira das bênçãos prometidas a
parado para sofrer até o limite. Esse é um Israel (2.9,10). Sua dupla função é oferecer
exemplo para nós (2.21-24). Ele morreu adoração a Deus e testemunhar às pessoas
e ressuscitou, assim nós devemos morrer (2.5,9). Já nos dias de Pedro, a igreja tinha
para o pecado e viver pelo seu poder da um presbitério corporativo, considerado o
ressurreição (2.24; 4.1). A sua obra é des- oficio responsável e sagrado (5.1-4), mas
2057 1PEDRO

também encorajava o desenvolvimento e dia a dia (2.16; 3.1,7). Ele equipa os segui-
uso dos dons espirituais por parte de cada dores de Jesus a viver no mundo real aqui
membro (4.10,11). e agora (4.1-4) e os capacita para aquele
mundo de eterna glória para o qual Jesus
Doutrina dos últimos dias está nos preparando já agora (5.10).
Pedro escreve como alguém que olha Assim, a resposta de Pedro à questão
adiante para o grande desvelamento dos do sofrimento é que ele faz parte da nossa
últimos dias, e usa a raiz grega apocalyp jornada de fé. Ele testa a seriedade do nos-
- ("revelação") para descrever a volta de so discipulado (l. 7), nos une aos nossos ir-
Cristo. Assim ele lembra os seus leitores de mãos de fé em Cristo (5.9) e será vindicado
que o Cristo invisível nunca está distante, e no dia do juízo (4.16-19). Embora os cren-
lhes mostra as glórias que compartilharão tes sejam "estrangeiros e dispersos" (ARC; a
quando Cristo for revelado. A salvação de- ARA traz: "forasteiros da Dispersão") neste
les estará completamente realizada, e eles mundo (1.1), eles são parte do povo pere-
entrarão na sua completa herança (l.5). A grino de Deus (2.5,9), a caminho da casa do
sua fé será finalmente honrada (l.7; 4.13), Pai (lA). Eles esperam ansiosamente pelo
e a total amplitude da graça de Deus será dia em que Jesus voltará para os seus (1.7;
descoberta (1.13). A glória de Cristo será 2.12; 5.4). Essas são verdades que podem
compartilhada (5.1) e o serviço fiel, re- motivar os cristãos de hoje a viver para a
compensado (504). A expectativa da volta glória de Deus, da mesma forma que enco-
de Cristo é um dos argumentos mais con- rajaram os primeiros leitores de Pedro.
vincentes para a vida santificada e a cuida- Pedro escreve como alguém cujo cora-
dosa mordomia agora (4.7-11,17,18). ção não perdeu nada do fogo aceso pelo
Mestre no mar de Tiberíades (cf Jo 21.1,
o que Pedro está dizendo 15-19 com lPe 1.8). Nessa carta, está toda
aos seus leitores? a nitidez das lembranças pessoais de um
Os que primeiramente receberam essa seguidor de Jesus Cristo.
carta eram cristãos em perigo de perder Ver também o artigo Lendo as cartas.
o rumo. A sua fé recém-encontrada havia
cortado os laços que os tinham ligado aos
seus parentes e vizinhos não cristãos e es- Leitura adicional, 1 e 2Pedro
tava ela mesma sendo testada porque eles CLOWNEY, E. P. The Message of IPeter.
estavam enfrentando sofrimentos. Essa si- BST. Inter-Varsity Press, 1988.
tuação provavelmente não era o que eles MARSHALL, L H. IPeter. IVPNTC. Inter-
tinham esperado quando ouviram o evan- Varsity Press, 1991.
gelho pela primeira vez, e é uma experiên- GRUDEM, W. IPeter. TNTC. Inter-Varsity
cia que todas as gerações têm enfrentado PresslUK/Eerdmans, 1988.
desde então. DAVIDS, P. H. The First Epistle of Peter.
Pedro foi ao encontro das necessidades NICNT. Eerdmans, 1990.
dos seus leitores ao renovar a confiança KELLY, 1. N. D. The Epistles of Peter and
deles no evangelho. Pai, Filho e Espirito Jude. BNTC. A. and C. Black, 1969.
Santo agem em conjunto para nos trazer a MICHAELs, 1. R. IPeter. WBC. Word, 1988.
nova fé (1.3-5; 2.2; 4.1-6) na qual o pas- CRANFIELD, C. E. R 1 and 2Peter and Jude.
sado é perdoado (2.24; 3.18), o presente é TBC. SCM, 1960.
protegido (l.5) e motivado (4.2), e o futuro GREEN, E. M. R 2Pedro e Judas: introdução
está garantido (1.4,7). Esse é um estilo de e comentário. SCR Vida Nova, 1983.
vida que precisa ser vivido em termos prá- BAUCKHAM, R. Jude and 2Peter. WBC.
ticos (1.13-16) e nos relacionamentos do Word,1983.
1PEDRO 1 2058

ESBOÇO
1.1,2 O autor saúda os seus leitores
1.3-9 O plano de salvação preparado por Deus supre todas as nossas necessidades
1 .10-12 Como a nossa salvação nos foi anunciada
1.13-5.7 O que significa a nossa salvação no dia a dia
1.13-21 Viver como Jesus
1.22-25 Amar os outros cristãos
2.1-3 Desejar crescer
2.4-10 Pertencer ao povo de Deus
2.11-3.12 Mostrar aos outros o exemplo de Jesus
3.13-4.6 Viver para Cristo em meio à oposição
4.7-11 Ministrar uns aos outros
4.12-19 Sofrer por causa de Cristo
5.1-4 Exercer liderança
5.5-7 Ser um bom seguidor

5.8-11 Tal salvação suscita oposição, mas a fé garante a vitória


5.12-14 Saudações pessoais

COMENTÁRIO a saudação judaica costumeira de shalom


(paz) é acrescentada para mostrar que em
1.1,2 O autor saúda Cristo herdamos as bênçãos prometidas
os seus leitores sob as duas alianças, a antiga e a nova.
Pedro começa a carta, segundo o costume Notas. 1 Apóstolo é o termo grego
dos seus dias, dizendo quem ele é e com que significa "enviado" (v. na Introdução
que autoridade escreve. Em seguida, men- os detalhes acerca do autor e dos recepto-
ciona as pessoas a quem está escrevendo. res). 2 Aspersão do sangue de Jesus Cristo
São cristãos agora dispersos em todas as tem a ideia de obtenção dos benefícios da
províncias romanas da Ásia Menor. A fé morte de Cristo (Hb 9.13,14), de comparti-
dos seus leitores consiste num relaciona- lhamento das bênçãos da nova aliança (cf
mento com as três pessoas da Trindade. O Êx 24.3-8 com Me 14.24), e da purificação
Pai fez deles os seus eleitos e os separou regular diária de que todos nós precisamos
(santificou) pelo Espírito para que eles durante a nossa jornada por esta vida (v.
possam viver para a obediência [...] de l Jo 1.7-9). Quando Deus fez a aliança anti-
Jesus Cristo, tendo sido purificados para ga com Moisés, a promessa de obediência
essa vida pela aspersão do sangue dele. por parte do povo de Deus foi selada pela
Tal privilégio leva o autor a ampliar a sau- aspersão do sangue do sacrifício da aliança
dação costumeira e desejar que eles expe- no altar e sobre o povo (Êx 24.1-11).
rimentem a graça e paz dadas por Deus e
que estas lhes sejam multiplicadas. Há um 1.3-9 O plano de salvação
jogo de palavras aqui. A saudação grega preparado por Deus supre
comum (chairê - Viva! Saúde!) é substi- todas as nossas necessidades
tuída pela profunda oração cristã pela bên- Depois que Pedro mencionou a nossa po-
ção da graça (charis) de Deus. Além disso, sição diante de Deus, ele segue o padrão
2059 1PEDRO 1

de algumas das cartas de Paulo e expressa para a pessoa que sofreu, no dia da revela-
profusamente a sua gratidão a Deus por es- ção de Jesus Cristo.
sas bênçãos. Elas são tão maravilhosas que 8,9 Essa fé triunfante no Cristo invi-
podemos passar alegremente por períodos sível tem dois resultados. No presente, os
de provação ao nos apegarmos ao Cristo cristãos podem sentir uma alegria inexpri-
que nunca vimos. Tal fé é a estrada para a mível até mesmo em meio às dificuldades,
salvação completa e final. e para o futuro existe a perspectiva de des-
Pedro dá 11 razões para louvarmos a frutar dessa salvação na sua plenitude na
Deus: ele é o Pai de nosso Senhor Jesus presença de Jesus. A linguagem do v. 8 é
Cristo (3); ele nos deu o novo nascimento um forte lembrete das palavras de Jesus em
(de que Jesus falou em Jo 3.1-8); o moti- João 20.29. Com alegria indizível retoma a
vo para isso é a sua grande misericórdia palavra usada por Mateus (5.12) para rela-
(3); o resultado é a esperança viva - a tar o ensino de Jesus acerca do comporta-
nova vida é uma vida de esperança (3); mento diante da perseguição.
o meio para essa esperança é a ressur- Notas. 6 O termo grego traduzido por
reição de Jesus (3); o objeto dessa espe- Nisso é o gênero incorreto para se referir à
rança é uma herança (4); a herança não salvação, e assim precisa se referir ao pró-
pode ser destruída por elementos hostis, prio Deus, ou aos fatos expostos nos três
não pode ser corrompida por contamina- versículos anteriores. Exultais poderia ser
ção que vem de fora e não pode murchar uma ordem, mas provavelmente é melhor
pelo desgaste interior (4); foi guardada no que seja interpretado como uma constata-
céu para nós (4); somos guardados (guar- ção dos fatos. Embora poderia ser também
necidos, como por tropas!) para ela pelo traduzido por "porque", que então cumpri-
próprio poder de Deus (5); o meio pelo ria Mt 5.11,12. Provações vem da mesma
qual somos guardados é a fé (cf Ef 6.16) raiz que a palavra usada na referência a
- pela qual nos apegamos às promessas quando Jesus foi tentado e está na oração
de Deus (5) e o alvo final é a salvação que do Pai Nosso (Mt 4.1; 6.13). Por várias
Deus revelará nos últimos tempos, quan- ("por todo tipo", NVI) destaca a diversidade
do Jesus for revelado (5,7). das provações, e a palavra grega é usada
3-5 Ao explicar como é rica a salvação novamente nessa carta para descrever a
de que desfrutam os crentes, Pedro nos graça de Deus que é igualmente versá-
conta que ela vem da grande misericórdia til para enfrentar essas provações (4.10).
de Deus, consiste no novo nascimento para Pedro ressalta que essas provações serão
a nova vida e esperança, produz a ressur- relativamente breves (por algum tempo), e
reição, é possibilitada por Jesus Cristo, e que Deus as permite. Isso está implícito na
levará a uma herança. A salvação é descri- palavra grega traduzida por se necessário
ta com referência ao passado (os cristãos que a NVI traduz por "devam ser [entriste-
receberam o novo nascimento pela mise- cidos]". Pedro volta ao tema do sofrimento
ricórdia de Deus), ao presente (os cristãos mais tarde na carta (2.19-23; 3.14-17; 4.1-
são guardados pelo poder de Deus) e ao 6,12-19; 5.9,10).
futuro (no último tempo virá a libertação
final do mal). 1.10-12 Como a nossa
6,7 Essas bênçãos de Deus podem levar salvação nos foi anunciada
à alegria e exultação em meio às dificulda- Isso é obra do Espírito Santo (12), o
des. O propósito das provações terrenas é Espírito de Cristo (10). Ele conduziu os
peneirar e separar o que é genuíno na nossa profetas a prenunciar a graça a vós ou-
fé. Isso, por sua vez, resultará em louvor, tros destinada (10), e até mesmo a prever
glória e honra, tanto para Jesus quanto os sofrimentos referentes a Cristo (11; v.
1PEDRO 1 2060

e.g., SI 22.7,8,17,18; Is 53; Lm 1.12). Mas para a graça que será dada na revelação de
por mais que se esforçassem, os profetas Jesus Cristo. (Essa expressão não retrata
não conseguiram descobrir quando e como tanto o retomo de alguém que esteve au-
isso aconteceria. O Espírito também havia sente, mas o desvelamento de alguém que
conduzido os que compreendiam as boas esteve conosco o tempo todo).
novas acerca da morte e da ressurreição de Viver à luz da volta de Cristo requer
Jesus a explicar aos leitores de Pedro como obediência de vida (cf Lc 12.35-48).
essas coisas tinham se cumprido por eles. Devemos expressar essa obediência ao
Os profetas é uma referência mais que modelarmos o nosso comportamento se-
natural aos autores do AT e não a profetas gundo a santidade do Deus que nos cha-
cristãos da época do NT. O tema duplo deles mou para si (cf Mt 5.48). Anteriormente,
era a graça que foi destinada ao povo de a ignorância espiritual tinha permitido que
Deus e os sofrimentos e glórias que os se- os leitores de Pedro dessem vazão aos seus
guiriam, que eram destinadas a Cristo. Há desejos descontrolados, mas o padrão divi-
um paralelismo marcante no texto original. no de comportamento para o seu povo está
O v. 11 é uma declaração importante acerca fundamentado no seu caráter revelado.
da inspiração dos autores do AT (v. também A santidade - a semelhança com Cristo
Mt 5.17; Lc 24.25-27,44-47; Jo 5.39,45- - é recomendada com insistência ao povo
47). Esses versículos também destacam o de Deus por duas razões. É o nosso exem-
papel da segunda e da terceira pessoa da plo (como seus filhos, devemos refletir a
Trindade no plano divino de salvação: o semelhança de família) e é o nosso alvo
Filho o executa e o Espírito o anuncia. A (quando Jesus aparecer, seremos finalmen-
ansiedade dos anjos para perscrutar esse te e completamente como ele; cf l Jo 3.2).
plano é ressaltada pela ocorrência do mes- Três razões para esse comportamento são
mo verbo usado em João 20.5 na referência dadas nos v. 17-19: o nosso Pai Deus julga-
a João examinando o túmulo vazio. rá os seus filhos segundo a medida em que
viveram em comparação com os padrões
1.13-5.7 O que significa a dessa família; fomos libertos (resgatados)
nossa salvação no dia a dia da antiga forma vazia de viver; e a entrada
Tudo o que segue nessa carta mostra nessa familia é um privilégio enorme, pois
como essas grandes verdades da vida cris- foi obtido por tão grande preço.
tã devem ser vividas na prática por aque- Ao falar de Cristo, Pedro é levado
les que nelas creem. Nos conselhos que imediatamente a desenvolver o tema da
nos dá, Pedro constantemente nos leva de grandeza da obra dele e a falar de seus re-
volta aos fundamentos do evangelho cris- sultados. Deus escolheu a Cristo antes da
tão para nos mostrar a razão por trás de fundação do mundo, mas o manifestou no
tal comportamento. A salvação descrita fim dos tempos (20). O cristão tem razão
de forma tão magnífica na seção anterior para a confiança total nesse Deus como o
pode e deve resultar em homens e mulhe- objeto da suafé no presente e esperança no
res vivendo como seguidores de Jesus não futuro. Isso é assim porque em Cristo fo-
importa quão difíceis e adversas sejam as mos resgatados com o seu sangue, e Deus
circunstâncias. subsequentemente o ressuscitou e lhe deu
glória (21).
1.13-21 Viver como Jesus Notas. 13 Está sendo trazida (gr. "está
Tal salvação e tais boas novas requerem sendo conferida") indica certeza. O v. 7
que os cristãos exerçam diligência mental está associado com isso para mostrar que
e disciplina moral. Isso deve ser feito ao na revelação de Jesus Cristo a fé prova-
se olhar adiante com alegria e confiança da receberá a sua recompensa, e a graça
2061 1PEDRO 2

prometida será desfrutada. 14 Filhos da "de coração puro". Isso é uma leitura bem
obediência reflete uma expressão he- provável; visto que as palavras gregas para
braica sugerindo que a obediência é uma "puro" e "coração" começam ambas com
mãe cujas características os filhos devem a mesma letra, teria sido fácil os copistas
herdar. Amoldeis é a mesma palavra usa- terem omitido uma delas. 23 O grego não
da em Romanos 12.2. 16 Acerca de Sede está claro acerca de se é Deus ou a sua pala-
santos v. Lucas 11.44,45; 19.2 e cf Êxodo vra que vive e é permanente. Em certo sen-
19.5,6. Como viver assim foi esclarecido tido, ambas são verdadeiras, visto que a pa-
na vida de Jesus (Jo 1.18). 17 Sem acep- lavra procede de Deus. 24,25 Essa citação
ção de pessoas traz a ideia de não olhar no de Isaías 40.6-8 destaca a qualidade perma-
rosto de ninguém para ver se essa pessoa nente e dinâmica da palavra de Deus.
aprova ou não. Pedro usa essa ideia em
Atos 10.34,35. 18,19 A linguagem usada 2.1-3 Desejar crescer
aqui é semelhante à de Marcos 10.45 e O novo cristão precisa crescer espiritual-
João 1.29. Sem defeito se refere ao aspecto mente assim como um bebê recém-nascido
moral e sem mácula à perfeição física da precisa crescer fisicamente. Isso inclui ser
vítima sacrificial (v. Êx 12.5; Lv 22.17-25; protegido de tudo que possa prejudicar, e
Nm 6.14; 19.2). 21 De sorte que a vossa ser nutrido por tudo que é bom. Essa nova
fé e esperança estejam em Deus faz disso vida é dada para nos capacitar a atingir o
o propósito da morte e da ressurreição de alvo da salvação completa e final.
Cristo. Outras versões afirmam o resultado Notas. 2 Espiritual traduz a palavra
da morte e da ressurreição: "de modo que grega logikon, que pode igualmente sig-
a fé e a esperança de vocês estão em Deus" nificar "da palavra" (como está na AV).
(NVI). O texto grego possibilita as duas tra- Hebreus 5.12 tem a mesma ideia, e o AT é
duções, e ambas são verdadeiras. rico em alusões à lei ou à palavra de Deus
como sustento espiritual. 3 Salmos 34.8 é
1.22-25 Amar os outros cristãos citado aqui ou como motivo para o desejo
Nos v. 2,14, Pedro já falou do lugar da ardente do v. 2, ou o desejo ardente pode
obediência na vida cristã. Como reação à ser evidência de que a pessoa experimen-
proclamação e ao ouvir da verdade, ela tem tou que o Senhor é bondoso.
um efeito duplo: ela purifica a alma dos
pecados do passado e desenvolve o amor 2.4-10 Pertencer ao povo de Deus
genuíno por outros crentes que não é mera Os cristãos precisam crescer juntos e in-
representação. A realidade desse amor deve dividualmente, e Pedro agora trata desse
ser vista na sua intensidade e profundidade. tema. Ele está tão entusiasmado com a
Tal amor é encorajado pelo fato de que os ideia que até mistura suas metáforas, mas é
cristãos compartilham um novo nascimen- fácil seguir a sua argumentação. Por meio
to que se tomou disponível mediante a pa- da comunhão constante com Cristo, a pe-
lavra de Deus, a qual vive e é permanente. dra que vive, os cristãos se tomarão como
Essa palavra regeneradora é proclamada ele, pedras que vivem. Por si só uma pedra
quando o evangelho é pregado. é de pouca utilidade, mas unida com outras
Notas. 22 Ardentemente é usado aqui e ela se toma parte de um edifício. Uma pe-
em 4.8 em associação com o amor, e em dra "viva" tem o propósito de ser parte do
Lucas 22.44 e Atos 12.5 com a oração. todo. O pensamento de Pedro se volta então
Denota esforço extremo, lit.: "com todos da estrutura (supostamente o templo) para
os músculos tensos". A nota rnrg. da NIV os que realizam a sua função naquele edifí-
(em inglês) mostra que alguns MSS anti- cio. Sua responsabilidade como membros
gos acrescentam a palavra "puro", ou seja: da casa espiritual de Deus é dupla: adorar:
1PEDRO 2 2062

a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais vo "sede edificados" de algumas traduções


(5); e testemunhar: afim de proclamardes (v. NTLH). As palavras que seguem aqui e
as virtudes (9). no v. 9 (veja adiante) eram ricas em sig-
Como que um aparte, Pedro toma as nificado para o povo de Deus no AT. O seu
referências à Pedra viva e mostra como uso mostra a continuidade espiritual entre
elas se cumpriram em Cristo: a primeira os que responderam a Deus sob a antiga
pelos crentes, e a segunda pelos descren- aliança e os crentes cristãos. O uso da pala-
tes. Não importa se as pessoas vêm pela fé vra casa e o destaque nos v. 9,10 ao aspec-
à Pedra viva, ou se a rejeitam, os propósito to de pertencer ao povo de Deus podem ter
de Deus são supremos. Em Marcos 12.10, sido um grande encorajamento àqueles que
Jesus aplica esse texto às autoridades ju- sentiram o peso da sua posição como "pe-
daicas como construtores. Cristo se tomou regrinos e forasteiros" (2.11). Pedro pode
a pedra angular do edifício, mas os que ter tido em mente aqui a destruição do tem-
são desobedientes só podem tropeçar nele plo (prenunciada por Jesus em Me 13.2).
e cair, como Deus decretou que fariam. Os cristãos individualmente (l Co 6.19)
Em contraste com os incrédulos men- e a igreja corporativamente (lCo 3.16)
cionados por último, Pedro mostra como são vistos como o novo templo de Deus,
a igreja cristã herdou os privilégios do casa espiritual (5), porque é habitada pelo
povo de Deus do AT. Vós [...] sois [...] a Espírito dele. É com base nesse versículo e
.fim de destaca o princípio bíblico segundo no v. 9 adiante que os cristãos têm salien-
o qual o privilégio inclui responsabilidade. tado que, visto que Jesus fez o sacrifício
Os que herdam as bênçãos de Israel têm o pelo pecado de uma vez por todas (v. 2.24;
trabalho de Israel a fazer, e precisam pro- 3.18), os únicos sacrifícios a serem ofere-
clamar as virtudes do Deus que tanto fez cidos agora são sacrifícios espirituais (v.
por eles. Rm 12.1,2 e Hb 13.15,16). Esses devem
Duas linhas de profecias são combi- ser oferecidos por todos os crentes. O úni-
nadas nos v. 4,6-8: a preciosa pedra fun- co ministério ao qual o NT dá destaque é o
damental de Isaías 28.16 (v. 6 cita a LXX, dos presbíteros apontados para a liderança,
como Paulo faz em Rm 9.33) e a pedra an- o ensino e o cuidado pastoral (v. comen-
gular rejeitada de Salmos 118.22 ("cabeça tário de 5.1-4 adiante). Por intermédio de
de esquina", ARe). Jesus aplica esta última Jesus Cristo pode ser interpretado como
referência a si mesmo em Marcos 12.10, e uma indicação de como os sacrifícios são
Pedro a citou com referência a Jesus diante oferecidos ou por que são aceitos.
do Sinédrio em Atos 4.11. Jesus é tanto a A palavra de Deus, seja a palavra es-
pedra angular do fundamento sobre o qual crita (a Bíblia), seja a palavra viva (Jesus
a sua igreja está edificada quanto a pedra Cristo), é o fundamento no qual se deve
denominada cabeça de esquina para a qual construir. Os que desobedecem a Cristo
a igreja cresce (v. 1Co 3.11; Ef2.19-22). A vão descobrir que ele está no seu cami-
nota mrg. da NIV (em inglês) mostra que a nho e os importuna, e mais cedo ou mais
palavra pode ter os dois sentidos. Ao com- tarde vai fazê-los tropeçar e cair (8).
binar as duas metáforas, Pedro ressalta (Y. uma discussão mais profunda do tema
que Cristo é precioso somente para crentes apenas sinalizado aqui em "Predestination",
(como mostrou o contexto originário), e IBD p. 1262-4). O v. 9 reivindica para os
que os que se negam a crer nele o conside- crentes cristãos as promessas de Êxodo
ram uma pedra na qual tropeçam. Aqui ele 19.5,6 e Isaías 40.20,21 pelas quais Paulo
acrescenta uma citação de Isaías 8.14. argumenta em Romanos 9. Povo implica
Sois edificados (5) como afirmação faz descendência física e pode ser uma refe-
melhor sentido do grego do que o imperati- rência ao relacionamento gerado pelo novo
2063 1PEDRO2

nascimento. A palavra da qual o termo sa- capachos; eles podem se posicionar pelos
cerdócio é derivado nunca é usada no NT seus direitos legais.
para descrever o ministério cristão oficial, 2.11,12 Princípios gerais para as ati-
mas antes a tarefa de todos os crentes (cf tudes no mundo dos relacionamentos hu-
Ap 1.6). Em todo o AT, reis e sacerdo- manos. A partir de 1.15, Pedro tem tratado
tes eram indivíduos separados. Somente do lado positivo da santidade, do viver
Melquisedeque e o Messias combinaram para Deus. Agora ele trata brevemente do
esses dois ofícios. Saul pecou quando ten- lado negativo, a abstinência, que ele vai re-
tou cumprir as duas funções (1Sm 13.5- tomar em 4.1. Esse comportamento silen-
15). Em Cristo, o cristão pode ser as duas cia as calúnias que os cristãos já estavam
coisas. Nação santa é um povo chamado a enfrentando. Aqui há ecos das instruções
refletir o caráter do Deus que os chamou de Jesus em Mateus 5.16.
(1.16). Povo de propriedade exclusiva de Notas. 11 O retrato de peregrinos e
Deus usa a figura de um rei oriental, que forasteiros presente em 1.1,17 e Hebreus
mantinha uma câmara especial de valores 11.13 vem originariamente de Gênesis
separada do tesouro do seu governo. Essa 23.4. As paixões carnais devem ser renun-
câmara era para o seu próprio uso, e essa ciadas, visto que destroem a parte imortal
ideia é encontrada pela primeira vez em do nosso ser (v. Gl 5.19-21). 12 Gentios
Êxodo 19.5 e é retomada por Paulo depois descreve aqueles que estão fora do relacio-
em Tito 2.14. Virtudes é uma palavra difi- namento com Deus desfrutado pela igreja
cil de traduzir, e a palavra usada na RV (em como o verdadeiro Israel (v. comentário
inglês) - "excelências" - provavelmen- dos v. 9,10 acima). No dia da visitação,
te é a mais próxima do original. O cristão i.e., para julgar.
vai descobrir que é algo natural e espontâ- 2.13-17 Atitudes diante das autori-
neo reagir dessa forma a Deus e às outras dades do Estado. O bom comportamento
pessoas uma vez que fica claro que todas deve ser expresso pela aceitação submissa
essas bênçãos vêm da gratuita graça e mi- das exigências de toda instituição huma-
sericórdia de Deus (10). Pedro cita Oseias na. É admirável que Pedro, provavelmente
1.8-2.1 e 2.23 para reforçar esse ponto. escrevendo na época de Nero, ainda veja o
Estado como designado por Deus para a ma-
2. 11-3. 12 Mostrar aos nutenção dos valores morais (v. Rm 13.1-7;
outros o exemplo de Jesus lTm 2.1,2). O comportamento correto do
Visto que os cristãos são de uma forma tão cristão deve elevá-lo acima das calúnias
especial o povo de Deus, a sua verdadeira e das suspeitas dos ignorantes (15). Os
pátria está com ele. Assim, ao passarem cristãos precisam dar a César o que lhe é
por este mundo eles precisam mostrar pela devido (Mt 22.21), e Pedro não dá a enten-
sua conduta e pelos seus relacionamentos der nenhuma exceção aqui, mesmo que ele
que são cidadãos de uma pátria melhor. soubesse como se negar diante das autori-
É significativo que três das quatro se- dades quando elas reivindicavam para si o
ções seguintes, que dão exemplos desse que era de Deus (At 4.19,20; 5.29).
comportamento, usam o mesmo conceito: Surpreendentemente, a liberdade cristã
submissão ou sujeição (13,18; 3.1). A pala- é a liberdade de viver como servos de Deus
vra tem o significado literal de posicionar- (16). Não é, portanto, uma autorização para
se debaixo de outra pessoa, e assim con- satisfazer os seus prazeres, sob o pretexto
siderar a outra pessoa superior (como em da "permissividade". Quatro ordens breves
Fp 2.3). Tanto Jesus (Jo 19.22,23) quanto resumem essas exigências práticas: todos
Paulo (At 25.10,11) nos mostram que isso devem ser tratados com honra, como aque-
não significa que os cristãos devem ser les por quem Cristo morreu e em quem a
1PEDRO 2 2064

semelhança e a imagem divina podem ser conhecimento da fé cristã do seu servo) ou


restauradas; os irmãos devem ser amados; o motivo do servo para aceitá-lo (porque
os cristãos devem se aproximar de Deus ele está consciente de que Deus conhece
com adoração (i.e., com temor reverente; o seu sofrimento e compartilha dele; v.
v. Hb 12.28,29); e o rei deve ser tratado At 9.4). Pedro provavelmente tinha em
com honra. mente as palavras de Jesus em Mateus
Notas. 13 Por causa do Senhor nos faz 5.11,12,46,47; Lucas 6.22,23,32-35 e João
lembrar do exemplo e do ensino de Jesus. 15.18-21. 21 Exemplo é usado somente
Soberano, i.e., acima das instituições hu- aqui no NT e descreve um esboço de de-
manas. 17 Pedro cita Provérbios 24.21, senho ou as letras-padrão que devem ser
em que o autor usa a mesma palavra para copiadas pelos alunos. 22,23 Pedro cita
descrever tanto as atitudes para como Deus Isaías 53.9 e 7 (cf Mc 14.61,65; 15.29;
quanto para com o rei. Pedro não faz isso. Jo 19.1-9). 24,25 Essa descrição é tão
2.18-25 Atitudes para com os empre- nítida e vívida que pode ter sido de uma
gadores. Pedro dá instruções detalhadas testemunha ocular. Carregando é lit.
para dois grupos de pessoas (servos e "carregando para cima" e a linguagem é
mulheres) cuja posição no mundo anti- intencionalmente sacrificial (cf Hb 7.27
go poderia tomar a vida, especialmente em que oferecer é o mesmo verbo grego).
como crentes, muito difícil para eles. A A referência ao propósito dos sofrimentos
sorte dos servos (ou escravos) não seria de Jesus (citando Is 53.12 e 5) dá o moti-
tão ruim se tivessem um bom senhor, mas vo para os nossos sofrimentos. Nossa res-
com frequência eram tratados injustamen- posta ao salvador que carrega os nossos
te. Enquanto Pedro se dirige a eles como pecados precisa ser de voltar a ele como
empregados, Paulo mostra que os empre- o nosso pastor a fim de morrermos para
gadores também precisam mostrar respeito os pecados e vivermos para a justiça. As
e consideração por aqueles que trabalham imagens refletem Isaías 53.6 e João 10.
para eles (Ef6.5-9; CI3.22-4.1). Bispo é a palavra comumente usada para
Ter paciência quando se sofre um cas- descrever a função de um pastor, e assim
tigo merecido não é virtude alguma, mas o de um pastor espiritual.
cristão é chamado a aceitar até o tratamen- 3.1- 7 Atitudes para com a família.
to duro de um senhor insensível. Isso con- Mulheres agora recebem a ordem para que
quista a recomendação de Deus. Perseverar sejam submissas da mesma forma, pois o
em fazer o bem e ser paciente no sofri- mundo antigo classificava as mulheres e os
mento são atitudes que até poderiam ser escravos juntos como "seres inferiores". O
consideradas o chamado do cristão, pois cristianismo deu dignidade à posição de
faziam parte dos sofrimentos de Cristo (cf ambos, e Pedro ressalta a igualdade espi-
Fp 3.10). É também o exemplo deixado por ritual de homem e mulher como herdeiros
Jesus. Pedro lembra nitidamente como ele juntos. É interessante observar que Paulo
se comportou durante os seus sofrimentos. exorta casais casados à submissão mútua,
Ele também faz os seus leitores lembrarem em que a submissão da mulher deve ser
dos benefícios de que desfrutamos como correspondida pelo amor autossacrificial
resultado daquele sofrimento. do homem (Ef 5.21-28). As Escrituras en-
Notas. 18 Servos (escravos) eram os sinam que o homem e a mulher se comple-
servos domésticos encontrados costumei- mentam no relacionamento do casamento.
ramente em casas gregas e romanas. 19 Por Visto que em geral os homens são mais
motivo de sua consciência para com Deus fortes fisicamente, devem usar esse fato
pode indicar ou a razão do senhor para in- para cuidar (tratai-a com dignidade) da
fligir o castigo imerecido (porque ele tem sua esposa. Num mundo em que a econo-
2065 1PEDRO3

mia doméstica dependia do homem para apontar para o comportamento da mulher


ganhar o pão para a família, era natural e encorajar os homens a reagir com amor e
que a mulher olhasse para ele na hora da compreensão mútuos (Philipps traduz ten-
tomada de decisões acerca de onde deve- do consideração por: "tentem entender".
riam morar etc. A prontidão de Sara para Acerca de parte mais frágil, ver Gênesis
ir com Abraão em obediência ao chamado 2.18; 3.16.
de Deus é um exemplo desse tipo de rela- 3.8-12 Atitudes para com a comuni-
cionamento. Nossa tarefa hoje é interpretar dade cristã. Pedro agora deixa o campo
os princípios estabelecidos nas Escrituras dos relacionamentos especiais e conclui
para o tempo em que vivemos. Mulheres essa seção com um resumo das atitudes
cristãs com frequência eram casadas com que os cristãos devem demonstrar uns aos
maridos incrédulos, e Pedro destaca a im- outros, tanto nas suas ações quanto nas rea-
portância do comportamento semelhante ções. Isso está contido em uma palavra,
ao de Cristo para ganhá-los. O casamento é bênção (9), a invocação do poder e da bon-
elevado então ao seu patamar mais alto por dade e do amor de Deus sobre todas as pes-
meio do chamado aos maridos de tratarem soas, até mesmo sobre as que nos desejam
cada um a sua esposa com consideração ou fazem mal. Comportar-se dessa forma é
e dignidade. Isso é assim porque marido encorajado pelo conhecimento do fato de
e mulher têm uma fé compartilhada e eles que no fim os próprios cristãos receberão
são uma parceria de oração, e nenhum de- por herança a bênção de Deus. Isso foi
sentendimento ou mau comportamento de- prometido em Salmos 34.12-16 que é cita-
vem interromper a eficácia da oração. Essa do aqui. Os cristãos são chamados a andar
instrução se aplica sem dúvida aos casais no caminho da irrepreensibilidade e da jus-
cristãos, aqui vividamente descritos como tiça, ativamente buscando a paz com todos,
coparticipantes da herança do dom gratuito assim como o povo da fé no AT. Eles têm a
de Deus da vida eterna. mesma motivação porque Deus observa e
Notas. 3 A referência ao adorno [00'] abençoa tal comportamento, mas se coloca
exterior não significa que as mulheres contra os malfeitores.
cristãs não devam se vestir bem nem usar Notas. 8 Sede todos de igual ânimo é lit.
adereços de beleza. Os substantivos que "sede todos de mesma mente". Isso é obti-
seguem contrastam severamente com a do quando todos compartilhamos a mente
atitude do v. 2 visto que são todos ativos de Cristo (v. Fp 2.5; CI3.2). Podemos então
e destacam o tempo e a energia gastos em entrar nos sentimentos dos outros (simpa-
tais enfeites pessoais. Deus prefere ver a tizar vem de uma palavra grega que signi-
beleza de caráter que nunca se esvai. 4 Um fica "sentir com") e compartilhar do amor
espírito manso e tranquilo é um espírito de Deus por eles. Essa qualidade de amor
que consegue suportar as reclamações dos entre irmãos já foi mencionada anterior-
outros sem fazer suas próprias. Há bons mente em 1.22 e será destacada novamente
exemplos de tal caráter entre o povo de em 4.8; deve ser a marca registrada da co-
Deus - Sara, Rebeca, Rute, Ana - e tais munhão cristã. Compadecidos dá um novo
mulheres são as verdadeiras filhas, pela significado cristão a uma antiga palavra
descendência e semelhança espiritual, de grega para "corajosos". Humildes (v. tam-
Sara. 6 Chamando-lhe Senhor pode ser bém 5.5,6) mostra que o segredo do caráter
uma referência a Gênesis 18.12 em que a descrito aqui está na estimativa realista de
palavra "marido" também pode significar si mesmo e de elevada consideração pelos
"senhor" ou "amo". 7 Igualmente pode ser outros. O v. 9 retoma a imagem de 2.23
uma referência a 2.17 e à instrução geral (v. as referências aí ao exemplo de Jesus,
de tratar a "todos com honra", ou pode junto com Lc 6.27,28; 23.34). Isto pode
lPEDRO 3 2066

ser uma referência à herança da bênção, bom? A observação que segue sugere que
ou ao estilo de vida de pagar a maldição o zelo por parte dos cristãos pelo que é cer-
com bênção. As palavras usadas aqui, que to provavelmente não leve à perseguição.
nos fazem lembrar de 2.21, como também Isso parece estranhamente discordante das
a citação de Salmos 34, sugerem que Pedro advertências de Jesus (e.g., Mt 5.10-12),
está destacando as suas razões para a vida do ensino e da experiência de Paulo (e.g.,
piedosa diante de oposição. Tal obediência At 14.22) e das próprias palavras de Pedro
cristã herdará a bênção que Deus preparou no próximo capítulo (4.12-19), ou mesmo
(cf Rm 8.17,18). Essa bênção será desfru- dos v. 16,17 aqui. Em vista disso, prova-
tada na sua plenitude na vida por vir, mas velmente seja correto colocar a ênfase
o autor do Ar obviamente tinha em mente dessa pergunta na palavra maltratar (13).
as bênçãos da caminhada com Deus na sua A perseguição pode muito bem assolar o
vida. Os olhos de Deus repousam sobre os cristão, mas no fim das contas não pode lhe
seus filhos para guardá-los em seguran- fazer mal. Aliás, a experiência pode con-
ça, e os seus ouvidos estão abertos a eles duzir à bênção (14; cf 1.6-9), e o resultado
para ouvir e responder às suas orações. pode ser deixado nas mãos de Deus (4.19)
10-12 A citação de Salmos 34.12-16 é alte- na proporção em que ele vigia os que lhe
rada gramaticalmente para se encaixar no pertencem e os seus perseguidores (3.12).
contexto. Com vida o salmista provavel- Assim, os crentes são encorajados com a
mente tinha em mente que fosse uma refe- seguinte expressão: não vos amedronteis.
rência à existência temporal na terra. Pedro O antídoto positivo ao medo deve ser en-
pode bem estar usando a palavra (como no contrado no fato de darmos a Cristo o lugar
v. 7) com o sentido de vida eterna, espe- especial que lhe é devido no centro da nos-
cialmente porque ele muda o original "ama sa vida. Ali ele deve reinar como Senhor.
a vida e quer longevidade para ver o bem" Esse verdadeiro temor do Senhor, que se
para (lit.): quem quer amar a vida e ver expressa no comportamento correto e em
dias felizes. uma bem-elaborada declaração de fé, eli-
minará todos os temores menores e final-
3.13-4.6 Viver para Cristo mente envergonhará os detratores.
em meio à oposição 17-22 Esses versículos contêm a mais
Desde o colapso amplo do comunismo há complexa sequência de ideias em toda a
agora menos países no mundo em que os carta. A ideia-chave que liga tudo é a do
cristãos estão sujeitos à perseguição ou pri- sofrimento (v. 3.17 e 4.1). Até aqui Pedro
são por causa de sua fé. Mas basta aparecer preparou os seus leitores para o sofrimen-
um governo totalitário (de direita ou de es- to futuro, e prevê que eles tenham a rea-
querda) para trazer de volta tentativas de ção comum do ser humano ao sofrimento
suprimir os que se posicionam pelo nome - que desperdício! Assim ele nos chama a
de Cristo. Na moderna sociedade ociden- atenção para o sofrimento de Jesus e o que
tal, os cristãos estão em maior perigo de esse sofrimento o capacitou a atingir: ele
ser perseguidos por se posicionarem contra nos leva a Deus; ele foi ressuscitado dos
os falsos valores e padrões do mundo. (No mortos; ele prega aos espíritos em prisão
livro O peregrino, Bunyan descreve como (v. adiante); ele toma possível a purifica-
isso acontece a Fiel e Cristão na cidade de ção e salvação simbolizadas pelo batismo;
Feira da Vaidade). e ele foi elevado à posição proeminente de
13-16 A confiança de Pedro na sobera- poder e glória.
nia de Deus como também na sua justiça o Esse sofrimento obviamente ficou lon-
leva à pergunta retórica: Quem é que vos ge de ser inútil e foi, na verdade, a vontade
há de maltratar, se fordes zelosos do que é de Deus para Cristo e pode ser a vontade
11II
2067 1PEDRO4 . .
11II.
de Deus para os seguidores dele. Isso não mereceram morrer. Nesse sentido, Jesus
tem o sentido de que eles possam morrer tomou o nosso lugar e suportou o nosso
para levar outros a Deus, mas o padrão do castigo. Essa formulação reflete fortemen-
sofrimento que leva à glória é um padrão te a de Isaías 53.6.
que Jesus chamou os seguidores a adotar No espírito aponta para a obra do
(e.g., Mt 16.24-26). A menção a isso leva Espírito na ressurreição de Jesus. Ele
Pedro a nos lembrar como o sofrimento do morreu fisicamente no fato de que as suas
Cristo inocente, ordenado por Deus, teve funções corporais (respiração e circulação
sete características: foi feito uma única vez etc.) cessaram. Ele também morreu espiri-
(18); foi a maneira de tratar do pecado (pe- tualmente no fato de que sofreu a separa-
los pecados, v. Rm 8.3); ele foi um homem ção de Deus por conta de levar sobre si os
justo que agiu no lugar dos injustos; teve o pecados do mundo. Isso foi expresso pelo
propósito de conduzir-vos a Deus (o verbo seu grito de abandono na cruz ("Deus meu,
gr. aqui, prosagõ, é um termo técnico para Deus meu, por que me abandonaste?",
introduzir alguém na presença de um supe- Me 15.34). Mas a morte espiritual não é a
rior); foi uma morte física (morto [...] na aniquilação, e depois que Jesus havia sofri-
carne) para obter vida espiritual; foi uma do completamente o juízo de Deus sobre o
oportunidade de ir e pregar aos espíritos pecado, o seu espírito foi liberto do corpo.
em prisão (v. adiante); conduziu à vindica- a termo grego de Marcos 15.37 e parale-
ção de Jesus por parte de Deus quando este los usa a metáfora comum, mas nítida, de
o ressuscitou e exaltou (22). "expirar" o seu espírito. No terceiro dia,
a v. 18 é uma das declarações mais aquele espírito retomou para reassumir o
sucintas, porém profundas, no NT sobre seu corpo na ressurreição. Na NIV (em in-
a doutrina da expiação. Jesus é retratado glês), há uma nota mrg. dando uma tradu-
como aquele que trata, de três maneiras, ção alternativa ("alive in the spirit through
do problema do relacionamento rompido which" = "vivo no espírito pelo qual") que
entre a humanidade e Deus. mostra que essa expressão pode ser enten-
1. Ele fez a oferta perfeita pelo pecado dida como uma referência à atividade do
(cf Hb 9.11-14; 10.1-10) e por meio disso espírito de Jesus durante o período entre a
cumpriu as exigências da lei. sua morte e ressurreição.
2. Ele sofreu a morte devido à injustiça A referência aos espíritos em prisão
como castigo imposto pela lei sobre os pe- (19) leva o autor aos dias de Noé, cuja ex-
cadores (cf Rm 6.23; 2Co 5.21). periência de salvação é um paralelo extraor-
3. Por meio disso, ele removeu a bar- dinário do batismo.
reira gerada pelo pecado e abriu o caminho A fé que é a reação do crente a Deus
de volta para Deus (Jo 14.6). no batismo é possível pela ressurreição de
Tendo ressaltado tanto o valor dos so- Jesus. Pedro agora conecta as duas linhas
frimentos de Cristo como o nosso exemplo de pensamento. Ele vê a glorificação de
(e.g., 2.21), Pedro restabelece o equilíbrio Jesus não somente como a continuação di-
ao afirmar também como eles são singu- vina da sua morte sacrificial, mas também
lares e eficazes. O justo significa que os como a razão convincente para que a hu-
sofrimentos dele foram propiciatórios manidade responda a ele com fé. (Y. mais
(cumprindo todas as exigências do próprio comentários nas notas adiante).
Deus), enquanto pelos (lit. "no lugar de") 4.1-6 Por isso, o sofrimento na carne
mostra que também foram vicários. Essa deve ser aceito porque: segue o exemplo
uma pessoa, cuja justiça perfeita significa- de Jesus; liga o seguidor ao pensamento
va que ele nunca mereceu morrer, suportou (ou atitude) dele; e ele capacita o sofre-
a dor da morte no lugar de todos os que dor a viver segundo a vontade de Deus.
1PEDRO 4 2068

É importante analisar trechos como esse pode ser traduzida de duas formas: "Não
segundo o pano de fundo de alguns ensina- temam aquilo que eles temem" ou: "Não
mentos contemporâneos sobre a saúde e a temam as ameaças deles" (cf NVI). Uma
prosperidade. Em nenhum lugar da Bíblia terceira possibilidade é que a ordem aqui
somos ensinados que os cristãos vão pros- e em Isaías seja uma advertência contra a
perar sempre e evitar sempre o sofrimento; apostasia: "Não compartilhem os objetos
antes, Jesus sugere que o contrário pode de reverência religiosa deles" (o verbo
acontecer até com frequência (v. Lc 6.20- gr. é usado com esse sentido cúltico em
26; Jo 16.1-4). Lc 1.50; 18.2,4; At 13.16,26). 17 O tempo
A menção ao batismo em 3.21 pode do verbo da expressão se for da vontade
ter levado Pedro a seguir o mesmo tipo de de Deus (diferente da ARe: "se a vontade
argumentação que Paulo usa em Romanos de Deus assim o quer") confere com o
6. O batismo simboliza a entrada do cren- uso grego e sugere que a possibilidade de
te nos beneficios obtidos pelo sofrimento sofrer por praticardes o que é bom é real-
e morte de Cristo. Ao passar por ele, a mente remota, como no v. 14. Pedro pode
pessoa batizada é considerada alguém que ter dito isso para atenuar os temores dos
misticamente compartilha esses sofrimen- seus leitores.
tos e morte. A consequência de tal morte 19 Esse versículo suscita as duas per-
em Romanos 6.11 para os cristãos é que se guntas mais dificeis dessa carta. Quando
considerem mortos para o pecado, mas vi- Jesus pregou aos espíritos em prisão?, e
vos para Deus, em Cristo Jesus. É isso que quem eram eles? Alguns estudiosos enten-
Pedro está afirmando aqui, adicionando dem que o versículo se refere ao que seguiu
um tom de urgência ao contrastar o tempo cronologicamente a morte de Jesus, quan-
gasto no passado nos prazeres com a opor- do o seu espírito passou à esfera dos que
tunidade de servir a Deus no futuro. já partiram. Então, junto com Atos 2.31 e
Pessoas cujos hábitos e comportamen- Efésios 4.9, esse versículo estabelece a de-
to são mudados de tal forma se tomam ob- claração nos credos acerca da descida de
jeto de perseguição. No entanto, o cristão Jesus aos mortos. Nesse caso, ele deve ter
precisa lembrar que é a Deus que todos pregado a todos os mortos em uma de três
devem prestar contas pela sua conduta. A maneiras: para lhes oferecer uma segunda
abrangência desse juízo (5) leva Pedro a oportunidade de salvação; para anunciar a
fazer uma observação marginal segundo sua vitória sobre a morte e o triunfo sobre o
a qual a morte dos cristãos prova o valor poder do mal e assim confirmar a sentença
da pregação do evangelho às pessoas en- sobre os incrédulos e anunciar a libertação
quanto estão vivas. Embora agora na morte aos crentes; para anunciar a libertação do
elas tenham recebido no seu corpo o juízo purgatório àqueles que tinham se arrepen-
de Deus sobre o pecado, seu espírito ainda dido justo antes de perecerem no dilúvio
está vivo com ele. (V outras interpretações (uma interpretação popular entre autores
desse versículo nas Notas adiante). católico-romanos).
Nessa seção, portanto, Pedro encoraja Nem a primeira nem a última dessas
os cristãos que estão passando por sofri- três podem ser fundamentadas nas Escri-
mentos (e possivelmente até o martírio) turas, mas a segunda tem sido defendida
ao lhes mostrar com base no exemplo de por muitos comentaristas como adequa-
Jesus que o plano de Deus pode ser execu- da à evidência neotestamentária acima.
tado por meio de tal sofrimento e que no E. G. Selwyn (The First Epistle of Peter
final conduzirá à vitória (cf 1.11). [Macmillan, 1949]), e outros consideram
Notas. 3.14 A NVI traz uma nota mrg. os espíritos em prisão os anjos caídos
que mostra que a citação de Isaías 8.12,13 de Gênesis 6.1-8 aos quais há alusão em
2069 1PEDRO4

2Pedro 2.4-10 e Judas 6 como também no Mesmo assim, Paulo também fala de "mui-
livro apócrifo 1Enoque. O alvo de Pedro tos" que serão justificados pela morte de
nesse contexto é mostrar que o propósito Jesus (Rm 5.19), e isso deve ser uma moti-
de Deus está sendo executado até mesmo vação para o evangelismo. Através da água
em épocas de sofrimento. Assim, seria me- tem dois significados. Em termos de lugar,
lhor entender a pregação como uma decla- a arca carregou Noé e sua família segura-
ração do triunfo de Cristo, a fim de decla- mente sobre a água que trouxe o juízo de
rar (22) que todos os anjos, e potestades, e Deus sobre os outros. A preposição atra-
poderes estão subordinados a ele. Grudem vés [de] ("por meio de") também sugere o
(TNTC) resume num apêndice os diversos instrumento, i.e., a água foi tanto o meio
pontos de vista e afirma que os espíritos de destruição para os seus contemporâneos
eram contemporâneos de Noé que rejeita- quanto o meio de libertação para um novo
ram o Espírito de Cristo por meio de Noé começo para Noé e sua família.
(v. 2Pe 2.5) e agora estão na prisão que é o 21 A palavra grega figurando ("antíti-
lugar onde estão os mortos. A interpretação po") originariamente descrevia a impres-
vivificado no espírito (18) como referência são deixada sobre uma superfície por um
à ressurreição e a de espíritos em prisão selo (typos) e assim era usada acerca da
como referência aos anjos caídos são de- espécie de correspondência que o selo tem
fendidas de maneira convincente por R. T. com seu cunho (como do carimbo com
France em New Testament Interpretation, a sua matriz). Pedro enxerga esse retrato
ed. 1. H. Marshall (Patemoster Press, como um paralelo do batismo, pois aqui
1979), p. 264-81. Ele defende que o uso a água simboliza o juízo de Deus sobre o
neotestamentário e o contemporâneo favo- pecado e a libertação para uma nova vida.
recem essa compreensão da palavra espí- A única maneira de passar do estado de re-
ritos quando usada isoladamente, mais do beldia pecaminosa contra Deus para a nova
que a aplicação dela a homens e mulheres vida é por meio das águas do juízo. Noé e
que haviam morrido antes de Jesus vir e sua família fizeram isso simbolicamente
trazer o evangelho. na arca. Jesus falou de sua morte vindoura
Nenhum ponto de vista está livre de como um batismo (Me 10.38,39) quando
dificuldades, mas o uso de um verbo que no nosso lugar ele sofreu o juízo da ira de
traz a conotação de progressão constante Deus. Em Romanos 6.3,4, Paulo enxerga
e propositada (foi [19] e depois de ir [22] o batismo como um retrato da entrada do
são ambos tradução da mesma palavra gr. cristão nessa experiência da morte e res-
poreutheis) sugere que Pedro está relatan- surreição de Cristo. Para Jesus, sua morte
do o que Jesus realizou entre a sua morte foi sofrer o juízo de Deus sobre o pecado
e exaltação. e prelúdio da ressurreição; para o crente, a
20 Noutro tempo [..,] foram desobe- morte de Jesus é o meio de purificação do
dientes é uma referência, com base nas pecado e a entrada na nova vida. Pedro faz
interpretações precedentes, ou aos eventos com que seus leitores eliminem quaisquer
de Gênesis 6.1-4 ou à rejeição da pregação ideias mágicas acerca do batismo ao deixar
de Noé (v. 2Pe 2.5). A referência à espera claro que a eficácia do batismo não con-
de Deus (longanimidade) enquanto a arca siste na remoção da imundície da carne,
estava sendo construída (Gn 6.13; e cf 2Pe mas na resposta interior de fé em relação
3.5-9) também se encaixa em qualquer uma a Deus. Indagação ("compromisso", NVI) é
dessas possibilidades. Poucos é uma ênfa- uma palavra usada no mundo do primeiro
se bíblica (cf Mt 7.14; Lc 13.23,24). No século acerca do compromisso solene de
AT, a ideia equivalente é a do "remanescen- qualquer parte ao firmar um contrato, e a
te" (Is 10.20-23; Jr 23.3; cf. Rm 9.27-29). nota mrg. da NVI traz como possibilidade
1PEDRO 4 2070

de tradução: "resultado de". A ressurreição mais livre do espírito, e aí não haverá mais
de Jesus Cristo é o grande fato que toma juízo a passar (v. as palavras de Jesus em
real e possível tudo o que o batismo simbo- Jo 5.24). Alguns estudiosos interpretam
liza, e é somente por esse meio que somos mortos como aqueles que estão espiritual-
salvos (cf 1.3 com 1Co 15.1,2,14).22 A mente mortos. Outros usam esse versículo
referência a isso faz Pedro repetir poreu- para inferir que uma segunda oportunida-
theis do v. 19 (v. acima). Isso descreve a de de responder ao convite do evangelho
procissão triunfal de Jesus, que culminou será dada após a morte. Eles associam essa
no fato de ele estar assentado no céu (as- pregação com a proclamação de 3.19, mas
sim cumprindo SI 110.1) e na posição de isso não se encaixa no contexto, e não tem
poder supremo. apoio em outra parte das Escrituras. 6 Foi
4.1-6 Mesmo pensamento (lit. "inten- o evangelho pregado também a mortos
ção") parece, com base no contexto, uma prevê uma possível objeção ao evange-
referência à experiência de sofrimento lho por parte dos oponentes dos cristãos
de Cristo. Os seus sofrimentos levaram à - "Se vocês falam da volta de Cristo, e de
morte da sua carne e possibilitaram que o ter a vida eterna aqui e agora, por que entre
seu espírito entrasse num novo modo de vocês cristãos as pessoas morrem como to-
existência. Isso também deve ser percep- dos nós? Vocês certamente estão sofrendo
tível na vida do crente. Aquele que sofreu o mesmo juízo que nós, pois dizem que a
não é necessariamente uma referência aos morte é o salário do pecado". A resposta de
que passam por sofrimento físico, mas Pedro é que os que agora estão mortos fo-
inclui todos os que, na união mística sim- ram julgados na carne segundo os homens
bolizada pelo batismo, compartilham os ao sofrerem a morte física, mas porque foi
sofrimentos de Cristo. Essa união deve se o evangelho pregado a eles (enquanto vi-
tomar real e efetiva por meio da reivindi- vos, e eles o aceitaram), agora vivem no
cação da libertação do pecado e de uma espírito segundo Deus. Segundo os homens
nova vida de serviço para Deus. 2 O plural [...] segundo Deus pode ser uma referência
paixões sugere a diversidade de interesses ao juízo na carne como sendo o destino co-
que puxam uma pessoa em diversas dire- mum da humanidade, e a vida no espírito
ções (o v. 3 apresenta uma lista de algumas como a característica distintiva de Deus.
delas). Em contraste, a vontade de Deus no Como alternativa, a preposição segundo
singular mostra que somente na obediên- pode significar: "à vista de...". Qualquer
cia a Deus a personalidade humana pode dessas traduções faz pouca diferença para o
ser verdadeira e adequadamente integrada. significado. Uma outra tradução seria: "pe-
3 Alguns eruditos entendem que a vontade los homens", mas isso é improvável e não
dos gentios aponta para o pano de fundo harmoniza facilmente com segundo Deus.
gentílico dos leitores de Pedro, o que ante-
riormente os pode ter envolvido na prática 4.7-11 Ministrar uns aos outros
de rituais religiosos pagãos ou nas ativida- O juízo final não é uma eventualidade re-
des das guildas comerciais. 5 Esse versí- mota. Em qualquer época, os cristãos pre-
culo destaca a universalidade do juízo. A cisam estar sempre prontos para a volta de
humanidade precisa ou enfrentar esse juí- Cristo para levar à culminação a presente
zo após a morte, ou então antecipá-lo aqui ordem das coisas. Por isso, é indispensá-
na terra por meio de uma resposta positiva vel que vigiemos e oremos (cf Lc 21.36),
a Cristo. Em 3.18-21, já vimos que nessa demonstrando autocontrole, amor mútuo e
resposta os seus pecados são tratados me- mordomia zelosa dos dons que Deus nos
diante a sua união com Cristo. A morte é, deu. Essa é a vida que confere glória a
então, a porta para a vida mais completa e Deus (v. Mt 5.16).
2071 1PEDRO4

Notas. 7 O fim (gr. telos, que também Romanos 3.2 e Hebreus 5.12 é aplicado às
significa alvo) do presente sistema não é Escrituras. Acerca da atribuição a quem
somente o seu clímax, mas também o pro- [pertence a glória]. .. veja a Introdução, "A
pósito para o qual Deus tem trabalhado e carta é uma unidade?").
continua trabalhando. Criteriosos significa
"com mente segura". Em meio a medos 4. 12-19 Sofrer por causa de Cristo
e incertezas, o cristão precisa se manter Pedro volta agora ao tema do sofrimento
em contato com Deus. A tradução de 1. B. e sugere mais sete razões para encorajar
Phillips é útil aqui: "sejam homens de ora- o cristão não somente a perseverar, mas a
ção calmos e autocontrolados". 8 Acerca de fato se alegrar (alegrai-vos) nele. A ex-
de [amor] intenso v. comentário de 1.22. O periência do sofrimento: (1) é uma prova-
amor cobre multidão de pecados pode ser ção (fogo [...] destinado a provar-vos; 12;
uma referência a Provérbios 10.12. Esse cf 1.6,7) para testar a realidade da nossa
versículo tem sido usado na defesa da ideia fé, e podemos esperar que Deus aja para
de que pelo amor se pode obter o perdão de fortalecê-la; (2) não é nada estranho (não
pecados, não somente para a pessoa que o estranheis; 12), antes o compartilhamento
demonstra, mas também para a pessoa que da experiência de Cristo; (3) é um cami-
recebe essa demonstração de amor. Isso nho para a glória para nós, como o foi para
não é coerente com outros ensinos bíbli- Cristo (13; v. também Rm 8.17 e Cl 1.24);
cos. O significado mais provável é que o (4) é uma oportunidade de bênção, ou seja,
verdadeiro amor vai deixar passar ("fechar mais uma experiência do Espírito Santo
um olho para") as falhas do seu próximo (v. (14); (5) é uma oportunidade de glorificar a
Mt 6.14,15; 1Co 13.4-7; Tg 5.20). Também Deus (14); (6) é um desafio para se provar
pode ser interpretado como referência ao a relevância do evangelho visto que o juí-
amor de Deus cobrindo os nossos pecados, zo começa com a casa de Deus (17); (7) é
o que nos dá a motivação para amarmos uma oportunidade para nos comprometer-
uns aos outros. 9 A hospitalidade (sede, mos com Deus e provarmos a sua fidelida-
mutuamente, hospitaleiros) era importante de (19). O povo de Deus pode entregar as
nos dias dos ministros itinerantes e em que questões da vida com completa confiança
não havia prédios de igreja (v. Mt 25.35; àquele que lhes deu a vida. Em contraste, o
Rm 12.13; 16.3-5a; lTm 3.2; Hb 13.2). pecador impenitente não tem nada de bom
10 Cada um significa que cada cristão tem a esperar nem aqui nem depois desta vida
algum dom para exercer. As observações depois que Deus começa a agir com juízo.
de Pedro acerca do uso dos dons são signi- Notas. 12 Fogo ardente (gr. "exposi-
ficativas em vista do fato de que Jesus falou ção ao fogo com vistas ao teste") retoma
acerca desse tópico especialmente a Pedro o argumento de 1.6,7. Extraordinário é o
em Lucas 12.42-48. Acerca de multiforme adjetivo da raiz verbal usada anteriormen-
veja 1.6, em que a mesma palavra grega é te na frase: não estranheis. Por isso, seria
usada ("vários"). 11 Fala e serve cobrem melhor usar o sentido de "estranhar" nas
as duas divisões amplas de ministério na duas ocorrências, como faz a ARe ("não es-
igreja cristã: a ministração da palavra de tranheis"; e: "como se coisa estranha...").
Deus e o "servir às mesas" de diversas for- 14 Pelo nome de Cristo não significa ne-
mas (v. At 6.1-6). Esses dois ministérios cessariamente que já era crime ser cristão,
foram dados por Deus e podem depender pois o próprio Jesus sugeriu a possibilida-
de Deus na provisão do que é necessário de do sofrimento por causa de seu nome
para a sua execução. Oráculos (gr. logia) (v. Mt 10.22; Jo 15.21). Ver mais detalhes
era um termo usado em tempos clássicos na Introdução, acerca da autoria. Em to-
com referência a declarações divinas, e em das as épocas desde Jesus, os cristãos que
1PEDRO 5 2072

tentaram viver como ele têm se tomado Ezequiel 9.6; Malaquias 3.1-3.18 A cita-
alvo de calúnia e ódio por parte daqueles ção de Provérbios 11.31 da LXX reforça o
que foram desafiados ou condenados pelo argumento do versículo anterior, e é um
seu comportamento. Alguns estudiosos lembrete das palavras de Jesus em Lucas
interpretam o Espírito [da glória] ("espí- 23.31. 19 Se tal sofrimento é aceito à luz
rito de" não está no texto original) como dos v. 17,18, então muito ao contrário de
referência à shekiná, o brilho visivel que desistir debaixo dele o cristão vai perse-
simbolizava a presença de Deus entre o seu verar na prática do bem. Nós seguimos o
povo (Êx 40.34,35). Isso é possível, mas exemplo de Cristo ao entregarmos o resul-
o contexto e a estrutura da frase indicam tado nas mãos de Deus. A palavra grega
que pode ser mais corretamente interpre- traduzida por encomendem é a mesma que
tado (como indica o aposto na NVI) como é usada por Jesus em Lucas 23.46 ("entre-
o Espírito de Deus. Esse é o Espírito da go ..."; citando SI 31.5). Todo judeu fiel a
glória na medida em que ele revela a glória usava como oração final antes de dormir
de Deus ao seu povo ao tomar Cristo real à noite, e essa pode ser a ideia aqui. Paulo
para eles e ao transformá-los à sua imagem usou o substantivo derivado dessa raiz em
(1016.14; 2Co 3.18). A expressão pode ter 2Timóteo 1.12 para expressar sua con-
sido cunhada com base na LXX de Isaías fiança na proteção segura que Deus dá.
11.2, embora nem glória nem poder (uma Criador provavelmente é usado aqui para
leitura alternativa) sejam mencionados lembrar os leitores do poder de Deus (cf
ali. 15 Quem se intromete em negócios de 1.5 e o pensamento de Paulo em Fp 1.6).
outrem parece fora de lugar nessa lista de
atividades criminais, mas esse era com fre- 5. 1-4 Exercer liderança
quência o efeito que o evangelho parecia Pessoas que estão passando pelas expe-
ter (como emAt 16.18; 19.27). riências e enfrentam os desafios do cp. 4
16 Cristão ocorre em somente mais dois precisam de pastoreio sábio e habilidoso.
textos no NT (At 11.26; 26.28). Em ambos O enfático pois ("portanto", NVI) liga esses
os casos, foi supostamente usado por detra- versículos com os precedentes. Com sua
tores como termo desdenhoso. No entanto, posição e experiência singulares, Pedro
as pessoas daqueles dias usavam a termina- insta os líderes da igreja local a exercer
ção latina -ianus (aportuguesada como -ão) as suas responsabilidades com disposição,
de duas formas que poderiam esclarecer entusiasmo e de maneira exemplar. Eles
esse uso. Os seguidores de Herodes eram devem lembrar tanto de quem são copas-
chamados herodianos (Me 3.6) e assim o tores quanto da recompensa que lhes foi
termo "cristãos" pode ter indicado "apoia- prometida por um serviço fiel.
dores de Cristo". Era costume romano que Três formas contrastantes de exercer
uma pessoa adotada numa família da no- a tarefa pastoral são expostas aqui. Em
breza usasse o nome da família como seu e primeiro lugar, não de má vontade, mas
acrescentasse a terminação -ianus. Assim espontaneamente, por livre vontade; em
uma pessoa adotada na família de Domício segundo lugar, não por ganância pensando
podia chamar-se Domiciano. Antioquia na recompensa, mas com o coração dispos-
(onde começou o costume - At 11.26) era to para o Senhor e aqueles a quem servem;
uma cidade romana, e assim os cristãos ali e em terceiro lugar, não ostentando a sua
podem bem ter usado o nome para mostrar posição, mas usando cada oportunidade
que eles tinham sido adotados na família para dar um exemplo ao rebanho.
de Cristo (Rm 8.15-17). Notas. 1 Presbíteros (gr. presbyteroi)
17 Acerca da ideia de começar o juí- eram apontados desde os primeiros tempos
zo pela casa de Deus ver Jeremias 25.29; para assumir responsabilidade espiritual
2073 1PEDRO 5

das igrejas infantes que nasceram com a por força ("não por obrigação", NVI) su-
difusão do evangelho (At 14.23; 20.17). gere um falso senso de indignidade, uma
Atos 15.2 mostra que a igreja de Jerusalém relutância em assumir a responsabilidade,
já tinha presbíteros em data muito antiga. ou um desejo de não fazer mais do que é
A função provavelmente era derivada do necessário. Qualquer uma dessas atitudes
precedente judaico (Nm 11.16-25; veja pode conduzir à falta de disposição de as-
"Presbítero" no NDB). Sua tarefa era prin- sumir a tarefa ou de cumpri-la adequada-
cipalmente pastoral. Nos primeiros dias da mente. Como Deus quer é uma tradução
igreja, eles eram chamados presbíteros, in- possível. O grego pode significar também:
dicando a sua posição, e também episkopoi "como Deus o faria", lembrando a atitu-
("bispos") para descrever sua função. Esse de do Pastor das almas em 2.25; Salmos
retrato é retomado no v. 2, e Atos 20.28 usa 23; João 10.11. Por sórdida ganância não
as duas palavras de forma intercambiável. significa que os presbíteros estavam re-
Presbítero como eles (no original é usado o cebendo um salário, mas que havia opor-
equivalente a "copresbítero") não é encon- tunidades para os inescrupulosos tirarem
trado em nenhum outro texto do NT, mas ganho pessoal do ministério. Esse espírito
não é uma palavra incomum nesse contex- também podia ser aplicado ao desejo por
to, em que Pedro está desejoso de desta- reputação ou posição.
car sua unidade com aqueles que ele está 3 Como dominadores reflete a atitu-
encorajando. O autor declara ser testemu- de muitas vezes adotada pelos superiores
nha dos sofrimentos de Cristo. O fato de mundanos (a mesma palavra é usada em
que as listas dos que estavam presentes na Me 10.42). Os líderes cristãos, em vez de
crucificação (Mt 27.55,56; Mc 15.40,41; dominar e manipular os outros para atin-
Lc 29.49; Jo 19.25) mencionam somente gir os seus fins, devem ser exemplo, dando
as mulheres seguidoras pode indicar que o que puderem contribuir ao rebanho em
Pedro não tenha estado presente. João forma de conselho e edificação de caráter.
não é mencionado tampouco, mas sabe- Que vos foram confiados (gr. klêroi signifi-
mos que ele estava presente (Jo 19.26,27). ca "[suas] porções designadas"): klêros, de
Pedro também pode ter estado lá mesmo onde vem o nosso termo "clero", era origi-
que não haja referência específica a ele. De nariamente um lote de terra; depois se re-
todo o modo, certamente a essa altura já feria a uma posição designada por sorteio,
tinha visto muito do sofrimento de Jesus e aqui é uma referência ao rebanho desig-
(Lc 22.28,54-62; Jo 18.15-27). Acerca de nado e confiado a um pastor em particular.
glória, v. comentário de 4.13. Modelos é a palavra typoi, denotando um
2 Pastoreai usa a palavra que Jesus padrão a ser copiado (cf 3.21 acerca do
usou quando falou com Pedro após a res- termo derivado antitypon). Anteriormente
surreição (10 21.16). Também é a ordem de Pedro descreveu a segunda vinda como um
Paulo aos presbíteros em Éfeso (At 20.28; "desvelamento" ou "revelação" de Jesus
cf SI 78.70-72). [O rebanho de Deus] que Cristo. Manifestar (gr. phaneroõ) expres-
há entre vós, que a NVI traduz por: "... que sa as consequências dessa revelação, que
está aos seus cuidados", também pode sig- Jesus será visível em sua glória para todos
nificar: "com o melhor da sua habilidade". (v. Ap 1.7). Da glória é uma referência à
Qualquer das duas traduções se encaixa no porção da glória a ser dada a quem usou
contexto. A ARA não traz, mas algumas ver- a coroa, assim como a "coroa da vida"
sões trazem no texto a tradução da variante em Tiago 1.12 e Apocalipse 2.10 fala da
textual: "tendo cuidado dele" (ARe; "olhem vida eterna desfrutada por aquele que re-
por ele", NVI). A expressão vem da mesma cebeu a coroa. Imarcescível é amarantinon
raiz de "bispo" (supervisor) em 2.25. Não significando "de amarante", uma flor que
lPEDRO 5 2074

levou o nome da palavra amaranton (usa- 5.8-11 Tal salvação suscita


da em 1.4) porque se pensava que ela nun- oposição, mas a fé garante
ca murchasse. Isso contrasta com as coroas a vitória
efêmeras conferidas aos vencedores dos Uma vida despreocupada não é uma vida
jogos aos quais se alude aqui (cf 1Co 9.25; descuidada, e o cristão precisa estar alerta
2Tm 4.8; Ap 3.11; 4.4). e ser vigilante pois estamos envolvidos em
batalha espiritual constante. Os fatos disso
5.5-7 Ser um bom seguidor são: há um inimigo, o diabo (8); ele busca
O tipo de presbitério descrito acima as oportunidades para destruir os cristãos
merece o apoio leal dos mais jovens na (8); a forma de vencê-lo é a resistência (9);
congregação. Sua submissão à direção essa resistência está fundamentada na con-
divina deveria conduzir à atitude de res- fiança em Deus (9); também está apoiada
peito humilde uns pelos outros em toda no conhecimento de que não estamos sós
a congregação - uma atitude que as nessa luta (9); o resultado está nas mãos de
Escrituras prescrevem. O tema da humil- Deus, que, em virtude de seu destino final
dade introduz algumas orientações gerais para nós, vai nos suprir em todas as nossas
e finais. Nossa humildade nas mãos de necessidades no caminho (lO); esse Deus
Deus permite que ele nos use da forma tem todo o poder para sempre (lO).
que vai melhor desenvolver todo o nosso Notas. 8 Acerca de sede sóbrios ver
potencial. Esse é o caminho para a vida 1.13 e 4.7. Vigilantes é uma referência no-
verdadeiramente feliz, e ainda segura da tável às palavras que Jesus disse a Pedro
preocupação dele por nós. (Mt 26.41; Mc 14.38). Adversário (gr.
Notas. 5 Igualmente pode indicar a antidikos) é um termo jurídico, uma tra-
conduta exigida de outros à luz das ins- dução do termo heb. sãtãn, usado acerca
truções nos versículos precedentes, ou do inimigo das almas (e.g., Jó 1.6). Aqui,
pode ser uma retomada do pensamento de como lá, Satanás é visto como aquele que
2.13,18; 3.1,7. [Os] que são mais velhos incita sofrimento e perseguição a fim de
é a mesma palavra traduzida por presbí- testar e, se possível, destruir a fé dos fi-
teros no v. 1 e pode ser uma referência a lhos de Deus. Pedro estava familiarizado
eles. Cingi-vos é 1it.: "firmai com um nó", com esse comportamento (v. Mt 16.23;
"prende i a vós", e é bem provável que Lc 22.31). Diabo é uma palavra grega que
Pedro tenha em mente o evento registrado significa "caluniador", No seu papel de mi-
em João 13.4,5,15,16. A citação nesse ver- nar a fé, o diabo calunia a Deus diante dos
sículo é de Provérbios 3.14 na LXX (tam- homens (Gn 3.1,4,5) e os homem diante
bém citado em Tg 4.6). Jesus fala desse de Deus (Jó 1.9-11; 2.4,5). Acerca de anda
princípio em Mateus 23.12. 6 A poderosa em derredor ver Jó 1.7; 2.2. 9 Resistir é o
mão de Deus é uma expressão familiar na método recomendado para se tratar com o
LXX, geralmente associada em pensamento diabo, como em Tiago 4.7 (cf Ef 6.11-17).
à libertação do Egito (como em SI 98.1). É dos desejos da carne que a pessoa tem
Aqui ela nos lembra que Deus pode inter- de fugir (lTm 6.11; 2Tm 2.22). A palavra
vir nas questões humanas e extrair bênçãos firmes descreve a solidez da objeção mate-
do fato de aceitarmos os momentos humi- rial. Nenhuma fé superficial será suficiente
lhantes na vida, e até mesmo do sofrimen- aqui, pois é o desejo do inimigo fazer após-
to corretamente suportado. 7 Lançado tem, tatas por meio da perseguição. Apocalipse
de fato, essa ideia vívida de "arremessar". 12.11 dá mais orientações para a vitória
A razão para que não tenhamos ansiedade em tais provações. Espalhada pelo mundo
é a que Jesus nos dá, e.g., em Mateus 6.25- contrasta com o grupo de igrejas na Ásia
34; 10.28-33. Menor (1.1) a quem sua carta foi endere-
çada. 10 Ao chamado à persistência cor-
2075 1PEDRO 5

às promessas do v. 10, mas é mais provável


<
responde a doutrina da preservação e da que se refira à carta como um todo. Nela
segurança. Visto que Deus nos chamou ("em" + "ela") no original traz o mais níti-
para compartilhar da sua glória eterna em do "para dentro dela" sugerindo aplicação
Cristo, podemos no final das contas con- zelosa do crente ao seu propósito.
fiar nele para nos levar seguramente até 13 Babilônia tem sido identificada
lá (v. Fp 1.6; lTs 5.24; Jd 24). Vos há de ou com a antiga capital da Babilônia, ou
aperfeiçoar é tradução melhor do que "vos com um aquartelamento romano do Egito
aperfeiçoe" (AV): isso é uma promessa e (agora o Cairo), ou com Roma. Esta pare-
não uma oração. No lugar de aperfeiçoar a ce a mais provável - veja a Introdução.
Nvr traz "restaurar", que no grego descreve Aquela [...] também eleita geralmente é
navios sendo reparados após a batalha ou a interpretado como uma referência à igreja
tempestade. Firmar (Lc 22.32) é um termo local em que se omite o substantivo femi-
usado principalmente com relação a obje- nino grego ekklêsia. A referência seguinte
tos fisicos e pode denotar fixidez de posi- a meu filho tem suscitado a sugestão de
ção,fortificar denota solidez de propósito, que aquela é uma referência à esposa de
enquanto fundamentar tem a ideia de pro- Pedro (cf Me 1.30; lCo 9.5), mas isso é
ver fundamentos. 11 Domínio (gr. kratos, improvável. Marcos provavelmente é uma
do qual é formado o adjetivo poderosa no referência ao autor do segundo evange-
v. 6) não é a palavra usual, mas significa o lho, a cuja casa Pedro foi depois de ter
poder soberano de Deus que é garantido ao sido liberto da prisão (At 12.12). Marcos
cristão para que chegue ao alvo. acompanhou Paulo na obra missionária
(At 12.25-13.13), porém mais tarde o
5.12-14 Saudações pessoais deixou. Isso desagradou o apóstolo, que
Pedro agora faz um resumo ao declarar os levou Silas como companheiro no seu lu-
seus dois propósitos de encorajar e tranqui- gar (At 13.13; 15.36-40). No entanto, em
lizar os leitores e presta o devido tributo ao tempo Marcos reconquistou a confiança de
seu auxiliar, Silas. A salvação que ele tem Paulo (2Tm 4.11) e estava com ele, pro-
anunciado é realmente a graça de Deus em vavelmente em Roma, no fim da sua vida
ação, e assim não somente há todas as ra- (Cl 4.10; Fm 24). O historiador Eusébio
zões para permanecermos firmes nela, mas cita Papias como dizendo que Marcos com-
também toda a garantia de que seremos ca- pilou um relato escrito das memórias de
pazes de fazê-lo. Saudações finais levam a Pedro dos atos e ditos do Senhor, e já des-
carta à conclusão com a característica bên- de tempos antigos o evangelho de Marcos
ção hebraica da paz sendo enviada a todos esteve associado à igreja em Roma. Filho é
os leitores ou ouvintes cristãos. usado no sentido espiritual (cf lTm 1.2).
Notas. 12 Silvano (também na nota rnrg. 14 O ósculo de amor, ou "ósculo san-
da Nvr; algumas versões trazem "Silas") to", é mencionado no NT em diversas oca-
provavelmente é o Silas de Atos 15.22- siões (Rm 16.16; lCo 16.20; 2Co 13.12).
18.5 (cf 2Co 1.19; lTs 1.1; 2Ts 1.1). Parece ter sido usado regularmente quan-
Por meio de pode significar que Silas aju- do os cristãos se reuniam para a comu-
dou na composição da carta, ou que a le- nhão. Também pode ter sido uma prática
vou, ou as duas coisas. Fiel irmão é "o" comum entre Jesus e os seus discípulos
irmão fiel no original grego, o que sugere (v. Lc 22.48), e pode ter sido mal-inter-
que Silas era conhecido dos leitores. Se pretado por aqueles que caluniavam a fé
não, pode simplesmente destacar o seu cristã. Paz é o desejo com o qual a carta
relacionamento com Pedro. Esta [graça] termina, como começou (1.2). Entre esses
pode ser entendido como uma referência dois versículos, no entanto, o leitor já foi
1PEDRO 5 2076

esclarecido acerca de como essa paz se a pessoa que está em Cristo (cf Ef 1.3-14)
tomou possível mesmo em meio ao sofri- sempre pode conhecer a paz de Deus, pois
mento, às situações mais complicadas nos é gratuita e está disponível a todos que vos
relacionamentos pessoais e aos constantes achais em Cristo.
desafios de uma sociedade pagã. A fonte de
tal paz deve ser encontrada em Cristo (v.
Jo 14.27). Não importam as circunstâncias, David H. Wheaton
2PEDRO

INTRODUÇÃO
Quem escreveu 2Pedro? com referência a Deus (2Pe 1.3; lPe 2.9);
O autor não nos deixa dúvida acerca dessa "deixar" (2Pe 1.14; lPe 3.21 [tr. "remo-
questão. Ele diz que é "Simão Pedro, servo ção"]); "insaciáveis no pecado" (2Pe 2.14;
e apóstolo de Jesus Cristo" (1.1). Ele este- lPe 4.1 [tr. "deixou o pecado"]). Outras
ve no monte da Transfiguração com Jesus palavras que não são comuns em outros
(1.16-18) onde somente Pedro, Tiago e textos bíblicos são "fraternidade" (2Pe 1.7;
João estiveram com ele (Me 9.2-12). Ele lPe 1.22 [tr. "amor fraternal"]), a raiz de
já escreveu anteriormente aos leitores des- "testemunha ocular" (2Pe 1.16; 1Pe 2.12;
sa carta (3.1) e tem intimidade com eles 3.2) e a ideia de "acrescentar", "associar"
(3.1,8,14,17). Além disso, ele chama Paulo (2Pe 1.5; lPe 4.11). Também há seme-
de "nosso amado irmão" (3.15), e no mo- lhanças nas declarações acerca da profecia
mento da composição da carta estava espe- (2Pe 1.20,21; lPe 1.10-12), da liberdade
rando morrer logo (1.14). cristã (2Pe 2.19; lPe 2.16) e das últimas
Não há evidência alguma que sugira coisas (2Pe 3.3,10; lPe 1.5).
que qualquer desses fatos foi inserido pos- A comparação entre essa carta e os dis-
teriormente na carta para fazer com que as cursos de Pedro em Atos mostra o uso de
pessoas a aceitassem. No entanto, há uma linguagem semelhante: "piedade" (2Pe 1.6;
teoria moderna popular segundo a qual a ato 3.12); "iníquos" (2Pe 2.8; At 2.23 [tr.
carta é um "pseudepigrafe", i.e., um escri- "iníquas"]); "obtiveram" (2Pe 1.1; At 1.17
to publicado após a morte de um grande [tr. "teve parte"]). Expressões idênticas po-
homem, publicado em nome dele como dem ser encontradas em 2Pedro 2.13,15
contendo o tipo de coisas que ele teria dito ("recebendo injustiça por salário da injus-
em tal situação. Assim, ele seria honrado tiça que praticam"; "o prêmio da injusti-
se a carta lhe fosse atribuída. Os argumen- ça" e Atos 1.18 ("o preço da iniquidade").
tos que fundamentam esse ponto de vista Tanto 2Pedro 3.10 quanto Atos 2.20 recor-
são os seguintes. rem a imagens do AT do "dia do Senhor"
Primeiro, afirma-se que a linguagem e (JI2.31). Pesquisas mais recentes têm de-
o estilo não são semelhantes aos de lPedro. monstrado que as objeções baseadas na
Em alguns lugares encontramos expressões linguagem não servem mais como evidên-
complicadas em um estilo exagerado. Isso cias, como antes se supunha (v. mais deta-
se aplica especialmente ao cp. 2 em que o lhes em E. M. B. Green, 2 Peter and Jude
autor se empolga com o seu tema como ele [IVP, ed.rev. 1987] p. 16-19).
fez em lPedro 3.18-22. De todo o modo, Segundo, a autoria dessa carta atri-
lPedro foi escrita acerca de tópicos dife- buída a Pedro também é questionada por
rentes, e pode ter tido alguma contribui- alguns porque a igreja dos primeiros sécu-
ção de Silvano (IPe 5.12). Na verdade, los pareceu hesitar em recebê-la no cânon
há grandes semelhanças entre as cartas. do NT. Mas o fato que se impôs foi que
Algumas palavras e expressões ocor- finalmente ela recebeu o livro, e isso ocor-
rem somente nessas cartas e em nenhum reu num tempo em que os autores gnós-
outro lugar no NT, e.g., "virtude" usada ticos estavam fazendo circular escritos
2PEDRO 2078

definitivamente espúrios que reivindica- 1.1,16-18 e 3.1 numa carta que coloca tan-
vam a autoria de Pedro. to peso na santidade e na verdade (1.3,4,12;
Terceiro, porque 2Pedro contém uma 3.11,17). Tal engano não poderia ter sido
grande parte de Judas muitos supõem que a aceito numa igreja que desafiava os seus
carta de Judas deve ter sido o escrito ante- membros a padrões tão elevados em todos
rior. Se Pedro tivesse escrito primeiro, não os sentidos.
teria havido necessidade de Judas escrever
a sua carta. Mas, eles argumentam, Pedro, Onde e quando a
sendo um dos principais apóstolos, não carta foi escrita?
teria usado material de um escritor que, De acordo com 3.16, parece que uma série
se era irmão do Senhor, só creu depois da de cartas de Paulo já estavam publicadas
ressurreição (v. Mc 6.3; Jo 7.5). Esse argu- na época em que Pedro escreveu. Alguns
mento está longe de ser conclusivo. Judas estudiosos concluem com base em 1.12-17
pode bem ter feito um sumário da carta de que a essa altura os evangelhos também
Pedro para enviá-lo às igrejas que não a já estavam circulando amplamente, e 3.4
tinham recebido, e não há razão por que é interpretado às vezes como dando a en-
Pedro não pudesse ter usado outra fonte. tender que a primeira geração de cristãos
Tanto ele quanto Judas podem ter recorri- já tinha morrido na época em que a carta
do a material que estava sendo difundido foi escrita.
para combater os falsos mestres. Referências a 2Pedro em outros escri-
Quarto, outros argumentam que o en- tos mostram que, no mais tardar, deve ter
sino de 2Pedro leva a marca de uma data sido escrita no início do século 11.A heresia
tardia. De fato, as sementes dos ensina- atacada no cp. 2 ainda estava num está-
mentos falsos atacados nessa carta esta- gio primitivo, e isso seria um argumento
vam presentes, no que concerne à doutrina, a favor de colocar a data na parte final do
em Colossos (Cl 2.18) e, no que concerne primeiro século. Se estamos dispostos a
à moral, em Corinto (lCo 5; 6.12-20). Por aceitar a autoria de Pedro, então uma data
outro lado, o ensino de 2Pedro acerca da logo antes da morte do apóstolo (1.14),
volta de Cristo reflete (com lPe) a espe- em algum ponto da década de 60, parece a
rança da sua vinda nutrida nos dias iniciais mais provável.
da igreja. Os piedosos estão esperando A carta não nos dá pista alguma acerca
ansiosamente por ela (3.12) e somente os de onde foi escrita. Se aceitarmos que foi
"escamecedores" estão tentando descar- Pedro quem a escreveu, e que escreveu a
tá-la (3.3,4). Essa doutrina fornece aqui a sua primeira carta em Roma (v. Introdução
mesma motivação para a vida santificada de 1Pedro), então essa carta bem que pode-
que na carta anterior (cf 3.11-14 com lPe ria ter sido escrita lá também.
1.7,13,17; 4.7,13).
Mais recentemente, estudiosos conser- A quem a carta foi escrita?
vadores têm chamado atenção para o fato Com base em 3.1, poderíamos concluir
de que a teoria dos pseudepígrafes suscitou que a carta foi escrita ao mesmo grupo de
um importante problema moral. Os falsos cristãos que lPedro. Como alternativa, 1.1
mestres no período do NT tinham escrito sugere que foi escrita a um grupo mais am-
sob pseudônimos, e eles haviam sido de- plo de leitores, que teria incluído os que
nunciados por Paulo por fazerem isso (2Ts receberam a primeira carta e à qual 3.1 se-
2.2; 3.17). Gerações posteriores na igreja ria uma alusão.
também condenaram a prática. É inacre- Os receptores obviamente são as igre-
ditável que um autor sincero pudesse ter jas cristãs que estão começando a ser sola-
incluído as falsas referências pessoais de padas pela heresia gnóstica, e sabemos que
2079 2PEDRO rIA"
111.
esta se espalhou já cedo na Ásia Menor 2Pedro é como outros
(v. Colossenses). Essas igrejas continham escritos do NT?
crentes tanto judeus quanto gentios (v. Basta uma leitura rápida para descobrir que
Introdução de 1Pedro). Argumentos acerca 2Pedro contém grande parte de Judas 4-18.
dos receptores fundamentados em expres- Esse fato deu origem às seguintes teorias.
sões estranhas ou casuais na carta são tão Alguns estudiosos dizem que a carta de
inconc1usivasaqui quanto na carta anterior, Judas foi escrita primeiro. Isso, dizem, é
e.g., se 1.1 sugere leitores gentios, 3.2 pode porque Pedro faz tantos acréscimos a Judas.
ser usado na defesa de leitores judeus. Se 2Pedro tivesse sido escrita primeiro, en-
tão Judas teria acrescentado apenas alguns
A carta é uma unidade? versículos ao que já estava em circulação.
Recentes sugestões querem fazer crer que Judas poderia, no entanto, ter abreviado a
a carta consistia originariamente nos cp. 1 carta de Pedro para ir ao encontro das ne-
e 3, e que o cp. 2 foi inserido posteriormen- cessidades das igrejas às quais originaria-
te. Outros argumentam que cada capítulo mente não havia sido enviada. Outros que
circulou separadamente no início, sendo o defendem a prioridade de Judas sugerem
cp. 1 a carta anterior mencionada em 3.1, o que Pedro suavizou o tom rude de Judas,
cp. 3, as lembranças prometidas em 1.13, e tomou as suas metáforas mais nítidas e
o cp. 2, novamente, uma adição posterior. eliminou as suas referências aos apócrifos.
Outra abordagem tem sido tentar isolar se- Esses argumentos poderiam ser usados de
ções da carta que supostamente seriam da forma invertida para dizer que Judas sentiu
autoria genuína de Pedro, e afirmar que o que tinha de reescrever 2Pedro para tomar
material restante foi acrescentado por um a linguagem mais dura, desenvolver uma
editor posterior. metáfora obscura e fundamentar os argu-
Há dois argumentos de peso contra es- mentos com referências aos apócrifos.
sas teorias: (l) não há evidência alguma Outros dizem que 2Pedro foi escrita
nos MSS de que qualquer parte da carta te- primeiro, e citam os argumentos acima
nha circulado separadamente em qualquer que podem ser invertidos e usados para
época e (2) os três capítulos demonstram defender qualquer um dos lados. Alguns
uma marcante unidade de estilo. ressaltam que um homem da estatura es-
piritual de Pedro provavelmente não teria
Por que a carta foi escrita? citado de uma pessoa obscura como Judas.
Três ideias principais predominam na car- Também se tem argumentado que os peri-
ta. Em primeiro lugar, o autor já não tem gos previstos por Pedro para o futuro (2.1)
muito tempo de vida neste mundo, e tem já estão presentes em Judas por algum tem-
uma preocupação pastoral para que os seus po (4). Mas Pedro não é coerente no seu
amigos cristãos continuem crescendo no uso dos tempos verbais, e em 2.lüb-19 ele
seu discipulado; em segundo lugar, estão fala desses mestres perigosos como já ten-
se espalhando falsos ensinos que podem do começado a sua obra.
impedir esse crescimento, e por isso preci- Outros ainda sugerem que houve uma
sam ser denunciados; e em terceiro lugar, a fonte comum por trás de 2Pedro e Judas.
volta do Senhor Jesus é certa, e o seu povo Essa alternativa tem sido proposta em
precisa estar preparado para ela. Pedro to- virtude dos problemas com ambas as teo-
cou no primeiro e terceiro desses temas na rias cima. Embora isso resolva alguns
sua carta anterior. O segundo parece uma deles, ainda assim não explica por que
grande razão para escrever 2Pedro, mas é Judas se incomodou em escrever se esta-
mais bem-colocado na perspectiva do cres- va meramente repetindo tanto da sua fon-
cimento e destino cristãos. te. É muito mais provável que ele tenha
2PEDRO 2080

resumido 2Pedro para suprir as suas pró- que os cristãos cresçam (1.5-8; 3.18) e
prias necessidades. que estejam se preparando para essa volta
Para que sejamos justos, precisamos (3.11-14). Os maus desejos são uma arma-
admitir que não há resposta definitiva para dilha (1.4; 2.10,18; 3.5); em contraste com
essa questão da prioridade. A segunda car- isso, os cristãos devem ser zelosos pelos
ta de Pedro também revela semelhanças propósitos de Deus (1.5,10,15; 3.14 usam
distintivas com outras partes do NT, e essas palavras variantes da raiz "zelo"). Estamos
são citadas no comentário adiante. esperando por um novo céu e uma nova
terra em que os maus desejos serão subs-
o que Pedro está dizendo tituídos pela justiça de Deus (3.13). Em
aos seus leitores? 3.1, Pedro expressa o seu alvo como sen-
A primeira carta de Pedro foi escrita para do o de estimular o pensamento saudável
fortalecer grupos espalhados de cristãos ("mente esclarecida"), e ele o faz ao resu-
que foram desafiados a encarar irrupções mir o padrão do crescimento cristão em
esporádicas de perseguição. Já 2Pedro foi 1.5-8. As suas palavras em 1.10,11 nos dão
escrita para encorajar cristãos atacados por a tônica da carta. É o pensamento centra-
dois tipos de perigos: enganadores (2.1) do em Cristo, conduzindo à vida dirigida
que estavam espalhando falsos ensinos, por Deus, e nos capacita a manter um rela-
os quais conduziriam ao comportamento cionamento ininterrupto com ele. Isso nos
imoral (2.2,13-15; cf Ap 2.14,15,20-24; incentiva ao alvo definitivo de entrar no
Cl 2.8-3.17), e escamecedores usando o reino de Cristo quando ele voltar.
fato de que Cristo ainda não voltara como Essas verdades são tão importantes para
desculpa para a imoralidade (3.3). os cristãos contemporâneos que enfrentam
Pedro é firme no seu propósito de re- as pressões de uma sociedade multirreli-
sistir a ambos os grupos por meio do en- giosa ou os ensinos sedutores da chama-
sino concreto e afirmativo. Assim como da Nova Era quanto o eram para aqueles a
a primeira carta destacava o exemplo do quem Pedro escreveu essa carta.
Senhor Jesus, esta realça os fatos da vida Veja também o Lendo as cartas.
de Jesus (1.16-18), a fé cristã como o ca-
minho da verdade (2.2) e a certeza da volta Leitura adicional
de Jesus (3.10). À luz disso, é importante Ver Introdução de lPedro.

ESBOÇO
1.1,2 O autor saúda os seus leitores
1.3-11 Um chamado ao crescimento espiritual
1.3,4 Os meios já foram providenciados por Deus
1.5-9 O alvo é tornar-se um discípulo que dê frutos
1.10,11 O alvo máximo é a salvação completa e final

1.12-2.22 Razões para destacar essas coisas


1.12-15 O apelo pessoal de Pedro
1.16-18 A fé está fundamentada nos fatos
1.19-21 Esses eventos confirmam as palavras dos profetas
2.1-22 Precisamos estar vigilantes contra os falsos profetas
2081 2PEDRO 1

3.1-16 Um lembrete da vinda do Senhor


3.1,2 Um chamado para lembrarmos a promessa
3.3,4 Uma advertência para ignorarmos os escarnecedores
3.5-7 Uma razão para não esquecermos essa palavra
3.8,9 Razões por que Deus está demorando
3.10-13 Uma reafirmação do fato e suas consequências
3.14-16 Um chamado ao comportamento correto, apoiado por
um apelo aos escritos de Paulo

3.17,18 Um chamado à firmeza e ao crescimento; Pedro atribui a glória a Deus

COMENTÁRIO cidadania. Nesse caso, pode ser um reflexo


de Atos 10.34,35 e da constatação de Pedro
1.1,2 O autor saúda de que judeus e gentios compartilham dos
os seus leitores propósitos de Deus. É improvável que a
Como na carta anterior, Pedro começa ao carta tenha sido escrita somente a gentios
se apresentar e mostrar as suas credenciais (v. Introdução deste capítulo [2Pedro] e de
na forma seguida pelos escritores de cartas 1Pedro). Isso pode ser modéstia por parte
daqueles dias. Em seguida, afirma a iden- de Pedro, lembrando-nos de que, mesmo
tidade daqueles a quem está escrevendo, sendo apóstolo, ele ainda é pecador neces-
e lhes envia suas saudações cristãs. Dessa sitado da justiça [de] Jesus Cristo, tanto
vez, ele acrescenta um lembrete acerca de quanto os convertidos mais recentes entre
onde se pode encontrar a verdadeira graça os seus leitores. No entanto, a expressão
e paz - somente no pleno conhecimento na justiça ("mediante a justiça", NVI) pode
de Deus e de Jesus, nosso Senhor. referir-se simplesmente à imparcialidade e
1 Simão (gr. Symeon) é uma translite- equidade de Deus.
ração direta do nome hebraico como usado Nosso Deus e Salvador Jesus Cristo
em Atos 15.14. O uso de Simão e Pedro parece uma referência a Jesus somente, e
juntos (como, e.g., em Mt 16.16) nos lem- assim é uma importante evidência da cren-
bra da mudança que a graça operou na vida ça precoce na divindade de Cristo (cf 1.11;
do apóstolo. Ele se apresenta como servo e 2.20; 3.18 e Tt 2.13). Salvador como título
apóstolo (lPedro usa somente o segundo de Jesus aparece principalmente nas cartas
título, Judas usa o primeiro) e isso reforça posteriores do NT, mas era ênfase já na pre-
a sua autoridade como alguém que é so- gação inicial de Pedro (v. At 4.12; 5.31).
mente um escravo, porém plenamente co- É interessante que enquanto em 1Pedro há
missionado pelo Mestre para a sua obra. referências à salvação (1.5,9,10; 2.2) e a
Obtiveram é uma palavra que significa ser salvo (3.20; 4.18), nesta carta Pedro se
"obter por apontamento" e sugere a graça, concentra no Salvador.
e não o mérito, como fonte dessa dádiva. 2 Graça e paz vos sejam multiplicadas
Afé mencionada aqui é a habilidade dada repete 1Pedro 1.2 (v. nota ali). No pleno
por Deus para responder à graça dele com conhecimento ("pelo conhecimento", ARe e
o compromisso e a confiança pessoais (cf NVI) destaca aqui o meio pelo qual a graça
Ef 2.8,9). Igualmente preciosa traduz uma e a paz podem transbordar na vida do cren-
palavra usada somente aqui no NT. Autores te. Na igreja primitiva havia falsos mestres
da época a usavam para dar a ideia de "po- que exaltavam o conhecimento como sen-
sição equivalente", referindo-se aos que do superior à fé, por isso foram chamados
compartilhavam os direitos e privilégios da gnósticos (do gr. gnõsis, "conhecimento").
2PEDRO 1 2082

Em resposta, os autores da ortodoxia des- mas isso é menos provável. Pedro pode
tacaram a importância de os cristãos obte- estar pensando na transfiguração quando
rem epignõsis (o "pleno conhecimento"; fala da glória de Jesus, e em seu próprio
a palavra usada aqui) para combater essa chamado (Lc 5.1-11) quando menciona
heresia. Esse verdadeiro conhecimento a virtude ("bondade", NTLH) dele, mas é
nunca é mera especulação, como era o dos mais provável que ele tenha em mente o
gnósticos. Nasce e flui do relacionamento impacto completo de Jesus sobre qual-
e da experiência pessoal de Deus em Jesus, quer pessoa que vêm à fé (cf Jo 1.14). A
nosso Senhor (v. Jo 17.3; Fp 3.10). mesma palavra é usada nesse sentido em
lPedro 2.9 em que é traduzido também
1.3-11 Um chamado ao por "virtudes" (ARA, ARC, NVI) ou "exce-
crescimento espiritual lências" (BJ) ou "atos poderosos" (NTLH).
Pedro diz que a melhor resposta ao falso 4 Pelas quais se refere à glória e às vir-
ensino é que os cristãos façam progresso tudes de Cristo. Em virtude das qualidades
não somente na sua compreensão da fé da sua vida, o crente pode receber a pro-
mas também na prática dela. Isso é im- messa de compartilhar da mesma natureza
portante também porque Deus proveu os de Deus. Esse ensino está em harmonia com
crentes com todos os recursos necessários o ensino de Romanos 6, segundo o qual,
para tomar esse crescimento possível, e tal em virtude de quem Cristo é, e pela união
progresso é um meio de dar segurança aos da fé com ele, o cristão desfruta da possi-
cristãos de sua posição diante de Deus. bilidade de uma vida aqui e agora livre do
pecado e da sua contaminação - uma vida
1.3,4 Os meios já foram de crescimento constante rumo à estatura e
providenciados por Deus semelhança de Cristo. Corrupção é o pro-
Pedro está tão entusiasmado com o seu tó- cesso constante de dissolução à qual estão
pico que o estilo do grego deixa a desejar, sujeitas todas as coisas mortais. Ela entrou
mas o sentido está claro. O progresso na no mundo como resultado direto da queda
vida cristã se toma possível e prático por (Gn 3), que por sua vez surgiu da decisão
meio de dois fatores: o poder de Deus e as da humanidade de ceder às paixões. A ex-
promessas de Deus. Deus toma conhecido pressão pode ser entendida dessa forma, ou
o seu chamado à pessoa que aceita a Jesus pode ser uma referência às consequências
Cristo. Ao conhecê-lo, os crentes têm à sua inevitáveis do pecado em qualquer gera-
disposição a liberalidade de todos os recur- ção. Em qualquer um dos casos, a maneira
sos necessários para capacitá-los a realizar divina de escapar (livrando-vos) está em
o seu progresso de santificação - o cres- apegar-se às promessas dele (como as que
cimento até a estatura e imagem de Jesus. Jesus deu em Jo 15.1-18 e Jo 16, e Pedro
Esses recursos nos são garantidos exata- citou em lPe 2.9) e assim obter uma parte
mente pelas promessas de Deus. na natureza divina. (Pelas quais significa
3 Para a ["por", ARC] sua própria na medida em que você as aplica à vida).
glória e virtude é uma referência ao ca- Os pensamentos por trás dessa expressão
ráter divino e à elevada qualidade moral podem ser seguidos em versículos como
da vida e da pessoa de Jesus que atraiu João 1.12 e lJoão 3.2,3.
Pedro a segui-lo e constituiu a base da Notas. 3 Seu, com base no v. 2, prova-
pregação àqueles que não tinham visto velmente seja uma referência a Jesus. Sido
Jesus em carne. Algumas versões trazem: doadas (também no versículo seguinte) é
"para a sua ..." (como, no caso aqui, a ARA; tradução de uma palavra incomum (usada
também NTLH), considerando que esse é o somente aqui e em Me 15.45), destacando
propósito para o qual somos chamados, a gratuidade da dádiva. Vida é a abundân-
11
2083 2PEDRO 1 .11
11
11

cia da vida eterna que Jesus dá (10 10.10). tempos clássicos para descrever cidadãos
Piedade é o caráter semelhante ao de Cristo ricos financiando uma apresentação teatral
que tal vida deve produzir. ou aparelhando um navio de guerra para o
Estado ao qual pertenciam com orgulho.
1.5-9 O alvo é tornar-se um Compartilhar a vida de Deus deveria nos
discípulo que dê frutos conduzir a produzir e ser o caráter mais
Visto que os cristãos têm esses recursos (o belo e atraente para ele. Virtude (bonda-
poder e as promessas), Pedro reforça a im- de) pode sinalizar o processo de assimila-
portância (reunindo toda a diligência) do ção ao qual o autor faz alusão no v.3. No
alvo (crescimento para se tomar semelhan- v. 8, há mais uma alusão à conexão entre
te a Jesus) e mostra os passos em direção a vida cristã prática e o desenvolvimento
a esse alvo: do conhecimento (v. Jo 7.17; Cl 1.10). 6
amor Perseverança é a habilidade da pessoa em
fraternidade se apegar firmemente ao seu alvo apesar de
piedade oposição ou até perseguição (cf o uso da
perseverança mesma raiz em Hb 12.1-3, em que é tra-
domínio próprio duzido por "perseverança" e "suportou").
conhecimento 7 A fraternidade é destacada como fruto
virtude do novo nascimento em lPedro 1.22; 3.8
fé e foi o que Jesus exigiu (Jo 13.34,35). 9
Afé precisa se expressar em ação (vir- Vendo só o que está perto e é cego pare-
tude; "bondade", NTLH), e essa experiên- cem constituir uma metáfora mesclada.
cia aprofunda o nosso conhecimento de Talvez Pedro queira dizer que tais pessoas
Deus. Conhecê-lo vai aprofundar o nosso enxergam só o que está perto porque não
conhecimento de nós mesmos e dos pon- conseguem ver o suficiente no retrovisor
tos em que precisamos desenvolver o do- para lembrar os pecados dos quais foram
mínio próprio. Isso, por sua vez, requer libertas. Também estão cegas para as glo-
perseverança, que é desenvolvida quando riosas possibilidades do desenvolvimento
mantemos em vista o valioso alvo do v. 4: que existem em Cristo.
piedade. Essa atitude para com Deus faci-
lita uma nova abertura para com os nossos 1.10,110 alvo máximo é a
irmãos de fé (fraternidade), e isso por sua salvação completa e final
vez floresce e se desenvolve no amor sem Isso conduz Pedro a insistir com os seus
reservas e sem restrições - a pedra de co- companheiros cristãos a demonstrar a rea-
bertura de todo o edificio (cf Cl 3.14). Por lidade da sua própria posição diante de
isso, os cristãos enfrentam duas possibili- Deus (ao seguirem o primeiro caminho
dades surpreendentes. Por um lado, pode- esboçado acima). Dessa forma, eles serão
mos trabalhar para desenvolver essas qua- protegidos do fracasso nesta vida e recebi-
lidades de forma crescente na nossa vida, e dos entusiasticamente no reino eterno do
assim descobrir uma experiência cada vez Senhor (v. Mt 25.21-23). Pedro não está
mais profunda em que o Senhor nos con- ensinando aqui que a nossa salvação deve
duz à vida cristã frutífera. Por outro lado, ser obtida pelas boas obras, nem que pode-
podemos ignorar a provisão, mas quem rea- mos ser privados do nosso relacionamen-
ge assim enxerga só o que está perto, ou to com Cristo uma vez que genuinamente
até está cego, porque omite a maravilha do aceitamos o seu chamado. Antes, ele está
fato da nossa salvação. nos lembrando de que o desenvolvimento
Notas. 5 Associai tem a ideia de pro- de um caráter genuinamente semelhan-
visão abundante, e é um verbo usado em te ao de Cristo é a única prova (para nós
2PEDRO 1 2084

mesmos e para os outros) da nossa posição perigo do ensino e o erro da maneira de


cristã mesmo que às vezes falhemos de for- agir deles são então totalmente expostos.
ma lamentável. Isso está em concordância
com o ensino de Jesus (Mt 7.16-21), Tiago 1.12-15 O apelo pessoal de Pedro
(Tg 3.2), João (lJo 1.7-10; 3.10) e Paulo Pedro estava consciente da sua comissão
(GI5.16-25). vitalícia de encorajar os seus amigos ao
Notas. 10 Com diligência, também crescimento espiritual. Ao escrever agora,
usado no v. 5, pode ser uma referência ele está garantindo que eles terão mais um
intencional àquele versículo. Confirmar a lembrete depois da morte dele. Embora os
vossa vocação e eleição é a tensão que per- cristãos já estejam certos da verdade, é ta-
corre toda a primeira carta (v. 1Pe 1.2,17; refa regular do pregador e mestre colocá-la
cf Fp 2.12,13). Aqui também Pedro res- diante deles.
salta que nós que recebemos umafé igual- Notas. 12 Confirmados é o mesmo ver-
mente preciosa (1.1) ainda assim temos de bo usado em lPedro 5.10 ("aperfeiçoar").
evitar ser ineficientes e improdutivos no 13 Neste tabernáculo ("tabernáculo deste
serviço de Cristo. Além disso, ele sinaliza corpo", NVI) indica a natureza temporária
que a pessoa pode até mesmo cair da graça do nosso tempo na terra (cf 2Co 5.1-8).
(Jd 24 usa o verbo com o mesmo sentido). 14 A palavra deixar [o meu tabernáculo]
Aqui não é uma referência a pecar (como retrata o despir roupas, e novamente refle-
em Tg 3.2), e assim não há ensino aqui da te 2Coríntios 5.1-8. Me revelou pode ser
perfeição impecável. 11 Em vez dessa ex- uma referência a João 21.18,19, ou a uma
pectativa sombria, o cristão deve esperar revelação mais recente. 15 Partida é o gre-
ansiosamente a entrada no reino eterno go exodus, usado em Lucas 9.31 acerca da
de Cristo. Reino eterno necessariamente é morte iminente de Jesus. O seu uso aqui
uma referência à sua implantação comple- mostra que Pedro pode ter tido em mente
ta quando Jesus voltar. Será [amplamente] a experiência da transfiguração. A morte é
suprida [a entrada] traduz o mesmo verbo a partida desta forma de existência, con-
que no v. 5 acima é traduzido por "asso- duzindo os crentes à entrada (11) no reino
ciai" (v. nota ali). A recompensa generosa eterno de Cristo. Conserveis lembrança de
de Deus é um estímulo para que vivamos tudo pode ser uma referência a essa carta,
de forma generosa para ele. ou ao desejo de fornecer a Marcos as in-
formações em que ele fundamentou o seu
1.12-2.22 Razões para evangelho.
destacar essas coisas
Pedro explica em detalhes por que ele acha 1.16-18 A fé está fundamentada
que é necessário escrever dessa forma. Os nos fatos
crentes precisam de lembretes constantes A segurança de Pedro quanto ao seu pró-
da importância do progresso espiritual. prio futuro - que é também a sua razão
Pedro sabe que não tem mais muito tempo de encorajar o crescimento espiritual dos
de vida e, como testemunha ocular, quer seus leitores - está fundamentada na expe-
ressaltar que a fé que compartilhamos riência pessoal do poder e da presença do
está fundamentada nos fatos da história. Senhor Jesus, e não em fábulas inventadas
Ademais, esses eventos da vida de Jesus pela sabedoria humana. Jesus foi revelado
são um cumprimento do que os profetas no tempo e no espaço, e Pedro pode teste-
prenunciaram. A menção a eles conduz a munhar de ter ouvido a voz do Pai confir-
uma longa advertência acerca dos falsos mando o seu Filho na transfiguração.
profetas que surgirão na igreja exatamente Notas. 16 Fábulas engenhosamente
como surgiram no povo de Deus do AT. O inventadas (gr. "mitos") eram uma carac-
2085 2PEDR01 . . -
...
terística dos sistemas teológicos dos falsos cias não eram o resultado de imaginação
mestres (v. lTm 4.7; 2Tm 4.4; Tt 1.14). O especulativa humana (como o eram os mi-
poder e a vinda são palavras que podem tos do v. 16), mas de revelação divina pelo
se referir à vida de Jesus na terra. Visto seu Espírito.
que o termo "vinda" é usado no NT para 19 As interpretações de tanto mais
denotar a segunda vinda de Jesus (cf 3.12; confirmada variam. Alguns pensam que
Mt 24.3,27; lTs 3.13), alguns comentaris- o argumento é que a palavra da profecia é
tas sugerem que a expressão como um todo mais certa do que a voz do céu. Outros o
necessariamente aponta para a vinda dele entendem como acima, que o cumprimen-
"com grande poder e glória" (cf Me 13.26; to das profecias da primeira vinda faz com
14.62). Mas poder pode ser uma referên- que seja mais fácil crer naquelas que ainda
cia à transfiguração e vinda, à sua volta vão se cumprir na segunda vinda. Candeia:
(Me 9.1-13 tem uma conexão de pensa- a luz é um conhecido retrato das Escrituras
mento semelhante). Certamente a trans- (xl 119.105,130), assim como este mundo
figuração prenuncia o desvelamento da é conhecido como um lugar tenebroso sem
completa glória do Cristo divino na sua a presença da luz (Jo 8.12). O dia é uma
volta. Afirmações semelhantes de pessoas referência ao dia da volta de Cristo (3.1 O;
que disseram ter sido "testemunhas ocula- Rm 13.12). Estrela da alva (gr.phõsphoros)
res" são feitas em lPedro 5.1; Lucas 1.2; é a estrela que prenuncia a aurora como era
João 1.14; lJoão 1.1-3. Majestade é usado costume na Antiguidade se referir ao pla-
no NT somente para descrever a glória di- neta Vênus. O seu uso aqui faz uso do sim-
vina (Lc 9.43; At 19.27). 17 A voz do céu, bolismo da estrela usado acerca de Jesus
que falou tanto no batismo quanto na trans- (Nm 24.17; Lc 1.78; Ap 22.16; cf MI4.2).
figuração de Jesus (Me 1.11; 9.7), combina Em vosso coração é uma expressão difícil
as profecias de Salmos 2.7 (a coroação do em vista do fato de que a vinda de Jesus
Filho de Deus) e Isaías 42.1 (a ordenação será objetiva e visível. O ponto é que a vin-
do Servo Sofredor). Pedro omite a locução da de Cristo trará luz e alegria ao coração
final, convocando todos a ouvir a Jesus dos seus. É possível, mas menos provável,
Cristo. O monte foi santo porque foi a cena que essa expressão esteja conectada ao que
de uma revelação divina (como em Êx 3.5; segue: sabendo, primeiramente, isto: ("em
19.23). O fraseado não necessariamente vosso coração...").
sugere uma tradição que se desenvolveu 20,21 Esses versículos são de grande
em data posterior. importância para a nossa compreensão de
como as Escrituras vieram a nós. Embora
1. 19-21 Esses eventos confirmam Deus tenha usado homens, com todos os
as palavras dos profetas seus diferentes panos de fundo, interes-
Os eventos aos que Pedro se referiu eram ses e temperamentos (v., e.g., Jr 1.6,7;
considerados pelos apóstolos um cumpri- Am 7.14,15; Lc 1.1-4)para transmitira sua
mento extraordinário do AT (e.g., Mt 1.22; palavra, ao mesmo tempo ele os conduziu
2.5,6). O próprio Jesus tinha destacado isso enquanto falavam e escreviam essa pala-
para eles (Lc 22.37; 24.26,27,44; Jo 5.39) vra para nós (v., e.g., Jr 1.7; Am 7.14-16;
e Pedro o tinha ressaltado na sua pregação Mc 12.36).
(e.g. At 2.25-36; 3.22-24). Visto que tanta Sabendo, primeiramente, isto é reto-
profecia se cumpriu na primeira vinda de mado novamente em 3.3 ("tendo em conta,
Jesus, os cristãos precisam prestar atenção antes de tudo"). A profecia da Escritura é
ainda maior ao que falta ser cumprido na distinta das falsas profecias a que se faz
sua segunda vinda. Isso é especialmente alusão em 2.1. Elucidação é um substan-
verdadeiro na medida em que essas profe- tivo que não é usado em outro lugar do
>
2PEDR02

NT embora o verbo seja usado em Marcos


2086

gere formas de ação traiçoeiras. Heresias


4.34 ("explicava") acerca da explicação traduz o termo grego haireseis, que signi-
das parábolas. A declaração é interpreta- fica simplesmente "crenças escolhidas".
da às vezes como afirmando que a profe- No uso cristão, passou a se referir a uma
cia pode ser compreendida pelo indivíduo crença errada escolhida propositadamente
apenas na medida em que é conduzido (no lugar de uma crença correta revelada
pelo Espírito (alguns diriam igreja plena por Deus). Destruidoras remete a uma ex-
do Espírito) que conduzia os autores. Isso pressão idiomática hebraica que ressalta as
requer um significado estranho e artificial consequências tanto para o defensor des-
para o verbo provém e parece melhor en- ses pontos de vista quanto para quaisquer
tender que a referência é feita à origem e crenças ortodoxas que eles possam defen-
não à compreensão das Escrituras. Ou seja, der. Soberano Senhor é aplicado a Cristo
nenhuma profecia das Escrituras surge da somente aqui e em Judas 4, mas é usado
própria interpretação que o profeta faz de com referência a Deus em Lucas 2.29;
eventos passados, presentes ou futuros. Atos 4.24 e Apocalipse 6.10. Resgatou é a
Movidos como um navio impelido pelo referência ao aspecto do resgate na obra de
vento é uma imagem vívida e nítida do Cristo (cf Me 10.45 e lPe 1.18).
Espírito em ação. 2 Práticas libertinas ("caminhos ver-
gonhosos", NVI) reflete o plural grego (v.
2. 1-22 Precisamos estar vigilantes lPe 4.3 e a nota ali). Esses falsos mestres
contra os falsos profetas afirmavam que o conhecimento era supe-
Tendo destacado a importância de olhar rior à prática, assim argumentavam que
adiante com expectativa para o cumpri- não importava como os cristãos se com-
mento das profecias dadas pelo Espírito, portassem, visto que a graça era capaz de
Pedro faz uma advertência acerca das fal- perdoar todos os pecados, independente-
sas profecias que certamente aparecerão. mente de seu tamanho. Os autores do NT
Essa foi também uma característica do unanimemente condenaram esse ponto de
ensino de Jesus (e.g., Me 13.22,23). Esse vista. O caminho era um nome antigo da
capítulo deve ser comparado atentamente fé cristã (At 9.2). Em lPedro 3.16 e 4.3-5,
com Judas 4-18. Pedro encarou o fato de que os cristãos
2.1-3 O seu perigo. Os falsos profe- ortodoxos serão rejeitados pelo seu bom
tas são perigosos por três razões: (1) o seu comportamento. Aqui ele lamenta que
método é traiçoeiro e conduz a meios ver- por causa da imoralidade das seitas pseu-
gonhosos, levando a fé a ser difamada, (2) docristãs será infamado o caminho da
o seu ensino é uma completa negação da verdade. 3 A expressão farão comércio
verdade e (3) o seu destino é causar des- ressalta as conotações comerciais disso.
truição tanto a si mesmos quanto aos seus Fictícias (gr. plastoi, daí "plástico", algo
seguidores. fabricado) significa o uso de palavras
1 Povo parece, no contexto, uma refe- inventadas para se adequar aos ouvidos
rência ao povo de Deus do AT. As ativida- dos ouvintes (l Ts 2.5). Não dorme é uma
des dos falsos profetas são mencionadas metáfora muito nítida (cf a NEB: "espera
em Deuteronômio 13.1-5; IReis 13.18; por eles com olhos que não dormem"). A
22.5-23; Jeremias 5.13,31; 6.13. Afalsida- retribuição para qualquer pessoa que des-
de desses mestres pode se referir ao conteú- viar outra pode não ser rápida, mas será
do do seu ensinamento, ou à sua reivindi- distribuída adequadamente.
cação de serem mestres. Provavelmente 2.4-10a Sua condenação. Pedro de-
ambas estão implícitas. Dissimuladamente senvolve o tema do v. 3 em mais detalhes,
é um sentido implícito no verbo, que su- lançando mão de incidentes antigos na his-
111
111
2087 2PEDRO 2.
111.
tória do povo de Deus para mostrar como para provar a realidade da sua fé. 9 É por-
os seus propósitos tanto de salvação quan- que - a conclusão natural é que o Senhor
to de condenação são certos e serão atingi- sabe como guardar os injustos (o que vai
dos. Noé e Ló são citados como exemplos incluir os falsos mestres dos v. 1-3) para o
de como Deus pode libertar os que lhe per- dia do julgamento. Antes de defender esse
tencem quando os seus contemporâneos ponto, Pedro ressalta nesses exemplos o
ímpios são destruídos. O destino dos anjos aspecto positivo da misericórdia de Deus e
caídos aponta para o fato de um juízo final sua capacidade de livrar os seus. Falta essa
quando a rebeldia humana, culminando na ênfase em Judas. Acerca de livrar da pro-
indulgência desenfreada do eu e na rejei- vação ver lPedro 1.6,7; 5.10. 10 Segundo
ção da autoridade de Deus, será devida- a carne, andam em imundas paixões é lit.:
mente castigada. Juntos, os três exemplos "aqueles que andam atrás da carne com
mostram o castigo de Deus sobre o orgu- um desejo de contaminação". Uma expres-
lho, a desobediência e a imoralidade. são semelhante em Judas 7 associa isso
Notas. 4 Ver Gênesis 6.1-4 e Judas 6, em com a condenação da sodomia. Governo
que o autor chama a atenção para o orgulho é o termo grego kyriotês ("senhorio") e
como causa da queda dos anjos. Inferno (v. é interpretado mais naturalmente como o
nota mrg. NVI) na mitologia grega se refere senhorio de Cristo (cf lPe 3.15). Como
ao Tártaro, a parte inferior e mais terrível alternativa, se for uma referência à auto-
do inferno, reservada especialmente para ridade de autoridades superiores ("seres
aqueles seres super-humanos que se rebe- celestiais", NVI) mencionadas logo em
laram contra o deus supremo. As variantes seguida no v. 10, então pode ser a autori-
textuais nos MSS de abismos de trevas va- dade de uma ordem de anjos à qual Judas
riam entre a palavra que significa "buraco" 8; Efésios 1.21 e Colossenses 1.16 possi-
ou "cova" e outra palavra (siros em vez velmente se referem.
de seiros no gr.) que significa "corda" ou 2.l0b-22 O caráter deles. O apóstolo
"corrente" (v. nota mrg. NVI). A última está destaca agora a perigosa influência dessas
em harmonia com Judas 6. As imagens pessoas por meio da descrição mais deta-
são extraídas dos escritos apocalípticos. lhada da sua verdadeira natureza. Eles são
5 Acerca de Noé, ver Gênesis 6.8-9.28 atrevidos (10-12), devassos (13), imorais
e lPedro 3.20 em que também há menção (14) e gananciosos (14b-16). Ele então os
aos oito que foram salvos. Pregador (gr. condena por três razões: a) o que eles ofe-
kêrix, "arauto"; v. nota de lPe 3.19) sugere recem pode parecer atraente, mas não tem
que Noé foi comissionado para chamar os conteúdo (17); b) sua maneira de agir usa
seus contemporâneos ao arrependimento. a alavanca do prazer sensual para atrair re-
Outra obra apócrifa (o Livro dos Jubileus) cém-convertidos de volta ao mundo (18); e
descreve a pregação de Noé. 6 Jesus faz c) é totalmente enganosa, porque a "liber-
alusão ao exemplo de Sodoma e Gomorra dade" que eles oferecem só leva à escravi-
(Gn 18.16-19.28) em Mateus 10.15; dão do pecado (19). Nesse texto, a lingua-
11.23,24; Lucas 17.29. 7 Ser libertino é a gem é complicada e incomum na medida
consequência de não ter temor de Deus e em que o autor acrescenta cada vez mais
por isso se sentir completamente livre para termos para destacar a monstruosidade do
viver sem princípios, e se entregar aos de- comportamento deles. No mundo contem-
sejos pecaminosos. 8 Atormentava [NEB: porâneo, esse tipo de ensino está se toman-
"torturava"] a sua alma: originariamente do popular sob o título "Nova Era".
significava ser testado para a verificação Notas. 10b Atrevidos é o espírito que
da genuinidade. O povo de Deus que vive não se preocupa com as consequências
num mundo ímpio precisa estar preparado dos seus atos para si mesmo nem para os
2PEDRO 2 2088

outros. Arrogantes (lit. "que se agradam a palavra e deformidades ocorrem no NT


si mesmos") descreve a atitude de alguém com um prefixo de negação para descrever
estar tão obcecado pelos seus próprios de- o caráter de Cristo e o que sua igreja deve
sejos que nada mais pode ser levado em ser (v., e.g., Ef 5.27). Se regalam nas suas
consideração. Autoridades superiores próprias mistificações: "mistificação" vem
("seres celestiais", NVI) pode ser uma refe- do grego apatais, uma palavra que sugere
rência a anjos (v. nota do v. lOa acima), e prazeres que enganam e seduzem pessoas
nesse caso os falsos profetas podem estar ao pecado ("deleitando-se em seus enga-
difamando-os da mesma forma em que os nos", ARC). Alguns MSS trazem agapais
homens de Sodoma e Gomorra difamaram ("festas de fraternidade; nota mrg. NVI),
os anjos que vieram à casa de Ló (Gn 19.1- palavra que é usada em Judas 12. O cp. 11
26). Como alternativa, pode ser que eles de 1Coríntios nos conta que a festa da fra-
usaram o comportamento dos anjos caídos ternidade já precocemente havia se toma-
em Gênesis 6.1-4 como justificativa para do objeto de abuso.
a sua própria imoralidade, e difamaram os 14 Tendo os olhos cheios de adultério
anjos não caídos ao afirmar que tal com- é uma expressão condensada para dizer:
portamento era típico de todos os anjos. A "sempre à procura de uma mulher com
tradução "dignidades" (AV em inglês e ARC quem cometer adultério". A NTLH traz:
em português) mostra que a palavra po- "Não podem ver uma mulher sem a de-
dia ser usada como referência a líderes na sejarem". Visto que não estão satisfeitos
igreja. 11 Anjos, em contraste, têm o direi- em pecar eles mesmos, precisam seduzir
to de se queixar a Deus do comportamento (engodando) outros, i.e., os desviam do
desses arrogantes mortais, mas se negam caminho (cf Rm 1.32). Filhos malditos
a fazê-lo. Essa pode ser uma referência (lit, "filhos da maldição") é uma expressão
ao tipo de incidente descrito em Judas 9. hebraica (cf 1Pe 1.14). Eles rejeitaram a
12 Como tal comportamento é irracional, Cristo, que é o único que os pode redimir
como de brutos ("animais irracionais", da maldição. 15,16 Balaão é o exemplo
ARC), então o destino desses homens se pa- clássico do falso mestre que seduz e afas-
recerá com o de animais: estão feitos para ta o povo e faz isso por ganho pessoal.
presa e destruição (v. Jd 10). Pedro ressal- Números 22-24 mostra como Balaão ten-
ta a ignorância dos que criticam o estilo de tou diversas vezes profetizar contra Israel
vida cristão. Na sua destruição hão de ser pela recompensa que Balaque lhe prome-
destruídos pode ser traduzido dessa forma, teu. No final, depois de não conseguir des-
ou pode descrever as consequências finais truir Israel verbalmente, a história mostra
da corrupção que eles permitiram entrar na como ele o fez moralmente (Nm 31.16; cf
sua vida (cf NVI: "serão corrompidos pela 25.1-9; Ap 2.14). Balaão é o protótipo do
sua própria corrupção!"). 13 Recebendo falso mestre que busca a recompensa ou
[...] por salário é um jogo de palavras. popularidade ao persuadir o povo de Deus
Green sugere a metáfora adequada assim: de que os padrões de Deus podem ser di-
"sendo fraudados com a paga da fraude". minuídos. Pedro amplia aqui um exemplo
O pecado é atraente com a sua oferta de citado em Judas 11. O comportamento de
prazer, mas no final os que se entregam a Balaão é chamado de insensatez, porque é
ele já não têm nele prazer algum. A luxúria contrário a todo o bom senso.
carnal em pleno dia é uma característica 17 Afonte sem água não dá a satisfação
de devassidão extrema. Para o cristão, o que aparentemente oferece. Névoas pode
dia é o tempo para trabalhar (cf Jo 9.4; Rm ser uma referência à instabilidade dos fal-
13.13; lTs 5.7,8). Nódoas i.e., "manchas" sos mestres: o seu ensino muda com cada
denotam algo desfigurado e dolorido. Essa rajada de vento (cf Ef 4.14). A expressão
2089 2PEDRO 3

também pode sugerir o fato de que não dão cendo a segunda vinda de Jesus como mais
a "chuva refrescante" que prometem, ou uma motivação para isso. Antes de fazê-lo,
algo que não faz bem algum, mas somen- ele ressalta a certeza dessa vinda, e as ra-
te obscurece a luz. Negridão das trevas no zões por que Deus a adiou.
original é uma palavra usada nos tempos
clássicos para denotar a escuridão das re- 3.1,2 Um chamado para
giões do inferno (cf v. 4). 18 Jactanciosas lembrarmos a promessa
transmite a ideia de algo maior do que têm Pedro ressalta a unidade da sua carta com
direito a ser. Engodam é traduzido por "se- a carta anterior e a coerência do seu ensino
duzem" na NVI (v. comentário do v. 14). Os com o dos profetas e apóstolos. Em tudo
falsos mestres geralmente escolhem como isso, o seu propósito é que os seus leito-
seu alvo os recém-convertidos, os que es- res cultivem uma mente cristã (mente es-
tão prestes afugir e ainda não estão firma- clarecida). O seu coração se anima assim
dos na fé. 19 Esses mestres lhes prometem que ele se volta dos falsos mestres para o
liberdade da obrigação de servir a Cristo e tópico de alimentar o rebanho de Deus, os
de crescer nele (cf 1.3-11). Ao fazer isso, seus amados.
omitem o fato de que esse tipo de autoriza- Notas. 1 A segunda epístola pode ser
ção é apenas a velha escravidão do pecado uma referência a 1Pedro ou 2Pedro 1 e 2
novamente (cf Rm 6 e João 8.31-36). 20 (se escritos separadamente; v. Introdução
O "eles" implícito (3" pessoa plural) nes- de lPedro) ou a uma carta anterior, agora
se versículo pode se referir aos mestres perdida. Em termos gerais, esses versícu-
ou suas vítimas, possivelmente ambos. los podem descrever 1Pedro. Despertar
Ver nota acerca de conhecimento em 1.2. é a mesma palavra usada em 1.13. Mente
Estado pior pode ser uma referência às pa- esclarecida ("mente sincera", NVI) con-
lavras de Jesus em Mateus 12.45 e Lucas trasta com as ideias descritas no cp. 2. A
11.26, embora outros vejam aqui uma li- expressão tem um sentido moral ("puro")
gação com Lucas 12.47,48. 21 Melhor como também significa "não contamina-
lhes fora ..., porque se eles rejeitaram o da pelo preconceito". 2 Pedro também
caminho de Deus em Cristo não há outro ressalta a unidade do AT com os escritos
caminho de salvação (cf Hb 6.4-8; 10.26- apostólicos em 1.19-21 e I Pedro 1.10-12.
31). Caminho: ver comentário do v. 2. Da Mandamento parece referir-se ao ensino
justiça ressalta as consequências morais de Jesus como um todo elaborado pelos
de seguir a Cristo. 22 O primeiro adágio apóstolos (Jo 14.26). Senhor e Salvador é a
citado aqui vem de Provérbios 26.11, e o autoridade final por trás tanto dos profetas
segundo aparentemente vem de uma fonte quanto dos apóstolos (cf Ef 2.20). Vossos
fora da Bíblia, a antiga História de Ahikar. apóstolos é interpretado por alguns como
Pedro talvez tenha tido em mente também uma referência "àqueles que vos trouxeram
Mateus 7.6. a mensagem". É mais provável que a refe-
rência realce a sua confiabilidade do que a
3.1-16 Um lembrete sua função - "aqueles em quem confiais,
da vinda do Senhor que vos ensinaram a fé ortodoxa em con-
Pedro começou a sua carta com um enco- traste com os falsos mestres" (cf Jd 17).
rajamento aos seus leitores para crescerem
na piedade. Em 2.1, ele se desviou do as- 3.3,4 Uma advertência para
sunto porque estava tão preocupado com o ignorarmos os escarnecedores
prejuízo que os falsos mestres podem cau- Pedro sabe como o desânimo pode se es-
sar na prevenção de tal crescimento. Agora palhar rapidamente em uma comunidade,
ele volta ao tema da vida piedosa, estabele- assim ele adverte os seus leitores a que não
2PEDRO 3 2090

sejam desviados e desprezados pelos que 3.8,9 Razões por que


erroneamente argumentam que a aparente Deus está demorando
inatividade de Deus significa que ele não Visto que a promessa de Deus de outra in-
vai agir. Judas 18 atribui essa advertência tervenção nas questões humanas não pode
aos próprios apóstolos. ser rejeitada, Pedro dá dois fatores que ex-
Notas. 3 Tendo em conta, antes de plicam por que Deus está adiando tal in-
tudo é a mesma expressão de "sabendo, tervenção o quanto ele quer: o tempo não
primeiramente" em 1.20. Escarnecedores, importa para ele e ele está dando tempo
em conjunção com a referência às suas para que as pessoas se arrependam.
próprias paixões, sugere que o autor ain- Notas. 8 Não deveis esquecer contrasta
da tem em mente os falsos mestres do cp. com o esquecimento intencional dos fal-
2. Os que se entregam às suas próprias sos mestres nos v. 5,6. Para o Senhor cita
paixões sempre escarnecem de qualquer Salmos 90.4, apontando para o fato de que
incentivo a uma vida decente. 4 Os pais Deus está além do tempo, e assim não tem
pode ser aplicado aos líderes cristãos pressa alguma para trabalhar (cf Hb 2.3).
iniciais, como Estêvão, Tiago, filho de Citado por alguns como argumento a favor
Zebedeu etc., ou aos membros mais an- do universalismo, esse versículo na ver-
tigos da primeira geração de cristãos dade ensina o oposto. Mostra que após a
que morreram entre 30 e 60 d.C. Paulo segunda vinda, que dará início ao juízo de
escreveu acerca do mesmo problema em Deus, não haverá mais oportunidades para
1Tessalonicenses 4.13-18, então este não o arrependimento.
pode ser considerado um argumento a fa-
vor da composição tardia da carta. A re- 3.10-13 Uma reafirmação do
ferência ao dilúvio nos v. 5-7 toma mais fato e suas consequências
provável que o autor tinha em mente os O argumento concernente à certeza da vin-
patriarcas do Ar. da de Cristo é concluído com mais um lem-
brete do fato da sua subitaneidade. Pedro
3.5-7 Uma razão para não comenta a seguir sobre as consequências
esquecermos essa palavra que isso terá para o mundo fisico como o
Na verdade, o argumento dos escarne- conhecemos e as consequências que o co-
cedores no v. 4 é falso. Eles convenien- nhecimento disso deve produzir na vida do
temente esqueceram que Deus de fato crente. Visto que os novos céus e a nova
interveio com juízo na época do dilúvio. terra serão a casa da justiça, devemos nos
Isso prova que a estabilidade da natureza tomar familiares com ela e nos sentir em
não é argumento, que Deus não vai inter- casa nela já aqui e agora.
romper o seu ritmo estabelecido e que ele Notas. 10 Como ladrão retoma o ensi-
pode cumprir novamente as suas promes- no de Jesus em Mateus 24.42,43. Os céus
sas em seu tempo. passarão também é mencionado por Jesus
Notas. 5 Pela palavra de Deus (cf (Me 13.31). Elementos pode ser aplicado
Gn 1.3; SI 33.6; Jo 1.3; Hb 11.3). A água tanto às substâncias das quais o mundo é
foi um dos elementos criados no início, dos composto quanto aos outros corpos celes-
quais Deus formou a terra (Gn 1.2). É um tes. As obras que nela existem pode ser uma
dos meios pelos quais ele ainda a sustenta. referência às suas construções e outras rea-
6 Pela qual obviamente é uma referência lizações materiais, ou a obras no sentido
ao dilúvio (Gn 6-9).7 Os céus e terra que moral; depende de qual variante do verbo é
agora existem contrastam com os novos aceita. Serão atingidas (lit. "descobertas";
céus e terra do futuro (Ap 21.1). Acerca de "[a terra] será desnudada", NVI; "se quei-
reservados ver comentário de 2.9. marão", ARe). A formulação mais provável
11
2091 2PEDRO3 1111
....
é a que traz a ideia de desnudamento, ha- não sugere necessariamente que a coleção
vendo ainda outras possibilidades (e.g., das cartas de Paulo já estava completa,
"desaparecerão"). Então as obras seriam mas que a essa altura as comunidades
as obras da humanidade. 11 Jesus (e.g., Lc cristãs estavam começando a colecioná-
12.35-40), Paulo (Rm 13.11-14; lTs 5.3- las. Dificeis de entender pode significar
11) e Pedro (IPe 1.13; 4.7-11) usam o juízo "ambíguas", "obscuras" (NEB), ou passí-
final como um incentivo à vida piedosa. 12 veis de interpretação errônea. Paulo tinha
Apressando a vinda é preferível a "aguar- sido mal-interpretado nas mãos daqueles
dando com ansiedade a vinda" (nota mrg. que ensinavam que os cristãos não preci-
NVI) destacando a importância da atividade savam obedecer à lei (Rm 3.8). Visto que
humana de evangelismo etc. (cf At 3.19- pessoas ignorantes e instáveis se compor-
21; 17.30,31) durante o período da paciên- tam dessa forma, é tanto mais importante
cia divina. 13 Exemplos da sua promessa que o cristão cresça em conhecimento e no
são Isaías 65.17-25 e 66.22,23. estabelecimento de um firme fundamento
para a vida cristã (cf 1.3-11). A expressão
3.14-16 Um chamado ao as demais Escrituras pode ser usada para
comportamento correto, argumentar que os escritos de Paulo ou
apoiado por um apelo aos estavam incluídos nas Escrituras, ou es-
escritos de Paulo tavam excluídos delas. O ensino de Pedro
Isso conduz ao chamado renovado à san- (lPe 1.10-12; 2Pe 1.19-21; 3.2) mostra que
tidade, na expectativa da volta do Senhor as cartas de Paulo possuíam as qualifica-
e em gratidão por sua paciência. Esses ções para ser aceitas nas Escrituras (a au-
são temas acerca dos quais Paulo também toridade apostólica do autor e a condução
escreveu, e a menção a ele conduz à ad- do Espírito na composição - v. lCo 2.13;
vertência de que certas pessoas (talvez os 4.17; 2Co 13.3-10; lTs 2.13).
falsos mestres do cp. 2) estão inclinadas a
interpretar mal as suas palavras. 3. 17, 18 Um chamado à firmeza
Notas. 14 Empenhai-vos retoma o e ao crescimento; Pedro atribui
conselho de 1.10. Por serdes achados a glória a Deus
pode referir-se ao "ser desnudado" do Pedro agora leva a carta à conclusão ao
v. 10. Sem mácula e irrepreensíveis está voltar ao grande tema com o qual começou
em contraste com os mestres em 2.13 (v. (1.3-11). Ele apela aos leitores, negativa-
também Jd 24). Paz é o conteúdo de um mente, para que se guardem das pessoas
coração que está em ordem com Deus. que desprezam a lei que vão tentar arrastá-
15 Devemos ter em mente a paciência de las consigo para o erro, e, positivamente,
Deus porque ele está dando tempo para para que continuem fazendo progresso es-
que incrédulos sejam salvos e crentes te- piritual. Cristo sozinho fez tudo para tomar
nham tempo de desenvolver a sua salva- isso possível, assim é para ele que damos
ção (cf Fp 2.12,13). Como igualmente [...] toda a glória agora, como também faremos
acerca destes assuntos provavelmente se por toda a eternidade depois que ele voltar.
refere ao ensino geral acerca da segunda Assim seja!
vinda. Pode, no entanto, destacar o último Notas. 17 Prevenidos como estais
ponto, o fato de que a demora de Deus ("sabendo disso", NVI) pode significar que
se deve à paciência e não à negligência. o conselho foi dado antes do aparecimen-
Sabedoria que lhe foi dada (NVI acrescen- to dos falsos mestres (cf o tempo verbal
ta: "por Deus") é um lembrete da origem futuro de 2.1), ou mais provavelmente se
sobrenatural das cartas de Paulo (cf lCo refere ao fato de que Pedro está alertando
2.13; 3.10). 16 Em todas as suas epístolas os seus leitores antes que esse ensino os
2PEDRO 3 2092

tenha atingido. A rejeição de um código visto que ele é Senhor e Salvador. A ele é
moral para os cristãos certamente era uma uma referência a Cristo e uma afirmação
questão importante quando Romanos e inequívoca da sua divindade. No dia eter-
1Coríntios foram escritas. Firmeza vem no ("para sempre", NVI) é lit. "para o dia
da mesma raiz que Pedro usa em 1Pedro da época" quando Cristo vier para dar iní-
5.10 (cf Lc 22.32). 18 Graça e conheci- cio à eternidade. Amém possivelmente é
mento são ambos dádivas conferidas por um acréscimo posterior ao texto. "Assim
Deus que capacitam o crescimento nos seja" certamente é a resposta de um cora-
planos moral e mental. Essa carta mostrou ção crente depois da leitura dessa carta.
que o cristão deve fazer progresso para-
lelo em ambos. Jesus Cristo pode ajudar
os seus seguidores a fazer esse progresso, David H. Wheaton
1JOÁO

INTRODUÇÃO
Esse escrito é geralmente chamado de que um deles escreveu essa carta. Tais
"epístola" ou carta, mas não contém ende- críticos argumentam que há diferenças
reço nem assinatura. Aliás, faltam-lhe tan- de estilo (e.g., menos palavras compos-
tas características de uma carta que alguns tas na carta) e de teologia (e.g., um ponto
estudiosos o tomam por "epístola" apenas de vista diferente acerca do significado
como título de cortesia; eles o consideram da morte de Jesus). Enquanto essas dife-
um sermão escrito e não uma carta. Contra renças não devam ser minimizadas, não
isso, no entanto, aqui e ali aparecem tre- parecem suficientemente grandes para
chos que nos amparam em considerá-la exigir diversidade de autoria. Elas podem
uma verdadeira carta (e.g., 2.1,26), embo- ser explicadas pelos diferentes propósitos
ra uma carta com algumas características dos dois escritos e suas diferentes formas.
incomuns. Talvez a explanação seja que "A semelhança entre o evangelho e a carta
originariamente foi endereçada a mais de é consideravelmente maior do que a dife-
uma comunidade. rença entre o terceiro evangelho e Atos,
que conhecidamente vieram da mesma
Autoria pena" (1. R. W. Stott, The Letters ofJohn,
O ponto de vista tradicional é que o autor TNTC [IVP, 1988], p. 28). Raymond E.
foi João, o apóstolo, e o tom marcante de Brown, que acha provável que tenham
autoridade em toda a carta concorda com sido dois autores diferentes, concorda
isso. Nenhum outro autor foi sugerido em que a evidência é tal que o evange-
nos primeiros séculos, e talvez somente lho e as cartas podem ter sido escritas em
uma figura apostólica pudesse ter enviado épocas diferentes pelo mesmo homem
uma carta sem anexar o seu nome. O autor (The Epistles ofJohn [Doubleday, 1982],
evidentemente foi uma testemunha ocu- p. 14-30). Parece que ainda não foi produ-
lar de ao menos algumas das coisas que zido um argumento conclusivo a favor de
Jesus fez (1.1-3; a opinião de que "nós" autores diferentes.
signifique "todos os cristãos", ou que é Alguns críticos consideram "João, o
simplesmente uma ferramenta literária, presbítero" (cf 2Jo 1; 3Jo I) o autor do
é insustentável). O estilo e as formas de evangelho ou da carta (ou 2 e 3Joao ou
pensamento são semelhantes aos do quar- Apocalipse), alguns de ambos. Essa figura
to evangelho, e todos concordam em que um tanto sombria, contudo, não é um can-
deva haver alguma conexão. Geralmente didato provável. Não se pode demonstrar
se tem pensado que um mesmo autor es- que João, o presbítero, como distinto de
creveu esses dois livros, e nesse caso tudo João, o apóstolo, tenha de fato existido. E
depende da autoria daquele evangelho. se existiu, as razões para conectá-lo com
Alguns críticos, contudo, defendem que o este escrito não são convincentes, nem de
autor de um desses escritos foi discípulo perto tão convincentes quanto a antiga tra-
do autor do outro escrito; não é incomum dição que o atribui ao apóstolo.
algumas pessoas pensarem em uma "es- Visto que, então, a carta não faz afirma-
cola" de cristãos do tipo joanino, sendo ção alguma da sua autoria, e enquanto não
lJOÃO 2094

se pode provar a questão além de qualquer nismo, pois se Cristo não se tomou de fato
dúvida, a hipótese mais razoável é que ela homem e não morreu de fato por nós, en-
veio da pena do apóstolo João. tão nenhuma expiação foi feita pelos nos-
sos pecados. Assim, João enfatizou a reali-
Ocasião dade da encarnação. Ele também ressaltou
Está claro com base na carta que os seus a importância da vida correta, e parece que
leitores estavam sendo confrontados com na sua ênfase do conhecimento alguns dos
uma forma de falso ensinamento que ne- hereges diziam que a conduta não importa-
gava a encarnação. Esse erro era eviden- va muito. João deixou claro que a conduta
temente defendido por pessoas que tinham é muito importante.
estado na igreja, mas que agora tinham se Seria errado pensar, no entanto, que
afastado, pois João fala delas como pessoas essa carta é nada mais que a refutação de
que "saíram" (2.19; 4.1). No século 11, uma heresia. Há um propósito muito posi-
apareceram sistemas de pensamento ago- tivo, como o próprio João nos conta. Ele
ra chamados gnosticismo, sistemas que escreve "para que vós, igualmente, tenhais
incorporaram tanto ideias cristãs quanto comunhão conosco [...] para que a nossa
pagãs. Eles enfatizavam o conhecimento alegria seja completa" (1.3,4). Ele tor-
(gr. gnõsis), e ensinavam uma forma de na isso mais específico quando escreve:
salvação conhecida somente para os ini- "Estas coisas vos escrevi, a fim de saber-
ciados. Isso incluía a libertação da prisão des que tendes a vida eterna, a vós outros
material do corpo, e um elevar-se para que credes em o nome do Filho de Deus"
Deus. Há disputas acerca de quando o (5.13). Podemos contrastar isso com o pro-
gnosticismo surgiu. É bem provável que pósito do evangelho: "Estes, porém, foram
tenha sido muito depois da época em que registrados para que creiais que Jesus é o
essa carta foi escrita, mas ele não surgiu Cristo, o Filho de Deus, e para que, cren-
do vazio. Muitas das ideias posteriormente do, tenhais vida em seu nome" (Jo 20.31).
incluídas nos sistemas completamente de- Ao passo que o evangelho tem um propó-
senvolvidos do gnosticismo já estavam em sito evangelístico, a carta é mais dirigida
circulação no século I. a levar aos crentes segurança e verdadeiro
João estava confrontando algum siste- conhecimento das implicações da fé. "O
ma desses, um sistema que incluía a ideia evangelho contém 'sinais' que evocam a
de que a matéria é inerentemente má. fé (20.30,31), e a carta, testes mediante os
Deus, sendo bom, não podia ter nada que quais se possa julgá-la" (J. R. W. Stott, The
ver com a matéria má, afirmavam. Por isso, Letters ofJohn, TNTC [IVP, 1988], p. 26).
ele não podia ter vindo encarnado em Jesus João escreveu para aliviar os seus leitores
Cristo. Alguns argumentavam que Cristo das suas ansiedades enquanto eles desco-
só aparentemente tinha vivido em carne briam o que era ser cristão. "Na primeira
(eles eram chamados de "docetistas" do gr. epístola, João expõe três características
dokein, "parecer"). Mas provavelmente é do verdadeiro conhecimento de Deus e
demais afirmar que João estava confron- da comunhão com Deus [...] Essas carac-
tando os docetistas, pois não há nada nessa terísticas são, primeira, retidão de vida,
carta acerca de uma aparição de corpo ou segunda, amor fraternal, e terceira, fé em
algo parecido. O que ele confrontou parece Jesus como Deus encarnado" (Search the
ter sido um estágio inicial de heresia que Scriptures, 1967, p. 289). Esses três temas
depois se transformaria no docetismo. As são constantemente recorrentes.
pessoas estavam negando a encarnação, e A carta é dominada por duas grandes
João considerou isso algo muito sério. O ideias: Deus é luz (1.5) e Deus é amor
seu efeito seria tirar o coração do cristia- (4.8,16). Deus é a fonte de luz para a mente
l1li
2095 1JOÃ01 ri'
li.

e de calor para o coração dos seus filhos. culo, mas 1. A. T. Robinson defende uma
Esses filhos devem viver de acordo com data entre 60 e 65 d.C. (Redating the New
esses elevados padrões; há constante ênfa- Testament [SCM, 1976]). Isso pode estar
se nisso (e.g., 2.1-6; 3.3,6,9; 5.1-3). Mas correto, mas não podemos ter certeza.
a carta não contém admoestações rudes. Ver também o artigo "Lendo as cartas".
Antes, o autor se dirige aos seus leitores
com cuidado paternal e com preocupação Leitura adicional
amável: "filhinhos" "amados"; "Filhinhos, JACKMAN, D. The message of'John s Letters.
não vos deixeis enganar por ninguém"; BST. Inter-Varsity Press, 1988.
"Filhinhos, guardai-vos dos ídolos". THOMPSON, M. M. 1-3 John. IVPNTC.
Inter-Varsity Press, 1992.
Data STOTT, 1. R. W. 1, 2 e 3João: introdução e
Há poucos indícios que nos ajudam a da- comentário. SCB. Vida Nova, 1982.
tar o escrito. A relação com o evangelho MARsHALL, I. H. The Epistles of John.
não é definitiva, pois os estudiosos diferem NICNT. Eerdmans, 1978.
acerca de se foi escrito antes ou depois do LAw, R. The tests of life. Baker Book
evangelho. De qualquer forma, a data do House, 1968.
evangelho também é incerta. Muitos da- SMALLEY, S. S. t, 2, 3John. WBC. Word,
tam lJoão próximo do fim do primeiro sé- 1984.

ESBOÇO
1.1-4 Prólogo
1.5-2.6 Comunhão com Deus
2.7-17 O novo mandamento
2.18-27 O cristão e o anti cristo
2.28-3.10 Os filhos de Deus
3.11-18 Amai-vos uns aos outros
3.19-24 Confiança
4.1-6 O espírito da verdade e o espírito da falsidade
4.7-21 Deus é amor
5.1-5 A vitória da fé
5.6-12 O testemunho a favor do Filho
5.13-21 O conhecimento da vida eterna

COMENTÁRIO não a uma pessoa. Mas logo em seguida


João fala de ouvir, ver e até tocar, o que
1.1-4 Prólogo nos obriga a pensar em Jesus. O mesmo
Esses versículos, um período gramatical ocorre com Verbo da vida, pois embora
muito denso e complicado no grego, for- essa palavra muito bem possa significar
mam o prólogo do todo. João esboça al- a mensagem do evangelho, precisamos
gumas ideias que ele vai desenvolver no lembrar que Jesus é chamado tanto de "a
desenrolar da carta. Palavra" quanto de "a vida" (Jo l.l; 14.6),
1 A palavra grega introdutória, tradu- e lemos que "a vida estava nele, e a vida
zida por O que, é neutra. Com isso, pare- era a luz dos homens" (Jo 1.4). Essa aber-
ce referir-se à mensagem do evangelho e tura incomum, então, nos lembra tanto
1JOÃO 1 2096

do evangelho quanto daquele em quem o (Jo 14.6) e de maneira semelhante aqui


evangelho está centrado. é Jesus de quem se dá testemunho e que é
Desde o princípio mostra que o evan- proclamado. Isso poderia ser a nossa con-
gelho não era um plano B. Ele sempre es- clusão também com base na expressão com
teve no plano de Deus. João prossegue e o Pai, em que a construção é a mesma que
afirma a facticidade de tudo isso, que é o a usada em "o Verbo" em João 1.1. Pai é,
seu ponto principal. O evangelho não está sem dúvida, a designação cristã caracterís-
interessado em alguma figura mítica como tica de Deus. Ocorre 12 vezes nessa carta.
as formas obscuras dos mistérios gregos, 3 Mais uma vez João fala do que te-
mas em uma pessoa histórica genuína. Ele mos visto e ouvido. Não devemos deixar
foi visto, ouvido e tocado (cf Lc 24.39; de observar a ênfase dele em ser teste-
Jo 20.20,24-27). Há uma ênfase contínua munha ocular nem o fato de que isso está
e crescente na realidade de Jesus. João não associado a anunciamos também a vós. É
está se referindo a visões, mas à existên- impossível dar um sentido plausível a isso
cia física. Assim, ele se refere àquilo que se pensarmos em "nós" como significando
temos ouvido, o que temos visto com os "nós cristãos". Precisa significar somen-
nossos próprios olhos, o que contempla- te aqueles crentes que viram a Jesus em
mos, e as nossas mãos apalparam. "Nós" carne. Esses "anunciam" o que viram ao
(explícito ou como sujeito oculto) ocorre restante da igreja. Segue algo relacionado
com frequência nessa carta (aparece em 51 ao propósito de João: para que vós, igual-
dos 105 versículos de acordo com Brown, mente, mantenhais comunhão conosco.
Epistles of John, p. 158). A mudança do Ele imediatamente prossegue a falar da co-
sujeito de "nós" para nossas mãos talvez munhão conosco como sendo com o Pai e
seja somente um aspecto estilístico, mas com seu Filho, Jesus Cristo. A ideia básica
pode haver uma ênfase no contato físico; na comunhão (gr. koinõnia) é a de possuir
foi o que nossas mãos fizeram. algo em comum, i.e., de parceria ou com-
2 João tem o hábito de ressaltar uma partilhamento. Com frequência é usada
ideia pelo artifício mais simples, a repeti- em relação ao mundo dos negócios (cf
ção. Aqui ele começa um pequeno aparte Lc 5.10). A comunhão cristã significa com-
ao retomar vida, a última palavra do v. 1, partilhar a vida comum em Cristo por meio
e ao repeti-la três vezes em três linhas. É a do Espírito Santo. Ela vincula os crentes
respeito da vida que ele está escrevendo, uns aos outros, mas a coisa importante é
mas não vida em termos gerais. É a vida que os une também a Deus. Não devemos
que se manifestou que está em seu interes- negligenciar o fato de que a comunhão é
se; ele está se referindo claramente a Jesus contínua. Os apóstolos tinham comunhão
que podia falar de si mesmo como "a vida" com Cristo e, assim, com Deus. Então
(10 14.6). E a vida não somente se mani- levaram outros a crer e assim os condu-
festou; o autor pode dizer: nós a temos ziram à mesma comunhão (um processo
visto. Ele já falou do fato de vê-la (e vai que continua até hoje). A comunhão em
fazê-lo de novo no v. 3; ele gosta de mar- questão é a comunhão com o Pai e com
telar uma ideia). Além disso, ele e os que seu Filho, Jesus Cristo. Assim, já no iní-
estavam com ele deram testemunho dela, e cio da carta, Jesus Cristo é associado inti-
a anunciaram. Ele já falou dela como des- mamente com o Pai. Uma das ênfases de
de o princípio. Agora ele formula a mesma João é o elevado lugar de Cristo, e ele não
ideia de outra maneira quando fala da vida espera para deixar isso bem evidente.
eterna. Ele dá sequência às suas repetições 4 Há alguma ênfase tanto em "nós" quan-
quando diz que a vidafoi manifestada. No to em "escrever". A mensagem está numa
evangelho, Jesus é chamado de "a vida" forma precisa e duradoura e foi escrita
2097 1JOÃ01

por aqueles que tinham total autoridade da justiça atraente; assim como a escuri-
para escrevê-Ia. Há algum apoio nos ma- dão o é da negritude do pecado. Há uma
nuscritos para usar "vossa" alegria, mas negação enfática dupla com treva; não há
nossa alegria provavelmente está correto. treva nenhuma em Deus; ele é todo luz.
Somente quando João leva os seus amigos Provavelmente também haja aí a ideia de
ao tipo de comunhão que ele acaba de des- que nossa vida está exposta à iluminação
crever é que a sua própria alegria é com- que irradia de Deus. Nada está escondido
pleta, e, sem dúvida, o mesmo acontece dele (cf SI 90.8). Visto que ele é luz, é im-
com eles. "Vossa alegria" e "nossa alegria" portante que o seu povo "ande na luz" (7).
andam de mãos dadas. Para ambos, a ver- 1.6,7 O primeiro erro. João tem pre-
dadeira alegria vem somente da comunhão dileção por destacar o seu ponto por meio
com Deus. de suposições, e aqui ele apresenta uma
sequência de frases começando com se (6-
1.5-2.6 Comunhão com Deus 10; de novo em 2.1). Ele trata de três obs-
João deixou claro que o seu propósito táculos à comunhão, sendo que o primeiro
é levar os seus leitores à comunhão com deles se concentra na reivindicação de que
Deus e com outros crentes. Ele prossegue temos comunhão com Deus. João já disse
e deduz com base na natureza de Deus as que o seu propósito é que os seus leitores
condições para a comunhão. desfrutem dessa comunhão (3). Agora ele
1.5 Deus é luz. "Esta é a mensagem" deixa claro que só as palavras não produ-
(NVI) marca como importante o que segue; zem a comunhão com Deus. 6 Se alguém
na verdade, resume a mensagem cristã. afirma que tem essa comunhão, mas anda
Essa mensagem é derivada de outro (a ("continua andando") nas trevas, então,
mensagem que, da parte dele, temos ouvi- visto que Deus é luz, ele está mentindo
do), e não é devida ao pensamento original (cf 2.21,22). É necessário mais do que um
dos apóstolos ou de outros. O significado agradável sentimento religioso. Precisamos
de dele nos traz um problema que é recor- testar os nossos sentimentos pela revelação
rente em toda essa carta. Não há antece- que Deus nos deu. O erro que João está de-
dente óbvio. O Pai e o Filho foram ambos nunciando é o de rejeitar a luz que Deus
mencionados no v. 3 e qualquer um poderia deu na revelação feita por meio dos profe-
estar na mente do autor aqui. Talvez seja tas, apóstolos e outros, preferindo a escuri-
ligeiramente mais provável que a intenção dão dos próprios caminhos. Essa afirmação
do autor aqui seja o Filho, mas dificilmente positiva é explicada e destacada por uma
podemos dizer mais do que isso; os dois afirmação negativa: não praticamos a ver-
certamente estão intimamente associados. dade. Essa expressão incomum também é
O conteúdo da mensagem é resumido encontrada em João 3.21 (e nos rolos de
nas palavras Deus é luz (cf Jo 8.12; 9.5) às Qumran). Falamos em "dizer a verdade",
quais é acrescentada a expressão (de for- mas a verdade pode ser uma qualidade de
ma parecida com o quarto evangelho em ação tanto quanto de fala. A verdade que
que o positivo e o negativo com frequência Deus tomou conhecida precisa ser expres-
são associados dessa forma): e não há nele sa na vida dos seus servos. 7 Agora vem a
treva nenhuma (cf SI 27.1; Jo 1.4-9). Luz suposição contrária, a saber, a de realmen-
ocorre com frequência no evangelho, mas te andarmos na luz. Andar é uma metáfora
ali tende a ser associado ao Filho, e não para representar todo o modo de vida. Ela
ao Pai. Ocorre seis vezes nessa carta (1.5,7 ressalta a verdade de que o cristão deve fa-
duas vezes; 2.8,9,10). Dizer que Deus é zer progresso constante, mesmo que seja
luz é chamar a atenção para a sua retidão, um progresso comum. "Andar na luz" é
a sua justiça. A luz é um símbolo natural viver de forma reta dia após dia. Aqui isso
1JOÃ01 2098

é destacado da maneira mais intensa pos- parafraseia: "Se afirmarmos que estamos
sível: como ele está na luz (cf Mt 5.48). sem pecado"). "Ter pecado" significa mais
Simplesmente não é suficiente viver com do que "cometer pecado"; é uma referên-
os nossos olhos firmados em algum pa- cia ao princípio interior do qual os atos
drão decente, mas meramente humano; o pecaminosos são manifestações exteriores.
cristão é servo de Deus e, portanto, os seus O pecado é persistente. O pecado se apega
padrões são os padrões de Deus. O cristão ao pecador. A afirmação positiva é refor-
vive de maneira divina. Depois da negação çada por uma negativa que segue: a ver-
da comunhão com Deus para aqueles que dade não está em nós (como também nas
andam nas trevas (6), esperamos a ideia de afirmações anterior e posterior). Quando
que os que andam na luz realmente des- dizemos que não temos pecado, a nós mes-
frutam da comunhão com Deus. Em vez mos nos enganamos (certamente não en-
disso, lemos que eles mantêm comunhão ganamos a ninguém outro!), e a verdade
uns com os outros. Eles certamente terão não está em nós. A verdade é considerada
comunhão com Deus (cf v. 3), mas a for- de forma dinâmica; ela pode fixar moradia
ma que João usa para descrever isso res- nas pessoas que amam a verdade. Mas di-
salta a verdade de que a comunhão de que zer algo falso como: "Não temos pecado"
os crentes desfrutam uns com os outros é toma impossível que a verdade habite em
de grande valor. João acrescenta a isso: o nós. Falácias modernas afirmam que o
sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica pecado é uma enfermidade ou fraqueza,
de todo pecado (ou "de cada pecado"; o algo herdável ou devido ao ambiente, à
gr. pode significar ambos). A palavra pe- necessidade ou algo parecido; as pessoas
cado ocorre 17 vezes nessa breve carta chegam a considerar o pecado como sua
(17 vezes também no evangelho de João; sina, não sua culpa. Tais pessoas se enga-
os únicos escritos no NT com mais ocor- nam a si mesmas. 9 Em contraste com isso,
rências são Romanos e Hebreus). O nome podemos "confessar" os nossos pecados.
humano Jesus está associado a seu Filho, O plural é significativo: nós confessamos
o que destaca a singularidade do Salvador; pecados específicos, não simplesmente
não devemos negligenciar o significado que pecamos. E porque Deus é fiel e jus-
do nome nem do título. Purifica está no to (cf Dt 32.4; Mq 7.18-20; Rm 3.25) ele
presente contínuo; transmite a ideia de perdoa. Ele é totalmente confiável. Nada
purificação que ocorre dia após dia, não se diz acerca da maneira em que ele nos
uma purificação uma-vez-por-todas. João purifica de todo pecado, mas o v. 7 ain-
não está dizendo que os crentes atingem a da está na mente do autor. É o sangue de
perfeição da impecabilidade (cf v. 9,10), Jesus que purifica. Nada mais pode remo-
mas que quando "andam na luz" (i.e., vi- ver as nossas manchas.
vem perto de Deus) seus pecados são pu- 1.10 O terceiro erro. A pressuposição
rificados. Até os maiores santos precisam seguinte é que não temos cometido pecado.
de purificação. Essa purificação vem da Todo o tratamento de Deus com as pessoas
morte expiatória de Cristo; o sangue não se fundamenta no fato de que elas são pe-
significa a vida liberta da carne, como às cadoras que têm necessidade de salvação
vezes se tem afirmado, mas a vida entre- (cf Rm 3.23). Negar que temos pecado é
gue na morte. fazer dele mentiroso. Posto de forma nega-
1.8,9 O segundo erro. 8 João formula tiva, isso significa que a sua palavra não
de maneira bem simples o segundo erro: Se está em nós. Em muitas partes da Bíblia a
dissermos que não temos pecado nenhum, "palavra" tem uma natureza dinâmica. Ela
uma expressão incomum (encontrada tam- realiza os propósitos de Deus (cf Is 55.11).
bém em Jo 9.41; 15.22,24; 19.11; a NVI Aqueles que negam que são pecadores
assim fazem de Deus um mentiroso e mos-
2099 1JOÃ02 . . .

justa. O perdão não evita a lei moral, mas


.
tram por esse fato que a palavra eficaz de a demonstra.
Deus não está neles. 2 Cristo também é a propiciação pelos
2.1,2 A propiciação pelos pecados. nossos pecados. Algumas versões moder-
A primeira carta de João com frequência nas obscurecem o significado ao escolher
chama os seus receptores de "filhos"; aqui termos que se referem à remoção da cul-
traz o diminutivo afetivo: filhinhos meus pa ou do castigo, ao passo que a palavra
(gr. teknia; a palavra ocorre sete vezes em (gr. hilasmos) significa a remoção da ira
lJoão e uma vez, talvez duas, no restante (a tradução alternativa na nota mrg. da
do NT). Ele diz: vos escrevo para que não NVI traz: "Ele é o sacrificio que desvia a
pequeis. Anteriormente João lhes contou ira de Deus, tirando os nossos pecados...").
que ele e os que estavam com ele procla- Há a ira divina contra todo o pecado (cf
maram a mensagem para que os seus lei- Rm 1.18), e o perdão não significa ignorar
tores desfrutassem da comunhão com eles isso. A propiciação, a remoção da ira, não
(1.3), e que ele escreveu para que a sua é o significado completo da obra salvífica
alegria fosse completa (lA). Essa terceira de Cristo, mas é uma parte genuína e im-
afirmação harmoniza com aquelas porque portante dela, uma verdade que boa parte
o pecado interrompe a comunhão e des- da teologia moderna ignora. E Cristo fez
trói a alegria. Pecado e cristianismo vital ampla provisão; a sua provisão tem eficá-
são incompatíveis (cf 3.6,9; 5.18). Mas, cia para os pecados do mundo inteiro.
embora os cristãos não vivam em pecado, Aqueles que fazem objeção à ideia da
eles nunca se tomam completamente sem propiciação com frequência o fazem com
pecados nesta vida (1.8). Quanto mais nos base em que isso significa opor Jesus ao
aproximamos de Deus, mais sensível se Pai celestial. Isso, evidentemente, não é o
toma a nossa consciência e mais perce- caso. O Pai e o Filho estão unidos quanto
bemos que somos pecadores. Uma conse- a como realizar a salvação como quanto
quência paradoxal disso é que agora pas- a tudo o mais. Há uma ira divina contra
samos a apreciar o fato de que no nosso todo o mal, e se os pecadores querem ser
estado pecaminoso somos indignos de nos perdoados algo precisa ser feito acer-
aproximar do nosso grande e santo Deus. ca disso. Um aspecto do perdão de Deus
E João nos garante que temos a ajuda de está relacionado à sua ira contra o pecado
que precisamos. Quando pecamos, temos (SI 78.38), e um aspecto da obra expiató-
Advogado junto ao Pai (gr. paraklêtosi. O ria de Cristo está relacionado à ira de Deus
termo tem uma conotação legal; com fre- contra o mal. Tanto o Pai quanto o Filho
quência significa o advogado da defesa; é o consideram o pecado algo sério, e na sua
amigo na corte. "A figura é a de uma corte obra expiatória Jesus estava fazendo a
real em que o requerente precisa de alguém vontade do Pai (cf Hb 10.7).
maior do que ele, alguém a quem o rei dê 2.3-6 Obediência. 3 Agora vem o teste
ouvidos, para defender a sua causa" (J. L. pelo qual podemos saber se, apesar dos nos-
Houlden, A Commentary on the Johannine sos erros, temos um relacionamento corre-
Epistles [Black, 1973], p. 64). O seu uso to com Deus, e esse teste é se obedecemos
mostra que os pecadores não estão em aos mandamentos de Deus (novamente em
boas condições; eles estão em pecado con- v. 4; 3.22,24; 5.3; cf 5.2). Se realmente co-
tra o Pai e precisam de libertação. O seu nhecemos a Deus, isso terá enorme impac-
libertador é Jesus Cristo, o Justo. Talvez to na nossa vida diária. O conhecimento é
esperássemos aqui "o Misericordioso" ou um tema importante nessa carta; o verbo
algo semelhante, mas é ensino coerente do "conhecer, saber" (gr. ginõskõv ocorre 25
NT que Deus perdoa de uma forma que é vezes (e oida, outro verbo que também
1JOÃO 2 2100

significa "conhecer, saber", 15 vezes). O conexão. Se estamos nele desfrutamos da


conhecimento de Deus não é uma visão comunhão com ele, nós o conhecemos e
mística ou uma percepção intelectual; ele é andamos na luz. 6 Podemos estar certos
manifesto quando nós obedecemos aos seus de tudo isso se andarmos assim como ele
mandamentos. A obediência não é espeta- andou. O grego quer dizer "como ele an-
culosa, mas está na base de todo o serviço dou", mas as versões que trazem "como
cristão. 4 A qualquer um que reivindica ter Cristo andou" provavelmente estão corre-
esse conhecimento mas não obedece aos tas ("como Cristo viveu", NTLH).
seus mandamentos, João diz francamente:
é mentiroso. Ele sublinha isso ao acrescen- 2.7-17 O novo mandamento
tar: e não há verdade nele. 2.7-11 Amar e odiar. 7,8 Amados (gr.
S Em contraste, tem sido aperfeiçoado agapêtoi; "Meus queridos amigos", NTLH),
o amor de Deus naquele que guarda a sua como expressão que ocorre seis vezes nes-
palavra ("se alguém obedece à sua pala- sa carta, está em harmonia com a ênfase do
vra", NVI). Isso não quer dizer que o cris- autor no amor. Ele não detalha o que quer
tianismo é uma forma de legalismo. Quer dizer com mandamento, mas não há dúvida
dizer que Deus se revelou em Cristo que é de que se refere ao mandamento do amor
a sua Palavra (1.1; Jo 1.1), e que a vinda de (cf 4.21; Jo 15.12). Isso não é nenhuma
Cristo é um desafio a todo o nosso estilo de novidade, mas é a palavra que ouvistes.
vida. Somos desafiados a abandonar toda a Ela é fundamental para a caminhada cristã
busca de satisfação própria e a tomar sobre e por isso foi ensinada desde o início. Mas
nós a nossa cruz; nada menos do que isso sempre há algo fresco e novo nela e, assim,
será suficiente. Esperamos que João diga é um novo mandamento (cf Jo 13.34). O
algo acerca de a pessoa obediente ter em mandamento antigo tem uma nova urgên-
si a verdade de Deus. Em vez disso, vemos cia para aqueles por quem Cristo morreu.
que o amor de Deus está nessa pessoa e O mandamento foi primeiramente
não somente está nela, mas verdadeira- cumprido por Cristo (aquilo que é verda-
mente, tem sido aperfeiçoado nela. O amor deiro nele), que põe um amor semelhante
(gr. agape) é destacado em toda essa carta. no coração dos seus seguidores (e em vós).
Ocorre 18 vezes, o que é mais do que em Assim, a nossa atitude para com as outras
qualquer outro livro do NT (1Coríntios vem pessoas mostra se estamos nas trevas que
em seguida, com 14 ocorrências). Num li- se vão dissipando ou na verdadeira luz que
vro tão breve, isso é bem significativo. O já brilha. Viver no amor é andar na luz,
amor é reconhecido principalmente no au- é andar seguro, pois o amor livra o nos-
tossacrifício divino em Cristo (4.10), mas so coração de tudo que poderia nos fazer
o termo pode significar também a resposta tropeçar. O amor e a luz andam juntos.
humana ao que Deus fez; talvez o autor te- 9-11 Se alguém odeia a seu irmão, está no
nha ambos em mente aqui. O amor é visto caminho errado (pode dizer o que quiser),
na obediência, pois o amor tem prazer em um caminho que só pode conduzir à ruína,
fazer a vontade de Deus. pois o ódio cega os olhos. A repetição de
No final do versículo, João introduz um trevas é importante; não podemos deixar
conceito novo: saber que estamos nele (em de perceber a conexão entre ódio e trevas.
Deus? em Cristo? João provavelmente não 2.12-14 A família da fé. Agora o au-
faz muita diferença entre os dois nesse pon- tor traz duas sequências, ambas com um
to). Ele falou da comunhão com ele (1.3), endereçamento tríplice, Filhinhos, Pais e
de andar na luz (1.7) e de conhecê-lo (2.3), Jovens. Muita criatividade tem sido usada
mas não devemos considerar que essas se- na forma de interpretação desses termos e
jam ideias tão diferentes ou não tenham na mudança do tempo verbal de escrevo
2101 1JOÃ02

para escrevi (no gr. dos v. 13c,14). Pode-se tação passageiro a caminho da destruição.
argumentar que o conhecimento harmoni- Tudo aponta para a totalidade: o mal pode
za com os pais (os mais experientes na fé), ser encontrado em todo o mundo. 17 Em
e a força, com os jovens. Mas como todas contraste com isso, aquele, porém, que faz
as qualidades devem ser encontradas em a vontade de Deus permanece eternamen-
todos os crentes, é melhor considerar a di- te. A obediência é uma parte importante da
visão como um artifício estilístico para dar vida eterna.
ênfase. "Todos os cristãos são (por graça,
não por natureza) filhinhos em inocência 2. 18-27 O cristão e o anticristo
e dependência do Pai celestial, jovens em 2.18,19 Muitos anticristos. 18 Não há
força e pais em experiência" (C. H. Dodd, artigo antes de hora no original. João está
The Johannine Epistles [Hodder, 1946], dizendo: "Já é última hora", com o que ele
p. 38-9). Os leitores de João têm o perdão provavelmente quer dizer: "Esta é uma
dos pecados, o conhecimento de Deus, a última hora". A história humana avança
palavra de Deus permanecendo neles e a por períodos de desenvolvimento lento
vitória sobre o Maligno. até que se chegue a uma crise, uma épo-
2.15-17 Amor pelo mundo. 15 João ca é concluída, e uma nova época comece,
destaca a palavra mundo ao usá-la três ve- e dizemos: "Nunca mais o mundo será o
zes nesse versículo e mais três vezes nos mesmo". João afirma que tal última hora
dois versículos seguintes. É um conceito chegou. Ele enxerga evidências não apenas
importante nessa carta, tanto é que ocor- na vinda [do] anticristo, mas de muitos an-
re 23 vezes. Não ameis o mundo, ele diz, ticristos. A igreja primitiva esperava clara-
e alguns enxergam uma contradição aqui mente que uma poderosa figura do mal, o
com "Deus amou o mundo de tal manei- anticristo, aparecesse no final dos tempos
ra" (Jo 3.16). Mas o texto do evangelho (cf "o homem da iniquidade", 2Ts 2.3).
fala do amor de Deus por todas as pessoas, João usa o termo quatro vezes (e uma vez
enquanto este na carta está direcionado à em 2João), mas ele não está interessado no
ideia de colocar o coração no que é mun- futuro indivíduo mau. Ele se preocupa com
dano. João destaca dois pontos: primeiro, os seus leitores e ressalta para eles o fato
o amor pelo mundo nesse sentido é incom- de que o espírito do anticristo já está por
patível com o amor pelo Pai (cf Tg 4.4), e aí. A situação é igual hoje.
segundo, de todo o modo, o mundo e tudo 19 Esses muitos anticristos tinham sido
que está nele são temporários. membros da igreja. Eles tinham pertencido
16 A concupiscência da carne ("a co- à organização visível, mas João se apressa
biça da carne", NVI) aponta para a satisfa- em dizer que nenhum deles [foi] dos nossos.
ção dos nossos desejos carnais. A concu- A sua qualidade de membro tinha sido me-
piscência dos olhos ("a cobiça dos olhos", ramente exterior. Isso certamente sugere a
NVI) é o forte desejo por aquilo que se vê, doutrina da "igreja invisível", embora essa
pela forma exterior das coisas; é o desejo terminologia tenha surgido séculos depois.
pelo superficial. A soberba da vida ("a os- 2.20,21 O conhecimento da verdade.
tentação dos bens", NVI; lit. "a ostentação 20 E vós possuís unção que vem do Santo
da vida") é a altivez vazia dos apegados é uma outra forma de dizer que todos rece-
às coisas mundanas. (Compare essas três beram o dom do Espírito Santo. A expres-
coisas com as três coisas que levaram Eva são do Santo é incomum, mas não pode
a desobedecer a Deus; Gn 3.6). Nenhuma haver dúvida de que seja uma referência
delas tem a sua origem em Deus (não pro- ao Espírito Santo. O resultado é que todos
cede do Pai). Todas procedem do mundo, tendes conhecimento. (O gr. não acrescen-
esse mundo que é somente uma represen- ta "da verdade" [cf NTLH]; a variante: "e
lJOÃO 2 2102

vocês conhecem todas as coisas" tem me- é: permanecereis vós no Filho e no Pai.
nos apoio nos manuscritos"). A iluminação 25 Dessa forma, a promessa de vida eterna
dada pelo Espírito significa que no cristia- se cumpre. 26 O que os falsos mestres es-
nismo não há uma elite iluminada de quem tavam dizendo desviaria os crentes da ver-
dependem todos os outros. Todos os cren- dade. É por isso que João está escrevendo;
tes têm conhecimento. 21 João mantém em ele não permitirá que os falsos mestres ar-
mente essa verdade quando prossegue a fa- ruínem a vida dos novos convertidos que
lar do ensino central da heresia que ele está significam tanto para ele. 27 João já falou
confrontando. Mesmo que não saibamos da unção (20). É devido à iluminação con-
exatamente o que os falsos mestres ensi- cedida pelo Espírito Santo neles que os
navam, eles claramente negavam a reali- crentes têm o conhecimento que importa e
dade da encarnação. Havia falsos mestres que eles permanecem em Deus.
nos primeiros dias que apregoavam que
houve um Cristo divino que desceu sobre 2.28-3.10 Os filhos de Deus
o homem Jesus no seu batismo, mas o dei- 2.28,29 Confiança. João apela ao relacio-
xou antes da crucificação. João talvez não namento familiar com a expressão filhinhos
estava sendo confrontado por pessoas que (gr. teknia) e incentiva cada um dos seus
defendiam exatamente essa crença, mas leitores a se comportar de forma apropriada
defendiam algo parecido. à segunda vinda de Cristo e que mostre que
2.22,23 A mentira. 22 Eles afirmavam ele é nascido [melhor: "concebido"] dele.
que Jesus não é o Messias, e isso é funda- Os crentes não são simplesmente pessoas
mental. A pessoa que se desvia disso não é que estão tentando viver um pouco melhor.
confiável em qualquer outro aspecto; essa Eles foram radicalmente renovados, nasci-
pessoa é o Inimigo de Cristo; ele rejeita dos de novo. A prática habitual da bondade
tanto o Pai como o Filho. A evidência de é a evidência do que Deus fez neles.
que, em Jesus de Nazaré, Deus e a humani- 3.1-3 O que seremos. 1 A maravilha
dade estão indissoluvelmente unidos é tão de tudo isso toma conta de João. Vede, ele
forte que qualquer pessoa que não aceitar diz, vede que grande amor nos tem con-
isso está fundamentalmente desviada da cedido o Pai, a ponto de sermos chama-
verdade e é culpável de mentira radical. dos filhos de Deus. E não temos somente o
23 Sem uma visão correta do Filho não nome, João continua, mas, de fato, somos
podemos ter uma visão correta do Pai. Se filhos de Deus. Ele não nos deixa dúvida
Jesus não é de fato o Filho de Deus e não de que o chamado divino é um chamado
é um com o Pai, então não é o amor de eficaz; nós somos o que Deus nos chama.
Deus que nós vemos revelado na sua vida Isso tem uma consequência: o mundo não
e morte; nesse caso estaria visível somente nos conhece. A incompatibilidade entre o
o amor de um bom homem. É somente ao mundo e o estilo de vida cristão aparece
receber a Cristo que nos tomamos filhos de repetidas vezes nos escritos de João (e.g.,
Deus (Jo 1.12), assim que se o rejeitarmos Jo 15.18-16.4). Não se deve admirar o
não somos membros da família de Deus. fato de que o mundo não conheça os segui-
Então não temos o direito de chamar a dores de Cristo, porquanto não o conheceu
Deus de nosso Pai. a ele mesmo. Gramaticalmente, o [ele] de-
2.24-27 Permanecendo em Deus. 24 veria ser uma referência ao Pai, mas João
O que ouvistes desde o princípio aponta está se referindo claramente a Cristo. 2 O
em retrospectiva à mensagem simples do reconhecimento dele da nossa presente fi-
evangelho. Se os leitores de João a dei- liação não cega João para o fato de que o
xarem permanecer (o gr. ocorre 24 vezes melhor ainda está por vir. Quando ele se
nessa carta) neles, então o que vai ocorrer manifestar, seremos semelhantes a ele.
2103 1JOÃO 3

Gramaticalmente ele e a ele deveriam ser antes, uma transgressão provocadora da lei
referências a Deus, mas é mais comum que moral de Deus. O pecado coloca o pecador
se veja nisso Cristo. Provavelmente, no en- em oposição a Deus.
tanto, não se deve ressaltar demais esse as- 3.5-7 Cristo e o pecado são incompa-
pecto, porque quem vê o Filho também vê tíveis. 5 Cristo veio para tirar os pecados.
o Pai (10 12.45; 14.9). Ele é totalmente hostil ao mal, e nele não
3 Ver a Deus é ser transformado. A si existe pecado. 6 Isso tem efeitos sobre a
mesmo se purifica todo o que nele tem esta vida cristã, porque todo aquele que perma-
esperança, assim como ele é puro. Temos nece nele não vive pecando. Não podemos
aqui a única ocorrência da palavra espe- diluir afirmações como essa; o cristão não
rança nessa carta; a preocupação do autor faz concessões para o pecado e nunca pode
nessa carta é principalmente com a situa- ser complacente nem mesmo para com o
ção presente dos seus leitores e não a espe- pecado ocasional. Mas também temos de
rança futura dele. Mas esse trecho mostra observar que o tempo verbal presente no
que João está consciente da importância da grego com frequência tem um sentido con-
esperança. Ele fala da esperança como es- tínuo, e esse parece ser o seu significado
tando "sobre [preposição epi no gr.] ele" e aqui: "Ninguém que vive continuamen-
não "nele"; a esperança do crente tem uma te nele faz do pecado um hábito" e todo
base segura. Mais uma vez, não temos cer- aquele que vive pecando não o viu, nem o
teza se nele é uma referência a Deus ou a conheceu. João não está escrevendo acerca
Cristo; mas talvez aqui João não esteja fa- de atos individuais de pecado, mas acerca
zendo uma distinção clara entre eles. Eles de atitudes habituais. A vida que vivemos
são um nessa questão. Ele está defendendo revela a fonte da qual extraímos a nossa
o ponto de que a esperança do crente se ba- vida. 7 Defender uma outra posição é ser
seia num sólido fundamento e que isso tem enganado. Não é uma questão de pensa-
consequências para a vida cristã. Conhecer mento correto ou de amplo conhecimento
a Deus não traz complacência espiritual, ou de argumentar que o corpo não é im-
mas pureza à vida. São os puros de coração portante assim que não importa o que o
que veem a Deus (Mt 5.8). corpo faz desde que a alma seja pura. João
3.4 A necessidade da conduta corre- firmemente descarta todos esses argumen-
ta. Os falsos mestres parecem ter ensinado tos ilusórios. Aquele que pratica a justiça
que o conhecimento era mais importante éjusto.
que tudo e que a conduta era uma questão 3.8-10 Filhos do diabo. 8 O outro lado
de pequena importância. Mas João insiste dessa moeda é que aquele que pratica o pe-
em que o pecado é a evidência do relacio- cado procede do diabo. Mas pratica e vive
namento incorreto com Deus. O pecado, pecando apontam para a prática habitual.
ele diz, é transgressão da lei; a constru- João está escrevendo acerca da propensão
ção grega sugere que as duas palavras são habitual da vida. Ele continua e diz que o
intercambiáveis. A lei, aqui, certamente é propósito da vinda de Cristo foi destruir as
a lei de Deus, e a essência do pecado é o obras do diabo. Destruir não é específico;
desprezo por essa lei de Deus. É a autoafir- conta-nos que Jesus veio para destruir o
mação contra a forma revelada por Deus, diabo, mas não diz como. Mas evidente-
a preferência do egoísmo ao serviço para mente o crente não deve fazer as obras do
Deus. É improvável que João esteja se re- diabo. O seguidor de Jesus precisa tomar
ferindo à lei do AT, a Torá, pois em nenhum partido com o destruidor do diabo.
lugar ele menciona essa lei e parece estar 9 Nascido de Deus aponta para a ação
escrevendo a gentios, que não captariam divina. Há algo de sobrenatural na vida dos
facilmente essa referência. Ele quer dizer, crentes. Eles foram regenerados por nada
lJOÃO 3 2104

menos que o poder de Deus. Novamente justas em contraste com a vida ímpia de
precisamos dar ao tempo verbal presente a Caim. (Esse é o último uso das palavras as-
sua devida intensidade: Todo aquele que é sociadas à "justiça" nessa carta; a partir de
nascido de Deus não vive na prática de pe- agora, ocorrem em abundância as palavras
cado. Aliás, esse não pode viver pecando. associadas ao "amor"). Os maus não amam
João já repudiou a doutrina da perfeição da as coisas elevadas quando as veem. Estas
impecabilidade (1.8,10), e não podemos os acusam e por isso eles as crucificam.
interpretar essas palavras de forma que 13 Assim, João pode prosseguir: Irmãos,
contradigam as de 1.8,10. Mas precisamos não vos maravilheis [a ideia é: "parem de
ver que o pecado e o cristão são radical- se maravilhar"] se o mundo vos odeia. Os
mente opostos. "João está argumentando cristãos em geral têm dificuldades para
a incongruência e não a impossibilida- entender isso. Quando agem com a me-
de do pecado no cristão" (1. R. W. Stott, lhor das motivações, com amor no seu
The Letters of John, TNTC [IVP, 1988], coração pelos seus companheiros, quan-
p. 131; veja também a sua nota adicional, do não buscam nada para si mesmos, mas
p. 134-40). Caso um cristão peque, é um oferecem o presente valioso do evange-
ato totalmente contra a sua natureza. Nessa lho, o mundo não responde com gratidão.
ocasião, João apresenta uma razão para a Ele odeia os crentes.
inaptidão de o cristão pecar: o que per- 14 O contraste amor-ódio continua;
manece nele é a divina semente. É muito vida e amor andam juntos. Nós sabemos,
incomum que a metáfora seja forçada até diz João; o fato de que todos os cristãos
esse ponto (essa é a única ocorrência de se- têm conhecimento é importante, e ele res-
mente nessa carta, mas o verbo traduzido salta isso muitas vezes. Já passamos da
por nascido ocorre dez vezes). Ressalta o morte para a vida (cf Jo 5.24) é expres-
fato de que há um poder divino em ação são significativa e incomum. Os incré-
no crente. É o contínuo presente de Deus dulos vivem numa condição que só pode
ao seu povo. É possível interpretar divina ser chamada de morte. Não é o caso dos
semente no sentido de "filhos de Deus" e crentes. Os crentes escaparam da morte e
nele como significando "em Deus" (como vivem a vida que realmente é vida. O teste
entende Moffatt, por exemplo). Mas isso é pelo qual podemos saber que isso aconte-
menos provável e é rejeitado por Marshall, ceu é que amamos os irmãos. João volta
Stott e outros. 10 João conclui essa seção repetidas vezes a essa ideia. Ele a ressalta
ao contrastar os filhos de Deus com os fi- aqui com a formulação negativa corres-
lhos do diabo. O teste é se fazemos o bem pondente: aquele que não ama permanece
e amamos o nosso irmão ou não. (o verbo significa um estado constante) na
morte. 15 Isso é expresso por meio de uma
3. 11-18 Amai-vos uns aos outros declaração enfática acerca do ódio: Todo
3.11-15 O contrário do amor. 11 João aquele que odeia a seu irmão é assassino.
insiste novamente em que o amor é o pri- Jesus diz que o olhar lascivo é adultério e
meiro mandamento (desde o princípio). que a palavra raivosa viola o mandamento
Está no cerne da mensagem cristã. 12 Veja "Não matarás" (Mt 5.21,22). João segue
o que faz a falta de amor: Caim, que era esse exemplo e vai à raiz profunda das nos-
do Maligno [...] assassinou a seu irmão, sas ações. O ódio é a essência do assassí-
a consequência lógica por se negar a amar nio, e todo assassino não tem a vida eterna
(cf Mt 5.21,22). A resposta de João à per- permanente em si ("tomar a vida é perder o
gunta: e por que o assassinou? é uma críti- direito à vida", 1. R. W. Stott, The Letters of
ca penetrante da natureza humana. Não foi John, TNTC [IVP, 1988], p. 146). Isso não
nenhuma ofensa de Abel, mas suas obras quer dizer que um assassino não possa se
2105 lJOÃO 3

arrepender e encontrar o perdão. Significa nele. 18 Novamente temos o tratamento


que ninguém que nutre a atitude que leva Filhinhos, em que João os exorta ao ver-
ao assassínio possui a vida eterna. Os dois dadeiro amor. O amor não é meramente
são mutuamente exclusivos. uma questão de palavras que pronuncia-
3.16-18 O amor é prático. 16 Nós po- mos. Amar de fato e de verdade vale mais
demos conhecer o amor (no sentido espe- do que amar de palavra ou de língua.
cificamente cristão) somente por causa do
que vimos no Calvário, onde Cristo (João 3.19-24 Confiança
na verdade diz "ele", mas a ARA e a NVI João encoraja as consciências sensíveis.
["Jesus Cristo"] corretamente interpretam Os crentes devem viver diante de Deus não
isso como referência a Cristo) deu a sua com ansiedade e tremor, mas em tranquila
vida por nós. Visto que o Cristo a quem confiança.
os cristãos devem a sua inspiração mor- 19 Outro teste: nisto conheceremos que
reu dessa forma por nós, nós devemos dar somos da verdade, a única ocorrência na
nossa vida pelos irmãos. Nenhuma quali- carta em que a expressão é aplicada a pes-
dade de amor menor do que essa é exigida soas (embora seja usada em referência a
do cristão. palavras em 2.21). Significa completa e to-
17 A real entrega da vida tem sido exi- tal honestidade, e aponta para a verdade do
gida raramente (até mesmo no primeiro evangelho. Saber que somos da verdade é
século a maioria dos cristãos não foi cha- receber afirmação. 20 Se o nosso coração
mada a morrer pela sua fé). Mas o amor nos acusar isso não é a coisa importante.
tem outras expressões e é constantemente É a condenação de Deus - ou a sua apro-
necessário na vida diária. A palavra tradu- vação - que importa, e ele conhece todas
zida por recursos deste mundo (gr. bion; as coisas. Ele conhece os nossos motivos
encontrado somente aqui e em 2.16 nessa e aqueles atos de amor pelos quais talvez
carta) não é usado comumente com esse não ousemos aceitar crédito (cf Mt 25.37-
sentido; o seu significado mais comum é 40). Ele sabe que somos dele, e é isso que
"vida". Mas o significado aqui está claro. importa, não os nossos pressentimentos
Vir (gr. theõrêv significa mais do que uma e apreensões. (Uma interpretação menos
passada de olhos. A pessoa olha para o seu provável é que Deus, o Juiz, conhece todos
irmão o tempo suficiente para ter clareza os nossos delitos e vai nos castigar). 21 As
e certeza da sua situação. A expressão fe- promessas de Deus são tais que não há ra-
char-lhe o seu coração significa literal- zão para insegurança. Podemos depender
mente: "fecha as suas entranhas para ele". de Deus e ter confiança diante dele. Visto
Os gregos criam que essa parte do corpo que somos dele, não temos nada a temer.
era o local especial das emoções assim que 22 Receber respostas às nossas orações
o uso do termo indica que a pessoa estava não resulta à primeira vista do fato de que
emocionalmente envolvida. Para os gregos o nosso coração não nos condena. Mas a
em geral isso significava que a pessoa es- confiança é comum a ambos, e orações
tava irada (embora às vezes outras emo- respondidas inevitavelmente aumentam a
ções estavam em jogo). Para os cristãos, nossa confiança. Tanto "guardar" ("obede-
no entanto, essa mesma expressão trans- cer") quanto "fazer" estão no tempo verbal
mitia a ideia de alguém ser movido por contínuo. O poder na oração não resulta de
compaixão. Se alguém deixa de mostrar erupções ocasionais de obediência, mas da
compaixão, isso mostra que o amor de vida de obediência habitual. Além disso,
Deus (que na construção pode significar os crentes fazem diante dele o que lhe é
tanto o amor de Deus por nós quanto o agradável. Isso vai além de guardar os seus
nosso amor por Deus) não permanece mandamentos. Assim como no Sermão do
1JOÃO 4 2106

Monte, aqui também há uma preocupação João adverte que nem todo aquele que afir-
pelo espírito dos mandamentos; não é sufi- ma estar falando sob inspiração deve ser
ciente obedecer à letra da lei. considerado verdadeiramente inspirado. Os
23 O seu mandamento é definido em crentes não devem aceitar toda reivindica-
termos de fé e amor. O singular pode in- ção de inspiração, mas precisam provar os
dicar que "apenas uma coisa é necessária"; espíritos. Que os falsos profetas têm saído
não há uma grande lista de exigências pode bem significar que eles tinham sido
opressivas. Além disso, a fé e o amor estão membros de igreja mas deixaram a igreja
incluídos em um mandamento; eles andam (2.9). 2 O teste é a atitude para com Jesus
juntos. A fé é no nome de seu Filho, Jesus Cristo. Se o Espírito de Deus está naquele
Cristo, expressão em que o nome represen- que reivindica a inspiração ele vai confes-
ta a pessoa toda; é fé em tudo que Jesus é sar que Jesus Cristo veio em carne. Mais
e faz. A segunda parte do mandamento é exatamente, ele "reconhece a Jesus como
que nos amemos uns aos outros. O amor o Cristo vindo em carne"; o Jesus humano
e a responsabilidade recíproca dos crentes não é nada menos que o Cristo divino. Em
são dois dos grandes temas dessa carta. carne está na base da realidade da encar-
Segundo o mandamento que nos ordenou nação; não é simplesmente que Jesus as-
ressalta o fato de que Deus não está indife- sumiu a natureza humana, mas a carne (cf
rente à forma que nós vivemos. Visto que Jo 1.14; 2Jo 7). O espírito que confessa que
creiamos está no aoristo no grego, aponta Jesus Cristo veio dessa forma é de Deus.
para o ato de fé decisivo, enquanto ame- Isso não é uma descoberta humana, mas
mos está no tempo presente, significando algo que Deus revela. 3 Mas há algo como
uma atitude contínua. 24 Depois do singu- o espírito que não confessa a Jesus, i.e.,
lar do v. 23, retomamos ao plural, os seus o espírito que não reconhece que "Jesus
mandamentos. Todo aquele que os guarda Cristo veio em carne" (2); negar a encar-
permanece em Deus, e Deus, nele. Esse nação é negar a Jesus. O espírito que nega
permanecer mútuo é mais um tema carac- essa confissão não procede de Deus. Aliás,
terístico dessa carta. Como sabemos que é o espírito do anticristo. João já disse que
de fato ocorreu? Pelo Espírito que nos deu. há muitos anticristos (2.18) e apresentou
Esse Espírito é dado (não obtido ou mere- algo semelhante a uma definição: "é aque-
cido), e o Espírito dá segurança. le que nega que Jesus é o Cristo" (2.22). A
ideia aqui é semelhante: o ponto essencial
4. 1-6 O espírito da verdade acerca do anticristo é a sua recusa em re-
e o espírito da falsidade conhecer que Jesus é o Cristo que "veio em
Como os crentes podem diferenciar os carne" (2). Os leitores de João parecem ter
que são verdadeiramente inspirados dos compreendido a vinda do anticristo como
que falsamente reivindicam que o Espírito futura, mas João a enxerga como uma rea-
está neles? O problema não era novo, pois lidade presente; as diversas expressões
já na época do AT havia falsos profetas, - e, presentemente; já, e está no mundo
e também Paulo percebeu que era neces- - combinadas destacam o presente.
sário dar orientações acerca de quando a 4 Mas não há necessidade para que os
pessoa estava falando "pelo Espírito de cristãos tenham medo. Vás é enfático; os
Deus" (lCo 12.3). crentes são apresentados em forte contras-
1 Muitos falsos profetas têm saído pelo te com os anticristos. Os crentes são de
mundo afora (cf Mt 7.15; 24.11,24; At Deus e venceram. Essa breve carta traz o
13.6). As religiões da Antiguidade com fre- verbo "vencer" seis vezes, que é um nú-
quência afirmavam contar em suas fileiras mero mais elevado do que sua ocorrência
com homens possuídos pelo espírito, mas em qualquer outro livro do NT a não ser no
2107 1JOÃ04 J'A•
111.
Apocalipse (17 vezes); o tom de vitória é Se alguém amar dessa forma, isso mostra
excepcionalmente proeminente. Aqui o que esse é nascido de Deus e conhece a
verbo está no tempo perfeito, o que mostra Deus. 8 A formulação negativa ressalta o
que a vitória é mais do que uma fase pas- ponto: Aquele que não ama não conhece a
sageira; é decisiva e contínua. Ela ocorre Deus. A razão disso é uma das declarações
porque maior é aquele que está em vós do mais importantes de toda a Bíblia: Deus
que aquele que está no mundo. O primei- é amor. Isso significa mais do que "Deus
ro aquele poderia ser qualquer membro da é amoroso" ou que Deus ama às vezes.
Trindade; tudo que podemos dizer é que é Significa que ele ama não porque encontra
uma pessoa divina. O segundo aquele não objetos dignos do seu amor, mas porque
pode ser outro se não o diabo. João está di- amar faz parte de sua natureza. O seu amor
zendo que Deus é muito mais poderoso do por nós não depende do que nós somos,
que o diabo, e aqueles em quem Deus ha- mas do que ele é. Ele nos ama porque ele
bita, por consequência, vencem o Maligno. é esse tipo de Deus, porque ele é amor. 9
S Mais uma vez João repete uma palavra Esse tipo de amor não se encontra em lu-
para dar ênfase; mundo é a última palavra gar algum, e já de maneira nenhuma como
do v. 4 e ocorre três vezes nesse versículo. realização humana. Nós o conhecemos so-
É com o mundo que os seus oponentes es- mente porque Deus o manifestou quando
tão associados: eles procedem do mundo, enviou o seu Filho unigênito ao mundo.
eles falam da parte do mundo, e o mundo O seu propósito em fazer isso foi nos dar
é a plateia deles. 6 Os cristãos não devem vida. A vida no sentido completo vem a
se surpreender que tais pessoas não lhes nós somente por meio dele.
deem ouvidos. Elas estão no partido erra- 10 O real sentido do amor e a verdadei-
do. Mas os cristãos também têm os seus ra fonte da vida são discernidos somente na
ouvintes. Nós é enfático e coloca aqueles cruz. O fato não é que nós tenhamos ama-
que são de Deus em forte contraste com do a Deus. Nós nunca vamos descobrir o
os outros. Também há um contraste nos que é esse amor se começarmos pela ponta
ouvintes; os que são de Deus são coloca- humana (nós é enfático; não foi que nós
dos em contraste com aquele que não é da amamos). Mas nós o descobrimos no fato
parte de Deus. Visto que essa é a forma em de que ele nos amou e enviou o seu Filho
que o espírito da verdade e o espírito do como propiciação pelos nossos pecados.
erro (Brown traduz por: "espírito do enga- Para enxergarmos o que o amor significa
no") são conhecidos, é correto inferir que precisamos nos enxergar como pecadores,
esses espíritos vivam nas pessoas anterior- e, assim, como o objeto da ira de Deus, e
mente indicadas. ainda assim como aqueles por quem Cristo
morreu. "Longe de encontrar qualquer
4.7-21 Deus é amor contraste entre o amor e a propiciação,
O amor é muito importante para João e ele o apóstolo não consegue transmitir ideia
dá ênfase ao amor em toda essa carta. Aqui alguma de amor a qualquer pessoa a não
ele o faz ao chamar atenção para o fato de ser apontando para a propiciação" (1.
que o amor está enraizado em Deus, que é, Denney, The Death ofChrist [Hodder and
de fato, amor. Stoughton, 1905], p. 276). É um dos para-
4.7-12 Amemo-nos uns aos outros. doxos retumbantes do NT de que é o amor
7 João sublinha a ordem: amemo-nos uns de Deus que desvia a ira de Deus de nós,
aos outros com o lembrete de que o amor e de fato que é precisamente nesse des-
procede de Deus. O amor, como os cristãos vio da ira que vemos o que é o verdadeiro
o entendem, não é uma realização humana; . amor. 11 Isso tem consequências. Quando
é de origem divina, um presente de Deus. vemos que Deus ama assim, devemos
1JOÃ04 2108

nós (a palavra é enfática) também amar mentar a salvação. Então segue o permane-
uns aos outros. A fonte principal do nosso cer mútuo entre Deus e o crente.
amor por outras pessoas é o amor divino 16 Não lemos em outros lugares acerca
demonstrado por nós na obra expiatória de de "conhecer" o amor e "crer" nele (a NVI
Cristo. Os cristãos devem amar não por- traz: "confiamos nesse amor", mas o sig-
que todas as pessoas que eles encontram nificado é "temos crido"). Podemos dizer
são atraentes, mas porque o amor de Deus até que se encontra a ideia de "conhecer"
os transformou e fez deles pessoas amoro- o amor, como no v. 10, mas "crer no amor
sas. Eles devem amar agora não porque a que Deus tem por nós" é uma expressão
atratividade nas outras pessoas os estimula muito incomum. O amor de Deus nunca é
ao amor, mas porque, como cristãos, amar demonstrado de tal forma que os que pos-
faz parte da sua natureza. 12 O amor por suem uma mente mundana tenham de en-
outras pessoas é muito importante visto xergá-lo. São as pessoas de fé e as pessoas
que fica claro com base nesse fato de que é de fé somente que o enxergam. João repete
esse amor - e não o amor por Deus - que a grande ideia do v. 8: Deus é amor, e ele
mostra que Deus permanece em nós. A de- chama atenção para a conclusão de que vi-
claração segundo a qual ninguém jamais ver em amor é viver em Deus. Amar os pe-
viu a Deus (cf Jo 1.18) não nega as visões cadores nunca é uma realização humana, e
do AT (e.g. Êx 24.11). Mas essas visões onde encontramos esse amor sabemos que
eram parciais e incompletas. É em Cristo Deus está presente.
que vemos a Deus. E quando nós amamos, 4.7-21 O aperfeiçoamento do amor.
Deus vive em nós. Aliás, o seu amor é, em 17 A presença de Deus em nós é a maneira
nós, aperfeiçoado (i.e., atinge o seu propó- em que o amor é "aperfeiçoado entre nós"
sito), uma declaração surpreendente. (NRSV). Isso ocorre com vistas à confiança
4.13-16 Vivendo no amor. 13 João já (00'] no Dia do Juízo, e confiança naquele
nos contou que é "pelo Espírito" que sabe- dia é o máximo que se pode ter em con-
mos que "ele permanece em nós" (3.24). fiança. "Neste mundo somos como ele"
Ele agora acrescenta a ideia de que nós (NVI): somos filhos do Pai, e Jesus é o nos-
permanecemos nele. Ambos os aspectos so modelo. O mundo não recebeu a Cristo
são importantes, e ambos são destacados e não recebe o povo de Cristo. Mas no dia
nessa carta. 14 Como em 1.2, o autor ape- do juízo, o Juiz vai entender tudo.
la ao que temos visto. A ideia de ser tes- 18 A ideia de confiança é desenvolvi-
temunha se toma mais intensa à medida da com o repúdio pelo medo. Essa palavra
que nos aproximamos do fim da carta. O ocorre três vezes nesse versículo e o ver-
verbo "testemunhar" ocorre em 1.2, aqui bo correspondente uma vez, mas nenhum
e quatro vezes no cp. 5, enquanto o subs- dos dois termos é encontrado em outro
tantivo "testemunho" ocorre cinco vezes lugar da carta; há uma ênfase aqui no
no cp. 5. O conteúdo do testemunho é que medo. Os crentes não precisam ter medo,
Deus enviou o seu Filho como Salvador pois o perfeito amor lança fora o medo.
do mundo (uma expressão encontrada so- O medo e o amor são incompatíveis. O
mente aqui e em Jo 4.42 no NT). Salvador medo, João continua, "supõe castigo"
cobre todos os aspectos da obra de Cristo (NVI), mas o perfeito amor de Deus nos
pelos pecadores, e mundo engloba a to- encoraja. O seu amor nos assegura de que
talidade da raça. É uma grande salvação. fomos salvos, não castigados. Quem tem
15 Mas nem todos são salvos; o ato expia- medo mostra, com isso, que não foi aper-
tório de Cristo é adequado para o mundo feiçoado no amor (o aperfeiçoamento do
todo, mas é necessário confessar que Jesus amor traz confiança até mesmo no dia do
é o Filho de Deus se alguém quer experi- juízo; v. 17).
2111 lJOÃOS

5.13-21 O conhecimento oração intercessora. João distingue entre


da vida eterna pecado que não é para morte e pecado que
O evangelho de João foi escrito para que é (embora ele não diga qual é a diferença).
os seus leitores pudessem crer e assim ter Ele começa com a orientação segundo a
vida (Jo 20.31). Em contraste com isso, qual quando vemos um irmão cometer pe-
essa carta foi escrita a leitores já crentes cado que não é para morte devemos orar
com o propósito de lhes dar segurança, por ele. Deus ouvirá a oração e lhe dará a
a certeza de que eles têm a vida eterna. vida. Se ele deve receber a vida então até
João ressalta isso ao conduzir a sua carta esse ponto não era cristão. Ele não estava
à conclusão. vivo mas morto nos seus "delitos e peca-
5.13-15 Confiança. 13 Essa carta foi dos" (Ef 2.1), e em resposta à oração Deus
escrita a vós outros que credes; não é um lhe dá vida. Devemos considerar o pecado
folheto evangelístico, mas uma carta a para morte como um estado e não um ato;
cristãos. Muito se escreveu na carta acer- nas Escrituras não há nenhum ato especí-
ca do conhecimento, e agora percebemos fico que as pessoas façam que resulte em
que o todo foi escrito afim de saberdes que morte, mas há um estado de pecado, um
tendes a vida eterna. A certeza da salvação estado de rebelião contra Deus, que João
é importante, tão importante que originou em outro lugar chama de "permanecer na
toda essa carta. Esse é o único lugar na car- morte" (3.14). Jesus advertiu que "não
ta em que o autor fala de crer em o nome de haverá perdão" para qualquer pessoa que
Jesus, i.e., na sua inteira pessoa, em tudo blasfemar contra o Espírito (Lc 12.10), e é
que o nome representa. esse tipo de coisa que o autor tem em men-
14 João prossegue agora para a con- te aqui. João acrescenta que ele não está
fiança na oração. Ele enxerga a oração dizendo que se ore acerca do pecado que
como tendo um amplo escopo pois ele leva à morte (embora não diga explicita-
fala de pedir alguma coisa, mas imediata- mente que não se ore por isso). Isso não
mente especifica isso com segundo a sua significa que devamos tentar calcular quan-
vontade. A oração não é um artificio para do podemos e quando não podemos orar
induzir Deus a mudar de ideia e fazer o pelos outros. É uma advertência severa de
que nós queremos. Precisa ser apresentada que o pecado condena as pessoas. 17 Toda
em acordo com a sua vontade se queremos injustiça é pecado. Não devemos levar o
que seja eficaz. Quando é apresentada des- pecado na brincadeira. Mas há a possibi-
sa forma, Deus nos ouve. Em outros textos lidade de o crente cometer um pecado que
bíblicos aprendemos que a oração deve ser não o exclua da categoria dos salvos.
feita com fé (Me 11.24), no nome de Jesus 5.18-21 O conhecimento dos cren-
(Jo 14.14), apresentada por aqueles que tes. 18 Agora seguem três declarações em
permanecem em Cristo (Jo 15.7), que per- sucessão introduzidas por: Sabemos. A
doaram os que lhes ofenderam (Me 11.25); primeira é: Sabemos que todo aquele que
deve ser acompanhada de obediência (LJo é nascido de Deus não vive em pecado.
3.22) e não deve ser para satisfação dos Novamente se trata da atitude habitual. A
próprios desejos (Tg 4.3). Tudo isso está razão é que todo aquele que é nascido de
incluído na oração segundo a vontade de Deus é guardado por Aquele que nasceu
Deus. 15 Da ideia de que Deus nos ouve de Deus, i.e., Jesus Cristo. Em harmonia
prosseguimos para as consequências, a sa- com isso, o Maligno não lhe toca, não faz
ber, que ele ouve os nossos pedidos. contato eficaz com ele. 19 A segunda de-
5.16,17 A oração pelos transgresso- claração diz respeito à origem dos crentes;
res. 16 Uma mudança abrupta leva ao per- eles são de Deus ("filhos de Deus", NIV [em
dão dos pecados que pode ser gerado pela inglês]). Em contraste com isso, o mundo
lJOÃO 5 2112

inteiro jaz no Maligno. Esse é um verbo mento mais íntimo possível. Estar "no"
incomum em tal conexão e talvez aponte Pai é estar "no" Filho. João continua: Este
para a impotência do mundo sob o domí- é o verdadeiro Deus e a vida eterna. Mais
nio de Satanás; talvez, também, para a sua uma vez, não é fácil perceber se ele quer
inércia, para a sua recusa de se levantar dizer o Pai ou o Filho, mas eles estão tão
contra o seu senhor. próximos que há pouca diferença. Para as
20 A terceira declaração da trilogia nos pessoas do mundo antigo, havia muitos
direciona à encarnação: o Filho de Deus deuses. Mas João considera a todos eles
é vindo. Há alguma ênfase na atualidade falsos. Há apenas um verdadeiro Deus, e
da vinda (gr. hêkei transmite "a ideia de temos vida eterna nele.
ter vindo no passado e de ainda estar pre- 21 Ao concluir, João usa novamente
sente", R. E. Brown, The Epistles ofJohn o diminutivo afetivo: Filhinhos. Em vista
[Doubleday, 1982], p. 623). O Filho nos de toda a discussão anterior é improvável
deu entendimento. A fé cristã não é um que devamos entender ídolos no sentido
empecilho para a atividade intelectual, de imagens usadas na adoração. O termo
mas um estímulo para o pensamento cor- significa "falsos deuses". Os leitores de
reto. O propósito disso é reconhecermos João receberam muitos presentes de Deus,
o verdadeiro, e não somente o conhece- incluindo o "entendimento" (20). Que en-
mos mas estamos no verdadeiro, que é tão se mantenham distantes de todos os
explicado mais com: em seu Filho, Jesus falsos deuses.
Cristo. Como com frequência nessa carta,
o Pai e o Filho são vistos no relaciona- Leon Morris
2 e 3JOÃO

INTRODUÇÃO
Essas breves cartas, os dois livros mais que contrasta com 3João). A maioria dos
breves do NT, não eram citadas nem men- estudiosos modernos considera a carta um
cionadas com frequência nos primeiros escrito para uma igreja. O problema parece
tempos do cristianismo, o que toma difi- insolúvel com a informação que temos à
cil resolver problemas como data, autoria disposição, embora talvez seja um pouco
e questões semelhantes. Ambas afirmam mais provável que a carta seja dirigida a
ter sido escritas pelo "presbítero", mas não um indivíduo; parece realmente pouco sig-
há descrições mais detalhadas. Às vezes nificativa para uma congregação.
se argumenta que houve um "presbítero Essa carta parece refletir algo do mes-
João" no cristianismo primitivo, distinto mo falso ensinamento que estava por trás
do apóstolo, e que ele escreveu essas duas de lJoão. Assim, logicamente teria sido
cartas. Mas ainda não se provou que esse escrita para colocar os leitores em alerta
"presbítero João" tenha existido. Além dis- contra essa heresia. Claramente havia al-
so, naquela época, tanto quanto sabemos, gum perigo que os falsos mestres fossem
nunca se disse de nenhuma dessas cartas recebidos e que assim as suas doutrinas se
que tivesse sido escrita por outra pessoa espalhassem. O presbítero escreveu para
que o apóstolo João. A linguagem das duas prevenir isso. Alguns autores associam
é semelhante à da primeira carta e do quar- 3João com a mesma situação. Ela se ocupa
to evangelho. No estado presente do nos- com a hospitalidade para com pregadores
so conhecimento, parece melhor aceitar o itinerantes, e o Diótrefes, que estava se
ponto de vista tradicional e considerar o negando a receber pessoas recomendadas
apóstolo João o seu autor. pelo presbítero, pode ter surgido dentre
A segunda carta de João é endereçada os falsos mestres por trás de 2João. Mas
"à senhora eleita e aos seus filhos", e há isso é um tanto especulativo e precisamos
controvérsias quanto a se isso se refere a lembrar que, apesar das posições de alguns
uma senhora individual ou se é uma forma eruditos, não há indicação de que Diótrefes
simbólica de se referir à igreja. Se a esta, tenha defendido outras posições a não ser
os "filhos" seriam os membros da congre- o ensino ortodoxo. Tem sido sugerido até
gação. Os argumentos principais a favor de que Diótrefes era ortodoxo e que o autor
uma senhora individual são que é a forma dessa carta não o era! Esse crítico argu-
mais natural de interpretar as palavras, que menta que é por isso que os dois estavam
o conteúdo é relativamente pouco impor- em desacordo. Essas conexões não pare-
tante para ser dirigido a uma congregação cem ter fundamento sólido. Não podemos
e que "em casa" (lO) parece uma referên- estar certos de nada a não ser de que Gaio
cia à casa de uma família específica. Em estava sendo encorajado e confirmado em
apoio ao ponto de vista de que a carta foi face da fofoca hostil e das ações hostis de
destinada a uma igreja, é frisado que o tó- Diótrefes. O presbítero tomaria as devidas
pico da carta é mais adequado para uma providências no tempo oportuno. Há muito
igreja do que para um indivíduo, e que pouco em que se basear para estimar a data
faltam à carta características pessoais (no desses escritos (v. comentário da data de
2e 3JOÃO 2114

lJoão). A maioria dos estudiosos concor- na saudação é incomum no NT (encontrada


da em que elas datam do mesmo período e em outros livros bíblicos somente em I e
é comum considerar isso como não muito 2Timóteo). Fortalece a ideia em graça que
distante do tempo de lJoão. aponta para a gratuidade do presente de
Ver também artigo "Lendo as cartas". Deus em Cristo. Também é incomum que
se diga que essas qualidades estarão co-
Leitura adicional nosco; numa saudação se espera a expres-
Ver em lJoão. são: "convosco". Essa é a única saudação
do NT formulada dessa maneira. Todos
igualmente precisam de graça, miseri-
2JOÃO córdia e paz. Jesus é chamado de o Filho
COMENTÁRIO do Pai (uma expressão que só se encontra
aqui no NT). Ele não deve ser imaginado
1-3 Saudação isolado do Pai.
Essa é a abertura comum de uma carta do
primeiro século. 1,2 O autor se autodeno- 4-6 O mandamento do amor
mina o presbítero ("ancião", ARe), o que 4 O autor teve grande alegria (fiquei sobre-
pode ser uma indicação da sua idade ou modo alegre) em descobrir que diversosfi-
possivelmente de uma posição oficial na lhos da senhora eleita estavam andando na
igreja. Ele escreve à senhora eleita. Um verdade, uma expressão que é praticamen-
ou ambos os termos gregos podem ser no- te equivalente a "vivendo a vida cristã". O
mes próprios, o que abre caminho para vá- fato de ter sido formulado assim mostra o
rias possibilidades: "Electa, a senhora", "a destaque que o autor dá à verdade. Seguir
eleita Kyria" ou "Electa Kyria". Mas "a se- a verdade não é simplesmente uma opção
nhora eleita" provavelmente esteja correto. escolhida por algumas pessoas como algo
Se era uma pessoa ou uma igreja é questão desejável, mas uma resposta à ordem do
disputada (v. a Introdução). O presbíte- Pai. Seguir a verdade certamente é algo
ro afirma que ele (o eu é enfático) ama a atraente, mas não é para a atratividade
senhora e seus filhos na verdade. Ambos, que João está chamando a atenção aqui.
amor e verdade, são bem proeminentes Em três versículos aqui temos a palavra
nessa abertura (amor, ou o verbo "amar", "mandamento", ou como substantivo ou
ocorrem seis vezes nos primeiros seis versí- como verbo, quatro vezes. É a repetição
culos, e verdade, cinco vezes nos primeiros para dar ênfase que já vimos em lJoão e
quatro versículos). Observe a sequência: a percebemos novamente nesta carta. 5 O
quem eu amo na verdade (...] por causa da presbítero não ordena, mas diz: peço-te,
verdade. A verdade como João a entende que é a linguagem da cortesia na solicita-
conduz ao amor. A verdade pode ser co- ção. Ele não está escrevendo mandamento
nhecida; ela permanece nos crentes e neles novo, senão o que tivemos desde o princí-
estará para sempre. É dificil imaginar que pio (cf lJo 2.7). A ordem para amar, que
a verdade descrita dessa forma possa ser o nosso autor expressa imediatamente, é
separada do nosso Senhor Jesus Cristo que um mandamento antigo; desde o início do
disse: "Eu sou (00'] a verdade" (10 14.6). caminho cristão, os seus adeptos estiveram
Não podemos negligenciar a conexão entre unidos pelo vínculo do amor. O autor não
o amor cristão e a verdade cristã. Alguém fala dele como também sendo novo (como
disse certa vez que a comunidade do amor em lJoão). Ele se contenta em destacar a
é tão ampla quanto a comunidade da verda- obrigação dos cristãos, a saber, que nos
de, o que é uma observação significativa. 3 amemos uns aos outros. Esse é o aspecto
O acréscimo de misericórdia a graça e paz central e é destacado em todos os escritos
111
2115 2e 3JOÃO':
li

de João. Tendemos a usar "amor" como conexão com "ter realizado com esforço".
referência a uma emoção, e esta não pode Os que aceitam "nós" (como a maioria das
ser ordenada. Mas para João, embora calo- versões em português) enxergam nas pala-
rosamente emotivo, o amor é basicamente vras do autor uma advertência de que o que
uma resposta ao grande amor de Deus por os bons mestres realizaram com empenho
nós. O amor resulta em ação, em cuidado será perdido se os crentes se desviarem. Os
e serviço altruísta. 6 E o amor é este in- que aceitam "vós" (NIV, em inglês) conside-
troduz algo como uma definição: que an- ram que o autor está advertindo os leitores
demos segundo os seus mandamentos. Em que se seguirem os falsos mestres perde-
tempos modernos, a obediência a ordens é rão a recompensa celestial que aguarda os
com frequência considerada evidência de servos fiéis de Deus. Isso, evidentemente,
um espírito legalista, o exato oposto do não é a salvação, que é o presente gratui-
que entendemos por amor. Mas o contras- to de Deus. É a recompensa para o obreiro
te é falso. O verdadeiro amor tem prazer que serviu fielmente e que João acha que
em fazer a vontade do amado (cf Jo 15.10; se pode perder se os falsos mestres forem
110 5.3). Aqueles que sabem o que é o seguidos. Os leitores são advertidos.
amor no sentido cristão sempre estão dese- 9 Os falsos mestres evidentemente se
josos de obedecer às ordens de Deus. João consideravam pensadores "avançados" ou
diz novamente que não está introduzindo "progressistas". João pensa que todo aque-
nada novo, mas repetindo um mandamento le que ultrapassa a doutrina de Cristo des-
que os leitores já tinham ouvido desde o sa forma já ultrapassou a linha para fora
princípio. Não devemos deixar de perce- do cristianismo! O propósito do crente não
ber o progresso contínuo que está sugerido deve ser orgulhar-se de ser "avançado",
no duplo andemos e andeis. mas de se apegar firmemente à verdade que
foi revelada, isto é, permanecer na doutri-
7-11 Doutrina sólida na de Cristo (isso pode ser compreendido
7 Porque introduz a razão do que João aca- como "doutrina a respeito de Cristo" [REB,
ba de dizer: muitos enganadores (pessoas em inglês], mas provavelmente melhor
que propositadamente têm ensinado pon- seja entender: "a doutrina ensinada por
tos de vista enganosos acerca do caminho Cristo" [nota mrg. BJ D. É necessário que
cristão) têm saído pelo mundo afora. Isso tenhamos a percepção correta do Filho se
sugere que em algum período haviam sido quisermos ter a percepção correta do Pai
membros de igreja (cf 110 2.19). O seu (cf 110 2.23). 10 Crentes não devem se
erro foi não reconhecer que Jesus Cristo curvar diante de qualquer outro ensino.
veio em carne (cf 110 4.2,3). Como em João evidentemente não está dizendo que
l João, o ponto em questão é a importância o crente deva negar a cortesia comum a um
da encarnação. Jesus era de fato o Cristo oponente doutrinário. Mas naquela época
de Deus vindo em carne. Deixar de ver receber um mestre em casa era expressar
isso é cair no erro mais sério, e João chama aprovação dos seus ensinos. E visto que o
qualquer um que faz isso de enganador e exercício da hospitalidade era o que possi-
anticristo. Em outro trecho, ele já falou de bilitava aos mestres viajar de lugar a lugar
qualquer um que ensina esse engano cha- com a sua mensagem, era também uma
mando-o de "anticristo" (110 4.3), mas o ajuda para espalhar os seus ensinamentos.
título enganador é novo. Tal mestre não Assim, se alguém não traz esta doutrina
somente está no engano, mas desvia outros (i.e., o ensino de que Jesus Cristo é Deus
do caminho. vindo em carne) ele não deve ser recebido.
8 Os manuscritos estão divididos quan- 11 João expressa a razão: dar as boas-vin-
to a se devemos ler aqui "vós" ou "nós" em das a tal mestre é tomar-se cúmplice das
2 e 3JOÃO 2116

suas obras más. O cristão não deve saudar provavelmente esteja conectada à verdade
o mal de qualquer tipo. do evangelho, a verdade que vemos em
Cristo (cf v. 8).
12, 13 Conclusão
12 O presbítero deixa claro que a razão 2-4 Seguir a verdade
de terminar a sua carta nesse ponto não é 2 Era costume no primeiro século que as
que não tenha mais assuntos. Ao contrário, cartas começassem com uma breve oração.
ele diz: Ainda tinha muitas coisas que vos Agora João ora para que a saúde de Gaio e
escrever. Mas ele prefere falar a escrever. seus negócios prosperem da mesma forma
Assim, tendo escrito o que é mais impor- que prospera a sua alma. 3 A fonte do co-
tante, ele põe de lado a sua pena e guarda nhecimento que tem das circunstâncias dos
o restante das suas novidades para quando amigos era a visita de alguns irmãos que
for encontrar pessoalmente os seus amigos. lhe tinham contado da fidelidade de Gaio
Não quis fazê-lo com papel e tinta é uma à verdade. Literalmente: pelo seu testemu-
expressão incomum, mas o significado está nho da tua verdade, que pode significar
claro. De viva voz é a expressão vívida e que Gaio tanto conhecia a verdade quan-
literal: "de boca a boca" (ARe). Nossa ale- to se apegava firmemente a ela. Que Gaio
gria conecta os interesses do autor e os dos estava andando na verdade (cf 2Jo 4) sig-
leitores. 13 A carta termina com saudações nifica que ele estava fazendo progresso na
de forma comum. A referência a filhos é verdade, e isso dava grande alegria ao pres-
adequada numa carta à igreja; significaria bítero. 4 De fato, ele não tem maior alegria
então: "membros da igreja". Mas não é im- do que esta, a de ouvir que os seus filhos
possível que signifique: "membros de uma andam na verdade. Meus .filhos significa:
família"; afinal, essa é a maneira normal de "meus filhos na fé", "os que se converte-
usar a palavra. ram pelo meu ministério". Pode significar
a congregação da qual quem está falando é
pastor, mas como o autor está escrevendo a
3JOÃO Gaio que evidentemente está a grande dis-
COMENTÁRIO tância dele, esse não parece o significado
aqui. A maior alegria do presbítero consis-
1 Saudação te em saber que os seus convertidos estão
Como em 2João, o autor se autodenomi- fazendo progresso na fé.
na simplesmente o presbítero. A saudação
é ao amado Gaio. (Algumas versões tra- 5-8 Hospitalidade
zem: "querido"; Brown, Epistles of John, 5 O tópico específico da carta (em contraste
p. 702, argumenta que "querido" é muito com os pontos preliminares) começa aqui.
insosso para traduzir: agapêtosi. O nome Ele fornece um vislumbre de um costume
era comum e ocorre uma série de vezes no da igreja primitiva segundo o qual um cris-
NT (e.g., At 19.29; Rm 16.23). Nada mais tão viajando em nome do evangelho bus-
se sabe desse Gaio, mas com base na carta cava a hospitalidade de cristãos locais na
parece que ele ocupava uma posição de li- comunidade que estava visitando. Poucos
derança na igreja. Quatro vezes a carta se pregadores devem ter tido condições finan-
refere a ele como "amado", e aqui ainda diz ceiras de ficar em hospedarias, e, de todo o
dele: a quem amo de verdade. Claramente modo, as hospedarias em muitos casos não
o presbítero tinha uma profunda afeição tinham boa reputação. Deve ter significa-
por esse homem. Uma observação im- do muito o fato de que para a difusão do
portante nessa breve carta é verdade, que evangelho os pregadores pudessem obter
ocorre seis vezes. Como nas outras cartas, hospedagem rápida nas suas viagens em
2117 2 e 3JOÃO

nome do evangelho. João elogia Gaio por A obra cristã precisa ser financiada pelo
sua hospitalidade. Procedes fielmente pode povo cristão. 8 Por consequência, há uma
significar: "você demonstra uma lealdade obrigação aqui (devemos) sobre os crentes
exemplar", i.e., você é leal aos seus irmãos para que demonstrem hospitalidade e aco-
na fé; ou talvez a ênfase esteja na fé: "suas lham esses irmãos. Para denota o propósi-
ações estão em harmonia com a sua fé to. A responsabilidade em questão aqui não
cristã". Naquilo que praticas para com os é meramente um exercício de hospitalida-
irmãos não é específico, mas o versículo de, mas é realizada para atingir o propósito
seguinte mostra que é a hospitalidade que divino no qual os crentes são cooperadores
está na mente do autor. Mesmo quando são da verdade.
estrangeiros deixa claro que Gaio tinha su-
prido as necessidades de crentes visitantes 9-12 Diótrefes e Demétrio
que não eram nem amigos nem parentes. É 9 Diótrefes era claramente um homem
um pequeno vislumbre da igreja primitiva investido de autoridade, e aparentemente
em ação. ambicioso por mais, embora não esteja cla-
6 Os que receberam a hospitalidade ro qual era exatamente a sua posição. Ele
perante a igreja deram testemunho do teu tomou a posição oposta à de Gaio e atrapa-
amor, assim que as boas obras de Gaio se lhou tanto o presbítero quanto os pregado-
tomaram amplamente conhecidas. João res. João tinha escrito à igreja (ele diz que
elogia a sua prática e o encoraja a continuar escreveu alguma coisa, mas a NVI omite
Bemfarás encaminhando-os em suajorna- essa expressão), mas infelizmente não sa-
da, o que parece indicar que tal hospita- bemos o que foi. Diótrefes evidentemente
lidade incluía fazer alguma provisão para tinha impedido a igreja de receber a carta.
a continuação da jornada. O Didaquê, um Além disso, ele claramente está em inimi-
manual da igreja primitiva, orienta que tal zade com o presbítero pois João diz: [ele]
pregador deve receber alimento para que não nos dá acolhida ("não nos recebe",
tenha o suficiente até chegar ao local de NVI). 10 Diótrefes tinha caluniado o presbí-
hospedagem seguinte (acrescenta o manual tero, proferindo contra ele palavras mali-
que se ele pedir dinheiro, "é falso profeta"; ciosas. Ele acrescentou ações às suas pala-
Didaquê, 11.3). É um tipo de prática assim vras, pois ele nem mesmo acolhe (o tempo
que está em vista aqui. Por modo digno verbal denota prática contínua) os irmãos.
de Deus coloca os padrões mais elevados E ele ainda vai um passo adiante e impe-
diante de Gaio; é Deus que é o padrão, não de os que querem recebê-los, e mais outro
os seus servos (cf Jo 13.20).7 Foiporcau- passo ainda quando os expulsa da igreja.
sa do Nome que os pregadores itinerantes Ele claramente ocupava uma posição im-
saíram. Não há necessidade de dizer de portante para poder fazer isso, e sua oposi-
quem se está falando; é claramente o nome ção aos pregadores era igualmente impla-
que está acima de todos os nomes (Fp 2.9). cável. É possível que, como líder local da
Eles saíram nada recebendo dos gentios. igreja, tenha se ressentido com pregadores
Fazer isso poderia ter comprometido a sua itinerantes que não tinham lealdade com a
mensagem, e eles não o fariam. Esse as- igreja local da qual ele era líder.
pecto os tomava ainda mais dependentes 11 João usa esse mau exemplo para
de pessoas como Gaio. Isso não quer dizer gravar uma lição no coração de Gaio, a
que um cristão nunca possa receber a ajuda quem chama de amado pela quarta vez
de um incrédulo favorável; até Jesus acei- nessa breve carta. Ele exorta o seu amigo a
tou comer, em algumas ocasiões, com os não imitar o que é mau, senão o que é bom.
fariseus que não criam nele (e.g., Lc 7.36). A imitação é uma parte natural da vida e
Significa que não devemos depender disso. todos a praticamos, mas é importante que
2 e 3JOÃO 2118

escolhamos os modelos corretos. João que escrever ainda, mas que prefere espe-
insiste em que o seu amigo imite o que é rar até encontrar os seus amigos. Ele usa
bom. Todo aquele que faz o bem procede o tempo passado. Muitas coisas tinha que
de Deus, de quem, evidentemente, proce- te escrever (a NVI muda isso para: "Tenho
de todo o bem. Qualquer pessoa que faz muito que lhe escrever"), e substitui o
o mal (Diótrefes ?) jamais viu a Deus. 12 "papel e tinta" da segunda carta por tin-
Demétrio é introduzido sem explicação, ta e pena. Não parece haver diferença de
o que sugere que ele era bem conhecido. sentido. 14 De forma semelhante, o seu
Alguns estudiosos têm conjecturado que desejo de ver o seu amigo e de falar com
ele era um dos missionários itinerantes e ele de viva voz é o mesmo que na carta
que foi o portador dessa carta. Ambos são anterior. 15 Paz era uma palavra comum
possíveis, mas é claro que não podemos de saudação tanto no encontro com os
saber com certeza. Quanto a Demétrio, amigos quanto na despedida. É particu-
todos lhe dão testemunho, portanto, tinha larmente apropriada numa situação em
boa reputação em toda a igreja. Há um que Diótrefes estava incitando a discór-
problema no acréscimo de: até a própria dia. É uma breve oração para que a paz
verdade. Essa expressão incomum e difícil de Deus os envolva. A paz não é, como
aparentemente significa que a conduta des- no nosso caso, um termo negativo signi-
se homem está em harmonia com o evan- ficando a ausência de guerra e conflito,
gelho, assim que a verdade do evangelho é mas antes um termo positivo que invoca a
declarada na sua vida. Nós também damos bênção de Deus. João repassa saudações
testemunho pode ser a maneira que o pres- dos amigos que estavam com ele e pede
bítero usa para dizer que ele mesmo dá a a Gaio que saúde os amigos, o que evi-
sua aprovação a esse homem. Mas também dentemente era suficientemente preciso
é possível que ele associe outros consigo, para que Gaio soubesse quem eram (a NVI
embora, se for esse o caso, não tenhamos tenta nos ajudar ao inserir "daí"). Nome
forma de saber quem eram. Mas não há por nome toma isso pessoal. Mesmo que
dúvida de que ele expressa a sua caloro- o presbítero não faça a lista dos nomes de
sa aprovação a Demétrio e deixa claro que todos os seus amigos que estavam com
este tem todo o seu apoio. Gaio, ele quer que cada um deles saiba
que a saudação é pessoal. Cada um deve
13-15 Conclusão ser distinguido pelo nome.
13 João conclui esta terceira carta como
concluiu a segunda ao dizer que teria muito Leon Morris
JUDAS

INTRODUÇÃO
Quem escreveu a carta? o nome de Judas, que ele tivesse usado o
A carta abre com os simples fatos acerca relacionamento com Jesus para obter acei-
do autor. De nome, é Judas; de nascimen- tação para o seu escrito. A humildade que
to, irmão de Tiago; e de chamado, servo preveniu essa descrição precisa ser consi-
de Jesus Cristo. A tradição atribui a carta derada uma marca de genuinidade, a que
a Judas, irmão de Jesus, mencionado em correspondeu também o seu irmão mais
Mateus 13.55 e Marcos 6.3. Esse teria sido proeminente (Tg 1.1).
um filho mais novo de Maria, nascido dela
e de José, junto com Tiago, José e Simão. Onde e quando a
Alguns estudiosos têm defendido a tese carta foi escrita?
de que ele foi um filho mais velho de José Judas não nos dá evidência alguma, nem
de um casamento anterior. Os irmãos de mesmo pistas, acerca de onde ele estava na
Jesus se recusaram a crer nele durante o época em que escreveu a carta. Sabemos
seu tempo de vida (Jo 7.5), mas Tiago se com base em 1Coríntios 9.5 que os irmãos
converteu mais tarde, possivelmente por do Senhor viajavam a serviço do evange-
meio de uma aparição pós-ressurreição lho, e assim qualquer sugestão pode ser
de Jesus (lCo 15.7). Posteriormente, ele apenas especulativa.
se tomou líder na igreja de Jerusalém (At Uma comparação entre 2Pedro e esta
12.17). Esse Tiago também tem sido con- carta rapidamente revela que grande parte
siderado pela tradição autor da carta neo- dela (v. 4-19) encontra paralelo naquela
testamentária de Tiago e em vista de sua carta (2.1-19). (Y. Introdução de 2Pedro e
eminência teria sido natural que Judas se comparações no Comentário.) É interes-
referisse a si mesmo como irmão de Tiago. sante que Judas se refere a ilustrações tan-
Talvez haja uma referência aos dois juntos to apócrifas quanto bíblicas daqueles que
em 1Corintios 9.5. se desviam dos caminhos de Deus e se
Tem sido sugerido também que o autor lhe opõem (v. 5,7,9,11,14). Pedro restrin-
poderia ter sido o apóstolo Judas, o "Judas ge suas referências a incidentes bíblicos
de Tiago", como o texto grego de Lucas (2Pe 2.5,6,7,15,16).
6.16 e Atos 1.13 o descrevem (o Tadeu de Alguns estudiosos que questionam a au-
Mt 10.3 e Mc 3.18). Duas dificuldades des- toria tradicional o fazem com base em que
se ponto de vista são que um apóstolo difi- a própria carta traz as marcas de ter sido es-
cilmente teria escrito o v. 17 e o uso normal crita em data tardia. Os v. 17,18 falam dos
grego exige que a palavra a ser inserida em apóstolos como se a geração delesjá estives-
Lucas 6.16 seja "filho" e não "irmão". se extinta, embora pareça que os receptores
A teoria segundo a qual Judas é um da carta tenham sido instruídos por eles. O
pseudepígrafe (v. Introdução de 2Pedro) v. 3 sugere que a fé já estava se tomando um
tem sido proposta, mas se esse fosse o caso conjunto sistemático de doutrina.
deveríamos esperar que o autor tivesse es- Nenhum desses argumentos é conclu-
colhido uma personagem menos obscura sivo, e se estamos preparados para aceitar
a quem teria atribuído a carta ou, ao usar Judas, o irmão mais novo do Senhor, como
JUDAS 2120

o autor, então podemos datar a carta den- de suspeita quando a igreja estava estabe-
tro do seu suposto tempo de vida. Eusébio lecendo o seu cânon (ou lista de livros a
conta uma história de Hegésipo acerca dos ser incluídos no NT). Uma doutrina eleva-
netos de Judas que foram levados diante da da inspiração não impedia, no entanto,
de Domiciano quando este era Imperador que os autores bíblicos citassem de fontes
Romano (81-96 d.C.). Ele também diz que extrabíblicas. O próprio Paulo faz isso em
eles eram bispos no tempo de Trajano (98- ICoríntios 10.7; 2Timóteo 3.8 e Tito 1.12
117 d.Ci), e isso tomaria razoável a possi- (cf At 17.28). Enquanto alguns questiona-
bilidade de o seu avô ter estado vivo ainda ram a carta antes de aceitá-la no cânon, ci-
na fase final do primeiro século. Levando tações de autores antigos mostram que ela
em consideração os argumentos a favor da estava em uso na igreja desde o início do
prioridade de 2Pedro (v. Introdução daque- século n. (Y. artigo a respeito de Apócrifos
la carta), teria sido perfeitamente possível e Literatura Apocalíptica).
que Judas tivesse escrito esta carta no fi-
nal da década de 60 do primeiro século. Qual é a mensagem
Alguns argumentam que a ausência da de Judas para nós?
menção à queda de Jerusalém no v. 5, em Como nós, Judas viveu numa época que
que poderia ter sido relevante, aponta para preferia a tolerância à verdade, e conside-
uma data antes de 70 d.e. rava todas as religiões aspectos igualmente
válidos na busca do ser supremo. Assim
A quem a carta foi escrita ele faz um desafio para que os leitores se
e do que trata? posicionem a favor da fé que é tanto sin-
Aqui também Judas não dá pistas a respei- gular quanto revelada (3,4). Ele faz isso de
to de onde os seus leitores viviam, ou de quatro maneiras:
quem eram, à parte do fato de que eram 1. Ele expõe o perigo, a esterilidade e o
cristãos (1) e amados (3,17,20). O v. 3 su- destino final dos falsos mestres (5-16).
gere que sua intenção tinha sido escrever 2. Ele estimula o povo de Deus a con-
uma confissão mais formal acerca da dou- tinuar crescendo na sua fé cristã e em sua
trina e da vida cristã (mais parecida com expressão (20.21).
1Pedro?). Em vez disso, o surgimento e a 3. Ele confirma os leitores nos propósi-
propagação de ensinamentos falsos o ti- tos certos de Deus (24).
nham levado a responder por escrito com 4. Ele os desafia a que não percam
uma advertência acerca das consequências nenhuma oportunidade para evangelizar
de seguir os que propagavam ideias heréti- (22.23).
cas e com um chamado a que se apegassem Essas orientações são tão úteis para os
firmemente à fé apostólica. cristãos de hoje quanto o foram para os pri-
Uma marca da carta é que ela faz uso meiros leitores de Judas.
da literatura apócrifa judaica, e é o único Ver artigo: "Lendo as cartas".
entre os livros do NT a fazer isso. Alguns
comentaristas argumentam com base nis- Leitura adicional
so que Judas deve ter escrito para um pú- KELLY, 1. N. D. The Epistles of Peter and
blico de judeus, mas as citações poderiam Jude. BNTe. A. and e. Black, 1969.
surgir do pano de fundo do autor que não CRANFIELD, e. E. R 1 and 2Peter and Jude.
precisaria ser o mesmo do de seus leito- TBC. SCM, 1960.
res. As citações de Judas da Assunção de GREEN, E. M. R 2Pedro e Judas: introdução
Moisés e do Livro de Enoque nos v. 9 e 15, e comentário. SCR Vida Nova, 1983.
e possivelmente de outras obras apócrifas BAUCKHAM, R. Jude and 2Peter. WBe.
nos v. 6 e 8, colocaram essa carta debaixo Word, 1983.
2121 JUDAS

ESBOÇO
1,2 Abertura e saudação
3,4 Desafio a que os leitores se apeguem firmemente à fé
5-7 Lembretes do castigo de Deus à desobediência passada
8-13 Os falsos mestres são denunciados
14-16 A relevância da profecia de Enoque
17-23 O antídoto cristão
24,25 Elogio final e atribuição de louvor

COMENTÁRIO 3,4 Desafio a que os leitores


se apeguem firmemente à fé
1,2 Abertura e saudação Judas apresenta as suas razões para escre-
O autor se apresenta de forma tradicional, ver como sendo o entusiasmo para escre-
descreve aqueles a quem está escrevendo e ver sobre a salvação que compartilhamos
ora pelo crescimento espiritual deles. e a preocupação de que devemos nos posi-
1 Servo (gr. doulos) significa "escravo" cionar pela singularidade da nossa fé.
e Judas é, portanto, um verdadeiro "irmão" Isso é especialmente adequado para
de Jesus de acordo com Marcos (Mc 3.35). cristãos hoje numa sociedade multirreli-
Tiago (Tg 1.1) e Pedro (2Pe 1.1) também giosa, desafiada com as infiltrações sutis
usam o título. Chamados, amados [...] do ensino da chamada Nova Era. Judas
guardados introduz uma característica está alarmado com os dois efeitos dos fal-
dessa carta: grupos de três palavras que sos mestres: eles fizeram da graça de Deus
ocorrem juntas. Essa descrição destaca uma desculpa para a "permissividade" e
o quanto a salvação vem inteiramente de negaram a singularidade de Cristo e de sua
Deus. É o resultado de sua soberania, seu salvação.
amor e seu poder, e o seu escopo vai des- 3 Amados reflete a afeição pastoral de
de a eternidade, passa pelo tempo, e vai Judas pelos seus leitores, e a menção a essa
novamente até a eternidade (v. Rm 8.30; nossa comum salvação o coloca em pé de
1Pe 1.3-5). Algumas versões trazem "san- igualdade com eles diante de Deus (v. a
tificados" (ACF), que tem menos apoio nos mesma palavra em Tt 1.4). Isso também
manuscritos do que amados. Guardados ressalta que essa salvação está disponível
em Jesus Cristo poderia ser traduzido por: a todos. "Batalhar" sugere um esforço va-
"por" ou "para" (v. nota mrg. NVI), e cada lente. A palavra é usada com respeito a par-
opção dá um toque diferente (cf lPe 1.5). ticipantes de uma competição atlética. O
2 A misericórdia, a paz e o amor é uma esforço mental é necessário para compreen-
bênção singular no NT e mais abundante der e ensinar a palavra de Deus de forma
do que em outras cartas. Poderia ser um correta e o esforço moral é necessário para
elo com a tríade do v. 1 (o chamado de aplicar esse entendimento ao comporta-
Deus traz misericórdia, o seu amor en- mento diário (IPe 1.13-16; 2Pe 1.5-9). A
volve o seu povo e o seu poder de guar- fé aqui significa um conjunto reconhecido
dar dá paz). Ou poderia ser lido como de ensinamentos, tal como vimos emergir
uma fórmula trinitária (Deus, o Pai, traz dos primeiros sermões de Pedro e come-
misericórdia, o Filho concede a paz e o çou a se cristalizar em expressões como
Espírito dá o amor). Vos sejam multipli- de 1Coríntios 11.23-26; 15.3-8; 1Timóteo
cados também é a oração em lPedro 1.2 1.15 e 3.16. Uma vez por todas sublinha a
e 2Pedro 1.2. conclusão da revelação de Deus em Crísto.
JUDAS 2122

4 A alusão à condenação de certos in- Há três variantes textuais para Senhor. Um


divíduos acerca da qual já se escreveu (v. manuscrito omite qualquer substantivo
nota mrg. NVI) poderia ter a ideia de que como sujeito, deixando por nossa conta
seus nomes estavam alistados em livros suprir um substantivo do final do versí-
celestiais (Lc 10.20; Ap 20.12). Essa con- culo anterior. A maioria traz "o Senhor" e
denação é que Judas passa a descrever. isso harmoniza melhor com o uso do AT.
Desde muito poderia significar "já" (como Alguns, no entanto, incluindo dois manus-
em Me 15.44), e nesse caso Judas poderia critos antigos, trazem "Jesus" que alguns
se referir a 2Pedro 2.3. Como alternativa, estudiosos sugerem poderia ser uma refe-
poderia ser uma referência à denúncia ge- rência a Josué (forma heb. de Jesus). Visto
ral dos malfeitores no AT. O seu ensino, que a mesma pessoa precisa ser o sujeito
que se resume em libertinagem, tem o no v. 6, parece melhor aceitar a leitura "o
mesmo fim que o mencionado em 2Pedro Senhor". Depois é lit, "na segunda vez".
2. Em Romanos 6 e 7, Paulo responde a Êxodo 6.9 tem sido sugerido como a pri-
argumentos que eles teriam usado. Fazer meira ocasião de incredulidade. No en-
uma profissão de fé cristã e contradizê-la tanto, visto que o sentido e a ordem fazem
ou "negá-la" pelo comportamento mos- com que essa palavra harmonize melhor
tra que não há compreensão alguma do com "destruiu", é melhor deixar como na
que significa chamar Jesus de Soberano e maioria das versões em português e tam-
Senhor (cf 1Co 6.19,20). A tradução pode- bém aqui na ARA. Se não, poderia ser uma
ria ser: "o único Soberano e nosso Senhor referência ao dilúvio (mencionado em
Jesus Cristo" (como mrg. RSV), visto que 2Pedro) como a primeira ocasião do cas-
a palavra Soberano (gr. despotêsi normal- tigo de Deus. Em 1Coríntios 10.1-11, há
mente se refere ao Pai. Uma exceção disso uma alusão instrutiva a esse incidente.
em 2Pedro 2.1 (em que se refere ao Filho) 6 Anjos pode ser uma referência a
pode dar apoio a um uso semelhante aqui. Gênesis 6.1-4. Esse incidente foi descri-
Se é uma referência ao Pai, 1Pedro 1.17 to mais detalhadamente em alguns livros
mostra que a crença em Deus, o Pai, exige apócrifos aos quais Judas alude (v. o pa-
santidade de vida. ralelo em 2Pe 2.4). A habitação dos anjos
ficava no céu exceto quando eram envia-
5-7 Lembretes do castigo de dos à terra por ordem de Deus. O pecado
Deus à desobediência passada os levou a querer se fixar na terra (Gn 6).
Judas fortalece o seu argumento com três Ver mais acerca de escuridão e prisões
exemplos que mostram que a posição em eternas em 2Pedro 2.4.7 Havendo se en-
si não é garantia alguma de salvação. Em tregado à prostituição [...] seguindo após
primeiro lugar, Israel foi liberto do Egito, outra carne: isso pode estar ligado à re-
mas os incrédulos morreram no deserto. ferência no v. 6 a Gênesis 6 porque o pe-
Em segundo lugar, os anjos têm um cha- cado dos homens de Sodoma (Gn 18.20)
mado especial de Deus, mas os que foram atingiu o seu ápice quando eles buscaram
desobedientes enfrentaram o castigo certo. ter relações com os dois anjos enviados a
Em terceiro lugar, Sodoma e Gomorra (v. Ló (Gn 19.5). Fogo eterno, sofrendo pu-
2Pe 2.6-8) eram cidades da terra prometi- nição é o que Jesus ensinou em Mateus
da, e havia servos de Deus nelas, e mesmo 18.8; 25.41 e Marcos 9.48.
assim foram destruídas por causa da imo-
ralidade avassaladora presente nelas. 8-13 Os falsos mestres
5 Emborajá estais cientes de tudo uma são denunciados
vez por todas supostamente se refere à ins- Judas agora se volta dos exemplos do pas-
trução catequética dada antes do batismo. sado para os falsos mestres do presente, e
-.
l1li
2123 JUDAS _-

mostra que eles estão seguindo os mesmos 9 Arcanjo é uma palavra encontrada so-
e perigosos caminhos. Os israelitas conta- mente aqui e em 1Tessalonicenses 4.16 no
minaram os seus corpos, os anjos rejeita- NT. Miguel é conhecido do livro de Daniel
ram a autoridade e o povo de Sodoma e (10.13,21; 12.1) e Apocalipse 12.7 como o
Gomorra difamou seres celestiais. Esse líder das hostes celestiais. O livro apócrifo
último ato foi algo que nem Miguel fez Assunção de Moisés conta como Miguel
quando teve justificativa para isso. Ele pre- foi enviado a sepultar Moisés. O diabo
feriu deixar Deus tratar deles. Tais falsos se lhe opôs, afirmando que aquele corpo,
mestres podem até difamar as coisas que como objeto material, pertencia a ele. Até
não compreendem, mas eles compreen- mesmo aí Miguel simplesmente respondeu
dem o suficiente para ser responsáveis pela com palavras de Zacarias 3.2, e assim o
sua própria ruína. Assim Judas pronuncia seu comportamento contrasta fortemente
novamente a condenação deles, pois eles com o dos falsos mestres. 10 Tudo o que
seguem três maus precedentes: Caim, não entendem poderia ser uma referência
que não mostrou respeito algum por seu às autoridades superiores ("seres celes-
irmão, que fora feito à imagem de Deus; tiais", NVI) do V. 8 ou mais amplamente à
Balaão, que desviou e afastou o povo de dimensão espiritual da vida. Por instinto
Israel por ganho pessoal; e Corá, que re- significa de forma natural ou fisica. Por
jeitou a autoridade de Deus exercida por não terem tempo para as coisas espirituais,
meio de Moisés. limitam o seu conhecimento ao mundo fi-
Assim eles são culpados por arruinar sico. Assim encontram a sua queda, visto
á comunhão cristã pela sua participação que permitem que o lado fisico os domine,
nele de forma descarada, sendo falsos exatamente como no caso dos animais.
pastores preocupados somente consigo 11 Caim, Balaão e Corá (cf Gn 4.1-
mesmos, deixando de realizar o que pro- 16; Nm 16; 22-24) são exemplos clás-
metem - como nuvens sem água ou ár- sicos dos efeitos desastrosos da inveja, da
vores infrutíferas, sendo imprevisíveis e ganância e do orgulho. Os descendentes
sem controle como ondas bravias do mar, contemporâneos desse trio estão com inve-
produzindo somente o seu próprio refugo ja do progresso cristão dos outros, e assim
e se perdendo como estrelas errantes, não tentam desviá-los para a imoralidade (e as-
dando nenhuma orientação clara, e assim sim assassiná-los espiritualmente). Eles es-
estão condenados a perder a sua função. tão tão desejosos de ganhar vantagens com
Grande parte dessa denúncia nos lembra as o que as pessoas vão pagar para ouvir que
palavras de Pedro em 2Pedro 2.10-17. prontamente as persuadem à imoralidade
8 Da mesma sorte expressa a surpre- (cf Nm 25.1-9; 31.16 e 2Pe 2.15), e tão
sa diante do fato de que, apesar do claro grande é o seu orgulho que eles não podem
castigo exercido por Deus sobre tais mal- suportar ouvir falar de qualquer poder (ou
feitores no passado, esses homens ainda conhecimento) maior que o seu próprio.
ousam seguir aqueles exemplos ímpios. 12 Rochas submersas (v. 2Pe 2.13)
Sonhadores sugere que eles podem ter de- (variante: "manchas", nota mrg. NVI):
clarado ter recebido alguns dos seus ensi- J. B. Phillips traz: "ameaças". Festas de
nos por meio de visões. Contaminam, re- fraternidade eram realizadas regularmente
jeitam e difamam expõe as três acusações com a ceia do Senhor na igreja primitiva, e
básicas contra eles (v. acima). Governo 1Coríntios 11.20-22 mostra que até nos pri-
(gr. kyriotêsi provavelmente se refere à meiros tempos elas podiam ser ocasião de
autoridade de Deus (kyrios é "Senhor"). comportamento incompatível com o amor
Autoridades superiores (como em 2Pe cristão. A marca registrada desses falsos
2.10) é usado como referência a "anjos". pastores é que eles usam sua posição para
JUDAS 2124

atingir os seus próprios propósitos egoís- com os seus anjos (Mt 25.31; 2Ts 1.7)
tas, e não para alimentar o rebanho (cf 15 Ímpios retoma e repete (quatro vezes)
Ez 34.2-10; Jo 21.15-17; 1Pe 5.2). Arvores a palavra usada no v. 4 para descrever es-
que não dão fruto na época da colheita não sas pessoas - refere-se a eles, seu caráter
cumprem a função para a qual existem (cf e comportamento, e tudo isso resulta de
Mt 7.15-20; Me 11.12-14). Desarraigadas uma atitude insolente que não tem respeito
é um retrato do juízo (cf SI 52.5; Jr 1.10; por Deus. 16 Eles são murmuradores con-
Mt 3.10). Estas pessoas estão duplamente tra Deus e seus caminhos (cf Êx 16.2-12;
mortas porque provaram a vida espiritual 17.3; 1Co 10.10). Esse comportamento foi
(como também a vida física) e a rejeita- característico de Israel no deserto.
ram (cf Hb 6.4-8; 10.26-31; 2Pe 2.20-22). Descontentes significa lit.: "queixo-
13 Ondas bravias sugere a implacabilidade sos da sua sorte" (assim ARe). Essas pes-
das marés, que, depois de todo o seu baru- soas estão insatisfeitas com os caminhos
lho e rebuliço só deixam espuma e refugo da verdade e da justiça de Deus porque
na margem (cf Is 57.20). Estrelas errantes querem andar segundo as suas paixões. A
é mais uma referência ao Livro de Enoque, sua boca vive propalando grandes arro-
que descreve estrelas que se desviaram gâncias quando não têm razão nem di-
como aprisionadas juntas. Alguns enten- reito de fazê-lo (a mesma palavra é usada
dem que isso seja uma referência aos pla- em 2Pe 2.18) e eles são aduladores dos
netas (errantes é o gr. planêtaii, cujos mo- outros (lit.: "admiram a aparência") sim-
vimentos eram compreendidos por Judas plesmente pelo que podem receber em
e seus contemporâneos; outros entendem troca. Tal comportamento é diferente do
que seja uma referência a estrelas caden- de Deus (At 10.34; Tg 2.1-7).
tes que aparecem brevemente para dar luz
e então desaparecem na escuridão. A ideia 17-23 O antídoto cristão
aparentemente é a de Lucas 6.39 - os que Por contraste, os cristãos recebem a ordem
afirmam ser líderes estão eles mesmos fora de lembrar a advertência apostólica, espe-
do caminho. Acerca de negridão das tre- cialmente porque essas pessoas causam di-
vas ver comentário de 2Pedro 2.4,17. visões. A maneira positiva de evitar a eles
e seus efeitos é o crescimento cristão na
14-16 A relevância da vida da fé, é a oração no Espírito, é perma-
profecia de Enoque necer no amor de Deus, buscar a conclusão
Judas leva a sua denúncia ao clímax ao ci- da obra de Deus em nós e ir ao encontro
tar a profecia atribuída a Enoque a fim de dos outros com zelo evangelístico.
confirmar o castigo iminente e certo des- 17 Porém contrasta com o comporta-
ses homens, e conclui com palavras muito mento dos ímpios (v. comentário de 15
bem escolhidas. acima). Lembrai-vos é também o tema de
14 A descrição de Enoque como sendo 2Pedro (1.12-14; 3.2) como também do
o sétimo depois de Adão (cf Gn 5.1-18) v. 5 acima. A presença de "escarnecedo-
ocorre no Livro de Enoque, como também res" foi (cf 2Pe 3.3) prenunciada em Atos
a citação que segue. Esse livro era bem co- 20.29,30; lTimóteo 4.1-3; 2Timóteo 3.1-9
nhecido nos dias do NT e assim a referência e cf Mateus 24.23-25. 18 Diziam pode se
é relevante (v. a Introdução para uma dis- referir aos escritos e não precisa significar
cussão do uso que Judas faz da literatura que os leitores de Judas tinham de fato
apocalíptica). O Senhor é o próprio Deus, ouvido os apóstolos. No último tempo (cf
e as suas santas miríades são os anjos (cf 1Pe 1.20) é o período entre a ascensão e
Dt 33.2; Zc 14.5). Para o cristão, as pala- o retomo de Cristo. Pode haver um outro
vras se referem à segunda vinda de Cristo dito apostólico por trás desses versículos
2125 JUDAS

que não é citado em nenhum outro lugar. só se nutre a própria vida espiritual, Judas
Em 2Pedro 3.4, o autor sugere o conteú- se volta aqui para a nossa responsabilidade
do da zombaria deles. 19 Eles promovem pelos outros. O texto fala dos que estão na
divisões na igreja ao se apresentar como dúvida, e o autor pode ter dois ou três gru-
superiores aos cristãos comuns, como o fa- pos em mente: (a) os que estão divididos
ziam os gnósticos, dividindo a igreja entre acerca do ensino dos falsos mestres (algu-
membros "espirituais" e "mundanos". Isso mas variantes sugerem que eles devem ser
é uma tendência conhecida também nos ganhos pelo argumento); (b) os que estão
nossos dias. Na verdade, diz Judas, são eles mais profundamente envolvidos com a he-
que são os mundanos, visto que não têm o resia, cuja posição é tão séria que eles pre-
Espírito, como fica evidente na sua falta de cisam ser arrancados como que do fogo (v.
frutos. Acerca de andando segundo as suas Zc 3.2, já citado no v. 9, e Am 4.11); e (c)
ímpias paixões (ter a mente mundana) ver aqueles dos quais só se pode ter compaixão
1Coríntios 2.14-16. 20 As primeiras pala- no espírito do temor a Deus que reconhece:
vras do v. 17 são repetidas para ênfase. Na "só vivo pela graça de Deus".
vossafé santíssima se refere, como no v. 3, A ARA entende que são dois grupos,
ao conteúdo da revelação cristã. Ela é san- enquanto a NVI dá a entender claramente
tíssima por ter sido dada por Deus e, corre- que são três. Roupa sugere o efeito conta-
tamente aplicada, conduz à vida santa. No minado r do pecado deles. Como o leproso
Espírito é uma referência à experiência de cuja roupa ficava contaminada pela do-
permanecer em comunhão com Deus por ença (Lv 13.34; 14.8), eles precisam ser
meio de Jesus Cristo pelo Espírito Santo considerados fonte de contaminação e,
(v. Rm 8.9,16,26; Ef6.18). por isso, evitados.
21 Guardai-vos no amor de Deus com-
plementa o que foi dito acerca da posição 24,25. Elogio final e
deles no v. 1. Uma vez que a pessoa re- atribuição de louvor
conhece que é o objeto indigno do amor Depois dessas tristes possibilidades de en-
de Deus em Jesus Cristo, ela é desafiada gano e apostasia, Judas termina num tom
a responder com amor. Esse amor precisa positivo ao apontar os seus leitores para
ser mostrado pelo comportamento. João Deus e para o que ele é capaz de fazer por
15.9,10 mostra que tal resposta é o cami- nós. O seu alvo é [nos] guardar de trope-
nho para permanecer na percepção do amor ços até o fim dos tempos e nos apresentar
de Deus. Não fazer isso vai amortecer o com exultação, imaculados até a eterni-
coração para o amor de Deus e vai resul- dade. Em vista disso, Judas atribui toda a
tar finalmente na perda dessa percepção. glória e poder aqui e agora a Deus, nosso
Esperando a misericórdia: a melhor forma Salvador, cujos louvores o seu povo resga-
de evitar o erro é uma sincera expectativa tado vai cantar por toda a eternidade.
pela volta do Senhor, quando a sua miseri- 24 Guardar: ver 1Pedro 1.5. De tro-
córdia,já experimentada inicialmente (1) e peços é da mesma raiz que o verbo em
diariamente (2; cf Lm 3.22,23) será final 2Pedro 1.10 em que vemos como isso
e completamente compreendida quando a deve ser atingido. Apresentar é uma pala-
obra da salvação for concluída. Tito 2.11- vra formal que sugere a apresentação a um
14; 1Pedro 4.7 e 2Pedro 3.11,12 dão ênfase dignitário. Imaculados é usado em 1Pedro
semelhante à esperança do advento como 1.19. O cristão, agora completamente san-
motivação para a vida piedosa. tificado, pode ser identificado totalmente
22,23 Se com base nos últimos dois ver- com o caráter do nosso glorioso Salvador.
sículos o leitor vier a pensar que a verda- Alegria é uma palavra intensa, sendo que a
deira fé é simplesmente quietismo, em que forma verbal é especialmente cara a Pedro
JUDAS 2126

(lPe 1.6,7; 4.13). 25 Único Deus pode pois elas são exatamente as qualidades
sugerir que os falsos mestres já estavam de eternidade pelas quais ele criou o nos-
descrevendo uma hierarquia de deuses e so mundo do espaço e tempo. Mediante
"demi-deuses" (demiurgos), como o fize- Jesus Cristo pode ser uma referência em
ram os gnósticos posteriormente, ou pode retrospectiva a Deus, nosso Salvador (as
ser para ressaltar que a nossa salvação é a palavras estão mais próximas no grego),
obra de Deus somente. Nas quatro quali- lembrando-nos que foi somente por meio
dades atribuídas a Deus, a glória ressalta de Jesus que Deus nos salvou (At 4.12),
o seu esplendor, como o brilho da luz (cf ou que nossos louvores devem ser dados
a descrição do céu em Ap 21.23; 22.5), a por meio de Jesus (cf lPe 2.5; 4.11). A
majestade, sua posição (cf Hb 1.3), o im- essa visão do Deus Todo-poderoso a alma
pério ("poder", xvr), sua capacidade de im- que crê só pode expressar como respos-
por a sua vontade soberana e a soberania ta um humilde mas fervoroso Amém! -
("autoridade", xvi), o fato de que ele tem assim seja!
o direito absoluto de fazê-lo. Essas quali-
dades sempre foram suas, e sempre serão, David H. Wheaton
APOCALIPSE

INTRODUÇÃO
As características de Apocalipse çador. Nos dias do autor, simplesmente sig-
A discussão do livro de Apocalipse com nificava retirar a cobertura de alguém es-
frequência tem sido dominada por quatro condido, e dessa forma era o desvelamento
formas tradicionais de interpretação. O de algo que estava oculto, assim como um
chamado método "preterista" associa o retrato é desvelado quando se retira a cor-
livro somente às circunstâncias da época tina (ou até mesmo a abertura da cortina
do autor e não leva em conta as aplicações de um palco em que vai ser apresentado
aos desdobramentos futuros da história. O um teatro). O termo se tomou praticamente
ponto de vista "futurista", em contraste, um termo técnico para uma classe de es-
associa o livro somente à última geração critos, principalmente judaicos, que apare-
da história, quando suas profecias tiverem ceram durante os dois séculos anteriores à
o seu cumprimento. A interpretação "his- morte de Cristo, e isso continuou durante
tórica" enxerga Apocalipse como um es- o primeiro século cristão. Sua intenção
boço das eras entre a encarnação de Cristo principal era revelar o propósito de Deus
e a sua vinda final. O ponto de vista "sim- na história, notavelmente ao trazer juízo
bólico" ou "poético" destaca o elemento sobre os maus da terra e o reino dele para
pictórico e ilustrativo do livro e se nega a os justos. Há poucas dúvidas de que o mo-
fazer aplicações específicas das profecias delo para essas obras tenha sido o livro de
a qualquer era; considera o livro uma re- Daniel. O seu estilo foi imitado nelas, e ge-
velação dos princípios gerais da obra de ralmente eram escritas em nome de algum
Deus na história. santo famoso (e.g., os três livros atribuí-
Esses métodos de interpretação de Apo- dos a Enoque, um Apocalipse de Abraão,
calipse são todos insatisfatórios. Ninguém a Assunção de Moisés, o Apocalipse de
sonharia em aplicá-los às obras proféticas Elias, o Apocalipse de Esdras etc.).
do AT. Somente porque Apocalipse tem Esses livros faziam livre uso de sím-
sido interpretado de forma isolada do res- bolos para transmitir sua mensagem, em-
tante dos livros bíblicos, e de outras obras bora nenhum deles com a intensidade e
extrabíblicas de tipo literário semelhan- extensão usadas por João em Apocalipse.
te, é que tem sido tratado dessa maneira. Alguns dos símbolos se tomaram padrão,
A introdução do livro em si já indica que como a besta que sai do mar para denotar
ele pertence a três classes de obras literá- poderes políticos opressivos, que apare-
rias, a saber, apocalíptica, profecia e carta cem de diferentes formas em Daniel 7 e
(veja os respectivos artigos gerais neste Apocalipse 11.7 e nos cp. 13 e 17. O para-
Comentário). lelo moderno mais próximo dessas figuras
1. Apocalíptica. A primeira palavra no e de seu uso é a representação de nações
livro é "revelação". O termo grego tradu- e de seus líderes em caricaturas políticas.
zido por essa palavra veio para a língua Outra característica dos apocalipses é o
portuguesa como "apocalipse". A leitores seu emprego frequente de profecias ante-
modernos isso transmite um significado es- riores, tanto do AT quanto de outras obras.
pecial, trazendo consigo até um tom amea- Isso se devia não à falta de originalidade,
APOCALIPSE 2128

mas à convicção de que a palavra de Deus As implicações desse fato estão claras: o
tinha ainda outro cumprimento, e assim os livro foi muito bem realisticamente dirigi-
autores apocalípticos combinavam orácu- do à situação e às necessidades das igrejas
los proféticos anteriores, os reescreviam mencionadas na saudação como, por exem-
e os aplicavam a situações de seu próprio plo, a carta de Paulo à igreja em Colossos
tempo. João faz isso com frequência, tanto (que estava nos arredores das sete igrej as
no uso renovado de profecias do AT quan- de Apocalipse), ou a carta às igrejas da
to na aplicação de uma forma totalmente Galácia (que não ficavam distantes a leste
nova das profecias dos seus contemporâ- dali). Todos os cristãos concordam que as
neos (v., e.g., cp. 7; 11; 12). cartas aos colossenses, gálatas e romanos
2. Profecia. A segunda frase de transmitem a palavra de Deus ao povo de
Apocalipse invoca uma bênção sobre os Cristo em todas as épocas posteriores,
que leem e os que guardam "as palavras mas a mensagem dessas cartas nos atinge
desta profecia" (ARe). Com isso, João se de forma mais eficaz à medida que capta-
coloca entre os profetas do AT e também mos a sua intenção em relação as igrejas
os da nova aliança (cf Ef2.20). Em geral às quais foram dirigidas originariamente.
se reconhece que aqueles se dirigiam aos Isso vale tanto para o Apocalipse de João
seus contemporâneos em relação à sua quanto para o restante das cartas do NT.
própria situação, i.e., eles anunciavam a É só à medida que associamos o desve-
palavra de Deus para a sua época. A sin- lamento pictórico da palavra de Deus à
gularidade do ministério deles estava na situação das sete igrejas da Ásia Menor
forma como situavam o povo no contexto poderemos entender a revelação para as
do relacionamento com Deus no passado, igrejas de todas as gerações, incluindo a
e à luz do propósito divino para eles no última geração da história.
futuro. A profecia no NT pode ser descrita
como as palavras dos pregadores guiados o contexto de Apocalipse
pelo Espírito para o mundo e a igreja, por É provável que a tradição corrente na igre-
meio de quem o propósito revelado de ja primitiva esteja correta, segundo a qual
Deus para o mundo e a sua vontade para o livro foi escrito perto do final do primei-
a humanidade são revelados. Isso seria ro século da nossa era, quando o imperador
uma descrição adequada de Apocalipse. Domiciano estava começando a perseguir
Esse livro transmite a segurança de que a a igreja. É improvável que a perseguição
oposição de seres humanos e de todos os estivesse ocorrendo durante muito tempo,
poderes do mal não pode frustrar o propó- pois martírios reais tinham sido poucos até
sito que Deus tem para o mundo, e à luz então (2.13). Mas o fato de que João estava
disso ecoa o chamado à persistência na fé exilado numa ilha penal reflete o início de
e na obediência ao Senhor por parte do oposição concreta à igreja cristã por par-
povo de Deus. te das autoridades. Domiciano era mais
3. Carta. O parágrafo introdutório do insistente em forçar a sua reivindicação
livro de João é seguido de uma saudação de divindade do que qualquer um de seus
típica, como a que encontramos nas cartas predecessores; o seu título favorito era
do NT: "João, às sete igrejas que se encon- Dominus et Deus noster ("nosso Senhor e
tram na Ásia, graça e paz a vós outros ...". Deus"). Em nenhum lugar do império ha-
É estranho que não se tenha reconhecido via apoiadores mais entusiasmados de tal
comumente que Apocalipse é fundamen- adulação do imperador do que os sacerdo-
talmente uma "carta" dirigida às igrejas tes dos santuários devotados à sua adora-
pelas quais João estava preocupado e pe- ção na Ásia Romana. Mas nenhum cristão
las quais tinha responsabilidade especial. que reconhecia Jesus como Senhor e Deus
2129 APOCALIPSE

poderia se curvar diante de tal reconheci- em operação (2Ts 2.7), e atingiria o seu
mento do imperador. Nessa situação, João clímax na manifestação final do anticris-
teve uma visão dos princípios em ação e do to. Mesmo assim, Deus nunca é mais so-
resultado em um anticristo que declararia berano do que durante o furioso reinado
guerra ao único grupo no mundo disposto a do anticristo (13.5).
lhe resistir até a morte. O final, no entanto, 3. O juízo inescapável do Senhor sobre
seria a vitória do Cristo de Deus sobre a aqueles que se submetem ao pseudocristo
imitação satânica, e o reino do mundo se e não ao Cristo de Deus. É significativo
tomaria o reino do nosso Senhor e de seu que a segunda e a terceira séries de juízos
Cristo (11.15). É nesse contexto que os messiânicos desse livro sejam semelhan-
símbolos e as visões por parábolas trans- tes às pragas sobre o faraó e os egípcios,
mitem o seu significado e que sua mensa- que resistiram à palavra de Deus por meio
gem é compreendida. de Moisés. Apocalipse nos orienta a con-
siderarmos "a bondade e a severidade de
o propósito de Apocalipse Deus" (Rm 11.22).
Esse propósito é resumido no dito de 4. O resultado garantido do conflito
E. F. Scott, que chamou Apocalipse de entre a igreja e os poderes opressivos no
"chamada de trombeta à fé" (The Book of mundo na manifestação de Cristo e da
Revelation [SCM, 1939], p. 174). O livro glória do seu reino. A vitória é "garanti-
foi escrito por João para fortalecer a fé e a da", pois o Diabo é um inimigo já derro-
coragem dos seus irmãos em Cristo, para tado na morte e ressurreição de Jesus (cf.
encorajá-los na batalha contra as forças Jo 12.31,32 com Ap 12.9-12), que pre-
do anticristo no mundo e para ajudá-los nuncia a realização definitiva do propósito
a dar testemunho do único e verdadeiro bom de Deus para o mundo que ele criou e
Senhor e Salvador do mundo. Esse pro- redimiu (21.9-22.5).
pósito foi atingido pelo destaque dado aos
seguintes temas: Lendo Apocalipse hoje
1. A soberania de Deus em Cristo, na- As quatro questões discutidas acima têm
quela época e em todos os tempos. Assim caracterizado a história desde o primeiro
como Jesus tomou conhecido o advento século da nossa era até o presente, e indubi-
do reino de Deus no seu ministério, morte, tavelmente continuará a fazê-lo até a vinda
ressurreição e segunda vinda (Me 1.14,15; do Senhor. É significativo, no entanto, que
8.31; 10.45; 14.62), assim esse tema é cen- os últimos dois terços do século xx foram
tral para Apocalipse desde o início até o caracterizados por dois fenômenos contras-
fim (1.8; 5.5-14; 12.10-12; 19.11-21.5). tantes. Por um lado, a oposição mais inten-
Não é de admirar, pois o livro não é nada sa ao evangelho e à igreja desde a escrita
menos que "a palavra de Deus e o testemu- do livro de Apocalipse e, por outro, a pro-
nho de Jesus Cristo" (1.2)! pagação sem precedentes do evangelho e
2. A natureza satânica da adulação o crescimento fenomenal da igreja. A opo-
contemporânea do imperador romano. sição foi conduzida por forças anticristãs
Na própria cidade de Roma, a reivindica- seculares, reivindicando como seu o que
ção do imperador de ser "Senhor e Deus" pertence somente a Deus e lançando sofri-
era um tanto desdenhada - em particu- mento imenso sobre o mundo por meio de
lar, sem dúvida! Na região das igrejas às opressão e guerras; a igreja e o evangelho
quais Apocalipse foi endereçado, era le- avançaram incessantemente, mesmo que
vada muito a sério. O fato de César exigir muitas vezes com oposição, dor e pobre-
o que pertencia somente a Deus indicava za cruéis. O colapso de muitas potências
que o "mistério da iniquidade" já estava políticas que se opuseram ao evangelho
APOCALIPSE 2130

ilustra a realidade da soberania de Deus João tenha escrito o livro na sua própria
no mundo contemporâneo. As mudanças língua (aramaico), e que alguém o tenha
nas formas de oposição ao evangelho, a traduzido para o grego bem literal por
confusa situação política dos mundos an- reverência ao seu conteúdo. Se foi esse o
tigo e novo, e o sofrimento das multidões caso, as diferenças linguísticas cairiam por
aumentando em vez de diminuir, requerem terra. Por outro lado, se, como alguns pen-
testemunhas cristãs do evangelho segundo sam, João, o profeta, pensava em aramaico
a ordem e o tipo de Apocalipse 11.3-11; e escreveu em grego, as diferenças seriam
l2.11e 14.2-7, e fé para crer no cântico de insuperáveis, pois não foi o que ocorreu
Moisés e no cântico do Cordeiro (15.3,4). com o autor do evangelho e das cartas.
Não foi à toa que o livro de Apocalipse se É interessante que vislumbres nos
tomou o livro predileto da Bíblia para os evangelhos sinópticos de João, filho de
cristãos que na época atual estão debaixo Zebedeu, são surpreendentemente coeren-
de opressão. A "chamada de trombeta à fé" tes com o tipo de pessoa que teria escrito
inspira a perseverar no reino de Deus, a vi- o Apocalipse: ele e o seu irmão foram cha-
ver no espírito de Cristo enquanto cada um mados de "filhos do trovão" (Me 3.17); ele
carrega a sua cruz, a viver no poder de sua proibiu um que não era membro do grupo
ressurreição, e à luz da revelação do reino apostólico de fazer milagres (Lc 9.49,50);
da glória na vinda dele. ele queria chamar fogo do céu sobre os
hostis samaritanos (Lc 9.52-54); ele foi
A autoria de Apocalipse testemunha da transfiguração de Jesus e da
O autor se apresenta na frase de introdução sua ressurreição. A existência possível de
do livro como "seu [de Deus] servo João". uma "escola joanina", da qual resultaram
Ele se refere com frequência a si mesmo, os diversos livros mais tarde atribuídos ao
mais comumente como profeta (1.2,3,9- apóstolo, poderia ser útil aqui, pois isso
11; 10.11; 19.10; 22.8,9), mas nunca como explicaria a relação positiva entre os livros
apóstolo. Nesse sentido, ele se distingue como também suas diferenças. Se somos
marcadamente de Paulo (cf, e.g., Rm 1.1; incapazes de atingir certeza nessa questão,
11.13; lCo 1.1; 2Co 1.1; Gl 1.1). A partir permanece o fato de que em nenhum ou-
da segunda parte do século n, se pressupôs tro livro da Bíblia a identidade do autor é
que o quarto evangelho, as cartas de João de tão pouca importância quanto neste. O
e o Apocalipse haviam sido escritos por livro não é a "revelação de João", mas a
um homem, João, filho de Zebedeu. Há, no "revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe
entanto, dificuldades nessa pressuposição, [a João] deu" (1.1), e o seu conteúdo é ain-
que foram reconhecidas já em tempos an- da descrito como "a palavra de Deus e o
tigos. Dionísio, bispo de Alexandria no sé- testemunho de Jesus Cristo" (1.2). A au-
culo I1I, ficou especialmente impressionado tenticidade dessa reivindicação é estabele-
pelas diferenças de estilo e linguagem en- cida não pelo nome da pessoa que o escre-
tre Apocalipse e as outras obras atribuídas veu, mas pela natureza da sua obra, que na
a João. Alguns estudiosos têm sugerido providência de Deus conclui as Escrituras
que as diferenças podem ser explicadas como sua coroa.
pela diversidade dos tópicos e da nature-
za de Apocalipse e do quarto evangelho; A estrutura de Apocalipse
ou pela possibilidade de que o Apocalipse O livro abre com um prólogo (1.1-8), afir-
tenha sido escrito uma geração antes do mando o seu título e endereço, seguido de
evangelho (no final do reinado de Nero), uma visão do Filho do Homem, na qual
assim dando tempo ao autor para que aper- João é comissionado a escrever o que ele
feiçoasse o seu estilo. É mais provável que vê e a enviar o livro às sete igrejas da pro-
11
2131 APOCALIPSE _-
-li

víncia romana da Ásia (1.9-20). Seguem, do império ímpio ("Babilônia") e o adven-


então, as cartas às sete igrejas (cp. 2-3). to de Cristo (cp. 17-19). O livro é levado
Uma visão de Deus e do Cordeiro é regis- ao clímax na sua visão do reino triunfante
trada (cp. 4--5), que tanto provê a chave de Deus (20.1-22.5), e um epílogo o con-
para a compreensão de Apocalipse quanto clui (22.6-21).
forma o esteio para a sua estrutura, e ainda
indica o processo de eventos que condu-
zem ao reino final de Deus (cp. 6--19). Leitura adicional
Proeminentes entre esses estão as três sé- WILCOCK, M. A mensagem de Apocalipse.
ries de julgamentos, apresentadas com as BFH. ABU, 1975.
figuras da abertura dos sete selos do livro MORRIS, L. TheRevelationofSt. John. TNTC.
de Deus (6.1-8.5), das sete trombetas Inter-VarsityPresslUKlEerdmans, 1969.
(8.6-11.19) e das sete taças da ira (cp. BRUCE, F. F. The Revelation of John
15-16). Parece que essas três séries não em HOWLEY, G. C. D.; BRUCE, F. F.;
devem ser vistas como ocorrendo sucessi- ELLISON, H. L., ed. A Bible commentary
vamente, mas como basicamente três apre- for today. Pickering and Inglis, 1979.
sentações de um mesmo período de juízo, BEASLEy-MuRRAY, G. R. The Book of
visto que o último elemento de cada série Revelation. NCB. Eerdmans, 1974.
conduz ao final da história. Os resultados MOUNCE, R. H. The Book of Revelation.
dos julgamentos messiânicos são a queda NICNT. Eerdmans, 1977.

ESBOÇO
1.1-8 O prólogo
1 .9-20 O chamado de João à profecia
2.1-3.22 As cartas às sete igrejas
2.1-7 A carta à igreja de Éfeso
2.8-11 A carta à igreja de Esmirna
2.12-17 A carta à igreja de Pérgamo
2.18-29 A carta à igreja de Tiatira
3.1-6 A carta à igreja de Sardes
3.7-13 A carta à igreja de Filadélfia
3.14-22 A carta à igreja de Laodiceia

4.1-5.14 Uma visão do céu


4.1-11 o trono no céu
5.1-14 O livro e o Cordeiro

6.1-8.5 Os sete selos


6.1,2 O primeiro selo
6.3,4 O segundo selo
6.5,6 O terceiro selo
6.7,8 O quarto selo
6.9-11 O quinto selo
6.12-17 O sexto selo
7.1-17 Intervalo entre o sexto e o sétimo selos
8.1-5 O sétimo selo
APOCALIPSE 1 2132

8.6-11.19 As sete trombetas


8.6-12 terceira e quarta
SI-'llllflllri.

8.13-9.21 Quinta e sexta trombetas


10.1-11.14 Intervalo entre a sexta e a sétima trombetas
11.15-19 A sétima trombeta

12.1-14.20 O conflito entre a igreja e os poderes do mal


12.1-17 A mulher, o dragão e o libertador
13.1-18 O anticristo e o seu profeta
14.1-20 Oráculos do reino e do juízo

15.1-16.21 As sete taças da ira ... ~ ...._._._


15.1-8 Introdução às taças da ira
16.1-21 Descrição dos julgamentos das taças

17.1-19.10 O reinado e a ruína da cidade do anticristo


17.1-6 A visão na sua
17.7-18 A interpretação da visão: a condenação da Babilônia
18.1-24 Um lamento sobre a Babilônia
19.1-10 Ações de graça pelo juízo sobre a Babilônia

19.11-22.5 A revelação do Cris!o e da cidade de Deus


19.11-21 O cavaleiro do cavalo branco
20.1-3 A prisão do dragão
20.4-6 O milênio
20.7-10 A última insurgência do mal
20.11-15 O juizo final
21.1-8 A nova criação
21.9-22.5 A cidade de Deus

22.6-21 O epílogo

COMENTÁRIO Uma revelação pode estar associada


a um ato de desvelamento, ou a um obje-
1.1-8 O prólogo to descoberto; assim aqui a revelação de
Assim como o prólogo do evangelho de Jesus Cristo pode denotar o processo em
João serve como um tipo de abertura do que o Senhor revela os fins da história, ou
livro, anunciando os seus temas principais a verdade que é revelada. Esta está em vis-
e colocando o leitor numa posição da qual ta prioritariamente, sem descartar aquele.
possa compreender a história de Jesus, as- A revelação foi dada a Jesus da parte de
sim o prólogo de Apocalipse serve a um Deus, assim como no evangelho o Filho
propósito semelhante. Ele também declara fala somente o que o Pai lhe deu (10 3.34;
os seus temas principais e fornece um mi- 8.26). A mediação de um anjo está em
rante do qual o leitor pode interpretar cor- harmonia com as visões dos profetas e os
retamente a visão que segue. autores apocalípticos (cf Ez 8; Dn lO). O
2133 APOCALIPSE 1

anúncio de Cristo, Deus e do anjo como é especialmente adequada para os leitores


fonte da revelação confere uma autoridade aos quais o livro foi primeiramente ende-
extraordinária ao ensino do livro. A ideia é reçado. Jesus era a Testemunha suprema
destacada ainda mais no v. 2: a revelação de Deus, e ele morreu por conta do seu
é a testificação de João à palavra de Deus e testemunho (cf Mc 14.62,63; lTm 6.13, e
ao testemunho de Jesus Cristo, i.e., a men- observe que o termo grego para "testemu-
sagem de Deus e o testemunho de Cristo. nha" veio para o português como "mártir");
A bênção do v. 3 é a primeira de sete o Primogênito dos mortos indica que, pela
contidas no livro (cf 14.13; 16.15; 19.9; sua ressurreição, Jesus assumiu o primeiro
20.6; 22.7,14). Ela declara a "felicida- lugar no reino de Deus (primogênito = her-
de" (bem-aventurança) daquele que lê o deiro) e o abriu para toda a humanidade; o
Apocalipse a uma congregação e daque- Soberano dos reis da terra aponta para a
les que ouvem a sua mensagem e a levam sua supremacia sobre os governantes hostis
a sério. (O conceito hebraico por trás de deste mundo, cuja oposição não pode im-
bem-aventurados tem a ideia de: "Oh, a pedir a vitória do seu reino.
felicidade de!".) A doxologia dos v. 5,6 reflete um tema
O Apocalipse é dirigido às sete igrejas fundamental de Apocalipse, a saber, o con-
que se encontram na Àsia (4). A natureza ceito da redenção como o segundo êxodo.
do livro como carta é reforçada pela bên- O primeiro êxodo resultou na libertação
ção invocada sobre as igrejas (4,5). É uma de Israel da escravidão no Egito para que
oração por graça e paz; aquela é uma bên- os israelitas pudessem se tornar o povo da
ção característica da nova época instituída aliança de Deus no Sinai e o povo de Deus
por Cristo, esta, da antiga aliança; juntas, livre na terra prometida. A sua esperança
abrangem a salvação do reino de Deus. A foi resumida na crença de que as obras
bênção é trinitária, embora, como muita do "primeiro Redentor" (Moisés) seriam
coisa em Apocalipse, tenha um pano de repetidas pelo "segundo Redentor" (o
fundo complexo. O primeiro elemento dela Messias). Essa esperança Deus fez passar
reflete o nome de Deus revelado a Moisés por Jesus mediante a sua morte e ressurrei-
(Êx 3.14), mas como interpretado pelos ção e vai completá-la pela sua vinda futura.
judeus contemporâneos. O Targum de O Redentor nos ama - eternamente, nos
Jerusalém de Deuteronômio 32.29 ampliou libertou dos nossos pecados - de uma vez
a expressão "Eu sou o que sou" para: "Eu por todas, e nos constituiu reino, sacerdotes,
sou o que é, e que foi, e eu sou o que serei", i.e., reis e sacerdotes no serviço de Deus,
com isso estabelecendo Deus como Senhor assim levando ao cumprimento o chamado
de todas as eras. O nosso texto modifica de Israel no Sinai (v. Êx 19.6; e Ap 5.10;
isso significativamente: Deus não é somen- 22.5). Jesus adorou, amou, confiou e obe-
te o Senhor das eras, é da sua natureza tam- deceu ao seu Deus e Pai, como o devem fa-
bém que ele é o que há de vir e atingir o seu zer todos os cristãos. Surpreendentemente,
propósito. Isso ele faz, e fará, por meio de no entanto, Deus nunca é tratado como
Jesus (a pista que aponta para a vinda do Pai dos crentes em Apocalipse: o relacio-
Senhor no final dos tempos é inconfundí- namento de "Pai" é reservado para Jesus
vel). Nesse contexto, os sete Espíritos que somente, assim destacando o seu relaciona-
se acham diante do seu trono precisam de- mento singular com Deus.
notar o Espírito Santo; há uma semelhan- O v. 7 tem sido chamado de lema do
ça aqui com Zacarias 4.6,10 (cf Ap 5.6) e livro de Apocalipse. A primeira linha da
com o Espírito Santo como o Espírito das frase ecoa Daniel 7.13, o restante extrai
sete igrejas e, portanto, da igreja toda (cf algumas coisas de Zacarias 12.10; a mes-
Ap 2.7 etc.). A descrição de Jesus no v. 5 ma conexão é feita em Mateus 24.30 (mas
11
APOCALIPSE 1 2134

não em Me 14.62). O trecho de Zacarias Patmos porque tinha pregado a palavra


fala especificamente das "tribos" de Israel de Deus e o testemunho de Jesus Cristo!
se lamentando ("A terra pranteará, cada A visão foi antes a ocasião do seu cha-
família à parte"), e do seu pesar amargo mado para receber e escrever Apocalipse.
como o lamento sobre um primogênito, e Sua autodescrição como irmão vosso e
consequentemente abre-se uma fonte para companheiro na tribulação, no reino e na
a remoção de todo o pecado e impureza perseverança, em Jesus (9) é significati-
(Zc 12.10-13.1). O fato de que todas as va; esse era o destino comum da maioria
tribos da terra se lamentarão por causa dos cristãos no primeiro século d.e. (cf
dele é natural, visto que todos estão envol- Jo 16.33), e João previu uma intensificação
vidos na morte de Cristo por causa dos seus dos sofrimentos e da perseverança exigida
pecados. Não se pode definir se o lamento mais tarde (cf cp. 11-13). A tribulação e
de toda a humanidade pelos seus pecados o reino fazem parte do padrão messiâni-
contra Cristo significa o arrependimento co (Lc 24.26); estar em Jesus, portanto, é
aceitável a Deus ou o remorso tardio. Em experimentar ambos agora, com vistas ao
15.3,4, temos a sugestão de que a primeira compartilhamento da glória no futuro.
interpretação é possível. João estava em espírito, no dia do
A declaração de que Deus é o Alfa e Senhor (10), i.e., numa condição de êxtase,
Ômega (8) é uma forma pictográfica de não por ser transportado para ver os even-
afirmar que Deus é soberano sobre todas tos do "dia do Senhor", mas por receber
as eras. Alfa é a primeira letra do alfabeto a visão no "dia que pertence ao Senhor"
grego, Õmega é a última; o equivalente em (como na expressão "ceia do Senhor";
português seria: "Eu sou o A e o Z". Os ju- 1Co 11.20). A expressão "dia do Senhor"
deus estavam acostumados a usar uma ex- provavelmente foi modelada segundo o
pressão semelhante na sua própria língua. comparável Sebaste, i.e., "dia de César",
Os rabinos, por exemplo, diziam que Adão que, por sua vez, imitava a ação do
transgrediu a lei "de A até Z", ao passo que Ptolomeu egípcio Euergetes, que denomi-
Abraão a cumpriu "de A até Z". Isso su- nou o 25° dia de cada mês de "dia do rei"
gere que Eu sou o Alfa e o Ômega signi- em honra à sua coroação ocorrida no dia
fica: "Eu sou o início da história e o fim 25 de Dios. Pensa-se que o dia de César
da história e o Senhor de tudo que está no era observado semanalmente em algu-
meio". Isso está implícito na tradução da mas regiões. Evidentemente um cristão
linha seguinte: o Senhor Deus [...] o Todo- desconhecido reivindicou o título "dia do
Poderoso mantém o seu controle sobre o Senhor" para celebrar o dia em que Jesus,
mundo desde o início até o fim de todos os o Senhor apontado pelo próprio Deus para
tempos, mesmo quando os poderes deste governar este mundo, ressurgiu da morte
mundo resistem à sua vontade, e ele tem a para compartilhar do trono de Deus.
intenção de vir e cumprir o seu bom propó- A lista das sete igrejas (11) está na or-
sito para o mundo. (Observe que a símile dem de sua ocorrência na estrada que ia de
de "Aa Z" é aplicada a Jesus em 22.13.) Éfeso para o norte através de Esmirna para
Pérgamo e então para o sul passando por
1.9-20 O chamado de Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. e.
João à profecia Hemer sugere que esse itinerário já existi-
A visão traz à memória experiências dos ra desde os dias de Paulo e concordou com
profetas do AT quando receberam o seu cha- sir William Ramsay em que as sete cidades
mado à profecia. É duvidoso, no entanto, tinham adquirido "importância especial
que isso signifique o início do ministério como centros organizacionais e de difusão
profético de João; ele tinha sido banido a para a igreja da região" (The Letters to the
11
2135 APOCALIPSE 1 ••
1111

Seven Churches of Asia, JSNT Supp., 11 sua boca é uma alusão ao papel do Senhor
[1986], p. 15). As cidades eram centros tan- como juiz da humanidade, sendo o poder
to postais quanto administrativos. Tem-se da sua palavra irresistível. Esse é o Senhor
estimado que na época em que João escre- que tinha na mão direita sete estrelas, i.e.,
veu, essa região tinha a maior concentração as igrejas; ele tem poder não somente para
de cristãos do mundo. Ao escrever a essas julgar o mal, mas para sustentar aqueles
igrejas, João podia atingir não somente ou- que são seus (cf v. 20).
tros cristãos na Ásia Menor, como também A reação de João à visão do Senhor
os cristãos espalhados pelo mundo inteiro. exaltado é semelhante à de todos os que
A figura dos sete candeeiros de ouro tiveram tal experiência (cf Is 6.5; Ez 1.28;
(12) lembra o candelabro de sete ramos no Dn 7.28). Eu sou o primeiro e o último e
templo de Jerusalém (Êx 25.31; Zc 4.2); aquele que vive é uma exposição de "Alfa
mas o único povo de Deus é representado e Ômega" no v. 8 (cf também Is 44.6;
aqui como sete candeeiros, e no meio de- 48.12), mas é aplicada a Cristo à luz da sua
les está o Senhor ressurreto. A igreja toda, morte e ressurreição. O primeiro e o último
portanto, está representada em cada uma se tomou encarnado e morreu e ressusci-
dessas congregações, e cada uma tem co- tou, e como aquele que vive tem o poder
munhão com o Redentor. sobre a morte e o domínio dos mortos, e
A descrição do Senhor ressurreto nos assim abriu as portas do reino eterno para
v. 13-16 ecoa a do "Ancião de Dias" em toda a humanidade.
Daniel 7.9 e do anjo poderoso em Daniel A ordem Escreve, pois, as coisas que
10.5,6. A intenção é mostrar que o Senhor viste, e as que são, e as que hão de acon-
possui a glória do céu e compartilha da tecer depois destas (19) é considerada co-
semelhança de Deus. A expressão um se- mumente uma indicação das divisões de
melhante a filho de homem remonta dire- Apocalipse. Com base nessa compreensão,
tamente a Daniel 7.13 (e não aos evange- as coisas que viste é a visão que acabou
lhos), em que ele é aquele a quem é dado de ser dada; as que são denota as cartas às
o reino do mundo, o representante tanto de igrejas nos cp. 2-3; as que hão de acon-
Deus quanto do seu povo. O fato de que tecer abrange as visões dos cp. 4-22. Isso
vestia vestes talares ("com uma veste que é possível, mas não se aplica aos cp. 4-5,
chegava aos seus pés", NVI) poderia indicar que descrevem eventos presentes, passados
o seu caráter sacerdotal (o sumo sacerdote e futuros (como também o faz o cp. 12). É
de Israel vestia tal veste; Êx28.4); mas con- melhor considerar o v. 19 uma ordem para
siderando que tal veste era usada também escrever todo o livro de Apocalipse, e não
por homens de elevada hierarquia, não se uma análise do livro propriamente dito.
pode forçar esse ponto. Que a sua cabeça A interpretação de sete estrelas como
e cabelos eram brancos é uma semelhança sendo os anjos das sete igrejas tem gerado
propositada com Daniel 7.9, em que Deus dificuldades. Entender anjos num sentido
é descrito assim. A aplicação dos atributos literal levanta a questão de por que João
de Deus a Cristo é um fenômeno constante recebeu a ordem de escrever a anjos. De
em Apocalipse. Os olhos, como chamas de todo o modo, as cartas têm em mente as
fogo (cf Dn 10.6) penetram as profunde- igrejas em si e membros individuais. Os
zas do coração, e são adequados para al- "anjos" seriam então os líderes das igrejas,
guém que julga o mundo. A voz como voz como bispos ou mensageiros ("anjo" signi-
de muitas águas (em Ez 43.2: "voz [...] fica "mensageiro", não importa se celestial
como ruído de muitas águas") descreve a ou terreno)? Isso é possível, mas seria uma
voz impressionante de Deus. O fato de que exceção na literatura apocalíptica que an-
uma afiada espada de dois gumes saía da jos simbolizassem homens, e, repetindo,
APOCALIPSE 2 2136

as cartas têm em vista as igrejas, não seus (At 19.1-10). De acordo com a tradição
líderes. A maneira mais plausível é enten- posterior, o apóstolo João e Maria, mãe de
der os anjos das igrejas como as igrejas em Jesus, se estabeleceram ali. 1 A saudação
relação ao seu Senhor exaltado. Embora de abertura cita 1.12,20: o Senhor conserva
vivam na terra, sua existência é determina- na mão direita as sete estrelas. Isso indica
da pelo fato de que elas estão em Jesus (9), que ele mantém a vida espiritual das igre-
e assim são sacerdotes e reis com Cristo. jas; ele anda no meio dos sete candeeiros
A natureza angelical da igreja lembra os de ouro, e assim está presente em todas as
cristãos para que realizem na terra o seu igrejas. Mas o poder que sustenta também é
chamado celestial. Ajudá-las a fazer isso é capaz de remoção judicial; o título, portan-
o propósito das sete cartas. to, prepara o ouvinte para o v. 5.
2,3 Conheço as tuas obras está no iní-
2.1-3.22 As cartas cio de todas as cartas, às vezes transmitin-
às sete igrejas do encorajamento (e.g., 2.9,13) e às vezes
Essas cartas são breves e muito densas no causando vergonha (e.g., 3.1,15). Aqui
seu conteúdo. Elas nos lembram os orácu- introduz um elogio. As obras dos efésios
los proféticos breves do AT, acima de tudo são labor e perseverança; aquele se mostra
os de Amós 1-2, que também são sete em nos esforços de vencer os falsos mestres;
número. As cartas às igrejas têm uma es- esta, na persistência em face da oposição,
trutura quase idêntica. Começam com uma não importando se de falsos mestres ou de
descrição de Cristo, extraída da visão ini- outra origem. Os homens maus são os que
cial, citando elementos que têm relevância a si mesmos se declaram apóstolos e não
especial para a igreja endereçada; segue são. É provável que essas sejam as pessoas
o elogio das características louváveis da denominadas no v. 6 como nicolaítas. A
igreja e então vem a crítica às suas falhas. maldade deles não está tão associada à sua
Concluem com uma promessa de recom- doutrina quanto ao mal moral ao qual a
pensa a ser concedida no advento de Cristo, doutrina deu vazão. (Acerca dos nicolaítas,
geralmente associada às características da v. comentário de 2.14,15.)
visão da cidade de Deus no final do livro. 4,5 A falha dos efésios foi a deturpação
da sua principal virtude: abandonaste o teu
2.1-7 A carta à igreja de Éfeso primeiro amor. O chamado ao arrependi-
Éfeso era uma das grandes cidades do mento e que voltem à prática das primei-
oriente antigo e de longe a maior cidade da ras obras sugere que a falha desses cristãos
Ásia Menor. Ela se orgulhava do seu título: não foi principalmente a perda do amor por
"Guardiã do Templo", que originariamente Deus, mas a perda do amor pelas pessoas.
se referia ao templo de Ártemis (Diana), Quando o ódio pelas práticas dos que er-
mas mais tarde incluiu dois templos devo- ram (6) se toma ódio pelos que erram, os
tados à adoração dos imperadores romanos. cristãos se afastaram do amor redentor de
O templo de Ártemis era um famoso lugar Deus em Cristo (cf Jo 3.16) e deturparam a
de refúgio para fugitivos, mas sua alardea- fé. Daí a severa advertência no v. 5: Venho
da "salvação" era grandemente abusada, a ti denota uma vinda em julgamento, as-
e a área em seu redor dava aos criminosos sim como o Senhor virá um dia ao mundo
um santuário além do alcance da lei, tor- para varrer dele o mal. A remoção do can-
nando-se o quartel general do crime organi- deeiro [...] do seu lugar não pode significar
zado. O interesse do populacho em mágica nada menos que o fim do reconhecimento
e superstição é ilustrado em Atos 19.13-20. de Cristo dessa igreja como uma igreja sua.
Paulo fundou a igreja em Éfeso e fez dela Ela se tomará tão privada de Cristo como
o centro de evangelização da província o templo de Jerusalém se tomou vazio
111
2137 APOCALIPSE 2 _-

-l1li
de Deus logo antes da sua destruição (cf essa vida e a natureza humana, eles agora
Ez 11.22,23; Mt 23.38). Tão grave é o pe- aprendem que a vida eterna no paraíso de
cado da falta de amor numa igreja cristã. Deus é sua por meio da cruz daquele que
7 A ordem Quem tem ouvidos, ouça o morreu e ressuscitou.
que o Espírito diz às igrejas aparece nas
promessas aos vencedores em todas as 2.8-11 A carta à igreja de Esmirna
sete cartas. É improvável que o Espírito Esmima era um porto, e sua prosperidade
fale somente as promessas; ele fala nas em virtude da sua posição estava bem fir-
cartas como um todo. É de esperar que o mada já em épocas pré-cristãs e continua
Senhor ressurreto se dirija às igrejas por (como Izmir) até o dia de hoje. A primei-
meio do Espírito Santo. Isso está em total ra cidade nesse local foi destruída em 600
concordância com o ensino de Jesus nos a.C., e foi reconstruída pelo sucessor de
discursos do cenáculo em João 14-16 (v. Alexandre, o Grande. A imagem da fênix,
especialmente Jo 16.12-15). O crente que o pássaro lendário que surge das cinzas
vence o faz pelas virtudes da conquista de da sua destruição, foi aplicada a Esmima.
Cristo sobre todos os poderes do mal; ele Esse não é o único exemplo de igreja que
compartilha da vitória do seu Senhor (cf reflete a história da cidade em que está es-
12.11; Jo 12.31,32; 16.33). Ao vencedor tabelecida. Pois um tema predomina nessa
será dado que se alimente da árvore da breve carta, que é o de sofrer perseguição.
vida que se encontra no paraíso de Deus. Daí a saudação do Senhor na frase de aber-
O termo paraíso é uma palavra tomada do tura Estas coisas diz o primeiro e o último,
persa, denotando especialmente um parque que esteve morto e tornou a viver. A igreja
cercado por um muro. O termo foi usado é lembrada de que o Senhor é o vencedor
na LXX para traduzir a palavra "jardim" da morte e a venceu por causa deles. Quis
(Éden). Na literatura judaica, "jardim do a providência que um dos cristãos mais co-
Éden" e "paraíso" eram palavras usadas nhecidos da igreja das primeiras décadas
como referências ao lugar de habitação dos de cristianismo estivesse sentado na con-
justos na vida futura. Os mestres judeus gregação quando essa carta foi lida. Era
falavam, portanto, do paraíso de Adão, do Policarpo, que mais tarde se tomou o bispo
paraíso dos abençoados no céu e do paraí- de Esmima e foi morto como mártir c. 160
so dos justos no futuro reino de Deus. É d.e. Quando no seu julgamento recebeu a
o último desses significados que está na ordem de amaldiçoar a Cristo, afirmou que
mente do autor nessa promessa. Adão e tinha servido o Senhor durante 86 anos e
Eva perderam o acesso à árvore da vida e que tinha recebido somente o bem dele;
foram expulsos do jardim (Gn 3.22,23); o como poderia agora amaldiçoar o seu rei?
crente que compartilha da vitória do seu 9 A tribulação e a pobreza dos cristãos
Senhor recebe a promessa de que ambas de Esmima provavelmente ocorreram em
as bênçãos serão devolvidas (cf 22.2). virtude das perseguições que eles sofre-
Uma palavra frequente como referência à ram. (Acerca disso, v. Hb 10.32-34, e con-
cruz de Jesus no NT é "árvore" ("madei- trastar com o que se diz dos de Laodiceia
ro", ARA e ARe; especialmente nos lábios em 3.17.) A blasfêmia pronunciada pe-
de Pedro; v. At 5.30; 10.39; lPe 2.24). O los judeus de Esmima é característica da
templo de Ártemis foi construído num san- amargura dos judeus contra os cristãos
tuário de madeira, e uma árvore com fre- nessa cidade, e é mencionada por outros
quência simbolizava Éfeso ou a sua deusa. escritores cristãos. Esses judeus aprovei-
Enquanto os crentes efésios antigamente tavam qualquer oportunidade para dar in-
consideravam a árvore de Ártemis o cen- formações que prejudicassem os cristãos.
tro da vida divina e o intermediário entre A igreja de Esmima mais tarde citou as
APOCALIPSE 2 2138

alegações dos judeus de que Policarpo ha- Ásia. De uma coisa ninguém tinha dúvida:
via resistido à religião do Estado; eles fala- Pérgamo era o centro religioso da provín-
ram dele como "mestre da Ásia, o pai dos cia. A cidade era dominada por uma enorme
cristãos, o destruidor de deuses, que ensi- colina que se erguia a mais de 300 metros
na muitos a não sacrificar e a não adorar". acima do nível do mar e possuía muitos
Tais judeus já não eram dignos do nome templos. O mais famoso era o templo de
judeus, mas tinham se tornado sinagoga de Asclépio, o deus da cura, intimamente as-
Satanás (cf Nm 16.3, que traz: "a sinago- sociado à serpente, que deu a Pérgamo uma
ga do Senhor" na LXX). O nome Satanás reputação como a de Lourdes hoje. Havia
significa acusador, caluniador; esse grupo também um enorme altar de Zeus, cons-
de judeus tinha se aproximado da natureza truído para comemorar uma extraordinária
dele. Naturalmente essa não é uma indica- vitória. Mais importante de tudo, Pérgamo
ção do ponto de vista que João tinha dos tinha o primeiro templo da região dedicado
judeus; ele mesmo era judeu! Isso reflete a a Augusto de Roma, e por isso se tornou o
profundidade da apostasia à qual essa con- centro da adoração do imperador na pro-
gregação tinha afundado. víncia. Visto que isso significava uma afi-
10 O Diabo, por meio dos seus instru- liação tanto política quanto religiosa, criava
mentos, vai colocar alguns dos cristãos de problemas peculiares para os cristãos. Os
Esmirna na prisão, e a perseguição deles títulos de Senhor, Salvador e Deus eram
vai durar dez dias. A prisão não era para constantemente aplicados ao imperador, ao
castigo, mas para esperar a sentença, fosse que os cristãos precisavam resistir à luz da
para trabalhos forçados em minas de sal, ou atribuição única desses títulos a Jesus.
para a deportação ou para a morte. A perse- 12 Os títulos ecoam 1.16 e prenunciam
guição será breve, mas poderá ser suficien- 2.16.
te para que alguns paguem com o sacrifício 13 O Senhor reconhece Pérgamo como
definitivo. Se isso acontecer, permanece a o lugar onde está o trono de Satanás. Isso
certeza da coroa da vida do Senhor, i.e., a mais provavelmente está associado ao al-
coroa de louros para o vencedor dos jogos tar de Zeus parecido com um trono, em si
que consistirá (na sua aplicação) à vida no mesmo um símbolo da idolatria que do-
reino de Deus. minava Pérgamo. Porém, esses cristãos
11 O consolo do vencedor é que de ne- se conservavam fiéis ao nome de Jesus, o
nhum modo sofrerá dano da segunda morte. único Senhor, Salvador e Deus encarnado.
Essa é uma expressão judaica, que contras- Claramente tinha havido uma persegui-
ta a morte que todos têm de sofrer com a ção, quando um dos seus membros tinha
sorte daqueles que estão destinados para sido executado, Antipas, minha testemu-
nunca escaparem do seu poder, ou porque nha, meu fiel. Essa pode ter sido a primei-
são indignos da ressurreição da morte ou ra ocorrência do termo testemunha (gr.
porque sofrem o juízo no final dos tempos martyr) num emprego consciente para se
(em 21.8, significa ser lançado no lago de referir a alguém que entregou a vida por
fogo). Tal condenação é morrer duas ve- conta do testemunho de Cristo.
zes. Os de Esmirna são lembrados de que 14 Mas a igreja nessa cidade tem al-
morrer pela ira humana é pouco compara- guns que sustentam a doutrina de Balaão,
do ao sofrimento do juízo de Deus. à qual está associada a doutrina dos nico-
laítas. Desde tempos antigos, estes eram
2. 12-17 A carta à igreja de Pérgamo considerados seguidores de Nicolau de
Durante muitos anos, houve rivalidade en- Antioquia, um dos sete apontados para
tre Éfeso, Esmirna e Pérgamo a respeito de ajudar os apóstolos de Jerusalém (At 6.5).
qual delas era a cidade mais importante da Considerava-se popularmente que os dois
nomes tinham semelhança de significado.
2139 APOCALIPSE 2

assim tendo acesso à casa uma da outra.


<
Nicolau significa "ele vence o povo" e Uma extensão desse costume era o uso
Balaão "ele consumiu o povo". O mal em de uma pedra como permissão para entrar
questão era armar ciladas diante dosfilhos numa festa; quando se aplicava a uma asso-
de Israel para comerem coisas sacrifica- ciação que fazia festas regularmente podia
das aos ídolos e praticarem a prostituição. ser cara e restrita - como um clube de aces-
Depois que Balaão pronunciou os seus orá- so exclusivo hoje. Há evidências de que se
culos de bênção em vez de maldição sobre doava aos vencedores dos jogos uma pedra
Israel (Nm 22-24), os israelitas se envol- que servia de recompensa e era patrocinada
veram em imoralidade sexual com as mu- com recursos públicos. Muito depende nas
lheres moabitas e comeram seus sacrifícios possibilidades de interpretação da identida-
e adoraram seus ídolos (Nm 25.1,2). Em de do nome novo escrito na pedra. Se era o
Números 31.16, está dito que as mulhe- nome do cristão, então a promessa indicaria
res moabitas agiram segundo o conselho a entrada num relacionamento distinto na
de Balaão. Em Pérgamo, como em outros nova vida do reino de Deus. Se era o nome
lugares, mestres tinham se infiltrado nas de Deus (cf 3.12), ou de Cristo (cf 19.12b),
igrejas e tentaram persuadir os membros então denotaria um relacionamento novo e
a agir livremente com base na verdade re- escondido com o Senhor, com uma possível
conhecida de que os cristãos não estavam alusão ao poder inerente ao nome de Deus.
debaixo da lei mosaica. O conceito de uma O cristão participa no poder do Senhor e,
sociedade permissiva certamente não é de uma maneira singular compartilhada por
nova! Como tampouco os seus males. ninguém, da natureza de Deus.
16 O Senhor chama ao arrependimen-
to (i.e., a que se voltem de tal pecado), se 2. 18-29 A carta à igreja de Tiatira
não ele virá sem demora para exercer juízo Tiatira era uma cidade de artesãos e mer-
sobre os que ensinam e agem dessa forma cadores. Lembramos que a primeira con-
(cf 2.5). vertida na Macedônia foi Lídia de Tiatira,
17 A promessa ao vencedor é dupla. uma vendedora de púrpura (At 16.14). O
Dar-lhe-ei do maná escondido. Isso está problema maior para a igreja era apresen-
em harmonia com a concepção da reden- tado pelas muitas guildas (associações)
ção como um segundo êxodo. Os judeus profissionais na cidade. Isso era incomum,
colocavam isso desta forma: "Assim como no fato de que a administração romana as
o primeiro Redentor trouxe o maná, assim desencorajava; mas se pensa que Tiatira
também o segundo Redentor trará o maná". era útil para os romanos como fornecedora
Para o cristão, sem dúvida, isso recebe um de artigos para as tropas aquarteladas em
significado espiritual, semelhante à "água Pérgamo perto dali, assim que eles tolera-
da vida" (cf 22.17). A pedrinha branca é vam essas guildas. Os cristãos, no entanto,
ambígua, no aspecto de que tinha uma di- não podiam. As guildas tinham um deus
versidade de significados e usos na socie- patrono; o deus local de Tiatira, uma repre-
dade antiga. Um indivíduo no julgamento sentação de Apolo, provavelmente servia a
recebia dos jurados uma pedra; uma pedra esse propósito. As festas das guildas eram
preta indicaria culpa, uma pedra branca, ab- celebradas num templo e eram vistas como
solvição. Se isso estava em mente aqui, a ocasiões religiosas; a carne era oferecida ao
promessa estaria associada à que foi dada deus, assim que os participantes a compar-
aos de Esmirna (2.11). Existia o costume tilhavam com ele, e a ocasião não raro ter-
segundo o qual duas pessoas que quisessem minava em libertinagem. Como os cristãos
selar uma amizade partiam uma pedra ao poderiam participar de tais reuniões? Essa
meio, e cada pessoa retinha uma metade, mulher, Jezabel, tinha uma resposta (20).
APOCALIPSE 2 2140

o v. 18 ecoa 1.14b e 15a. Olhos como são os mesmos que os seus filhos - todo
chama de fogo. O bronze polido era uma o grupo dos seus seguidores será levado ao
liga muito conhecida e produzida em seu fim, e todas as igrejas conhecerão por
Tiatira, embora seja estranho que o termo experiência o que já conhecem na teoria,
técnico usado para ele não ocorra em ne- que o Senhor sonda mentes e corações e
nhum outro lugar da literatura grega. Sua retribui de acordo com as obras.
associação com a representação local de 24 A expressão as coisas profundas de
Apolo, e a descoberta de moedas nas quais Satanás poderia ser uma referência irônica
ele é retratado como segurando a mão do às afirmações dos gnósticos de que conhe-
imperador, podem estar em mente nessa in- ciam (de maneira exclusiva) os segredos
trodução, em que o Filho de Deus é descrito profundos de Deus; a resposta do Senhor
como pronto para a batalha numa armadura a tal reivindicação seria então que os seus
brilhante como o metal refinado nas forna- "segredos profundos" eram inspirados por
lhas da cidade! As obras mencionadas no v. Satanás, não por Deus. Como alternativa,
19 são significativas, não por último para a os nicolaítas podem ter ensinado que os
compreensão do que é aceitável a Deus, e cristãos não deveriam hesitar em aprender
para a interpretação do juízo de acordo com os "segredos de Satanás", mas antes mos-
as obras em 20.12-14. Aqui estava uma trar a sua superioridade sobre os pecados
igreja que estava crescendo no seu serviço da carne, visto que de qualquer forma es-
a Cristo (e as tuas últimas obras, mais nu- tes não podem afetar o espírito interior.
merosas do que as primeiras). Qualquer interpretação requer o repúdio de
20 Mas a igreja permitiu que uma profe- tais noções. Outra carga não jogarei sobre
tisa exercesse um ministério perigoso entre vós alude às duas principais exigências do
eles. Jezabel é claramente um nome simbó- concílio apostólico em Atos 15.28, a saber,
lico, lembrando a rainha do rei Acabe, que a abstenção de comida sacrificada para os
introduziu a idolatria em Israel e ameaçou ídolos e a imoralidade. O chamado à per-
a continuação da existência da verdadei- severança no v. 25 aparece novamente em
ra religião (v. lRs 16.29-32; 2Rs 9.22). 3.11, mas com um acréscimo significativo.
Alguns manuscritos trazem uma variante 26,27 O vencedor é descrito como um
curiosa no v. 20 tua esposa Jezabel; é pou- que guarda até o fim as minhas ordens. Tal
co provável que esteja correta, mas reflete pessoa deve receber a delegação da auto-
a crença de que a profetisa tenha sido a ridade de Cristo sobre as nações e com-
esposa do "anjo" da igreja, a saber, o seu partilhar do seu triunfo sobre os povos
bispo. Jezabel teria sido da ordem dos ni- rebeldes. Os verbos no v. 27 - regerá e
colaítas e teria encorajado os membros da [00'] reduzirá a pedaços - estão em para-
igreja a não ter escrúpulos quanto à parti- lelismo, e qualquer um deles pode ser visto
cipação nos encontros das guildas e assim como determinando o significado do outro.
se envolver livremente na prostituição e na Enquanto a maioria dos estudiosos opta
ingestão de coisas sacrificadas aos ídolos. pelo segundo (i.e., destruir), o primeiro es-
Isso é típico da atitude da "moralidade que taria em melhor concordância com o con-
vai além" dos gnósticos libertários. texto: os cristãos em Tiatira, conscientes
21 Jezabel já tinha sido advertida para da sua impotência, recebem a promessa de
que encerrasse a sua influência perniciosa, poder sobre os seus adversários. (Observe
mas sem resultados. Por consequência, ela que o termo traduzido por "reger" aqui sig-
e os que simpatizavam com ela tinham de nifica lit. "pastorear" e originariamente se
ser castigados. A linguagem nos v. 22,23 referia ao uso do cajado do pastor, e assim
é claramente figurada, propondo um casti- a um cetro [SI 45.6] e também a um instru-
go adequado ao pecado. Os que adulteram mento de castigo [Is 10.24].)
2141 APOCALIPSE 3

28 Dar-Ihe-ei ainda a estrela da manhã 1 O título ecoa 1.4 e 16. O Senhor


deve ser interpretado menos em termos de ressurreto tem os sete Espíritos de Deus;
22.16, em que o próprio Cristo é a brilhan- em vista da figura de 1.4, isso poderia
te Estrela da Manhã, e mais segundo o fato representar o Espírito Santo enviado às
de que a estrela da manhã é Vênus. Para os sete igrejas. O Espírito inspira a profecia
romanos, essa estrela era um símbolo de e vivifica os mortos; essa igreja precisava
vitória e soberania; os generais romanos dar ouvidos à advertência profética e bus-
construíam templos em honra a Vênus, e car a vida vivificadora do Espírito. Como
os exércitos de César tinham o seu sinal em 2.1, as sete estrelas, as igrejas, estão
inscrito nos seus emblemas. Se isso está na mão de Cristo, tanto para segurar firme
em vista, a promessa fortalece as declara- quanto para julgar. Não tenho achado ín-
ções nos v. 26,27; o vencedor está dupla- tegras as tuas obras na presença do meu
mente certo da sua participação com Cristo Deus (2). Mas nenhuma obra é menciona-
no seu triunfo e governo. da! A congregação de Sardes necessitava
daquelas qualidades que a igreja em Tiatira
3.1-6 A carta à igreja de Sardes tinha: amor, fé, serviço, perseverança. Se
Sardes era uma cidade com um passado possuíam alguma daquelas, ou alguma se-
ilustre do qual se orgulhava, mas tinha me- melhante, eram indiferentes em colocá-las
nos do que se orgulhar no tempo de João. em prática. Nada que eles começavam era
Capital do antigo reino da Lídia, atingiu concluído. Por isso a igreja é chamada a
o ápice da sua riqueza em c. 700 a.e. sob ser vigilante (cf Ef 5.14) e a consolidar o
Gyges, conhecido aos assírios como Gugu. resto que [está] para morrer, i.e., qualquer
Os judeus chamavam esse rei de Gogue, e coisa que seja de Deus na igreja e não te-
era visto como um símbolo dos poderes do nha morrido; a lembrar do que tens recebi-
mal que surgiriam no fim dos tempos. Foi do, i.e., o evangelho apostólico e o ensino
morto num ataque surpresa pelos cimé- da vida cristã; a obedecer (guarda-o) e a se
rios. A cidade caiu no esquecimento após arrepender (3), i.e., voltar-se a Deus como
a conquista persa, mas recuperou parte de foi na sua conversão. Se não, diz o Senhor,
seu prestígio quando, por meio da ajuda de virei como ladrão. A parábola do ladrão
Tibério, foi reconstruída após um terremo- encontra eco claro aqui (Mt 24.43,44; cf
to em 17 d.e. A igreja em Sardes reflete a lTs 5.2-4), como ocorre em 16.15. Em
história da cidade; antes tinha tido uma re- vista do uso de tal linguagem nas cartas
putação de realização espiritual, mas agora a Éfeso e Pérgamo (2.5,16), no entanto,
estava sem vida (1). Dois outros elementos é provável que esteja em vista a vinda do
na vida da cidade têm eco na carta. Sardes Senhor para julgamento no presente, e não
foi construída sobre um monte e tinha uma a possibilidade de que a igreja venha a so-
acrópole que era vista como inexpugná- frer o julgamento na vinda do Senhor em
vel. "Capturar a acrópole de Sardes" era poder e glória.
expressão proverbial no grego equivalente 4 As poucas pessoas que não contami-
a tentar fazer o impossível. Contudo, nada naram as suas vestiduras são aquelas que
menos que cinco vezes a acrópole foi con- resistiram à tentação de acomodar a sua
quistada, duas vezes por falta de vigilân- vida aos costumes pagãos dos seus vizi-
cia. O paralelo com a falta de vigilância nhos. Eles, por consequência, andarão de
da igreja e sua situação terrível é marcante branco com o Senhor. 5 A mesma promes-
(2,3). Sardes também era o centro de bens sa é dirigida ao vencedor (cf 19.7,8). A
de lã e afirmava ser a primeira no negócio santidade é sempre um presente do Senhor
da tintura de lã; isso, também, parece estar operada na vida do crente, a vida do
refletido nos v. 4,5. Redentor praticada no redimido. Observe
APOCALIPSE 3 2142

ainda que a veste branca é associada à Paulo em lCoríntios 16.9 e 2Coríntios


festividade (como em 19.7,8; cf também 2.12, a saber, a abertura de oportunidades
Ec 9.8) e à vitória. Um conjunto de ideias evangelísticas. Nesse contexto, no entan-
é acrescentado à figura. Acerca do conceito to, quase certamente se refere à porta do
de apagar um nome do livro da vida, ver reino de Deus. Assim como em Esmirna,
Êxodo 32.32, em que a ideia é a de uma os judeus dessa cidade são chamados de
lista de cidadãos. Em Daniel 12.1, Lucas sinagoga de Satanás; eles não só devem
10.20, Filipenses 4.3 e neste trecho, ela ter feito oposição aos cristãos, mas afirma-
simboliza uma lista de cidadãos do reino do que estes não tinham lugar no reino de
de Deus. A confissão do Senhor acerca do Deus, visto que era somente para judeus.
vencedor ecoa Mateus 10.32: "também eu Ao contrário, o Senhor do reino já o abriu
o confessarei diante de meu Pai". para os seus seguidores, e no dia da reve-
lação ele vai levar esses judeus apóstatas a
3.7-13 A carta à igreja de Filadélfia fazer o que eles esperavam que os gentios
Filadélfia, assim como a cidade vizinha de fizessem: eles cairão diante dos cristãos
Sardes, sofria terrivelmente com os terre- que desprezaram e reconhecerão que eles
motos e, embora não tão duramente afeta- são os amados do Messias (v. Is 60.14).
da como esta no terremoto catastrófico de 10 A hora da provação que há de vir
17 d.e., ela os experimentava com maior sobre o mundo inteiro não denota o horário
frequência. Acerca desse aspecto da vida em que os juízos messiânicos virão sobre o
da cidade, Estrabão escreveu: "Os muros mundo, mas os juízos em si. Um uso com-
nunca param de rachar, e diferentes partes parável de hora pode ser visto na oração
da cidade estão constantemente sofrendo de Jesus no Getsêmani, que representa os
danos. É por isso que a cidade atual tem horrores da crucificação e tudo que ela sig-
poucos habitantes, mas a maioria vive nificou para ele (Mc 14.35; Jo 12.27). A
como camponeses nos arredores, visto que tribulação serve para testar os que habitam
ali têm terras férteis". A insegurança da sobre a terra. Essa expressão é usada re-
vida em Filadélfia é contrastada no v. 12 gularmente em Apocalipse com referência
com a promessa de um lugar permanente aos incrédulos do mundo (cf 6.10; 8.13;
na cidade de Deus, e os que viverem nela 11.10; 13.8,14; 17.8). A preservação da
não terão de achar um lugar mais seguro igreja dos efeitos desses juízos é expressa
fora dos seus muros! Toda a carta é do- em diversas imagens nesse livro dos juízos
minada pela perspectiva segura e certa da de Deus (cf 7.1-8; 11.1; 12.6) e encontra
vida no reino de Deus. um paralelo próximo em João 17.15.
7 O Senhor ressurreto é o santo, o ver- 11 É acrescentada agora uma nota
dadeiro, como o Pai (6.10), e assim se pode de urgência, que aparece novamente em
confiar nele para que cumpra a sua palavra. 22.7,12,20.
Ele tem a chave de Davi. Em 1.18, como o 12 O vencedor será coluna no santuá-
ressurreto, Jesus tem "as chaves da morte rio do meu Deus. Em 21.22, fica claro que
e do inferno", e assim pode destrancar as não haverá outro templo se não o próprio
portas da morte e conduzir à vida eterna; Deus e o Cordeiro na cidade de Deus. A
aqui a expressão lembra Isaías 22.22, que promessa dada aqui é a garantia de uni-
significa a autoridade sobre a casa de Davi dade inseparável com Deus no seu reino
e quer dizer a autoridade incontestável do vindouro. Gravarei também sobre ele o
Messias sobre a entrada para o reino de nome do meu Deus ... continua a metáfora
Deus ou sobre a exclusão do reino. da coluna, visto que a inscrição está retra-
8,9 O símbolo da porta aberta com tada como estando na coluna, e não na tes-
frequência é interpretado à luz do uso de ta do vencedor. Em lMacabeus 14.25-27,
11
2143 APOCALIPSE 3 .11
11.

temos um relato no qual os atos de Simão Senhor de executar esse propósito do qual
Macabeu foram inscritos em placas de me- ele é a garantia e fiel testemunha.
tal, que foram afixadas "em lugar visível 15,16 Os termos frio, quente e morno
nas dependências do santuário", garantindo provavelmente estão relacionados a águas
assim um registro permanente da grandeza na cidade e nas proximidades de Laodiceia.
de Simão. A glória do vencedor, no entan- Hierápolis,próxima dali, era famosapor suas
to, não deve estar nos seus atos, mas no águas termas; Colossos, também próxima
fato de que ele leva o nome do meu Deus, dali, era conhecida por um ribeiro de água
o nome da cidade de Deus e novo nome de potável fresca e cristalina. Contudo, visto
Cristo, i.e., no fato de que ele pertence a que o rio Lico secava no verão, Laodiceia
Deus e ao Filho de Deus na sua glória, e é tinha de usar um longo aqueduto para rece-
cidadão da nova Jerusalém, o reino eterno ber sua água, que não era somente morna,
de Deus (21.2). mas impura e às vezes nociva, deixando as
pessoas doentes. A igreja tinha esse efeito
3.14-22 A carta à igreja de Laodiceia sobre Cristo - um retrato vívido e horrível
Laodiceia estava situada às margens do de juízo. (O v. 16 não deve ser interpretado
rio Lico. Sua posição na encruzilhada de como indicando que o Senhor prefere um
três estradas imperiais que atravessavam ateu ou zelote religioso fanático ao cristão
a Ásia Menor favoreceu o seu desenvolvi- momo. A questão é a posse da vida genuína
mento como um próspero centro comercial em Cristo por aqueles que professam a fé
e administrativo. Três fatores conhecidos cristã, não a forma em que a expressam.)
em todo o mundo romano acerca dessa ci- 17,18 Em uma frase com expressões
dade lançam luz sobre esta carta: era um contrastantes (pois dizes [...] Aconselho-
centro bancário, cujos bancos até Cícero te), a ironia da situação dos laodicenses
recomendava para a troca de dinheiro; pro- é tomada clara para eles. Apesar da sua
duzia tapetes e tecidos de lã, feitos espe- prosperidade, eles são miseráveis e pobres;
cialmente da lã preta lustrosa das ovelhas apesar dos seus médicos, eles estão cegos;
criadas na região; e tinha uma escola de apesar da sua abundância de tecidos, eles
medicina e produzia medicamentos, no- estão nus. Por consequência, o Senhor os
tavelmente um colírio feito de uma pedra desafia a que comprem o que lhes falta (cf
triturada daquela região. A caracterização ICo 2.6-16; 2Co 4.1-6).
severa da vida espiritual da igreja (17) e 19 A condição repugnante dos laodi-
o desafio ao arrependimento (18) estão censes não apagou o amor de Cristo por
ambos expressos em termos que lembram eles; os seus juízos severos são a expressão
essas três atividades da cidade. de uma afeição que deseja conduzi-los ao
14 Como o Amém, Jesus é a personifi- arrependimento (cf Hb 12.4-11). O convi-
cação da fidelidade e veracidade de Deus te gracioso que segue no v. 20 é dado não
(v. Is 65.16). O uso cristão de "Amém" à igreja como um todo, como se Cristo es-
acrescenta a ideia de que ele é também tivesse fora da igreja (o que exigiria: "Se
aquele que garante e executa os propó- a igreja ouvir a minha voz... eu entrarei e
sitos de Deus. Essa designação está em comerei com eles, e eles comigo"), mas a
forte contraste com a infidelidade dos lao- cada indivíduo nela, transmitindo a oferta
dicenses. O título o princípio da criação do Senhor ressurreto a compartilhar com
de Deus seria mais bem traduzido por: "a qualquer um deles que abrir a porta da co-
fonte primeira de toda a criação de Deus" munhão até mesmo nas atividades mais
(NEB). É como "Alfa" no título "Alfa e comuns da vida.
Ômega" (1.8), e aqui talvez tenha a inten- 21 Assim como é oferecido um grande
ção de destacar a autoridade e o poder do privilégio a esses cristãos indignos assim é
APOCALIPSE 4 2144

anunciada uma promessa ainda maior do visão tem o propósito da revelação, para
que as anteriores: assim como os crentes que ele possa transmitir o que vê aos que
convidam a Cristo para fazer morada com estão na terra.
eles nesta vida transitória, assim o Senhor 2 O primeiro objeto a captar a visão
vai convidar qualquer que perseverar até o de João é um trono, e, no trono, alguém
fim a compartilhar com ele na era vindoura sentado. É de primeira importância saber
o trono que o Pai lhe deu. O cumprimento que o Deus que habita no céu possui auto-
da promessa é retratado em 20.4-6, o go- ridade absoluta sobre o universo. 3 Não se
verno "milenar" na história, e em 22.5, o dá nenhuma descrição de Deus; João sim-
governo eterno na nova criação. plesmente relata de diversas cores ema-
nando de pedras preciosas reluzentes por
4.1-5.14 Uma visão do céu meio de uma estranha nuvem-arco-íris. Há
Essa seção pode ser vista como um pon- incertezas acerca dos nomes dados a joias
to decisivo no livro de Apocalipse. Provê no mundo antigo:jaspe provavelmente era
uma compreensão mais ampla do Cristo e um diamante (cf 21.11), sardônio era ver-
da sua salvação que predominou no capí- melho, mas não temos certeza acerca da
tulo anterior, e dos juízos e do reino que esmeralda. Pode denotar cristal de rocha,
são o tópico dos capítulos seguintes. Um que funciona como um prisma, e nesse
tema único une a visão dupla dos cp. 4 e caso o arco-íris após o dilúvio é lembra-
5, a saber, que o Deus da criação é o Deus do, como lembrete da aliança de Deus para
da redenção, que leva o seu propósito à restringir a sua ira sobre a humanidade na
realização por meio do Cristo crucificado terra (Gn 9.13). O trono e o arco-íris, oni-
e ressurreto. O cp. 4 soa como uma das potência e misericórdia, são símbolos sig-
visões de Deus no AT (cf Is 6; Ez 1), em nificativos num livro cujo tema geral é o
que Deus é apresentado como exaltado em juízo de Deus e o seu reino.
santidade, muito acima das tempestades da 4 Os vinte e quatro anciãos lembram
história e dos esforços das forças do mal Isaías 24.23, em que "anciãos" eram con-
na resistência à vontade dele. No cp. 5, a siderados os líderes judeus. Esses anciãos
atenção se concentra no Cristo que venceu com frequência têm sido interpretados como
todos os poderes ímpios e com isso con- representantes de Israel e da igreja (12
quistou o direito de abrir o livro de Deus patriarcas e 12 apóstolos). Em lCrônicas
de todos os destinos e executar o que está 24.4, no entanto, lemos de 24 ordens sa-
escrito nele. Por meio da combinação das cerdotais, e em lCrônicas 25.1, de 24 or-
duas visões, fica claro que a vontade de dens de levitas designados a profetizar e
Deus na criação, celebrada no hino final louvar com harpas e címbalos. Visto que
do cp. 4, é realizada pelo Cordeiro que foi em 5.8 os anciãos apresentam as orações
morto e elevado ao trono de Deus; e assim do povo de Deus e em 4.6-11 são associa-
a história termina com o reconhecimento dos aos quatro seres viventes, eles eviden-
e a adoração de Deus e do Cordeiro por temente devem ser entendidos como seres
vivos e mortos. angelicais exaltados, adorando e servin-
do o Criador. 5 Os relâmpagos e trovões
4.1-11 O trono no céu lembram a teofania no Sinai (Êx 19.16)
O cenário das visões de João muda da e retratam a apavorante grandiosidade de
terra para o céu e permanece lá até o cp. Deus. Acerca dos sete Espíritos de Deus,
la, e depois disso o ponto de vista alterna ver 5.6. 6 Não se diz que o mar de vidro
continuamente. Precisamos observar que era literalmente um mar, mas semelhante
o profeta somente, não a igreja, é chama- ao cristal. É uma adaptação do conceito
do a passar pela porta; a sua elevação em de águas acima do firmamento (Gn 1.7),
II1II
2145 APOCALIPSE5 II1IIII1II
II1II.

mas aqui é introduzido evidentemente dose na mão de Deus para mostrar um


para destacar a grandeza de Deus. livro que ninguém pode abrir. A câmera
Quatro seres viventes estão em volta então focaliza em um que ainda não foi
do trono. Sua descrição é extraída da vi- visto: ele está em pé no meio do trono,
são de Ezequiel dos querubins (Ez 1.5- e, em virtude do seu "triunfo", ele é ca-
21), mas foi consideravelmente modifi- paz de pegar e abrir o livro. Quando ele
cada. As diferenças principais são que o faz, ecoa em todo o céu o louvor a ele.
em Ezequiel cada um dos querubins tem É possível que tenhamos aqui uma repre-
quatro rostos, mas aqui cada um tem ape- sentação da coroação de Jesus, o Senhor,
nas um. Aqueles possuem "rodas" com em termos de cerimônias de coroação
aros que eram "cheias de olhos ao redor" antigas do Oriente Médio. Os passos da
(elas levam o trono de Deus), mas aqui os coroação são geralmente definidos como
próprios seres têm olhos. 7,8 A sua adora- exaltação, apresentação, coroação e acla-
ção incessante rendida a Deus pode bem mação. O equivalente da coroação está no
representar a sujeição de toda a criação v. 5, a apresentação, no v. 6, a concessão
a Deus. Os judeus passaram a entender a da autoridade, no v. 7 e a aclamação, nos
visão de Ezequiel dessa forma, conside- v. 8-14. Assim o Cristo-Redentor assume
rando o homem o representante principal o seu reino com poder.
das criaturas, a águia, das aves, o leão, dos 1 Tem havido muita especulação quan-
animais do campo, e o novilho, do gado. A to à natureza do livro na mão de Deus.
simbolização antiga dos quatro ventos e as Entre as sugestões que têm sido propostas,
quatro constelações principais do zodíaco, duas são especialmente dignas de nota:
se conhecidas a João, serviriam para for- uma, que ele é uma escritura de contrato
talecer esse ponto de vista. O cântico dos escrita dos dois lados, a outra, que é um
querubins sugere que o triunfo futuro de testamento. Aquela remonta a tempos anti-
Deus está arraigado em sua própria natu- gos, quando os contratos eram escritos em
reza; o Senhor, que é santo e todo-pode- tábuas de pedra, cobertas de argila, e sobre
roso, é o que há de vir. 9,10 O fato de os essa superfície era brevemente descrita a
24 anciãos renunciarem à sua coroa pode natureza do contrato. Quando surgiu o pa-
parecer a expressão da adoração feita em piro ou o pergaminho, usou-se basicamen-
ocasiões especiais quando Deus "vem" e te o mesmo princípio, e o documento era
manifesta o seu poder soberano para julgar selado com sete selos. Um procedimento
e salvar (cf 5.8,14; 11.15-18; 19.4). 11 Os semelhante a isso ocorria na elaboração de
anciãos reconhecem que apenas um é dig- um testamento, no fato de que o testamen-
no de receber a proeminência na criação to era selado por sete testemunhas, e, após
- o Criador. No seu cântico que celebra a morte do testador, era aberto, se possí-
a sua dignidade é melhor traduzir por: por vel, na presença das testemunhas. Não se
causa da tua vontade vieram a existir e fo- fazia descrição alguma do seu conteúdo no
ram criadas (como está aqui na ARA; e não: exterior, mas essa característica na visão de
"por tua vontade...", ARe). Temos aqui uma João pode ter sido um eco propositado de
retrospectiva e não perspectiva; a vontade Ezequiel 2.8-10. Na verdade, as duas no-
de Deus é o poder definitivo no universo e ções estão intimamente ligadas, no sentido
essa vontade será feita. Essa é a lição su- de que um contrato é uma forma cotidiana
prema das visões de Apocalipse. de aliança, e o testamento é um tipo espe-
cial de aliança. Com base nessa compreen-
5. 1-14 O livro e o Cordeiro são, o livro na mão de Deus representa a
O foco da visão muda dramaticamente. sua promessa de aliança do juízo e do reino
É como se uma câmera de TV desse um para a humanidade.
APOCALIPSE 6 2146

2,3 O anjo precisa ser forte, pois a sua para se tomar o povo de Deus livre na ter-
voz precisa ecoar por todo o céu, pela terra ra prometida. A emancipação maior, para
e o domínio dos mortos (debaixo da terra a vida eterna no reino de Deus, foi obti-
é o hades; cf Fp 2.10). 5 O Leão da tri- da para toda a humanidade pelo preço do
bo de Judá (cf Gn 49.9), a Raiz de Davi sangue do Redentor. Por isso, os redimidos
(Is 11.1,10) venceu por meio da sua morte se tomam para o nosso Deus ["que ser-
e ressurreição, e assim é capaz de abrir o vem ao nosso Deus", NTLH) reino e sacer-
livro e os seus sete selos. A redenção opera- dotes, assim cumprindo a vocação para a
da pelo Cristo foi o meio pelo qual o reino qual o antigo povo de Deus foi chamado
e a salvação de Deus foram estabelecidos. (Êx 19.6). O seu reino sobre a terra será o
6 A descrição do Cordeiro combina diver- seu "serviço" (cf 20.4-6; 22.3).
sos usos dessa figura no pensamento he- 11-14 As hostes angelicais agora en-
braico. Ele parece como tendo sido morto, toam o cântico de louvor ao Cordeiro (cf
contudo está no meio do trono [...] de pé, Dn 7.10). A doxologia contém referências
vivo e vitorioso! Em Apocalipse, o êxo- ao poder e às bênçãos de Cristo na inaugu-
do é a figura fundamental da redenção; o ração do seu reino (lU 7) e é semelhan-
Cordeiro morto então é o cordeiro pascal. te àquela cantada a Deus em 7.12. Toda a
Também lembramos do cordeiro morto de criação no céu, na terra, no mar e no do-
Isaias 53.7, o Servo do Senhor, sofrendo minio dos mortos finalmente se junta às
inocentemente por toda a humanidade. Mas hostes dos anjos e arcanjos (13). Enquanto
o Cordeiro tem sete chifres, o que signifi- o louvor nos v. 8-12 celebra a inauguração
ca poder imenso (SI 75.4-7) e posição real do reino da salvação por parte do Cordeiro,
(Zc 1.18). Isso retoma a representação do a adoração universal de Deus e do Cordeiro
Messias como o líder poderoso (carneiro!) aguarda a sua consumação no futuro. O
do rebanho de Deus, que liberta as ovelhas, mesmo se aplica ao hino de Filipenses
derrotando as feras que tentam destruí-lo. 2.6-11: o Senhor recebeu o nome que está
Em Zacarias 4.10, é Deus que tem sete acima de todo o nome na sua exaltação
olhos, simbolizando a onisciência; aqui ao trono de Deus; o seu reconhecimento
eles são identificados com os sete Espíritos aguarda a sua manifestação na glória.
de Deus enviados por toda a terra, em con-
cordância com o ensino de João 16.7-11. A 6.1-8.5 Os sete selos
promessa do Messias e da esperança apoca- Muitos elementos complexos confluem
líptica do AT, assim, é revelada nos termos para formar o panorama que o profeta ago-
do cumprimento da nova aliança. ra descreve. A convicção de que o juízo
S-10 Os querubins e os anciãos cantam vai preceder a vinda do reino de Deus está
um novo cântico, porque Jesus introduziu arraigada no ensino dos profetas do AT con-
o novo período do reino de Deus pela sua cernente ao dia do Senhor (v., e.g., Is 13; 34;
obra redentora (cf Is 42.9,10, que fala do Jr 4-7; Ez 7; 25; Am 5.18-29; Sf 1-3).
novo cântico num contexto semelhante). João os elaborou e organizou de forma sin-
O Senhor comprou para Deus os que pro- gular, mas a divisão das calamidades em di-
cedem de todas as nações. A figura é de versos conjuntos de sete pode bem ter sido
libertar pessoas mediante um pagamento. inspirada pela profecia do juízo de Levítico
No mundo antigo, escravos eram às vezes 26, em que se diz quatro vezes: "...vos cas-
soltos mediante o pagamento de um resga- tigarei sete vezes mais" (18,21,24,28). O
te feito por pessoas generosas; no mundo discurso acerca do final dos tempos nos
moderno, reféns têm sido libertos de forma evangelhos (Mt 24; Mc 13; Lc 21) contém
semelhante. O padrão em vista aqui, con- os sete juízos enumerados em Apocalipse
tudo, é o da libertação de Israel do Egito 6, mas a forma dos primeiros quatro juízos
2147 APOCALIPSE 6 ••

••
reflete a visão dos quatro cavaleiros e ca- Mt 20.1,2). Uma medida de trigo seria su-
valos em Zacarias (cf Zc 1.7-17), adaptada ficiente para a porção diária de um homem,
por João para transmitir a sua mensagem. mas não sobraria nada para a sua família.
Observe que embora a abertura dos selos Três medidas de cevada dariam um pou-
traga os juízos, estes são apenas os precur- co mais, mas ainda assim mal dariam para
sores do reino definitivo de Deus. O livro sobreviver. Por outro lado, não danifiques
representa a aliança de Deus para dar à hu- o azeite e o vinho reflete a preocupação
manidade o reino da salvação. em que se dê prioridade para os que tive-
rem condições de adquiri-los. Em 92 d.e.,
6.1,2 O primeiro selo pouco antes de Apocalipse ter sido escrito,
A ordem Vem! É dirigida ao cavaleiro que uma escassez aguda de cereais, junto com
aparece na abertura do selo (o mesmo é a abundância de vinho no império, levaram
fato nos v. 3,5,7). Muitos intérpretes con- Domiciano a ordenar a restrição do culti-
sideram Cristo o cavaleiro vencedor e as- vo do vinho e o aumento da produção de
sociam o trecho à visão do Senhor que está grãos; a ordem gerou tal fúria que teve de
voltando em 19.11,12. O único elemento ser abandonada. Talvez o texto tenha em
em comum das duas figuras, contudo, é mente tal situação.
o cavalo branco, um símbolo de vitória.
Outros defendem que o cavaleiro represen- 6.7,8 O quarto selo
ta o triunfo do evangelho e citam Marcos O quarto cavaleiro é chamado Morte, mas
13.10 (2Ts 2.7 também é interpretado à luz é provável que represente um tipo especial
disso). Não obstante, em vista da evidente de morte, a saber, a peste. Ezequiel relata
semelhança dos quatro cavaleiros, parece dos quatro atos severos do juízo de Deus:
mais natural interpretar os quatro como "a espada, a fome, as bestas-feras e a pes-
simbolizando juízos. Este cavaleiro parece te" (Ez 14.21), e a tradução grega traz mor-
significar uma força militar esmagadora- te como tradução da última (possivelmente
mente poderosa. João faça o mesmo em 2.23, e certamente
em 18.8). Que o Inferno ["Hades", NVI] o
6.3,4 O segundo selo estava seguindo é um lembrete de que a
O cavaleiro do cavalo vermelho também morte não encerra a história da vida; o juí-
denota um poder belicoso. Se perguntar- zo aguarda os pecadores (cf Hb 9.27,28).
mos em que é diferente do primeiro, a lin-
guagem sugere que o primeiro representa 6.9-11 O quinto selo
um exército invadindo outros países; o As almas dos mártires estavam debaixo do
segundo representa uma confusão geral de altar porque eles tinham sido, por assim di-
disputas, incluindo hostilidades entre paí- zer, "sacrificados" (cf Fp 2.17; 2Tm 4.6). A
ses, e talvez até guerra civil (... para que ideia era apreciada entre os judeus. O rabi-
os homens se matassem uns aos outros). no Akiba pensava: "Aquele que está sepul-
Observe a referência dupla à guerra em tado na terra de Israel é como se estivesse
Marcos 13.7,8 e paralelos. sepultado debaixo do altar, pois toda a terra
de Israel é apropriada para o altar; aquele
6.5,6 O terceiro selo que está sepultado debaixo do altar é como
O cavaleiro do cavalo preto denota a fome. se estivesse sepultado debaixo do trono da
A balança na sua mão sugere escassez de glória". À luz de 12.17, o testemunho que
alimentos, e os preços citados são proibiti- os mártires sustentavam é o testemunho de
vos. A NVI cita corretamente na nota de ro- Jesus (v. também 1.2 e 19.10).
dapé o valor do denário como "equivalen- 10,11 A vestidura branca dada a eles
te à diária de um trabalhador braçal" (cf provavelmente seja uma representação da
APOCALIPSE 6 2148

sua justificação por meio de Cristo em face que o sétimo selo seja aberto agora e o rei-
da sua condenação pelo mundo, e assim no da glória seja revelado. Em vez disso,
é sinal e penhor da glória que serão suas João relata duas visões do povo de Deus
na "primeira ressurreição" (20.4-6). Essa nos últimos dias. A primeira relata o perío-
visão dos mártires é considerada parte in- do anterior aos juízos descritos no cp. 6; a
tegral dos juízos do Senhor, pois a oração segunda revela os redimidos na glória que
por justiça (10) é respondida, e assim o fim os segue. O propósito de João é assegurar
é apressado. aos seus leitores cristãos (e ouvintes!; 1.3)
que eles não têm necessidade de temer os
6.12-17 O sexto selo juízos dos últimos tempos visto que Deus
A descrição dos sinais cósmicos no final vai protegê-los.
dos tempos é extraída de uma série de Com frequência se imagina que as
trechos do AT que falam do dia do Senhor duas metades do capítulo estão associadas
(Acerca de um grande terremoto como si- a dois grupos de pessoas, assim que os v.
nal do fim, cf Ez 38.19,20; acerca de o sol 1-8 mostram o cuidado de Deus por Israel
se tomar negro como saco de crina e de a nos últimos tempos, ou ao menos pelos
lua se tomar como sangue, v. Is 13.10; Ez cristãos judeus, enquanto os v. 9-17 retra-
32.7,8; J12.10; 3.15; acerca das estrelas do tam os salvos das nações do mundo. Essa é
céu que caíram pela terra e do céu que se uma interpretação duvidosa. Se o selar da
recolheu como um pergaminho, v. Is 34.4; primeira visão retrata a proteção que Deus
acerca de esconder-se nos penhascos, v. fornece contra os juízos devastadores que
Is 2.10; e acerca do pedido aos montes, estão por vir sobre a terra, então todo o
v. Os 10.8.) Esses "sinais" são indicações povo de Deus precisará disso, e não ape-
não de que o fim está se aproximando, mas nas uma parte limitada dele (e isso ocorre;
que já chegou (assim o v. 17: chegou o cf 9.4). Além disso, a expressão os servos
grande Dia da ira deles). Originariamente do nosso Deus, que são selados (3), ocorre
eram expressões pictóricas do terror do em outros trechos de Apocalipse, e denota
universo diante da majestade do Criador regularmente todo o grupo dos redimidos
enquanto ele marcha e avança com juízo e (cf 2.20; 11.18; 19.2,5; 22.3,6). É prová-
libertação (v. especialmente Hc 3.6-11), e vel que João tenha sido conduzido a em-
assim serviram para aumentar a espantosa pregar uma profecia que originariamente
grandiosidade do Senhor na sua teofania. tinha o propósito de garantir aos judeus a
15-17 Esses versículos apresentam certeza de sua herança no reino de Deus.
uma classificação da humanidade que vai Ele a aplicou à igreja como o novo Israel,
desde os reis da terra até todo escravo e visto que por meio disso o seu simbolis-
todo livre. O seu clamor nos v. 16,17 é a mo vem à realização perfeita (acerca da
contrapartida do clamor dos mártires de- igreja como o novo Israel, v. Rm 2.28,29;
baixo do altar. O último dia revela a identi- Gl 3.29; 6.16; Fp 3.3; lPe 1.1; 2.9).
dade daquele que tem a autoridade defini- 1 Depois disto marca uma nova visão;
tiva sobre o universo e o juízo irresistível não é uma referência ao tempo em relação
do Cordeiro; mas o fim do seu exercício de aos eventos narrados no cp. 6, mas intro-
autoridade e juízo é o triunfo do reino da duz uma nova revelação dada a João. Os
graça e da glória (cf 21.1-22.5). quatro anjos [...] conservando seguros os
quatro ventos da terra são um símbolo al-
7. 1-17 Intervalo entre o ternativo dos quatro cavaleiros do capítu-
sexto e o sétimo selos lo anteríor (assim também em Zc 6.5). A
O sexto selo anunciou o fim da história na fúria destrutiva dos ventos representa toda
vinda de Deus e do Cordeiro. Espera-se a manifestação do juízo simbolizada pelos
2149

selos, trombetas e taças da ira. 2,3 O retrato


APOCALIPSE 7

a sua vitória a Deus e ao Cordeiro. 12 Esse


.
.rI'

do selo do Deus vivo aplicado aos servos louvor das ordens angelicais reflete o lou-
de Deus remonta à visão de Ezequiel do vor da multidão redimida.
homem com o "estojo de escrevedor", que 13,14 A resposta de João à pergunta
recebe a ordem de andar por Jerusalém e dos anciãos sugere: "Eu também gostaria
colocar uma marca na testa dos justos para de saber". A grande tribulação pela qual
que sejam poupados pelos agentes de des- a multidão passou não é uma designação
truição (Ez 9.1-6). geral das provações que são a sorte comum
4-8 A enumeração das tribos uma por dos cristãos, mas da tribulação que ocorre
uma serve para destacar a completitude no final desta era. A visão retrata a cena
do número dos santos de Deus dos quais depois do término dos juízos do Senhor na
ele cuidará nos juízos por vir. A lista é história e dos sofrimentos dos cristãos nas
incomum numa série de aspectos. Judá mãos dos oponentes de Deus, e assim tem
vem primeiro, e não Rúben, o primogê- em vista a última geração. Mas a afirmação
nito de Jacó (Gn 29.32; cf Nm 13.4-15; do ancião nos v. 14b-17 descreve a bem-
Dt 33.6); isso indubitavelmente se deve ao aventurança da igreja toda. A dificuldade é
reconhecimento de que Judá é a tribo do abrandada se lembrarmos que João profe-
Messias. Dã é omitido, mas Manassés apa- tiza um dia que para ele está quase no ho-
rece, embora este seja incluído com José. rizonte; ele não pôde ver a extensão do in-
Isso certamente é propositado. Os mestres tervalo antes do fim. A última perseguição
judaicos constantemente associavam Dã pode vir a qualquer momento. Aqueles que
com a idolatria. No "Testamento dos Doze vieram antes, tendo dado um bom testemu-
Patriarcas", diz-se a Dã: "O teu príncipe é nho da sua fé, sem dúvida estão incluídos
Satanás". A partir de Ireneu se pensou en- nessa multidão, mas era supérfluo afirmar
tre os cristãos que o nome de Dã foi omi- isso. A igreja do presente é o tópico em vis-
tido porque o anticristo viria dessa tribo. É ta, e sua situação enche de vento a vela de
evidente que esse era o ponto de vista dos João. Para nós, quase dois milênios depois,
judeus, mas, na verdade, as representações a igreja está principalmente no céu, mas
do anticristo em Apocalipse são irreconci- podemos saber que todos os crentes, inclu-
liáveis com essa posição. sive nós, estaremos naquela multidão.
9 A visão dos 144 mil selados contra Lavaram suas vestiduras e as alveja-.
os efeitos do juízo é substituída por aquela ram no sangue do Cordeiro é uma expres-
de uma grande multidão que ninguém po- são simbólica do perdão dos pecados por
dia enumerar, em pé diante de Deus e do meio da fé em Cristo que morreu por todos.
Cordeiro na glória do reino. A. M. Farrer A expressão sangue do Cordeiro é uma
considerava que esse contraste expressa abreviação que remete à morte de Cristo
dois temas complementares das Escrituras: vista como um sacrifício pelos pecados, e
por um lado, que Deus conhece o número é por isso que as imagens do v. 14 retratam
dos seus eleitos, e, por outro, que aqueles a eficácia da redenção do Senhor na vida
que herdam as bênçãos de Abraão são in- do seu povo. Isso inclui a vitória sobre o
contáveis como as estrelas (The Revelation pecado na vida em virtude do poder da ex-
ofSt. John the Divine [Clarendon, 1964], p. piação de Cristo e assim cobre toda a pere-
110).As suas vestiduras brancas significam grinação da vida do cristão, como também
pureza e glória da ressurreição, e as palmas o evento da conversão. Os v. 16,17 usam
nas mãos, vitória e alegria após a guerra. uma linguagem extraída de Isaías 29.8 e
10 Ao nosso Deus [...] e ao Cordeiro, 49.1 O: Cristo satisfaz a sede das pessoas
pertence a salvação ecoa Salmos 3.8 (v. ao prover em si mesmo o antídoto para a
tambémAp 19.1). Os vencedores atribuem sua inquietação, a completa contrapartida
~II APOCALIPSE 8 2150

dos seus desejos não satisfeitos. As fontes que de trombeta (Nm 10.10); nessas festas
da água da vida na visão final da cidade havia uma estranha combinação de alegria
de Deus se mostram como um rio de água e juízo. Para os rabinos de Israel, o Dia da
viva (22.1,2) - mais do que suficiente Expiação era o dia do juízo. Caird ressaltou
para as necessidades de todos! que na Mishná se afirma que Deus julga o
mundo na Páscoa com respeito à produção,
8.1-5 O sétimo selo no Pentecoste com respeito aos frutos e em
1 Ocorreu um silêncio no céu. À luz dos v. Tabernáculos com respeito à chuva, mas
3,4, é provável que isso tenha ocorrido para 10 de Tisri (o início da preparação para o
que as orações dos santos pudessem ser ou- Dia da Expiação) é o dia em que ele julga
vidas. No Talmude, é feita a distinção entre toda a humanidade (The Revelation of St.
sete céus; no quinto céu, "há companhias de John [Black, 1985], p. 109-10). Alguns tre-
anjos ministradores que cantam cânticos de chos do NT representam a vinda de Cristo
noite e estão silenciosos durante o dia por no seu reino como sendo anunciada por
causa da glória de Israel", i.e., eles estão uma trombeta (Mt 24.31; lCo 15.52; lTs
em silêncio para que os louvores de Israel 4.16). Essas múltiplas associações de trom-
possam ser apresentados diante de Deus. betas certamente eram conhecidas de João,
Lemos nos cp. 4 e 5 a respeito da adoração acima de tudo as suas conexões com o dia
exultante das hostes angelicais; aqui se faz do Senhor e o reino de Deus. No emprego
silêncio no céu para que sejam ouvidos os que faz delas, os juízos anunciados pelas
clamores pela libertação dos cristãos em trombetas se classificam em dois grupos de
sofrimento na terra. 3,4 O incenso ofereci- quatro e três (como no caso dos sete selos).
do com as orações dos santos serve para Os primeiros quatro lembram as pragas do
tomá-las aceitáveis diante de Deus; elas Egito no êxodo; o quarto e o quinto não
precisam ser purificadas de todas as man- fazem essa associação tão claramente. Em
chas de egoísmo e pecado. 5 Suas orações 15.3, a vinda de Cristo é tacitamente com-
são respondidas. O fogo que queimou o in- parada ao êxodo (os redimidos cantam o
censo é lançado na terra e se toma um meio cântico de Moisés e do Cordeiro); é com-
de juízo. Seguem então os fenômenos que preensível, portanto, que a redenção final,
indicam que o Senhor vem e que o reino o segundo êxodo, seja anunciada por pra-
de Deus é estabelecido em poder (cf 11.19, gas semelhantes às do primeiro êxodo.
resultante da sétima trombeta, e 16.18, que
segue a sétima taça da ira). 8.6-12 Primeira, segunda,
terceira e quarta trombetas
8.6-11.19 As sete trombetas A primeira trombeta afeta um terço da ter-
As trombetas têm muitas associações no ra (cf a praga de granizo e fogo em Êx
AT. Na manifestação de Deus no Sinai, 9.24). Foi, então, queimada a terça parte
ocorreu um toque longo de trombeta, apa- da terra, e das árvores, e também toda erva
vorando o povo (Êx 19.16-19). Um forte verde, ou seja, todo o verde na terça parte
toque de trombeta anunciava a ascensão de da terra afetada; os gafanhotos de 9.4 são
um rei ao seu governo (lRs 1.39,40), e a proibidos de danificar qualquer coisa verde
celebração do reinado de Deus foi marca- da terra, o que não teria ocorrido se o juízo
da dessa forma (SI 47.5-9). As trombetas aqui em 8.7 fosse um juízo universal.
eram tocadas para anunciar a declaração 8 A segunda trombeta afeta um terço do
de guerra (Jz 3.26-28; 7.19,20; Ne 4.18), e mar. Assim como o Nilo foi transformado
o dia do Senhor deveria ser anunciado des- em sangue na primeira praga do Egito
sa forma (112.1; Sf 1.16). Todas as festas (Êx 7.20,21), assim acontece com a terça
de Israel eram anunciadas com um forte to- parte do mar aqui.
2151 APOCALIPSE 8.-..
10,11 A terceira trombeta faz com que segundo ai, que pode ser comparado à ma-
--
as fontes das águas de uma terça parte tança dos primogênitos no Egito, o juízo
dos rios fiquem envenenadas e assim dão definitivo de Deus sobre a nação.
prosseguimento à ideia da praga anterior 9.1 Depois de soar a quinta trombeta,
(cf 16.3-7). Visto que a estrela que cai ao uma estrela caída do céu na terra recebeu
toque da quinta trombeta (9.1) é um ser a chave do poço do abismo. A estrela é um
angelical, é possível que Absinto também anjo; mesmo caída, ainda permanece um
seja um anjo. Acerca de águas amargosas, instrumento para fazer a vontade de Deus
cf Jeremias 9.15. (a chave do poço do abismo foi dada pela
12 A quarta trombeta escurece uma ter- autoridade de Deus). O abismo representa
ça parte dos céus, para que a terça parte o caos das águas; na mitologia do Antigo
deles escurecesse e, na sua terça parte, não Oriente, elas eram personificadas no poder
brilhasse, tanto o dia como também a noi- do mal que se opunha aos poderes do céu,
te. Somos lembrados novamente da praga e assim passou a denotar a moradia dos
da escuridão no Egito (Êx 10.21-23), que é agentes demoníacos. Em 20.1-3, é o lugar
talvez a razão por que o toque intenso nos em que Satanás é lançado e aprisionado.
corpos celestes resulte na redução da exten- Assim aqui a referência à chave indica que
são do seu brilho e não na redução da inten- todos os seus habitantes estão firmemente
sidade da sua luz. Estaria João sinalizando debaixo do controle de Deus.
que as pessoas estão experimentando escu- 2-4 O fato de que subiram nuvens de
ridão de dia e trevas intensificadas à noite fumaça do poço como fumaça de grande
por causa dos seus pecados, mas o Senhor fornalha tem a intenção de transmitir a im-
lhes dá luz suficiente de dia e de noite para pressão de uma nuvem de gafanhotos em
que possam abrir mão de sua escuridão mo- progressão. A comparação dessas hostes
ral em troca da vida à luz da sua presença? de demônios a gafanhotos ecoa a visão
de Joel 2.1-10, em que o texto diz que os
8.13-9.21 Quinta e exércitos de gafanhotos parecem cavalos
sexta trombetas correndo em batalha, "estrondeando como
13 Uma águia agora anuncia, voando pelo carros", atacam como homens poderosos,
meio do céu (para que o mundo todo possa escurecem o céu e têm presas como leões.
ouvir o seu grito), um Ai triplo àqueles que Além dessas características, João declara
habitam na terra. Os três ais correspondem que os gafanhotos têm o poder para ferir
às três trombetas ainda por ser tocadas; elas como os escorpiões da terra (cf 9.10).
serão mais severas do que os juízos das Gafanhotos comem vegetação e não fazem
trombetas anteriores, visto que são dirigi- mal algum a seres humanos, mas esses ga-
das não aos elementos da natureza, mas aos fanhotos ignoram a vegetação e atacam as
rebeldes da humanidade. O cp. 9 vai des- pessoas, mais precisamente aos homens
crever os primeiros dois ais, mas o terceiro que não têm o selo de Deus sobre a fronte
não é descrito, somente suas consequências (eles, ao contrário, têm a marca da besta;
na revelação do reino (11.15-19). Esse ai é cf 13.16). Cinco meses é o tempo normal
refletido em 11.18, mais explicitamente em de vida de um gafanhoto (primavera e ve-
16.17-20, retratado em muitos detalhes em rão), mas a visitação deles a qualquer lugar
17.12-18, celebrado no canto fúnebre do cp. específico é mais limitada no tempo.
18 e nos hinos de 19.1-10 e finalmente re- 7-9 A descrição de gafanhotos lembra
tratado em 19.11-21. A tipologia do êxodo Joel1.6; 2.4-9, mas é comum nas tradições
é evidente no primeiro ai, encontrando um dos árabes. C. Niebuhr registrou em 1772
paralelo na praga dos gafanhotos no Egito a descrição que um árabe fez de um ga-
(Êx 10.1-20), mas isso é menos intenso no fanhoto: "Ele comparou a cabeça de um
APOCALIPSE 9 2152

gafanhoto à cabeça de um cavalo, seu pei- prometida, mas o mundo ímpio sem Deus.
to ao peito de um leão, seus pés aos pés 15 Nada no programa de Deus é aciden-
de um camelo, seu corpo ao corpo de uma tal. O momento preciso dessa invasão é
serpente, sua cauda à cauda de um escor- estabelecido. 16 O número dos exércitos
pião, e suas antenas ao cabelo de uma don- da cavalaria é apresentado como sendo de
zela". 11 O seu rei é chamado Abadom em vinte mil vezes dez milhares, ou seja, 200
hebraico, mas Apoliom em grego. Aquele milhões. Esses e outros cálculos semelhan-
denota as profundezas do sheol no AT e tes são inspirados por Salmos 68.17 (o nú-
significa "destruição". Este está próximo mero dos carros de Deus quando ele veio
do verbo grego apol/umi, "destruir", mas do Sinai) e Daniel 7.10 (o número de anjos
pode bem ser compreendido como uma va- que vêm com Deus para o julgamento). O
riante de Apolo, que autores gregos deri- exército demoníaco serve ao propósito de
varam de apol/umi. O culto a Apolo usava Deus tão verdadeiramente quanto as hostes
(entre outros) o símbolo do gafanhoto, e os angelicais.
imperadores Calígula, Nero e Domiciano 17-19 A destruição dos cavalos e ca-
afirmavam ser encarnações de Apolo. Se valeiros é aterrorizante, inconcebível e
isso estava na mente de João, a ironia da revoltante. Estranhamente são os cavalos
quinta trombeta é surpreendente: a hoste que aterrorizam e destroem; os cavalei-
destruidora do inferno tinha como seu rei ros e cavalos parecem se fundir em uma
o imperador de Roma! (O paralelo efetivo unidade, mas o seu poder destrutivo (que
disso está em 17.16-18.) vem do fogo, fumaça e enxofre) sai da
13,14 Quando é tocada a sexta trom- boca dos cavalos. Essas criaturas não são
beta, vem uma voz procedente dos quatro da terra; fogo e enxofre pertencem ao in-
ângulos do altar de ouro que se encontra ferno (19.20; 21.8), assim como afumaça
na presença de Deus. Dessa forma, é asso- é característica do abismo (9.2).
ciada com o grito dos mártires debaixo do 20,21 A praga não consegue produzir
altar no céu (6.9,10) e as orações dos san- um efeito salutar no mundo hostil a Deus;
tos na terra por libertação (8.4,5), embora as pessoas persistem na idolatria, com os
deva ser entendida como a voz de Deus seus males resultantes, e não chegam ao
que responde às orações do seu povo. Os arrependimento. Como devemos inter-
quatro anjos que se encontram atados jun- pretar essas representações tão extraor-
to ao grande rio Eufrates devem ser sol- dinárias dos primeiros dois "ais"? G. B.
tos. Esse rio formava, junto com o Nilo, Caird sugere que "neles há uma declara-
os limites ideais da terra prometida a Israel ção teológica das mais importantes: que
(Gn 15.18). Também formava o limite as forças do mal têm um imenso exército
oriental do Império Romano, e além dele de reserva, do qual podem ser reforçadas
estava o Império Parta (ou Persa), a única constantemente, assim que nenhuma or-
potência militar do mundo que tinha der- dem terrena pode encontrar segurança dos
rotado Roma decisivamente e que Roma ataques dalém da fronteira, a não ser na
tinha razão para temer. Os judeus olhavam vitória final de Deus. Num mundo em que
para essa região à espera de exércitos do o mal é mortal e persistente, não se deve
Norte para invadir a Palestina (1Enoque esperar que o programa do evangelho
56.5-8 parece interpretar a profecia rela- produza um definhamento progressivo do
tiva a Gogue em Ezequiel 38-39 como poder de Satanás, até que seja reduzido à
cumprida por meio dos partas e medos). impotência, mas antes um endurecimento
Os quatro anjos, no entanto, não controlam constante da sua resistência, que conduz
nenhum exército humano, mas uma força inexoravelmente à última grande batalha"
demoníaca terrível, invadindo não a terra (Revelation, p. 123).
li
2153 APOCALIPSE 11 • •
1111

10.1-11.14 Intervalo entre car que a vontade de Deus é muito maior


a sexta e a sétima trombetas do que a profecia consegue expressar.
Assim como João inseriu um interlúdio 5 O anjo está em pé sobre a terra e o mar
entre o sexto e o sétimo selos, assim ele porque a sua mensagem é de importância
faz agora entre a sexta e a sétima trom- mundial. 6,7 O peso da sua declaração está
betas. Enquanto, contudo, o propósito do em que já não haverá demora. O propó-
interlúdio anterior foi transmitir seguran- sito de Deus para a humanidade, revelado
ça da mão protetora de Deus sobre o seu nos profetas, agora está para ser cumprido;
povo durante os juízos messiânicos, aque- quando o sétimo anjo tocar a sua trombe-
le motivo é apenas brevemente menciona- ta, cumprir-se-á [...] o mistério de Deus. O
do no curto oráculo de 11.1,2. O propósito mistério não é uma revelação "misteriosa",
principal desta interrupção na história é mas o propósito secreto de Deus escondido
bem diferente. Em primeiro lugar, é feita do mundo incrédulo. O seu conteúdo é re-
uma declaração solene da certeza e pro- velado e celebrado em 11.15-18.
ximidade do fim quando a sétima trom- 8-11 Tendo sido proibido de escrever
beta for tocada (1-7); em segundo lugar, a mensagem, João agora recebe uma nova
o comissionamento de João à profecia é comissão de anunciar outras mensagens.
renovado e até ampliado (ele deve profe- Essa parte da visão lembra Ezequie12.9-
tizar novamente sobre muitos dentre os 3.3. Assim como no caso de Ezequiel, co-
povos, línguas e reis); e em terceiro lugar, mer o livrinho causou tanto doçura quan-
a tarefa da igreja na época da tribulação é to amargueza, ilustrando (certamente em
deixada clara, a saber, dar testemunho de Apocalipse) a combinação de alegria e
Cristo diante dos opositores do evangelho sofrimento em receber e tomar conhecidos
(11.3-13). Aqui pela primeira vez apare- as bênçãos e os juízos de Deus.
ce a figura do anticristo (11.7), e a dupla 11.1,2 A segurança da igreja. Nesse
natureza da última tribulação se toma breve oráculo, o templo de Jerusalém e
evidente, a saber, os juízos de Deus sobre os seus adoradores são delimitados para
aqueles que se opõem a ele e guerreiam proteção no período de provação (acerca
contra a igreja por meio dos seguidores do simbolismo, v. Ez 40.3,4 e Am 7.7-9);
do anticristo. Não há nenhuma promessa o pátio externo dos gentios e a cidade são
de que os fiéis escaparão dele, mas o fi- abandonados à destruição por um poder
nal da história é a vindicação da igreja e a gentio. É improvável que João tenha tido
conversão de muitos. a intenção de que essa "profecia" fosse in-
10.1-11 A proximidade do fim. 1 O terpretada literalmente (a cidade e o tem-
anjo forte é às vezes identificado com plo tinham sido destruídos uma geração
Cristo, mas é improvável que João fale do antes), ou que ele a enquadrou como um
Senhor como um anjo. A linguagem da vi- tipo de parábola profética. Antes, como no
são é semelhante a Daniel 10.5,6 e 12.7. cp. 7, ele parece ter adaptado uma profe-
2 Em vista do v. 11, o livrinho parece in- cia judaica anterior; literalmente ela ain-
cluir o restante das visões de Apocalipse. da não se cumpriu, mas espiritualmente
3 Os sete trovões não foram anunciados ela transmitiu a verdade da segurança da
por um anjo, pois seguiram o grito dele. igreja e o fato de ela passar por sofrimen-
Supostamente vieram de Deus ou de Cristo tos. O mesmo procedimento de adaptação
(como também a ordem do v. 4). 4 João é está evidente na profecia dos v. 3-13.
proibido de escrever a mensagem dos tro- 1 O santuário de Deus, o seu altar e os
vões. O que a mensagem foi e por que não adoradores transmitem uma única ideia, a
foi revelada têm intrigado os exegetas ao igreja (cf lCo 3.16).2 De forma semelhan-
longo dos anos. Talvez a intenção era indi- te, o átrio exterior e a cidade santa juntos
APOCALIPSE 11 2154

representam o mundo fora da igreja. É uma aos outros (9,10), é evidente que o quadro
alteração ousada, mas o v. 8 sugere que a originário de dois profetas sendo martiri-
outrora cidade santa agora se tomou uma zados em Jerusalém se tomou um símbolo
com a pecaminosa Sodoma, com o Egito dos esforços mundiais de esmagar a igreja
opressor do povo de Deus e com o impé- de Deus. A comemoração, no entanto, é
rio tirânico que guerreia contra o Messias. prematura (11,12)!
Os quarenta e dois meses do v. 2, os "mil 3 As testemunhas estão vestidas de
duzentos e sessenta dias" de 12.6 e "um pano de saco, pois sua mensagem é de juí-
tempo, tempos e metade de um tempo" de zo, chamando ao arrependimento e, por
12.14 são expressões equivalentes aos três isso, é paralela a 14.6,7.
anos e meio do governo do anticristo, e são 5,6 O poder extraordinário da igreja
todos derivados das profecias de Daniel testemunhadora é expresso em termos que
(v. Dn 7.25; 9.26,27; 12.7). lembram Moisés e Elias. O fogo destruidor
11.3-14 A profecia das duas testemu- lembra 2Reis 1.10,11; a capacidade de im-
nhas. Isso envolve princípios de interpre- pedir a chuva, 1Reis 17.1; a transformação
tação semelhantes aos v. 1,2. O AT termina de águas [...] em sangue, Êxodo 7-12.
com uma profecia de Elias voltando para 7 Aqui está a primeira menção em
ministrar no final dos tempos (Mq 4.5,6). Apocalipse à besta que surge do abismo.
O grande mestre rabínico Joanã ben- Fala-se dela como se fosse bem conhecida,
Zakkai, contemporâneo de João que escre- mas descrições mais detalhadas dela ocor-
veu Apocalipse, declarou que Deus disse rem nos cp. 13 e 17. Observe a semelhan-
a Moisés: "Se eu enviar o profeta Elias, ça de linguagem em 13.7 para descrever
vocês dois precisam ir juntos". Tal iden- a guerra da besta contra a igreja. Acerca
tificação se amolda à descrição das teste- de abismo, ver comentário de 9.1. 8 A
munhas retratadas nos v. 5,6. Queria João, grande cidade originariamente denotava
então, que entendêssemos que Moisés e Jerusalém (cf v. 1,2 e a última expressão
Elias devem eles mesmos voltar e exercer dessa frase), mas agora veio a significar
o ministério descrito nesse trecho? Não; há o que John Bunyan chamou de "Feira da
indicações de que, como nos v. 1,2, a visão Vaidade" (M. Kiddle, The Revelation 01
deve ser interpretada simbolicamente. No St. John [Hodder and Stoughton, 1940],
v. 4, João representa os profetas-testemu- p. 185). Em todo o restante do livro, a ex-
nhas em termos de Zacarias 4; ali, as "duas pressão é usada com referência a Roma, a
oliveiras" representam Josué, o sumo sa- cidade prostituta (16.19; 17.18; 18.10-24).
cerdote, e Zorobabel, o governador, e o Em um traço marcante da sua pena, João
"candelabro" é Israel. Um só candelabro identifica Jerusalém com Sodoma, Egito, a
se toma dois para se adaptar às duas árvo- cidade do anticristo e o mundo que rejeitou
res, e eles retratam a igreja na sua função e matou o Filho de Deus.
profética. O candelabro já tinha se toma- 9,10 Judeus e gentios se ajuntam para
do sete para representar as sete igrejas na comemorar a sua aparente vitória sobre
Ásia Romana (1.12; 2.1); foi uma simples a igreja. A recusa de permitir que um ca-
transição para fazer com que fossem dois e dáver seja sepultado significa a vergonha
assim correspondessem aos dois profetas. mais profunda a que uma pessoa pode ser
Assim, também, quando se diz no v. 7 que sujeitada (v. SI 79.3). 11 A igreja é esma-
a besta pelejará (fará guerra) contra as tes- gada pelos seus inimigos durante três dias
temunhas e as matará, e que muitos dentre e meio, um jogo de palavras propositado
os povos, tribos, línguas e nações contem- com os três anos e meio de tribulação, que,
plarão os cadáveres das duas testemunhas contudo, é também o período do ministério
e comemorarão e enviarão presentes uns poderoso das testemunhas. Em comparação
2155

com isso a vitória do anticristo nem é vitó-


APOCALIPSE 12.·

gar a rebelião da humanidade contra o seu


.

ria. A afirmação de que um espírito de vida, governo soberano, que existiu por todas as
vindo da parte de Deus, neles penetrou, e eras. O reino de Deus é, essencialmente, a
eles se ergueram sobre os pés cita Ezequiel celebração do dom da vida e a libertação
37.10, que é uma referência à vivificação do mal. O cp. 5 mostra que ele começou
espiritual da nação de Israel. Essa "ressur- na morte e ressurreição de Jesus, e sua
reição", portanto, pode ser vista como sig- vitória é celebrada no cântico do v. 17. O
nificando um avivamento tão grande que cântico marca uma progressão ordenada de
enche a terra com admiração; mas em vista pensamento que é exposta mais tarde em
da instrução apostólica acerca da ressur- Apocalipse. Deus passou a reinar, como
reição dos mortos e da transformação dos se pode ver no reino milenar (20.4-6); as
vivos (1Co 15.51,52; lTs 4.14-18) é mais nações se enfureceram, levantando-se em
provável que signifique a "primeira ressur- rebelião (20.8,9); chegou, porém, a tua ira,
reição" (20.5). Com o terremoto severo do manifestando-se no juízo (20.9); chegou o
v. 13 cf 6.12 e 16.18, ambos sugerindo a tempo determinado para serem julgados os
chegada do fim antes da revelação do rei- mortos (20.11-15), quando os santos serão
no. 13 O número sete mil poderia indicar recompensados na cidade de Deus (21.9-
adequadamente um décimo da população 22.5), e os destruidores da terra serão jo-
de Jerusalém no primeiro século d.C. Ao gados no "lago de fogo" (20.15; 21.8). 19
fazer a cidade representar a cidade mun- O santuário de Deus, que se acha no céu,
dial, João não tinha necessidade de modifi- é aberto para revelar a arca da Aliança.
car o número, pois sete mil podia ser inter- Sua manifestação a essa altura significa
pretado como qualquer número grande. O que o alvo da aliança, que é a promessa
fato de que os sobreviventes deram glória do reino, está agora em vias de se realizar.
ao Deus do céu indica que esses eventos Relâmpagos, vozes, trovões, terremoto etc.
evocaram arrependimento do populacho testificam que a consumação chegou (cf
até aqui impenitente (cf Js 7.19). 8.5; 16.17-21).

11.15-19 A sétima trombeta 12.1-14.20 O conflito entre a


O toque da sétima trombeta tem a intenção igreja e os poderes do mal
de trazer o terceiro ai (14), mas em vez de Visto que as sete trombetas seguiram os
uma descrição de calamidade, faz-se a pro- sete selos, seria natural pressupor que as
clamação do advento do reino de Deus. A sete taças fossem derramadas imediatamen-
natureza do terceiro ai é exposta em deta- te, assim completando a história das dores
lhes mais tarde (v. nota de 8.13). de parto do reino de Deus. Intervém, no
15 A linguagem da proclamação ecoa entanto, um longo interlúdio. É necessário
Salmos 2.2, mas é singularmente formula- revelar a natureza do conflito que o Cristo
da, pois o que chegou é o reino de nosso levará ao final na sua aparição. A luta dos
Senhor e do seu Cristo - uma soberania cristãos contra a exaltação contemporânea
indivisível. Ele reinará pelos séculos dos do imperador como Senhor e Salvador do
séculos. Quem é ele? Nosso Senhor? Ou o mundo é colocada no contexto de uma luta
seu Cristo? Temos aqui um paralelo próxi- ainda mais apavorante, na qual o antigo ad-
mo de João 10.30: "Eu e o Pai somos um". versário de Deus e do povo se empenha, por
17 O atributo habitual de Deus é signi- todos os meios, em frustrar o propósito de
ficativamente abreviado; já não se diz que Deus. O interlúdio, portanto, está no cerne
ele "há de vir" (cf IA), porque ele já veio! do livro, tanto em significado quanto na po-
O reino já começou, no fato de que Deus sição. Cobre todo o período messiânico do
estabeleceu o seu grande poder para subju- nascimento de Cristo até a consumação.
APOCALIPSE 12 2156

12. 1-17 A mulher, o dragão no Cristo do evangelho pelo simples acrés-


e o libertador cimo dos v. 10,11, assim transformando a
Não é dificil reconhecer a essência da his- história em uma proclamação de vitória do
tória cristã nos v. 1-6, mas de uma coisa Senhor crucificado e ressurreto sobre os
podemos estar certos: nenhum cristão re- poderes do pecado e da morte.
sumiria o evangelho de Cristo dessa forma, 1,2 Religiosos do mundo antigo teriam
omitindo toda a referência à vida e morte de visto na mulher angustiada uma deusa co-
Cristo. Havia, no entanto, no mundo anti- roada com as doze estrelas do zodíaco;
go muitos relatos semelhantes de conflitos um judeu a teria interpretado como Mãe
entre os poderes do céu e do inferno. O ci- Sião (v. Is 26.16-27.1; 49.14-25; 54.1-
clo ugarítico de Baal conta de uma batalha 8; 66.7-9), mas para João ela representa-
de Baal, o deus da tempestade, com Yam, va a "Mãe" da comunidade messiânica, o
o príncipe do mar. Os babilônios contam povo crente no Deus das alianças antiga
a história de Marduque matando Tiamat, e nova. 3 O dragão, grande, vermelho é
o monstro de sete cabeças das profunde- identificado com Satanás no v. 9. Ele é
zas. (A mãe de Marduque era retratada de o anticristo do mundo espiritual, assim
forma semelhante à mulher de 12.1, e se como o seu agente, a "besta" (13.1), é o
diz que na sua batalha contra o céu Tiamat anticristo da terra. 4 A sua cauda arrasta-
lançou à terra um terço das estrelas.) Os va a terça parte das estrelas do céu ecoa
persas falavam do filho de Ahura lutando a vitória do Diabo sobre os poderes an-
contra o dragão do mal Azhi Dahaka. Os gelicais, mas para João foi simplesmente
egípcios contavam como a deusa Hator uma alusão pictórica ao poder temível do
(Ísis, esposa de Osíris) fugiu do dragão dragão. 5 A afirmação acerca do destino
vermelho Tifon para uma ilha; o dragão foi do filho para reger todas as nações (cf
vencido pelo filho dela, Hórus, e finalmen- SI 2.9) explica o desejo que o dragão tem
te destruído pelo fogo. Os gregos tinham de devorá-lo - ele considerava as na-
uma história semelhante no nascimento de ções as suas presas legítimas. Embora o
Apolo da deusa Leto, que foi perseguida arrebatamento para Deus até o seu trono
pelo grande dragão Píton, porque ele ouviu originariamente tenha sido para seguran-
que o descendente dela o mataria. Leto foi ça, a cena é suficientemente semelhante à
escondida debaixo do mar, e o recém-nas- ascensão vitoriosa de Jesus para que seja
cido Apolo imediatamente adquiriu matu- aplicada a ele nesse sentido neste texto.
ridade e matou o dragão. Outros acrésci- 6 O povo de Deus está seguro dos embus-
mos e variantes da história eram correntes tes do Diabo durante o período do reinado
no Oriente Médio, e alguns judeus enxer- do anticristo; isso está em concordância
gavam nelas paralelos surpreendentes com com o ensino de 7.1-7 e 11.1,2.
a promessa do Messias. Um autor apoca- 7-9 A peleja no céu originariamente
líptico anônimo pegou a saga e a adaptou pode ter significado uma tentativa de assal-
à esperança dos judeus ao lhe acrescentar tar o refúgio do Filho-Redentor. O prota-
no v. 5 a referência ao filho homem que gonista do céu é o arcanjo Miguel, condu-
governaria todas as nações (cf SI 2.9) e zindo as hostes de Deus a vencer o Diabo e
a derrota do dragão por meio de Miguel, seu exército demoníaco. Mas o acréscimo
o anjo da guarda e protetor de Israel (cf significativo do v. 11 transforma a figura.
Dn 12.1; há um paralelo extraordinário com O real meio para a vitória sobre o dragão
os v. 1-6 em um dos Hinos de Gratidão de foi a obra expiatória de Cristo; o seu povo
Qumran). Pode parecer que João foi leva- compartilha dessa vitória à medida que
do a propor o cumprimento dessas expres- confessa sua fé no evangelho e dá testemu-
sões de crença pagãs e de promessas do AT nho dele por meio dos seus atos e palavras.
11
2157 APOCALIPSE 13 ri'
11.
A conquista dos anjos se toma uma figura corresponde à diferença entre "beemote",
da vitória de Cristo e de seus seguidores. o monstro da terra (ARC, Jó 40.15-24) e
O cântico dos v. 10,11 expressa em pa- "leviatã", o monstro marinho (ARC, Jó 41);
lavras diferentes os cânticos do cp. 5 que na literatura profética e apocalíptica, essas
celebram a vitória do Cordeiro por meio da criaturas tipificam os poderes hostis a Deus
sua morte sacrificial e da sua ressurreição. (v., e.g., Is 27.1; 51.9; Ez 32). Em conso-
Assim também no paralelo extraordinário nância com isso, o dragão, a besta do mar
de João 12.31,32, a queda de Satanás é o e a besta da terra formam um tipo de trin-
resultado de Jesus ser "levantado" na sua dade (cf 16.13). Satanás afirma ser Deus;
cruz, e daí para o trono de Deus. As figu- o anti cristo é o cristo de Satanás; e a bes-
ras do v. 9, como o v. 10 declara explici- ta da terra exerce a função de um espírito
tamente, indicam que Satanás já não pode não santo. O anticristo convence o mundo
exercer a sua função de acusar falsamente a adorar o Diabo; ele tem uma ferida fatal,
os santos diante de Deus (v. Jó 1 e Zc 3), mas vive (3), numa monstruosa imitação
visto que Cristo garantiu a absolvição de- do Cristo de Deus. A segunda besta tenta
les e os reconciliou com Deus por meio da convencer o mundo a adorar o anticristo
sua redenção. pelo seu testemunho em palavra e atos, as-
13 O dragão agora volta a sua atenção sim como o Espírito Santo testemunha do
para a mulher (i.e., a igreja), tendo falha- Cristo de Deus; e por meio da marca da
do em vencer o seu Senhor (cf Jo 15.20). besta (em si mesma uma paródia do selo
14-16 No simbolismo da história, a serpen- de Deus) ela cria uma imitação diabólica
te-dragão é um monstro marinho, e assim o da igreja de Cristo. Assim João retrata o
fato de estar no deserto significa estar fora mundo como dividido entre os seguidores
de alcance. da Verdade e os seguidores da Mentira.
O paralelo com Êxodo 19.4 sugere o 1,2 Os detalhes do monstro mari-
tema do segundo êxodo: assim como o nho são extraídos de Daniel 7, mas ali as
Senhor libertou Israel do tirano faraó, cui- características do leopardo, urso e leão fo-
dou do seu povo no deserto e o conduziu à ram compartilhadas entre quatro impérios
terra prometida, assim vai fazer a mesma e seus governantes. Aqui elas se combinam
coisa com todo o seu povo na tribulação em uma terrível unidade de poder e mal-
que conduz ao reino final. 15,16 A serpen- dade; o leopardo significando crueldade e
te envia uma enxurrada de água (como um astúcia, o urso, força, o leão, ferocidade.
rio) atrás da mulher, mas a terra engoliu o 3 O fato de que uma de suas cabeças ha-
rio, e a serpente não pode fazer mais nada. via sido golpeada de morte, mas que essa
A figura ilustra a segurança espiritual dos ferida mortal fora curada indica que um
crentes em relação a tudo que Satanás pode dos imperadores havia morrido mas vol-
fazer contra eles. 13.1 Vi emergir do mar tado à vida. Precisamente isso se afirma-
uma besta - para chamar um aliado do va de Nero no tempo da composição de
abismo, a sua própria moradia. Apocalipse; pois embora Nero tivesse se
suicidado em 68 d.e., acreditava-se am-
13.1-18 O anticristo e o seu profeta plamente que ele tinha retomado à vida e
O dragão, na sua determinação de aniquilar voltaria para conduzir as forças orientais
a igreja, chama para auxiliá-lo não um aju- contra Roma. (V também comentário de
dante, mas dois. A primeira besta emerge 17.8,11, e a nota acerca do império anti-
do mar (1) mostrando as suas caracterís- cristão ao final da exposição do cp. 18.)
ticas de monstro marinho como o próprio 4-7 O mundo adora tanto o Diabo quan-
dragão, e por isso demoníacas. A segunda to o pseudocristo. Este recebeu uma boca
besta emerge da terra (11). Essa diferença que proferia arrogâncias e blasfêmias
APOCALIPSE 13 2158

(o que já é evidente nas reivindicações de re que ela representa o sacerdócio do cul-


divindade dos imperadores romanos) e au- to do imperador e as autoridades políticas
toridade para agir quarenta e dois meses, que o apoiavam. Mais tarde é chamado de
i.e., o período da tribulação (cf 11.2,3; "falso profeta" (16.13; 19.20; 20.10). É
12.14). Quem lhe deu tal autoridade, in- possível que, como a primeira besta sig-
cluindo poder para que pelejasse contra nifica o império anticristão personificado
os santos e os vencesse (7)? No v. 4, é o no anticristo pessoal, assim este sacerdó-
dragão que deu tal autoridade; mas o limite cio pagão seja representado numa cabe-
de quarenta e dois meses foi estabelecido ça suprema que dirige a obra demoníaca.
por Deus. Por consequência, é a permissão 13-15 Sacerdotes pagãos tinham poucos
divina que no final das contas controla as escrúpulos em recorrer a truques, como a
ações do anticristo (cf Dn 8.9-14; 11.36). produção de fogo, alegadamente do céu, e
A soberania de Deus nunca é mais evidente fazer com que um ídolo falasse por meio
do que quando a maldade atinge o seu li- de ventriloquia. Observe, contudo, que é
mite - como fica claro na crucificação de característica padrão da profecia cristã que
Jesus. 8 A referência das palavras desde a ocorram enganos anticristãos no final dos
fundação do mundo é incerta; elas podem tempos (e.g., Mc 13.22; 2Ts 2.9).
ser associadas à morte do Cordeiro (como 16-18 A marca da besta sobre os não
aqui na ARA; também na NVI) ou à inscrição cristãos é a contrapartida do selo de Deus
dos nomes no livro da vida (como na NTLH; sobre os cristãos (7.1-8); ambos mostram a
cf nota mrg. da NVI). Ambos os significa- lealdade do indivíduo, seja a Deus, seja ao
dos são igualmente verdadeiros; acerca do Diabo. O efeito imediato de exigir que to-
primeiro, cf 1Pedro 1.19,20; acerca do se- dos recebam a marca da besta é o banimen-
gundo, Efésios 1.4. A dificuldade é resol- to social dos que se recusarem a recebê-la,
vida pela maioria por meio da recorrência e isso implica guerra econômica do Estado
a 17.8, em que uma linguagem quase idên- contra a igreja, resultando em morte para
tica é usada, associando a expressão à ins- os que não consentirem.
crição dos nomes no livro da vida. Mesmo A marca é descrita como o nome da
assim, a ordem das palavras aqui não fa- besta ou o número do seu nome. Muitas
vorece essa interpretação, e é melhor ficar línguas antigas não tinham figuras para nú-
com a ARA (também NVI). meros, mas em vez disso usavam as letras
10 As versões tradicionais (ARA aqui do alfabeto (a = 1, b = 2, c = 3 e assim por
e ARe) tomam as duas partes desse dísti- diante). Isso fazia com que fosse possível
co como referências aos perseguidores da que um nome representasse um número
igreja (Se alguém leva para cativeiro, para obtido pela adição dos valores numéricos
cativeiro vai...), indicando que a justiça das letras do nome. Por exemplo, há uma
será feita para com o opressor. A tradução inscrição numa parede de Pompeia que
da NVI é melhor ("Se alguém há de ir para diz: "Eu amo aquela cujo número é 545".
o cativeiro, para o cativeiro irá..."). O dito Certamente a jovem sabia de quem era
ecoa Jeremias 15.2 e é um chamado à per- aquele nome! Assim também, apesar das
severança e fidelidade até a morte segundo muitas possibilidades que o número 666
a disposição de Jesus (cf Me 8.34,35). oferece, é praticamente certo que o indi-
11 A segunda besta possuía dois chi- víduo indicado por tal número era conhe-
fres, parecendo cordeiro, simulando o cido em todas as igrejas a quem João se
caráter de Cristo, mas suas palavras eram dirigiu, e provavelmente muito além delas.
demoníacas (cf Mt 7.15). O fato de que O nome Nero César transliterado do grego
essa besta faz com que a terra e os seus para o hebraico resulta no número 666. Se
habitantes adorem a primeira besta suge- for transliterado do latim para o hebraico,
2159 APOCALIPSE 14."
11.
resulta no número 616, como aparece em ra anterior dos 144 mil (7.1-8), em que
alguns manuscritos antigos de Apocalipse. essa multidão ainda está na terra, embora
O número teria sido apropriado em círcu- depois visualizada no céu, mas ainda não
los apocalípticos em que o hebraico (a lín- tendo entrado para os seus privilégios ré-
gua do AT) era conhecido. Para os cristãos, gios (7.9-17). O nome escrito na sua testa
666 era um número extremamente ade- explica a natureza do "selo" de que se fala
quado para o anticristo; ele representa um em 7.1-8; é o nome do Pai do Cordeiro
contundente ficar aquém da perfeição divi- (contraste com o nome ou número da bes-
na sugerida por 777, ao passo que o nome ta na mão ou testa dos seus seguidores!).
de Jesus em grego resulta no número 888! 3 A hoste angelical em 5.9 cantou um novo
Nisto consiste um aspecto da diferença en- cântico, mas somente os 144 mil puderam
tre o cristo do Diabo e o Cristo de Deus: o aprender este aqui; trata da experiência da
pseudocristo está aquém de ser o libertador redenção, que somente pecadores salvos
do mundo tanto quanto o Cristo de Deus podiam saber. 4,5 A descrição da multi-
está além de todas as esperanças da huma- dão dos salvos é tão pictórica quanto o seu
nidade como seu Salvador. número. Eles são retratados como homens
que não se macularam com mulheres,
14. 1-20 Oráculos do mais provavelmente porque eram solda-
reino e do juízo dos do Cordeiro engajados no serviço (cf
Algumas versões dividem o capítulo em as regulamentações do AT acerca da guerra
sete breves oráculos: v. 1-5, uma visão dos santa, que incluem a abstenção de relações
crentes fiéis no reino de Cristo; v. 6,7, a sexuais; Dt 20.1-9; 23.9-14; lSm 21.4,5;
pregação do evangelho no periodo da tri- 2Sm 11.6-13). O simbolismo poderia in-
bulação; v. 8, a declaração da destruição cluir abstenção de "fornicação" com a
da "Babilônia"; v. 9-12, uma advertência prostitua Babilônia (cf v. 8).
acerca de receber a marca da besta; v. 13, 14.6-20 O dia da ira. Essa sucessão
uma bem-aventurança sobre os que mor- de breves oráculos é unida pelo empre-
rem "no Senhor"; v. 14-20, duas visões do go de seis anjos, que anunciam o juízo e
juízo, uma que usa o simbolismo da co- o executam. Como os v. 1-5, estes têm a
lheita de grãos (14-16) e outra, a figura da intenção de fortalecer a resistência dos
vindima (17-20). cristãos, sendo que aquela visão retrata a
14.1-5 Os 144 mil no monte Sião. O recompensa pelo bem, e esta, a recompen-
propósito dessa visão é encorajar os cris- sa pelas obras más.
tãos em vista do relato do reinado do anti- 6,7 Uma última advertência é dada à
cristo nos cp. 12-13. humanidade incrédula. Todas as nações são
1 A identidade dos 144 mil é determi- intimadas ao arrependimento e à adoração
nada por 7.1-8 e 5.9,10. João não represen- a Deus. A mensagem é chamada de evan-
taria dois grupos diferentes por um núme- gelho eterno, visto que as bênçãos eternas
ro simbólico tão incomum, especialmente das boas novas ainda permanecem para
quando ele afirma que em ambos os casos aqueles que as aceitarem. Observe que a
eles levavam a marca de Deus na sua testa representação de um anjo pregando o evan-
(7.3,4). A multidão é definida como os que gelho é parte do simbolismo das profecias;
foram comprados da terra (3), um eco da o termo "anjo" significa mensageiro, e os
descrição da igreja em 5.9. Eles estão em mensageiros são de carne e sangue.
pé no monte Sião, i.e., a Jerusalém celestial S A queda da Babilônia é contada em
(21.9-27). Isso também está em harmonia mais detalhes nos cp. 17-18. Esse nome
com o cântico de gratidão em 5.9,10, mas é aplicado a Roma em lPedro 5.13 e em
representa um avanço em relação à figu- outros textos extrabíblicos.
APOCALIPSE 15 2160

9-13 Essa advertência forma um com- vamente a conexão entre o sacrificio e a


plemento à pregação do evangelho eterno oração dos santos de Deus, e o advento do
nos v. 6,7. Os seguidores da besta vão be- reino de Deus. A imagem do juízo divino
ber do vinho da cólera de Deus, preparado, como o pisar das uvas remonta a Isaías
sem mistura, do cálice da sua ira. O texto 63.1-6. É tão simbólico quanto a medição
grego descreve o vinho como "misturado do fluxo de sangue do lagar de vinho, e tí-
não misturado", i.e., vinho misturado forte pico no seu exagero: e correu sangue do
que não foi diluído (acerca desse simbolis- lagar até aos freios dos cavalos (20).
mo, v. SI 75.8; Is 51.17-23). O simbolismo Em 1Enoque 100, lemos acerca de uma
de fogo e enxofre como juízo remonta à guerra nos últimos dias em que pais e fi-
destruição de Sodoma em Gênesis 19.24,25 lhos lutam uns contra os outros e irmãos
(cf Is 34.8-10). 12 O chamado dos santos lutam contra irmãos "até que os rios cor-
à perseverança encontra um estímulo adi- ram com o seu sangue [...] e o cavalo ca-
cional na contemplação da destruição dos minhará com o sangue dos pecadores até
adoradores da besta; assim como também o peito, e os carros estarão submersos por
no conhecimento de que muitos cristãos ele". Os judeus descreveram de forma se-
serão chamados a passar pela prisão e pela melhante a matança realizada pelos roma-
morte (cf 13.10). nos no tempo de Adriano: "Eles mataram
13 A bem-aventurança para os mortos as pessoas [de Beter] continuamente, até
que, desde agora, morrem no Senhor serve que o cavalo afundasse até as narinas no
a um propósito semelhante. Se desde agora sangue. E o sangue foi derramado no mar
denota um ponto no tempo então é o "ago- numa extensão de seis quilômetros. Se
ra" da redenção de Cristo (cf 12.10). Uma vocês imaginarem, no entanto, que Beter
tradução alternativa seria: "certamente"; estava perto do mar, vocês não sabem que
nesse caso, a afirmação é simplesmente estava a 60 quilômetros de distância?". A
enfática - "Bem-aventurados certamente profecia de João é uma representação apo-
são os que morrem no Senhor". calíptica característica do juízo na parousia
14-20 É comum interpretar os v. 14-16 de Cristo e deve ser interpretada à luz da
como retratando o ajuntamento da igreja natureza do apocalipse.
feito por Cristo na sua vinda e os v. 18-20
como o ajuntamento do mundo incrédulo 15.1-16.21 As sete taças da ira
para o juízo, especialmente em vista da apa- Depois de encerrar o longo interlúdio
rição de um semelhante a filho de homem dos cp. 12-14, João retoma ao tema dos
no v. 14 (cf 1.13). Mas parece estranho que juízos messiânicos do final dos tempos.
Cristo receba a ordem de um anjo para apa- Assim como com os sete selos e as sete
recer em glória e realizar a sua obra salví- trombetas, o número sete é mantido, mas,
fica. É mais provável que o "semelhante a nas versões em inglês (e em alemão), o
ser humano" seja uma figura celestial com- simbolismo tem sido deturpado de longa
partilhando parte da glória de Cristo, como data quando tradutores têm vertido João
o "anjo forte" de 10.1. A colheita do trigo e como falando de "tigelas" da ira (em 15.7
a vindima então representam um ato inclu- e em todo o cp. 16). O termo grego em
sivo de juízo, como em Joel 3.13, no qual questão é comumente usado em referên-
se baseiam esses dois oráculos. Acerca da cia a tigelas domésticas (assim provavel-
colheita da terra pela instrumentalidade dos mente em Ap 5.8), mas também pode ser
anjos, cf Mateus 13.41,42. usado para falar de copos de beber (assim
O sexto anjo tem autoridade sobre claramente em Pv 23.31). A frequência do
o fogo e veio do altar; isso está ligado a "copo da ira" de Deus como imagem de
6.9-11; 8.1-5; 9.13; 16.7. Exemplifica no- juízo no AT deve ser determinante no seu
2161 APOCALIPSE 1S

significado aqui (dentre as muitas ocorrên- dos juízos das trombetas (8.7-12), mas está
cias, V., e.g., Jr 25.15; 49.12; Ez 23.31,32; mais claro nesta série, no sentido de que
Hc 2.15). Isaías 51.17,22 é de importância todos os juízos das taças refletem as pra-
especial, com suas referências ao "copo" gas do Egito, e o seu resultado é celebrado
ou "taça" da ira. Visto que o próprio João no "cântico de Moisés [...] e o cântico do
usa o simbolismo de beber do cálice da ira Cordeiro", cantado diante de um celestial
de Deus em 14.10 e 16.19, parece que a "mar Vermelho" (15.3,4). Tudo nesse se-
mesma figura controla a apresentação dos gundo êxodo é maior do que ocorreu no
juízos nos cp. 15-16. primeiro êxodo, parecidos nos seus juízos
Afirma-se das taças que elas causam os e suas bênçãos, mas isso está em consonân-
sete últimos flagelos (1). Isso com frequên- cia com a missão de Cristo como trazendo
cia está associado ao fato de que não foi cumprimento das promessas de Deus sob a
dada nenhuma descrição do juízo da séti- antiga aliança.
ma trombeta, embora tenha trazido o fim
(11.15); sugere-se depois que os juízos das 15.1-8 Introdução às taças da ira
taças seguem o toque da última trombeta. 2 O mar de vidro, mencionado em 4.6, está
Isso é concebível, mas improvável. O con- mesclado de fogo, insinuando a ira que
teúdo das sete taças é muito semelhante ao está para ser revelada do céu (cf 8.5). Mas
das sete trombetas; na maioria dos casos os vencedores da besta estão em pé junto a
a diferença está na ampliação das pragas ele do lado de Deus, assim como os israeli-
anteriores pelas posteriores. Por exemplo, tas estavam em pé junto ao mar Vermelho
a segunda e a terceira taças revelam que a e cantaram o seu cântico de libertação (Êx
segunda e terceira trombetas aumentaram 15.1-18).3,4 O cântico de Moisés [...] e o
em extensão (8.8-11; 16.3,4); assim como cântico do Cordeiro são um só, visto que o
o terremoto que segue a sétima trombeta padrão da redenção no primeiro êxodo foi
aparentemente é o da sétima taça, só que cumprido e concluído no segundo êxodo.
descrito mais amplamente (11.19; 16.17- Cada linha do cântico traz semelhanças
20). Os paralelos entre a quarta trombeta com os profetas e salmistas. Grandes e
e a quarta taça são evidentes (8.12; 16.8), admiráveis são as tuas obras, cf Salmos
como também entre a quinta e sexta trom- 98.1; 111.2; 139.14. Justos e verdadeiros
betas e a quinta e sexta taças (1.1-21; são os teus caminhos, cf Deuteronômio
16.10-16). Os juízos das taças, por conse- 32.3; Salmos 145.17. Quem não teme-
quência, parecem dar uma revelação mais rá..., cf Jeremias 10.7. Todas as nações
ampla do que já tinha sido mostrado nos virão ..., cf Salmos 86.9. Os teus atos de
juízos das trombetas, junto com algumas justiça se fizeram manifestos, cf Salmos
características novas. 98.2; Isaías 26.9. A visão é extraordinária
O cântico dos vencedores junto ao mar no seu contexto, e é um lembrete de que
de vidro (3,4) celebra a conversão das na- o sucesso do anticristo é menor do que os
ções diante da conclusão dos "atos de jus- retratos hiperbólicos dos juízos messiâni-
tiça" de Deus (4). A visão, portanto, exul- cos possam sugenr.
ta nos efeitos dos últimos flagelos e não 5 O tabernáculo do Testemunho (ou
anuncia a sua vinda. Ela aponta adiante e tenda do testemunho) foi o nome dado ao
serve para destacar a declaração do v. I: tabernáculo no deserto (Nm 9.15), porque
com estes se consumou a cólera de Deus. nela a "arca" contendo as tábuas de pedra
Mais uma característica dos juízos das da aliança foi guardada. Visto que a arca
taças precisa ser mencionada: eles têm uma foi mais tarde alojada no templo, o próprio
semelhança surpreendente com as pragas templo foi às vezes chamado de taberná-
do êxodo. Isso foi observado no primeiro culo (SI 84.1,2). A expressão tabernáculo
APOCALIPSE 16 2162

do Testemunho aqui ressalta que os juízos concordância com a relação entre os juízos
prestes a ser executados são a expressão da da trombeta e da taça esboçados na intro-
justiça de Deus. 6-9 Quando os sete anjos dução dos cp. 15-16.
receberam as sete taças de ouro, cheias da 12-16 A sexta taça, como o juízo da
cólera de Deus, o santuário se encheu de sexta trombeta, afeta o grande rio Eufrates
fumaça procedente da glória de Deus ... (8); (cf 9.13-16), mas enquanto a sexta trom-
acerca de ocasiões semelhantes desse fenô- beta fez surgir hostes demoníacas, a sex-
meno, ver Êxodo 40.35; 2Crônicas 7.2,3; ta taça prepara para a invasão do império
Isaías 6.4; Ezequiel 10.4; 44.4. Tal mani- pelos reis do lado do nascimento do sol.
festação denota a presença de Deus, e nesse Estes são descritos em mais detalhes em
contexto indica que o próprio Deus vai exe- 17.12,13; eles se colocam debaixo do co-
cutar os juízos que conduzem ao seu reino. mando do anticristo (17.17), devastam a
Os anjos são apenas seus instrumentos. cidade prostituta (17.16) e fazem guerra
contra o Cordeiro (17.14). O impulso para
16.1-21 Descrição dos fazer essas coisas vem de três espíritos
julgamentos das taças imundos semelhantes a rãs que saem da
1 Visto que ninguém podia entrar no tem- boca do dragão, da besta e do falso profe-
plo até que os juízos das taças tivessem ta. Em tempos antigos, os sapos e rãs eram
terminado (15.8), a grande voz [...] vinda considerados criaturas imundas, às vezes
do santuário deve ser a voz de Deus. 2 O até agentes de poderes malignos. Aqui a
juízo da primeira taça repete a praga egíp- tarefa delas, como do espírito mentiroso
cia de tumores que rebentavam em úlceras na história de Acabe (1Rs 22.19-23), é
(Êx 9.10,11). 3-7 A transformação do mar persuadir os governantes do mundo a se
e das águas doces em sangue, como os juntar em uma grande batalha final contra
juízos da segunda e da terceira trombetas Deus no lugar que em hebraico se chama
(8.8-11), divide em duas uma única pra- Armagedom. O significado do nome é des-
ga no Egito (Êx 7.19-21). A declaração conhecido. É a transliteração para o grego
do anjo nos v. 5,6 tem a mesma ideia que do nome hebraico Har-Megido, "o monte
Sabedoria de Salomão 11.5-14, mas apli- de Megido", mas a cidade está situada na
cada ao anticristo e aos seus agentes por planície de Esdrelom em Israel e não tem
derramarem o sangue dos santos e profetas. montanha (a mais próxima é o Carmelo
O altar concorda com esse juízo (cf 6.10; ao norte). Assim como o número 666,
8.3-5). Observe a ausência de "e que há de esse nome tinha uma história na tradição
vir" na segunda linha do cântico (como em apocalíptica, mas não possuímos o seu se-
11.17); visto que o próprio Deus está enga- gredo. Para João, não designava tanto um
jado nos juízos que resultarão no seu reino, lugar quanto um evento, a saber, o último
é inapropriado falar de sua vinda futura. levante dos maus contra Deus que resulta
8-11 Mais uma vez uma praga egípcia no estabelecimento do seu reino.
(a das trevas; Êx 10.21) é distribuída em 17-21 A sétima taça é derramada pelo
dois juízos das taças. O fato de o anjo der- ar, sugerindo algo ainda mais apavorante
ramar a quarta taça sobre o sol aumentou do que a devastação causada pelos juízos
o seu calor sem extinguir a sua luz, mas a anteriores; significa o golpe final contra as
quinta taça foi derramada sobre o trono da forças do mal, visto que saiu grande voz
besta e assim produziu escuridão. É pos- do santuário (a voz de Deus?) que procla-
sível que a dor dessa praga se deveu aos mou: Feito está! Não dá para não pensar no
gafanhotos demoníacos da quinta trom- grito de Jesus na cruz: "Está consumado!"
beta, que causou tormento aos adeptos da (Jo 19.30) e na declaração quando o pro-
besta (9.1-6). Essa interpretação está em pósito de Deus na nova criação é atingido:
"Tudo está feito" (21.6). Os relâmpagos,
2163 APOCALIPSE 17 . . .

identificação de reis com seus reinos nos


.
vozes e trovões etc. sugerem, como em 8.5 escritos apocalípticos (v. especialmente
e 11.19, a teofania que conclui o juízo e Dn 2.38-44; 7.2-8,15-26). O retrato da
introduz a glória do reino. Mas enquanto o mulher que representa a cidade do anticris-
terremoto é uma parte integral da vinda de to nesse capítulo é contrastado de forma
Deus (e.g., Is 13.13; Ag 2.6,7; Zc 14.4,5), extrema com a descrição da mulher que
este terremoto é destacado porque despeda- representa a cidade de Deus nos cp. 19 e
ça a grande cidade e a cidade das nações. 21-22. Por exemplo, a primeira é descrita
A fuga de todas as ilhas e dos montes sim- como MÃE DAS MERETRIZES (5); a segunda
boliza a reação da criação à glória irresis- como a noiva pura, a "esposa do Cordeiro"
tível de Deus na sua aparição (cf 6.12-14). (19.7; 21.9). A Babilônia está embriagada
O último juízo é causado pela saraivada do sangue dos santos e por meio do seu vi-
(cf a praga egípcia, Êx 9.24; a derrota dos nho traz morte ao mundo (6; 19.2); a noiva
exércitos perseguidos por Josué, Js 10.11; oferece água da vida ao mundo (22.17) e
e a desgraça dos anfitriões de Gogue, testemunha da redenção do reino eterno de
Ez 38.22). Todas essas descrições são ofus- Deus (21.6-22.5). A Babilônia termina
cadas por este evento, mas ele não conduz em destruição eterna (19.3); a cidade-noi-
as pessoas ao arrependimento. va é o coração da nova criação (21.1-5).
Uma explicação mais detalhada e am- Apocalipse é bem caracterizado como "A
pla do que está incluído nos últimos dois narrativa das duas cidades"!
juízos das taças é dada nos cp. 17-19.
17. 1-6 A visão da Babilônia
17.1-19.10 O reinado e a ruína na sua glória
da cidade do anticristo 1,2 As palavras do anjo a João poderiam
Essa seção amplia a visão do juízo da séti- formar um título adequado de todo o trecho
ma taça, brevemente descrito em 16.17-21. de 17.1 a 19.1o: O julgamento da grande
É importante observar que não descreve o meretriz. A cidade de Tiro foi chamada de
que acontece depois desse juízo, pois nele prostituta por Isaías (Is 23.15-17), e assim
vem o fim (16.17). Antes, o trecho fala de também aconteceu com Jerusalém (Is 1.21;
como a "Babilônia" é obrigada a esvaziar o Jr 3) e Nínive (Na 3.4,5). A segunda par-
cálice designado para ela (16.19). te do v. 2 alude às palavras de Jeremias à
As figuras do cp. 17 oscilam de forma Babilônia: "á tu que habitas sobre muitas
complicada. O cp. 12 diz que o dragão com águas, rica de tesouros!" (Jr 51.13). O rio
sete cabeças e dez chifres representa o dia- Eufrates corria através da cidade, que tam-
bo (v. 9), e no cp. 13 ele é a encarnação bém possuía muitos canais e mantinha um
do espírito do mal, o anticristo. No cp. 17, sistema de irrigação que gerava prosperi-
a besta carrega uma mulher, sentada nela; dade. Com base no v. 9, fica claro que a
ela é anunciada como a cidade do anticristo cidade de Roma está em mente aqui - ela
(18), e a besta é claramente o império que se tomou a nova "Babilônia", reprimindo o
a mantém. Esse uso do simbolismo é com- povo de Deus e corrompendo a terra toda.
preensível, pois na forma acadiana da bata- 3 No v. I, a "prostituta" está sentada sobre
lha do monstro do mar e dos deuses do céu muitas águas, mas aqui ela está montada
o monstro é feminino. A mulher e a besta numa besta num deserto; a figura trocada é
são formas alternativas de representar um explicada pela associação do deserto com
único poder do mal. Adiante, porém, no v. forças demoníacas (cf Lc 11.24). A besta
11, a besta é um rei, em quem está personi- é escarlate, compartilhando da semelhan-
ficada a natureza do império. Isso está em ça com o dragão, i.e., do diabo (12.3). Ela
concordância com a maneira frequente de estava repleta de nomes de blasfêmia, uma
APOCALIPSE 17 2164

referência principalmente às reivindica- forma, o poder de Satanás será visto em


ções de divindade por parte dos imperado- outro poder político conduzido por outro
res romanos. 4 A luxúria e sujeira imoral governante ímpio. Nos tempos de João,
da cidade são aqui expressas vividamente, uma circunstância peculiar tomou esse
novamente com a ajuda da caracterização conceito extraordinariamente impactante.
que Jeremias faz da Babilônia (Jr 51.7). Quando Nero morreu, a notícia parecia boa
5 A declaração e inscrição do nome sobre demais para ser verdadeira. Correram boa-
a testa da prostituta alude ao costume que tos de que ele ainda estaria vivo e que re-
as prostitutas romanas tinham de levar o tomaria como comandante de um exército
seu nome escrito numa faixa (ou tiara) que para atacar Roma. Com o passar dos anos,
as mulheres romanas costumavam usar na se percebeu que ele tinha morrido, mas se
cabeça. a prefixo mistério significa que o espalhou o temor de que ele ressuscitasse.
nome é simbólico (cf 11.8). a título carac- Assim, com verdadeiro simbolismo apoca-
teriza a cidade tirana como da mesma natu- líptico, João combina as duas expectativas
reza como aquela contra a qual os profetas para expressar a horrível realidade da cida-
de antigamente protestavam tão veemente- de ímpia e de seu governante ateu, ambos
mente. 6 A mulher estava embriagada com infernais na sua natureza e ambos instru-
o sangue dos santos, especialmente por mentos do Diabo. (Acerca desse tema, veja
meio da perseguição indizivelmente cruel a nota sobre o império anticristão no fim da
de Nero, mas também na expectativa da exposição do cp. 18.)
guerra do anticristo contra a igreja. 9-11 A dualidade da aplicação dessas
figuras é expressa no v. 9, mas com uma
17.7-18 A interpretação da visão: identificação específica: as sete cabeças da
a condenação da Babilônia besta são sete montes, nos quais a mulher
a v. 8 é crucial para a explicação da vi- está sentada, i.e., Roma, conhecida como
são dos v. 1-6. A "besta" na qual a mulher a "cidade das sete colinas". Roma estava
está "montada" é claramente o império da representando a parte da "mãe das mere-
cidade do anticristo, contudo a linguagem trizes". Mas as sete cabeças também repre-
parece estar associada a um indivíduo que sentam sete reis. Independentemente do
era e não é, está para emergir do abismo que o número sete significava para outros
(cf 11.17). Na realidade, essa expressão se autores, para João era um símbolo de com-
aplica a ambos, o império e o imperador. pletitude. Por consequência, caíram cinco
a mito antigo da vitória sobre o monstro significa que a maioria veio e foi; um exis-
primevo do mar veio a denotar, por um te está associado ao governante presente;
lado, a natureza dos poderes políticos que o outro (i.e., o sétimo) ainda não chegou,
oprimiam o povo de Deus (e, portanto, se mas quando vier tem de durar pouco, na-
opunham a Deus!) e, por outro lado, sua turalmente porque "o tempo está próximo"
derrota certa diante de Deus. Em algumas (1.3). Depois da partida dele, a besta vai se
versões, o monstro foi morto, em outras, revelar com toda sua força num oitavo rei,
ele foi simplesmente derrotado. a primei- que não é nenhum novato, pois ele já apa-
ro caso está em vista em Isaías 51.9, 10 e é receu como um dos sete, i.e., Nero; mas ele
aplicado à derrota do Egito no êxodo; o se- não deve ser temido, pois caminha para
gundo aparece em Isaías 30.7 para indicar a destruição, para a qual está condenado
a impotência do Egito para ajudar Israel. todo monstro que se opõe a Deus.
Ao aplicarmos isso aos tempos do fim, se 12-14 Os dez chifres, na mesma linha
pode dizer que o monstro do abismo era, de Daniel 7.7, são interpretados como dez
foi derrotado e declarado impotente, e as- reis. Na visão de Daniel, eles precedem
sim não é, mas está para emergir; dessa o poder anti-Deus (alguns são derrotados
2165 APOCALIPSE 18

por ele; Dn 7.24), mas na visão de João nos, ver nota sobre o império anticristão no
eles estão confederados com o anticris- final da exposição do cp. 18.
to, os governantes dos estados satélites
ou governadores de províncias. Mas eles 18. 1-24 Um lamento
ainda não receberam reino, e quando isso sobre a Babilônia
acontecer receberão a sua autoridade junto Esse capítulo é modelado segundo os cân-
com a besta durante uma hora. Tão bre- ticos de desgraça dos profetas do AT sobre
ve é o tempo em que eles têm permissão nações opressoras e arrogantes dos seus
para fazer alvoroço! A sua guerra contra o dias. Tanto lembra esses cânticos que se
Cordeiro é inútil, pois ele é o Senhor dos pode dizer que resume todos os oráculos
senhores e o Rei dos reis - inclusive dos proféticos acerca da condenação de povos
reis anticristãos; e os seus seguidores cha- ímpios. As profecias contra a Babilônia (Is
mados, eleitos e fiéis compartilharão da 13; 21; 47; Jr 50; 51) e contra Tiro (Ez 26;
vitória dele (cf as promessas aos "vence- 27) parecem ter ocupado de forma proemi-
dores" nos cp. 2-3). nente a mente de João. O cântico acerca
15-18 Enquanto na profecia de Jere- da ruína da Babilônia é consideravelmente
mias as águas da Babilônia eram literais mais longo do que a descrição que João faz
(Jr 51.13; v. comentário do v. I), João as do evento em 17.12-18, mas é uma parte
considera aptas para simbolizar o povo daquela história e fornece um clímax im-
sobre quem a cidade anticristã governa. pactante para ela.
O anticristo que está voltando com seus 1 A glória do anjo descendo do céu é
confederados odiará a meretriz e a levará à descrita em palavras usadas por Ezequiel
destruição (a linguagem do v. 16 é extraída acerca da glória de Deus que volta ao tem-
da descrição que Ezequiel faz do castigo plo restaurado nesta nova era (Ez 43.1,2).
de Israel; Ez 23.25-29). Não é dada nenhu- 2 Caiu! Caiu a grande Babilônia é uma ci-
ma explicação por que o governante anti- tação de Isaías 21.9. Acerca do restante do
cristão se volta contra a cidade anticristã. versículo, cf Isaías 13.21,22. Estritamente
A história conhecida de Nero esperava que falando, esse quadro não está em harmo-
o imperador se levantasse para tomar o im- nia com o de 19.3, mas eles são formas
pério, mas este capítulo, e explicitamente o diferentes de retratar o juízo de Deus so-
v. 13, pressupõem que ele governará o im- bre uma cidade. João não hesita em mis-
pério com a sua ira como auxílio contra as turar o seu simbolismo, e ele espera que
obras de Deus. Mas em seu coração incutiu os seus leitores o interpretem à luz das
Deus que realizem o seu pensamento. Os escrituras proféticas. 3 João coloca sobre
agentes do Diabo executam a vontade de Roma a responsabilidade da corrupção de
Deus. O mal é destruído pelo mal e colhe toda a terra, e por isso essa nova Babilônia
o seu próprio fruto. O anticristo e os seus precisa ser destruída e eliminada da terra.
aliados, como o Diabo a quem servem, es- 4 Cf Isaías 52.11; Jeremias 51.6,45.5 Cf
tão nas mãos de Deus até que se cumpram Jeremias 51.9. 6 Ver Isaías 4.2; Jeremias
as palavras de Deus. 18 A mulher é iden- 16.18; 50.29. O grito do v. 6 pode ser con-
tificada agora, ao menos tão claramente siderado como dirigido aos exércitos vin-
quanto é permitido pela literatura apocalíp- gadores do anticristo e de seus aliados. Ver
tica, e suficientemente para que os leitores 17.12,13,16. O juízo de Roma deverá ser
de João saibam de quem ele está falando: proporcional à sua autoexaltação, devassi-
ela é a grande cidade que domina sobre os dão e orgulho; cf Isaías 47.7-9.8 Entre os
reis da terra, i.e., nos dias de João, Roma, flagelos que assaltam a "Babilônia", a mor-
a amante do mundo. Acerca do significado te provavelmente signifique a peste (v. co-
dessa identificação para os cristãos moder- mentário de 6.8), e o pranto, a calamidade,
APOCALIPSE 18 2166

assim fazendo dos três flagelos: "peste e 17-19 A preocupação dos marinheiros,
calamidade e fome". A destruição pelo assim como a dos mercadores, não é pela
fogo é realizada pelos exércitos invasores cidade, nem por aqueles que sucumbiram
sob o anticristo; cf. 17.16. com ela, mas pela perda dos seus lucros.
Os lamentos sobre a Babilônia são pro- 20 O apelo a que se alegrem sobre o juí-
nunciados pelos reis da terra (9,10), pelos zo da Babilônia deve ser distinguido do
mercadores (lI-17a) e marinheiros (17b- lamento dos marinheiros. É melhor inter-
19). João tomou emprestado aqui especial- pretá-lo como a conclusão da declaração
mente do cântico de destruição de Ezequiel do anjo que começa no v. 4 e inclui os
sobre Tiro (Ez 26-27). 9 Os reis da terra lamentos dos reis, mercadores e mari-
são os mencionados em 17.18, não os que nheiros. Se intencional ou não, 19.1-7
estão em aliança com a besta (17.16,17; cf forma uma resposta adequada ao grito.
Ez 26.16,17).10 O sentido de cada lamen- 210 ato simbólico do anjo é sugerido por
to é o mesmo: em uma só hora, chegou o um ato semelhante realizado por Jeremias
teujuízo (cf v. 17,19). pela Babilônia (Jr 51.63,64). Os v. 22,23
11-13 Cf a lista das nações de mer- lembram Ezequiel 26.13 e Jeremias 25.10
cadores que comerciavam com Tiro (Ez nas suas descrições do término das artes,
27.12-24) e sua grande surpresa e temor das atividades produtivas, da alegria dos
(Ez 27.35,36). Os v. 12,13 fornecem uma casamentos e de todos os tipos de esplen-
lista de bens vendidos pelos mercado- dor. Os seus "negociantes são os mais
res de Roma; cf as importações de Tiro nobres da terra" foi declarado por Isaías
(Ez 27.12-24). Madeira odorífera era uma com respeito aos negociantes de Tiro
madeira resistente com odor adocicado (Is 23.8). Isso é citado como razão para
do norte da África, especialmente usada o juízo sobre Roma porque, com base
para a fabricação de mesas de grande por- no v. 3, os seus mercadores fomentaram
te. Marfim era popular entre os romanos a devassidão da cidade e assim estavam
tanto na decoração de móveis quanto para eles mesmos presos aos vícios luxuriosos
ornamentos em geral. O termo para espe- de Roma. Isaías já tinha comentado acer-
ciarias denotava uma planta aromática ca das feitiçarias da Babilônia originária
da Índia, usada no preparo de preciosos (47.12), e Naum condenou as de Nínive
óleos para o cabelo. Os carros são de um (Na 3.4). O termo feitiçarias é usado aqui
tipo especial, tendo quatro rodas e, com com o sentido de "encanto", "fascina-
frequência, dispendiosamente decorados. ção"; esse sentido harmoniza bem com
Duas palavras são usadas para escravos, a ideia de que representa não tanto ma-
"corpos" e "almas de homens" (ARe). A gias e bruxarias de maneira literal, mas
segunda expressão ocorre em Ezequiel "a feitiçaria dos vícios do lazer e da lu-
27.13, e embora na fala comum ambas xúria e suas idolatrias resultantes, pelas
fossem sinônimas, a segunda significava quais o mundo estava fascinado e engana-
praticamente que eram como animais. do" (Swete, The Apocalypse of St. John,
Acerca disso, Swete comentou: "O mundo p. 240). 24 Cf Mateus 23.35, em que o
dos dias de São João ministrava de milha- nosso Senhor acusa Jerusalém dessa ma-
res de formas à insensatez e aos vícios da neira. A afirmação de João é justificada
Babilônia, mas o clímax foi atingido no não somente pelas perseguições do pas-
sacrifício de vidas humanas, que recruta- sado e pela tribulação no futuro, mas tam-
va as enormes familiae dos ricos, repletas bém por sua compreensão de Roma como
de bordéis, e ministrava aos prazeres bru- a encarnação do espírito que em qualquer
tais do anfiteatro" (The Apocalypse of St. época tenha atacado o povo de Deus (v.
John, p. 235). notas de 17.7-18).
2167 APOCALIPSE 18 <
Nota a respeito do império anticris- exceção. Ele deve ter tido em mente duas
tão. Surge uma pergunta premente da lei- realidades: por um lado, o Senhor tinha ob-
tura dos cp. 13, 17 e 18. Nessas descrições tido uma redenção que trouxe o reino de
da condenação da cidade e do império do Deus para o mundo, e ele viria logo para
anticristo, há poucas dúvidas de que João a sua consumação; por outro lado, o "mis-
tinha Roma em mente. Ele só não a men- tério da iniquidade" estava operante de
ciona em 17.9,1, mas dá a entender, e faz forma muito evidente no mundo (2Ts 2.7),
isso por meio do nome místico Babilônia. e Roma já estava fazendo o papel do an-
Suas profecias postulam a aparição imi- ticristo. O palco estava armado, portanto,
nente de um anticristo que personificaria a para o fim, e João descreve a catástrofe
sua maldade, mas cujo governo duraria so- como ensinado pelos profetas, por Cristo e
mente um breve período, concluindo com por seus apóstolos. Ele aplica essa doutri-
a destruição da cidade e a aparição e reina- na à situação dos seus dias. O cronograma
do de Cristo. É o cúmulo da ironia o fato ficou muito espremido, mas a essência da
de que, em vez de se tomar a esfera do go- sua profecia não é por isso invalidada. Os
verno do anticristo, Roma tenha capitulado "muitos anticristos" (110 2.18) desde os
ao Crísto de Deus e se tomado um centro dias de João têm se aproximado gradativa-
mundial do cristianismo. Muitos concluí- mente do retrato que ele pintou e culmina-
ram que as profecias de João receberam rão num que o cumprirá perfeitamente.
nisso o seu verdadeiro cumprimento; mas O simbolismo usado nesse "retrato"
o profeta, com o prenúncio da vinda de do anticristo é tão evidente como o que
Cristo e da descida da cidade de Deus vin- é empregado no retrato de Satanás, da ci-
da do céu, dificilmente teria reconhecido dade e do império, e de seu uso no cp. 12.
essa interpretação. João adapta a expectativa contemporânea
Aqui é necessárío lembrar que a visão da ressurreição de Nero para descrever a
de João está fundamentalmente associa- vinda do anticristo como a de "mais um
da às visões dos profetas do AT. Todos os Nero". Há um paralelo a isso na sua apli-
profetas, na sua representação da derrota cação da profecia de que Elias virá antes
das nações opressoras dos seus dias, espe- do dia do Senhor (Mq 4.5). João certa-
ravam que o estabelecimento do reino de mente deve ter sabido como Jesus apli-
Deus seguisse aqueles juízos (e.g., Isaías cou essa profecia ao ministério de João
esperava que a libertação messiânica se- Batista (Me 9.12,13); ele mesmo amplia
guisse o juízo de Deus sobre a Assíria, isso a um ministério ainda mais amplo em
Is 10-11; Habacuque aguardava a des- relação ao ministério da igreja toda (cp.
truição da Babilônia, Hc 2.2,3; Jeremias e 11). Era tão natural para ele representar
Ezequiel o esperavam após o retomo dos o anticristo como operando "no espírito e
judeus sob Ciro, Jr 29-31; Ez 36; e cada no poder de Nero" (cf Lc 1.17), por meio
visão de Daniel espera que o reino venha do emprego da história do "Nero redivi-
após a derrota do tirano Antíoco Epifânio; vo" sem mais explicações, quanto o era
v. especialmente Dn 7-9; 11-12). No NT, para ele usar a profecia do "Elias redivi-
os evangelistas colocam o ensino do nos- vo" sem explicações.
so Senhor a respeito da segunda vinda nas Assim como não devemos tentar defi-
proximidades das suas profecias acerca nir a vinda de Jesus com base em conjectu-
do juízo sobre Jerusalém (Mt 24; Me 13; ras alheias ao tema, mas dar atenção antes
Lc 21), e essa vinda é esperada no futuro àquilo que o governo providencial de Deus
não distante, embora nunca seja datado (cf cria diante dos nossos olhos, assim deve-
Rm 13,11,12; Hb 10.37; Tg 5.8; lPe 4.7 mos permitir que Deus cumpra a profecia
110 2.18). Em relação a isso, João não foi de João no seu tempo e da sua maneira.
APOCALIPSE 19 2168

19. 1-10 Ações de graça 5 A voz do trono virá de um dos seres


pelo juízo sobre a Babilônia viventes, não do Cristo glorificado, que di-
As palavras de louvor que caem como tro- ficilmente faria o chamado: Dai louvores
vão do céu por causa da justiça manifesta ao nosso Deus. 6-8 Os louvores da igreja
de Deus ao destruir a cidade do anticristo estão associados à vinda do reino de Deus
constituem uma resposta ao grito do anjo e às bodas do Cordeiro e não à desolação
em 18.20 convidando a que exultem sobre da Babilônia. A declaração: Pois reina
o que Deus fez. Os louvores dos céus estão o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso
registrados nos v. 1-4, e os louvores dos deveria ser, como em 11.17: "porque [...]
"santos, apóstolos e profetas", nos v. 6-8. passaste a reinar" - ele levou à perfeição
A ordem dos louvores no céu no cp. 5 é o seu reino da salvação com bênçãos ilimi-
invertida; primeiro, as miríades de anjos tadas para a humanidade. Agora, portanto,
verbalizam a sua alegria exultante, depois é o tempo para as bodas do Cordeiro, em
os 24 anciãos e os quatro seres viventes sentido semelhante, porque a igreja já é a
acrescentam o seu Amém. O chamado ao noiva de Cristo, mas ainda não a "igreja
louvor dos servos de Deus, de pequenos gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coi-
e grandes (5), é respondido na voz como sa semelhante" (Ef5.25-27). O comentário
voz de numerosa multidão dos redimidos explicativo: Porque o linho finíssimo são
nos v. 6-8. O Aleluia quádruplo nesse tre- os atos de justiça dos santos (8) claramen-
cho é singular no NT; o termo não ocorre te vem de João e não faz parte do cântico.
em nenhum outro trecho das suas páginas. Mas observe o equilíbrio tênue entre a gra-
Nós o conhecemos a partir do seu uso ça de Deus e a reação humana incluído nas
nos salmos, especialmente no chamado afirmações foi lhe dado vestir-se de linho
"Hallel", i.e., Salmos 113-118, cantados finíssimo, pois a santidade é um dom de
nas festas de Israel e associados acima de Deus, e cuja esposa a si mesma já se ata-
tudo à Páscoa. viou, engajando-se em atos de justiça dos
1,2 O cântico amplia 7.10 e é semelhan- santos. Essa realidade dupla continua por
te no seu significado a 12.10. Salvação in- toda a vida cristã (cf Fp 2.12,13).
clui libertação de poderes anti-Deus e, por- 9 A quarta bem-aventurança de Apo-
tanto, do juízo. Os anjos celebram o juízo, calipse prenuncia o clímax da relação en-
como é característico de Apocalipse (cf tre Cristo e o seu povo. Aqueles que são
7.9, depois dos juízos dos selos; 11.16-18, chamados à ceia das bodas do Cordeiro
depois dos juízos das trombetas; 15.3,4, na são crentes, indicando que um simbolismo
expectativa do derramar das taças da ira). duplo foi aqui usado: a noiva e os convi-
3 O segundo Aleluia celebra a irreversi- dados são os mesmos (cf 21.9,10, em que
bilidade da destruição da Babilônia. Sua a noiva é também a cidade santa). São es-
linguagem ecoa Isaías 34.9,10, o dia do tas as verdadeiras palavras de Deus; entre
Senhor sobre Edom, que por si lembra a elas estão incluídas também as que falam
destruição de Sodoma e Gomorra. A descri- do juízo sobre a Babilônia e da bênção da
ção do fogo inextinto do piche ardente em participação nas bodas do Cordeiro, i.e., as
Edom, no entanto, é seguida de uma des- visões de 17.1 até aqui. 10 O anjo recusa
crição da terra sendo habitada por animais a adoração de João, visto que ele também
e aves selvagens, incluindo dois retratos é conservo que mantém o testemunho de
simbólicos de juízo, estritamente irrecon- Jesus. Só Deus deve ser adorado, porque
ciliáveis. Assim também o v. 3 precisa ser o testemunho de Jesus é o espírito da
qualificado pela descrição que João faz da profecia. Essa formulação pode significar
nova criação (21.1-5), em que não haverá que o testemunho de Jesus é a "vida" ou
lugar para o fogo da Babilônia. o princípio da profecia, mas isso é por de-
2169 APOCALIPSE 19

mais impessoal. A afirmação é esclarecida ele mesmo, embora os seus nomes sejam
quando se percebe que o nome predileto dados nos v. 11,13,16; estes dão testemu-
dos judeus para o Espírito de Deus era "o nho de quem ele é, mas somente Deus pode
Espírito da profecia"; assim, significa: "O compreender o mistério da sua pessoa (cf
testemunho carregado por Jesus é o peso Mt 11.27). O seu manto tinto de sangue
do Espírito que inspira a profecia", e ele é o de Deus (v. Is 63.1-6), que os rabinos
glorifica o Senhor! Isso expressa perfeita- diziam que Deus usaria no dia da sua vin-
mente o ensino acerca do Espírito Santo gança sobre Roma. Os exércitos que há no
nos discursos de João 14-16 (v. especial- céu que seguem a Cristo são as "hostes do
mente Jo 14.26; 16.12-15). céu", i.e., os anjos que o cercam (cf lRs
22.19; SI 103.20; Dn 7.9,10,13; Mc 8.38;
19.11-22.5 A revelação do 13.26,27; 2Ts 2.5,6). O Senhor vaiferir as
Cristo e da cidade de Deus nações com a espada afiada que sai da sua
O juízo sobre a Babilônia foi o tema em boca e pisar o lagar do vinho do furor da
17.1-19.10, declarado acima de tudo no ira do Deus Todo-Poderoso - duas figuras
juízo da sétima taça de 16.17-21. Mas nós complementares nas quais Jesus é revelado
ainda não ouvimos falar do destino do an- primeiro como soldado e então como agri-
ticristo e de seus confederados, o tópico do cultor garantindo a sua colheita de uvas.
juízo da sexta taça (16.12-14). Isso prefa- 16-18 A ordem do anjo às aves de ra-
cia as visões finais do triunfo de Cristo e pina para se reunirem para a grande ceia
de seu reino, que consiste numa descrição de Deus é extraída da visão de Ezequiel
da vinda de Cristo e do seu domínio sobre acerca da derrota de Gogue e Magogue
as forças do mal (19.11-20.3); do reino (Ez 39.17-20), embora o assalto a Gogue e
de Cristo neste mundo (20.4-10); do juízo Magogue seja colocado por João no fim do
final (20.11-15); e da nova criação e da ci- reino terreno (20.7-9), em harmonia com a
dade de Deus (21.1-22.5). visão de Ezequiel (Ez 38.7-9). Essa grande
ceia de Deus para as aves de rapina é uma
19.11-21 O cavaleiro contrapartida repulsiva da festa que dá iní-
do cavalo branco cio ao reino de Deus (Is 25.6), aqui descri-
11-15 O retrato da vinda de Cristo é pinta- ta como a ceia das bodas do Cordeiro.
do por meio de uma série de figuras simbó- 19-21 A besta e seus confederados fo-
licas que destacam aspectos de um evento ram congregados para pelejarem contra
grande demais para ser compreendido de aquele que estava montado no cavalo e
antemão. Quando o céu é aberto, a primei- contra o seu exército. Eles são congrega-
ra coisa que João vê é um cavalo branco, dos, isto é, em Annagedom (16.16). Mas
montado por Fiel e Verdadeiro. Em geral não há batalha! Os exércitos do céu obser-
não pensamos em Jesus voltando num ca- vam enquanto a besta e o falso profeta são
valo, acompanhado por multidões de anjos capturados, o Cristo brande a espada da
em cavalos, nem devemos fazê-lo. É uma sua boca, e o Diabo é lançado no abismo.
representação de Jesus o Vencedor todo- Essa é a cena do juízo realizado pelo po-
poderoso, "Comandante em Chefe" dos der da palavra de Deus. Toda a descrição
exércitos do céu, vindo para derrotar os é pictórica, incluindo o cavalo de Cristo, a
rebeldes da terra, que são liderados pelas espada que sai da sua boca e os abutres que
forças do inferno. Os seus olhos em cha- devoram a carne dos mortos. Não podemos
ma de fogo estão associados ao juízo; seus ter certeza dos detalhes da figura, a não ser
muitos diademas, à sua posição como "Rei por uma realidade predominante: a vitória
dos reis e Senhor dos senhores". Ele tem de Cristo sobre os que se lhe opõem é total.
um nome [...] que ninguém conhece, senão O anticristo e o falso profeta são lançados
APOCALIPSE 20 2170

vivos dentro do lago de fogo que arde com no AI , mas o reino sobre o qual o Messias
enxofre. Esse lago de fogo é uma variante governa é tipicamente representado como
do inferno, que no grego é gehenna, uma um reino deste mundo, centralizado em
transliteração do hebraico ge-hinnom, "o Jerusalém. Isaías 65.17-25 e 66.22,23 fa-
vale de Hinom", onde os judeus dos tem- lam da criação de um novo céu e de uma
pos de Jeremias ofereceram sacrificios hu- nova terra, mas a descrição do reino de
manos no fogo (v. Jr 7.31). Na literatura Deus ali é feita totalmente em termos deste
apocalíptica, ambos os termos são pictó- mundo (uma Jerusalém jubilante, longevi-
ricos, o primeiro, um desenvolvimento do dade humana, estabilidade nas casas e no
conceito do abismo, e ambos representam campo, filhos felizes, animais pacíficos).
o juízo inescapável de Deus sobre os que Alguns autores apocalípticos destacaram
persistem na rebelião. esse conceito de nova criação, assim en-
tre os judeus se tomou comum distinguir
20. 1-3 A prisão do dragão entre o reino do Messias neste mundo e o
A descrição da prisão do "dragão" reino de Deus no novo mundo (embora não
(Satanás) continua sem interromper o re- sem o Messias). Havia grande diversida-
lato da derrota da trindade maligna que de acerca da extensão do reino messiânico
tinha ajuntado "os reis do mundo inteiro entre os rabinos. Houve sugestões de que
[...] para a peleja do grande Dia do Deus duraria 40 anos (correspondentes aos 40
Todo-Poderoso" (16.14). Os parágrafos anos de Israel no deserto), ou 400 anos (a
nunca deveriam ter sido separados. Depois estadia de Israel no Egito), ou 4 mil anos
do julgamento do anticristo e do falso pro- (desde a criação até a época). Outros acha-
feta e das multidões enganadas por eles, o vam que duraria 365 dias (Is 63.4 fala de
inimigo final é tratado, a saber, o Diabo, um "dia" da vingança e de um "ano" da
que tinha inspirado a rebelião contra Deus. redenção) ou 365 mil anos (SI 90.4 fala de
Não é necessário nenhum grande confron- um dia como equivalendo a mil anos com
to; um anjo segurou o dragão, o prendeu o Senhor). Este último texto é combinado
com uma corrente, lançou-o no abismo, com a ideia de que a história recapitula a
fechou-o e pôs selo sobre ele - uma for- semana da criação: assim como os seis dias
ma quádrupla de garantir que ele estivesse da criação foram seguidos do dia de sába-
removido de todo o contato com a huma- do (de descanso) de Deus, assim os seis
nidade na terra (acerca do simbolismo, v. dias da história humana dariam lugar ao
Is 24.21,22). Como afirma o texto, isso sábado da história, o reinado do Messias,
aconteceu para que não mais enganasse que seria seguido de um oitavo dia inter-
as nações - até um tempo determinado minável. Esse ponto de vista é afirmado no
por Deus em que seria liberto por um bre- cp. 15 da epístola de Barnabé, uma obra
ve período, i.e., até se completarem os mil cristã relativamente contemporânea de
anos. A libertação, assim como o aprisio- Apocalipse. Para João, os "mil anos" pro-
namento, é para a realização dos propósi- vavelmente indicavam a natureza do reino
tos inescrutáveis de Deus. de Cristo e não sua duração, i.e., fala da
Nota. O reino de mil anos de Cristo. O sua natureza como o sábado da história
"aprisionamento" de Satanás por mil anos humana, e assim se associa com o ensino
coincide com o "reino de Cristo" por mil em Hebreus do reino como um descanso
anos (20.4). Esse reino de mil anos adqui- de sábado que aguarda o povo de Deus
riu o nome "milênio" (por razões óbvias), e (Hb 4). Sem dúvida, João deve ter se sen-
a doutrina é chamada "quiliasmo" (chilias tido confirmado na sua interpretação pela
é termo gr. para 1.000). A limitação do rei- sua leitura de Ezequiel 36--48, em que o
no do Messias a mil anos não é encontrada retomo de Israel à sua terra sob o Messias,
lIIlI
2171 APOCALIPSE 20 _-
li.

o novo Davi (cp. 36-37), é seguido da re- aprisionado no abismo, para que já não cor-
belião de Gogue (cp. 38-39) e da promes- rompa a humanidade. O juízo de 14.14-20
sa de uma nova Jerusalém com um novo está alinhado com os juízos messiânicos dos
templo (cp. 40---48). A oração que Jesus últimos tempos, acima de tudo com aquele
ensinou aos seus discípulos se tornaria as- que vem com a vinda de Cristo (19.19-21);
sim ainda mais importante ("venha o teu ao passo que o juízo final de 20.11-15 é de
reino; faça-se a tua vontade, assim na terra todas as gerações da humanidade. A derrota
como no céu"; Mt 6.10); e João também das forças do mal é descrita no trecho indi-
deve ter conhecido as bem-aventuranças visível de 19.19-21.3, e ela acontece no
("Bem-aventurados os humildes de espí- retorno de Cristo em glória, o que é seguido
rito, porque deles é o reino dos céus [...] do seu reino de mil anos. Acrescente a isso
Bem-aventurados os mansos, porque her- a impossibilidade de reconciliar a pressu-
darão a terra"; Mt 5.3,5). posição de João, compartilhada pelos pro-
A exposição que Paulo faz do reino fetas em geral, de que o Senhor poderia vir
de Cristo em lCoríntios 15.22 está proxi- logo (1.3; 22.20), com a noção de que o rei-
mamente associada à exposição de João e no de mil anos precederá a sua vinda, e se
indica a probabilidade de ter sido estabe- tem dificuldade em atribuir esse esquema
lecida como tradição na igreja primitiva. de interpretação a ele. João bem sabe que o
Certamente assim era nos primeiros sécu- reino de Deus foi estabelecido pela reden-
los, mas foi contrariada por alguns líderes ção operada por Cristo (cp. 5; 12.10-12);
cristãos significativos a favor de interpre- o reino que o Senhor trará na sua segunda
tações mais extravagantes. A interpretação vinda será o triunfo daquele que ele trouxe
de Agostinho, de que o milênio é o perío- por meio do seu ministério encarnado, e daí
do da igreja entre a primeira e a segunda é a revelação daquilo que esteve no mundo
vindas de Cristo, tornou-se o ensino oficial a partir da Páscoa.
tanto da igreja católica quanto das igrejas Por que, então, Deus permite a liber-
reformadas. É exemplificado no comen- tação de Satanás ao final do reino de mil
tário de Apocalipse de Hendriksen (More anos? João teria respondido: "Está escrito
than Conquerors, IVP, 1939); ele identi- assim". A profecia do ataque de Gogue
fica o aprisionamento de Satanás (20.1-3) contra Israel (Ez 38-39) é colocada após
com sua expulsão do céu (12.9), os mil o retorno do povo ao reino operado por
anos do poder da igreja (20.4-6) com o seu Deus. Gênesis 1-3 fornece grande par-
tempo de testemunho triunfante (11.2-6; te do simbolismo da cidade de Deus em
12.14,15), o ataque dos exércitos de Gogue Apocalipse; a meditação de João sobre es-
e Magogue (20.7-9) com a perseguição da ses capítulos pode ter sugerido a ele que
igreja pelo anti cristo (11.7-10; 13.7,8), a assim como Satanás teve permissão para
destruição resultante daqueles exércitos entrar no Jardim para expor a natureza do
(20.9) com Armagedom (19.19-21), e o coração humano, assim ele terá permissão
juízo final (20.11-15) com o juízo messiâ- para fazer o mesmo no paraíso final, a fim
nico (14.14-20). de que toda a hostilidade a Deus seja trazi-
Essa é uma interpretação interessante e da à luz e aniquilada antes que o seu reino
plausível do texto, mas parece incluir difi- se torne absoluto. Assim como outros auto-
culdades insuperáveis. Em 12.9, Satanás é res apocalípticos, João deve ter sabido que
lançado para fora do céu, para o lugar onde a completitude do reino de Deus não pode
não poderá mais acusar os santos de Deus, ser atingida dentro das limitações deste
para a terra, onde a sua guerra contra a mundo, nem mesmo do paraíso restaurado;
igreja se intensifica, porque o seu tempo é o alvo da criação pode ser atingido somen-
breve; em 20.1-3, ele é tomado da terra e te pela ressurreição como a de Cristo.
APOCALIPSE 20 2172

20.4-6 O milênio 20.7-10 A última insurgência do mal


A descrição do reino de Cristo é extraordi- Como mencionado acima, João aqui segue
nariamente breve; não há nenhuma palavra a profecia de Ezequiel acerca da invasão
acerca das condições de vida nos mil anos, da terra de Israel por Gogue e Magogue
somente uma simples afirmação acerca de depois que o reino messiânico foi estabe-
quem vai exercer o governo nesse período. lecido. Enquanto em Ezequiel 38 "Gogue,
Há razões para crer, no entanto, que a des- da terra de Magogue" vem do norte para
crição extensa da cidade de Deus em 21.9- invadir a terra santa, na visão de João,
22.5 se aplica ao reino na era milenar como Gogue e Magogue representam as na-
também na era eterna por vir. Em 19.6,7, ções que há nos quatro cantos da terra
temos a celebração das bodas da noiva na (8). Marcharam, então, pela superficie da
vinda de Cristo; 21.9 revela que a noiva é a terra e sitiaram a cidade que Deus ama
santa cidade de Jerusalém. Os exércitos de - uma cidade que tem aproximadamente
Gogue cercam o acampamento dos santos 2.200 quilômetros de comprimento, lar-
e a cidade querida (20.9), que precisa ser a gura e altura (21.16)! O evento é tão sim-
cidade de Deus, a nova Jerusalém no mun- bólico quanto Armagedom e representa o
do. As nações caminham à luz da cidade ataque contra a manifestação do governo
e trazem sua glória para dentro dela; mas de Cristo no mundo. 9b,10 Os destruidores
nada de impuro entra pelos seus portões em potencial são eles mesmos destruídos,
(21.24,25), e as folhas da árvore da vida e o Diabo é lançado no lago de fogo, para
curam as nações (22.2). Essas afirmações nunca mais perturbar a humanidade.
são ainda mais apropriadas para a cidade
no mundo do que na nova criação. Não há 20. 11-15 O juízo final
uma única linha em 21.9-22.5 que não Se a fuga do céu e da terra diante da face
possa ser aplicada ao reino neste mundo, de Deus deve ser vista como o precur-
o que sugere que significa vida na história sor dos novos céus e da nova terra (cf
como também na eternidade. 2Pe 3.10-13), o espetáculo do grande tro-
4 Quem são os que sentaram nos tro- no branco como a realidade para a qual a
nos? Daniel 7.9-14,27 dá a resposta: o humanidade deve olhar é de fato uma vista
"povo dos santos do Altíssimo", com o extraordinária. Mas a descrição provavel-
que Apocalipse 5.9-20 e 19.7 concordam. mente é simbólica, para destacar a grande-
Desses "santos" João faz menção espe- za apavorante da cena - a última teofania
cial aos mártires e testemunhos de Cristo, esmagadora da qual a criação quer escapar,
para o encorajamento de todos os que mas não consegue (cf 6.12-17).
talvez precisem enfrentar o caminho do 12 Os mortos, os grandes e os peque-
martírio. 5 Os restantes dos mortos não nos, estão em pé diante do trono, i.e., toda
reviveram quase certamente está relacio- a humanidade é chamada ao julgamento. A
nado aos mortos sem Cristo; João não ne- igreja está isenta disso? Em 20.4-6, vemos
garia a ressurreição da igreja na vinda de a sugestão que ela está isenta, e naquele
Cristo (v. comentários do v. 4; cf 11.11,12; caso os crentes terão sido julgados ante-
ICo 15.51,52; lTs 4.16).6 A quinta bem- riormente (cf 3.5; 2Co 5.10), mas João não
aventurança declara as bênçãos dos que dá pista alguma disso. O trecho represen-
compartilham da primeira ressurreição. ta a necessidade de todos serem julgados,
Sobre esses a segunda morte não tem au- santos e pecadores igualmente, e há tempo
toridade (cf v. 14 e comentário de 2.11), e suficiente para que isso ocorra! O juízo é
eles serão sacerdotes de Deus e de Cristo realizado de acordo com dois critérios: em
ao reinarem com ele. O seu reino, portanto, primeiro lugar, segundo as suas obras, e
é o seu serviço a Deus e à humanidade. em segundo lugar, de acordo com o teste-
2173 APOCALIPSE 21

munho dos livros. Esta característica é ex- que Deus iria renovar a criação para o seu
traída de Daniel 7.10, que reflete tanto os reino, enquanto outros achavam que ele
procedimentos habituais da corte quanto o a substituiria por uma criação totalmente
costume dos reis persas de registrar todos os nova. A visão de João é passível de qual-
detalhes dos eventos nas suas províncias. A quer uma dessas interpretações; o fato de
coisa importante é que o testemunho com- que 20.11 descreve uma teofania, i.e., uma
binado dos dois crítérios está em harmonia, representação pictórica da resposta da cria-
e o livro da vida vai revelar isso. ção à vinda de Deus em juízo, pode ser em-
14,15 A morte e o inferno ("Hades", pregado a favor do primeiro ponto de vis-
NVI) representam o fato do morrer e da ta. De todo o modo, a expressão o mar já
condição em que se está após a morte. não existe está menos relacionada à água
Ambos foram lançados para dentro do do que à maldade; o Diabo, o anticristo e
lago de fogo, uma circunstância que mos- o império anticristão são todos retratados
tra a natureza totalmente pictórica da cena, como monstros do mar; nada dessa ordem
incluindo o lago de fogo. Nesse lago fo- sobrevive na nova ordem. 2 As figuras usa-
ram lançados todos aqueles cujo nome das no retrato da cidade santa aqui e em
não foi achado inscrito no Livro da Vida. 21.9-22.5 oscilam entre a cidade-noiva,
Esse lago tem a sua origem no abismo, a como o contexto da vida no reino de Deus,
moradia do monstro, o inimigo de Deus, e e a comunhão dos redimidos com Deus.
tradicionalmente a habitação dos espíritos 3 Essa última característica aparece como
malignos e o lugar em que os anjos caídos a primeira e maior bênção do reino eter-
eram castigados. Por consequência, João no. O termo para habitará é literalmente
representa a mesma realidade pelo símbolo "tabernaculará" (morar em tenda); remon-
tão diferente de vida fora da cidade (21.27) ta ao tabernáculo no deserto, sobre o qual
em contraste com a vida dentro da cidade estava a coluna de fogo e a nuvem, sinais
(21.24-26). É significativo que tudo isso da presença e da glória manifesta de Deus.
comece em conexão com a nova criação, a A mesma associação de linguagem é usada
obra de Deus em Cristo; podemos ter cer- em João 1.14; na nova criação tudo o que
teza de que a graça e a verdade (10 1.17) Emanuel significa é cumprido para sempre.
estarão tão intimamente associadas no juí- 4 Cf 7.17; Isaías 25.8. 5 Eis que faço no-
zo quanto estiveram na cruz de Cristo. vas todas as coisas é referência à ação de
Deus na nova criação, mas foi iniciada na
21.1-8 A nova criação ressurreição de Cristo e é experimentada
O desenvolvimento do tratamento de Deus pelos crentes no presente (2Co 5.17). Tudo
com a humanidade em Apocalipse atinge está feito ecoa o grito na cruz (10 19.30)
o seu clímax nesse trecho: os v. 1-4 des- e a voz do trono (16.17). Deus é o Alfa e
crevem uma nova criação em que Deus e o Õmega; o seu caráter garante a verdade
o povo habitam juntos em comunhão; os dessa revelação. A promessa acrescenta-
v. 5-8 declaram a verdade dessa descrição da lembra Isaías 55.1 (cf também 22.17;
e suas implicações para os seus leitores. O Jo 7.37,38).7 Uma última promessa é dada
seu propósito é fortalecer a fé e a determi- ao vencedor: a bênção da Cidade Santa
nação da igreja enquanto ela enfrenta a sua será sua herança. 8 Em contraste com o
última provação. vencedor, que herda o reino, estão aque-
1 A criação de novo céu e nova terra les que se excluem dele. Os covardes são
é ensinada em Isaías 65.17 e 66.22; (cf aqueles que ou negam ou rejeitam o Cristo
Mt 5.18; Mc 13.31; lPe 3.12). Os mes- de Deus e adoram o anticristo. Os termos
tres judeus interpretavam Isaías 65-66 restantes descrevem os incrédulos, cuja
de diversas maneiras; alguns sugeriam vida demonstra sua oposição a Deus.
APOCALIPSE 21 2174

21.9-22.5 A cidade de Deus do antigo santuário interior. A medida doze


Acerca da sugestão de que essa seção re- mil estádios representa aproximadamente
trata a cidade de Deus tanto no "reino de 2.200 quilômetros, mas traduzi-la em me-
mil anos" de Cristo quanto na nova cria- didas modernas é roubar-lhe o seu claro
ção, ver comentário do milênio. simbolismo - um múltiplo infinito de 12.
9 A revelação da noiva foi prenuncia- João pode estar dizendo que a cidade al-
da em 19.7-9. Aqui a metáfora da noiva dá cança da terra até o céu, e assim une os
lugar à da cidade; uma transferência seme- dois em um. 17 A medida da sua muralha
lhante de figuras é feita em Isaías 54.4-8 era cento e quarenta e quatro côvados (65
e 11.12. 10 A linguagem é tão semelhante metros), provavelmente de altura, nova-
a Ezequiel 40.2 que precisamos pressupor mente um perfeito múltiplo de 12. Nesse
que João a tinha em mente; a cidade desce contexto, não há necessidade de destacar
do céu para o monte sobre o qual ele es- a disparidade entre as medidas da cidade e
tava. O céu vem à terra no reino de Deus! da muralha; esta é suficientemente grande
11 A aparência da cidade é comparada à para servir ao seu propósito!
de jaspe, e assim a sua glória é como a do 18-21 A linguagem do simbolismo
Criador (cf 4.3). 12,13 A grande e alta continua na descrição que João faz dos ma-
muralha serve o propósito duplo de manter teriais da cidade. Ele já disse que o seu es-
fora os que não têm parte na cidade (21.27; plendor é como o de jaspe, a aparência de
22.14,15) e de prover segurança eterna Deus (Ll ); ele agora declara que a muralha
para os que estão dentro. Suas doze por- é inteiramente constituída dejaspe. O ouro
tas trazem a inscrição dos nomes das doze puro pode lembrar o santuário do templo
tribos dos filhos de Israel, assim como os de Salomão, que era coberto completa-
doze fundamentos trazem os doze nomes mente de ouro (lRs 6.20-22), ou também
dos doze apóstolos do Cordeiro. Nisso se poderia aludir ao pensamento em 3.18. A
vê a unidade entre o povo da antiga e da lista de pedras preciosas que decoram o
nova alianças; juntos formam "o Israel de fundamento é surpreendente. Não obstan-
Deus", ampliado para abarcar todas as na- te, algumas incertezas de tradução parecem
ções em Cristo. 14 Os doze fundamentos idênticas às pedras inscritas com os nomes
da muralha da cidade não devem ser ima- das doze tribos no peitoral do sumo sacer-
ginados como estando uns sobre os outros, dote (Êx 28.15-21). Filo e Josefo chamam
mas como formando uma cadeia contínua atenção para o fato de que essas pedras
ao redor da cidade, divididos pelas doze preciosas também representam os doze
portas. Os doze apóstolos correspondem símbolos do zodíaco. Com base numa anti-
às doze tribos do v. 12; como estas, eles ga correlação entre as pedras preciosas e os
denotam a coletividade e não uma lista de símbolos do zodíaco, parece que a lista das
indivíduos. Não há necessidade, portanto, pedras preciosas de João retrata o avanço
de perguntar se o nome de Paulo está incluí- do sol ao longo desses doze símbolos do
do entre os doze, e, se está, qual nome foi zodíaco, mas em ordem invertida! Talvez
omitido; essa pergunta não é pertinente. João quisesse dissociar a Cidade Santa de
16 A cidade é quadrangular; mas como especulações pagãs acerca da cidade dos
a sua altura é a mesma que sua largura e deuses nos céus; ou pode ser que o inverso
comprimento, ela é um cubo. Uma estrutu- era verdade, e João estava mostrando que
ra no AT é mencionada como um cubo em a realidade pela qual ansiavam os pagãos
forma, a saber, o Lugar Santíssimo ("Santo está na revelação de Deus em Cristo (as
dos Santos") no templo (lRs 6.20); aqui a pedras dos fundamentos têm inscritos ne-
forma cúbica indica que a cidade toda é las os nomes dos apóstolos do Cordeiro
um santuário e compartilha da santidade - suas testemunhas!).
11
2175 APOCALIPSE 22 .:..

22-27 Numa cidade modelada segundo é o cumprimento final de 3.21 (observe


o Santo dos Santos, não há necessidade que em 11.15 "reinará pelos séculos dos
para um santuário; tudo é santo, e Deus é séculos" inclui o reino do milênio e o da
adorado em todos os lugares (cf Jo 4.20- nova criação).
23). 23 Isaías 60.19,20 está na mente do
autor aqui. Não é que o solou a lua dei- 22.6-21 O epílogo
xaram de existir, mas o seu esplendor foi Três temas encontram expressão proe-
suplantado pela glória do próprio Deus. minente nessa conclusão de Apocalipse:
24-26 Esses versículos reproduzem a es- a autenticidade das visões narradas (6,7,
sência de Isaías 60.3-11, mas com uma 16,18,19); a iminência da vinda de Cristo
diferença: lá, as nações trazem exilados (6,7,10-12,20); e a necessidade da santida-
judeus a Jerusalém e a sua riqueza aos ju- de em vista da consumação iminente (10-
deus; aqui, eles trazem a sua glória a Deus 15). É difícil termos certeza da identidade
e ao Cordeiro, assim cumprindo 15.4. A dos narradores nas diversas proclamações.
linguagem de todo o parágrafo é especial- Os v. 7,12,13 e 20a aparentemente são afir-
mente adequada ao reino de Cristo na era mações de Jesus; os v. 6,8,14,15, dos anjos;
do milênio, mas também pode ser aplicada o v. 16, de Jesus por meio de um anjo; os
num sentido menos direto ao reino de Deus v. 8,9,17-19,20b e 21, acréscimos de João.
na nova criação. Uma grande diversidade é possível, mas
22.1-5 Essa conclusão da visão da cida- em última instância pouco importa, pois o
de de Deus mostra elos propositados com a narrador no final das contas é Cristo, cujo
descrição do paraíso no Éden (Gn 2-3). mensageiro é um anjo (9) e cujas proclama-
1 O trono de Deus e do Cordeiro é a ções João registra como um profeta (10).
fonte do rio da água da vida (cf 7.17; 6,7 À luz do v. 7, de 19.9 e de 21.5, as
21.6; 22.17). O jardim do Éden tinha um palavras fiéis e verdadeiras não estão so-
rio (Gn 2.10). Na visão de Ezequiel, um mente relacionadas ao contexto preceden-
rio fluía do templo (Ez 47.9; v. a aplica- te, mas ao livro todo. Elas tratam de even-
ção desse trecho a Jesus em Jo 7.37,38). tos que em breve devem acontecer porque
2 A árvore da vida (diferentemente de o Senhor vem sem demora (cf também v.
Gn 2.9; 3.22, mas como em Ez 47.7ss.) 20). 8,9 O fato de João incluir esse trecho
é vista de forma coletiva. Assim como o não significa necessariamente que alguns
símbolo da água da vida, o poder de cura dos seus leitores participassem de adora-
das folhas é tomado no sentido espiritual, ção dos anjos, embora a prática tenha tido
possivelmente no primeiro exemplo para lugar entre os judeus, e evidentemente até
a cura das feridas infligidas pela grande entre os cristãos (CI2.18). A ação de João
tribulação. 3 Nunca mais haverá qualquer é suficientemente natural, e sua narração
maldição cita Zacarias 14.11 e reverte a não precisa de outra explicação além de
maldição pronunciada no paraíso originá- sua ocorrência e seu interesse. Não é tanto
rio (Gn 3.14-19). Na nova Jerusalém, os uma polêmica contra a adoração dos anjos
efeitos daquela maldição são completa- quanto uma correção da exaltação exagera-
mente vencidos. 4 O alvo da humanidade da de todos os instrumentos de revelação.
redimida é afirmado aqui: contemplarão Anjos, profetas e outros cristãos estão em
a sua face. Tal visão incluirá a transfor- um nível diante de Deus.
mação dos espectadores na mesma se- 10 A ordem é inversa à de Daniel 8.26;
melhança (2Co 3.18; 110 3.2). Acerca do 12.4,9 e de apocalipses judaicos em geral.
nome dele que está na sua fronte, ver co- Enquanto esses profetizavam de tempos
mentário de 3.12 e 19.12.5 Eles reinarão distantes, a mensagem de João era de im-
pelos séculos dos séculos amplia 20.4 e portância imediata e foi anunciada em seu
APOCALIPSE 22 2176

próprio nome. 11 Há ironia nessa procla- tas (19. 10), se junta à igrej a para clamar ao
mação. Daniel tinha dito (Dn 12.10) que Senhor: Vem!, de acordo com sua promes-
nos últimos dias muitos seriam purificados sa (7,12; cf v. 20). O ouvinte individual da
pela sua experiência de provação, mas os profecia desse livro, enquanto este é lido
maus agiriam de forma ímpia; i.e., na úl- nas igrejas, recebe a ordem de dizer: Vem.
tima crise, as pessoas vão mostrar o que O pecador arrependido recebe o convite
realmente são e se posicionar a favor de para vir e receber de graça a água da vida
Deus ou contra ele. Esse ensino é ressal- e assim estar pronto para receber o Senhor
tado continuamente em Apocalipse (7.1-8; quando este vier.
11.1,2; 12.1-14.5 etc.). Aqui recebe a sua 18,19 João tem sido criticado seve-
exposição final. Visto que o tempo está ramente por concluir a sua profecia com
próximo, que a pessoa que insiste em se essas palavras. Era costume, no entanto,
apegar ao mal continue nele; logo terá o que autores antigos protegessem com o
seu julgamento. Que os justos e santos se acréscimo de tal anátema suas obras contra
guardem, pois o seu Senhor logo virá para mutilações e interpolações. A preocupação
sua libertação. Fazer dessa afirmação uma de João era impedir que sua mensagem
doutrina da estabilidade do caráter e desti- fosse pervertida por meio de acréscimo
no das pessoas nos últimos tempos é con- ou remoção. Há a mesma preocupação em
trário ao contexto e ensino geral do livro Deuteronômio 4.2. A chamada fórmula de
(e.g., 14.6,7; 15.4; 21.6-8; 22.17). 12 Cf canonização - não acrescentar nem tirar
11.18; Isaías 40.10; Romanos 2.6.13 Ver - remonta a 2450 a.c. no Egito. No lugar
comentário de 1.3. 14 Temos aqui a última da maldição habitual, João adverte acerca
das sete bem-aventuranças de Apocalipse. do juízo e da perda do reino de Deus.
Os que lavam as suas vestiduras tiveram a 20 A resposta de João à última promes-
sua culpa removida por meio do Salvador sa de Apocalipse corresponde à palavra-
crucificado e ressurreto e assim têm o di- lema aramaica Maranata: "Vem, Senhor"
reito à árvore da vida e podem entrar na ci- (v. 1Co 16.22). A promessa é a culmina-
dade (cf Gn 3.22-24). 15 Esse versículo é ção de todas as promessas; e a resposta é a
quase uma repetição de 21.8, mas o destino essência de todas as esperanças vivas.
dos afetados é representado de forma bem 21 A bênção nos lembra que Apocalipse
diferente. A realidade fundamental em co- é uma carta, e que as suas lições precisam
mum é sua exclusão da cidade de Deus. O ser pessoalmente aprendidas. Somente pela
uso que João faz de figuras tão diferentes graça do Senhor Jesus pode ser obtida a
para expressar juízo indica a grande flexi- vitória que receberá a recompensa retrata-
bilidade do seu simbolismo. da nesse livro. É mister que abramos nossa
16 Jesus como a Raiz e a Geração de vida a ela continuamente, e que acrescen-
Davi cumpre Isaías 11.1. Como a brilhante temos o nosso Amém!
Estrela da manhã, ele cumpre a profecia de
Balaão em Números 24.17. 17 O Espírito,
que está especialmente operante nos profe- George R. Beasley-Murray

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