Como é raro ver a doutrina secreta do filho abertamente expressa nos textos esotéricos judaicos, também é raro encontrar qualquer reconhecimento por parte dos estudiosos a respeito da importância dessa doutrina. Entretanto, em traduções póstumas mais recentes de antigos trabalhos de Gershom Scholem, uma coleção de seis ensaios baseados nas conferências que ele proferiu entre 1952 e 1961, sob o título A Forma Mística da Cabeça de Deus: Conceitos Básicos de Kabbalah, chegou mais perto do que nunca dos detalhes que juntos compõem o que designei como a doutrina secreta do filho. No ensaio de Scholem Tselem: O Conceito do Corpo Astral, o significado essencial da tradição mística judaica derivada da visão do trono de Ezequiel é esclarecido: "R. Moses Isserles de Cracóvia (...) explicitamente cita o R. Judah Hayyot (cerca de 1500), que compara a forma humana vista pelo profeta em uma visão (Ez.1:26) à imagem que o homem vê de si mesmo (...) Mesmo os kabbalistas posteriores mantêm a experiência de auto encontro como a derradeira experiência de iniciação ao mundo do conhecimento esotérico". Mas Scholem mostra que o ser assim encontrado, particularmente como aquele tratado no Sushan Sodoth de Moses ben Jacob de Kiev, é um ser mais elevado a ser interpretado de outra maneira: De fato, parece haver boas razões para argumentar que esse ser é um "eu" angélico conectado com a natureza essencial do homem, um tipo de anjo pessoal intrinsecamente pertencente ao homem, que se torna visível a ele. (...) A experiência oculta do tselem como o corpo astral do justo também é mencionada por R. Chayim Vital, principal discípulo do R. Isaac Luria: "o corpo etéreo deles [dos justos] está contido no segredo do tselem, que é percebido por aqueles que têm a visão purificada" (...) O tselem dos justos é idêntico ao anjo que os protege. Essa imagem do tselem não difere muito daquela da "natureza perfeita", com a qual nos familiarizamos acima.
Os aspectos superiores e inferiores dessa tradição mística derivada de Ezequiel são
tratados separadamente, tanto quanto possível, em dois ensaios anteriores. No ensaio de título Shi'ur Komah: A Forma Mística da Cabeça de Deus, Scholem afirma que "o ser humano terreno inferior e o místico superior, no qual a cabeça de Deus se manifesta como forma, pertencem um ao outro e é impensável imaginá-los separados". Porém, sua ênfase aqui foca a forma superior, kabbalisticamente identificada com o Ze'ir Anpin e o Tetragrammaton: "A imagem (...) meticulosamente descrita no Idroth como uma forma do Homem Primai é idêntica ao nome de Deus (...) Para o Zohar (...) Ze'ir Anpin é essencialmente Deus como Ele é revelado na unidade de sua atividade. O verdadeiro nome de Deus, o Tetragrammaton, é próprio para esse nível de manifestação e expressa sua estrutura especial". O que de uma perspectiva é um ser angélico mais elevado, de outra, é o aspecto ativo do divino, o Partzuf de Ze'ir Anpin identificado primeiro com a sefirah de Tiferet e o nome divino do Tetragrammaton associado com essa sefirah. Entretanto, é no ensaio devotado ao aspecto inferior humano, de título Tzadik: O Justo, que Scholem chega mais perto de revelar a gnose oculta da tradição esotérica judaica. Isso acontece do entendimento da relação do Justo humano com sua contraparte superna identificada com a nona sefirah, como especialmente definido pelo kabbalista espanhol do século XIII, Joseph Gikatilla: "Conforme o Tzadik acorda o mundo para o arrependimento ou para arrumar o que não está no todo, exerce o atributo chamado Paz, pugnando pelo bem entre YHVH e Adonai, promovendo a Paz entre eles e trazendo-os para perto um do outro sem separação ou descontinuidade no mundo; e nesse momento percebemos que Deus é um". Gikatilla entendia que a função humana do Tzadik devia combinar com a da contraparte sefirótica. Afinal, a nona sefirah do Tzadik (Yesod) unifica a sefirah masculina de YHVH (Tiferet) acima dela com a sefirah feminina de Adonai (Malkhut) abaixo dela. Assim, o propósito do Tzadik humano é unificar as formas transcendente e imanente do divino traduzidas por essas sefirot e posteriormente diferenciadas por gênero: "Assim, o matrimônio sagrado das potências masculina e feminina, consumado por interferência do Tzadik (a sefirah de Yesod), representa o centro desse simbolismo". Também é significativo o Shefa (influxo) que deriva dessa sefirah e que requer uma receptividade recíproca do Tzadik humano, com implicações importantes: "Dessa maneira, o mundo inferior pode transformar o influxo de cima em uma estrutura viva e ativa, e assim retorná-la como reflexo de sua própria existência". Como resume o kabbalista de Safed, do século XVI, Moses Alshekh, tratando do propósito do Tzadik e das criações humanas: "O propósito da criação do homem é fazer formas materiais, e que elas sejam uma unidade, e não coisas separadas".
Esses notáveis ensaios revelam que os "conceitos básicos na Kabbalah", nas
palavras do subtítulo deste volume, são todos aspectos variados de um conceito maior unificado que chamei Doutrina Hebraica Secreta do Filho. Mas o que Scholem não reconheceu foi a figura do filho como o cordão unificador que mantém atados todos esses aspectos da tradição esotérica judaica e sua origem do sacerdócio hebreu primitivo. Resumindo essa tradição, podemos dizer que, enquanto a Kabbalah mais recente tomou a concepção sacerdotal Merkabah das duas figuras ou tronos supernos em sua própria concepção das duas "Faces Divinas" (Arikh e Ze' ir Anpin), ela deu às personificações anteriores uma maior especificidade que pudesse explicar seu funcionamento de uma maneira nunca antes possível. A Face Longa (Arikh Anpin) era entendida como uma figura tripla composta, e a Face Curta (Ze'ir Anpin), uma figura dupla composta. A tríade superior era composta da unidade original, Arikh Anpin ou o Ancião dos Dias, e sua distinção posterior, nos aspectos masculino e feminino de Abba (Pai) e Imma (Mãe). O Yichud (unificação) posterior entre eles poderia depois explicar a geração da Face inferior, alguma coisa não apresentada antes. Apesar de originalmente andrógena em sua concepção, essa criança cósmica também era posteriormente diferenciada em personalidades masculina e feminina, a figura do filho Ze'ir Anpin e da filha-noiva Nukvah. A essas figuras também estão atrelados os principais termos usados no Talmude para expressar as formas transcendente e imanente da Divindade, o Sagrado Um, abençoado seja Ele, e a Shekinah. Em muitas discussões kabbalísticas, os cinco Partzufim originais são simplificados em uma distinção tripla entre o Ein Sof (identificado com a figura composta do Arikh Anpin); o Sagrado Um, abençoado seja Ele; e a Shekinah; os três identificados com as sefirot de Keter, Tiferet e Malkhut, respectivamente. Nessa formulação, a Shekinah era identificada com a forma de divindade que preenche a Terra, a faísca sagrada imanente em cada alma e coisa; Ein Sof era vista como totalmente inacessível e transcendente; e o Sagrado Um, abençoado seja Ele, ocupava uma posição mediana como a santidade que é apreensível à visão mística e com a qual o homem pode interagir, o Deus pessoal de Israel.' Com essa última terminologia, aparecem os Partzufim masculino e feminino dizendo a respeito aos outros aspectos do misticismo da Merkabah, aqueles que se referem à transformação humana. Assim como a diferenciação sexual da Face superior pode explicar a gênese da Face inferior, assim também pode essa diferenciação semelhante da Face inferior explicar o mistério do renascimento espiritual humano. O propósito místico da prece, a forma de prática espiritual associada com a transformação humana nos textos Merkabah e kabbalísticos, é precisamente criar um veículo humano que promova a unificação da divina imanência dentro da alma humana e a divina transcendência além dela. Mas como essas duas formas do divino são concebidas por uma diferenciação sexual e como toda união sexual é mitologicamente entendida como generativa, o filho assim gerado pela unificação divina dentro da alma humana durante a prece não pode ser outro que seu próprio ser superior. Além disso, desde que essa unificação esteja acontecendo no homem, ele pode também compartilhar em sua natureza divina por meio desse ser maior assim gerado, o "filho do mundo vindouro" e membro do Klal Yisrael. Veremos agora como esse conhecimento sacerdotal é convertido por meio da prece mais velha do ritual com o qual o sacerdócio pode ser associado, o Sh'ma.