Artes e Cultura: os Novos
Paradigmas da Repressão
criação cultural, nomeada-
A mente artística, não é epi-
fenómeno. Apertadas gre-
lhas a submeteram no passado. A
repressão a que foi sujeita vem de
longe, a visar sobre alvos preci-
sos e identificados: criadores que
foram silenciados, condenados à
prisão, ao exílio ou assassinados,
de que Lorca foi trágico exemplo,
entre tantos.
O estatuto dessa repressão
mudou no entanto nestas últimas
décadas. Ela atinge difusamente
todo o tecido social, com outras
modalidades de intervenção, novas
roupagens, outros actores. Os tem-
pos são outros, na era dos circuitos
imateriais, do imperialismo da ima-
gem e da banalização da informa-
ção. Não se trata mais, por enquan-
to, de alvejar pontualmente a
criatividade, mas de desvitalizar os
seus alicerces sociais.
Procurarei traçar essa trajectó-
ria a partir dos modelos do passa-
do, antes de focar as novas modali-
dades de intervenção.
Edouard Manet, “Le déjeuner sur l’herbe”.
26
António Branquinho Pequeno
Para ilustrar a vitimização da
Criatividade neste passado recente,
tomarei como referência a criação
artística, que se tem confrontado
com a história das ideias políticas e
das mentalidades. Convém frisar
que a afirmação desses valores cria-
tivos caminhou lado a lado com os
combates pela liberdade. Mais
ainda: as ditaduras políticas instala-
ram-se, não raramente, após terem
sido desmantelados os valores da
criatividade.
Seria longo proceder ao inventá-
rio dessas agressões. De assinalar
alguns marcos reveladores do pesa-
do tributo pago, o que, por si só,
deveria constituir um sério alerta:
O Déjeuner sur l’Herbe de
Manet provocou um motim, de tal
modo se tinham tornado intolerá-
veis, para a época, a mancha larga
do artista francês, as cores ousadas,
o estilo espontâneo, nada acadé-
mico. O Impressionismo foi penali-
zado pelas suas ousadias, ao dar
uma maior importância ao contor-
no das coisas, ao contrariar o que
imobiliza e define, ao privilegiar
mais a matéria pictórica que a
representação, ao considerar a
visão do artista e a maneira de pin-
tar mais decisivas que a coisa pin-
tada. No primeiro Salão de 1859,
foram desde logo afastadas pelo
júri as obras de Manet e Millet,
Pissaro e Sisley foram, também eles,
proibidos nos Salões.
Cézanne, que já participara na
primeira exposição dos Impres-
sionistas franceses, veio a marcar
decisivamente a história da Pintura,
muito embora tivesse ficado amar-
gamente confinado ao “Salão dos
Recusados”, em 1863, e lhe tives-
sem impedido os Salões oficiais de
1864 e 1870. Apenas reconhecido
em 1900, teve acesso pela primeira
vez ao “Salão de Outono” em 1903,
três anos antes de morrer.
A exposição de 1874, que reu-
niu Cézanne, Degas, Monet, Pissaro
e Sisley foi um escândalo, provo-
cou injúrias e sarcasmos.
Os Cubistas, um pouco mais
tarde, viriam, por seu turno, a ser
violentamente interpelados pelo
seu anti-academismo, desde as
célebres Meninas d’Avignon, de
Picasso, no “Bateau Lavoir”, em
1907. Uma violência que atingiu o
seu auge em 1912. Maus cidadãos,
agentes anti-nacionais, assim foram
provocatoriamente apelidados pela
imprensa francesa da época.
Calúnias que foram politicamente
exploradas seguidamente, durante
a Guerra de 14-18, quando essa
mesma imprensa escrevia “Kubismo”,
(com “K”), a insinuar uma colabo-
ração entre o cubismo e os
“boches”. Uma Arte acusada de
anti-semitismo. Mais tarde, já nos
anos 30, foi a vez dos Abstractos e
dos Surrealistas.
Nos Estados Unidos, em Nova
York, a 16 de Abril de 1914, assis-
tia-se, entretanto, ao linchamento
das efígies de Brancusi, o grande
escultor romeno, e de Matisse, no
LATITUDES n° 13 - décembre 2001
 Pablo Picasso, “Les Demoiselles d’Avignon”, 1907.
dia do fecho da sua exposição.
Com efeito a cor, instrumento pri-
vilegiado duma metamorfose pictó-
rica (Cf Banhistas com Tartaruga,
1908), sufocada desde o Renascimento
pelos imperativos do modelo e do
sombreado, renascia com Matisse.
Inaceitável, essa nova mensagem
cromática, aos olhos do júri e da
Academia americana. A França
aliás, pátria de Matisse, alimentou
durante longo tempo um desprezo
pela sua obra, a tal ponto que o
artista só vendia para a Rússia,
Inglaterra e América inclusivamen-
LATITUDES n° 13 - décembre 2001
te. Ridicularizados também foram
Derain e Vlaminck. As considera-
ções xenófobas faziam parte do
cenário, como se tornou evidente
nas colunas do quotidiano Gil Blas,
pela pena de um crítico de serviço
ao referir que no Salão de Outonoe
nos Independentes, os Muniquenses,
os Eslavos e os Guatemaltecos
pululam, uma pretalhada que colo-
niza Montrouge e Vaugirard.
Inadmissíveis pois as cores puras
destes artistas, a falta de classicis-
mo do trabalho, a suposta ignorân-
cia da arte de desenhar.
Inadmissíveis as representações
não convencionais de naturezas
mortas, uma outra análise da cor e
da luz, um olhar não fotográfico
sobre as coisas, tal como fez
Delaunay. Insuportável, em suma,
que esses artistas se aventurassem
a decompor e a elaborar de outro
modo a realidade exterior. Os
dizeres do conselheiro Lampué, por
ocasião desse mesmo Salão de
Outono, são, a este propósito,
esclarecedores, numa carta que
enviou ao Secretário de Estado fran-
cês para as Belas Artes, na qual se
27
 Kasimir Malevich, “Composition suprématiste”, 1915.
interrogava sobre o “direito de alu-
gar um monumento público a mal-
feitores que se comportam no
mundo das Artes como os Apaches
na vida de todos os dias”, e em que
se perguntava “se alguma vez a
natureza e a forma humana tinha
sofrido tamanhos ultrajes”. Lampué
referia-se ainda nessa carta às feal-
dades e às vulgaridades expostas e
comentava que a dignidade do
Governo francês fora duramente
atingida com tais feitos de arte, ao
albergar semelhantes horrores no
“Grand Palais”, um monumento
28
nacional. Mais uma vez se voltou a
falar, por esta ocasião, de manifes-
tações anti-artísticas e anti-nacio-
nais, um discurso que será tragica-
mente retomado pelos nazis em
1933.
Voltemos à França do princípio
do século: em 1917, concretamente
a 3 de Dezembro, a Polícia france-
sa investe a Galeria “Berthe Weil”,
50 Rue Taitbout, em Paris, onde
Modigliani expunha pela primeira
vez. Isto na sequência de uma
denúncia feita pelos pequeno - bur-
gueses do bairro, que não suporta-
vam o “atentado ao pudor” dos nus
do artista italiano ali expostos. Isto
passou-se três anos antes da sua
morte, em 1920.
Em 1922, a Arte abstracta é proi-
bida na Rússia Soviética e, algum
tempo depois, o Suprematismo de
Malevitch, acusado de formalismo,
é denunciado coma a expressão
típica da arte da época do imperia-
lismo e do industrialismo burguês.
Uma espécie de arte degenerada,
conceito que os nazis virão a mani-
pular mais tarde com arrogância.
Será que Malevitch, após 1927,
LATITUDES n° 13 - décembre 2001
regressou a uma figuração “reac-
cionária”? Parece ter sido essa a lei-
tura dos censores, porquanto o pin-
tor russo acabou por ser expulso
em 1929 do “Instituto Nacional da
História das Artes”, com Staline no
poder. Em 1934 é proclamado o
realismo socialista, como dogma,
denunciam-se os Impressionistas,
pede-se aos artistas que a Arte seja
compreensível. Um realismo socia-
lista, que não deixou de fazer
obstáculo à criatividade revolu-
cionária, prisioneiro que ficou
duma concepção estética redutora.

A Bauhaus

Uma referência particular deve

ser feita à escola alemã da
“Bauhaus”, onde ensinaram Klee e
Kandinsky, e que marcou uma vira-
gem ideológica. Fundada em 1919
pelo arquitecto alemão Walter
Gropius, em Weimar, o seu estatu-
to era polivalente: bem mais arqui-
tectónica que pictórica, reunia ate-
liers para trabalhar a madeira, o
metal, a pedra, o vidro, espaços
para a litografia, a encadernação, a
tipografia, a impressão.
Um dos seus objectivos era
romper com o ensino académico e
uma certa forma de profissionalis-
mo, daí as acesas discussões entre
professores e alunos. Tinha como
premissa, por um lado, que a Arte
não era ensinável, por outro lado
considerava não haver diferenças
entre os artesãos e os artistas, uma
maneira de dar valor e prioridades
ao trabalho manual e de instituir
capilaridades entre uns e outros, o
artista enriquecendo-se com o
artesão e vice-versa.
A admissão dos alunos era aliás
feita na base da apresentação de
trabalhos, duma obra, não sendo
exigido, à partida, nenhum diplo-
ma. Os alunos eram convidados a
libertarem-se de todo e qualquer
entrave à sua capacidade criadora.
Oiçamos Gropius nalgumas linhas
do programa de que foi o autor: “o
objectivo final de toda a actividade
plástica é a construção. Arquitectos,
pintores, devem reaprender a for-
malização da construção no seu
conjunto e nos seus elementos- as
Wassily Kandinsky, “Accompagnement en jaune”, 1924.
antigas escolas não conseguiram
realizar esta unidade e como teriam
podido fazê-lo se a Arte não é
ensinável?- e devem voltar-se de
novo para o atelier... não há arte
profissional”.
A “Bauhaus” passou em 1927
para Nassau, cidade operária, por
dificuldades materiais, acabando
por ser desmantelada em 1933, em
Berlim, no mesmo ano em que
Hitler subiu ao poder. Vários pin-
tores foram exonerados das suas
docências, nomeadamente Dix,
Klee, Beckman, Baumeister, alguns
forçados ao exílio. Em 1935 vocife-
rava Hitler num dos seus discursos:
“É necessário que a Arte seja anun-
ciadora do nobre e do belo, que
seja a portadora do natural e do
são”. O Führer diferenciava duas
Artes, uma factor de saúde, de
reconstrução e de perenidade, a
outra sinal de degenerescência. Juiz
da Arte degenerada, apóstolo da
Arte ariana, qualificou de crimino-
sos os criadores da Arte moderna.
Milhares de livros foram quei-
mados então por ordem de
Goebbels, o ministro da Propaganda.
Ora, como dizia Heinrich Heine,
“onde se queimarem os livros, quei-
mam-se os homens”.
Goebbels decretou ainda a pi-
lhagem sistemática dos museus
alemães, numa tentativa de pôr fim
à “Arte degenerada”, que não exal-
tava os valores arianos. Numa lista
de mais de 100 pintores condena-
dos, acusados de criminosos, figu-
ravam Picasso, Klee e Max Ernst,
os Expressionistas, os Abstractos
(Kandinsky) e os Judeus (Chagall,
Freundlich).
A guerra de anexação nazi não
tinha ainda eclodido, já os valores
estéticos e culturais alemães tinham
sido profundamente atingidos.
Antes da penetração das divisões
alemãs e dos bombardeamentos,
Goebbels sabia serem esses alvos
prioritários. A estratégia da solução
final nazi incluía, à partida, a morte
da criatividade alemã.
A 20 de Março de 1939, no
mesmo mês da invasão da
Checoslováquia, cerca de 5000
obras de artistas, não vendáveis,
foram queimadas, em Berlim, numa
caserna de bombeiros, no coração

LATITUDES n° 13 - décembre 2001 29

do “Reich” e, alguns meses mais
tarde, a 30 de Junho, eram leiloa-
dos em Lucerna, na Suíça, cerca de
1250 obras de arte provenientes dos
museus alemães, em proveito da
Alemanha nazi. Um leilão que os
artistas no exílio tentaram boicotar.
O alerta não fora escutado, por-
quanto o tema da “decadência cul-
tural” figurava já, nos anos 20, no
programa político de “Mein Kampf”
de Hitler. O sacrifício dos valores
artístico-culturais alemães já tinha
sido anunciado. Houve vítimas em
todas a frentes, e não só nas Artes.
Literatura, Ciências, todo o pensa-
mento critico sofreu brutalidade e
castração.
Não está de modo algum excluí-
do que os livros voltem a ser quei-
mados, os museu pilhados e a Arte
excomungada no Ocidente euro-
peu, apesar de os tempos serem
outros.
A vitimização da Cultura conti-
nua na ordem do dia, sob outras
roupagens, dos Baiões Pimba, aos
Hermans, dos Quim Barreiros à
“Roda dos Milhões”. Uma cultura
de pacotilha. Sem esquecer os “Big
Brother” que, de modo menos visí-
vel, não deixam de fustigar os direi-
tos humanos, a cidadania e a urba-
nidade.
Mas voltemos a Herman José,
que foi quem deu uma bem maior
visibilidade à música Pimba. Para
além das agressões culturais que
Joseph Albers, “Constellation structurée vers 1954”.
30
infestam os programas do bobo ou
do dono da corte , com a compla-
cência e as cumplicidades de gente
notória e a participação de gover-
nantes deste país nessas emissões,
nunca nestes últimos tempos a mul-
her foi publicamente tão achincal-
hada, “en douce”. Seria fastidioso
fazer o inventário. Que se recorde
apenas a sua Marylin Monroe dos
“Parabéns”, entre outros mimos.
Quanto a Quim Barreiros- curiosa-
mente também figura top das fes-
tas académicas, basta recordar as
suas interpretações no “/ Bacalhau
quer alho/”, ou ainda no “/Volta
minha vaca louca/ Tenho saudades
do teu bife/”, esta uma das mais
gritantes expressões da zoomorfi-
zação da mulher portuguesa, da
mulher “tout court”, que não moti-
vou qualquer protesto significati-
vo!...É certo que Maria Lamas já
morreu e Natália Correia também
já foi a cremar. E o país real lá se
vai rindo com estas coisas... A fac-
tura ser-lhe-á apresentada mais
tarde, duma maneira ou doutra.
Heinrich Hein dizia “onde se
queimam os livros queimam-se os
homens”. Poder-se-ia dizer, para-
fraseando, que onde se acanalha a
mulher, para além de se matarem
as mães, abrem-se covas para
todos. Sem epitáfio. O que está em
causa, note-se, não é pretender
aqui fazer a educação do Herman
ou do Quim, simples acidentes de
percurso. O que importa é proce-
der à desmontagem e à desmisti-
ficação dos agentes e apoiantes
inconfessados da asfixia social, sob
a capa do entretenimento televisi-
vo.
Caducaram os velhos paradig-
mas repressivos, tornados anacró-
nicos. Por isso as estratégias de
resistência também não são as mes-
mas.
O xadrez é diferente. A repressão
cultural adoptou outras posturas e
globalizou-se. A diplomacia do
canhão cede cada vez mais o lugar
à diplomacia dos circuitos
(Brzeninsky).Diria mesmo que a
dominante é mais propriamente
agressiva que repressiva.
Informação e Imagem: novos esta-
tutos
A Informação dispensada pelos
media não conduz necessariamente
ao Saber e ao Conhecimento, tudo
depende do modo como ela é geri-
da por quem a dispensa e pelos
que a ela têm acesso. Para encon-
trar a boa informação há que saber
colocar as boas questões. José
Saramago tem razão quando afir-
ma, em substância, que a
Informação só nos torna mais
sábios se nos faz aproximar dos
homens, que é possível ter toda a
informação ao alcance e ignorar o
universo social, económico e polí-
tico em que se vive. Por outras
palavras, uma cultura deveria pas-
sar pela experiência e não necessa-
riamente pela sua disponibilidade
ou acessibilidade. As hierarquias
são aliás evidentes na Internet, em
termos de desigualdades dos
saberes sociais.
A Informação disponível e dis-
pensada conduz hoje à derrota dos
factos, à desorientação relativamen-
te ao real, através da digitalização,
que agora se alarga à comunicação
televisiva, via computador. Toffler
descreve a sociedade do computa-
dor como uma “terceira vaga” a
substituir-se aos velhos paradig-
mas da sociedade industrial, que
sucedera à era agrícola.
Paradoxalmente, é pela Informação
que hoje se instala um novo tipo
LATITUDES n° 13 - décembre 2001
de agressão. Não se trata de a
amputar ou de a censurar mas de a
fornecer em excesso, deshierarqui-
zada. A Ideologia, por outro lado,
cedeu o lugar à Videologia da apa-
rência1, sem que isso seja directa-
mente imposto por governos ou
sistemas educativos autoritários.
A Comunicação tornou-se a
nova moeda da economia global e
terá o poder quem melhor soube
conduzir essa revolução. As tecno-
logias da comunicação incorpora-
ram-se assim nas estruturas de
controlo e de domínio.
Não esquecer que o desenvolvi-
mento das Comunicações por saté-
lite teve como objectivo marginali-
zar a Inglaterra do controlo da
informação planetária e curto cir-
cuitar a hegemonia que ela detinha
com os cabos submarinos.
O sector da Comunicação ocupa
hoje o papel central na economia
dos USA, com a maior concentra-
ção de capital. Por outro lado,
nunca se comunicou tão pouco
como na era dos internautas. A
sociedade de comunicação, assente
em suportes imateriais, está em vias
de realizar o que nenhum regime
totalitário tinha até aqui consegui-
do com a Ideologia. Entrámos num
sistema de adesão “natural” a reali-
dade virtuais (B. Noël), porta aber-
ta ao autismo social. O controlo cul-
tural tomou caminhos novos,
assente nos suportes TV, telefone
e computador.
Ora é justamente neste registo
que convém situar o novo estatuto
da Imagem, hoje invasiva, contra-
riamente à função complementar,
de apoio ao texto, que tivera no
passado. Ocupou, com brutalidade
imperial o espaço da Informação,
que monopolizou, o que é bem
visível na Pub comercial e na comu-
nicação televisiva.
O seu estatuto é intransitivo, em
termos de informação. Daí que
tenha empolado a sua face “signifi-
cante”, com empobrecimento do
“significado”, para utilizar uma ter-
minologia linguística clássica.
Empobrecimento com proliferação
de significados, semanticamente
aleatórios, o que também é uma
modalidade de contra-informação.
Para além do verdadeiro e do falso,
LATITUDES n° 13 - décembre 2001
que Benetton levou ao se extremo.
Imagens-caricatura do real,
desenquadradas, tal como surgiram
nas “Imagens Reais “dos programas
televisivos dum Carlos Cruz ou
dum Artur Albarran, cuja ficção se
apresenta sob a capa do real. O que
é irreal neste caso é o produto ser
apresentado com as roupagens da
realidade. Por outras palavras, a
realidade proposta é ficção tal
como é tratada. Ora, quando a rea-
lidade é sistematicamente tratada
como uma ficção, abrem-se as por-
tas à palavra do Chefe e a todos
os messianismos totalitários.
O sistema televisivo criou um
Exército de telévoros de imagem,
em transe hipnótico, que neste caso
é redutor da Percepção em vez de
a libertar.
A pseudocultura da diversão e
do entretenimento integra-se neste
mesmo registo de Utopia Global.
Carlos Cruz, na SIC, com a “Febre
do Dinheiro”, Maria Elisa na RTP
com o “Quem Quer ser Milionário?”,
Luísa Castel-Branco na TVI com
“Dinheiro à Vista”, num país de
penúria também cultural, alimen-
tam os fantasmas milionários.
Programas que se integram numa
política cultural virtual de merca-
dores de ilusão, sob roupagem edu-
cativa. Um sistema televisivo, de
modo mais geral, cronófago, devo-
rador de tempo. O seu estatuto é o
da rapidez, simplificação e banali-
zação de universos sem relevo, a
tratar apressadamente as superfí-
cies dos factos e dos acontecimen-
tos, e sem gostar de voltar atrás.
Daí as hipocrisia das suas velei-
dades paternalistas, quando procu-
ra refazer, nalguns dos seus pro-
gramas, do tipo Fátima Lopes, os
laços sociais que fragiliza no dia a
dia, (Instituições em crise, Sistema
escolar, Justiça, etc.)
Os novos valores da Comunicação
e da Imagem inserem-se num
campo mais vasto de Produtivismo
global, modelo Thomas Friedman2.
Um contexto no qual é o mercado,
cada vez mais, quem governa, limi-
tando-se os Governos a adminis-
trar. Ora, o mercado, entregue às
suas próprias leis, não pode deixar
de governar mal, em termos sociais
em primeiro lugar, mas também em
termos de mercado, dado ser, por
natureza e essência, um amplifica-
dor de desequilíbrios. As novas
agriculturas que sacrificam a terra
ao altar da industrialização são,
neste contexto, um modelo para-
digmático. O que a prática política
de José Bové tem denunciado, tal
como ocorreu recentemente por
ocasião de uma das reuniões da
OMC (“Organização Mundial de
Comércio”).
O presente e o futuro próximo
tornam-se inquietantes. Face aos
novos desmantelamentos éticos e
culturais, haveria que proceder a
uma desmontagem semiológica
mais aturada destes mecanismos,
de modo a equacionar esta nova
era de agressividades que estão
conduzindo à fascização de todo o
tecido social. O que exigiria uma
mais demorada reflexão, com
outras ferramentas conceituais que
as dimensões deste trabalho não
permitem, tendo-me limitado a
enquadrar algumas das mais gri-
tantes problemáticas.
Os valores humanísticos conti-
nuam a não ser epifenómeno, hoje
como ontem.
A Cultura do futuro está
confrontada com novas inquieta-
ções. O imperialismo consumista,
normalizado, aliado à robotização
dos circuitos imateriais atinge já, na
matriz, não só os fundamentos
sociais da Cultura, como também
os fundamentos da produção, do
desenvolvimento económico e da
riqueza. Os interesses do presente
e imediatos, na sua cegueira, com-
prometem toda e qualquer estraté-
gia de futuro. Novos desafios se
apresentam à Criatividade, que pas-
sarão talvez por uma nova Cultura,
condição a longo prazo da sobrevi-
vência da própria riqueza e desse
mesmo desenvolvimento económi-
co

1 Louis Quesnel. Communication n° 17,
Paris, 1971
2 Thomas Friedman, “The lexus and
the olive tree, Understanding
Globalisation “, Farrar Strauss and
Giroux, New York, 1999.
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