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COLETÂNEA

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sente volume para o Brasil, Portugal e Colônias, reservados por
A .G .R . DOR ISA, rua Alcindo Guanabara, 25 —1 s. 404 — Rio de
Janeiro, GB.
COLETÂNEA

A presentação de
A SSIS BRA SIL
ÍNDICE

A S S IS BR A SIL
Apresentação .............................................................................. 9

P lí imu ira P arte

Para que poesia? ............................................................................ 17


O poeta e seu mundo ................................................................... 35
Que é poesia? ..................................................................................... 55

S egunda P arte

Concretismo e poesiabrasPeira ..................................................... 71


Stéphane Mallarmé ............................................................................ 84
APRESENTAÇÃO
Assis B rasil

F A Z UM A N O E M EIO que o poeta e ensaísta


M ário Fauslino morreu num desastre aéreo no Peru.
Com trinta e dois anos de idade, deixou apenas um
livro de poesia publicado (O Homem e sua Hora) e
alguns excertos d e uma obra em progresso, que foram
lançados pela revista Invenção (junhoA963) e estu~
dados pelo ensaísta Benedito Nunes: "O poeta, que
assume tôdas as coisas, para quem a vida é sempre per­
feita, porque ama a morte e aprofunda o sentimento
trágico da existência, convertendo~o na aceitação ju~
bilosa do ser, fará do poema uma encarnação do Verbo,
nova Galatéia, "contrafação de canto e eternidade’’, es-
tátua que êle fabrica miticamente, na peça final de
seu livro."
Ê V A STA , no entanto, a obra que M ário Faustino
deixou, nos cinco anos d e atividade crítica, no SD JB
(Suplemento Dominical do Jornal do B rasil); ensaios
e estudos críticos de grande importância para o en~
saismo literário brasileiro, serão reunidos e publicados,
na medida do possível, pelo editor GRD, que assim
presta homenagem ao poeta e a nossa cultura. N ós,
que nos encarregamos da empresa de selecionar os tra-
balhos, e que compartilhamos com M ário Faustino uma
árdua atividade crítica naquele Suplemento, estamos
1 0 ---- ASSIS BRASIL

tendo nova oportunidade para apreciar a seriedade e


erudição com que o poeta sempre tratava os assuntos
ligados à arte.
OS E N SA IO S, em número de cinco, inicialmente es-
colhidos para form ar essa primeira coletânea de M ário
Faustino, têm no entanto uma unidade, por tratarem
de assunto referente à P oesia e ao Poeta e, como o
próprio M ário sempre admitia, têm um sentido didá­
tico, e seu endereço certo é o jovem poeta brasileiro.
Salientemos logo que no Brasil o ensaio literário ■ —
por não ser ainda publicado pelas Universidades ■ —
nunca encontrou acolhida por parte de nossos edi­
tores. E o que se lamenta é a falta crucial — impli­
cação desse problema ■ — de cultura por parte de nossos
escritores.
OS E N SA IO S aqui reunidos, form ando duas partes,
foram divididos em: Para que Poesia? O Poeta e seu
Munclo, e Que é Poesia?, e a segunda parte abran­
gendo Concretismo e Poesia Brasileira, e Stéphane
MalJarmé, Os trabalhos da primeira parte foram ela­
borados na form a dos diálogos imaginários de Gide,
e são apaixonante estudo das relações do poeta com
a sua percepção artística, com o mundo e com o seu
meio social. M ário Faustino levanta e estuda uma
série d e problemas ligados à criação artística, e li­
gados, sobretudo, à criação de uma linguagem poética,
tais como: "Que posição deve assumir o poeta perante
a sociedade no seio da qual vive? Afinal de que
serve a poesia? Que é poesia?”, e muitos e muitos
outros de interesse atual,
N A .SEGUNDA P A R T E desta Coletânea, M ário
Faustino, inicialmente, levanta o problema da poesia
concreta, no ano de seu surgimento. D epois de ana-
liar, sempre coerente e objetivo, a situação da poesia
APRESENTAÇÃO — 11

brasileira na época (1957), destacando os poetas bra­


sileiros aparecidos depois de 1922, passa a justificar
o movimento de vanguarda, declarando, no entanto,
não ser um de seus prosélitos. M as o apoiava e
sempre o apoiou, por sentir a sua seriedade e prever
o seu reflexo na poesia brasileira futura, A Coletânea
se completa com um longo estudo sôbre a poesia de
Stêphane Mallarmé, um poeta de sua predileção, e
pela primeira vez analisado em profundidade no Brasil,
Êste estudo é a aplicação, de alguns tópicos, da teoria
poética consubstanciado na primeira parte deste
volume.
N a época cm que escrevia esses ensaios, por volta
de 1957, entre os seus vinte e seis e vinte e sete anos,
M ário Faustino dizia em entrevista, interrogado sôbre
os problem as do poeta jovem : ‘Os problemas devem
ser os mesmos das outras gerações: dificuldades eco­
nômicas (ter d e trabalhar, fora da literatura bem mais
do que dentro, para ganhar o panem nostrumj; falta
de uma vida genuinamente artística, falta de emula­
ção, falta de debates (no Brasil quase todos os escri­
to, quando reunidos, ou não tocam em problemas
literários ou então, se falam de literatura, é da maneira
mais vaga e leviana ■ — discussões de personalidades,
troca de elogios, gratuitas afirmações d e valor ou de
intenção, frases feitas, detestáveis mots cTesprit. . .) ;
falta de verdadeiras bibliotecas, universidades, museus,
falta de revistas d e cultura, falta d e tradição filosófica,
poética e crítica na língua, falta de um público inte­
ligente, concorrência desleal (talvez não haja país no
mündo com tanta gente errada em lugares errados),
etc. Um jovem poeta brasileiro, como eu, queixa-se,
entre outras coisas, do nível infra-ginasiano, para não
dizer primário, da maioria d o que é publicado aqui
em livros, jornais e revistas; das tolices que é forçado
12 — ASSÍS BRASIL

a ler e a ouviv a respeito de sua poesia (elogios ou


n ão), a respeito da arte e dos poetas que admira; da
falta de amor à poesia, do egoism o e da vaidade que
registra em muitos d e seus colegas mais velhos, entre
os quais raríssimo é aquele que form a escola, que
realmente se interessa pelo progresso da língua e da
arte —< vivem a pensar em self-promotion .— O jovem
poeta queixa-se ainda da falta d e profissionalismo
econômico e ético; da péssim a qualidade d e quase tôda
a nossa* crítica literária (sobretudo quando se mete
a falar d e poesia) de todos os tempos; um poeta jovem
queixa-se, para resumir, d e muita coisa. M as con­
gratulasse, em com pensação, por pertencer a um país
jovem e épico, a um povo amante, vigoroso, resistente,
humano e amável como poucos outros, por ter nascido
nesta época extremamente propícia à grande poesia,
por falar uma língua petenciaimente tão boa quanto
qualquer outra e, em particular, por ver que as coisas,
em nossa literatura, estão a olhos vistos mudando para
melhor • —- está acabando o estrelismo, estuda-se mais
e trabalhasse mais. D isso não tenho dúvidas.”
Que estas palavras fiquem aqui como introdução
a êsse livro póstumo d e M ário Faustino; que os jovens
poetas saibam aproveitar o seu exem plo d e humildade,
trabalho e rigor; que seus ensaios sirvam de iniciação
poética às geraçes que vêm; que E dições GRD , depois
do passo certo e positivo d e divulgar as obras de
M ário Faustino, encontre incentivo e apoio, para que
outros trabalhos do poeta, igualmente importantes,
venham a tomar a form a d e livro.
E terminemos esta apresentação, invocando o
poeta, com Benedito N unes:” . . . no m eio-dia d e sua
fôrça criadora, o poeta M ário Faustino, que tanto
dialogara com a M orte, foi por ela arrebatado em
pleno vôo.”
PRIMEIRA PARTE
Para que poesia?
O p oeta e seu mundo
Q ue é poesia?
Dois poetas trabalham na oficina que
compartilham. Nas horas de trégua, quando
guardam fatigados o silêncio, discutem seu
ofício. Não pretendem dizer-se novidades,
nem um ao outro expor-se ã admiração;
querem somente esclarecer, fixar e trocar
experiências.
PARA QUE POESIA?

final cie que serve a poesia?


A —' Se me agradasse sofisticar, poderia evitar
tua pergunta pelo menos de duas maneiras. Poderia,
antes de tudo, alegar que esta teleologia de uma arte,
é fora de propósito; que arte não tem que ser útil,
basta-lhe a beleza para justificar-se. Por outro lado,
fingindo não saber a que te referes, poderia responder-
te com outra pergunta: quê poesia? Aquela que está,
ou não está, tanto quanto em outros lugares, no poema?
Ou o próprio poema? Ou um grupo de poemas? Ou
o conjunto de todos os poemas? Ou a arte, o arte-
zanato, a ciência, a técnica, o labor, a profissão, o
rito, a feitiçaria, o sacerdócio, a religião, a missão, a
mistificação, o dom, a bênção, a maldição, a tragédia,
a comédia, o fingimento, o amor, a raiva, o nojo, a
obrigação, a devoção, a glória, a vergonha, o capricho,
a mania, o passa-tempo, o jôgo, o brinquedo, o ócio,
a arma, o perigo, a conspiração, a blasfêmia, o roubo,
a doação...
—' Basta!
—■ . . . de fazer poesia?
— Tu mesmo já deste a entender saberes a que
coisa me refiro, Procura responder-me, ou ajudar-me
a encontrar uma resposta.

2
18 — • MÁRIO FAUSTINO

— Pois essa coisa a que te referes dias há,


dependendo do meu humor, quando a considero inútil,
e outros há quando a- considero onipotente —' vendo
nela, como os antigos, uma deusa. E tu?
•—■ Tampouco tenho opinião firmada. Lembras-te
daquele poema —■ uma elegia • — que liamos juntos
há tempos e onde se proclamava que “a poesia não
faz nada acontecer?”
-—• Lembro-me muito bem. Mas também recordo
numerosos outros poemas, cujos compositores precisam
usar uma poesia para fins os mais diversos. . . Pes­
soalmente ~~ pelo menos nos dias de hoje. . . — creio
em múltiplas valências da poesia. Aliás, bem sabes
que sempre considerei minha arte como um meio, jamais
como um fim em si.
— Sei que não pretendes ser um poeta “puro”,
—' E sabes também que isso de “poesia pura”
nunca passou de um mal entendido, do qual os menos
culpados são os poetas, mesmo os que se dizem
“puros”. Mas, como ia dizendo, poesia para mim é
instrumento,
— E sem dúvida um instrumento musical.
.—• Talvez tuas palavras sejam mais sérias que o
simples jôgo de palavras. instrumentos de muitas
outras, quero eu dizer. Meio, por exemplo, de como­
ver os homens; meio de os alegrar; meio de ensiná-los.
— Ut doceat, ut moveat, ut delectat?
.—■ Sim, como diria Rodolphus Agrícola, o Roelof
Huysman dos compatriotas de Erasmo. Todos escre­
vemos para ensinar, para comover, para deleitar.
■ — Naturalmente com “deleitar” não nos referimos,
exclusivamente, à poesia cômica, nem mesmo tão só
à satírica.
PARA QUE POESIA? ---- 19

' Claro. E não se veja nisso desprezo nosso


à poesia que faz rir, que faz dar gargalhadas. Se
um poema é capaz de, intencionalmente, mover o leitor
ou o ouvinte a êsse ponto, é, então, um poema eficaz
quanto ao propósito do autor e, ergo, um bom poema.
Quantos grandes poetas, em todos os países, em tôdas
as épocas, usaram seu instrumento musical para fazer
rir o próximo! Pena que entre nós não se leve muito
a sério êsse gênero de poesia. Os que o têm tentado
não parecem dar para a coisa. Refiro-me, todavia,
de modo mais geral, á poesia que rejubila os homens,
que neles estimula a alegria de viver,
-— Como a de Villon?
-—' Sim -—' e como parte da lírica trovadoresca,
e como tantos poemas gregos, latinos, toscanos. “De-
lectare”, não apenas fazer rir, nem mesmo somente
fazer sorrir. Pois, de certo modo, todo poema é
eficiente, por mais tristes que sejam seus temas, sua
anedota, suas sugestões, suas alusões — um bom poema
sempre “deleita” o leitor saudável e competente.
— Também, de certo modo, todo poema digno
dêsse poema, não importando seu andamento, adágio
ou alegro, ensina, comove.
—' Exato. A própria alegria é comovente se
genuina, e o verdadeiro poema é sempre pedagógico.
Mas com sua classificação das finalidades do escrever
o erudito renascentista pretendia, evidentemente, .dis­
tinguir as peças, cujo principal efeito sôbre o leitor
ou ouvinte é “deleitar”, daquelas, cujo principal obje­
tivo ê “comover”.

— Também não se trata apenas de fazer chorar,
ou de entristecer.
2 0 ---- MÁRIO FAUSTINO

— Certo. Trata-se aqui, sobretudo, daquele apro­


fundamento provocado por tôda obra de arte no ser
que a considera, que a revive. A poesia trágica,
sobretudo, mas também qualquer outra forma de poesia
absoluta •— e, quanto mais intenso o poema, mais forte
será, neste sentido, seu impacto sôbre o ser que o
recebe •—•provocam na alma sôbre que agem uma espé­
cie de catarse, uma purgação, uma purificação. Aquele
que verdadeiramente vive um poema, imediatamente,
por mais que disso não se dê conta, muda de vida,
— Como quem ver o “torso arcaico de Apoio?”

—■ Precisamente: “Du musst dein Leben aendern”,
diz tôda obra-prima a quem, contemplando-a, por ela
e nela morre e ressuscita. Tôda grande poesia, em
particular aquela do tipo (comovente), relembra ao
homem sua grandeza, seu alto destino. Recorda,
igualmente, a quem vive, a seriedade, a importância
da vida. A êsse ponto estamos quase no “ut doceat”.
Nisso já se está de acordo: tu mesmo disseste que
tôda poesia verdadeira é didática. E nenhum meio
de comunicação ensina tão profundamente, e de modo
tão inesquecível, quanto a poesia.
— Poder-se-ia, aliás, afirmar que, tecnicamente,
ela não passa de um conjunto de processos mnemônicos,
de um “artifício de eternidade”.

—■ Isso mesmo. Falando de modo menos geral,
há, entretanto, a poesia propriamente didática. E
lamentável é que já não seja praticada com todo o
esplendor de outrora, quando o poeta se confundiu
com o pedagogo, quando os aedos mantinham viva,
transmitindo-a em seus cantos a experiência ancestral
de cada povo, quando Virgílio ensinava a lavrar a
terra e o que plantar nas estações apropriadas.
PARA QUE POESIA? ---- 21

II

Ensinar, comover, deleitar: estou perfeitaraente


de acordo. Mas quanto ao leitor, ou ao ouvinte, con­
forme tu mesmo tens frizado. E o próprio artista?
Será que a poesia não lhe serve de nada?
.— Se isso acontecesse não seria tão lamentável
quanto parece indicar o tom que usas. Afinal, a pura
doação não deixa de ser louvável. . . E não há poetas
que, como os santos, se esquecem completamente de
si mesmos? Não é isso, contudo, o que geralmente
acontece com a poesia. Para alguns poetas ela signi­
fica mais, para outros significa menos, dependendo
do maior ou menor grau de altruísmo, ou do egoísmo
do seu criador. Poetas há que monologam, há os
que parecem dirigir-se a um só leitor (a “amada”,
o “amigo” . . .) , há os que falam a um grupo de eleitos,
e há os que discursam, os que pregam às multidões
dos espaços e dos tempos. Qualquer que seja o caso,
todavia, o poeta fala também a si.próprio, organizando-
se através de sua poesia. Nesse processo de ordena­
ção pessoal, no qual o artista utiliza sua obra, a audiên­
cia, uma vez mais, entra em proporção variável, depen­
dendo do nível de extroversão ou introversão, de timi­
dez ou de exibicionismo em que se coloca o poeta.
— Não seria o outro lado da catarse a que te
referiste outro dia?
— É verdade. Enquanto o poeta purga e melho­
ra o leitor ou ouvinte, fazendo-o “mudar de vida”,
purga também e também melhora a si mesmo, mudando
continuamente de vida, até, se possível, fixar-se em
formas definitivas de realização. Na poesia encontra
o poeta, quando os deuses estão de seu lado, sua uni-
2 2 ---- MÁRIO FAUSTINO

clacíe existencial. Ela reune harmoniosamente — pelo


menos é êsse um de seus objetivos < •— os aspectos
antagônicos da personalidade do poeta, gerando final­
mente a paz em seu microcosmos anteriormente revolto,
às vêzes até caótico. Através de sua arte o poeta
se concentra, se afirma, se liberta — da mesma maneira
que os demais homens, cada um em seu ofício, ou em
sua devoção. Todo poeta digno de ser como tal con­
siderado pelo povo (que nêle ver, por bem ou por
mal, um dos seus guias e porta-vozes) considera sua
vida como um processo ininterrupto de aperfeiçoamento.
Nesse processo entra a poesia como instrumento prin­
cipal. E é por isso que a vida de um poeta perde
completamente seu sentido quando, por ventura, se ver
ele definitivamente impedido de fazer poesia.
— É o que Rilke tinha em mente ao afirmar que
o verdadeiro poeta morrería se o proibissem de
escrever.
—' Não há dúvida. A partir de certo ponto ■ —•
para alguns desde o primeiro contato — a poesia se
identifica de tal modo com o poeta que êste não pode
mais dispensar aquela. Sem ela o mundo lhe seria
tão escuro e confuso que o destruiría. O poeta é,
antes de mais nada, um homem que sente na própria
carne e até aos ossos a necessidade de experimentar
(e não apenas de observar) o universo, modificando
êste, obrigando-o a reagir às palavras com que o poeta
o ataca, celebra ou lamenta. A poesia provoca, defla­
gra, registra, sublima e decide a luta entre o poeta
e o universo, luta que pode acabar ou pela derrota do
artista — sempre de certo modo uma vitória —• ou
por um sereno pacto final entre os dois cosmos exte-:.
rior e interior, reconciliados. No combate bem com­
batido entre Homo e Mundus, a poesia conduz o poeta
ao seu nirvana especial. A êsse ponto volta à cena
PARA QUE POESIA? ---- 2 3

o leitor consciente, que não poderia deixar de apro­


veitar, em sua luta pessoal da experiência vivida pelo
agonista poético, que transmite suas vivências pelo
veículo verbal. Poucos instrumentos de iluminação do
negro espaço, onde vivemos, parecem-me mais podero­
sos, mais diretos, mais seguros e mais duráveis que
a luz que emana de um genuíno poema.
— Para mim o conhecimento poético tem mais
valor —• consideradas as relações e oposições entre
espaço e tempo, entre o real e o ilusório - que o
conhecimento místico ou o metafísico ou o propriamente
científico.
—- Não entrarei contigo nesse terreno duvidoso,
se bem que a mim pareça a mesma coisa. Dou, entre­
tanto, ao filósofo, ao cientista, ao santo, pleno direito
de pensarem o mesmo sôbre suas respectivas formas
de percepção. Seja como fôr, o fato é que os homens,
historicamente, têm aproveitado tanto do conhecimento
poético, quanto de qualquer outro método de conhecer.
— Mas, voltando ao próprio poeta: não dirias
que a êle se poderia aplicar, reflexivamente, a fórmula
do ut doceat, ut moveat, ut deleciat?
•— Parece-me que sim. Pois não paira dúvida
quanto ao fato de que, se a poesia representa para
•ó poeta seu instrumento específico de experiência, ela
também ensina ao seu próprio criador, E não será
menos verdadeiro que o poema comove e deleita seu
autor. A alegria e a dor de criar se fundem sempre
e constituem apanágio do poeta tanto quanto de qual­
quer outro artista.
— Parece-me que fixaste, ainda que apenas de
passagem, aquilo em que a poesia’ pode servir ao leitor
e ao próprio poeta. Todavia me parece teres con­
siderado o leitor ou o ouvinte, de modo demasiadamente
24 MÁRIO FAUSTINO

individual. Proponho-te que passes a encará-lo, agora,


como uma coletividade; não mais o assistente, porém
já a assistência, a platéia inteira, a sociedade mesma,
a quem o poeta, em última análise, se dirige. Que
me dizes a isso?
—* Digo-te que é preciso trabalhar e que bem
podemos deixar essa parte — nada mais nada menos
que o valor social da poesia — para as próximas
conversas. “A noite tomba”, amigo, e “é preciso tra­
balhar enquanto é d i a . . . ”

III

— Voltando à nossa conversa de outro dia, afinal


o que me dizes da utilidade social da poesia? Em
que pode a poesia servir à sociedade?
—■ Creio que a questão pode ser encarada de
duas maneiras, que poderiamos com certa boa vontade,
chamar de passiva e ativa. No primeiro caso, a poesia
serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a,
registrando as diversas fases espaciais e temporais de
sua expansão e evolução. Nisso a poesia é como
tôda arte: um documento vivo, expressivo, do estado
de espírito de certo povo, em dada região, numa época
determinada. A poesia, aliás, é incomparável quando
registra ■
— com a capacidade condensadora e mnemô-
nica de que só ela é capaz *— certas nuanças de
ponto-de-vista, de atitude, de sentimento e de pen­
samento, individuais como coletivos, nuanças essas
que, muitas vezes, são bem mais expressivas de um
povo e de uma época, do que os grandes aconteci­
mentos. . .
— Ou que “the gilded monuments of princes” . . .
PARA QUE POESIA? ---- 2 5

lamente. Creio não está puxando dema-


ara minha sardinha, quando formulo
da que de valor, segundo o qual um
esse sentido, um documento psico-social
que um trecho de música, um mosaico,
ijâmica, uma estátua, um quadro, um edifício,
io, etc, Que outra arte, que outra ciência
expressar o “Zeitgeist” dos chineses de mil
C ., tão bem quanto uma das odes coleciona-
Confúcio?
Lembras-te de umas em que os soldados se
queixam por lutar por obscuras causas? Ou daquelas
em que os cortezãos satirizam os ministros? Ou
daquelas outras em que os representantes de uma classe
apontam as falhas de outras?
—• Em qualquer delas, pouco importanto o tema,
um grupo de sêres humanos ressuscita a nossos olhos,
revivendo, ao mesmo tempo, uma época e uma região
que nem a história, nem a antropologia, nem a arqueo­
logia, nem as artes plásticas, nem a musica, conse­
guiríam reconstruir com tanta exatidão e tamanho
frescor.
O mesmo, aliás, se dá com os poemas homé-
ricos, com as preces egípcias, com os salmos bíblicos,
com as canções trovadorescas, com as fábulas de La
Fontaine. . .
— Com a poesia de qualquer povo, longínquo ou
vizinho, de qualquer era, recente ou remota. Como
documento humano, creio ser a poesia insuperável.
Somente isto seria bastante para justificar a sua exis­
tência perante a sociedade, sem esquecer aquela sua
outra utilidade como que ontológica: a simples beleza.
2 6 ---- MÁRIO FAUSTINO

a mera consciência da dignidade da espécie que um


poema automàticamente comunica aos homens, seria
suficiente para merecer-lhe as honras da humanidade.
<
—- Há, concomitantemente, o panem et circenses.
A vida social, particularmente em nossa época, sem
o parque, o teatro, o cinema, monumento, o museu,
os concertos, os poemas —' seria mesquinha e dificil­
mente suportável,
— Tudo isso, todavia, ainda cabe no aspecto
“passivo” da utilidade social da poesia. Tal aspecto
suscita pequena controvérsia, Muito mais importante
para nós seria discutir o outro lado da questão, a
maneira como a poesia age sobre o povo, a certa altura
de sua evolução social, E não me refiro apenas a
uma soma das diversas catarses individuais que a poesia
vai provocando em sua assistência, à medida que é lida
e ouvida. Aludo ao poema agindo sobre o povo, da
mesma maneira que um comício, um discurso, um edito­
rial, ou a notícia de cataclismas e revoluções,
— Acredito, como tu, que o poema possa real­
mente agir nesse sentido. Entretanto sou pessimista
quanto a intensidade dessa ação. Até que ponto seria
efetiva? Em que poema “ativo” ajudaria a mudar
uma sociedade?
— Não creio que, a esta altura, devamos entrar
na discussão quantitativa da matéria. Entretanto, eu,
que não participo de tuas dúvidas, (acho que se devem
sobretudo ao estado atual da poesia e não à sua con­
dição), podería dar-te, desde logo, alguns exemplos:
já avaliaste a importância de Os Lusíados para a
nacionalidade portuguesa? A da Ilíada e a da O disséia
para a criação de uma consciência helênica para os
povos fragmentados da Grécia antiga? A de Virgílio
PARA QUE POESIA? ---- 2 7

no sentido de fixar mais à terra as populações nômades


do Lacio? A da Divina Com édia na luta entre o
papado e as cidades livres da Itália? Isso para citar-te
apenas os grandes exemplos.

— Não deixo de dar-te certa razão. De qualquer
modo, não deixa de parecer-me pequena a importância
da poesia nesse sentido, quando considero outros papéis
seus, que já definimos nestas palestras: de documento,
o didático, o estético propriamente dito,
- - Continuo a considerar teu julgamento dema­
siado inflienciado pelas condições vigentes da poesia.
Já imaginaste o que representaria para o povo brasileiro,
neste momento, o aparecimento de um poeta como
Whitman, que, apenas iniciada a aventura norte-ame­
ricana, encarnou um nôvo homem, numa terra nova,
em tempos novos, de maneira a influir como talvez
somente Lincoln, Emerson e Thoreau, na consolidação
do que há de mais puro na hoje sufocada e desfigurada
“american way of life”? Ou o que representaria o apa­
recimento de um D'Annunzio para a fortificação dos
ideais nacionais? Ou de um Hugo?

—1 Estou quase a concordar contigo, porém
reservo-me para julgar em definitivo após termos con­
siderado em, si mesmo, êsse aspecto <— pelo menos
para ti tão relevante — do papel social da poesia.
Dizias, então, que o poema é capaz de agir conside­
ravelmente sôbre a sociedade à qual se dirige?
— Perfeitamente. Contudo não creio que tenha­
mos hoje tempo bastante para esgotar o assunto,
Quero ver se termino hoje a leitura deste ensaio.

— Eu tenho que trabalhar mais um pouco neste
poema.
28 MÁRIO FAUSTINO

IV

— Então de que maneira pode a poesia “agir"


sobre a sociedade a que diretamente se dirige?
«— Muitas maneiras podem ocorrer a qualquer um
de nós. Antes de mais nada, a questão, assim colo­
cada, sugere desde logo a poesia posta a serviço de
uma ideologia. De mim nada tenho a opor ao poema
que serve a esta ou àquela idéia ou sistema. Em
tôdas as épocas, que eu saiba, estiveram os artistas,
uns mais outros menos, a serviço de ideologias, serviço
ora mais determinado, ora menos consciente. Noto,
aliás, bem maior frequência de poetas menores que de
poetas maiores nas torres de marfim. Os poetas maio­
res, sem exceção, que me lembre, sempre detestaram
o ar pouco movimentado que se respira neses preciosos
edifícios. O que não quer dizer que todos os poetas
menores, seus eventuais habitantes, tenham sido neces­
sariamente maus poetas.
— Mas não será preciso distinguir, entre as ideo­
logias mais ou menos institucionalizadas um partido
político, por exemplo, ou um movimento organizado de
caráter nacionalista -— por um lado e, por outro, o
sistema próprio de idéias que o poeta adota como
franco-atirador?
— Não creio. De uma ou outra maneira parece-
me lícita a posição do artista que coloca a poesia —
seu principal instrumento de comunicação com o uni­
verso e os homens • — a serviço daquilo que constitue
sua própria verdade social ou política. E não esque­
çamos que, em nosso século, o político, e social, o
econômico, surgem como aspectos da “verdade”, tão
importantes quanto o foi na Idade Média o teológico.
PARA QUE POESIA? — • 2 9

Seja como for, creio que a grande poesia está sempre


contribuindo ativamente para a formação de utopias
(o íargo terreno de onde brotam as ideologias e sis­
temas de vida), para formulação de idéias, para a
criação de um clima social, para alimentação de um
movimento revolucionário, etc. Interessante ensaio
íilosófico-histórico seria aquele que avaliasse a con­
tribuição de grandes poemas para a formação de uma
consciência nacional, de uma consciência de classe,
etc. Penso não estar longe, tampouco, o dia em que
uma “Weltpoesie” contribuirá decisivamente —• em
pequena escala isso já sucede — para a formação de
uma consciência humana, de uma consciência da espé­
cie, no mais alto nível. Muita coisa que constitue
.infra-estrutura, no sentido cultural, deuses, mitos, tra­
dições, etc., tem sido criada, sublimada, catalizada,
transmitida e transformada pela poesia.
— Por mim creio que, mesmo sem colocar-se dentro
4de um sistema ideológico, a poesia que se mostra cons­
ciente do mundo ou de uma época, que age sôbre uma
e outra retratando-a, oferecendo-lhe nova escala de
valores, criticando-os, etc. — uma poesia social-cons-
ciente, enfim — presta importante serviço à coletivi­
dade.
— Sim. Creio que o poeta moderno não pode
esquecer os fenômenos psicológicos e sociais, nem as
novas direções que vão tomando, paralelamente à poesia,
a psicologia, a antropologia, a sociologia, a economia,
a história, a filosofia, etc. Um dos aspectos principais
do nôvo humanismo, do nôvo sintetismo, cuja ascenção
constantamos em nossos dias, é essa preocupação pelo
todo que justifica a parte, tendência à qual não pode
alhear-se o poeta. Êste, cada vez mais, é obrigado
a ver sua poesia como forma de cultura, expressiva,
tanto de seu povo como de seu meio, como de seu
3 0 ---- MÁRIO FAUSTINO

tempo.. Não rejeito as experiências do tipo Emily


Pickinson, por exemplo, mas não creio pudessem resis­
tir atualmente a esses ventos —* cheirosos a carne, a
dinheiro, a suor, a laboratório ■ —■ que em nossa èra
super-consciente e super crítica vão soprando por todos
os lados. Até mesmo experiências misticamente pes­
soais apresentam-se contemporaneamente, na forma da
de um Rilke ou de um Kafka, por exemplo: verdadeiros
campos de prova, genuínas antenas em que o individual
agoniza de encontro ao social, em que o particular
e provocado, torturado >— e explicado — pelo gerai.
<—- Na verdade, deficilmente podería aparecer,
com sucesso, em nossos tempos, o poeta inócuo, que
os adolescentes enamorados vão lendo pelos bosques.. ,
-— Claro. O poeta contemporâneo tem de ser
perigoso como Dante foi perigoso: uma fôrça respeitá­
vel frente às demais forças sociais. Do contrário, no
entontecedor movimento rumo-Norte a que assistimos
em nossos dias, a poesia seria qualquer coisa de
marginal, menina chorona ou risonha, abandonada à
beira de uma auto-estrada de tráfego intenso. O
poema precisa funcionar como qualquer outra coisa.
E para que possa fazê-lo, para que a poesia possa
voltar a ser -— como, sem dúvida, já o foi e poten-
ciaímente ainda o é <— o mais eficaz, o mais perene,
o mais exato dos meios de comunicação, é necessário,
em suma, que o poema viva em função do tempo, do
espaço e do homem -—■ contra ou a favor, nunca indi­
ferente.
— “Escreve ao anjo da Igreja de Leodicéia: e
porque tu és morno, e nem frio, e nem quente, eu
te vomitarei da minha bôca” — diria o Apocalipse,
Todavia não te hás de esquecer dos perigos que essas
teses encerram.
PARA QUE POESIA? — • 31

— Evidentemente. Tôda premissa certa —- e


tenho o direito de pensar que não estou errado —
deu sempre lugar a conclusões erradas, sempre mais
numerosas e mais fáceis de extrair que as exatas.
Há, por exemplo, os pobres de espírito que confundem
ética e estética, e ficam pensando inocentemente, que
um poema, somente por supevficialmente exprimia as
condições sociais reinantes, ou apenas por fazer-se,
aparentemente, porta-voz das aspirações populares,
possa ser um bom poema, pouco importando suas
qualidades intrínsecas. Quanto a mim, nego termi-
nantemente que um mau poema possa servir seja lá
ao que fôr. E estou pronto, também, a reconhecer
o bom poema onde quer que êle ocorra. Se meu
inimigo faz um bom poema, atribuindo-me os piores
epitetos, posso querer partir-lhe a cara, mas não vou,
por isso, deixar de considerá-lo um bom poeta,
— De acordo. Um poema é bom ou mau, em si.
Só pode ser julgado como e enquanto poema, e sempre
no nível estético.
— Quando tecemos considerações de caráter cul­
tural e social sôbre a poesia, estamos apenas referindo
condições que dão ou não lugar ao aparecimento do
poema. Acredito mesmo que um mau poema já é,
em si, um perigo social, um mau que seu autor faz
à sociedade.

Sim. O mau poema degrada a língua, e uma


língua que decai provoca necessàriamente — como diria
Pound — a decadência da sociedade que a fala. Evi­
dentemente, trata-se de uma relação de causalidade
recíproca.
3 2 — ■ MÁRIO FÀUSTJNO


— Por sua vez, o bom poema —■ qualquer que
seja o tema que explore ou a atitude que revele —*
já traz consigo ponderáveis benefícios sociais.
-— De certo. O bom poema exerce, desde logo,
com ser bom, um papel importantíssimo — ajuda a
língua a manter-se num alto nível de expressividade
ou, se a lingua ainda não se encontra nesse nível, dá-lhe
o poema um empurrão, um impulso para cima e para
diante, na direção daquele alto e avançado nível de
expressividade,
— Sem o qual — isto é, sem uma linguagem efi­
ciente, precisa, maleável, clara, econômica (e bela!)
-— uma sociedade dificilmente poderia desenvolver-se.
— Também eu creio que é através da expressão
poética, mais que de qualquer outro fenômeno, que
a linguagem se clarifica, se enriquece, se torna elás­
tica, precisa, condensada. Assim como a arte da
dança fornece ao povo padrões de graça e elegância,
que ajuda a formar uma gente fisicamente admirável;
assim como as artes plásticas influem na forma dos
instrumentos de viver: cidades, estradas, moradias,
jardins, fábricas, veículos, mobiliário, utensílios de
trabalho, roupas, etc, — assim a boa poesia oferece
à linguagem “standards” de eficiência e de adapta­
bilidade, que fornecem à fala de um povo um nível
de perfeição funcional, rumo ao qual fôrça é que
êsse povo se dirija se não quiser ver na própria língua
um obstáculo ao seu progresso,
— Lembras-te de Vico? - “No interior da poesia
está a origem das línguas.” Mas não só a origem
como também a contribuição mais importante para o
desenvolvimento da linguagem. As poesias nacionais
mais ricas -— precedendo sempre a prosa têm
redundado constantemente nas línguas mais aptas. E
PARA QUE POESIA? ---- 3 3

um idioma apto contribue sempre para uma naciona­


lidade culturalmente mais criadora, mais forte econo­
micamente, mais segura, e mais livre politicamente.
É preciso não esquecer, também, que a boa
poesia torna a língua mais bela, o que, sem dúvida,
ajuda os homens a viver, tanto quanto casas e fábricas
e ruas mais bonitas, melhor planejadas.
— Já há bastante tempo que discutimos, em nossas
conversas, a questão da utilidade da poesia. Nem eu
nem tu pretendemos esgotar o assunto, porém creio
ser tempo de resumir. Vejamos: a poesia é instru­
mento de realização existencial do próprio poeta, que,
através dela se organiza, se afirma e se harmoniza
com o resto da humanidade e com o universo: a poesia
age sôbre o leitor ou ouvinte, individualmente con­
siderado, ensinando-o (comunicando-lhe a experiência
vivencial do poeta), deleitando-o (comunicando-lhe a
satisfação de permanecer vivo e a alegria imanente
a tôda coisa bela) e comovendo-o (comunicando-lhe
o sentimento da importância de viver, e provocando-
lhe aquela catarse catarterística de quem experimenta
uma obra-prima). A poesia age sôbre a sociedade
na qual se manifesta, testemunhando e criticando (no
sentido profundo) uma parte da humanidade ou tôda
a humanidade de uma certa época, estimulando e pro-
focando essa humanidade a transformar-se, criando
utopias e alimentando ideologias e, finalmente, tornando
sua língua mais apta e por isso mais bela.
- Resumiste bem. Creio serem êsses os princi­
pais aspectos a encarar na modesta “teleologia” poéti­
ca, do gênero que tentativamente abordamos. Enca­
ramos a questão da maneira mais prática possível.
Isso é especialmente necessário numa época revolu­
cionária como a nossa, em que todos os instrumentos

,3
3 4 — • MÁRIO FAUSTINO

de ação e manifestação do ser humano devem ser


orientados no sentido de melhorar nossa condição, e
paraíelamente, numa época em que há gente que ainda
prefere a poesia ingênua, embaladora, inofensiva, que
só serve de paliativo, enganando o povo que a lê,
fazendo-o esquecer, por instante que seja, seus proble­
mas, seus direitos, seus deveres.
— Um outro “ópio do povo”, enfim?
-— Exato. Mas essa maneira prática pela qual
atacamos a questão também encerra seus perigos,
sobretudo de desviar a atenção crítica para coisas
menos importantes; é preciso, portanto, repetir o máxi­
mo o que já dissemos antes: até um poema cínico,
imoral, anti-humano, pode ser < —• por mais paradoxal
que isso pareça — um bom poema. E êsse mesmo
poema, eticamente mau, estèticamente bom —' terá,
de qualquer modo, seus aspectos úteis ao indivíduo
e à sociedade. É preciso sempre distinguir o nível,
o campo, ético, político, estético, em que louvamos
ou combatemos um poema. Se não fizermos, nossa
crítica será, em vez de construtiva e esclarecedora,
destrutiva e obscurantista.
<
— Também acho. Aquêle que elogia um mau
poeta, somente pelo fato de pertencerem ambos ao
mesmo partido, que mal está fazendo, ainda que sem
o saber, à sua língua, ao seu povo, à sua época —
a seu partido mesmo!
O POETA E SEU MUNDO

— I | UE posição deve assumir o poeta contemporâ-


neo diante dos problemas de sua época? Qual
o seu papel perante a sociedade no seio da qual vive?
— Eis uma questão complexa, a cujas raizes mais
fundas teremos de chegar, se quisermos encontrar uma
resposta aproximada. Creio que devemos começar por
perguntar-nos o que vem a ser um poeta.

— Para mim trata-se de um ser humano como
os outros: em cada poeta a condição humana pode
assumir feições tão variadas quanto no caso dos demais
homens. Se tivesse de distinguí-lo destes, diria ape­
nas que se trata de um homem dotado de certa capa­
cidade de percepção e de expressão, am bas verbais
(assim como tanto a percepção como a expressão espe­
cíficas de um músico sao mais uma questão de sons),
que o tornam especialmente apto para harmonizar —
infcrinsecamente e em relação ao outro — os dois uni­
versos: um tangível natureza e sociedade —- e
outro intangível — o das palavras em todos os seus
aspectos de som, idéia e imagem, O poeta seria, por­
tanto, aquele homem que, capaz de receber os fenô­
menos naturais e sociais de modo especialmente sin­
téticos, e também capaz de exprimir em palavras
36 MARIO FAUSTINO

organicamente relacionadas, essa visão totalizadora de


um mundo e de uma época.

—• De pleno acordo. Tanto seria perigoso colo­
car o poeta num bizarro pedestal, isolando-o de seu
próximo, como deixar de distinguí-lo com a mesma
precisão funcional -— tendo em vista uma possível
distribuição social de serviços com que se impõe
diferençar um piloto de um carpinteiro, um químico
de um filósofo, um chofer de um caixeiro-ví jante. Em
teu conceito de poeta < —- para mim razoavelmente satis­
fatório — deixas implícita a vasta responsabilidade
que temos perante a sociedade, responsabilidade sôbre
a qual indiretamente já nos referimos, quando fala­
mos dos fins. da poesia. Mas que providências deverá
tomar o poeta para alcançar êsses fins, isto é, para
que possa exercer plenamente seu papel de traço-de-
união entre os três elementos permanentemente agô-
nicos: o próprio poeta, o universo (natural e social)
e as palavras?
— A resposta, creio eu, seria a seguinte: a partir
do momento em que um homem decide que tem poten­
cialmente, aquela capacidade de perceber e de expres­
sar a que nos referimos, será seu dever alimentar,
aperfeiçoar e exercer, ao máximo, essa dupla aptidão.
È preciso frizar, aliás, que os dois aspectos -— percep­
ção e expressão ■ —■ somente se distinguem para efeito
de argumentação: na realidade são simultâneos, não
havendo nem mesmo, a propriamente falar, uma rela­
ção de causa e efeito, ou de sinal e sentido, entre
uma e outra coisa. A percepção verbal — isto é,
a percepção originalmente realizada em palavras < •

é comum a todos os homens e, no caso do poeta, pode­
mos dizer que êle já percebe o universo através de
seus instrumentos: as imagens que constituem, exata-
o POETA E SEU MUNDO ---- 37

mente, as relações que vão estabelecendo entre objetos


de seu conhecimento e de sua sensação.
-— Continuando, entretanto, com nossa distinção
para fins de tese, que achas, em primeiro lugar, que
o poeta deve fazer para tornar mais eficaz sua percep­
ção do universo?
— Creio que isso poderá ser feito através de
um processo, cujas fazes procurarei descrever o mais
rápido possível. Antes de tudo o poeta deveria tornar
o seu campo de percepção o mais amplo e mais pro­
fundo possível: procurar ver num conjunto o mais
vasto e o mais pormenorizado universo físico que o
cerca — considerando, em particular, aquela parte do
universo que lhe cabe mais de perto (sua cidade, sua
região, seu país) — e o meio humano (presente e
passado, atualidade e história) onde cotidianamente
age e reage psicológica e socialmente ■ —■ destacando,
outrossim, aqueles que ama diretamente, mais sua
família, mais seus camaradas de estudo ou trabalho,
mais sua classe, mais seu povo. Essa percepção não
poderá ser realizada com êxito se o poeta se limitar
à simples observação do que o cerca. A experimen­
tação, objetiva e subjetiva, através de um processo de
'‘simpatia” que não exclui o julgamento, é indispen­
sável. O poeta não se aproxima do universo ou da
sociedade, nem com a objetividade quase absoluta de
um químico, nem com aquela, mais relativa, de um
sociólogo. O poeta ama a natureza e ama o homem
e é através dêsse amor que êle os percebe para neles
poder encontrar sua própria verdade. Não se trata,
contudo, de um íalaz amor geral e distante que exclue
o julgamento, a condenação, a luta: o poeta critica
o universo e a sociedade e, por isso mesmo, que os
ama, procura agir sôbre êles, experimentando-os para
melhorá-los. Assim é que, como já vimos, os grandes
3 8 ---- MÁRIO FAUSTINO

poetas sempre se interessaram, ativamente, pela filo-


sofia, pelas ciências, e pela política de sua época,
encontrando-se em cada um dêles o retrato mais ou
menos fiel e minucioso do que se passava e do que
se fazia na dinâmica social do tempo em que viveram.

II

isso nos leva diretamente, pelo que vejo, ao


problema da responsabilidade do poeta perante o
universo e, em particular, perante a sociedade em que
vive. Pois a crítica do universo ■ —■ natural e social
— por parte do poeta, crítica feita perante homens
{que é bom sempre lembrar têm visto no poeta um
dos seus intérpretes, um dos seus guias) implica em
uma escala de valores e julgamentos que não pode
ser estabelecida sem todo um preparo especial, todo
uma auto-crítica, toda uma ascese. Para isso o poeta
precisa conhecer-se a si mesmo; disciplinar seus meca­
nismos de raciocínio, de modo que possa tornar-se
objetivo, imparcial, sem preconceitos, sem tendências
arbitrárias — tudo isso sem que fique prejudicada
aquela "simpatia" de que jã falamos; agrupar a um
tempo a sua percepção do pormenor e do conjunto;
desenvolver sua mente no sentido das idéias em ação,
da visão total do mundo, do sentimento total da época,
do "sentircom" seu povo; procurar perceber o máximo
através das imagens mesmas em que sua percepção
será mais tarde expressada, mostrando as relações e
distinções entre os objetos do conhecimento poético;
procurar "conhecer poeticamente” o mundo — e não
simplesmente conhecê-lo filosófica, científica ou misti-
camente.
O POETA E SEU MUNDO — 39

— Sobretudo isso hás de concordar ser perigosa


a generalização; cada poeta tem para com o universo
o seu próprio critério de abordagem. Rilke vê o
mundo de maneira bem diferente de um Laforgue:
todavia ambos os approaches resultaram em poesias
igualmente válidas. O que importa reter é que jã se
fòi o tempo, se algum houve, em que o poeta podia
aproximar-se ingenuamente do objeto de seu canto.
Hoje o poeta tem de ser a um tempo o profeta, o
cientista, o filósofo, o juiz, o líder, e mais coisa —
e não se pode ser nada disso sem que se desenvolva
todo um sistema de vida, tôda uma ética, tôda uma
deontologia próprias, paralelamente àquela estética pes­
soal que todo poeta desenvolve à medida que vai
construindo sua poesia,
— Sim, Se a poesia é, além de arte, uma ciência
(tem seu objetivo e seu método próprios, como se
poderá deduzir do que vimos dizendo, e tanta a capa­
cidade de formular leis e de "medir” fenômenos, quan­
to qualquer ciência social. . .) o poeta, como médico,
é responsável perante os que confiam no seu diagnós­
tico, em sua cirurgia, em seus remédios. A poesia
interpreta um sentimento de uma época, de um povo,
de homens num certo momento, diante de determinado
inundo: assim, se o poeta é mau, oferece aos coevos
e aos pósteros, um falso retrato, uma diagnose menti­
rosa e qualquer um pode concluir dos desastrosos
resultados de tal falsificação. A poesia ensina: o
mau poeta é um criminoso da mesma laia de um mau
professor, A poesia prega: o mau poeta é igual ao
falso profeta. A boa poesia deleita e comove: o mau
poeta aborrece, faz o leitor ou ouvinte bocejar, perder
tempo ou tomar gato por lebre, o que ê pior. O mau
poeta, sobretudo aquele que consegue por algum tempo
(nunca por muito tempo) enganar sua platéia, é um
4 0 ---- MÁRIO FAUSTINO

usurpador: toma o lugar • —■ a poesia é uma região


como qualquer outra, com disputas pro-Lebensm um . . .
'— de outro poeta mais honesto, mais tímido, e quantas
vêzes melhor do que só possuem "peito” e :‘raça”. A
boa poesia eleva, aperfeiçoa a língua: a má avilta o
idioma e o mau poeta contribue para rebaixar-lhe os
padrões. Em suma, creio ser útil repetir ao máximo
o truismo: o primeiro mandamento do poeta é ser um
bom poeta, como o do médico é ser bom medico, o
do professor ser bom professor, o do sacerdote ser
bom sacerdote.
Como vês, em questões de poesia, passa-se
com facilidade do campo ético para o do estético, e
vice-versa. Tôda questão se baseia, a meu ver, no
fato, por muito esquecido, que a poesia tem um papel
na sociedade, um terreno privado que se não fôr bem
lavrado prejudicará essa mesma sociedade e que aquele
papel deve ser exercido pelo poeta com tôda a res­
ponsabilidade profissional com que uma tarefa de alcan­
ce social deve ser empreendida. Enquanto a poesia
fôr olhada apenas como passa tempo, como brinquedo
inofensivo, com uma coisa de maníacos, de despreocupa­
dos, de maus palhaços, ou de ruins carpideiras, não
só serão maus os poetas como estará em perigo a
sociedade, cujos poetas não estão cumprindo' seu dever,

— Mas que deve o poeta (aquele que traz con­
sigo aquelas condições imprescindíveis, aquelas aptidões
perceptíveis e expressionais de que já falamos) fazer
para ser um bom poeta? Para não perder-se? Para
aguçar seus meios de percepção e de expressão? Para
disciplinar-se, ética e esteticamente? Há, evidente­
mente, uma grande dose de pessoal, de íntimo, em
cada resposta que se puder dar a tais questões, uma
coleção de fenômenos sôbre os quais é impossível for­
mular leis universalmente aplicáveis. — Mas não
O POETA E SEU MUNDO 41

haverá, também, certas constantes, certas atitudes


comuns, nas quais se possam basear normas de ação
e preceitos éticos?

III

— Consideremos, rapidamente, alguns dos meca­


nismos especiais da percepção poética. O universo,
como já temos visto, todo o universo natural, social
e individual, constitui o objeto desta percepção. De
passagem pode-se lembrar não mais caber qualquer
discriminação nesse sentido: tudo pode ser objeto, não
só da percepção como da expressão poéticas. Em
certos períodos alguns poetas chegaram a pensar em
objetos impróprios, em expressões impróprias, em pala­
vras impróprias, infensas à poesia.
— Talvez a impropriedade estivesse no sujeito,
e não no objeto.
— Nem sempre, Era mais um defeito da época
do que do indivíduo. Seja como fôr, hoje ■ —•como em
outras eras ■ — sabemos que a poesia é um passáro
versátil e bem pouco snoh, capaz de fazer seu ninho
em qualquer canto.
Mas de que maneira percebe o poeta êsses
objetos? Que há de especial nessa percepção?
■—■ Há sobretudo dois aspectos originais que me
parecem específicos da percepção poética. O primeiro
é a capacidade de ver cada objeto como parte de
um todo harmônico, vivendo em função dêsse todo,
sendo transformado por e transformado o todo. O
poeta vê o universo ao mesmo tempo em tôda a sua
estrutura exterior e interior, o todo não prejudicando
a parte, a parte não prejudicando a soma. O poeta
vê, também, que soma das partes não é igual ao todo.
4 2 — • MÁRIO FAUSTINO

Há qualquer coisa na própria totalidade que, sem vir


propriamente das partes, explica todo e partes. Assim
sendo os objetos têm sua vida própria (influenciada
pelo conjunto) e o conjunto dos objetos tem sua vida
própria (influenciada pelas partes).
■—’ O que nada tem a ver, como percebo, com
o "paideuma" místico de Frobenius.
— Claro: não se trata de um espírito coletivo,
pairando acima das partes e determinando o funcio­
namento destas. Trata-se, apenas, do quadro geral,
da estrutura — do próprio fato, já reconhecido desde
Aristóteles, de que as coisas, por estarem em conjunto,
formam uma outra coisa com existência própria, que
tem de ser levada em conta como algo mais que a
soma de seus componentes.
— Aí temos então, o primeiro aspecto específico
da percepção poético: a capacidade de perceber ime­
diatamente, em conjunto, em conflitos, que se com­
pletam, o todo e suas partes, a um tempo dependente
e independentemente. A percepção poética é, pois,
uma abordagem “omninclusiva” ■ — com perdão do
neologismo, Mas qual o outro aspecto a que te
referiste?
•—• Um aspecto de certo modo oposto ao primeiro,
e que, todavia, o completa. Refiro-me à capacidade
que tem o artista, em geral, e em especial o poeta,
de perceber seu objeto, cada objeto, em sua quase
absoluta individualidade e não como simples idéia
representativa de uma coleção de objetos semelhantes.
Lembras-te, de certo, do exemplo clássico em psico­
logia: geralmente quando um homem comum percebe
uma laranja não está percebendo “uma” laranja indi­
vidualmente e, sim, apenas, a representação de tôda
a classe “laranja.” O artista, o poeta, percebe e é
O POETA E SEU MUNDO ---- 4 3

especialmente capaz de expressar uma laranja, esta


e não aquela. A aptidão, aliás, de apresentar o objeto
de maneira inconfundível (um dia discutiremos a res­
peito) é uma das qualidades indispensáveis à boa
arte. Para alcançar isto é necessário que o jovem
artista desenvolva sua percepção nesse sentido indi-
vidualizante ( “omniexclusivo” para usar um neologis-
mo baseado no teu), por oposição à visão totalizante,
omninclusiva que notamos há pouco. O poeta, quando
vê poèticamente a laranja, vê, ao mesmo tempo, uma
laranja inconfundível e insubstituível, e uma laranja
dentro, não só da classe da laranja, como também
dentro de todo um universo objetivo, com todas as
suas conotações aproximativas e antagônicas.
-— Compreendo. Achas, contudo, que basta ao
poeta desenvolver ao máximo essas duas capacidades
de abordagem, para chegar a perceber, de modo intenso
é eficiente, o universo que o cerca?
— Em absoluto. Tentamos apenas estabelecer o
que havería de especial na percepção poética. O poeta
necessita, entretanto, de outros critérios de abordagem,
sem os quais perceberá o universo de modo incompleto,
ou falso, ou inconvenientemente fragmentado e defor­
mado.
-— Explica-te,
— Não é apenas sentindo que o poeta percebe
o universo. É obvio que, como já vimos, êle reflete
sôbre o universo, percebendo também através do racio­
cínio. A poesia não é apenas música e imagem: é
também pensamento. Tal pensamento é resultado de
uma reflexão sôbre o universo, reflexão essa que me
parece também possuir, no caso do poeta, suas caracte­
rísticas inconfundíveis.
44 MÁRIO FAUSTINO

IV

'— Antes de passarmos a examinar os mecanis­


mos do raciocínio, de que se utilizam, ou se deveríam
utilizar, os poetas para conhecer, intelectual, o mundo,
gostaria que nos detivéssemos um pouco mais no
importante problema da percepção, de tal modo deter­
minante do tipo e do grau de tôda poesia. Vimos
que, talvez, a principal característica dessa percepção
fôsse a capacidade de o poeta ver a coisa integrada
no universo, através de múltiplas relações de seme­
lhança e de dessemelhança (visão omninclusiva do
objeto) ao mesmo tempo que individualizada de modo
extremamente objetivo, independente, o máximo pos­
sível, da percepção por categoria (visão omniexclusiva).
Há entretanto algumas outras características dessa
percepção que deixamos de lado e que me parecem
de extrema relevância.
— Não há dúvida. Não pudemos pretender
cobrir todo esse assunto em conversas rápidas, como
as que mantemos.
—' Há, por exemplo, o fato de o poeta esforçar-se
sempre para ver a coisa objetivamente, não só quanto
a independência em relação aos demais objetos da
mesma categoria, como também quanto à fragmentação
da própria percepção através do crivo subjetivo que
se interpõe. Todos êsses aspectos da percepção poéti­
ca não são, contudo, exclusivos: interpenetram-se e
completam-se. A característica a que neste momento
me refiro pode ser exemplificada da seguinte maneirar
o comum dos homens, quando percebe uma coisa,
percebe-a de modo fragmentado, como que fazendo-a
passar através do tamis de sua própria existência e
O POETA E SEU MUNDO ---- 4 5

de sua própria experiência. É o que também têm


de fazer .—■ e devem fazer — os poetas: trata-se,
de certo modo, daquela “simpatia” sem a qual não
há verdadeiro conhecimento fora do campo das ciências
exatas. Mas, ao mesmo tempo, os poetas devem pro­
curar perceber, de modo mais direto e objetivo. Alguns
poetas < — nem todos maus —- perdem, muita vez, por
não se preocuparem com isso, a oportunidade de
“apresentar” o objeto, em benefício de “comentários”
sôbre o mesmo, que só conseguem reduzir a exatidão
e a intensidade da expressão poética. Como todos
os defeitos de expressão, êsse tem origem numa falha
de percepção. A própria noção do todo é, frequen­
temente, vítima do mesmo perigo. Como o homem
ordinário está sempre fazendo, alguns poetas — repito:
nem sempre maus • — percebem o todo de modo “ape­
nas” fragmentado, deformado, exatamente porque se
mostram incapazes de afastar, na medida do possível,
e numa certa fase da percepção, suas próprias subje-
tividades, sua posição no interior de uma classe social,
sem preconceitos filosóficos, estéticos, etc., no momento
de perceber o objeto —■ e mais ainda no momento
de raciocinar sôbre um objeto.
Fizeste bem em lembrar êsse aspecto que, se
não é, deveria ser parte integrante, específica e neces­
sária da percepção poética levada a um mínimo de
relatividade. Uma percepção tendente ao absoluto tem
de ser objetiva quanto possível, nesse sentido. Ocorre-
me, todavia, uma outra feição, igualmente relevante
da percepção do objeto por parte do poeta. Refiro-me
ao fato de vér o poeta a coisa a um tempo de modo
inteiramente original, fresco, recente — como se se
tratasse de algo nunca visto ou nunca ouvido, ainda
sem nome, recém-criado — e ao mesmo tempo car­
regada de toda a experiência não só pessoal, do próprio
46 — MÁRIO FAUSTINO

poeta, como de todos os homens, Uma percepção, em


suma, a um tempo horizontal: a coisa no momento,
agora, quase intemporal em tôda a sua possível novi­
dade considerada em abstrato; e vertical: a coisa e
sua história, não só sua própria ancestralidade, como
também a história do conhecimento que os homens —-
poetas ou não ■ —' têm tido dessa mesma coisa.
— Compreendo. Donde, aliás, a relação estreita
que encontramos entre o processo perceptivo-expres-
sional da poesia e o processo criador da própria lingua­
gem. Também se pode acrescentar que o poeta, ao
perceber um objeto, percebe, ao mesmo tempo, um
certo sutil ritmo próprio de cada coisa, um ritmo que
nasce do fato de tôdas as coisas estarem fluindo —■
como diria Heráclito — um ritmo interno e externo
em estreita relação com o nome do objeto e com
todos os fenômenos que nêle se reunem, um ritmo da
coisa em si e da coisa em relação às outras coisas,
pertencentes ou não à mesma categoria. Um ritmo
semelhante ao que encontramos na observação do pró­
prio átomo e de seus componentes, dos átomos dentro
de uma molécula, de uma molécula dentro de um corpo,
de um corpo no universo.
—• Poderiamos, talvez, resumir o essencial especí­
fico da percepção poética através de um exemplo que
nos fornecesse as principais fases dessa mesma per­
cepção, sem esquecermos que se trata, quase sempre,
não de fases separadas no tempo com relações de
causalidade e sim de fenômenos intercorrentes e simul­
tâneos. Um poeta vê uma laranja: vê essa laranja
em independência das outras e do resto do mundo;
vê a laranja dentro da categoria laranja e relacionada,
por aproximação e oposição, com todos os demais obje­
tos que no universo se relacionam com o objeto laranja
e com o nome laranja; vê a laranja como qualquer
o POETA E SEU MUNDO 47

coisa de extremamente nôvo, acabado de criar e ainda


sem nome; vê ao mesmo tempo a laranja e sua origem,
a árvore, a terra, o clima e todos os fenômenos que
nela resultaram, lado a lado com a “história poética”
da laranja: conhecimento que os homens, em geral
e especialmente os poetas, têm tido da laranja o que
ela pode representar como símbolo, etc,, suas relações
imagísticas com outros objetos, tôdas as suas valên-
cias, enfim todo o campo de ação do objeto laranja
e da palavra laranja; percebe, também, um certo ritmo
latente na própria laranja e em tudo que a cerca, real
e idealmente: vê a laranja concreta e abstratamente,
ao mesmo tempo; e toda essa complicada percepção,
como não podería deixar de ser, verifica-se, ao mesmo
tempo, no reino das coisas e no reino das palavras,
sendo a própria percepção realizada, desde o primeiro
instante, através de imagens criadoras de palavras e
de sequências de palavras, paralelamente a todo êsse
processo objetivo, em que a subjetividade do poeta
se projeta ó mínimo possível sôbre a laranja. O poeta
simpatiza com êsse objeto, ama-o, acrescentando-lhe
seu sujeito sem, contudo, perturbar, desfigurar a per­
cepção da essência objetiva da coisa percebida,
V ejo que o problema é tão complexo que pouco
podemos fazer para organizá-lo e esclarecê-lo. O
máximo que podemos pretender é fornecer um ao outro
—' e a quem por ventura nos escute —• certas pistas,
certos caminhos de reflexão. Tudo isso, penso eu,
relaciona-se intimamente ao objetivo último da poesia:
perceber, gravar e transmitir a mais complexa e abso­
luta experiência de um objeto digno de ser conhecido,
interpretado, criticado, simpatizado, sublimado, expres­
sado e perenizado. A percepção poética pretende
ser —- embora isso talvez nunca seja possível —-
uma abordagem' total de um objeto total que é neces­
4 8 ----- MÁRIO FAUSTINO

sário expressar de modo total, sem que nessa totali­


dade se perca um só dos elementos componentes do
todo. Não mais imitar o objeto, não mais apenas
comentar o objeto. Recriá-lo em estado de poesia.
Uma percepção, portanto, que pretende reunir o
principal de todas as outras abordagens -— filosófica,
mística, científica — acrescentando-lhes o que há de
específico em seu próprio approach.

— Muitas dessas questões, entretanto, teremos de


discutir mais adiante, quando conversarmos sôbre o
problema da expressão poética. Por enquanto nosso
"motivo” é outro: comentar aquelas posições básicas
que o poeta tcria de assumir para, a um tempo, tornar
mais amplo e mais preciso o campo de ação de sua
poesia. Até aqui temos visto algumas das atitudes
que convém ao poeta em sua abordagem "sensorial”,
por assim dizer, do universo: a maneira de como o
poeta sente o mundo, projetado sôbre seus objetos a
sua própria subjetividade, sem desfigurá-los, isolando
objetivamente a coisa sentida e, ao mesmo tempo,
"simpatizando” com ela, reaproximando-a de seu pró­
prio ser. Todavia, o poeta — e, mais frequentemente,
o "verse-maher” — aquele que, sem estar fazendo
poesia propriamente dita, está, contudo, com todo o
direito, utilizando o verso como meio de comunicação.
.—• Eliot já mostrou que um bom “versificador”
{sem nenhuma conotação pejorativa) é tão raro quanto
um bom poeta.
—■ . . . o poeta, dizia eu, não se limita a perceber,
sentindo-o (ouvindo, vendo, tocando, etc.) o universo:
O POETA E SEU MUNDO — 49

percebe-o também pensando. O julgamento, a crítica


do mundo tem sempre feito parte de toda alta poesia,
tanto quanto o sentimento do mundo. Convém, por­
tanto, que consideremos agora quais as atitudes mais
próprias a tomar, quando em nossa qualidade de poetas
e tendo em vista expressar-nos poeticamente, “racio-
cíonamos” sôbre o mundo.
-— Nunca é demais frizar que não pretendemos,
nem tu nem eu, apontar atitudes exclusivas, universais,
que os poetas teriam de tomar se não quisessem ser
maus poetas. Sabemos ambos que boa poesia pode
aparecer de qualquer maneira, seja qual fôr o poeta,
seja qual fôr sua maneira de sentir ou de pensar o
universo. Apenas, útil será que procuremos distinguir,
entre tôdas as posições possíveis ^ e são numerosas
,— aquelas mais eficazes, com maior probabilidade de
levarem a uma poesia mais completa, mais exata e mais
fiel ao espírito da época.
— Perfeitamente. Uma opinião, expressada em
verso, pode ameaçar a comunicação poética, sobretudo
se se trata de uma opinião mal concebida, ou absurda,
ou resultante de um preconceito, de uma inclinação
injustificável. Se não se pode exigir do poeta que
seja absolutamente justo e verdadeiro em suas opiniões,
deve se exigir, pelo menos, que êsses julgamentos
possuam determinadas qualidades que os capacite a
funcionar dentro do poema sem prejudicar a comuni­
cação desses a outros indivíduos que podem ou não
participar do julgamento formulado pelo poeta.
.— Vejamos, então, essas posições.
-— Em primeiro lugar creio que o poeta, ao pensar
sôbre o mundo, deve ser objetivo; isto é, deve ser
capaz de reconhecer a existência de diversas catego-
50 — MÁRIO FAUSTINO

rias de “fatos” : materiais, espirituais, ideológicas; deve


ter uma mentalidade aberta com o menor numero pos­
sível de prejulgamentos e preconcepções; deve ser
receptivo a novas idéias, etc. Em segundo lugar deve
o poeta raciocinar a um tempo sintética e analiticamen­
te; deve ser capaz de ter uma visão de conjunto das
coisas e das situações. Para que essa visão de con­
junto do universo seja possível, o poeta deve munir-se
de alguns instrumentos; uma certa medida de conhe­
cimentos filosóficos, sociais e políticos, noções de esté­
tica geral, intimidade com a prosa e as demais artes,
familiaridade cotidiana com os acontecimentos do mun­
do exterior, auto-conheeimento, autocrítica, etc. Quan­
to ao aspecto analítico, urge que o poeta saiba penetrar
a realidade de cada coisa percebendo a um tempo sua
estrutura, seu desenvolvimento e suas relações com as
demais coisas, suas forças de transformação e de per­
manência, distinguindo em cada objeto o relevante do
irrelevante. Em terceiro lugar, o poeta, que talvez
como ninguém é capaz de perceber a mutabílidade
das coisas, participando talvez mais que os demais
homens do sentimento trágico da vida, o poeta deve
ser capaz de racionar “em projeção”, isto é, dando-se
sempre contado ritmo de transformação das situações
atuais em situações futuras. Em suma, raciocinar
sobre o mundo “evolutivamente” : Por mais realista
e empírico que um genuíno poeta seja, há sempre nêle
ou o profeta, o vidente, ou, pelo menos, o homem
que procura carregar suas palavras de um elemento
previsional, de tal ordem que elas possam provocar
aquela impressão de eternidade inerente à verdadeira
poesia. Êsse raciocínio projecional liga-se estreita­
mente ao derradeiro mecanismo de raciocínio que,
nesse contexto, julgamos apropriado à mente “poética” :
O POETA E SEU MUNDO ---- 51

o raciocínio utópico. Mormente em nossa época o


poeta é, entre outras coisas, um dos; homens que com­
põem a tvibu prophétique, alimentadora esperança dos
homens, descortinando-lhes um futuro mais nobre. A
palavra utopia é aqui empregada em seu sentido mais
recente de visão do futuro, não no sentido de sonho
irrealizãvel e, sim, de um futuro melhor, realizável
dentro das coordenadas do presente conhecido. Há,
ainda, em nosso mundo, lugar para os poetas pessi­
mistas. Pode havê-los, e grandes. Mas o ambiente
é cada vez mais dos poetas "apologéticos da vida”,
de espírito tendente ao clássico, estoico quanto ao
presente e confiante quanto ao futuro.

VI

<— Nestas nossas conversas conseguimos dizer,


até aqui, alguma coisa sobre a preparação sensorial
e intelectual do poeta, preparação destinada a oferecer
melhores instrumentos com que abordar o universo
em seu trabalho demiúrgico de recriação. Aqui e ali
referimo-nos também ao fato de que a consideração
dessas atitudes sensoriais e intelectuais nos conduz,
quase sempre, ao problemas éticos da formação e da
atividade habitual de um poeta. Creio que agora
chegamos ao momento mais conveniente para discutir
alguns aspectos importantes específicos ou não —
da ética, ou pelo menos da deontologia do poeta.
— O principal, parece-me, já foi dito anterior­
mente: que o primeiro dever do poeta é sem bom
poeta, como a principal obrigação perante si mesmo
e a sociedade de um médico, de um motorista e de
5 2 ----- MÁRIO FAUSTINO

um lavrador, é serem bons profissionais, cada um em


sua atividade. Já vimos também o mal que o poeta
faz à sociedade e à língua quando ocupa, em maus
poemas, o espaço a outrem devido, ou mistxficando por
algum tempo seus leitores, através de uma poesia só
aparentemente boa. Há, contudo, outros deveres do
poeta, por nós também já aludidos, ainda que de
passagem ou noutros contextos: o dever de retratar-se
a si próprio, com fidelidade através de sua poesia (que
deve ser um documento humano fidedigno), o dever
de expressar sua época, seu povo, e sua terra, com
idêntica fidelidade (pois a poesia é também precioso
documento histórico), o dever de agir sôbre sua época
e sua sociedade, através de um poesia verdadeiramente
participante, crítica e transformadora do mundo, o
dever de comover, de deleitar e de ensinar, tudo num
sentido profundo, e o dever, enfim, de contribuir para
o progresso da língua em que escreve, tornando-a,
em seus poemas, mais exata, mais flexível, mais ampla
e mais inclusiva, mais eficiente, em suma: já que sem
uma linguagem eficaz a sociedade nem funciona nem
progride. Creio serem êsses os principais deveres pro-
fisisonais do poeta -— acrescidos, é claro, de fcôdas
aquelas obrigações extra-profissionais que tem como
indivíduo de uma nobre especie e como ser social,
— Não acredito que isso encerre a questão. O
mais importante será, talvez, colocarmos o problema,
com que se defronta o jovem poeta na encruzilhada
de tantos caminhos éticos possíveis. Qual de todas
essas vias o levará com mais segurança à boa poesia?
A estrada real dos que se escudam na experiência
dada e institucionalizada de uma hortodoxia < —• reli­
giosa, ética, política? Ou as ásperas veredas daqueles
O POETA E SEU MUNDO ----- 5 3

que guardam da experiência transmitida apenas aquele


mínimo inalienável que já faz parte de nossa condição
e que adquirem, à própria custa, quase íôda a expe­
riência do mundo?
— Uma e outra atitude tem servido e talvez
continue a servir a muitos bons poetas. Todavia
acredito que, sendo o poeta, como todo artista, sobre­
tudo aquêle que faz o nôvo, aquele que acrescenta
continuamente novas experiências à experiência ances­
tral (em todos os sentidos, moral e esteticamente)
creio que o segundo sistema, crítico, experimental,
resultará para o poeta numa experiência de vida mais
nova, mais pessoal e, portanto, mais importante para
os outros homens, como documento e como catalise
de acontecimentos. Basta que o poeta recorde sem­
pre que suas posições perante a vida possuem, nelas
mesmas, um interesse social, por isso que, em estado
de poesia, elas influirão sobre outros indivíduos (a
poesia ensina) até contribuírem para a modificação da
tradição ética da sociedade. O poeta deve formar
sua própria ética no entrechoque de sua luta contra
o universo, experimentando e criticando o que lhe foi
transmitido. Formada essa ética, paralelamente à
formação de sua própria arte poética, torna-se o poeta
capaz de oferecer a coevos e pósteros, uma experiência
sob muitos aspectos original que contribuirá, em maior
ou menor grau, para a transformação do mundo <—
um dos principais deveres de qualquer artista, Tôda
obra de arte (e especialmente a literatura prosa
e poesia <— como meio de comunicação mais ligados
ao intelecto que a música ou as artes plásticas) encerra
uma ética tanto quanto uma estética e as relações entre
o bem e o belo compõem uma base mesma de tôda
filosofia da arte. O poeta não poderia, sendo assim,
54 MÁRIO FAUSTINO

ainda que o desejasse, por de lado os outros problemas


morais que o solicitam. E uma aventura orignal nesse
terreno, sustentada por uma noção de ver pessoal e
social, parece-me convir mais à posição órfica, demiúr-
gica, cosmorrevolucionária, própria dos poetas que
sabem colocar-se não à margem, mas no centro móvel
da corrente dos tempos.
QUE É POESIA?

ue é poesia?
U —• Nenhum de nós pode pretender, lúcida­
mente, apresentar, sôbre isso, um conceito definitivo.
O mais que podemos fazer é procurar estabelecer,
discutindo o assunto por algum tempo, o que repre­
senta para nós, a esta altura, aquilo que chamamos
de Poesia, Jovens poetas que somos, em período de
formação, não devemos freiar nosso desenvolvimento
com a construção de conceitos e definições pretensio-
samente fixos e rígidos. Entretanto, lançada essa
margem de maleabilidade, à qual e da qual os enganos
e as omissões ocasionais poderão aportar e zarpar ao
tempo favorável do pensamento tentativo, creio poder
expressar, desde já, minha opinião de que é necessário
pôr de parte, antes de entrarmos no assunto, a falácia
da “poesia” solta, da poesia que paira no ar, os
paradoxos do que música tão poética!, os absurdos,do
a noite estava muito poética.
— Por que motivo?
.— Porque essa atitude de chamar de “poesia”
algo que não passa daquele conjunto de.> solicitações
ao agradável, ao profundo, à recordação, à meditação,
etc. que também se pode chamar de “beleza” e
que pode ser encontrado em qualquer parte, ao sabor
5 6 ---- MÁRIO FAUSTINO

das flutuações subjetivas de cada um ■ —■ porque essa


atitude, dizia eu, só serve para desviar, para obscurecer
e para confundir princípios, meios e fins. Tal conjunto
de solicitações, de motivações, de “inspirações” —
a beleza, do mundo pode ser ou não ser, dependente
da habildade de cada artista, captado através da músi­
ca, da pintura, da escultura, da dança, até da arqui­
tetura que, felizmente para os arquitetos, é a arte
menos sujeita a tais ingenuidades. Fixado esse ponto
(em resumo: que não nos interessa, neste momento,
o .conceito vulgar de “poesia” vagabunda, ave capri­
chosa pairando sôbre o mundo, surgindo ou pousando
neste ou naquele cenário ou objeto) podemos aproxi­
mar-nos um pouco mais de um conceito de poesia
(arte poética, é claro) se dissermos que se trata antes
de tudo de uma maneira de ser da literatura, ou seja,
da arte da palavra, da arte de exprimir percepções
através de palavras, organizando estas em padrões
lógicos musicais e visuais.
Essa organização de palavras em padrões que
excitam ao mesmo tempo o pensamento e o olhar e
o ouvido mentais daquele que lê (porque a arte lite­
rária é, hoje em dia, mais que qualquer outra coisa,
literatura escrita) essa arte apresenta dois extremos,
o absolutamente poético e o absolutamente prosaico,
nem um nem outro dos quais jamais foi atingido, dentro
ou fora do âmbito artístico da literatura. Com efeito,
nada mais prosaico do que um relatório científico;
contudo, não há um só onde se não possa encontrar,
aqui e ali, qualquer trecho, expressão ou combinação
de palavras quei nos impressiona de maneira “poética"
— maneira essa cujas características é nosso propósito
discutir, por contraste, com a maneira “prosaica”. Por
outro lado, nunca se fêz poesia tão “pura” que não
contivesse um ou outro elemento dessa maneira
QUE É POESIA? 57

"prosaica”. Tôda obra literária, portanto, parece-me


flutuar sempre entre êsses dois extremos de prosa
e poesia, muitas havendo que se encontram de tal
maneira equidistantes dos dois extremos que não há
como chamá-las "prosa” ou “poesia”, daí surgindo as
modalidades intermediárias do Verso (em um dos
sentidos inglêses da palavra verse) e dos “poemas em
prosa.”
A distinção mais comum que se faz entre prosa
e poesia é apenas formal e quantitativa. Formal por
referir-se apenas aos aspectos por assim dizer concretos
que até hoje (não se pode dizer que para sempre)
têm distinguido uma coisa da outra: aspecto exterior,
gráfico, da página de prosa e do poema, variações
rítmicas, etc. E quantitativo porque todas as distinções
formais até hoje apontadas entre a prosa e a poesia
apenas têm servido para mostrar que a poesia tem
mais ritmo, num certo sentido, que a prosa; que a
poesia é uma linguagem mais concentrada; que o metro
em poesia é mais preciso e mais fácil de identificar. . .
Creio, todavia, que essas distinções formais não
chegam a distinguir a prosa da poesia; limitam-se,
exclusivamente, a separar prosa e verso, O que prin­
cipalmente nos interessa nesta discussão é colocar em
contraste duas linguagens, dois modos de expressão
—* ou os dois extremos da mesma modalidade de
expressão: a literatura, a arte verbal. Nêsse nível
creio que o prosaico e o poético podem ser distinguidos
com suficiente nitidez, embora permaneça, creio que
para sempre, a dificuldade de decidir, com exatidão,
que esta ou aquela obra literária se encontra dentro
dos limites do prosaico ou entre as fronteiras do
poético.
5 8 ---- MÁRIO FAUSTINO

II

o— Recusas-te, então, a distinguir a prosa da


poesia?
Não é bem isso; elas, de qualquer modo, se
distinguem automaticamente, pelo menos até esta altura
da evolução literária. Apenas — considerando que
tal distinção só se torna, precisa no plano formal e
considerando que, ao nível material, essencial, encon­
traremos sempre o prosaico na poesia e o poético na
prosa —' acho mais útil (e menos passível de certas
confusões irrelevantes) procurar estabelecer a diferença
qualitativa existente entre o prosaico e o poético.
—' Creio que tens razão. Parece-me também
que a distinção entre prosa e poesia (palavras que
sugerem imediatamente a “forma" da prosa e a “forma"
da poesia) tem valor puramente acadêmico: as duas
coisas, formalmente, o texto de prosa e o texto de
poesia, têm sido tão diferentes quanto a água do fogo,
tornando-se inconfundíveis até mesmo em casos espe­
ciais, como Un coup d e d és jamais ri abolira le hasard
ou o Finnegans W a ke. O que é difícil -—• e por isso
importante —* é, na verdade, precisar o que distingue
o prosaico do' poético. Vamos a isso.
— Antes de mais nada é preciso abolir, neste
contexto, as conotações pejorativas do termo “prosai­
co", que deve ser para nós tão nobre, nesta discussão,
quanto a palavra “poético”. Isso estabelecido, diría
eu que é prosaico o arranjo de palavras em padrões
(cuja forma gráfica, e cujo ritmo, mais ou menos
irregulares, não nos interessam ainda) que analisam,
descrevem, ilustram, glosam, narram ou comentam o
objeto; é prosaico o discurso sôbre o objeto (ser,
QUE é POESIA? ---- 5 9

coisa ou idéia). E, correspondentemente, consideraria


poético o arranjo de palavras em padrões (cujo aspecto
fòrmal —■auditivo ou visial — repito, ainda não entra
em consideração) que sintetizam, suscitam, ressuscitam,
apresentam, criam, recriam o objeto; é poético o canto,
a celebração, a encantação, a nomeação do objeto.
Comprendes?
—• Creio que sim. Mas poderías explicar-te
melhor.
— Quando um escritor, consciente ou inconscien­
temente, esteja ele usando, no momento, padrões for­
mais próprios da prosa (períodos irregulares em sua
forma gráfica ou rítmica) ou padrões formais próprios
da poesia tradicional (aquilo que se chama “verso"),
quando um escritor, tirando palavras do estoque de
sua memória, procura adaptá-las ao objeto de sua
criação, fazendo tais palavras circulares em tôrno de
seu objeto, refletindo-o, comentando-o, contando-lhe
a história, analisando-o, personalizando-se, identifican-
do-o, etc., esse escritor, queira ou não queira, está
entrando no prosaico —- o que, é bom frizar, pode
ou não resultar em obras-primas de verso ou de prosa.
Quando, porém, esse mesmo escritor, colocando-se
diante do objeto de sua criação, vê nascerem em sua
mente palavras como que inteiramente novas, insubsti­
tuíveis e essencialmente intraduzíveis, que não glosam
o objeto e sim o recriam em um plano verbal, batizan­
do-o de um modo inexplicavelmente nôvo, tirando-o do
caos em que parecia encontrar-se e colocando-o numa
ordem nova — então êsse escritor, queira ou não,
está caindo no poético -— o que, dependendo do con­
texto e da intenção criadora indicada pelo próprio
escritor, pode ser bom ou mau e resultar em obras-
primas ou medíocres.
6 0 ---- MÁRIO FAUSTINO

— E se desses um exemplo?
-— Tu mesmo podes lembrar centenas. Por
exemplo, se Blake dissesse, ainda que no melhor verso,
qualquer coisa como Ontem à noite, quando passeava
na floresta, pareceu-m e de repente ver brilharem na
escuridão os olhos d e uma fera — estaria sendo pro­
saico e, conforme o talento empregado na escolha das
palavras e no arranjo da mesmas, faria boa ou má
prosa, ainda que em verso. Mas o que êle diz é:
Tigre, Tigre, ardendo fulgurante nas florestas da noite
—■ e isso é poético. Se Blake tivesse usado outras
palavras, menos bem escolhidas (em tese: as palavras
dos dois versos famosos são evidentemente insubsti­
tuíveis e intraduzíveis — Blake, sentindo a “novidade”
com que naquele instante renascia, por exemplo, a
palavra "tigre”, fêz uso de uma grafia caprichosa,
única: “Tyger”, com "y ”) que o seu

“Tyger, Tyger, burning bright


In the forests o f the night",

talvez fizesse má poesia, porém, de qualquer ma­


neira, seu “approach” seria poético, desde que o
processo não fôsse transformado.
.—■ Podemos,, então, dizer que um trabalho não
é melhor nem pior por ser “poético” ou “prosaico”
—- dando a essas palavras o sentido em que as vimos
empregando?
— É óbvio. Uma frase pode ser “poética” ou
“prosaica", no sentido a que me refiro, e pode ser
considerada boa ou má literatura, segundo critérios
múltiplos de eficiência, de adequação, etc.
— E o verso?
QUE É POESIA? ---- 61

— Não nos parece importante neste momento.


O verso tem sido o padrão formal tradiconal da poesia
do Ocidente (a poesia chinesa é poesia — e que
poesia! — e faz uso de tudo, menos do v e rs o ...)
e pode ser bom ou mau, independentemente de ser
prosaico ou poético. Eliot já teve ocasião de mostrar
que Kipling, que quase nunca chega a ser poético, é
um grande “verse-maker” — e, portanto, um grande
poeta, já que como tal sempre terá de ser classificado
«— sendo sua obra poética bem mais importante para
a poesia que a de muitos poetas que fàcilmente atingem
o poético. Por outro lado, ninguém vai chamar
Lautréamont e St. John Perse de “prosadores” só
porque suas obras se aproximam, formalmente, muito
mais dos padrões tradiconais da prosa que dos da
poesia.
— Comprendo. Voltando, todavia, ao cerne de
nossa discussão, creio que poderiamos resumir tuas
palavras numa fórmula de fácil memorização, dizendo
que prosaico é o discurso e poético é o canto.
— Como queiras. Preferia, contudo, que não o
fizesse. Tua fórmula, como todas as fórmulas, apro­
xima-se demais da frase feita, da falácia pretensiosa-
mente axiomática. Por outro lado, há certas coisas
naturalmente difíceis e complicadas, sendo inútil e
perigoso tentar simplificá-las, resumi-las ou facilitá-las,
Se tudo o que dissemos até aqui já é esquemático
dem ais... Tu mesmo, se refletires com vagar, hás
de descobrir muitas falhas na exposição de meu pen­
samento, com o qual neste instante concordas de tão
boa mente. E pode ser que amanhã tu, eu, nós ambos,
pensemos de modo bem diferente sobre tôdas essas
coisas.
62 ---- MÁRIO FAUSTINO

ÍII

—' Resumir-se-á, contudo, nisso apenas a distinção


entre o prosaico e o poético?
—' Estabelecemos, desde o princípio, não preten­
dermos esgotar um assunto que, a cada geração, até
mesmo a cada ano, se vê enriquecido à luz de novas
contribuições. Desde já, entretanto, podemos indicar
uma outra diferença que me parece sobremodo impor­
tante e que está estreitamente relacionada a outra
já apontada. Refiro-me à impressão que me dá a
linguagem poética de ser antes de tudo criação, ou
recriação, enquanto que a linguagem prosaica mais
me parece uma linguagem de comunicação.
-—- Como assim?
^ É óbvio que não quero dizer não haja criação
no prosaico ou que não haja comunicação no poético.
Sugiro, tão somente, ser o principal objetivo da lingua­
gem poética a criação (ou recriação, repetindo) de
um objeto -— ou de um conjunto de coisas, seres, idéias
que sob a forma de palavras-realidades se reunem,
através de todas as conotações possíveis, para formar
um complexo, um objeto nôvo: o poema -—■ enquanto
que o fim capital da prosa seria o de comunicar: uma
visão do mundo, real ou imaginário, uma visão pessoal
de sêres, coisas, idéias, sim bolizados (ou assinalados)
por palavras que, todavia, não se confundem com os
objetos a que se referem. Na linguagem poética não
existe, a bem dizer, comunicação: o que se verifica
é a criação de um objeto do poeta (ou, às vezes,
conforme já vimos, do próprio prosador ao fazer uso
dessa linguagem), que, em seguida, faz uma doação,
ou uma exposição, dêsse objeto ao leitor ou ouvinte.
QUE É POESIA? ---- 6 3

— Nêsse caso estaria a linguagem poética mais


próxima das artes plásticas e da música, enquanto que
a linguagem prosaica seria sui generis, enquanto que
artística?
—' É mais ou menos isso. A prosa artística está
mais próxima da prosa científica ou filosófica do que
se pensa. Em tôda linguagem prosaica, mais ou menos
artística — isto é, com maior ou menor conteúdo
estético -—■ comenta-se o objeto e transmite-se tal
comentário por meio do discurso, de um arranjo de
palavras já à disposição ■ — como diria Read —* do
escritor. Quem usa de linguagem poética fá-lo para
conhecer o universo, nomeando-o, recriando-o, e para,
em seguida, doar, expor, essa criação aos outros homens
como um escultor oferece sua estátua e o músico sua
música. Quem usa de linguagem prosaica conhece
o universo através de comentários, da utilização de
palavras já criadas e relativamente substituíveis, por
isso que, no prosaico, não se confundem, no momento
da criação, com as realidades que assinalam.
— Será então por isso que a genuina linguagem,
prosaica, sendo comunicativa por excelência, não pode
dispensar um máximo de clareza, de exatidão e de
"inconfundibilidade” <— ao passo que a poesia sempre
se pôde dar ao luxo da ambiguidade (cujas maquina­
ções, segundo Empson, constituem o próprio cerne
da poesia), do mistério eleusino, da fórmula mágica. . .
*— Podemos avançar, até mesmo que, a partir de
nossas premissas, o poético não teria de ser compreen­
dido e sim percebido — como um vaso, um edifício,
uma dança — ao contrário do prosaico, que perde
todo o sentido se não é perfeitamente entendido. No
prosaico o artista comenta o universo em benefício
do leitor ou ouvinte. No poético, o artista organiza,
nomeia, reconstitui, recria o universo por meio de
6 4 ---- MÁRIO FAUSTINO

palavras-objetos, que d o a , que oferece ao leitor e


ouvinte.
—' Não concordas em que essa distinção apresenta
relações diretas com a própria questão da origem das
línguas? Vico, e depois Croce, não nos sugerem que
a linguagem original era poética, isto é, uma primeira
nomeação do objeto por parte de alguém que não
possuia outro meio de conhecê-lo senão recriando-o,
nêle, sujeito, através da palavra?
-—' Tens tôda a razão. Por isso mesmo é que
o poético sempre precede, cronologicamente, o prosaico;
que a linguagem cios selvagens e das crianças tanto
se aproxima do que ainda hoje consideramos poético;
que o florescimento do prosaico corresponde, cons­
tantemente, a épocas mais sofisticadas, mais afastadas
da ingenuidade primitiva; etc., etc. Qualquer uma
das teorias sobre a origem das línguas *— onomato-
poética, relação mística entre som e significado, inter-
fetiva, imitação oral de movimentos físicos, o proto-
discurso de Leibniz, a comunicação automático-invo-
luntária (Sturtevant), etc., tôdas essas teorias (exceto,
talvez, aquelas hoje pouco acreditadas, chamadas “da
convenção” ■ —■ Aristóteles, Demócrito, epicuristas —
opostas àquelas denominadas "da necessidade ineren­
te” — Pitagoras, Platão, estoicos <—') viríam em apoio
da tese de Vico: de que na poesia está a origem das
línguas. Não parece haver dúvida, portanto, de que
o processo de criação das palavras — processo por
definição metafórico ■ — aproxima-se extremamente,
com êle se identificando, do processo criador da lin­
guagem poética.
—• Não seria excessiva, a esta altura, recordar
— verdadeiro lugar-comum de argumentação — a
etimologia da palavra poesia: o poiêin dos gregos,
significando, bem perto, criação.
QUE É POESIA? •— • 6 5

' Não há dúvida. Urge, no entanto, recordar


sempre que, em essência, senão em forma, encontra­
remos sempre o poético naquilo que convencionalmente
se chama prosa e o prosaico na poesia. Conforme
dissemos desde o princípio, estamos tratando, ao falar­
mos em “poético” e “prosaico”, de extremos absolutos
nunca de todo atingidos: não há exemplo de obra
literária “puramente poética”, nem “puramente pro­
saica”. E tampouco devemos condenar um trecho
escrito em prosa por ser vasado em linguagem próxima
da poética, ou rejeitar um poema, um conjunto de
versos que podem ser ótimos, debaixo de outros crité­
rios, somente por estar composto numa linguagem mais
próxima da prosaica.

IV

— De tudo o que temos visto, poder-se-ã concluir


ser a recriação do objeto (acompanhada de sua doação
aos demais homens, sob a forma de palavras que
compõem uma coisa só com o objeto por elas nomeado),
a principal finalidade da linguagem poética; ao con­
trário da prosaica, que serve para comunicar ao leitor
ou ouvinte uma visão, um comentário, uma narração,
uma descrição do objeto, em palavras que não se apre­
sentam identificadas, confundidas com êsse mesmo
objeto. Donde, por outro lado, se conclui também
ser o objeto o que realmente importa, tanto à lingua­
gem poética quanto à prosaica.
— É claro que te dás conta de estares pronun­
ciando um truismo: a recriação, ou o comentário, e
a doação, ou a comunicação, do objeto, são funções
de qualquer forma artísticas. As artes plásticas, a

5
6 6 ---- MÁRIO FAUSTINO

dança, a música, o cinema, tôdas naturalmente em seus


aspectos mais puros, por assim dizer, menos “anedó-'
ticos”, procedem como na linguagem poética: criação;'
ou recriação, e doação do objeto, na forma de uma
nova realidade (sonora, plástico-estática ou plástico-
dinâmica) que organiza e humaniza, projetando o
sujeito do artista, carregado de toda a cultura e de
tôda a história de um grupo social, sôbre o objeto
percebido, isto é, criado ou recriado: ser, coisa, idéia.
A linguagem prosaica, bem como as formas aciden­
talmente discursivas, “anedóticas”, que podem assumir
as outras artes, procedem como já vimos: relatam, imi­
tam, comentam, comunicam o objeto.
—• Tudo isso nos faz retornar, bem o vejo, à
questão da percepção do objeto por parte do poeta,
sôbre a qual tanto já conversamos. O artista que se
utiliza da linguagem poética, percebe o objeto, natu­
ralmente, como os outros homens: através de palavras,
por meio do "íogos”. Apenas, no processo simultâneo
percepção-nomeaçao-recriação do objeto, êle não atribui
uma palavra qualquer a esse objeto, palavra que o
assinalasse e que o artista pudessem a seu bel prazer,'
substituir por uma outra. Ao contrário, êle já “per­
cebe” (e não apenas “reflete” ) o objeto nomeando-o
como que pela primeira vez e, por isso mesmo,
recriando-o em “uma” palavra, ou em “um” conjunto
de palavras: o símbolo, em seu caráter original, como
bem o define o sr. Michel Debrun em seu trabalho
A Palavra poética, que estamos lendo. Com isso
podemos, creio eu, dar por encerrada nossa discussão
— sumária embora «—- da distinção entre a linguagem
poética e a prosaica, sobretudo se mantivermos em
mente nosso ponto de partida: de que o aboslutamente
prosaico e o absolutamente poético não passam de
extremos ideais, jamais concretizados, da linguagem em'
QUE É POESIA? ---- 6 7

geral (e não apenas da linguagem literária) pois


encontraremos sempre “símbolo” e “sinais” na poesia,
quer dizer, a “nomeação” do objeto em textos vasados
nos padrões formais que a tradição considera “prosa”
e o “discurso” sôbre o objeto em trechos vasados nos
padrões formais a que a tradição considera a de
nominação de “poesia,” Não há prosa pura, como
não existe poesia pura.

— De acôrdo, Mas com toda essa digressão
não teremos estado apenas a evitar nossa questão
primordial, ou seja: Que é poesia?
-— Como queiras. Evitamo-la porque concluímos
que não é possível respondê-la sem cair na "literatura”

— ou na literatice. Um estudo semântico da palavra
“poesia”, em qualquer das línguas ocidentais, muito
nos afasta tanto de sua origem etimológica como do
conceito filosófico que se lhe possa conferir. Porque
a tradição, o uso, tem chamado de poesia a “beleza”,
a "harmonia”, o “pensamento profundo”, a “imagina­
ção”, a "emoção”, a “linguagem metrificada”, o “verso”,
o “conjunto de poemas”, o “poema”, etc. • —■ coisas
que, está claro, não têm lá muito a ver com a “poiesis”
dos gregos ou com a nomeação, a recriação do objeto
em palavras • —- coisas a que nos temos referido. A
muitos trechos de llly ses ou do Fínnegans W ake,
do A nabasis ou dos Chant de M aldorot, de lln coup
de dé s . . . , a muitos ideogramas de Cummings ou de
Pound a tradição recusaria chamar de poesia: e, entre­
tanto, todos eles atendem tanto âs características poéti­
cas que apontamos quanto qualquer obra em “verse”
que outros tempos tenham produzido. Assim — se
não nos quisermos curvar ao estabelecido pela evolução
semântica do vocábulo “poesia”, chamaremos assim
tôda obra literária em que a nomeação ultrapasse em
significativa proporção o relato dos objetos ■ — pouco
6 8 ---- MÁRIO FAUSTINO

importando a profundidade, a importância, a “beleza”


desses objetos, bem como pouco importando os patrões
formais mais ou menos rítmicos, mais ou menos regu­
lares adotados pelo autor -—•e denominaremos “prosa”
tôda obra literária em que o relato dos objetos ultra­
passe em proporção substancia] a nom eação dos
mesmos: sêres, coisas, idéias. Creio que, à luz da
boa lógica, temos tanto direito a êsse uso da palavra
“poesia” quanto um Carlyle, ao dizer que “poesia é
o pensamento musical”, ou um Shelley, ao dizer que
“poesia é o registro dos momentos melhores e mais
felizes dos espíritos melhores e mais felizes.
~ ?I
,—< . . . ou um Croce, ao dizer que a “poesia é
o ocaso do amor na eutanásia da recordação.”
— Donde se conclui, para vergonha nossa, que
até os maiores poetas e pensadores, não hesitaram,
por amor da “frase”, em perder o respeito devido à
arte que tanto amavam. (1956)
SECUNDA PARTE
CONCRETÍSMO E POESIA
BRASILEIRA

momento era que se encontra aberta (1957),


O no Ministério da Educação, a exposição de arte
concreta, em que um grupo de poetas de vanguarda
se junta a escultores, pintores, gravadores e desenhis­
tas, num esforço em prol da solução de alguns dos
aparentes impasses estéticos de nossa época — êsse
momento julgamos oportuno para chamar, data vênia,
a atenção do leitor honesto para alguns aspectos vitais
da agonia em que se debate a poesia no Brasil.
Essa arte parece-nos encontrar-se, neste instante,
neste país, na situação que passamos a descrever do
modo mais objetivo que nos permitem os preconceitos
e inclinações de que não estamos livres por nossa
própria humana condição. Há o sr. Carlos Drummond
de Andrade. O sr. Carlos Drummond de Andrade
é dono do mais ponderável corpo de poemas que já
se formou em nossa história literária. O sr. Carlos
Drummond de Andrade, era quem muitos se apressam,
periodicamente, em apontar os sinais da descadência
(o poeta os estimula publicando, vez por outra, versos
bem abaixo de seus próprios “standards” ), o sr. Carlos
Drummond de Andrade, de quando em quando, aparece
com um poema como aquele Elegia, do Fazendeiro
d o Ar, ou como certo poema publicado recentemente
em O Estado de São Paulo, comprovantes de ainda
7 2 ---- MÁRIO FAUSTINO

ser êíe uma das duas pessoas vivas que melhor escre­
vem em verso no Brasil.
Trata-se, também, ao lado de Jorge de Lima, de
um dos solitários habitantes do andar mais alto a que
já chegou nossa expressão poética. Mas a não ser
que o sr. Carlos Drummond de Andrade apareça de
repente com uma auto-revolução bem mais radical do
que a processada entre A R osa do P ovo e os N ovos
Poem as, predecessores do Claro Enigma, a não ser
que o sr. Carlos Drummond de Andrade rompa subi­
tamente com todo um sistema ético e estético —■- a
não ser essa remota possibilidade, é difícil enxergar
nele uma solução eficiente para os problemas que
dificultam a ação poética no Brasil. O sr. Carlos
Drummond de Andrade só age poèticamente através
dos poemas que publica. Não escreve a sério sôbre
poesia. Não faz crítica séria de livros de poesia. Ao
que saibamos não discute a sério poesia, nem oralmente
nem por escrito. Cala-se. Não manifesta grande
interesse pelo progresso da Poesia. Ê, quando muito,
um “master.” Não é um “inventor”, não é um “empre­
sário.” Nunca seria um Pound, nem mesmo um Eliot.
Há o sr. João Cabral de Mello Neto. O sr. João
Cabral de Mello Neto é a outra pessoa das duas que
melhor escrevem em verso no Brasil. Jovem. Con­
tínua capacidade de renovação, Zeitgeist, Volksgeist.
Êle e o sr. Guimarães Rosa são os únicos escritores
crismados do Brasil —- há decerto uns outros, porém
mal estão batizados — que conseguem escrever, atual­
mente, com um ôlho na nação e no tempo e o outro
na arte. O sr. João Cabral de Mello Neto sabe que
a poesia tem problemas culturais, políticos, éticos, esté-
tivos. Talvez não possua ainda um corpo de poemas
capaz de rivalizar com o do sr. Drummond. Mas tem
sôbre este certas vantagens: mostra-se mais vivo (como
CON CRETISMO E POESIA BRASILEIRA 73

era de esperar), atua mais no sentido de puxar o


cordão da poesia brasileira em suas evoluções por
outras praças, Todos esperamos tudo do sr. João
Cabral. Todavia, êíe tampouco basta como tábua de
salvação: em muita coisa age mais ou menos como
o sr, Carlos Drummond, que de certa maneira con­
tinua, em verso como em atitudes. É, pelo menos
no momento, mais “inventor" que o sr, Carlos Drum­
mond. Mas nada tem do "condottieri’’ poético de
que necessitamos. Faz sua "vanguarda” em casa.
Tem todo o direito de escolher seus caminhos: nasceu
para umas coisas, não para outras. Não resolve de
todo nosso problema.
Há o sr. Manuel Bandeira, É o Poeta Brasileiro.
Ê o único poeta “brasileiro.” Isso não tem muita
importância, pois no Ocidente os nacionalismos lite­
rários estão desaparecendo com a mesma rapidez com
que em certas nações desapareceram os regionalismos.
Escrevia durante a primeira guerra mundial poemas
sob qualquer aspecto mais modernos, mais atuantes
e mais importantes que uns noventa por cento do que
hoje se publica em verso no país. É um intelectual
de grande classe. Competente, honesto. Alguns
grandes poemas, dentro de certas faixas. Um Heine
silvestre. Ama a Poesia e não apenas a sua. Um
de nossos melhores tradutores (salvo o mal gôsto de
certas escolhas: Langston Hughes {?), etc.). Pro­
move a poesia. Encarna-a entre nós. Mas tomou
(e dificilmente poderia ter sido de outra maneira:
os Hugo não raros) já há bastante anos, uma vereda
lateral. Publica de quando em quando um poema
engraçado, até mesmo, para variar, um bom poema à
sua moda. E de quando em quando um poema lamen­
tável. Mas isso tudo é muito natural e todos só
temos que dar graças aos deuses pela existência do
74 ---- MÁRIO FAUSTINO

sr. Manuel Bandeira. Êle, contudo, é claro, tampouco


nos resolve o problema. Sua poesia está feita, publi­
cada, consagrada. Descansa em paz nas retinas e
nos lábios dos muitos que a amam, nós inclusive,
Hoje, graças a êle, todos os menores de 50 anos no
Brasil, normalmente inteligentes, respeitam a poesia
que chamam de “moderna.” Deixou, no entanto, de
atuar positivamente. Isso quanto à sua poesia publi­
cada até hoje que, pelo menos por muitos anos, não
é mais capaz de fecundar as outras, de transformar
a arte. O sr. Manuel Bandeira, todavia, tem mostra­
do, ültimamente, uma capacidade de compreensão e
de renovação rara entre nós. Quem sabe nos reserva
uma surpresa? E é preciso frizar bem que o homem
sempre deu o que pôde, além de sua poesia, fêz crítica,
fêz história literária, ensinou, ajudou. Fêz o que pôde.
Não foi bastante, mas não foi culpa sua,
O finado sr, Jorge de Lima, que está mais vivo
que quase todos os que o sobreviveram, constitui
atualmente uma questão que a ausência de crítica lite­
rária entre nós contribui para deixar por muito tempo
ainda sem resposta. Pode-se dizer que deixou uns
bons poemas regionais, nossos melhores. Deixou
alguns dos melhores sonetos da lingua, tanto no sentido
tradicional como no de renovar uma forma-fôrma,
enferrujada. Deixou a Invenção d e Ovfeu, que con­
tém alguns dos mais altos e dos mais baixos momentos
da lingua poética luso-brasileira. O poema é uma
“mêiée” péssimo-ótima. É barroco. O barroco é a
pior coisa que já houve em arte, Mas é o melhor
poema da língua, afinal de contas, melhor até mesmo
talvez que Os Lusíadas. O sr, Jorge de Lima, con­
tudo, em suas revoluções, não incendiou lá muitos
dos templos a que devia ter ateado fogo. Libertou-
nos de muita “sintaxe”, de muito cacoete — materiais
CONCRETISMO E POESIA BRASILEIRA ---- 7 5

e formais — porem estimulou outros. Ê muita coisa.


Mas não basta.
Há a sra. Cecília Meireles. Essa senhora é um
milagre. Ê um dos melhores poetas de seu sexo
que já houve em qualquer época, em qualquer lingua.
O que não é dizer muito, nem interessa muito ao nosso
problema. É tão competente quanto o sr. Manuel
Bandeira. É dizer muito, num país de sensacionais
incompetências. Ê lima intelectual de grande classe.
Ê dona da " poesia -canção” em nossa lingua viva. Não
discorre lá muito bem não é grande coisa em colocar
idéias e fatos em ação poética, mas ninguém canta,
entre nós, melhor que ela. Ê também autora do mais
harmonioso livro de poemas já publicado no Brasil:
o Cancioneiro da Inconfidência. Cecília Meireles
ocupa espaço indisputado. É inútil querer imitá-la
como alguns jovens de ambos os sexos tentam vez
por outra. É melhor que a Gabriela. Muito melhor
que aquelas uruguaias. Infinitamente melhor que a
Florbela Espanca. Mas está no seu canto, no Cosme
Velho, trabalhando como ninguém, escrevendo poemas
bons ou apenas sofríveis, aqui e ali um grande, mas
nem em pessoa nem em verso consegue agir com
muita fôrça no sentido transformador. A sra. Cecília
Meireles é. A sra. Cecília Meireles está. Mas não
puxa nem empurra. Aliás, não seria cavalheiresco
exigir tais violências de uma senhora.
Há o sr. Murilo Mendes. O sr. Murilo Mendes
andou querendo fazer surrealismo no Brasil. Não
conseguiu. O surrealismo é uma atitude filosófica,
antiliterãria, um sistema de vida. O sr. Murilo Men­
des é católico. Mas, en passstnt, escreveu bons poe­
mas, sobretudo bons versos. O que é muito, se o
compararmos com alguns até mais célebres. Depois
escreveu aquelas coisas sôbre Ouro Preto. Trata-se
7 6 ---- MÁRIO FAUSTINO

de um dos poucos intelectuais cultos do Brasil. Mostra


que nem só de poesia vive o poeta. Sabe de música.
Sabe de artes plásticas. Escreve bem sôbre uma e
outra coisa. Tem exercido salutar influência sôbre
alguns "jovens. Tem classe de intelectual. Mas tam­
bém não chega.
O sr. Vinícius de Moraes. Poemas mais, poemas
menos, até’ chegar ao Poem as, Sonetos e Baladas *—
um dos melhores volumes de poesia já surgidos no
país. Fôrça e saúde. Halteres poético. Freud. Tinha
muito para vir a ser um grande poeta. De repente,
não se sabe o que aconteceu, foi viajar e começou
a mandar de longe, para os jornais, uns poemas que
não eram. Continua fazendo coisas que não são. Fêz
aquêle Orfeu. Publicou outro dia um mau poema sôbre
o operário. O sr. Vinícius está de quarentena. Sus­
penso de ordens. Pelo menos por enquanto (pode
e deve ficar bom de repente) não nos serve.
O sr. Cassiano Ricardo. Não era grande coisa,
um ou outro verso melhor, até que um dia apareceu
com dois bons livros: o Jo a o Torto e o Arranha-Céu
d e V idro. Como não bater palmas? Nesses dois livros
atinge o plano da maioria dos referidos acima. Muitos
altos e baixos, porém. E publicou, recentemente, num
jornal, um poema que também não era. Os poetas
nacionais não agem bem publicando poemas inéditos
em jornais. Geralmente não dá certo. Deviam fazer
crítica, falar-nos sôbre poesia, sôbre suas experiências
com esta, e assim por diante. O sr. Cassiano Ricardo
também não resolve nosso problema.
Quanto aos maiores de trinta, melancòlicamente,
é tudo. Não pense o leitor honesto que esquecemos
alguém. Aqui não há “etc.” No etc. os críticos tími­
dos se abrigam da possível perda de rendosas amiza­
des. No etc. refugiam-se os poetas que ficam sobran­
CONCRETISMO E POESIA BRASILEIRA — 77

do na hora das citações. Aqui, entretanto, não há


etc. O máximo que podemos ter esquecido é um ou
outro verso, um ou outro “achado.”
A “geração de 45” —
“íls, idexistent pas; leur
ambience leur confèrc une cxistence.” Meia dúzia de
bons sonetos, mas isso não mata fome: soneto é hovs-
d ’oeuvre.

Há também os rapazes cngagés, interessados,


marxistas. Dêles há a dizer que o marxismo ingênuo
é um dos dragões devoradores de talentos em nossa
terra. Faz pena ver, aqui e acolá, um rapaz com
jeito para as palavras, perdendo-se em temas falsos,
forçados, ocos: a “aurora nova” et al. . . Problemas
políticos-estéticos há muito resolvidos noutras plagas,
aqui ainda consomem energias. Poesia diretamente
interessada senhores, só em grandes situações histó­
ricas: Miguel Hernández na Guerra Civil, Paul Eluar
líder da Resistência. Drummond aqui, lendo jornal
e ouvindo rádio, a tremer por Stalingrado. Maiacó-
visque na industrialização soviética. Ou então tôda
grande poesia, que tôda grande poesia é óbviamente
interessada: re. Milton, re. Dante. Mas poesia "mar­
xista” em serenos e seguros escritórios, com emprêgo
público garantido, apartamento na Caixa Economica,
etc., não pode. O resultado é o que se vê: maus poetas
e maus marxistas, no fundo uns burgueses de Charle-
ville mascarados de agitadores catalães.
Basta quanto à criação. Quanto à teoria e a
crítica, há uns razoáveis trabalhos de documentação,
de “textual collation”, de comentário, de biografia.
Tudo ao nível do bonzinho. Em Portugal se faz bem
melhor. De poética não há nada, a não ser esta
7 8 ---- MÁRIO FAUSTINO

ou aquela ruminação de trabalhos estrangeiros. Os


críticos ‘ medalhões’', até legíveis quando falam em
romance, são risíveis quando se metem com poesia.
Absolutamente não residem na filosofia desta.
Quanto à crítica de poesia propriamente dita, a
não ser um ou outro trabalho ou trecho de trabalho
de mortos como Mário de Andrade e Oswald de
Andrade, ou de vivos como Augusto Meyer, Antonio
Houaiss, Oliveira Bastos, tudo é silêncio, Nossos
críticos — é verdade que há uns novos se ensaiando
melhor -—• ao analisarem um livro de poemas, falam
sôbre o autor, a noiva do autor, a gravata do autor,
o bairro onde mora, suas manias, complexos, paranóias,
seus antepassados físicos e intelectuais, seu lugar na
estante — se esquecem do importante: do poema e
do efeito positivo, negativo, indiferente, do livro em
questão sôbre a lingua.
Vida literária, emulação, reuniões sérias, leitura
de poesia inédita, troca de experiências, debates, nada
disso temos. Quando se conversa sôbre um poema,
ornais que sai, em geral, é o "tá bom", o “muito ruim”,
o ”é uma beleza.” Em lugar disso tudo, há o fenô­
meno amizade, o mesmo que se-verifica em nossa admi­
nistração, em nossa política: meu amigo escreve bem,,
meu inimigo escreve mal. Você é um bom rapaz,
simpático, não irrita a gente? Seu poema está ótimo.
Ê um sujeito pedante, perigoso, lê mesmo os livros,
é franco, implicante? Seu poema é, quando muito,
“erudito,” bem escrito, mas não é poesia.
Mas afinal, dirá o leitor honesto, de que precisa
a poesia brasileira? Precisa de dinheiro. De uma
estrutura econômica estável como alicerce. Precisa
que o Brasil seja rico e auto-confiante e independente
em todos os sentidos. Precisa de universidades, enci­
clopédias, dicionários, editoras, cultura humanística,
CONCRETISMO E POESIA BRASILEIRA ---- 7 9

museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de


verdade, agitação, coragem. Precisa de contar com
uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela
polícia e com uns terceiros que ao mesmo tempo leiam
provença? e ameacem a sociedade. Isso sem contar
com uns dois ou três cuja poesia realmente consiga
levantar o povo.
Na falta disso, no momento, precisa-se talvez de
um homem, de um que seja os três andrades ao mesmo
tempo: Mário, Oswald, Carlos. A cultura, a revo­
lução, a boa poesia. E, sobretudo, que ame esta última
acima de si mesmo ■ —■ que oriente, que ajude, que
ensine, que empurre.
Na falta disso, mais uma vez, e na falta dessa
personalidade, a poesia brasileira estava precisando,
desesperadamente, de um acontecimento, de um “shake-
up.” Ai um grupo de três rapazes, dois dos quais
irmãos, e aos quais outros ir-se-iam com o tempo
acrescentando, reune-se em São Paulo para tratar de
poesia. Têm os instrumentos: cultura geral, em dia,
conhecimento sério das outras artes, sentimento da
época, sentimento do mundo, titanismo, espírito revo­
lucionário, uma ou duas línguas mortas, meia dúzia
de linguas vivas, vontade de ler, de trabalhar, de
escrever, de “fazer o nôvo”, Lêem (direito) os ale­
mães e outros centro-europeus, os americanos, os
ingleses, os franceses, os italianas. João Cabral já se
estava encarregado do que há' de bom em espanhol.
Incorporam devidamente (e não como fizeram os
nossos “parnasianos” e os nossos “simbolistas” ) essas
tradições culturais à nossa cultura. Sabem que Mal-
larmé e Pound são mais importantes para o progresso
da poesia do que Baudelaire e Eliot. Formulam e
discutem problemas culturais, sociais, filosóficos e, em
especial, estéticos. Nos domínios do verso chegam
8 0 ---- MÁRIO FAUSTINO

todos três, rapidamente, ao nível do melhor que já


se fizera antes dêles no Brasil, frequentemente, no
detalhe, ultrapassando êsse nível. Saem dos domínios
do verso e tentam novos caminhos poéticos. Mas
estão em São Paulo e as distâncias, neste país, repre­
sentam mais do que em geral se pensa. Muitas das
poucas pessoas que aqui no Rio tomam a sério a poesia,
levam muito tempo ainda sem ouvir falar nos três:
Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Augusto de
Campos.
Ao Rio chega, vindo de São Luís do Maranhão,
com um ótimo livro debaixo do braço, um outro rapaz
em condições semelhantes. Traz consigo, assimilado,
o que há de melhor nas tradições poéticas de França,
Portugal, Brasil. Faz surrealismo de verdade, pela
primeira vez, entre nós. É o senhor Ferreira Gullar,
poeta e crítico de artes plásticas —' pormenor signi­
ficativo.
Aqueles três em São Paulo, êste último no Rio,
constituem a única fôrça de vanguarda séria que há
no Brasil de hoje e (talvez com as exceções isoladas
de Mário e de Oswald) a única fôrça de vanguarda
séria no Brasil. Poesia que se alimenta exclusiva­
mente de tradições, por mais ecléticas e sólidas que
sejam estas, é poesia fadada a murchar. Era o que
estava acontecendo com a nossa, antes dêsses rapazes,
o mais velho dos quais não tem trinta anos.
Estreava um poeta: ia-se ver, era um drummon-
dzinho, uma ceciliazinha, quantas vêzes até mesmo um
schmidtinho. O pior era quando se tratava de um
Eliot “né” em Minas, um Rilke do Ceará, um Valery
de Niterói. Quando não se tinha sorte, era tolice
mesmo. Dos mais velhos, como já vimos, os mais
bem sucedidos eram os que se conseguiam manter
CONCRETISMO E POESIA BRASILEIRA 81

onde estavam, à exceção do contínuo progresso do


sr. João Cabral, que ainda não parou e que não é
bem dos mais velhos.
Tal era e tal é a situação da poesia brasileira
no momento em que se fala em poesia concreta. A
exposição aberta no Ministério da Educação, reune,
entre obras das artes reconhecidamente visuais, poemas
concretos de Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de
Campos, Ferreira Gullar e de alguns outros por
enquanto menos importantes. É para êsses poemas
que vimos pedir a atenção do leitor honesto desta
página, cujo orientador -—• que escreve estas palavras
deixa esclarecido não ser, pelo menos ate hoje,
concretista, não tendo o menor interesse pessoal na
experiência tentada por seus colegas de São Paulo
e pelo sr. Ferreira Gullar. Apenas acontece que acre­
dita nas seguintes coisas:
1 — Que o “verso”, no sentido em que a palavra
tem sido empregada até agora, se encontra, no momen­
to, em crise, em todos os países do Ocidente; está
tudo parado na Inglaterra, na Rússia, nos Estados
Unidos, na Alemanha, na Itália, na França, na Espa­
nha, em Portugal, na América Espanhola ao que
se saiba;
2 — Que essa crise está formulada, pelo menos,
desde Mallarmê de Un coup d e dés;
3 — Que a solução para essa crise tentada por
Mallarmê é retomada, de maneiras diversas, por um
Apollinaire, por um Schwitters, por um Pound, por
um Cummings, entre outros, é um caminho pelo menos
dotado de logicidade, de consistência e de harmonia
com muitas coordenadas do espirito de nossa época;
chega mesmo a ser uma das duas únicas tentativas.
8 2 — ■ MÁRIO FAUSTING

sérias de resolver a crise: a outra sendo o surrealismo


francês, de Rimbaud ou de Breton até Artaud;
4 — Que a poesia é, ao mesmo tempo, idéia,
som e imagem; discurso, canto e padrão visual; que
seus meios e seus fins não devem ser confundidos
com, os da prosa; e que a poesia, sobretudo em nossa
época, não pode ignorar os rumos tomados pelas demais
artes;
5 -— Que a poesia brasileira necessitava, para
tirá-la da pasmaceira em que ainda se encontra, de
um movimento de vanguarda sério e vivificante;
6 — Que os srs. Décio Pignatari, Haroldo de
Campos e Ferreira Gullar já eram, antes do concre-
tismo, os melhores poetas brasileiros aparecidos depois
do sr. João Cabral de Mello Neto; que a competência
e a honestidade intelectual desses senhores estão acima
de suspeita; e que, portanto, têm mais que quaisquer
outros os títulos suficientes para encabeçar o movi­
mento vanguardista de que necessitávamos.
7 •
— Que a experiência concretista, na melhor
das hipóteses, poderá salvar a poesia brasileira do
marasmo discursivo-sentimental em que se encontra
(apesar dos esforços de João Cabral de Mello Neto
e de alguns outros), provendo nossa linguagem poética
de novos campos de ação perceptivos e expressivos;
que, na pior das hipóteses, servirá como tôda boa van­
guarda, para agitar positivamente um ambiente apático,
para chamar a atenção da retaguarda para os perigos
que jazem à frente, para dirigir a atenção dos demais
poetas rumo a objetivos importantes até aqui relegados
a injustificável desprêzo;
CONCRETISMO E POESIA BRASILEIRA — 83

8 — Finalmente, que os concretistas, como artis­


tas de vanguarda, têm todo o direito, e quiçá mesmo
o dever, de serem extremistas, combativos, prosei itis-
tas, exclusivistas, etc. Cabe, aos que não embarcam
em sua arca, levá-los a sério, aproveitar-lhes a expe­
riência, aplicá-la noutros setores e de outras maneiras
incorporá-la, enfim, à corrente viva de nossa poesia.
STÉPHANE MALLARMÉ

tépha NE M allarmé (1842-1898): a unidade


S homem-poeta, poeta-homem indivisível. A um mun­
do infame como ainda é o nosso, Rimbaud, que o rejei­
tava, reagiu rejeitando também a própria poesia. Mal­
larmé, que o rejeita, reage refugiando-se na poesia.
Em todo um século ninguém é mais poeta; ninguém
celebra e personifica mais que êle a dignidade, a.
nobreza, a "divindade” da Poesia; ninguém faz tanto
da poesia um instrumento, um meio e uma justificação
de existir. Ninguém se aproxima tanto quanto êle
do Poiêtes, do que faz: seus poemas são atos e são
coisas •— não apenas celebrações, elogios, louvores,
ou censuras, ou lamentos. São novas maneiras de ser
das palavras e das coisas.
Mallarmé, como Rimbaud, recusa viver o mundo
que rejeita. Recusando vivê-lo intensamente, recusan­
do fazer nesse sentido imediatamente vivencial, a sua
Poesia, aproveita seu tempo de vida em três nobres
tarefas: a de criticar (sempre através do fazer poemas,
do fazer) uma tradição poética, revivendo-a através
de um processo seletivo, deixando cair os membros
mortos e reproduzindo os realmente vivos; a de criar
poemas (palavras-coisas conjugadas, orgânicamente,
em padrões, senão totalmente novos, pelo menos reno­
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 8 5

vados), que são, ao mesmo tempo, sedes e correntes


de beleza; documentos de auto-crítica existencial; e
remédios-fortificantes-operações-plásticas para a língua
em que são escritos e para a própria linguagem huma
na; e, finalmentc, lançar os fundamentos de

ricn ou prcsqun urt


de nada ou quase uma arte,

Mallarmé ainda é Baudelaire: através de tôda a


sua poesia, de sua atitude de Poeta-Homem, porém,
em particular, em poemas como Le Gttignon; Mallarmé
ainda é Rimbaud {L es F en êtres); ainda é, até mesmo,
um parnasiano — simbolista, conquanto bem melhor
que os outros «— como em Apparition, Porém Mal­
larmé reconcilia -— antes de (e paralelamente a) ser
êle mesmo < — a lingua francesa com Racine, Sob
êsse aspecto, Mallarmé já é Valery (o qual pouco
passa disso); e temos: H erodiade, L ’Aprés~Midi d ’un
Fatine, Toast F ú n ebre.. . A obra do próprio Valery,
a obra poética, não passa, talvez, da acentuação e
da diluição desse Mallarmé, dêsse Racine renovado,
desdramatizado, superlirificado e ainda mais bizantino
que o próprio.
Mas há um outro Mallarmé que é mais Mallarmé
que todos, Que não é mais Gautier, nem Poe, nem
Baudelaire, nem Verlaine, e que nunca será Valery.
Um Mallarmé que é uma tôrre absoluta e solitária,
um animal sagrado e estéril, sem descendência mais
indispensável: o grande Mallarmé de Plusieurs Sonnets
(Quand Vombre menaça de ía fatale loi > — L e viege
le vivace et le bel aujourd hui • — Victorieusement fui
le suicide beau — Ses purs ongles trés haut dédiant
leuv onyx), de H om m ages et Tombeattx, de Autres
Poèm es et Sonnets, e, last not the least, das três peque­
86 — MÁRIO FAUST1NO

nas obras-primas, de padrão quase igual, que são o


Satut e os dois poemas Au seul souci de voyager e
Toute Vâme résumée.
E há, finalmente, o derradeiro Mallarmé, o Mal-
larmé inacabado do qual só nos resta Igitur e Un
Coup d e jÜés. O Mallarmé que pretendeu renovar a
prosa poética (Igitur), a poesia-não-em-verso (Igitur
e Un Coup de D és — embora Mallarmé insistisse que
êste é em verso: apenas dispersado), e a poesia espa­
cialmente formulada (Un Coup d e D és). Segundo
o testemunho de Valéry, sabemos que êsse Mallarmé
apenas começou tal obra renovadora, A morte o inter­
rompeu quando apenas o Coup d e D ês estava pronto.
Há também outros Mallamés que teremos de deixar
de lado: o dos poemas de infância e de juventude
(alguns surpreendentes); o dos versos de circunstância
(alguns bem melhores e mais importantes que muita
poesia séria); o Mallarmé tradutor de Poe; o Mallarmé
grande prosador, influenciador, inclusive, de um Proust
e renovador de um Flaubert; o Mallarmé esteta; o
Mallarmé-ganhador-do-pão-de-cada-dia: L es mots an-
glais, L es dieux antiques. . ,

II

Conversemos, em primeiro lugar, sôbre o Mallarmé


ainda Gautier, ainda Verláine, ainda sobretudo Baude-
laire. Alguns grandes poemas que o próprio Baudelaire
assinaria e que alguém menos avisado pensaria ser
dêle. Em L e Guignon encontramos, contudo, um verso
que é Mallarmé êle-mesmo e que vale um volume:
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 8 7

Comtne un vierge cheval écume de tempête


(Virgem cavalo, espuma de tormenta)

Entretanto, nessa mesma fase (lembrar que em


qualquer edição de Mallarmé as diversas fases se
apresentam de mistura), temos em Apparition, a
"reductio ad absurditm” do próprio Mallarmé:

La lune sattristail. D es sêraphins cn pteurs

É o mau simbolista, nada mais do que parnasia­


nismo rendu fiou (sem as qualidades de exatidão dos
bons parnasianos), poema que tem deliciado moçoiías
semicultas há lustros e mais lustros, mas que é deso­
nesto e ridículo. Coisa que não acontece com o mara­
vilhoso Brise Mavine, simbolista, obra-prima da escola,
Baudelaire elevado a certas potências, e que começa
com o grande verso

La chair est triste, hélas! et j ’ai lu toas les livres,


(Ài de mim, a carne é triste e li todos os livros).

Um pouco coup de théatre, mas grande verso, seja


como fôr. Aumône, da mesma fase (nota bene: fase,
aqui, não é no sentido temporal; Mallarmé, de quando
em quando, podia voltar às fases anteriores, sem esque­
cer que escreveu poucos poemas), é Baudelaire-Rim-
baud sem graça.
Na segunda fase (Mallarmé-Racine-Valéry) te­
mos o grande Las dc Vàmer repos oü ma paresse
offense, que Mallarmé, seguindo a moda da “chinoi-
serie’', termina com um verso digno de Li Tai Po:
8 8 — ■ MÁRIO FAUSTINO

N an loiti d e trois gtands cils d ’ém eraude, voseaux.


(Não longe de três grandes cílios de esmeralda,
caniços)

Talvez nessa mesma fase — ou outra, especial,,


recorrente em muitos poemas, o Mallarmê retórico -—
temos também VAzuv, o celebérrimo L ’Azuv.

Je suis hanté. L'Azuv/ VAzuv! VAzuc! VAzur!

E há os longos poemas -— que muita gente pensa


conterem o maior Mallarmê -—- Jdérodiade (lembra,
ao mesmo tempo, qualquer Racine e a Estella de Lope
de Vega: Mallarmê teria lido?), VAprés^M idi d ’un
Faune, Toast Funèbte. Nenhum dêles é de nosso gos­
to. Mas H érodiade é um exemplo de como sustentar
um tom e um nível através de dezenas e dezenas e
dezenas de versos uns dignos dos outros. Muita coisa
que mais tarde se tornaria típica de Valéry: as cha­
tíssimas hipérboles, os efeitos baratos, as imprecações,
as “pierreries” . . . O mau Mallarmê, que afasta dêle
tanta gente bem intencionada. O C antique de Saint
Jean, versos curtos, que termina o poema é, entretanto,
uma perfeição, já caindo no Mallarmê seguinte, no
melhor. O Cantique e pedra-de-toque do princípio ao
fim. Um show de dicção, de música, de mot~juste.
Exemplo:

E t ma tête suvgie
Solitaive vigie
Dans les vols triomphaux
D e cette faux
(Minha cabeça aparecida vigia solitária nos
vôos triunfais desta foice)
STÉPHANE MALLARMÊ ---- 8 9

L A p tè s M idi d ’un Faune é a lingua poética no


que tem de melhor e de pior, de mais perigoso e de
mais encantador. É Racine estemporalizado, eterni­
zado. É aquilo que iria encontrar seu ápice no Cime-
tiere M atin de Valéry. É Pour triomphe la faute
idéale de roses.
(Como triunfo a ausência ideal de rosas);
Ê

O bords sicilictis d'un calme mavécage.


(Oh margens sicilianas de um pântano tranquilo).

São Charmes. São os Prelúdios de Debussy. É


bonito: agrada a zona "suspiro” do espírito de cada
um. Mas interessa?
Dessa fase o melhor é, para nós, o Toast Ftinebre,
que adquire, com tudo isso, um jeito severo e nobre,
coagulado no título. Nesse poema, tôda a tarefa
mallarmeniana se revela em:

Si ce n e s t que la gloire ardente du métier.


(Ainda que seja apenas a glória ardente do "métier")

O Toast termina por uma parelha, por um tro­


cadilho que constitui uma das maiores touchstones de
Mallarmê:

Le sépulcre solide ou git tout ce qui nuit,


Et Vavave silence et la massive \nuit.
(Sepulcro sólido onde jaz tudo que estraga,
o avaro silêncio e a noite maciça).

Entre a segunda e a terceira fase encontramos a


ponte que é Prose pour des Esseintes. Temos aí:
90 — MÁRIO FAUSTINO

Oui, dans une ile que Vait charge


D e vue et non de visions
Toute fleur sétalait plus large
Sabns que nous en devisions.

Telles, immenses, que chacune


Ordinairement se para
D'un lucide contour, lacune,
Qui d es jardins la sépara.

(Sim, numa ilha que o ar carrega de vista e não


de visões, tôda flor se expunha mais ampla sem que
nós sobre ela palestrássemos. Tão grandes, imensas,
que cada uma ordinariamente se revestiu de um lúcido
contorno, lacuna, que a separou dos jardins).

III

O terceiro Mallarmé seria preciso transcrever,


traduzir, comentar por inteiro, verso por verso, pala­
vra por palavra. Ai é Mallarmé ao mesmo tempo o
Mestre e o Inventor. Aí êle não pode ser acusado
de bizantinismo: seria tomar parte pelo todo, por mais
que um Benda pense o contrário. Aí Mallarmé leva
um ponto máximo, até hoje não mais atingido, uma
linguagem (a poética) e uma lingua (a francesa).
Êsses poucos poemas é que fazem dêle • — justamente
com as experiências de “inventor” de lgitur e sobre­
tudo de lln Coup d e D és — o maior poeta-para-poetas
da lingua francesa, um dos maiores de todos os tempos
e sem dúvida alguma o maior destes últimos cem —
ou duzentos — anos. O leitor vai sorrir, muito supe­
rior, achando que é exagero. Mas veja isto:
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 9 1

SA LU T

Rien, cette écttme, vievge vers


À ne designer que la cottpc;
Tclle loin se noic une troupc
De sirenes mainte à len vers.

N ous naviguons, ô mes divers


Amis, moi déjà sur [a poupe
Vous 1'avant fastueux qui cottpc
L e flot de [ oudres et d'hivers;

Une ivresse belle m en gage


Sains craindve même son tangage
D e porter debout ce salut

Solitude, récif, étoile


A n’importe ce qui valut
L e blanc souci d e notre toile.

Temos neste poema, entre inúmeras outras coisas:


um objeto vivo, um objeto nôvo; o padrão —'
dos versos, das palavras, das estrofes, da própria
forma (é inexplicável) do poema • — se impõe a tôdas
as nossas vistas (imagem, ouvido, idéia), a todo o
nosso nervo ótico, como ao mesmo se impõe um cristal
de gêlo, uma estrela no espectro, um pássaro subita­
mente colhido pelo olhar;
— palavras novas, uma por uma, que, além de
guardarem seu sentido rotular comum, seus signos,
além de guardarem e adquirirem novos sentidos rela­
cionais de combinação, adquirem uma nova persona­
lidade, tornam-se insubstituíveis, intraduzíveis; uma
92 MÁRIO FAUSTINO

nova natureza que apenas parte da outra natureza que


íhe deu origem.
— a individualização, a universalização de certas
palavras (écume, salut; solitude; récif; étoile, etc.)
sem nenhum recurso à redistribuição espacial;
— verdadeiros ideogramas (o poema inteiro é um
ideograma, isto é, aproximadamente, uma imagem-
conjunto-de-imagens, entreligadas de todas as maneiras,
e que choca nossas percepções tanto por cada uma
das partes como por um todo que é a soma dessas
partes mais alguma coisa) como

solitude, récif, étoile,

crês palavras soltas mas que tanto e tão inexplicàvel-


mente se relacionam que passam a ser, também, qual­
quer coisa como

solituderécif étoile,

um todo nôvo, onde cada parte é válida (e se acende


e reacende como num anúncio luminoso) e onde o
todo é mais alguma coisa que a soma das partes.
À tradução e a traição em insuficiente linguagem
linear dêsse poema seria:
“Nada, esta espuma, vergem verso, designando
apenas a taça ( coupe significa ai, simultâneamente,
taça, fonte, corte — corte de verso, também e sobretudo
.—’ traçado, esbôço, ação de partir as cartas de um
baralho, etc,; uma ambiguidade dessas que servem não
para obscurecer, mas para enriquecer e personalizar
a palavra); igual como ao longe se afoga uma tropa
de sereias, muitas delas às avessas, ao contrário.
Navegamos, oh meus diversos (outra ambiguidade)
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 9 3

amigos eu já sôbre a pôpa, vós a dianteira faustosa


que corta o fluxo de raios e de invernos; uma bela
embriagues se apossa de mim, que não temo nem
mesmo seu balouço (balouço de navio e de quem
está bêbedo) de erguer de pé esta saudação — solidão,
redif, estréia — ao que quer que tenha valido a branca
inquietação de nossa tela.”
E veja também esta homenagem ao nosso Vasco
da Gama, ao espírito de descoberta, de aventura, à
nnvitation au v oy ag e. . .

Au seul souci de voyager


Outre une Inde splendide et trouble
—- Ce salut soit le messager
Du temps, cap que ta poupe double

Comme sur quelque vergue bas


Plongeante avec la caravelle
Êcumait toux jours On ébats
Un oiseau d'annonce nouvelle

Qui criait monotoment


Sans que la barre ne varie
Un mutile gisement
Nuit, désespoir et pievrerie

Par son chant reflété ju sqau


Sourive du pále Vasco.

Cuja tradução-traição — linear, “prosaica”, estú­


pida •—■ seria:
‘‘Com a única inquietação de viajar para além de
uma índia esplêndida e perturbada (ou, turva, obscura)
94 —- MÁRIO FAUSTINO

seja esta saudação o mensageiro do tempo, cabo


que tua pôpa dobra.
Como sobre certa verga baixa — “mergulhante”
junto com a caravela — espumava sempre em folgue­
dos — um pássaro de nova anunciação.
Que apregoava monotonamente ~~ sem que varias­
se a cana do leme — um inútil jazigo (ou jaziga de
minerais) -— noite, desespero e pedraria.
Por seu canto refletido até o —• sorriso do pálido
Vasco,”

O leitor que soube ler o poema viu perfeitamente


que é impossível extrair melhor ■
— ainda que em volu­
mes e mais volumes — o “espírito” que levou Vasco
da Gama a dobrar o Cabo da Boa Esperança, como
é impossível descrever melhor uma perigosa viagem
marítima. Isso sem esquecer tudo que foi dito a pro­
pósito do outro poema — que, repetimos, tem mais
ou menos (como Toute fâme résumée) o mesmo padrão
que êste.
V eja o leitor também, sobre esta fase, os quatro
famosos: Plusieurs Sonnets. Neles encontrará —«
cada um é perfeição insuperável .— coisas como:

L ’espace à soi pareil q u il s'accvoisse ou se rtie


Roule dans set emnui des feu x vils pour témoins
Que s ’est d'un astre en fète allurnê le genie.

( "O espaço, semelhante a si mesmo quer se acres­


ça quer se negue, vai rolando, nesse enfado, fogos
vis à guisa de testemunhos de ter-se acendido o gênio
de um astro em festas” : tradução horrível, ao pé da
letra, superficial, e em ordem direta — apenas para
STÉPHANE MALLARMÉ — 95

ajudar o leitor que sabe pouco ou que não sabe francês:


que sabe ainda menos do que nós),

Ou como o sempre repetido (e mal recitado) :

Le viergc. le vivzicc et le bel aujoucdliui


Va-£-í7 nous déchivcr avec uri coup d'aile iate
Ce lac díiv oublié que haute sous le givve
Le transparcnt glacicv des vols qui n on t pas fui!

(Mais ou menos: ‘‘Será que Hoje, virgem, vivaz


e belo nos vai rasgar com um golpe de asa embriagada
êsse duro lago esquecido, perseguido, sob o gêlo, pela
geleira transparente dos vôos que não fugiram!).

IV

Como se vê, Mallarmé, respeitando aparentemente


a falacíssima sintaxe “tradicional”, faz dela o que bem
entende e associa as palavras à sua maneira, reno­
vando a lingua e criando objetos verbais. É o que
acontece também com os H om m ages et Tombeaux.
Consideremos, um mínimo que seja, alguns aspectos
destas homenagens e desses monumentos funerários,
prestados e erguidos por Mallarmé. No soneto diri­
gido a um amigo que perdeu a mulher:

Sans écouter Minuit qui jeta son vain notnbre


Une veille íex a ltc à nc pas ferm er lo e il
Avant que dans les bras de l ancicn [auteuil
Le suprême tison \n'ait éclairé mon Ombve.
96 ---- MÁRIO FÀUSTINO

{ “Sem ouvir Meia-noite que lançou seu vão núme­


ro, uma vigília te exalta e não pregar o ôlho antes que
nos braços da antiga poltrona o archote supremo
ilumine minha Sombra).”

Isso é mais do que digno dos elegíacos da Anto­


logia Grega. Melhor ainda:

LE T O M B E A U D 'ED G A R PO E

Tel queYi Lubm êm e enfin iétern ité le change


Le P oete suscite auec un glaive nu
Son siècle épouvanté de n av oit pas connu
Que la nuit triomphait dans cette voix étrange!

Eux, cotnme un vil sursaut d ’hydve oyant jadis


Vange
Donnec un sens plus put aux mots de la tribu
Pvoclamèrent tvès haut le sortilège bu
D ans le [lot sans honneur d e quelque noiv m élange,

Du sot et de la nue hostiles, ô gtiefl


Si notve idee avec ne sculpte un bas~relief
D ont la tombe de P o e éblouissante sorn e.

Calm e bloc ic.i-bas chu cun désastre obscur,


Que se granit du moins montre á jamais sa botne
A ux noir vols du Blasphèm e épars dans le futur,

Mais ou menos: “Enfim êle mesmo, tal como


nisso o transformou a eternidade, o Poeta suscita
com um gíádio nu seu século atordoado de não se
ter aprecebido que a noite triunfava nessa voz estra-
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 9 7

iiha! Êles, como vil sobressalto de hidra outrora


ouvindo o anjo emprestar um sentido mais puro às
palavras da tribo — proclamaram bem alto o sorti­
légio bebido na corrente sem honra de alguma negra
mistura. Oh dor! Se contigo nossa idéia do sol e
da nuvem hostis não conseguir esculpir um baixo-
relevo com o qual se ornamente o túmulo de Poe res­
plandecente, tranquilo bloco entre nós tombado de um
desastre obscuro, que este granito ao menos ofereça
para sempre seu limite aos vôos da Blasfêmia esparsos
no futuro.” ).

Veja-se também o túmulo de Baudelaire, o de


Verlaine — onde há a tranquila definição da morte:

Um peu profond vuisseau calotnnié la mort


(Morte, raso riacho caluniado),

o de Wagner, a homenagem a Puvis de Chavan-


nes. Vejam-se também (Mallarmé é preciso ler e
reler inteiríssimo), os Autres Poetnes et Sonnets, so­
bretudo o Surgi de la croupe et du bond, onde se
encontra isso:

N ai[ baiscr des plus fúnebres!


A rien cxpivcr cinnonçant
Une rose dans les ténebves,
A la nue accablante tu e M es bouquins vefermés
sur le nom d e P aphos.

Compreenda-nos bem o leitor: estamos apenas


folheando, juntos, a obra de Mallarmé, e comentando
a importância que ela representa para nós. Nosso
trabalho teria sido bem sucedido se conseguirmos fazer

7
98 ■
— MÁRIO FAUSTINO

com que releiam os que já leram Mallarmé e que


corram a fazê-lo os que ainda não o fizeram. Ou»
a matricularem-se num curso de francês os que não
lêem essa lingua • indispensável, como o inglês, a
um brasileiro interessado em poesia.

M es bouquins referm és sur le nom d e P a p h o s. , .


No sonêto iniciado por êsse verso, terminam as
Poesies, a obra séria, em verso (re, os numerosos “vers
de circonstance” ), acabada, de Stéphane Mallarmé.
Fechados os seus alfarrábios (na palavra P a fo s ) , o
poeta podia perfeitamente apagar a luz e ir deitar-se,
barriga cheia, sôbre seus louros: levara a um máximo
de expressão sua linguagem e sua lingua, empurrara
a poesia para a frente e para cima, deixara lingua
francesa e poesia bem melhores de saúde do que as
tinha encontrado. Ou poderia continuar a repetir-se,
dar maus exemplos aos jovens, escrever bobagens.
Mas tratava-se de Mallarmé ■ — do Rigor, do Titanis-
mo, do Orgulho — e era preciso continuar.
Ou era preciso começar. Porque, para Mallarmé
— Valéry diría a mesma coisa, mais tarde, de seus
próprios poemas — não se tratara, até então, nem
mesmo de poemas, de criações, e sim de “exercícios”,
tôda uma preparação, metódica, ascética, do instrumen­
to com que, um dia, o Poeta trabalharia em sua Obra:
nada mais nada menos que o Poema, o poema defi­
nitivo, o Objeto vivo que refletiría em si mesmo, per-
pètuamente, o Saber Absoluto, o Equilíbrio do Mundo,
canto órfico, inesgotável, a resolver o Universo em
um outro universo, verdadeiro pacto entre o Homem
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 9 9

e o Resto. Uma tomada de consciência definitiva,


órfica e epistemológica, do Cosmos.
Já antes, 30 anos antes, Mallarmé o havia tentado:
Igituv. Fragmento de um poema em prosa <— de
um “conte”, dizia o próprio Mallarmé • — uma narra­
tiva mística, com sua música própria, feita de ecos
especialíssimos, interiores e exteriores, um poema em
prosa, dizíamos, em que o Poeta coloca, recria obje­
tivamente, certas questões últimas do homem, reunidas
na alternativa ser-não-ser. Soprar ou não soprar a
vela. Aproveitar a luz, nesse ínterim, para — o Azar
é que domina — criar uma “constelação”, humilde
desafio lançado pelo poeta à Potência universal. Re­
criar, por meios humanos, a mecânica celeste, Pois
só podemos compreender as estrelas recriando-as com
nossas mãos.
Igituv. em latim, “portanto”, “por conseguinte.”
O poeta é a “conclusão” de um silogismo, cujas pre­
missas o poeta deixa obscuras. H essa conclusão é
a loucura —* a Loucura de Klbehnon é o subtítulo do
poema ~ a loucura de Ilamlet, poderia ser, ou do
Fauno, ou de Herodiade, ou a do herói do Coup de
D és, ou de qualquer outra persona, máscara, de
Mallarmé.
Não estamos procurando interpretar Igituv para
o leitor <— como não procuraremos, mais adiante,
explicar o Coup de Dós. Queremos apenas — além
da tarefa básica de “interessar” o leitor nesse Mallarmé
— oferecer a quem nos lê alguns pontos de referência
a partir dos quais, sua própria tomada de contato com
o poema — fragmento de poema, é verdade, e mon­
tado por outro que não o próprio Mallarmé: como
o conhecemos, Igituv se apresenta da maneira como
foi remendado, a partir de manuscritos do poeta (que
nunca o publicou) por seu genro Edmond Bonniot.
1 0 0 ---- MÁRIO FAUSTINO

Igitar é', também, uma cena de teatro. “Teatro”


no sentido absoluto, maior, órfico, de Mallarmé, A
cena é a mesma do futuro Coup d e D é s : o naufrágio,
o castelo. Como é o mesmo o personagem —• só que
criança em Igitur, ancião, talvez, no Coup de Dés.
Os temas já esboçamos: à meia-noite devem ser lan­
çados os dados, para aproveitar o azar contra o Azar
que domina o mundo. Ser enquanto a vela permanece
acesa. E, depois, a “folie utile”, a loucura útil, única
capaz de justificar o homem.
Trecho de Igitur:

“A Meia-Noite
Certamente subsiste uma presença de
Meia-Noite. A hora não desapareceu por um
espelho, não está oculta em tapeçarias, a evocar
um mobiliado mediante sua vazia sonoridade.
Recordo-me que seu ouro dissimularia na
ausência uma jóia nula de fantasia, rica e inútil
sobrevivência, ou que, na complexidade marinha
e estelar de uma ourivessaría, ler-se-ia o infi­
nito azar das conjunções.
Revelador da meia-noite, êle jamais indi­
cou tal conjuntura, pois aqui está a única hora
por êle criada: e que do Infinito se apartem
as constelações e o mar que permanecem,
exteriormente, recíprocos nadas para permitir
que sua essência, à hora una, crie o presente
absoluto das coisas. E da Meia-Noite perdura
a presença, na visão de um compartimento do
tempo, cujo misterioso mobilado detém um vago
frêmito de pensamento, luminoso rebate do
retorno de suas ondas e de seu primeiro espa­
lhar-se, enquanto se imobiliza (num limite mo-
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 101

vediço) o local anterior da queda da hora


numa calmaria narcótica de eu puro há muito
sonhado; mas cujo tempo se transforma nas
tapeçarias sobre as quais se detém, comple-
tando-as com seu esplendor, o frêmito amorte­
cido, em olvido, como uma lânguida cabeleira
em da face clareada de mistério, aos olhos
nulos, semelhantes ao espelho, do visitante
despojado de tôda significação que não seja
presença.
É o sonho puro de uma Meia-Noite, em
si desaparecida, e cujo reconhecida claridade,
que permanece solitária no seio de sua con­
sumação mergulhada na sombra, resume sua
esterilidade na palidez de um livro aberto,
exposto pela mesa; página e cenário triviais
da Noite, a não ser que ainda subsistisse o
silêncio de uma antiga palavra proferida por
ela e, a qual retornada, essa Meia-Noite evo­
casse sua sombra consumida e anulada por estas
palavras; “Eu era a hora que ine há de tornar
puro.”
Morta havia muito, uma antiga idéia se
contempla como se fôra a claridade da qui­
mera na qual agonizou seu sonho e se reco­
nhecesse no vago gesto imemorial com o qual
se convida a extirpar o antagonismo dêsse
sonho polar, a restituir-se com a claridade qui-
inérica e o texto que se fecha no Caos da
sombra malograda e da palavra que absoluta
a Meia-Noite.
Inútil, o mobiliado consumado que se
dissolverá em trevas como as tapeçarias, já
imersa numa forma fixa de sempre, enquanto
que, clarão virtual — produzido pela própria
1 0 2 — • MÁRIO FAUSTINO

aparição no reflexo da obscuridade, cintila o


fogo puro do diamante do relógio, única sobre­
vivência e jóia da Noite Eterna, a hora se
formula nesse éco, ao limiar dos telões abertos
para o seu ato da Noite: “Adeus, noite que
fui, teu próprio sepulcro, porém que, sombra
sobrevivente, se metamorfoseará em Eternida­
de.’’ (Tradução de José Lino Grunewald).

VI

“Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” —


“Um lance de dos nunca abolirá o Azar.” Azar, aqui,
tem ampla significação: acaso, sorte, destino, fado,
azar, má sorte, boa sorte, neutra sorte, e mesmo (ou
sobretudo?) jogo de dados :o étimo da palavra é
o árabe “az-zahr”, uma espécie de jogo de dados e
o próprio dado. Portanto, “Um lance de dados nunca
abolirá o lance de dados. Ou, “O azar nunca abolirá
o azar.” Sem esquecer a significação tôda especial que
o verbo abolir (como surgir, fugir, submeter, consumir,
etc.) tem para Mallarmé: destruir, anular, demolir,
etc. ,
Uma obra de arte autoconsciente, autodeterminada
a um grau nunca atingido, nem antes nem, talvez,
depois: cada palavra, cada letra, cada espaço entre
palavras, cada espaço entre linhas, a dobra da página
(cada “ideograma” ocupa duas páginas dianteiras),
valendo como um tronco de árvore, cujos ramos são
os versos (Mallarmé mantém o verso, mantém a sin­
taxe, apenas os distribui temporal-espacialmente dum
modo infinitamente mais válido e mais significativo
que o tradicional), tudo releva e significa. Enfim,
a “constelação” sonhada em Igritar, ou, pelo menos,
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 1 0 3

um passo no rumo dela: um organismo criado pelo


homem para refletir o Cosmo e para desafiá-lo no
ato de sua recriação artificial,
O aspecto gráfico do poema. Às dimensões (em
todos os sentidos) dos caracteres. Uma escrita tri­
dimensional cm contraposição á comum, apenas bidi­
mensional. Os conjuntos formados pelo caracteres:
verdadeiros ideogramas vcrbivocovisuais. Um universo
polidimensional, que choca o leitor dc maneira quase-
simultânen. Tudo isso, se não é completamente con­
seguido cm Un Coup dc D es, pelo menos é nele
formulado e resolvido até um ponto nunca antes
sonhado e, depois, bem poucas vêzes atingido (re.
Cummings, Pound, e outros: soluções diferentes, com
maior ou menor êxito e, sem dúvida, com objetivos
nem sempre semelhantes).
Un Coup d e D ês. Um poema sobre o Todo.
“To pan.” Sintaxe omniconsciente, auto e hétero:
uma sintaxe dentro de cada palavra, uma sintaxe entre
as palavras, uma sintaxe na soma das palavras e em
qualquer coisa para além dessa soma. Poema órfico-
metafísico-epistemológico: o jôgo, o drama, o mistério:
o Azar, a morte, a pureza: o jogador, o mestre, o poema,
o herói, o homem: as dualidades eternas: positivo-
negativo; análise-sintese; stasis-lcinesis, circularidade-
linearidade; unidade-multiplicidade; convexidade-conca-
viclade; maclio-íêmea; o eterno retorno; o princípio e
o fim: o mito: Dédalo e ícaro, U lisses...
Todos os níveis do ser + todas as vaíências da
palavra : Un Coup de D ês. Ou, pelo menos, igual
ao sonho que principiou a ser realizado em Un Coup
de D ês. Pena é (dizemos nós) que Mallarmé, no
fim da vida, não se tenha dedicado inteiramente a
essa obra ■ —1 sem perder tempo com coisas (que êle
e muita gente ■ — não nós • —■ levam tão a sério) como
1 0 4 ---- MÁRIO FAUSTINO

o Fauno e a H evodíade — obras por sua vez também


inacabadas.
O Mallarmé do “Coup de Dés”, entre Espinosa
e Freud. À criança. À ancestralidade. Hamlet.
Mallarmé e o Eliot da “W aste Land.” Mallarmé e
Joyce. Mallarmé e Pound: por que motivo Pound
pretendería “ignorar” Mallarmé?
LIn Coup d e D é s : geografia, antropografia, cos-
mografia, antropocosmografia, logoantropocosmogra-
fia. . .
Êsses alguns dos pontos de referência que pro­
curamos fornecer ao leitor interessado na obra infi­
nita que é estudar o "Coup de Dés” em tôdas as suas
dimensões. Se quiser um trabalho que o ajude, o
melhor parece ser o de Robert Greer Cohn: L O eu vre
de M allarm é et Un Coup d e D és (publicado primeiro
em francês, porém, no original, tese de doutorado na
Universidade de Y ale).
O melhor, porem, é entregar-se à contemplação
e à reflexão do próprio poema, tendo em mente, quando
muito, o prefácio do próprio Mallarmé:

“Gostaria que esta Nota não fôsse lida


ou, se tanto, esquecida; ela ensina ao Leitor
hábil muito pouco além de sua penetração:
mas pode confundir o ingênuo que deve obser­
var as primeiras palavras do Poema para que
as outras seguintes, dispostas como estão, o
levem às últimas, o todo sem novidade a não
ser uma disposição espacial da leitura. Os
“brancos” com efeito, assumem grande impor­
tância, agridem à primeira vista; a versificação
exigiu “brancos” como silêncio à sua volta,
habitualmente, ao ponto de, um trecho, lírico
STÉPHANE MALLARMÉ 105

ou de poucos pés, ocupa, no meio, cerca de


um têrço de página: não transgrido essa medi­
da, apenas a disperso, O papel intervém cada
vez que lima imagem, por si mesma, cessa ou
reaparece, aceitando a sucessão de outras e
como não se trata, assim como sempre, de
traços sonoros regulares ou de versos — porém
de subdivisões prismáticas da Idéia, o instante
em que surge e permanece, em algum momento
espiritual preciso, se verifica em locais variá­
veis, perto ou longe do fio condutor latente,
em virtude da verossimilhança a que o texto
se obriga. Se tenho direito a dizê-lo, a van­
tagem literária dessa distância preconcebida,
que separa mentalmente grupos de palavras
ou as palavras entre si, parece ora acelerar, ora
solrear o movimento, escandindo-o, impondo-o
até conforme uma visão simultânea da Página:
esta, tomada por unidade como o é, de outra
forma, o Verso ou linha perfeita. A trama
aflorará e se dissipará rãpidamente, segundo
a mobilidade da escritura em volta das paradas
fragmentárias de uma frase capital, desde o
título, introduzida e prosseguida. Em resumo,
tudo se passa em hipótese; evita-se o relato.
Acrescente-se que, dêste emprego a nu do
pensamento com recuos, prolongamentos, fugas
ou seu próprio desenho, resulta, para quem
deseja; ler em voz alta, em uma partitura. A
diferença dos tipos de impressão, entre o mo­
tivo preponderante, um secundário e outros
adjacentes, dita sua importância à emissão oral
e a disposição no meio, no alto e embaixo das
páginas indicará que sobe ou desce a entona­
ção. Somente certas direções muito audacio-
106 MÁRIO FAUSTINO

sas, invasões, etc., formando contraponto desta


prosódia, permanecem numa obra, que não
possui precedentes no estado elementar: não
que me agrade a oportunidade de tentativas
tímidas; mas não me cabe, salvo em alguma
paginação especial ou de livros meus, num
Periódico, embora corajoso, acolhedor e por
mais convidativo que se mostre a ousadas liber­
dades, agir demasiadamente em contrário ao
uso. Não obstante, terei indicado do Poema
incluso, melhor que o esboço, um “estado”
que não rompa em todos os pontos com a
tradição; dirigido sua apresentação em tantos
sentidos a tal ponto que não ofusque ninguém:
o suficiente para fornecer uma pista. Hoje,
ou sem presumir do futuro o que sairá daqui,
nada ou quase uma arte, reconheçamos de
sobejo que a tentativa participa imprevistamen­
te de pesquisas particulares e caras aos nossos
tempos, o verso livre e o poema em prosa.
Sua reunião se efetua sob uma influência, eu
o sei, estranha, a da Música ouvida em con­
certo; sendo reconhecíveis nesta diversos meios
que me parecem pertencer às Letras, tomou-os
■O gênero (que isto se torne pouco a pouco
um gênero, como a sinfonia), a par do canto
pessoal, deixa intato o antigo verso pelo qual
conservo um culto e a que atribuo o império
da paixão e dos devaneios; enquanto que, seria
o caso de tratar, de preferência, (assim como
segue) alguns assuntos de imaginação pura e
complexa ou intelecto: que- não há nenhuma
razão para excluir da Poesia —' fonte única.
— (Tradução de Ecila de Azeredo).
STÉPHANE MALLARMÉ ---- 107

vn
Aí tem o leitor —- tcinos cm mente aquele que
ainda não teve tempo ou vontade bastante para
dedicar-se a Mallanné — alguns pontos de referên­
cia e algumas direções por onde começar a estudar
êsse poeta imenso, para nós o mais importante e o
menos incompleto (juntamente com Ezra Pound) de
todo um século de poesia em experiência.
O Mallanné do futuro: II n Cottp dc D és e seu
antecedente, Igititv. O Mallarmé fiel a seu presen­
te: o Fauno, Ilero d ía d e, etc. O Mallarmé fiel a
si mesmo, a seu presente e a seu futuro: Plusieuvs
Sonnets, Autres Poèm es et Sonnets. E o Mallarmé'
fiel a seu passado (Racine, Gautier, Lecomte de
Lisle, Baudelaire, Poe. . .) da primeira grande fase.
Em tudo, o grande poeta e o grande homem: Rigor,
Titanismo, Orgulho e humildade diante de seu ofí­
cio. O poeta e o artista. A poesia não é brinca­
deira: é arte e se aprende à custa de muito sacrifício.
Em tempo: ao longo dêste despretensioso tra­
balho — simples conversa em tôrno de alguns aspec­
tos de Mallarmé — não levamos em conta certas
exatidões cronológicas (o que, aliás, já indicamos
na primeira parte). É claro que muita coisa de Mal-
iarmé foi escrita antes de Rimbaud publicar qualquer
poema. Mas isso não significa que, dentro de certa
ordem de coisas, Rimbaud não seja passado cm rela
ção a Mallarmé. Rimbaud, Valéry, Racine, n n
nosso contexto, não são poetas vivendo e trabalhando
de tal data a tal data. São tipos, são zonas, são dire­
trizes, são setores, são símbolos, preciso lembrar,
também, que na tradução de Safut e de A t t srnf sor/ci
d e voyagev, preferimos não reduzir o Âmbito «Io poema
1 0 8 ----- MÁRIO FAUSTINO

mantendo, na despretensiosa — é péssima, e apressada


—• tradução, o caráter de Toasí, de ambos os poemas.
Pensamos que, se Mallarmé deu a ambos o destaque
com que se apresentam nas Poésies é que seus valores
não se limitavam ao de um brinde ocasional.
Outros senões encontrados, atribua-os o leitor de
boa-vontade à pressa com que é obrigado a escrever
quem muito ama a Senhora Poesia, mas que é também
escravo de outros deuses, sobretudo da poundiana
Usura que nos desfigura o mundo e a vida. ( 1957).
ÊST1D LIVRO FOI COMPOSTO 13 IMPIUÍSSO
NAS OFICINAS DA EMPRÊSA GRAFICA DA
“REVISTA DOS TRIBUNAIS” S.A., A RUA
CONDE DE SARZEDAS, 38, SÃO PAULO,
PARA A

EM 1964.

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