Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Atingidos?
“ Eu tinha um açougue em Bento Rodrigues, era minha
principal fonte de renda. Perdi minha casa, meu esta-
belecimento comercial e toda minha mercadoria. Hoje
estou em Mariana e recebo o cartão. Mas não recebi
adiantamento da indenização.”
Agnaldo Silva
EDITORIAL
Em nove meses, desde o rompimento da barragem
Todas/os merecem ser acolhidas/os!
de Fundão, a luta por direitos ainda é marcada por Acolher é estender as mãos quando o outro mais precisa,
indefinições e insegurança. mais do que nunca, o
possibilitando que novos caminhos sejam construídos.
espírito da união, da luta coletiva, mostra-se essencial.
É o que reforça Espedito Silva, atingido de Bento
A verdadeira acolhida acontece quando olhamos para o
Rodrigues, em seu depoimento sobre as mudanças lado e nos deparamos com as histórias, as necessidades,
na vida dos pequenos comerciantes atingidos. o olhar do outro sobre a vida e compreendemos e respei-
A definição sobre quem deve ser considerado tamos as diferenças.
atingido ainda é uma disputa, o que dificulta o Acolher significa respeitar e, se possível, entender. Signi-
entendimento e a luta pelos direitos. A suspensão do fica estar cada vez mais junto.
“Acordão”, discutida na edição anterior, trouxe novas E este gesto tão importante e grandioso possibilita o
inseguranças e o receio de que esse debate pode exercício do amor fraterno
continuar sem a participação coletiva. Nesta edição,
buscamos contribuições para melhor compreensão
sobre essa grande controvérsia.
Pratique essa ideia. Acolha!
A possível construção do “dique” S4 nas terras de
Bento Rodrigues amplia a insegurança sobre o direito
à propriedade e à manutenção das memórias. Em
mais uma matéria sobre o tema, buscamos esclarecer
de que forma essa proposta poderá afetar Bento
Rodrigues e toda a bacia do rio doce.
CUIDADO
As comunidades buscam manter suas tradições para
se fortalecerem. Em mariana, o direito à propriedade Não assine nada:
é reforçado pelos atingidos de Bento Rodrigues com
muita persistência. Em Barra Longa, a marujada Se tiver dúvidas sobre o conteúdo.
reforça as tradições populares e a relação da cidade Se precisar de ajuda de um advogado ou qual-
com o rio, atingido pelo rejeito.
As aflições de Barra Longa dialogam também com
quer outro especialista.
a primeira edição do A Sirene, “Viver tem sido uma Se alguém disser que “todo mundo já assinou,
Barra”, e reforça outras dimensões da nossa luta como só falta você”.
atingidos: a presença latente da morte (no soneto de Se você quiser consultar algum familiar antes.
Sérgio Papagaio), os problemas de saúde decorrentes
do rompimento da barragem de Fundão e a luta pelo
Se alguém disser que “se não assinar, não terá
direito de trabalhar. mais direito”.
Por tudo isso, torna-se cada vez mais urgente a
necessidade de assumirmos uma postura ativa
Atenção!
Se alguém tentar fazer você assinar qualquer
na reconstrução do nosso modo de vida, como
protagonistas de nossas própria luta e com o coisa, procure o ministério Público ou a Comis-
direito de escolher quem poderá nos ajudar nessa são dos Atingidos.
caminhada. Nesse sentido, trazemos um texto com O tempo para analisar e questionar qualquer
esclarecimentos sobre assessorias técnicas, direito
pelo qual também precisamos lutar.
documento é seu!
A história de isabella, uma criança de 8 anos,
moradora de Pedras, fecha essa edição lembrando-nos Leve essa mensagema todos os outros atingidos!
o valor da natureza, tão intrinsecamente relacionada
à vivência de todos nós, que reivindicamos o cheiro
das matas e frescor dos rios tão presentes nas nossas
memórias.
EXPEDIENTE
Realização: Atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão/mariana | Apoio: #UmminutodeSirene, UFOP, Arquidiocese de mariana,
movimento dos Atingidos por Barragens (mAB) | Editor: milton Sena | Colaboradores: Adelaide dias Novaes, Ana Elisa Novais, Antônio
geraldo dos Santos, Cristiano José Sales, Elke Pena, Espedito Lucas da Silva, Felipe Pires, Fernanda tropia, genival Pascoal (geninho Bravo),
Juçara Brittes, Lucas de godoy, isabella Walter, Lucimar muniz, Luiza geoffroy, manoel marcos muniz, marília mesquita, marlene Agostinha,
mônica dos Santos, Sérgio Papagaio, Silvany diniz, Simone maria da Silva, Stênio Lima | Fotografia: Ana Elisa Novais, Lucas de godoy,
Rui Souza, Stênio Lima | Projeto Gráfico/Diagramação: Larissa Pinto, marilia mesquita, Silmara Filgueiras, Stênio Lima | Revisão: Ana Elisa
Novais, Elke Pena, giovani duarte | Agradecimentos: débora Rosa, Pe. geraldo martins, ministério Público de minas gerais, gEdEm (grupo
de Estudo sobre discurso e memória), gEStA (grupo de Estudos em temáticas Ambientais) | Impressão: Sempre Editora | Tiragem: 2.000
exemplares | Contato: jornalasirene@gmail.com.
Agosto de 2016 A SIRENE 3
Agenda
Informes Julho
07 – A Samarco informou que assinou com o Ministério Público de Minas Gerais, Termo de Compromisso Preliminar,
tendo como objetivo a adoção de medidas emergenciais que visam à preservação do Patrimônio Cultural sacro existente nas
localidades de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira, afetadas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Dentre as obriga-
ções foi instituída a reserva técnica, localizada em Mariana, espaço físico destinado para recebimento e guarda do acervo do
material resgatado em campo. O espaço passa por adequações. Este acervo conta hoje com mais de 700 (setecentas) peças,
estando programada para dezembro uma exposição com itens.
21 - Foi acordado entre a Comissão dos Atingidos, os atingidos e a Samarco Mineração S.A o auxílio para pagamento das
contas de luz dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão. Para efetivação deste acordo, os inquilinos residentes
em casas alugadas pela Samarco deverão apresentar, a partir do dia 08/08/15, as contas de luz dos meses de agosto/setem-
bro/outubro de 2015 e também as contas de abril/maio/junho de 2016, assim como o termo de transferência da titularidade
das contas em nome do titular do cartão chefe de família. É necessária a presença do titular do cartão Policard. A diferença
média do gasto com energia elétrica será paga retroativo a março /2016.
Agosto
01, 15, 29
Reunião Grupo de Trabalho Temático de Pedras – 17:00 h – Escritório dos Atingidos.
O4
Reunião Pública Geral dos Atingidos de Mariana/Samarco/Ministério Público – 18:00 h Centro de Convenções.
18
Assembleia Pública Geral dos Atingidos de Mariana/Ministério Público – 18:00 h Centro de Convenções.
Reunião Pública Geral da Comissão dos Atingidos de Mariana/Comunidades Atingidas de Bento/Paracatu e demais
localidades – 19:00 h Centro de Convenções.
25
Reunião Pública Geral dos Atingidos de Mariana/Samarco/Ministério Público – 18:00 h Centro de Convenções.
4 A SIRENE Agosto de 2016
DIQUE? O QUE É?
DIQUE S4 -
Diques, assim como barragens, são estruturas para conter água. O
termo tem origem na palavra holandesa “dijk”, que se refere ao lugar COMUNIDADE
onde esses recursos são muito usados para controlar inundações. A
principal diferença entre diques e represas é que os primeiros nor- O que o dique S4 irá alagar? Somente casas e ruínas? Ou
malmente são estruturas mais simples, geralmente construídas com também memórias? Ninguém será arbitrariamente pri-
terra e rochas. vado da sua propriedade? Como vamos acessar o Bento?
Por ser um suporte de tamanho considerável, a escolha da posição de Participar das decisões acerca do futuro é um direito, e,
um dique visa ao menor custo de construção e à maior capacidade de antes de tomar qualquer decisão, devem-se conhecer ou-
represamento. O solo abaixo da estrutura precisa ser resistente, para tras alternativas.
suportar seu peso, e pouco permeável, para impedir a passagem da
água por baixo da estrutura. “A construção do dique S4, para mim, tem outros motivos
A construção de um dique tem como resultado o represamento da além de conter rejeitos que ainda restam da barragem de
água e, portanto, o alagamento de uma área. No caso de Bento Ro- Fundão. Pela quantidade de lama que ainda existe, penso
drigues, o dique S4 irá alagar propriedades particulares, e o tamanho que ele é insuficiente para remendar todos os problemas
da área alagada ainda não é claro para os atingidos. que possam vir com o período chuvoso que se aproxima.
“A Samarco pretende, ainda, construir outros três diques dentro do A empresa tem que encontrar outro meio para solucionar
Rio Gualaxo do Norte até o Município de Barra Longa para reter os seu problema. Não podem ferir ainda mais os sentimen-
rejeitos trazidos para a calha do rio por erosão em seguida à ocorrên- tos das pessoas. Já sofreram demais por ter perdido seu
cia de chuvas, operação essa ainda não autorizada.” Relatório Final lares.” Antônio Geraldo dos Santos
- Comissão Extraordinária das Barragens/Belo Horizonte 2015/2016 “Para mim, não podemos admitir que a cena do crime seja
“Durante o início das obras do Dique S4 (abertura de acessos para encoberta com a água e rejeito. As únicas prova e garantia
sondagens), foi mapeada a existência de trechos de muros na região que temos são as ruínas e as casas que sobraram. A cons-
do Bento com significativo valor cultural (muros arqueológicos). A trução do dique S4 é inadmissível neste momento. Não
necessidade de levantamento das peças desses muros gerou a para- conseguimos assimilar a perda que tivemos e tão cedo
lisação temporária das obras de construção do Dique S4.” Trecho do eles já querem tomar o que é nosso, aquilo que levamos
Parecer do Comitê Interfederativo. gerações para construir. Querem nos furtar. Estão usando
“(...) foi solicitado à Samarco apresentar os estudos de alternativas a forma mais covarde para fazer isso: quando dizem que
ao S4 de forma detalhada e justificada, com foco nas características a única solução é a construção do dique S4, querem nos
estruturais além de locacionais.” Nota Técnica IBAMA, 29 de Junho por contra a parede, quando na verdade acho que querem
2016 é tirar o que é nosso.” Antônio Geraldo dos Santos
Foto: Dique S3
Agosto de 2016 A SIRENE 5
- Problema ou solução?
CONFIANÇA POR Antônio Geraldo dos Santos,
Cristiano José Sales, Lucimar Muniz
“(...) Devido à inação da empresa para retirada do rejeito
e Manuel Marcos Muniz Com apoio de
acumulado nas margens dos cursos d’água, observou-se, ainda Felipe Pires, Isabella Walter, MAB e
durante a última visita técnica, que a água do Rio Gualaxo do Stênio Lima
Norte continua turva, mesmo após ter sido limpa pelo dique S3,
piorando sua turbidez ao longo do caminho, pelo carreamento
da lama.” Relatório Final - Comissão Extraordinária das
Barragens/Belo Horizonte 2015/2016
“A empresa tem a proposta dela para o dique e dá várias garantias
de como tudo será feito. Mas, depois de 9 meses do rompimento
da barragem, podemos confiar plenamente no discurso dela?
Quem garante que não haverá alteamento do dique S4 após um
tempo, com o argumento de que sem altear ele não vai resolver o
problema de descida da lama? Se ele for alteado, vai alagar uma
área maior ainda da comunidade de Bento Rodrigues. Há muito
mais coisa em jogo: provas do crime, cultura, história.” MAB
“Em relação à construção do dique, quem irá fiscalizar o dique
S4? Os mesmos órgãos ambientais que deveriam fiscalizar a
barragem que se rompeu? Se o dique S3 não foi suficiente, o
dique S4 será? Quem garante a segurança de um dique feito
às pressas? Todas as comunidades devem ficar atentas a essa
questão, porque, se os diques não forem seguros, será mais
transtorno para as comunidades rio abaixo, como Ponte do
Gama, Paracatu, Pedras, Campinas, Gesteira etc.” MAB
6 A SIRENE Agosto de 2016
Direito de entender
Por Milton Sena e Antônio geraldo dos Santos
Com apoio de Adelaide Dias, Felipe Pires, Isabella Walter e Marília Mesquita
“
Fundão, a assessoria técnica coletiva é um direito exigido pela Ação
Civil Pública de 10 de dezembro de 2015. Ao ser contratada, irá
acompanhar e garantir uma participação com segurança em etapas
como: escolha do terreno de reassentamento, cadastro socioeconô-
mico, definição do valor das indenizações, desenvolvimento de pro-
jetos de reconstrução, recuperação ambiental de área degradadas,
apoio psicológico, preservação do patrimônio cultural, entre outros.
Segurança
Manoel Marcos Muniz, conhecido como Marquinhos, morou
desde os 6 anos de idade em Bento Rodrigues, terra natal de
seu pai, seu Neco. Por 29 anos e 10 meses trabalhou na Samar-
co Mineração até se desligar no dia 04 de novembro de 2014.
A partir de um bate-papo cheio de inquietações ele descreve o
cotidiano de uma empresa movida por rígidas regras de segu-
rança que lhe garantiam a sensação de trabalhar em um am-
até que
biente protegido.
“A realização de APR (Análise Preliminar de Risco), de DDS
(Diálogo diário de Segurança), de tagueamentos que são o blo-
queio de equipamentos para manutenção, de exames toxicoló-
gicos, de simulações com portas de emergências, de descrições
de riscos e pontos de encontros, de treinamentos e cursos de
reciclagem era comum em minha rotina.
Não se admitia a improvisação de ferramentas ou equipamen-
tos, e exxigia-se a troca ou a manutenção imediata dos itens
que não se encontravam em conformidade com as normas de
ponto?
segurança da empresa.
Eu trabalhei em uma empresa que tem um trânsito interno com
velocidade controlada. Que faz cumprir procedimentos como
a utilização de óculos de segurança, botas, capacete, protetor
auricular, luvas, máscaras, que realiza SIPATs (Semana Inter-
na de Prevenção de Acidentes), com todos os funcionários, in-
cluindo os terceirizados. Que construiu credibilidade nacional
e internacional junto ao mercado, conquistando selos de quali-
dade e prêmios de excelência na área. A severidade da empresa
em relação à segurança se resume em uma frase emblemática:
acidente com vítima é inadmissível.
No dia 05 de novembro de 2015, um ano e um dia após meu
desligamento e início do processo de aposentadoria, eu vi a
minha terra, Bento Rodrigues, ser destruída pelo rompimento
da Barragem de Fundão, pertencente à mesma empresa em que
eu vivenciei rotinas de procedimentos de segurança interna.
Ao ver a confiança e o respeito pela empresa na qual trabalhei
se desfazerem, eu me pergunto: por que uma empresa que visa
tanto à segurança conviveu durante anos com uma barragem
A Samarco instalou esta sirene no que tinha risco eminente de se romper? Por que uma empresa
distrito de Paracatu de Baixo depois reconhecida por seus selos de qualidade e prêmios de excelên-
do rompimento da barragem. A foto cia não prioriza as leis de Barragens?
foi feita em abril de 2016. Hoje, agosto Com tanta segurança interna, por que não havia sirene em
de 2016, a Sirene não está mais lá. Bento?
ATIN
gem de Fundão.
Profa. Rita de Cássia Liberato – Professora do Depar- MAB (Movimento do Atingidos por Barragens)
tamento de Ciências Sociais da PUC Minas.
Eduardo Gontijo – Graduando em Ciências Sociais Os critérios para definição de quem é atingido de-
pela PUC Minas vem ser construídos pelas próprias famílias e de-
vem estar claros para todos, de forma a garantir
O termo “atingidos” é usado para designar pessoas ou que todos os atingidos sejam reconhecidos como
comunidades abrangidas, acertadas, acometidas, afeta- tais. O que vemos em mariana, Barra Longa e
das ou impactadas por fenômenos naturais (tempesta- ao longo do Rio doce é justamente o contrário.
des, enchentes, deslizamentos, etc.) ou decorrentes de Os atingidos não construíram os critérios e não
ações antrópicas (produzidas pelos seres humanos), têm clareza sobre eles. Alguns critérios adota-
como construções de barragens, alteração de cursos de dos, inclusive, não correspondem à realidade das
rios, construção de estradas, incêndios, rompimento de famílias. Há muitas dúvidas de por que algumas
barragens, etc. A expressão impactado/as, empregado famílias receberam cartão e outras não, por que
pela Samarco, reduz as perdas e, por extensão, o sofri- algumas famílias receberam R$20 mil e outras
mento, pois as pessoas podem ser impactadas por infor- R$10mil. Em toda a bacia do Rio doce há muitas
mações, notícias, etc. famílias que ainda não receberam nada.
GIDO
Um conceito em disputa
Decreto Presidencial 7.342/2012 atingidos dependam economicamente, em virtude da
www.planalto.gov.br ruptura de vínculo com áreas do polígono do empre-
endimento;
Art. 2o - O cadastro socioeconômico previsto no arti- V - prejuízos comprovados às atividades produtivas
go 1o deverá contemplar os integrantes de populações locais, com inviabilização de estabelecimento;
sujeitas aos seguintes impactos: Vi - inviabilização do acesso ou de atividade de mane-
i - perda de propriedade ou da posse de imóvel locali- jo dos recursos naturais e pesqueiros localizados nas
zado no polígono do empreendimento; áreas do polígono do empreendimento, incluindo as
ii - perda da capacidade produtiva das terras de par- terras de domínio público e uso coletivo, afetando a
cela remanescente de imóvel que faça limite com o po- renda, a subsistência e o modo de vida de populações;
lígono do empreendimento e por ele tenha sido par- e
cialmente atingido; Vii - prejuízos comprovados às atividades produtivas
iii - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira locais a jusante e a montante do reservatório, afetando
e dos recursos pesqueiros, inviabilizando a atividade a renda, a subsistência e o modo de vida de popula-
extrativa ou produtiva; ções.
iV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os
10 A SIRENE Agosto de 2016
IRACEMA
Em Paracatu, eu tinha minha sorveteria.
Tinha fila e mais fila. Eu tinha ganhado
uma receita bem natural de uma amiga,
com leite tirado da vaca, fruta colhida
no quintal. É segredo nosso! Fiz o pri-
meiro pote de sorvete, vendi tudo. De-
pois a venda se repetiu e foi dando lucro.
Aí comprei meu primeiro freezer e fui
ampliando o negócio. Quando teve o de-
sastre, eu tinha comprado um grande es-
toque para a sorveteria, com o dinheiro
das vendas do feriado de finados. Nem
deu tempo de fazer o sorvete. Perdemos
tudo: casa, criacão, horta e a obra para
ampliação da sorveteria. A Samarco me
propôs alugar um ponto pra eu retomar
a sorveteria em Mariana, mas, aqui, tem
muita concorrência, os ingredientes ca-
ros e todos artificiais. Não tem como dar
certo. Então, de comerciante, eu passei a ganhar 20% do salário mínimo. Foi difícil perder tudo. Não só a sorveteria, mas
minha máquina de costura também. Ela era especial: com as costuras consegui comprar meu primeiro freezer para guardar o
sorvete caseiro que eu fazia. Eu ganhei uma máquina nova de uma jornalista. Com ela ganho uns trocados fazendo pequenos
consertos. Não sou mal-agradecida, mas o sentimento é diferente.
Agosto de 2016 A SIRENE 11
VALÉRIA
Eu mexia com cabelo desde nova,e
quando me tornei maior de idade, fi-
chei na Vix. Trabalhei lá por seis mêses
como sinaleira na barragem que estou-
rou. Já saí de lá fichando na Manserv. E
mexia com cabelo também. Depois de
uns anos, saí da Manserv e fiquei traba-
lhando só com cabelo. E comecei fazer
pão também pra vender. Hoje eu só tra-
balho com cabelo. Eu perdi tudo, tudo
mesmo. Eu ia na casa das pessoas ou as
pessoas iam lá em casa. Dos materiais de
fazer pão, perdi as formas: eu assava o
pão no fogão de lenha. Aqui não dá pra
fazer, porque gasta muito gás, demora
mais, não fica tão bom, não compensa.
Quando a barragem estorou, eu fiquei
morando em hotel e Luciane Carneiro,
me chamou pra trabalhar lá no salão dela. Foi um momento bom, com movimento de final de ano, uma ajuda e tanto. Aí eles
alugaram minha casa, eu mudei pra cá, pro salão da Ana Lúcia. E tô aqui, só mexendo com cabelo. Lá no Bento eu ganhava
menos, mas fazia mais com o dinheiro do que o que eu faço aqui. Aqui o gasto é muito maior. Tudo aqui a gente tem que
comprar. Eu quero voltar pro meu lugar, sair da cidade, voltar pro Bento.
De fora pra
Em gesteira pelo menos trabalhamos
muito com a cultura. A gente fazia a
Folia de Reis lá. Hoje parou tudo, por-
que espalhou o pessoal todo. Os mais
velhos estão morrendo, e os mais no-
vos não querem mexer com essas coi-
dentro
sas. mas eu tenho vontade de tá vol-
tando. tudo de novo. dançando lá,
cantando Folia de Reis. tô aposentan-
do. E, se deus quiser, quando aposen-
tar, eu vou voltar a mexer.
Em Barra Longa os marujos de Nossa
Senhora Aparecida têm mais de 100
Por Simone Silva anos, vieram com os escravos e é pas-
Com apoio de ana Elisa novais, Marília mesquita sado de pai para filho. Hoje o mestre é
e Silvany Dinis. o Zé; e antes era o pai dele, e foi o avô
“
dele que passou para o pai, e o pai de-
Meu patrão pois pra ele e para o Antônio, que é fa-
lecido. marujo vem de marinheiro, e a
O navio chegou no mar folia tem dança e canto. É para a Santa
Hoje o remo tá quebrado d’Água e é diferente do Congado, que
é para Nossa Senhora do Rosário.
Eu não posso navegar Em 1979, com a enchente que deu em
Hoje o remo tá quebrado Barra Longa, nós perdemos tudo. Na
casa em que ficavam os pertences, foi
Eu não posso navegar” tudo embora. Aí nós reunimos tudo
(Canção do Marujo) de novo, foi juntando. A márcia foi
quem montou tudo pra nós de novo
na época, e a gente foi reerguendo.
Hoje estamos aí. Agora somos eu e o
Zé. mas para nós tornou muito difí-
cil. Roupa e calçado são muito caros e,
pra gente sair avacalhado, a gente não
vai sair. mas pra nós é muito impor-
tante e pra cultura da cidade é muito
importante. mas é coisa que a gente
mesmo dá jeito. A gente sempre que
comprou, que procurou as costureiras
pra fazer as roupas.
Só que eu tô no marujo já tem 40
anos. mas eu sou um dos que não era
da família. Sou um que veio de fora e
encaixou lá dentro.
(José mauro marra, 59 anos)
Agosto de 2016 A SIRENE 13
A festa de São Bento, celebrada em Bento Rodrigues, foi março, provocou as primeiras reflexões e cobranças à Sa-
um momento importante na nossa luta pelo direito à pro- marco a respeito do direito ao sepultamento na comuni-
priedade. Junto a esse acontecimento, é também simbólico dade de origem. Rafael Silva faleceu em junho, às véspe-
o sepultamento de Suely da Conceição Sobreira, em 28 de ras da festa junina da escola local, outra festa que também
julho. Essa data foi a primeira vez em que todos consegui- era bastante aguardada por todos. A partir da notícia da
ram entrar em suas terras, tendo acesso digno via estrada morte da criança, escola e voluntários se organizaram para
original, fato insistentemente cobrado por todos desde de- enriquecer a festa ofertada às crianças e a seus familiares.
zembro quando a empresa se apropriou da área. A morte A festa de São Bento e o sepultamento no território de
de Suely foi a terceira ocorrida desde o rompimento da bar- Bento Rodrigues são formas de continuar uma tradição e
ragem. Apesar de momentos de extrema tristeza, cada uma de mostrar a quem pertence aquele chão e o que deve ser
dessas mortes teve um papel importante em nossa luta. O feito dele. Manifestações de esperança, resistência e força.
primeiro falecido, Adilio Monteiro (o Mudo), ocorrido em Lucimar Muniz
14 A SIRENE Agosto de 2016
A
com aPoio dE larissa Pinto, lucas dE
godoy E stÊnio lima
Morte
morre mato, bicho e peixe d’água fria
Vive
morre o gualaxo que a morte carregou
Lição do Rato
Um rato olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua havia pego a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a
esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que mulher...
haveria ali. Ao descobrir que era ratoeira ficou aterrorizado.
O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou
Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos: com febre. todo mundo sabe que para alimentar alguém com
- Há ratoeira na casa, ratoeira na casa! febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro
A galinha: pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.
Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos
- desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande vieram visitá-la. Para alimentá-los, o fazendeiro matou o porco.
problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não A mulher não melhorou e acabou morrendo.
me incomoda.
muita gente veio para o funeral. O fazendeiro então sacrificou
O rato foi até o porco e: a vaca, para alimentar todo aquele povo.
- Há ratoeira na casa, ratoeira! moral da História: Na próxima vez que você ouvir dizer que
- desculpe-me Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, alguém está diante de um problema e acreditar que o problema
a não ser orar. Fique tranquilo que o Sr. será lembrado nas não lhe diz respeito, lembre que quando há uma ratoeira na
minhas orações. casa, toda fazenda corre risco.
O rato dirigiu-se à vaca e:
- Há ratoeira na casa, O problema de um irmão é problema de todos!
- O que ? Ratoeira ? Por acaso estou em perigo? Acho que não! JUNTOS SOMOS FORTES!
Então o rato voltou para casa abatido, para encarar a ratoeira.
Naquela noite, ouviu-se um barulho, como o da ratoeira Sugestão de maria José Sena e marilene tavares, ex-moradora
pegando sua vítima.. A mulher do fazendeiro correu para ver de Ponte do gama, hoje mora em Passagem de mariana.
o que havia pego. No escuro, ela não percebeu que a ratoeira
Agosto de 2016 A SIRENE 15
“gualaxo”, em tupi guarani, significa “os que comem como Em casa, a vida livre de isabella deixa de queixo caído
as garças”. Esse é o nome de um rio que nasce na Serra do qualquer menino da capital: anda de bicicleta, sobe em pé
Espinhaço e rasga os mares de morros de minas gerais em de fruta, rola com os cachorros, pisa na terra, vai pro rio,
direção ao Espírito Santo. Leva rocha, leva ouro, leva peixe, pesc… Não. Não pesca mais.
leva ao doce, leva ao mar. “traíra, Cará, Bagre, Lambari, tinha de tudo!”. O rompi-
Antes do Rio gualaxo se misturar com o Ribeirão do Car- mento da Barragem de Fundão e a lama de rejeito que des-
mo ele traça uma rota que era zona proibida no século ceu o Rio gualaxo lamberam as margens de Pedras, mata-
XViii. Conhecida como Zona da mata, pela exuberância ram os peixes de isabella, fizeram desaparecer as Capivaras,
da natureza que ali soava abundante, a região era reduto de as garças, o Lobo guará…Não restou pedra sob pedra.
pássaros raros, árvores frondosas, solo perfeito para roça, “meu programa preferido é pescar!” domingo era o dia
rio regado de peixe, mata de lobo, capivara e jacu. mais esperado por isabella, que saía com a mãe e o pai para
No meio desse caminho está Pedras, subdistrito de maria- pescar no Rio gualaxo. Ela refaz o ritual: escolhe sua vara
na onde mora a família de isabella, que tem 08 anos, tranças predileta, pega linha reserva, pede pro tio as minhocas de
grossas, expressão leve, sorriso seguro e olhos atentos. Lá isca, pega o saco de arroz para guardar os peixes. Sai de casa
de fora vem a voz dela, que traz a lenha coletada com a mãe e cadê o rio?
ali por perto. de short e chinelo, nem teve tempo de sentir “Era só colocar o anzol que o peixe vinha rapidinho. Não
o frio que sopra forte nessa época do ano por essas bandas. tinha coisa melhor do que esperar o peixe fisgar o anzol e
Em Pedras não vemos mais muitas crianças pela rua. Lá depois voltar pra casa com o saco de arroz cheio de peixe
também não tem escola. Para ir à aula, isabella acorda às pra minha avó e minha mãe cozinhar”.
05:30 da manhã, toma um café reforçado e aguarda o ôni- desde o rompimento da Barragem, isabela não comeu mais
bus que vai para a escola de Águas Claras, onde ela passa peixe. desde aquele dia, a vida não foi mais mesma. Pedras
as manhãs de segunda a sexta entre brincadeiras e livros de sem o rio, é como igreja sem altar, casa sem telhado. Pedras
terror. é o Rio. isabella e o Rio. isabella é o Rio