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ldl~oto
ED~ic
do U"!.O!'Oidod• do Sogtado Cot'-fiD

Coordena-ção F..ditorial
irmã Jadnta·1\rrolo Garcia -. ; ;--
\{:'<
Assessoria Adnúo.tstrativa '·'
Irmã Teresa Ana "Sofiattí
.,'
coordenação da coleção Verbum
I.uiz Eugênio Véscio

Douglas
Kellner· ·
. .
A .

Cu'ltura .
midi~
Estudos culturais:
(9) identidade e política entre o
VERBUM moderno e à pós-moderno

Tradução
lvone Castilho Henedetti
(

EDÚSC

K295lc KeHiler, D.ougl,ls.


A Cultura da mídia- estudos culturais: identidade
e polítita entre o moderno e o pós.moderno I DouglaS
Keflner ; tradução de lvone Castilho Benedetti.
Bauru, SP: EDUSC, 2001.
454p.; 23cm. ·-(Coleção Verbum)
ISBN 85-7460-073-3
Inclui bibliografi~
Tradução de: Media culture: cultural studies,
identity a"nd poli tio between the modem and the
postmodern.
1. Comunicação. 1·. CorDunicaçào de massa. 3.
Cultura. I. Título. 11. S€rie. PARA O VELVET HA:tVlMER

CDD. 302.23

ISBN 0-415-10570-6 (original)

Copyrfght© 1995 Oouglas KcUner ·Ali Rights Reserved


Authorised ti-:anslation früm English la.nguage edition published by Routledge, a member of
theTaylor &·Francts Gronp.
Copyrtght© de tradução- ED_lJSC, 2001

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Tradução realizada a p;<~rtir da edição de 1998. ;
Direitos exclusivos de publicação em língua
portugue5a para o Brasil adquiridos pela
·Editora da Universidade do Sagrado Coração i
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Rua Im1ã Arminda, l0-50
CEP 17011-160-Banru-SP
"Fone (14) 3235-7lll- Fax (14j 3.235-7219 11
e-mail; edusc®cdusc.com.br

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Sumário

~.

Introd;ução
9
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--·,,_,.
·Parte 1 :Teoria/contexto/métodos
cápíttúo I: Guerras entre teorias c es~udos cúltucais
·~'' Guerras entre teorias
-o Ab_ordagens aos estudos culturais
·,cf~·X Escola de Frankfurt
:. ;~ Os estudos culturais britânic~ e seu legado
5 Estudos culturais pós-modernos?
...
- ~.

.
Capitulo 2: Cultura da núdia, política e ideologia: de Reagan a Iiambo 75
'
~1 Ideologia e cultura da mídia: métodos críticos
:l Rambo e Rcagan
.
8 '•
'
c Top Gun: sonho- masturbatório reaganista l.0-4
~· À Guerra do Golfo! I 1'5

Capítulo 3: Por um estudo cultural, multicultural e multiperspcctívico 1.2_1


~ 'íi t< Por um multiculturalismo crítico 124
i) Rumo a um ~studo cultural rUultiperspectívico 129
,., Por um estudo cultural contcxtual
,,. Ideologia e utopia ·-
' 133
143
(· Hegemonia, contra-hegemonia e desconstmtivismo H3
B Platoon: uma critica diagnóstica , l S-1

Parte 2: Critica diagnóstica e estudos culturais


Capitulo 4:Ansiedades sociais, classe e juventude insatisfeita .t 63
M Assombrações, gênero e classe na época de Reagan e Bush 16'i
c Diagnóstico crítico: de Poltergctst a Slackers c Beavis and.
Butt-Head 182

'
Capítulo 5:A voz negra: de' Spike ~ee ao iap 20j
,,;; Os filmes de Spikc Lee 201.
1) O mp e 0 discurso negro radiCal '228
Introdução
o Re~istência, coritra-hegemonia e dia-a-dia 2-ifl

Capít~lo 6: A GUerra do Golfo: uina leitura. Produçã~/texto/recepção 2';3


:-1Desinformação e produção de notida'>- 25')
% A guerra publicitária na núdia 269
~7-".
Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetácu-
,~ Nação de guerrei~s
los ajuda_m a urdir o tecido_da vida cotidiana, dom,inando o tempo de lazer,
"' Alguma'> reflexões à guisa de conclusão 286
modelando opiniões políticas c comportamentos sociais, e fornecendo o
material com que as pessoas forj~rm sua idcnlidade. O rádio, a televisão, o
Parte 3: lVfidia: cultura/id~ntidade/poütica cinema e os qutros produtos _da indústria cultural fOrnecem oS modelos da-
Capítulo 7:1elevisão, propaganda e construção da identidade pós- quilo que sigtlifica ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, po-
moderna 29'; derosO o~·um:,Potente.A cultura da OJ.ídia também fornece o material com
c Identidade na teoria pós-moderfla 298 que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de na·
,,, As imagens da publicidade .-3'17 cionalidade, de sexua~dade, de ~nós'" e "eles". Ajuda a moddar a visão pre·
val_ecente de mundo c os valores mais profundOs: define o que é conside-
'" Como siÚtar o pós-moderno 527 ~· ' .
rado bom ou mau, positivo ou negativo, moral ou imoral. As narrativas e as
imagens veicú1adas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os -recur-
Capítulo 8: Madonna, moda e imagem ,'>35 sos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indiví-
--; Moda e identidade :136 duos em muitas regiÕes -do munil.o de hoje. A cultura. veiculada pela mídia
o O Fenômeno Madonna 339 fornece o material que cria as identidades pcl:is quais os indivíduos se in-
:< Madonna entre o moderno e o pós-moderno 3()4 serem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma
nova forma de cultura global.
Essa cultura é constituída por sistemas de rádio e reprodução de som
Capítulo 9: Como mapear o presente a partir do futuro: de
(discos, fitas, CDs e seus instrumentos de disseminação, como aparelhos ~c
Baudrillard ao cyberpunk l"" rádio, (iiavadores,etc.);de filmes e seus modos de distribuição (cinemas, vi-
~ De Baudrillard ao cyberpunk :-ssr. deocassetes, apresentação pela TV); peú imprensa, que vai de jornais a re-
I
"' O Neuromancer e a visão 9e Baudrillard vistas; e pelo sistema de televisão, situado no cerne desse tipo de cultura. !
;,c Mapear o futuro; iluminar o i)·resente ·íOl Trata-se de uma cultura da imagem, que explora a visão e a audição. Os vá-
ll-- Literatura, teoria social e política 'i 1:1 rios meios de comunicação- rádio, cinema; televisão, música· e imprensa, i'
como revistas, jornais e histórias em quadrinhos - pri-vilegiam ora os meios i
visuais, ora os auditivos, ou então misturam os dois sentidOs, jofiari.do com
Conclusão
uma vasta gamà de emoções, sentimentos e idéias. A cultura da núdi<t é"'"in-
düstrial; organiza-se com base no modelo de produção de mas..<;a e é produ-
Bibliografia zida para a massa de acordo com tipos (gênefos), segundo fórmulas, códi- :'i

gos e norn~as conyencionais .É, portanto, uma forma de cultum comercial,


Índice onomástico e seus produtos são mercadorias' qtie tentam atrair o lucro privado produ-
zido por empresas gigantescas qUe estãó interessadas na acumulação de ca-
pital. A cultura da mídia almeja grande audiência; pot' isso, deve ser eco de
assuntos e preqcupações atuais, sendo extremamente tópica e apresentan-
do dados hieroglíficos da vida social cohtemporânca.

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Mas a cu:itura da mídia é também uma cWtiu-a bígh-tech, que explora logias políticas rivais lutam pelo domínio, e que os indivíduos vivenciam
a tecnologia mais avançada. É um sétor vibrante da economia, um dos mais essas lutas por meio de imagens, discursos, mitos e espetáculos veiculadOs
lucrativos, e está atingindo dimensões globais. Por isso, é um modo de tec- pela mídia.
nocultur·.a que mescla cultura e tecnologia em novas formas e configura- A cultura, em seu sentido mais amplo, é uma forma de atividade que
ções, produzindo novos tipos de sociedade em que mídia e tecnologia se implica· alto grau de participação, na qual as pessoas criam sociedades e
tornam princípios organizadores. identicbdcs. A cultura modela os indivíduos, evidenciando e cultivando-
Os espetáculos da mídia demonstram quem tem poder e quem não suas poteric'rálidades e capacidades de fala, ação e criaÍjvidade.A cultura ct"a
tem, quem pode exercer foiça e violêtÍcia, e quem não. Dramatizam ele- mídia participa igualmente desses processos, mas tambç_m é algo novo na
gitimam o poder das forças vigentes e mostram aos não-Poderosos que, . '-·
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aventura humana. As pessoas passam um temPO'CíiOrme ouvindo rádio, as-
se não se conformarem, estarão expostos ao risco de prisão ou màrte. sistindo à televisão, freqüentando cinemas, convivendo com música~ fazen-
Para quem viveu imerso, do nasdme'nto .à morte, numa sociedade de mí- do compras, lendO revistas e jornais, participando d~ssas e de outras formas
dia e consumo é, pois, importante aprender como entender, interpretar e de cultura veiculada pelos meios de comunicaçãÓ. Portanto, trata-se de uma
criticar seus significados e suas mensagens. Numa cultura contemporâ- cultura q~d p'ãssou a dominar a vida cotidiana, servindo de pano de fundo
nea dominada pela mídia, os meios dominantes de informação c entrete- onipre's'f:(i:fte muitas vezes de sedutor primeiro plano para o qual conver·
nimento são uma fonte profunda e muitas vezes não percebidas de peda- gem'no.ssa atenção e nossas atividades. algo que, segundo alguns, está mi-
gogia cultural: contribuem para nos ensinar COftlO nos comportar e o que nando a pot~ndalidade e a criatividade humana.-
pensar e sentir, em que -acreditar, o que temer e desejar - e o que não. Estc livro$studará algumas das conseqüências do domínio da cultura
Conseciüentemente, a obtenção de informações críticas sobre a mídia veiculada pel\!,- mídia sobre a sociedade e a cultura em geraL Procura son-
constitui uma fonte importante de aPrendizado sobre o modo ge convi- dar a natureza e os efeitos do modo como essa forma de cultura está in-
ver com esse ambiente cultural sedutor. Aprendendo como ler e critícar fluenciando. profundamente muitos aspectos de ·nossa vida diária. Um .de
a m~dia, resistindo à sua manipulação, os"indivíduos poderão fortalecer-se seus pdhcipais temas diz respeito ao modo como as dive~as formas da cul-
em relação à mídia e à cultura dominantes. Poderão aumentar sua auto- tura veiculada pela mídia induzem os indivíduos a identificar-se com as
nomia diante da cultura da ftlÍdia e adquirir mais poder sobre o meio cul- ideologias, as posições e as mpresentações sociais e políticas dominantes.
tural, bem como os necessários conhecimentos para produzir novas for- Em ger-al, não é um sistema de doutrinação ideológica rígida que i,nduz à
mas de cultura. concordância com .as sociedades capitalistas existentes, mas sim os pr.tZC·
rts prcpiciad6s pela mídia e pelo consumo. O entretenimento oferecido
por esSes meios freqüentemente é agradabilíssimo e utiliza instrumentos
1\-'iÍDlA E SOCH:.:DAl)E visuais e auditivos, usando o espetácu!o para seduzir o público e levá-lo a
identificar-se com certas opiniões, atitudes, sentimentos e disposições. A
Os estudos que se seguem ajudam a entendÚ a cultura da mídia_ e in- cultura de consumo oferece um deslumbrante conjunto de bens e serviços
dicam os modos como ela pode ser entendida, usada e apreciada. Nossa que induzem os indivíduos a participar de um sistert1a de gratificação co-
intenção é dar ao leitor meios de aprender a eStudar, analisar, interpretai" e merciaL A cultura da mídia e a de consumo atuam de mãos dadas no
criticar os textos da cultura da mídia e a avaliar seus efeitos. Examinamos sentido de gerar pensamentos e comportamentos ajustados aos valores, às
alguns dos modos d~ interseção entre ela e as lutas políticas e ·sociais, alérií i instituições, às crenças e às práticas vigentes.
da maneira como ela molda a vida diária, influenciando o mot;to como as No entanto, o público pode resistir aos significados e menSagens do-
pessoas pensam e se comportam, como se vêem é vêem os outros e como minantes, criar sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar·se da
constroem sua própria iden~idade. Por conseguinte, esses estudos explora- cultura de massa, usando a sua cultura Como recurso para fortalecer-se e in· ' ' 1:

rão algumas das maneiras éOmo a cultura contempor-lnea da mídia cria for- ventar significados, identidade' e forma de vida próprios. Além disso, a pró-
mas de dominação ideológica que ajudam a t'eiterar as relações.vigentes de pria mídia-dá recursos que os indivíduos podem acatar ou rejeitar na for-
·poder, ao mesmo tempo que fornece instrum~Jltal pam a construção de mação 'de sua identidade em oposição aos modelos domiilantes. AsSim, a
identidades e fortaleCimento resistência e luta.Ãfkmamos que a cultura da cultura veiculada pela mídia induz os indivíduos a conformai--se à organiza.
mídia é -"um terreno de disp~ta no qual grupos sociais importillltes c ideo· ção vigente, da sociedade, mas tambél;ll lhes oferece recursos que podem

10 11
fortalecê-los na oposição a ess; mesma sociedade. O estudo dess_as funÇões· aliada, propiciando o avanço da causa da liberdade e da demdcracia.A cul-
e efeitos contraditórios ~erá um dos objetivos deste livro. tura da mídia pode constitl!ir um entrave para a stemocrada quando-repro-
A cultura da mídia é uma realidade extremainente complexa que até duz discursos reacionários, promovendo o racismo, o prCconcdto de sexo,
agora .re_sistiu a quálquet• teorização geral adequada (embora tenham sido idade, classe e outros, mas também pode propiciar o avanço dos interesses
muitas as tentativas).A maiqria das teorias, como mostraremos neste livro, dos grupos oprimidos quando ataca coisas como as formas de segregação
parecem unilaterais e cegas a importantes aspectos da questão; grande racial o~.. sexual, QU quando. pelo menos, as enfraquece com represen-
parte do que se {tisse sobre a manipul~ção e a dominação da mídia, em teo- tações mais positivas de raça e sexo.
rias popularissimas na década de 1960 e em parte da década de 1970, par- Portanto, interessados na política Ç:ultu_ial, desenvolveremos um
tia do pressuposto de que os meios de comunicação Constituem forças onl- modelo específico de estudo da cultura da~ idídia, inserindo-nós em deba-
potentes de controle social que impõem uma ideologia dominante mono- - tes acerca do melhor modo de estudar a cultura e a sociedade, com o obje-
líticá a suas vítimas: Reagindo a esse_p10delo,mllitas das teorias mais recen- tivo de entender plenamente a produção, a natureza e os efeitos dessa cul-
tes ressaltaram a capacidadC do público de resistir à manipulação da midia, tura. Nossa abordagem também lança mão de teorias sociológicas com o
criando seus próprios significados e uSos e fortalecendo-se com a matéria- fim de c:;Ón~e..xtualizar, interpretar e analisar adequadamente a natureza e os
prima extraída de sua própria cultru<t. Como veremos nos estudos que se efeitO!ú:ii cultura da mídia. Estamos convictos de que os eStudos cultut".tis
seguem, esSas c outras ,teorias atuais também são unilaterais e limitadas, de- não podem ser feitos sem uma teoria social, e de que precisamos entender-
vendo dar lugar a abordagens criticas mais amplas e multidimensionais, as estruturaS; e a dinâmica de determinada sociedade para entender e inter-
que teorizem os efeitos contraditórios da cultura veiculada pela mídia: pretnr sua cUltura. Tambéni partimos do pressuposto de que os textos da
Em nossa opif!ião, o melhor modo de desenvolver teorias sobre mídia cultura da~mídia não são simples veículos de tmla ideologia dominànte
e cultura é mediante estudos específicos dos fenômenos concretos contex- nem entretCnimento puro e inocente.Ao contrário, são produções 'comple-
·tualizaQos nas vicissitudes da sociedade e da história contemporâneas. Por- xas que incorporam discursos sociais e políticos cuja análise .e interpre-
tanto, para interroga-r de modo critico a cultura cm;nemporânea da mídia é tação exige~ métodos de leitura e critica capazes de articular sua inserção
preciso realiZar estudos do modo como a indústria cultural cria produtos na economia política, nas relações sociais e no meio político em que são
específicos que reproduzem os discursos sociais encravados nos conflitos criados, veiculados e recebidos.
e nas lutas fundamentais da época. Pai-a isso, é preciso ver de que modo cer- Os estudos que se seguem aplicam essa abordagem abrangente ao
tos textos populares como os filmes Rocky ou Rambo, o rap-ou Madonna, estudo da cultUra da mídia e utilizam os recursos da história, da teoria So-
,os programas policiais de TV ou a propaganda, os noticiosos e as discussões cia(,das teorias da comunicação e dos estudos culturais pàra elucidar al-
da mídia, tudo isso articula posições ideológicas específicas e ajudam a rei- gunS' dos significados e dos efeitos das formas de cultura popular. Os exem-
terar formas dominantes de poder social, serVindo aos interesses da domi- plos vão desde filmes que reiteram ou contestam ideologias conservadoras
nação da sociedade ou de resistência às formas dominantes de cultura e so- durante a era Reagan até a cultum negra depreendida dos filmes de Spike
ciedade - ou se têm efeitos contraditórios. Lcc e do mp, passando pelas imagens e pelos sons de Madonna. Também
Por conseguinte, nos estudos que seguem, tentamos demonstrar de estudamos as populares séries de televisão, como Miami Vlce, ·a MTv, pu-
que modo alguns dos textos culturais mais populares hoje estão ~mplica­ blicidade, o verdadeiro espetáculo da mídia conhecido como ~Guer~ do
dos nos atuais conflitos políticos e culturais. O estudo da cultura popular Golfo," os aterrorizantes mundos futurísticos da ficção cybe1punk e a teo-
e de massa recebeu o rótulo genérico de "estudos culturais", e neSte livro ria· pós-moderna de Baudrillard.
apresentaremos alguns modelos de estudo Cultural da núdia feitos de foi'- Partimos do pre.ssupqsto de que sociedade e cultura: são terreno_s de
ma critica, mu!Úcultural e a partir de diversas perspectivas. Um estudo cul- disputa c de que as produções culturais nascem e produzem efeitos em de-
tural critico conccitua a sociedade como lltTl terreno de dominação e resis- terminados contextos. Estamos convencidos de que a anlílise da cultura da
tência, fazendo uma crítica da dominação e dos modos como a Cultura vei- mídia em sua matriz de rprodução e recepção ajuda a eluci~ar suas produ-
culada pela mídia se empenha em reiterar as relações de dominação e ->. ções e seus possíveis efeitos e usos, bem CO!f!O os contornos e as tendên-
opressão. Está preocupado com os progressos do projeto' democrático, exa- cias dentro do contexto sociopolítico mais amplo. Visto que as formas de
minando o modo como a cultura da núdia pode constituir um terrível em- cultura produzidas por -grupos gigantescos de comunicação e entreteni-
pedllio para a democrati7.ação da sociedade, mas pode também ser uma mento constituem um aspecto imediato e onipresente da vida contempo-

12 13
rânea, e _como a cultura da mídia é coristituída por uma dinâmica: social e rrl,omentos críticos e s11.bversivos e analisar de que modo os projetos ideo·
poli ti cá mais ampla - ao mesmo tempo que a constitui -,consideramos que lógicos dos textos da núdia freqüentemente fa11Íam.1hmbém dest:,;volvc-
uma ~celente óptica consiste em elucidar -a natureza da sociedade, da po- mos um conceito de diagnóStico crítico qite utiliza a cultura da mídia para
lítica c da vida cotidiana de nossa época. Na verdade, nossa tese é de que a diagnosticar as inclinações, e tendências sociais, lendo em süas entrelinhas
compreensão dos filmes populares de Hollrwood, de Madonna, da MTY, do as famasias, os temores, as esperanças e os desejos que ela articula: Um
rap, dos filmes atuais sobre os negros e dos programas de notícias e entre- diagnóstico crítico também analisa o modo comO a cultura da nlídia provê
tenimento da televisão -pode ajudar-nos a entender nossa sociedade con- recursos Para a formaçãO de identidades e proÍnov<:; politicas reacionárias
temporânea. Ou seja, entender o porquê da popularidade de certas produ; ou progressistas -.ou então põe à disposiçã~,~~os e'efeitos ambíguos, que~
ções pode eiucidar o meio social em que elas nascem c circulam, podeo- podem ser utilizados de várias· maneiras. -..,_·,,,
,do, portanto, levar-nos a perceber o que está acontecendo nas sociedades Na parte li, rCaJizamos alguns estudos concretos de críticas diagnósti-
c nas culturas contemporij.neas. cas que interrogam aS representações dominantes de classe, raça, sexo, se-
o foco de nossa atenção é a mídia norte-americana c sua cultura, mas, xualidacJc, juventude e política nos dias de hoje. No capítulo 4, ilustramos'
visto que a cultura dos Estados Unidos está sendo cada vez mais exp~rt.'lda o coiJ-c;:ei!O de diagnóstico crítico por meio de uma leitura dos fihnes que
para todo o mundo, tal estudo deve elucidar as formas dominantes e globa- e.xplofàm o sobrenatural e que, a noSso ver, articulam na forma cinemato-
lizadas de cultura de consumo e da mídia em outros lugares também.A cul- gráfica os temores da classe média em relação a declínio social, perda de
tura da mídia americana está invadindo outras culturas do mundo, produ· moradia, dissolução da família e ameaças provenientes de outras classes e
zlndo novas fo-rmas de popular global. Certos fenômenos nela encontra- raças. A segtlir, desenvolvemos algumas leituras do filme Slacker e da série
dos como os filmes Rambo e Rocky, Madonn.i e _Michael Jadcson, MTV c Beavis anqt Butt-Head para obter um diagnóstico do transe por que passa
rup: cenas dos noticiários da CNN e da TV norte-americaná em geral, pro- a juventude-insatisfeita dos nossos tempos.
paganda e bens de consumo, formas de televisão, música e cinema, além de - Assim, enquanto o capítulo 2 mostra como os filmes de Hollywood
outros aspectos, são populares em todo o muhdo, o que nos leva a crer que transcodificam os discursos da política dominante çlurante a em da hege-
os estudos aqui coligidos devem ser de intércssc global, e não meramente monia conservadora, que vai de 1980 até parte dos anos Í990, o capítulo 4
regional, mostra de que modo os desejos, as ansiedades c as inseguranças das pes-
Tais estudos foram conceb~dos e iniciados num momento histórico es- soas comuns também encontram expressão na cultut".i da mídia, possibili-
pecífico: o do triunfo do conservadorismo nos Estados UnidOs e na maioria tando um retrato das tendências de crise que estão por trás da fachada
das democracias capitalistas ocidentais. Por essa razão, depois de defmir, idc.Qlógica de uma sociedade de consumo feliz e segura.A avaliação da po-
num capítulo inicial sobre as guerras teóricas e culturais dos últimos anos, lític"a cultural da mídia, portanto, vai desde a crítica ideol6gica do modo
nosso conceito sobre o tipo de estudo cultural e de .teoria sociaJ necessário como os textos populares incorporam os discursos políticos dominanteSi
para entender nossà mÍdia contemporânea e sua cultura, examinamos no em torno das questões políticas c dos conflitos mais importantes do mo-
capítulo 2 a política c a ideologia do cinetrr.I de Hollywood na era Ikagan e mento: até a análise dos textos que codificam a política da vida diária e as
demonstramos como a cinematografia popular reproduz os discursos con- ansiedades e tensões referentes a classe, l}lÇa, sexo, juventu.de e sonhos e
servadores hegemônicos da época. Este ,estudo aplica e deseqvolve o angústias das pessoas do povo.
método de leitura políticit do cinema, apresentado por Michael Ryan e por No capítulo 5, delineamos um modelo de estudo cultural a partir de
este autor Ctr). nosso livro de 1988, Camera-Politica, e faz alguns estudos múltiplas perspectivas e 'ilustramos essa concepçã9 com um estudo dcta-'
concretos da cinematogratla holfywoodiana contemporânea, ao mesmo lhado dos filmes de Spike Lec, que constituem um bom exemplo da expio·
tempo que delineia um modelo de estudo multicultural e crítico da mídia. ração cinematogrâfica de questões fundamentais de caça, sexo e classe no
Afirman10s que é preciso fazer um estudo cultural que critique a interseção ·momento atuai.Trazendo à baila a crítica feminista c política de seus filmes,
de classes, sexos, raças e outros detenninantes ft~ndamentais da cultuf?! e da que é feita do ponto de vista do negro, examinamos a obra de Lee e as con·
identidadé; a fim de conceituar mais plenamente as dimensões id.eológicas tribuiçõc::s e limitações de seu estilo, de seus textos e de sua política. A com-
dos te:'l:tos culturais e avaliar tO<hi a gama de seus efeitos. paração dos filmes de Lee com a música mp contemporânea de Public
A seguir, no capítulo 3, indiCamos a necessidade de interpretar a cul- Enemy, Icc-1: Ice Cube, Sit;ter Souljah e outros mostra uma parte dos textos
tura da mídia ao arrepio de suas dispOsições ideológicas, a flm de deslindar cultumis soda~ ente críticos qu.e estão sendo produzidos hóje e· os modos

14 15
como os negros radicais estão pre,!;s}onando os llmites anteriormente esta- cada como nova cultura pós-moderna ~ nç"-as identidades pós-modernas.
belecidos da cultura prevaJecente, a fim de articular suas vi;rências de · Tentamos esclarecer os discursos pós-modernistas da moda, indicandó
opressão, raiva e rebelião. seus usos e abusoS. Examinando as modalidades de representação na cul-
Durante a era Reagan-Bush, a televisão cresceÍ.t em importância cultu- tura contemporânea, analisamos a construção, as táticas retóricas e os efei-
ral e polí~ica, por meio das exibiÇões políticas, das fotos diárias; produzidas tos de algumas das produções culturais mais importantes da núdia contem-
pela administração Reagan,·e do espetáculo da "Guerra do Golfon, que ana-, porânea, argumentando que muitoS de seus textos têm em comum estraté-
lisamos no capítulo 6. Depois de Reagan, veio o regime Bush com seu es- gias cstfiicas modernistas c pós-modernistas, e qt,te, portánto, o melhor
forço, durante a "Guerra 4o Golfo", 'pal-a ·estabelecer uma ~Nova 'ordem no modo de interpretá-las é vê-las como algo situado enire o moderno e o pós-
Mundo". No capítulo 2, indicamos o modo como certos filmes de H;oUy- J moderno. ~-·:- . . ·
wood criaram imagens que puderam ser mobilizadas para produzir a apro- E-;;se tópico lt;va a rcdcxões sobre o papel da imagem e da moda na
vação da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque no· início· dos anos construção da identida&:, bem como sobre o papel da música popular, dos
_ 1990. No capítulo 6, mostramos como os instnnnentos dos estudos cultu- astros e estrelas e da propaganda na cultura contemporânea, No capítulo 8
rais podem ser utilizados para criticar a produção da "Guerra do Golfo," afirmambs~· que as mudanças na imagem e na identidade de Madonna arti-
própiciru' uma leitura crítica do texto e ajudar a explicar ~eus efeitos sobre . cuá~itCOm transformações nos valores e na política da época; que suas
o público, bem como por que o público apoiou maciçamente a guerra. cbntradições captam aspectos conflitantes de seu momento cultural, e que
Nos últimos dez anos, pOrtanto, a cultúra da mídia tem desempenha- o "fenômeno Madonna" é sintomático de tendências básicas da época, de
do um papel cada vez mais importante nas eleições, nos embates políticos tal modo q~~ a interpretação dos textos de Madonna - e ela tem um texto
diários e na legitimação do sistema político. Os eventos globais vdculados próprio- pÚde elucidar características do momento presente. No entatÍto,
pelos meios de comunicação, como a Guerra do Golfo, demonstraram a efi- afirmanios'também que Madonna é um fenômeno de sua próp.ria produção
cácia do sistema bélico americano e·a hegemonia do poder militar ameri- e propaganda e de suas próprias estratégias de marketing, e que, por isso,
cano, enquanto outros eventos, como o espetacular funeral de Richard Ni- é preciso prestar atenção à economia política da cultura para interpretar
xon televisionado em 1994, demonstraram o poder do regime presidencial. adequ;ldamcnte o"fenômeno Madonna".
Os funerais de Nixon também expressaram. o mito de que qualquer um. Em "Mapeamento do presente a partir do futuro: de Baudrillard ao
pode chegar à presidência por meio dos cortes freqüentes da câmara· cyfxnpunk" (capítulo 9), examinamos a ficção cyberptmk e a teoria pós-
durante a cerimônia-para mostrar_ a casa modesta em que Nixon ~asceu. moderna como produtos da cultura da mídia que, por sua vez, apresentam
Além disso, surgiram novas formas de entretenimento televisivo visÇ_~s ficci<?nal-teóricas de uma sociedade cada vez mais dominada pela
durante essa época, e no capítulo 7 analisamos alguns momento&-chave da mídla e pela informação. Focalizando as semelhanças· entre a análise social
cultura televisiva nos anos 1980, entre os quais Miami Fiá• e outro "novo de Baudrillard e os romances de William Gibso.n, interpretamos ambos
visual" da TV, muitas vezes rotulado de "pós-moderno» ,A emergência dos como tentativas de mapear nosso presente, que está constantemente eséõr·
musicais para t,elevisão (MTV) revolucionou a indústria, fonográfica, fazen· regando para o futuro. Por meio de uma leitura atenta de NeuromancCJ;
do surgir novos astros multimídià como Madonna e MiChael }ackson. Tam- · afirmamos que tanto Baudrillard quanto Gibson nos apresentam visões dO
bém analisamos alguns dos modos como a publicidade oferece modelos de futuro que servem pam elucidar o presente. Essà análise leva" a crer que a
sexualidade e identificação, bem como a maneira como induz a comprar melhor maneira de ler Baudrillard é como ficção científica antiutópica,
determinados prodütos. embora_ o cybe1punk possa também ser lido como uma nova forma de teo-
Assim como acabou desempenhando papel fundamental na política ria social que mapeia as conseqüências de uma sociedade da iriformação'"
da época, a imagem também veio a ocupar posição central na cultura vei- da mídia-em rápido desenvolvimento na era do 'tecnocapitalismo, ·
culada pela mídia e na vida cotidiana do período, no sentido de que a ima- Numa conclusão, indicamos algumas das tarefas por serem realizadas
gem, a aparência c o eStilo pessoais foram se torn,ando. cada vez mais im~ · pelos estudos culturais e.algumas das questões quedes deyeriam exami"
portantes na constituição da identidade individual. Nesse contexto, na Par- nar· .no futuro. Os estudos que fazemos, em última análise, propõem o
·te ill apresentamos uma intetpretação de Miami Vice, da MTV,;-da publid- desenvolvimento de sínteses eritre teoria social, crítica cultural e pedago-
dade e de Madonna em correlação com a tese de qúe esses fenômenos são gia da mídia a fim de elucidar a ,sociedade contemporânea, a cultura e a po-
exemplares na produção de mudanças para aquilo que tem sidÔ identifi- lítica de nossos dias. Combinando fliosofia, teoria social, critica cultunil c
r

16 17
análise política, apresentamos algumas perspectivas de sociedade cultura era histórica de "pós·modcrnidadt:" e estudamos a pertinência da teoria
e métodos de critica cultura( fazendo alglmtas prOpostas para a re~o~strU­ pós-moderna para o estudo da sociedade e da cultura,
ção dos estudos culturais e da teoria critica da sociedade. Contudo, os Nosso argumento é de· qt~e. embora uma parte da teoria pós-moci.erria_
textos que se seguem não foram escritos apenas para o público acadêmi-· ducide certas camcteristicas novas e mais ev~dentcs de nossa cultura e de
co. Embora respondam a,os debates acadêmicos sobre o·método e 0 terre- nossa sociedade, a afirmação de que há uml!- nova ruptura pós-moderna na
no apropriados da teoria social e da crítica cultural, tainbém examinamos sociedade e na história é exagerada. Em vários eStudos, examinamos o uso
questões políticas e ·cultu~s atuais e as._<;im tentamOs escrever-para um pú- c o abuS'<)' da teoria pós·moderna e d.'lS afrrmações de que certa~ formas da
blico mais amplo. Nossa aspiração é explicar com clareza os termos teóri- cultura da mídia, como Madonna,Miami Vice, rap, 'f.~TV e·vária.~ outms são
cos complexos sempre que eles emergirem na argumentação e ilustraram- "pÓS-modcrnas".lambém abordamos a afiii~~{ção dC que é preciso uma
plamente nossas posições metodológicas e teóricas.~ _· nova forma pós-moderna de teoria e de estudo da cultura. pam· tratar ade-
quadamente da época contemporânea. Nosso argumento é que estamos
agora vivendo uma era ·de transição entre Omoderno c o pós-moderno," que
ESTUDOS CUlTUJVdS E TEORIA SOCIAL , cx~c.dê .t\Os atenção tanto às estratégias.c teoria'l modernas quanto às pós-
mddéihiãS·; resistindo, ~ssim, à assei-ção em favor de uma ruptura pós-mo-
Como já fizemos nota.r, acreditamos que a melhor rr:rma de realizares-- derl)a em história e da necessidade de uma teoria c de estudos culturais
tudos culturais é no contexto dá teoria critica da sociedade, c no capítulo pós-modernos inteiramente novos.
1 e nas seções seguintes indicamos de que modo a teoria crítica da Escola Ao cqptrário, afirmamos que a combinação dos melhores recursos
.de Frankfurt for;nece. perspectivas útds sobre a sociedàde contemporânea pl'OpiciadQs pelas teorias modernas com algumas perspectivas pós-moder-
e armas útds de crítica pam os estudos cultumis. Mas também indicamos ., ·nas novas'constitui o instrumental mais útil para se fazerem teoria social e
as limitações da Escola de J<rankfurt e ó modo como as per~pectivas sobre ~.

' crítica cultural hoje em dia. Nosso trabalho apresenta uma interseção com
cultuta e sociedade apresentadas pelos estudos culturais realizados na Gtã- o projeto de estudo cultuml desenvolvido pelo Birmingham Centre for
BÍ"etanha freqüentemente constituem uma correção das posições da Esco- tonterriporary Cultural Studics, da lnglaterm, desde o início dos anos 196ú
la de Frankfurt (embora tambéi-n acreditemos que certos a.<>pccios da abor~ até o prcs.ente. Esse projeto implicava a leitura da cultura a partir da pers-
dagem da Escola de Ft'.mkfurt corrigem as limit<ições dos estUdos culturaiS pectiva de produção e recepção de textos culturais dentro de contextos
hrirânicos).Além disso, utilizamos as contribuições do, feminismo e os pro- históricos concretos. Nossos alicerces são a tmdição dos estudos cultumis
jetos múlticulturalistas sobre sexo,sexualidade,raça,etnia,alteridade e mar-- britânicos, mas afirmamos que esse projeto precisa ser repensado e retra-
girialidadc que começaram a pmlifentr nos anos 1%0.'1\lmbém examina- baÍ1lado em resposta às condiçõ'es e aos desafios càntempot'lneos.A nosso·
mos a pertinência, para os estudos culturais, das inovações trazidas pelas ver, embora os estudos culturais britânicos tenham estado na vanguarda
teorias pós-modernas de Foucault, Baudrillard,Jamcson e outros, tentando dos estudos de cultura e sociedade durante algumas décadas, os recentes
analisar alguns dos aspectos proeminentes da atUalidade, tais como a socie- desenvolvimentos dos estudos culturais (que descentraram o foco inicial
dade de consumo e da mídia, as· novas tecnologias nas áreas de computa- nas classes) e a falha~ verificada em toda a sua história~ de cuidat• adequa-
ção, comunicações c informação, as· novaS formas de modá e cultura as no- damente da produção c da ~conomia politica da ct*ura signíficam que
vas.forn,las de poder e conhecimento, c as·~ovas modalidades de subjctiyi- agorn é necessário fazer um tipo di.f_erente de estudo cultural.la! estudo, de-
dade e identidade. senvolvido neste livro,constitui um tmbalho que, baseando-se nas interpre-
De fato, a atualidade é marcada por debates acalorados em torno da .. tações dos estudos c_ulturais britânicos, da Escola de Frankfi.rrt, de algumas
possibilidade de estarmos ,ou não vivendo aind;t a era moderna ou de já posições da teoria pós-moderna, do feminis mó c da teoria multiculturnl, ao
termos entrado. numa nova e9 pôs-moderna.Alguns dos que argumentam mesmo tempo as revisa, atualiza e rec~nstrói.
em favor do_ pós-moderno af'frmam.quc e:sramos vivendo um momento in- Em seus melliores trabalhos, os proponentes dos estudos culturais
teirafnente:J;tovo e original que exige novas teorias c políticas. O. téórico britânicos sempre contextualizamm suas investigações nas lutas e nos
francês Jean Baudrillal'd é um dos mais influentes defensores de uma mp- acontedmÇ!ntos sociopolíticos contemporâneos. Ao longo de noSsos eStu-
t~rn radical com as formas anteriores de sociedade,.cultura,·politica e teo- dos, tentamos situar as produções culturais ·examinadas no ambiente em.
na._ Nest_e livro, exami.na.«J.os a asserção Cle que estamos vivendo uma nova que nascemm e foram recebida.~, além de tratar das questões políticas fun-

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damentais articuÍadas nos textos· cultur.tis. O âmbito de nossos estudOs é i também são congruentes com nossos lívços Television and the Crisis ' of
constituído, aproximadamente, pela iiltima década da cultura veiculada Democracy (Kellner 1990) e The Persian GulfTI'War (Kellner 1992), que
pela mídia, que vai do início doS anos 1980 até o começo da década ·de
1990. Desse modo, situamos nos~os estudos no contexto das guerras cultu--
rais entre libemis, conservado'res e radicais que redurídou na hegemonia
I
i
mapeiam alguns dos modos .c;-omo a mídia se transformou em terreno da
política e das lutas sociais contemporâneas. Nesses textos, estamos interes-
sados nas maneiras como a mídia inibe e impede o projeto de democrati-
conservadora dos govemos Reagan e Bush, na sua constante contestação _zação di sociedade ou com_o poderia fomentá-lC?. Esses .primeiros textos
por liberais e radicais e na eleição do governo Clinton, mais liberal, em tentam-teoriZar o papel da núdia numa sociedade democrática, e continua-
1992. Mostramos de que modo os eventos políticos da époc_a, tais como o mos esse projeto neste livro. Mas embora os dpis livrOS ·anteriores ten<!am
tcimúo do reaganismo e a Guerra do Golfo, influenciaram a cultura da mí- a dar mais atenção aos noticiários e à informa~O:,_p,: preSénte estudo inter-
dia no periodo e de que maneira certas foi-mas populares de cultura veicu- roga uinà vasta gama de fenômeno~ da cultura dá Í:nídia e analisa ·o modo
lada pela mídia influenciaram o ambiente social e político da época. como várias _.formas dessa cultura prQduzem prazer, opiniões e identidades
Durante todo o tempo, fazemos uma pedagogia.critica dá mídia· cujas que inibem op fomenta~ as nietas de maior democracia, igualdade e de
finalidades são: possibilitar que os leitores e os cidadãos entendam a cultu- uma sociedade realmente multiculturaL
ra e a sociedade em que vivem, dar-lhes o instrumental de crítica que os \{'·~..:
ajude a evitar a manipulação da núdia e aproduzir sua própria identidade
e resistência e inspirar a. mídia a produzir outras formas cliferentes de trans- A<1RA0H:JMENTOS
formação cultural e sociaL\ pedagogia crítica da mídia desenvolve concei- · <

tos e análises que capacitam os leitores a dissecar criticamente as prOdu-


''"
Pelos utilÍssimos comentários sobre muitos dos textos c pela discüs-
ções da mídia e da cultura de consumo contemporâneas, ajudam-lhes a des- são de sua teffiática, somos imensamente ~tos ao amigo e colàborador
vendar significados e efejtos sobre sua própria cultura e conferem-Utes, Steve. Best.Thmbém nos ajudaram- com comentários, inte"rpretações e mate-
assim, poder sobre seu ambiente cultura( rial de grande utilidade:RobertAntonio. DavidArnÍstrong,Ann Cvctkovich,
Partimos do pressuposto de que a critica cultural e a pedagogia da mí- .Jon Epsteiri, Henry Giroux, Darrell Hamamoto, !<elly Ol.Íver, Danny Postal,
dia e~igem teoria social, e de que a teoria crítica da sociedade, por sua vez, Valerie Scatamburlo, bem cômo os redatores e os leitores dos periódicos
deve basear-se nos estudos de mídia e cultura e nos métodos da critica cul- nos quais alguns desseS ártigos foram publicados, embora em _formas dife-
tural pam atingir maior comp'i·ecnsão das qualidades essenciais da vida so- rentes. SomOs extremamente gratos a)on e Margarete Epstein pela produ-
daJ contemporânea. Esse projeto, portanto, combina estratégias metodOló- ção gráfica das ilustrações.' As imagens da cultura da mídfa estão circulan-
gicas, teorias e conceitos extraídos das teorias modernas e pós-modernas,· do por'Sfiovos espaços e· exigem novas-tecnologias para análise e disseca-
na tentativa de apresentar perspectivas críticas sobre os fenômenos cultu- ção. Também queremos agradecer a Chris Rojek, que nos deu grande apoio
rais e sociais mai's importantes dos nossos dias. UtiUzamos e elaboramoS no projeto e grande ajuda em termos de objetividade do t<."Xto, dando início
idéias básicas expostas em obras nossas passadils e contiriuamos a delinear ao seu processo de prodilção.Também agradecem<?s a Diane Stafford, que
aS; trajetórias da teoria, da cultura e da política contemporâneas. Inspiràdo fez um excelente trabalho de edição das inclusões e agüentou nossas con-
pelo projeto da Escola de Frankfurt, que_ tenta elaborar aspectos teóricos tínuas revisões e mensagens. Mas somçs especialmente gratos a Rhop_da
da atualidade, este estudo deve ser lido como exemplo de critica culturàl a Hammer pelas suas constantes críticas, pel? material forilecido, pcb:s cor-
fornecer fragmentos de iuna teoria crítica da sociedade e - esperemos - al- reções cuidadosas e pelas idéias qúe ajudaram muito a desenvolver este
guma inspiração para uma nova política futura de'libertação. estudo.
Ademais, os estudos que se seguem devem ser lidos emc~njunto com
algumas de nosS"as obras anteriores, conio Çamera Politica (em co-autoria
com Michael Ryan, 1988), que tentava mapear as vicissitudes da cinemato- _
grafia de Hollyvvood desde meados dos anosl%0 até meados da década de
1980 e desenvolver, para <rinterprc;:tação dos textos culturais, metodologias
ctjticas que definissem os modos como vários textos promovem ou inibem 1 A computação gcificá e rr capa {da obrn original} foram criada~ por ]on S. Epstein e
as metas dos movimentos politicos progressist<lS. Os estudos deste volume M2o:garet .L Epstein pa1-a The Web.

20 21
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Parte
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Teoria
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1 Guerras entre teorias e


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I estudos culturais
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' ViVemos um tempo de mudanças e transformações drásticas. Desde
os anos 1960, houve um série de modificações espetaculares na cultura e
na sociedade de todo o mundo. Os anos 1960 foram uma época de prolon-
~ gados tu~ultos sociais em que a todo momento surgiam novos movimen-
tos sociais a desafiarem as formas estabelecidas de ·sociedade e cultura e .a
.produzirem nOvas contraculturas e forJ!Ias alternativas de vida. Geraram
uma era de intensas "guerras cultura,is" entre liberais, conservadores e radi-
cais no sentido de reconstrução da cultura c da sociedade segundo seus
próprios programas, guerras que continuam sendo travadas na atualidade.
Durante os anos 1970, a recessão econômica mundial fez estourar a bolha
de prospcrid~te do pós-guerra, e o discurso sobre uma "soci~dade da póS-
esqtssez" foi substituído por outros, que falavam de diminuição das expec~
tativas, redução do crescimento e necessidade de reorganização da econo-
mia e do Estado.Tal reorgatúzação ocorreu na maior parte do mundo capi-
talista durante os anos 1980, na vigência de governos conservadores que fi-
zeram cortes nos programas de bem-estar social ao mesmo témpo que ex-
_-_i pandiam o setor militar e at1mentavam o déficit das contas públicas, com
dívidas maciças que ainda não foram pagas.
Nos últimos cinco anos também se assistiu ao colapso do comunismo
soviético e ao fim da Guerra. Fria. Depois da Segunda Guerra. Mundial, os
países capitalistas e comUnistas começaram a competir pela hegemonia.
econômica, política e cultural. As forças de ambos os blocos promoveram
guerras frias e quentes, com resultante militarização e guerras encobertas
e abertas entre países satélftes das superpotências. O inonstruoso arSenal
militar em ambos ·as lados e as armas de destruição total cdaram uma
época tensa é temerosa, du~nte a qual demagogos e burocra.t~ dnkos.. po-
diam aterrorizar populações, k\-'<lndo-as a gcdtar políticas· sociais que be-
neficiavam priricij>a!mentc os ávidos e poderosOs, enquanto iam sendo

25
adiadas muitas 'reformas sociais necessárias e a criação de uma ordem so- Nos Estados Unidos e na maioria dos países capitalistas, a mídia vei-
cial mais justa e eqüitativa. · cula. uma forma comercial de cultura, 'produzida por lucro e divulgada à
A derrubada do muro de Berlifr!., a queda do império coffiunista soviéc _mineira de ,mercadoria. A co:mercialização e a transformação da cultura em
tico e a dissolução final da própria União Soviética pareciam p.ôr fun .1~· pe- riícrq.doria trazem muitas conseqüências importantes. Em primeiro lugar,
sadelo. O resultado, porém, não foi a criação de uma n9va era de paz e es- a produção com vistas ao lucro significa que os executivos da indústria cul-
taPilidade. Em vez disso, explodiram guerras nacionalistas e religiosas,
,criando uma nova era de medo e instabilidade, sem forças políticas caPa-
zes de oferecer uma via atraente para se sair do pantanal da recessão ecO.
I
. "!
tural tentam,. produzir coisas que Sejam populares, que vendam, ou que :..
como ocorrê com o rádio e a televisão - atraiam a audiência das massas.
Em muitos casos, isso significa prOduzir um J11Ínitno dCnominador comum
nômica, da instat?ilidade política e da confusão cUlturaL Nos Estados Urii- que não ofenda as massas e itraia um m~"O. de compradores..Mais
dos, também se intensificaram as guerras éuliurais, em que os assàltos direi- precisamente, a necessidade de vender significa que as produções da in-
tistas ao ~politicamente correto" funcionaram como arma de ataque às dústria cultural devem ser eco da vivência social, atrair grande público e,
forças e idéias progressistas. portanto, oferecer produtos atraentes que talvez choquem, transgridam
Na última década ta.mbém surgiram novas tecnologias que mudarnm e
convençõés contenham critica social ou expressem idéias correntes pos-
os padrões da vida cotidiana e reestmtur.tram poderosamente o trabalho c sivelrrie"~&t~c;~iginadas por movimentos sociais progressistas.
o lazer. As novas tecnoiQgias do.computador substituíram. muitos empre- ' 'Portanto, enquanto a cult-Úra da mídia em grande parte promove os
gos e cria!'am putros novos, oferecendo novas formas !le acesso à informa- . interesses da5 classes que possuem e controlam os grandes conglomerados
ção e à comunicação com outras pessoas e propiciando as alegrias de uma dos meios de &:;omunicação, seus produtos também participam dos confli-
riova esfera pública informatizada. As novas tecnologias da mídia e da infor- tos sociais C!:J.tre grupos concorrentes e veiculam posições conflitantes,
mática, porém, são ambíguas e podem ter efeitos diverge.ntes. Por um lado, ,' promovendo 'às vezes forças de resistência e progresso. Conseqüentemen-
te, a cultura Veiculada pela mídia não pode ser simplesmente rejeitada
proporcionam maior diversidade de escolha, matar possibilidade de· auto-
nomia cultural e maiores aberturas para as intervenções de outras cufturas como um instrUmento banal da ideologia dominante, mas deve ser intcr-
e idéias. No entanto, também. propiciam novas' formas de vigilância e ·con- preta<~a e contextualizada de modos diferentes dentro da matriz dos discur-
trole, em que os olhos e sistemas eletrônicos instalados em locais de ttab~­ sos e .das forças sociais concorrentes que a constituem - como tematemos
lho fi!ncionam como encarnação contemporânea do Grande Irmão.AS no· fazer neste livro.
vas tecnologias da mídia também propiciam podemsas formas de controle Contudo, em certo sentido, a cultura da mídia é a cultura dominante
social por meio de técnicas de doutrinação e manipulação mais eficiêntes: hoje 9Jl dia; substituiu as formas de cultura elevada como foco da atenção
sutis c ocultas. Na verdade; sua simples existência já cria a possibilidade de e de i&pacto para grande número de pessoas. Além di'sso,_~;uas formas vi-
minar as· energias políticas e de mantc::r as pessoas bem guardadas dentro suais e verbais estão supla11tando as formas da cultura livresca, exigindo no-
dos confins de seus centros de entretenimento doméstico, distantes dO tu- vos tipos de conhecimentos para descodificá-Jas. Ademais, a cultum. veicu-
multo· das multidões e dos locais de ação política de massa. , lada pela mídia transformou-se numa força dominante de socialização: suas
Como fenômeno histórico, a cultura da mídia é relativamente reCeO" imagens e celebridades substituem a família, a escola e a Igreja como árbi-
te. Embora as novas formas da indústria cultural descritas p.or Horkheimer tros de gosto, valor e pensamento, produzindo novos modelos de identifi-
e Adorno (1972) nos anos 1940 - constituídas por cinema, rádio, revistas, cação e imagens vibrantes de estilo, moda e comportamento.
histórias em quadrinhos, propaganda e imprensa-, tenham conieçado a co- Com o advento da cultura da mídia, os indivíduos são submetidos a
loniza,r o lazer e a ocupar o centro do sistema de cultura c comtinicação um flu;.;o sem precedentes de imagens c sons dentro de sua própf.ia casa,
nos Estados Unidos e em outras democracias capitalistas; foi só com o ad- e um novo mundo virtual de entretenimento, informação, sexo e política
vento da tdevisão, no pós-guerra, que a mídia se transformou ein força do- çsiá reordenando percepções de espaço e tempo, anulando distinçõe's
minãnte na cultura, na socialização, na política e na vida social (Kellner, entre realidade e imagem, enquanto produz novos modos dt; experiência e
· 1990a).,A partir de então, a TV a cabo e por satélite, o videocassete e outras subjetividade. Essas mudanças políticas, sociais e culturais de longo alcan-
tec~ologias de entretenimento doméStico, alé~ do computador pessoal.- ce fomm acompanhadas por uma espetacular proliferação de novas teorias
ma1s recentemente - aceleraram a disseminação e o aumento do poder da··· c inétodos que ~judam a entender a _cultura e a socie,d.'lde contemporâneas .
.cultura veicula~'! pela mídia. Jfr nos anos 1950, os teóricos sociais proclamavam o advento de, novas so-

26 27
ciedades pós-industt"iais nas quais o conh~cimento e a .informação seriam Essas mudanças drásticas exigem novas respostas teóricas e políticas
o ~principio axial" em torno do qual a sociedade se organizaria (Bell 1960, 'para interpretar no'ssa atual situação social e para elucidar problemas, con-
1973 e 1976). Dlirante os anos 1970, começaram a sur1Pr argumentos de flitos,desafios e possibilidades contemporâneas.Na corijuntura effi que nos
·que a modernidade estava acabada, e de que eStávamos agora- numa nova encontramos, os estudos cultUrais podem 'desempenhar importante papel
era pós-rtwderna (Baudrilla.rd, 1976 e LYotard, 1984) - argumentos que ge- .na ehJcidÍl.ção das altemçõcs significativas qlic têm ocorrido na cultura e na
raram uma explosão de discursos sobre o pós-modernismo nos anosJ970 soclidad!;~de nossos dias. Estamos de fato rodeados por novas tecnologias,

e 1980 (encontra-se um apanhado em Best e Kellner, 1991). novos ):riodos de produção cultural e tiovas formas de vida social e políti-
Alguns, teóricos do pós-modernismo argumentam que as sociedades ca. Ademais, a cultura-está dcsempenhandoi!-J!!l papel' cada vez mais- impor--
contemporâneas, com suas novas tecnologias, novas formas. de cultura e tante em todos os setores da sociedade conteíiiP'orânea, com mültiplas ftm-
novas experiências do presente, constituem uma ruptura decisiva em çõeS em· campos que vão do econômico ao social. Na economia, as sCduto,.
reJação às formas modernas dç: vida.l Para eles, o cativo do satã, incansável '-_i ras formas culturais modelam a demanda dos consumidores·, produzem,ne-
surfista das ondas de iv, e o jóquei do computador plugado no dberespa- ássidades e moldam um eu-mercadoria com valores consumistas. Na esfe-
ço e nos novos mundos da informação e do entretenimento constituem um ra· P9~~t};n.·,~~ imagens da mídia têm produzido uma nova espécie de politi-
espantoso desenvolvimento evolucionário, um'a decisiva novidade na a,;en- cã deSfi~és de impacto descont(.':,....tualizadas, o que ll1e confere posição
tura humana. Os midiólatras e tecnomaníacos da atualidadé são vistos c~~tral da vida política. Em nossas interações sociais, as imagens produzi-
como caçadores-coletores de informações e entretenimento, desafiados a dás para a ~assa orientam nossa apresentaçl!o do eu na vida diária, nossa
·SObreviver a uma sobrecarga de ''itúoentretenimento" e a processar uma · maneira de ·f:ios relacionar com os outros c a criação de nossos valores e
.espantosa quantidade de imagens e idéias. Assim como o mutante retrata- objetivos sqciais. À medida que a importânciâ do trabalho declina, o lazer
do por David Bowie em The .Man Wbo Fell to Earth, os novos indivíduos e a cultura ocupam cada vez mais o foco da vida cotidiana-e assurriem um
pós,modernos, como se afirma, terão de aprender a conviver com uma lugar significativo. Evidentemente, devemos trabalhar para auferir os bene-
imen-sa fragmentação e proliferáção de imagens, informações e tecnolo~ias ficios da sociedade de consumo (ou para herdar riquezas suficienteS), mas ·
nOvas, que precisarão processar. supõe-se que u tmbalhu esteja declinando em Importância nu_m~ era em
Ao mesmo tempo,·-'as economistás políticOs começam' a dizer que e;s- que, segundo se alega, os indivíduos obtêm mais Satisfação do consmno de
tamos entrando numa nova sOciedade "pós-fordista" em que ·o regime dC bens c das atividades de lazer do que das atividades laboriosas:~
aó.tmulação caracterizado pda pro'dução e pelo consumo de massa,-pela Portanto, a sociedade e a cultum contemporâneas estão num estado
regulação estatal da economia e por uma cultura de massa homogênea está de ft;rmentação e mudança, enquanto tcori<lS contrapostas se esforçam por
~endo sUbstituído por regimes "mais flexíveis" de acumulação a-Iarvey explicar esses novos desenvolvimentos. A arena de lutas da teoria, somam·
1989). Estes são caracterizados por empresas transnacionais, que substi- se as guerras-culturais entre conservadores, liberais e progressistas, em que
tuem o Estado-nação como árbitro da produção numa nova era de produ~ os conservadores tentam zerar os avanços dos anos I 960 e impor valores
çào global que apaga as fronteiras antdiorc::s de espaço e de tempo. Outros e formas de cultura mais tradicionais. Em todo o mundo ocidental, os con-
téóricos sociais falam em-" capitalismo desorganizado" ou em novas formas· scn'<!dorcs têm tentado obter hegemonia assumindo o poder político e
de organização, bem como em novas_ crises de legitimação, novos riscos, usando-o para concretizar seus programas econômicos, políticos, sociais·e
problema~ ecológicos, desagres:ação da cOmunidade, abismos cada vez culturais. Têm empregado o poder político c econômico para pôr em prá-
maiores entre ricos c pobres, novas doenças mortais como a AIDS e uma tica um progi'ama de transformação cultural, tentando fazer o relógio vol-
miríade de Outros novos fenômenos e problemas.' tar para uma era anterior de governo conservador.

2 Como argumentamos abaixo, foram Baudrillnrd e seus seguidores que propusenm a 4 F.sse quadro da sociedade do lazer e do conMnno pode ser ~d.eológico. Estudos recen·
ruptura mais exrreinn entre sociedades rilodent~ e pÓs·modemas. Paro~ estu<:)o da sua tes mostmh• que o nítmero de hons dedicadas ao tmbalho nos Estados Unidos nunc:t
teoria pós-moderna e de outros, ver Kellner I989b e 1989c Best e Kellner 199 L· e Kell- foi tão elevado; ver o estudo de Sdtorr The Overu:orkcd AJIN11can (1992). No entan-
ner 1994a. · - ' .. ' to, também há tendências tecnológicas que poderiam kvar à dinli!ltlição das h()t'as diá-
rias de trabalho, 'Ver Gorz 1982 c 1985 c um artigo no Neu> York Times (24 de novcin-
3 Sobre o·'pó~-fordismo"ver Harvey, 1989. Sobre o"capitalismo clesorganizado"vcrOffe bro de 1993:AJ) indicativos de qve houve um ~ério movimento na Europa para redu·
1985 e Lasli e Urry 1987. Sobre a "sociedade de risco", ver Beck 1992. zir o tmbali1o a quatro dfas por semana.

28
-
I[
Nos Estados Unidos, têm sido travadas intensas gu~rras culturais desde
qu~ os movimentos dos anos 1960 assestaram os primeiros assaltos dirct~s J
':J
Os filmes de Hollywood atacam com freqüência as mulheres e o feminismo,
celebrarido as mais grotesc,as formas de poder masc.'Ulino e machismo irres-
contra os valores e as instituições conservador-AS. Richard ·Nixon estabele· 'l ' tritos.' A «paranóia masculina t: branca" é evidente em todos os meios cultu-
rais, desde os monólogos dos cômicos até as entrevistas de rádio, e a ofensi-
ceu tempomriamente uma trôpega hegemonia conservadora no ·início dos
anos 1970, mas sua saída em decorrência do escândalo Watergate desenca-
deou um novo round de guerras Culturais. A contra-re\'oiução conservado-·
I' va cultural conservadora alastra-se invicta. ·
Gúerras culturais semelhantes ocorrem em toda a Europa. Na Grã-Bre- ·
ra tornou-se hegemônica nos Estados Unidos' com a eleição de Ronald tanha, a heg'ê"monia conservadom dos governos Thatcher e Major sofreram
Reagan em 1980 e a ascensão d;J Nova Direita, que deu respaldo a se1,1 triun- fortes ataques, c o poder conservador foi minado, mas mesmo assim a mí·
fo sobre os democratjtS, os liberais e os radicais que mantinham a mesma po- diil e a cultura ainda manlfestan1 fortes tendênCias'consi:rvadoras. Na Fran-
lítica c os mesmos valores dos anos 1960.A ascensão anterior de dfreitistas ça, o gov~rno socialista dC"~fitterand foi decisivamente derrotado em 1993
como Margaret· TI1atcher na Grã-Bretanha, Brian Mulrooney no Canadá e por forças conservadoras, e os governos social~emocratas da Holanda da
Kohl na Alemanha gerou um periodo de hegemoni.1. conservadora em todo Dinamarca e da Suécia também sofrefam derrotas nos últimos anos.As ;en-
o mundo capitalista ocidental. Durante essa era, os conservadores atacaram tativas de uiiif!'car Politica e economicamente a Europa sofrem a oposição
o Estado do bem-estar social, o direito ao abortO, as liberdades civis; a liber- de novbS%;<;b'rtbs nacionalistas da Escandinávia ao leste europeu, e as· forças
<!ade em artes e a libcmlização da ·educação, tentando impor um programa favoiáv<;is e contrárias mostram-se igualmente divididas. No mundo árabe,
direitista e tradicionalista ao público. No entanto, essa ofensiva da direita o fundamentalismo militante está em marcha contra regimes leigos e oci-
nunca triunfoú realmente no campo da cultura, que tem sido-uma arena de dentalizados, e-nguanto no antigo mundo comunista as h1tas entre forças
lut.-1s ferozes nas últimas déuldas.' nacion.ais, étniças, religiosas e políticas transformaram-se em guet·ras horri·
À medida que cnr:n"..m~s nos anos 1990, os conservadores dos Estados veis. A miséria·,- e a opressão continuam crescendo aceleradamente nas re-
Unidos continuam opondo-se ferozmente aos liberais, que agora estão no giões mais subdesenvolvidas do planeta, e os desventurados da Terra pare-
poder depois da eleição de ~ill Clinton; em 1992. Ql!ando Clinton tenta ' - cem mais desventurados que nunca.
avançar com um prowama parcialmente liberal. suas propostas são ·at;acadas No entanto, também há tendências compensadoras. Os movimentos
com unhas e dentes pelos conservadores, ao ~ontrário do que acontecia sociais progressistas dos anos 1960 e 1970 ainda estão vivos e passam bem,
com as de Reagan, que era capaz de implementar prontamente seu progra- e as lutils pelos direitos humanos, pelas liberdades dyis dos oprimidos, pela
ma econômico (provavelmente porque era apoiado pela grande mídia e paz e justiça, pela ecologia e por uma organização mais humana da socie-
pelos altos negócios, que exercem tremendo cOntr,.ole sobre os políticos· de dade são visíveis qn todos os lugares. Na verdade, a própria instabilidade;
ambos os partidos principai:;). Por outro lado, o próprio Clinton tem cada as mudlnças continuas e as incertezas da atualidade criain aberturas para.
vez mais implementado um programa conservador e em certo sentido o futuros e possibilidades mais positivas na criação de um mundo melhor a
"reaganismo" mantém sua -posição de "senso comum' p'olitico"·e de discur,so partir do pesadelo atual. Por outro lado, a inclinação à politica de horiZon-
dominante da era.Ademais, tanto a tele~são quanto o rádio nos Estados Uni· tes estreitos e/ou individualistas fr.tgmenta os movimentos progressistas e
dos continuam sendo dominados por vozes conserva.doras, e as mesmas Ve- torna muitos de seus participantes cegos para as necessárias ligações e in-
lhas tOntes de ideário e publicações direitistas se constituem nas autorida- terconexões com os outros na oposição ou nas lutas contrárias às forças
des que pontificam sobre o estado da nação, enquanto novos brutos reacio- hcgemônicas.
nários como Rush Limbaugh também ganham poder na mídia e na cldtura." Nesse contexto, portanto, é de vital importância entender o. papel da
qtltura numa vasta gama de lutas sociais, tendências e desenvoMmentos
em curso. Os estud.os apresentados· neste livró dão· nos a convio;:ão de que c

5 Ver Kdlner e Ryan 1988 para un) estudo d~s disputas desse tipo no cinema de
Hotlywood entre meado~ da década de 1960 e de 1980, e' Kdlnet l990a para um
estudo da arena de lutas na relevisão americ:ma. Sobre o "direitismo" nos .Estadps Uni· dores ria çonfonna,.'iio da opinião pública e na continuidade da ofensiva conservadom
J
dos, \'er FCfb'Uson e Rogers 1986. Sobre o trtunfo do thatcheri~mo na Inglaterra, ver Hall no rádio, na televisão e em outros domínios cultnmis. :i-1
e Jacques 1983 e Hall 1990. '"
i.;
7 Jeffdrds (1994) argumenta que a <'U!tur;J. e a política americanas manifestaram a ten·
6 Ver Altennann 1992 e o número de 29 de m:u'(;o de 1993 da Nuwsweek sobre a "pa· dência à "remascu!inlzaçiw da AmériCI" depois da derrota militar ito Vietnã, e Faludi
mnóia branca masculina"com e\'idênda do papel de' ideó!ogos e intelectuais conserva· (1991) interpreta a nova cultura masculinista' como uma teaçiio ao feminismo.

30 31
as situações locais, nacionais c globais dos nossos dias são articuladas entre
si por meio dos te.."\.1:os da mídia; esta, em si mesma, é uma arena de lutas
que os giupos sociais rivais tentam usar com o fim de promover seus
próprios pwgram~<; c ideologias, e ela mesma reproduz discursos-políticos
conflitantes, muitas vezes de maneira contraditória. Não exatamente o no-
ticiário e a informação, mas sim o Cntretenlmento e a ficção articulam con-
flitos, temores, esperanças e sonhos de indivíduos e grupos que enfrentam
um mundo turbulento c incerto. As lutas concretas de cada sociedade são
postas em cena nos textos da mídia, especialmente na mídia comercial· da
indtistri'!- cultural cujos textos devem repercutir as preocupações do povo,
se quiserem ser populares e lucrativos. A cultura nunca ·fof mais impo<-
. -
tante,e nunca antes tivemos tanta necessidade de um exarite sério e minu-
cioso da cultw.-a contemporânea.
.

ConseqÜentemente, para entender o que está acontecendo em nossa


sociedade e em nossa vida diátia, precisamos ter, sobre a cultura da niídia
e as teorias sociais, perspectivas teóricas que nos ajudem a explicar as mu-
danças c os conflitos da fase atua!. Em todo este livro,_ delinearemos pers- \
pectivas teóricas que achamos titeis para a compreensão das vicissitudes
da sociePade c da cultura conteinporâneas. 8 Mas o destino das teÔrias está
vinculado às n1,.-1.trizes históricas que o conformam e estruturam, e ele, por
I
sua vez, tenta elucidá-las. Por cons_eguinte, no estudo que se segue, esboça-
remos a emergê-ncia c os efeitos de algumas teorias contcmporânc·as qtlt
utilizaremos neste trabalho.

GUH~H.AS EN'l'HE '11~0Rli\_S

Nas últimas décadas de inlensa luta cultural, social c política desde os


anos I 960 tambéin assistimos ao surgimento de muitas teorias· e aborda-
gens novas à Cultura e à sociedade. É como' se as lutas tumultuosas dessa
em buscassem expressão e reprodução no campo da teoria. As paixões e
energias políticas pact:ciam ser sublimadas no (l.iscurso da teoria, e as ~o- ·
I
8 Convencidos do engano dos que «rgumentam "conu-a a teoria" (por.eXenlplo, Rorty
et alJ c acredita'ndo lJUC a~ teorias são úteis à elucidação do nosso mundo social, n<:~
te lívro pretendemos refletir sobre a natureza e a função das teorii1s sod"!is, pois não
há cbns~nso nem evidência sobre o que são as teorias sociais, o que fuzem e quais ~o
seus valores e limitações. As perspecti~·as teóricas que esboçaremos talve;;:: sejam in-
fluchd;"~dàs sobretudo pela teoria crítica da Escola de Frankfurt (ver Kel!ner t%9a e
__Bronner c Ke!lncr 1989) c p~la teoria pós-moderna (v~ r Kcllncr l989b, 19S9c,c Bcst e
Kellner 1991), cmbont também se baseiem bastante fta teoria ü:minista e n<~ IT\ultkul-
tural, na tentativa de desenvolver algum~s novas pcrspecti\'aS teórkas para ducict..r
nossa atualid:lde.

33
32
'
vas teorias eram adotadas com a intensidade que caractetizou a assimila'ção projeto mdical. 10 Ocorremm muitos casamentos- freqüentemente infelizes
e a disseminação de idéias politlcas e pciticas radicais nos anOs 1%0. A - entre marxismo e.· feminismo, enquanto outras variedades da teoria femi-
proliferação de novos discu.rsos teóricqs primeiramente tomou .a forma de _Jlista encontravam importantes ferramentas na psicanálise para o estudo da
febre teórica, na qual cada discurso teórico novo, ou recém-descoberto, opressão e das experiências das mulheres e para a reconstrução de indiví-
produzia entusiasmo febricitante, como se um novo VÍfl!S teórico tomasse duo.s mais acolhedoreS, sensívt:is e amorosos. Portaflto, assim como ocorreu .
conta e se apossasse de seu hospedeiro. Então a febre teórica eril prolifera- com o marxismo, emergiu uma enorme gama de teorias feministas, muitas
ção assumia a forma de guerras teóricas entre discursos teóricos rivais, re- vezes e~- guerra entre si asSim como contra os discursos masculinos.
duzindo muitas vezes a;eoria ao domínio da ~·oda. · Alguns grupos anteriormente margin:_t4zagos procuraram fazer-se ou-
A febre teórica surgiu nos anos 1960 na França, quando a proliferação vir, e nos Estados Unidos emergiram novoS·di~cursos e estudos das mino-
de novos discursos cnUnou da teoria pós-estruturalista::Réjeitando as teo- . rias negras, indígenas, h.ispãnicas, asiáticas e outras. Os estudos em torno da
rias totali?;'adoras, universalizantes e ciehtifidstas do estruturalismo, da se- hoptossex.ualidade masculina c feminina problemati"zaram a s~1alidade e
miótica, da psicanálise, do iuarxismo e de outros "discursos.mestres;, que apreserítaptm novas perspectivas sobre sexo, cultura e sociedade. Teóricos
produziam a febre teórica e as guerras entre teOrias de uma era anterior, a -. .
freql!~A~Jnente ori~ndos de países colonizados produziram novos estudos
revolução pós-estruturalista viu a proliferação de novas teori~;t~ da lingua- subsiã1liriOs, atacando a colonizáção ocidental, enquanto os estudos s"obre
gem, do sujeito, da política e da cultura. No entanto, voltando-se exatamen- O~pós-coionialismo" e as vozes das nações recém-criadas produziam algu-
te para as teorias cujas afirmações mais extravagantes rejeitava, o movi- mas instigantes inovações teóricas ·e expandiam muito o terreno dos dis-
mento pós-estruturalistá apresentou novas sínteses do marxismo, da psica- cursos crítiiios. Cumulativamelite, esses discursos contdbuíram para· algu-
nálise, da semiótíca e do feminismo, produzindo uma quantkL'tde luxurian- mas das mais interessantes teorias sociais e criticas culturais dos últimos
te de discursos teóricos, que circularam por todo o mundo. anos, e no· presente estudo daremos atenção a esses novos discursos con-
Nos Estados Unidos, onde reinaram nos anos 1950 e início .dos 1960 testadores.
as formas daquilo que Herbert Marcuse chamou de ~pensamento unidi- Embora o tumulto dos anos 1960 tenha dado lugar à maior tranqüili-
mensional", o marxismo. e o femiflls-tno foram as primeiras formas de'febre dade dos anos 1970, a explosão das teorias cOntinuou, haven40 uma inten-
teórica a circular. As experiências da guerra do Vietnã rios anos 1960 con- sificação das guerras entre teorias. 11 Deu-se uma nova globalização teórica,
duziram muitas pessoas da Nova Esquerda e do movimento antibelicista visto que os novos discursos eram rapidamente disseminados pelas culturas
para a teoria marxista, que durante a Guerra Fria foi tabu e vive!.( no oStra- periféricas e nacionais. Os teóricos do Terceiro .Mundo e doS Estados Uni~os
cismo.' O discurSo ma"txista proliferou,e uma espantosa variedade de teo- · ap.t;gpriavam-se dos discursos europeus, e as novas teorias críticas resultan-
rias neoniarxistas foi importada da Europa c do lCrcciro Mundo, produzin- tes,·por sua vez, circularam por toda a Europa. Os discursos em torno de
do uma grande quantidade de novas teorias radicais. raça, classe, etnias, preferências sexuais e nacionalidades desafiavam os dis-
O feminismo logo passou a ser parte dos novos discursos teóricos em cursos téóricos a explicar fenômenos antes ignorados ou s,ubestimados. Ti-
todo o mundo. No fim dos anos 1960, por meio de movimentos-radicais,
as mulheres começaram a revoltar-se contra aquilo que consideravam prá- lO Sobre as suc~ssivas ondas de feminismo ttue aparecemm pl"imeiro nos Estados Uni-
ticas opre~sivas das sociedades patriarcais contemporâneas e de seus con- dos duram e os anos 1960, ver descrição t'lll Willis 1984; sobre o feminismo nos Estados
Unidos nos anos ·1990, ver Faludi-1991 e Brenner 1993. Sobre o infeliz Ci1.5antent(O) entre
sortes. A primeira onda de feminismo dos anos 1960 descobriu clássicos
mm:xismo e feminismo. ver Hartman 1981. Para um exemplo do feminismo psicanalíti-
como O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, texto feminino de gr-,mde co, ver MitcheU I974.Acerca do ft'minismo na.Grã-Bretanha, ver Bah"ctt 1980. ·
riqueza, e a importância da experiência e da cultura das mulheres para o
11 curiosamente John Fiske atribui a importação e a popularidade das teQrlas eur<r
péias nos Estados Unidos e em outros países a um rcagani:;mo que apunlla a L1.lsida-
de do consenso liberal e a realidade das divisões de dassc c das desiguildadcs, Oque,
9 Ver Ho'-"<~td e Klare 19;2. Na Europa, por outrO lado, o marxismo fez parte do inte- supostamente acabou por tomar 05 americanos pragmáticos sensíveis às teorias euro"
lectual discurso mais difun.dido, embora tendesse a ser monopolizado pelos partidos pé ias que res:oaltavam o conflito, as desigualdades c a luta (1993: 40). Mas, na verdade,
mat-xistas.Acerca do impacto do marxismo sobre um espectro divcrsüicado de Campos conforme arj;ument.unos neste livro, a import')ção das teorias européias comt"çou nos
acadêmicos nos Estados Unidos, v<:r ouman eVcrnoff, 1982.Quanto à Grã-Bretanha, ver anos 1960 e intensificou-se nos anos 1970 c 1980, bell!- antes que o reaganismo expu-
',v~:erson 1980 e Davies, no prelo. sesse as mentiras do consenso libcml.

34 35
.:.

veram início (e ainda persistem) guerras entre os que privilegiam a classe e c prática Cultural. O que Hal .Fostcr (1983) dt~rriou de "pós-modernislno da
os que privilegiam coisas· como raça ·e sexo. Finalmente, prevaleceu uma tré- resistência" tenta desenvolve~ prátic~s teóricas e culturais contestadoras na
gua com o consenso de qqe todos esses determinantes de identidade social atualidade, contra as características e piáticas mais opressivas da cultura. e
e da estruturação das categorias sociais são. de fundamental importância -da sociedade contemporâneas.
.para a vida social, a análise cultural e a subjetividade individuaL N~s anos 1990, muitos dos noVos discursos teóricos ~nharam-se sob
Nos anos 1980, os novos discursos teóricos globais trouxeram lingua- 0
rótulo de "multiculturalismo". Afirmavam a altcridade c_a diferença, bem
gens ptopídas à comunicação além-fron_teiras, mas tãmbém. disseminarnm a omo a importância de atender aos grupos marginalizados, minoritários e
globalização da febre teórica e das guerras entre teorias. A.~ febres teóricas ~ontestadores, antes excluídos do diálogÜi_:ç.~!tural. -o multiculturalismo
continuaram a proliferar, c de áerkclcy a Bombaim, de Austin a lon~res, provocou novas guerras culturais, uma vez qu~;Contra a ofen$iVa multicul-
emergiram novas sínteses de marxismo, feminismo, psicanálise, pÓS'Cstrutu- tural os conservadores defenderam a cultura ocidental, com seus cânot?-es
ralismo e teorias pós-moder!J.as, em que se reclamava um novo discurso da ditados por grandes homens europeus (sobretud!)).Opondo-se ao multicUI-
teoria que desse atenção às novas teorias criticas, produzindo discursos e turalistpQ, 9s conservadores (te)afinna\'am o mo~oculturalismo, provocan-
sínteses teóricas em espiral, cada vez mais complexas. Intensificaram-se as , do üm·ne-vó round de intensas guerras entre teortas e culturJS, guerras que
guerras teóricas entre discursos que buscavam hegemonia e domínio. Cada ainda ~~tã~ sendo travadas.
nova teoria era proclamada por seus dd"ensores como uma supçrteoria, cha- Conforme vimos, cada novo produto da fcbrt: teqrica era apt'Csentado
ve para a cultura., a sociedade e o indivíduo. Descobertas de pensadores como soluçã,o para os dilemas correntes ~1. teoria c da política, com uma
como Roland Barthes,Jacques Ltcan, Michel Foucault, louisAithusser,Jean recid;tgem 'ttlfindável de aiirmaçóes extr.avagantes a favor da natureza_ re-
Baudrillard,]ean-François Lyotard,jacques Derrida e outras estrelas da "nova voludonárlà ·de cada discurso teórico. Nessa conjuntura, porém, parece
teoria francesa" foram entusiasticamente adotadas por seguidores que assu- muito questionável ptocurar um novo Graal teórico que desvende os segre- ·
miam cada nova teoria como a obra finalmente descoberta, que -abriria dos do Ser, da cultura ou da sociedade. Em vez disso, como fuz Foucau!~·
caminho par& a salvação teórica e polít.ica. talvez seja melhor conceber as teorias como instrumentos, como uma cru·
Ao longo dos anos 1980, várias cepa-> do pós-estruturalislno fr.an<:ês xa de ferramentas, ou, usando met:ifont mais antiga, r.:omu armas para ata-
sofreram mutaÇão, transfcirman<lo-se em teoria pós-moderna (ver a genea- car alvos específicos." As "teorias» são, çntfc outras coisas, modos de ver,
logia em Best e Kellner, 1991 e o estudo da p. ~0). Em certo sentido, a teo- ópticas; são 'perspectivas que elucidam fenômenos espe~í.ficos e .que
ria pós-moderna ost.enta as paiXões dos anos 1960 sublimadas em discurso também têm certos pontos cegos e limitações que lhes restrmgem o to~o.
teórico.A fratura ou ruptum desejada nos anos 1960, ruptura então descri- o' termo "te~ria" deriva da raiz grega tbeorla, que privilegia a visao;
ta no discurso da revolução, é projetada para a própria história ou para do- portanlO, uma das funções da teoria é ajudar a ver e in~e:t'retar fenô~enos
mínios mais limitados da sociedade e da cultura. No ent.onto, as fraturas e c cventos.As teorias são, pois, modos çle ver que propt<:tam o entcndime~­
ntpturas apocalípticas postuladas nos-anos 1960 como objetivo da luta po-·, to e modos de interpretar que focalizam a aten<;ão em fenômenos espect-
lítica passam a ser desCritas em algumas teorias pó"s-modernas como rup- ficos, em nexos, ou no sistema social como um todo.
turas resultantes de novas tecnologias, sem o esforço da luta ·revolucioná- A teoria póS:estruturalísta conscientizou-nos para o fato de que teo-
ria, repetinQo, portanto, os velhos discursos do determinismo tecnológico.
Ademais, alguns dos discursos do pós-modernismo também trazem as
marcas da derrota no rescaldo dos anos 1960.As afirmações pós·modernas
sobre a fragmcnt.<çâo do sujeito e as dúvidas referentes à eficácia da práti-
I
'
rias são con::.trutos,produtos de discursos, práticas c instituiçõt:s soci:is es-
pedficas, e qU:e, portanto, não transcendem seu próprio campo soctal. As
teorias tradicionais que afirmam ser fundamento de verdade, ~onhecimen~
to universal a transcender as condi<;ões sociais, ou mctatçoria dona da
ca política são em parte efeitos da experiência de fragment'açãú do "movi-
mento» político da époCa c da desintegração dá política e do sujeito revo-
• da•. cOncepção
l2As metáforas muitas vezes ~ão bem rn>elador;>s,c a H':l.ns fonnaçao . das
lucion~rio. O niilismo pós-moderno enuncia a experiência da derrota, da _
r~orias como";umas da critica" em "fermmemas"maoca uma tr.u:tSfonnaçao da toona re·
decepÇão, do desespero com a incapacidade dos movimentos dos anos
volucioniíria em formas ~ais bmndas de pmgmatismo e contextu~li$mo. Mesclando
1960 de transfot·mar mais radicalmente a vida social e cultural. No ent.ànto, essas pmJ)Cctiva.s argumentaremos que as teorias podem ser fermmcntas ou a.rmas,
. há uma versão mais positiva da reoria pós-moderna que traduz algumas das '
depcnJenúo do'com<.'Xto,
' das lntençõ<:s <: do uso · uma teona · contextua!"rasem
15 '
·tendências progressistas e dos ganhos dos anos 1960 em discurso teórico dôvida, mas col\1 intuito mdical-- ·

37
36
,,
verdade a transcender os intere~ses de teorias particulares, têm Sido ampla- ções (Berland, in Gl'ossberg et ai. l992).A dialética é a arte de estabelecer
mente n!jeitadas; o mesfl?.o ocorre com teorias positivistas que afirmam ser nexos e relações das partes do sistema entre si c com o sistema como wn
a ciência um modo privilegiado de _verdade a· que todas as teorias devem todo. Portanto, llill."l teol'i:t crítica da sociedade contém· mapeamentos do
aspirar. Contra o positivismo, admite-se em g_eral que não existe percepção modo como a sociedade se organiza como um todo, delineafldó suas estru-
imaculada, e que v~r, interpretar, explicar, etc. são atos mediados por discur- turas, instituições, práticas e discursos fundamentais, e o modo como eles
sos te'órícos e participantes de p~;essupostos teóricos, . se combin'l!l} formando um sistema social.
Logo, segundo essa concepção mais modesta de teoria, as teorias são A teoria critica da sociedade pode utilizar o cot:~ceito de articulação
vistas como ferramentas que no~ ajudam a enxergar, atuar e movimentar para indicar de que modo vários componente$ sociais se organizam._ na pro-
por campos sociais específicos, indicando fenômenos relevantes, estabele- dução ~ digamos - da hegemonia conservadora bu da popularidade de uma
cendo nexos, interpretando c criticando, e talv~z explicando e prevendo Madonna. O conceito de articulação foi introduzido por estudos culturais bri-
determinados estados de cois:ts.As teorias· ~fereccm recursos para falar de tânicos e tornou-se fundamental para a sua prática (ver Hall, 1986b; Gross-
experiências, discursos, práticas, instituições e relações sociais comuns. bcrg, 1992;_c ·a rápida genealogia desse conceito em )ameson, 1994). Os estu~
Também indicam conflitos c problemas, fornecendo recursos para discuti- dos ct.llt~s,'delineiam o modo como as produções culturais articulam ideo-.
los e para procurar soluções. logias, v&làreS e representações de sexo, raça e classe na sociedade, e o modo
Assim, as teorias elucidam as realidades sociais e ajudam os indivíduos coniO esses fcn6menos se inter-relacionam. Portanto, situar os tn"tos cultu-
a entender seu mundo. Para isso, usam conceitos, imagens, símbolos, argu- rais em seu contexto
,
social implica .traçar as articulações pelas quais as so-
>
mentos e narrativas. A metateoria (isto é, teoria sobre teoria) contemporâ- ciedades prodazem cultura e o modo como.a cultura, por sua vez, conforma
nea freqüentemente nota que as teorias têm componentes literários; con- a sociedade ~or meio de sua influência sobre indivíduos e grupos.
tam histórias, utilizam a retórica e os símbolos, e, assim como os textos li- A teoria critica da sociedadeS co1~ceítua as estruturas de dominação e
terários, ajudam a explicar nossa vida." Contudo, também têm componen- resistência. Indica formas de opressão e dominação em contraste com I
tes cognitivos que abstraem em conceitos teóricos características comuns
de seu domíÕio, como quando a teoria critica da socic:ôadc: analisa as estrU-
turas do capitalismo, o patriarcado ou as classes sociais. As teorias sociaiS
dão-nos mapas dos campos sociais que orientam os indiv.íduos a perceber
II forças de resistência que podem servir de instrumentos de mudança. Elu-
cida as possibilidades de transformação e progresso social, I?em como os
perigos da intensificação da dominação social. A teoria críti.ca da socieda-
de, portanto, gira em torno da prática social e pode ajudar na construção
I
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'i
o modo como suas sociedades são construídas. As categorias da teoria so~ de sociedades melhores ao mostrar o que precisa ser trai:tsformado, que
cial conceituam as estruturas, ~s relações e as instituições que criam o ter- tipo d._~ ação pode produzir a transformação c que estratégias e táticas po-
'
'''
reno para a vida sodal-e diária. dem tér sucesso na promoção das transformações sociais progressistas.
Portanto, as teorias sociais são dispositivos heurísticos para interpre- Por isso, as teorias criticas da sociedade são armas de crítica e instru-
tar e tornar inteligível a vida social. Elucidam o contexto da ação social c mentos da prática, bem como mapas cognitivos. Indicam os aspt':ctos da so-
orientam as pessoas em suas interações sociais cotidianas. As teorias sociais ciedade e d."1 cultura que devem ser desafiados e mudados, e desse modo
muitas vezes fornecem um quadro geral graças ao qual os indivíduos po- tentam informar e inspirar a prática política. A teoria oriCntada pela práti-
dem contextualizar sua experiência no campo mais amplo das relações c ca também propôe certos objetivos e valores que devem ser realizados e
das institUições sociais. Também podem elucidar determinados eventos e esboça caminhos de transformação da sociedade para melhorá-la, aumen-
feitos por meio da >mállse de seus constituintes, suas relações e seus efr:i- tar ~• liberdade e a felicidade humana. üia vocabulários que ajudam a mo-
tos. A teoria social dialética estabelece nexos entre partes isoladas da sn- bilizar respostas a probiemas e questões sociais, objetiVando assim a inter-
cicdade, mostrando, por exempto, de que modo a economia se insere nos venção na esfera pública.
processos da cultura da mídia e 'estrutura o tipo de texto que é pn::duzido _ Como notamos, a situação atual car&ctcriza-se por uma espantosa
nas indústrias culturais. Ou então mostra de que modo o ato de ouvir mú- multiplicidade de paradigmas teóricos em competição. Diferentes teorias
siCa é mediado por determinadas tecnologias, espaços culturais e institui- podem ser usádas para diversOs propósitos eqt situações díspares.A utilida-
de ou não de determinadas teorias depende da tarefa em pauta e do fato
de a teoria em questão ser apropriada a essa tarefa. A teoria, como espera-
13 Ver Ricoeur I970;Simons 1990; c Lepenk~ 1988.
mos demonstrar nos estudos que se seguem, pode ser úlil, mas é erro gra-

38 39
1 . '.-
I
ve acreditar que há wna superreoda ou narrativa-mestra que forneça as menw deste. Sem dúvida, uma perspectiva poderosa c ínovadom (como a
.chaves da interpretaç1io ou ,da explicação a todos os 'noSsos problemas in- psicanálise ou o feminismo) pode ser mais útil na'eluddação ou na cxpli·
telectuais e políticos. Cons<i:qüentemente, em vez de pfeconizár uma nova cação de· certos fenômenos do que .uma combinação eclética de múltiplas
superteoria ou .de privilegiar uma grande sínt~se das teorias já existentes, perspectivas, mas a combinação de abordagens poderosas corria o marxis-
lançaremos mão de çerto número de teorias críticas, apresentando alguns mo, Q feminismo, o pós..estruturalismo e outros pontos de vista teódcos
exemplos daquilo que chamamos de teoria social multiperspectívica e de contemr,orâneos podem produzir mais análises ap.rofundadas e úteis· do
estudos culturais da mídia." qU:e liJ.S -p;Üduzidas por uma perspectiva só. Ademais, um marxismo cnri·
As sociedades contemporâneas demandam constantes mapeamentOs quecido pelo feminismo e pela psicanálise,_é_ diferente de üma tC:Oria des-
c remapeamentos devido à intensidade das mudanças e da velocidade das. provida de tais perspectivas e seguramente._m~ús útil.
trànsformações sociais em curso. Estamos vivendo uma época de intensas Como tenL'lmÓs mostrar nesta coleção, diferentes tópicos e questões
moditkações, e muitas das t~orias atuais sobre a sociedade desçrevem as- exigem diversos métodos-e abordagens. Na verdade, em todo este livro ten·
pectos delas, sendo, portanto, pertinentes em vários contextos específicos. tamos sUbstanciar nossa posição teórica, que é apenas esboçada aqui,e acre·
Nenhuma, porém, conta toda a história, e todas as teorias contemporâneas dita_mo$ qúé só por meió de estudoS concretbs as teorias podem ser desen·
têm suas limitações e pontos cegos, além de dar suas contribuições. Conse- vohid~·~--i:"esta.da.s, comprovando-se sua eficácia hermenêutica e critica. E a
qüentemente, propomos combinar várias. teorias sociais contemporâneas a efiCácia política de uma· teoria só pode ser desenvolvida e testada por meio
fim de achar alguns modos de eluCidar e comentar fenôl,llenos e desen· do exame de seus efeitos sobre a prática. Se 'uma teoria elucida um fenôine-
volvimentos de nossa era." Os mapeamentos de cada teoria propiciam al· no como a MTV e altera a sua recepção (ou talvez sua rejeição),ou se inspi·
guma nova compreensão, mas em geral são limitados de algum modo.Aigu- ra a produção de práticas comestadoras na mídia, então essa teoria se mos-
mas teorias são então úteis para certas tarefas (por exemplo," ideologia mar- trará valiosà tanto em seus efeitos teóricos quanto políticos.
xista como crítica para a análise de classes e da hegemonia), enquanto O teste de um teoria consiste, pois, em seu uso, seu desenvolvimento
outras teorias são úteis para outras finalidades (por exemplo~ feminismo
para interrogar as questões entre sexos, ou a teoria queer para estudar a
constmção da séxualidade e das preferências sexuais, etc.). Nenh~ma teo·
ria poderia tratar de todos os tópicos ou elucidar todas as facetas da vida
I
'
e seus efeitos. Dessa perspe<::tiva, as teorias são vistas como Óteis ou defi-
cientes em sua aplicação c em seus efeitos.As abordagens _contextual-prng·
mática e multiperspectívica, portanto, trabalham juntas a fim de abrir a in·
vestigação teórica para uma multiplicidade de discursos e métodos.As teo-
social. Portanto, é preciso escolher as teorias que serão desenvolvidas, rias e os discursos são mais ou menos úteis dependendo da questão em.
segundo as tarefas que devam ser cumpridas. pal~ta, da aplicação específica -da teoria nas mãos do teórico e dÓs objeti-
Para as finalidades deste estudo, adotaremos, portanto, uma aborda- vos Pretendidos. Nas próximas seções, diremos que teorias os que nos en·
gem contextualista pmgmática da teoria, usando algumas teorias criticas gajamos na análise da interseção de c;ultura, sociedade c política (em que
para certas tarefas eSpecíficas e outras para tarefas diferentes,A abonlagem consistem os estudos'cultumis) acharhos mais úteis. No entanto, não pre-
multiperspectívica implica que, quanto mais teorias se têm à disposição, tendemOs apresentru· uma história ou uma· genealogia das t~?-ietórias dos es-
mais tarefas poderão ser cumpridas c mais específicos serão os objetos e tudos culturais. Não faremos um resumo dos trabalhos das várias tradições
I
temas que poderão ser tratados.Além disso, quanto mais perspectivas inci·
direm sobre um fenômenO, melhor poderá ser a percepção ou o entendi·
' ~ de estudos culturais, mas, em vez disso, desejamos intervir nos debates con·
temporâneos, firmando nossas posições no campo das problemáticas
1·· atuais. Por isso, no estudo que se segue, explicitamos apenas posições que ·
Sentimos sereín produtivas para um estudo cUltural da mídia, ou indicamos
14 A noção de teoria social e estudos cultumls multiperspectivicos está esboçada em posições das quais estamoS nos distanciando.'"
Kdlntr J 991; Best t KeUner 1991, e elabomda' neste !iv:ro.
15 Jameson (19-91) e H~ey (1989) combinam teoria marx:ista com teoi1a pós-moder-.
na paro o~te~m novas perspectivas sobre a sociedade contemporânea, enquanto
outros teóricos assumem posiÇões clássicas mais unívocas na linha marxista, weberia- 16 E.\istem muitos estudos sobre a história e a genealogia dos estudos culnn·ais; ver
na, f<:-mlnista ou outra, para tratarem d1 sociedade contemporânea, ou Cmão desenvo(- Hall 1980a;Jolmson 1985/6; Fiske I986a;O'Connor 1989;Tumer I990;Grossberg 1989;-
v<:-m novos modelo.~ e perspectivas teóricas; paro um apanhado das ·perspectivas con- Brantlinger 1990;Agger 1991; Durinl,; 199~; e Arouov.itz l993.Ver também os artigos In"
'tempotãneas na teoria social, ver Rltzcr 1990. Grossberg et ai. 1992 e During 1993. '

'"
T
lI.
ABORDAGENS AOS ES'flJDOS CULTURAIS
'
A abordagem interdisciplinar, portanto, implica a ultrapassagem de
fronteit-.Is entre disciplinas na ida do texto ao contexto, portanto du;:. textos
A rnetateoria e 'os modelos da teoria social e da critica culttiral que à cultura c à sociedade. '8 A ültmpassagem das lihhas divisórias inévita,vel-
propomos aqui foram especJalmcnte influenciados pela Escola de Frank· ~ mente nos impele para as fronteiras de classe; sexo, raça, sexualidade, etnia
furt, pelos estudos culturais britânicos e pela teoria pós-moderna/pós-es- e ~i!tras· (:aracterísticas que diStinguem os indivíduos.uns dos outros e por
truturalista. Como mencionamos, a Escola de Fr-ankfurt inaugurou os estu- meio das quais as pessoas constroem sua identldade. Portanto, a maioria
dos críticos de comuqicação e cultura de massa e desénvolveu um· das furffi~' de estudo cultural e a maior parte da teoria critica da socieda-
primeiro modelo de estudo cultuml. Há na verdade muitas tradições e mui- de incorporaram o feminismo e as várias teq~ias multiculturais, enriquecen-
tos modelos de estudo cultural, que vão desde os neomarxistas, desenvol- do seUs projetos com substância teórica e Põhilca extraída dos novos dis-
vidos por LÚkács, Gramsci, Bloch e a Escola de' Frankfurt nos anos 1930~ até cursos críticos e muldCulturais que emergiram a partir dos anos 1960.
os .feministas e psicanalític.os. Na Gcl-Bretanha c nos Estados Unidos,
. há Os estudos cultUrais interdisdplinates, pois, recorrem a uma gama dís-
uma antiga tradição de estudo cultural que precedeu a escola de par de campos a fim de teorizar a complexidade e as contradições dos múl·
Birmingham.'7 As principais tradições de ~studos culturais combinam - tip!Ç>S. ~f~Ú~s de uma ampla variedade de formas de mídia/culturajcomuni-
como podem - teoria social, análise cultural, história, filosofia e interven- caçõeS\:~írt· nossa vida e demonstmfn como essas produções servem de
_çõcs políticas específicas, superando a divisão acadêmica convencional do in;strumento de dominação, mas também oferecem recursos para a resis-
trabalho por meio da superação da especialização que divide o campo de tência e a mudança. No esboço que se segue, indicamos em primeiro lugar
-estudo da mídia, da cultur.t e das comunicações. O estudo cultural, de que mod~ a Escola de Frankfurt desenvolveu uma abordagem inicial aos
portanto, opera com uma concepção interdisciplinar que utiliza teoria so- estudos da .núdia à qual ainda vale a pena atentar, embora também idêntifi-
cial, economia, política, história, comunicação, teoria literária e cultural, fi- quemos alfiumas de suas limitações. A seguir abordaremos os estudos cul-
losofm e outros discursos teóricos. · ' turais britânicos que atualmente rivalizam com a teoria pós-moderna em·
As abordagens interdisciplinares à cultura e à sociedade transpõem os popularidade e atenção como abordagem ct1tica ao estudo da cultura e da
limites existentes entre vári.1..'> disciplinas aêadêmicas. Em particular, pro-· r sockdade, indicando suas conLrihuições, ma<; támhém algumas de suas Í'es.
pugnam que não nos devemos deter nos coÚfins de um texto, más deve- ! trições. Depois. falaremos sobre o pós-modernismo em teoria social e cúl-
l
mos procurar saber como ele se enéaixa nos sistemas de produção textual tural, expondo algumas das tentath~as de desenvolver estudos culturais pós·
e de que modo vários textos fazem parte de sistemas de....sêneroS ou tipos
'Il modernos. Nos estudos seguintes, focalizartmos sobret-udo os aspectos
de produÇão e têm uma construção intertextual. Rambo é um filme, por .! dess;JS tr-adições que acreditamos st!:rem úteis hoje para os estudos culm-
."
exemplo, que se insere no gênero dos filmes de guerra e num ciclo espe-
cífico çle filmes de retorno-ao-Vietnã (ver a análise no capítulo 2). No en-
tanto, não devemos nos deter nos confins dil. intertexualidade, mas ·deve-
t rais, ào mesmo tempo que indicanws algumas limitações que, na nóssa opi-
nião, deturparam çertas formas de estudo cultural nos dias de hoje.

mos nos mover. do texto para. seU çontcxto,-para a cultura e a sociedade r


l A .GSCOli\ DE H-tANKFllRT
que constituem o texto e nas quais ele deve ser lido-e interpre!ado. Pois
Rambo também repete os discursos direitistas sobre os prisioneiros d_e
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l
guerra que ficaram no Vietnã e a necessidade de superar a síndrome dO ·j' A Escola de Fmnkfurt inaugurou o estudo crítico da comunicação nos
Vietnã (ou seja, a vergonha de ter perdido a guerra e a relutância em usar ' anos 1930 e combinou economia política dos meios de comunicação, aná-
novamente o poderio militar americano). Por isso, a interpretação do texto lise cultural dos textos e estudos de recepção pelo público dos ,efeitos so- .
cinematográfico de Rambo iritplica o' uso de teoria cinematográfica,
história social, análise política c crítica ideológica, ilém de outros modos
de critica cultur-,il, co~no ilustraremos no próximo capítulo. 18 Ra)~nond William~ foi especialmente import~nte para os estudos culturais por ter
ressaltado fronteiras e suas transposições.Assim como a Escola de Frankfurt, ele sempre
viu a intCrconexii.o entre ctt!turn e cotmmicação e su~s conexões com a sociedade em
que são produzidas, distribuídas e consumidas Witliams também \iu o modo cOmo os
17 Acerca das primeiras tradições de estudos culturais nos Est~dos Unidos, ver Carey, te.xtos personifkam os conflitos e os discursos políticos nos qttais se inserem e quere-
1989, eAronowit~ 1993; quanto à Grã-Bret.mha, ver Davies, no prelo. produzem.

42
~iais c ideÓlógicos da culturn e das comunicaÇões de massa. '9 Seus proilO· corporação de novas teorias e métOdos culturais numa: teoria críti~a re-
o entes cunharam a expressão "indústria cultural" para indicar o processo· construída da cultura e, da mídia. Cumulativamente, tal reconstruçaó do
de industrialização da cultura produzida para a massa e os impêrntivos co- projeto clássico da Escola de 'Fran.kfurt atuaUzaria a teoria critica da socie-
. merdais que impeliam o sistema. Os teóricos crjticos analisavam todas as dade e sua atividade de critica cultural ao incorporar os desenvolvimentos
produções cultumis de massa no contexto da produção industr(a1, em que contemporâneos da teoria social e cultural nos esforços da teoria crítica.
os produtos da indústria-cultural apresentavam as mesmas características Aléll,l, disso; a dicotomia da Escola de Frankfurt entre cultura superior
dos outros produtos fabricados em massa: transformação et,n mercadoria, e ínfericÍr {problemática e deve ser substituída po·r um modelo que tome_
padronização e massificação. Os produtos das indústrias Ctllturais tinham a a cultura como um espectro e aplique se~.!=lhantes métodos. críticos a
função específica •. porém, -de legitimar ideologicame_nte as soded:ules ca- todas as produções cultu.çais que vão desde a· â'j:J:era até- a música popular,
pitalistas existentes e de integrar os indivíduos nos quadros da cultura de desde a Hteratt.tra modernista até <~.S novelas. Em particular, é extremamen-
massa e da sociedade. te problemático o modelo de cultura de massa monolítica da Escola de
As análises da música popular feitas por Adorno, os estudos de Lowen~ Frankfurt em contraste com um ideal de ~arte autêntica'', modelo este que
thal sobre literatura popular e revistas, os estudos de H~rzog sobre as no- limita.o$.~mentos críticos, subversivos e cmancipátórios a certas produ-
velas de rádio e as perspectivas e críticas da cultura de ,r~ assa. desenvolvi- çõ_es PriVilegiadas da cultura ~uperior.A posição da Escola de Fra~rt, de
das no famoso estudo de Horkheinler e Adorno sobre a indústria cultural qUe' toda cultura de massa é ideológica e aviltada, tendo como efetto engo-
(1972) são tantos exemplos da utilidade da abordagem da Escola de Frank- dar uma massa passiva de consumidores, é também questionável Em vez
furt.Ademais, eÍn suas teorias sobre a indústria cultural e em suas críticas à disso, devem·ós ver os momentos críticos e ideológicos em toda o espectro
cultura de massa, foram os primeiros a analisar sistematicamente e a criti- da cultura, tt não limitar os moméntos críticos à cultura superior, identifi-
car a cultura e as comunicações-de massa no âmbito da teoria crítica da so- cando com~ ideológicos todos os da cultura inferior. Thmbém precisamos
ciedade. Em particular, foram os primeiros a ver a importância daquilo que pensar na possibilidade de se detectarem momentos críti':os e subv~rsivos
chamaram de"indllstria cultural" na reprodução das sociedades contempo- nas produções da indúStria cultural assim como nos clãsstcos ca~omz~~os
râO:Cas, uma vez que as cham~das cultura e comunicações de massa ocu- da cultura superior modernista que a Escola de Frankfurt P<!-í'Ccta pnvilc-
pam posição central entre as atividades de lazer, são importantes agentes giar como lugar de contestação c emancipação artística:" Ademais, é preci-
de socialização, mediadoras da realidade política e devem, por isso, ser vis- so fazer a distinção entre a codificação e a descodificação das produções
tas como importantes instituições das sociedades contemporânea~, com da mídia, reconhece~do que um público ativo freqüentemente produz
vârios efeitos eCOnômicos, políticos, culturais e sociais. lo seus..pi-óprios significados e usos para os produtos da indústrii éuitural.
No entanto, há sérias·deficiências no programa original da teoria No entanto, é precisamente a focagcm crítica da cultura da mídía, a
crítica que exigem mna reconstrução· radical do modelo dás~ico de indús- partir das perspectivas de mercadorização, reificação, ideol?gia ~ do~a­
tria cultural (Kellner, 1989a).A superação de-suas·limitações compreende- ção, que:: constitui um modelo útil para corrigir as abordagens mruspop~s­
ria: análise mais concreta da economia politica da mídia e dos processos de tas e acritícas à cultura da mídia, que tendem a subjugar os pontos de VISta
produção da cultura; investigação mais empírica e histórica da constntção · críticos. Embora parcial e unilatera1, a abordagem da Escola de Frankfurt for-
da indústria da mídia e de sua inteiação com outras instituiçõeS sociais; nece instmmenta1 par.t criticar as formas ideológicas e aviltadas da cultura
mais estudos de recepção por parte do público e dos efeitos da mídia; e in- da mídia e indica os modos como da -reforça as ideologias que legitimam as

21 Houve, s~·m dóvida,algumas o::xceçõe; e restri<iks a esse modelo "diissiCQ":~dorno


19 Sobre a t.,oria da indôstria ~·ultut<tl da Escola de Frankfurt, ver Horkheimer eAdomO
tt:ria eventualmente notado um momento crítico ou utópico na cultura de'massa c a
1972: a antoiogffi organizada por Rooenberg e \'\lhite 1957; o manual de leitura organi-
pos~ibilidade de recepção contcida do pUblico;ver os exemplos fn ~i~ner, l9~9a.?l-~as ..
zado por Bronner e Kelh;J,çr l989; e o estudo i.la abordagem da Escola de Frankfurt em
emborn Possam ser encontrados momentos que põem em xeque a diVIsão ma1s ra~1cal
Kdlner l989a.
entre alta e baixa culmn e o modelo de cultura de rnas;.a consistente apenas em uJeo-
20AnaUsamos algw1s de~ses efçitos do ponto <!e vista <Je uma teoria critica reconstruí- logia e modos de maniptJlução que integrnm os indi..iduos na sociedade e na cultura
da 'las análises do cinema de Hoilywood com Michad Ryan (1988), em dols livros eXistentes, em geral 0 modelo da' Escola 'de Fmnkfurt é ostensivamente redutor e mo-
sobre a televisão americana (Kel!ner, 1990a e 1992:b), e nUllla séi.-ic de estudos sobre a nolítico, precisando. portamo, de uma reconstrução rnc\ica!- o que tentamos fazer nas
culrnrn da mídia, alguns dos quais fornm coligklos aqui. últimas duas décadas.

45
formas de opressãO. Conforme argunientamos no capítulo 2 ·e em todo o capitalista da sociedade.A Escola de Frankfurt fez sua análise no âmbito da
livro, a critica à ideologia é um· componente fundamental dos estudos cul- teoria critica da ·sociedade, integrando assim ·i::studos de comunicação e
t~s, e a ·Escola de Frankfurt contribuiU de maneira inestimável para inau- cultura rio contexto do estudO da sociedade capitalista e dos modos como
g~rar criticas sistemáticas e consistentes da ideologia na indústria cultural. as comunicações e a cultui-a se davam nessa ordem, bem como os papéis
Ademais, no nível da metateoria, o trabalho da Escola de Frankfurt e funções que assumiam. A Escola de Frankfurt também evidenciou a ina·
precedeu a divisão do campo dos estudos de mídia em subáreas especiali- dequação..,.dos métodos quantitativos para estabelecer relações ·qualitativas
zadas com modelos e métodos em dispüta. Essa dh'isão é documentada n,o e produ~iu ~étodos de análise daS compleXas re~ões entre textOs, públi-
artigo "Ferment in the field~, do número de 1983 do periódicojournal oj I cos-e contextos, bem como· do relacionamênÍo. entre- as indústrias·da mí-
Communications (Vol. 33, N° 3 [verão de 1983]), em que alguns dos parti- r' dia, o Estado e as economias capitalistas. Poi'-titfto, o estudo da comunica-
cipantes da discussão acerca dos último.s progressos dos estudos sobre I ção e da cultura tbi integrado na teoria crítica da sociedade e tornou-se
meios de comunicação notavam uma divisão do campo entre a abordagem
culturalista, cuja principal ênfase é posta nos textos, em oposição a aborda-
'
I
"j
importante p~rte de uma teoria da sociedade çontemporânea, uma vez
que a cultu.ra e a comunicação estavam desempenhando papel cada vez
gens mais empíricas no estudo das comunicações de massa. A abordagem - . .
maís.sjgh[bizativo.'3
culturali~ta, na época, era fortem~nte textual; centrava-se na aná\i5e e na .,..,.,.
, '

critica de todas as formas de comuniCação como produção cultural e usa-


va métodos extraídos sobt·e.tudo das humanidades. Os métodos das pesqui- ÓS ESTUDOS CULTURAIS BR!TÀNICOS E SUO LEGADO
sas e.m comunicações, em compensação, empregavam metodologias mais
empjricas, que variavam desde pesquisas quantitativas diretas e estudos et- A Escola de Frankfurt desenvolveu seu modelo de indústria cultural
nográficos de casos ou domínios específicos, até pesquisas históricas espe- entre as dééadas de 1930 e '1950, e a seguir não desenvolveu nenhuma
cializadas. Nessa área, os tópicoS compreendiam análise da economia polí- abordagem significativamente nova ou inovadora para a cultura da mídia.
tica da mídia, recepção pelo público e estudo dos efeitos da mídia, história Os estudos culturais britânicos surgiram nos anos 1960 comQ um prójeto
da mí<J.ia, interação das in~tituições da mídia com outros domínios da Socie- de abordagem da cultura a partir de perSpectivas críticas c multidiscipllna·
dade e coisas semelhantes. i res que f~i· instituído na Inglaterra pelo Birmingham Ce_ntrc for
Alguns dos participantes do simpósio promoyido ehU 983 pe!a pu- · Contemporary Cllitural Studies e outros. ' 4 Os estudos culttJrais britânicos
blicaçãojournal of Communicatíons sugeriram uma boa tolerância entre situam a culnu;a no âmbito de uma teoria da produção e reprodução social,
as diferentes abordagens ou modos como as várias abordagens se comple· esp~ifiéando os modos como as fofma~ cu.Ii:urais serviam para aumentar a
mentavam ou podiam ser integradas. Na superação da divisão entre estu-
dos cultu~is e de comunicação, eu diria que a abordagem da Escola de
Frankfurt é inestimável por oferecer um modelo integml que transcende 23 No mo de! o de teoria critica dos anos 1930, suplmh~·se que a teoria fosse um iltstrn-
as divisões contemporâneas nos estudos de núdia, cultura e cOmunica- memo da pr:ítica pol(rica. No enunto, a fommbção da tcori~ da indústria culturnl por
ções."' Seus estudos dissecaram a interconexão entre cultura e comunica- Horkheimer eÁdorno (1972 [1947]) nos anos 1940 fez parte_de uma fuse·mais pessimis-
ção nas produções que reproduziam a sociedade existente apresentando ta desses pensa dotes, na ·qual eles e\itaram a política concreta e em gemi situaram a re-
de modo positivo as~normas e práticas sociais c legitimando a organização sistência nos indi\íduos crilicos, como eles mesmos, e não em grupos, movimentos ou
pritticas sociais oposicionistas. Por isso, a EscoJa·de Fmukli.trt, em última análise, é fraca
na fonnulação das práticas de oposiç:ío e nas estrntfgias culturais conu·a-hcgemônicas.

24 Fizemos um mergulho na problemática dos estudos culturaiS britâilicos a partir de


22 O campo das comuni<.:açüe.s foi inicialmeme cindido numa divisão descrita por la- \975, quando de nossa participação mun gntpo de estudo emAustin,Texas, e escreve-
zarsfeld (19•il), em publicação da Escola de l'r:mkfu.rt sobre as comunicações de nlassa, mos a Stuart Hall, do Binnínglmm Centre for Conte'mporary Cultural Studies. Ele res-
<entre a escola critica aSsociada ao Instituto de Pesquisas Sociais e a pesquisa administm- pondeu com um longa carta em que descrc-..ia a história do Centro e com a qual-nos
tiva, que Laza.rsfeld definiu cu mo pesqulsa fdt:t dentrO dos paclmetros das instituições mandava uma série de dissertações suas mimeogtafudas, quC foram atentamente esm·
estabelecidas e que ofereceriam m.1terial útil a essas instituições- pesquisa com a qual dadas por nosso grupo. Nos anos que se seg~imm, lemos todo,.s os ÚlJS estudos, artigos
o próprio Lazarsfeld se identificm:ia.Assim,foi a Escola de f'rnnkfurt que inaugurou a pes- e livros, e assim surgiu o primeiro grupo americano de estudos culturais emALWtin,Te-
quisa critica nas comunicações. e nossa opinião e que \illl retorno a uma veriio te<.ons- .xas. Ver· resenha feiL.'I por este autor sobre os. estágios iniciais do projeto Birmingham.
truída do modelo original seria útil para os estudos de mídia e cultura hoje em dia. 111 ThWIJ~ Culturc, mui Socfel): Vol.l, N" 1 (1980).

46 47
dominação social ou pará pos...:;ibllitàr a resistência e a luta coritra a d~mi: O ponto-chave aqui é que as lutas focali?..adas pelos estudos culturais
nação. A· sociedade é co.ncebida como um conjunto hierárquico e antago- críticos são contra a dominação e a subordinação. O que estanios preocu-
nista de relações sociais caracteri:z.adas pela opressão das classes, sexos, ra- pados em desenvolver não é· qualquer luta e qualquer resistência, maS sim
ças, etnias e estratos nacion!.liS subalternos. Baseando-se no modelo gralns- a luta.contra. a dominação e contra as relações estruturais de (~sigualdade
ciano de hegeinonia e contra-hegemonia, ós estudos cultt~rais analisam as e opressão ressaltadas pelos et!tudos culturais críticos.
formas sociais e cultumis'"hegemônicas'' de dominação, e procura IDrças '1
, Portanto, esses estudos situam a cultura num contexto sócio-histórico
"contra-hcgemônicas" de resistência c luta." ' no qual- c?Sia promove dominação ou resistência, e critica as fortÜas de cul-
Para Gramsci, as sociedades mantêm a estãbilidadc por meio de uma tura que romentam a subordinação. Desse·:modo, os csmdos culturais po-
combinação de força e hegemonia, em que algumas instituições e grupos· dem ser distinguidos dos discursos e das teói-Tas . idcalist:a.s, textualistas c 'ex-
exerce~ violentamente o poder para consecvar intactas as fronteiras so- tremistas que só reconhecem as forfllas lingüísticas como constituintes da
ciais' (ou seja, polícia, força.:; _militares, gru,_pos de vigilância, etc.), enqu:lnto cultura e da subjetividade.,Os estudos. culturais, ao contrário, são materialis-
outras instituições (como religião, escola ou a mídia) servem para induzir tas porque, se atêm às origens e aos efeitos materiais da cultura e aos modos
anuência à ordem dominante, estabelecendo a hegemonia, ou o domínio como a· tuliura se imbrica no processo de dominação ou resistência.
ideológico, de determinado tipo de ordem social (por exemplo, capitalis- ' P.Ztl~s'o, essa fqrma de estudo exige uma teoria social que analise o
mo libera], fascismo, supn::macia branca, socialismo democt"ático, comunis-- siStema e a estrutura da dominação e das forças de resistência. Col;llo as re-
mo, ou seja lá o que for). lações econômicas e de capital desempenharam papel fundamental' na es-
A teoria da hegemonia implicava a análise dos sistemas vigentes de truturação $s sociedades contcmporãncas (muitas ve:zes designadaS comO
dominação e o modo como determinadOs grupos poÜticos obtêm poder sociedades.,"capitalistas" ou "capitalistas detr.tocráticas"), o marxismo de-
hegemônico (por exemplo, thatcherismo ou reaganismo) assim como a sempenhoU importaftte .papel desde o começo dos estudos culturais,
.delineação de forças, gmpos e idéias contra-hegemônicas que contestariam e,nbora tenham sido travadas ferozes batalhas em torno das formas da teo-
e subverteriam a hegemonia existente. Os estudos culturais britânicos ria marxista que deveriam ser usadas, e mais recentemente tenha havido
foram assim vinculados a um projeto político de _transformação social em forte rejeição às perspectivas marxistas (ver Bennett, 1992 e Fiske, 1993). ' 6
que a localização de formas de dominação e resistência ajudariam o pro- Classicamente, porém,_ os estudos culturais vêem a sociedade como um sis-
cesso de luta política. tema de dominação em que certas instituições como a famHia, a escola, a
Richard Johnson, nas discussões ocorridas durante 11ma conferência igreja, o trabalho, a mídia e o Estado cOntrolam os indivíduos e criam estru-
proferida na Universidade do Texas um 1990 sobre estudos culturais, enfa- tura§ de dominação contra as quais os indivíduos que almejam maior libcr-
tizou que é preciso fazer tUna distinção entre o conceito pós-moderno de dad"t e poder devem lutar.
~diferença" e a noção de Birmingham sobre "antagonismo", uma vez que o Os estudos culturais, portanto, assim como a teoria Critica da' EscOla
primeiro conceito muitas vezes se refere a uma concepção liberal de reco- de Frankfurt, desenvolvem modelos teóricos do relacionamento' eritre a
. nhecimento e tolerância das diferenças, enqUanto a noção de antagonismo economia, o Estado, a so:ciedade, a cUltura e a vida diária, dependendo, pois,
' se refere a forças estruturais de dominação, em que as relações assintétri- das problemáticas da teoria social contempor-ânea. No entanto, também uti-
cas de poder existem em locais de conflito. Há, na verdade, uma importante lizam muito as teorias da cultura. O ponto crucial é que subvertem a
disti!Ição entre meras oposições e diferenças (tais como errÍ cima/embaixo, distinção entre e cultura. superior e inferior - como a teoria p6s-modeJ'na
dia/noite, 0/1), por meio das quais os sistemas lingüísticos são formados e e diferentemente.da Escola de Frankfurt- e, assim, valorizam formas._cultu-
nos quais. os te.rmos oponentes são opostos e iguais; c as relações de anta- t'llis como cinema, televisão e música popular, deixadas de lado pelas abor-
gonismo (trabalhadores/patrões, homens/mulheres, brancos/pretos) em dàgens anteriores, que tendiam a utilizar a teoria literária para analisar :t$
que os teunos da diferença são de podet• désigual c existem em.relações formas culturais ou pam focalizar sobretudo, ou mesmo apenas, as produ-
de desigua~dade e antagonismo. Em tais relações, os oprimidos lutam J.?ata ções da cultura supetior.
superar as estmturas de .dominação em várias arenas.
26 Muitos dos documentos programáticos de Stuart Ha!l discutem a apropriação do
25 Gramsd, 19:71 e 1992 e Hall, 1986a. Elucidamos c ilustra!J).os mdhor o conceito de marxismo pelos estudos culturais britânicos. cspccia!mentc o marxismo de Grnmsci e
hegcmónia nos próximos capítulos. Althusser (ver Hall I980a; 1986~"<: l986b; c 1992).

49
Contudo, como argumentouAronowitz (1993: 127 ss.),os estudos cúl- 1992). O tenúo "popular~ sugere 'que a cultura da mídia provém 'do povo.
tu.rais britânicos tenderam a ignorar a cpltura superior, elimfuandÔ-a, c~m Também implica o fato de ser uma forma de cultura de cima para baixo,
raras exceções, de seu campo i:le investigação. Nesse aspecto, podem ser que muitas vezes reduz o público a receptor passivo de significados masti·
contrapostos à Escola de Frankfurt, que celebrou as qualidades Oposicionis- gados. Da maneira como é usada por Fiske, Grossberg e Outros, a expressão
tas de certas espécies de cultura superior (especialmente o ··modernismo "cultura popular" destrói a distinção entre cultura produzida pelo povo, ou
critico), e ao pós-modernismo, ·reação estética ao alto moderni~mo: que pelas "cl~ses populares", e a cultura da mídia produzida para as massas, cJ.e-
mis,turava características das chamãdas culturas superior e inferior. Os es- leitand'o-s'ê assim num ''populismo cultural" (McGuigan, 1992) que muitas
tudos culturais britânicos, pprém, em geral deixaram dé tratar do modernis- vezes celebra de modo acritico a cultura díi núdia e:<te
consumo. •
mo ou de outrns formas de cultura superior, e, desse ·modo, deixaram de ver Inicialmente, o termo ~popular" foi usiil&::Por dois fundadores dos es-
o P?tencial de contestação c·subv-crsão, assim como a ideologia, de obtás tudos culturais britânicos para indicar uma cultura relath·--amente autôno·
que alguns de seus expoentes deixaram de_ lado por considerarem cultura ma da classe trabalhadora, que era "do povo" .'7 O discurso do "popuL1r''
elitista. Isso é c_urioso, visto que um grupo de teóricos da revista S~een, t;1mbém foi utilizado por muito tempo na América Latina e em outros lu·
que em de notável importância no desenvolvimento da teoria cultUral na garç:~,p:~5i:'descrever a·arte produzida pelo povo e para o povo, como esfe-
Grã-Bretanha e em outros países durante os anos 1970, celcbrarain a cjuali- ra opê§ta à' cultura dominante ou hegemônica, que é muitas vezes uma C'\Jl-
dade oposicionista do modernismo cOntra formas de realismo e cultura da tUh colonialista, im'posta de cinta para baixo. Portanto, naAméfica l.atina c
mídia, reproduzindo, assim, a -divisão operada pela Escola de Frankfurt. Em em Outros luga·res, a expressão ''forças populares" indica os grupos que lu-
· retrospectiva, parece melhor considerar a. força e os efeitos conservadores tam contra 4 dominação e a opressão, enquanto "cultura popular" indica a
e oposicionistas de todas as formas de culturn. No enta'nto, também deve· cultura do.,.povo, frita pelo povo e para o povo, no sentido de que o povo
mos rejeitar a rígida divisão entre cultura superior e ·inferiOr, que viciou a produz essa cultura e participa das práticas culturais que articulam suas ex-
Escola de Frankfurt e a teoria da revistaScreen, as quais reservàram os efei- periência e aspirações. Portanto, chamar de "cultura popular" os produtos
tos cmancipatórios apenas para os produtos do modernismo oj:l~sicionis· comerciais da indústria cultural feitos para as massas oblil:era uma distinção
.ta, enquanto deixavam de lado tod1.s_ as formas de culrura popular Ou d_c entre dois tipos bem diferentes de cultura.
massa como mera ideologia. . O conceito de "cultura popular" também contém laivos laudatôrios as-
sociados à Popular Culture Associatiqn, que freqüentemente faz afirmações
acriticas sobre tudo o que é "popular". Como esse termo é vincuiado, nos
Uma questào dt: terminologia E5t~Jdos Unidos, a indivíduos e grupos que muitas vezes se esquivam de
abo'i-dagens criticas, teorizantes e poÍíticas à cultura, é arriscado usar a
A inovação dos estudos culturais britânicos, então, consistiu em vei: a expressão "cultura Popular," embora Fiske tenha tentado conferir-lhe uma
importância da cultlu·a da mídia e o modo como ela está -implicada nos pro- inflexão condizente com a abordagem populísta de. esquerda e socialmen-
cessos de dominação e resistência. No entanto, há alguma discussão em tor- te critica dos estudos culturais. Numa entrevista de 1991, Fiske define
no da terminologia apropriada para descrever os objetos dessas formaS (Je como "popular" aquilo que o público faz com· as mercadoriitS da indústria
· cultura que permeiam a vida cotidiana na forma de coisas familiares como _cultural e aquilo para que as utili,za (ver também Fiskc l989a e 1989b).Ar-
o rádio ou a televisão. RaymondWilliams e os componentes da escola de Bir- g_umenta qüe os progressistas devem apropriar-se do termo "popular;' tiran·
mingham foram responsáveis pela rejeição do termo ~cultura de massa" do-o do poder dos conservadores e liberais e usando-o como parte de um
que, segundo argumentam (com propriedade, na nossa ÜpinÜío), tende a se; arsenal de conceitos riuma política cultural de contestação e resistência
elitista, ctiando uma, oposição binái-ia entre alto e baixo, oposição essa:·que , (discussão em Austin, setembro de 1990).
despreza "as massas" c sua cultura. O conceito de "cuitura de massa" titnibém Conseqüentemente, tnesn.to o vocabulário dos estudos culturais é
é_ monolitico e homogêneo~ portanto .neutraliza contradições culturais ·e dis- contestado, não havendo acordo em torno dos termos básicos usados para
solve práticas e grupos opos_icionistas num conceito neutro de "massa". descrever seu camPo. Na verdade, nos últimos anos, surgiram novas esco·
. No entanto, rejeitariarpos a expressão "cultura popular", que John
, F~ske (1989a e 1989b) e 011tros exp'oentes dos estudos culturais contempo--
27Ver Hoggart 1958 e William~ 1958, e as discussões sobre o "popular" In Hall 1980a;
.raneos adotaram sem problematiZ<U' (por exemplo, Grossberg, 1989 e 1\:k'Guigan 1992; e Aronowitz 1993.

51
'
las de estudos cUlturais na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos em e com a comunicação. Toda culntra, p~ se tornar um produto social,
outros países, utilizando diferentes métodos, -conceitos, estratégias ~ abor- portanto "cultui".t~", serve de mediadora da comunicação e é por esta media-
dagens. Há, port~to, uma pluralidade de estudos culturais e uma série de da, sendO portanto comunicaciona! por natureza. No entanto, a "comUIÚca~
debates em torno de métodos, focos e polltica, bem como em torno de ~ua ção," por sua vez, é mediada pela cultura, é um modo pelo qual a cultura é
institudonalização ou não, etc. disseminada, realizada e efetivada. Não há comunicação sem cultura c ó.ão-
Além disso, há problemas com alguns vocabulário:s básicos de muitas' há cultura sem comunicação; por iSso, traçar uma distinção rígida entre am-
versões contemporâneas dos estudos culturais, c por isso os conceitos-chà- bas c ati?rii.ar que um dos lados é objeto legítimo de um estudo disciplinar,
Ve são instáveis, sendo constantemente questionados e revisados. Etri vista enquanto o outro é relegado a uma disciplina diferente, constitui um eX:ce-
das discussões em torno da term_inologia, cada intervenção no çampo dos • !.. .
leilte exemplo da miopia e da (utilidade daS di:Visões acadêmicas arbitrárias
estudos culturais precisa e:xpor e esclarecer slia linguagem critica, distin- do trahalho."9
gui-la de outros discursos e ~xplicitar seu próprio uso específico do voca- Em qualquer caso, os estudos culturais britânicos apresentam uma
bulário. Em nossa opinião, há necessidade de inais debates para se saber s~ abordagem que nos permite evitar dividir o campo da mídia/êultura/comu-
o uso da expressão "cultura popular" de algum modo corre o risco de em- ' . ,c,....cln
niçaçõeS ~ ' alto e baixo, popular e elite, e nos possibilita enxergar todas
botar o gume crítico dos estudos culturais, c se,t?-ão seria, portanto, mellior as foi;ftàS de cultura da mídia e de comunicação como dignas de exame e
evitar termos que tenham carga ideológica, como "cultura dc·massa" e "cul- d:ítica. Possibilita abordagens à cultura c à comunicação que nos forçam a
tura popular". U:ma possível medida nos estudos culturais consistiria, então, avaliar sua política·e a fazer discrlminações políticas entre diferentes tipos
em assumir a cultura em si como o campo de estudos, sem divisões em su- de produçõJ;s que tenham diferentes efeitos políticos. Assim como outras
perior e inferior, popular e de elite - embora, por .certo, essas distinções abordagen,~ multiCulturais, traz o estudo de questões de raça, sexo e classe
possam ser estrategicamente dispostas em certos coritextos. Portanto, acre- para o pririleiro plano dos estudos de cultura da rrúdia e da cofnunicação.;.,
dit~?s que, em vez de usar rótulos ideológicos como "massa" e "popular," Também adota uma abordagem crítica que, assim como a da Escola de
podenamos simplesmente falar de cultura e .comunicação, desenvolvendo
um "estudo cultural" que abranja todo o espectro da mídia e da cultura. Z<.J I:mbpra trabalhe num departamL-nto de comunicações,l.awrencc Grossbel"g (19")2)
Neste livro, adotamos o <:Once~to de ''cultura da mídia" para descrever lnicla sua apresentação mctateórica ·dos estudos culturais atacando o conceito de co·
o tema de nossas investigaçôes.A'expressão"cultura da núdia"tem a vanta- municação, eliminando-o efetivamente do seu campo conceitual (ibid., 37 ss.) e voltan-
. gem 'de designo'lr tanto a nat';lreza quanto a forma das produções da indús- do-se para uma primeira tentativa de desconstnlir o conceito de comunkáção (Gross-
tria cultural (ou seja, a cultura) e seu modo de produção e distribuição (ou berg, 1982). Preferiri.1mos, porém, desfazer as oposi.çóes binárias entre cultura e comu-
'i:;c nicação, reeusando-nos a privilegiar uma em detrimento da outra e mostrando de que
seja, tecnologias c indústrias da mídia). Com isso, evitafn-se termos ideoló-
modo hoje em dia a etdtura da mídia e as comunicações estão interligadas nos produ-
gicos como "cultura de massa" e "cultura popUlar" e se Chama a atenção tos da indústria cultural. Também argumentarl~mos que os métodos e:<.:trnídos das dên·
e
pam o circuito de produção, distribuição recepção por meio do qual a das humanas para o estudo da" c;u!tura" e o<! métodos proveniente~ d~s ciências sodais
cultura da mídia é produzida, distribuída e consumida. Essa expressão der- que Íllvt.-stigam a "comunica~·ão" são '"Jliosos para os estudos culturais. Finalmente.
ruba as ·barreiras artificiais entre os campos dos estudos de cultura, mídia também é curioso que alg\ms departamentos e disciplin~s usem q termo "comtmict-
ção" pai":! i.kscre\·er seu objeto de estudo, enquanto outros departamentos e irldivíduos
e comunicações e chama a atenção para a interconexão eritre cultura e
11sam o plural "comunicações". Há. obviamente, diferentes tipos e níveis de comllnica-
meios de comunicações na constitlÍição da cultura da núdia desf~zendo ção em nossa cultura, moli\'O pelo qual o plural tem seu~ mos e s;,a validade, embora"
assim distinções reificadas entre "culti.u-a·• ~ "comunicação". 03 ' ,
o singulai- também sirva para dar a entender que as muitas variedades coti.stituem for·
Na verd<J,de, a distinção entre "cultura" e''comunicações"é arbitrária e mas de comunica~·ão; conseqüentemente, usaremos ambos os termos em diferentes
rígida, devendo ser desconstruída. Quer tomemos "cultuf..t" como. os produ- , · <.:ontextos par-a indicar pluralidade ou singularidade.
tos da cultura superior, _guer como os-' modos .de vida, quer co.mo 0 30 O primeiro fo(.o dos estudos de Bi~mitlgham incidiu nas classes e nas subculturas,
contexto do comportamento humano, ~tc.,_veremos que há íntima 'Iigaç~ó mas a influência do feminismo obrigou a dar atenção às questõc{ de. sexo e sexualida-
de, enquunto a influên<.i~ dos negros obrigou a dar atenção a qUes,tÕ!OS de rnça e etnia
(ver relato em Hall l986a -e GUmy 1991). Seja como for, na déeada de 19$0 os es,tudos
28 Sobre a necessidade de c;ombinar essas ab(>rdagens e superar a atua! divisão do culturnis realiz.--.dos em todru; as partes tivernm um programa multkulturnl, embora o
campo enu:e a5 abordagens dos "estudos L"t.dturais" e os "estmios de c;orounkação", ver foco inidG.! nas dru;~s se tenha deslocado nas versões mais recentes, negligência .que
Ke!lner, no prelo. tentarercmos evitar neste eStudo.

52 53
~-­

!'

Frankfurt, mas sem algumas de suas deficiênciàS, interpreta a cultura na so- questões de classe e ideologia provinha de seu senso agudo ·dos efeitos
ciedade e situa o estudo da cultura no campo da teoria social contemporâ- opressivos e sistêmkos da divisão de classe nà sociedade britânica e das lu-
-i
nea c da política contestadora. ..-! taS dos anos 1960 contra a_desigualdade ele classes e a oPressão. Os estudos
. i\. expressão "cultura da mídia" t.-iinbe·m tem a·vantagem de dizer qUe de subculturas na Grã-Bretanha procura.vam detectar novos agentes de mu-
a nossa é uma cultura da mídia, que a mídia colonizou a cultura, que ela _danças sod;tis sempre que ficasse claro que certos setores da classe traba-
cçmstitui o principal veículo de distribuiç.ão e disseminação da cultura, que lhadora estavam sendo integrados no Sistema existente e nas ideologias e
os meios de comtmkação de massa suplantaram os modos anteriores de nos p"aftídos conservadores. ~uas tentativas de .-reconstruir o marxismo
_cultura como o livro ou a palavra fula.da,'que viVemos num mundo no qual foram influenciadas também pelas l_utas e,_pelos ri-ú~fimentos politicos dos
-a mídia domina Q lazer e a culturn. Ela é; pàrtanto, a forma dominante e o anos 1960.A virada para o feminismo, tailti:'\~Yczes conflituosa, foi direta-
lugar da cultur-J. nas sociedades contemporâneas. mente influenciada pelo movimento feminista, enquanto a virada para as
questões de raça comó fator sigirificativo de esmdo foi imPelida pelas -lutas
antH'.lcistas da época. A atenção dada. pelos estudos culturnis britânicos à
Um:~ qucs_tào de polític:.; e(.iucaçí\0'.· e à pedagogia teve relação com a preocupação política con'Í a
co'nt{t~UúJ.egemonia burguesa, a despeito das lutas dos anos 1960.A guina-
A cultura da mídia é também o lugar onde se -travam batalhas pelo 'ija direitista na política britânica com a vitória de Thatcher levou à preocu-
controle da soc_kdade. Feministas e antifeministas, liberais e conservado- pação, no fim da década de 1970, de entender o populi'smo autoritário da
r:$, ra~icais c defensores do status quo, todos lutam pelo poder cultural nova heg<;ro-onia conservadora.
.nao so nos meios noticiosos e informativos, mas também no domínio do Em outras palavras, o foco dos estudos culturais britânicos em qual-
entretenimento, como demonstraremos em todo este livro.A mídia está in-. quer moffiento foi mediado pelas lutas da conjuntura política da época, e
timamente vinculada ao poder ·e abre o estudo da cultura para as vicissitu- seu principal trabalho -foi então concebido na forma de intecvenções polí·
d~: da política e para o .Úmtadouro da história. Ajuda· a conformar nos~a ticas. Seus estudos de ideologia, dominação e resistência, e política cultural
V!Sao de mundo, a opinião pública, valores e comportamentos, sendo, orientaram os estudos culturais para a análise das produções, práticas e ins-
portanto, um importante fórum do póde'r e da Juta social. tituições culturais dentro das redes exí.sterites de poder, mostrando como
Desde o começo, o trabalho do grupo de Birrpingham oriciltou-se ·. a cultm-a oferecia ao mesmo tempo forças de dominação e· recursos para a
para. os problemas políticos cruciais de sua época c de seu meio, centran- resistência e a luta. Esse foco político intcnsitlcou a ênfase nos efeitos da
do intencionalmente sua atenção na poÚtica cultural.Alguns dos primeiros ctytura e no uso que o público fazia das produções cultumis, o que possi-
trabalhos que definiram os estudos culturais britânicos, como o de Richard · bilitou estudar de maneira extremamente prOdutiva o público e a recep-
Hoggart, 1be Uses of Litemcy (1958), mostraram de que modo os indiví- ção, assuntos que haviam sido negligenciados· na maioria das abordiigens
duos criaram identidades e construíram sua Vidit por meio desses recursos- textuais à cultura. 31 -
culturais.A primeira metade do livro de Hoggart descreve em detall1es a

maneira como as comunidades de trabalhadores da Grã-Breta~ha tra'dicio-·
nalmcntc criaram culturas de oposição à cultura dominante, e a seguir deS- 31 O textu~llsmo foj especialmente unilateral na "nova critiat" e em outt:~s abordagens
creve a maneira como elas foram sendo sOlapadas pelo desenvolvinlento literárias norte-americanas que. durante il.gumas décadas após a Segunda Guerra Mun·
~dia!, definiram a abordagem dominante às produç~s culturais nos Est~dos Unidos. As
de uma cultura nacional e por processos de"homogcneização cultural diÍ-i·
abordagens pós-estruturalistas que se desem'Oiveram na Franç~ nos anos 1970 e logo
_gidos pelo Estado, pela escola e pela mídia. Esse também foi uni tema tra-: se disseminaram por todo o mundo também foram muitO Wxtualistas. Os estudos cul-
tado por estudiosos que exerceram forte influência sobre os e~tudos cultu- turais britânicos dão atenção ao pl1blko e à recep~.;'ào, no que foram precedidos pda
rais britânicos em seus primórdios, co_mo Raymond Wtlliams (1958 e 1962) Escola de Frankfurt:Wil!ter Benj:unin ressaltam a importância dos estudos de recepçiio
e E.P.Thompson (1963). · já nos anos 1930, enquanto Adorno, Lowenthal e outros, da Escola de Frankfurt, realiza-
ram estudos de recepção na mesma época. Ver Ke!lner, 1989a· 121 ss. Com algu·mas ex-
A partir da década de 1960, os éstudos culturais britânicos conleCaram ceções, porém, ~ Escola ~le Frnnkfurt tendeu a conceber o público principalmente
a mostrar como a cultura da núdia estava produzindo identidades e u".anei- ·-' como p~sslvo; portanto,~ ênfase de Bínningh.1m no público ativo é um avanço genuí-
ras de ver e agir que integravam os indivíduos na cultura dominante (Hall e no, embora, como veremos adiante, houve alguns exageros nessa. questão, sendo
Wh.annel, 1964). Portanto, o enfoque inicial do grupo. de Birmingha.m nas neces~ário fazer alguns reparos na noç5o de público ativo.

54 55

J
No entanto,espedalmente nO seu modo de d~senvolvimento no~~­ Além do mais, tem havido um fetichismo da resistência em algum;~S
tados Unldo,s, muitas das configurações atuais dos estudos culturais são nni- versões dos estudos culturais. Dentro da tradição da pesquisa da recepção
laterais demais, produzindo novas divisões ·do campo e, em parte, blo- nos estudos culturais, tem-se· apelado para a distinção cnt're leituras domi-
queando o campo das comunicações propriamente ditas por dar· ênfase· ex- n:aD.tes, acomodadoras e contestadoras (Hall ~980b: apud Fiske). Nas leitu-.
. cessiva aos textos culturais e à recepção pelo público. Em seu estudo sobré ras "c!.ominantes~, o público apropria-se dos textos que reproduzem os in-
Madonna, por exemplo.John Fiske escreve: teresses ~: cultura dominante, adotando suas intenções ideológicas; 0 pú-
blico, pOr "exemplo, sente prAZer com o restabelecimento do poder mascu-
Uma análise cultural, então, revelará o modo como a ideologia dominante é lino, da lei, da ordem c da estabilidade socil!l.somo no fmt de um ftlme do
estruturada no texto e no sujeito leitor, bem como os-aspectos textuais que tipo Duro de matar (Die Hard, 1?88), dePOiS.~quc o herói e os represen-
possibilitam leituras de acomodação, resistên,cin ou contestação.A ariálise cul- tantts da ·autoridade eliminam os terr{!ristas que haviam dominado um pré-
tural atinge conclusão satisfatória quando. os estudos etnogcificos feitos dio onde. funcionava a sede de uma empresa. Uma leitura contestadora, a~
sobre os significados histórica c socialmente situados são relacionados com cdntrári~, l?uva a resistência a essa leitura de apropriação do texto por
a análise semiótlca do texto. par:t~.<~Q público, como quando Fiske (1993: 3 ss.) Observa a resistência à
(Fiske, I989a: 98) 'leitUr$&Óhiinante dur,mte exibições repetidas do filme num abrigo para
seffi-teto: seus moradores aplaudiam a destruição da polida c das autorida-
Essa ênfase no texto/público, porém, deixa de lado muitas medi~çõ(:s des nas cenas em que os vilões dominam o prédio.
que devem faZer parte dos estudos culturais, incluindo análises dó modo Há um;t1 tendência nos estudos culturais a louvar a resistência per se
comq os textos são produzidos·no contexto da econo'mia política e do sis- sem fazer 4istinçâo entre tipos e formas de resistência (problema seme-
tema de produção da cultura, e o modo como o público e sua subjetivida- lhante está rio elogio indiscriminado do prazer do público em certos estu-
de são produzidos pelas várias instituições, práticas c ideologias sociais. Por dos de recepção). Portanto, a resistência à autoridade social por parte dos
conseguinte, no estudo que se segue,, apresentamos a expressãO "estudos sem-teto, evidenciada nas sessões de exibição de Duro de matar, poderia
da cultura da nVdia» para descrever o projeto de análise das compléxas re- Servir para reforçar o comportameriio masculinista brutal e encorajar ma·
lações entre textos, públicos, indústrias da mídia, política e conte"'-"tO sócio· nifestaçõcs de violência física para resolver problemas sociais. A violência,
hiStórico em determinadas conjunturas. Nos estudos deste livro, por exem· porém - como disseram Sartre, Fanon e Marcuse, entre outros -,pode ser
~pio, focalizamos áigumas formas dominantes de cultura: na sociedade ame- emancipatória, se dirigida contra as tOrças de opressão, ou reacionária, se
ricana desde o início dos anos 1980 até hoje. dirigjda contra as forças populares que lutam contra a opressão ou se ex-
Nosso argumento é que focalizar apenas textos e públicos, exduin·- plodír arbitr.triamente em qualqUer djreção. Muitas femi.n~tas, por sua vez,
do a análise das relações e instituições sociais nas quais os textos são pro- vêem toda violência como forma de comportamento masculinista brutal, e
duzidos e consumidos, trunca os estudos culturais tanto quanto. a análise muitas pessoas que participam de estudos pacifistas a vê"em como uma for-
da recepção que deixe de indicar o modp como o público é produzido · ma 4e maio~ da resolução de conflitos."
p~r meio de suas relações sociais e como', até certo grau, a própria cultu- Na verdade, a resistência que Fiske valoriza em sua análise de Duro
ra ajuda a produzir os públicos e a recepção destes aos textos. Na de matar não é a resistência em si, mas uma reprodução bem convencio-
verdade, há o perigo de fetichismo do público na recente ênfase à nal do prazer na violência qUe elímine aqueles que consideramo.s "malva-
importância da recepção e construção de significados p9r parte do pú- dos". O público aprende a sentir prazer quando os ''malvados" são violenta-
blico. Portanto, tem havido uma trnnsfer~ncia da ênfase .em grande esca-
la do foco no r'exto e no contexto de suá produção para a ênfase no pú-
32 De fato, muro <:xcmplo bem repetido por Fiske de resi~tência por parte d.c homens
blico e na recepção, pr()~uzindo, em alguns casos, um novo dogmatismo sem-teto é o •contrabando- da revi.st.'l pornogcifka Hustler no meio da re•ista Life
segundo o qual apenas o público, o~ o leitor, produz significado.· '?s (1993: 18, 22, 25). Embora isso de fato demoilstre resistência às normas da dasse mé-
textos, a sociedade e o sistema de produção e recepção desaparecem no dia, tal comportamento é bem questionável do ponto de vi~t.1. feminista. O problema é
êxtase solipsístico do produtor textual, em que não há texto fom ·da que Fiske não distingue a resistência progressista da reacionária, a emandpatória da
leitura - o que produZ Uma paródia do bon mot de Derrida, de que nada destruÚ"-a,e lo um wda resistência como posltiva,deL"GU!do,assim,de discriminare ava·
há fora do texto. líar diferentes modos e tipos de resistênci.1. Essa omissão pode ter o efeito de despoli·
tizar essa importantíssima e fort;1.lecedorn noÇão.

·'·56
' .

,,
mente eliminados, e os sem-teto de Fiske estão simplesmente reagindo aos pios dados por Fiskc da juventude em fliperamas, flanando pelas praias,
códigos e às convençõe~ do entretenimento holl)'woodiano. Sem dúvida surfando ou matando ·o tempo nas praças. Os modos de dominação se fe-
estão reagindo com pràzer às-ações violentas daqueles que são codificado~ cham, c a resistência e a luta se deSpolit!zam e se. tornam Inofensivas, crian-
pelo -filme ·como "vilões" contra os que são codificados como «bonzinhos'' do-se assim um ideologia da "cultura pOpular" perfeitamente congruente
ou vítimas inocentes; por isso, há uina inversão das convenções habituais · com os interesses do poder v\gcnte. Tal "resistência" de fato não desafia as
de ~bom" e "mau", mas a reação do públic'o-valorizada por Fiske como "re- estruturas existentes de poder, nãoalterâ as condições materiais e não me-
sistência"é simplcsmeri.te uma resposta visceral aos mecanismos hollywoo- fuo_ra as e~tr""Uluras Pe opressão daqueles que "rCsistem~·: produzindo signifi-
dianos pré--condicionados que produzem prazer na eliminação violenta dos cados e prazeres no domínio da "cultura poptllar~. {...
considerados "malvados", que merecem ser alvo de \-iolência. Também nos deixa perplexo aquilo que tOt;i$}deramos fetichismo do
Na-verdade, o elogio de Fiske em relação a Duro de mcttar deixa de
contextualizá-lo no ciclo de filmes de violência masculina ~alisados por
Susan_Jeffords em Hard Bodtes (1994). Duro de matm· é um exemplo de
I
r
prazer dO público em algumas versqes atuais dos estudos culturaiS. Reagin-
do contra uma atitude um tanto ascética em relação a certos tipos de cul- !_

I tura da teoria radical mais antiga, argumenta-se que é preciso dar atenção
um Ciclo de fantasias masculinas de compensação que corrcspondeu à ao P~'""<lf~.r::p,Z,~ovo no cinema, na televisão 0~1 em outras fo_rmas de cultura
emergência do femini,smo e da reação masculina conservadora que recusa-
va compartilhar o poder com as mulheres, resistindo às idéia{i feministas.
I popular, <te que esse prazer deve ser positivamente avaliado c acatado.
EmbOra essa tenha, sido uma medida útil eril muitos casos, receamos que
Uma série de espetáculos ideológicos masculinistas,em que estrelavam al- tenha levado a valorizar cettas tOrmas dé cultura precisamente porque são
. guns ultramachos çomo Sylvestor Stallone, Arnold Schwarzenegger e Bru- populares. e ptoduzem prazer. Uma abor(lagem tão genérica e acritica
ce Willis apresentavam super-heróis masculinos como solução necessária I
I como essa ffi(fnospreza a- distinção entre tipos de prazer e entre os modos
para os problemas da sociedade, promovendo, assim, uma ideologia da su-
premacia masculina. À medida que se intensificavam a uparanóia branca Ii como o prazir pode atar os indivíduos a poSições cotiservadoras, sexistas
ou racistas, como-quando os filmes Rambo, Duro de matar ou Extermina-
masculina" e a reação conservadora ao feminismo, essas fantasias masculi- dor do futuro (Tenninator) criam prazer em tomo de comportamentos _
nistas for.ün ficando cada vez ritais brutais com ffimeS como Duro de ma- extremam{'ntt< ma.~culinistas e violentos.
tar /i, Os jovens jJistoleiros (Young ·Guns ![) e semelhantes, que duplica- i b praZ'er em si não é natucil nem inocente. Ele ,é aprendido e,
vam ou mesmo tripllcavam os atos de violênda masculina redentora (ver ! portanto, está intimamente vinculado a poder e conhecimento. Desde Fou-
Gerbner, 1992). , cault, passoulse a admitir que o poder e o conhecimento estão intiinamen-
. . Além disso, a valorização incoruiicional da. resiStência do públicÓ a te imbricados, e que o prazer está vinculado a ambos.Aprendemos o que
s1gntficados que gozam da preferência geral, como o bom em si, pode con- apreciâr e o que evitar. Aprendemos quando rir e quando aplaudfr (e a da·
duzir ao elogio P?PUlista acríJ:ico do tCJI.'tO e do prazer do público no uso que eletrônica das comédias de televisão nos dão a deixá em caso de dis-
das produções culturais. Essa abordagem, se levada ao extremo,·perderia a tração). Um sistema de_ poder e privilégio, portanto, condiciona nossos Pra-
perspectiva crítica e ,conduziria a uma interpretação positiva populista da zeres de tal modo que procuramos certos prazeres sancionados socialmen- t:
r
vivência que o público tenha de qualquer coisa que esteja sendo est.udada. te. e evitamos outros. Algumas pessoas aprendem a rir de piadas_:racistas e
Tais estudos também poderiam perder de vista os efeitOs manipuladores e outras aprendem a sentir prazer com o uso brutal da violência.
conservadores de ce1tos tipos de cultura da núdia, servindo então aos m:tc- r Por conseguinte, os prazeres muitas vezes são uma resposta cóndido- I
resses da indústria cultural no modo como estãO hoje constituíçlos, bem I nada a certos estímulos; por isso, deve ser problematizado, ao lado de.outras' '
como aos grupos que usam a indústria cultural para promover seus formas de experiência e comportamento, pe1-guntando se contribuem para
próprios interesses e programas. · - a· produção de uma vida e uma sociedade melliores ou se ajudam a nqs
Acompanhando o feti~mo da reSistência vem o fetichismo da luta. prender nos laços de uma vida cotidiana que, em .última análise, nos oprime
F!ske: por exem-Blo, faz, do "popular" um terreno de luta onp_e o pÓblico re-
Siste a dominação, esforça-se por produ;zir seus próprios significados e pra;
zer~-~' c escapa ao controle e à manipulação social (1989a e 1989b).A luta
I e degrada. Resistência e prazer ilão podém, portanto, ser valorizados em si
como elementos progressistas da apropriação dos textos culturais, mas é
preciso descrever as condições específicas que dão origem à reSiStência ou
p~qht_I~~ _,mud~ então para "luta" por sigQificadOs c prazer, enquanto a "resis- ao prazer em jogo c a seus efeitos específicos. s:c quisermos manter uma
tencm e eqmpar:\da a evasão da responsabilidade soçial, cOmo nos ex:em- perspectiva crítica, também deveremos estabelecer dükeis _discriminações

58

' . J
,,
normativas para concluirmos se a resistência, a lcitura contestadora ou_ o gue escapar", indica de que maneira a diferença e a pluraijdade sãO utiliza-
prazer em dada experiência ou viv~ncia de uma produção cultural_ são pro- das par.t integrar os indivíduos ha sociedade existente.
gressistas ou reacionários, emaJJcipatórios ou destrutivos. A prática critiCa A diferença vende. O capitaJismo deve estar constantemente multipiJ..
deve procurar normas de critica e fazer discfiminações criticas ti.1 avaliação cando mercados, estilos; novidades e produtos para continuar abson.rendo
dà naturéza e dos efeitos das produções c das práticas culturais - tarefa que os c~nsumidores para as suas práticas e estilos dt vida. A mera valorização
assumimOs em diferentes contoa;os no estudo que se segue. da "diferença~ como marca de contestação pode simplesmente ajudar a
Os primeiros estudos culturaiS queriam equ'ilibrar o ideológiço e ,a vender hÕVos estilos e produtos se a diferença em questão e seus efeitos
resistente, olhegemônico/QQminante e o opositor. Essa equilibração é evi- não forem suficientemente aquilatados. Também podt: promover uma for·
dente nos artigos de·HaU (1980b e 1981)"Encoding!Decoding"e "Dccons- ma de política de identidade em que ca(L'\ grnp.q afirme sua própria espe-
tructing the Popular," que recoMecem o Poder dos meios de comunica- 1
I
cificidade C limite essa política a seus próprios interesses; deixando de ver
ção de massa para confOrmar c reforçàr a h~gemonia ideológica, o pqdér assim as forças comuns de opress.'io. Tal política da diferença ou da identi-
das pessoas de resistir à ideologia e os momentos e efeitos de antago~is- ~ dade ajuda ;nas estratégias de "dividir para conquistar" que em última análi-
mo à cultura da mídia. Essa forma de estudo cultura{, portanto, tenta supe- se sçrverh a.Os inicrcsscs do poder vigente.~'
. ·: •"·'k'"" ' '
rar a divisão entre teoria da manipulação, que vê na cultura e na socieda- · QijeStaque dado pela Escola de Frankfurt a cooptação- até mesmo de
de de massa em geral meios de dominação dos indivíduos, e a te.pria po- · i.lrfpulsos aparentemente radicais e subversivos - suscita a questão da natu-
pulista da resistência, que cnfatiza o poder que os indivíduos têm de opor- reza e dos efeitos das "leituras resistentes" tão prezadas por alguns teóricos
, se, resistir e lutar contra a cultura dominante. Essa perspectiva dual culturais. Sugçre que mesmo a produção de significados· alternativos e are-
também é evidente na obra de E.P.Thompson (1963), qüe enfatiza tanto a sistência aO§"significados preferidos" podem funcion;u· como um modo et1-
capacidade dos trabalhadores de resistir à dominação" capitalista e às for- --! 'caz de cooptar os indivíduos para a sociedade estabelecida. A produção de
mas de -cooptação, e na de Dick Hebdige, Subculture (1979), que apre-
I significados pode criru.· prazeres capazes de integrar os indivíduos .nas práti-
--;'
senta os estilos do rock e a cultura da juventude como formas· de recusa cas.consumistas que, acima de tudo, são proveitosas para a indústria da nú-
t como modos comerciais de incorporação da resistência d_e sub_Cult'ura:; I !' dia. Essapossibilidade obriga quem valorize a resistência a ressaltar que tipo
na cultura de consumo dominante. I de resistência, que efeitos e que diferença a resistência produz.
Portanto, devemos tentar evitar as abordagens unilaterais da teoria da A Escola de Frankfurt foi excelente ao tmçar as linhas da dominação
manipulação e da resistência, preferindo combinar essas perspectivas em na c_ultura da mídia, mas foi menos sagaz para trazer à tona QlOmentos de
nossas análises. De algum modo, certas tendências da Escola de Frankfurt . réSisJência e contestação. No entanto,sempie situou sua análjse da mldia.e
podem corrigir algumas das limitações dos estudos culturais, assim como do püblico no âmbito das relações existentes de-produção e dominação, ao
os estudos culturais britânicos podem ajudar a superar algumas das limita- passo que muitos eStudos de público e récepção freqüentemente deixam
ções da Escola <:Je Frankfurt.33 A teoria social da ·Escola de Frankfurt sempre de situar a recepção da cultura no contexto das relações sociais de poder
situou seus objetos de análise no quadro do desenvolvimento do capitalis- e dominação.Aiém disso, nos estudos culturais existem abordagens centra-
mo contemporâneo. Embora isso às vezes tt;nha levado à redução·de tOda das no texto que se ocupam de lcitu,ras teorizantts dos teXtos sem consi-
a cultura a mercadoria, ideologia e instrumentos de dominação de classe, derar sua produção, sua recepção ou sua ané'oragem numa organização ins-
também elucidou as origens de todas as produções culturais de ·ffiassa no titucional da cultura que assume várias formas em diferentes países ou re-
processo de produs·ão e acumulação capitalista, obrigando, porta~to, a· dar giões e em diferentes mome~:ros da história - ~ que eq~Jivale a dizer que as
atenção às origens econômicas e à natureza ideológica de muitos produtos abordagens textualistas muitas vezes eVitam o estudo da produção da cul-
da culturá da mídia. De modo semelhante, a ênfase dada pela EScola de tura e da sua economia política e mesmo do seu contexto histórico.
Frankfurt na manipulação_ shamou a atenção para o poder e a seduçãO dos Embora a tônica no público e na recepção tenha sido uma excelente
produtos da indústria cultural e para os modos como eleS podem integrar correção da unilateralidade da análise puramente textua{, cremos que nos
os indivíduos na ordem estabeiecida:A ênfase também no modo como a in- últimos anos os estUdoS culturais deram ênfase demais à análise do texto e
dústria cúltural produz «algo· para tOdos, de tal modo que ninguém coqse-
34 Estudamos a questão da identificacão com mais detalhes abaiXo, na análise dos ffi-
13 Vei Kellner, 1989a, capítulos 5·8. mes de Spike Lee (capítulo 4) e do fenômeno ~ladonna (capítulo 7).

'60 61
~

da recePção e ênfase dt' :menos à produção da cultura-e à sua economia: po- culturais britânicos, instigava a um «materialismo -cultura~, ( ...) 'à aó.ális.c .de
liticáY Enquanto antigamente o grupo de Birmingham éostumava dai- aten- todas as formas de significação (...) no. ã-tubito de seus Íneios c con.-:Hções
ção às instituições da mídia, às suas práticas e às relações entre slias formas reais de produção" (1981: 64-5), dando atenção à necessidade de situar a aná-
e as fornlas e ideologiaí:i. sociais mais amplas, nos Í:Íitimo.s anos esSa ênfase lise ctdtural em suas relasões socioecónômicas. Ademais, nwna conferência
se atenuou, para prejuízo de muitos trabaJ,hos atuais em estudos culturais, de 1983, publicada em 1985/6, Richard Johnson apresentava um modelo de
diríamos. Por exempló, em seu clássico artigo programático, "Encoding!De- .estudO cultural semelhante ao primeiro modelo de Hall, baseado num
coding~ ,Stuart Hall começava sua análise com base no Grundrisse de Marx modelo dÕs" d~uitos de produção, textualidade e rec,cpção paralelo aos cir-
Como modelo para traçar ;:tS articulações de "um círcltito contínuo" que cuitos do capital ressaltados por Marx, que eram ilusti\tgos por um diagrama
abrange produção-distribui_ção-consunio-produção" q980b: 128 ss.). Con- em que se desL'lcavil a importância da prodi\ÇãÇt;e da distribuição. Embora
cretiza es·sc modelo· centmndo a atenção no modo como as instituições da Johnson ressaltasse a importância da análise da produção nos estudos cultu-
mídia produzem mensagens _e as põem em circulação, c no modo como 0 i-.Us e criticasse a revista Screen por abandonar essa perspectiva em favor de
público utiliza ou descodiflca as mensagens para Produzir significado. Hall abordagens_,mais idealistas e teXtualiStas (p. 63. ss.), mui~os trabalhos feitos no
afirma que: âmbito dOs ~tudos culturais répetir'J.m esse abandono. Na verdade, podería-
mos ·.-dí.iilt<J:ue a maioria d~s mais recentes estudos culturais tende a negli-
A abstração dos textos em relação às práticas sociais que os produziram e dos gehciar as análises dos circuitos da economia política e do sistern.'1 de produ-
locais instit~Jcionais onde foram elaborados ê uma fetichização. ( ...) Com ·-ção em fuvor de análises centradas no texto e no público.
isso, oblltera-se o modo como determinada ordenação (la cultura chegou a ser Além d~~_so, há o perigo de os estudos culturais realizados em vários
produzida e mantida: as circunstâncias e as condições da reprodução cultural países do mpndo perderem o cunho crítico c politico das primeiras fortn<!S
que as operações da "tradição s~letiva ''tornou nattlrais, ~pressupostas~. Mas o dos estudos· culturais britânicos. Poderiam fi.tcilmente degenerar numa e.s-
processo de ordenação (organização, regulação) é sempre resultado de . pécie de populismó eclético do tipo que se vê em alguns dos trabalhos da
conjuntos concretos de práticas e relações. Popular Culture AssoCiatl.on, em ~de parte laudatórios e acriticos em
(Hall 1980a: 27) _ relação às produções textuais com que lidam.Negligenciar a economia po--
lítica, festejar o público e os prazeres do popular, deixar de lado questões
Contra a obliteração do sistema de produção, distribuiÇão e recepção de classe e ideologia e :O.ão analisar ou criticar a política dos textos cultu·
cultural, HaU inCitava à proble~atização da cultura e à "visibilizaçãÜ" dos pro- · rais são maneiras de transformar os estudos culturais em apenas mais uma
cessas por meio dos quais certas formas de cultura se tornarnm dominantes subdivisão acadêmica inofensiva e, em última aóálise, favorável sobretudo
(ibid.). 36 Raymond Williams, uma· das influências determinantes dos estudo~ à prJ'priaindústria cultural. Evitar tal desenvolvimento conservador doses-
tudos culturais, ousamos dizer, exige uma abordagem multiperspectívica
35 A maioria dos estudos cu!tur-<~is none-nmericanos e outros que também foram in· que dê atenção à produção da cultura, aos próprios textos e à sua recep-
fluenciados pela teoria pós-moderna deixa de lado o sist;;ma produtivo e a economia ção pelo público: Isso requer a presença de várias perspectivas disciplina-
política. Não temos certeza se isso ocorre por influência dos pronunciamentos de Bau- res e críticas a vincularem os estudos culturais à teoria crítica da socieda-
drillnrd-sobrc o "fun da econon'i.ia polírica" (1976), se apenas por-Preguiça e ignorância de e à política democrática radical.
sobre os assuntos de economia política,-ou se por <:erta deli<:adeza dos praticantes dos
A posição que assumimos em relação à mídia e à cultura em todo este
estudos culturais, que não se sentem à vontade com a "dureza" dos assuntos relaciona-
dos a r;rodU<,:ão e economia. ~ estudo também poderia ser qualificada como uma forma de materialismo
cultural, termo-chave que entendemos em dois sentido_s. Assim como Ray-
36 No entanto, em outro artigo do mesmo p'eriodo, Hall (1986 [1980]), rejeitou o para-
digma ?a economia política como redu<:ionista-e abstrato (46-7). Mas i; de se nota( que
mond Williams, vemos o rhaterialismo cultural como "a análise de todas as
de esta re)eita_ndo o m?d~!o mais economicisti<:a de "lógica do capital", o de infra-es· formas de significação ( .. .) dentro dos reais meips e condições de produ-
.t!"Utura/sup-erestruturn, e não a importând1 da economia política em si ("Essa abOrdà~ · ção" (Williams, 1981: 64-S). Essa frase indica que, para. analisar adequada-
gem também _tem lnsfghts que vale a pena Jt:wf a cabo"). Contudo, do fim da décad-a mente a cultura da mídia, devemos situar os objetos de análise dentro do
de 1970 ar(; t~ta data, a import.'íncia da dimensão da economia política foi diminuindo sistema de produção e - acrescentaríamos - de distribuição e consumo,
e~ todo o campo dos estudos culturais, e preconi.o:aríamos a sua revivesc?ncia. posl·
çao que McGuigan (l9'-)2) também assume numa crítica aO"populbmo clliturnl"dos es-
nos quais são produzidos e recebidos. Uma abordagem materialista cultu-
tudos cultll.l::lis britânicos e dos seus primos americanos e muro~. ral, portanto, ressalta a importância da economia política da cultura, do sis-

I
63
tCma que'çonstrange ao que pode e não pode ser produzido, que i~põ.e li· moderno" talvez seja uma das que foram usadas·de modo f!lais in_discrimi·
mítes e possibilldadés pam a pro-dução cultural. nado c confuso no léxico da teoria crítica contemporânea. oS termos "mo·
A produção da mídia está, pot1.anto, intimamente ímbricada em rela· demo" e "pós-moderno" são ·usados pam abarcar u~a eSpantosa diversida·
ções de podei- c serve para :reproduzir os interesses das furças sociais po- de de produtos culturaiS, fenômenos sociais e discursos teÓricos, e o con·
derosas, promovendo a dominação ou dando aos indivíc,luos força para' are- cdto de pÓs-!llodernidade exige constante exame, aclaramento e crítica.
~istência e a luta. Mas o m.·uerialismo cultural também focaliza os efeitos Dur,w.te uma viagem que fizemos na primavera de 1993 à Inglaterra, por
materiais da cultura da mídia, insistindo em que suas imagens; espetáculos, exemplO, d~scobrimos um artigo no jornalJbe Guat-qian intitulado "O polí-
discursos e signos exercem efeitos materiais sobre o público. Para o mate· tico pós-moderno" e descobrimos que o artigq ~ l~feriá-.il outro velho e abor·
rialismo cultural, os textos da mídia seduzem, fascinam, comoVem, posiciO. recido conservador que não tinha motivo disCa.ir'nvei nenhum para ser "pós-
nam e influenci...-lm seu público. A cultura da mídia tem efeitos materiais e moderno" .Voltando para os Estados Únidos, caiu-nos nas mãos um número do
eficáci~, e uni dos objetivos dos estudos culturais é analisar de que modO Washingto11 Post Week{l? e notamos um título que descrevia Dce Dee Mycrs,
determinad9s textOs e tipos de cultura da niídia afetam o público, que es- da equipeo de Clinton, como "a secretária de imprensa pós-moderna", e uma
pécie de efeito real os produtos da cultma da mídia exercem, e que espé· leitura. ~~~aftigo da-..ra a entender que e.la era "pós-moderna" porque erguia as
de de potenciais efeitos contra·hegemônicos·e que possibilidades de resis:- sobriu{i\:Clliás e era irônica aO falar. E o Newsweek publicaya um artigo sobre
tência e luta também se encoOtram nas obras da cultura da mídia. Bilt'Ciinton, "O presidente pós-moderno", sem nenhuma análise daqui.Ío que
Pretendemos substanciar essa abordagem e apie_sentar exemplos ao o tornaria pós-moderno,em que o ternlO era simplesmente usado como um
longo de todo o livro. Em primeiro !ugar, pOrém, trataremos de um movi- chavão para é'hamar a atenção (10 de janeiro de 1994).
mento recente no campo dos estudos culturais. ·Mas o._,prêmio cabe ao New lbrk Times (12 de maio de1993) pela
seguinte m:inchete: ''Esqueça o pão com mortadela: está chegando o san·
duiche Pós-moderno'". O exame do artigo mostrou que os sanduíches mo-.
ESTUÜOS CULTlJHAfS- PÚS-MODEHN"OS? demos eram !Citas· de gordos nacos de carne, enquanto "os arranjos pós·
modernos (. . .) baseiam-se mais no uso de vegetais tostados ou marinados
Nos últimos anos, surgiu uma argumentação a favor de um estudo ·cu i. do que de carne, recic.lando com requinte sobras como legumes e carne de
tural pós·modcrno. Alguns teóricos, como Denzin (1991) e Grossbcrg cordeiro,frango ou peixe grelhados" (p. B 1). Podemos dar risada desse mis-
(1992), vinculam agressivame'nte Ós estudos çulturais à vertente pós-mo- tifório teito pela núdia no uso do discurso, mas as coisas niuitas vezes não
derna, enquanto muitos outros simplesmente pressupõem que o terreno são mais claras quando nos voltamos para os discursos teóricos dos livros
dos estudos (culturais é constituído por uma cultura e uma sociedade pós- ou d'ts apresentações acadêmicas. Freqüentemente, os comentadores aca-
modernas, sem, de fato, definirem os termos, dizerem o que está em jogo i dêmicos simplesmente pressupõem que estamos numa era pós-moderna,
ou construírem uma argumentação que eXplique por. que seu método e sem nenhuma análise específica. Muitas vezes o uso do termo "pós-moder·
seu tema na verdade são "pós·módernos".'7 Com efeito, a designação "pós-
t no" indica fenômenos que são duvidosamente modernos, e o discurso é
usado apenas como sinônimo do nosso niomento contemporâneo, ou das
novidades contemporâneas,, sem análise substantiva. O exemplo de que
37 Stuart HaU certa vez ressaltou a imponância das ntpmni;; numa pr0blemátk~,
mais gostamos refere-se a um professor de sociologia que, ao lhe pedirem
em que ~ão rompidas antigas linhas de pensamento, deslocadas antigas conste- que descrevesse com mais clareza o que queria dizer com o termo "pós-mo-'
lações e reagrupados antigos e novos elememos em torno de diferentes premis-
demo", disse que a melhor descrição de ''nossa sociedade pós-moderna" se
$:ISe temas. As mudanças numa prob!em~tic~ transformam significativnmente a
n-att•re~~ das pecgtmtns feitas, as formas como são propostas e a maneira como
podem ~er adequadamente respondidas, Essas trocas de perspectiva refletem 'I Aq,'ltmemariamos que a venente pós--moderna cort5tiiui uma mudança significativa,
não só ós resu!t:idOs de um trabalho·imdectua! interno, ma~ também a maneira
cmilo a evolução e as tr:msform;lÇÕes históricas reais são Msimiladas pelo pen· i embor:1 sua imponância não tenha sido totalmente tcgistrnd;~ na tradição dos estudos cul-
turni5 britiínkos; pdo menos, muitos dos que(;(! alinham com a tradição anterior simples--
samento e criam Pensamento, não com garantia de "correção", mas com sua_s
orientações fundanu:mtais e suas condições de exl~tEncia.

(Hall. 1986: 33)


i nicnte se referem~ uma nova cultura e uma nova sociedade'pó,s.modernas"'scm teorizar-
sobre o significado dessa nmdança, ou então, como no caSo de Grossberg (1992), reall·
zam uma tmnsfonnação pós-estruttÍralista e pós--moderna: rawavelntente notável dos e:r
'tudos culturais sem sinaliz;lrem ou teorizarem a mptum cOm a tr:Jdição anterior.

64 S!ii
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'r ..
*L'·
encontra no trécho do "Manifesto Comunista" em qu,e Marx e Engels des- . Muitos teóricos do pós-modernismo, ou aqueles que usam sistemati-
crevem um Estado "onde tudo o que é sólido se dissolve no ar". Evidente- camente o termo, muitas vezés só fazem expor uma liSta de características
mente, como mostrou Marshall Berman (19.82), o "Manifesto'' é um virtuat arbitrári:is que dizem ser "Pós-modernas", ilustrando-as- mm exemplos
h.iJ)o à modernidade e texto:-ehave da teoria-moderna. questionáveis. Muitas dessas listas e desses exet_Uplos também citam ~:U~C·
Para outrOs exemplos de usos do termo "pós-moderno" em- que, com terÍ'sticas ou produções modernas fundamentais como exemplos de pos-
base numa teoria dui.idosa, ele serve de sinônimo para a nossa soç:icdade moderno;,~n dei:x,--mdo, pois, de teorizar adequadamente os fenõmenos.Al-
contemporânea, podemos remeter à introdUção da antologia· de .disserta- gi.ms, qÚe 'argumentam a favor da feição pós-moderna dos estudos cultu-
ções coligida<; nUma conferência realizada em 1990 na Universidade de Illi- rais, como Denzin (15)91), defmem de fortp~--~ccssiv.t e questionável o
nois sobre estudos culturaiS, introdução essa escrita pelos organizadores da termo, enquanto ou~ros o ?efmem de modo inSUficiente. Para Denzin, ~ud~
coleção (ver Gr9ssberg et al., 1992). Há referências à "nossa era pós-moder- 0 que ocorre na sociedade americana após a Segunda _G~erra Mu~dtal e
na" seft!. nenhum atgumento ou esclarecimento sobre o que a toma "pós- "pós-moderno~, c ele cria listas e listas de suas caractc~sttcas dclimdoras_,
moderna", o que constitui á mptura com a modernidade e quaiS são suas muitas das·guais poderiam facilmente ser assimiladas a listas que caracten·
novas características (ibid., 2, 6). Além disso, numa longa nota de rodapé, zassenÚ\~ .Íçnômenos modernos. '
quase no fim da introdução, os organizadores descrevem a fundamentação ·. út'h~- das tentativas mais interçssantes de vincular os estudos culturais·
e a tf'.tjetória dos estudos culturais como uma resposta à modernidade,à mo- c~fl 1 a, teoria p~s·moderna encontm-se em Hidiug in the Light, de Dipk
dernização e ao modcruismo (ibid.;lS-6).-18 No entanto, deixam de notar o Hcbdigc (1988). Hebdige deseja "explomr as dimensões genuinamente ~o­
par-adoxo em que consiste a pertinência dos estudos culturais numa era Sitivas e.revíializadoras", que os vários debates do "pós" possibilitaram, em-
. pós-moderna se eles são produto e expressão da era moderna (que a temia corporar suas conclusões num estudo cultural revitalizado.Depois deu~
pós-moderna aftrma estar acabada, havendo necessidade, po11anto, de novas longa lista de algumas das coisas descritas c?mo. "pós-m?dernas", Hcbda~c ,..._
abordagens à cultura e à sodeqade, de uma nova política, de nQvos modos nota que exatamente a multiplicidade de fenomenos des•gna~o~, c~mo pos-
de pensámento,etc.).Vários autores da coleção Ctdturul StUdies utilizam o modernos leva a crer qtte "estamos em presença de um chavao . No entan-
discurso pós-moderno, mas em geral deixam de fazer um estudó consisteno tO, em' ve-z. de simplesmente concluir que o termo não tem significado,
te e empregam o termo de várias maheiras conflitantes. Portanto, não está . Hebdige prefere-acreditar, como Raymond Williams, que,
cLtra qual a contribuic,:ão desse uso impreçiso e confuso do termo, e somos
levados a suspeitar que, em lútima aná!Ísc, o discurso pós-moderno produ- quanto mais complt::xas e contraditórias forem as nuance~ de uma palavra, mais.
sig-
ziu mais confusão qut; clareza, mais perplexidade que luz·. ' 9 "•· provável será que ela tcnJta const(tuído o foco de debates historicamente
• .
38 ConcordaríamOs cOm ~;;stc último argumento, mas. os organizadores apresent;un d<:n~e~ em tomo dt: estudos culturab, t~mbéJ?l ded~ratll simplesmente que:"A moder-
uma exPiic~çào questionâvd para esses tcmws, defmindo modernidade, por t:xemplo, nid~de,virou pós-modernidade" (Biundcll et ~!.. 1993: 8), e referem-se às sociedades
como "uma estrutura de experiência e identidade", e não como wna form~ção sócio- contempm-âneas como "pós"moder:nas" (ibid., 10) Não há argumentação, e ~ssj.m um
histórica. como uma época da histúria, modo este como a modernidade é definida na termo extrcrrt:tmente complexo e controvt:rso é totll~do con>O sinônimo de ~odcdade
tcorla social clássica (ver Antonio e Kcllnei-. 1994 c no prelo). Modernização é ddinida contcmpocinca. Do mesmo modo,Aronowitz (1993) tem um cnpírnlo sobre "estudO.:
em tt:nnos dt: um amplo Cspcçtro de fenômenos geralmente as.soci~dos à modernida- culturais naAméri<.:a pós-moderna" (167 ss.), em que não Jdi<le c tenno nem constrót
de, e não como um processo em que as forças d;l modernidade invadam sociedades e nenhum~ argumentação- n~ verdade. no começo de seu h no, de afirmara que, para as
cultur.ls tradicionais e não ocidcmah,produ>:indo um Proces.so extremamente comple- finalidades dõlclllde trabalho, pouco irnporta,•a se a modt:rnidade não estav~ esgota~a
xo c con\ro~rtido de modernização c ocidentalização. O modernismo é definido I •
0,_1 se"anunci:unos · · a quats-
~ cllt:g:u.!~ de wna ccndição pós-modt:rna oom sua rt:nuncm .
como "todo o complexo dt: reações~ mudanç~ da p~!sagem históric:t dos ilrtistas mo-· quer univer5tis"(ibid., l4).
demos" e não dos artistas de v:mguard~,como BaudcJaire,e dos movi!nentos artistioos
40 Qu~sc todos 05 que utilizam o termo "pós-modemo" têm definições diferentes, que
que <-"Xprimiram certos iffiimlsos modemÕs e·levarnm ~ revolta contra as forma$ esta-
vão desde 0 cxagt:ro dt: dizer que tudo o que é contemporâneo é•·pós-mode~no"até a
belecidas de cultura, tentando produzir inovações na artt: (c, às vezes, na vidil).
simpleS aprcst:nt~Çi.o de uma Jist~ arbitrária de características:muit~ dascqua.<s podem
39 Essa tendênda a pres.supor que o terreno dos estudos culturnls é-a cultura ou a so- ser definidas como moderna:;. Outros teorizmn dt: menos, pr!V<leg.ando uma ou duas
dedade~pós-modernil", sem dt:flnir o termo ou apresent~r argumentos, é genem!lz.'lda; caradcrísticas como marcas do pás-moderno, sem c~mbeleçer uma l."llptur;t realmente
Os organizadores de uma coletâne~ feita em 1993 com monomfias monneote cana- importante ou distintiva em relação ao moderno.

66
· nificntivos, que t~nha ocupadO um campo semântico no qual se Serttiu a pre- que há fenômenos ou assuntos que precisam ser teorizadoS e qu~,
sença de algo prectoso e importante. Tom:o então como ponto de partida portanto, o-termo é muitas vezes sinal de que algo foi mal ou pau~_,) teon-
(talvez singelo) a noção de que o grau de complexidade e s9brecarga semânti- zado. De um ponto de vista n~gatiVo, o termo freqüentémente é um signi~
ca do termo"pós-modernismo" no momento é sinal de que cônsiderável núme- ficante vazio a indicar que se está evitando uma teorização fiais concreta
ro de p~ssoas com interesSes e opini~s conflitantes sente-haver aí algo sufi- necessária. Tal uso vazio do discurso é sinal de teoria preguiçosa, de fuga
cientemente importante em jogo para que valha a pena debater: e argumentar. ao p~;1 samento e. à análise difíceis e de substituição da análise te<?rica por
(V;'illiams, 1988: 182) um chaVâ-;)popular. Mas, de um ponto de vista positivo, é sinal de que algo
-é novo e precisa ser compreendido e teorizapo. Portanto, o teríno "pós-mo-
Depois de esboçar alguns das posições fundamentais 'da teoria p6s- derno" muitas vezes serve para ''guardar Jugir'';·como um marcador semió-
moderna, Hebdige propõe jungir algumas novas perspectivas pós-moder- tico a indicar a existência de novos fenômenos que exigem mapeamento
nas ao programa neogratÍlsciano mais antigo, que consiste em ligar os estu- e te~rizàção. O uso desse,termo também pode ser um sinal de que al~o nos
dos c~dturais ao projeto· de promoção de mudanças sociais e cultÚrais radi·. está incomodando, de que estão aparecendo fenômenOs J).Ovos e descon-
cais, para levar adiante novas fonUas de solidariedade, novas 'lutas e novos certante's 'qóe não conseguimos categorizar ou apreender adequadamente.
movimentos de promoção da causa de transformação social progre~istá. ·- f:i~~''discurso mal ou pouco teàrizado reduz o "pós-moderno" ao sta~
Mas, como ele mesmo indica, trata-se de um programa diferente, de wna ur's 'de jargão, muna tentativa muitas vezes confusa de distanciar-se dos
versão do marxismo que é diferente dos antigos programas rcvoludonári_os compronússós impostos pela teoria moderna,'ou de parecer "por dentro"
socialistas mais ortodoxos de um, digamos,Althusser, que em última análi- ou •·pra frente". Mas há outro problema, qual seja, os próprios discursoS:
se reproduziam uma política partidária marxista à moda antiga. O progra- mais articulados e decisivos sobre o pós-modernismo freqüentemente·
ma neogramsCi_ano, ao contrário, não apresenta garantias, telcologias, gran- estão em cÓnflito entre si (ver o estudo das diferentes versões da téoria
des narrativas de emancipação, discursos e políticas totalizadóras ou redu- pós-moderna em Bcst c Kel)ner, 1991). Portanto, ~ã? há um -~scurso de
toras, privilégio de uma classe ou grupo social nem ponto ftxo ou base só- consenso em torno do pós-moderno, mas, ao c_ontrar1o, uma sene de para-
lida a partir da qual lutar, mas ainda mantém a esperança de emergência de digmas e discursos em disputa. Ademais, constantemente estão surgindo
uma nova tOrma de solidariedade c luta e de percepção da necessidade de novos fenõmenos rotulados de "pós-modernos". Por isso, se atentarmos
encorajar a esperança, promover o radicalismo, sustentar a possibilidade de
mudanças mais radicais, trazer a luz da crítica e da política radicais para á
para os discursos teóricos mais rarefeitos da atualidade ou para pop~a­ a:
rizações freqüentemente risíveis do pós-modemo, como o "sandutche pus-
luz ofuscante da mídia, te\italizar a teoria e a política radicais, nem qué seja moderno" de que falamos acima, veremos que os fenômenos e os discursos
de formá modesta e tênue. do Pbs-moderno estão em constante mutação, tornando-se mais coniple~
A nós também parecem atraentes essas perspectivas neograrríscianas xos, exigindo novos mapeamentos e análises para termos um quadro de
e compartilhamos com Hebdige o desejo de produzir novas sínteses de es- sua trajetória."
tudos culturais com outros discursos teóricos importantes do presente. Portanto, para que o discurso sobre o pós-modetno tenhà algum con-
Também nos solidarizamos com a opinião de Hebdige, de _que "é só basean- teúdo cognitivo, é preciso fazer certas distinções e separar a família termi-
do nossa análise no estudo de determinadas imagens e objetos" que nológica do pós-moderno dos discursos sobre o moderno. Nos livt:os ante-
podemos superar as limitações dos discursos extremamente teóricos dás riores, fizemos a distinção entre mo~ernidade e pós"modernidade cOmo
últimas décadas e "a vertigem do pós-modernismo" (1988: quarta capa). Mas
''' duas eras históricas diferentes; entre modernismo e pós-modernisnio, como
nos apêndices de conclusão, Hebdige oscila entre aproximar-se ou distan- dois estilos culturais é estéticos diferentes; e entre teoria moderna e pós-
ciar--se das posições pós-modernistas, e assim, em última an..Uise, não ficam moderna como dois di~cursos teÓricos diferentes (ver Kellner, 1988; Best e
claras as suas próprias posições em relação,ao discurso pós-moderno. KeUner, t'991).Ao construir estas análises e esta genealogia histórica, deSeja-
No estudos que se seguem, faremos uma indagação minuciosa sobre
os vários usos do discurso pós-moderno para ver se esse termo esclarece
41 No~ \Íltimo~ anos, tentamos pes~oahneme mapear as vicissitudes do pós-modernO e
ou confunde o entendimento do fenômeno em questão. Embora· muitas avaliar as percepções e digressões dos discursos; ver de nossa autori~: livro sobre Ba~­
vezes cause mais ~onfusão do que clareza, o. discurso "pós-moderno" tem drillard (1989b), volume sobre Jnmcson (1989c); !i\TO sobre teona pos-mÇJdema. escn-
·certo :valor sintomático. O uso superficial e descuidado do termo indica . to com Steve Besr (l99J); e man~1al de le\Wta de Baudrillard (1994a),

68 69
mos o.tereccr mais alguns esdárecimentos conce'ituaís para tentar eluddir o pós-modernismo em artes, porém, foi freqüentemente discuti~o
9 complexo campo do discurso em tomo dO moderno e do pós-modemo. como um elemento de uma nova "cultura pós-moderna", um novo "cenário
Para começar, o discurso-contemporâneo sobre o pós-mode'mo surgiu pós-moderno" ou uma nova"'condição pós-modema",-e nos anos 1970 co-
·nos campos da culturn, e a febre pós-moderna da atualidade também come- nteçaram a surgir concepções mais amplas de uma nova era de pós-moder-
çou nesse domínio. Nos anos 1960, apareceu uma "nova ~cn..-;ibilidadc" que nidade, de uma ruptura com a modernidade, nas teorias de Baudrillard,
se definia contra a abstração e o ditismo da arte modernista e. das formas Lyoiard e outros. 43 Nos anos 1980, houve uma proliferação de discursos
modernas de critica literiíria. Essa nova sensibilidade propugnava as práticas sobre Vfu:iâs formas de cultura e sociedade pós-mqdema, e Baudrillard afir·
culturais emergentes que se caracterizavam por, entr~ outras coisas, desfa- ma que en!ramos numa nova era histórica·g?~~~ock.Q.la, numa "pós-moder-
zer a distinção entre arte nobre c não nobre, ao incotpomrem nas formas es-, nidade". Thmbém se tornou popular roml.i:tlt#j-- amplo espectro de pensa-
téticas uma vasta gama de símbolos e imagens da cultura da mídia e 'aO po- dores, desde Foucault até Derrida e Baudrillard, como "pÓs-~odernos", por
rem em xeque as barreiras convenciOnais entre artista e espectador. Essas . terem rompido decisivamente com os·pressupostos & teoria moderna, sur-
nova.~ formas estéticas- cOmo as pinturas deAndyWarhol ou os romances gindo então vários tipos de teor~a pós-moderna. Na· Verdade, não há uma
de John Barth e Thomas Pynchon - acabaram sendo conheddas como teqria· p~st,ínoderna, ou uma ·só definição de pós-modernidade como época
exemplos de "pós-modernísmo",_como parte das novas configurações cllitu- hisi:óefc~-Ou de pós-modernismo em artes.Ao c.ontrário,esses discursos en-
rais que rejeitavam as características do mo-dernismo clássico. tÍ-am em competição e em conflito; visto que diferentes teóricos tentam
Foi na arqUitetura que o ·termo "pós-moderno" começou a se alastrar. impor suas próprias definições sobre tais conceitoS.
Vários teóricos e arquitetos opunham as novas formas de arquitetura pós- Portan):o, o discur.so sobre o pós-moderno é um construto cultural e
moderna, que rejeitava as construçõeS estéreis de vidro e aço ligadas ao teórico, e não um coisa ou estado de coisas. Ou seja, não há fenônu;nos in-
alto funcionalismo modernista de Mies van der Rohe, ao estilo internado· trinsecamCnte "pós-modernos" que o teórico possa desCrever. Os conceitos
nal que propugnava as mesmas formas por toda parte. Construindo tom são gerados cOmo conStrutos teóricos usados para interpretar uma famí,lia
base na obra de Robert V(;;:nturi, Learning from Las Vegas (1972), a arqui-
tetura pós-moderna apropriava-se das fonnas tr-J.didonais, ostentava a deco-
ração e as cores evitadas pela arquitetur-a ni.odernista de dite e tentava I de fenômenos, produções ou práticas ,.,Logo, os discursos sobre o pós-mo-
demo produzem seu próprio objeto, seja ele uma época histórica de pós-
modernidade, seja o pós-modernismo ém artes. Obviamente, há fenômenos .
adaptar a arquitetura às cond.ições locais.
No entanto. verifica-se <tue (: mais difícil enunciar diferenças ~ntre
modernL'>mo e pós-modernismo em literatura, cinema, dança, teatro e
I sociais e históricos dos quais os teóricos ex1:raem conceit9s como pós-mo-
dernidade, e há práticas, produções e artistas no campo da cultura diante
do§. quâis é possível usar o termo "pós-modernismo~. No entanto, ver fenô-
outras artes. As sobreposições e continuidades nesses casos são inàis inegá- ·mc'Oos, práticas, pmduções, etc. como "pós-modemos'' depende do discur-
veis, c é difícil' mostrár características específicas de literatura c arte pós- so teórico que denomine algwnas coisas de "pós-modernas'' c outras não.
moderna que não tenhan1 sido antecipadas por formas modernistas. Con- Por conseguinte, a família de conceitos em torno do pós-moderno é
tudo, embora não haja aí a fr.ttura ou ruptura cvidentc'em artiuitetura, cer- constituída por construtos merarúente conceituais cuja finalidadt; é execu-
tos teóricos como Jamcson (1991) e Hutchcon.(1989) d~screveram verda- tar cé'rtas tarefas interpretativas ou explicativas, não consistindo em termos
deiras constelaçôes culturais que. apresentam um número suficiente de
características comuns para que o conceito de pós-modernismo em artes
~enha teor analítico, como móstraremos no estudo' qu~ se segue." · l transparentes que reflitam estados de coisas estabelecidos." Por isso,
quando lidamos com o discursO em tomo do pós-moderno, operamos no

43 Tais teorias sobr<.: a pus-modernidade foram antedpadas por historiadores como


42 No prin>dro esboço publicado de sua teoria sobre o pós-modernismo em artes,Ja· Toynbce e teóricu~ sodai$ o)mo C. Wright Mills (ver o t'5tudo géneJ.lógicc~ e~n Best e
meson argumentou que:
Kdlner 1991)-
As rnptt!r.I.S r<ldiqis entre períodos g,;n~lmente não implicam mud~nça~ c:omple- 44 Esse é um aspe<.:to óbvio, mas nmít<lS vezes ~squecido:a maioria dos teóricos <.lo pós-
tas de teor, mas sim a reestruturação de certo número de elementos já dadoo: moderno ou os que usam a palavra sem teorizã-la pressupõe que há algo por ai
caracterí'stkas que no p~riodo ou no sistema ;mterior áam subordinadas pa~sam chamado "pós-modernismo" que~(,' estâ esperando pam ser descoberto ou descrito.Ao
a ~cr dominantL-s, c ~s-que haviam sido dominantes passam a ser sequ1dári~s- contr:irio, são os termos desse tipo·que produzem seu~ ohjetoo, poosibilitaodo que al-
(fameson, 1983:_l23) guns objetos sejam rotulados de "pós-modernos" e outros não.

70 71
nível da teoria e do discurso, e precisamqs dar elucidações e fazer distin· · mia, antropologia, geografia e quase todos os campos acadêmicos. Os gru- ·
ções nesse nível (a menos, evidentemente, que estejamos apenas usando pos e indivíduos marginalizados da sociedade, da cultura e dit tutiversidade
um chavão, como nos discursos jornalísticos e teóricos citados acima). adotaram o termo e o usam para opor-se à ordem estabelecida. Como mUi-
ConfOrme nos lembra Mike Featherstone (1991; 1 sS.), os jornalistas, os em- tos desses individuas são jovens, é de se esperar que o discurso continue
presários culturais e os teóricos inventam e divulgam discursos como o do por _algum tt:mpo ainda.
pós--moderno para aumentar o capital cultural, distinguir-se, fazer propa- Uma das finalidades deste estudo é interrogar alguns discursos dooil-
ganda de determinados produtos ou práticas como coisas que estão na nan'tes·sobre o pós·moderno para demonstrar confusão, descuido e pregui-
crista da onda, e difundir novos significados e idéias. O discurso em torno ça em muitos de seus usos sintomáticos. Indaga.reinos se o discurso é útil
do pÓS·lllOderno, em especial, atrai sobretudo jovens à cata de prestígio ou ou não para a interpretação de fenômenoS--és:Pecíficos de nossa cultura
pessoas que queiram distinguir-se tomo vanguarda, embora também tenha contemporânea. A utilidade ou não d~ um discurso ou teoria pode ser·,de-
atraído muita gente interessada em resSuscitar a carreira ou a libido exan- terminada pela sua capacidade oti não de elucidar dc;:terminados fenôme-
gue com um discurso novo e sensuaL nos, de fAcilitar ou dificultar determinadas tarefas. Um dos objetivos deste _
Na verdade, o surgimento do pós--moderno tem muito- a ver com as estl-JdO ·-_€ ~.Yucidar e mapear a sociedade e a cultura contemporâneas; por
batalhas por capital cultural nos nossos dias. UtÍta maneira de contestar teo-- isso~ J~:}femlinar a utilidade ou não do discurso sobre o pós-inoderno cons--
rias, cânones e modelos anteriores é declarar sua obsolescência ou negar titàirá Ltma de nossas tarefas, especialmente na Parte-H, ,.
radicalmente suas pretensões à verdade, excelência, utilidade ou seja lá o Embora seja prudente mantermo·nos céticos diante de afirmações ex-
que for. Aumentamos o capital cultural distinguindo nosso trabalho e nos- tremistas dó.:'pós-moderno que tornariam obsoletos os pressupostos, os va-
sas posições dos trabalhos e posições dos outros, ligando·nos a fenômenqs lores, as ca~egol'ias, a cultura e a poLít~ca da era moderna, cabe admitir que
populares e aderindo a novos movimentos teóricos e culturais que nos estão ocoriendo mudanças significativas e que muitas das antigas teorias e
identifiquem coin o entendidos, aVançados, informados e atualizados. Entritr categorias modernas já não conseguem descrever adequadamente a cultu;
na festa pós-moderna pode ser divertido, pois podemos fazer parte de des·
vios indiscriminados nos quais são postas de lado as normas e· as com>en- ·'
,I
...
,'-•
ra, ~política e a sociedade contemporâneas. No entanto, as afirmações ex-
tremistas de rupturn pós-moderna violentam nosso senso de ·permanente
ções_de conveniência, vistO que procuramos novas normas ou convenções continuidade com o passado e ignoram o fato de que muitas i~éias e fenô-
ou queremos escapar delas pura e simplesmente. (_ menos que se afirma serem "pós·modernos~ têm origem ou análogos
Mas seria um erro apenas rejeitar o discurso sobre o pós--moderno ale- precisamente na era moderna. Por conseguinte, nossa opinião é a de que
gando ser ele simples -voga ou moda passageira. Porque essê discurSo cha· est'W1os vivendo entre uma er.t moderna em envelliedmento e uma nova
mou muito a atenção e provocou grande controvérsia na última década era pós-moderna ·que ainda precisa ser adequadamente conceituada, dia-
(1983-93), e não há fim em vista. Embora muitos tenham previsto ·o fim do gramada, mapeada. Os períodos históricos não aparecem e desaparecem de
fenômeno,' 1' continua aparecendo um mar de livros, artigos, conferências e forma nitida ou em momentos cronológicos pitdsos. A mudança de uma
discussões sobre as muitas modalidades ~e pós-moderno. Os sentimentos. era para outra é sempre demorada, contradltórla e, em geral, dolorosa, O
continuam sendo apalxonados,e o discurso sobre o pós·moderno, que cer- sentido de "entremeio~ ou transição exige a compreensão da contiriuidade
tamente reflete importantes mudanças em nossa cultura e nossa sodeda·
de, já adquiriu certo peso. A teoria pós-moderna penetrou e'm quase todas
as disciplinas acadêmicas, produzindo críticas à teoria moderna e a outras
II com o passado assim como das novidades do presente e do futnro.Viver ·na
fronteira 'entre o velho e o novo cria tensão, insegurança e atê pânico, pro-
duzindo, assim, um ámbientc cultural e social perturbador c incerto. .
práticas teóricas pós--modernas em filosofia, teoria social, política, econo- Este estudo tenta captar parte da tensão de \-iver: numa situação cujos
contornos aiitda não estão claros e-na qual estão ocorrendo conflitos inten-
sos entre as forças conservadoras que ~esejam manter a ordem social esta-
-45 Desde o começo, muitos indivíduos ení todas as discip!in:is nfirmamm que a verten· belecida e as que desejam trahsformá·la. Essas guerras culturais são repeti-
te p6s-modema não passava de moda que poderia s~r facilmente ignornda, mas os de· das naquilo que poderíamos chamar guerras entre teorias, trav.ldas entre
bates seguiram ruidosamente sem a participação dos que ignoraV\Im o fenômeno. AI· aqueles que querem mapear e orientar a construç~o do presente e do fu-
guns editores afinnarnm que o interesse pelas controvérsias em tomo do pós·model'-
turo. Neste estudo, intervimos nesse contc!-::-.10 propondo o desenvolvi-
'1" estava morrendo, como fez o dono de uma livraria; ver Rosenthal, 1992.Apes.-u-
<.11~,w, a brincadeira continua .. .
mento de estudos culturais
.
no quadro da teoria Crítica da societ!ade e da

73
política "democrátiCa ~dical. Na· verdade, acredÚ:amos que não é Possívt!l
clnpreender est.~dos cuhurai'> ~m-uma te~ria social, e que um dos bÓn's
efeitos dos estudos culturais consiste em- contribuir pam 0 desenvolvi- Cultura da mídia, política e
mento de ~~a teor~a e de uma política crítica da sociedade pre~eine. o ' '
que, sem duv1da, estã em paralelo com a afttrilaç.ão da Escola de Frankfurt
de que é preciso ter uma teoria da sociedade para elucidar fenômenos ~
ideologia: de Reagan a Rambo
de~enVolvimcntos sociais, politicos e cl!ltui""ais, ao mesmo tempo que a pes-
qms~ int~sa.nes.-'.;as áreas P?de, por Sua vez, contribuir para desenvolver a
t~ona cnttca da sociedade. Por conseguinte, interpretamos a culturã da mí-
dia no contexto da teoria crítica da sociedade e usamos a cultura da núdia
par.t elucidar os fenômenós é condições sociais. Portanto, em última análi-
se, ~retendemos que nosso esludo da cultura da míd~a seja uma tentativa
de sttu~r. as produÇões culturais em contextos econômico..<.;, sociais e políti- ;--
cos mats amplos dos quais elas emergem c nos quais exercem seus efeitos. V'í:'c--;<
No estudo que se segue·, recorremos a múltipias tradições para man-

í ter aberto, flq.:_ível ~crítico o projeto dos estudos culturais, recusando--nos
I a fiXar ortodó~ias ou dar essa área de estudos por encerrada de qualquer

I
\!
modo prematuro. O .mais emocionante dos estudos culturais está no fato
de ser esse um campo novo e aberto, em processo de construção e rccons.;-
trução, em que quaisquer intervenções devem apenas tentar criar algumas
.j novas perspectivas ou anállsÚ, e· não realizai' fechamentos teóricos. Na
'
verdade, o ten·eno dos estudos culturais é controverso e, por isso, aberto a
intervenções-e 'desenvolvimentos ..Como Já notamos, a1guns grupos e indi-
víduos têm usado os e~tudos culturais para festejar ó popular c legitimar o
estudo acadêmico da '~cultura popular", enquanto outros os _usam para crí-
Úcar a§ desigualdades e a dominação existentes ou para propor programas
polí~icos e culturais especfficos. Os grupos conservadores, por sua vez, os
atacam dizendo que subvertem a ortodoxia educacional (veta documenta-
ção em Aronowitz, 1993),-enquanto os refor!ltadores da educação tentam
usá-los para tornar a educação contemporânea mais pertinente e sintoniza-
da com a.natureza e as vicissitudes da. cultura contemporânea (Giroux,
1994; 1McLaren et al. no prelo).
Nos últimos tempos, coube dar mais atenção às tebrias feniinistas e
multiculturalistas de raça, etnia, nacionalidade, subalternidade- e preferên-
cia sexual, nas quais se encontram teorias da resistência e críticas especffi-
cas à oprcssãó. São importantes as contribuições de tais grupos ao~ estu-
dos culturais. De acordo com seus discursos, suas perspectivas teóricas se
enraízam nas lutas dos oprimidos, politizando, portanto,· a teorhl: e a critica
com a paixão c com as perspectivas que nascem das lutas políticas u-ava-
das e das experiências pessoais. Tais perspedivas <J,mpliam o campo doses-
tudos cultumi.s e da luta política, expandindo, por exemplo, O conceito de
crítica à ideologia com a inclusão de dimensões de raça, sexo, sexualidade,

74
7.5
etnia e outras, assim como as de classe·- relações que abordamos peste e exemplo, Víetnam:The Thm· ofthe Pig), enquanto outtos,como OS boinas-
nos próximos· capítulos. Também iní'undem nos estudos culturais üma pai- verdes (The Green Bffrets, 1%7) representavam positivamente a, inter-
Xão e uma intensidade políticas que inspiram Vida nova em seus projetos. venção aincri.cana no Vietnã e atacavam- a contracultura.Ao longo dos anos
P.tra a elaboração deste trabalho, preconizamos neste capítulo a neces- 1970 até hojC, a cultl,lra da mídia em geral tem sido um campo de batalha
sidade de mobilizar as teorias marxistas de classe, os conceitos feministas de entre grupos sociais ~m competição: algumas de suas pr~u~~~s defendem
sexo, e as teorias mulÜctúturalistas de raça, etnia, preferência sexual, nado na~ posições liberais ou radicais enquanto outras defendem postçoes conserva-
!idade, etc., a fim de expressar toda a gama de representações de identid:ide, doras. DCri:lodó semelhante, alguns textos da cultura.~~a mídia defendem po--
dominação e resistência que estrutllt';lm o terreno da cultura da núdia.As for- sições e rept·esentações progressistas de co~-~ -~om((.~ex~, ~e:Crênda s.c~
mas dessa cultura são interisamente políticas e ideológicas, e, por isso, quem xual, raça ou etnia, enquanto outras expressartr·.tQrmas reacwnartas de racts-
deseje saber como ela incorpora posições políticas e exerce efeitos políticos mo ou sexismo. DesSe.ponto de vista, na cultura da mídia há uma luta entre.
deve aprender a ler culnua da mídia politicamente. Isso significa n.1.o só ler representações que reproduzem as lutas sociais existentes e transcodificam
essa cultura no seu contexto sociopolítico e econômico, mas também ver .de os discursos políticos da época. ·
que modo os componentes internos de seus textos codificam relações de . _ Alt:in '.disso, ·os estudos culturais examinam os efeitos dos textos da
poder e dominação, servindo para promover os interesses dos grupos domi-
nantes à custa de outros, para opor-se às ideologias, instituições e práticas he- I
'I
culttà'ft!;t\Uídia, os modos como o público se apropria dela ·e a usa, além
dOs modos como Imagens, figuras e discursos da mídia fundonan1 dentro
gemônicas, ou para conter uma mistUra contr.tditória de formas que promo-
vem dominação e resist(lnda. Portanto, ler politicamente a cultura da m:ídia I da cultur.t em geral. Nas páginas que se seguem, expressamos algumas pe:s-
pectivas tcéíi'jcas sobre a cultura da mídia, a polftica e a ideologia que s~o

I
significa situá-la em sua conjuntura histórica e analisar o modo como seus có- ilustradas c,om alguns exemplos extraídos da cinematografia hollywoodia-
digos genéricos, a posição- dos observadores, suas imagens dominantes, seus na na era Reagan e da nova ordem mundial de Bush.Também examinamos
discursos e seus elementos estético.formais incorporam certa'> posiçõc~ po- ·algunS efeitos desses filmes c os modos como se dá a intersecção entre eles_
liticas c ideológicas e produzem efeitos politicos. · e os debates e as lutas políticas do período. Nessas análises, defendemos a
Ler politicamente a cultura também significa ver como as produções çCntralidade da critica ideológica nos estudos culturais, mesmo detectando
culturais da mídia reproduzem as lutas sociais existentes em suas imagens, algtms problemas das cçmcepções marxistas clássicas de ideo~ogia, e pro-.
seus espetáculos e sua narrativa. Em Camera Politica:The Politics dnd1deo- pomos algumas perspectivas qJJe ajudariío a critica contemporanea a supe-
logy of Contemporary Hollywood Film (1988), Michael Ryan e este autor rar essas limitações.
indicamos o modo como as lutas da vida diária e o mundo mais amplo das
lutas sociais e políticas se expressam no. cinema popular, que, por sua vez,
sofre uma apropriação e exerce efeitos sObre esses contextos. Indicamos o !DEOLOGg E ClJ!JliHA DA MÍllH MÉJ'ODOS CRÍTICOS
modo como alguns dos ·filmes e dos gêneros mais populareS de HoUywood
dos anos 1960 ao fim da década de 1980 ~transcodiftcam" discursos sociais Marx e Engels .caracterizaram a ideologia como as idéias da classe do-
e políticos opostos e representam posições polítiCas específicas nbs deba· minante que obtêm predominância-em determinada era histórica . O con-
tes sobre a Guerra .do Vietnã c os anos 1-960,sexo e família, classe'e raça, em- ceito de ideologia exposto em Ideologia alemã (Marx e Engels, 1975: 59
presa e Estado, política C."\"tema e interna dos Estados Unidos e outras ques- ss.) teve intuito· mormente denunciativo e, foi usado para atacar idéias que
tões que preocuparam a sociedade americana nas últimas décadas:16 legitimavam a hegemoni.1. da classe dominante, que conferiam a intere~es
Por exemplo, alguns filmes sobre os anos 1960 apresentavam discur- particulares 0 disfarce de interesses gerais, que mistificavam ou encobrtam
sos antibelidstas e defendiam posições da contracultura daqueles (por
0 domínio de classe, servindo assim aos interesses de dominação. Segundo
esse ponto de vista, a critica ideológica consistia na análise e n~ desmistifi-
46 O processo de "tütrisCOdificaçiio" descreve o modo como os dí~CU!"!los sociais são cação das idéias da dasse dominante, e sua fmalidadc era trazer a tona e ata·
traduzidos em textos da mídia. Um exemplo é Easy Rtder !.Sem destJno, 1969), que car todas aS idéias que consolidassem a dominação de classe."
transcodifica discursos contrncu!turais dos anos 1960 sobre liberdade, individualismo
e comunidade em imagens c cenas cmematográfica~, como quando o.> !\lOtoqueiro_s
percorrem a natureza enquanto a trilha· sonora toa "Bom to be\Vi!d" ou "\Vasn't Born 47 John ·n10mpson (1984, 1990) examma as teorías clássicas e atua~ so~re _ide{)!ogia. c
to·Follow".Vera explicação e o uso do termo ém Kel!ner e Ryari, I98R descobre que muitas delns cortam o vínculo entre ideologia e dommaçao, sub_traindo

76
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o marxismo dássicü de·Mar.x e Engels, a ll e am Internacional ten- portantcs c9mo sc.xo, raça c outrds formas de dominação ideológica. Redu-
diam a dar êrif.1se à primazia da economia c da política c a não dai ate~ção zir ideologia a inte1·esses de classe deixa claro que a única dmtlinação
à cultura e à ideologia. No entanto, durante os anos 1920', Lukács, Korsch,
Bloch e Gramsci rés saltaram a importância da cultura e cL'l ideologia, e a Es-
i importante na sociedade é ·a de classe, ou a econômica, ·ao passo que,
segundo muitos teóricos, a opressão de sc.xo,scxualt~de e raça também são
cola de Frankfurt e outra<; versõe;; do marxismo ocidental também viram a. de fundament.'ll importância c, na verdade,ainda de acordo com alguns, está
importância da crítica da ideologia como importante componente da inc.-xl:ricavelmente imbricada na opressão econôiiúca e de classe (ver Cox,
crítica da dominação. ;s Os estudos culturais britânicos também, em seu 1948· RoWbotham, 1972; Robinson, 1978; Said, 1978; Barrett, 1980; Sargcnt,
período de formação, puset'dlll o conceito de ideologia no centro do 1981: 11--larable, 1982; Lorde, 1984; Kellner e .Ryan, 198.§;, Spivak, 1988; Fraser,
estudo da culturd c da sOciedade, c uma de suas primeiras coletâneas de 1989; Eisenstein, 1979; Hooks, 1990 e 1992 ê'-t:J,Woy, 1991 ).
textos se chamava On Ideology."9 Muitos críticos propuserain com correção que o conceito d~ ideolo-
> No entanto, havia alguns problemas na tradição marxista da crítica da gia se estendesse e Passasse a abranger teorias, idéias, textos e represen-
ideologia que precisavam· Ser resohidds.AJgumas dessas tradições, entre as tações que legitimem interesses de. forças dominantes em terniOS de sexo
quais o leninismo ortodoxo, a Escola de Frankfurt,Althusser e outras, ten- e ra,ça, bém; como de clasSe. Dessa perspeetiva,fazer crítica da ideologia im-
diam a pressupor um conceito monolítico de ideologia e de classe donú- , pli2a'•~htitar ideologias sexistas, hetérossexistas e racistas tanto quanto -a
nante, a ex1wessar sem ambigüidade e contradiçãO seus interesses de clas- ideologia da classe burguesa capitalista. Tal crítica da ideologia é multicul-
se :àuma ideologia dominante. Esse conceito reduz ideologia à defesa de in- tural, discernindo um espectro de formas de opressã:o de pessoas de dife-
teresses de classe; por isso, é predominantemente economidsta, c nele a rentes raça~, etnias, sexo e preferência sexual e traçando Os modos como
ideologia se refere sobretudo - e em alguns casos somente - às idéias que as formas e ·as discursos culturaiS ideológicos perpetuam a opressão. A
legitimam a dOminação de classe da classe dominante capitalista. Portanto, crítica ml;liicultural da ideologia exige levar a súio as lutas entre homens
nessa concepção, ''ideologia" se restringe aos conjuntos de idéias que "pro- e mulheres, feministas .e antifeministas, racistas c anti-racistas, gays e anti-
movem os interesses econômicos da classe capitalista. gays, além de muitos outros conflitos, que são considerados tão importan-
Nas últimas duas décadas, porém, esse modelo tem sido cOntestado tes e dignos de atenção quanto os conflitos de classe o são pela teoria mar-
por vários criticas, segundo os quais t.1.! conceito de ideologia é reducionis- :xista.'0 Parte-se assim do pressuposto de que a. sociedade é um grande
ta poi'que, nele, ideologia equivale apenas às idéias que servem aos interes- campo de batalha, c que essas lutas heterogêneas se consumam nas telas e
ses econômicos ou de classe, deixando-se de lado, portanto fenômenos im- nos textos da cultura da mídia c constituem o ten·eno apropriado para um
' ' i estudo crítico da cultura da mídia.
·i, Com essa visão, precisamos ver a importância de uma infinidade de
portanto à ideologia o cunho critico que tinha em Marx e outros nooroarx.15tas. Por lutas entre vários grupos, como lutas entre gmpos dominantes e domina-
isso, concordaríamos com "j1J()mpson sobre a ne).":eS~idade de vincular o conceito de dos c entre setores de dasse pdo controle da sociedade. Nos Estados Uni-
ideologia coro teorias da l11igemonia e dominação, portanto de delimitar sua aplicação
dos, isso tem implicado lutas entre liberais e conservadores pelo poder he-
a idéias e pontos de vista que mendatÍ1 a funções de tegitiluação, mistificação e domi·
naçiío de classe que garantam o predomínio de dassé, sexo e raça sobre outras classes gemônico e entre uma vasta gama de grupos dominantes e dominados:
e irupos da sociedade, em ve;r. de equiparar todas as idéi~s ou posições políticas a ideo- Num dos níveís, a ideologia mobiliza sentimentos, afeiçõe~~; e crei?-ças para
logia (ver em Keliner 1978 uma primeira abot<.lagem dessa posição). induzir anuência a certos pressupostos nucleares dominantes acerca ·da
48 As .tentativas observadas nos estudos cultumis de sube~timar a importilndn da vida social (por exemplo, valor do individu;!.lismo, da liberdade, da .familia,
crítica da ideologia, como a..~ de Fiskc (1993). >Ó aprovdt:un a um est.abl!sl:mwllt que . da nação,do sucesso, etc.). Esses pressupostos nucleares, o"senso comum"
há muit.""ls décadas vem tentando abolir o conceito de ideologia por ser excessivamen-
te político e politizantc. O fiebaw sobre o "fim d.1 ideologia" nas ciências sociais e as
abordagens apolíticas _')..litenturn, iilosof"la e outros estudos de humanidades" tentamm
50 Cwnem Poltlfca .(KeUncr e Ryan, 1988) lewm a sério todo esse espectro de lutas e
banir o concciÍo de ideologia. Em vista da posição fundamental desse conceito em tr:t-
tentou dem.:mstrar corno as atuais lutas da socied1de,e da política am<:ricanas eram c:.;:-
dições anteriore~ de estudÓs culturais,~ irônico que alguns do~ que se identificam com
pressas nO cinema popu!ar.Tam.bém enfatizamos a necessidade de ver que o~ conflitos
estes estejam agora tentando deixar de lado um de seus conceitos definidores centrais.
entre liberais e conservadores pdo controle da socieda~k são importantí5simos,assim
49 A coletân<:a,foi lançada como parte da S.:rk Wól'klng Papers on Cultumf Studfes como o foram os conflitos de classe que chama<.im a atenc;,ão, da crítica marxista. da
10 (1977) c depois reeditada. ideologia em seus primeiros momentos.

78 79
de uma sociedade, são mobilizados por grupos; assim, por exemplo, grupos cas, soéiais e culturais os conservadores não conseguiram hegemonia, " rede-
e forças. em luta tendem a mobilizar discursos de ~ocr:acia, liberdade e finir o senso comum, e assim cOntinuani. sendo travadas"guerras culturaiS"
individualism~ e a, inflecti-Ios segundo seus próprios programaS e' finalida- nas quais os conservadores ·tentam erradicar as concepçõesl as práticas e
des ideológiéas. As vezes, por exemplo, um conceito como o de delegação . as. políticas ljbcrais e radicais (ver Huntcr, 1991).
de poder, que comeÇou como conceito critico nos anos 1960 entre pro- A cultura da mídia, assim como os discursos políticos, ajuda a estabe-
gressistas ("poder para o povo", "projeto de cqncessão de poderes", etc.), é . lecer a heg:emonia de determinados grupos e projetos· políticos. ProduZ
assunÍido por grupos opostos, como quando os conservadores, durante a represeiit:tções que tentam ~nduzir anuência a cet~;.\"_5 posições políticas, le-
era Reagan/Bush, mobilizaram a retórica da concessão de poderes par;\ res- vando os membros da sociedade a ver em _certas idC'Oiog_ias "o modo como
paldar os órgãos e os planós reguladores do governo ·a conceder "poderes" ~s ·coisas são" (o~ seja, governo. demais é m\m~~duÇã~ da iegulação gover-
aos indivíduos contra o Estado ("tirar o governo de cima das costas")." namental e mercado !ivre são coisas boas, i proteção do pais 6dge intensa
Portanto, embora não haja uma só ideologia dominante unificada e es- militarização e uma política extema agressiva, etc.). Os textos· c:ulturais po-
tável, há pressupostos nudéares que diferentes gmpos políticos mobilizam·· pulares na_tura!izam e::ssas posições e, assim, ajudam a mobilizar o con_senti-
e põem em ação. Na verdade, as sociedades capit.'llistas democráticas con- me.nto·-àS posições políticas hegemônicas. 52
temporâneas estiveram extremamente divididas durante as últimas décadas ~. ,fbi:1ihto, criticar as ideologias hegemônicas exige a demonstração de
com a competição de grupos e partidos políticos em luta pelo' controle da · que _certas posições nos textos da cultura da mídia reproduzem ideologias
sociedade. Por exemplo, nos Estados Unidos durante os anos 1950, os con- políticas existentes nas lutas política<; atuais, como quando alguns ftlmes ou
servadores moderAdos controlaram a economia, a sociedade, o Estado e a a música pqpular expressam posições conservadoras ou liberais, enquanto
cultura, estabelecendo um projeto hegemônico e suplantando a hegemonia outros expressam posições radicais. Adernai~, fazer crítica da ideologia im-
democrático-liberal que prevalecia desde 1932 na forma <lo "New Deal" de plica anali~M imagens, símbolos, mitos e narratiws, bem como proposições
Roosevelt_ No início da década de 1960, os liberais de Kennedy tentaram e sistemas de crença (Kellner 1978,1979, 1982). Enqua1,1to algumas ceorlas
forjar um consenso liberal, c durante alguns anos o projeto Nova Fronteira contemporâneas da ideologia exploram os complexos modos como ocorre
teve sucesso e prepondednçia até o. assassinato de john e de Rob.;:rt a união de imagens, mitos, práticas e narrativas sociais na produção da ideo~
Kenncdy (eles mesmos vítimas de uma tentativa de restabelecimento da he- logia (Barthes, 1957;Jameson, 198l;'e Kellner e Ryan, 1988), outras restrin-
gemonia di,reitista, a acreditar-se, como eu aueditamos, na teoria conspimti-· gem ideologia a proposições enunciadas discursivamente nos textos.~-'
va).A partir de então, irromperam entre liberais e conservadores lutas inten-
sas que foram coroadas pela vitória de Ronald Reagan em 1980, com o esta.::
belecimento de uma década· de hegemonia conservadora. "'i 52 Para um estudo mais detalhado da ideo\ogL1 como hegemonia. vá Kdlner 1978,
1979, l990a.e 1992b, Os estudoS aqui feitos baseiam-se nesse trabalho anterior, no qu.""ll
Reagan, por sua vez, redefin.iu o "senso comum", produzindó uma re- expomos esses conceitos com mais pormenores.
tórica política que ainda vigora durante a era Clinton: o govcffio deve ser
53 Thompson ( 1984) ex.1.m!na grande mlmero de teorias contemporâneas cujo intuito fim·
limitado, e os impostos devem ser reduzidos; os negócios devem ser forta-
daffiental é detlnlr a ideologia em termos de linguagem e de teoria do discurso. Contra essa
lecidos para criarem empregos e aumentarem a riquez~ nacional; a buro-· posição desejamos incluir a imagem, o símbo!o,o mito e a nar:rativ.Í no t('pertório dos ins-
cracia governamental '(portanto, a política reguladora) deve ser eliminada; trumcntw ideológicos, combinando assim teoria do dis<..--urso com critica mític%írubólic:<
a iniciativa privada é o melhor-caminho para o sucesso e para a produção e análise da nanativa, a fun de ob~en'M os modos como imagens, cenas e narrativas ten-.
de uma sociedade forte, e por isso o governo deve fazer tudo o qt1e for pos- tmiJ. veicular ideologia. Um movimento mais recente 110s esmdos culturais, influenciado
sível para incentivar esse tipo de empresa; a vida é dUra, e só os mais pre- poi' algumas obserwções de última hora de Foucatdt e por alguns argumentos de
Ddeuze e Guattari, rt:je::itflram o "cunceíto de ideologia pura e simplesmente, alegando ser
parados sobrevivem e prosperam. No entanto, e'm muita5 questões políti- ele redutor.economlstf! e menos importante que o esquema de dominação e controle,que
é entiio "isto como o fllvo adequado da critic.1 tadica!;Fiske 0993) adota .:,;se (ll"gUITiento.
Embora sem dfu,ida seja útil :malis;u- instituições e práticas que ~produzem a'dominaçãO
51 No New Ym·k Times (27 de novembro de 1993:Al), há 1.Ul). artigo sobre o surgimen- soda!, a atitude de simplesmente jogar fora o conceito de crítica da ideOlogia é uma m'mi-
to de uma nova rede conservadora de1V a cabo que se chama "National Empo'<Nerment lação teórica. Além disso. a ideologi,1 participa da reprodução e do fundonantento
Televislon" Os conservadores que organizam esse projeto prefcicm o tenno"popitlist:' precisamente das instituiçõeS, dos discurso.s e das práticas que Foucault e outros qUerem
ao de "consenwtlve", numa rem.a!i"va de cooptar outro termo antes (e a!nda) utilizado an.""llisar. Em ve.~: de jogar for.:~ o conceito de ideologia, é_ preciso reconstnd·lo e expandir·
pela esquerda e pelos progressistas. a crítica d:t ideologia que tm~·a suas funções e seus efeltos na ~1d.1 sod.1\.

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Contra essa noção restritiva,- argumentaríamos que a ideolOgia contém dis- sentimentos, at~ições, percepções e o assentimento a deter!nin;das posi-
cursos e figuras, ·conceitos e imagens, posições teóricas- e foiinas Simbóli- ções políticas, tal c'omo a necessidade de os guerreirps masculi~os prote-
cas. Tal éxpansão do Conceito de ideologia obviamente abre_ caminho para gerem e redimirem a sociedade·.
a exploraçãO do modo como imagens, figuras, narf.ttivas e fQrnlas simbóli- As teorias criticas tentam contribuir para a prática, e o estudo cóltu~
cas entram' a fazer part'e das representações ideológicas de sexO, sexualida- .cal crítiçó procura conferir poder aos_ indivíduos ao lhes dar ferramentas
. de, raça e classe no cinema e na cultura popular. p_ara criticar...~s formas culturais, as imagens, as nart'ativas e os gêneros do-
Para fazer-se uma crítica ideológica multicultural' e figurafiva <!eRam- minantes. bs estudos feitos neste livro empenham-se, portanto, em ensinar
bo, por exempl!), não seria suficiente simplesmente atacar sua ideologia como ler, desconstruir, criticar e usar a eultup da mídia. Conforme nos
militarista ou imperialista e os modos como o militarismo c o imperialismo mostrou a experiência_durante vinte e dnéo 'aôôs de Ínagistério, ~s pes-
do filme servem aos interesses impÚialistas ao legitimarem a intervenção soas, estUdantes ou não, não são naturalmente versadas em mídia nem cri-
em lugares como o Sudeste Asiático, o Oriente Médio, a América Central, ticas em relação à sua cultura; e devem poder contar com métodos e ins-
etc. Também seria preciso criticar os discursos e as figurás que constroem trumental c?ti~o para terem 'poder contra a força manipuladora da socie-
·a problemática so."Ual e racial do tt;xto para fazer uma crítica completa da dade e :d~;~~2,~-~lra existentes. Por outro lado, muitos indivíduos hoje em dia
ideologia, ·mostrando como as representações de mulheres, homens, se sertcnl~Í'Ofundamente énvolvidàs por tudo o que a mídia faz, muitas
vietnamitas, russos, etc. são parte fundamental de Rambo e evidenciando _'r" vezes discutem com paixão seus pontos de vista, têm percepções interes-
que um elemento-chave do texto é a remasculinização e o restabelecimen- santes, e devem ser incentivadoS a examinar e analisar ériticamente a cul-
tO do poder branco masculino depois da derrota do Vietnã e dos assaltos tura em qJJe m~gulham tão fundo.
.ao poder masculino por parte dos mO\-imentos feministas e·dos direitos ci- Obedece.p.do a esse intuito pedagógico, em todas as páginas que se se-
vis. Por conseguinte, a leitur-J. ·do texto ideológico de Rambo exige a inter- guem, irl!mos e"ntremeando teoria e estudos concretos que ilustrem noSsas
rogação de suas imagt;ns e figuras tanto quanto de seu discurso e da sua posições teóricas. Na verdade, é nossa esperança que este estudo contribua
linguagem, ao longo de todo um espectro de problemáticas, ao mesmo · para o _desenvolvimento de uma pedagogia crítica da mídia capaz de con-
te'mpo que estas problemáticas vão sendo inscritas no contexto das lutas ferir o pode-r de discernir as mensagens, os valores e as ideologias '-tue estão
polítiCas existentes. Tal análise, como veremos abaixo, indica .que a figura por trás dos t<..'Xtos da cultura da mídia.'• Quando as pessoas aprendem a
de Rambo representa um conjunto espeCífico de imagens do poder mascU- . perceber o modo como a cultura da núdia transmite representações opres-
lino, da inocêndÍ e da força americana e do heroísmo do guerreiro, ima- sivas de classe, raça, sexo, sexualidade, etc. capazes de influenciar pensa-
gens que servem de veículos para as ideologias masculinista e patriótica- mentos~~ cOmportamentos, são capazes de manter uma distância critica em
que foram importantes durante a em Reagan. , relação às obras da cultura da mídia e assim adquirir poder sobre a cultura
Tal análise· das figuras é importante porque as représentações dos em que vivem. Tal aquisição de poder pode ajudar a promover um questio-
textos da cultura popular constituem a imagem política p'or meio di~- qual namento mais geral da organização da sociedade e ajudar a induzir oS iodi-
os indivíduos vêem o mundo c intc1'Pretam os processos, ~s eventos e as vídúos a participarem de movimentos políticos radicais que lutem pela
personalidades poÚticas.A política da representação, portanto, examina as· transformação social.
imag<::ns e as figums ideológicas, assim como os discursos, que transcodi- A ideologia pressupõe que "cu" sou a not·ma, que todos são como eu,
ficam as posições políticas dominantes e Concorrentes numa sociedade. que qualquer coisa diferente ou outra não é normal. Para a ideologia, porém,
Numa cultura da imagem dos meiO$ de comunicação de massa, são 3.s o"eu", a posição da qual a ideologia fala, é (geralmente) a do branco mascu-
representações que ajudaril a constituir a visão de mundo d? indivíduo, o .. __ lino, ocidental, de classe média ou superior; são posições que vêem raças,
senso de identidade e sexo, consumando estilos e modos de vida, bem classes, grupos e sexos diferentes dos seus como sectmdários, derivativos,
como pensamentos e ações sociopolíticas. A ideologia é, pois, tanto um inferiores e subservientes. A id~9logia, portanto, diferencia e· separa grupos
processo de representação, figuração, imagem e retórica quanto um pro- em dominantes/dominados e superiores/inferiores, produzindo hierarquias
cesso de discursos e idéias. Além disso, é por meio do estabclecimeilto de e classifkações que servem aos interesses das forças e das elites do poder. •
um conjunto de- representações que se fixa uma ideologia política hege-
mônica, como a do conservadorismo da Nova Direita. As representações,
54 Para trabalhos recentes sobre pedagogia critica com ênfase na necessidade de uma
portanto, transcodificam os discursos políticos e. por sua vez; mobilizam educaç.ão crítica sobre a mídia, ver Giroux, 1992 e 1991, c McL·ucn er ai. no prelo. I

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A ideologia, portanto, faz parte de um sistema· de doniinaçãO q~1e pitalistas e trabalhadores, brancos e nãç-brancos, amcricanqs e o resto dO
serve para aumentar a opressão ao legitimar forças e instituições que repri- mundo, capitalismo e comunismo, etc.) serve aos interesses da dominação
mem e oprimem. Em si mesma, constitui um sistetúa de abstrações e dis~in: social e às funções de legitimação e mistificação da realidade social. Portan-
çõci; em campos como sexo, raça e classe, de tal modo que constrói divi-· to, estamos afirmando que a "distorção", a "mistificação", o "mascaramento"
sões ideológicas entre homens e mulheres, entre as "dasses-nielhores" Ci: "aS e outras funções oc!Usoras em geral associadás à ideologi.-1. estão relaciona-
classes mais baL"Xas", entre brancos- c negros, ~ntre "nós~ e "eles", etc. Cons'- das com certo tipo de abstração e com um tipo específico de frontcici
trói divisões entre comportamentq ''próprio" e "impróprio", enquanto eti~ ideológic~ 'Que legitima a dominação dos grupos- so:~iais mais poderosos.
ge em cada um desses domínios uma hierarquia que justifique·a domina- Um estudo cultural critico e multiculntral devé~ :P_ortanto, levar <I" cabo
ção de um sexo, uma faça e uma dasse sobre os outros e~ "irtude de 1sua uma critica das abstrações, das reificações e tl'iiid'eología que siga os rastros
alegada supet•ioridade ou (ht ordem natural das coisaS. Por ~emplo,'diz-se dessas categorias reificadas e dessas fronteiras até suas origens sociais, criti-
que as mulheres por natureza são passh·as, domésticas, submissas, etc., e cando distorções, mistificações e falsificações aí presentes. Uma das funções
que seu domínio é a esfera privada, o lar, enquanto a esfera púbÍica é reser- da cultura da mídia dominante é conservar fronteiras e legitimar o domínio
vada aos homens, supostamente mais ativos, racionais e dominadores. Diz- da classe;' d·~ raça e do sexo hegemônico. O marxismo, o feminismo e a teo-
se com freqüência que os negros são preguiçosOs, irracionais e· bur~s, . ria ~í:iJfiãiiÍ:ural, porém, perseguem uma crítica das fronteiras, atentando
portanto inferiores à raça branca -dominante. pàra o sistema binário ·de oposições que estruturam os discursos ideológi-
1
Esse modo de pensar sexista e racista baseia-se numà série de oposi- cos classistas, sexistas, mdstas e outros. Todas essas formas de teoria crítica
ções binárias 'que os estudos· culturais críticos tep.tam subverter c sol_apar. são, pois, a.r:t}\as n~tluta por uma sociedade mais humana, vendo na ideolo-
Essas oposições binárias da ideologia enraízam-se num sistema de antago-. _,r gia uma fúqna de sustentação teórica dos sistemas de dominação.''
nismos entre forÇas desiguais e serve1f! para legitimar os privilégios e a 'do-· Por co:Oseguinte, variáveis como raça, classe, sexo, preferência sexual e
minação dos mais poderosos. A "nor~" da ideologia em geral é branca; ideolpgia são expressas nos tennos da organização da sociedade existente e
masculina e da classe superior, servindo para denegrir e domiriar os não- das lutas pelo poder na sociedade. Para ilustrar ess~ abordagem multicultu·
brancos, as mulheres,e os tr:lbalhadores.A critica da ideologia, poni:iJ11, in- rnl e a necessidade de expandir o conceito de crítica da ideologia, façamos
terroga as categorias brancura, masculinidade, dominação de classe, hete- agora uma leitura dos fllmes Rambo que ressalte os modos como eles trans-
rossexualidade e outras formas de poder ~ domínio que a ideologia legiti- codificam certa ideologia reaganista e anat~se as várias dimensões e estraté-
ma, mostrando o caráter de construto soda! e de arbitrariedade de todas as
categorias sociais e di) sistema binário da ideologia. ------"+"
Portanto, o feminismo e a crítica do racismo fazem parte integrante 55 John Fiske (1993) desenvolve "uma crítica peculiar daqullo que chama de t<:oria da·
de um estudo culturafmulticultural. Nas operações ideológicas que produ· "ideologia\ que, segundo ele, ignora o fato de ser o "pilder" o que realmente oprime o
zem coisas como se.xismo, racismo e classismo, vemos a ação de uma .abs- . povo, e não a ideologia. Na verdade, de acordo com o que Gramsei, a Escola de Frank-
. tração: são ideologias que Jcgitim~m a superioridade ·dos homenS sobre as furt, os >:Srudoo culturnis britanicos e outro~ disser.;m durante décadas, é uma combina-
çiio de poóer ostensivo (forças de violência c opres;."i"io) e de ideologia que mantém a
mulheres ou do capitalismo sobre .Outros sistemas sociais de tal forma que · ordem so<:i:U existente e atende !los iJlter<-sses de domiJmção e opressão. Re~imente, é
tentam justificar os privilégios das classes ou dos estratos dominante. -tais di~cutivel que a ideologia tenha efeito de poder; e excluir <:oltUra/ideologia do poder ou
ideologias capitalistas patriarcais e racistas abstraem as injustiças, as iniqüi- fuzer uma dí~tinção muito nítida emre ambos p;tre<:e incabí~l do ponto de vist.1 c.Ít; Fou-
dades c o sofrimento causado pelo sistema capitalista racista e pàtriarcal cau.lt, que Fiske segue em seu último tmbalho. De qualquer modo, tentando excluir a
como flagrantes iníustiças que represenqtm o poder e a riqueza nutna so- crítica da ideologia dos estudos culturais, Fiske enfraquece o projeto, privando-o de uma
arma ctucial de crí!ica.Além disso. ao .adotar de mqdo acrítico tlm poilto de vista "pós-
ciedade supostamente igualitária e os sofrimentos dos grupos e dos indiví-
estruturalista" $Obte o poder (que rejeit~ perspectivru; estnllura;s), Fiske ddxa de levar
duos dominados.
em conta o futo de <i_ue hií estrutums en.1pedernidas que oprimem mulhereS, negros e
Assim, a abstraçãÓ eStá fundam~ntalmente relacionada com as carac- outros grupoo,e que a ideologia encobre, idea!iz.1 ou torna naturais es~ru; estruturas. Por-
terísticas básicas da ideologia, tal com~. legitimação,. dominaçãO e misÜfi· tanto, embora as perspectivas pós-estmturnlistas sobre o poder, como as_de Foucault,
cação, e o traçado das fronteiras (entre sistemas, !irupos; valores, etc. sup-os- possam contribuir para a sofisticação da teoria social e dos estudos cu!rurois, simples-
. tamente inferioreS e superiores) também desempenha papel fundamc"ntal mente desfazer-se da análise estn1turn! e da crítica dü ideologia enfrn(J:uece o projeto d9s
es~udos culturais que deveria utilizara teoria estruturalista e a pós-estnlturnlista,a crítica
nesse processo. A manutenção das fronteítas (entre homens e mulheres,·~a- da ideologia e a anãlise das instituições e pcltkas de poder c dominação.

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gia~ ideológicas desses filmes, induin~o aspectos como ·classe, raça, ~êxo e. Rl\.J\H10 F REAGAN
· política, assim como acluilo que chamarcffios de "cfcitó Rambo".
O que está em jogo é o desenvolvimento de ~m estudo da cultura da: O primeiro filme da série, Rambo, programado para matar (First
ffiídia que analise, em primeiro lugar, o modo como a cultura da _tnidia- Blood, 1982), apresentava o veterano do Viettiã como vítima e mistw-ava um
transCodifita as posições dentro das lutas 'políticas existentes e, por Sua I conjunto complícado"de imagens que atribuíam a responsabilidade de sua
vez, fornece representações que, por meio de im;J.gens, espetáculos, discur- SitUação _à&.jorças soci~is e mostravam que aquilo o impelia à violência.
sos, narrati\'aS e outras forma;; culturais, mobilizam o consen_timento a de-
terminadas posições polítjcas,A seguir, será preciso. descrever os efeitos so-
I Segundo o enredo, um vet~rano das·-Forças Especiais,john Rambo (Sylves-
ter Stallone), está procurando alguém que p~_e;nccra à- süa unidade,, e des-
ciais reais dos fenômenos. Na seções seguintes, realizaremos essa investiga- cobre que-essa pessoa morreu de contaminaçãc/pdo Agente Laranja, o que
ção por meio de uma leitura cerrada dos textos da mídia e~ análi~e de seu situa os veteranos do Vietnã como vítimas de seu próprio governo. Incapaz
possível espectro de efeitos. Depois, faremos um estudo do efeito Ranillo a de consegUir carona, Rambo está andando pela cidadezinha de Hope
fim de colher alguns eXemplos da natureza, das funções e da eficácia -da quando. é _detido pelo xerife, porq!Je ele precisa tomar banho e cortar o ca-
cultura da mídia na sociedade contemporânea.'" belo.-,_~laj~f-ado pelo xerife e por Seus ajudantes, Rambo foge e declara
guçrci ~Ón.ti-3. todos os órgãos policiais e legais em nível local e nacional, na
posiÇão de vítima -das autoridades e das forças opressoras. No fim, entrega-
se à Seu ;pttiw> comandante das Forças lio;;peciais, Cel. Trautman (Rkhard
Crenna), e, pt'fdendo o controle emocional, chora dizendo que, embora seja
um herói dü-'yietnã, não consegue nem ter emprego e é alvo de desprezo e
ódio, culpando toda a sociedade por fazer dele um proscrito.
56 Em alguns importantes exemplos recentes de estudos cultqrais publicados n~s Es"
No segundo filme, Rambo (1985), Rambo é transformado num guer-
tados Unidos, nota-se wna carência de leimra minuciosa da cultura da mídia em c;\l'nc reiro super-homem que resgata prisioneiros de guerra americanos que'
"osw por parte de Brantli.ngcr (1990), Gros;,bcrg (1992),Aronowitz (1993) e fiske ainda estavan1 no -v:ietnã, ttanscodüicando então a paranóia do conservado-
(199:5). Quase não há aitá\ist proloni;ada da música popular em Grossboerg 1992, rismo--da época em torno daqueles prisioneiros." O filme é apenas mais um
embora o livro proclame ser sobre I'Ock;do mesmo modo,Ru!l Ovm· Beethoven (1993), de toda-uma série de filmes de retorno ao Vietnã, que começou cotn o sur-
de ArorioWitz, deixa de abordar concretameme os textos da mídia em favor da discus-
'prcendente sucesso de De volta para o inferno (Uncommon Valor) em
são d:j.-teorl.-1 e de alguns debates teóricos e políticos em tomo de esrudos culrurnis.
Embora csmde o fenômeno E! vis (1993), Fiske não ~bord~ a músk'J de EMS, não estu- . 1983~ continuou com os três filmes de Chuck Norris Mtssing in Action
da realmente os textos da cultura da mídia de modo consi~tente nem fuz uma leitura (Super ContandO, ,ytssing inAction 2 e O resgate) de 1984-6.Tudo é fei-
atenta deles. Embora o &scentramento da análise textual possa ser wil corretivo útil to segundo a mesma fórmula em que se representa o retorno ao Vietnã de
aos estudos cu!Í:urais, que em algwnas fonnas foram excessivamente textualistas. ~cre-­ uma equipe de veteranos, ou entã()/ de um super-homem, um veter-.mo su-
ditamo~ ser útil ~mpreg.'lr a aúãlise textual como pane JJnportaole dos estudos c~tu~
rnis; por isso, nos capítulos que se seguetn, haveci,muitas leituras minuciosas de textos·
per-herói como Rambo, para resgatar um grupo de soida(~os amcricano.s
culturais. Também tentaremos elucidar a efic:ici3 da cultura, da mídia, ao passo que "desaparecidos em ação" que ainda são prisioneiros dos vietnamitas e de
Fiske parece acreditar que a cultura da núdia não produz efeitos, mas que é a aprdpri<l- seus perversos aliados soviéticos.
ção ou o uso da cultura da mídia pelas pessoas que tem crucial importância p:u:a os es- Em ger-.tl, a mídia cria um sistema de cultura organizado segundo uma
tudos ~ulturais ..AcreQimmos, ao-contrário, que a análise dos textos da <..'ultura da mí<:Íia variedade de indústrias, tipos, g~neros, ~ubgêneros e ciclos de gênero. Nis-
é útil para discernir seus efeitos, embora admitindo que o público é uma espécie de es-
finge e qne é impossível afirt"(l:tr com precisão que efeitos os vãrios"domínios c prodú-
ções da cultura da mídia realmente exercerão sobre seu público.Além disso, é prová- 57 Em data recente (1992 ou l993),houve uma campanha de"desinformação"scgundo
vel que as teorias gemis sobre Os efeitos da mídia sejam .,=ias e problemáticas, emborn. a qual um arquivo da KGB continha documen!Os comprobatôrios de que o Vietnã ti-
se possam trnçu os efeitos de algumas-produções como Raml;>o,_ S!acke1; Beavls and nha realm<::ntc mantido prJ5ionciros de guerra americanos como reféns depois da
Butt-Head, mp, representações da Guerra do Golfo feitas pelil núdla, Madoima e outros guerra, mito perpCruado durante décadas por Ross Perot; outro paranóico de direita, e
fenômenos-chave, cOmo faremos no estudo que se scgue.no qual apresentaremos algu- por aqueles que queriam obstar ã nonnalização das rebções com o Vietnã, como de~
mas novas perspectivas sobre a famigcmda questão dos efeiros da mídia e um no,·o pro- forra pela derrota militar americana na régião. Para uma exposição da campanha de de,
grama de p~squisa par.! dctéctar efeitos produzidos por figuras, textos e espetie>.J!os da sinformação de 1992, ver o artigo de Bmce Franklin em T!Je Natlon (10 de maio de
<::ultura da uúd!J. 1993: 616).

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I .
so, segue o modelo da prodw;,iío industrial e é dividida em gênéro.s com
suas próprias rc'gras, conv-enções· e fórmulas. No dncrrÍa, por exemplo, há
uma divisão em filmes de horror, de guerra, musicais, comédias, etc. com
suas próprias convenções, fOrmas, temas, e que tais. Os gênerOs populares
inspiram-se nas-- preocupações da época e dão origem a ciclos que tentam
eniU!ar o sucesso das produções poPulares.
O filme Rambo sintetiza dois ciclos: o do "retorno ao Vietnã" e outro,
que mostra um retorno no qual os vetemnos deiXam de ser de~justadós
magoados- e confusos para se transfOrmarem em superguerreiros (por
exemplo, Rolling Thunder [A outra face da violência], Flrefox [Raposa
de jogo], .Rambo). Todas essas.tentativas cinematográficas de supelflr a "sín-
drome do Vietnã" apresentam os Estados Unidos e o guerreiro-herói ameri-
cano vitoriosos daquela vez, mostrando, portanto, um sintoma de inc-apaci-
d?-dc de aceitar a derwt:a. Também apresent'!m u~a _co_Jl)pc~~aç-ã<?
simbólica para a perda, a vergonhã!: 'á ctili)â' ;tQ: ~tratarem os Estados U11Í~ 'i
dos como" bonz.inhos" e daquela vez vitoriosos, enquanto seus ~niffiigos co-
mlmistas são representados como a encarnaçãO do "mal", então alvo de der- I
rota bem merecida. Nessas fantasias cinematográficas, é sempre o "inimigo" i
que realiza atos viciosos e maldosos, ao passo que os -americano-_S Sao·-Vi:_c:- 1
t~9sos e heróicos. Cumulativamente, os filmes de retorno ao VieÍ:nã exibem '
uma réação defensiv.t e compensatória à derrota.mil_itar np Vietnã e;di.ri:l:---
mos, uma ineap~Cidade de aprender :t!> Úçõc.s das HÍnitaçõc~ do, POd~~io
americano e da compkxa mistura de "bem" e "mal" presente em quase to-
dos os cometimentos históricos.
Por outro lado, os fl.bnie_s do tipo Rambo e outros de StaUone-Norris,
que representam o herói hurra, podem ser lidos como expressões da para-
nóia b_ranca mascultna, em qu(:· OS ~orpens são vítimas de inimigos exter-
':1-os, de outras mças, do governo e da sociedade em· geral. Os .filme's de re-
torno ao Vietnã tambénl exibe~ urr"ta tenbtiva de remasculinização, ent.
que se louva o CO!JlpOrtamento maSCulinO c'Clcerbadame.Otç_fr!._'!SC~_lj,tli_s~,_.
como reação aos ataques do feminismo e outros ao pod~r masculino. Em
The Remasculinization of Amerléa, S~1san Jeffords (1989) aiii-ffia cjue o
Vietnã foi um golpe terrível no orgulho masculino, pelo qual os homens
americanos sentir-.tm grande culpa e vergonha. Uma enonne quantidade de
filmes e livros sobre o Vietnã trata desse problema, segundo ela, tentando
curar as feridas e reconstruir a psique masculina ofendida.
No entanto, esses filmes também podem ser interpretados como· um
diagnóstico,corrio sintomaS da mart~ização da classe trabalhadora. Tania q~;"
figllr'J.S de Stallon:e quanto as de Norris são ressentidas, incapazes de articu-
lar pensamentos, brutais, o <jue indicaria o modo como muitos jovens tra-
ba,lhadores americanos são privados de boa formação edU.caciortát e leva-
dos para a vida militar óu para outras atividades, como o esporte, que cana-

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-.lizam a violência e a conVertem em comportamento socialmente aceitável, opõe ao Estado; é o novo ativista individualista" (Berman, 1984: 145). Por-
coino úflica-vía d~ auto-afirmação. O ressentimento neurótico de Rambo -tanto, Rambo é .um herói da eéonomia ·qa oferta,~ figura do empre~;ndedor
não é tanto culpa sua qua~to daque~es que dirigc::m o sistema social de tàl individualista, que mostra até que ponto a ideologia reaganista é capaz de
maneir'ã que este nega à sua classe acesso às instinlições que possibilitam assimilar emblemas contraculturais, mais Ou menos como o fascismo con-
pensamento bem articulado e saúde mentaL Negada a qbtenção de au"ro-es- seguia fazer uina "síntese cultural" de ideologias nacionalistas, primitivistas,
tim;l por meio de trabalho criativo, esses jovens procuram obter valor pór socialiStas e racistas (Bioch, 1991 [1935]),
meio de sucedâneos metafóricos como o esporte (Rocky) e a guerra (Ran'V- Essa :úlâlise sugere que o rcaganismo deve ser visto como um conser- '
bo). É sintomático que Stallone represente Rocky e Rambo durante 'u~ vadorismo revolucionário com forte componente de ~~puliSmo, individua-
período em que a recessão econômica estava empurrando os Rockys- de lismo e ativismo conservador_ràdical, o que Se~4WSta perfeitamente com
todo o mundo para as forças armadas, onde se tornariam RambÓs em prol Guerra nas estrelas, Indiana fones, Superman, Conan e outros filmes. e
da política de intervenção externa de Reagan. séries de televisão que utilizam heróis individÚalistas ho~ti{a~ Estado e ver-
A sindrome Rocky-Rambo, porém, põe à mostra o masculinismo -cru dadeiros repositórios de valores conservadores. E, como indica Berman
que está no fundo da socializaÇão e da ideologia conservadora.A única ma- (1984), essâ &_uma importante transformação na estratégia da indóstria cul-
neira como os Rockys e Rambos podem obter reconhecimento e auto-afu,-~ tural: dci'!,flstfvOr ao-conformismo e ao Estado benefi<:ente nos anos 1950 à
mação é o exibicionismo violento e agressivo. E o patético pedido de amor valorizaÇão do inconformismo e do heroísh10 individualista na era Reagan
por parte de Ramho no.fim dos dois primeiros filmes.da série é uma indi- da glória emprcendedot".t.
cação de que a sociedade não' está pondo à disposição estruturas suficien*
tes de apoio mútuo e comunitário para criar relacioriamentos interpessoais
sadios e egos ideais para os homens daquela cultura. Infe.lizmerite, a ·I·
•.
I Contudo,_;f- identificação de Rambo com o homem natnt".al contm·a
tecnologia da,_ máquina é problemática porque Rambo é também identifi-
cado com a tecnologia, especificamente a tecnologia militar assassina. O
pt:rsonageiJi. de Stallone intensifiCa essa patologia precisamente· em sua arco-e-flecha de Rambo atira míSseis que explodem com impacto nuclear,
exaltação do masculinismo violento e da auto..afirmação militarista. i mesclando assim natureza e tecnologia.A faca de Rambo, risível símbolo fá-
i' lko da masculinidade agressiva, também é high-tech, pois com ela ele con-
,i, segue 'cortar arame farpado e suturar os ferimentos com uma agulha e uma,
Leitura polí'.tlca de Rarnbo linha comodamente guardadas no cabo. Essa faca também o orienta com

O mais curioso, porém, talvez seja ·o modo como Rambo se aprOpria


I uma bússola, e, evidentemente, serve-lhe de arma poderosa quando ele pre-
cisa despachar adversários com rapidez e eficiência. Além disso, Rambo
tambéfu é associado ao poderio de helicópteros, explosivos ç outras armas,
de motivos contracultumis em favor da direita. Num dos níveis, o ftlme é
sobre o triunfo do indivíduo sobre o sistema, dando continuidade ao tropa'·
dominante do individualismo na ideologia americana, ·mas conf~rindo ao
I niesclando-sc, assim, tecnologia e natureza em imagens de mna genuína ·
"máquina de combate~. ,
conceitO um cunho particularmente direitista e masculinista após à apro-
priação do individualismo dos anos 196()--quc tinha a forma de revolta so-
cial e inconformismo.Além disso, Rambo usa cabelos compridos, faixa na
I Por conseguinte, as iffiagens representam uma implosão entre corpo
e tecnologia, em que o corpo, a figura de Rambo, é representado como uma
superarma. "Sou a guerra H, diz ele a certa altura, c as imagens cinematográ-
cabeça, só come alimentos naturais (enquanto o burocrnta Muroock bebe I ficas o mostram a deslizar pela naturez'! SC!I). nenhum esforço, superando
Coca-Cola), está próximo da natureza e é hostil à burocracia, ao Estado ·e à I todas ~ adversidades e vencendo os inimigos. O espetáculo do filme,
tecnologia - exatamente a postura de muhos contraculturalistas dos anoS portanto, costura a oposição <!ultural entre natureza e tecnologia por meio.
1960. Esse é um excelente e:xemplq do modo como as ideologias conser- dos efeitos high-tech que, exibidos com grande exuberância, subjugam o
vadoras são capazes de incorporar fJ.g:uras e modismos que neutràlizam e. espectador com imagens, sons e os pcizeres do gênero açiio-aventura. Por~
atC invertem suas conotaçô<!S originais como estilo e comportamento de- tanto, a tecnologia aparecê como força da natureza, assim_ como Rambo
, contestação. O filme também incotpora discursos e in:iagens radicais
contra o Estado, pois o verdadeiro inimigo dC Rambo é a "máquina gove.r- • A supply-.çfde hero, como referência à suppl)~slàe economlcs, fonua de pen.saÍnento
namental, com sua tecnologia macis;at'seus regulamentos infindáveis e suas· · econômico qu'e, em oposiçãO à economia kcynes)ana, privilegia a oferta como futo_r de
motivações políticas vcnals.R-tmbo é o antiburocrata inconformista que se cresclmento. (N.T.)

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_...;_. _____ ·····-


~-

aparece como a própria guerra, ao invés dC a guerra, a tecnologia c Rambo Rambo, enquanto os sovíéticos são apresentados como torturadores sádj.,.
serem percebidos como produtos artificiais de constf!.Içâo social, dificil- cos e desumanos, burocratas mecânicos.
mente "naturais". No entanto, as reflexões·"Sobre as representações de masculinidade e·
A má(ruina-filme também ,mobiliza'· imagens e exibições de masculini- raça no cinema deixam claro que ess~s ·fenômenos são socialmente cons-
dade e raça com função ideológica. Em relação ~ fator sexual, é de se no- truídos, são construtos artificiais produzidOs.. em coisas como fdmes e na
tar que Rambo exemplifica uma imagem _masculinista que dcfme a mascu- cultufa veiculada pela núdia. Os estereótipos de raça. e sexo em Rambo são
linidade em termos de guerreiro com características de grande força, uso tão exagehidos·e grosseiros que indicam a natut'eza '\rtificial e social de to-
eficaz do poderio e hemísmo militar como expressão mais elevada da vJda. dos os iQ.eais de masculinidade, fenÚnilidadeh raça, _ettit'!- e outras posturaS.
Sintomaticamente, as personagens femininas do filme são prosdtmas ou, nO '-'-'--t
,Essas representações são apresentadas cinemiri:ógra.ficamente de tal modo
caso de uma opositora vietnamita, mulher subserviente às façanhas de I que exaltam o poder branco- e masculino de Rambo contra as mullieres e
Rambo que funciona sobret1,1do como força sedutora e dest11.1tiVa. SuaS --l outras raças. Portanto, para expor totalmente a ideologia tílmica e os mo-
principais ações consistem em seduzir os guardas vietnamitas - figura , I dos como o tincma promove certas posições politkas, mmbém é preciso
tamt:iém fundamental para a imagem da mullier em Os. boinas-verdes - e atentar paí.r.'a forma-cinematográfica e para a estrutura narrativa, para· os
transformar-se num'l guerreira, versão feminina de- Rambo, que o ·ajuda a I
i
!Jl-OdÓs.~bín.B o a parafernália cinematogrfúica tmnscodifica os discursos so-·
ciafs e reproduz efeitos ideológicos.
n:aatar os vilões. Signíficativamente, o único momento de erotismo (breve e
casto) do filme acóntece quando' Rambo e sua agente feminina se beijam Em filmes, a ideologia é transmitida por im;tgens, figuras, cenas, códi-
~epois de um grande feito bélico; segundos depois do beijo (da morte) a gos genético&.~ pela narrativa como um todo.A posição da câmara e da ilu-
mulher é atingida e morre. Essa renúncia a mulheres e à sexualidade ressal- I minação em,Rambo ajuda a enquadrar Sylvester Stallone como um herói
tn.Ítico; uma "grande abundância de ângulos baixos da câmara apresenta
ta o tema de que o guerreiro deve seguir sozinho e renunciar ao prazer eró-
tico. Esse tema obviamente se ajusta ao tema militarista e masculinista do ii Rambo como um guerreiro mítico, ellquanto os freqüentes closes o apre-
fil~e tanto quanto ao gênero dos h{·róis masculinos ascéticos que devem sentam como um ser humano maior. do qu.e na vida re:U. O-foco em seus
estar acima da tentação se'lc"Ual pa.ra atingirem eficácia máxima como salva- bíceps luzidios, no seu corpo esc.ultúral e no tísico· poderoso apresenta-o
dores ou guerreims.l~ · como um símbolo sexual masculino, como um emblema da virilidade, que
As representações e temáticas referentes à raça tambéni contribuerri provoca a admiração das mullieres pela força masculina e talvez uma fasci-
de mandm fundamental para o tema militarista. Os vietnamitas e os rus- nação homoerótica p~lo guerreiro masculino.As tomadas de cena em tra~
Sos são apl'esentaCios como os Outros, os estrangeiros, a personificação do vellü!{f e a câmara lenta codificam Rambo como uma força da natureza, que
Mal, num esquema tipicamente hollywoodiano que apresenta o_Outro, o percorre a selva sem esforço, enquanto a mUsica triunfaritc codifica seus
Inimigo, ''Eles", como a encarnação do mal, e "Nós" como os bonzinhos,' a feitos como super-heróicos. Sua regeneração como super-herói é apresen-

i!
encarnação da virtudC, do heroísmo, da bondade, da inocência, etc. Ram· tada em tomadas nas quais ele. se projeta magicamente para fora da água,
bo apropria-se dos estereótipos dOs malvados japoneses e alemães·dos fil- purificado c potente, dignificado para vingar e triunfar.' 9
mes sobre a Segunda Guerra Mundial em suas repres_entações dos· As seqüências de ação focalizam seu corpo como instrumento do he-
vietnamitas c dos russos, dando assi~n; continuidade a uma tradição mani- roísmo mítico, enquanto os cortes crian'luma impressão de dinamismo que
queísta de HoUywood em que certoS símbolos· antigos do mal represen- infundem em ~bo energia, poder e vitalidade sobre-humana, assim
tam - do ponto de vista da direita - os· vilões contemporâneos. Os como o uso da câmara lenta e de tomadas longas, centralizadas em cxten·
-vietnamitas são retratados como bandidos ambíguos, joguetes ·incompe- .. sas seqüências de ação de Rambo, tendem a deíficar a personagem. Quan-
tentes dos perversos soviéticos c bucha de canhão para as façanhas de do, por outro lado, Rambo é torturado pelos vilões comunistas, as imagens
são estruturadas segundo a iconografia da crucíficação, em que a forte ilu-

58 Jeffords nota que llftsstng ln Actfim, de 1984 (Bmddoclt, o supei-cmiumdo)


também mostra um herói que renuncia a mulheres e à S<Oxualidadc, inscrevendo-se 59 Jeffords (1989: I30ff.) nota que há quatro cenas em que Rambo emeri:e da ái;ua para.
assim no roteiro fasciSta da pureza sc:xual, o que identifiça s~liminanncotc a s~a efi- rcali-,mr uma ação heróica, re\ivendo assim os ritos míticos de pLLriflcação, imagms od-
cácia com o ascetismo (1989: l32t:).Tais representações apontam para pamlelismos na gln:irias tamb6n presentes no clímax em dunarn lenta de Mlsstng tn Actfon, quando
análise de Thcweleit sobre os guerreiros da Aleman1la Nazista (1987). Chuck Norris ·emerge da lLgua, :i!irando com a metralhadora parn destruir os inimigos.·

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..
T
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minação/sobre a cabeça produz efeitos de halo, como nas pintuias medi~­ mes, o espectado.r é convidado a alcançar uma posição de domínio, " a-.
vais, e o sangue vc;nneihíssimo produz Lima hiper-realização - se nos é per- destruir os inimigos e a triunfar do mal.
mitido tornai- de empréstimo um tenno de Baudrtllard (1983a) - do sofri- ~ Como sugere Warner (19~2: 684-5), o espetáculo Rambo ájuda a expli-
menlo heróico. Os doses nos vilões comunistas focaliz:UU seu prazer des- car a atração que exerce sobre o público jovem e internacional.(.:) Os especta-
. dcnhoso e sádico de- torturar Rambo, enquánto as cenas de batallia retra-- dores despojados de poder gozam a. emoção ·de identificar-se com o poder
tam os comunistas sobretudo em tomadas de c~na à distância çomo jogue-· "natucil" e tecnológico e de superar magicamente todas as 'adversidades. Os
tcs insi$nificantes e incoinpetcntes do heroísmo redentor de ~bO. efeitos especiais de Hollywood produzem um espetácu!o Srnças ao qual o pú-
Numa cena inacreditável, RamJ?o arranca a cabeça da serpent~, lembrando blico é capaz de vivenciar o poder de derro~ _decisiv.fm:ente o mal. O esp~­
.o mito de_ Adão c do Éden (em que Adão não consegue sUbjugar a serpen- táculo,. portanto, invt;ste o· público de poder, ptôpt~dO:ihe um sentimento
te e precisa sair do Jardim do Éden) num gesto por meio do qual Rambo o passageiro de domínio e furça, o que compensa o declínio do poder na vida
conquista, demonstrando seu poder de dominar a selva; diária. Além disso, os espetáculoS da midia ocultam o cbnteúdo ideológico;
Wi!Íiam Warner (1992) mostrQu que a tortura e o sofrimentO deRam- assim, a mon;tagem veloz, as estonteantes imagens high-tecb e a emoção da
bo, enfatizados pela cinematografia, representa Uma postUra sadomasoquis- narrativa stib~Stimam a capacidáde crítica do espectador, transmitindo-lhe, su~
ta graças à qual o espectador sente a dor como justa punição pela êulpa de blliniriaqrtêilte, as ideologias por meio de imagens e do espetáculo.
ter perdido a masculinidade e o poder imperial no Vietnã. Depois, por meio s Além do mais, o ~final feliz" situa o: filme como um rciornó à tradicão
de uma lnversão mágica, o sujeito obtém os prazeres da, postura sádica ao da aVentura hollywoodiana conservadora, e a vitória soPre os comuni;tas
participar da Vitória e 'do poder de Rambo Sobre seus adversários. Esse ro- mahrados codt?ca Rambo como uma redenção- mítica da derrota ameri~a­
teiro, portanto, possibilita uma resolução psíquica pará o trauma da perda na no Yietnã yor meio da ação heróica - tropa reproduzido nos ftlmcs de
do Vietnã e dá forças aos espectadores que estejam vivenciando a perda do Stallone, ChuCk Norris e inúmeros outros. bem como em romances folheti- !I
poder no difícil tempo presente. nescos e em shows de televisão. Tal redenção fnítica foi realizada politica- 1'
mente na época pelas ações de Ronald Reagan, Oliver North c outros "cau-

il
Jeffords (1994) interpreta as cenas de tortura _nos .filmes da série-
Rpmbo como- deinonstração de que o c()rpo nacional pode recuperar-se bói-." que apoiaVam a violência para resolver conflitos políticos (Jewett e
das feridas c reconstituir-se como dominante, poderoso, controlador. O cor- Lawrenc~, 1988: 248f.). Não foi por acaso que tanto os heróis hollytvoodia-
po de Rambo também constitui a norma do corpo poderoso que pode pro-· nos quanto o preside1,1te hollywoodiano e seus ·apaniguados agiam fora da
teger"nos das ofensas, corpo com o qual os corpos delicados e fracos po- lei para realizar ações "tieróicas" cóibidas pela ordem legal e política.
dem ser comparados e vistos como deficientes. Ela argumenta que; o xeri- Pç:tr conseguiJ).te, embora não ten,ham Obtido vitória no Vietnã, os Es-
fe, seus ajudantes ineptos e a National Guard do primeiro episódio deRam- tadoS ''Unidqs tentaram obtê-la na cultUra da mídia. Esse fenômeno mostra
bo representam os corpos frágeis que tornam os Estados Unidos vítlmas da algumas das funções políticas da cultura veiculada pela mídia, entre as
subversão e.'\.'terna e interna. Os '/ZOrpos Rijos" de Stallóne, Norris, Schwar- quais oferecer compensações para perdas irremediáveis ao mesmo tempo
zenegger e outros, ao contrário, apresentam o homem ideal necessário à
preservação da sociedade existente contra os inimigós e contr-.1 a decadên- I que dá garantias·de que tudo vai bem na política americana- garantias ne-
gadas em filmes menos conservadores como os de Oliver Stone Salvador
cia e a feminização internas.
No caso de Rambo, não só o rotcil'o do filme põe em cena esse drama
redentor de vergonha, humilhação, tortt.ua e ressurreição por via ·de u~
indivíduo que se investiu de poder, como ~am.hém o eslietáeulo em sí dá ao
l (Salvador, o m.artfrio de um povo), Platoon, lVall Street, Talk R adio (Ver-
dades CJ!-Ie matam), Born ón the Fourth ]uly (Nascido em 4 de julho),
Heaven and Em·tb (Ent1'e o céu e a terra), e Natural Bom Killers (Assas-
sinos por natureza), que representam uma contrapartida instnltiva aos ci-
espectador a possibilidade de participar das emocionantes experiências de clos Rod:y;Rambo de Stallone e também são restemunhos da natureza con-
Rambo, que é capaz de at.r_ayessar sem ésforço 'todo o espaço da selva, mis-
turando-se com a natureza. Os espectad<;>rcs São convidados a vibrar com a
destruição. a que Rambo submete seus inimigos, a sentir a violência reden~ 60 "Os filmes Ram/m 'funcionam' p~u>l adolescentes e crianças americanas que têm
p_ouco ou nenhum conhecimento de suas posturas reaganistas ou por elas_não se ínÍ:e-
tom; a voltar triunfa'lmente com Rambo num helicóptero hlgh-te'ch. Portân-
ressam. A ação espetacular de Rmnba também parece ter funcionado em conjunto
to, a parafernália cinematográfica do espetáculo contribui para .criar uma: com sua masculinidade ·heróica para tomá·lo extraordinariamente popular da Islândia
experiência de aquisição de poder.Assinl como Ócorre com os vt'deoga- i.Iugoslávia, passando pelo Líbano"(W:uner, 1992: 684-5).

94
flituosa da ideologia cinematográfica no período contempOrâneo. Os ftl- espálhando até no t.?tterior. O filme já quebrou recordes de bilheteria em.Bei-
mes de StOne demOnstram a dor da derrota e retratam as instituições pode- mte e nas Filipinas, e 25 empresas assinaram contt;atos para distribuir objetos
r()saS e as forças sociaiS a sobrepujarem a capa_cidade individual de- contro- cóm a marca RamQo, mesmo 'em paises onde o filme ainda não foi lançado. ·-
lar o curso dos eventos. Os fUmes conservadores, ao contrário, celebram o (Time. 24 de junho de 1985)
triunfo da vontade sobre a adversidàde, e seus efeitos revelam o ridículo de
se afirmar que os produtos da cultura da mídia não e.xcrccm efeitos pode- Os crit_jços liberais falavam de seu horror ao verem o filme com· os
rosos nem promovem os inte_resses de dominação. Ao contrário, como su- rambomaníacos aplaudindo cada façanha da máquina.monífera humana. 6 '
O filme logo foi assunto de discussões e i'atk 'f.'?..~~s: '-,:..__
gere o estudo seguinte sobre o efeitÇl Rambo, eles são forças poderosas nà
cultura contemporânea e.exercem vários efeitos discerníveis.
',-,;1- . '"''""'·~,z:,.,

. ~- '
Até mesmo uma mesa redonda de jornalistas polític~s no programa "This
;,
Week with David Brinktey"', de domingo passado na ABC, dei_xou de lado o
O efeito R,ambo -plano Sril:!utário do presidente, as negociações em torno do SALT H c outros
~s~'i,t~~:~e peso para conversar sObre aquilo que a popularidade dos novos
Rambo foi um dos filmes mais populares de sua era. Bateu um recor- , 1'illrllfs dé Sylvester Stallone diz sobre -nosso estado de espírito.
de com a abertura. de 2.074 cinemas e teve a terceira maior renda de es- · (Chicago Trtbune, 12 de junho de 1985)
tréia na história do cinf:ma:US$ 32.548.262 nos primeiros seis dias (New
York Times, 30 de maio de 1985). Rambo logo se tornou o campeão de bi· A inteledualidade concluiu que sua "mensageffi~ era:"Deveríamos ter
Jhetcria: vencido no Vietnã. Vencemos em Granada. E agora ... à Nicarágua!" (ibid.).
A articulista EUen Goodman temia que o resgate dos prisioneiros de
Nos primeiros 23 dias, Kambo, cuja produção custou US$ 27 milhões,rendéu guerra realizádo por Rambo no Vietnã aumentasse os apelos a 'tentativas t,,
a fen01llenal bilheteria de US$ 75,8 milhões. Só dois filmes na história, India- militares de resgatar reféns no Líbano e-em outros lugares (Cbicago Tiibu- ,,
H
na fones e ~ 7empfo da penttçau _e o 1-etunw de ;eat, tiveram Iartçameruo ne, 27 de junho de i 985), e logo depois o próprio Ronald Reagan dizii: '!i
mais consagrador. I
',)
(Time, 24 de junho de 1985) "Rapaz, depois de ver Kambo ontem à noite, fiquei sabendo o que fazer da
pró-xima vez". Essa observação de Reagan foi feita enquanto ele 5e preparava
No flrh do verão, já tinha arreca,dado mais deUS$ 150 milhões só nos p;.rn llm comunicado à nação sobre a libertação de trinta e nove refé~s ame- :i

I
Estados Unídos, tornando-se um dos filmes mais populares ·da época · ricanos em BCimte. Eles estavam entre os 153 passageiros de um vôo daTWA
(Business Week, 2() Çe agosto de 1985).Aiém disso, geroÍI tod~ uma cultu- (Trans World Airlines) seqüestrado em 14 de junho enqt1anto rumava para
ra da "Rambomania" que Roma proveniente de Atenas.
(Reuter_ç Ltd, 30 de junho. de 1985i'
se espalha mais depressa que tempestade de fogo desencadeada pelas ogivas
explosivas do herói. f?s_megahits de Hollywood, no verão passado, inunda.tam 61 "Rmnbo é um dos filmes que provocaram maior participação pOpular em todos os
o mercado com lembrancinhas• esquisitas comO Gremüns peludos e ETs sim- tempos. o público realmente chora quando o John Rambo do sr. Stallone é torturado.
páticos. Neste ano as lojas ·estão com os Cstoques cheiOs da parafernália de Aplaude sem par-Jr quando ele parte para a vingança• (New York Times, 30 de maio de
guerra: uma réplica deUS$ 150 do ~o e flecha htgh-tecb de Rambo,facas de 1985). E:"No cine United ."ü'tists, 'I>i 6 público aplaudindo uma camificina humana que
Rambo e um sortimento de armas de brinquedo, como uma semi-a<Jtomátka teria deixado os romrutos sem jdto" (Chkago Trtbzme, 12 de junho de 1985). A medi-
da qüe o veriío avançava, a reaÇão ·entusiá~tic<:~ do público pateçia t~mbénl avançar:
que espirra um jato de água a mais de trê~ metros. A criançada logo-vai podt;r "Nos cinemas, os joveru; entusiasmados ficam de pé ento:ltldo 'US.A, USA'_ ê:nquanto_
tomar vitaminas Ra.mbo, e os nova-iorquinos vão poder mandar um ramb.ogra- Johnny R:lmbo Vll.i despachando outra kva de inimigos para o outro mundo" (Reute-rs
ma,em que mn sósia de Stallone vai entregar um cartão de aniversário ou cum- -ltd., 27 de julho de 1985). Os ct'Íticos liberais, por omro lado, contavam os atos de vio-
prir lUna.missào perigosa como pedir aumento ao chefe. O e..'Lército america- lência e atacavam o filme.
no começou a pendurar Cartazes do Rambo do lado de fora de suas agênd~ 62 Em outro.testc de som para futura ,-o muni cação radiofôniCa, Reagan dissern:"Meus
de recrutamento, na esperanÇa de seduzir reCmtas.A febre de Ramho. eStá se amigos americanos, tenho o pmzer dt <'Omtmicar-lhes que acabo de assin~r uma l<tgis- \

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Os psicólogos Começaram a descrev_er a mania de guerra nas ctían- Um' livro baseado no ~e vendeu mais de 800.000 exemplares (Reu-.
ças,63 e por toda parte haviã. cartazes do filme, imagens de Raf!Ibo e referên- ters North European Service, 31 de jutho de 1985).
cias a ele. Na verdad,:, a palavra uRambo" logo se tornou sinônimo de durão,
macho, patriota, e o próprio Reagan usava o termo ~ramboing ~para descre- As camisetas Rambo, progranmdo pat'a matm; pm·te li, atingiram a maica
ver uma reação agressiva à provqcação. O filme foi exaustivamente estuda- _de I ,5 mill1ão de dólares (250.000 camisetas). Nas cinco semanas do lança-
do co~o expressão dos sinais dos tempos: mento, as vendas dessas camisetas superamm as da recordista anterior, a oni-
pres-;;Ôte l\I~A~s~H. (. .. ) Não só há milhões de pessoas vendo o iilme,como um
R~bo tocou 'O ponto nevrálgico da América, a sensaçã~ de que, como diz RO- grande número delas decidiu identillcar-se·l?-~Jblicamente e exibir-se com uma
nald Reagan, deveríamos voltai: a erguer a cabeça. Dez anos atrás, depois da imagem de Rambo.
"·-::.~c.,.
··--··
queda de Saigon e da angústia do escândalo Watergate, R.1mbo teria sido ex- (Busfness Wtre, 18 de julho de 1985) ,
pulso dos cinemas deba~o de vaia. Os ânimos eram viOlentamente antibel!-
cistas na época, mas hoje tudo mudou. O mercado também foi-invadido por-grande número de brinquedos,
(People, 8 dejÚlho de 1985) arn~s, ~o'hrlás e outros artigos Rambo, e no ano seguinte foi criado um de-
scnhO'Wl'fíilado Rambo. O filme também inspirou ações bizarras em todos
Por outro lado, os veteranos do Vietnã protestavam contra o filme em os' Estados Unidos. Um mensageiro sósia de Rambo, usando· uniforme do
todo o país, afirmando que ele continha representações distorcidaS tanto exército e metralhadora de brinquedo para entregar um rambograma, foi
dos vietnamitas quanto dos veteranos americanos, ao mesmo tempo que perseguido .ppr um policial que, na ação, acabou atingindo o próprio pé
promovia a violência, e fizeram piquetes nos cinemas que exibiam o filme. com um tirQ.(Propriedade da Untted Press Internatíonal, 19 de agosto de
Mas Ramho se transfonuara numa figura importante da cultura popular e 1985). E:
comercial, "aquecend<? o mercado de pôsteres, buttons e adesivos". Em ple-
no verão, Quitua-feira os moradol"es de um bairro elegante d:1s cercanias de Rochester
lançaram a culpa dos recentes atos de vandalisrl10 sobre os. ·"Rambo's Rai-
mais de 600.000 pôsteres de Rambo haviam sido vendidos.(..) Há 11 tipos de ders", grupo de adolescentes que imitam a personagem do filme de Sylvester
buttons "Rambo~, e até agora foram vc;ndidos 300.000.A seguit·, os adesivos Stallone. Comta que rasgaram telas de portas, derrubaram árvores e arbustos.
p:un carros. Entre eles:"PredSft de um exército? Contrate o Rarnbo";"Rambo - e ligarnm mangueiras, dirigindo-as para o interior das casas; isso ocorreu nas
a mais nova arma americana";"Cuidado: este carrq é protegido por Rambo~. últimas semanas em Monroe Cotmty, Pen.field. ·
(Chicago Tribune, 11 de julho de 1985) 'tA polícia disse qt1e a responsabilida~k: pode ser de um grupo de adolescen-
tes que coStumam se fantasiar de Rambo naquele bairro trnnqüilo. No último
fun dt: semana sietiveram dois clones de Stallone que, com os rostos pintados,
usavam uniforme de camuflagem do exército e camisetas curtas. "Dã para
!ação que põe a Rússia fom da lei paro sémpJ."Ç: O bombardeio começa em cinco minu- entender por que eles usam uniforme do exército e faca··.- dissejoA.nne Cor-
tos".A Casa BÍ-anca insistia em dizer que aquilo não passava de piada não dcstinad.1. à
tese, CtJja casa fol alvo do vandalismo - "É como se fosse um comando de
divulgação. Mas a difusão do comentário pela imprensa enfurc<:eu Mos.:ou, apavorou
os europeus e forneceu :~os Democrata:! uma munição política inesperada (Reuters Rambo. Eles aCham que, se Rambo pode, eles também podem".
Ltd., ~O de junho de 1985). (Propriedade da United Pl-ess Interiiaffonal, 15 de agosto de 1985)

6~ Um pskó!ogo observou:
Surgiram outros relatos de trimcs, inclusive assassinatos, gue, supu-
Na minha prátk"' psiquiátri<:a, vejo que cada vez mais as crL1.nças brincam· de nha-se, teriam sido inspirados por Rambo. No "Los Angeles Times, uma re-
guerra, E vejo que· Lo;so está cada vez mais Ügado à televisão e ao dnema.Atendi
portagem dizia que um assassino usava uma faca como a de Rambo, acre-
tun menino de 15 a1JW de Downstate,lllinois,na semana passada, que tinha viMo
Rambo nove dias seguidos. Tinha tentado se alistar nas forças armadas: foi com. ditando-se que o suspeito se inspirara no filme (16 de agosto de 1985).
uma fita na cabeça e uma bandeira americana, corria a person11gem do filme; fi-
cou arrasado quando nlío o aeeitamm. Um juiz execrou a glorificação da personagem Rambo de'Sylvester Stallone
(Chicago Tr!Dune, 16 de junho de 1985) ao proferir uma sentença contra um rapaz de 15 "anos, acusado de !YIOntar ar-

98 99
madilhas de selva num parque. O juizJon R Lund da cmnarca de\''ashington, Dissemos acima que o espetáculo flambo atraía·a atenção e obtinha
.
ter0·fcira, mandou prender Andrcw S.Bene, Bea\--crton sob a acusação de ex-' aclamação do públicO internacional; na verdade, o efeito R.arttbo correu I
por a vida alheia a grande risco,mas abSolveu-o de três acusações de porte de mundo. A _Réuters dizia que em 'El Salvadot; país dilacerado pela guerra, o
arma e assalto. f'tlme
(Propriedade da Vnited Pre.ss Iuternatfvnal, 18 de setembro de 1?85)
h~~a q,uebrado recordes de hillietcria ( ... ) vinte mil pessoas tinham visto o
E:"Segunda-fcira a polícia acusou um homem de roubar um bar e três filmé" no' dia da estréia ( ...) houve brigas entre as ·pes~oas q_ue fotm!'-vam fila
fregueses vestido de Rambo"(Propriedide da United Pm_ss Jnternational,
7 de outubro de 1985).A mais extraordinária foi esta:
para comprar ingressos, com a ocorrência'' d!; vários f~.t,~Ii.entos de_ peqUena
gravidade quando o povo resolveu se amotikai-{l.:[i.ra cOnseguir ingressos. Vá-
~
Um homem, que- se fuzia pass.1r por "Rambo" para alguns adolescentes idóla-
tras,"foi preso sábado sob acusação de fazer "lavagem cerebraln nos meninos
com o uso de táticas de unidades de assalto do exército e ~ie combinar com
I rios oficiais e soldados do exército salvadorenho aderiram à moda do lenço
na cabeça usado pdo carnudo e semidesnudo RafUbO.
(2 de agosto de 1985)

I
u,m tleles o assassinato de seus pais. Wilmer Leonard McClinton Jr., de 32
anos, foi preso na cadeia de Mobile Coumy sem direito a fiança, acusado de
b"'itrià\ambém quebrou "recordes de bilheteria na África do Sul, em
noÓg Kong, em Taiwan, na Venezuela e em outros lugares. -O mesmo ocoi-
'
venda de armas de fogo aos menores, conspiração de assassinato, porte ile- reu até mesmo em Ismel e no Libano" (Reutet·s ·.N_orth -Eu.ropean Servtce,
gal de explosivos e indução de m!;":nores ao crime.( ... ) lee disse que nas ba" 31 de julho dti; 1985). -
tidas policiais de quinta"feira, na casa de McClinton, em Satsuma, e na sua an- Houve quem tentasse proibir- o filme na Grã-Bretanha, 1,. mas essa me-
tiga residênéia em M~bilc, houve a apreensão de facas, pól\~m e flechas ex- dida malogrou, e o sucesso do filme fo'i grande em toda. a Europa.: 5 "Ram-
plosit~ls. Segundo a polida, de usava armas e mtmição real para ensinar táti- bo", pot:tanto, tornou-se urna figura popular gl~bal em tor_?o da qu~ ocor-
cas militares de aSsalto a meninos de ll a 15 anos."Eic levou alguns dos me- ría um processo de identifk:ação.66 Rambo acabou tambem envolvtdo na
ninos para ver o filme Rambo dez ve:.r.e<>" ,disse }ames Hof"y,s~rgl"'nto da Tlni-
dao:je ju\""CJl.il.
64 Como se verificou,<"> filme n.'io-ful proibido, mas as previ~ócs "de violêncb se confu"
(Propriedade da United Press lnternational, 9 de novembro de 1985)
' maram:

O lanÇamento do ftl.me em· vídeo multiplicou o efeito Rambo, visto, 'Uma gangue de jove!).s entrou em choque com policbis num cinema que <-':Xibia
Rambo, segundo relato da polícia hoje. Cerca de Cinqüenta jovens quiseram en·
que muitas pessoas o compraram ou alugaram.A fita atingiu a marca de 425
t.rar à força mun cinema de Gloucestcr, oeste d;1 Inglaterra, pela s'aida de emer-
J!til unidades vendidas no primeit·o dia de lançamento, quebrando recordes gência. Houve confrontação qu:tndo 22 policbis fornm chamados para restabe-
anteriores (PR Newswire, 14 de janeiro de 1986). Continuavam ocorrendo lecer a ordcm,scgw:;do disse um porm--.,-oz.Sctc pessons fornm deti.das, ac«":ó<.X:n·
episódios do efeito Rambo:"Um adolescente, cujos advogados diziam estar !OU.

vivendo o delílio de ser John Ra:mbo, personagem de um veterano da (l(euters Ud., 1' de setembro de 19_85)
Guerra do Vietnã protagonizado por Sylvester Stallone, foi condenado por
apunhalar a melhor amiga de sua mãe" ( United Press Internatio·nal, 22 de 65 Rambo
maio de 1986). Um jovem ·'disse à polícia que tinha, representado 'Rambo' está ~endo tio popu!nr na F.rança qunnto o foi no vcriio pa:;~;tdo nos Estados Uni-
dos, qucbr:tndo recordes de bilheteria no dia de estréia em Par_is ( ... ) Rambo cs-
com seu vizinho de 15 anos na noite em que o garoto foi morto(. ..) [Ele]
t'reou com a venda dt' 342.082 iugressos em 340 cinemas da E'rança, outro recor-
foi acusado de assassinato [do garoto] por punha11.das" (United Pr-ess Inter- de de estréia no tc.:rritório. Um porot~~-oz da Tri.Star Pictures disse que Rmnbo
natio1lal, 1:) de abril de 1986). E:"U!U adolescente que as autoridades aftr- • também está quebrnndo reeordes em outros 'países onde estreou.
maram ter se ferido com uni revólver diante de-dois amigos depois de as-
Propried(lde da Untted Press lntr:mationül (8 de novembro de 1985)
Sistir a dois filmes violentos do ator Sylvester Stallone estava em estado crí-
tico" ( United Press International, 5 de _maio de 1986). Rambo tinha fi!tca- 66 ~íuito et!rioso:
do raízes no folclore americano, e o efeito Rambo continuava pondo a vio- Vídeos piratas do mme Ramho que 'cir<.ulam pelo Oriente Médio têm legendas
lência e a reação na ordem do dia. em francê~ e ámbe que comam mna história .diferente. Transcorrendo nas Filipi·

100 10.1
política c nas contradições da Guerra Fria. U.ma publicação soviética oficial
'
de um discurso polí~ico que é fruto de uma elaboração social e política. Na
atacava ó filme e condufa: verdade, "Rambo" é um construto cultural polisSêmi2o Q~te p9de ser·ad~ta­
do por lados opoStos no debite e na luta política.
Rambo não é o único filme de seu tipo. Criações semelliantcs de: Hollywood E assim "Rambo~ se tornou uma figura controvertida da iconografia e·
estão sendo apresentadas nos cinemas americanos há vários anos. E muitos do discurso cultu>dl e político dos Esta({6s Unidos. Por um lado, havia ba·
observadores são forçados a admitir que esse filme serve a outra fU}alidade: res Ra~1bo (em Houston), moda Rambo, armas Rambo e imagens de R.am-
influenciar a opinião pública a fitvor de ·aventuras milltares, sobretudo em bo em pôSt'éfes e outros instrumentos da parafernáliiJ; :comercial. Um mer-
rcL1.ção à Nicarágua. Até rnesmo Stallone admitiu numa cntr~vi.sta que seu -fil· cenário americano recrutado para ajudar os ~ontras &!.~{~lcarágua foi mos-
rhe é "uma fantasia direitista", Seria mais preciso dizer que Rambo é um fil- trado numa' entrevista da TV com um imenso l>~~r de ,Rarnbo· ao fundo, e
me que propag.'l hostilidade e ódio. Sua grande popularidade nÕs Estados Uni- a figuffi de Rambo foi associada às agressivas tentativas conservadoras de
. dos é lamentável. remasculinização e de reafumação do poderio militar americano na época .
(The Cunvmt Dlgest of the SoiJietic Press, 14 <~e agosto de 1985) Entretanto, houye freqüentes ataques ao ramboísmo na imprensa, e_WJ.lliam
Warner c0ht6u Yinte artigos qtie comparawm Rambo a Oliver North no
Mas Rambo mereceu uma critica fayorável num vespertino de Pe- caso Ir.iJk'tttiras, referências· essas na maioria das Yezes negativas (Warner
quim: "Esse é um filme sério de teor saudável, profundo significado social 199'2: 686), pois falawm de agressão masculina descontrolada e ilimitada à
e alto grau de material artístico. Uma obra notável da recente cinematogra- propriedade democrática. i
fia americana"(nYe Washington Post, 8 de ágosto de 1985). E a exibiçfu? do A popul;Wdade do filme Rambo e de Stallone, Chuck Norris e outros :'
I
primeiro filme Rambo na China quebrou recordes de audiência e produ- veículos de~<J..Ção c aventura"indica que o"Presidentc Hollywood"e amplos !.
ziu "uma ~rambomania" naquele país (Propriedade da United Press Interna· segmentos dá nação haviam a...simi!ado mna Yisão de mundo.maniqueísta
tioizal, 25 de setembro de 1985). dos filmes de Hollywood,segundo a qual "o inimigo"é tão malvado e "nós"
No entanto, ~Rambo" também se transformou em figura digna de somos tão bonzinhos que só a Yiolêncía pode eliminar as ameaças ao nosso I
bem---e.star. Portanto, os atos mais "populares" de Reagan foram a invasão de
desprezo, surgindo um di~curso negativo, ao lado do positivo. "Rambo" era
o código negatim que indicava alguém excessivamente machista, descon- Granada e o bombardeio da Líbia - precisamente o tipo de "ação" louwdo
il
em Rambo, Ases indomáveis (Top Gun), Aguia de aço (Jron Edgle) e
ll
trolado e com potenciais perigosoS e violentos. As feministas usavam o 'l'
termo pam zombar do comportamento masculino machista, e os políticos outros épicos militaristas dá r;;ra Reagan. Os fúme.s de Holl~ood, portanto,
liberais o empregavam para atacar os excessos do establtshment conserva- ofcre~~am uma iconografia que ajudava a mobilizar apoio aos programas
dor. O termo foi se tornando cada vez mais negativo no discurso político, polítiCos conservadores e militaristas. As imagens de helicópteros aterris-
mostrando de que modo iais figums populares são contesta(las, como parte sando em Granada e no Panamá continltam a mesma carga positiw e .emo-
cionante das imagens da-ação militar nos filmes militaristas de Hollywood.
Por conseguinte, os filmes de Hollywood nos anos 1980 ofereciam a
nas em· l943,segundo a versão da legenda, R.m1bo volta, depois de ter fugido dois iconografia necessária à recepção positiva das imagens da ação militar
anos antes, para resgatar prisioneiro:; da Segunda Guerra Mundial ainda em poder
agressiva ~real" (trazida até nós pela televisão).A apresentação dos "inimi-
dos japonescs.Tod."C> as datas são devidamente trocad~s. a despeito das cenas de
aÇão com helicópteros l:mça·fogu<etes e outras armas ultramodernas. QuiUldo. um gos" como absolutamente malYados, cuja eliminação é indispensável, codi·
soldado americano diz a R.'lmbo na trilha sonora em inglês "você está com rnna tica como"boas"tais agressões militares americanas. Os heróis militares re·
fama dos diabos no Vietnã, lê-se tU legend.1:"Você está com ótima reputaçiio em produzem o heroísmo dos espetáculos militares hollywoodianos e são alvo
Guadac:ma!" (cenário de importante batàlha no Pacífico durante a Segunda da mesma adulação popular dos Rambos do mundo do cinema. Além disso,
Guerra MlmdiaO."Isso natutalmente foi feito por tazões polítkas",disSe um dipl<r Rambo e os fUmes de retorno ao Vietnã expressam fantasias conservado-
matn que viu a fita-pinlta,notàndo que as)egendas eliminam toda;; as referências
ao Vietnã e à União So\-iética, O gerente de um dos maiores fumecedores de \-i-
ras imperialista-militaristas que, por sua vez, transcodillcam os discursos
deos llcg;Us de Chipre especula que o filme foi "saneado" para distribuição em reaganistas anticomunispts e pró-militaiist.1.s. Na Yerdade, Reagan empn::ga-
· países do Odentc Médio, como a Sitia por exemplo, que têm relações estreitas Ya constantemente soluções mmboescas para os desafios políticos da
com a União So\-iética e poderiam sentir-se ofendidos com Rambo. ' época, travando guerras secretas por todo o mundo c envolvendo-se em
(Reutf'rs North European S<'rvtée, 26)Je agosto de 1985) ações militares ostensivas, o qüe leva a crer que o Presidente Hollywood,
. '

102 103

I
I
'
, de fato, acreditava ser a violência a melhor maneira de resolver"'conflitos. G7 vogando a força militar ehquanto louvava valores conservadores e.militaris-
Não por acaso Oliver North e outros membros do governo secreto de Rea- tas.A'ssim como Rambo e os outros fll,riles de retorno ao Vietnã,A~uia "de
. gan ficaram conhecidos como "Rambos" quando se envolveram em opera- aço (hvn Bagle), Amanhecer sangrento -(Red DaWn) e outras fantasias
ções secretas de cunho ilegal e crinHnoso. reagnistas, Top Gun celebra o heroísmo lridividualista, o denodo militar e O$
E assim o cine~a, de Hollywood na era RC:agan-punha em ação ritos valores am~_ricanos conservadores. Assim como esses outros ftlmes, ópera
de redenção mítica ein narrativas que tentavam resolver ansiedades sociais, num universo binário de luta entre bem e mal, ria qu;U o inimigo Ç abSolu-
amenizar e aliviar o sentimento de vergonha associado à derrota no Vietnã, tamente mau e:;s americanos representani a personificaç;'Lo 'da "bondade".
e aparar as arestas da história (por exemplo, as atrocidades americanas no· Por ter sido criado
. ... " uni'ãô·"'.·Soviética, Top
rio fiozinho da Guerra Fria 'com·a (,..

Vietnã que sãO ílustradas em Piatoon e outros filmes antibel.kistas). Em seu ,:


.... Gun não é tão· ferozmente anticomunista como algtrj:;jl{,dos filmes que aca-
~deário mí~lco, oS americano~ encarnam a bondade e a iiiocêúda, enquanto ·'· bamos de mencionar, inas o "inimigo" parecem ser os comunistas soviéticos,
os comuntstas representam o mal: precisamente a fantaSia de Ronald Rea' embora o Outro estrangeiro dos bons americanOs sej"a suficientemente" in-
g~n em ~u~ encarnação préi-déténte ~ a meO:talidade do ·cinema ·hollywoo- ' determinado paFa abranger aliados dos soviéticos como a libia ou o Iraque
diano dasstco personificado por Reagan, K<>sa meritalidadc holl}woodiano- (por exemplO, &·•·inimigo" voa eni MlGs, avião soviéti.co, mas não é identifi-
reaganista era hegemônica em política e cultura durante o. reinado de Rea· cado comó éfi§~;·embora os pilotos dos MlGs tenham estrelas vermelhas no
~an e exige análise do contexto. polític;o do dne'ma holl}'v..roodiano da capacett; contud<J:, visto ser aquela a época em que Reagan bombardeou a
epoca para a perfeita compreensão "de seus efeitos ideoló~icos. Líbia, para deleite de seus confrades consen--adores, seria Possível conside-
rar que os inimigo~, são as nações ámbes que usav.un MlGs soviéticos, pois
nenhuma ideologia anti-soviética específtca é expressa no filme).
De várias maneiras, Ases indomáveis (Top Gun) é um.filme que per··
TOP GUN; SONHO l.ÜAS11TRBATÓRIO REAGANlSTA
sonifica integmlmente as atimdes sociais do reaganismo. Surgindo em 1986,
antes da crise Irã/Contras, do abalo do mercado de ações em 1987 e does-
A em Reagan· foi de intervenção militar agressiva no Terceiro Mundo touro do escândalo bancário, Top Gun representa a ascendência de um rea-
com a invasão de Granada, a guerra da Nicarágua conduzida c financiacb ganismo triunfante em seu último momento de supremac~a antes que des-
pelos Estados Unidos, o bombardeio da Ltbia e muitas outras guerras secre- · pencasse dCssa inconteste hegemonia (obviamente o reaganismo ressurgiu
tas e ações encobertas por todo o Globo. Hollywood alimentava essa menta- com o triunfo de George Bush, o Filho do Teflon* - mas essa: é outra história
lidade mili~sta c punha à disposição representações culturais que mobili· que se co~ta em Ketlner, 1990a). Esse filme foi a maior bilheteria do ano, o
zavam apolo a _tal política de agressão. A política de Reagan foi continuada que leva a crer que estava sintonizado com 'o ethos social. da época e põe
por George Bush, que empreendeu urrui ação militar agressiva em escala f'.'
à mos~ra os valores básicos do conservadorismo reaganista.
ainda maior contra o Iraqlle. Como ·exemplo de estudo cultural da mídia si- Top Gun trata principalmente de competição e vitória: mulheres, i"
tuand~ o çinema em seu contexto sociopolitico, faremos a sewili a leirura de honra militar, esportes e sucesso social. Louva despudoradamente o valor
t~ma. serie de funtasias reaganistas que legitimavam a politica de agre5são mi-
de ser estar por cima, ser elite, o melhor, o vencedor.A história conta os' fei-
lita~tsta dos govem_os Reagan e Bush, criando uma combinação de represen-
tos de Petc Mitchell, codinome Maverick, triunfalmente. interpretado por
taçocs culrurais passíveis de nlobili7.ação par-à a obtenção de apoio à guerra
de Bush contra o Iraque, evemo a ser estudado em detalhe no capítulo 5.
'lbm Cruise em uma de suas fantasias da coleção reaganista (Negócio anis~
cado {Ri~ky Business], A Chance [All tbe Right é'lfoves], COcktail, etc.). 9
<'I<..
.':'•,

. Ases indomáveis (Top Gun, 1986) foi mn fihne de uma série que sur- Mavetick de Crlj.ise personifica os valores rcaganista-yuppies de vencer a
gm durante os anos 1980; codificava o ethos reaganista do militarismo
~ . , ad- qualquer custo, de pôr a competição lia centro da vida e de lutar com
. . . todas as forças para ~bter vitória em todos os domínios d~ vida social, <;to
67 De vez em quando damos·Urna bre~ aUÍa· sobie o modo de ~osar de Ronald Rea· namoro aos esportes e à carrt:ira.
g;tn, oode são mostrados os modos como ele a55imilou os códigos genéricos e a '1--h.ão No começo do filme, o letreiro diz que em 1969 a Força Aérea da Ma- ::·
de mlmdo dos fUmes de Ho~uod- bangue-ba11gues, filmes de guerra, melodramas, rinha criou uma escola de treinamento de pilotos de elite para aviões de
e.tc. ·que dividem o lU1lverso em forças dicotômica.<;, do bem conira o ma!, em que
"nós" somos "bons" e "des" são "mah11dos"; assi!n são reprimidas quaisquer J.ncHnaçõeS
negativas e agressiv:t.'l em relação ao nosso próprio pals e à nossa psique. ' O ·•tefl<.m" serve de alusão à sua, impermeabilidade política. (N.T.)

105
104
.
..
T
.

- ;,j

caça, e, numa sessão de treinamento que ocorre depois, anuncia-se que os ria atermdora. De repente, aparecem MJGs inimigoS, e, após um confronto
'
Estados J]nidos precisam manter sua fração de pilotos de·caça especi<!.liZa- · ritualístico, um dos pilotos, Cougar, perde o controle da <J-etonave, e MavC-
dos no mundO contemporâneo. A mensagem é: mesmo numa· sociedade rick precisa arriscar a vida para escoltar seu camarada aturdido de volta ao
· altamente tecnológica e inforn,atizada, a iniciatjva e a habilidade indivi- destróier onde está a base dos caças. Cougar decide sair e perde o status
duais sào cruciais, até essenciais, para a sobrevivência militar. A certa altura, de piloto,."top gun", deixando de qualificar-se para a escola de elite.Ào
Maverick valoriza a habilidade intu.itiva individual em oposição às capaci- contrário, Maverick e seu co-piloto Goóse têm a oportunidade de passar
dades cOgnitivas: "Ui em cima você não tem tempo de pensar. Se penSar, pela prova e ·e;irar na competição para ser o melhor do~,.~elho~,s. No Uni- ')
morre". O mesmo ethos antüntelectual permeava os fllnies Guerm nas es- verso reag;.tnista, só a elite te in sucesso, e os tímidos devebi!icar a margem,
treias, pondo inconscientem~nte à mostra o antiintelectualismÓ c a irrefle- privados do sucesso e da honra reservada aos mêlli'~cs- e maiores na com-
xão que fazia parte integrante do reàganismo e era promovida todos os dias petição mort.ll por riqueza e pode1; na qual só os vencedores levam vanta-
pelo Presidente Alto-Astral e pela midia comercial que adotava seus valores gem, e todo o resto é um bando de perdedores.
· c seu antiintelectualismo (a pUblicidade por exemplo, funciona por meio As nuven~, a neblina, os aviões cintilantes, os centros de contrble
da manipulação de temores c fantasias, não utilizando um discurso racio- bigh-tecQ e b~ rl'iiotos jovens, bonitos e heróicos da seqüência de abertura
nal; ousamos afirmar que o reaganismo e a cultura da mídia funcionam de codificam.~! i'Vi.adores da Marjnha como heróis modernos, personificações
modo semeii1ante). · quase iníticas do mistério e do poder da moderna tecnologia.Aéjui, a ~on­
A seqüência de abertura do filme, com seus letreiros e montagens de tagem d:l$ imagens com o uso de tecnologia de ponta, das melhores cama-
som e imagens, estabelece o ethos do filme. A medida que o letreiro per- ras, do melhor éijuipamento de edição e do melhor pessoal reveste as
catre a tela, a música "misteriosa" cria· um pano de fundo para as silliuetas personagens dc. glória estetizada, enquanto as deslumbrantes ~cenas de
que se movem lentamente num amanhecer enevoado.As imagens humanas batalha e os bestiiicantes efeitos sonoros codifican1 as cenas de voo e com-
são acompanhadas por figuras de aviões, e enquanto a música entra num bate com o assombro e o poder da tecnologia estetizada.Assim como ocor-

J
ritmo mais animado, o som dos motores dos aviões e o staccato das men- reu com o fascismo enquanto movimento político (ver Benjamin, 1969),fd-
sagens de rádio produzem uma rica colagem sonora .. Um sinal de V ·é mes militare« como Top Gun estetízam a guerra, fazendo uma propaganda
exibido, e de um porta.-aviões decola uma aerona\'e rumo a "algum ponto não expücita do militarismo. Na verd.'lde, nos créditos do fim lêem-se "agra-
do Oceano Índico" .A estruturação modernista das imagens e a colagem de decimentos especiais" aos pilotos dos F-16 da Marinha norte-americana,
imagem c som codificam os pilotos de caça com uma aura mística, lançan- com uma longa liSta de oficiais e pilotos que participaram do fdme, o que
do mão dOs códigos culturais de O Triunfo da vontade''· que começava · atesta SIJ;~" credenciais de propaganda oficial, apf()vada pelo· governo dos
com um avião a se mover magicamente pelas nuvens, acompanhado po.r 1 Estados Unidos. -
música marcial numa fusão de imagens da natureza, da tecnologia e de nu- É esPantoso ver como muitos pilotos e soldados alistados nas forças
vens. Ases indomáveis (Top Gun) começa com uma fusão semelhaÍlte, e o armadas que lutaram na"inv~ão do· Panamá; na Guerra do Golfo é em
projeto do fdme será fundir imagens high-tech, heroísmo mítico e masculi- outras aventuras militares da época foram influenciados por tal propagan-
nidade numa figura "top gun~ que triunfa em .todos os setores da vida, cons-, da cinematográfica. O cinema hoUyvmodiano, assim como O Presidente
titu.indo um mod()lo apropriado para a juvenÍ:.ude .reaganista. hoUywoodiano, não é entretenimento inocente, mas arma letal a serviço
A trilha sonora, muda para um ritmo de rock, e dois caças aéreos de- das fot·ças s<;>cioeconômicas doininantes. O projeto ideológico de Top Gun
colam para a missão diária. Os pilotos e seus aviões tê'm nomes. míticos é investir desejo nas figuras· dos heróicos pilotos de caças aéreos e n~ I
(Ghostrider, Merlin, Cougar, Maveriçk~*, etc.), e a estnituráção das imagens guerra high;fech, o que é feito com artistas atraentes, vcrdadeir'.as magias da
utiliza enquadramento não centralizado, cortes rápidos e montagem sono- tecnologia cinematográfica c dos efeitos especiais, com mistura de rock e
ra de ponta pam criar uma fusão entre os pilotos e a idéia de pcxler e gló- sons· de velocidade e poder, além dos aviões sofistic.tdos e dos artefatos mi- ,..
:i
litares, evidentemente. Como já notamos, as imagens e os espetáculos-_
• .Filme do diretor alemãO Leni Riefenstahl. Feito em 1934,foi podetoso instn1mento da })igh-tech são veículos semióticos que transmitem subliminarmentc efeitos
propaganda hillerist~- (N.T) ideológicos_ Durante uma sessão de. treinamento do começo do filme, \:m
piloto cochicha para o outro, enquanto assiste ao vídeo de uma expJos~o
••-·cwaleiro fantasma', "esmerllhão e(ou Merlin", ·'J?uwa"e "Maverlck" =animal dcsgar- ;;._
t':ldo, independente. (N.'f.) mot1ifera !Jigh-tech, "Me dá tesão". Na verdade, esse é o projeto do própno

105 107
filme:"Iigru." o espectador na emoção-da fl.l-Orte tecnológica, fundindo Eros ç-:tdas, assedia. Ela o r~jeita, acompanhada· por t~m homem mais vt!l~~· mas
e Tânatos, energia libidinosa e destruição, em imagens de tecnoguerra, 611 e ele a segue até o banheiro feminino, onde continua a caçada; o espmto de
ajudando assim a produzir a disposição psicológica a emocionar-se com competição e de empreendimento exige criatividade_ c ~ora~e~ para
imagens de tecnomorte em acontecimentos como a Guerra do Golfo "traçar" dinheiro, glória c mulheres, tudo o que prometta .a tdcolog~a con-
contra o Ir-aque. servadora da época.
Há um corte, e a cena muda para Miramar, Califórnia, terra da "Fighter- N~ dia seguinte, ao entrar na classe, Maverick descobre que a mulher
town USA"; onde está a escola dos "top gun".All, Maverick começa a sua é sua instiutõra de vôo e se encolhe atrás dos pculo~.escuros.A mulher,
competição com "Iceman7, considerado o mellior piloto de caça, o que deve Charlie (Kclly McGillis), é a típica t'l?aganite:·f_?.~petitiya, louca por pro-
ser derrotado. Iceman e seú parceiro "Slider" são os perfeitos atletas ameri- moção e de comportainento irrcpreensível. EnCã~il;a uma versão conserva-
canos badalados, que respiram autoconfiança, privilégio e a convicção de dora do feminismo, segundo a qual as mulheres, embora competindo com
que são os mellio~s e _merecem tudo' o que têm. Maverick e Goose, ao os homens de igual para igual, conservrutl. a "feminilidade". "Charlie" tem
contrário, são personalidades mais marginais, vagamente "classe trabalhado- nom~ de homem, mas aparência, sensibilidade e Comportamento absoJu-
ra";são aqueles que estão por baixo e lutacio com unhas e dentes para ficar tamente.f~ii,fi'inos.Também representa a ~ow mullier ?as forças armadas,
por cima, cdebrando os valores ç o estilo de vida das elites dominantes por e durantt1'uiti período em que o voluntanado dependta do recrutamento
meio da c-.tça obcecada aos mesmos valores e objetivos. · d~ ~iulheres sua imagem de militar atraente e bem-sucedida é um anún-
Logo fica claro que o sucesso com as mulheres faz parte daquilo que cio gmtuito de.rccrutamento de voluntárias;é prová~el q~~ em 19_90_ ~ui­
significa ser um "top gim". Depois da primeira sessão de orientação, os pi- tas das mulherls que se encontravam nos desettos da Arábta Saudtta, a es-
lotos vão para um bar do local, repleto de mulheres bonitas que assediam pera de uma ..guerra violenta, lá estivessem porque tinham as~milado a
a clientela mascúlina, composta em grande patte por militares. À medida im_agem positiva da mulher nas forças armadas, i~agem difu!ldida por fil-
que o espectador-vrryeu;r entra no bar, vê representações do feminit carnal mes como Top Guu. . . , .
e de um carnaval de sorrisos a projetarem imagens de paraíso erótico para
os tccnoguerreiros da escola Top GunPA cultura da mídia produz imagens
que mobilizam o desejo do espectador para cert9s modos de pensamento, I Em Top Gun também estão os códigos cinematográficos e tdeologt-
cos conservadores de Hollywood. O filme utiliza as convenções do amor
romântico para confirmai Maverick como o piotótipo do masculino bem-
comportamento e modelos que servem aos'intcresses da manutenção c da
reiteração do status quo. Mostrar os pilo~os com mullieres bonitas ajuda a I sucedido. Com sutileza, também se reinsCreve a dominação ·das mulheres
pelos homens e as convenções do romance em que domina o lado mascu-
lino, ll}jcialmentc, ~Iaverick se vê subor~inado -a Charlic:_ela é sua professo-
dotar de energia erótica as imagens das furças armadas e leva a mulheres-.
pectador.t tambêm a eq,dparar çxcitação sexual com militares e SC\IS uni-
formes, o que contribui para dar ao candidato a guerrei.rÔ de verdade o prê-
I ra, Ph.b. em astrofí.s;ica, emblema da nova mulher-au,ton~de a ameaçar o
poder e a dominação masculina. À me~da. que o r~lacionam~to dos dois
mio sexual que funciona como parte do estímulo para a atividade militar e
o heroísmo. Além disso, as muU1eres ,são coisillq.das como mercadoria se-
xual, avaliadas segundo a boa aparência e a prontidão para servir e gratifi-
[ evolui, é ela que dá início à ligação romanuc~ dcpots dos preambulos ~.~I e:
No mOmento das abordagens para o envolvunento sexual, ela afirma. Vat
ser complicado". No fim do filme, p;)rém, Charlie se subordina a Maveri~­
car os homens.
Para as mulher<;'s, a mensagem da cena do bar é que os militares são
If Quando ele volta para a escola Top Gun, como herói e agora i~strutor, o pu·
blico vê Charlie brindando Maverick com um olhar de adoraçao; os olha:es
I
sexualmente excitantes, o que as leva a admirar home;ns que usem tinifor- dos dois se encontram, e dessa vez é Maverick que diz:~Vai ser complica-
mes. Para os homens, a mensagem é:"se' você ingressar nas furças armadas, r' do" fitmando-sc como iniciador e senhor. da rçlação. Esse roteiro não só
'

usar uniforme e ostentar marcas de alta hierarquia e honra, wi ter cartaz tan~a mão do tradicional tropa hollywoodiano do_ ftnal feliz para ~lo~iliJ:ar
com as mulheres";em suma:"milico ganha mullier". Ao entrar no bar,Ma- 0 prazer do público com o triunfo total de Mavenck, como ta'?bem mves-
verick logo repara numa ~uUter atraente e se lança à caça: canta. fáz palha- te de prazer a dominação da mulher forte por ele. _
· o filnle também apresenta imagens pO$itivas da familia, da relaçao
pai-filho c da continuidade das gerações -_temas familiares conservadores
68 Sobre o conceito da "tecnoguerra", \'tL" a descríção feita por Gibson (1986) sobre os
numa época que sucedeu à forte contestaçao dess_es valores, nos anos 1960
sistemas htgb-tech de armamento bélico usado no Vlemií; utiH.zamoo esse conceito no
.._,lpitulo 5. e 1970. Maverick é filho de Duke Mitchell, piloto de caça que ma:rrera em

108

--~--~--~
circunstâncias misteriosas. Numa cena importantíssima, Maverick visita Vi-
'
Estamos çientes Q.c que essa Interpretação dos efeitos manipuladores
per (1bm Skerritt), e este llie fala do heroísmo de seu pai, di7..endo que o - de uma máquina ideológica como o filme _Top Gun cont~a a ênfas_e ~ue
passado militar dele havia sido maculadO porg:ue, com Viper e outros, pás- se dá atualmente ao papel atiVo de um publico a constnur seus propnos
sara aléln dos limites na perseguição ao inimigo (provavelmente no Laos significados (de contestação) a partir de textoS cultural_:. M~ alguns _desse_s
ou no Camboja), infringindo assim as regras. Maverick fala de sua :família· a fi!mCs de grande sucesso de público, como Top Gun, sao ma~uinas td~lo­
Viper - que ê apresentado corrio um bom pai de família -,e este acaba por_ , gicas minu.~Cjosamente construídas para celebrar e reproduzu- as pos1çoes
assumir o papel de segundo pai de Maverick. ~ e atitude~ políticas hegemônica$. O filme Top Gun ip,~uz o.s espectad~res,
A;; imagens do parceiro de MaveriCk, Goose, também reforçam a ideo- a identificar-se ou simpatizar com sua políti~ig.;. ~-f!lbora..muttas pessoas re.
logia da família. Numa cena filmada num bar, pouco antes da morte de sistam a tais posições e não compartilhem de-S(i'a-iidcologia, é preciso resis-
Goose, este, com a mulher e os filhOs, se diverte ao lado de MaverJck_ e tir de modo ativo ao seu texto. Evidentemente, os espectadores podem pro-
Charlie. Goose toCa pio1no e canta ~Great ~alls o f Fire", no que é acompa- duzir qualquer quantidade de leituras ~aberrantes" ?u "cont~sta_doras", ~as
nhado com animação por tOdo o grupo. q fato de cantal'em uma canção de também dt>VÇmos distinguir entre textos que conVIdam· m1 mcdam a lettu~
rock popular e o onipresente rock da tril.ha sonora tamb'em dotam as ras de .~~~-stação c aqueles que resistem a elas, e deve~os ~co~e~cr
personagens de uma energia positiva, pois a sua relação com o rock as as- que .Ílg~}\S'Uiines conseguem atrair o público para seu proJeto IdeologJc?
soda aos signos culturais de prazer e sociabilidade, aspectos que se ftm- e 0~ 1 tros não. Além disso, os estudos cultumis deveriam promover um ensi-
dem com imagens de família nessa cena. Cena que termina quando a mu- no critico da mídia para ajudar o público a resistir à manipulação ideológ~­
-lher de Goose lhe diz:"Goose, seu garanh.'io, leve-me para a cama ou per- ' ca, mas para'~so é preciso entender,as operações ideológicas e seus efet·
ca-me pam sempre". Pot1anto, para os "ases indomáveis", casamento, diver-
são e intensa se.."Cualidade são coisas que vêm acondicionadas num pacote
prático, e esse pacote é matrimônio e família: destino final de Maverick e
I'
'
tos em filmes como Rambo e Top Gun.
Assim ~omo Rambo, Top Gun foi um dos ffl4tes mais populares de
seu tempo, com uma arrecadação bruta superior a US$130 milhões no
Charlie, pois pouco depois Charlie repete a frase "leve-me para a cama ou '
-,; fim de I986,o que lhe deu posição de liderança no ano (Ttme, 2~ de r:_o-
perca-me para· sçmpre" ao beijar 1\--Lwerick numa noite enluarada ao lad6 da ' vcmbro de 1986).Assim como R.ambo, ·oferecia modelos de identlficaçao
baía; a seguir, a tela escurece .. e ajudàva a difundir o conservadorismo e o militarismo. Se'gl}.nd~ a: Time,,
Como em todas as boas funtasias, o herói passa por uma prova dura, c "A glorificação da Marinha por ele pintada incitou os donos de ctnema de
isso acontece quando Maverick c Goosc estão num exercíciO de 'treinamen- cidades como Los Angelcs e Detroit a pedir à Marinha que montasse um
to, e o avião entra em parafusO, ficando fora de controle; eles são obrigados estaDJJe de re~rutamento do lado de fora das casas de espetáculos onde
a acionar o- sistema de ejeção, e Goose morre. Maverick se sente culpado e estiv~sse sendo exibido o filme Top Gun, para alistam~nto d~S jovens ine-
desiste da escola Thp GWI, mas Viper, figtu'a do pai, aconselha-o a voltar e di- briados pela fantasia hollywoodiana" (24 de novembro de 1986). Mais tar-
plomar-se. Na çerimônia de formatura, há um chamado, e os candidatos de de, divulgou-se que o filme levai-a muitos universitári~s a s.o~har com a
elite devem ir imediatamente para uma missão critica: Iceman, se~ parceiro vida militar e contribuíra para um grande aumento de mscnçoes em aca-
Merlin e Maverick são selecionados. Num corte, a cena passa para o "Oceano demias militares .. Muitos estudantes citaram o filme nos formulários de
Íildico, 24 horas depois", onde tml navio está perdido e precisa ser resgata- inscrição, c _um capitão de West Point concordava: "Não faz mal nenhum
do; há MIGs por todos os lados, e teme-se que o inimigo encontre o· navio contar com filmes marav--ilhosos como Top Gun ( ...) Acho que todo o
primeiro. Iceman e um parceiro, com Maverick e o antigo parceiro de Ice- mundo gostou dos resultados" (Tbe Washington Post, _19 de janeiro .~e
mau, Merlin, saem em patrulha e deparam com os MIGs inimi&>Os. Maverick 1987). Um almhv,mte da reserva observou que Tom CrUJse e.ToP_ G.un. fi-
salva Iceman e consegue derrubar lllila série de MIGs, tomandó-se. assim o zeram muito" pela Academia NavaL "Ainda estão na fila de possJveJS pilo-
herói de seu grupo. Essas cenas finais de batalha celebram o papel vital das tos da Marinha" (The Washington Post, 24 de junho de 1987). '?filme
forças armadas ç do heroísmo militar: o Top Gun mostra que só ele tem ~a continuou popular, e Tom Cruise foi indicado por estudante~ do mvel ço-
chance" e que em todo e qualquer "negócio arriscado" com o iniinigo é ele legial ·comq a pessoa que. mais admiravam, segundo pesqmsa do 1-Vo~ld
que triunfa, destruindo MIG após l\UG para delírio da platéia (este autor Almanac and Book of Facts ( United Press Internattonal, 4_ d: fevereu-~
ainda se lembra com horror da tarde de sábado em que assistiu ao filnle no de 1988).Abilheteria final do filme foi superior a US$350 mdhoes, ele f01
meio de uma platéia totalmente arrebatada, que urrava a cada assassinato). lançado em vídeo, para alugue·!· e venda, e passou a fazer parte do foi do-

111
'
e· tÚuitos outros filmes políticos da época. O "inimigo" não tem rosto, e,
re aJ!lericano, visto que muitos píJotos e conientaristas da Guerra do-·Go1-
fo se referiam ao filme para descrever os feitos da aviação militar :;tmeri- embora seja perigoso e deva ser dcstmído, é indeterminado e inominado.
cana na guerra contra o Iraque. · . Na verdade, só uma cena importante traz à tona questões radais_em todo
lhl é a "genialidade" de 7bp Gun que ele· expõe uma narrativa de re- 0 filme; é uma marca do 1-acísmo sutil praticado por políticos e cineastas
lativa consistência, quase sem momentos socialincnte críticos, significados coriservadores quando não conseguem se sair com um racismo mais espa-
polissémicos, vozes discordantes ou Cdticas,etementos Pe-riféí:icos.O filme _lhafatoso."l::)epois da morte de Goose,Maverick,ohcecado_pelo sentimento
privilegia rigorosamente a posição de Maverick, com quem o público é de culpa, achã1mpossivcl voar com o habitual heroísmo, e quando seu
convidado a identificar-se, e afirina sem questionamento seus valores e ob- novo parceiro negro o repreende por desempenho inSul;iciente durante
jetivos. 10m Cmise, sem dúvida, infunde em-sua peÍ-sonagem o sOrriso dos· um vôo de exercício, Maverick agarra-o pelo colt.iü:ij}o e diz com razoável .
vitoriosos_ e ganha uma aura de encanto e sedução romântica na caça e na rudeza:-"Vou atirar quando esth---er P.t:onto. Entendeu?" Essa singular irrup-
conquista de sua instrutora de vôo, Charlie.As imagens que o apresentam ção de violência, única v~ em que Maverick perde a calma. tem a funç~o
jogando voleibol ou despiodo:.Se no vestiário ou no dormitório mostrn.m de devolver um_ negro altivo e ambicioso de{t1ais a seu devido lugar, pondo
um corpo rijo; escultural e atlético, precisamente a imagem dominante de à mostra,o riufj:il;) que os brancos sentem de que os negros lhes tomem os
virilidade e sedução masculinas. cargos oU ttbitám melhor desempenho.
Top Gun lança mão do conjunto de imagens culturais das últimas Ahtes disso, o piloto negro em uma figum silenciosa, freqüentemente
décadas para codificar seu herói com glória e positividade, trabalhando no enquadrad."l. à margem dos top guns. Figura sem rosto, retmtada como parte
sentido de descentrar e marginalizar todas as leituras contestadoras. Por da equipe militati;,é uma espécie de emblctila da integração das forças ar-
exemplo, Maverick veste jaqueta preta e dirige moto, imagem da rebeldia madas, que ofer;;;:cem iguais oportunidades a ?mncos e negros, dando a es-
dos anos 1950; seu nome retoma o nome de um herói popular da televisão, tes a possibilidade de progredir. Só ncs~a cenjl o negro ganha proeminên-
figura oposicionista e inconformada - mas não perigosa - da TV dos anos cia narrativa e, nela, é codificado negativamente. Na verdade, não há rqzão
1950 (os caubóis jogadores Bart e Brett Maverick, ressuscitados num filme parn Mavedck se queL-xar- do parceiro negro - um branco teria feito o
de 1994). Nó entanto, com a figura de Maverick interpretada p~rTom Cmi- mesmo -,a não ser que a máquina ideo.lógica chamada Top Gun quisesse
se, esses símbolos de rebeldia se transformam em ícones 'da moda masculi- explorar velhas hostilidades em relação aos negros para levar, de modo gm-
na e (la virilidade.A trilha sonora toca: rocks das décadas de 1950 e 1960, tuito, 0 público a sentir piedade e solidariedade pelo herói temporariamen-
que as personagens cantam em momentos críticos do ftJme.Aqui também te claudicante.
os Símbolos de inconformismo e individualidade se tornam símbolos dC Ainda mais revelador é o fato de o piloto negro ser o {mico aluno da
identidade e coesão grupaL Na verdade, a "individualidade" de Maverick é escolaT.;j, Gun cujo nome nunca é mencionado nem realçado:seu codino-
totalmente coerente coni a coesão grupal da vida militar e chega a ser fim- me, "Sundown", mal se ve no capacete enquanto ele voa Com Mavcrit:k, e,
cional para os propósitos militares. de repente, o capacete nada tem escrito quando ocorre o confronto com
Portanto, Top Gun utiliza imagens da cultura dominante das décadas Maverick em terra, como se ele não tivesse identidade pessoal e fosse mera
passadas para apresentar uma síntese cultuial do presente como personifi- figura do negro altivo. Portanto, enquanto os codinomes dos pilotos bran-
cação de tudo o que havia de melhor no passado: todos os significados con- cos têm proeminência, o negro não tem identidade significativa. Essa omis-
testadores dos símbolos culturais poderosos são podados e servem para são (talvez inadvertida) mostm a posição inferior dos negros que conse-
consagrar o presente conservador como o mellior de todos os mundos guem integrar-se na estrutura do poder branco e a cumplicidade do cine-
possíveis. Por conseguinte, enquanto os ftlmes de Rohcrt Altman descons- ma popular de Hollywood na manutenção dos r~.egros em posição /suhal~er­
tro.em os gêneros hollywoodianos, as mitologias americanas e a.•:; ideologias na. De fato, 0 codinome "Sundown" conota ausencia de luz, que e equtp~­
dominantes, para produzirem um texto complexo que problcmatiza a nos-. rada à cor "preta", desvalorizada na i.conografia racista. Na verdade, Top
sa relação com as (armas culturais dominantes, Top Gun explora as ima- Gtm apresenta uma elite principalmente branca, sem a etnicidadc que ca-
gens, os símbolos e as formas do passado para privilegiar .as poSições ideo- racterizava o clássico cinema hollywoodiano de guerra ou muitos dos fil-
lógicas conservadoras do presente. • mes contemporâneos de guerrn (por exemp1o,At'l1nçarpara morrer [Tbe
P modo como Top Gun apresenta as questões raciais nem chega aos Boys in Company], Platoon e O destemido senhor da guerra [Heart-
pés do racismo virulento que infectava Rambo, Águia de a_ço (lrqn Eagle) break Ridge]).

112
À GUERHA DO .GOIY0 1
Assim, por ~cio da estruturação visual c ·narrativa, o reaWmismo dôs
arios 1980 é ideologicamente infundido com o sorriso vlto.rioso de 'tom
CruiSc,enquanto o heroísmo ffimtar é celebrado·cOmo a mane~ra de obter . Top Gun, porém, é apenas .um de' uma série de f~mes militares con-
aceitação e prestígio social. As aventuras militares;dos governos Reagan·e servadores da época (ver Kellner e Ryan 1988; Britton 1986).Juntos, esses
Bush precisam de cúmplices bem-dispostos e de filmes .como Top (/un mmcs -prCparavam o país para a Guerra do Golfo ao cclehrarem as virtudes
para ajudar no recrutamento e na produção de atitudes adequadas. A ser do armamelltD high-tech e do heroísmo militar, cr,iando um inimigo árabe
ciedade também precisa de jo\rens Competitivos para impulsionar a econo- para substituir o arquiinimigo ;;oviético c faz~ndo p:õRaganda Pa po_lítica
mia e levá-la a atingir novos cumes, e.o elogio da conlpeiição e da vitória, externa de Reagan e Bush. Portanto, assim corttq."'QS tilrriés hollywoodtanos
como valor supremo, feito pelo filme, ajuda na Propaganda de valores 'só- do fim dos anos 1970 preparavam o país para a 'i'i~gemonia conservadora
dais apropriados (ao capitalismo), ao mesmo tempo que perpetua o mito dos anos 1980 e início dos anos 1990, também os filmes da cra'Reagan e
do sOnho americano.Além disso, ofereCe moq:elos sexuais apropriados. Não Bush produziam atitUdes que dariam apoio à politka conservadora c mili·
é de surpreender que Charlie reapareça na escola Top Gun, para onde o tarista dos tcfmblica:.nos hegemônicos.
triunfante Maverick solicita ser designado depois dos feitos heróicos. Eles À@lllrde aço (lron Eagle) I (1985) e I! (1988) profeti~av~ a troca
estão claramente conjugados no fim, e assim a máquina narrativa do ftlnie do ihimigo coinunlsta pelo arquiinimigo árabe. Juntos, os dots filmes re-
satisfaz todos os desejos em matéria de desfecho: o herói obtém a glória, tratam o início da distensão nas relaçi)es com a União Soviética e a pro-
ganha a garota e atinge todos os seus objetivos. O tradiciOnal happy end duçã~ de um ,novo superinimigo, que acabou por ser encarnado por
· hollywoodiano serve, portanto, para validar os ·valores sociopólíticos domi-·- Saddam Hussc'i'n e o Iraque e foi misteriosamente profetizado em Águia
nantes, como sempre fez. Forma cinematográfica conservadora e valores de aço I e !/.Na época, esses dois filmes contribuíram para fomentar sen·
políticos conservadores marcham lado a lado n1010 à utopia americana que timentos antiarábicos por· apresentarem imagens negativas dos "terroris-
Cabia ao gênio politico de Reagan vendet· a um públiCo ideologicamente tas".e dos, regimes árabes. O primeiro Águia de aço re~ebeu ajl!da do g~·
alimentado pelas fantasias de Hollywood. Portanto, o discurso POlítico de ver~o de Israel, ·que form;ccu F-16s, Phantoms, pilotos c consul~ores mili-
:
;'·
Reagan e o cinema de Ho!lywood são visões complementares de umá fan- tares. Foi patrocinado por um texano rico que "nunca tinha i~vestido e~1
tasia ideológica muito específica. cineÍna" c queria "fazer ~lmes de ação, e não sobre cxploraçao de pctro-
Logo, o conservàdorismo de Top Gun é inteiriço e integral: o filme re- leo;que transmitissem sentimentos pró-americanos" ,_<Los Angeles T~1~zes,
produz com perfeição os discursos conservadores do período sobre vitória 31 ·de julho de 1985). O filme não teve sucesso de cntica, mas teve, ottr;ut
e competição individual, forças armadas, sexo c união heterossexUal, famí- bHhet'ihia, o que levou à realização de duas "continuações" que tambem
lia, patriotismo e raça. Assim, o filme número um do ano possibilita: a análi- promoviam a política antiárabe. Não é por acaso ~uc os filmes de ~olly­
se da ideologia P-ominante do período, ideologia que ele reproduz e refOr- wood seguem a trajetória da política externa amencana: fazer fil~e e algo
ça. Sendo apenas um de uma série de filmes popularCs conservadores, an- que exigC grandes investimentos de capital, e os· produtores da indústda-
tecipou o bombardeio da Líbia e a Guerra do.Golio, enquanto reproduzia cuitural acompanham de perto as tendências políticas e sociais. São espe-
as fantasias heróicas de sucesso militar expostas no escândalo Irã/Contras: cialmente sensíveis aos Ventos de mudança; por isso, quando a distensão
dcsfoiTa da realidade que pontuou as fantasias militares da_ Ca-,a Branca ·~as relações com a União Soviética apat;"ece como uma evoluçãO política
hollywoodiana. "Isso ainda vai dar um bom filme», disse Reagan com melan- linportante, Hol~ywood percebe e muda de foco (criando um_ proble~;t
colia a Oliver North, ao ser obrigado a destituHo quando da explosão do .(
de bilheteria para Rambo li/, de Sylvester_Stallonc, que escolhm os sovte·
escândalo Irã/Contras; a menos que Tom Ct•uise continue a migrar para a ticos como inimigos em seu épico afegão exatamente no momento .da dé-
esquerda (Nasddo em 4 de julho, Quéstlio de bom-a), talvez ele mesmo tente). No entanto, os filmes de aventura de Hollywood precisam ter um
venha a estrelar num Ollie North, 'Jbp Gun, possível Versão dncmatográfi- Inimigo um "Outro Estrangeiro" malvado, e tanto Hollywood quaQtO Rea-_
, ca de "Política Hollywood:o filme". · gan e B~sh se voltaram para os "vilões" árabes na diabolização política ne·
cessária às narratívas hollywoodianas e à política americana num momen-
to em que a U~ião Soviética começava a interessar-se por Big Macs, por-
nografia, crime e capitalismo.

115
O primeiro Águia de aço tem mais de fantasia para adokscentés do bombardeio de Israel à instalação nudear ira'quiana em 1981. De iato,.n~s
que de filme adulto de propaganda militar, como Ases indomáveis (Tof! crédjtos finais, lêem-se ··agradecimentos especiais" ao "Ministério da oefe~a
Gun), ou de exercício de masturbação ideológica conservadora à la Rarn- do -Estado de Israel", às Forças de Defesa Israelenses e à Forç-aAééea 'Israe-
bo. Começa com uma guerra aérea high-tech entre MIGs e caças america- l~~se. O tilmc é uma co-produÇão lsra.d-Canadá, e, se 1bp Gun pode ser Ie·
nos em que-um piloto americano é dermbado. Um país-árabe inonlinado gtttm~m,ente visto como uma propaganda militar americana, Águia de aço
afirma que os aviões americanos vio.laram seu espaço itéreo, lembrahdó o Il pode ser··visto como propaganda israelense.
combate entre cáças aéreos americanos e líbios quando a úbia .reivindica- A .tensão··dt'.tm.1tica é construída em torno dos conflitos entre os pilo-
Va. um espaço aéreo que os americanos afirmavam ir além do permitid~ tos de caça americanos e soviéticos, o modo corr!..o superrlin antigas hÜsti-
pelas leis internacionais. Mas nessa Versão do incidente, o governo ameri- lidades e _se unem para derrotar o inimigo comtJ.tÍJ::.c:funrasià"fealizada com
cano encobre a captura e o julgamento do piloto americano, deixando· qtie algt1m sucesso Petr Bush e sua equipe na guerra cont~· o Íraquc). O suces-
ele fique mofando numa prisãO át".J.be. · so do desfetho é retardado p~las maquinações de um general americano
O tÜho do piloto (Doug McMasters) é, por sua vez, aspírante a piloto par,móico que, aiJlda odiando os russos c desconfiando deles, faz de tudo
de caça aéreo e está profundan1ente decepcionado porque não foi admiti· para sabo?r- a '~ssão (inicialmente, ele tentara conseguir o malogro da
do na Academia da Força Aérea por ter sido reprovado num curso univer- missão prdc"\~fl.do todos os possíveis erros da equipe americana). Esse ge-
Sitário durante o período que passara nos sinmladores de vôo da própria ner-<~1 representa os obstáculos_ remanescentes à distensão, e sua derrota e
Força Aérea. Com seus amigos adolescentes e um piloto négro da resérva, humilhação representam a necessidade de um novo pensamento militar, de
Chappy Sindair (Lou Gossett, Jr.), arma uma conspiração para resgatar o novos inimigos e t;{ç novas estratégias após a Guerra Fria.
pai. Eles aproveitam os contatos que têffi na base aérea para conseguir in- De modo nadà'.surpreendente, a equipe Águia de aço triunfa destruin-
formações sobre a prisão onde o pai está preso, roubam dois aviões da Foi-- '' do totalmente a iti'stalação nuclear árabe Ocia-se: do Ira.que) c po~do fun.à
çaAérea, e o fiU10 do piloto prisioneiro e Chappy partem para o resgate do .ameaça de um ataque nuclear de surpresa ou de uma chantagem nuclear.
pai. Num roteiro incrivelmente sentimentalóide e implausível, eles fazem Enquanto os americanos brancos e .negros e os russos aprendem a· traba-
exatamente isso, pondo fora de ação metade do exército árabe. lha: juntos e a cooperar uns com os outros, voltam suas hostilidades para
Águia de aço é um filme extremamente racista: retrata os árabes como os arabes vilões que são aniquilados em meio às baixas que HoUywoodcos-
sádicos sub-humanos e vilões. O líder árabe, bem parecido com Saddam tumava reservar para os comunas. Em A guia de aço I!, porém. os inimigos
Husscin,é perverso e ditato~aL Os árabes torturam o piloto americano cap- I árabes n:ão têm voz e, na maioria das vezes, não têm ·rosto, o que os desu-
tumdo e o condenam à morte arbitrariamente, sem nenhum processo. Na maniza, convertendo-os em algarismos que ameaçam mas estão abaixo dà
cena .C:mal,de duelo, o próprio ÍÍder árabe" confisca um avião para travar com- condição ffumaoa.
bate com os americanos depois que estes !ibertar.tm o piloto capturado, e o Mais uma vez Hollywood segue a trajetória da política externa ameri-
público é induzido a aplaudir quando o jovem adoleScente explode o avião cana, prevendo misteriosamente a guerra contra o Iraque. Na verd;de,
do lider árabe. Essa cena reproduz um tropa perturbador, dominante nos ftl- durante a viagem que fez no dia de Ação de Graças de 1990 às tropas ame·
mes hollywoodianos de aventura, desde Guerra nas estrelas até hoje, em ricanas baseadas na ,Arábia Saudita, como justificativa para a ação militar
que o pmzer do público é mobilizado por imagens 'de destruição totaL Esse americana Bush expressou sua preocupação diante da possibilidade de o
público está •sendo condicionado a ansiar pela total oblitcr;tção dos países fraque ter um potencial nuclear que poderia ser posto em ação dentro de
inimigos como o Iraque, e tais cenas, Portanto, produzem prazer co~n a des- um ano. Esse refrão foi repetido pOr funcionários do primeiro escalão nos
tmição em massa - prazer que seri.'l mobilizado pelos vídeos comput;ldori- dois dias seguintes, mas foi esquecido quando, todo o pessoal hem-informa-
iados do bombru:deio high-tech na querra do Golfo. do disse que o Iraque demoraria pelo menos cinco a dez anos para conse-
Águía de aço li (1988) é mais sério c mais interessante do pontO de ! guir uma instalação nuclear confiável (ver Kcllncr, 1992b Capítulo 2).
vista político. Põe em -cena ;ÚÍistensão com a União Soviética e focaliza O
1 Mais um filme antiárabe dit época Reagan/Bush é Comando Delta
inimigo árabe. Enquanto o vilão de Águúr.de aço I era parecido· cO~
Saddam Hussein, na versão II o inimigo árabe é obviamente o Iraque. Na tra-
ma, há um projeto conjunto Estados UnidoS-União Soviética para destrui!
uma instalação nuclear secreta dos árabes, reproduzindo ficcionalmente o
l
l
(The Delta Force, 1986), que usa a forma do fúme~atástrofe para difamar
os árabes num relato ficcional do seqüestro de um jato por palestinos: os
"tcrroristas"são absolutamente abjetos, c o fitme lança mão do exagero ca-
ricatura! para esboçar o retrato dos judeus, israelenses e americanos «bon--
I
116 117
"
zinhos", ameaçados pelos palcstinos:umalvados~. Pelotão da vttiiJança de aço, Comando Delta e Pelotilo da vingança retratam longas e deÍalha-·
(Deatb Bejore l)ishonor, 1987) retrata o terrorismo árabe· contra os israe- ~ cenas de tortura, para apre·sentar os irabcs como criminosos selvagens
lenses e depois contra a embaixada americana c os Marines amerit;::an~s · .e dispor o público contra tais vilões.'"'' '
num pais fictício de ]emel, ligando assim alnericanos e isra~lenses cómo Todos esses filmes desistorizam .os conflitos históricos reais e apresen-
aliados contra o terrorismo árabe. Steal ~he SkY (1988) também pinta um t!Ull as lutas entre os árabes' e o 9ddente como uma batalha entre civiliza-
retrato positivo de Israel, idealizando uma teÍltativa israelense de rOubar Ção c barbárie num espaço indeterminado c mítico. Prince (1993) docU-
um MIG soviético do Iraque em meados dos anos 1960.
Fantasia ideologicamente bizarra é The Retàliator (1986\ também II
menta o molio como os suspc11scs antiárabes "evitam situar o enredo an
termos geográficos claros" (ibid. 245). Essa ind~termin~ão tem a função de
estigmatizar os árabes de modo geral e criar ePi5.é"~Uos de· íniântia que pos-
conhecido como Programmed to Kill· retrata árabes perversos que mataln i
turista; e depois seqüestram e torturanHov~ns americanos. Uma simpa~i­ I, sam ser mobilizados em algumas intervenções pOírticas contra, digdmos, o
} .
zante arabe (Sandra Berdhahl) é capturada pelas forças americanas. e, trans- Iraque; OIrã, a Síria, a l.J.ôia ou seja lá o que for. Como 'conclui Prince,
formada em robô, é enviada de volta para assassi~ar o líder terrorista ·ára-
be, seu antigo amante. Cumpre a missão, mas depois s~ volta contra as as vagtie4as das especificações geográficas e políticas, somada aos conflitos
furças americanas, destmindo v.í.rios vilões americanos numa eStranha mis-
tura de narrativa de órgão de inteligência, antiámbe e antiamericana. Esse
roteiro ideologicamente cohtraditório expressa temures populistas tanto
I n~cl?'nàti:e culturais dramatizados nesses fllmes,funciona de tal modo que os
·;traduzem em tcrm_oS fortemente ideológicos, visto qliC o Inimigo não ocupa
nenhum território espccificávcl nas coordenadas de um mapa, mas é um Ou·
~m relação ao Outro estrangeiro malvado quanto ao mal perpetuado pelo 1 tro indisti~?· nebutoso e ameaçador, uma projeção das ansiedades políticas
próprio governo num imaginário basicamente paranóico qí.Je vê o mal em c culturais iecortadas de sua base histórica e imputadas a regiões do mundo
toda parte.Tambép1·eX'pressa medo de mulheres qUe escapam ao controle, :.lI <
em termos genéricos, superficiais e essencialmente mitológicos.
na imagem do robô assassino, que mata de modó sistemático e· não seleti-
vo terroristas e agentes do governo americano.r.~ II f:ssa._o;; representações de árabes na cinematografia hoUywoodiana con-
Con1ando ilnbativel (Navy Seçils, 1990) eXalta as "forças high-tech de
assalto que, segUndo relato, desempenharam papel fundamental na Gtierra '! temRorânea são cxtl'emamente racistas e têm uma semelhança pel'turbado- !J
do Golfo (ver Newswe,ek usecretW:irriors", Í 7 de junho de 1991). Mais"uma m com o modo como os judeus emm vistos em filmes fascistas. Em vários
vez, os árab:cs são desumanizados na forma de terroristas fanáticos que poS:-. suspenses políticos dos anos 1970, os árabes são retratados como "terroris-
suem mísseis Stinger mortíferos e ameaçam civis in()centes.A equipe "SEAL r tas" fanáticos que assassinam friamente vítimas inocentes (Domingo negro
(cujo nome vem das operações que executam no mar [Sea], no ar [Air]" e
em ·terra [Land]) personifica todas as virtudes da comgem e dá eficiência,
I [Black""Sunday], Falc15.es da hotte [Nighthawks]) e não têJU sentimentos
hwnanos. Em ftlmes dos anos 1970 e 1980, sobre intrigas financeiras, afir-
aniquilando literalmente centenas de árabes, numa previsão do massacre ma-se ou alude-se que eles são capitalistas gananciosos (Amor e finanças
dos imquianos pelas forças armadas high-tecb na Guerra do Golfo. Assinl [Rollover], _Rede de intrigas {Network], A j6rrnula [The Formula], O
como Rambo, Comando imbativel e outros filmes antiár.abes como Aguia I homem com a ~ente morta [Wrong is Right], etc.). Portanto, os árabes
estão sendo os novos estereótipos do vilão no cinema de Hollywood e nos
anos 1980 emm o principal alvo do maniqueísmo hollywoodiano (ver Sha-
69 Alguns filmes de Sr.,ven Seaga! também tronsfommm os funcionários do governo heen, 1.984).
mnerkano em vilôes, mo~<rando-()s como pessoas dúplices e criminosas, que trnnsgri·
dem reg1damcmos e se envolvem em atividades crirtli.nOtiaS. Em Abow tbe Law (Nteo,
Tais estereótipos obviamente desumanizam os árabes, apreseritando-
üâma aa Jet, 1988), o~ funcionários do governo americano são mostrados corno pcs· os como violentos e infumes. Em geral, os filmes antiárabcs dos últimos
soas implicadas no tráfico 9~ drogas e no terrorismo, enquanto Um:ler Stege {!tfol"ça
em alerta, 1992) mostra militares e agentes secretos como figuras d.e renegados no es-
I
fOrço de apoderar-se de 11m submarino nuclear americano, enquanto os próprios fim· 70 Not Wlthout My Daughter (Nunca sem mtnhafllha, 1990) mostra os iranianos e a
donários do governo tiàO mostrados corno pessoas ·dúplices e arnor:lis.Tais filmes t=· revolução iraniana em,termos )Otalmente negativos, apresentando a história de uma
l"
e
codificam a critica radical à política externa americana e ao governo ameri.::ano si:r· . americana casada com um iranimw. O marido se tmnsfonna num monstro dunnfe urna
vem como comrapart!da dos filmes' conservadores.Ambos, porém, tra.balh:un coci o
mesmo !llaniqueismo caricaturo!. I viagem de volta ao lril em 1984, e a mulher empreende a difícil tarefa de escapar do
marido e fugir do pais com a fllh;t. · '
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anos combinam ideologias racistas e. chauvinistas que. apresentam os ára- mar medidas decisivas para resgatar seu pai. Pois bem, o govet·no nada faz,
bes como a_ e~1carnação do mal, e os americanos como a personificação do e assim os heróis adolescentes precisam encarregar:se da missão de resgã•
bem. Essa Vlsao repete o que Edward Said (1978) descrevia como "orienta- te (o Reagan de verdade realiz~ia a fantasia de atacar os inimigos árabes ao
lismo": esta~elece as virtudes do Ocidente por meio da delinea:ção das di- bombardear a líbia em 1986). PortantQ, o filme transmite sem querer a
ferenças ~ntre_ o Ocid_ente "civilizado" e o Oriente "selvagem", que é pinta- mensagem de que o atual governo consefvadÔr é incompetente c despreo.
do como JttacJonal, barbaro, subdesenvolvido e inferior ao Ocidente racio- cupádô (verdade aproximada nesse caso).Além dissq, essa fantasia direitis-
nal, refinado e humano. Em Comando imbatível (Navy Seals), 0 filme co· ta está sempre retratando as forças annadas como um punhado de broncos.
meça com c~rtes de c~a que alternam um ataque terrorista a um helicóp- constantemente manipulados por adolescentes çapaze~ de roubar informa-
tero da Marmha amencana e uma cerimônia em que um participante ne- çõ'es cruciais e dois caças aéreos para cumprfr:;§_WJ- mi&'Go. ·,
gro do gr~po se c_~a_:•\s imagens criam um contraSte entre a representação O roteiro de Aguia de aço é tão hiperbóliÜÍ e ridiculo que revela a
dos a~lencanos ctvihzados t: personalizados e oS. árabes selvagens e desper- sua natureza de cabal disparate, fantasia totalmente implausível em que os
sonalizados. O SEAL negro é morto, e um longo funeral serve para ressaltar adolesq::ntes podem ser heróis, identificar-se com personagens que execu-
o_ valor da .vida no, ~ddente, em contraste com o evidente desdém pela tam ações h~róicas de que os adultos fátuos são incapazes. Essa estrutura_ :I
vtda no Onente Medto. Essas cenas também transferem 0 racismo dos ne~ fantasis~:~JSecífica, contudo, limita a identificação aos adolescentes e
gro~ ~ara os _árabes, apresentando· os negros de modo positivo, em contra- talvêz a homens negros suficientemente tolos para identificar-se com
posJçao aos acabes pervertidos. · Cappy. Nenhum adulto que se respeite, porém, poderia identificar-se com
Portanto, os árabes~ era~ o vilão preferido dos ftlmes de àventura de essa fanta~ia ou aceitar os termOs de sua narrativa como plausíveis._,-{guia
-~:,.
.Hollywood e dos governos conservadores americanos. O Orieritalismo de de aço, portanto, apresenta-se como uma fantasia adolescente extrema-
Holtrt:ood aj_udava a produzir sobre os árabes in:mgens negativas que Bush mente limitaâa, de uso ideológico limitado.
poderta mobilizar na'diabolização dos iraquianos na Gúerra do Golfo. Nes- Outros fdmes antiárabes também deconstroem sua própria oposição
ses mesmos cenários de filmes de aventura, as mulheres tendiam a serdes- I entre o "selvagem" Oriente Médio e o ~civilizado" Ocidente. Enquanto o
t
centradas, e uma erótica pornográfica da violência substituía o erotismo se-
xual, mais ou menós como os mat.-1dores frios da Guerra do Golfo assistiam
i
!
Ociden~c supostamente valoriza a vida e o Oriente Médio a desvaloriza, oS
filmes se ~omprazem no morticínio de um sem-número dt;: át-abes. Supõe-
a filmes pornográficos antes de saírem para o "tiio ao alvo» Contra os 1fa: se que tal.morticínio deva ser aplaudido como a eliminação do mal· irremis-
qllianos literalmente indefesos, despejando suas bombás sobre alvos milita- sível, mas a brutalidade e o caráter repetitivo dos massacres high-tech indi-
res e civis em es~asmos de violéncia ejaculatória animados pelos instantâ· cam qu_e os verdadeiros selvagens são os ocidentais que fazem f~es tão
neos d~s fotos de.r-Jios infravermelhos que inostravam o fogo ahtiaéréo a simpfrStas c. bárbaros, que prep-aram o caminho para os massacres high--
exp!odu· em esplendor orgástico. Essa erótica da violência, visível diaria- tech da vida real, corn:o a guerra americana genocida contra o Iraque.
mente na Guerra do Golfo, fui prevista nos videOgaf!lCS e nos ftlmes de Numa leitura diagnóstica, pode-se ver que até mesmo os filmes direitis-
gu~rra dos anos anteriores e ajudou a prod':lzir uma cultura militar-porno- tas expõem suas contradições e solapam as ideologias que afirmam. Pode-se
gráfica capaz de gerar aventuras cinematográficas e politicas ainda mais· fazer uma leitura desconstrutiva da fantasia direitista Amanhecer sangrento
monstruosas nos anos vindouros. · , (Red DaWJi), que apresenta uma invasão dos Estados Unidos dirigida por so-
· . _No ~n~anto, o exame critico_ desses mines belicistas antiárabes expõe \:iéticos em que se vê o ridícUlo dos medos e das obsessões direitistas (vcr-
sua~ stmpltctdade e puerilidade.Aguia de aÇo (lron Eagle), por exempl~, Kcllner 1991).Tais fanL"1Sia.<; ideológicas podem ter um grau de complexida-
t:sta constantemente desconstruindo sua ideologia conservadora. Quandà·- de ou de conflitos internos suficiente para produzir leituras contestadoras,
o ~olescente fica ~abcndo que seu paj é prisioneiro no Oriente Médio, 0 ao passo que filmes mais moderoistás como Ni1shvilk, Blade Runnet; Faça
.~m~g~ negro, ta!TJbem adolescente, diz-lhe que não se preocuPe, porque '0 a coisa certa [[)o tbe Right Thtng) ou Zelig podeíÍI exigir leituras pollvalcn-
Presidente Peanut" já saiü, e o novo Presidente/'Ronald Raygun" ,·"vai to- tes para que se faça. justiça à sua compiexklade.
Um filme como Ases indomáveis (Top Gun), ao contrário, é uma má-
quina ideológica que mobiliza os desejos para certas posturas e utiliza a
• "Presi<kut_ Pl"anut". literalmente Ptesidl"nté Aml"ndolm. tefcre.se a Jimmy Cartcr, que
era f.tZI"ndeJro d"" amendoim na Georgia, "President Raygun" faz um trocadilho com 0 riarrativa Para privilegiar algumas situações (sucesso, vitória, romance),
nome Reagan, ern que my = raio I" gun =arma de fogo. (N.t.) enquarito apresenta negativaÍnente outras (desistência, perda, não perten-

120 121
ccr a uma equipe, etc.).A narr,ttiva tenta levar o espectador a idCntificar·se
2om certas personagens e depois opõe obstáculos no caminho pàra oS ob·
jetivos que o público é lcvâdo a desejar que ~las atinjam (pOL' exeniplo, ga-
3 Por um estudo cultural, multi- "

Ohar a garota, tornar-se top gun). Quando a narrativa permite qUe esses de-
-sejas sejam· satisfeitos, ao criar o par romãntico e o heroísmo militar do fifll, ·
cultural e multiperspectívico
o público é levado a sentir essas vitórias como coisas boas e ·a idcntifiéar-
se com os valores e q comportamento celebrados.
No entanto, é preciso fazer algumas t•estrlções. O público pode resis-
tir à tentativa de manipulação, e o texto pode não atingir suas·· finalidades
ideológicas. Um- filme conlo Ases indomáveis (Top Gun.) é bem-suCedido,
como demonstram seu sucesso de bilheteria. e a acolhida positiva do públi-
co.Aiguns filmes podem ser mais conflituosos e contraditóriQ:S do que uma
-- ,,
máquina ideológica bem-sucedida como Ases indomáveis (Top Gun)_ -Na
verdade, muitos filmes de Hollywood não são "'conservad(,)res" nem "libe- \ ··f{~~--
rais" porque querem enveredar pelos dois caminhos, obter o público maior Ós produtos da cuftura da mídia, portanto, não são entretenimento
possível não ofendendo ninguém. Certos textos predominanteme~te con- inocente, mas têm cunho perfeitamente ideológico e vinc,ulam-se ~ retÓri-
servadores podem conter características liberais ou minar desconstrutiva- ca, a lutas, a programas e a ações políticas. Em vista de seu significado po-
. '
mente seu próprio conservadorismo, e alguns filmes liberais dos anos 1970 I lítico c .de seu~. efeitos políticos, é importante aprender a interpretar a cul-
reproduziam com freqüência discursos conservadores (ver estudos de fil.
mes de conspiração empresarial e polÍtica, bem como os filmes de ]ane
Fonda em Keliner e Ryan, 1988). De qualquer modo, as produções ~ulturais
Il tura da mídia pOliticamente a ftm de descodificar suas mensagens e eteitos
itleológicos. Como argumentamos até agora, interpretar politicamente a
Cultura da mídia exige qtJe' se amplie a crítica ideológica para abranger a in- .
da mídia devem ser lidas em contextOs sociais especificas para que se de- I tersecção de sexo, sexualidade, raça e classe, e ver que a ideologia é apre- ].·'
cifrem ~eus significados e mensagerÍs e se avaliem seus efeitos. Ampliare- sentada na forma de ímagens, figuras, códigos genéricos, mitos e aparato
mos essa noção de estudo cultural diagnóstico e contextual no próximo técnico de cinema, televisão, música e outros meios, bem como por inter-
capítulo, no qual também elucidaremos e desenvolveremos melhor algu- médio de idéias ou posições teóricas.
mas das categorias teóricas aqui apresentadas, bem como nosSa concepÇão No entanto, os textos culturais não são intrinsecamente "conservado-
de estudo cultural. · res» ou •"liberais». Ao contrário, muitos textos tentam enveredar por '
ambas
as vias para cativar o maior público possível, enquanto outfos difundem po-
sições ideológicas específicas que muitas vezes são esmaecidas por outros
aspectos do texto. Os textos da cultura da mídia incorporam vários discur-
sos, posições ideológicas, estratégias narrativas, construção de imagens e
· efeitos (por exemplo, cinematográficos, televisivos, musicais) que raramen-
te se integram numa posição ideológica pura e coerente. Tentam oferecer
algo a todos, atrair o m'aior público possível e, por isso, muitas vezes incor*
param um amplo espectro de posições ideológicas. Além disso. como vi·
mos, certos textos dé.ssa 'cultura propõem pontos de vista ideológicos e$-
pecíficos que podemos verificar estabelecendo uma relação deles com o~
discursoS e debates políticos de sua época, com outras produções culturais
referentes a temas semelhantes e com motivos ideológicos que, presentes
na cultura, estejam em ação em determinado texto.
Neste capítulo. exporemos nosso conceito de estudo cultural, a
necessidade de fazer estudos culturais .ConteXtuais e a noção de crítica

122 123
· diagnóstica. Em primeiro Iugar,.exporemos nossa concepção de m.ulticulÚt- donalismo,'encarando os conceitos ~normas como convenções s~clais
raliSmo cljtico como base para os estudos culturais, e, a seguir, trataremos adotadas no intuito de ~tender a finalidades específicas. - -
de no~sa concepção sobre c!studo cUltural multiperspectívico. Depois, ~~ O estudo cultural critico adota normas e valores com os quais criticá
poremos nossa concepção sobre estudo cultural contextual, indicando pór textos, produções e condições que promovam opressão e dominação ..Valo-
que é importante utilizar uma perspectiva dupla que evidencie momentos riza positivamente fenônlenüs que promovam a liberd.'lde humana, a demo-
ideológicos e utópicos da cultura da núdia. Thmbéffi indicaremos o modo áacia, á individualidade c outros valores que, por ele adoÍ:ados, são defen-
como os conceitos dcsconstrutivistâs c pós-estruturalistas podeln ser utili- didos e valol'i.zados em estudos e situações concretas. No entanto, o estudo
zados nos estudos culturais~ expondo nossa concepção sobre critica diag- crítico da cultura da mídia também pietende ..-eiacionât:suas teorias com a
nóstica, que ilustramos com uma interpretação do ftl.me Platoon, de O liver prática,_ d~sen\i'olver, uma política de contesta~-~qüe \'iise a imprinlit ru·
Stone, 1986. · mos progressistas à cultura e à socieda4e conteinporâneas contribuindo
para desenvolver u~a contra-hcgcmoÍlia 'à hegemonia conservadora dos úl-
timos anos. Uma perspectiva crítica vê a Cultura. como. algo inerentemente)
POR UM MUJ:Í'lCCI.TUHAUSMO CRÍTICO politic? e, dn ·~l.Uitos casos, como algo <iue fomenta determinadas posições
políticàs··~Mi:triciona como força auxiliar de dominação ou rcsist?ncia. Tal

Nosso objetivo é desenvolver um estudo cultural critico que se apro- persf)ectiva vê a cultura e a sociedade existentes como um terreno.dc dis-
funde em formas de ·opressão e dominação, articulando perspectivas nor- putas e opta ~or aliar-se às formas de resistência e contra-hegemonia em
. p1ativas a partir das quais essas formas possam ser criticadas. P..iira desenvol- opoSição às fQSfas de dominação. Baseando sua política nas lutas e nas
forç~s sociais eXistentes, põe a teoria social e os estudos culturais a servi-
ver uma perspectiva critica é preciso ter llm ponto de Vista que articule a
constituição social dos conceitos de sexo,classe raça etnia e sexualidade ço .da c.rítica sÓciocultural e da transformação política.
além dos modos como as represehtações desses fenô~enos produzem u~ Ademais, o éstudo crítico da cultura e da sociedade deve estar sempre
processO de identificação nas sociedades contemporâneas e. como ,as exaptinando seus próprios métodos, posições, _pressupostos e Interven-
representações alternativas produzem' processos riovos e difere"n.teS i:le ções, questionando-os, reyisando-os e desenvolvendo-os constantemente.
identificação. A mani.ltenção de uma perspectiva crítica também exige Desse modo, estará sempre aberto, será flexível, não dogmático nem rígi-
que se interpretem a cultura e a sociedade em termos de relações de do. Reçonhecendo qu_e a sociedade e a cultura contemporâneas
. . poder, dominação e resistência, articulando as várias formas de opressão constituem um terreno de lutas, as teorias criticas enveredam por teorias
em dada sociedade por meio de perspectivas multicultura.is.Ademàis, para contestadoras e não têm medo de adotar m~terial oriundo destas, de rejei-
se fazer uma teoria crítica da sociedade e um estudo critico da· cultura da tar asp'~ctOS problemáticOS de Suas prÓprias teorias, OU de questionar· sel;S
niídia também é preciso desenvolver posturas normativas a partir das quais próprios pressupostos ou valores caso se mostrem questionáveis.
seja possível abordar criticamente textos culturais. Para isso, é necessário Tanto a Escola de Frankfurt quanto o grupo de Birmingham estavam
explicitar certos valores e validá-los em contextos concretos. ·· sempre revendo suas posições em vista de novas condições Wstóricas e de.
As perspectivas críticas em relação à cultura c à sociedade pormuíto novos desenvolvimentos teóricos; essa capacidade de reflexão e essa flexi-
tempo atacaram a dorri.inação e a opress.7io ao mesmo tempo que valoriza- bilidade constituem uma força epistemológica que outras versões de estu-
vam positivamênte a resistência e a luta que tentam sobrepÚjar essas dos clilturais c de teoria social deveriam imitar. O grupo de Birmingham es-
forças. Isso se aplica aos estudos culturais britânicos; à Escola de Frankfurt, tava constantemente adotando perspectivas novas, comó o feminismo e as
ao feminismo, a certas formas de pós-estruturalismo e ao multiculturaiismo teorias multiculturalistas sobre ciça e nacionalidade, em decorrênd~ de cri·
crítico. Portanto, os valores de resistência, participação, democracia e libei.-- ticas às.suas posições anteriores."là.mbém havia constante reflexã~ e deba-
<:iade são adotados como normas positivas, usadas para criÚcar form 1a·s de te em torno dos métodós e dos objetivos dos estudos culturais. Essa capa-
opressão e·dominação. No entanto, tais valores são adotados como cOnven- cidade de reflexão e flexibilidade também eram caracterlsticas de certos
ções, como padrões nOrma!i'!".OS por meio dos. quais se podem criticar estágios de desenvolvimento da Escola de Frankfurt, embora algumas de
exemplos específicos de dominação e opressão; bem como as ideologias suas posições se tenham enrijecido, convertendo-se numa ortodoxia resis-
que fomentam tais condições, e não comO princípios morais absolutos. tente a novos desenvolvimentO"s teóricos, incapaz de lidar com novas con-
Assim, um amplo espectro de teorias contempodneas renuncia ao fwuta- dições sociais (ver Kellner, 1989a).Há sempre o risco de degeneração e_en-

125


djecimento dogmáticos de teorias c métodos de grilnde vigor, o quC só identidade como -imporcintes componentes culturais que deve:.U si::r c~idtt­
pode ser evi!ado por uma atitude de crítica vigilante, abertura,· flexibilida- dosamente examinados e analisa<tos a fim de detectar tendências sexistas,
de e compromisso com a revisão e a evolução. racistas, classistas, homofóblcas e outras capazes de fomentar dominação e
Para manter uma pcrspccti\.-a' crítica também é preciSo deSenvolver opressão. O multicultm-,tlismo reconhece que há muitos compo~entes cul-
uma teoria crítica da sociedade na qual se possa fundamentar a análise e a turais da identidade, c o estudo cultural crítico indica o modo· como a cul-
crítica cultural. A teoria crítica da sociedade faz tuna critica dos sistemas tura.Í~r.Ô.ece material e recursos para a construção de--identidades e comO
existentes de dominação, mostrando as forças de resistência e as possibili- as produçõeS'-t:ulturais são acatadas e usadas no processei de formação de
dades de transformação· social radicaL Interpreta os textos da cultura da mí- identidades individuais no dia-a-dia.
dia no seu contexto, prot:urando ver como eles se relacionam .com estrutu- O projeto multícultural também vê coma"iv~,!i$ias atêontribuições po-
ras de dominação c com as forças de resistência, bem como as posições sitivas dois diversas raças, sex;os, etnJas, classes e grtlpos sociais para a cUl-
ideológicas que propalam no contexto do debates e das lutas sociais em an- tura e a sociedade. Com freqüência se notou que o trabalho mais interes-
damento. Portanto, um ·estudo cultural critico não está apenas interessado sante ·dos últimos anosn teve· origem nas teorias feministas e nas teorias
em fazer leituras inteligentes de textos culturais mas também em tecer uma multicultura1iStas
' . . . que analisam questões . de raça, sexo, nacionalidade e ai·
critica. d~s e.strutums e das práticas de domin~ã~, dando impulso a forças ternativa!f:!!âêúais. Essas novas t~orias culturais inspirarapt-se em novos mo-
de res1stencm c de luta por uma sociedade mais democrática e igualitária. vimehtos sociais e obrigaram a grande número de mudanças no modo
A tco~ia so~ial e o estudo cultural críticos ,que ataquem a opressão e como vemos os textos e reágimos a eles. Os cânones da cultura masculina,
lutem por Igualdade social são neq:ssariamente multiculturais e procuram_, branca e eu-~op,Sia foram desafiados, e um amplo espectro de vozes c indi-
estar atentos às diferenças, à diversidade cultural c à :Jlteridade. Utilizamos yíduos novos fiCou sendo conheddo.Aiém disso, as perspectivas dos gtl,l-
o termo "mulricultural"aqui como um conceito" geral para as diversas inter- pos oprimido;· representam uma visão ct1tica da cultura vigente, possibili-
venções em estudos culturais que insistam na importância de examinar mi- . tando-nos enxergar os elementos opressores que poderíamos deixar de ver
nuciosamente representações de clasSe, sexo, sex~alidade, etnia, subaÚ:cmi~ de nosso ponto de vista mais privilegiado .
. dad~ c outros fenômenos muitas vezes postos de lado ou ignorados em Ao estudo cultural critico alia-se um multiculturalismo insu.rgente (Gi~
ab.ordagc~s anterjorcs. A abor,dagem mulcicultural crítica, a nosso ver, inl- roux, 1993) que dá apoio às lutas dos oprimidos c.ontra a dominação e a su-
pltca a analise das relações de dominação e opressão, do modo de funcio- bordinação, pondo-se ao lado dos que lutam contra?- desigualdade, a injus·
namento 9os estereótipos, da re~istência por parte de grupos estigmatiza-· tiça e a opresSão. O mutticulturalismo (ou estudo cÍtltural) insurgente não
dos a repre:entações dominantes e da luta desses grupos pela sua própria registra apenas as diferenças (embora essa atividade possa ser importante),
rcpresentaçao contra representações dominantes e distorcidas no sentidO mas anàlisa as relações Qe desigualdade e opfessão que geram as Jutãs-A:de-
de prádu~ír r~prcsentações mais positivas. o· termo·"mufticulrural" aqui, mais, também valoriza positivamente as repr~sentações que ajudeffi a pro-
~o~ta~no, funct~n~ como uma rubtica geral para todas as tentativas de re- mover a luta dos oprimidos contta a domfnação, enquanto ataca as repre·
ststtr_ a estereot!pta, às distorções e à estigmatização por parte da cultura'' sentações que legitimam, justificam ou dissimulam a dominação. O multi~
dommame. O multiculturalismo critico também trabalha para abrir os estu· cultunúismo insurgente, portanto, faz pru1e da "pedagogia dos oprimidos"
dos culturais à análise das relações de tOrça e dominação na soCiedade e (Freire, 1972) que ajud1. o oprimido a ver sua própria opressão, dar nome
aos_ modos como estas são dissimuladas e/ou legitimadas nas represen- a seus opressores" e at1icular os objetivos e as práticas de libertação.
taçocs ideológicas domina:lltes.7' ·
. Logo, enquanto Fiske c outros valorizam a resistência e a luta per se,
Uma perspectiva multicultural crítica encara seriamente a conjunção o estudo cultural insurgente interpreta positivamente apenas a luta e a re-
de classe, raça, etnia, sexo, preferência sexual e outros determinantes da sistência contra a opressão, contra a desigualdade esu·utural, baseando ·suas
análises em antagonismos entre desigualdades estruturais e opreSsão. Os
71 Estamos adOtando o tenn9 multlculturnlismo para nosso programa de estudo éul(\J" estudos culturais insurgentes dialogam com os membros dos gruPQS
ml sem ÍillCr"ir nos debates em torno do multlCulturalismo em educação, campo em oprimidos em luta e expandem os estudos culturais para incluir as vozes
que - ~onfrmne argumentam Giroux (1992), Mcl..aren (1993) e Scatamburlo (no p're-
lo)- h~ todo um espectro diversificado de projetos corporativo-<:onservadores,llbernl·
~sq~erdJstas e multiculturnis mais críticos. F.stamos liS;lOdando esses ~:srudos culturais 72 Para alguns c;le nossos pri.meifos trnbillhos sobre o desenvolvi.Jnento da teoria mul-
aqmlo que Giroux, Mcbren e Scat;unburlo descrevem como multiculturnlismo crítico,. tip~:rspectivic:t. ver Kellner, 1991, e 1992a. e J.'lest e Ke!lner, 1991.

'1201 127
'
geralmente excluídas das formas mais acadêmicas de estudo cultural, lutan- se resiste às representações domiO:antes ou a outras formas de opressão so-
do, então, por um projeto mais inclusivo é po.tiUco. cial. o multicultul'a(ismo critiCo, portanto, alia-se às lutas pela emancipação
As teorias de interpretação, as abordagens à cultura e a sociedade e · ·~-' e pela criação de uma ordem social mais livre, justa e iiualitália.
as intenrenções políticas realizadas por um amplo espectro ·de grupos A abordagem multicu\turalista à diversidade ;de formas de opressão e
oprimidos e multiculturais produziram novas perspectivas e póvas armas resistência está ligada ao desenvolvimento de estudos sociais e culturais
de crítica. Tais grupos utilizaram os estudos culturais como um modo de multípe~pectívi.cos geiado por um grande número de trabalhos realizados
desafiar cânones e ortodoxias, legitimando os textos e as vozes dos gmPos nesse campO ;os últimos anos. Tenta evitar a lmilaterali~dc,a ortodoxia e·
subjugados e politizando a cultura e a educação. No entanto, o multicÚ!-. o separatismo culhiral ressaltando a necessidade-de adot.·u~!!ffiplas perspec-
turalismo como movimento e ideologia (em seÓtido mais amplo do qu'e tivas pat:a entender e interpretar os fenômeno~ e:ÕiiWrâiS. Como já argwncn-
aquele com que usamos o termo) pode fadl~ente ser cooPtado por tamos, éxiste 1m1a interligação entre sexo, raça, classe e outros constmtos
forças corpor'ativas que o di_vulguem Como um novo front do libCraliSm·O culturais: fundamentais, e estes são reproduzidos em formas e represeri~
melting-pot a ajudar os indivíduos a trabalhar e conviver por meio da pro- tações cultumis. Para te'rmos um quadro mais completo dos textos cultu-
moção da tolerância c da aceitação de diferenças. O multicU!turalismo rais e do§ fehÔnl.enos sociais, precisamos, portanto, entender um amplo e·5-
também pode levar ao separatismo grupal e às várias formas de identida'- pectro,. cte· -~'t~ill~ntos constituintes dos textos e das pfáticas culturai:.-Para
de política pelas quais os indivíduos se identificam com grupos de inter- fazer iSso adequadamente, precisamos usar todo um espectro. de mctodos
esse unilateral e constroem suas identidades peJa idcptificação com gru- críticos, ..:isto que alguns são melhores pam examinar questões.de classe,
pos e categorias específicas, cxcluil~do os outros. Tal política de interesse outros para conctiituar questões de sexo c sexualidade, e outros ainda para
exclusivista fragmenta ou bloqueia o desenvolvimento dos blocos·e a1ian- expressar questões de raça, mito e símbolo, dimensões subli!llinares e la-
ças progressistas, enfraquecendo portanto as possibilidade de transfo~a- tentes da culturã, etc.
ção social progressista. · i
Contra tais tentativas de cOoptar o discurso do multiculturalisnrO ou
de usá-lo como insígnia do sepan).tismo preconizador de interesses esPed-· R! iMO A l IM ESTUDO C\JI:ll!RAl ~iULTlPERSPECTÍVICO
ficos, utilizamos o termo com o intuito de abranger a resistência às tentati-
vas de excluir as questões c perspectivas específicas dp terreno doS estu- Um estudo cultural feito de modo critico e multicUltural deve,
dos culturais. Na verdade, o multiculturalismo, no modo como usamos o portanto, também scr"multiperspectívico~; palavra esta qUe é comprida e,
termo, demanda abertura para os discurSos de todos os grupos oprimidos feia, ma4-ainda o, melhor conceito que encontramos para dc~crevt.'l' o tipo
ou subjugados e a necessidade de perCeber a importância de abordar. uffl. ' de estudo cultural que estamos tentando desenvolver. E\uc1daremos esse
espectro mais amplo de tipos de representação a fim de produzir k;ituras conceito com algumas análises teóricas e práticas neste capítulo e nos que
mais completas e mais critic;,ts dos te:l>."tos. Mas o multiculturalismo crítico seguem. Em termos simples, um estudo cultural multiptTspectívico utiliza·
não implica a afirmação de que só há diferenças; ao contrário,mostra que · uma ampla gama de cstmtégias textuais e criticas para interpretar, criticar
há tOrças comuns de opressão, estratégias comuns de exclusão, estereotipa~ e desconstruir as produções cultur.us· em exame. O conceito inspira-se no
gem e estigmatização dos grupos oprimidos, portanto iniÍnigos' comuns e · perspectivismo de Nietzsche, segundo o qual toda interpretação é necessa-
alvos de ataque comuns. Por isso, enfatiza igualdades e diferenças, insistin- riamente mediada pehi perspectiva de quem a faz, trazendo, portanto, em
do em esclatece!' o modo como as representações de coisas como raça, seu bojo, inevitavelmente, pressupostos, valores, preconceitos e limitações.
sexo e classe estão cntremescladas. e funcionam como veicuJos daS ideoio- Para evitar a unilateraUdade e a parcialidade, devemos aprender~como em·
gias de dominação que justificam, legitimam ou mascaram as desigualdades pregar vá1ias perspectivas e interpretações a serviço do conhecimento"
sociais, a injustiça e a opressão. · {Nietzsche, 1969: 119). Para Nietzsche," Só há visão em pcrsréctiva, só 'sa-
O multicult.uralismo crítico também vê as diferenças em termos. de ber' em perspectiva; e quanto mais sentimentos deixarmos que falem
contradições entre forças desiguais, teorizando.as oposições entre os gru- sobre uma coisa, mais cofnplctos serão o nqsso 'conceito' dessa coi.sa c a
pos mais poderosos e os grupos subordinados em termos de relações de nossa 'objetividade'" (ibid.). Expandindo esse convite à interpretação mul-
dOminação, o que cria a possibilidade de resistência contra todas as formas t.ipÚspectívica em aforismos reunidos em Vontade de poder (196~),
de opressão. Também articula objetivos. comuns na luta por meio da qual Nictzsche argumcnta:~cada elevação do homem traz consigo a superaçao

129
de interpretações mais estreitas; -esse fortalecimento ç esse 'aumento do texto.ü método multiperspectívico deve necessariamente ser llistórico e
poder abrem noVas perspectivas e significam a crença em novos horizon- ler seus textos em termos de contexto social e histórico ·e po?e também
tes" (1968: 330). · optar por ler a história à luz do' texto.
Aplicando essas noções à interpretação cultural, poderiamos argumen- Certas estratégias metodológicas são, sem dúvida, incompatíveis' entre
tar que, quanto inals perspectivas de interpretação utilizarmos numa produc si; por !sso, a abordagem multiperspectívica deve optar entre perspectivas
ção cultural, mais ab.rangente e robust.1. poderá ser nossa leitura. Temos dito opostas, co~n base na tarefa em pauta e nos objetivos em vista. Para algumas
que, para captarmos todas as dimensões políticas e ideológicas dos textos finalidadeS, POde ser útil enveredar por uma leitura ,de cunho feminista,
da cultura da mídia, precisamos vê-los a partir das perspectivas de sexo, raça enquanto para outras pode ser possível fazer It~!~,•~s pO]yalentes, abordan~
e classe. Agoril sugertrnos que a combinação das perspectivas críticas mar- do um texto de várias perspectivas. A posiçãO-m:i\itiperspectivica, porém,
xista, feminista, estruturalista, pós-estry_turalista, psicanalítica e outras possi- que não é merO eCÍetismo liber.ü nem potpourri de diferentes pontos de
bilitará uma leitura mais completà e potencialmente mais sólida. A combi- vista, deve pennitir que suas várias perspectivas se informem e modifiquem
nação, por exemplo, de critiéa da ideologia c crítica sexual com anáHsc se- mutuamente.,Por exemplo, o marxismo informado pclo-feminisnw será di-
miótka permite-nos discernir o modo como as formas genéricas de cultura . fcrente dó t'nánctSmo unidimensional isentO de feminismo (e vice-versa). O
da núdia, ou seus códigos semióticos, são permeados de ideologia. O códi- ponto "<ta'ti'sili
marxista-feminista informado pelo pós--estruturalismo será di-
go conflito/resolução da maioria dos programas de televisão, por exemplo, ferehte da perspectiva marxista-feminista dogmática que reduza lUll filme
passa a noção ideológica de que todos os. problemas podem ser ~solvidos apenas à problemática de classe e gênero. Isto porque o pós--estruturalismo
dentro da sociedade existente, seguindo-se comportamentos c normas con- tlefende múlti~1as perspectivas, dirige a atenção para fatores ignorados por
vencionais. A propaganda muitas vezes mobiliza modelo semelhante, ao algumas pcrsuectivas marxistas ou feministas e abala as crenças ingênuas de
mostrar um problema cuja solução é dada pelo produto anu.ilciado. que uma {miCa interpretação específica é certa e verdadeira. No entanto,
Perspectiva, nessa análise, é uma óptica, um modo de-ver, e os métodos uma perspectiva pós-estruturalista como o desconstrutivismo pode tornar-
criticas podem ser-interpretados oomo abordigens que nos. possibilitam ver se previsível e unilateral se não utilizar outras perspectivas, como o marxis-
traços .caracteristicos dos produtos culturais. Cada m~todo crí~ko focaliza mo e. o feminisnlo (ver Ryan, 1982 e Spivak, 1988).
traços específicos de um objeto a partir de uma perspectiva.distintiva: a pers- · Cada método critico tem seuS pontos fracOs e fortes, seus clarões e
pectiva evidencia ou elucida alguns elementos de um texto enquantd i,gnora pontos cegos. As criticas feitas com base na ideologia marxista sempre
outros. Quanto mais perspectivas usarmos num texto para fazer a análise e a foram fortes na contextualização histórica das classes e fraca na análise for-
critica ideológica - sexual, semiológica, estrutural, formal, feminista, psicana- ma( S$,~ual e racial; o feminismo é. exc,elente na análise dos aspe~tos se- '
litica, etc. -,melhor poderemos entender todo o espectro de dimensões e me xuais, mas às vezes ignora questões de classe, mça e outros de,termmantes;
mificações-ideológicas de um texto. Segue-se, portanto, que uma abordagem ~ o estruturalismo é útil na análise da lla.I'cativa, mas tende a ser excessiva-
multiperspcctívica fornécerá um arsenal critico, toda uma gama de perSpec-
tivas para dissecar, interpretar e criticar produtOs culturais.
_mente formal; e a psicanálise convida à hermenêutica da profundidade e à I
articulação do conteúdo e dos significados do inconsciente, mas às vezes
No entanto, é preciso fàzer algumas ressalvas a es-se ponto de vista. ignora a determinação sociológica dos textos e dos indivíduos. Portanto,
Obviamente, uma única leitura - marxista, fCminista, psicanalítica, etc. - 1 quanto mais métodos críticos como esses tivermos em mãos, maiores serãO
pode render conclusões inais brilhantes no estudo de, alguns fenômenos as probabilidades de produzir leituras críticas reflexivas e multilatera.i.s.
do que a combinação de várias leitl.lr'as perspectívicas;"mais" não. é neces- Sem dúvida, a leitura de um té.xto é apenas uma leitura a partir de uma
sariamente "melhor~. Contudo, o emptcgo de várias perspectivas criticas posição critica, por mais multiperspectívica que seja. A leitura de qualquer
de um modo proficiente e revelador tem mais probabUidades de possibili- critico é apenas a sua leitura, que pode ou não ser a leinu-.I preferida p~lo
tar uma leitura mais consistente (mais plurilateral,elucidatiVa e critica). Em público (que, em si, variará significativa.mente segundo a classe; a raça, o
segundo lugar, a abordagem multiperspe~tívica poderá não ser de todo elu- sexo, a região, a etnia, as preferências sexuais, as ideologias, etc.). Há,
cidativa se não situar adequadamente o texto no seu contexto histórico. portanto, um hiito entre codificação textual e descodificação por parte do
Um texto é constituído por suas relações intentas e pelas relações que público, sempre com a possibilidade de haver· uma multiplicidade de leitu-.
mantém com sua situação social e histórica, e quanto mais relações estive· ms e efeitos de determinados textos (Hall 1980b). Uma maneira de desco-
rem ~xpressas numa leitura critica, melhor poderá ser a compreensão do brir de ql;e modo o público lê os textos é fazer estudos etnográficos (ver

130 131
Apê~dice em Kellncr e Ryan, 1988), mas nem mesmo assim tel-emos certe- cultur.t da mídia, assim como as forças de resistência e as vozes doS que são
zas quanto ao modo como os textos afetam o público c modelam suas cren- oprimidos pelo sistema social vigente.
ças e seu comportamento. Portanto, é preciso prçcurar saber que imagens, Por exemplo, filmes como Rambo c. Top Gun mobilizaram ' desejos
figuras e discursos da cultura da mídia se tórnam dominantes, e fastrear transformando-os no sujdto em posições congruenteS com o fomento rea-
seus efeitos através de vários· circuitos, como fazemos neste livro. ganist.a do militarismo e com a política eXterna intervencionista, enquanto
Embora todos os textos sejam polissêmicos e estejam sujeitos a leitu- os fUmes de heroísmo masculino mobilizavam· os desejos e as fantasias,
ras polivalentes, dependendo ?as perspectivas -do leitor, não defendemos transforril;rido-os no sujeito em posições de remasculinização como parte
aqui um pluralismo liberal do tipo "vale tudo". Todos os métodos crítico~ de uma reação ao feminismo (ver Faludi, 19~t5Jeffords, 1994). No entan-
mencionados são mobilizados peJOs estudos culturais criticas no-sentido to, fdmes como Casualties of War (Pecados 'dê-guerra, 1989) e A Few
de interpretar o texto e seus efeitos no sistema existente de dominação e Good Men (Questão de honm, 1992) mobilizavam seu público contra o
opressão e usar a teoria crítica da sociedade para contextualizar o produto tipo de heroísmo militar exaltado nos filmes conservadores, valoriZando os
cultural e .a leitura em.relação às lutas sociais existentes. O estudo Ct!ltural. indivíduos cuja consciência os leva a fazer frente às pressões das autorida-
crítico que delineamos está ao lado das forças progressistas que lutam de coq~~~oras a "fazer a cois_a certa". Esses indivíduos liberais e cons-
contra a domin.1ção c a~ca estruturas, práticas, e ideologias de do~ação ck:r.teS'irtàtilbém eram mais sensíveis· que os heróis durões dos filmes con~
e opressão. Portarito, os vários métodos e perspectivas usados são mobili- sc1;adÓfes de Stallone-Norris·W1llis-Schwar...:enegger. Portanto, nas guerras
zados dentro de uma teoria critica da sociedade que ataca um sistema de cultu~ls entre liberais e conservadores do período, a cultura da mídia in-
domiÍlação e luta por uma ordem social mais democrática e igualitária. tervinha em-ifttdos diferentes, produzindo modelos opostos de identifica-
A abordagem multiperspectívica, portanto, multiplica as perspectivas Ção, mascu.lip.idade e sexualidade para seus respectivos públicos.
teóricas e as perspectivas a partir das quais os fenômenos culturais s.'io vis- Portanto, um estudo cultural crítico demonstra de que modo os
tos e interpretados. Na história dos estudos culturais, isso tem sido feito no textos culturais produzem identidades sociais e posições pessoais, compa-
sentido de incorporar armas novas ao seu arsenal teórico, à medida que rando posições CÍpostas.Analisa as mensagens e os efeitos da núdia e tentá
movimentos novos produzem teorias e discursos novos. O campo dos es- mostrar como certas figuras e certós modelos e discursos solapam os valo- (
tudos culturais attora é genuinamente internacional e multicultural, o que res e o ethos de uma soCiedade pluralista, igualitária, democrática e multi-
ampliou muito as perspectivas a partir das quais podemos ver e avaliar cul- cultural, ao passo que outros podem preconizar a criação de uma soêieda-.
turas dOminantes, marginais e ~ontestadoras. E, como vimos no capítulo 1, de mais igualitária e democrática. Um estudo cultural crítico e multicultu-
as lutas c a turbulência das décadas passadas também geraram uma prolife- ral, PRrtanto, intervém nas guerras culturais do período e uti~iza suas análi-
ração de teorias e métodos que·podemos mobilizar como instrumentos e ses para preconizar mudanças sociais no sentido de uma sociedade mais
armas no desenvolvimento de visões e métodos mais multiperSpectív:icÜs. democrática, opondo-se a formas da cultura da mídia que preconizem a
Cada teoria, cada perspectiva é, até certo ponto, um produto de uma luta opressão, ao mesmo tempo que estabelece uma ponte entre a cultura da
social e pode ser adotada como arma da crítica na Ju~a por uma sociedade mídia mais progressista e movimentos políticos que lutam pela liberdade e
melhor. É projeto dos estudos cultutais críticos adotar tais armas e empre- pela demoo.".teia.
gá-las em projetos e domínios específicos.
Por conseguinte, lançamos·· mão dos estudos culturais e da teoria
crítica da sociedade para analisar tanto as forças hegemônicas de domina· POR UM ESTUDO CULTURAL C()NTEXTUAL
ção quanto as forças contra-hegemôn.icas de resistência. Na-sociedade há
sempre tOrças de controle e bloqueios que constituem um prÕjeto bege- A concepção crítica, multicultm".Ú e multiperspectívica dos esiudos
mônico, assim como há forças que lutam contra essa hegemonia. Durante culturais que aqui esboçamos lança mão da teoria da hegemonia de Antonio
a hegemonia conservadOra de Reagan e Bush, por exemPlo, as forÇas con- Gr;:unsci (1971), que apresenta a cultura, a sociedade e a política como ter-
servadoras 'dominamm a economia, o Estado, a sociedade e a cultura, mas renos de disputa entfe vários grupos e classes (ver Boggs, 1984, e Kellner,
sempre houve forças em Juta contra essa hegemonia, desde os liberais que 1990a). Dessa· perspectiva, a critica cultural deve especificar que disputas
lutavam pelo poder político até as mães solteiras negras que· lutavam poi estão em andamento, entre que grupos e que posiçõCs, havendo _uma inter~
direitos sociais.•'\$ "forças de dominação encontram expressão nos te:ctos da venção do analista cultural para explicitar o que é visto como o lado mais

132 133

-~
progressista. Expandindo as idéias de Gramsd, várias pesSoas tent<'lr.tm dt.'- -sentam rÓu!heres a lutarem pela independência e pela igualdade. Os últi-
senvolve.r um conceito mais diferenciado de ideologia que desse mais aten- · · mos filmes propalam vários pomos de vista feministas, enql~anto os
ção a ideologias emergentes, res.lduais e hegemônicas nas sociedades con· primeiros fazem parte da reaçãO ao teminismo analisada ~r Faludt ~1991~.
· temporâneas neocapitalistas (ou no socialismo ck Estado) (ver Williams, A sociedade americana está dividida no campo das questoes sexurus, e va-
1977; Kd!ner, 1978 e 1979; Hall, 1987). Essa expansão do conceito de ideo- rias produtos culturais da mídia assumem posições o'postas nas guern:'
logia aricora a critiCa da ideologia com mais fumeza numa análise sociopo- culturais d~.fl.tualidade; devendo assim ser analisados em termos de post- J
ções e ef~itOs nas lutas sociais em, andamento. . ,:·., . .
lítica concreta e historicamente especifica, assentando assim a critica da j
.
ideologia no contexto em_que realmente ocorre o conflito político. Deve-se notar, porém, que o cinema dt;,.H?HYwood enfrenta severas
Portanto, vemos a cultura da ·mídia como um terreno de disjmta que limitações no gt-au com que pode preconizatj5ô'sições críticas e radicais
reproduz em iúvel cultural os con.fi.!tos fundamentais da sociedade, e ·não em relação à sociedade. Trata-se de um emprecndim:nto co~~rdal que
como um instrumento de dominação. O exame do cinema de Hollywood não deseja ofender as tendências dominantes com visoes radtcats, ~entan­
a
de 1967 até hoje (Kellnà e Ryan, 1988), por exemplo, revela que sode- do, portanto; .conter suas representaçõeS de classe, sexo, raça c soctedade
d:lde e a cultura americanas foram dilaceradas por uma sérJe de debates em dentro çfd _ ftó.~lteiras preestabelecidas. Portanto, oS radicais, de modo geral,
torno do Ie!;ado dos anos 1960, de questões de sexo e sexvalidade, da são .e~cl\ffd'Bs do cinema de Hollywood, ou então são obrigados a manter
guerra, do militarismo,' do ~tÚvendonistrio e ·de várias outras questões. su~ posições dentro dos limites aceitáveis.Além disso, os códigos e as ~on­
Por um lado, Rambo, Amanhecer sangrento (Red Dawn), Missing in Ac· vençõcs gené~!cas de HoUyw~od tendem a limita_r seus disc~os. e. efet~os ...
tion (Supercomando ), Invasion USA, Top Gun e coisas do gênero repre-· o convenciol'l~üsmo das historias centradas em personagens mdtvtdUats, o
sentam posições direitistas agressivas sobre guerra, militarismo e comunis- uso de closes e de plano e contraplano, que vão de uma personagem a
mo que serviram à .propaganda intplicita c explícita do reaga'nismo e a um outra, o uso de astros reconhecíveis e populares e outros elementos do
programa distintamente inten,encionista e militarista de direita. convencionalismo hollywoodiano tendem, por exemplo, a limitar Seus fil-
Por outro lado,Missíng (O desaparecido, 1982), l_(nder Fil-e (Sob fogo mes aos parâmetros do individualismo, impfldind,o retratos ~osit~vos de
cerrado, 1983), Salvador (Salvador, o martirio de um povo, 1985), Lati- grupos ou coletividades políticas em luta por mudanças. Port;mto, e ~ara a
no (1985) c outros filmes liberais ou de esquerda contestaram veemente- cinematografia independente que devemos nos voltar em busca de mter-
mente a visão direitista da América Central e do intervendonismo àm~rica­ yenções políticas progressistas no terreno da cultura driematográfica ame-
no na região, representando os americanos e a camarilha burguesa dirigen- ricana (Kellncr e Ryan, 1988). ,
te como ''malvados'' em roteiros genéricos e basicamente solidários com os ·De todó modo, os filmes e outras formas de ctútura da mídia devem·
rebeldes e com os que lutam contra o imperia!ismo·americano. Opondo-se ser a~aüsados como te.."Xtos ideológicos em contexto e relação, vendo al-
a Rambo e a outros filmes de retorno ao Vietnã,Platoon (1986), FÚll Me- guns textos como reações radicais ou liberais mais progressistas às pro?u-
tal]acket (Nascido para matar, 1987), e Casualties of War (Pecados de ções e às posições ideológicas de direita, em vez de, digamos, a.I_>en,as, r~Jel­
guerra, 1989) subvertem a versão direitista do Vietnã, enquanto outros fi!· tar toda a cultura da mídia como reacionária e meramente Jdeologtca,
mes como M.A.SH. (1970), Catch-22 (Ardi/22, 1970), So,ldier Blue (Quan· · conforme costumam fazer certas teorias ~onolíticas de "ideologia dom~­
do é preciso ser homem, 1970) e outros tinham atacado as versões direi- nante", como a teoria crítica clássica de Horkhe'imer c Adorno (1971), mw·
tista<> do militarismo e, da política externa americ-.ana em debates anteriores tos althusserlanos, algumat? feministas e outros. Um estudo cultural contcx~.
sobre o Vietnã. E no domínio da política sexual, filmes antifemlnistas como tualista lê os textos culturais em termos de lutas reais dentro da cultura e
Ordinary People (Gente como a gente, 1980), Krainer versus\Ktnmer da sociedade contempOI'ânt:as, situando a análise ideológica ·em· m~io aos
(1979),An Officer anda Gentleman GA.fbrça do destino, 1982), FaialAt- debates e conflitos sociopolíticos existentes, e não apenas em relaçao a al-
traction (Atração fatal, 1987), Baste .lnstinct (lnstinto selvagem, 1992), guma ideologia dominante supostamente m?~oliti~a ou ~ ~gum _m.odelo
The !Jand That Rock'sthe Cmdle (A mtio que balança o berço, 1992), Shl· de cultura de massa simplesmente equiparada a mantpulaçao !dcologtca ou
vet; The Temp (Ambição fatal, 1993) e Body of evldpnce (Corpo em evi- à dominação pe1· se. , '. ,
dência, 1988) podem ser opostos a .fllmes mais feministas como Gifi.. Um modo de delinear as ideologias da cultura da m1dta e ver sua pro-
frlends (1978), Despemtely Seeking Susan (Procura-se SUsan desespera- dução em relação, situando os filmes, por exemplo, dentro d e seu gencro,
' de
damente,· 1985), Working Girls (1986) e Desert Hearts (1986), que apre- seu ciclo e de seu contexto histórico, sociopolítico e econômico.yer os fll~

134
mes (!JJ'l Conte>.-to significa vet como eles se relacionam com outros filmes do opõe. Portanto, a ideologia pode ser analisada em termos das forças e. das
conjunto e como os gêncms uanscodifkam posições ideológicas. Isso impli- tensões a que está reagindo·, enquanto os projetos de dominação ideológíc~
caria interpretar Rambo em termos de Ciclo de retorno ao Vietnã, que, por podem ser conceituados em termOs de resistência reacionár~a lutas popu-
sua vez, Pode ser situado em todo'o gênero de filmes sobre· o ViCtnã c nos lares contr'.t valores e instituições conservadores ou libemis tqldicionais.
debates a respcito da intervenção ameriCana no Vietnã e suaS conseqüências. Portanto, em vez de apenas conceituar a ideologia c.omo força de do-
Implicaria interpretar Top Gun fio contexto da série de filmes que tratam <Í.'l minação na~ .qtãos de uma classe dirigente todo-poderosa, é possível anali-
vida militar no período (por exemplo, A.JOrça do destino, Águia de aço, O sá-la em corii:oào e relação como·uma reação à resistênci;t e como sinal das
destemido senhor da guen-a, etc.), alguns dos quais o fazem de maneira lau- ameaças à hegemorlla do grupo, do sexo e da q,çi:~,9nll.úanteS. :o: c~nse·
datória enquanto outros apresentam visões mais criticas. ~ guinte, os filmes dos anos 1960 podem ser vistos ct'imo uma r_es,stencla ao
Enquanto Top Gun e Aguia de aço; por exemplo, apresentam uma conformismo social e ao cinema convencional da época antenor, enquanto
utopia da vida militar, filmes mais realistas como Platoon, Nascido para ma- . Dirty Hany (Perseguidor implacável, 1971) pode ser interpretado ~o~ o
tar ou Pecados de guerra mostram as reais conseqüênciaS da vida militar ·uma ieação ao radicalismo dos anos 1960 e aos recentes triunfos do libera-
quando é deflagrada uma guerra real. Do mesmo modo, O destemido se- lismo no .dlr~ii~ penal. Filmes seXistas e ~eacionários como Straw Dogs
nhor da "gue:nv. ao mesmo tempo que apresenta uma viS:ão geralmente po- (Sob q do'M.ftiió do medo, 1971) ou Tbe .Bxorcist(O exorcista, 1973) P~
sitiva da vida militar, com alguma critica a ofidais de elite, também mostra dem sú vistos como reações ao feminismo e à resistência das mulheres a
os perigos c as ansiedades presentes em incursões militares até de pequeno dominação masculina. Os filmes de heróis negros, cómo Shaft (1971) ou
porte, como a de Granada, embora em última análise transcodifique o triun- Superfly (1972);~podem ser vistos como sinais de resistência à subserviên·
falismo reaganista, apresentaüdo a invasão de Granada" como uma vitória cia dos negros aos brancos e como reação aos estereótipos dos negros no
americana. 1àps (lbque de recolher, 198l), Lords of Discipline (Guardiães cinema de Holl}-wood. E o racismo de filmes como Rocky pode ser vis!o
da bonra, 1983), Bminstorm '(Projeto Bminstorm, 1983), War Games· como expressão do medo que os trabalhadores brancos nutrem em re~ç-ao
(Jogos de guerra, 1983), Jbe Dogs ofWa:r (Cães de guerra, 1981), Blue aos ne~os e como testemunhos do aumento da força cultural e.polittca
Thunder (1hmào azúl, 1983). Questão de honra e outros apresentam uma dos negros na sociedade americana, enquanto a ~!ativa ausência de narra-
visão mais critica das forças annadas americanas, enquanto Up tbe Academy tivas dramáticas sobre negros no cinerria de Hollywood na era Reagan pode
(1980), Tmlk (Uma família em pé de guerra, 1984), De.,al of the Century ser interpretada coffio resistência dos conservadores às reivindicações de
(Uma tacada da pesada, 1983), Spies Like Us (Os espiões que entraram i ,;ualdade .racial e aumento do poder por prute dos negros. Ou então é P?S-
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numa fria, 1985) e os outros filmes satíricos apresentam visões .mais criti- sível intfrpretar filmes como Tbp Gun, Rambo :_ outros de reto~? ao.
cas das fOrças armadas americanas e da segurança nacional. Vietnã como reações .à derrota americana no Vietna, aos desafios ao Impe-
Ao relacionar determinados filmes com.· outros exemplos do mesmo rialismo e aos que d~sejariam impor cortes às forças armadas e limitar o po-
gênem e com os debates atuais a que remetem esses gêneros, os fllmes di- dCrio militar americano. · ·
reitistas podem ser interpretados,,por exemplo, como 1-eações a ameaças Ao lançarmos mão de estudos sobre as relações entre ideologias, mo-
reais à hegemonia conservador.t, portanto como testemunhos de conflitos vimentos sociais c o ambiente em que surgem, feitos pelo sociólogo Robert
sociais e contradições atuais. Ou então os filmes liberais podem ser interpre- wuthnow (1989), pretendemos utilizar as categorias horizonte social,
tados como contestações à hegemonia conservadóra, e não apenas. como campo discursivo e ação figúral para descrever alguns d~s. mo~os como
pusilânimes variações da mesma ideologia dominante. Dessa perspectiva os textos culturais trans.codificam e articulam imagens soctats, discursos e
conte.xtualista, a critica da ideologia implica uma análise ideológica no condições ao mesmo tempo que operam dentro de seu campo social. A
contexto da teoria social e da história social.A interpretação polÍtica dos fi!. expressão «horizonte social" refere-se às experiênci.'l.S, às p~áticas e aos as-
mes, portanto, pode propiciar a compreensão não só dos modos como o fil- pectos reais do campo social qUe ajudam a estruturar o untverso da cult~­
me reproduz as lutas sociais existentes na sociedade americana contempo- ra da mídia e sua recepção. O horizonte social dos anos 1960, que servm
rânea mas também da dinâmica social e política da época. Até mesmo fil- de pano de fundo para filmes como Easy Rider ou Woodstock, foi a emer-
mes muito ideológicos, como Rambo, dão indícios de conflitos socia'is e de gência da contra.cultura com seu estilo próprio em termos de roupa, co~­
'forças que ameaçam a hegemonia conservadora, como os pontos de \;ista li- portamento, mlisica, linguagem e cultura - contracultura ~uc se d~fima
berais antibelids.tas e antimiUtaristas a que Ra.mbo tão violentamente se como contrária à cultura do "establlshment" durante um penodo de mten-
' .

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sas comoções e- contestações soaats. Os "anos sessenta", portanto, tural e a ideologia de liberdade e individualismo do perío~o.A figura _da má-
constituCm o horizonte. social de filmes do período, e, por sua vez, são quina mortífera Rambo, por, oufro lado, personifica os ~scurS()s, m~taris­
transcodificados ou a.t1iculados em campos discursivos específicos. t.'ls e masculinistas dos anos 1980, embora, como notamos, tambem mcor-
O campo discurslvo de Easy Rider e lVoodstock era a música, a lin- porasse imagens contraculturais de individualismo e naturali<;lade para arti-
guagem, a vida e as práticas contraculturais dos anos 1960, que tentavam cular a ideologia militarista-masculinista da época. Na ação figurai de
inovar a produção cu!tu'ral produzindo ómras formas de vida, de modos de " lfloodsto~k encontravam-se os roqueiros como heróis cultufais deificadqs,
viver. O conteúdo do horizonte social era articulado em campos discursi- apresentadOs"'Càmo facilitadores benevolentes tla cont~_cultut".l, e o púbQ-
vos específicos em filmes cómo Easy Rider, que utilizavam o mck· como cq como participante integrado_ ~a comuni~de~~,~ ~Q~ião contracul~­
trilha sonora, faziam enqUadramentos excêntricos das imagens dos moto- ra\. f-<;sas inovações cinematográficas tambem po'€m,.formalmente em pra-
queiros a percorrerem a natureza e estabeleciam uma relação entre figura tica a revolução cultural que o filme retrata na sua celebração do festival
1
e fundo na qual os moto queíros eram vistos contra o deserto, as monta- Woodstock e da contracultura.Assim como a contracultura real tentava re-
nhas, o céu e sol, numa tninscodificação. das ideologias doS' anos 1960, de volucionar a vida cotidiana e produzir novas formas de cultura, também os.
libcrdade,Jndividualismo, harmOnia com a natureza, emancipação peia tec- cineastas -cO&té.mporàneos tentam produzir novas formaS cinematow:áfi- ,
nologia, etc. ~Voodstock usava uma divisão tripla da tela; in'do do palco ao cas, i.IP.P<rítrliif&l impulso modernista inovador no cinema de Hollyw~d,
público, entremesclando doses de grande proximidade com tomadas de desafiàndo e subvertendo su;1s convenções e criando novas formas de lin-
longa distância, etc. a fm1 de transcodificar cinematograficamente a estrei- guagem cinematográfica. .
ta ligação entre o público e os roqueiros no período. O filme l.Vbodstock, os filmes,-ó rock c a contracultum dos anos 1960, por sua vez, exer-
portanto, transcodificava os discursos dos anos 1960, ~obre comunidade, ciam seus próprios efeitos ftgurais e discursivos, disseminandQ im~gens e
amor, livre expressão (Ia sexualidade, individualismo e revolta, medi;mte o ideologias cont"mculturais à me,dida que o público adotava imagens, estilo',
campo discursivo de suas imagens e discursos cinematqgráfi.cos. moda e atitudes por eles .difundidos. Em especial, filmes como Easy Rider
Portanto, a cultura da mídia articula um conjunto complexo de me- e Wbodstock não só J:eforçavam as convicções contraculturais de seú pú-
diações. Transcodifica discursos dos anos 1960, como a contracultura e o hlko como também arregimentavam novos adeptos da contracultura ao di-
feminismo, do mesmo mOdo que os discursos liberais ou conservadores do- fundir seu estilo, sua moda c uma cultura alternativa rebelde. P_or outro
minantes a eles opostos. Alguns textos da cultura da mídia que projetam lado, a redução do ativismo e da rebeldia dos anos 1960 a estilo cultu~ fa-
imagens positivas de mulheres transcodificam discursos feministas (por cilitou a incorpor.t.Ção e a cooptação da contracultura. na cultura amenca-
exemplo, Girlfriends, Desert Hearts, Working Girls, etc.), enquanto as inla- na dominante c as imagens de Easy Rider e Woodstock f;icilitaram esse
-gens. e os discursos antifeministas que retornaram com veemência nos process~ de ~ooptaçã~ e exploração .que aCabaram levimdo à mort~ da
anos 1990 (por exemplo, Instinto selvagem, Falling Down (Um dia de ft'l- contracultura como cultura genuinamente contestadora.
r(a, 1993J,A mito que balança o be1·ço,etc.) articulam os discur~os e a rea- No último capítulo, indicaremos alguns dos efeitos discursivos e figu-
ção contra o feminismo descrita por Faludi (1991) e outros ..O complexo rais de Rambo c os modos como figura e filme se inseriram numa luta em ·i
de discursos sociais em disputa em dado momento é, portanto, articulado torno de seu significado, gerando recursos semânticos e imagístkos que
pela cultura da mídia, que neles se abebcra e depois oS difunde, intervindo poderiam ser artict1lados de diversas maneims. Nos últimos atlas, tem havi~ J,,
assinl, nas lutas e nos conflitOs sociais. do certa tendência a estudar os ,efeitos da cultura. da mídia por meio da et- I
A cultura da mídia também articula experiências, figuras, eventos e nografia de seu público, analisando-se o comportamento dos ~s o~ o~ mo-
práticas sociais, assim como discursos. A moda, o visual e os artefatos con- dos como 0 público (por exemplo. os homens sem-teto que asststL<lm ·a
temporâneos, bem como outros signos da contemporaneidade, sutur.un ou Duro de matar [Fiske, 1993]) usam às produções da cultura da núdia.
costuram o público nos textos' cinematográficos. Na verdade, para funcionar ~mbora esses estudos muitas vezes cheguem a conclusões utilíssimas, con-
diante de seu público, a CUltura. da núdia precisa repercutir a eXperiência so- quanto ,limitadas, sobre os efcit<?S da cultura da mídia, diríamos que há
cial, "encaixar-se" no horizonte social do público,, e assim a cultura popular oulras maneims de estudar o assunto. Pode-se;; examinar a rec,epção da cul- ·
da mídia haure medos, espera.nças, fantasias e outras inquietação ·da época. tura da midia analisando-se resenhas, críticas e as maneiras como os textos
A ação figuml de filmes como Easy Rider implicava a· apresentação se inserem nos discursos pop~lares e geran1 vários efeitos diferentes. Esse
laudatória das figUras' do~ motoqueiros que encarnavam o Cthos contracul- modo de estudos de recepÇão foi formulado porWa\ter Benjamin nos anos

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1920 e 1930 e adotado por-teóricos literários como jauss,que desenvolve- portmnento machista; há quem imite Beavis and Butt-Head, reproduzindo
ram estudos de recepção literáiia para descrever o modo como a literatura '· modos de rir, de falar e talvez até seu comportamento anti-sociàt.
é recebida pelos vários públicos. _ NoS anos 1950, as image·ns ressonantes de rebeldes _e motoqueiros in·
Novos bancos de dados usados em conlpu.tador, como o Dialog e o conformados (Marlon Brando, Elvis Presley, ]ames Dean, ou esctitores
Lexis/Nexls, póssibiliiam um novo tipo de estUdo de recepção, tal como o beat1Jik como Jack Kerouac) exerceram forte ilúluência, modelaf!dü: esti-
qué fazemos neste Iívro. É possível digitar palavras como "Ra~nbo~ e "Rea- los, pensaméntos e comportamentos; nos anos 1960, as imagens ressonan-
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gan" e descobrir algumas das mitneiras como ;t figura de Rambo foi articu- tes forruh aS das figuras contraculturais. Eventualmente, uma imagem resso-
lada nos discurSos polí~icos populates. Como resultado, obtivemos cente- nante pode ser desvinculada, em termos dq;~i.to .e iii.emória, de s,ua estru-
nas de teferêndas de que lançamos mão no capítulo antetior, no· estudo do tura narmtiva, e, embora a mensagem do tex't-õf@Sse "o crime não compen-
"efeito Rambo"; pesquisas-semelhantes foram feitas com referência aos- sa" ou ~'o adultério i:raz desgraça", é a lembrança do crime ou do adultério'
principais filmes que estamos analisando, bem como_sobre a Guerra do que fica na memória, que influencia pensamentos e compdrtan1entós. Isso
Golfo, o mp e a cultura hip hop,Beavis and Butt-Head,-MiamiVice, MTY, talvez se aplique às histórias de ctimes da década de 1930, em que a ener-
propagandas de cigarro,Madonna e ficção cybe1pmzk. É possível encontrar ' .
. gia ~.'!--(<?i-ç~-
~ ~ ,._,' de uin }ames. Cagney ou de um Humphrcy Bogart ficaram em
milhares de referências que possibilitam verificar os efeitos de textos que ncy>soS~ésí}íritos, produzindo um comportamento rebelde ou criminoso, e
entram a fazer parte da cultura da mídia por meio de uma vasta gama de não o fato de seus personagens terem sido presos ou mortos. Do mesmo
discursos sociais gemdores de efeitos diVersos. mod6, o filme _ll/ew jack Óty (A gangue bt-utal, 1991),_Mario van J>eeble,
Por outro lado, embora ce1taS figuras como Rambo' e Madonna pos- pode ter teni;l;tdo transmitir uma mensagem contrária às drogas e desenvol-
sam gerar efeitos diretos poderosos, é raro que filmes, canções populares, ver uma nacyativa na qual o cri!ne é punido e não compensa, mas o queres-
programas de televisão, etc., isoladamente, influenciem o público de modo soou e influenciou comportamentos, depois, talvez tenha !lido a imagem
direto. No entanto, alguns exemplos do popular globalatingem o status de dos traficantes a viverem na riqueza.
agente influenciador direto de pensamentos e comportamentos por produ- Assim também, certas cenas paleossimbóUcas (Kellner, 1979) podem
zir modelos de sexualidade, estilo QU ação.Tais imagens poderosas são imi- ser veículos de poder9sos efeitOs na mídia, assim como a<; cenas de diverti-
tadas em todo o mundo e muitas vezes afetam diretamente seu público. mento comunitário em filmes como Easy Rider ou Woodstock podem 'ter
Contudo, em geral,foram os efeitos cumulativos dos filmes e da música dos fomentado ideologias e modos de vida contraculturais, com suas imagens
anos 1960 ql.1e artiCularam ideologias contraculturais capazes de fomentar em que as pessOas nadam nuas, fazem sexo livremente, ficam "altas" e parti-.
certos movimentos e de afetar o mo~lo como as pessoas julgam, falam e se cipapt de rituais sociais. O preftxo ''palco-" significa uma espécie de "simbo-
comportam. Ou então são os efeitos cumulativos das imagens racistas de llsm~ primordial" ou "simbolismo subterrâneo". Os paleossímQolos estãO
árabes nos filmes, nos noticiários e nos programas de televisão que possi- vinculados a determinadas cenas carregadas. de drama e emoção. Por exem-
bilitam illobilizar diScuisos antiárabes em eventos políticos como a GUerra plo, Freud descobriu que certas imagens cênicas, como a "criança que apa-
do Golfo-. E assim, conquanto a figura pum e simples de um Rambo possa nha por masturbar-se, ou que descobre oS pais fazendo sexo, exercem im-
produzir um enorme espectro de efeitos, alguns dos quais documentamos, pacto prófundo_ no comportamento subseqüente. As imagens dessas cenas
é o impactó cumulativo de todas as imagens antiárabes veiculadaS pelo ci- permanecem como palcossímbolos a controlarem o comportamento, por
nema e pela televisão que constituem negativamente a imagem do árabe, c exemplo -produzindo culpa na masturbação ou criando grande fasdnaç:ão e;
não um único filme ou uma única produção cultural. atração, ou medo e repuJsão pelo sexo. Os paleossúnbolos não estão sujei-
Os estudos culturais críticos dedicam-se à análise de certas imagens tos a exame ou controle consciente; múitas vezes são reprimidos, vedados à
ressonantes (Kellner, 1990a), instrumento para trazer à tona efeitos da ml- _ reflexão e podem produzir comportamento compulsivo. Por ísso, Frcud
dia. Certas imagens ressoam· em nossas experiências e são assimiladas por acreditava ser necessário compreender a cena para se doniinarem as ima"
nossa inente, lcvandO::nos depois a certos pensamentos· e aÇões. Às vezes, gcns cênicas, e que, por sua vez, esse domínio poderia ajudar a entenFr o
figuras populares como Rambo, Madonna, Beavis and Buti-Head tornam-se que as imagenS cênicas significam e como influenciam o comportamento.
extremamente ressonantes, mobilizando pensamentos e comportamentos; As cehas paleossinlbólicas podem influenciar profundamente nossas_
então há quem queira ser Madonna, c, p:.ra tanto, imita seu modo de vestir~ percepções como participantes de sexos, raças e classes opostas, podendo
se e seu gestual; há quem queira ser Rambo, e, para tanto, imita seu com- conforma~ comportan1entos c estilos sexuais. As representaÇões que a mi-

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dia faz dos negros como pessoas violentas e ameaçad~ras podem. produzir llll'OLOGJA E lJTOP!A
imagens negativas do·negro.Tais imagens,_que muitas vezes são apresenta·
-das em cenas de drama e suspense, podem penetrar no espírito do espec-
tador. Do mesmo modo, as imagens de violência como modo de resolver Devido à proximidade que mantêm com as condiçõeS sociais em que
problemas e exercer poder podem criar fortes resíduoS paleússimbólicos surgiram, os te:s..·tos populares da mídia constituem um ~cesso privilegiado
que moldam atitudes c comportamentos violentos. As cenas paleossünbó··· às realidad~s sociais de sua era; assim, a sua interpretação possibilita a
licas de Rambo Podem penetrar em nosso espírito, levando-nc;>s a fazer compreensão 'dã<]_uilo que está de fato acontecendo em determinada Socie-
musculação, tiro ao alvo e, talvez, agir de modo violento, como nos ·exem- dade em dado momento. Por conseguinte, as ideo~ogias da''~ultura da mídia
plos· apresentados no capítulo qJ.u! tratou do efeito Rambo. devem ser analisadas no cont(::s..-to da luta social e ~JebatCpolítico, e não
Da mesma maneira, á'> imagens paleossimbóiicas de mulheres vorazes simplesinente· como dispensadoras de um tipo de coô.Sciência cuja falsida-
e violentas, como as v:impirescas personagens de Atraçao Fatal e Instinto de é exposta e dcnuriciada pela crítica da ideologia. Embora a desmistifica-
selvagem, que veremos depois, ou de mulheres monstruosas dos filmes de ção faça parte da critica da ideologia, expor simplesmente a mistificação e
horror, podem incutir medo de mulheres. Cenas pornográficas ou degra- a dominação_ni~;.'basta; precisamos olhar por trás da superfície ideológica
dantes, que brutalizam ou mutilam mulheres, podem produzir violência para ver aS "fdtÇ-à.~ c as lutas sociais e· histódcas que geram discursos ideo-
contra as mulheres.A cultura veiculada pela núdia divulga imagens e cenas lógicos ~e examinar o aparato e as estratégias cinematográficas que tornam
poderosas em termos de identificação que podem influenciar diretamente atraentes as ideologias.
o comportamento, criando modelos de ação, moda e estilo. Além disso, <;Qm base nesse modelo, a critica da ideologia não é apenas
Ao avaliarmos os efeitos da cultura da mídia, devemos evitar o extre- denunciadora e 4eve procmar momentos de crítica sod;ü e de contestação
mo de romantizar o público ou de reduzi-lo a uma m~a homogênea inca- em todos os textOs ideológicos, inclusive nos conservadores. Como argttmen-
paz de pensar ou agir criticamente. Precisamos compreender uma contra- taram as feministas e outras pessoas, precisamos aprender a ler os textos de
diçâo:a mídia de futo manipula mas também é manipulada"e usada. Os es,-- forma crítica extraindo aspeCtos progressistas até de textos reacionários.
tudos culturais britânico~ tentam captu'rar essa contradição na distinção Também pod~mos aproveitar a possibilidade de Usar momentos ou aspectos
entre codificação e descodificação, em que os textos da cultura da mídia mais liberais ou progressist.'lS de um filme em contraposição a moment':s me-
podem ser codificados das formas mais grosseiras, ideológicas e banais, mas nos progressistaS, Como quando Jameson 0979, 1990) extr.d os elementos
o público pode produzir seus próprios significados e prazeres com çsse socialmente críticos de filmes como Dia de à1o (Dog Day Afiernoon, 1975)
material. No entanto, é um erro exagerar no caráter ativo do público, como oujaws ~Tubarão, 1975), que são postos em conn-a_ste com posições mais
fizeram Fiske e outros, e no seu poder contra a cultura da mídia.A mídia é conservadoras e usados para criticar aspectos da soctedade.
uma força treme1~damente poderosa, e subestimar seu poder nã~ traz be· Ademais, a_crítica cultural radical deve buscar os momentos utópicos,
neficios aos projetos críticos de transformação social. as projeções de mundo melhor que se encontram em grande número dC
De qualquer modo, os efeitos da cultura· da mídia são muito comple- textos (Bioch, 1986). Ampliando esse argumento, pode-se afirmar que,
xos e mediados, exigindo estudos da origem e da produção de seus textos, como a ideologia contém construtos retóricos que tentam per~uadir e con-
da distribuição e da recepção destes pel() público e dos modos como os in- vencer estes precisam um núcleo relativamente ressonante e atraente, e,
divíduos os usam para produzir significados, discursos e identidades. O me- portán~o, muitas vezes cOntêm promessas ou momentos de emancipaçãq. _
lhor modo de discernir tais efeitOs é por mdo de estudos concretos da ma- A especificação dos momentos utópicos nas produções culturais mais os-
neira como certas produções da cultura popular, como os filmes Rambo, o tenSivamente ideológicas constituiu o projeto de Ernst Bloch, cuja grande
rap ou Beavis and Butt-Head, circulam e produzem efeitos na cultu'ra da obf'.t Thc Principie oj Hope foi traduzida pat:<l: o inglês em 1986 (ver K.ell-
mídia c na vida çoÚ(Hana. Por isso, continuaremos tais estudOs concretos ner, l994b). Bloch faz um exame sistemático do modo como os devaneios,
adiante, nos próximos capitülos, pois antes veremos um pouco mais de teo- a cultuf'J. popular, a grande literatura, as utopias políticas e sociais, a ftloso·
ria sobre as maneiras de aprender a "ler" a cultura da mídia de modo críti· fia e a religião - muitas vezes descartados como ideologia por alguns críti-
co e, ~sim, aumentar nosso nível de infonnação sobre ela. cos ideólogos marxistas - contêm momentos emancipatórios que projetam
visões de uma vida melhor capaz de pôr em xeque a organizaÇão c a estru-
tura da Vida no capita:liSmo (ou no socialismo estatal).

142 143
Durante toda a vida, Bloch argumentou que o marxismo estava vida- como nacionalista. Nossa proposta sobre o poder de atração das obras da cu(·
do por 1,1ma abordagem unilateral, inadequada e negathra da ideologia. Para · tura de massa implica que tais obras nâo podem administrar as ansiedades em
Bloch, a ideologia é como Jano, tem duas faces: contêm erros, mistificações torno da ordem social se ante'$ não as tiverem revivido e não thes tiverem
e técnicas de manipulação e dominação, mas também contém um resíduo dado alguma expressão rudimentar; cliremo~ então que ansiedade e espe·
ou excedente utópico que pode ser usado pela critiea social e na afirma- rança são duas faces d1 mesma consciência coletiva, de tal modo que as obras
ção da emancipação política. Bloch acreditava que mesmo as produções da cu(tum de massa, ainda que tenham por função legitimar a ordem vigente
ideológicas contêm expressões de desejo e de necessidades para as·quais - oü"ôi.Jtra pior-, nãp podem cumprir sua tarefa sem colocarem a serviço
a teori~ e a política soda.listas deveriam atentar a fim de criar programas e dessa função as e~peranças e as fantasias mais profiindas e fundamentais da
discursos capazes de fazer apelo aos desejos profundos que todos têm de co\ethidade, às quais se pode di+er, portanffi-;-qií.""e dernm voz, mesmo que de
umavida melltor. Portanto, as ideologias dão pistas sobre as possihilid~des maneira distorcida.
de desenvolvimento futuro e contêm um "excedente" que não se.exaurc na (J'ameson, 1979: 144)
mistificação ou na legitimação. E as· ideologias podem conter ideais tÍorma-
tivos por meio dos quais a sociedade vigente pode st;r criticada, assim . Tol!. Guu é, sem dúvida, mna utopia conservadora que usa as forças ar-
como modelos de uma sociedade alternativa. mad.is··'tbinô cenário para imagens utópicas de comunidade, romance, he-
Inspirando-se em Bloch,Jaffieson af1rinou que os textos da cuttura de rofsmo masculino e auto-afirmação. Filmes como Tubarão, por outro lado,
massa freqüentemente têm momentos utópicos, propondo que a crítíca poderiam us.ar imagens utópicas para fazer uma critica da ausência de vida
cultural radical analise tanto as esperanças e fantasias sociais do fUme quan- comunitária ~de sua destruiçã_o pot· interesses comerciais. Os textos popu·
to a~ vias ideológicas pelas quais as fanta..<;ias são apresentadas, os conflitos lares podefll., assim, conter também uma crítica social em seus roteiros
são resolvidos, e as esperanças e ansied1des potenCialmente destruidoras ideológicos, e uma das tarefas da crítica cultural radical é especificar signi--
são administradas (Jameson 1979, 1981,.1990). Em sua leitura de Tubm·ão, ficados utópicos, críticos, subversivos ou contestadores, mesmo nos textos
por exemplo, o tubarão representa vários medos (a natureza orgânica fora da cultura da núdia (ver Kellner, 1979). Essas produções podem conter cri-
de controle a ameaçar a sociedade artificial, a especutação financeira a cor- tiCas implkitas e até mesmo explícitas ao ~apítalismo, ao sexismo ali ao ra-
romper a comunidade, pÓndo-a em risco, a sexualidade destntidora a amea- dsmo: ou até mesmo visões .de liberdade e felicidade que podem propiciar
çar de desintegração a família e os valores tradicionais, etc.), medos que o ~rspectivas críticas sobre a falta de felicidade ou de liberdade na socieda- .
filme tenta conter garantindo a derrota do mal pelos r~presentantes da es- de exístente.-The Deer Hunter (O francO atiradm', 1978), por·exemplo,
trutura de classe vigente. No en.tanto, o filme também contém imagens utó- enÍbora seja um teXto reacionário (Kellner e Ryan, 1988), contém imagens
picas da família, do reL1.cionamento masculino e da ayentura, assim como utópicas de comunidade, classe trabalhadora, solidariedade ~tnica e amiza-
contém, sobre o capitalismo, visões criticas que articulàm medos de que a de que criam perspectivas críticas sobre a fragmentação, a alienação e a
especulação financeira sem freios destrua "inexoravelmente o meio ambien- perda da vida comunitária no dia-a-dia do cápitaUsmo contemporâneo.
te e a comunidade. As. imagens utopistas da cena em que todos se drogam e "viajam" num
Do ponto de vista de Jameson, a· cultura de massa articula conflitos· casebre, no ftlme Platoon, contêm visões de harmonia racial e felicidade in·
sociais, medos e esperanças utópicas dos nossos dias, tentando_ contê-los e dividual e social que constituem uma perspectiva crítica sob:rC as angustian-
garantir tranqüilidade por vias ideológicas. Por conseguinte, a crítica cultu- tes cenas de guerra e codificam a guerra como uma atividade hutnana re-
ral exige uma "hermenêutica dupla" que atente para a ideologia e a utopia. . pugnante e destrutiva. As imagens de solidariedade racial e transcendência
Para Jameson: nos números de dança de Zoot Suit (1981) constituem um contraste utópi-
co e crítico da opressão dos negros vistas nas cenas do filme que retratam
As obras da cultura de massa n.'io podem ser ideológicas sem serem ao a. Vida diária e as prisões. E a transformação da vida nos números musicais
mesmo tempo impÜclta ou explicitamente utópicas bem como não poderiio .de Pennies From Heaven (1981) constituem uma perspectiva crítica sobre
manipular se não oferecerem alguma genuÜia nesga de comentam.ento como a degradação da vida diária causada pelas coerções do sistema econômico
suborno de fantasia para o público que é assim m~niputado. Mesmo a "falsa injusto e iiTacional que informa as partes realistas do fúme.
consciência~ de um fenômeno tão monstruoso como o naZismo foi alimenta" Além disso, os filmes de HoUywood, mesmo os conservadores, ttazem à
da por fantasias coletivas de tipo utópico, com aparência "socialista" assim cena medos e esperanças que contestam as relações de poder heg.emôn.k:as

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T
.
.

e hierárquicas dominantes (Ryan, 1989: 111 ss.). Os te'ctos ideológicos, alguns aspectos cogm·1·tvo s e utópicos para atrair os .indivíduos. · . . Se a ideolo·
'
portanto, põem à mostra tanto os sonhos e os pesadelos significativos de gia não passasse dC mentira e mistificaçã?, não tena po~er so~r~ a expe·
uma túltura quanto os inodos como essa cultura está tentando canalizá-los . • . de v·d·
nencta t "• e , se não tivesse aspectos Interessantes, ~ 1
nao atratru'das p-cs-
textos ideológicos muitas vezes tem ~ cog-
_paro manter suas atuais reJações de ppder e-dominação.Thp Gun, por exem- P rt
soas. o ;yt o, t Os · ·d conteu
a gum - · e
plo, mostrn a notcessidad!; de realização pessoa.!, reconhecimento, vida comu- · · e moment os .,c 10· picos que os estudos ,.culturrus
mttvo .- evem exammar
nitátia e amor. Apresenta o (dúbio) argumento de que essas necessidades po- .dtscutlr.L
· · M as • a cn•1·tca da ·dcologia
I
também esta mteressada
.
noct·modo
- como· ·
dem ser satisfeitas pela vida milithr. OutrOs filmes mostram que a sociedade 1 · 1u d.~b-
at·deoogta t ;;0·a os ·mruvíduo" levando-os- a ace1tar as c~on tçoes soaa1s
L , ,,., •

atual não pode satisfazer tais necessidades nem aplacar tais medos, como e os mo d os d e vt·da da atualidade. A ideologia a-oresc~ta.ç__omo -~----.•. -<> -
naturats,
h. • ·
quando Thelma e Lou!se (1991) sugere que as mulheres devem tomar me- como senso· comum, co ndi ç-ões que são fruto de"urij.}!.construçao . di 'd lSton-
didas radicais para manterem a autonomia-na atual socieda~e patriarcal. E um ca, como se .osse ' na t ucal Rambo massacrar centenas. _ de m VI uos e
documentário como Roger & Me (1990) mostra a destruiçjo das comunida- depois voltar-se para o governo c seus computado~s. . . .;-
des trabalhadoras quando as mi.dtinacionais fed1am su:is fábricas. .d . 1 · ambém apresenta como universms os mteresscs que sao
. A 1 co ogta .t . · 'ses
Dessa perspectiv.t, um estudo cultural critico Pcve não só criticar a.s ~
específicoi' ·' '' . como .se fosse-interesse de todos. mtcrvtr. em pat o-
de ttrupos,
ideologias dominantes, mas também detectar quaisquer momentos utópicos, estrangetros -~:~,,,~. a.,."uu··m·ogos~comunistas ou ãrabes. A 1dcologu. torna P _
. ·.•.~ma
contcstadotcs, subversivos e emancipiltórios nos construtos ideológicos, mO- ..
sttrvas con _ e 1'o~as
" d.tçoes ' ·..-
ne<>ativas
"'" '
como se fosse bom os ·
amcncanos
. ·
em· A
mentos esses que são contrapostos às formas vigentes de doníinação. Esse pregarem mercenanos • . e ....., ,....entes secretos par-a fazer seu ,sernço SUJO. hi ,.i-
,''
ptocedimemo inspira-se no tipo de crítica imanente praticado pela Escola de ideologia, portantQ{ representa o mundo às avessas: o que e _cultura1 e s-
Frankfurt nos anos 1930, em que as formas iniciais de ideologia burguesa de- toricamentc conti_ngente aparece como natural e _etern_o; os Interesse~ par-
mocrática eram contrapostas às formas mais reacionárias da sociedade fuscis- ticulares de uma classe aparecem como universais; as unag:~s, os mttos e
ta. do momento. Uma crítica -inlaneme da sociedade cOntemporânea, as narrativas eminentemente políticas aparecem com~ apo~ttt~a.;. .
pottanto, contrapõe seus próprios valores contra as fonnas e práticas sociais • log·a pois é uma retórica que tenta se~luzu' os mdi~·tduos para
A t.dco
da atualidade, que renegam ou contradizem valores amplamente reconheci- 1, • • d 1 as e
qneest~sse-t en1
·d ,·fiquem com o sistema dommante - . e va ores,
A • d crcnç ··d·'
dos, como liberdade c individualismo (ver Kellner, 1984, 1989a).Assim, as ·
compot1amentos. Reproduz •as condições reais de extstencta ~ - - esses . m htvt·
ideologias burguesas de liberdade, individuallsmo e reconhecimento dos di- duos mas de uma forma mistificada na qual eles _?ao conseguem t~co? c-
reitos, conquanto mascarem até certo ponto a existl:"tlcia de uma classe diri· , t egato·va e historicamente cónstnuda,. portanto
ceranaurezan , · modificavel,
1 ·e
geme e dominadora, t~bém_contêm momentos críticos e emanCipatórios_ de sua socjcdade. No entanto, o tr.tbalho da ideologt.a e mmto comp ,exo,
que podem ser usados para criticar a supressão ou a restrição de direitos e ' · surgt·das· na Frailça
é para as teonas · na década de. 1970 .que nos votamos
liberdades na sociedade capitalista. A prática, pois, daquilo que a Escola de em busca de novas perspectivas sobre cultum c tdeologia que possam ser
Frankfurt chamou de "critica imanente" contrapõe ideologia a ideologia,· úteis aos estudos culturais.
usando jdeOÍogias mais racionais c progressistas contt-a outras, mais rePressi-
vas e reacionárias (por exemplO, contmpondO o liberalismo ao fuscismo ou.
ao conserv--.tdOrismo da Nova Direita). Os teóricos críticos da Escola de Frank-
furt, porém, nunca empreender-am tal critica imanente· da cultura da núdia,
e aqui afirmamos que tal projeto pode ser útil aos estudos culturais de hoje,
substituindo modelos denunciatórios anteriores.
Por conseguinte, é preciso desconstruir distinções muito nítida~ entre
__ i.deologia e ciência ou teoria; ou ideologia e utopia. 7 " A ideologia precisa ter termos de 1deo . . •,am,b·m
0ogm. c ' possível com>Jpor discursos ideológicos
- d c criticar
1deuma
vis-
ideologia do pomo de \ista da outra, como quando atacam~s o .fu~~~:m~- ~soo: sentido
'•m<'i>.h<ralTcoriasque,muncontexto,podcnamser!{eoogt' n ·
ta d o h uman.., ' ' · ~- b -.,. 5 em outro
73 Althusser deseja contrapor di:ncia e ideologia, como "outros" mdkais entre si,
enquanto Mannheim, Bloch, Ricot:ur c outros opõem ideologia a utópia. Diriamos que ~e legitimarem tm\a
1
o~dem ~~c~;;l 1 ~'~::.;~~:!:~a~; t.:~~:~~~"~o -;:;tl~ar antig~.a
não cabe fazer distinções tão nítidas, que ideologia e ciênü1,assim como ideologia e uto- como quando o marx1smo <.:x:trc erspcctiva critica radicalnis.socicdadcs c'a-
pia, esrão interligadas. Conmdo, acreditam05 ser o conceito de cultum mais amplo que o União So\iética,cnqu~~~od~pre:;.:n~a~~n;.~~ca. são mntexwais, pois usam normas em
pit,1 llstas. Portanto, touv ISCUISO · •.
de ideologia, e pensamos que, em nível analítico, é possível ~op~sar vârios discursos em_ contextos espcc..uCOo,•o , , ".,,representam padrões ab-solutos de cnt1ca. r .

147
HEGh\IOSlA, CONT!C\-HEGEMON!A E DF.SCONS'l'RUlTvlSM() lidariedade entre as mulheres fossem impossíveis. Contudo, esse 'fmal
também poderia ser, interpretado como afrrmação de sua solidariedade e
· O desenvolvimento de novos modos de ler e criticar os textos ' em~ .
como indicação de que as m_ulheres não podem obter libertação ria atual
preéndido pela chamada nova teoria francesa, também tem algumas impor- sociedade de violência e poder mascuUno, devendo transformar radical-
·tantes implic~ções para o projeto dos estudos culturais. Vários pós-estrutu- mente a. sociedade e a cultura antes _que a libf:rtação real seja possível. Ob-
ralistas franceses _contestaram a, uma visão marxista um tantQ simplista de viamente; os filmes não têm uma única mensagem simples e podem dar
que a ideologia se situa no texto e .constitui o seu cerne, e de que a crítiéa origem a múftlplas leituras, dependendo dos aspectos que a crítica prefim
da ideologia é constituída apenas pela r~futaçãci e a demolição da propos- focalizar e da complexidade do texto em si. ., · .
ta ideológic_a nuclear do texto. Contra esse procedimento, teóricOs conio Os elementos periféricos dos filmes pode~ imp~rtantes também
Roland Barthes, Pierre Macheray,)acqúes Derrida e outros pós-estruturalis- por .outras vias. Na seqüê?cia de abertura de Um tim da Pesada (Beverly
tas propõem novas maneiras de ler os textos e empreende!' a crítica da Hills Cop) temos um retrato bem realista do gueto negro de Detroit _
ideologia. Segundo eles, os textos devem ser lidos comO expressão de vá- precisamente o mundo ,étue o projeto ideológico do filme tenta aPagar,
rias vozes,e não como enunciação de Uma única voz ideológica, que'preci- visto qu,e a:aÇãÇ> muda para Beverly Hills, onde está a classe alta. Cruising
se então ser especificada e atacada. Desse modo, exigem leituras polivalen- (Parceúbs;,dtrfíoite, 1980),.embora constitua um ·ataque homofóbico à vida
tes e um conjunto de estratégias criticas ou textuais que dewendem suas dos gãys, ~ostra a ambivalência sexual dq policial (desempenhado por AI
contradições; seus elementos contcstatórios periféricos e seus silêncios es- Pacino) e, indiretamente, a animação das cenas gays em algumas das suas
trutura.dos. Ei<>as estratégias comp~eendem a análise dO modo como, por representações,;r:inematográficas. Conforme argumenta Robin Wo~d
exemplo, o que é periférico nos textos pode ser tão significativo quanto o (Wood, 1986),alguns textos cinematográficos são inerentemente incoeren-
que é nuclear em !:ermos de posições ideológicas, ou como seus ekmen- tes e contraditÓfios. Nesses. casos, a crítica da ideologia poria à- mostm con-
tos perifericos podem desconstruir posições ideológicas afinnadas no tradições ideológicas centrais ou tentaria mostrar os modos como aquilo
texto por contradizê-las ou enfraquecê-las, ou de que mOdo o não-dito é tão que parece ser posição ideológica ou argumento nuclear é, na verdade,
importante quanto o que foi realmente dito. · questionado e solapado por elementos contraditórios ou periféricos do
Tal estratL""gia implica dar atenção ao periférico, aos elementos aparen- -,__·. texto. Ess~ procedimento mostraria então como as ideologias podem en-
temente-insignificantes do texto, bem como às posições ideológicas especí- trar em contradição entre si ou falltar, demonstrando rachas, fissur--.t.s, pon-
ficas afirmadas.Att Unmarrled Woman (Uma mulher descasada; 1978), tos vulneráveis e fracos e lacunas dentro da própria ideologia hegemônica.
por exemplo, apresenta a ideologia do temin'ismo liberal, segundo a quarEri- Th!nbém ·se deve prestar atenÇão ao que fica fora dos textós ideológicos,
ka (jill Clayburgh) é capaz de dese~volvcr-se mais plenamente em termos pois freqüentemente são as exclusões e os silêncios que revelam o projeto.
de relações e, de carreira depois de ser abandonada pelo maridO, que: se vai ideológico do texto. Por exemplo, filmes corno O franco atirador (Tbe Deer
com uma mullter mais jovem, No fim do filme, da está andando alegre e sal- Hunte-J) e outros de retomo ao Vietnã deixam de fora as atrocidades arnerica-
, titante por uma rua de Manhattan com um: quadro enorme que acabou de · IJitS cometidas contra os vietnamitas (retratadas em filmes como Plqtoon e Pe-
ganhar do namorado (A1an Bates), Com quem se recusou a partir imediata- ·cados de gue-l'ra) e apresentam os soldados americanos como vítimas
mente para New Hampshire para dedicar-se à StJa carreira. Quando Erika inocentes de vietnamitas e comunistas rnaÍvados. As apresentações ide9lógi-
atr.wessa a rua, três trabalhadoras negras e latinas param para olhá-la; nesse cas das mulheres da sociedadé contemporânea n.os (limes de Hollywood mui-
ponto a cena é congelada, enquadrando seus rostos, o que enfraqueée a afir- tas vezes deixam de fora os modos cOmo as mulheres estão se unindO para lu-
mação ideológi.ca ,feminista e liberal do filple por mostrar que a maioria das tar contm a opressão !llascuUna, não só por meio da amizade, ao modo de
mulheres não pode se dar ao luxo ou ter o privilégio de faZer escolhas que Thelma e Louise, mas também por meio da organização e da formação de as-
· só as mulheres das classes ~-yperiores, como Eiika, podem fazer. sociações. A hegemÓnia, portanto, ftmciona por exclusão c margfuatização,
Thelma e Louíse, por outro lado, apresenta um feminismo mais radh a:;sim como por afirmação de posições.Jdeológicas especificas.-
cal-na sua crítica à brutalidade masculi~a que obriga as Protagoriistas ]l yio- Por isso, tais métodos de crítica da ideologia incentivam o critico a in~
\
lência e ao crime. No entanto. o final poderia ser interpretado como ·u~ so. teressar-se tanto pelo modo como a ideologia falha qua"to pelo modo
!apamento da afirmação de irmandade 'r- triünfo das ,m:ulheres ao mostrar corno ela ú:m sucesso, pelo niodo como os textos ideológicos constituem
as protagonistas sainô.o de carro de um rochedo, como se a libertação e ·so- lugares de tensões e dissonàn~ias_ mesmo .quando parecem harmoniosos e

149
ideologicamente bem-sucedidos.· O primeiro filme da série Pers~guidor n:ares e talvez não conscientcme11.te percebidas.·A critica diagnÓstica,, I
imp~a~~vel ~Di;ty ,Hany), por exemplo, embora seja sein dúvida um ape- portanto, deve pressupor uma dimensão de profundidade nesse tipo· de,
lo dJretttsta a let e a ordem, mostra um cotúlito entre visõés liberais e con- cultura e usar métodos de interpretação de mitos e símbolos para trazer à
' servadoras sobre a execução da lei, e, ainda que tente privilegiar a versão tona sjgnificados ocultos, latentes e subliminares.
cons:rvadora, retrata uma sociedade tão àvassalada pelo crime, pela cor- A aplicação de método~ psicanalíticos à Icitum de Top Gun, por
rupçao e pela inércia dcsespcrnnçada que uma leitura crítica poderia exemPlo, indica que o filme versa sobre o poder fãliç_o, as ameaças aos va-
demonstrar serem .deficientes tanto as soluÇões libt:;.r.Us quanto ~as conser- lores masdUinistas dos anos 1960 e 1970 e a sua reafirmação nos anos·
vadoras,~ que someute. uma rcestr~turação social q~.dical pode resolver os 1980. Ser "top gun'"' evidentemente significa.!>Cr.supi:'rgaranhão c superpi-
·problemas que o· filme apresenta. Sem querer, talvez, a conclusão do loto de caça aéreo, e as duas competências ~relaCi'Onadas em tOdo o
primeir~ fibne ~série, em. que Harry joga fora o distintiv:o, aponta para filme. Quando Maverick sai·triUnfull;te de suas ráÇãnhas militares consegue
uma soctedade tao corrt!pta que até a solução direitista para o crime deve a mulher que queria; quando fa_llia, ela o deixa; quando triunfa, nO fun,·eia
falliar inevitavelmente. No fibnc, o herói conservador individualista sai ah- está ali para ?alidar sua vitória. Top Gun e~tá cheio de símbolos e, poderes
dando sozinho pela natureza (pura), mas os interesses econômicos conser- fáticos, Qe iniagens da potência masculina, desde as primeiras imagens dos
va~ores, por sua vez, estão destruindo a natureza a qU:e aspiram os seus fa~: aviõe~ f\liCíi até as cenas de batalha do desfecho. Portanto, a perspectiva
taststas, mostrando, assim, que a solução conservadora clássica é cada vez psiCanalítica reforça a feminista, e não por acaso muitas feministas adota-
mais indefensávcl no mundo moderno: ' mm as perspectivas psicanalíticas .
Portanto, a crítica desconstrutiva mostra como os projetos ideológi- Numa leitura diagnóstica, Top Gun e.-x:pressa o medo de qüc ó poder
cos falham ou minam suas próprias mensagens e intenções. Os textos da rhasculino estdja sendo ameaçado pelas mulheres na sociedade atual e rea-
cultura da mídia são complexos e exigem leituras polivalentes. No entanto liza um resg~tc de privilégios. Certo númerO de ftlmes dos anos 1980 e
t!ão são tão polissêmicos que possam significar qualquer coisa, e 0 púbiic~ 1990 também apresenta mulheres fálicas como ameaça aO poder masculi-
e levado a aceitar certas posições por meio da mobilização de todo 0 apa- no e à domestiddade familiar. Parte daquilo que Susan faludi diagnosticou
rato cinematográfico, televisivo, etc. Embqra de poSsa resistir às leituras como reação da mídia ao feminismo (1991), filmes como Atração fatal e .,l
"dominantes", n.'io é certeza que serripre faça isso, e siio poucos os indícios Instinto selvagem, retrata mulheres fortes, solteiras, independentes e bem-
a fundamentarem a crença de Que ele sempre lê os textos contrariamente . sucedidas numa visão extremamente negativa. A vilã de Atração fatal
à cultura dominante, como Fiske chega perto de afirmar. Na verdade, os e~ (1986), uma editora solteira e bem-sucedida chamada Alex e representada
tudos dt:ste lívro destroem a sua afirmação de que"n:Ío pode haVer cultu- por Glerln Close, seduz um homem casado, Dan Gallagher (representado
ra popular dominante, pois a cultura popular sempre se forma como rea-·· por ~chael Douglas), e passa a persegui-lo obsessivamente, procurando
ção às forças de dominação, e mmca como parte delas" (Fiske, 1989a: 43). destruir seu casamento e apoderar-se dele.
Conforme indicarít nossos estudos de Rambo, Top Gun ~ outros filmes mi- Faludi comenta que o ftlme, inicialmente, pretendia ser um retrato so- ·
titari~tas,_sexi~tas e racis_ras: a cultura da núdia às vezes IegÚi~a as forças de lidário dos dilemas de uma mullier indt-1Jendente e só, mas a versão original
d?mmaçao e mduz o publico a extrair prazer da adesão a posições ideoló- fazia dela uma vítima trágíca da situação, que acaba por suicidar-se numa ba-
.j
gJ.c~s, outras vezes ~1ão consegue fazer isso c outras ainda leva ao prazer por nheira. E.'l.Se final, porém, foi refeito, e a esposa acaba por atirar na mulher
mc1o da contestaçao das ideologias e das instituições dominantes_?·J As en- só, que o filme leva o público a odiar,com·seus contrastes entre a vida fami-
trevistas etnográficas feitas com o"público na busca de suas interpretações liar. feliz e a perversa ame~a que Ale..-x representava. Uma cena-chave a
sobre a cultura da mídia c de análise de seus etdtos devem ter em Vista 0 mostm a observar em atitude de voyeut· uma cena de familia feliz em que
faro de que muitas mensagens da cultura veiculada pela mídia ·são sublimi- Dan presenteia a filha com um coelho, sob os olhares afe"tuosos da espOS<;l. .I
Alex é vista do lado de fora,a olhar, num momento em que o filme dramati·

74 Ver apêndice de Camem PolJttcu, em que se faz·um estudo de Cntr.,;istas. com 0


za precisamente aquilo que aquela mulher sozinha e bem-sucedida na car-
reira está perdendo; e ela vomita quando percebe tudo o qt~e lhe falta ..
I
público em torno de mensagens e efeitos polltiCos dos filmes populares.' A enti:evista O outro lado de Atração fatal é a momt da história para os homens,
apresen)a toda uma gama de reações a e.~ses filmes e de leituras das questões politkas
pois, os adverte de que, caso se desviem da monogamia matÍ-imonial- nem
(Kdlncr c Ryan, 1988). muitas das qt!ais adotam a codificaçiío ideológica dos filnJes
>:mtuanto outras resistem ou apresentam outras leituras. que por uma só vez -,o resultado são a desgraça e a destruição daquilo que

150 151
é apresentado coino a coisa mais ~portante da vida. A--mão que bala~ça assumissem o poder fálico.Tanto·a escritora de Instinto selvage1Í1 qbanto
o berço (1992) contém problemáticas semelhantes a favor dá família tradi- Alcx, de Atraçiio fatal, podem ser vistas como. veículos dçrtisôrios do
éional c do papel tradicional das mulheres, contra· as mUlhereS sós. Num ro- pOder 'fático_ a investirem furiosamente com facas e furadores de gelo, suas
teiro melodramático, uma mulher casada e Ieliz, Claire Bartel (rcprcsc~tà­ arrflas de eleição, súnbolos cruamente freudianOs do falo violento.
da por Annabella Sdorr.t), conta que seu ginecologista a molestou sexual- A crítica diagnóstica, cOmo a que ilustraremos e desenvolverem~s ~os
mente; outras mulheres fazem a mesma queixa, e ele se. suicida, o que leva estudas· seguintes, usa a história para ler os tcxt~s e os textos para ler a
sua esposa, Peyton (representada por Rebccca De Momay), .i· sofrer, 'um Wstória. Essã·óptica dualista Possibilita compreender as m(útiplas relações
aborto. Num plano hiperbólico de vingança, Peyton se introduz no lar dos entre textos e contp:tas, entre cultu~:a da tnidia "
e hi-Stória.
. .,. Nossa critica
Bartcl como babá de seus dÜis filhos e- tenta destntir a mãe de f<~.mília, para diagnósUca da cultura contemporânea da míi!i~J,Bdic.i (j_ue a hegemonia
vingar a morte de seu marido. · ideológica na sociedade americana hoje_ é complexa, controversa e está
E assim,_ mais uma ve_z, os homens são avisados de que, caso se des-- sendo constantemente quéstionada.A hegemonia.é negociada e renegada-
vicrn da fidelidade matrimonial, o resultado ·será a desgraça, enquantO as da, é vulnerável a ataques e à subversão. Nos últimos anos, por exemplo, a
mulheres· são mostradas como seres capazes de descambar pai-a a loucura hegempni,a '~lítica da Nova Direita no governo Reagan transitou para um
e a violência quando não têm um homem que tome cont~ delas e possibi- conseiv:rt;tbN.Sino mais centrista no governo Bush, que, por sua vez, foi se
lite a realização de sua natureza feminina. Numa das cenas, reyton é sur- tornãndo. cada vez mais inilitarista na esteira da· invasão do Panamá e da
preendida por um negro que trabalha para a família a amamentar ao peito Guerra do Golfo. No entanto, apesar da evidente popularidade desta últi-
o recém-nascido dos Bartel; ela obtém su~ denlissão com a falsa acusação ma, a hegemol\_~ de Bush acabou por se tornar vulnerável, trôpega e passí-
de que ele molestou sexualmente a filha do casal. A imagem da mulher vel de ser des.trUída c revertida --o que, na verdade, aconteceu na eleição
com ftlho répresenta a norma para as mulheres; Peyton, a qUem isso é ne- presidencial de 1992. •'
gado, acaba impelida a extrt:mos psicóticos na tentativa de desempenhar A leitura diagnóstica da cultura da mídia, portanto, possibilita a
esse papel. E nos dois filmes é a esposa que, lutando por suà família, mata compreensão da situação polít_ica atual, dos pontos fortes e vulneráveis das
.aquela que ameaça sua felicidade familiar. ' forç;is políticas em disputa, bem como das esperanças e dos temores da
Atração fatal e A mão que balança o b"et·ço Contrapõem boas e máS pop1,1lação. Dessa perspectiva, os textos da culfura da mídia propiciam uma
mulheres: as mulheres tradicionais são representadas como boas boa compreensão da constituição psicoló{i:ica,sociopolítica c ideológica de
,enquanto as profissionais independentes, celebradas por certas versões determinada sociedade Ctn dado momento da história. Sua leiturà diagnós-
do feminismo, Ou as mulheres simplesmente sozinhas, são retratadas tita também permite detectar as SÇ>luções ideológicas qué Cstão sendo ofe-
como carentes e c<,~.pazes de comportamento vil t:: destrutivo.Jnstihto sel- re~idaS' aos vários problemas, sendo então possível prever certas tendên-
vagem, por outro lado, envilece as mulheres como tais com a história de cias, entender problemas e conflitos sociais e aquilatar as ideologias domi-
uma escritora bem-sucedida (representada por Sharon Stone), cujos fami- nantes e as forças contestadoras emergentes. Por conseguinte, a crítica po-
liares, amantes e inimigos são misteriosamente assassinados. o maiS im· lítica diagnóstica possibilita perceber 'as limitações das ideologias políticas
pressionante desse filme é o grau de envilecimento de todaS as person· conservadora e liberal _predomin.antcs, além de ajudar a deCifrar a atraçãO
agens femininas. O complicadíssimo roteiro não esclarece se a escritora constante que exercem. Possibilita apreender os anseios utópicos de dada
ou uma psicóloga da polícia obcecada pela escritora são realmente culpa- soCiedade, desafiando os progressistas a desenvolverem repreSentações
das do crime. Duas outras personagens femininas importantes, a· amante c'ulturais, alternativas políticAs e práticas e movimentoS que .lidem com
da escritora e uma mulher mais velha, também são mostradas como assas·· c_ssas predisposições.
s~nas.em série de menlbms de suas respectivas famílias, numa rep~esenta­ Tal leitura diagnóstica, portanto, auxilia na formulação de práticas po-
çao das mulheres como seres malvados e perversos em si-- estereótiPos líticas progressistas que respondam a esperanças, medos e desejos impor-
sexistas· tradicionais. · tantes, bem como na construç.âo de alternativas sociais fundamentadas nas
Instinto selvagem também denigre as lésbicas, apresentanda:-as como matrizes psicológicas, sociais e culturais existentes. Por conseguinte, não só
pervertidas e vorazes, e t·etr--.tta as mulheres como seres desejosos de assu- possibilita outro método inteligente de interpretaçãÓ de filmes como
mir o poder e o controle fálico masculino.Na vérdade, o filme pode sef h-t- também fornece armas críticas ads iil.teressados em criar uma sodedàde
terpretado como uma alegoria alarmista daquilo que as mulheres fariam se melhor.

153
pação americana, suscitando, assini:, in~agaÇões sobre a intervenção ~pe­
PL4T00N. UMA CRfHCA DlAGNÓST!CA riijlista no TerceirO Mundo.
_., __,. Os dois filmes mais impottyltes nos debates de Hollywood sobte o
Quase duas décadas depois da que4a de ~aigon para as forças comu- VJ.etnã, na década de 1970, porém, O franco atimdm· (1978) e Apocalypse
nistas o'Vietnã continua serido assunto de disputas acaloradas na cultura Now (1979), usavam. um roÚ:iro "coração das trevasn* para apresentar visões
e na ~olítica americana. Como mostra J William Gibson (1986) em seu racistas dos americanos "inocentes~ atirados num conflito violenta: no Orien-
livro Tbe PeifectWar:Technowar in Vietnam, os libeiais, desde o come- te ~misterioso!'~€ ''selvagem" .Ambos os filmes apresentam visões míticas do
ço, apresentaram o Vietnã como uma série de "erros trágicos", enquarito heroísmo masculino, na tentativa de salvar algumas ~virtUdes redentoras da
Os conservadores põem a culpa da derrota nos políticos e nas excessivas den'Ota americ~na no Vietnij, e ambos se esquiva"tn:çi.Jwne'Sfumente das cau~
"restrições~ ao uso da força militar. No rescaldo da guerra, liberais e es- sas, da história e da real trajetória da guerra do Vietnã (ou seja, Versam mais
querdistas afirmavam que a débêtcle demonstrou os limites do poder mi- erit torno de "macheza" e "heroísmo" do que do próprio Viç:tnã).
litar americano, a impossibilidade de policiat o mundo e de deter movi-~ Durante a era Reagan, fantasiaS ideológicas comb Rambo, Red Dawn
mentos de libertação em todos os lugares. Para os conservadores, ao (Aplanhece.r .-'S4-~zgrento), Missing in ActiOn, Top Gun, a minjssérie de 1V
contrário: a ·'slndrome do Vietnã" representou ausência de vontade, covar- Amertkà ~'9un-ás produções da cultura da mídia representavam agressiva-
dia e derrotismo dos liberais, que deveriam ser sobrepujados com a um en- mente<posÍÇões direitistas sobre a guerra, o militarismo, o comunismo, etc.
io das forças militares e recmdesdmento da intetwenção. Cqm as vitórias Esses tilmes e outros como A força do destino, Guerra nas estrelas e In-
presidenciais. de Ronald Reagan em 1980 e 1984, _a versão direitista diana fones, ser;viram ad tutuseam ao reaganismo como pfopaganda im-
tornou-se oficial, e a origem dds problemas de Reagan com o escândalo plícita e expliciif e como programa intervencionista e militarista distinta-
h"ã/Contras, pode ser buscada na incapacidade da direita de aceitar os li- mente de direitâ. Nesse contexto, Platoon pode ser visto como uma inter-
mites do poder americano e no seu impulso obsessivo de deter o comu- venção liberal-esquerdista no debate de Hollywood em torno do Vietnã.
nismO, dcrmL'lr o Outro estrangeiro .e reafirmar o poderio militar ameri- Platoon, de Oliver Stone, é provavelmente o filme mais realista e cl'Í-
cano em todo o mtmdo. tico sobre o Vietnã feito até hoje.'6 O roteiro- baseado na vivência de Sto·
A batalha enlre a esquerda c a direita em torno do Vietnã, da guerra ~ . ne no.Vietnã de 1967 a 1968 - conta as experiências de um jovem volun-
do militarismo ocorreu no cinema de Hollywood e na culttu:a popular ame- tário cha~1ado Chris Taylor (Charlie Shecn), que é, obviamerite, o alterego
ricana tanto quanto na arena politica. Embora a fantasia ultradireitista.de de Stone. O jovem soldado emerge 'do ventre escuro de um veículo militar
John Wayne, Os botnas-vet:df!s (1968), tenha sido o lmico filme tkcional' pára a luz poeirenta e dourada (e extremamente filtrada) e para O som dos
sobre o envolvimento americano no Vietnã durante os anos da inter- helicóptêros, ri um ingresso dramático no Vietnã, apt{."Sentadg como umàAl-
vençãq, muitos fllmes, como M.A.S.H., Ardil 22, QuandÇi é preciso ser teddade exótica. Ele e os companheiros vêem cadáveres dentro de sacos e ,,i
homem e outros, dcverfam ser vistos como ataques à intervenção america- são imediatamente transportados pânt a selva para um combate, cmpurr.tn- '
na no Vietnã e como respostas às versões direitistas de militarismo e de po-. do-se, assim, o espectadot para a realidade da batalha sem nenhuma prepa-
Litíca externa americana no contexto dos debates sobre o Vietnã no fim da ração ou aviso prévio.
década de 1960 e início da de 1970. 7; Depois que os americanos saíram do
Vtetnã e ~s forças comunistas venCeraJti, o debate em Hollywood sobre o
Vtetnã finalmente emergiu frontalmente. Filmes liberal-esquerdistas-como • Refcrênda às relações e.xistemes emre o roteiro do fi!me_Apoca(vpse Now e o çonto
dejoseph Conr.id,Heart ofá(ll-!;mcss. (N.T.)
'coming Home (Amatgo regresso), who'l( Stop the Rain (anlbos de. 1978),
Cutter's Way (1981) e Nascido em 4 de julho (1989) apresentavam Os ve- 76A maioria das resenhas ress~ltou·o suposto realismo de Ptatoon, elogiando-lhe a ho-
teranos com simpatia, como vítimas de uma guerra ma! conduzida, nestidade, a verossimilhança, etc. (o cart:1;2 c as propagandas do filme o.stent<n"Jm tais
comentários). Do mesmo modo, as reflexões sobre o filme fdus per veteranos e co-
enquanto Go Thll tbe Spartans (lnje:nw sem saída) e Tbe Boys Ffom mentadores político~ tendi.am a ressaltar seu realismo e ~uas n:pres.entações precisas
Company C (At!(mçar j)ara morrer), ambos de 1978, e Hambufger Hiil cL1 guerra e da experiência ·de luta; ver, por exemplo, os artigo5 do Nw Y(lrk Times
(1987) apresentaVam combates ocorridos no Vietnã e criticavam a partici- escritos pelo correspo~dentc David Halberstam e pelo fuzileiro nawl veterano _David
Ttainor (15 de março de 198i). Discordamos des:>a posição aqui e, de modo geral, ve-
mos o realismo como um Conju.mo de convenções que constroem um quadrç do
75 Sobre a apresentação dll \ktnâ em HoHywood, ver Britton, 1986;Wood, I986; e Kell-, mundo, e não comO um modo de i.m.it:lr o mundo ou de d:u- acesso à realidade.
ner e Ryan, 1988.

154
c
O próprio Chris aterrissou no Vietnã-sem conhecini<:nto real do que xeque pela narrativa_ de Chris que questiona o conflito, a_morte violenta
está acontecendo lá c sem saber no que está se metendo. Na marcha ini· dos soldados americanos do pelotão e ri.s ações brutais contra os vietnami-
cial, o calor, os insetOs, a selva estranha c o medo o fazem passar mal, e um tas.Aação figurai privilegiada no filme é constituída pela atividade dos sol-_
oficial que se compadece dele se dispõe .a carregar parte da excessiva ba- . dados em luta, em patrullta c no acampam-ento. As figuras 4ominantes,.
gagcm que ele levou. Chris tenta explicar suas motivações e suas experiên- porém, como veremos abaixo, constituem o choque entre soldados "bons"
cias numa narração de fundO que resum~ as cartas escritas aos avós, mas o·
e "maus", que desvia a atenção da irracionalidade da intervenção ameri-
logo é sobrepujado pelas experiência<; vividas, que já não' podem ser ex- cana e apreseht'â~a ação Como um conto simbólico que tem uma mora! e
pressas em termos convencipnais, e interrompe essa atividade. · põe em cena imagens opostas de soldados ehom~ns. :'::
~ssim ~ue seu pelotão chega ao ac.ampamento, "em algum lugar per- A maior parte do filme trata do medo, da inêéa.:s.r-1 c d"a bmtaliz~ção
to da frontetra do Camboja", Chris é incumbido de fazer a patrulha da noi~ a que eram submetidos os jovens americanos lançados nas selvas do Vietnã.
te, e logo depois de e os esp_ectadores são iniciados nos rituais de busca Embora se dê alguma atenção à droga, que representava um intervaio e
e des;ruição, das sentinelas noturnas c do fugo cerrado e~ que explosivos urna válvula de e~capc, cncontram~se pouquíssimos exemplos dos diálogos
mortlferos de repente coruscam, mutilam e matam.As principais cenas de estereotip,[ld~st_d~ indefectível romance, da ênfase pessoal ou da exaltação
batalha - que lançaram mais luzes sobre o envolvimento ~mericano no do heroísm.ãiirt1i:Séulino e da amizade entre homens, típicos dos filmes de
Vietnã - são as do ataque incendiário a aldeias vietnamita~ e de um ataque ·guerra de Hol!ywood.Platoon tem uma intensidade alucinatória e recria vi-
em massa do "inimigo", que encurrala as forças americanas e as deixa sem gorosamente a experiência de estar em guerra num aínbiente completa-
suprimentos e reforços.A cena da aldeia retrata .vigorosamente as- atroci- mente hostil e est'Wlho. O foco que Oliver Stone dá à obra é o da experiên-
dades americanas.As tropa$ americanas entram numa aldeia suspeita de .cia do combate, e o filme recria com brilltantismo o ambiente c a atmosfe-
abçigar vietcongucs c hl'Utalizam mulheres, crianças e animais, ind:ndian- m ·nos quais as trÕpas americanas lutaram no Vietnã. Tan1bl:m ddxa claro,
do-a depois. Numa seqüência nan-ativa muito impoJ·tantc, o. "humano'; sar- desde o começo, que a maioria dos jovens escolhidos e enviados ao Vietnã
ge_nto Elias (Willem Dafoe) ·impede que o brutal sargento Barnes (Tom eram brancos e negros pobres, e que a guerra, sem dúvida, não atende aos
&renger) mate uma moça depois de já ter matado uma rrtulher e outro<> interesses deles, de maneira nenhuma. Na verdade, Platoon desfaz O gla-
aldeõ~s. Chris, que tinha começado a participai- das atrocidades, presta lnOU1' da guerra quando mostra que ela brutallza os jovens e, inevitavel-
atençao e logo depois interrompe o estupro de uma adolescCnte por mente, tmz pam fora< o que há de ·pior neles.
outros soldados. · Por outro Jado,Platoon não apresenta os vietnamitas como sujeitos au-
Essa cena lembra My Lai e outros crimes de guerra americanos, mos- tônomos com seus próprios pontos de vista c suas razões para lutar, nem es-
(
tmndo, assirú, realisticamente, os efeitos brutaüzantes da Guerra do Vietnã clarece o '~nvolvimento americano no Vietnã· e a naturez:t imperialista -da
i'
ao mesmo tempo que dc'sautoriza a.<> convenções dos filmes de' guerra tm-
'
intervenção. Como a maioria dos filmes de HollywOod sobre a guerr-.t do
diciona.is que pintam os "nossos mpazes~' como bonzinhos, e 0 ~inimigo"; Vietnã, o foco de Platoon recai quase eXclusivamente sobre as tropas ame-
como malvado. Assim também; o massacre fmal mostra a martirização dos ricanas e suas experiências, apresentando os vietnamitas como objeto de :·.;
sold~d?~ a~erican~s ~sados como isca pa_r'a atmir u~ ataque inimigo que· medo (nas cenas de combate) ou de piedade (nas cenas de atrocidade). Na ''
poss1bthtarta ao exerc1to americano e~npregar um poder de fogo superior, verdade, de muitos modos Platoon adota as convenções c as ideologias mas-
. com _a~mas e estratégias convencionais qUe eram impossibilitadas pelas cuJ~:tistas da tradição hollywoodiana ein filmes de guerra. A trama se estru-
cond1çocs da luta na selva. O capitão americano acaba por ordenar um tum em torno da iniciaÇw de Chris Taylor no conhecimento e na "mache-
ataque aéreo à região, o que destrói indiscriminadamente tropaS america- za", c a masculinidade é definida (comO na maioria das tradições reacioná-
nas e Vietnamita.<>. rias de Hollywood) como a capacidade de cometer atos violentos. Chris pas-
. O horizonte social de Platoon foi constituído, obviamente, pela prÓ- sa clarnmente da condição de "calouro" ingênuo para o de máquina mortífe-
pna Guerra do Vietnã, pelas· experiências dos soldados amçricanos e 'pelo m experiente e eficaz, que mata quem aparece pela frente e irrompe de um
l~nmlt~oso debate sobre o assunto ocorrido nos Estados Unidos. o ·campo esconderijo na cena da batalha final para matar dezenas de vi~mitas com
(~lscurstvo do filme foi constituldo pelos discursos antibelicistas que ques- um jeito que deixariaAudie Murphy à)ohn Wayne cheios de orgulhÓ.
ttonavam as motivações e as ações americanas naquda guerrà, minaodo a O trapo sin1b6lico nucleái' do filme, que cmltmpõe o "malvado" sar-
argumentação qu,e legitimava a ~tervenção americana. A guerra é posta em gento Barnes ao "bondoso" sargento Elias, também é problemático. Desde

156
o começo, Barnes é um comandante ca.xias, autoritário c bmtalÍnente ct1- menta do terreno e da situação.Assim como esses dois filmes, Platoon ~ra­
cientc que despeja uma chuva de obscenidades em cima de Chris e man- ça um lim.Íte nítido entre guerras "boas~ e ~ruins", entre soldados "bons" e
da-o continuar_mexendo a carcaça quandO ele e_stá a ponto de desmoronar "ruins", em vez de fazer uma crítica mais penetrante da guerra, do militaris-
na pi'imeira miu'cha. Elias,por.outro lado, pega alguns livros e o excessO dé mO e da política externa americana. ·
apetrechos da sua bagagem· e se oferece para cafregá-los. À medida que a Assim, as questões políticas são substituÍdas por questões ~orais cujo
narrativa se desenrola, um grupo de soldados.se identifica ca:m Barnes, · cerne é a lttta moral entre Barnes, representante da eficiência brutal, c Elias,
enquanto outros se ligam a Elias, delineando o que Storie via como diviS.ãO rePresentante êta humanidade idealista que tenta preservar o respeito pela
furidamental do exército no Vietnã, entre regulares militaristas e durões vida humana em situações difíceis. NO ftm do fllttJ:C, em vó~~e-ovet; o jovem
(reaças beberrões) c tipos contraculturais mais humanos (negros, hlspâni- narfador Chris refere-se a B~nes como o "noss&:~itão·Â.hab ., , dizendo
cps e a cultura hippie da droga). 77 Stone e seu filme vêem um dos.gi'úpos que"Barnes e Elias lutavam pela posse da nossa alma". Num gesto fmal bem
_como "caras legais" e o outrq como "caras ruins"- reproduzindo a visão ma- masculii1.ista, Chris mata Barnes, purgando simbolicamente a sua ahna do
niqueista que percorre todos 'OS filmes de guerra de Hollywood. mal e da brutali~lade com que se confrontara no Vietnã. ·
Essa divisão moralista permite que Stone consagre Elias (e em última Port.ant_o,>)ç,'_simbolismo de Platoon sobrepuja o seu realismo mas
análise Chris) como o soldado "bonzinho", enquaÍtto renega Barnes e sua apesar d.is tPltáS\ con~ém algumas fortes críticas à intervençãO amé;ican~
coorte como soldados nlins. Elias ·é, assim, apresentado como mais "hum;t- ~o Victfiã. A brutaJidade do pelotão americano na aldeia vietnamita é. uma
no" e "moral" que Barnes, mas também·chama os vietnamitas de "dinks"* e apresentação nauseabunda das atrocidades americanas no Vietnã como só
parece sentir prazer em matar um monte de "inimigos'' c partir pai-a mis- Hollywood é cap~ de produzir, e tais cenas fortes subvertem o maniqueís-
sões perigosas. Stonc lhe atribui um heroísmo quase sobre-humano e con- mo ideológico doS\radicionais fllmes hollywoodianos de guerra·. A cena fi-
ccdc~lhc uma cena de morte redentora em que ele cambaleia em dimára. nal de combate ifUstra o fato de alguns pelotões terem servido de isca cuja
lenta, como se fosse atingido repetidas vezes pelos vietnamitas depois que tlnaUdade era atrair os vietnamitas par.t teatros abertos de luta; o massacre
Barnes tentou assassiná-lo, e morre com Os braços erguidos para' o céu. das forças ameriq.nas e vietnamitas constitui poderosa denúncia da futili-
Por conseguinte, devido à intensidade com que o foco recai noS com- 'dade e da bnttalidade da guerra.
bates c no conflito moral, não há realmente análise politica da intervenção Em _seu conte>.."to políticO, a visão critica de Platoon sobre a inter-
americana no Vietnã, c o filme não tenta'responder,'em nenhum nível, à venção amerieana se contrapunha ao discurso direitista sobre o Vietnã pre-
pergunta. ~por que estávamos no Vietnã?" A visão de Stone de fato. não é di- sentes em Rambo, em Reagan e em outros que se recusavam a vef que a
ferente da dos primeiros filmes críticos sobre o assunto, tais como liifemo guerra .do Vietnã es.tava fundamental e moralmente errada.Além disso, suas I
sem saída e Avançar para morrer (ambos de 1978).Assim como InfernO deúwnstt;âç.ões visuais dos hotrorcs da guerra criaram posicio~amentos
sem saída, Platoon mostra os americanos coffi,ctendo um erro crasso ao contráriÓs às .fantasias de heroísmo militar propaladl)s na for~a de .:Umta-
ingressarem numa aventura militar sem objetivos claros e sem çonheci- rismo caricatura! em filmes como Rambo, Top Gun e outros. Nesse
contexto, os Oscares e o sucesso de critica e púb~co de Platoon ajudaram
a afastar Hollywood do entretenimento reaganista e do militarismo estúpi-
77 Oliver Stone expõe sua visão dualista e dkotomizante num artigo de Amertcan Nlm, do que lá dominou durante o governo Reagan:
no qual escnovc que Platoon "refleti~ a verdadeira guerm civil que pre~encid em todas
Portanto, uma parte da Cultura veiculada pela mídia difundia sentimen-
as m1idades em que estive - por um lad<J, os mllitar<.--s -.italkioo, paus-d'água e brancoo
bmros· (Sul nua!) cont~, do outm l:t!'lo, os hippies, 'puxadores', prelos e brancos pro- tos pró-belicistas, enquanto outra difundia pontos de vista antibelicistas.A
gressistas. [. ) Dil'dta contra EsquenJa" (Olive.r Stone "One from lhe Heart," Amerlctm critica diagnóstica interpreta os filmes politicamente a fim de analisar as lu-
Fflm (janeiro-fevereiro de 1987: 19). Esse artígo e,uma extensa entreviste em Fflm Com· tas c as posições políticas opostas, Com seus relativos pontos fortes e fracos . ~­
ment(fcvereim de 1987): ll-20,60, apres~nta Stom: como~ e~querdlsta dq clube HoUy- Tcnta disçemir como a cultura da núdia mobiliza desejos, sentimentos, emo-
wood,e, embo~ Seus filmes tenham suaslimltaçõe~, tomadoo em conjlmto,:filmes como
ções, crenças e visões, transformandO-os· em várias posiÇÕes de sujeito, e
Sctlvadm; Nascido em 4 de julho, Talk R<ldiO (Veniades que.matam),jPJÇ (JFK, a pe1"
gunta que ru1o quer catar) e Heaver: anel l:'at"tb (Entr-e o cúi e a term) aPresentam-ai·
como estas respaldam uma posição política ou outra. A critica dlagnóstica,
glmt<l inflexão progressista de esquerda na voz da cu!tum da mídia americana. · · portanto, i!J.dica o modo como os text~ da cultura da mídia ajudaÍn a pro-
'duzir identidades políticas e critica as identidades e os efeitos qué são con-
• Esse termo, de origem desconhecida, era uma forma pejorativa de de>;igoar os vletna·
mitas. (N.T.) ' · trários à d~mocracia e respaJdam as forças de dominação c opressão.

159
A política, Porém, permeia à.vida diária tanto quanto as grandes ba-
talhas políticas que dominam os noticiários_ veiculados peL1. mídia.f\ crítica
diagnóStica, portanto, também sonda a política do dia-a--dia e· suas lli.tas em
torno de questões como raça, sexo e classe. Dessa Perspectiva, os textos da
cultura da mídia rl.rticulam medos e esperanças; sonhos e pesadelos de uma
cultura, constituindo, assim, uma fonte de percepções sociopsicológicas
novas e importantes, ·exibindo aquilo que o público está sentindo e pensan-
do em dado momento. Isso explica por que a psicariálise continua sendo -.....
b-;;:,~--··
importante para os estud9s culturais. Coritrariando-a noção de falta de pro- ·-v-J-...
fundidade e de superficifalidade dos textos cultur'ais contemporâneos, afir-
mada pela teoria pós-moderna, argumentaríamos que muitos textos cultu~
rais hoje continuam a ser portadores de significados e a exigir modelos de
Parte
hermenêutica profunda que tragam à tona seus significados e todo o espec-
tro de seus possíveis efeitos. Os estudqs dos capítulos que se seguem ter-J.o
em vist.'1 esses tópicos, mostran.Qo de que modo os- estlidos culturais po-
dem contribui!· pam apresentar dktgnósticos das lutas diárias, bem como
dos mais imporLantes eventos da política e da mídia contemporâneas.

Crítica
diagnóstica
e estudos
culturais
A política, Porém, permeia á vida diária tanto quanto-as grandes ba-
. talhas políticas que dominam os notidários. veiculados pela mídia.A critica
diagnóStka, portanto, também sonda a política do ,dia-a-dia c suas Ili.tas em
torno de questões como mça, sexo e classe. Dessa perspectiva, os textos da
cultura da mídia il.rticulam medos c esperanças; sonhos e pesadelos de uma
cultura, constituindo, assim, uma fonte de percepções sociopsicológicas
novas e importantes, -exibindo aquilo que o público está sentindo e pensan-
do em dado momento.Jsso explica por que a psicmíalise continua sendo
importante para os estudos culturais. Coritratiando a noção de falta de pro-
fundidade e de superfici~lidade dos textos culturais contemporâneos, afrr-
mad<i pela teoria pós-mqderna, argumentaríamos que· muitoS textos cultu-
rais hoje continuam a ser portadores de significados e a exigir modelos de
Parte
hermenêutica profunda que tragam à tona seus significados c todo o espec-
tro de seus possíveis efeitos. Os estudos dos capítulos que se seguem terão
em vista esses tópicos, mostranc;lo de que modo os esttidos culturais po- •
dem conÚibuir para apresentar diagnósticos das lutas diárias, bem como
dos mais importantes eventos da potftica e da mídia contemporâneas.

Crítica
diagnóstica
e estudos·
culturais
4 Ansiedades sociais, classe e
juventude insatisfeita

' capítulos anteriores, traçamos aspectos do métoôo e do modelo


NoS
de estudo cultural por nós empregados; no restante do livro eles serão apli-
cados a estudos:'~oncretos, a "fuzer" estudos culturais. No capitulo anterior,
apresentamos .ç> conceito de crítica diagnóstica que, enquanto utiliza a
história e a teoria social para analisar textos cultura.is, utiliza textos cultu-
rais para elucidar tendências, conflitos, possibilidades e: anscio§a histórt-·
cos. Nossas concepções de estudo cultural contextual e a noção de cdtica
diagnóstica serão ilustradas neste Capítulo, priMeiramente Por. meio do
estudo de alguns filmes de terror e de fantasias que expressam os anseios
sociais âa classe média e dos· trabalhadores numa época de inseb'lU'aJlÇa
econômiCa nos Estados Unidos c no restante do m~mdo·. No capítulo 2, in-
vestigafiOS o modo como os filmes de Hollywood transcodificam os discur-
sos políticos da época e procuramos descobrir quais os anseios das pessoas
comuns em ~ma vida diária no mesmo período.Assim,.os estudos culturais
podem usar seus métodos para investigar eventos, discursos c tendências.
sociais tanto em nível affiplo quanto réStrito, examinando coisas que defi-
nem a época, como suas tendências políticas e seus eventos, além das
características essenciais c dos afãs do dia-a-dia·.
Argumentaremos que os filmes Poltergeist e outros dC terro~expres­
sam o medo de descer na escala social e contêm alegorias que giram em
torno da ansiedade de perder o emprego, a casa c a familia.A seguir, cxafni-
naremos a situação da juventude contemporânea por meio da análise do fil-
me Slacker e da série da MTV Beavís and Butt-Head. Neste capítulo, vere-
mos que a cultura da núdia apresenta alegorias sociais que expressam me-

78 Es'>a óptica dúplice dc.o kiturn ·da história atr.o.vés dGs te;o.."tGs e dG m;Q da história.e
da teoria para ler texws foi empregada por1:Wj\domo e Walter Benjamin; ver estudo
em &Uner, 1989a, e o d<;esenvolvimento di\ crítka di."'gnóstiea çm Kellner e Ry:m.l988.

.163
dos, a~pirações e esperallÇas de certas classes e grupo sociais.'~P~rtaQ.tO, a . com movimentação maciça da riqueza dos setores de classe .média e das-
descodificação dessas alegotias ·sociais possibilita -um diagnóstico crítico, se trabalhadora para as classes altas, bem como um período de medo. do de·
com boa visão da situaÇão de indivíduôs pertencentes a. várias classes e sem prego, de descer na escala social e: de crise, para as Classes trabalhado-
grupos sodais, como a juventude.Assim, a fantasia c o entretenimento pO.. ras."' Enquanto, nos anos 1970, assis'tiu-sc a uma onda de filmes populares
_dem ser veículos de diagnósticos seriíssimos de nossa época, coisas que os sobre a classe traball1adora (Kellner e Ryan, 1988), nos fthnes da década de·
estudos culturais devem analisai: e interpretar. 1980 tal ca;.;_cteristica rar-amente esteve presente, e o foco recaiu mais nas·
f.tmílias e nos i-n~il'Víduos pertencentes às classes média e a,~ta. No entanto,
a classe t~balhadora foi freqüentemente apreseilt~! coJ!lÔ.}J.,!lleaça à das-
ASSOi\-'lBRA-ÇÕES, GÊNERO E CLASSE NA ÉPOCA DE REA- se média, e, como tentaremos demonstrar abaixo, tÕí"lit(iitas vezes estigma-
GAN E BliSH em
tizada gêneros como os filme de terror, A

o amplo panorama dos filmes populares de terra~ reflete a ressurge~~


Durante as duas últimas décadas, o gênero terror-ocultismo foi um dos da do oculto na sociedade contemporânea, indicio de que as pessoas Ja ''i
mais POJ?ulares e bem-sucedidos de Hollywood. ' 0 Os filmes de terror não contro~a,~l1Í~da cotidian~. Q_ua~do as yesso~· percebem que já não
sempre lidaram com medos universais e primordiais (medo de morrer, de exercem conWblé'sobre süa propna vtda e sao dommadas por forças pode-
envelhecer, da decadência física, da Violência, da scxualidade, etc.).-No en- rosas qu~ estão fora delas, s.entem-se atraídas pelo ocu~tis~o-. P_?r co~se­
tanto, os filmes de terror mais interessantes de nossa época (O exorcista, O guinre, durante as fases de crise socioeconômica, quando os mdtvtduos te~­
massacre da senu.elétrica [1be Te.'"«lS Chainsaw Massacre], Cm;·ü:·, a es- dificuldade de Hdai1tcom a realidade social, o oculto se torna uma modail-
tranha,Alien, O iluminado. {1be Shining], etc.) apresentam, muitas vezes dade ideológica eficaz que. ajuda a cxpticar as circunstâncias desagradáveis
de forma simbólico-alegórica, medos universais e anseios e hostilidades pro- ou os acontecimentos incompreensíveis com a aju~a de mitologias religio-
fundas da sociedade americana Contemporânea. Um sub texto desses filmes sas ou sobrenaturais. . I
é a perplexidade e o terror da população diante da crlse econômica, das ace- Na crise da sociedade alemã, após a Primeira Guerra Mundial, por
leradas mudanças sociais e culturais, do caráter quase epidên"Íico do câncer, exemplo, houve uma proliferação de 'filmes de terror, c a primei~ grande
das doenças causadas pela expansão industrial, da AIOS, bem como da insta- onda de filmes de terror ameri,canos apareceu em meados da decada de
bilidade política e da aniquilação nudear.A enomte popularidade dos fllmes 1930, na depressão. Depois da explosão da bomba atômica, com o _aqueci-
de terror após a década/de 1970 leva a crer que algo está profundamente el.'- mento da Guerra Fria e a corrida armamentista dos anos ~9~0, surgiU outra
rado na sociedade aiTlericana, c o exame desses filmes poderá ajudar a reve- onda de fUmes de terror e ocultismo, com visões de animais e seres
~ '
lar algo sobre a fonte dos medos contemporâneos. humanos mutantes ou de holocaustos apocalípticos. Com o passar dos
Os anos 1980 também pertencem à erá Reagan e Bush, e neste estudo '
I,,
queremos relacionar os anseios sociais da época. com a hegemonia conseC. 81 Como dizem ferguson e Rogers:
vadora, argumentando que esses fenômenos estão interligados. Os anos
A <:ombinação de cortes sociais,outras Iniciativas orçamentárias e a taxaçã~ ma-
1980 constituíram um periodo sem precedentes de conflitoS de classe, dçmnente regres~ivn produ~ill forte deslocamento da renda norte·amenam~
par;"! os estr:ttos mal& elev:tdos. Entre 1983 e 1985, essa política reduziu em
US$20 bilhões as rendas familiares inferiores a US$20.000 por ano. enquanto au-
"'
79 Cabe agradecer a1nfluência de Fredrickj:uneson. Quanto ao seu uso dà alegoria, em mentou em US$35 bilhÕes as superiores a US$80.000, Para os siruados na base
que nos baseamo& aqui, ver Jameson 1979, 1981, 1990 e 1991, e, sobre Jamcson, ver da pirâmide social, com renda Inferior a US$10,000 por ano, es~ política P_ro_du-
nos-so e~tudo e!ll Kellner, l989c. ,;iu uma perda ntédia de US$l.l00 de 1983 a 1985. Para os Situados no aiJICe,_
com mais de US$200.000 por ano, o ganho mêdio foi de US$60.000. No fim do
SOA revista Varie~ afl!"mava que, em 1980, os fUmes de terror e de .ficção cientifici te· primeiro mandato de Reagan.a distribuição da renda americaná estav:t mais de-"
riam gerado mai~ de um terÇo da tenda de bilheteria, prevendo que em 1981 e"ssa frn- sigual do que em qualquer período. desde 1947. primeiro ano em que o Census
ção subiria para ~ metade. Ver "Terror Sei-Fi P!x Eam 37 pen;ent of Rentals-Big Rise Bureau coligiu dados sobre o assunto. Em .1983, os 40% da população situados
Duri.ng 10-Year Period" (3 de janeiro de 1981).A revista G1neftmt4sttque (Vai. 9, w;. mais ao alto da piclntld<:e recebernm 1U11a fu.tia da renda maior do que em qual·
i:
;.
,,
I
I
I
3-4 (1980} 72) dízi;•, numa retrospectiva da década, que mew.de dos dez filmes mais
rentáveis do p~riodo são de terro~ e de ficção científica. A poPularidade dos filmes de
quer período desde 1947.
(Ferguson e Rogers, Í986: 130)
I I
terror continua até hoje.

I 165

I
anos, a cultura da mídia foi acumulando um verdadeiro tesouro de' saber mel,ltccríti·c~s, ao articularem pqÍ: vias ~in~matográficasas críticas\ fanú-
ocultista, e nos anos 1970 e 1980 os americanos se voltaram par-a o ocultis· lia feitas pelos movimentOs políticos da década de 1960. Filmes como O
mo em busca de experiências e idéias que os ajudassem a lidar com a cd· massacre da serra elétrica, Motel Hell, etc. apresentavam a família como
se econômica, a reviravolta politici e o mal-estar cultural. Nessa ressurg&n- monstruosa, ~ino fonte de monstros,' repetindo, assim, as críticas feminis-
d;l do oculto, inedos reprimidos e forças irraciOnais buscaram expressão 'tas à f\l-milia patriarcal. Mas filmes como Poztergeist mostram ~ ataq~e. de fa-
simbólica que muitaS vezes serviram de veículo para ideologias reacioná- mílias bondosas por monstros, senrindo então como defesa tdcologtca da
rias nos fihnes contempor-Âneos (por exemplo, a trilogia O tu:ordsta, a tri- rãinilia cte ··~!asse média, o que transcpdifica cinema~pgr-aficamente os dis-
logia A profecia [The OIJ'len], e vários filmes de monstros, possessão demo· cursos conservadores pró-família dos anos 1980. Coní:i.(Qo,·numa visão diag-
níaca.e outro's em torno de forças ocultas). nóstica mesmo os filmes conservadores de tê'if~reve!am ansiedades con-
Embora os filme~ conservadores de terror veiculassem fantasias de tempociOeas ·relath;as à família, ao dcsccnso ·social e à falt~ de mo~dia
confiança nas autoridades c instituições vigentes,como agentes de elimina- numa economia incerta e numa ordem social em deterioraçao. Na leitura
ção do mal, muitos outroS filmes não transinitem a confiança de que os ma- diagnóstica ,que se segue, veremos os fd~es "de assombração" comO indi-
les historicamente específicos ou universais possam ser elinúnados e con- . cadores<ilits.',ansiedades e da desintegração social na sociedílde americana
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tidos. Em vez disso, revelam uma sociedade ém crise, onde as forças destru- contcnft1oi'ãnca.
tivas são assoladoras, e as autoridades e ~s valores convencionais são inca- '
pazes de derrotar e eliminar os mates que não param de avançar. Por con-
seguinte, esses filmes muitas vezes não legitimtim as instituições e os valo- Po!te;:~'w'ist c ansiedade social
res americanos contemporâneos, mas mostram que a violência horrifica e
a desintegração social são forças onipresentes e poderosas n"a ordem .social Entre ~s fdmes de terror e ocultisi:no da década de 1980, Poltergeist
de hoje. Isso se aplica até certo ponto aos filmes que confiam em institui- (1982), dirigido porTobe Hooper, tendo Steven $pielbCrg como co-diretor
ções religiosas par-a derrotar o"mal"(por exemplo, O exm·cista e, em maior e produtor,"' é especialmente interessante porque apressa os anseios su-
grau, os filmes mais nülistas de George Romero, Tobe Hooper, Wes Craven, .bl'iminarcs da nova classe média na época de Reagan.POltergeist, ao lado do
Larry Cohen e outros, que mostram as instituições e os modos de vida con- ET (1982), de Spielberg, explora coni simpatia e até afeição o ambiente e a
temporâneos como fontes de terror). 8 ' ' vida da nova classe média próspera dos subúrbios americanos e apresenta·
No estudo que se segue, tentaremos mostrar como os filmes ptojeções simbÓlicas 'de suas inseguranças e seus medos. Enquanto EI'-
Poltergeist lidam com os medos e as inseguranças da classe média no que apre~nta uma alegoria otimista .e encantadora dessa mes~a _c~asse,
diz respeito a raça, sexo e posição social. Interpretaremos esses filmes ale- Poltergeist apresenta seu lado sombrio e seus pesadelos numa· htstor1a em
goricamente. como articulador()S de medos que têm raízes profundas c que 0 Outro, o Estrangeiro, não é um extraterrestre a..nti$0 que _chega de
muitas vezes são eXplorados em gêneros como os filmes de terror, e não fora da sociedade para ajudá-la 1 mas q~te emerge antcaçador de d~ntro do
em filmes realistas, nos quais poderiam ser dolorosos demais para serem siStema socioeconômico e do subconsciente social para aterronzar pes-
erúrentados e explorados. Os filmes de terror constituem um gênerO a tal . soas comul1s da classe média, as personagens principais ~o filme. Portanto,
ponto reacionário que responsabilizam as forças ocultas _pela desintegra- enquanto ET é uma fantasia de cunho infantil em torno da esperança,
ção social e pela falta de ·coritrole da vida, desviando assim a atenção dos Poltergeist é um mergulho simbólico nos medos universais e especifica-
espectadores das fontes reais de sofrimen~o social. Contudo, também pos-
sibilitam uma criticá radical por apresentarem o sofrimento e a opressão
como males causados por instituiçõ_cs que precisam ser reconstruídas. 83 Nos créditos, Poltergetst aparece como filme de Tóbe Hooper: Hooper- aparece
Os filmes terror da década de 1970, por exemplo, exibiam monstros como diretor e Spielberg como produtor, aut'or do arguinento e um dos escritores. Mui-
produzidos na vida fa"iniliar e. por isso, poderiam ser Vistos cdmo social· to se falou das supostas tensões entre Hoopcr e Spidberg durante a filmagem e muito
se discUtiu sobre a real autoria do filme- como empresa coledv.l "pertencente" :1. uma
pes;soa ou outra_ Na vertladc, o filme em si é um amálgama de estilos cinematográficos
82 Sobre os momentos '·subversivos' e "critkos'" dessas e de outras Ôbras cinematogt;i_- e de preocupações de Hooper e Spielberg. Exibe o talento de Hooper J)1'J"a o suspen--
ficas <:ontcmporfuK~. ver .:studos em Britmn, Lippe. Wllliams, e'Wood, 197~; KeUner c se, o estranllo ~o horrendo, bem como as habilidades técnicas de Spielbe~ e seu gos-
Ryan.l988. to pela classe média' e pdo o<:ultismo abstruso.

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~ente- americanos, que assume a forma de pesadelo alegórico, cuja desco- dais mostram o pai adormecido no sofá diante da televisão. Ao. som do
dlficação deve dizer itlgo sobre a vida cotidiana da era Reagan. · hino nacional norte-americano, vemos os pontos da tela da TV configuran-
Poltergeist conta as aventuras da família Freeling com o oculto; essa do a cena em que os fuzileiroS" navais fmcavam a bandeira no pico Iwo
família descobre que sua casa foi construída sobre um cenútério indígena, Jima, -numa evocação do passado heróico dos Estados Unidos·. Mas o
e que seus espíritos procuram vingar-se dela, por considerá-la invasóra. present!; é perturbado. A câmara fn tomadas panorâmicas em todos os
Num dos lances do roteiro, alguns eSpíritos malignos tentam seduzir a filha- aposentos da bela casa, mostrando todos os seus moradores adonnecidos,_
vidente de cinco anos, C;trol'Anne, e levá-la para os mundo dos espíritos. A TV se dé'sliiia, e a e.Stática enche a tela. Carol Anne; ~-moradora mais jo--
Os pil.is, para resgatá-la, sãq obrigados a procurar a ajuda de parapsicólOgos vem, se kvanta, desce as escadas e páta na frente· da 'IV~:çonversando com,
e de uma médium. as luzes estranhas que dançam na estática.Toda~iiiaihilia desce e fica olhan-
A unidade fa,núliar de Poltergeist é constituída pelo pai, Steve Freeling do para ela, estarrecida. Durante todo o filme, a estática da TV será 9 sinal
(CraigT Nelson), por sua esposa Diane (Jobeth Williams),por uma filha ado- de acontecimentos bizarros e ameaçadores.
lescente, Dana (Dominique Dunne), por ·um jovem chamado·- Robbic Depois dessa cena inicial, Poltergeist apresenta alguns quadros cômi-
(Oiivcr Robins) e pela pequena CaroiAnne (Heather O'Rourke),a primeira cos da ;yida. Ao·.-Subúrbio luxuoso.lJm hoÍnem corpulento desce a rua de bi-,
a entrar em contato com as"assombmções~. Os Freelings moram numa das cideta,'I~i'ídó no guidom umà caixa de ccrveja'em equilíbrio precário.
primeiras casas construídas na Fase 1 do complexo habitacional chamado Algul'nas crianças brincalhonas dirigem seus brinquedos eletrônicos para
Cuesta Vista. O pai é um corretor de imóveis bem-sucedido que vendeu ele e o fazem cair da bicicleta. As latas ~e cerveja esguicham e explodem,
42% das casas da área - o que, seglUldo seu chefe, representa mais de s,e- e ele, desesper'<~.~o. carrega as latas restantes, ainda e:xpl?dindo, para casa,
tenta milhões de dólares. Como compensação por seus esforços heróicos, onde um grupp de.homens de meia idade assiste a um jogo de futebol ame-
ele tem todos "os bens desejados pela nova classe média próspera. Os retra- riqno pela TV Os prazeres do jogo em comunidade são logo interrompi-
tos dessa dasse e de seus temores de perda de moradia, fumilia e bens é um dos: o televisor do vizinho ao lado está ligado na mesma freqüência de con·
foco central dos filmes Poltergeist. ,trole remoto, e as crianças do vizinho mudaram para um pro~n1a infantil,
O nome"Freellng" lembra a ideologia dominante de liberdade, e, dessa motivo de consternação dos tãs do futeboL O dono da casa corre para fora,
perspectiva, um "frceling" é um ser livre, membro de uma classe e de uma a fim de negociar um acordo de paz com o vizinho, qoe, no entanto, insis-
soéiedade livres de preocupações e inquietações básicas, livres para cele- te nos direitos dos fillÍ.os, e os dóis pais de família ficam b.ombardeando
brar e viver o sonho da classe média americana. O hino americano, como suas respectivas TVs com o controle remoto, o que vai altema_ndo o fute-
referência à "terra dos homens li\Tes"'" é ouvido num dos segmentos de bol cow o programa infantil, numa alternância de consternação e àlegria
abertura c usado como refrão durante o filme, que apresenta imagens icô-' dos espectadores esportivos e mirins.
nicas de bande;iras americanas o tempo todo. No entanto, Poltel'geist trata As cenas iniciais pintam imag'ens da perda de controle sobre a tecno-
das ameaças à liberdade e da perda de soberania da classe média de nossos logia, o que permeará todos os filmes Poltergelst. Perda de controle sobre
dias, bem como das probabilíssimas perspectivas de descer na escala social a tecnologia que serve de tropa para o medo da perda de soberania e de
num sonho americano que gorou e virou pesadelo. poder sobre o meio ambiente. Em particular, nos anos 1980,-havia o medo
O filme começa com uma exibição dos novos Ícones e objetos da de que a televisão tomasse conta do tempo de lazer e do espírito dos jo-
classe média alta, e com uma encantadora vista do ambiente ~m que vive o vens, e Poltel"geist articula e5se medo numa parábola em que a pequena Ca~
novo consumidor próspero, com suas casas de andares escalonados, a in- rol Arme é sugada para mil televisor que funciona como portapam o"outro
defectível1V a cabo, eletrodetrônicos, enorme profusão de brinquedoS mundo", dos espíritos. A menina fala com o "pessoal da TV" na seqüênci!l
para as crianças, maconha e sexo para os pais e uma infinidade de bens de de abertura, em que suas mãos pousam de leve sobre a tela cheiá de está--
consumo para todas as finalidades possíveis e imagináveís.As imagens ini- tica no ftm da programação do dia. À medida que o filme avança, a tel~c
são vai desempenhando papel cada vez mais importante na trama.
As cenas do televisor dos Fieding e as da interação da família-e dos
*Todo t:sse trecho refere-se à presença da palavra "fn:e"no nome da família, êuio sij;nifi· vizinhos com ele também retratam ironicamente a dialética entre espaço
cado é "livre". O hino dos Est:1dos Unidos da América tem o nome de "The Star-Span-
público e privado no subúrbio americano hoje em dia. Esses americanos
gled Banner" (;dusão às estrelas "fulgurante~" da bandeim americana), e um de seus úl-
tl.mos versos fala em "term dos homens 1\vres" ("!and of the free"). (N.T.) compartilham o espaço público da televisão, das comunicações de massa,

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e da cultura de consumo, e, em sua maioria, participam da cultura comi.tm ,. versas que ameaçant desagregá-la. As cenas de separação em todo o filme
dentro do recesso de seus lares.A comunidade retratada, em seu lazer, é uni: · expressam o medo da desintegração iminente da família e do afastamento
da por objetos. de diversão e entretenimento: brinquedos, tdevísão, espor- do refúgio familiar. Qliando as assombrações se tornam m.iis destrutivas, Ca-
tes, cerveja e outros bens comuns. É uma. comunidade frágil: sem a TY, p<:~r ro,lAnne é levada misteriosamente para·um mundo subte'rrâneo, a filha· ado-
exemplo, dissolve-se o grupo que assiste à partida de futebol nos tios de se- lescente passa a ficar cada vez mais tempo com os amigos, c o jovem é mom-
mana.A maioria dos americanos que vivem em subúrbios de ciasse média dado para' a casa dos avós, açompanhadÓ de seu cão. O pai tantbém é afas-
não conhece seus vizinhos, a não ser que pratiquem juntos atividades de tado por exigêfl'êias do emprego, mas acaba pondo a fam~,ia acima do traba-
lazer. A cena do "controle remoto" mostra que o compartilhamento does-· lho (no fim, sai do emprego-e se muda com a farp.ília). Hã "Jt,sqüentes decla~
paço suburbano produz confUtos e sobreposições; mostra tamb~m que a rações de amor e retratos vivos dos laços de fam'ffia~ mãe, em especial, é
"amistosidade" suburbana é frac~ ou inexistente. Também retrata um novo o centro moral e físico da família e demonstra estar' disposta a arriscar a vida
tipo de comunicação e de tecnologia que os indivíduos ainda não enten- pelos filhos, enquanto conserva a coragem em face das adversidades.
dem c não controlam plenamente. Além disso, ao contrário dos .filmes típicos de terror, em que os indi-
O crucial é que a família se afasta da comunidade suburbana c se fe- víduos i{eqütnttmente agem de modo desastrado, em POltergeist as
cha em si quando a crise de ass~mbração se desenvolve. Os vizinhos são de pcrsonagt:l"W\·ág'êm de modo racional, com cooperação mútua e coragem.
pouca ajuda e só aparecem quando as assombrações destroem a casa dos O pai Patte para Stanford e convoca. um grupo de parapsicólogos que vai
Freeling e ameaçam a vizinhança. Na verdade, Poltergeist projeta a visão de investiga,· os fenômenos; eles, por sua vez, chamam uma espírita, Tangina
que a unidade e a inst!iuição social mais orgânica, sólida e viável da vida su- (Zelda Rubinsteirl.), que diz à f.tmília como li4ar com a<; assombrações e tra-
burbana é o núcleo familiar de dasse média. Spielberg e seus colaboradores zer a filha de vo11a: Com a orientação da espírita, a mãe entra no mundo dos
apresentam cenas positivas e .ternas da vida familiar da classe média sem a espíritos para re~gatar a filha - o que revela a profundidade de seu amor e
distância satírica oti irônica de muitos cineastas contemporàneos (Aitmàn, a preocupaçilo çom a filha. É significativo que as mutheres desempenhem
de Palma, Woody Allen e outros críticos liberais e radicais da fanúlia). o papel-chave no resgate de CaroiAnne, o que reforça a imagem tradicional
Depois de apreseritar a família Freelíng em outra cena importante,. as da mulhct· como protetora e nutriz das crianças.
crianças são enfiadas na cama, eSteve e Diane ficam sozinhos em seu quarto. Além de representar os medos da desagregação familiar, Poltergeist
A mulher, com um baseado O'.\ mão, começa a garrular, falando de coisas pas- · lida com a angústia de perder a casa ou de_ vê-la desmoronar. O sonho ame-
sadas, o que nos leva de voltá: para os anos 1960.A cena sugere que a juven- ricáno, tradicionalme~te, está centradO na compra da casa própria; nos anos
tude "paz e amor" c.resceu, se casou e, agora comanda uma família. O marido, 1980, época de desemprego crescente, recessão econômica(; diminuiçãO
porém, está absorto numa biografia de Ronald Reagan: The Presidcmt, Thf! do pode;~ aquisitivo, o medo de perder o lar ou de não ser capaz de mantê-
b'tcm. Acaba largando o livro e começa a bolinar com a mulher. Brinca de fera.., lo cresceu. Stephen l(.ing, autor de livros populares como Canie, Tbe Shl-
cochicha no ouvido dela, e Diane suspira, "Ai, eu adoro quando você diz obs- 1ting, Tbe Stand, etc. - que, em si mesmos, constituem fêrtil manancial de
cenidades!" A cena é cortada e passa para as crianças no quarto: estão acor- :Úegorias simbólicas sobre os anseios americanos contemporâneos-, escre- ''
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dadas e com medo das trovoadas. Além dos trovões e do,s relâmpagos, uma· ve acerca de The Amityville Horror (A cidade do horror, 1979), Precursor
árvore lúgubre projeta sombras sobrenaturais por todo o quarto, esgares ocultista e lúgubre de Poltergeist:
ameaçadores de um palhaço (imagem icônica inspirada num fUme antCrior,
Pague para entrar, reze para sair [11Je Funhouse], deTobe Hooper, ·que rea- o subtl"Jo."to do fihne é a cris~ econômica. (... )Aos poucos, vai cau~ando a ruí~
parecerá periodicamente como sinal de ameaça), e as "assombrações come- na financeira da f.amília Lutz. O subtítulo do fllme poderia t~r sido "O horror
çam a lançar coisas por todos os L'ldos. do encolhimentÓ. da conta bancária".(... ) The Amftyvtlle Horrm; por trás (ie
Na noite seguinte, durante uma tempestade mais forte ainda, os ramos sua história exn:rior de assombrãções,é na verdade um espetáculo do. desmo-~
de uma árvore gig'antescii arrancam o jOvem Robbíe pela janela do quarto, ron:unento financeiro."'
e Os pais, desesperados, o libertam das forças da natureza em fúria. Nesse
ponto, Caro! Anne desaparece, a f.unília entra em estado de pânico, e o fil-
me entra no campo da alegoria ocultista.Po"ttetgeist apresenta o e,spetáculo
alegórico de uma família que se mantém unida diante das experiência'> ad· 84 Stephen King."WhyWe Crave Terror Movies;• Playboy (janeiro de 1981): 237.

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Também Poltergeist mostm uma cas~ que, de forma_ gradual mas ine- humor, chamando-o de «Bluto» (nome esquisito, talvez inspirasio no ~perá­
xorável, vai desmoronando. Seus apoS;entos se tornam inabitáveis; as máqui- rio ameaçador de Pope:ye); nome adotado também pela personagem de
nas e os aparelhos eletrônicos não funcionam ou füncionam sem controle, john Bclushi em Clube dos cafajestes (Animal House).
os objetos e os brinquedos se desintegram. Por fun, a casa literalmente vem Portanto, os filmes de terror mobilizam o medo do Outro e 'traçam li-
abaixo, e a família precisa fugir. Essa alegoria da casa assediadà explica, em· nhas divisórias entre normalidade e anormalidade, bem e mal. A bondade
parte, a eficácia do filme na manipulação de seu público: os espectadores está na" normalidade familiar da classe média, e a Alteridade está na clasSe
se identificam com aquela família comum da claSse média mtma· casa que tr.tbalhadór"â'e em Outros .raciais como os ind1gcnas dos ftlmes da série
está sempre criando problemas e· que acaba por e.-.;:pulsá-la. Essa é uma. Poltergeist. Dessa perspectiva, os monstros ameaçaddf~~ representam; ale-
história de terror contenlporânea para os donos da ca,sa própria e aspiran- goricamente, as forças raciais e sociais que am~·ã.W a estabilidade da clas-
tes a tal, muitos dos quais perderam a casa durante a era Reagan-Bush. , se média. Tais representações cinem'atográficas transcodificam os discursos
O horizonte social de Poltergeist é, portanto, a perda da casa e a de- · conservadores - porém ansiosos - enf faVor da família, discursos esses
sagregação da. famii.ia durilnte uma época de insegufança econômica e de correntes na .época, que louvavam ·a família e e.stigmatizavam.a alteridade.
fragmentação social, na qual,muitas pessoas perderam a qtsa própria, a ta."Xa OutrO'. i~Jtportante subte:x:to do filme é o medo da televisão. Carol
de divórcios foi superior a SO %, e a classe média alta caiu pani. estratos so- Anne pir;hê'thtmente é enfcitiçada pelas assombrações através do televisor
ciais mais baixos. O campo discursivo do filme consiste na defesa da famí- e dc~pois desaparece- de fato, quantas crianças americanas foran"t tragadas
lia e na expressão de ansiedades sociais referentes à casa c à fanlilia. As pelo fetevisor1 As assombrações e a voz sem corpo da menina, depois que
ameaças·à segurança da classe média são, porém, projetadas nas figuras das ela desaparec~comunicam~se através do televisor do mesmo_ mod? com?
assombrações que, alegoricamente, funci9nam como veículos das forças muitos americanos recebem· comunicações do mundo extenor. Como Vl·
socioeconômicas capazes de desagregar a família e de levar muitas delas a mos, a estátic~ do televisor é uma imagem icônica de perturbação em todo
perder a casa própria e a descer na escala social. 0 filme, e 0 aparelho está constantemente ligado. Durante as cenas em que
Gomo se vê,.a fonte da perturbação pelas assombrações foi a decisão os parapsicólogos tentam analisar a s.ituação, instalam-se câmaras e ap~re­
da imobiliária, onde o pai trabalha, de construir o complexo habitacio~al lhos de videocassete de última geração por toda a.casa.As :~:ssombraçoes
em cima de um cemitério," depois da retirada das lajes, mas sem a retirada são, de fato, filmadas e vistas nuffi aparelho de videocassete, numa demons-
-dos esqueletos. Em cenas de zumbis que lembram o clássico do terror A tr.t.Ção da possibilidade de reprodução mecânica c exibição fnstantânea de
noite dos mortos vivos (The Night of the Lit,ing Dead), os mortos saem tudo na sociedade da mídia.
da terra e aterrorizam o bairro. O filme, portanto, põe em jbgo o medo de As imagens da vigilância por vídeo também podem expressar o
que a éxploração imobiliária destrua o meio ambiente e pertur.be o delica- medo'~ de que o Grande Irmão esteja vigiando, de que as novas tecnolo-
do equilíbrio ecológico - outra preocupação contemporânea, cerne das lu- gias invadam a privacidade, dt: que tlm novo panóptico tecnológico est~­
tas atuais peLo limitação do crescimento e do desenvolvimento suburbano. ja a caminho.$'Vcmos aqui, num retrato simbólico, o poder que a telC\'1-
No entanto, as assombrações também representam o medo da alteri- são tem de cativar o público, espiar as pessoaS e transformar-se em centro
dade meia!, c o filme pode ser interpretado como medo da invasão racial e organizador do lazer. O medo de que a televisão venha a substituir· total-
da· destruição da utopia da classe média suburbana. Os monstros de mente 0 cinema com certeza é grande em Hollywood e talvez seja uma
Poltergeist aparecem como monstruosidades de pele escura, alteridadc da preOcupação de Spielberg e de setJS colaboradores. Na cena final,
«normalidade" da classe média branca. O medo do Outro racial está ligado quando, depois de perder a malf.tdada casa, a família vai para o Holiday
ao medo do Outro dasse-trabaÍhadora em Poltergelst. Alguns operários
~~ '
apa- Inn nós a vemos trazendo o 'televisor de dentro de casa para a sacada. A
rccem no começo da trama para trabalhar na piscina de uma família (a pis- pla;éia ri e aplaude, os diretores do filme sorriem nervosamente, e todos
doa, em si, é um símbolo da prosperidade da classe média); são tipos amo-
renados, de outra etnia, e parecem um tanto rudes e vagamente ameaçado-
res. Dois deles· olham com interesse para a filha adolescente, que reage· com SS Em Vtglar e pun11: Michel Foucault (1979) ;ma!isa o sistema de vigilância desenvol-
gestos obscenos, para divertimento da mãe. Logo depois, um dos operários vido no inkio do s~culo XIX por jcremy Bemham, chamadO "panóptico"; tntta-13e de
uma estrutura arquitetõnica que po$sibilitava vigiar constantemente prisioneiros,_ esru·
abre a janela para tomar o café oferecido pela mãe e belisca alguns alimen- dantes, traba.Uiadot-es. etc. Com as novas tecnologias, seria possível cri~r uma aterrodo·

',
tos qu·~ '~stão em cima da pia.A mãe o surpreende e o i-epreende com bom ra ~ociedade panôptica com \igilânda bigh-tech,à moda do 1984 de Orweil.

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voltam para c~a; mais cedo ou ma:is tarde - provaveJmentc;: mais cedo -
vão ligar o televisor.w;
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mãe se lembra de quê seu pai a examinava para ver se ela tinha ma"nchas
roxas. Portanto, em oposição ao ataque à prática do sexo por adolescentes,
As filmagens do hotel, no fim, revelam um tema sub:jacente do fLime, feito por setores da Nova Direita, Poltergeist parece projetar uma visão li·
segurança· versus insegurança. O qi.Je poderia ser mais seguro do que o hera! da tolerância e da aceitação da liberda.de sexual.""
Holiday Itu1, esse 'símbolo da mesinice da classe média, onde todos sabem folte-rgeist põe em confronto medos originários da desintegração do
de antemão que vão receber o mesmo quarto com os mesmos móveis no corpo e da morte e medos específicos da nossa era. Todos os filmes de ter-
país fiteiro? Poltergeist dá itidícios da. intensa insegurança da claSse mé- ror tirarii -p·roveito. das ansiedades criadas pelas mu<J,anças rápidas· em que
dia na em Reagan, quando era crescente o medo de perder o emprego, a a vida deLxa de ser controlável e se multiplica ou sofre. .Jnutaçõe's em ritn10
casa e o Controle sobre a vida e as coisas possuídas. Contém um pariora- rápido, ou então se desintegra e se desfaz cohí7~)Ustadora velocidade é in-
ma do medo em face da crescente impotência diante da força e da avidez tensidade. Os fUmes de terror apresentam imagens horriflcas da vida en~ou­
empresarial, da econOmia fora de control~ e das rápidas mudanças·cultu- quccida e manlpuia medos que sentimos da do~nça, da desintegração do
rais. Reproduz o medo da-desintegração familiar explOrada por Reagan e corpo e da morte. Uma seqüência impression<l!J.te de Poltergeist confrOnta
pela Nova Direita, o medo da televisão e da :Perda .do controle sobre os alegqrii::aÔ:-u!rite uma versão contemporânea do medo universal da mutação
filhos. Ri:vela que a era Reagan foi uma época de medo e apreensão para do cüf~~c.{medo do dncer-numa época em que uma·em quatro pessoas
a classe média e a classe trabalhadora diante da intensificação das amea- cafrá nas 'garras dessa doença temível, da qu.al morrerá uma em cada cinco
ças à subsistência e ao bem-estar."' pessoas. Muitos filmes de terror contemporâneos tiram proveito desse
Poltergeist também toca de leve no medo da sexualidade do adoles- medo, moStfí!OdO corpos em rápida mutação, vítimas da decadência e de
cente numa das cenas finais, quando a filha adolescente aparece com uma alter-ações 3J.lormals. A prevalência de imagens de rápida mutação do cor-
grande mancha roxa no pescoço, o que nos leva de volta para uma Cena an- po em filmes recentes de t<::rror retrata simbolicamente, a nosso ver, as
terior, em que, com ar de entendida, ela reage à notíCia de que a fanúlia vai representações do câncer erit ação em cena acelerada, como nos fllmes de
passar a noite no Holidaylnn:"Ah,me lembro do lugar", e a mãe a olha com Walt Disney sobre a natureza, que costumavam mostrar o.crescimento das
expressão de tolerância divertida."" Antes, na cena do baseado nç. quàrto, a plantas e dos animais com ,fotografias feitas a intervalos. Se essa intuição es-
tiver certa, então o profundo medo do câncer e da desintegração do corpo
86 O medo da televisão tem sido uma obses.'lão nos últimos filmes dt: Spielberg. No co.
é responsável por parte da fascinação e dO horror com que Q públk0 assis-
meço de Poltergelst, alguém pede às crianças que não fuçam brincadeiras brutas, e Ct" te à bizarra mutação dos côrpos durante os fLimcs de tcr_ror.Poltergetst, por
rol Anne é indúzida a ir ver TV: quando liga o televisor, está passando um western vin- exemplo, mostra um cientista de Stanford indo à cozinha e tirando um bife
lento! Em ET, quando o alienígena assiste à televisão pela primeira vez, comtmica setls da gt'ladeira.Vemos o pedaço de carne sofrer uma metástase cancerosa, sol•
pemamcnws e sensações ao jovem, que está na escola (ao qiw tudo indica, consegui- tando excrescências e órgãos estranhos diante de nossos olhos. O cientis-
ram atingir algum 'tipo de "fusão mentaj"). Quando o ET vê um<t cena violenta na Tv, o ta, apavorado, vai para o banheiro, lava 'o rosto e, olhando-se ~o espelho, vê
menino fica violtntq_ na escola; o ET vê Jolm Wa·rne beijando M.1ttreen O'Hara, o meni-
no beija uma menininha da escola. b medo de que as crianças imitem o que vêem na
sua face tmnsformar-se em carne putrefata. Embora e~sa alucinação desapa-
TV ê disseminado na sodcdade americana de hoje e simbolicamente retratado em reça, ele sai da casa e não volta mais.
Poltet"!]'!/St e EI~ essa preocupação surgiu nas discussões sobre a ~iolêrida na mídia c a Assim também, as espetaculares cenas dos mortos que voltam à vida
influênda dC programas C0!\10 Beavfs. mui Butt-Head·sobre os joven~. Não é por a<::a- em Poltergeist põem-nos diante da carne em decomposição, o que repr~-
so que, quando o menino do filme ETvence a parnda e consegue <::abular a aula t· fkar
com o novo runiguinho,a mãe av;sa:"Nada de TV!"
memo), o que deu origem a rum ore~ de cumplicidade sobrenamral; esses "nmmres ga~
87 Sem dúvida, os operários d~ indústria, mais do que:- a dasse média, vintm·,;e diante nh~mm mais força quando Heather O'Rourke, que fez o papel de CaroiAnne, tam:bém
de um desastre econômico durantea"desindnstriali:zação"dos Estados Unidos, mas essa morreu alguns' anos depois.
situação, como veremos depois, talvez tenha sido lmrrfvel e real demais para ser abor-
dad.1 por HoU)'Wood; dessa forma, as angúytias dos trabalhadores e da classe média 89 Os fUmes de perseguição costumavam apresentar um ataque mais concertado à se-
fomm projetados nos filmes de terror, que apresentaram principalmente famili:u; de xualidade na adolescência, mat:mdo invariavelmente a jovem após .um cont.1t'o sexual;
classe Jnédia. esses f!lmes contêm uma curiosa mistur:l de moderna tittlação sexual e punição tradi·
cion:tl do co,nportnmento sexual "imoml": também contêm uma mismra de aspectos
88 Há um "folclore" dncmatográfico em tomo desse filme.A jovem atriz que represen- de ftlogiuia e misoginia,como quando transform:lJ\1 as jovens em alvo de puniç.~o,mas
tava a filha adolescente ibi vítima de morte \~olcnta (ass:u;sin.1.da por um namorado du· mostr:lm algumas mulheres fortes reagindo mmo si:>brevi\>entcs.

174 175
senta lit~rahnente o medo da morte e da desintegração.~bém vc~os. a secam os mitos dominantes e questionam os valores vigentes (p~r éxe·m-
lividez prematura da mãe após a viagém ao mulldo dos espíritos - outra plo, Altman, Scorsese, Allen, etc.), Spielberg é .unÍ contador de- histOrias e
apresentação simbólica do medo do rápido envelliecimento. Finalmente, o criador de mitos que afrrma pólos opostos: vaiares e estilo de vida da dás-
filme tira proveito das esperanças de vida após a: morte e do medo de que se média, :Por um lado, e ocultismo transcendente, por outro. ·
ela seja infernal - uma das fontes de p~der da religião funda~t:Qtalista -, A atençãO dada ao oculÍ:o na cinematogmfia hollywoodiana pós-exor~
retratando-a como uma vida povoada por monStros que atormentam os cista- (1973) representa uma crise ideológica da sociedade americana, pon-
não eleitos, c não um reino de salvação espiritual, que o filme apresenta do em fo"Cb uma sociedade em crise_ cujas instituições estão sendo ataca-
como a bem-avenn1ran5a reservada aos eleitos. das por várias forças. Alguns dos filmes ma!.s popul~s de terror e ocultis-
Poltergeist, portanto, apresenta um panorama de imagens simbólicas mo (0 Exorcista, A P1'0fecia, Cante, a estrah·I.?-®::A cidade do borrm-, O ilu- ·
dos _pesadelos americanos contemporâneos. Sua força provém do uso de minado, etc.) retratam uma sociedade em desintegraçãO que é incapaz de
medos reais e da sua apresentação simbólica, graças à qual as pessoas po- lidar com os males apresentados nos -filmes. Na maiOria desses e de outros.
dem sentir suas ansiedades subcol!scicntes na segurança do filme, por grandes s_ucessos de Hollywood, a safv.ação ou solução para os problemas
meio de uma máquina ideológica que atenua e tranqüiliza seus medos por retlfltadd_s,$e houver, aparece na forma transcendente de alienígenas ou ex~
mostrru· que a família consegue escapar. Poltetgeist apresenta a paisagem rrati:.ttfs, da igreja ou do mundo espiritual, ou então de super-heróis
da consciência contemporânea de um modo mais contundente que o feé- vihdos de outros mundos ou de outros tempos, como Super-homem, Bat-
rico ET, revelando que, na era Reagan~seus contornos são de medo, consu- man, Conan ou .Indiana Jones. O recurso ao passado ou ao transcendental
mismo e vida familiar; com disposição para se acreditar em qualquer coisa na busca dt;:.heróis, valores e legitimação, porém, não legitima eficazmen-
e fazer de tudó para sobreviver. te as institt.t_i'Ções da sociedade existente e dá .indícios de uma crise de legi-
Embora Poltergeist dê pistas sobre a rapacidade do capitalismo moder- timação na" sociedade americana contemporânea (Habermas, 1975,).
no, que destrói a terra, explora as pessoas e até ameaça a sobrevivência ht1~ Poltergeist, é vet·dade, tenta retratar positivamente a família e o estilo
mana, a fonte real das ansiedades é deslocada para o oculto. Por isso, embora de vida da classe média, mas há contradições ideológicas ria obra de Spicl-
esse e outros ftlmes recentes de terror contenham alegorías sobre. esse tipo berg entre a tentativa de exaltar as instituições e os valores vigentes da das-
de angústia, o público é orientado para o espetáculo de terror ocUlto, e não se média e a busca de salvação em e)ÇI:raterrestres ou no espiritualismo. Em
para o show de terror da vida contemporânea nos Estados Unidos. A meta- seus filmes também se encontram pistas de que as instituições ê Os valores
física irracional-ocultista de filmes como ET e Poltergetst, portanto, enfra- vigentes carecem de vitalidade. Em Contatos imediatos do terceiro gmu,
·quece a percepção social presente no filme e fortalece o irracioná.Jismó o _marido abandona a família para tentar realizar a fantasia de entrar em
avASsalado r da sociedade. americana, que se toma manifesto em campanhas con,ato com os alienígenas de OVNis; em ET, a ausência ~o pai.(slepatado
pelo despertar religioso, em cultos, no espiritualismo new age, etc. da mãe e morando no MéXico com uma nova namor<;ld:,t) pode ser vista
Na verdade, vários dos filmes mais importantes de Spielberg são per- como uma razão psicológica para que o menino se ligue por laços de ami-
meados de um ocultismo nebuloso que T.W Adorno caracterizou sagaz- zade e amor ao extraterrestre; e, embora em Poltergeist tenhamos um retra-
mente como "metafísica dopadora" (1974: 24)'. EmbOra as incursões de to especialmente forte da família como instituição viável, o restante das jp.s-
Spielberg e companhia no sobrenatural permitam vivenciar de forma tituições dominantes, especialmente o poder econômico, é apresentado de
simbólica aS ansiedades que as pessoas poderiam não ser capazes de en- forma crítica.
frentar numa narr.ativa mais realista, seus filmes da década de 1980 tendem Portanto, embora em Poltergeist seja evidente uma ideologia da fãmí-
a projetar medos reais nas ameaças de espírito~ malignos e esperanÇas na Ha, não há legitimação ideológica da política econômica americana. Desse
libertação por algum extraterrestre benfazejo (Contatos imediatos do ponto de vista, o recurso ao oculto c aos valores transcendente-espiritualis-
terceiro gmu [Close Encounters], E1), ou por super-heróis como Indiana tas dos recentes filmes de Holly-wood revela o malogro da indústria cultu-
Joncs em Caçadores da arca perdida (Raiders of the Lost A;'k). As máqui- ral em oferecer legitimação idéológica eficaz ao capitalismo allJericano
nas ideológicas de Spielberg com ext.r;-ema freqüênéia convocanl o público confemporâneo.Apesar disso, seja lá o que se pen-se do ocultiSmÇ) de Spiel-
para fantasias escapistas, para a at1nnação conservadora dos valores da das- berg ou de sua afirmação dos valores da Classe média, sua obra é valiosa por
se média, dos heróis míticos tradicionais e das formas da ~ültura popular !atiçar luzes sobre a sociedade americana contempot?nea e revelar os me-
tradicional. Ao contrário dos cineastas mais críticos de Hollywood, que dis- dos, as esperanças e as fantasias da nova classe média próspera dOs, subúr-
'

176 177
')tf
bios. Em Steven Spielberg, essa classe encontrou seu crOnista e ideólogO. e. da mulher. Ele diz que sente falta do emprego e que gostaria inuÍto de vol·
Suas fantasias são permeadas de ideologi.as que devem ser eximinadas, de s.- ;f
e e! ee
tar para casa. Queixa-se da companhia !ic seguros, que não os reemboL'>oti
codificadas e criticadas pelas pessoas que se interessem por ~Otender a so- pela perda da casa, expressando ansiedades atuais em torno das institui-
ciedade .e a cultura ameri,canas nos dias de hOje. · · ! l ções burocráticas e do poder econômico. Trunbém· faz piada com seu
"movimento descendente" na escala social, mas é pintado como um set'

Poite}:r;eíst 1.! <: a crise dú patriarcado ._)


l cmhpletamente ineficaz e patético, incapaz de melhorar. Por isso, sua famí-
lia é ob'tigada a morar na casa da sogra, e o pai parece impossibilitado de
fazer quálquer coisa para conseguir que :; compai\~ia de seguro reembol-
O filme Poltergeist original é uma produção brilhante, que combina 'o
I se a perda da casa e para voltar a trabalhar';!~l!!ll• a"fàmília representa uma
gosto p~lo macabro e as imagens imp'l.:essionantes de Tobe Hooper com o crise cabal ,do patriarcado e expressa o medo masculino de perder a casa,
e•t' o emprego·e o auto~respeito numa economia em declínio e numa ordem
talento cinematográfiCo de Spielberg.A câmara flui c está constantem~nie e

em movirilento durante todo o filme, prodt~indo im~gc:tns e .jl,istaposiçôes sOcial em desintegração ..


contundentes; a iluminação cria alguns efeitos surpreendentes do sobrena-
!eeele , ·~~ ~:arrativa do filme, a familia·Freeling é novamente ame~çada p~la
tmal; a edição é ágil, e o filme é absorvente do começo ao fim. Polterge{st
':> : c
perd1f~~lfilha, dessa .vez devido à intervenção de um misteriosO pregador
<

li: O outro lado (1986), de Brian Gibson, ao contrário, é cinematogf<!fiêã- éhamado Kane, representado por Julicn Beck, que, na época, estava para
mentc medíocre, e sua ''trama» mirabolante vai mais longe no oculto e no morrer de câncer e projetava uma figura emaciada, fantasmagórica, cada-
< <

· sobrenaturaL No entanto, o ocultismo bobq do filme apresenta uma alego-· vérica.~1 K~e é apresentado como um ser demoníaco,qüe tenta conduzir
Carol Ann~para o mundo dos espíritos, e é representante de uma classe
ria dos medos da classe médi.a, e: é dessa perspectiva quC o o;aminarcmos.
Caro! Clover (1992) mostra como as mulheres são privilegiadas no 'l''
'·:_; .. ' trabalhadbra pouco instruída e malevolente, uma mistura do falso pastor
desempenhado por Robert Mitchum em O mensageiro do diabo (The
primeiro Poltergeist. Filha c·mãe possuem mais poder de intuição .e clarivi-
dência, os parapsicólogos são chefiados por uma rÜ~Iher,_e lià uma mé- Ntght of the Hunte1·, 1955) c do briguento sulista que costuma ameaçar a
dium, o que apresenta as mulheres como figuras mais poderosa.~. O Pai i-
''·•j'
'•.
'

classe média nos dramas. convencionais de terror e crime criados por


mostrado como um desamparado e, em geral fica observando de fora Hollywood.
enquanto as mulheres controlam o discurso e' os ~contecimcntos (só a~ Na trama oculta, Kane é líder de um culto religioso e levou um gn1po
mulheres, por exemplo, participam de uma longa discussão sobre a morte de fundamentalistas fanáticos à Califórnia no século passadO. Moravam
e a vida no além).Clovcr deixa de analisar, porém, de que modo o filnle"ex- nUma caverna, debaixo da atual casa dos Freeling, acreditando que 9
pressa a crise do patriarcado produzida pelas mulheres fortes que amea- mlÍndo ia acabar. Os membros da seita" religiosa, porém, mudaram de idéia
çam o poder do pai, o que o obriga a reafirmar sua força e superar a crise e tentaram sair da cáverna quando a previsão do fim do mundo não se con-
no segundo fdme Poltergeist. O foco que essa autora põe no imporiant.e pa~ cretizou, mas estavam encurralados, pois Kane vedara a entrada com uma
pel do gênero nos filmes de terror contemporâneos também told.'l a pedra. Correu voz de que a seita fora exterminada por indígenas, mas, na·
importância do papel das classes e das raças, assim como o seu argumento tf'.una oculta, os espíritos de seus participantes contim1avam morando, com
de que os filmes de terror ·muitas vezes privilegiam as mulhc:;res em.detri· alguma regularidade, na caverna que ficava debaixo do cemitério sobre o
menta dos homens deixa de detectar a importância da ressurreição do qual a casa dos Freeling estava construída, sendo incapazes de passar para
poder masculino em Poltergetst ff<Jil ' · "Ú outro lado". Os çspíritos se sentem. atraídos por CarolAnne, que eles
Na verdade, o pai, mais ou mciws relegado ao segundo planQ no v.êem cori10 um ser bom e inocente, capaz de levá-los "para a luz", para "o
primeiro Poltergeist, é figura central no segundo. O filme começa um-ano outro ladO", Em compeqsação, o malvado Kane- apresentado como uma
depois; o chek de família está desempregado, c a família mora-coni a mãe _/' figura diabólica- parece querer transportar CarolAnnc para o mundo dele
e usar seu poder s9bre ela pam voltar a· ter controle sobre seu "rebanho".
Dessa perspectiva, Kat;~e representa o patriarcado opel'ário irracional c au·
90 Ciover (1992) deix.'l de vér que O Exorcista e ínuitoS filmes de terror contempoci-
neoS sio antift:ntinístas e contrários .às mulheres independentes e fortes,preferindÓ ~e r
o gênero como cabalmente favorável às muthetes;de fato, como a maioria dos gêneros, · 91 Beck, sttn dúvida, foi o Ji.1ndador do Ltvtng J1Jeutf!1· de vailguarda e durante tod.'l a
este tem um lado reacionário e um lado progressista, cot11o veremos neste estudo: vid.'l foi um radical

'178 179
I
toritário que Steve Freeling deve superar para ser um bom chefe de funúc
'lia da classe médià. · ·
Vista alegoricamente, a perturbação causada pelos fantasmàs está su-
penieterminada: no primeiro Poltergeist, é focalizada a zanga dos· espíritos
devido à profan~--ão do cemitério; no segundo, o foco é constituido po~; bràn-
também lhe faz uma admoestação Sobre suas responsabilidades e n~~es­
sida9-e de assumir o controle. A certa altura, o pai vai com ele a uma ceri-
mônia da ~tenda do suor", numa ..cena de solidariedade masculina em que
ele supostamente recupera parte de seu poder patriarcal perdido. Ganha
uma pena, que ostenta com orgulho como um totem desse poder perdido
a
I
cos pobres.A imagem dos religiosos brancos e pobres enturra1ados n:fcaver- que de espera resgatar. 9~
~ representa o medo da classe média, de que a dcscensão social a empurre No entâhto, iiínda lhe faltam poder e determinação, e; numa cena-cha-
para semelhante estado de desamparo. As imagens em jlashback que mos- ve, ele se volta para os espíritos do álcool, embebedand~e com tequila, do
tram esSes_ brancos pobres são uma advertência subliminar aos espectadores, tipo que tem uma larva na garrafa. No plano ~' Kaii~ se introduz ha
de que eles também podem cair naquela condição. Cmnulativamente, as-ima- larv-a, a fi~ de usar o pai fr--aco para arrebatar-file a"filha. o pai ellgole a lar-
gens dos espíritos dos bmncos pobres e dos mortos a assombrarem a classe va c fica "possuído".A possessão assume a forma de violento desejo de fa~
média branca transcodifica seus medos c ansiedades relativas· à inva~ão ·por zer sexo c;Om a mulher, e, como esta se recusa, ele tenta violentá-la. Numa
outras raças e classes numa época de inSegurança econômica e social. luta feroz çom. \:J monstro, a larva llie sai pela boca, agora no formato de co-
Poltergeist /!, portanto, continua aprofundando-se nos medos contem- bra gigàntrfààVque - depois de um grotesco parto metan1órfico - assume
porâneos relativos a questões raciais, de classe, gênero e sexualidade de ma- a forma di Kane! A figura larva/cobraJmonstrojKane simboliza os perigos
neira ainda mai~ completa c extravagante do que o. primeiro. Esse filme foi da sexualidade descontrolada da class~ trabalhadora e equipara Kane a um
lançado em 1986, durante uma recessão reaganista em que era crescente 0 poder mqnstruoso e ameaçadorY~
medo do desemprego e da perda da casa e do controle sobre a vida. Mais O pai, por~, acaba por redimir-se e novamente assume o controle da
uma vez, mostra-se _uma tecnologia descontrolada; uma das cenas iniciais fanúlia.A famíl.iá se une para voltar a Cuesta Verde, cenário do lar deslruídQ.
apresenta um aspirador de pó que se recusa a obedecer,-e dUrante todo o _Vão todos juntos para a caverna onde Kane_e seus seguidores estão presos.
filme, o carro do pai está em pane, o: que talvez expresse o tnedo da perdil Os espíritos malignos apoderam-se de Carol Anne e da mãe, mas com a aju~
ou da falta do automóvel, sinal especíal de prestigio c poder para a -classe da de Taylor, o indígena, pai e filho vão para o"outro lado'' e resgatam mã~ e
média. Agora a família é ameaçada pelos espíritos dos bi-ancos pobres que ftlh.:l O pai prova, assim, que é digno de reassumir o poder pairtarcal e rcs-
querem sair da "dimensão espiritual e pelos esJ:)íritos do-cemitério sobre o ta]?elece a unidade da família. Depois de escapar da caverna, a fanúlia é vis-
qual a casa foi construída. E!fi conjunto, os filmes Poltergeist representam ta de novo no seu bairro, presumindo-se que deva retomar sua vida feliz e
alegoricamente o medo de que monstros vindos dé classes mais baixas e de pró_spera dos subúrbios americanos habitados pela classe média.
outras raças destruam a utçopia: suburbana da classe média. -
,,
Mais uma vez, os tã.ntasmas vêm assombrar a família, é novamente são 92 C!over apresenta o indígena Taylor como representante de uma nature7.a mais femi-
as mulheres que entram em contato com o mundo espiritual. O filme nos nina, com'a qual o chefe de família predsa emrar em cozltato (1992: 91), mas deixa de
apresenta a avó (desempenhada por Geraldine Fitzgerald), em cuja casa os ver o significado da crise do patriarcado, qUe Steve precisa superar, e o tema da ressur-
Freelings estão morando; ela também possui poder oculto e se,comunica reição do poder masculino; também não vê o recolhimento na tenda do suor como ma·
do "o~tro lado" com Caro! Anne, depois que morre. Mas dessa vez o pai nifestação de solidari<"<.hde entre homens a reanimar o poder masculino. Em vez de re-
presentar o feminino per se, Taylor representa uma sabedoria sobr<:"natura! mais tradi-
tambem precisa lidar com os espíri_tOs e provar' que é ~honiem" suficiente·
donalistu contra a ciên<.·ia e a razão "normais"; por is~o. a mensagem, em última análl·
para chefiar a família. A certa altura, ri pregador Kane se mostra a Steve e se, é que Stel'e deve tornar-se mais masculino e mais sábio para reassumir o poder fãli·
passa-lhe um sermão: . co ameaçado.
93 Clover 0992: lú6f.) vê a scqüénda <Jo "'parto" eomo uma exptess.'ío- posi!lva d~
A quem sua fun_ülia recorre quando tem problep1as? A ele [Taylor], não é?" Eles trnnsgressão/mistura de identidad~s sexuais e, de modo geral, valoriza as fi-eqüentes
não conftam· mais em Vod~, e o seu medo é de não ser h.omem suficiente- pará imagens de parto dos filmes de tecror contemporiineos como demonstração do pnpel
manter essa familla unida! Agora, deixe-me entrru·. DeL-.:e-me entrar! . positivo c forte das mulheres nO gênero. Mas cssa.s cen~s de nasd.mentos-n:ioustruosos
-que drculam por filmes de terror <:orno a sérieAlten,A Coisa e nm!tos outros-
podem ser vistas como imagens extremamente 11egat[v~s dos proce.ssos biológicOs,
O chefe de família é ajudado por Taylor, indígena (WUI Sampson) que
port;<nto antifcmininas, pois projetam idéias neg,ttivas do nascimento, como coisa
aparece como "mago prestativo" (tradicional motivo dos contos de fada) e monstruosa, c das mulheres como portadoras de monstruosidades.

1.80 131
Logo-, o pai reconstituiu su~ identidade. de chefe-·de famtlia e restab~ em di'a, e, por isso, o público talvez só consiga enfrentar simboli~mente
leceu~a autoridade maSCulina em contat~ com o irraci.onal, o ti'adicional e tais medos em gêneros como Os filmes de ten:or, e não .nos dr-amas realis-
o heróico, tornando-se um verdad~iro patriarc·a da _classe média. Asslin tas. Na verdade, quem gostaria de as_sistir a um drama .em que uma família
também, a fainília é reconstitl.Úda.como unidade positiva e in'tcgral, sobre- perdç emprego e casa e se desagrega, fatos estes que se tàrnaram vividos
pujando as ameaças e os desafios à sua integrid1.de.Ao contrário dos.fililles demais n<~, últiJna década de permanente crise econômica?
de terror de épocas anteriores, que mostravam a famÍlia como prOdutora be outra perspectiva, os fllmé:s Poltergeist, assim como os filmes con-
de monstruosidades e horror, nos ftbnes Poltergeis"t a fanúlia sobrevive às servadoreS"'cto tipo O reencontro (The Big Ch!ll, 1983), representam o fim
a~eaças vindas de mons_tros. de fora, "outros~ que põem em perigo a nor- dos anos 1960. No primeiro Poltergeist. a mã,e e o pai"~fumam maconha e fa-
malidade da classe média. Tais filnies, por:tanto, constituem defesas ideOló- zem amor; a geração anos 1960 · crcsc~u, c~,;e.: agàtà: iem vida próspera
gicas do núcleo familiar da classe média, que é por eles louvado:~~ nos subúrbios de classe média_ Em Poltergeist 11, a mulher diz- ao marido
"Você- mmca foi hippte", afirmando que ele só assumia atitudes bippie$_ para
impressionar.outra garoU:NJJ.ma cena significativa, a mãe corta rosas no jar-
!)!AGNÓSTICO CRÍTICO' DE P()LTI'l?GéfSTA Sf.áCKERSE dim e l~nibFa-se da infância, quando plantava rosas com a mãe - pyngente
}JE--11/!SA_V'D Bff'[]~JIE4D imag'tô)~Eontinuidade de gcraçOes que alguns r--adicais doS anos 1960 que-
riaffi romper. Nos ftlmes Poltergeist, os anos 196o estão mortos c enterrado.s:
Na nossa leitura dos filmes Poltergeist, as "assomiJ:rações" represcntaln o tradicionalismo inexorável e a exaltação da família volt'aram com sede de i
ameaças vindas de "Outros" sociais~ raciais que põem em risco a normali- vingança, e It!fllywood só poderia tkar feliz de retornar a instituições con- '
dade da classe média; esses filmes expressam os medos vividos hoje em dia servadoras c;oino a família de chtsse média, que ele sempre d_ecantou.
pelas famílias de classe média_ numa economia insegura e numa ordem ~o­ Entreti'nto, nem tudo são flores no "lar dos bravos e na terra dos li-
cial em desintegração. Os dois mostram a vida .da classe média como algo vre~", e para descobrirmos expressões da dinâmica contemporânea de clas-
fora de controle1 amCaçado de dissolução. Contttdo, o restàbelecimento da ses no cinema de Hollyw-ood, precisamos lidar- com gêneros como o terror
ordem patriarcal iCunifica a família. As imagens mais pungentes de .e a fantasia, se quisermos sentir plenamente as vidssitude_s de c_lasse nos
Poltergelst-ll mostram a família enquadrada em tomadas separadas a unir- nossos dias e as profundas ansiedades· em torno do descenso social, que
se como unidade familiar restabeledda. Os dois filmes mostram a desagreH talvez seja o verdadeiro pesadelo americano. O terror e a, f.mtasia conse-
gação e a reint~gmção de uma familia, numa fantasia cinematográficá de guem tratar de temáticas dolorosas e perturbadoras demais para serem en-
uma·época ~qual as famílias de-verdade estavam sendo desagregad~por -frentadas em gêneros de realismo sociaL Mas o terror e a fantasia, embora
uma economia e uma ordem social desintegradoras. Na realidade, a perdá posStm s~r mobilizados para a critica das instituições vigen~s, também po-
da casa c do emprego e a ameaça de sofrer atos criminosos c de descer na- dem desviar a atenção. das' fÜntc~ reais de sofrimento contemporâneo,
escala social eram e ainda são medos bem reais· nos Estados Unidos hoje transferindo-a para _ijguras do mundo oculto. Essa é a função ideológica dos
filmes Poltergeist, que constituem elogios conservadores à normalidade da
classe média; interpretados diagnOsticamente, podem revelar aS ameaças ·
94 Não induínto~ Poltergelst [fi (1988) neste e5mdo por não focaliz:u- a família
Freeling; mostra Caro!Anne em visita ~ parentes de Chicago e o retorno de Kanc para
de laceração da família que o filme tem por fmalidade recosturar. A
tentar novamente dominá-la. O filme é tão ruim qt1c poderia ,ser conside!'2do sintomá- intenção dos filmes lbltergeist é, portanto, em última análise, atar o espec.
tico do declínio do gênero de terror nos dias de hoje, embora parte do problema da .,_.3_ tador ao desejo de viver como um típico integrante da Classe média depois
gueza e do ilesarranjo do roteiro possa ser d<.-vido à morre de Heather O'Rourke cuja de passar pela experiência das ameaças. Esses fUmes são, ent."i.o, sintomáti-
ausência impossibilitou a fi!m."'gem de cenas necessárias ~ c~erência e i !'(_"S()!~ç:Ío da cos da guinada direitista da cultura americana depois que os movimentos
trama.A morte de O'Rourke, que se seguiu à de Dominique Dunne, sua irm.ii adolescen- ' .
criticas e políticos radicais dos anos 1960 questionaram instituições como
te em Poltergefst I, alimentou qm "folclore" ocultista_eni tomo d; vingança dos espíri-
tos ma,lignos, cujo foco, porém, deveria ter J"tOcaído sobre a natureza violenta da socie- a família e o patriarcado~ · '
dade e sobre o mau atendimento médico (Dum;ie foi assassinada por um namo!'2do du·
mento, e a famílía de O'Rour;:,e abi-iu um processo por negligência médica, afirmando
!I
q).le a doença da filha foi mal diagnosticada; tom issO, O atendimento médico foi erra" . '
do e o :rata.rpeQ.to imposto acabou por levj·la a nlOrte com 13 arios de idade).
1
I
I
;
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i 183
vídeo tem um quarto cheio de televisores e t1tas de vídeo, pois- ten'ta fll._
mar tudo; a música local é' uma ~das principais fontes de interesse e entre··
tenimento, assim como o cinema c a televisão; dois slackers ~!osotãm
Então onde fica a geração mais jovem nessa situação toda? Para en· sobre os deserihos animados Scool~v Doo c Smmfs num bar; e muitas das
tend:trmos a angústia da juventude contemporJfiea, poderemos observar personagens declamam }Jomposamente fragmentos de filosofia popular
os filmes Slacker (1990) e jovens, loucos e rebeldes (Dazed e Conjused; inspifad.os na cultura da mídia,% , . _ _
1993), de Richard Linklater, be.m como o fenômt-110 Beavis and Butt·Head,. Os slal:kers, pot'ém, apropriam-se da cultura da. nudm para seus
dos anos 19934. Slacker é, provavelmente, a dissecação cinematográfica próprios fms, transformando artigos derivado:'i_, de fonú!~conscrvad~ms e~
quintesscncial das angústias da gecição pós-1960, COJ9posta por jovens in- matcriaJ de crítica social e política radical, ena:It~O utilizam _a tecn~log1a
satisfeitos de vinte e poucos anos, bombardeados pela cultura da mídia e da mídia: para suas fmalidades (como, obviamente, fazem o d!Ce~or hnkl~·
alijados da hegemonia consçrvadora da classe média ".certinha". A juvcn· ter~ sua equipe). Os slacke,rs não são pmdutos passivos dos cfettos da mt·
tude de Slacker vive à margem da socieda'de, em busca de um estilo de vida dia; maS seus participan,tes ativos, usando-a para produzir :ignific~os, pra·
extravagante, recusando-se a· entrar no jogo dó sucesso acadêmico, da car- zer c identi~dde.As oniprese.ni.es camisetas muita<> vezes tem logotipos ou
reira, do casamento t da família, abraçado pela maioria das pessoas e exal- tmagc~S,~das da culttln da mídia, enquanto a TV e a música são panos
tado nos filmes Poltergeist. ·de fi1ndo constantes para os eventos cinematográficos do filme.
O filme acompanhá. um dia na vida da ju~ntude de Austin, Texas, no Portanto. a mídia tece a trama da vida dos sla'cket'S e possibilita uma
fim dos anos 1980. A narrativa come<;;a quando o diretor Rick Linklater crítica diagnóS!lica em que se disceme que. para muitos segmentos da ju-
chega aAustin de ônibus. Na estação, pega um táxi, onde começa a contar ventude de ho~, a cultura da mídia é a cultura. Os estudos já feitos sob-re
.o sonho "esquisito" que acabou de ter, e filo~ofa em torno da possibilidade os efeitos da !Úídia foram restriios demais em seus métodos (pseudo)den·
de existirem universos e vidas diferentes, ~onsistentes em escolhas nãp fei- titicas de pesquisa, deixando de ver como a culturn da mídia põ_e em circu-
ta';, coisa que acabara. de ler mm1 livro. O filme passa, então, a seguir um iti· lação imagens, artigos, informações e identidades de que o pu?lico se apro-
nerário aleatório no qual uma personageni' se encontr-a por· acaso com pria, utilizando-os para criai' prazeres e identidades. Os pesqms~dol'es. con·
oUtra, e a n:trratÍYa prossegue de uma personal;em a outra, deixando as an· cluÍram depressa demais que a cu_ltuc--.t da mídia não produz ef~ttos di.Scer-
teriores para trás. O resultado é uma \i.são da juventude levando yida des· níveis e mensuráveis pot:que as situações expet'imcntais pratrcadas eram
conexa e sem objetivo, a vagar-de uma cena e de uma situaçãO a outra, sem demasiado artificiais, e seus métodos não eram apmpriados para· dar aceS·
rÍletas ou finalidades definida<>. so à vida cotidiana e ver como as pessoas de fato usam a mídia para produ.
No entanto, os jovens slackers estão numa sociedade totalmente sa·- zir sigl'iificados, prazeres e identidades. . _
turada pela mídia, cujos produtos constituem a base de suas cOnversas· e Slacke1; portanto, pos~ibilita uma crítica diagnóstica dos modos como
fantasias. de sua vida. Um aficionado por conspirações ·políticas fala da;s a mídia satura a cultura da juventude contemporânea e lhe fomecc o ma·
conspimções do governo e do acobertamento do programa espacial, to- teria! pará a produ<;;ão de significados, identidades c vínc~ll~s. Em. certo.
mando como t'eferéncia o Worla lVeek(y News; outro especula sobre Live sentido, o ftlme apresenta uma visão "pós--moderna" das angustias da Juven-
Elvis; uma jovem agitada tenta vender o ~papanicolau" de Madonna, · tude contemporâne~.% A juv~ntude e~tá perdida e, como fica clam, tem
completo, com pêlos púbicos pretos e tud9; outro conta as estatísticas, fa·
!ando da falta de genuinidade do mandato de BusJ;t na eleição presidencial
de 1988, que, como depois se percebe, ele tii-ou dÜ Valias Moming News; I 95 Por outro J~do, ao comrário de Becwts and Blltt·Hi!ad, que Vt'J-emos abaixo;os ch:-
um jovem negro vende- camisetas e panfletos "Libertem Mandela", -- mados slackers t:~mbém li.:el\llivros, JWcm referências a Tolstoi, Dostoievski,Sade e va-
enquanto faz um iap político com clichês da mídia; ~1m artista-ativista do rios outros eocritores e po<:tiiS, embora :ts diferçnças entre livros,TV e cint:n-..1 pareçun
est:~r niveladas: as várias petSvnalidades se redu:teffi a frnses de efeito <: clkht:s.
96A concepção dc"pós·modernismo"aqui utiH~ada é a dej:~meson (199!),que dá :<ten-
• A p~Javra "8lacker", tradidonalmcntt, designa o indivíduo que foge ~os dtvcrd,ao tra- cão a experiêndas DU imagens dtàs, 1.1nidim<:nsionais, desconexas e fl"agmentadas,
balho e à pres\a<,'iío de strviço milita~ Atualmente, porl'm, justamente por efeito do JU- Porém <:ntremeadas por momen1ós de intensidade euf6rica. Ess_e con<:eito ~Aesc.~·e~e
me, designa o representante da chafl1:1da gernçiio X (de ~irlte a trinta anos de idade tanto a fom1a do filme SladJ.:>' quanto as çarocteristicas eso;endliS das ..-~pen<:nc1as e
hoje) que é sa!llmdo pda cultmi da mídia e recus~ vinctl!os com profissões ou carrei-
do lipo de vida de suas pçr:;onagens.
ms co1wendouais. ManteremDs o tl'rmo inglês por e>lar já con~agra.do- (N.T.)

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uma vida completamente f:ragmentada e desconexa, passando de lima au. fade-out, uma concha ergue sua então mulher Anne Wtazcmsky ~o céu,
vidadc à oUtra em meio a mediações em grande parte casuais. Ninguém rit- num delírio romântico de transcendência pelo amor e o pelo. cinema,_
rece ter planos ou projetos de longo prazo, e todos dão a impressão de só Slacke1· mostra um grupo de,.farristas noturnos indo de carró até Mount
viverem o momento, vagando pela '\>ida como m1m sonho sem sonhador. BonneU, o ponto mais alto de Austin, com um câmara de cinenla, que é ati~
No entanto, as personagens do filme vão pasSando pela cena, c, à me~ rada do alto da colina. A câmara dá um giro é cai sobre a capa do livro de
dida que alguinas delas saem c outras enti<~m, temos a percepção de uma· Paul. C.oodman, Growing up Abstmt, ant_es que sÍ.1as imagens em espiral ro-
espécie de cOmunidade slacker cujoS integrantes estão interligados, áinda dopiem dJ!ina abaixo-e _terminem no eScuro, numa conclusão niilista de
que de maneira efêmera. ou mínima. Contudo, a comUnidade é constituÍda que nada realmente importa num mundo tgtalmenibabsurdo: nem amor,
por vagabundos nômades; vínculos acide_ntais, vaivéns não estntturados e nem cinema, nem criatividade, nem transcen\:1-~neia
..,,... dttipo <tlgum.
por um visão segundo a qual a vida é constituída pai momentos descone- ·- '\- No entanto, em outro sentido, Slacker representa um diretor moder-
xos de intensidade cufóri.ca, intercalados por períodos de banalidade e fal- nista que, com uma visão e utn estilo próprios, atinge uma percepção níti-
ta de sentido. da das angú~tias da juventude contemporânea, alijada do sonho americano
O estilo _de Slacker, portanto, utiliza a tática pós-moderna de fragmen- c do~ ~tdre~ tradicionais de ~ua sociedade, a flutua~ na superfície da vida
tar e descosturar a unidade narrativa, apresentando uma série de instantâ- contÍ'~hea com a atenção monopolizada e moddada pela cu\tura da
neos de vidas parcamente interligadas, percorrendo em linhas tortuosas a míaia. Ó filme teve produção barata e compartilha o et!Jos inovador do ci-
superfície das coisas, sem nenhuma profundidade nem significado mais nema independente. Numa cena do começo, num café de Austin, um estu-
profundo.IJm-rJ.paz dá carona a uma mOça na saída de uma casa nOturna, dante pega vrn e.xemplar da coletânea de ensaios de Hal Fo~ters sobre a
leva-a para casa, e nós a vemos levantar--se e sair na manhã seguinte, cultura. pós-_r~Üderna, The Antí-jtesthetic (1983), e numa me~a se vê um
enquanto a ·pessoa que mora com ela assiste à JV no mesmo quarto, sem exemplar dó" livro de Marshallllerman sobre a modernidade e a cultura mo-
nenhum diálogo perceptível entre as personagens. demista,Al!That is Solid Melts IntoAir (1982). Os dois livros contêm ava-
O filme, portanto, explora as superfícies; e, embora haja momentos de- liações opostas sobre a estética contemporânea (modernismo cOntra p6s-
gr-.tnde humor e comtrsação intensa, não há desenvolvimCnto de 'perso- hl0dernismo). Parece-nos que Linklatcr combina estratégias estéticas mo·
nagens, desenrolar ou desfecho da trama, nem produção de significados dernist"dS .e pós-modernistas-e que o filme está, portanto, entre o moderno
profundos que interliguem as seqüências ou unam os fios narrativos·. Ade- e o pós-moderno!'
mais, linklater faz um pasticho de filmes modernistas, como quando se ins- Além diss'?, a visão de Slacker sobre as múltiplas possibilidades da vida,
pir.t em La Vote Lactée (O eshYmbo caminho de Santtago,l969), de Luis com um grande número de indivíduos a produzin.:m seus próprios significa-
Buíiuel, como principio de (des)organização narrativa do filme (definire- dos, Poderia. ter efeitos emandpatórios. As personagens não se confurmam.
mos"modernismo com mais detallies no capí~ulo 5). ü filme de ·auiiuel nem se submetem a uma estmtura totalizadora de dontinaç..'io, e, ao mesmo
apresenta romeiros a caminho da Espariha num espaço intemporal e. num tempo que extraem da mídia opiniões e imagens, processam-nas de maneira
tempo sem espaço; suas principais persooagens vão encontrando figuras individual e idiossincrátka.'Ihl visão exerceu furtç at;ação sobre os jovens, e
excêntricas numa seqüência narrativa em que uma desaparece assim que a Slacker bateu fundo, produzindo "efeitos Slacker" bem distintos (ver estudo
outra entra em cena. Sfacker também apresenta um mundo de conexões sobre o efeito Rambo, acima). O fUme tomou-se um cultem todo o país e, na
acidentais c de justaposições absurdas, mas,l enquanto o filme de Buiiucl vefdade, em todo o mundo. Nos últimos anos, ao dar alguma conferência,
tem algumas r;ersonagens priqcipais, que permanecem n:i. narrativa, e faz sempre encontramos quem, ao sabCr que mor.unós em Au.Stin, mencione o
uma abordagem alegórica dos mitos cristãos, Siacker não tem personagem· filme Slacker dizendo que gostou muito dele.Aiém disso, em 1993, as autori-
principal, cada slacker llt:saparcce depois de ser focalizado por alguns mo-
mentos, e o filme evita significados alegóricos ou simbólicos.
. A seqüência de encerramento de Slacker brinca com One Plus One 97 Ao mesmo tempo em que dávamos um curso sobre o1odern!dade e pós-modc:'mida-
0968) de Godar!t substituindo os revoiucionádos negios po~ um ~Paul Re- de no semestre do lançamento do fllme e carregávamos tJS dois livros para a lanchone-
vere pós-moderno" (como se vê na legenda) que, montado num carro com te da escola: vários do.s nossos alunos estavam vendo o filme. Portanto, os debates esté-
ticos em torno de modc:'misnio e pós-modernismo estav:un no ar durante o período, e
alto-falantes, descreve o programa armamentista do governo. E enquanto-o
Linkl~ter, que conhecemos há muitos anos, obvl:lmente capwu essas idéia.<;, misturan-
fim do filme de Godard mostra a parafernália de câmaras na praia, e, num do-as de modo inovador no filme

187
•.!· ·.
'L-Ides de AUstin ficaram preocupadas com o ·grande número de jóvens sem-
teto que andavam pela ruas e pela periferia da cidade, muitos dos quais h4-·
viam visto Slacker e iam aAustin à procura de gente da mesr:na "tribo" para
viver uma vida ·'slacker», que agora era identificada c.om Austin.
Portanto, Slacker articula\·a experiências de insatisfação da juventude
com a sociedade americana contemporiioea e próduzia um novo conceitó
para. descrever a juventude de nossos di~s, mitologizando o estilo de vjda
dos jovens desocupados deAustin, no Texas. Obviamente atingiu sentimen- ·
tos profundos da jt)ventude, tocando alguma corda sensibilíssiina do públi-
co, "que passou a ·usar o filme ·pat".t eXpressar vivências e sentimentos
próprios. O sucesso do tllmc também valeu a linklaier um çontrato de
US$6 milhões em HoUywood para.' fazer outro filme sobre a· juventude,"
Dazed mui Conjused (jovens, loucos e rebeldes, 1993), que descreve um
dia de formatura de 1976 numa ficuldade de Austin. O ftlme "hollywoodia-
no" de Linklater apresenta os vetemnos diplomandos sem nenhuma dire-
triz ou finalidade na vida, também alijados do mundo "certinho" de seus
pais, o mundo da classe média. .
Portanto, Os filmes de Linklater ·apresentam mn diagnóstico da situ-
ação dos jovens numa sociedade absurda cujas normas e valores tradicio-
nais já não significam. nada para muitos deles. Representam uma oportuni-
dade de diagnóstico da situação da juventude contemporânea nos Estados'
Unidos e indkam que grande número de jovens está desligado e .alienado
da cultura vigente, consagrada pelas ·redes de televisão e pelos filmes con-
servadores de Hollywood. O cult de 1993-4, Beavis and Butt-Head também
é uma oportunidade de realizar uma crítica d'agnóstica das angústias da ju-
ventude atual numa situação de mobilidade descendente na escala Social.

Beuds cwd f-Jütt-Head: não há futuro para a fu\'entude


pós-modcrn:1

B~avis e Butt-Head, personagens de um desenho animado, passan:t a


maior·Parte do dia sentados numa casa miserável, assistindo à televisão; so- ··t'
·j-'

i'

bretudo videodipeS, que eles avaliam em termos de "legal" ou "um saco". '

Quando saem de casa para ir à escola, trabalhar numa lanchonete ou procu-


rar aventuras, muitas vezes se envolvem em atividades destrutivas e até cri-
minosas. Criada pat"J. a MTV pelo cartunista Mike Judgc, a série brinca exa-
tamente com o tipo de vidcoclipe apresenta<jo pela emissora.9" Beavts arid
Butt-Head logo se transformou num cult, adorado pela juven.tude;, m~ pro-

98 Beavts and Blltt·Head bilseou-se num d~;:senho animado de curta duraçãO feito por
Mike Judge, no qual a dupla joga "beisebol com m~; {oi apresentado no Sick :md

189
"133
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vocou controvérsias acaloradas· quando alguns jovens Ias do progca.rna re- o começo, a mídia deu grande atenção ao programa ~ às opini.ões opos;as
solveram imitar o cOmportamento típico da dupla, queimando casas e tor- sobre ele. Num artigo de fundo, a Rolztni Stone declarava que eles eram ''A
turando e matando animais. w · voz de uma nova geração" (19 de agosto ·de 1993) !'!a Newsweek também
A série apresenta uma Visão crítica da juventude atual, que crcsc_eu 'in- os pôs na sua capa, Iou.;,ando e condenando a d11pla ao concluir:"A espiral
fluenciada pela cult1,1ra da mídia. Essa geração provavelmente foi concebi- desc~nden~e do homem bp.mco de hoje certamente termina aí: numa pús-
da e desmamada em meio a imagens e sons dessa cultura, socializada pelo~ tula.de nome Butt-Head cuja idéia de idéia é 'Ei, Beavis, vamos até a casa do
úberes vítreos da televisão, que serviu de chupeta, babá e professora a uma Stuart acendt..Ttihl baseado no cu do gato dele"' (11 de outubro de 1993).
geração de pais para quem a_ 'cultura. da mídia, especialmente a tele-...isivtt, "Burros, preguiçosos e cruéis; sem ambições, se113 valores; sem futuro" são
constituiu um .pano de fundo natura{ e parte integrante da vida diária. O de- outros termos usados na mídia para descrever ~t;~.W"sonagens e a série
senho· retrat-a a dissolução de um indivídu0 racional e, talvez, o fim do· Ilu- (The Da/las Morning News, 29 de agosto de 1993), e foram incontáveis os
minismo na cultura da mídia de nossos dias.Beavís e Butt-He~d reagemvis- pedidos de proibição do proS;f<lma.
ceralmente aos vídeos, rilldo com deboche diante das imagens, achando "le- De fato, um ganhador da loteria, na Califórnia, deu início a um cam-
gais" as representações de violência e sexo, enquant'i;~ qualquer coisa panha cOr,nr~:â. ~~rie, depois de ficar. sabendo que~ alguns garotos haviam
complexa, que exija interpretaç~o, é um "saco~. Destituídos de cultura, dis- Jllatado um;$tt<f'pondo uma bombinha em sua boca, numa imitação da
cernimento ou racionalidade e sem valores éticos ou políticos, as perso- violênda de Bea-...is e de Butt·Head contra os animais; em particular, num
nagens reagem .de modo literahnente insensato e parcce.rn carecer de dos episódios, eles amarram uma bombinha no gato de um vizinho (11Je
q4ase todas as habilidades cognitivas c comunicativas.
A intcn·sa alienação de Beavis e de Butt"Head, a paixão pelo beavy,
metal e pdas imagens de sexo e violência veiculadas pela mídia, além de
.
Hollywood RepoJter, 16 de julho de 1993). Os bibliotecários de
Westchester, Nova York, puseram Beavis .
and. Butt-Head
.
"em um dos
primeiros lugares numa lista de filmes e program.as de televisão que cl~s
suas atividades "lriolentas, logo suscit~ram disputas acirradas, produzindo acreditavam influenciar negativamente os hábitos de leitura da juventu-
um efeito "Beavis and Butt-Hcad" que deu origem a milhares de artigos e de- de", por causa de seus ataques aos _livros e às freqüe.ntes observações de
bates acalorados, levando até o Senado americano a cOndenar o programa que os livros, ou mesmo as palavras, são um "sáco" (The New York Times,
por incentivar a violência irracional·c o comportamento· estúj:,ido.' 00 Desde 11 de julho de 1993). Os responsáveis por uma prisão de Oklahoma proi·
biram o programa, as escolas de Dakota do Sul proibiram o uso de roupas
T»~st~:d Animatlon Festiva! e -adquirido pela·MTY,- que o incorporo(! n'a série Lfquld
e outroS objetos que tivessem imagens deles (.Times Newspúpers
Televtslon. O desenho estreou em março de 1993, mas. como havia apenas quatro epi· Limited, 11 de outubro de 1993), e um grupo de garotos da quarta série,
sódio:;, sua exibição foi imerrompida, voltando em l7.de nt.'lio, depois de Judge é sua no Missm'l'ri, fez um abaixo-assinado para tirar o programa do ar (Radio
equip~: terem retmido trinta e do'is no,·os episódios (The Sall Pnmclsco Chrotlfdc, 29 1V Reports, 25 de outubro de 1993).
de junho de l993).A sé ti c trip!icot! a audi~ncia da MTY,que encomendou mais 130 epi· No entanto; a série continuou muito popular até 1994 c gerou um ál-
sódios p~ra 1994 (The N~-w York Times, 17 de outuPro de 1993).
butn de mck heavy metal muito vendido, um livro de sucesso, inúmeroS ar-
99 Um artigo de 9 de outubro de 1993. no Dayton Dally News, contava que um meni· tigos de uso c vários planos de filmes. Um crítico da revista Time, KurtAn·
no de cinco anos. de Dayton, Ohio, usou um isqueiro para pôr fuga na roupa d.e cama derson, avaliou <\ série como "o progtama mais corajoso jamais apresentado
depois de assistir às traquinices piromaniaca~ de Beavis ~: Butt·Head, segundo sua mãe.
pela televisão nacional" (TI:Je New York Times, 11 de julho de 1993): e não
A irmã mais nova do menino, de 2 anos de idade, morreu ~:m .::onseqüêi'Ícia da propa·
ga~·iio do fogo.A mie di::;,s., que o menino estava"obcecado"por Beavfs a11d Blltt·Head
há dúvida de que ele alargou as fronteiras do permissível em tele"isão, le·
e imitava o comportamento deslmid9r d3 dupla. Abaixo, daremos mais exení.plos do vando-as a novos extremos (ou, segundo alguns críticos, a novas baixezas).
efeito 8twvts and Butt.Jlead. Em certo sentido,Beavis and Butt-Head é «pós-moderno''por ser um
100 Numa audíênc~1 do Senado americano em 23 de oÚtubro de 1993, sobre a ,;~!ên­ produto puro 'da cultur.t da mídia, com personagens, estilo c conteúdo
cia na TY, trnmva·se da atenção dada pela mídia ao programa,qnando o Sen. Erricst-Hol· quase exclusivamente derivadoS de outros programas de TV. A dupla Bea-
língs achavascou os seguintes cometJt.irios:"Estamos trnt.'lndo de::;,se- o que é mesmo? vis e Butt-Head é inspirada na dupla Wayne e Garth de Wayne's Wodd, qua-
- Buffcoat e Beaver ou Beaver e alguma coisa assim .... Não vi o programa; não c,;stu- dro popular do programa Saturday Nite Live, por sua vez inspirada ém fil-
mo ver; ~:rn às ih - lluffcoat- e agora passaram para as l0h30, acho" (The Hartjord
Courant, 26 de outubw de l993). Es~a ignorância da cultura da mídia é freqüente em
mes Populares. Também se pÚecem com as personagens Bob e Doug
a.lb'llnS de seus criticas mais ferrenhos. McKenzi~ da sctv, que ficam sentados num sofá, fazendo comentários obs-

190 191
' Beavis e Butt-Úead
cenas e cruéis enquanto assistem à TV e bebeln cerveja. escola é totalmente alienan.te para os dois, assim como trabalhar numa lan-
também levam a um grau mais intenso o comportamento anti-social da chonete.As figuras aduHas que eles encóntram são, em. grande parte, ho-
personagem Batt Simpson, do dese.nho Os Simpsons. Seus comentários mens, brancos e conservadores, oü então yuppies libeiais com quem fre·
sobre os videocllpes reproduzem a popular série .do CorrÍedy Central qüentemcnte entram em conflito c cujas propriedades sempre dão um jei--
Cbannel, Mystety Science Theater 3000, que apresenta.duas fi~:.~ras simpli- to de dest.ruir.
ficadas de desenho animado fuzendo comentários frrevcrcntes sObre ve• Há um aspecto de realização de funtasias em· Beavis ana Butt-Heaa
lhas porcarias de Hollywood e da televisãõ. E, sem dúvida, os videoclipes que talvez afi.J.dê a explicar sua popularidade: as crianÇas"~uitits vezes sen-
são uma réplica direta da programação básiCa da MTV. · · tem o deSejo-de não ter pais, de simplesmente ficar no Só~ assistindo a vi-
&-·-·'··~~ •
Beavis and Butt-Head desperta o :interesse da critica diagnóstka deoctipes e sair quando bem entendem (às vcze$i.r,if5s mesmos scnt!JOOS ·
porque suas perSonagenn:Xtracm da mídia todas as idéias e imagens que isso). Elas também são natui.tlmcntc desrespeitosas em relação à autoridade
têm da vida, e toda a' sua v_isão da histó.ria c do mundo provém da cultt~­ e adoram ve.r alguém desafiar as forças sociais que acham 9pressivas. Na
ra da mídia. Quando eles vêem' um cantor de rap vestido a caráter, com verdade, a iisad~ de Bcavis e de Butt·Head, tantas vezes difamada, discutida e
uma peruca branca- estilo século XVIII, Butt-Head comenÍa: "Tá veStido imitada (-i'Hçh~héh, heh~ e ~H uh, huh"), pode significar qut:; no espaço dek:s
que nem aquele mané do dólar". Para eles, os anos 1960 são o tempo dos são elef q12J.· rfiiíndmn, que Beavis e Butt-Head são sobe~ os, que cont:ro-'
hippies, de Woodstock e do rock'll 'rol/; Vietnã é história antiga, afundada Iam a televisão e podem fazer o que bem lhes der na telha. E de se notar que
no meio de oulras guerras americanas. Mesmo os anos 1950 nada mais com essa risada eles arranjam problemas na escola e em outros locais onde
são que uma série de clichês desfim1rados da mídia: s~bre os gêmeos Nd- haja wna autorid~e, mas em casa podem rir e tirar o sarro que quiserem.
s"on, ídolos dos adolescentes da década de 1950, Butt-Head observa que: E assim, a :}érie tem uma dirpensão utópica: a utopia da ausência de
"Essas mina parece hoiúem ~. Beavis responde: "Ouvi c!izcr que o avô d·e- autoridade pate:ffia c da liberdade ilimitada para se fazer o que se quer e
las em o Ozzy Osbourne". E BuU-Head replica:"Dc jeito nenhum."Elas são quando se quer. "Vamo nessa, mano'' é uma de suas expressões favoritas,
filhas do Elvis". que eles usam quando decidem ver ou fazer algo -.sem nnnca pedir per-
Para Beavis e Butt-Head as personalidades da história r-stl"io confundi- missão ao pai (ausr>nte). Por outro lado, representa as conseqüências do
das no _meio da cultura d~ mídia e forncCerh material para piadinhas suj~, comporL1.mento do adolescente que não tem socialização alguma e é im-
que e:sogem bom conhecimento da cultura da mídia: - · pelido por instintos agressivos. 10~ Na verdade, a "utopia" deles é solipsista e
narcisista, sem comunidade, sem norma ou moralidade consensual c sem
Bmt-Htad: Por que o Pap-eye excomungou Napoleão? considcf:í!:çâo pelas outras pessoas. A visão dOs adolescentes· sós, em casa,
Benvis: Niío sei. Por quê? . assistindo à "IV e depois saindo para devastar a vizinlL'lnça, apresenta. a
Butt-Hc~d: Porq~c de Subiu no Monte das OliveU'<ls e Comeu OliV(l)a de palito. visão de uma sociedade_ constituída por famílias desagregadas, comunida-
des desintegradas e indivíduos anônticos, sem valores ou-objetivos.
~lé"m disso, Beavis e Butt-Head parece que não têm família, que mo- Beavis e Butt-Head, portanto, ficam sozinhos com a TV e se tomam crí-
r-:m sozinhos numa casa miserável, sendo soCializados apenas pela televi. ticos de sofá, especialmente de seus adorados videoclipes. Em certo
, sao e pela cultura da mídia. Há algumas referências às mães dos dois, c em sentido, são os· primeiros críticos da mídia que se tornam heróis cult da cul-
certo episódio alude-se ao fato de nem se saber ao certo quem é 0 pai de tura da mídia, em bom haja contradições em sua critica. Muitos dos vídeos·
Butt-Head; poi_tanto, a série apresem-; um mundo sem a figura paterna. 10' A quç atacam são estúpidos e pretensiosos, e em geral é bom cultivar e in-
centivar a atitude crítica em relação às formas culturais - atitude que, na
!OI A genealogia dos doi$. feita num livro sobi"e a série, põe um ponto ·de interrogação
no lugar do pai de' cada.um.deles (íohmon e Marcil, l993).At~ agora, as mães não foram
mostrndas, embora haja algumas referêndas '\ das.Tamb~m nào hií clare:t.a sobre a caS<l 102 Os psicanalistas gostant de identicar De~~~s e Butt·Head com o ld freudiano, com
ond: moram, ou oude são visto~ a assistirem àTY, nem sobre o futo de morarem juntos os impulsos agressivos e sexuais descun!rolados que eles não conseguem entender
ou na o. Um dos episódios St1gere que estâo em c-J.sa de Blm-Head e que a mie dele esti nem controlar (emtn mostr.ldos coto freqüência· a masturbar-se ou a falar sobre o as-
(sempre est:í) fora, com o namor.tdo, m'IS outros episódios mm.tram du:ts cámas juilrus sunto, e Bea~is não consegue controlar o impulso de "mostrar as partes" ~s cantOr:lS
no que parece ser o desarrumadíssimo quano dos dois, e até o início de 1994 os pais atn~entes que aparecem nos vid~odipes).Também há um mal rcprimio;lo elemento ho--.
de ambos nunca funun mostrados. moerótico na relação dos dois, como veremoo adiante.

193
verdade, pode sé:r aplicada a muito do .que aParece em Beavis a'fi.d Butt- leS'tras de estudos culturais, aonde quer que eu fÓsse as pessoas me pergun-
Héad. Tal critica cria um distanciamento entre ,seu público e a cultura do tavam o que eu achava de BeavÚ and Butt-Head; por isso, acabei "ilssistin-
videoclipe, incitando a tecer juízos críticos sobre seus prodútos. No entano do à série e comecei a incluir observações sobre ela em nossas palestras. 101
to, os próprios juízos de Be11vis e de Butt-Head são extremamente questio- Sempre que eu era critico ou dep~eciativo, os jovens d~_platéia me ataca-
náveis, pois eles elogiam imagens de violência, incêndios, mulheres nuas e vam. Depois.de uma palestra na Universidade de Kansas, um/rapaz velo fa-
o ruído heavy metal, enquanto declaram que músicas e letras" bem-com- lar comigo, mal acreditando que eu tivesse ousado criticar a série, certo de
portadas e qualquer compkxidade nos ·vídeos são um ~saco~. que Mike JudgC' ~~um grande gênio, capaz de entender exatamente o qÚe
Portantq, em um nível, o programa é uma sátira social e uma crítica é ser jovem ·hoje em dia, sem perspecth'a de emprego ou 'd,t.rrein) e com
!..---,- ~
cultural contundentes. Está sempre rincfo da televisão, especialmente dos. pouca perspectiva de casar-se, constituir família e eltc&'htrar significado na
videoclipes e de outras formas de cultura da núdia. Critica as autoridades vida. Nessa situação, disse ele, o que mais um jovem pode fazer, a não ser
conservadoras e os liberais água-morna. Satiriza as instituições autoritárias ver MTV e de vez em quando sair para destruir alguma coisa?
como os loc<iis de trabalho, as éscolas e os serviços de recrutamento mili- Em certo sen,tido, a série, portanto, põe em cena a desforra da juyen-
tar e faz cómentários criticas sobre muitos aspectos da vida contemporâ- tude e de ullill·_cfas~e contra os adultos conservadores da classe média, que
nea. No entanto, enfraquece algumas de suas próprias crítk;as sociais ao re-- são mostradoSit'~fuO figuras da autoridade opressora. O vizinho Tom Ander·
produzir os piOres elementos sexis~as, viOlentos e narcisistas da vida con- son - ret;..tado como um veterano conservador da Segunda Guerra Mun- I' '
temporâm:a, ciue se transformam em coisas divertidas e até simpáticas nas dial e da guerra da Coréia - é um alvo especial de suas tropelias: eles cor- ~--
'
figuras Beavis c Butt-Hcad. tam árvores do seu·tf;rreno com serra elétrica; evidentemente, a árvore, ao
Por conseguinte, o programa Beavis and Butt-Head é s_urpreendente- cair, derruba a casq, cercas, fiOs elétricos e carros. Enfiam o.cachorro dele
mente complexo e'exige u01a çrítka diagnóstica que analise sel.,l texto con- numa máquina de ·lavar roupa para limpá-lo; mubam o cartão de -crédito
traditório e seus efeitos. Não há como negar, porém, que o efeito Beavis dele para comprar animais nos shopping; atiram bolas de beisebol cheias
and Butt-Head é um dos fenômenos mais significativos da mídia dos últi- de lama no terreno dele, uma das quais atinge ~eu churrasco; e o atormen-
mos anos. 1 ~-' Assim como Lifiklatçr, judge, sem dúvida, tocou uma co.rda tam de outras maneiras. Beavis e Butt-Head também explodem um posto Qe
muito sensív_el e criou um sucesso da núdia com personagens que funcio- recrutamento do exército .com uma granada, quando o oficial tenta recru-
nam co"mo imagens poderosamente ressonantes. Em 1993, quando dava pa- tá-los; roubam um carrinho de um homem rico, Billy Bob, que tem um
ataque cardíaco quando os vê sair montados nele; e adoram colocar minho-
cas, ratos e 2utms animais no lanche que os vemos dar a fregueses brancos
103 ll-furgot Emery estava tilzendo ut~a p;,~-a'sobre teoria _das comunicações de mas- e antipáticos na lanchonete barata OQde trabalham.
sa par.• <:amlidatoS ao mestrado da Universidade de Tenne~ee, em Knoxville, Beavis e Butt-Head também adoram fazer vandalismo na caSa do"ami-
quando encontrou, nr< última página, um pergunt:l sobre... BeavJs and Butt- go" Stewart, cujos pais yuppies mimam o filho e os colegas deste. Os pais
Head.A romancista Gloria Nayl01; Mark !.amos, diretor ártístico da Hartford Sta-
permissivos e liberais de Stewart são mostrados como seres tolos e inefica-
ge Company e outros notáveis confetencistas estawnn dlscmindo estereótipos
em arte, especialmente _o modo de l"Ctratru: os judeus em O mercador de Ve/te-
zes, como quando o pai se queixa de que Stewart traiu a confiança deles
za, quando. inespemdamente. a conversa mudou para.,. Beavls arJd Butt-Heaà. ao dcb;:ar Beavis e Butt-Head entrar em ·casa depois de terem provocado
Fred Rogers, de "Mister Rogers' Neighborhood", estava sendo hoilienageado por uma explosão que derrubou a parede.A mãe, efusiva, diz que eles são uma
s~u trabalho em prol do presbitério de Pittsburgh e arrematou discursando gracinha e lhes oferece limonada- de fato, são poucas as autoridades femi-
sobre ... Berwis ana .Ruit-Head.Thomas Grasso,detento cujo principal problema ninas r<::tramdas.
é descobrir qual a melhor alternativa: ser executado pelo Estado de Oklahoma
ou ficar nos cárceres do Estado de Nova York por muito tempo ainda, escreveu
'1-
rec~ntemente um poema em que coiuparn o governador Mario Cuomo e um 104 Gr;~ças à nlilr.ltona empreendida, de assistir à série pda MTV no verão de 1993 e em j:~­
fimdonário do deparffimemo 'le presídios de Nova York a ... Beavis e Butt-Head. i'r:
neiro de 1994, e à coleç.iio de Steve Best. furam vi;.1oo quase todos os episódios. Também
De fato, ficou difícil ler dez páginas de revista, folhear um caderno de jornal ou fur:un feitas longas pesquisas em bancos de dados à procura de referências à midia e a deba- li
agüentar trinta minutos de programas de televisão ou de cidio sem tropeçar em "
!t-
tes sobre a série,e,durante o outono de 1993, enttando em 1994, centenas de dados foram
alguma referência à animada dupla de cretinos da MT\1.- obtidos.Ali t.1mbém apared.1 tlm ãJbum hem,J' metal de grande SlK"csso,cloglados por Bea- 't
'. !_
vis e B11n-Head. wn livro de grande vendagem e ;1(.-ertos em andamento parn a realiUição de,
(The Hcwtjbrd Coumnt, 26"de outubro de 1993)
filmes. Por conseguinte,póde-se petfeitameme falar em efeito Beavls and Butt-Head. -:í

194
\
A dupla dinâmica tambéril se diverte atormeritando o professor Van disso, cabe ver que a série revela o graU de violência que a sociedade está
Drlessen, bippie libéral que tenta ensiná-los a ser politic'amente c;;>rretos. assumindo e o ft1tUro sem saída de uma juventude qu~, provindo de lares
Destroem sua insubstituível coleção de fit.'lS com oito falxaS musicais desfeitos, estão em processo de dcscenso social, tiveram escolaridade ·fAlha
quando ele lhes oferece a oportunidade de limparem sua casa para apren- 1 e nUo têm expectativas reais de emprego nem futuro. Na verda~, a cultu-

derem o valor do trabalho e do dinheiro. Quarido esse professor os leva ra heavy .metal na qual :Beavis e Butt-Head mergulliam é o modo como os
para acampar e eot.-.u- em contato com seus próprios sentimentos e com a que vivem sem saída apagam tudo e fogem para um mundo de. purO ruído
natureza, eles brigam e atormentam os animais. Na verdade,· rebeiam-se c agressão, exPressando sua própria agressão c trustraç.~? tazendó a cabe·
contra todos os professare~ e ·autoridades, oPondo-se a todos, desde ho- ça de ioiôao som do heavy metal. Assim, quando Bea~i~,c Butt-Head to-
mens conservadores até yuppies liberais e hippies radicais. cam a "guitarra de vento", imitando o estilo heav)/lii,ç'J;al enquanto assistem
Além disso, a série apresenta a vingança da juventude e dos que estão aos videoclipes, estão assinalarldo tanto sua· própria agressão quanto a de-
na extremidade mais baixa da escaht social contra as classes e os indivíduos sesperança de sua sitwtção.
mais privilegiados. Assim como a geração punk, antes deles, Beavis "e Butt- O narcisismo c o comportamento sociopátíco dos ~ois é sintoma de
Head não têm futuro. Portanto, o comportamento deles, .embora inegavel- uma socjeda<k ~ue não está provendo e. apoiando suficientemente seus ci-
mente juvenil, ofensivo, sexist."1.. e politicame~te incorreto, permite o diagnós- dadãos. É i5~2urioso que muitas das figuras mais populares da cultura··da
tico da juventude lúmpen que, em processp de descenso na escala social, mídia Poderiam ser a·nalisadas e clinicamente classificadas como narcisi.s-
nada tCO). para fazer; mas destrói coisas c assume comportamento anti-social. tas: Rush Limbaugh, Andrew Oice Clay, Ho~vard Stern~ e outros são exem-
Dessa perspectiva, Beavis and Butt~Head é um exemplo de desforra plos de indivídu~ vazios, inseguros e hostis que recorrem·· a comportamen-
popular na cultura da núdia.'~' Suas duás personagens vingam a juventude e tos c afirmaçõe~ extremistas para chamar a atenção. Por outro lado, sua
<
os destituídos da dignidade social atacando· as autoridades opressoras com tónte de inspiração é a agressão e as frustrações do público, e eles se tor-
que se defrontam diariamente. A maioria-dos homens conservadores da sé- nam popularés precisamente porque são c·apazes de expressar a irritação
rie tem sotaque vagamente texano ou do sudoeste ameriCano; assim, as au- soc'ial incipiente. Na verdade, em comparação com um Rush limbaugh,
toridades masculinas talvez representem os homens opressores com os Beavis e Butt-Head são relativamente modestos e nem tão narcisistas.
quais Judge conviveu na juventude em San Diego, no Novo México e no Te- Beavis e Butt-Head, Rush Li.mbaugh e outras figuras da núdia cont"em~
X\l?.Além disso, a violência de BeaVIs e de Butt-Head 'é típica de uma socie- potãnea amcric;tna também acham que sal)em tudo, mas são uns sabe-n~da,
dade agressiva cuja mídia está apresentando a todo instante imagens d_o tipO na boa e' velha tradição do antiintelectualismo americano. Trata-se de figuras
de atividade a que as duas personagens costumam entregar-se. Portanto, a basicamt:nte bufas, algumas vezes divertidas e outras ofensh-<IS, que, pela
série mostra a existência de· um grande lumpemproletariado. adOlescente clássica ~'índrome de na_r:dsismo,são vazias, inseguras e agressivas. Disfarçam
que não tem futuro, tem pouca escolaridade e é potencialmente violento. a vacuidade e a insegurança com bravatas, agressividade e mo(ios chamari-
'Nessa sociedade, o jovem do tipo ~neavis and Butt-Head" rrão tem expecta- vos. Também apresentam os clássicos· sintomas de misoginia: coisificam as
tivas na vida, a não ser um emprego no 7-Eleven do lOcal enquanto espera
ser assaltado qualquer dia. Po,r conseguinte, a série é um hieróglifo social ·
nele. É um dos programas mais sádicos c patológicos que já vi. Eu não o recomendaria
que nos permite dcscodificar as atitudes, o comportamento e a situaç_ãç:> de a ninguém, de idade alguma" (fhe Washington Times, 17 de outubro de 1993). O
amplos segmentos da juventude da sociedade americana contemporânea. meSmo artigo observava que um ad\"ogaclo da People for the Ethic:tl Treatment of Ani·
Logo, para fazer uma crítica diagnóstica não é cabível simplesmente tmls afim10u: "Os psiquiatras podcriio dizer que quase todos os princip;lis assa5sinos
desculpar as traquinices de Beavis c de Butt-Head co mÓ· comportamento tí- em série têm alguma história de maltrato. a anim:li~ no pas:;ado. Beavis e Butt-Head não
só tOrturam animais como também são obcecados por fogo, dois dos três fatores de
pico doS jovens. Tampouco basta condená-los como patológicos.'"" Em vez
prc~isão de comporramento.criminoso na \ida adulta".

• Rush Limbaugh: humorista c entrevistador de. r:í.dio direitiMa,:~ntifcminista, antiliberaf


105 Sobre esse conceito e um gra'_lde número de exemplos, vet Kellner, 1978. e homof6bico. How~rd Stero: humorista e entrevistador de rildio iconoclasta. mas que
106 Depois de .dizer que. o humor de Beavis and But!-Head lhe parecia retrat.-u- as tra· tem grande público porque seu humOf, apesar de muitas vezes pueril e voltado para as-
quinices dos jovens normais, uma psic6loga de W~1,>hington ligou desesperada parn. o sumos sexuais, é inspirado. Durante anos, foi perseguido pelo FCC (agênda:fedcral que
r_c:pórter, após assistir ao episódio daquela noite, e comentou na 5e<:retiitia eletrônica: controla td~comunicações) por abordar temas supostamen!e obsccnos.Andrew Dice
"Condeno totalmente e5se programa. Não vejo um pingo de normalidade adolescente Clay:comediante fumoso pelo seu humor maehista, misógino. antigttl.• e racista. (N.T.)

196 197
mullteres e .São dadas a piadas e gestos pu~ris em relação ao se;xo. Beavis e
No entanto, o programa é muito violento e já produziu efeitos espe-
Butt-He-.td são adolescentes clássicos, cujps hormônios descontrolados eles
taculares. No programa Liquid Telev'tsion, de desenhos animados curtos,
não sabe~ controlar, mas seus parentes mais véUws, Howard Stern e An-
anterior à criação cja_série,Judge mostrava Beavis e Butt-Head jogando bei-
drew Dicc Clay, têm sintomas semelhantes. Essas figuras do entretenimento
sebol com rã, espatifando rãs e dando golpes mú~os com bastões de bei-
popular são garotos brancos, incapazes de se. pôr no lugar ~o ·outro, de ter
sebol (imagem imortalizada em uma das muitas camisetasBeavts and Butt-
. empatia com o outro, ou de respeitar diferenças. São extremamente homo-
fóbicos, embo~ Beavis and Butt-Head estejam, é claro, reprimindo tendên-
Heaá). Em outros programas, eles usam isqueiros par-a atear incêndios, ex-.
plodcm a caSà-'dC um vizinho acendC:ndo um forno cheio:f.,e gáS e se envol-
cias homossexuais que se fazem notar nas piadas sobre "bundas'" e . na
constante intimação de Butt~Head:"Ei, Beavis puxa o nosso dedo"." vem em inúmeros outros atos criminosos e violentos. Um Pf.9fessor de uma
escola da área de Los Angeles descobriu que cerC'ftit~O% de sua classe as--
Em certo sentido,Beavis and Butt--Head é Um exemplo do que alguns
chamaram de "televisão- dos perdedores", por certo um novo fenômeno da sistia ao programa c convidou um ,funcionário do corpo de b?mbeíros lo-
história da televisão.As séries· antigas tendiam a retratar pessoas ricas ou so- cal para _fazer mna palestra
lidamente ancoradas na classe média, numa vida cheia de glamour.Acredita-
va-se que os anunciantes preferiam vender seus produtos aqs prósperos, c, depoi~)J.~.·yários estudantes escrevemm em redaçõt•s autobi.o~~as que
com isso, os operários e o lumpemproletariado ficaram excluídos da tdcvi- brincaMin''2om fogo e explosivos. Alguns exemplos: Um dos prmctpats fãs de
, são durante décadas. Na verdade, na reaganista década de 1980, programas , B;avls tmd Butt-Hcad, Jarrod Metchikoff, de 12 anos de idade, costumava
como Dallas, Dinastia e L~fe Styles ojthe Rich and Famóus exaltaram a ri.; "empilhar Oombinhas num tubo e depóis lançá-las no cano de esgoto", até
qucza e a prosperidade. Esse sonho foi destmído pela realidade da vida diá- que sua mãe-fiescobriu. Brett Heimsti-a, de 12 anos, disse que "atiravA bombi-
ria de uma economia em declínio, o que acabou levando grande parte do nhas em PO/i;OS de inspeção e buracos de-esgoto até que a mãe descobriu",e
público a sentir-se atraído por programas que expressassem suas próprias ele "ouviu alguém dizer que é perigoso~. Etizabeth Hastlngs, de 12 anos, disse
frustrações e sua raiva por estar caindo na escala social, sem perspectivas fu- "conhecer um menino q\lC atira bombinhas em banheiros públicos".
tl.l.l"as. Donde a populmidade da nova 1'televisão dos perdedores", que inclui (LosAngeles Times, 16 de outubro de 19~3).
Os Simpsons, Roseanne e Beavis mu/. Butt-Head.
Portanto; o proJ:,>rama Beavis and Butt-Head, da MTV americana, pos- O bombeiro contou aos estud'U"ltes "que um menino de lo anos, mora-
sibilita uma critica diagnóstica das angústias da juventude contemporânea dor de Orangt:, havia perdido a mão depois de mna exploSão causada pelo
que vive em J:anúlias desfeitas, com pouca escolaridade e Sem possibili- sfn'cty WD40 e um isqueiro" (ibid,). Depois das pririldras notícias de cnaelda-
dades de emprego. A destrutividade de Bcavis e Butt-Htad poçle ser vista de com ~ais e de incêndios provocados por fãs d~ pro~a (ver n~ta,?9),
em parte como expressão de desesperança e alienação, mostr-ando a falta ' chegaram muitas outras. O chefe do corpo de bombeJtOs de Stdney; O luo, cul-
de perspectivas de muitos jovens da dàsse média c das cla..:;ses mais baixas. pava à desenho da MlV pelo incêndio de um casa, ateado por três meninas"
Além disso a série também t:eproduz o tipo de violência tão presente na (lhe Plain Dealer, 14 de outubro de 1993). E mai's:«Austin,Texas: os investiga-·
mídia, desde os videoclipes heavy rizetal até 'os programas de emreteni· dores dizem que três incêndioS prOvocados por crianças-podem ter alguma li~­
mento e os noticiários. Assim, a violência das personagens apenas espe- gação com o programa" (USA Toda); 15 de. outubro de 1993). E alguns adoles-
lliam essa cte<;cente tendência numa juventude pertencente a essa soci~­ centes de Houston, las do programa, foram acusados de provocar incêndios
dadc em desintegração, possibilitando uma crítica diagnóstica da situação perto do Gallerkt mall (Radio TV Rep011s, 25 de outubro de 1993). . .
social da juv~ntude contemporânea. A intensa critica à violência do programa e a ameaça de censurar a vto-
lênda na TV por parte do Congresso levaram a fi.ITV a transferir a série para
uma hora mais adiantada da nqite, com a promessa de não repetir os episó-
• Alem desses dois exemplos, Kdtner menciona o fato de Ik:nis e Butt·Head se expres-
sarem com o uso constante do vocábulo "suck". Essa palavri\ signiflc~ originalmente
dios mais violentos e de não mostrar Beavis e Butt-Hcad ateando incêndios
"chupar' ,"sug.1r", mas na Síria as-sumiu sentidos viídos, ligados a coisas desprezíveis, de- ou Beavis gritando "Fogo! Fogo!", mas a série já se tornara_ parte de uma mi-
cepdonantes ou desagra.dáveis (normalmente tmduzidas como"um saco··, ~um. porre", tologia nacional, e sua popularidade continuava crescendo rapidamente.' 07
etc.). Quanto a 'puxe meu dedo", trata~e de um pedido que, nos Estados Unidos, está
associado ao desejo de Hbemr flatu!ências intestinais: o ato de puxar o dedo de um mni-
gn é então acompanhado peta sonoridade do chamado "pum". No comércio, encon- 107 A voacom, empresa prqprier:iria da Mrv, na época t;stava travando um~ comc:_ntad.i
tr~m-~ à venda boneLm com o dedo estendido para esse fim. (N.T) batalha para obter a fusão com a Parammmt, e o conglomerado natur:l!mentc ~o de-.

198
199
Na verdade, a cultura da mídia é arrastada à violência e à quebra de tabt1s Foi só uma questão' de te~po, e as camisetas uneavis ·c.:Unton ~e "Butt-Head
para atrair o público, num campo cada yez mais competitivo. Portanto, os GOre" começamm a aparecer nas t'uas de Washington. As personagens infeli-
excessos cometidos pelo progr.una estão diretamente relacionados com zes, feias e parvas do 9-esenho foram alteradas e ficaram parecidas com os lí-
uma situação competitiva em Q.ue a mídia comercial é incentivada a exibir deres do mundo !i'I.'Te,graças a dirigentes políticos locais e a Kathleen Patten,
um comportamento cada vez mais violento e extremado na pressãí.~ intensa Beth Loudy e Chrls Tremblay, que criaram as camisetas.-Nelas, Beavis está
·que Sofre pela obtenção de altos lucros - tendência que, segundo muitos, ~tsando uma camiseta do_grupo Fleetwood Mace perguntando a Butt-Head
crescerá à medida que o número de canais de TV crescere a competição se ~E(c"éácha que a gente vai ser' reeleito?" 1\o que o. ~-ice, usando um logotipo
tornar mais feroz. do Greenpeace, responde:"Hu~·-· ncca". ,, . · · ·.':~,_,.
E assim vemos de que modo a cultura da mídia se inspira na•;; inquie- (Washington~itJi~s, 26 de outubro de 1993)'""
tações de seu -públíco e, por sua vez, se torna parte de um circuito cultu-
ral, com efeitos distintivos. Seus textos expressam experiências sociais, Os estudos anteriores sobre o assunto padçem cegos, à complexidade
transcodificando-as por intermédio de formas televisivas, cinematográficas dos efeitos, dos tipos de_ texto q\Je estudamos nas· análises de Rambo,
ou musicais. O público então se apropria dos textos· c utiliza os mais resso-, Slaclte1\fi' Éj:avis mut Bu-tt-Head.'Em cada caso, foram e.'Xtraídos person-
· nantes p.:ma expressar o que sente em termos de estilo, aparência e iden&i- agenS ·~ihiah:rial desses textos c usados na produção de significados, identi-
dade.A cultura da midia oferece recursos par-.t a criação de significados, da'~es,discursos e comportamentos. A mldi.a fornece <t!llbientcs simbólicos,
prazer e identidade, mas também modela e conforma certas identidades e nos quais as pessoas vivem, e intluencia intensam'ente pensamentos, com-
põe em cii:culat;·ão um .material cuja adoÇão poderá enquadrar os diversos portamentos--'* estilos dessas pess0as. Quando aparece, uma sensação da mí-
públicos em dctet·minadas posturas (por exemplo, o Rambo mach?, a Ma- dia '!'omo Rfcwis .and Butt-]lead tlassa a fazer parte desse ambiente e, por
donna sexy, os slack.ers insatisfeitos, os violentos Bcavis e Butt-Head, etc.). sua veL., torria-se uma nova fonte de prazeres, identidades e contestação. ,
Os efeitos Beavis and Butt-Heaà foram impressionantes. O programa Portanto, é totalmente idiota afirtnar que a cultura da mídia não prO-
não só incentivou atos de violência e intensa discussão sobre os efeitos da duz efeitos disccrníveis, como no paradigma dominante a partir dos ano5\
mídia, mas suas petsonagens de tornaram modelos para o comportamento 1940, que durou várias décadas.''" No entanto, também é cegueira aclamar
da juventude: os jovens irilltavam vários de seus tiques e modos de proce-
der. Sem dúvida, a série gerou um grande mercado de consurp.o dos artigos
"Beavis and Butt-Head", que, por sua vez, ca\Jsaram a proliferação de ima- não estava wn<kndo a suficiem.:; para ser induído nos" iOO mais·';sua m~dia era
gens e efeitos da dupla. Por exemplo: "O fabricante de máscaras Ed Ed- dt: a'pcnas 2.000 cx<:mplares porscmana.M.;s o vídeo do grupo passou a ser atra-
munds. d.1. Distortions Unlimited, diz que vendeu 40 mil mãscams Bcavis ção constante de Bem,ts and fJutt-Heud a p~rtir do vef.lo, e essa <.vm;tància -
and Butt-Head, a maior vendagem daquela temporada Hatlowecn". (USA To- aliada aos elogios ma!crli!-dos da dupla- t,•uindou o álbum·para um das "30
da); 26 de outubro de 1993). Em 1994, estavam no mercado pentes, calen- mais". Cálculo das vcndas agora: mais ék 500.000 c:xenlplares. ( ... ) Rkk Krim,
vict-pn:sidente do setor de talentO-~ e relações artísticas da Ml'V, o:xplica a re~­
dários e até agendas Beavis and Butt-Hcad. ção i\s apresentações em Beav/s (lfld Butt-Head: "Tínhamos gostado do vídeo
O programa também exerceu forte influência sobre o gosto musical 'Thunder' e o promoviamoo em v.irlos programas especiais_ Mas isso nunca es-
e as vendas desse mercado; cujo grande beneficiário foi o rock heavy me-_ quentou de t:-uo ~s venda~. o que a :~presentaçiío em Beavis and Btttt·Head sem
tal. As pesquisas mostravam aumentO nas vendas de cada -...ideodipe- toca- dúvida fez. A reação foi instantânea ( ... )Quase tudo o qll<' se toca no programa 1
do no programa, inclusive daqueles que a dupla desancava.M O efeito acaba tendo algum tipo de aumento de venda;;".
Beavis and Butt-l/ead passou até a fazer parte da contestação política: (fJ!llhoani, 4 de setembro de 1993).

109 &sa corrente de apo5ição a Clinton poderia ser wn tiro pela culatra, pois havia a
po~sibilidadede os eleitores mais jovem; inkrpretar~m a associação como sugestão de
scjaria um excesso de publicidade negativa. Por isso, a MfV ntava na difícil situação de
ter de preservar s<:u prodhto mais lucrntivo e popular e, ao mesm'? tempo, evitar críti- que Clinton c Gore cram "legais" c a~~~~~ aderirem a des.
cas excessi\1\S da midia. O tc~ultado foi um meio-tenno, em que se atenuaram as ares- 110 Referimo-nos ao modelo de "fluxo de dois dcgr,ms", dc.Lazarsfeld, segundo o qual
tas de 8eavfs and fJutt-Head, tentando-se, ape$ar disso, preservar a popula~idade do a cultura da midia n.'io"exerce efeitos diretos; seus deitas, modestoS e minímos,6ão me-
programa. Na primavero; de 1994. a cstrat<!gia da MTV tinha funcionado: o progí:-.una diados por"formadores de opinião' que exerctm influências mais importantes sobre o'
continuava popul~r c a contmvérsía em tomo dele '~iminulrn .. consumidor, o comport:unento politlco,atitud<:s sociais e <:.visas do gênero (ver Katz e
108 o âlbum La sexm·âsto:DI#'il Musfc, Vol. I, por exemplo, do grupo V:11ite- Zombie, '' L'tzolrsfeld, 1955. c o estudo critiéo de SC\-lS efeitos em Git!in.1978).

200 201
,,
joVialmente que o público produz seus próprios significados a parti/ dos
textos, qUe esses textos não produzem efeitos por si sós. Como viÍnos, a cul-
tura da núdia produz fortes efeitos, embora setÍs siSnifkados sejam media-
dos p'elo público, e até ufna figura como Rambo pode constituir um terre-
-~- '
5 A voz negr~: de Spike Lee ao rap
no de disputas, uma vez que diferentes grupos orientam·seus ~ignificados
de diferentes modos. ·
Os efeitos Slacker e Beavís and Butt-Head, que acabamos de ver, cris-
talizam as experiências e_ os sentimentos de alienação e desesperança pro-
duzidos por uma sociedade em desintegração, modelando essas experiên-
cias na forma de identificação com slackers, roqueirOs, hea'1Jy metal e vio-
lência nülista do tipo praticado por Beavis e Butt-Head. Os textos popula-
e
res da mídia inspiram-se em-sentimentos e experiências_de seu público,
expressam-nos e· põem em circulação efeitos materiaiS que modelam pen- ...• :' ~--
samentos e comportamentos. Por isso, exercem eleitos poderçsos e distin- \~%.:-~\~
tos, devendo ser atentament_e examinados e submetidos a uma critica di:l:g-
Neste capítulo, usaremos o mp e os filmes de Spike Lee para fazer
nóstica - projeto que continuaremos nos próximos capítulos.
uma crítica diagnóstica da situação dos negros norte-americanos hoje.m Os
músicos negrO~o rap e os cineastas negros têm utilizado a cultura da mí-
dia para expre.ssar sua visão sobre a sociedade americana contemporânea,
usando a mídia para resistir à cultUra de opressão racial existente nos Esta-
dos Unidos e,para exprimir suas próprias formas de resistência e de iden-
tidade contestadora.A partir disso, exa_minareffios as estratégias e as táticas
estéticas -de algumas produções recentes dos artistas populares negros, a
tlm de esboçar os recursos encontrados em suas obras para a crítiCa social·
e a ação política.
Na verdade, a cultura da mídia reproduz as lutas e os di~cursos sociais
existentes, expressando os medos e os sofrimentos da gente comum, ao
mesmo tempo que fornece· material para a formação de identidades e d~
sentido ao m~mdo. Quando os membros dos grupos oprimidos têm acesso
à· cultura da mídia, suas representações muitas veze~ articulam visões
outras da sociedade e dão voz a p~rcepções mais radicais. No entanto, a
critica diagnóstica também se interessa pelas limitações· dessas obr-cLS na de-
fesa dós interesses dos oprimidos nas lutas futuras.ua

lll Devemos muito do que conhecemos da culwra afro-americana às obras de Michael


Dyson (1993a), Ed Guerrero (1993a e l993b), bell hooks (1984,1990,1992), Mru-k_ Reid
(!993) e Corndl West (l992a e 1992b), bem como a trocas de idéias <...--om Guerrero,
Reid,West e nosso colega na Universidade do T=, Harvey Cormier.

112 A libertação dos gn1pos oprimidos só pode ocorrer por meio de suas próprias lu-
tis e da aliança com outros grupos que lutem cuntra forças comuns de opress.'io. É
dessa perspectiva, então, que estaremos realiZando este estudo, como mat"Ca de solida-
riedade e de alio\nça na luta contm formas comUns de opressão de dasse, raç_a e se~<o.
Como membto de <llll grupo sócia! relati'\-11mente privil';'giado, porém, dependemos

202 203
A despeito da opressão contínua dos negros e da crescente violência cois.a cel'ta, 1989), foi imediatamente reconhecido como importante

contra os chamados African-Amerícans, a cultura negra tem produzido expressão cinematogtáfica da situação dos negros na sociedade norte-ame-
obras cxtremillnenú: importantes nas últimas décadas· em literatura, cine- ricana contemporânea, e os filmes que se seguiram (Mo' Better Blues [Mais
ma, música, teatro e em todas as outras artes~\' A expressão cultural te~ e melhores blucs],]ungle Fever LFebre da seh•a], MalCOlm X, e Crooklyn)
sempre sido uma maneira de resistir à opresSão e de expressar expdiên- valCrall"\·lhe o reconhecimento como um dos mais importantes cineastas
das de resistência e luta.}'ormas musicais como o gospel, o blues, o jazz, o' atuantes nos Fstados Unidos hoje em dia.
rock e outra_<; têm servido tradicionalmente para expressar a luta c a resis- Além' diSso, o sucesso de Lce 'ajudou a abrir as portas para o fmancia-
tência dos negros amer!canos.·A literatura também tem constituído uma - menta de um grande número de outros filme;·s de ne~s mais ,joven~; na
rica fonte de· expressão das vidssitudet:; da cxperiêtl.cia negra e de sua cul- década dt 1990. Os lucros produzidos pelos filÔi'(;:~bllr.ttOs de Lce mostra-
tura de resistência. Durante a (dtima década, co~eçaram a ser ouvidas no- ram que há público para. o cinema negro que trat~ da rcaíidade contempo-
vas vozes negras .nos Cafl_lpos da cinematografia, da cultum hip-hop e do rânea. A estimativas indicam que de 25 a 30% dos espectadores sâo consti-
rap; essas incursões na cultura da mídia ~onStituirão o foco deste capítulo. tuídos por nç:gros (representando n:aais que ·satisfatoriamente os 13% da
. popu!açã9l..............!:{·que levou Hollywood a calclilar que há tJnt público signi-
ficativo pjrà''esse tipo de filme (Guerrero, 1993b).u'Acresce que os lucros
OS FJLMES DE SP!KE LEE aufe~idos por Spikc Lee em seus primeiros filmes, de produção barata, pos-
Sibilitaram o contínuo financiamento de seus próprios filmes e abri.Í"am as
Durante a década de 1980, Holiywood ade,riu a Ronald Reagan e à sua portas p;trá o -ttnascimento de filmes feitos, c® geral, por jovens n_egros na
administração, negligenciando as questões e os problemas dos negros. Ou- década de 19~0.'"
t"J.rttc esse período; poucos ftlmes sérios mostr:n-.tm negros, que na maioria No estudo que S{: segue, L"Xaminatemos a estética de Spike Lee, sua
das ve7..cs eram retratados de forma estereotipada em comédias freqüente- concepção de moralidade e política, argumentando que sua visão estética
mente estreladas por comediantes como Richard Pryor ou Eddie Murphy se inspira no modernismo brechtiano e seus filmes são moralidades 'que
conuacenando com um amigo branco (Gucrrcro, 1993b: 113 s~.). Nesse transmitem mensagens e imagens éticas ao público.Também es!udaremos
cOntexto, os fúni.cs de Spike Lec constituem uma intervenção significativa a visão política de Lee,focalizando a figura de Makolm X em sua obra, bem
no sistema cinematográfico de Hollywobd.Tratando de questões raciais, se. como S\1:1 - às vezes contraditória -.identidade poUtica, em que a política
xuais e de classe, de uma perspectiva .resolutamente negra, esses filmes le- é subordinada à criaçâo de identidade individual e esta é definida princi~
vam a perceber bem essas problemáticas explosivas, aúscntes do cinema palinefte em termos de estilo cultuJ;".ti.Argumcntaremos que, a despeito de
bmnco predominante. Começando coni filmes independentes c baratos,
como]oe:~ Bed-Stuy Barbersbop:We·Cut Heads (de 1983, como estudan- 114 Guenero t.·uubém afirma que nos tempos de vacas magras, Hollywood investe em
te) e She's Goua Have lt (1986), Lee pa.<lsou a tcr.seus filmes financiados filmes bar:uos:sobre negros para. ek--var a.marl;em de lucro, lgn"orando--os quando os'lu-
por HoÜJ'Wood com School Daze (Lute pela coisa certa, 1988), que foca- cn>s estão altoS e a indústria não "pre<.:lsa coÍltinuar dentro da linha especificamente
negra""(Guerrem, I993b: lC>'i).
lizava a vida dos negros na faculdade e parodiava o gênero de filme sobre
estudantes e os m·usicais, Seu .filme seglÍinte, Do the right thing (Faça a 115 She's Gotta Have It custou apenas US$175.000 e arrecadou cerca de US$8,5 mi-
lhões; lute peln cofiia xrta teve:: mn orçamento de US$5,8 milhões e arrecadou mais
de US$15 milhões; Fuça a cotm certa teve um orç~mento d<" US$6,5 milhões e arreba-
muito nesta parte de nosso estudo das posições expressas nas obras indicadas na nota nhou US$25 milhões (Patterson, 1992:55,92, 121). Muitos filmes de Lee também foram
:tmerior; assim, consid~ramos- que este estudo e um diálogo çom nossos irmãos"' irmãs lucrativos em videocassete. Evidentemente, o dinheiro ganhO çom esses filmes conven-
mo-americanos e com todos os interessados na sua express:ío e nas suas lutas. çeu o esWIJtl.çhment <..:omercial de Hoily'wond de que Lee e out:rns jo~'Cns diretores ne-
gros são comercializáveis, finandando o renascime!)tO dos filmes sobre negl'Os no
113 Houve muira disC-uss.'io sobre a terminologia. que devia ser usada para descre~r o inicio da década de 1990 (wr Guerrero, !993b: 157 ss.e Pafterson 1992: 223f.). Reid,
negro de ascendência afro-americana nos Estados Unidos. Seguindo aquilo que parece porém, nota que os próprios filmes de Lee se !nspi;~mm no dt;1ema negro mais antigo:
ser a convenção cortentç, utilizamos os termos "nef:ro" e "rúrtl·amCricano" indifererite- ·'J.ee, nos comentários sobre seus filmes, nunca reconhece a di~ida que teffi parn com.
mente, o que nos parece útil por indicar a dualidade cultural e as tertsõo::s existentes na outros ~ineastas n<:gros, embora extr:tL1 dos maís antigos muito da reprcsentaç:io cine" ·
experiência dos negros nos EStados Unidos, que têm tanto origem africana quanto rai- mato gráfica da vida do negro urbano e do uso que fizemm da músi<.:a negra _c ou tempo,
zes e vivêndas americanas. rii.nea"(ReJd, 1993: 107).
1l

sua~ limitações, os filmes. de I.ee tocam em pontos cruciais dos problemas morais e políticas.w Ambos produZem uma espé,cie de"drama épico""que
de ràça, sexo, sexualidade, da'>Se e pqlítica racial, constituindo uma explo- 'pinta um amplo qwidro de personagens sociais típicas, mostra qu:mplos
ração cinematog.r".úica irresistível da situação dos negros na sociedade ame- de comportamento soCial e associai c transmite mensagens didáticàs para
ricàna contemporânea e das poucas op.ções políticas.que eles têm à dispo- os espectadores. Ambos utilizam música, comédia, drama, instantâneos de-
sição na atual organização social. Começaremos com uma leitura de Faça comport?-mento típico e flguras que transmitem as mensagens_ desejadas-
a cofsa certa (doraVante FCC), passaremos a Malcolm X (doravante -X) e pelo autor.Ambos criam peças didáticas cujo objétivo é ensinar a descobrir
concluiremos com comentários mais gerais sobre a visão que ~e tem de e a fazer "a· CÕiSa certa" enquanto criticam comportam~pto inadequados e
sexo, identidade política e estética."" Depois, continuaremos ouvindo as anti-sociais. O teatro de Brecht (assim como seuJllme Ku:hle Wampe e suas ·
vozes do ra.illcalismo negrO dos gUetos na arena do 1wp e cxaminat;emos al- peças radiofônicas) retraia tipos em situaçõcts qii&~s ob?igam a observar
gumas das controvérsias em tomo .deste, concluindo éom algumas refle- as conseqüências de comportaméntos típicos. Lee- poder--se-ia dizer- faz
xões sobre a cultura da contestação e a contra-hegemonia. o mesmo em.FCC (c na maioria de seus outros filmes), retratando cen~ e
comportamentos típicos do trabalho, da família e das mas. Em especia.l, os
l
três filósofc_>{d~ esquina, que Územ comencirios cômicos o tempo todo, I
Façn ü coisa co·ta como fábula mot'ai brcchtiana são bem B~ê-dí~ianos, como o DJ de rádio, Mister Seno r Lave Daddy, que illz

FCC (1989) passa-se num gueto do Brooklyn no dia mais quente do


aos oUvintes não só que façám a coisa certa durante todo o filme ("and
tbat's the truth, RZ:.tb"), mas sempre especifica é[ual é "a coisa certa", repe·
1i
ano.Mookie, um jovem negro (interpretado por Spike lee), levanta-se e vai tíndo que a pQpulação do gueto deve: "Despertar!", "Amar-se uns aos
trabalhar na Sal's Pizzeria, num sábado pela manl1ã. Vários vizinhos apare- oUtros" e "RelaJfal"!"
·cem, e assim lee vai pintando um quadro das interações entre negros, ita- FCC propõe a questão da moralidade política e social nos nossos dias:
lianos, hispânicos e coreanos residentes no--gueto "Bed Stuy". Irrompem al- 0 que é ~a coisa certa", do P~nto de vista político e moral, para os grupos-
guns conflitos entre os negros c os italian9s, e, quando um jovem negro é oprimidos, como os negros urbanos? O filme é, sem dúvida, modcrnistà uma
morto pela policia, a multidão destrÓi a pizzaria. véz que a questão fica aberta. Com "modernista'' refetimo-nos, em primeiro
Lee propõe-se fazer um ftlme sobre a experiência urbana dos negros lugar, a uma· estética de produção de textos aberta e multívoca, que dissenti-
a partir de uma perspectiva negra, e seu ftlme transcodifka discursos, esti- na grande quantidade de significados, sem ter mensagem ou significado
lo e convenções dessa cultura, com ênfase no nacionalismo negro, que afir- central unívoco, e que .precisa de um leitor ativo para produzir os sisnlfica"
ma a especificidade da e.--;::periênda negra e suas diferenças culturais em dos.' 13 Em segundo lugar, entendemos o modernismo como uma teJJ.dência
relação à cultura branca predominante. Lee apresenta o modo como os ne- estética ·~oltada para a produção de obras Unicas de arte que contêm a visão
gros falam, andam, se vestem e agem, com base na gíria, na música, nas i-ma- e a márca estilística de seu criador. Em terceiro lugar, o tipo de modernismo
gens e no estilo deles. Seus filmes são etnografias ricas dos negros urbanos· relacionado com aquilo que Peter Bürger (1984) chama de "vanguarda his-
às voltas com o fascínio da sociedade de consumo e da núdii, e com o:;; p<;-
rigos do racismo e de um meio urbano opressivo. O resultado é um c01pus
representativo unicamente da perspectiva, do ponto de vista, do estilo c da ll7 Não sabemos dizer st: Brecht influenciou cspedtkamente lce, ou se Lee-(re)inven-
tou nlgo como um cinema br.::chtlano a partir de experiências e re~utl;OS ptóprlos. Não
política dos negros.
encontramos referências a '6recht noo livros que Lee n:gularrneme public~ sobre seus
No entanto, Lee também recorre às técnicas do modernismo e produz filmes: só achamos uma menção de alg11ma possível ligação Brecht;Lce na crescente
filmes inovadores e originais que veiculam seus próprios pontos de vista e literatura sobre o ditctor negro. Paul Gilroy, numa critica de Lee no lhe )Va.\'bittgton
seu estilo estético individual. Especificamente, assim como Bertolt Brecht, P05t (17 de novembro de 1991), nota que, assim como o<..-orre com 'Brecht, que tanto
Spike Lee faz um cinema que dramatiza a necessidade de realizar escolhas o influenciou; o comprometimento político de lee, por ele "dedamdo em alto e b<im
som, apenas acaba por trh.-ializar a realidade política em jogo na sua obra e, assim, por
diminuir seu efeito político construtivo''. Ma~ além dessa (questionável) afirmação, Gil-
rvy e outros critkos ainda não explomrnm o modo como Lee se apropriou da estética
116 O estudo que se segue foi apresentado pela prinleií-a vez num simpósio sobre Mlll·
de Brechc Parn uma apre~entação mais completa da estética e da política de Br.::cht, ver
wlm X, organizado por Maxk Reid na Society for Cinema Studies, em l7 de abril de-
1993.e depois apresentado nun1 work$hop sobre cinema contempof.lneo naAmerican Kellncr, 198L I
Socio!ogy Assodation em agosto de 1993. 118 Ver B3rthes (19i5) sobre 0: t~o modernista que exige um leitor âtivo. l
206
I
'i

I
tórica» tenta produzir obras sérias_que mudem a percepção e a vida dos in-
". .
ções e movimentos políticos viáveis. Segundo essa leitura pós-moderna, o
divíduo~, esforçandó-se por promover uma transformação social. Movimen- · filme projeta uma visão desolada e niilista do' futuro, marcada J:i'ela desespe-
tos como o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo aten- rança e pelo colapso da moderna política de defesa do negro. Nesse
dem a esses critérios, assim cOmo as obras de Drecht e de lee, embora che- cQntexto, o reformismo pOlítico e a não-violência -de Martin Luther King
gtlemos a argumentar _que os filmes de Lee contêm uma misturà inigualável mostram-se questionáveis cOmo instrumentos de transformação. Mas não
de formas cu!ttl!'ais populares norte-a!nericanas e de moderniSmo, com as está clàro que a violência seja umã opção atraente, e pode-se até ver o fil~
nuances confetidils por sua experiência de negro americano."? me como· iltn questionamento da violência social, demonstrando que esta,
Portanto, estamos afirmando que, num sentido furmal, as obras de ,Spi- em última análiSe, fere as pessoas nos bairros.em que·:exptode (poderíamos
ke Lee se enquadram nesses critérios modernistas e que sua _estética está interpretar de n~odo semelhante·os event?S ~~ Ani'eles; que o filme de
C::spedalmente próxim_!l da de Brecht. Os textos de Lee tendem a ser aber- 'Lee prenuncia de maneira impressionante). ·
tos, a provocar leituras divergentes c a gerar grande quantidade de reações, Segundo essa leitura pós-moderna, não está claro qual o poder que se
muitas vezes divergenteS. Nesse sentido, ele é um "<J,utor" cujos filmes pro- deve comba~er, que instrumentos é preciso -ilsàr e quais di:vem ser os ob-
jetam um_a visão e um estilo distintivos, exibindo cumuiativamente um cor- jeti_vq;. ~-stt_ipterpretação niilista pós-modema indica que a política moder-
pus coerente com car-J.cteristicas c efeitos distintivos. Sua obra é extrema- na coiriiifM:Iin'todo faliu, 121 ·que nem a reforma nem a revolução funcionam,
mente séria e empenhada na obterição de· efeitos morais e pOlíticos espe- que· os negros dos Estados Unidos estão condenados à pobreza deses'pcran-
Cíficos, de cunho transformador. No entanto, nela também há ambigüida- çada e à posição subalterna de,subclasse oprimida sem a menor possibili-
des. Enquanto o disk-jockey, Mister Seno r Love Daddy, funciona como ,por- dade de meU]_era da situação por quà:tquer meio. Contudo, FCC ramb.ém
ta-voz da moralidade social (Sittlichkdt, como tratar os outros), em FCC, pode ser visto como um filme modernista que obriga o espectador a com-
fica aberta a questão de saber-se que posição política- se houver alguma parar a políti~a de MaJcolm X com a de Martin Luther King e a decidir so-
_- Lee está defendendo. Por acaso ele-concorda com a política de Malcolnl zinho o que i! a "coisa certa"para os negros dos nossos dias. Na análise que
X ou com a de Martin. Luther King? Está advogando reformas ou uma revo- se segue, veremos se Faça a coisa certa é um filme modernista ou pós-mo-
lução, integração ou nacionalismo negr:o, ou uma síntese de ambos? dernista em termos de estilo e política, e se Lee privilegia Malcolm X ou
Durante todo o filme, ressoa o vigoroso rap "Fight the Power" do M:artitl Lu~her JGng. Mas àntes devemos investigar a visão cultur-<~1 contida
grupo Public Enemy, mas o enredo n;io deixa claro como se deve comba-- no filme.
ter o poder ou que estratégias políticas deve~ ser empregadas p~ em-
preender essa luta. Na verdade, Faça a coisa ée11a podcriá· ser interpreta--·
do como um esvaziamento pós-moderno das opções políticas viáveis 'pru:a \'isà(J cultural em Fcu;:a a coísa certa
; os negros na época atual. " 0 Ou seja, pode-se ver o filme como uma demons-
tração qe que, politicamente, não há "coisa certa~ que fazer na situação de As personagens do filme são retratos de americanos de origem afríca-
pobreza desesperada do gueto, de racismo virulento e de ausê_ncia de op- hispânica, italiana, inglesa e coreana, e -Lee retrata seus comportamen-
0.1.,
tos típicos e os conflitos que têm entre si. A raça é apresentada em termos
de identidade e imagem cultural, especialmente de estilo cultural. Como
119 Jameson (1990 e 1991) enfati7,a o papel da visão e do estilo indh~dual no moder-
nismo, enquanto Bürgcr (1984 [ 1974]) walisa a "v:1nguarda histórica" que tema trans- mostra Denzin (1991: 125, 130 ss.), as personagens vestem camisetas que
formar a arte e a vida, em op05ição à arte modemista-de ori:'nta~·ão mais fotmal~ta. identificam postura cultural e estilo. Mookie, o negro que trabalha na piz-
zària, veste uma malha de beisebol Jackie Rol)inson, como símbolo de sua
120 Essa leitura foi sugerida numa com'ersa por Zygmunt Baunmn depois de uma sêrie
sobre cinema pós.modemo na conferência de 10" aniversário de ]1;emy, Culture, and. posição de negro que rompeu a barreira da cor no mundo dos brancos
Socle!J\ no veriio de 1992. Além disso, o filme !'CC, de lee, é visto como "pós-móder- __-(como o próprio Lee). No trabalho, Moàkie também veste uma camisa com
ho" com um sentido 'illgo indeterminado em Denzin 1991: 125 ss;do mesmo modo,' Ba-
ker (1993a: 174-5) descreve ú:e como um "verdadeiro pós-moderno", que f:iz·uma
"crítica astuta, espirituosa e brllflante do hibridismo urbano pós-moderno" em_FCC, 121 Evidentemente, há muitas'posiçõe~ politie\s pós-modernas, desde o niUismo de
mas sem conferit ao termo "pós-modemo" substância alguma.Argumentaremos abaixo Baudrillard após os anos 1980 até o reformismo pragmático -de.Lyotard e Rorty, p:is.~an­
que Lee assenta sua política e sua estética basicamente em prn;ições m_odernistas, e do pela política identjtária mülticultu!"alista de muita.s mulheres e minorias pó~moder­
não é "pós.rnodernísta" em nenhum sentido importante. nas;ver levaum.mento em Best c Kellne~; 1991.

208 209
seu nome marcado e o logotipo "Sal's Pizzeria", identificando sua posição veste-se de maneira convencional e representa os valores ncgrà'S Í:radicio-
entre os dois mundos. Radio Raheem, cujo rádio ruge "Fight the Power", o , nais e matriarcais, desaprovando Da Mayor [o prefeito, no filme] e os n~-
que pn)voca o confronto cqm Sal, -usa uma camiseta que proclama "Bed.;- gros jovens "sem iniciativa". . .
Stuy o r Die". Essa mensagem o identifica comô uma figura que ;jefende a O próprio filme influenciou as tendêncl"as da moda:"no verão de 1989,
solidariedade e a rebelião do negro para preservar a comunidade. _viram-se milhões de jovens usando camiseta larga estilo Mookie sobre shoY.t
Lee também ostenta um simbolismo cromâtico no uso de camisetas: de"(-pa<o1"' (Patterson, 1992: 125). Na verdade, Spike Lee abriu uma'!oja de rou-
Pino, filho racista de Sal, usa cámiseta braÍlca, ao passo que-Vi to, o filho que pas no~rooklyn: tomou-se Criador de moda em camiseta c vestuário ao
se dâ com negros, usa preta. As roupas de Sal o Codificam como traballÚ- mesmo tempo que atuava em comerciais _do. tÇnisJordan çla Nike Air, prj)du-
dor-patrão que chega à pizzaria dirigindo Um Cadillac, mas us~ avental para zidos por ele mesmo. Desse modo, ele retril.taoyma SÔCiedade em que a iden-
fazer pizzas, o que o apresentando como um comerciante pequeno-bur- tidade cultural é criada pela moda e pelo ~Óilsmno, contribuindo pessoal-
guês. Outras camisas identificam quem as veste com heróis culturais bran- mente para essa tendência com seus filmes e sua atividade comercial. 1.,.,
cos ou negros. Um jovem branco, que acaba de comprar um apartaniento As maneiras coino as imagens da cultura de massa permeiam os mo-
no gueto, usa um agasalho I.arry Bird, Boston Celtics, enquanto um jovem dos Q.eJsÇr e \'estir levam a crer que a identidade cultural é constituída em
negro usa o agasalho Magic Johnson, do L. A. Lakers. Os hispânicos usam ca- p~~:pàf imagens icônicas de heróis culturais étnicos, emblemas de iden-
misetas coloridas sem mangas, enquanto ·os homens negrú$ mais idosos l:idade e forças de divisão entre as raças. Sal tem fotos de ítalo-americanos
usam camisetas brancas sem mangas, camisas convencionais de uma cor famosos (seu "Panteãó da Glória") nas paredes da pizzafia, e diante dope-
sô, ou andam com o peito desnudo.A maioria das mulheres joycns usa mi- dido de ~Y.ggin' Out, de pendurar fotos de negros também, Sal recusa-se
niblusas, embo'ra Jade, irmã·de Mookie, use roupa de grfjfe. veemente~ente, o que precipita a tentativa de boicote e a violência subse-
Roupas e acessórios da moda pintam os diferentes estilos e identi- qüente. Siniley, negro gago e talvez retardado mental, está vendendo fotos
dades das personagens. Buggin' Out, jovem negro revoltado, usa ca·misa de Malcolm X e Martin Luther King, "' que aparecem como ícones da polí·
africana amarela com uma corrente de ouro no pescoço e um dente de · tica negra, enquanto se vêem, em grafites, referências ajessie Jackson e aAJ
ouro. Também usa tênis Nike Air tipo Jordan (para o qual Lee faz comer- Sharpton, constituindo os líderes políÜcos.negros como heróis culturais, ao
dais) e fica com muita miva quando o fã do Celtic o suja sem querei. Ra- lado dos astros do esporte e da música.
dio Rahecm usa o mesmo tipo de calçado, e seu potente rádio portátil·, Essas cenas indicam até que ponto a cultura da mídia fornece mate-
tocando rap, estabelece sua identidade cultural (ele $Ó toca Public ria! pára a formação de identidades e de que modo as diferentes subcultu-
Encmy).Também ostenta uma fileira de anéis folheados a ouro, gravados r--.tS se aproprian1 de imagens diferentes para identiftcação.A~im, a identi-
com as palavras "amor" e "ódio~: os supostos dois lados do ora gentil, ora ditdc é formada sobre um terreno de luta, no qual os indivíduos escolhem
violento Rahecm. m Mookie também exibe um dente e um brinco ouro, seus próprios significados culturais e seu próprio estilo, num sistema dife-
o que o marca como participante das convenções culturais dos negros rencia] que sempre implica a afirmação de alguns emblemas iderititácios c
urbanos. •>J Os três filósofos negros de esquina, que discursam sobre a a rejeição de outros. AJ; instituições sociais individualizam as pessoas com
atual situação dos negros, vestem-se indiferentemen!e, enquanto o alcoó-- números: da seguridade social, do título de eleitor, das relações de consu-
latra Da Mayor (Ossie Davis) usa roupas velhas e sujas, o que o codifica midores, dos bancos de dados, da polícia, dos registros acadêmicos, etc.,
como um exemplo da negritude fracassáda. Mother Sister (Ruby Dee)" mas criar: identidà.dc própria significa recusar-se a s(;;r definido por essas de-
terminações e optar por outras formas de identificação. Cada vez mais, a
cultura da mídia fornece recursos apropriados à produção de significados
122 E UJna homenagem à pcrsouag"m de Robert Mitchuúi em Me!IS(1getro do Diabo, pelo público, à criação de identidades, como quando as garotas vêem em
que, no entanto, era muito má; portanto, o modo como Lee se apropria desse simbofu;mo
talvez tenha, -sem querer, coditiC::J.do Raheem como mai~ negativo do que Lee pretendia.
124 :Pattcrson (1992: 125 ss-) faz nlgmnas criticas à atividade comercial de Lee e nós
• 123 Lee dã indíôo5 de que Se opõe à exibição de cprrentes de ouro e Coisas sefnelhan- voltamos a criticar a avaliação da t>olítica culmtal de Lee adiante neste capítuJo.
tes por parte da juventude negra ('Eles não entendem que a longo prazo essas porca-
rias não valem nada"), mas não faz nada no filme para criticar essa funna de consutrii_s. 125 bcli hooks (1990: 17?) queixa-se de que um negro g~go e confuso tenha sido es-
mo e, na verdade, a reproduz em suas imagens cinematográficas e nas empresas capi" colhido pa1-a representar as opinlõe~ profundamente inteligentes e lúcidas de Malcolm
talisras (ver Lee c Jones 1989:59,.110 par:~ a rejeição de Lee). · X e .\1artin. Luther King.

210 211
Madonna um modelo, ou ps negros imitam heróis cultunds negros, ou os iô de cesta de basquete, valete de espadas, pega essa porcaria ~e pizza e
aspirantes a yuppie admiram os profissionais de programas de Tv co~o volta pra África". ··
LA. Law, em busca ·de padrões de identidàde. Um porto-riquenh<l"a,taca os coreanos em termos rac"istas semelhan-
· O proc:sso de identitkação, port~nto, é mediado por imag~ns p~d~­ tes, e o vendeiro coreano atacã. os judeus. Essa cena, perfeitamente brech-
zidas para il massa na sociedade contemporânea em que predomina a mí: · tiana, mostra Com btiU1antismo as diferenças-raciais codificadas na.lingua-
dia, enquantO a imagem e o estilo cultural são cada vez mais fundamentais gein, mas tende a equiparar todas as modalidades de racismo como logica-
para a construção de identidades -_conforme indicamos ~esk estudo e re- mente ·equivalentes, embora se possa argumentar que o racismo institucio-
tomaremos nos próJ;.imos capítulos. A Ctlltur.;t da mídia constitui vigorosa nal contra os negros é muito maii;> virulento que".().s racismos culturais va-
fonte de novas identidades, substituindo nessa função nacionalismos, reli- riegados assim express!Js, e que Lee, de fiiJ:~~aiS-''capra a realidade do ra-
giões, família e educação. Como disse Bcncdiét Anderson (1983), ·o nacio- cismo como parte de um sistema de opressi~ 6 Dessa perspectiva, a socie-
nalismo constituía uq-t poderoso instmmento de comunhão_ imaginária e dade vigente oprime de modo especial os negros: então, o que .ocorre não
identificação, e as diversas formas da cultura da mídia oferecem hoje suce- é exatamente racismo e ódio racial entre todas as taças e etnias, mas uma
dâneos para indiví~uos e grupos que sejam capazes de. participar de co- distt;~btli/;ão desigual de poder e riqueza na sociedade americana contem-
munidades imaginárias, por meio de estilos culturais e de cOnsumo c de p·O~~~;;o que leva os negros a sofrerem desproporcíonalmcnte a opres-
produzir identidades individuais e gmPais apropriando-se de- im~gens 'são ~istêmica em termOs de raça e classe. Em outras palavras, lee n.io vê o
dessa cultura. capitalismó como um sistema de opressãO quç explora e <;~prime suas d~s-
A cultur'á da mídia tambéln forne~e as modernas fábulas moiais que scs baixa~·~c em especial os negros. ·
mostram qual é o comportamento certo c o errado·, o que deve ou não ser .Ao c~ntrário, apresenta o racismo em termos pessoais e indivjdualis-
feito, o que é ou não "a coisa certa'; .POr isso, é .wna nova e· importante for- tas, comô hostilidade entre diversos membros de diferentes grupos, deixan-
ça· de socialização, e um dos méritos de Faça a_ coisa certa é apresentar do, assim, de elucidar as causas e as"cstntturas do racismo.Ademais, o filme
esse processo ~e identificação por meio de imagens e de estilos culturais, denigre efetivamente a ação política, caric-iturando a ação coletiva e a táti-
de um modo capaz- de mostrar também como as diferentes identidades ~ ca do boicote ec-onômico que também atendia aos interesses do movi-
contrastantes se produzem e representam um terreno no qual se desenro- hle.nto de. direitos civis. Como aponta Guerrero:
lam os conflitos sociais.
Esse fi1me mostm como a identidade cultural t~bém se ~xpressa pela Ao apresentar ~uggin' Out e Radio Raheem como personagens arrogantes c
músi.ca e por modos de ser. O D] negro c Radio 1Raheem só 'tocam múska irr:tdonaiS que defendem o instrumento de ação social mais eficaz do movi-
negra, enquanto os adolescentes porto-tiquenhos de rua tocam música his- mento de direitos civis, o boicote c:conômkQ, pam depois apresentar a juvcn·_
pânica. Uma cena em que Radio Raheem e os porto-riquenhos duelam com tude do bairro descartando a possibilidade. de ação social e rendendo-se ao
seus respectivos rádios no último volume signitlca choque e divisão cultu- prazer efêmero de um bom pedaço de piz~, o fúmc trivializa qualquer enten-
ral na comunidade do gueto. Além diSso, Sal provoca Radio Rahcem man- · dimento da luta política dos·ncgros contemporâneos, bem como a hlstória re-
dando-o "desligar a música da selva. Nós não estamos na África", enqua:nto cente dos movimentos sociais neste país. Essa rejeição à ação coletiva é mais
Buggin' Out replica: "Que negócio é esse de música da selva e da África?.~ acentuada pela contraposição de Buggin' Out e Raheem a Mookie, que ftm-
Portanto, diferentes culturas utilizam a música popular para e~tabelo­ ciona como c.-uueloso intermediador, situado entre Sal e a comunidade. Pois-
cer sua identidade cultural, e a comunidade é dividida-por Q.iferen"tes esti-
los de música. Mas são os epítetos raciais que expressam de maneira mais
pun$cntc os conflitos e as tensões sociais contemporâneas. Num momen- 126 Em outras palal'n!S, o retrnto que.Lee faz do f\ldsmo nào lev;~ em cont~ aspectos
lógicos, pois uma hier:~rquia na vindênda racisw,g... ra!mente ditada pela cor (os negro~
to cmcial do filme, num modo modernista e brechtiano, Lee interrompe a estão _;ujeit?s ~o racismo mais extremad_o, no que são seg~tidos por hispâniCos, asiáti-
narrativa e põe as· personagens a olhar para a câmera, vociferando insultos cos e outros grupos étnicos, como os italianos). Outms hierarquias são as de sexo {as
, raciais: Mookie ataca os italian-os ("carcamano, macarrone, parasita, bafo de nmllieres abaixo dos homens), preferência sexual {os homossexuais submetidos ao
alho, bodoqueiro de pizza, enrolador de espaguete", etc.). Pino, o ftlho·ra- preconceito dos heterossexuais), etc., de tal modo que as lésbicas negras wriam obje-
cista, retruca para a câmem, i~sultando os negros: "Frango frito, árvore de to de muito mais opressão do que,digamos,oo hom<:ns hlspânieos.A cena em questão,
porém, reu-.lta todas as fonnas de m<"ismo em tennos de equivn!ênda lingüística entte
Natal,-macaco comedor de pão, mico, babuíno, apressadinho, pula-pula, iô- diferença cultural e ódlo racial {agmdecemo~ -a Rhonda flammer por essa percepção).

21-3

..""·
é por intermédio da perspecdva reservada e indhiduaUsta de Mookie qUe Segundo essa ldtum, Lee está privilegiando a vida-human~ em detri~
grande parte d~ filme se ápresenta ao espectador. mento (~ propriedade e sugerindo que a violência cont~ a propriedade é
(Gue"rrerO-, l993b: 149) um ato legítimo de retaliação. Pode-se também argumentar que Mookie está
direcionitfldO a violência da turba contm a pizzaria, afastando-a"tle Sal e dos
Aléni disso, tee está o tempo todo celebrando o consumismo, que é filhos, o que, em última anáJise,os protege da im da multidão.'zs Sem dúvida,',
o centro de grande parte do foco do filme e dos investimentos afetivos, em . poae..se discutir o cariiter de "coisa certa" do ato de violê.ncia\. mas o ·fato é
vez de dizer como o consumismo acabou por organizar de modo funda- que ele""consiste numa rejeição à filosofia de não-violência de Martin Luther
mental a vida do gue~o. Há muito investimento afetivo no ato de comer piz- Klng. No entanto, não está, claro se esse a.to -prodli~-;algo positivo para Moo-
za e sorvetes, tom:af cerv~ja e ostentar artigos de consumo. Como notamos, kie ou para a comunidade negra; na verda~~~ode_-Se afinnar o contrário."9 •
é forte a ênfase na construção de identidade por meio de roUpas e moda, Smiley-pendura o retrato de Ma1colm X e o de Martin Luther King lado a
e ninguém questiona as .práticas consumisl:aS. ' ". lado, ateRdendo, assim, ;to desejo de Raheem de ver Imagens de negros na
No entanto, Lee mostra de modo incisfvo como o vestuário, a música, pizzaria. ~Ias eles são vistos a queimar na parçde, o que leva a pensar na pos-
a linguagem e o modo de ser separam os vários grupos étnicos, em sua si~iliiPU.e:.de se interpretar o fato como um sina1 da futilidade da política ne-
visão de comunidade dividida no gueto.Tal situação é propícia à violência, gril"-vn~alidade, representando-se alegoricamente o desvanecimento da
c o fllme prenuncia as sublevações-que iuompernm em LosAngeles no mês 'pertinência dt: Malcolm e de Ma:rtin Luther King no presente momento.
de maio de 1992, depois que um júri constituído por brancos absolveu os/ Seja como for,- não é cabível a crítica (branca e conservadoFll) de que
policiais que foram ftlmados enquanto surravam Rodney King. Ftiça a coi- FCC é "rl!M?-'' porque pode produzir Violência e aumentar o ódio rliciaLAo
.Ça certa deve ser interpretado, portanto, como uma fábula admonitória a contrário, o ftlme de Lee revela as condições de vida e as tensões e os con-
advertir sobre o que pode ocorrer - e de fato ocorreu - caso as rel!lções flitos radàis que podem produzir violência iacial e outras formas de con-
entre raças continuem piorando. fUto,urbano. Ou seja, analisa o n1.eio social que produz violência e explo-
.1\ssim, o filme é clarividente ao mesmo tempo que tem limitações, e sões urbanas. Em entrevistas dadas depois do filme, Lee objetou que estava
uma critica diagnóstica poderá interpretá-lo como uma obra que express~ apenas retratando as situações urbanas existentes, e não oferecendo-solu- ..
algull?-as das condições produtoras de violência nos guetos. O filme é espe- ções; essa posição parece bem i'azoável. ..
cialmente vigoroso na retratação da sublevação do gueto, ocorrida dep-ois Contudo, Lee também pode ser criticado por desconstruir a política
do assassinato de Radio Raheem por policiais brancos quando ele começa moderna, apresentando·a como fútil ou irrelevante e dando razão, assim, a
a brigar com Sal. Lee apresenta sua própria pel'Sonagem, Mookie; atirarido
uma lata de lixo pela vidraça da pizzaria de Sal, e então itrompe a violên- de jovens negros, incitado pelas mqrtes de Howatd Beach, onde jovens brancos ataó·
cia que destrói o estabelecimento. Um exame atento da ação de Mookie in· vam gramitaniente jovens negros, provocando n mõrte de um dt:les. Portanto, Lee pa-
dica que . se trata de um ato coflsciente e_deliberado, e que Lee o apreseúta rece acr<:ditar que o protesto violento é uma reação legítima ao assassinato insensato
dos negros, c-omo talvez o próprio Mako!m X acreditasse. '
éomo "a coisa certa'' A câmera dá um zoom sobre Mookic enquanto ele
decide o que fazer depois que a polícia asfixiou acidentalmente Radio Ra- Num livro sobre a filmagem de Ft:C O.ee e Jones 1989).Lee observa:"A personagem
heem numa briga que começou quando Sal destruiu seu amado rádio. que represento em Faça a coisa certa pertence à Jinh;! de peusamemo de Malcolm X:
Então, numa panorâmica longa e lenta, Lee mostra Mookie a se afastar me- 'OU1o por olho'. Que se dane essa merda de'dar a outra face' Se a gente continua nes.
sa loucura, a geme morre. É ISSO AÍ, OLHO l'OR OLHO" (ibid., 34: maiúsculas de Lee).
todicamente para pegar uma lata de lixo, voltar com ela e at_ici-la pela jane-
la da pizpria, começando assim a revolta que termina com a destruição 128 Essa leitura foi sugerida por KelJy Olil'er num comentário sob~e um esboço ante·
desta. Está claro que ele faz isso porque a morte de Radio Raheem o entl.t- rior de nosso trabalho. Na vetdade. como se vê na nota !Ti, Lee estava zangado com o
futo de muitas pessoas, que tinham -dsto e te\isto seu filme terem ficado desconcerta- ·
receu, e que Lee retrata o ato como uma ação consciente e deliberada.'~' das com a destntição da proprie<;lade, enqu;mo-deixavam <;e. ver qu~ um jovem Ílegro
fora morto pela·polída_

l27 Em <=ntre\-ista.s dadas depois do lançamento do fUme, Lee disse que sempre se es- 129 Como quem não quer nada, Jade, irmã de Mookie, diz que gostaria de .ver algo po-
pantaVa com a indignação das pessoas diante da destruição da propried.'lde, mas que sitivo acontecer na Comunidade, mas não está claro o que ela tem em mente, e, na fui-
pouca ge1_1te parecia prestar atel).ção à morte do jo\'em negro. I.ee inicialmente e~t.-wà ta de um desenvolvimento mais completo de seus pontos de vista políticos, só é possi-
preocupado em descobrir que condições teriam levado aos assassinatos injustifióveis vd fazer conjecturas.

214
..

-<
um niiUsmo pós-~oderno. 13" Mas certos aspectos do filme impedem qUe um conto moralizador; e que a visão polí~ica de ~e resvala para ~1ma posi7
ele seja inti:+pretado comO expreSsao de um pessimismo pós-moderno· dc- ção identitária que não pode ser enquadrada em pOsturas modernas especí-
scsperançado que afirmaria a obsolescência de uma política negra modere ficas (po( exemplo, Martin ou Matcolm) nem no nülismo pós-ffi:odernó.
na do tipo praticado por Malcolm X e Martin Luther King. O Próprio Lee,
depois, declarou estar afitmando uma· política que desposaria aspectos de ,
ambos os líderes, lançando mão da filosofia e das estratégias de ambos para il·.talvllrn X como conto J.nora.lizador
,._ ......"
a transformação social em diferentes Contextos. Ele chania a atenção para .
'
o quadro· imóvel a queimar pa parede.da pizzaria: · .Da perspectiva de nossa leitura de FÇ(;:,J?,od~ argumentar que X é
interprétável como um conto moralizador qtiir intefroga-o q\te é a "coisa
Malcolm X c King estão sorrindo de mãos dadas: Por isso,. quando pus a_u certa" para. os negros na sociedade americana contemporânea tanto no
aqUelas duas refer~ncias, não foi umà ques~ão de outou; não para mim~ ein Sentido individual quanto no político. Segundo essa leitura, é a figu·ra de Mal-
todo caso; mas apenas uma escolha de táticas. Na minha opinião, eram dois co 1m XJluc está no centro do filme,~ as transições fundamentais consistem'·
homens que cscoll.teram caminhos diferentes na tentativa de atingir o ~esmo na:·s~ ~sformação: de criminoso em nacionalista negro, dedicado a traba-
ponto de chegada contra um oponente comum. lhar -~~lá' Nação do. Islã, e depois num. internacionaUsta mais secular. A día-
(Lee eWiley, 1992: S) ve, então, está em l\.-lalcolm X como ideal morJ.I, como modelo de negro em
tranSformação e realização, a conquistar autonomia, c não em qualquer po-
Portanto, desse ponto de vista, as referências aparente.meh.te opostas a sição polífd:a ou mensagem específica transmitida por Malcolm X.
King e Makolm X, que encerram Faça a cpisa certa, expressam posições vá- Embora ~e afirme veementemente a política de Malcolm X, ele não
lidas e a questão seria então de contexto e tática na busca da visão mais apro- nos pareC~ um adulador c hagiógrafo acritico, pois questiona algumas das
priada. Contudo, o próprio roteiro do filme parece privilegiar Malcolm X, que posições de seu protagonista, obrigando o público a decidir se as ações de
acabaria sendo tema do principal épico cinematográfico de Lee até hoje. Na Malcolm ou de outras pe~sonagens de seus filmes são na verdade "a- coisa
ve.rdade, a visão de FCC de algUma forma condiz com os ensinameb.i:Os dO na· certa'' .Assim, vemos X e FCC como peças pblíticas moralizadoras e acredi-
cionalismo negro preconizado por Malcolm X, o que afirma certas posições tamos que Spike Lee ti~m razão quando disse que as crianças negras e
políticas modernas. Um dos filósofos de esquina expressa admiração e triste- outras deveriam faltar à aula para verem o filme .Malcolm X. Com ele não
za porque o vendciro coreano conSegue transformar uma construção de ma- só ·aprendemos muito sobre uma das figuras mais importantes de nossa
deira num negócio rentável, enquanto os negros não conseguem. Sem· dúvida, ép.~ca como somos obrigados à: refletir sobre o qUe é a "coisa certa" para a
trata-se de um aceno à visão 'de Malcolm X sobre a auto-suficiência e a inde- mOralidade indhidual e política. No entanto, diríamos que o principal foco
pendência eco~ôrriica do negro, e por certo Spike Lee concretizou essa filo- dO filme de Lee recai eni Malcolm X como um modelo para os negros,
sofia com um sucesso ímpar na comunidade negra. Está. claro que Mookie não transformando-o num conto moralizador contemporâneo. A vida de Mal-·
e
tem futuro trabalhando na pizzaria de Sal que outros companhekos seus colm X é sem dÚ'\.oida exemplar em termos de capacidacle de submeter-se
também estão caminhando rapidamente pam futuro nenhum. "Tá na horã de a uma transformação profunda e de forjar sua própria identidade em
acordar, manos, e de unir forças", é uma das mensagens do filme. . circunstâncias dificílimas (a delineação de tais modelos de moralidade
Do mesmo modo, a ênfase de Malcolm X é posta na ascerisilo do nc· também é congruente com a estratégia brechtiana). '
gro à estrutura de poder do branco, no revide à agressão c na ação decisiva A primeira parte de Malcolm X mostra o que é a coisa ermda para os
para manter o respeito próprio. Nesse sentido, a ação violenta de Mooki_e· foi n'cgros hoje, ou-seja, enveredar pelo cantinho do crime, das drogas c do ma·
um instantâneo de certos ensinamentos de Malcolm, embora se possa per- terialismo rasteiro.'ll No entanto, Lee dcspende tanto tempo e energia nes-
guntar se aquela foi de fato "a cois~ 'certa". Também é Possível indagar se
Malcolm X fez oti'dcfendeu a "coisa certa" política nas várias fases de sua
vida e ·o que seu legado representa hoje em dia. Examinaremos X dessas 131 Em geral, debcou-se Je ver nas criticas do filme que boa parte de Febre d(l selva
foi dedicada ao at'aque ao crack, retratando-o como G\US>'Idor de mone certa e, em
perspec.tivas, argumentando 'que esse filme, _assim FCC, é .em última análise termos extremamente neg:•tivos, como· uma das principais forças de destruição da
r.:omuniclade negra. No entanto, Lee evitara a questão das drogas nos seus primeiros ill-
130 É ex:uamente contcr esse niilismo que comeliWest adverte os negros (l992b)_ mes, pelo que fui criticado.
.,
sa fase da vida de Malcolm que transforma o outrora criminoso M~Colm da prisão totalmente modifioado, exemplar do indh·iduo que Se einpenha
üttle em figura quase encantadora e sem dúvida simpática. O próprio , con1 sucesso na própria transformação.
Makolm X, em sua autobiografia, apresenta Malcolm Uttle como um sujei· Até aí a estética de X pode ser vista como a do drama épico brechtia-
to muito mau c negativo (Hàley c ?'' 1965), embora essa imagem tlão pare- rio, como conto moralizador brechtiano que incorpom determinadas lições
ça emergir do filme de Lee. í:>enzel Washington cria uma personagem sedu- par.a ~s negros e para os outros, mediante apresentação de quadros de con-
tora, e o uso que Lee faz da qmtédia e do melodrama infundem energias dtitas sociais e associais que contrapõem valores e comportamentos posi-
positivas em Malco(m Little. Assim, ainda qUe ele _seja flagrado a praticar tivos,e:'<negativos. Lee ~xpõe vários gêneros e estilos, misturando, música,
:itos criminosos e vá_ para a prisão, o filme mostra de um modo positivo. a comédia e jlashbacks dramáticos em cpisódios-C~ve da vida pregressa dC
sua vida pregressa, cheia de momentos de alegria com mulheres brancas, . Malcohn X (a mistura de gêneros tamb~-:1~-caràCterística brechtiana). O
drogas, atividade febricitante e bons com1ianheiros.m - último terço do filme continua essa estratéi;ia, eritbora seja denso c com·
Lec utiliza a tática dos quadros históricos épico-realistas nessa se- pacto demais para apresentar. adequadamente o pensamento de Malcolm
qüência, fortemente temperada com comédia, sátira e _músiéa. Como X e a complexidade de suas últimas-posições. O episódio fundamental des-
sempre, a música é extremamente importante nos filmes de Lee, e -:pode creve 0 !nomcnto em que ~1alcblm X se d~slíga dos ensinamentos de Eli·
ser visto e ouvido como uma história da música negra ao longo de dccadas j:ili~inmad e do islamismo, aderindo a uma filosofia de ativismo social
e do seu caráter de parte integrante da essência da vida diária. Mais uma •radi~al. No entanto, o que se vê é muito ensinamento religio_so c racial islã-
veZ, são óbvios QS p~ralelos com Brecht_. visto que este usava a mús;ca para mico dúbio e pouco da última filosofia social de Malcolm X, que muitos re-
captar o etho.s e o estilo de um época e como modo de afttmar ou ressal- putam co.qto o seu legado mais valioso.'"
tar certos aspectos didáticos. Além disso, está claro que Lee apresenta Em dtfesa de Lec, pode-se dizer que de dcspendeu muita energia te~­
como reprováveis certas {armas de comportamento do negro, como alisar tando esélarecer as razões do rompimento de Malcoltn X com o islamismo,
o ·cabelo, e as seqüências iniciais contêffi a óbvia moral de, que a conse- e que mostra Malcolm passando por urrrá transição importantíssima que o
qüência do crime é a cadeia.A mensagem sobre o envolvimento do negro ·leva a assumir posições radicalmente nqvas, abordando assim, novamente, a
com mulheres bmncas é menos clitra, embora Lee tenda .a apresentar ne- importância da autotransfonnação radical. Lee também tratou da compi~­
gativamente as relações inter-racjais en1 X e 'em outros filmes; como Febre Uadt: do' assassinato de Makolm X ~ da forte possibilidade de envolvimento
da selva.'" . de islamitas e de órgãos do governo americano no atentado - em oposição
A seqüência da prlsào -~-lOSJra Malcolm little recusando-se a subme- aos que só atribuem a culpa aos islamitas. Ele também deixou bem claro qtie
o Malcolm "maduro~ considerava iguais todas as cores, de acordo com sua
tcNe às humilhações da vida no cárcere e sendo-vencido pelo conflna?lcn-
vivência em Mecá. De fato, neste estudo estamos deixando de lado a questão
to da solitária. Mas também é Vlsto a aceitar os ensinamentos islâmicos e a
da precisão histót;i~a (sobre a qual grande parte do foco da critica recaiu,
aperfeiçoar-se por meio do estudo. Uma das mensagens onipresentes em
tanto do ponto dé vista dos amigos quanto dos inimigos de Lee) para dar-
Lee é a da educação como maneira de"erguer a raçaM(uma das mãJ?mas de
mos mais atenção às questões estéticas e políticas do filme.'·"
School Daze [Lute pela coisa certa] e título do livro sobre esse nlme), e
sem dúvida, Malcohn X personifica positivamente 'essa filosofia, quando é
moStrado a estudar e a adquirir conhecimento. Na verdade, Malcolm X sai 134 A Nation o f Islam, por exemplo, ~pregonv:1 a superioridade do negro, apresentava
o homem branco como um "diabo" e em geral professava ensinamentos racistas, defel).· .
deudo o separatismo negro, em vez da transformação soda! estrutural. Durante alguns ·
132 Brt:cht também era solidário com os criminosos e multas vezes os apresentou de anos, Malcotrn X abraçou essa perspe<:lh-':1, mas acabou se distanc~1m!o (!ela e desen·
modo positivo, como na 6pem àe três vtnténs. Às vezes, eram figuras de 'proletários volveu do uma vis~o mais revoludonária c internacionalista. Ver coletânea dos escritos
oprimidos, embora também usasse a figura do bandido para representar capitalistas e mais reCent~ de Malcolm X, como X, de 1992.
fusdsus. 135 Obvi<llllente, a questão da preçisiio histórica é importante na avaliação de um filme
133 Embora a narrativa sugira que Malcolm se _sentia aU"aido pela mulher branca, So- (jue u:m a prercnsiio de contar:< ven:lade wbre a vida de Malcolrn X. Como o livro de Lee
phht, C()tllO meio de exercer poder se:..< tal e obter desform rada!, há imagens positivas sobre o f~me (Lee e \l:'iley, 1992) indica que ele est.wa tentando descobrir a verdade dn
e negariva5 do relacionamento, que é apresenrado com luzes mais favoráveis do que a vida de Malcolm X por meio de pesquisas e entrevistas, parece·nos válido ex.'Wlinar o til-
imagem dns relaçõ~s int~r-raciais em Febre da .felva, ainda que o próprio Ma!colm X me do pomo de vista da predsão histórica; tal projeto, porém, extrapo!a o funbito deste
condenasse \'eementemente a persistêncL-1 com que o homens negros buscam as 11\U- estudo_ Para (l!g 1unas reflexões sobre a correção histórica e suas distorções em X, ver sim·
llleres broncas; abaixo, estudamos a controversa visão que lee tem da questão sexual. pósio em Cl11easte, \b!. XIX, N" ~ (1993): 5·18 e a resenha feit.1 por ho<?ks em 1993.

218 219
De qualquer modo, o filme de Lee sobre-Malcolm X suscita questões de Lee é, no geral, culturaiiSta, pols ele dá ênfase à identidade e às decisões
referentes à sua própria visão política --assunto que abordamos a seguir.. morais do negro em termos de raça, séxo e pessoa. Isso se evidencia em
Fciça a coisa certa, filme no .qual lee interroga as insígnias culturaiS visí-
veis e apresenta os conflito.s da comunidade sobremdo em termos cultu-
r.tis, esmerando-se na apresentação da dinâmica de um pequeno grupo se~
A visito política e çnltur;.~l de Sp:ike Lee tér sticcsso na articulação de estrlÍturJS mais amplas - e do contexto estru-
tural da 'Opressão do negro -que agem sobre a vida-das comunidades, dOs .
Neste estudo, tr-,uarémos da visão pqlítica e cultural de lee e do modo grupos sociais e dos indivíduos. Portanto, el~ realmente não articula a dinâ-
como ele se vale da estética brcchtiana. Contudo, há algumas difcrcnç~ im~ mica de opressão de classe e raça na socicd~~eriêana contemporânea.
portantcs entre Brecht c Lee. Brecht era uin comunista convicto que defen- Isso nos leva a outras questões. correlataS sobre representações de
.dia valores poüticos bem específicos e seguia uÍn prOgmma político mar- sexo, raça e classe nos filmes de Spike lee.O foco de FCCin~ide mais sobre
xista específico (embora haja algumaS dúvidas sobre isso; ver Kellner, questões de sexo e raça do q_ue de classe, e o antagonismo entre ltalianos
1981). Lee, ao contrário, não parece ter um programa político.tão defini- e negros 'ê Visto mais como um conflito racial do que de classe. O peque-
do. Sua visão política mostra-se mais vaga e indefinida do que a de Brecht, no c'o~ante Sal, embora possa ser considerado um representante do
·o que talvez o .situe em algum ponto entre uma posição modernista avessa sisl:ema de classes que oprime os neg_I'OS, 11a verdade faz parte de uma clas.-
a posições políticas determinadas, uma política COf'\textualista mais prag- sc trabalhadora étnica, assim cOmo o vendeiro coreano, mesmo pertenc~n­
mática, inspirada em fontes díspares para as suas intervenções em situa- do ao pequc;;2o comércio. Lee afirma que em FCC tentou tratar da classe
ções políticas concretas, c uma pólítica identitária definida sobretudo pela trabalhadora flegra; escrcvc:"Nesse roteiro quero mostrar a classe trabalha-
produção de identidade cultural. . dora negra. 1-:ontrariando a crença popular, nós trabalhamos.Aqui não cho-
O horizonte social dos filmes de Lee ê consrituído pela opressão dos ve grana não, meu chapa: é gente trabalhando duro pa':l viver com decên-
negros numa sociedade extremamente racista e pela resistência destes à cia~ (lee e Jones, 1989: 30).
opressão, por meiO da produção de cstilo's cultLJrais e identidades distinti- Esse trecho, escrito antes que o _filme fosse realmente feito, é curioso
vas. Os filmes de Lec: transcotlificam os discurso-s de orgullio c afirrrí~çãtJ porquC os únicos negros que trabalham são o DJ,Mookie e um policiaL Diz-
do negro e apresenta figuras de negros fortes· que resistem ao racismo _e lu- se que a irmã de Mookie trabalha, mas nãO fica claro se algum dos outros
tam pela criação de uma identidade própria. No todo, ·tee privilegia .o as~ negros tem emprego ou não. E embora o bairro descrito seja habitado por
pecto cultural em detrimento das lutas dos movimentos políticos. Seus fil- aquilo que se poderia chamar de Jumpemproletariadó. negro, não se focali-
mes dão ênfase à especificidade di opressão e da resistência dos negros e zam'~as condições suas opressivas de vida e trabalho.Todas :}5 personagens
apresentaffi. o estilo cultural e a' identidade distintiva como cómponentes-_ definem sua própria identidade em termos de moda, consumo c estilo cul-
chave de um política itlcntitária centrada na afirmação-do orgulliO negro e. tural. Só o velho bêbado, Da Mayor [o PreteitoJ, se veste com desmazelo,
da positividade da cultura negra. Tal visão cultural é útil à conscientização enquanto todas as outras personagens parecem estar perfcitame9te inte-
das formas distintas de opressão sofridas por determibados grupos, servin- gradas na sociedade de consumo (grande parte_ do filme, de fato, trata do
do também para tt?nsformar a produção de um estilo cultural e de umà consumo de pizza, sorvete, cerveja e outras bebidas, alimentos c bens di-
identidade independente em aspecto importante da luta contra a opressão. versos, para o que todos sempre parecem ter dinheiro).
Mas a visão cultural desvia a atenção das questões políticas e econômicas Por conseg_uinte, como vimos antes, lee tende a festejar o consumo e
prementes e pode produzir uma consciência separatista que solapa a polí- a definir a identidade cultural em termos de moda c consumismo. Além
tica de aliança capaz de mobilizar grupos diferentes contra as forças, as prá- disso, deL"Gl, de analisar a realidade e a dinâmica da opressão de disse. Na
ticas e as instituições opressoras. ve'rdade, em seus fúmes não examina 'a fundo a exploração e a miséria do
Por isso, convém condicionar a apresen~ão que fizemos de lee, .lumpemproletariado negro. Refletindo sua própria perspe~tiva de classe
como brechtiano, pois não nos parece que Malcolm X desempenhe o pa- média, a maioria das personagens de Lee são negros de classe média ou em
pel que Marx desempenhava na obra de Brecht, ncn_t, por isso mesmo, que ascensão. Os protagonistas de Sbe's Gotta Have1t são de classe média, e al·
a t;.tdição ilegra radical como um todo tenha função tão importante- na · guns estudantes de Lute pela coisa certa, embora sejam representados
obra de Lec ql~anto a tradição marxista teve na de Brecht.A visão polítiCa como membros de diferentes classes c grupos, estão no mínin1o em asCen-

220 221
são.A cena do restaurante, em que os estudantes entram em confronto conl esposa p01to-riquenha, ataquem verbalmente as personagens ~asculinas'.
negros.-trabalhadores, indica hostilidade e diferença entre esses setores da Na vcrdaçle, esses exemplos mostram a inclinação de Lee à utilizaçã~ de'
etnia negra contemporânça nos $stados Unidos, mas as diferenças não são imagens estereotipadas de "megerice" feminina, ainda que Jade, interpre-
suficientemente estudadas nos filmes de Lee. Mais e melhores blues tada por sua irmã Joie Lee, seja uma personagem simpatkísSima.
(1990) e Febre da selva (1991) tratam de profissionais -negros, e, embora COmo nota Michelle Wallace, Lec privilegia as relações heterossexliais
este último cm-i.'tenha imagens fortes de uma crack bouse c da degradação coilvencionais e estigmatiza o sexo oral, o que, ainda segundO Wallacc, re-
provocada pela dependência de drogas, nenhum dos dois inveStiga a reali- baixa"o~·gays, retratando também negativamente "o restante do Vasto es-
dade da opréssão dolúmpen negro. p~c;tro de práticas sexuais ilícitas c- das.. _condu&.~ psicossociais situadas
Portanto, ainda que todas as personagens de FCC sejam moradores do além das fronteiras da heterossexualidadá>'ê9-JVpuiS.Ória em que são incluí-
gueto, o fenômeno de classe e opressãp de classe não é realmente exami- dàs ·pa~ões perversas como o sexo inter-raciàf e a dependência de drogas"
nado neste nem em outro~ filmes, inclusive Malcolm X. Os negros do guc~ (Wallace, 1992: 129). De fato, acreditamos que parte do problema que está
to, no início deste úitimp filme, usam zoot suits"'• alisam os cabelos e dan- po"r trás _da visão sexual de Lec diz respeito à sua inclinação a utilizar
çam em salões de baile onde conseguem fisgar mulheres brancas. Numa P~rsqnà.~ns breçhtianas "típicas" e a pintar cenas "típicas". O "típico",
das cenas, em que Malcolm. trabalhando num trem, tem o devaneio de Iam· poréjl\r;éStá a um palmo do estereotípico, arquetípico, convencional, écpre-
buzar de comida o rosto de um freguês antipático·, o que se mostra é mais Sentativo, mediano e assim por diante, prestando-se à caricatura e à distor-
ódio racial que de classe. Na cena seguinte, Lee mostra Malcolm á ingressar ção.As personagens de Lec, portanto, muitas vezes,personificam estereóti-
na vida do crime, quando fica conhecendo um mandachuva do Harlem que pos sexu:,,i,s ou raciais. Ele é "realista" no sentido de Brecht apenas por
contrata seus ser...iços, sugerindo·sc que é o ódio racial, e não a opressão tentar iet~ar. situações "reais", mas não ingressa na realidade da vida das
de classe, que empurra o negros para o crime.E em nenhum ponto Lee exa· classes bâixas ou da opressão sexual em grande profundid-'lde'. Na verdade,
mina de modo sufiCiente o mundo das diferença e exploÍ'ação de clasSe. assim como Brccht, ele ~1sa a comédia, a intermpção estética, a sátira, a far-
O Malcol_fn que:: se converte ao islamismo assume com determinação _sa c outros instrumentos para tratar dos problemas de raça, sexo e sexuali-
- os valores da classe média, e o lumpemproletariado negro quase desapare- da.de. Tfi1ta-se de questões candentes do momento, e grande parte .do intef-
ce do filme qt1ando ele sai da prisão e se transforma em político impor- esse de_ sua obra reside no fato de pôr o dedo nessas feridas. Entretanto, po-
tante. Portanto, Lee não retrata a opressão de classe, e projeta seus próprias· deríamos perguntar se ele investiga o sexo e a sexualidade com mais serie-
valort:s de classe média negra nas personagens de todos os seus filmes.Amí- dade ou sucesso do que o faz nas questões de classe.
d Baraka atlrma que Lec "é a quintessência do buppte,N quase o esplrito Como notamos, em todos os seus ftlmes, Lee retrata certos tipos ca-
do· protlssional pequeno· burguês jovem e negro em ascensão;' (Baraka ratterísticos de comportani.entO e interação entre os sexos, mas freqüente-·
1993: 146), afirmando que esses valores permeiam seus filmes. mente o faz de modo estereotipado. Também é grande a ênfase que dá às
No entanto, as q.uestões de sexo, conto as de raça, são um dos prind· nuances da cor da pele, dividindo os negros em Lute pela coisa certa
pais foco de todos os ftlmes de l.cc, emborà. ele tenha sido acerbarnente cri- segundo esse critério. Em Febre da seltJa também há contraposições cOns--
ticado por 'feministas negras pelo modo como trata o assunto bcll hooks, tantes entre negros claros e escuros, e as esposas das duas personagens
por exemplo, critica o modo convencional como Lee coristrói a masculini- m4'!cu!inas principais são extremamente dar.tS.1imto Feb1·e da selva quan· """
dade e o caráter estereotipado em geral negativo de suas imagens· d.e mu- to llfctlcolm X fetichizam a pele 9ranca das mulheres, mostrando-as comó
lher (hooks, 1990: 173ff.).S.uas personagens masculihas muitas vezes se de- intenso objeto de desejo do homem negro e como um caminho para a sua
fmem por atos de violência e por comportamentos tipicamente macltistas · derrocada. Uma das-namoradas do jazzista de iiiais e melhores blues:tcrn
e extremados. As mulheres em gemi são mais passivas e impotentes, pele clara, enquanto a outra é escura. A maioria das cenas de sexo nos ft.l-
embora às vezes, como ocorre com Jade, irmã de Mookie, e com Tina, sua mes de Lee transcorre à noite, e a iluminação exagera as diferenças de cor,'
ressaltando o interesse quase obsessivo n'a cor da pele, presente nos ftlm.es
'de Lee.
'T.:rno c<.>n$iderado típico do.:; neg.O$ ~mericanos na déc~d~ de 1940: paletó cintura· No entanto, conforme argumentaram hooks (1990), Wallac·e (1992),
do com enchimento nos ombros; c~lç~ ~funiluda. (N.T) Guererro (1993b), Reid (no prelo) e outros, Lee parece excluir !i possibili-
. •• Profission~l negro e jovem em ascensão (N T.) dade de existência de relações rom~ticaS sadias entre pessoas de cores di·

223
.I

ferentes - posição quase segregadonista que seria rejeitada por uma visão plosivas também expressas no mp. Mas seu cinema não investiga as causas
multiculturalista mais progiessista. Também há uma dh.:isão estereotipada dessas tensões ilem ·propõe soluções. Do mesmo modo, em última análise
das mulheres entre ''boas" e "más", muito evidente· em X, oitde a namorada ele deixa· de analisar as causas e de propor soluções para a opressão políti-
d-e Malcolm, Laura, passa de boa a má. Laura primeiro é pintada como a na- ca dos negros. ·
morada boazinha de Malcolm, ao contráriO de Sophia, mulher branca, mas Na maioria.das vezes, Lee privilegia a moral em detrimento da políti-
depois se prostitui e se vicia em droga, invertendo-se a oposição boa/má ca, e séus filmes devem ser vistos mais como contos moraliudorcs do que
com Laura. Por fim, Betty, esposa de MalcOlm, aparece como "a"boa mullter, co mó "'peças didáticas políticas, no sentido d~ Brecht. m Embora seu
em comparação com a qual todas as outras parecem "ruins':. Esse fato, primeiro musical, Lute peta coisa certa, -aborde á:tç__certo ponto os proble-
portm, reproduz a oposição estereotipada ehtcy: a "santa" e. a "meretriz"-, mas de classe como tema, no todo os mtVJ~·Çl.e Lee tratam mais de raça e
que predominou em Certo tipo de cinema hollywoodia~o clássico. uina sexo do que de classe· (que, evide'"tementc, é um assunto de grande
possível exceção a ç::sses estereótipos, em X, são as irmãs muçulmanas, se- importância na estética marxista de Brecht).
duzidas e engravidadas por Elijah Mohammed; em última análise, contudo, Antes das criticas finais, porém, queremos ressaltar o caráter progres-
elas também são aprt:sentadas como vítimas, objetos indefesos do desejo sistài'e~w'boa qualidade dos filmes de Lee em compamção com outros pro-
masculinó, máquinas procriadoras a perpetuarem o-patriarcado. dúi~~1i8 cinema de Hollywood. Seus filmes são muitíssimo superioées à
Além disso, em todos os filmes de Lee1as mullieres são relegadas à es. • maioria dos filmes de Hollywood, e é ótimo que Lee possa usar a cultura da
fera doméstica, enquanto os homens têm vida ativa c pública. Isso é notável mídia para expressar as perspectivas dos negros, que são diflmdidas por
em X, no qual a mulher de Malcolm é retratada ·sobretudo como-esposa de- meio de ~as as suas obras e da enérgica divulgação que ele faz delas. Tan-
dica(la, que educa os filhos e permanece passivamente aq lado dele. Portan- to do po,.nto de vista estético quanto do político, seus trabalhos são tão su-
to, nos filmes de lec são poucas as imagens positivas de mulheres ou de re- periores:à maioria dos filmes de HoUywood que parece injusto criticá-los.
lações igualitárias entre os dois ~exos. >lo Malcolrrí é mos trapo como--patriar- No entanto, é por meio da crítica e da autocritic_a que se atinge o progres-
ca severo que parece querer uma esposa principalmente para procriar. so cultural e político, e Lec tem sido criticado pela própria comunidade ne·
Flipper, em Pehre da .~elva,abandona a esposa negni por uma mulher bran- gra por não assumir posições políticas mais específicas, por ser politica-
ca, e !]epois esse relacionamento m'alogra. Nola Darling, em She's Gotta mente vago e indefinido e por substituir questões políticas substanciais
Have It, põe três homens negros um contra o outro, e a tensão resultante por uma visão puramente cultural. ns ·
e
prejudica todas as suas relações. O jazzista de Mais melhores blues tem Assim, Lee tende a reduzir política a identidade e a slogans culturais.
duas namoradas e, mais uma vez, essa situação é mostrada como insustén- LJ:;tte pela coisa certa termina com a'mensagem ''Acordem!», proclamada
tável; a personagem principal casa-se com a mulher mais convencional, pelo ativista negro, herói do filme, e Faça a coisa certa começa c termina
constitui família e desiste da carreira. Portanto, raramente vemos nos filmes com o DJ. Mister Senor Love Daddy fazendo essa proclamação.
. Ótimo, acor-
' de Lee mulheres fortes e independentes, relações igualitárias, ou homc_ils_ dem. Mas para o quê, e o que se faz depois de aCordar? Tal política concreta
que tratem as mulheres com respeito e zelo genuínos. parece estar além do campo de visão de lee e indica as limitações de sua
Em parte, a visào sexual de Lee está presa aos estere'ótipos dO cinema política.
hollywoodiano clássico e não transcende esse nível. Mas também reflete o Além disso, ele parece estar mais preocupado com a situação e a opres-
chauvinismo masculino da comunid~de negra e de outras minorias, bém são dos negros, e não examina a opressãO de outros grupos. Esse fato pode-
como a intensidade dos conflitos entre homens e muU1eres - 'teq.sões ex- ria ser desculpado dizendo-se que é útil ter alguém que faça isso', mas há li-
mitações, como já notamos, no exame que Lee faz da opressão do negro, exa-
136 Um conjunto curioso de imagens pata a interpretação da visão de Lee sobro: a - -..-.---- j

questão scll.'Ual encontra-se na dança de abcrt.ura de Façtr a cotsa· cena, interpretada


l37 Para Bre<:ht, uma peça didática política deveria transmitir visões e comportamen-
por Rosie l'ertz hook~ (1989) nota que ess:t danÇ;J reproduz o comportamento m.ascu-
tos políticos t'l'l.:lllplares a seus espectadores, ~judando a politizá-los c incitandO"<)S a
lino (fom1as masculinas d~;: dança, luta de boxe, briga, etc). Mas Lee talvez pretenda;
panicipar_da transformaçãO soda LNão é indubitável que os filmes de Lee fundonem-
com isso,passar uma imagem·forte da m\1lher de cor;'a dança é acompanh:ida pelo mp
dessa >naneim; ao contrário, c01úonnc argumenmmos, servem sobretudo como contos
"Figlu the Power", que inftmdc ençrgia positiva na. cena. É uma seqüênda 11_9t.1vd,
moralizadores parn os negros.
porém ftmbígua; mlvez indique o modernismo do filme, que exige do espectador que
construa sua própria leitura. ' 138Ver. por cxemplo,Rced 1993, 18-9 e Baraka 1993, l45 ss.

225
me que tende a ignorar o modo como um sistema de expl<;>ração oprjme ne- ·pjzzeria· é uma· caricatura patética das ·lutas reais dos negros peia s~bl-evi-
gros e outras etnias e grupos oprimidos. Na verdade,o fetichismo de I.ee pela vência e pot• seus direitos. . .,
cor ajuda a perspectiva dÔ ~dividir para cOnquistar" que, em essência, cega o · As ·questões políticas concretas da causa fiegra, em FCC, foram redu-
colonizado e impecte a solidariedade entre os oprimidos. cOmeU West diz: zidas a grafit\S hos ffiucos', onde ·se lêem ~logans como "TaWana disse a
verdade," ~Abaixo Koch", ou "}esse", referindo-se à campanha de ]esse
Enquanto simplesmente acoóertarmos yários particularismos ( ...) não ÍJode- JacksoÕ em 1988 _pela presiçlênda. Mas também nesse caso, a causa negra
râ haver um projeto democrático radi~al. Por jsso, é preciso que haja estraté- é sublimarlã"-em slogans 'e imageri.s, e a política identitária e culturaJista de
gias e táticas que trartscendam a política identttária, a região, o sexo, a mça, a Lee nunca se alça realmente além desse. nív<;J, Como:oitota bcll hooks, Lee
dasse.A questão da ~!asse ainda está "i.va, embora esta tenha sido incapaz de nunca aborda a questão da aliança política e ~~erC~iJ·e que:
constituir uma identidade que c~m a proeminência e a força 4e outras iden-
tida.des. E precisamo~ tentar pensar em çomo cdar e manter organizações Para combater. o racismo e outras formas de. d<;Hninação será predso que o
que reconheçam esse fato. Porque estamos nessa situação difícil em parte negro crie !aços de solidariedade com geÍlte diferente, que tenha comprOmissos po-
porque fomos incapazes de dar uma orientação transe.."ual e transradal à mo- líticos ,_se~et?~.ntes. O ra-Cismo ( ... ) não desaparece quando controlamos a produ-
bi!izãção social, ao rndmentum soda!, ao movimento social. E se não puder- ção de .-<':Serviços em várias comunidades negras ou quando infundimos em
mo;s fazet· isso, então haverá muitos; muitos mais David Dukes até o fim do nossã arte uma perspectiva afroci':ntdca. As saudosas expressões do estilo negro
séL"Uio XX, por mais que fiquemos ~esse falatório sobre identidade. estão cadà vez menos acessíveis aos negros que já não Vive;m em comunidades pre-
(West, 1992a: 23) doininantement(i negras.
/ "<\>,~·
(ho.oks, 1990: I8:3-Il)'l9
Portanto, a política identitária ajuda a manter separados os povos
oprimidos e tende a reduzir política à busca de identidade 'e estilo cultural. hooks também argumenta (1993) que Malcolm X é re;juzido a .uma
Lee nunca retrata movimeritos políticos com seriedade. Fetidliza líderes, o imagem· na apresentação de Lee; acrescentaríamos que jsso ocorre tanto
que, como dizAdolph Rced: em FCC quanto em X. Spike lec, em última análise, é ·vítima de uma cultu-
ra consumista da imagem, em que valor, mêrito e identidade são detlnidos
Também reflete uma idéil1 antidemocrátka e passiva de política. Os grandes em termos de imagens e estilo cultural, em que a imagem pessoal determi-
[(deres não produzem 010"\;im.entos. Desde que não sejam apenas obm de pu- na quem somos e como seremos recebidos. b ftlme, sem dúvida, é na me·
blicitários espertos, eles s~o, eril aspectos importantíssimos, ho!ogramas cria· lho r das hipót"cses uma festa de imagens, mas o fitme critico interroga essa,;.
dos pelos movimentos. Entender política como histórias dos grandes tfderes imagens, descOnstrói as que servem aos interess"ês da dominação e desen-·
1r.tz como resultado nostalgia e celebração, e não mobiltzação e ação. volve imagens, narrativas e estéticas -outr-&s. Lee, porém, ilão se alça acima
' (Rced, 1993:'19) do repertório de imagens dominanteS já estabelecido e reproduz muitas
imagens questionãveis de homens, mulheres, negros e outras raças. Seus fil-
Embora na obra de Lee haja um conflito entre a aftrmação da política mes, apesar de terem grandes méritos· e de mostrarém que o cinema pode
moderna de Malcolm X c a evocação de um pessimismo político pós-mo- tratar de questões de fundamental importância política, gerando discussões
derno, parece-nos que o problema central da ~lia visão polítka está no fato interessantes com possíveis efeitos políticos progressistas, até agora se limi-
de ele, em última análise, propender para o lado de uma política identitári~ taram, especificamente, à política.idcntitária.
e culturalista, que subordina a política em geral à criação da iden!idade pes- Entretanto; atacam pelo menos algumas das muitas formas de opres-
soal. E identidade, par.t Lee, é sobretudo identidade do negro, e e te sempre são sexual,racial e de classe. Embora, em última análise, não constituam um
trabalha com uma oposição binária entre newo e bra~co, "nós" e "~les''. A modelo'de "cinema contra-hegemônico", como desejariam bell ho.oks e
política identitária dC..Lee, ademais, é principalmente culturalista, pois nela outros negros radicais, propidam intervenções cinematográficas cativat_ltes
a identidade é definida por "imagem'' e estilo cultural. Isso está claro em e provocantes, infinitamente superiores aos espetáculos grosseiros do cine-
FCC, em que a postura política de cada personagem é definida em termos ma de Hollyví'ood.
de estilo culturnl. Nenhuma das várias personagens pru'tidpa de qualquer
organizaçio, movimento ou luta política, e o boicote de Buggin' Out à Sal's 139 Ver estudo sobre e~sas questões em hooks, 1992 e West, 1992b:

226 227
O RAPE O DISCURSO NEGRO' RADICAI,

Os negros amíericanos têm tradicionalmente usado a música e a lin-


guagem musical comO forma privilegiada de resistência à opressão. O gos-
pel surgiu como reação à opressão da escravidão, enquanto o blues ex-
pressava uma resposta ao racismo institucional, de tal fqrma que ambos re-
fletiam o sofrimento produzido pela opressão c pela resistência a ela. O
ragtime-e o jazz baseavam-se nas experiências dos negros americanos em-
busca de uma linguagem musical que articulasse sofrimento e alegria, an-
gústiã. coletiva e expre,ssão indivjdual, dotninação e resistêhcia. À medid~
que os negros foram migrando do sul para as cidades industrialiZadas do
no1,1e, criaram novas formas musicais para expressar suas experiências,
produzindo, entre outras coisas, o rhytbm and blues.Aigumas dessas for·
mas musicais c culturais muitas vezes se limitaram às áreas habitadas pelos
negros, difundindo-se sobretudo por apresentações ao vivo.
Durante a década de 1950, o r/:Jythm and blues se transformou no
rock and TOll, e artistas negros como Fats Domino, Chuck Berry, Little
Richard e outros ingressaram na cultura prevalecente. Alguns artistas
brancos, porém, como Pat Boone, logo começaram a abranger e explorar
a música negra, embora a genuína cultura do rock desprezasse tais "inva·
sões", e- ;1 maioria dos fãs do rock 'preferissem os artistas negros que esta-
vam ingressando na cUltura prevalecente. Foi um acontecimento espe-
cialmente significativo que a música nCgra utilizasse a cultura da mídia
para disseminar seus significados, seus sons, suas vozes. Os anos 1950
foram uma época de prolifetação das estações de rádio, e as novas tecno- ·
!agias fonográficas ptmham métodos baratos de gravaçãO à disposição da
indústria estereofônica em expansão. Gravadores de ftta, rádios de carro
e, por fim, os cassetes ajudaram a pôr a música em posição ainda maiS
central na cultura da mídia, e provavelmente poucas coisas foram tão
úteis co~o o esporte profissional e o rock para propugnar pelas liberda-
des civis dos negros, para mostrar aos brancos que preto é" "legal", para
demonstrar que eles são seres humanos merecedores de todas as liberda-
des civis existentes.
Grande parte do rJ:rythm and blues negro que migrou para o rock
and roll constituía um produto urbari.o, dos guetos, e a cultura negra Íogo
integrou a música na trnma da vida urbana. Transmissores comuns, àpare-
lhos" de som, apa.rdhos walkman e potentes rádios portáveiS transmitiam
os sons da cultura negra pelo país, nas Cidades e nos subúrbios. Os riovos
desenvolvimentos musicais logo furam assimilados na linguagem musical
negra. O reggae cria\-""a novos sons e um nova politização da música. Nos
anos 1970 rappers negl.'os, como Gil Scott,Heron e Grandniaster Flash, de-

228
229
1i'
'
senvolveram novas formas de música política,·expieSsando as expe'riências as diferenças entre -os rappers são extremamente signifiCativas. Assint, '
de opressão e luta nos meiós negros urb,anos. ''" como veremos, enquanto alguns glorificam a vida de gângster, as drogas e
Nos anos 1970 e 1980, a cultura negra urbana do hip hop desenvolvia as atitudes mlsóginas, outros contestam essas intervenções prÚbletpáficas,
novas türmas de música, dança e canto, apropriadas à experlêncià c à cultu- usandO o rap para expressar valores e políticas muito diferenteS.
ra negras''' - Iiaflte prbano, break, rádio negr?,-D]s de clubes que-pratica· Ell).bOra já houvesse rappers na década de 1970,foi só nos anos 1980
varil o chamado sampling (sobreposição de músicas populares com sons do que essa forma cultur.tl se tornou' conhecida e maciçamente popular.A dé-
rape ruídos e!etrônicos),scratcbing (movimentação rápida-tia agulha. sobre cada de 198{.ffoi um período de declínio das condições de vida e das ex-
o disco) e punch-pbmsing (mudança hábil de um prato para o ~mtro). Por- pectativaS dos negros, dur.mte os governos conservadO"ks que transferiram
tanto, o rap começou como uma petfOt'lnance em clubes noturnos ou em a riqueza dos pobres para os ricos, fizeram cofí:Cs{J,(:ios _p;Qgramas sociais e
festas rap, mas a sua explosão em CDs e vídeos musicais tornaram o mp e_ negligenciaram negi'os e pobres. Durante esse período, houve uma queda
o hip hop muito visíveis,-produzindo novas formas de identidade e expe- no padrão de vida e no nível de emprego dos negros, e as condições de
riência. Popularizado em filmes como Be(lt Street (A loucura do ritmo), vída nos guetos urbanos se deterioraram com o aumento da criminalidade,
Breakin' e Wild Style, e tocado com mais freqüência nas chàmadas BET . o uso de <;ú:Ôgis, a gravidez na adoleScência, a AIDS, as doenças sexualmen-
(Black Entertainment Television) e na MTV; o rup foi ficando cada vez mais te transfll;lS'Neis, as gangues e a violência urbana.
. conhecido, popular e controverso à medida que a déCada avançava. . , 'o rap transmitia as experiências e as condições dos ameriCanos ne-
RAPé uma forma de falar ou fazer música em que o R significa·rima gros que viviam em guetos violentos e, assim, se transformou num podero-
e ritmo, e o P, poesia- e em alguns casos política. No estudo que se segue so veículo de ~pressão política, traduzindo _a raiva des negros diante da
dessa forma e."'trcínamente controversa, argumentamos que a melhor ma" crescente op~ssão e da diminuição das oportunidades-de progresso,
ncira dt: considerar o rap em si é vê-lo como um fórum cultural em qu'e os quando a simPles sobrevivência passou a ser um grave problema.A música
negrOs urbanos podem expressar experiências, preocupações c visão P<:lí- tocava-uma corda sensível, e as gravações de rap estavam nas paradas de
tica. Como fórum cultural, é um terreno de disputas entre diferentes tipos sucesso, levando as gravadoras a produzirem cada vez mais álbuns desse
de mp em que competem diversas modalidades de expressãQ voçal, visão tipo de música. Durante as décadas de 1980 e 1990, novos a.ttistas como
política e estilo. Portanto, é um erro generalizar-em torno d() mp, ~isto que N.WA. (Niggefs WithAttitude),Public Enemy, Ice~T, Ice Cube, Sister Souljah,
Queen Latifah e 2 Live Crew ganha.t<Jm notoriedade e fama com suas com-
posições ca~a vez mais radicais, chocantes e às vezes ultrajantes.
14QAlgumaS histórias c análises do rap que selecionamos deixam de dt:u- Gil Scott:He- O rap põe seus ~:mvintes diante de uma colagem de sons urbanos,com-
ron and the Last Poets c:omo prcccursor do J-ap. Sua obra está vívida. em nossa mem&
binandb seleções de rádio, tclevisão, discos populares e outros sons conhe-
ria, e quando começamos a ouvir rap com mais assiduidade nos :mos l980~ao lado de
um rap e~tl'emamente politizado, sempre voltiwmos a oUvir Gil S,e<.>tt-Heron e the Last
cidos que, executados em altíssimo voll!-me, são pontuados pelo discurso de
Poets, grande grupo digno de ser ouvido até hoje. Portanto, foi gr-atif.cante ler o que vozes distintivas c agressivas. A voz é muito importante, e as· letras carac-
Chuck D, do Public Enemy, disse: terísticas transmitem experiênCias c, muitas vezes, mensagens. O rap é' um
o interessante de Last Poets and Gil Scott-Hcron é que eles tinham uma abord.1.·
modo de falar, e não de cantar, que freqüenteritcnte utiliza rimas complexas,
gem jazzístka, fuzi~m poesill sobre um ritmo. Quando o mp d1egou, bmbém era embora não mtodoxas. Em geral é exeéutado em andamento rápido, em
poesia sobre ritmo, mas na ba.t~da do tempo. Mais intportante do que Last Pocts stm:cato, e a combinação complexa de rima e ritmo pode criar tensões
and Gil-Scott Heron, para nós, foi)ames Brown. Seu disco "Say it Loud,l'm Black entfe a espontaneidade da ptnformance e a fixidez da letra..As canções são
and l'm Proud" causou grande impacto porque era dançável mru; mesmo assim freqüentemente longas e às vezes sinuosas, continuando uma tradição afro"
fazia pen5ar.. na época era ftmk e sou!, ~iferente do Jazz.
americana de contar histórias long:as e comple..xas com variações individuais
(aplfd Decker, 1993: 63). e refrões em solo repetidos indefi.nidAAlente como no rag-time, no jazz e
141 Na ctJ!t~ra hlp bop, vcrToop, 1984; George, 1988; e Dyson, 1993a. Paul Gilroy no blues. O rapper muitas vezes é como um ministro da igreja: traz uma
(1991) iD.dlca as raízes briclnicas e caribenhas do I'<I]J e do hlp fJop. Na maioria ~,s de- mensagem ·para seu público, que é transmitid"l de modo bem característico;
finições, o mp é um<~. categoria 'da cultura bJp hop que inclui estilos de roupa e modos assim como a igreja tem um coro, o mpper às vezes tem um coral de fundo.
de falar, dança, grafitagem c outrru; fonnas de expressão cultural. Muito do htp hop der O rap gemlmente utiliza um trilha sonora produzida por meios eletrô- ·
sapareceu, mas o mp sobreviveu e impera como estilo musical preferido de grandes
nicos, conl um andamento que costuma ~cr rapidíssimo; Chuck D do Pu-
segmentos da juventude negra.

230 231
/
blic Encmy notou que seu grupo :iceleJ.? as batidas por rJ?inuto em produ- mppers ou músicos negros que abandoram o rapou fizéram concessões,'
ções típicas do rock, aumentando assim a velocidade. Mas o mp também é como veremos abaixo).
dança, e· os rappers muitas vezes convidam o público a ·ctançar, balançar- e O rap, porém, está centrado na fala rápida, às vezes-interpretada por
movimentar os braços, às vezes a erguer o braço com o punho cerrado ou um único mpper, freqüentemente acompanhado por um coro ou retruca-
a mostrar atitude de desafio, ·ou então a participar de algum modo da per- do por: outros, e às vezes interpretada por grupos inteirOs, que se révezam ·
forrnance. Queen Latifah freqüentemente pede ao seu público "dance pam no micrpfone. Uma das primeiras coisas que nOtamos quando ouvim?s, o
mim", c Ice-T explica que o rapper~só fica feliz quando o pessoal_ que dah- rap contC;;'ifiorâneo é a sua característica de instnut1~to de identidade e
ça está molhado" de suor, "descontrolado" e "possuído" pelo ritmo e pela auto.afirmação num meio cada vez mais hostil aos né'&ços. Os rappers·f~
míisic-<~. (apud Shuster~an, 1991: 628). qü~ntemcnte chamam a at~nção para si e ~~~ssa furma musical para
A afetividade do rap, os prazeres que produz e seus efeitos sOmáticos, afirmar sua Própria identidade. O que pode beirar o narcisismo c um mate-
relacionam-se então à conjunção de yoz, música, espetácUio,peifonnánce e rialismo que se evidencia nas vendas de discos e na posse material, mas é
participação. Sem dúvida, alguns desses elementos não eStão presentes também um modo de auto-afirmação num meio hostil :J. qualquer forma de
quando se ouvem discos de rap, mas alguns dos efeitos somáticos são sen- auto-exprl~s-ão
.,.,,..,,,., negra. É como se eles dissessem: Ei, estamos aqui! Prestem
síveis apenas com o som. Os vídeos de sbows ou de álbuns de rap, ou entãO atenção~· óitcam o que estamos dizendo! -
certas canções, ajudam a reproduzir alguns dos prazeres afétivos e as apre- • A natur~za freqüentemente coletiva dos grupos de rap, por um lado,
sentações ao vivo, e em de~erminados casos multiplicam os prazeres visuais de~centra o individualismo em favor da identidade grupal, mas muitas
por meio de cortes rápidos, técnicas de edição e imagens realmente interes- vezes afirma <(tubas as coisas, viSto que muitos rappers chamam a atenção
santes. A versão em vídeo de "Õriginal Gangster", de Ice-T, por exemplo, é para si, indiyW.ualmente, como mna voz distinta, voltando depois a submer-
um tour d(! force visual com cinematografia brilhante, e muitos vídeos do gir no grupo: Assinf como os grafiteiros, os rappers muitas vezes utilizam
Public Enemy, que podem ser encontrados em lojas de locação mas rara- pseudônimos, como Chuck D. ou Snoop Doggie Dogg, com o significado de
mente são apresentados na TV, também combinam eficazmente montagem anonimato da voz negra ou da necessidade de assumir outra personalidade
visual e música, gerando um rico complexo de efeitos cognitivos, visuais e para expressar suas inquietudes. O nome serve. de máscara na tradição da
somáticos. cultura africana e, em algumas ocasiões, significa que o rapper está falando
O rap também depende de virtuosismo tecnológico, c o Dj, que ma- pelo grupo ou pela comunidade,·assim como por si mesmo.
nipula os sons eletrônicos, é parte importante da equipe. Portanto, trata-se O rap, pois, é um veículo de expressão de vozes bem especificas, que
de uma forma que combina tradições orais afro-americanas com sofistica- ficaratn fora da cultura prevalecente a preocupação de __§eUs praticantes é
das modalidades tecnoióiicas de reprodução de Som. Além dissó, os sons dizer qm:m são, de onde vêm e o que têm em mente.A música do Public
do rap muitas vezes' são transgressivos, infringindo as regras da correção e Enemy adota como refdo constante o nome de grupo como fundo, nome
do discurso aceitável. Trata-se freqüentemente de sons desordenados, com que, em si, é expressão do status de exclusão e da rebeldia contra a cultu·
ruídos de carros de polícia, helicópteros, tiro~, vidro quebrando e agitação ra prevalecente. Vale-se do sentido de "inimigo público" segundo o qual a
urbana. Os sons do rap são especialmente perturbadores quando tocados juventude negra é vista na socic;:dade ein geral. Esse nome também signifi-
no últinlo volume em espaços públicos, anunciando que o inimigo está ca que eles estão emergindo para a esfera pública, para a c~ltura preva1e-
dentro, que a sociedade c.stá d).vidida e enfrenta conflitos explosivos. cente, como inimigos, como exd)lídos, como força desintegraàora.,Tam-
Também há referências freqüentes a acontecimentos do momento, bém se afu·mam com freqüência como "Publk Enemy Number One", mos-
como as cenas de Rodney King, em 1992, e a insurreição de Los Angeles, tr.mdo-sc como inimigo público. número 1, ameaça e perigo para a socieda·
citada em muitos álbuns rap, que muitas vezes usam uma colagem de sons de· estabelecida.
do gueto com tratamento eletrônico. O rap desenvolve o léxico de uma lin- Os grupos Ice·T e Ice Cube adotam a metáfora do"gelo" [íceJ,para in··
guagem caracieristica,· com referências' políticas e sons icônicos, que po· clicar frieza e dureza absolutas. O Jce·T evoca constantemente seu próprio
dem ser misturados e muitas ~zes repetidos em outros álbuns, como· nome às vezes embelezado com o refrão "Ice, mothcr-fucking T" e desCrc·
quando "Mind Ovcr Matter», do Ice-T, reproduz o uso que o Publlc Enemy vend~-se co.nw "original gangstey·. Ice Cube se autodescreve como "o
fez dessa expressão.Há, portanto, um contexto social, polítiCo e cultural co- mais procurado da América", e o coro ·zomba:" fada-se Ice Cube", enquanto
mum do rap, que é extremamente intertextuai (também há ataqu~s a outro ele dispara sua letra radical. A Q~een Latifah é uma rainha [5JUeftÍ1}, Sua Ma-

232 233
jestade, e majestade africana! Por isso, mais respeito, irmãos1 Sister Squljah relações entre os sexos. Em 1993, os rappers foram violentamente critica-
apropria-se da expressão "soul stster", que com sotaque africano fica "Soul- dos pelas Inulheres de sua própria comunidade e de outras pelo" uso de tal
jah,~ o que também a situa como "sister soldado" ;• militando pefa causa do terminOlogia sexista. Queen Latifah, por exemplo, num videoêlipe de
radicalismo negro, e o coro vai cantando seu nome enquanto .eia vocifera 1993/4, "U.N.J.T.Y"., faz um apelo à unidade e zomba:"Quem vocês cha-
uma letra agressiva. mam dc.Puta?l" O coro diz à mulher negra da platéia "Você não é puta, você.
Efeito Sister Souljah: durante as eleições presidenciais de i 992, o can- não é vadia" e: r' Mostre isso a elesn. O vídeo retrata a perseguição das mu-
didato Bill Clinton, hum gesto oportunista e eficaz, atacou a violência das le- lheres nas i-~'âS e mostra como acabar com esse compqrtameni:o.
tras do rap em presença 4e ]esse Jackson e de outros negros, propondo que - Na verdade o 2 Live Crew e alguns outros ·gru~.bs de --rap adotam
Sister Souljah fosse censurada. A cantora mp conseguiu quinze minutos de termos coOstant~rrtente depreciativos em reta~~ riuillieres, retratando-
glória na mídia, c Clinton conseguiu enorme publicidade, aparecendo com_o as como boas só para a cama; para o resto são biscaS (bitches) inúteis, res-
candidato que não tinha medo de falar abertamente sobre crime e violência mur.lgonas e burras. 1H Esse seXismo causou gr'.mde agitação na comunidade.
e de pôr os negros em seu devido lugar - num apelo oportUnista aos cha- negra e proVOfOu muita discussão, o que provavelmente ajuda a esclarecer
. mados "Democratas de Reagan", no qual lhes dizia que elç não era testa-de- as relaçõé'S tni.re os sexos. Portanto, pam uma crítica diagnóstica, as can-
ferro de interesses particulares, como o dos negros. Para uma .crítica dlag- ções sexf~~-~Ín si são um índice de profunda hostilidade entre os sexos e
nóstica, porém, está claro que ·clititon erà exatamente um testa-de-ferro da ne"cessidade de reestruturar as relações entre homens e mulheres. ' 13 Isso
oportwlista dos "interesses e dos medos dos conservadores brancos. não é desculpar o sexismo dessas letras, mas combinar crítica com diagnós-
A classificação de intehções de voto de Clinton deu um pulo, e ele tico, na tcntativt de discernir o que tais atitudes dizem sobre as realidades
acabou por ganhar as eleições. Antes, ·o presidente George Bush atacara o sociais contenworãneas e o que precisa ser' feito para tratar do problema.~~~
rapper Ice-T por sua canção "Cop Killer" ."''·'· Bush reproduzia as preocupa- O uso de "termos como "nigger" e a freqüente obscenidade são indices
ções da polida e dos grupos direitistas, desferindo contra o mp ataques das relações Violentas e conflituosas entre homens e muU1eres da comu-
verbais de w:ande publicidade; desse modo, ambos os candidatos à presi- nidade negra, entre negros, brancos e outras forças sociais dos guetos ten-·
dência optaram por atacar o rap. Nesse ínterim; o rap foi ficando· mais
agressivó e controverso, e."pressando a percepção correta, por parte dos I
negros, de que eles iriam continuar Sendo alijados ~ ação, de que o novo 142 Nwn artigo do NllllllVrk Times, tsctito em 1990 sobre o 2 Live Crew, na épo<:a I
governo do Partido Democrata não teria mais "simpatia por seus problem~ em que o grupo sofria wn processo por obsce"nidl.de, o ilustre acadêmico negro Heruy
Louis Gates defendeu o grupo, dizendo que .;eu excesso verbal era sátira, que mps
do que os governos republicanos de Bush e Reagan. O resultado foi um au-
c~no "Me so homy" ernm uma trnnsgress1io grotesca das co~veniências, e que eles de-
mento da violência e_ da provocação no rap e a continuação da violência
nos guetos cada vez mais explosivos.
monstravam '"gl"andc virtuosidade". Um dos critícos mais notáveis da cultum afro-1!mc-
ricana,Houston :Baker, retrucou que essa defesa indiscriminada deixa de fuzer distinção
j
Na verdade, o uso de obscenidades, de termos ofensivos como "nig- entre os vários grupo~ de mp, e que uma avalíação mais discrimlnati\-a notaria que o
ger" e de outms técnicas de choque pelos mppers constitui tanto um modo grupo 2 U\·e Crcw é claramente inferior a ·outws grupos e que seus l"il}JS são ofen~ivos
de auto-expressão quanto de tradução da linguagem e da violência reais da. c medíocres (Baker l993b: 64 s.).
cultura do gueto urbano. O uso do termo "nigger" para se autodescreverem
é uma tentativa de transfOrmar um insulto racista numa divisa de orgulho
14.) Isso se ap!Ka n1io só à comunJdade negro: o I'Stupro e os crimes contra as mulhe'·
res atingiram um nível into!er,ívd em toda~ as mçru; e classes socioeconômicas;
I
racial. O uso dos termos "bitch" e "h o"',*~~ cot)lo referência pejorativa às mu- po~amo, o mp expreS<O~ atitudes.misógiuas n~o só na comunidade negra, ffias em toda
lheres, reflete o sexismo da comunidade negra e o altó nível de tensãó nas
a socied~de americana. Na verdade, um aspecto indesejável da popularidade do mp
pode eMar no fato de expressar em reh~:1io à mulher atitudes negativas que reprodu-
zem as ·.ttíttldes dos grupos não-negro-s que são incapazes de expressar abertamente
I
• "Sou! sister• e "sou! brother" servem pJra indicar joveõs da mçJ negm (feminino no esse sexismo agressivo.
primeiro, masallino D.ó- segundo); uma ~SOtll soldier" seria wna militante (soldado) ne· t.f4 Uma mesa redonda sobre o mp, promovida pela Essence (setembro de 1992: 83
gra. (N.l) ss.), discutiu a questão e concluiu, nas palal'ras de Q'fip:"Os homens negros e as mu·
Jheres negros precis.'lram aprender a trabaU1ar juntos'" (!20). Pottanto o rap, embora
•• "Matador de "tira.s" (N.T.).
tenha atitude$ indubitá\·eis de supremacia ma~uHna e ostente um sexismo clamoroso,
••• O senti.do original de"bitch" é dc"cade!a". É empregado para expressar diver;;as for- também pro1)iciou um debarC em tomo de~ses fenômenos n~ comunidade negra e na
mas de insulto ~ mulher. 'H o" é uma cormptcla de "whore", prostituta. (N.T.) sociedade em geral.

234 235
sos e deteriorados dos Estados Unidos. A vida no gueto é violenta, e os 'rap- Também é hora de fazer algo, hora de se instrLJ#" sobre o que e~tâ
pers insistem em dizç:r que a música que· fazem e a linguagem que üsam acontecendo, hora f:le pensar e atuar. ''Nào acredite em propaganda!", grita
simp!Csmente expressam a expCriênda dos guetos, sem ·enfeites e ~na sua o Public Enemy, e o rap ataca. sistematicamente a cu1tum da núdia,
cara". Na verdade, há muitas vezes uma idéia de centro do rap, e os grupos enquanto c'ontribui para o desenvolvimento de uma cultura alternativa. Na
Ice-Te Ice Cube, por exemplo, situam o centro-sul de LosAngetes como lo- verdade, de certo m'odo o raP encama o que Herbert Marcuse (1964) des-
cal de sua expressão musicaL Os vídeos de rap muitas vezes se passam em crevia corho "a grande recuSa", recusa de submeter-se à dominação e à
guetos urbanos com algumas incursões em espaços p·Liblicos mais familia- opressão. O "!·ãp freqüentemente fala de grupos que estão. fazendo algo,
res e simbólicos como Los Angeles ou Nova York. . assim como de heróis e tradições negras radicais. do passíido recente. O Pu-
Chuck D, do Public EÕ.emy, descreveu o rdp como a CNN da· comu- . blic Enemy c outrOS grupos de_ rap referem-se Cb~eqÚência a Malcolm
nidade negra, sua fonte de notícias, pois trata do que está ràlando na " X, aos Panteras _Negras, a R. Rap Brown e a outros integrantes da tradição
comunidade, do que sua gente está sehtindo e pensando, e o que está à negra radical, e eles mesmos expressam as críticas radiéais dessa tradição. à
vista. Na verdad~, os álbuns de grupos como Public Enemy, Ice~T, Ice Cube opressão racial,_bem como a.recusa a submeter-se à dominação. O Public
e outros previram estranhamente as sublevações reais de los Angeles em Enemy apre$eJ:lt'~-se com roupas quase militares e, assim como os Panteras
maio de 1992,quando os policiais que surraram Rodney King foram absol- Negras, têfll~ê'í:iS ''ministros" da informação, úa educação e da defesa, além
vidos por um júri composto por brmicos de classe média da Califórnia da "técitica de assalto deles para produzir os sons eletrônicos, usando me-
H

(apesar de um videoteipe que mostrava com detalhes vívidos a violência táfoms militares e revolucionárias para se autodescrcverem.
excessiva utilizada para "deter" King)_••s Há constantes referências - em ge- lhmbém é Jwra do apocalipse para o povo 'negro,' hora de fuzer-algu-
ral muito depreciativas- a políticos norte-americanos, como George Bush ma coisa ou pa~ar caro. Sistcr Souljah canta ~solução final, a escravidão
ou BiU Clinton, ou a altos funcionários, como o ex-chefe de polícia de Los está de volta", dizendo que o presidente acabou de anunciar que ele, ó vi-
Angeles, Darryl Gatcs. ce-presidente Dukc e o Congresso declararam a volta da escravidão
· Portanto, o rap exptessa um_ senso bem característico de lugar e· porque o negro não progrediu tecnologicamente, seus resultados escola-
tempo. Os rappers freqüentemente esdarecem de onde estão falando e a res estão em queda, ele depende da previdência social e tem filhos dt;- 'j
data da realização do álbum ("Ice-T, 1991, seu sacana, você devia ter me ma- mais, etc. Em sua visão apocalíptica, o gov~rno fascista ordenOu que todos
tado no ano passado"). Estão sempre perguntando "Que horas são?", c res- os negros se apresentem em determinados campos. Ice Cube se autodefi-
pondendo;" Hora de acordar!"Spike Lee,como vimos, usava constantemen- ne como "Amérikkka's MostWantcdn ,"usando o código fascista "Amerika"
te a expressão "Acordem!", quasé como um refrão emblemático de seús fil- para designar os Estados Unidos, marcado por trêS ks, que significam Ku
mes. No entanto, estes não deixavam cJaro quem devia acordar p;u-a fazer Klux Kla'h; ele e vários outros rappers freqüentemente evoCam quadros
o quê. O rap (lá uma pista. Fala com clareza e dá algumas boas dicas sobre de uma América fascista, no presente c n~ futuro.
"o que precisa ser feito". Conta que a hora é de conflitos entre raças, sexos Outros rappei'S também projetam um futuro apocalíptico, em que a
e classes. Hora de fogo, fogo agora e .outf!! vez, hora de violência e explo- violência se volta contra o negro. Na verdade, para muitos mppers, o apoca- ')
são urbana. Hora de molhar o biscoito, do sexo desenfreado, de doenças se- lipse é já. Muitos negros acreditam que o mv e aAIDS são fruto de uma cons-
xuais, de HIV e AIDS, das drogas, do crime,.das gangues. HOra violenta, hOI.\1 piração do govemo para matar os ncWos, que as· drogas são incentivadas e
de muitas vítimas, sobretudo de quem é homem, jovem, negro. permitidas pelo bFúVemo para dç::struir a comunidade e a juv~ntude nep, e
que a estruti.Jr-.t de poder não vê mais utilidade Par:<' o negro numa socieda-
de tt:cnológica e quer exterminá-lo. E estão t'lmbém cientes de que os negros
145 John Fiske nos lembra que.quatro meses antes do caso Rodney King, outro suspei-
to negro, Tracy Mayberry, morreu em conseqüência de esp11ncamento por parte da po-
estão se matando em números recordes, e que a violência ameaça a prôpria
lícia, mas esse caso, como muitos outros semelhantes, passou quase em brancas nuvens existência da comunidade negra. A pergunta entãO é: O que pode ser feito?
porque n.'io foi documen.tido pel; cultlm'l da mídia (Fi~ke.l993: 227 s.). Fiske tem um Nessa situação apocalíptica,, ápenas soluções e políticas radicais têm
excelente l'Cgistro d:1 rádio BlaCk Llberatiop. e de outras for_mas de resistência da cultu- sentido. Enquanto Spike Lce é uma voz do nacionalismo, da identidade e do
ra contemporânea afro;arnericana, mas. curiosamente, ignon o mp e outras formas de orgulho do negro, grande parte.do rapé expressão do radicalismo na causa
expressão .::ultural do negro, .::orno o cinema e a literntura. Na verdade,~ obm recente
de Fiske marca uma mudança: de debt:a de se preocupar com textos dentro do ãmbito
tl6 _, estudos culturnis e passa pam a cu!tu~t do dia-a -<fia. • ·o maís procurado da Amerikkka". (N.T.)

236 237

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,,
negra. Como n~tamos, há .freqücritt"s referências a ícones da tradição revolu- Alguns 1Ytps defendem abe"rtamente- a. revolução violenta, enquanto
cionária negra, com o uso do diScurso político radical do~ anos 1960. No en- Lce advoga refOrmas liberais. Os vldeos dO Public Enemy apresentam
~to, há também forte componente de "nacionalismo e de política identitá- flashes da opressão e da Juta· do. negro e. depois flash"es da mensagem-
ria, o que liga o rap a Spike Lee. ,;.:; Na verda~, são freqüentes as rcferênci~ . "Ori:de estão os revolucionários? Acabem com isso!" Mas há outra linha no
positivas a Lee no mp."Bum Hollywood Burn!";~·do !:'ublic Enemy (excmpb- rap quê enfatiza a urgência da m(;ra sobrevivência, como ·quando Grand-
ficado num vídéo vigoroso), elogia os filmes"de Spike Lee, contrapostos ao master Flash afirma no seu s"ucesso de 19.82, "The Message":
tratanlento estereotipado ou negligente que Hollywood dispensa aos negros. " ""'~· "
Lee, evidentemente, promoveu o rap "Fight the Power", do Public Enemy, em Don't push me cuz, l'm dose to the edge,,,-
. . ~.. c.,, ..,..
Faça a coisa certa. Ice Cube, por sua vez, em uma de suas canções usou a la- l'm trying not to lose m;• head. ~
dainha de xingamentos racistas profer!dos pelos italianos no mesmo ftlme, It's lt!ee a selvà somettmes, it makes me wonder
para lembrar aos negros o que os brancos reálmente pensam deles. E inc,uiu how I keep fivm going under. ..
imagens de Spike Lee na sua .versão em videoclipe de "Original G;mgster". , broke1~ glas.~ everywhere,
Assim, tanto o rap quanto Spike Lee tendem para uma forn1a de polí- ,j;~?P..Í~ j;tssing o~ thc stafr,
tica iderititária, embora haja algumft discussão quanto aos/pacit]letros ~e ydJf~fi-~w thr:yfust don'icare.
identidade. O Ice-T, por exemplo, tem uma canção em que equipara todos I can't take the smell,
os não-brancos e oprimidos aos "niggers", identificando mexicanos, corea- I er:rn 't take the 11oise.
nos c outros como oprimidos por uma sociedade racista branca. O Ice Got no IÍ!oney to ,;.,ove out,
Cube e" outros r:CtfJpers, porém, às vezes fazem referências depreciativas I guess J got no choice. *
aos cot·eanos e a outras minorias raciais, limitando a orgulhosa in"sígnia
"nigger" ao negro afro-americano como- grupo privilegiado. E o X-Klan e- Nos últimos anos, houve .debates acalorados dentro da comJ.lllidade
outros grupos de rap defendem um nacionalismo negro afrocêntrico que negra e d<;t mídia dominante após o suposto louvor à formação de gangueS,
priVilegie as visões de uma nação negra. à violência e às drogas por parte dos rappers. Na verdade, no rqp há casos
Na verdade; grande pàrte do rap afirma uma linha política radical, que em que essas coiSas são elogiadas ou .consideradas naturais, mas os princi-
vai de .Malcolm X aos Pantems Negras, passando por LÚuis .Farrakan e Eli- pais artistas geralmente têm uma poSição mais sutil.Já em "1987, os grupoS
jah Muhammad. '47 O Pu~c Enemy e outros rappers muitas vezes reprodu- rap se organizaram num movimento pelo fup da violência,. que produziu
zem discursos de Malcolm X e tazem referência a outros grupos ou figuras uma pedai-ação coletiVa, com "música e vídeo, intitulada ~self-Destmction"
radicais da cauSa negra. O rce-T decanta abertamente a i-evolução negra, c, [AutodeStruição] (George, 1988). Os grupos Public Enerily, Icc-T c outros fi-
airida que às vezes celebre os prazeres do materialismo consumista (por zeram uma crítica acerba da droga como vencÍlo que escraviza e destrói· os
exemplo, sua casa, seu carro,suas posses, etc.), também ataca com freqüê~­ negros. Quando esses e outros grupos adotàm palavras como "gangsta" e me-
Ci.'l o capitalismo como sistema econômico, enquanto Spike Lee, como· vt- tiforas referentes à fomtação de gangues, muitas vezes estão se referindo à
mos, tende a apoiar uma forma de capitalismo consumista em que os ne- seu próprio grupo, ao s·eu "bando?'. Como notamos, há um forte componen-
gros também têm seu quinhão.Além disso, Chuck D,do Public Enemy, vê o te de identificação grup<:\1 no rap, ohde é possível encontrar a própria iden-
sistema conio uma estrutura de opressão, e muitos rappers. pedem o fim da tidade dentro de comunidades mais amplas. Embora tal elogio do ethos gru-
opressão e deferide.m mudanças políticas radicais. pal e a adoção de metáforas referentes à formação de gangues possam res-
paldar a existência de gangues de rua, também inc~ntiva for~as mais benig•
146 Para um <:$tudo esclarecedor das ressonâncias do radicalismo negro dos anos 1960 nas de comunidade que servem de contrapartida pOsitiva ao individualismo
e do nacionalismo negro afroçêntrico no mp contemporãneo, v:cr Dccker 199'3.
~

""Queitnem Ho!l}w<iod, que!mem"(N.T.)


' N~o me enche o saco, cam, tô quase explodindo,! tentando não perder a cabeça./ Às
147 o Pllblic Enemy e outros mppm'S o.-ptessam-se freqüentemente de maneira posi- ve2es isso parece uma selva,/ e eu me pergunto como é que não afundo .. ./ vidro que-
tiva em reL1ção à Nation of Islam, c o I<:;ç Cube surpreendeu alglmS seguidores ao apa-
recer como partidário do movim<.:nto em seu álbum Deatb Ccrttjtcate, de·1991, que
.
brado pm todo lado 1 gente mijando' na escada,/ cê sabe que eles n<:rn ligam./, Não~
agüento o cheiro./ não agüento o banl.!ho./Tô s<:m dinheiro pra mudar,/ acho que na o
estudaremos adiante. tenho escolha.

238 ' 239


narcisista, endêmlco na sociedade americana -contemporânea. Nigga·'s keep kitllng, illtn'and tbrilltng
Na verdade, há um ingrediente fortemente moralista e didático em l'lo time, iligga's still chillin'
multes grupos de rap. Ouvindo-se atentamente o 01-Iginal Gangster do Ntgga's still drinking, booz{ng and sttnking
Ice-T, notà.-se a condenaç.ão moralista dos que se dedicam à vida do crllne St Ides'·'" btg banktng arul nigga's not thin~ing
e das drogas, aSsim como dos negros qÍ.te se vendem e se afastam de seu :''ligga:ç still smoking, gaggtng and choklng
próprio .povo. Uma Canção chamada "Ed" descreve a vida de·um camaradi- Counting permies and bi'Oke
nha que bebia muito, mexia com drogas, jogava e queimava todo o dinhei- . And 'Mil! ntgga's joking
ro com mulheres. Nfgga's still fucktng, bumplng and"sucki1~g .
Family gone·broken,Jathet out buggin' ie.~
One ntght he got drunk Ask (l nigga something he replies notbtng
And started drfvill real fast. Grtibs bis balls and kecps walking
... Ed'sdead* Ntgga's grow bolder, wtld wtt[.J no order
Timr! g'rows shorteJ; fath(JI' raped the daughter
"Midnight" [Meia-noite], de Ice-T, fala das aventuras noturnas dC uma -~~átp and left ber, though be shouldn've kept h€1'
gangue, com violência e polícia; embora 9 personagem do rap tenha volta- Ret!CI'end sbould'ue blessed beJ; fnstead he trlpped aud slept ber
do pam casa são e salvo, caiu. no só no e às seis da manhã a polícia lhe ar- Nigga's sink deeper
rombava a porta- repisando-se a mensagem de que a vida de"gangsta"não Nigga's .sita sittfrt ', eating and shittin'
~c

compensa. "House" descreve um casal que mora numa casa daquela rua; Roots cut off, forgotten a11d jorgetting
ambos bebem e maltratam o filho, e Ice-T diz aos vizinhos· que eles deve- '
Wantingfor plcnty ain't got at!}: needing for many .
riam "fazer de conta que se importam!~ e "tomar uma atitude, chamar a po- I wonder whe11 we gonna get up, get serlous
lícia". "Escape From the Kilting Fields" [Fuga dos c.ampos de extermínio], Nigga's got.to do hfmer
de Ice-1: pinta um retrato pungente da vida violenta dos guetos, com o coro Ntkga's too lazy, confused and cmzy
repetindo: "Você precisa cair fora! PreciSa cair fora!" "Body Count" descre-· Havtng more babtes, no ansu;ers foi' the maybes
ve a violência do gueto e apela desesperadamente para a necessidade de Gave up too e~ mtnds too weak, see
enfrentar os problemas e encontrar soluções, Nlgga's gotta do better.'"(!)
Embora o Ice-T·se apresente com-umaper..sona machista e às vezes
violenta, tambéffi ataca constantemente o uso de drogas e mostra as conse-
qüências da-violência; por isso está errado afirmar que todo o rap celebra
tais coisas, se algurls dÔs rappers. mais poputares não o fazem. Em "Keep
your head up" ,o 2 Pac aconselha os "itm.1.os»a tratarem suas mulheres com
mais respeito, dizendo que homem que engravida mulher e dá nó pé não 148 St. Ides t; uma nurca de cerveja de alto teor alcoólico que Ice Cube promoveu
é "homem de verdade". O Ice Cube adVerte para os perigos das d9enças se- numa propaganda, pelo que f? i criticado por a!guma.s pessoas.
xualmente trapsmissíveis; assim como Sister Souljah e outras tt;ppers.Além 149 Decker critic~ acerb~mente Sister Souljah por ter reiterado as atitudes patriarcais
disso, Sister Souljah, tolamente condenada· por Bill Clinton, aconselha com do Public Enemf'quando cantou cQm o gmpo; isso implicaria que ela não tem '\oisão fe.
paixão o seu povo a deixar de comportar-::;e de modo destrutivo e amoraL nünista (Decker, 1993:67 ss., 77), ao passo que a canção cit.1.da fuz uma critica bem da"
Numa canção, "Nigga's Gotta," ela diz: ra ao comportamento do homem negi'o de Um porlto de vist.'t feminista.
.• O negro continua morrendo;a mãe sempre chorando/Pergunto pot quê/Por que não
Ntgga's keep dytng; mother keep e~ytng abrimos os olhos. Porque/o negro continua· matando, ferrando os outros, assustan·
I ask why ·\ do.(Eie nem liga, conlinua arai'tndo./0 negro aJnda ffit.'Í bebendo, enchendo a cara e
fedendo./ A St.ldes é uma mina, e o negro t:í. bobeando./0 negro continua fumando, se
Why we don't open our eyes 'cau.<;e
entupindo c engasgando,/Contando os vinténs, numa dureza danada,/JI..Ias assim
mesmo tá brincando./ o" negro ain.<.fu tá trepam,lo, tr:msn.ndo·e cl}upando/A família se
• Uma noite ficou bêbado/E saiu em alta velocidade .. / Ed está morto. (N.T.) desfez, o pai tá na m~ se dmga.ndo.!Pergutit.1 alguma coisa para e!e,, ele diz coisa

240 ,24·1'
.li
I
Todos os motivos até agora estudados estão bem cv_idcntes em Death "Que diabo de rei?", ab que o policial responde:"Rodney King! "A1ar'tin ll;. '
ther King! E todos os outros reis da África!'', e -a seguir atira. As referê~cias ·~
Certificate (1991), de Ice Cube. O texto é uma colagem modernista bem
complexa de sons e vozes dos nossos dias, nUma condenação à'socicdade a ~King" dizCm respeito tanto à viÓiência dos brancos contra os líderes ne- t
que oferece ao negro um rápido atestado de óbito juntamente com. a certi- gfos e os negros comuns como também à violência dos bran~ós contra os '
dão d<:: nasCimento. Quando se abre o álbum encontra-se uma menção a um negros na África, inclusive os reis, transcodificàndo o popular discurso
~est.1.do de emergência", e Ice Cube diz que o ~Lado da Morte" tem uma "ima- naciorialista negro segundo o qual os negros. já constituíram uma nação de
gem em espelho de onde estamos agora" enquanto o "Lado da Vida" dá "uma reis e príncipes.
visão do lugar aonde precisqmos ir' para passar nosso atestado de óbito"- sig· O itbum é muito moralista e politicame.nte rad:lcitl; diz aos~negros que
nificando que a revolução negra eliminará a supremacia do branco. Na CO!l- "larguem a bebida" e está sempre atacando oik1WOS Vêudidos e os enqua-
tracapa se lê que "o melhor lugar para um jovem negro é a Nation oflslam", drados, como o Tio Tomás. Um rap, '~'look V:'ho's'Kí.rrning", adverte sobre as
e uma foto mostra Ice Cube lendo o jornal da organização com a seguinte doenças venéreas, e no álbum todo aconselha-se a fazer sexo seguro. Embora
manchete "União ou morte", enquanto aiguns jovens negros bem vestidos e antes o Ice Cube se recusasse a censurar o uso da droga, agora, talvez
uniformizados, pertencentes à Nation..of Islam, são vistos no segundo plano. seguindq.~al!ihha da Nation of Islam, ataca o uso da droga na comunidade e
O Lado da Morte começa com uma colagem musical do funeral de avisa às~s de que· o que está em jogo é a própria sobrevivência deles.
um jovem negro e rapidamente passa para uma advertência desafiadora • Vários outros mps do Lado da: Morte descrevem a morte dos negros jo-
do Ice Cube, avisando que ninguém deve perse.Q:ui-lo porque ele é "o nego ·vens, e muitos expressam a raiva do negro pelas condições opressivas do gue-
errado pm ser ferrado".As primeiras estrofes advertem r<J.Uem·queira "fer- · to. O lado da,j;ida se inicia com sons de um nascimento e passa a "1 Wanna
t-á-lo" e ameaça em termos violentos, semeados de obscenidades, quem Kill Sam", em lfue o lce Cube começa com uma feroz ameaça de matar Sam
pen~e em fazer isso.A seguir, vangloria-se dizendo que seu grupo de rapé '~porque a pófcaria que .ele fez não tem o menqr cabimento". Na segunda es-
o número 1 do pedaço, nqma típica gabarolice dos rappers, enraizando trofe, descreve-se o esmpro de uma negra e, a seguir, a capttrra e a pris..1.o num
sua música no centro-sul de Los Angeles e notando que: "Em 91, o Ice lugar onde eram forçados a "trabalhar o dia imeiro"- provavelmente uma co-
Cube ficou maior e mais forte". A última esirofe anuncia que é hora de lÔnia: de escravos, embora a descrição pudesse ser de negros atirados nas prl-
"~agar", e a letm ameaça o chefe de po_lída de los Anijeles, Dar_:yl. Gates, sões.e nas colônias agricolas de hoje. O resultado foi a dissolução das familias
dtzendo que, se ele fizer algo contra o Ice Cube, "vai. estar atentando negras e a destruição da força de vontade do negro, até que os negros se ren-
contra um Zulu". Com uma bravata m;tchista típica de certas correntes do deram e suplicaram piedade e alívio ao Deus branco.
rap, o Ice Cube diz a Gates que vai "quebrar seu espinhaço" e "chutar Sua· Voltando ao presente, o Ice Cube queb;:a-se de que hoje o governo,
bunda até sentir cheiro de merda", conduindo:~Meta-se com Ice Cube e ameritano quer cobrar impostos dele,"execut.1r os negros insubmissos, dis-
você vai se ferrar rapidinho, seu porco!" seminar as drogas e ·o HIV e levar ·o povo de cor a l,utar nas guerras dele. ó
A bravata -e a violência· são compfeensívds apenas no contexto das rap termina dizendo que o Ice Cube quer matar Sam "porque ele não é
tensas relações entre os negros e a polícia de Los Angeles, cujo ex-chefe, meu tio porra nenhuma", indicando que os negros são estrangeiros nos Es-
Darryl Gates, se tr.ansformou em símbolo do racismo bfanco e da -\.iolên- tados Unidos. Nesse rap, a ira do Ice Cube é extravasáda; as.palavras voam
cia contra os negros. O Ice Cube está avisando que hav(;"!rá uma cobrança, como balas, e o rancor e a raiva são evidentes em cada verso.
e expressa a raiva do negro contra a ·policia de Los AngelcS. Em outrb rap, Assumindo ares mais meigos e cuidadoso com a juventúde negra em_
um policial berra "Vamos tratá-lo como um rei" e o Ice Cul>e pergunta: "Doing Dumb Shit", o Ice Cube conta que puxava o cabelo das meninas na
e~cola primária, ria da cara do \'alentã.o da escóla, bancava o palliaço da
classe, fazia brincadeiras idiotas, atirJ.va com a espingardinha de chumbo,
nenhuma,/Cor;a o saco e vai andando./ O negro tã mais metido e brabo, mas não sabe
bem com quem,/0 tempo tá açabando. O pai esiupm a fi!ha,/D:í no pé e de~1 eb, em batia nas portas e saía correndo, brincava de esconde-esconde,~'até que le~
vez de <.:uidar dela/O pastor não abençoa: dá uma cantada e come ela./0 negro comi· vei f!mas palmadas na bunda quando tinha dez anos, porque estava fazen- -._
nua se afundando./ O negro contilllla sentando, comendo e cagnndo,i'Se~ ~ízes, eS.. do besteiras". Quando era adolescente, apaixonou-se, Começou a fazer
queddo e esquecendo,/Qucr tudo e· não tem n~adà, tatua geme precisada.;Pergunto sexo, pôs a camisinha do jeito errado,e acordou certa manhã com um cáso
quando a g<:-nte se le~11.nta e fica sério./O·negro tem de melhorar./ o negro tá vagal,con· j:p:ave de gonorréia porque estava."fazCndo besteira". Quando já era mais ve-
fuso e piradÇJJütda dia mais fiJhos e menos respostas./Faz tempo largou mào, não tá
mai5 nem aí. O!ha .. ./0 negro tem de mdhora•.(N.T.)
lho, ganhou um Volbwagen, entrou em 1'"<!-Chas, conviveu com ~os OGs (ori-

242 243_
ginal gangsters), ficou -conhecendo a. rua e arranjou problemas "fazendo Os ataques violentos e amargos do Ice Cube ao seu anti~o gnti§o e aos
besteiras"- mas sobreviveu. traid_ores negros indicam as profundas divisões que há na comunidade mp
Hoje, quando vê um negro fai:endo -as mesmas besteiras, passan~O e as tremendas diferenças eqtre os grupos. 'Na verdade, há uma firancte
pelos mesmos estágiós de cre_scimento, mas morrendo cedo, o Ice Ct1be'se distinção entre os rappers e os praticantes de rock, do soul ou da música
sente insultado p-ela cultura que os está matando, mas ao mesmo i:empo avi- popular comercial. Taffibém há diferença entre os grupos centrados nos
sa o jóvem que o ouve, de que hOje "fazer besteira" pode levar à morte\e guet~·s, que incitam a reformas ou à revolução na comtuüdades, e os gru-
que é tempo de começar a criar juí'zo. O rap termina com o refrãO "drunb, pos centrados pa cult\tra africaná., que incitam à criaç~o de uma nação afri-
dumb,_ dumb" [idiota], e seu corolário é que os ~egros jovens devem ficar cana separada. Os níveis de raqicalismo difere~ no rqf!: muitas vezes se de-
inteligentes e parar de embarcar em cois.'lS idiotas como gangues, drogas, ... fine mais em apresentações ao vivo, que teit':!-SPl a ser~ mais cruas e extre-
o crime c a violência, que estão matando os jovens negros em qu:Íntidade madas; se'us discos às vezes não são tocados ná'"'fttdio por serem radicais, ao
iinpressionante" .'"' contrário dos vídeos de rock, que tendem a sà mais pacíficos por causa da
. . '
Em "Us", o kc Cube começa com o sonho de riqueza c consumismo censura- da teievisão. m
de um menino negro e passa a condenar os negros que se recusam a inves- T<J~m há muitas outras diferenças entre os vários grupos em
tir na sua comunidade. Reitera as mensag~ns de que ~a culpa é só nossa~,· ternlo~~€;\tsti!o, iUeo~ogi.a ~olítica e personalid~des. Mas a conw_etição
concluindo com a advertência de que "tá todo o mundo se lixando pra ..". · entre os grupos tambem mdtca o costume de bnncar de dcsrespett:U os
(c corta abruptamente antes de dizer "nós~). P01tanto, a mensagem é de oponentes, com base em jogos e tradições j~maicanas e em ou_t~s JOgos
unidade,auto-súficiência e independência, não se-devendo esperar nada da afro-americ~os, e essa talvez seja uma funçao da. fOrte compettçao entre
benevolência dos br.1.ncos ou das esmolas dü governo. Esse realismo cru os grupos.Thffibém há um esforço entre os vários grupos para ser o mellior,
penneia o rap, e pelo menos uma de suas correntes coúdena moralistica. embora os 1'-ttppers muitas vezes também se reflram aos rivais em termos
menk toda~ as práticas que mantenham os negros divididoS, oprimidos, vi- .positivos: o Ice-T dedica todo um mp a faz~:;r referência a outros mppers e
cia,dos e subordinados. grupos que são tocados. No começo de 1994, muitos dos rap$ mais popu-
Além disso, enfatiza-se a necessidade de ttaballiar para mudar a lares tocados na Bbl (Biack Entertainment Television) faziam referênda.ao
comunidade. Uma gravação Ut: rádio ~ubreposta indjca qué o próprío'Ice Public Enemy, que se tornara Um ícone do rap político. - -,
Cube ficou na sua comunidade, investe nela e tenta trabalhar pela transfor- Na verdade, há agora uma tradição coerente do mp com seus tdolos,
mação. Na verdade, em "Vaseline" ataca acerbamente oS membros de seu hierarquias, tiPologias, legendas e vilões. O mp tem uma língua e uma gíria
antigo grupo N.WÀ. por terem d~ixado ~ comunidade para cOnviver com particulares, corri coisas coriio JJomies ou homeboys (os cbapin!Jas do
os bmncos, traindo o radicalismo negro (menos palatável é seu ataque ho- bait1'o), crews e posses (o grupo de rap), um_jargão técnico musical e y~­
mofóbico ao empresário judeu,· dizendo que. "Easy E virou bkha" e que seu rias expressões que, sendo originalmente nega~ivas,_ adquire~ sentid~ ~o~t­
antigo grupo agora está "sendo ferrado sem vaselina"). tivo com freqüentes obscenidades rituais e pqorattvos destma.dos a mtCla·
dos. Termos como "gang·• muitas vezes funcionam metaforicamente par.t
' Singleton,em que lc_e Cube atua, começa com a seguinte
'150 Boyz N tfJe Hoo(/, clejohn descrever a equipe dO grupo rap, e termos como "bad" passam a significar
esmtística:"Um em cada 21 homens negros americanos morrerá assassinado.A maioria "legal" ou "bom", com uma inversão das conotações costumeiras. Uma for-
vai morrer nas mãos de outro 'hom~;:m n~;:gro" .AJgu= ou~ras estatísticas: ma lingüística tão complexa exige aprendizado e interpretação dos muitos
Para os homens negms entre i8'e 29 anos, o suicídio é a prindf)at causa de cstrates de significado e significaçi,lo.
mort~;:. {... )
Entre 1973 e !986, a renda real"dos homens negros de 18 ·a 29 anos Em certo sentido, é surpreendente· ver que essa forma musical se
caiu 31% enquanto a porçentagem de jovens negrQ.s do s=o masculino no mer- manteve popular por tantO tempO, sobrevivendo com grande popularida-
cado de trabaUw despencou 20%. O número de homens negros alijados do mer·
. de durante pelo menos quinze a1_1os. Embora tenha surgido nos anos 1970,
<.ado de trabalho dobrou, passando de l3 para 25%. Em 1989, quase 32% dcis ho-
mens negros entre 16 e 19 anos estavmn desempregadOt!; entre os homens bran:
cos."o desemprego era de 16%. E enqumuo os negros constituem apenas 12% da
população dos Estados Unidos, perfazem 48% da população carcerária.(... ) Ape-. I 51 o Public Enemy lançou oom 1993 uma coleção de seus mqiores "stlpressos"("Grea·
nas 14% dos homens branco~ que moram em grandes áreas meu'Üpolitan~s já test Misses"), aludindo ao fato de geralmente não. serem tocados em rádio, a despeito
foram deHdos, mas a porcentagem de homens negros é de. 51%. de ~ua grande popularidade.Assim também, seus vigorosos videodipes, como-"Shut it
Down", raramente são aptesent~dos na tekvisão comercia\.
{Dyson. 1993: 209)

2.44 245
"o rap só chegou às paradas de sucesso e ao conhecimento do público no res ou fios narrativOs bem convencionais, com freqüentes desf~chos
fim da década, explodindo nos anos ·1980. Parece est~ sendo ainda mais (embora o Public Enen"fj' muitaS vezes trãbalhe com formas mais Complexas).
popular nos anos 1990, expressando_ obviamente experiê.ndas de alien~ç:io No entanto, também há características pós-modernas no rap, como a
e raiva para amplos segmentos da juventude e de negros urbanos.Th.mbém apropriação com reciclagem c a colagem de formas anttríores,
foi ficando cada vez miis controverso nos últimos anos, como indicaremos
. na próxima parte, depois de mostrarmos que ele não Pode e não deve ser a místura eclética de estilos, a adesão entusiástica à nova tecnologia e ã cui-
descrito como "pós-moderno". tura deliussa, o desafio às noções modernistas dC autonor\:lia estética e ptlre-.
Houston Baker descreve constantemente o mp como"pós-moderno" za artística e a. ênfase no localizado e temporal, em o{mSição ao supostamen-
em vü1ude de sua "colagem não autoritária ou do arquivaÓJento de sons· e te universal c .eterno. '{:·':;:;tç ·.·,,.
estilos que dénuncia uni -!llbridismo desConstrutivo.A linearidade e a pro- · · (Shusrerman, 1991:614)
gressão levam a uma sincr'?niddade vertiginosa" (Baker, 1993b: 89). O râp
realmente faz uma colagem de sons ContemporJneos e um pasticho de·for- Shustep!lan demonstra a presença dessas características da estética
~nas anterion;s. Porém essa colagem é às vezes desconstnttiva (como pó_s-m~dertfa ·._no rajJ, e nossa única discordância está no· fato de ele
quando uma canção romântica é misturada a tun contexto Violento que c;n- comcçaf.1filf-'i":lefinição de rap afirmando que este se caracteriza por uma
fraquece seu ethos), mas também pode ser ·positiva, como nas fteqücntes "aprôpriação com reciclagem, e não por uma criação originária única"
homenagens a }ames Brown e a outros clássicos do rl?ythm and blues, óu (ibid.:614).
ao Public Enemy por partes dos jovens rappers atuais, além da colagem ·de
Malco!m X. De qualquer modo, S<.-11do positiva ou negativa, a cohtgem ten-
de a recontextualizar o rap em novas configur'açõcs de significação;
portanto, opondo-se aos textos pós-modernistas unidimensionais que "dei-·
.
Ao contrâ.._!~o, temos argumentado que o mp muitas vezes é originalís-
simo, que expri:::ssa uma voz distintiva e forte, que freqUentemente
.
tem
mensagens distintas e estmturns narrativas coerentes, que é fértil em signi-
ficados, exige um público ativo e, nesses sentidos, tem as principais carac-
xam de fazer sentido", resistindo ao significado e à interpretação, o mp é, terísticas do modernismo. Conduiríamos, pois, que o rap está entre o mo-
muitas vezes, uma máquina de significados que-exige interpretação, multi- derno e o pós-moderno, e que utiliza tanto uina estética modernista quan-
plica sentidos, significações e mensagens políticas. ·· to pós-modernista. A descrição dessas categorias estéticas, evidentemente,
No sentido com que estamos usando o termo "pós-modertíismon é controversa, mas diríamos que o ráp não é acipla de tudo pós-modernis,
(mais ou menos o de Jameson, 1991), o rap é moderrústa. É uma forma ex- ta, ou melhor, não é uma forma que se posSa definir fundamentalmente
tremamente expressiva, e os rapper.r;têm vozes, estilos e mensagens distin- pelo uso de uma estética pós-moderna por alguns mppers.
tas, muitas vezes l'elacionadas com a política moderna. Em oposição- aos S~m, dúvida, trata-se dt Uma forma lúbrida, que cori!bina tradições
textos pós-modernos fragmentários, desconexos, planos e unidimensio- afro-americana<> com estilo contemporâneo, mistw-ando voz humana c tcc-
nais, que só se referem a si ·m.esmos ou carecem de profundidade de signifi- riologia, sons existentes e fragmentos sonoros. da núdia, müsica e ruído dí's-
cado, a colagem da maioria dos raps muifas vezes representa uma declara- sonantc. Mas a colagem e o hibridismo, em si, são canlctcristicas de movi-
ção política, e não fragmentos sem sentido ou com sentido mininia!iSta. o mentos modernistas como o cubismo, o sunealismo, o dadaísmo e o futu-
rap freqüenteniente se identifica com determinada política, como o radica- rismo. O mais importante, porém, é que, em vez de desconstruir identida-
lismo negro dos anos 1960 ou o afrocentrismo, e não" com o esvaziamento des, à maneira pós-modernist:l, o mp está criando identidades. Os pi'óprios
político, como em alguns textos pós-modernos. m - rappe1-s firmam suas identidades por meio da música que fazem, e seu pú-
As gravações de um Public Enemy, Um lce-T, unl Ice Cube·ou uma blico identifica-se-com a cultura contestadora e com as atitudes(: posturas
Sister Souljah consubstanciam afirmações coerentes e, como notamos, 0 rap criticas do rap, produzindo assim identidades contestadoras. Na verdade, os
é muitas vezes bastante intertextual, produzindo uma coletividade c có<;ligos rappers são os «intelectuais orgânicos"'dc Gramsci, capazes de expressar as
car.u::teristicos, e não a .fragmentação pós-mciderna extrema. Na verdade, cei:'- . experiênciaS de opressão de sua comunidade e de detectar ~atÍsas e possí-
tos rappers como Ice Cube c Ice-T freqüentemente expõem histórias !inca- veis soluções para problemas expressos na música. O que nos leva à can-
dente questão do.s efeitos do mp c da constituição de formas cultufais·
152 Sem dú-...ida, há um pós-modernismo de resistência assim corno um pós-modcrnis· · contra-hegemônicas e comunidades alternativas na atualidade.
mo lúdico ou apolítim (\"er Fo~'"!er, 1983).

247
RESISTfcNCIA, CONTRA-HEGENIONL~ E DIA-A-DIA Além diSso, a evocação que nele se faz de questões-·históri~~s e polí-
ticas poderia -ter' efeitos contraditórios. Por u~ lado, é salutar que o rap se
Portanto, o rap constitui uma cultura de resistência contra a suprema- volte para a tradição negra radical e apresente em suas letras e vídeos ima-
cia c a opressão dos brancos.A resistência dos negros não só.assume a for- gens de Malcolm X, dos Panteras Negras, de Martin Luther King c de heróis·
ma de expressão musical e cultural, m~ também formas múltiplas de resis- pollticos negros. Contudo, essa apropriação também tem o efeito de ·trans-
tência no dia-a-dia, através da linguagem, ç!Ü modo de ser, das atitudes e das! forniar personagens e posições históricas complexas e_m imagens, em
· r~lações sociais. A expressão afro-americana através de produções ~ultt~­ ídolos dõ"radicalismo de f:í.dl consumo~ sem substância política reaL A po-
rais é evidente nas formas da cultura da mídia estudadas neste capítulo, lítica do mp pode, pois, contribuir para re,duzir a ':k2_litica a slogans e cli-
mas também se encontra em configurações mais .vanguardistas de- cultura. chês, ajudando a esvaziar a política que tnit~os geriuínos sofrimentos e
No cinema, por exemplo, Tongljes Untied (1989) de Marlon Rlggs traduz a lutas do povo. E..<>sa redução da política a imagem e clichê também ajuda a
experiência dos gays negros, a opressão imposta pela cultura prevaleCente, transformar a política contemporânea numa b~talha de imagens e num tipo
bem como as atitudes contraditórias de Riggs em relitção aos brancos e à de fórmul<;t digeóvel da mídia.
condição de branco. Daughters oj tbe Dust (1991), de julie Dash, conta-a , 1\,a?> .~sim como é erro descartar toda a cultura da mídia por circu1ar
história do negro e a experiência das mullieres do ponto de ·vista de uma na fo~dé mercadoria e poder ser-facilmente cooptada pela cultura con-
mulher negr.t em visita a uma ilha da costa da Geó~ia que outrora foi re- stimista, também o é acreditar que toda a chamada "cultura popular" forta-
fúgio de escravos fugidos, o que a obriga a refletir sobre sua posição na so- lece politicamente o povo por produzir significados, praZeres e identidades
ciedade americana. O fihue também indaga as tensões entre tradição e mo· que de algqW modo o capacite a controlar $Ua própria vida e a resistir à do-
.dernidade na experiência afro-americana. minação. Em especial, é importante ver que mesmo uma forma ostensiva-
O curioso·cm rehição ao rap negro é que justamente as produções '
mente contestadora como o rap pode ser cooptada, mas também pode ra-
mais radicais parecem ser as mais vendidas, embora se calcule que mais da dicalizar-se e provocar comportamento rebelde. A diferença vende, mas a
metade seja comprada por adolescentes br.ancos do sexo masculino. A mú- diferença pode provocar efeitos diferehtes dos da culttJra prevalecente, tal
sica exige rhenos capital que o cinema, com grande retorno, o que possibi- como a produção de identidades c práticas contcstad()ras.
lita produzir e vender rapidamente. O cinema e as formas de cultura·que Na verdade, durante os últimos anos, houve um furioso debate em tor-
<:xigcm mais capital dificultam o acesso dos negros, ainda que, comà noía: no dos efeitos do rap. Quando o N.W.A.Iançou o primeiro disco,"Fuck the
mos, o sucesso dos filmes de Spike Lee ajudou um número de jovens ci- Police", no fundos anos 1980, o FBI escreveu cartas ameaçadores à grava-
neastas negros a intervir na cultura da mídia. dora, e a questão foi amplamente discutida na mídia. Em 1990, houve um
Isso nos leva "à questão da cooptação do rap pela cultura ôe. consu- ver&deiro ataque em massa ao rajJ na mídia, e Tipper Gore escreveu um
mo. Como notamos, os mega-sucesSos do rap muitas vezes são con1>umidos artigo que teve ampla divulgação e foi publicado por vários jornais, em que
por jovens bmncos de classe média, c não está claro que efeitos ele exerce atacava o Ice-T e outros mppers (Washington Post, 8 de janeiro de
sobre esses grupos. Durante o ·ano de 1994, a Mtv anunciou uma publica- 1990). 1' 3 O LosAngeles Times publicou um longo artigo com muitas criti-
ção de mp chamada "Vibe", cujo anúncio transformava o rap num fetiche· cas ao mp (11 de fevereiro de 1990), assim como. vários outros jornais. O
consumista para buppies,yuppies e jovens.em geral. E o tipo de rap toca- Ncwsweek publicou uma longa i.Úvectiva contra a "atitude" do rap (19 de
do na l\-nV, na BETe em Ol.J1f<IS redes de televisão geralmehte é uma· versão março de 1990), e o U S. News and"World Repo1·t (19 de março de 1990)
mais agudada. . também publicou um ataque ao rock e ao rap. Efeito rajJ: quanto mais dis-
Portanto, o rap pode facilmente transformar-se numa merc.idoria feti- ·· cos os n:;ppers vendiam, mais preocupados ficavam os pais, mais a mídia
che e num módo de assimilação. Süas técnicas tainbém têm sido uSadas enl atacava seus excessos, mais crimes e violências lhe eram atribuídos.
propagandas de tênis, carros e até de alimentos (a, campanha (w]rap da
Reynolds). No entallto, todas as mercadorias comercializadas têm (,1ois gu•. 153 "Jiipper Güre,esposa do Senador e depois Vice·Presidente d~~ Esmdos Unidas,Al Gore,
mes,_ou até mais. O mp-mercadoria pode divulgar modos irreverentes de fu! uma ·d"tS fundadoras (com Nanq: Baker, esposa de James Baker, luminar do Partido Re-
agir e pensar, dando força na luta contra o sistema de opressão. Pode fim· publicano e iJ)lj)Ort:!f!te protagonist.""l dos governos Reagan e Busl\), do Parents' Muslc Re-
cionar apenas como uma amenidade e um divertimento, sendo cooptado ~ource únter.A Sra. Gore tomou~ presidente do controverso grupo que "atacava as letràs
de I"OCk e rap, reivindicando um sistema de dassiik:açiio para orientação dos pais. Esse
para finalidades conservadoras. ·
grupo criou uma tremenda agitação na núdia e fui muito at.1cado (ver Grossberg, I992).

248
.
Em 1992, o Ice.:r formou um grupo chamado Body Cóunt, que lançou
T
. .
.
.

classes, raças ·e sexos são por demais explosivqs. É perverso imputar .essat di-
. visões ao rap, que simplesmente chama a, atenção para eles. Numa leitura
um álbum com o rap-título "CÜp KiUer" [Matador de tiras]. Como notamoS,
o presidente George BuSh atacou o Icc.:-1; o Fin escreveu à Warner Brothérs e
diagnóstica, porr::u'tto, vê-se que os.elementos maiS extremos ofensiVos dÕ
dizendo que não tinham gostado da música, c o mesino flieram vários põll- rap são sintomáticos dos reiis problemas quç precisam ser resolvidos, e a
dais e cidadãos, possivelmente mobilizadOs por grupos conservadores. O simples proibição do rap não trará a solução desejada.A maioria dos melho-.
lce:r primeiro concordou em tirar a canção do álbum, 'mas substitúiu-a Por. res grupoS de rap tem consciência dos poderosos efeitos da forma de cultu·
um vigoroso rapa favor da liberdade de expressão. A seguir, pOr razões não ra que praticatn.;--e alguns tentaram usá-la de modo Construtivo, embora haja
totalmente esclarecidas, saiu da Wa_fner Drothers, talvez devido às .Pressões expressões ofensivas óbvias que devem ser·critic~das, analisadas e debatidas.
por maior censura de suas opiniões radicais. Essas questões iam sendo "·e~t­ - Mas é ridíc~lo gastar tanta energia atacandb-~..fanti&ias de viOlência
tiladas na grande imprensa, que continuava o acalorado debate sobre os efei- de um lce Cube, quando a violência de verdade esti'Sendo exercida contra
tos do rap, inte~sificando-se os esforços para censurá-lo e proibi-lo. os membros de sua comunidade. Esse é o problema real, e transformar·um
A partir de então, o efeito mp continuou produzindo grande número mpper em bode expiatório é demagógico e fútil. As expressões culturais
de declarações, em que se dizia que certos atos violentos é criminosos permanecerãd Cnquanto_ os problemas não forem resolvidos. Até então, de-
eram causados por ele, havendo muitos apelos em favor de sua p~oibição veremos 'e~ expressões violentas e ofensivas de rappe1-s que estão tra-
e censut"J.. Em 1993, muita gente da comunidadç negra estava atacando o duzindb exPeriências de uma sociedade violenta e ofensiva:.
rap, c algumas estações de rádio negras concordaram em não tocar o Uma crítica diagnóstica, portanto, estará interessada naquilo que. o
chamado "gangsta rap", que, conforme se dizia, exaltava o sexo, as drogaS, mp significa, naq,t,~ilo de que ele é sintoma e no que ele nos diz sobre a so-
a obscenidade e a violência. No mesmo ano, alguns rappers, como Flavor ciedade americaJià contemporânea. Trata-se de uma forma cultural curio-
Flav. do Public Enemy e Tone Loc e Sno_op Doggíe Dogg foram detidos s_ob sa com tendênd'as radicais· contestadoras, algumas das quais (ou pelo me"
a acusação de atos crimlhosos.Assim, em 1994, o rap eia uma forma musi- nos as mais vendáveis) entraram a fazer parte da cultura prevalecente, for~
cal sob fogo cerrado - embora continuasse vendendo bem· e sendo popú- ma que parece ser de extrema popularidade. EfeitO rap:quant.o mais ofcn-
larís"simo, em parte talvez devido à furiosa contl.'Çivérsia. ~ivo, mais comentado e consumido. Os canais de TV e muitas estações de
A violêuda d_o ataque ao rap talvez não tenha precedentes na história rádio, com certeza, não tocam os exemplares mais radicais do mp, ffias sUa
da mídia. É provável que nunca antes uma forma cultural tenha sofrido as- popularidade subterrânea e o modo .como de circula e é disseminado
salto tão pesado. Durante os Últimos meses de 1993 e dó início de 1994, pelas comunidades contestadoras o transformam numa forma Contra-h~­
foram publicados literalmente centenas de artigos merisais sobre rap e vio- gemônica eficaz.
lência, e noite após noite viam-se ataques ao rap na televisão - materiaf su- Por""outro lado, muitaS vezés é preciso sair do predominante e procu-
ficiente para todo um livro sObre o assunto. A histeria é sinal segum de pâ- rar fora dele vozes negras mais radicais e distintivas. Muitos escritores· e
nico do público diante do aumento da criminalidade e da transformação dÕ poetas não conseguem ser publicados pelas editoras comercia!s e· são abri-.
mp em bode expiatório causador do aumento da violência e dos ·distúr- gados a recorrer a edições altcrn<Ítivas. Audre lorde, em Sister Outsider,
bios. Também é sintomática da negatividade com que são vistos os jovens .
(1984), fdla das dificuldades de uma te'ril.inista negra c lésbica para' conse-
negros na sociedade americana contemporânea; sem dúvida, eles
guir publicação, e muitos esçritores negros precisaram recorrer a publica-
constituem o grupo mais estigmatizado da atualidade.
çõ~s alternativ.t.S. Na verdade, há muita.s publicações da cultura atro..ameri-
Não há dúvidas de que o rap pmduz fortes ct(eitos, mas estes são com-
plexos e multilaterais.Também é preciso ver a dive~sidade de pontoS de vis- caría fora e dentro dos principais meios de comunicação negros que abas-
ta c posições na comunidade do mp, em. que alguns grupos e )ndivíduos tecem grupos mais marginais.
exaltam abcrta.Ólente o crime, as drogas, a misoginia e o antj.-semitismo,glo- · Mas, como nem todos os negros poderri gravar raps, fazer.filmes ou
rificando a vida marginal, enquanto outros grupos criticam ma'is essas ten- escre\-~er livros, a gente comum desafia o sistema nicista: bmnco de várias
dências· c defendem a indêpendência, a educação, a autonomia, a unidade outras maneiras. A gíria e o jargão constituem um meio bem particular de
e a busca de soluções politicas genuímis p"àra os, problemas do -negro nós comunicação c um repertório lin'güístico e gestual capaz de veicular a, iden-
Estados Unidos hoje. tidade ·e a rebeldia do negro.A dança e os modos de percor~r o espaço si-
De fu.to, o mp muitas vezes é um bode expiatório para os verdadeiros tuam o corpo do negro em sua tipicidadc, v:isto que ele atravesSa de m:inei-
problemas de uma sociedade extremamente dividida, Onde os conflitos entre ra desafiadora um espaço hostil c'om J.llll. jeito capaz de expressaç sua iden·

-250 251
tidade e suas formas de rebeldia. Usar potentes rádios portáteis no último
voluínc ou atravessar os espaços urbanos num carro-som ouvindo rap sãÔ
outras tantas formas de expressão cultural do dia-a-dia_- do negro - na
Verdade, tais atos constituímm um elemento-chave do roteiro de _Faça a
6 AProdução/texto/recepção*
Guerra do Golfo: uma leitura.
coisa certa; e uma das camcterísticas mais típicas dos filmes de Spike Lee ·
é sua capacidade de captar a maneira como o n:egro fala, faz hurn,or, movi-
menta-se, expressa-se culturalmente, qprime-se e relaciona-se.
Portanto, h.'Í. muità~ formas de expressão cultural contestadora que re-
sistem a códigos, práticas e ideologias da cultura p~ominante. Essas for-
mas às vezes se evidenciam nos meiOs comerciais, mas são encontradas com
mais freqüência nas culturas alternativas e no dia-a-dia. Esse 'terreno é uma
mina de ouro para os estudos culturnis, e Só está começandq a ser explorà-
do; para o futuro, promete trabalhos e perspectivas importantes na área. Por ,_ .
.•.;;._,;>,
'

tais l'<lfÕes, um programa---multiculttlralista crítico é parte importante· cta·re_-


tOrma educacional c deve vir a fazer parte da prática-dos estudos culturais.
c•" ''
Nos capítulos anteriores, indlcamos.algumas das maneirns como os es-
Nossa cultura é profundamente enriquecida pelas contribuições dos grupos tudos culturais podem analisar a tranScodificação de discursos potiticos e
e dos indivíduos até agom marginalizados, e só poderemos auferir benefi- ideológicos Jl?s t6ctos culturais tanto em ·nível macropolítico, dos gr-andes
cios da maior diversidade de vozes e experiências. Por isso; os estudos cul- eventos e h~tas políticas, quanto mJcropolltico, da vida diária. Dissemos que
tm-ais devem ouvir essas vozes e tentar trazê~las para o seu campo. '
os estudos culturais também podem 11tilizar suas leituras dos textos cultu-
Pois hem, que tempos eram aqueles, do início de 1991? Enquanto •o rais para elucidar os eventos e as realidades sociopolíticas da nossa era e que
Ice-T dava os últimos retoques no seu álbum "Original Gangster", estava-se a análise dos vários discurs'os políticos rivais pode ser Usada como base p~
pam lançar bombas sobre Bagdá. O Jce-T termina seu álbum expressando a análise dos textos culturais. Neste capítulo, indicaremos como os métodos
solidariedade pelas vítin1as da guerra que se anunciava e pelos negros que dos estudos culturais podem· ser usados para analisar e criticar eventos po-
seriam tirados de suas comunidades para lutar nos. desertos do Oriente Mé- liticos como a "Guerra do Golfo" e também contribuir para expandir aquilo
dio por algo que realmente não lhes dizia respeito·. No próximo capít:ulo, que concebemos como estudos culturais -multiperspectívicos.
imali~ar·emos esse momento usando os recursos d.os estudos culturais para Em certo sentido, à guerra dos anos 1990 çontm ·o li-a que foi um
dissecar a' Guerm do Golfo como evento da iriídia. . even'io cultural e político, além de militar.'<;-j Em retrospçctiva, o govemo
Na atualidade, a propaganda, a televisão, o cinema e a inúsica popqlar Bush e o Pentágono realizaram uma das mais bem-sucedidas campanhas de
estão produzindo novas forffias de identidade. Está: na hora de ficar a par
disso. O futuro está diante de nossos olhos, tf'azendo drásticas mudanças tec"
nológica..<i e, portanto, ansiedades e problemas. E como e~tá na hora de Cui- • Este estudo foi aprescntado·em ,U,rersas aulrn> dadas na Universidade de Michigan,na con·
dar desses assuntos dentro dos estudos cultumis, nossa abordagem conti- fcrência da Popular Culture Association de San AnÍ~mio, na conkr'ênciri de '"l::riio do
nuará dando atenção ao progrania multiéulturalista e analisando questões Marxist Llter:u:y Group ém Delaware,n:a Yoffi Un.ivexsity e na Trent u'niversít}' do Canadá,
muna conferência internacional de estudos l'Uitumis re;~!izada em Taiwan e em ''iirias
de classe, raça,sexo e outros componentes desse tipo de estudo, daódo aten-
outras faculdades e lmiversldades. Pel05 comentários crítkus e pela utilis:>ima troca de
ção a omissões e exclusões, bem como a representações e discursos encon- id~ias, gootariarnos de agradecer ~os participantes desses eventos, bem como a Ridmni
trados em produções fundamentais da cultura da nl.ídia Contemporânea.. Keeble, quere~ <:Óticas .-;onstrmil>as ao texto. Diferentes versões deste esrudo foram p~-­
No próximo capítulo, porém, desejamos ampliar o foco do estudo cul- blkadas em: Centennf4f Rrotew, Voi.XXXVI,N".l (Winter 1992) p. 5-i2 e Stykls oj Cultu-
tural multipcrspectívi~o, aten~ando para a produção e a economia politica · mlActivtsm, org. de Philip Go!dstein e publicaç.'io da Unive1'5ityofDclaw<~rc Press (1994).
da cultura, analisando texto é púplico, explicitando o que até agora s6 foi Neste esmdo, utilizamos mate_rial do 11<.'1'0 The Perslall Guif1VWm· {Kellner, 1992b),
implícito. O estudo que se segue ilus,rará_tal modelo e continuará exami- 154 Utilizamos a expressiio"guerrn contra o lmquepor razões que serão C:.xpostas abai·
nando o modo como a cultura da mídia fornece material para a constrUção xo. Enquanto escrevemos (primavera de 1994),a guerra <tinda esci ocorrendo; por isso,
de. identidades, transcodifica os-discursos políticos ~stentes e 'configura a seria um erro limitar o evento o:-m qu~stão aoS' aconte<:i.mentos descritos COnl() "Guerra
matriz cultural em que vivemos, so;remos e morremOs. do Golfo", que vão de janeiro a !llarço de l99L

253
relações públicas da história da política moderna com seu uso da mídia e da propaganda feita pelo Sovc:rno Bush, pelq Pentágono e sctl~ ~ados,
para obter apoio para a guerra:A grand~ mÍdia dos Estados Unidos e· de bem como a análise das injunções causadas.pelo Chamado sistema de pool.
outros países tenderam a transfOrmar-se em veículo obediente da eStraté~ . Jambêm mostramos como a ·economia política da mídia nos Estados Uni-
gia governamental de manipulação do público, pondo em risco 3. dCmocra- dos facilitou a fabricação do consentimento ao plano de ação do gÓvemo
da, que implica a existência de cidadãos informados e de i.lm equilibrio de americano. A seguir, analisaremo~ os signiftcados implicados no texto, da
poder e contra poder, para evit;u-· abusos autoritários, bem como de meios guerra contra o Iraqtle e a recepção desse texto pelo' público. Este íiltimo
de comunicação ·livres, críticos e robustos. (ver Kellner 1990a, 1992b). processo""exi.girá alguma especulação sobre Os motivos de a Guerra do Gol·
E. assim os eStudos culturais enfrentam o desafiO de expliéar como fo ter sido popular e do modo como o go':_erno BliSh c o Pentágono mobi-
ocorreu a manipulação bem-sucedida de níídla e público durànte a "crise lizaram o'ttpoio do público. O exemplo qde--~mos'·fndica que encaramos
do Golfo"e da guerra contra o Iraque.Um estudo cultural politicamente. ati- os estudos culturais como um projeto polítko preocupado com as ques-
vo deve intervir nos debates sociais e .Politic_os de sua época e tentar. dÜ- tões fundamentais da. atualidadé ..
cidar os principais eventos e crises pol$ticas, bem cómo os textos popula-
res da cultura da mídia, sua recepção por parte do público e as práticas ~ \.,

deste. Como veremos, a área dos estudos de cultura está especialmente apa:- r;r!s'!~RMAÇÂO E PRODUÇÃO DE NOTÍCIAS
relhada para empreender essa tarefa, e os estudiosos que desejem imprimir
caráter político à sua atividade, vinculando-a aos eventds políticos mais im· A guerra contra o Iraque pode st:r lida como um texto produzido pelo
portantes de sua época, não devem furtar;5e a tais responsabilídades.Tam- governo Bu~, pelo PentágQno e pela núdia, texto que utilizou as imagens e
bén~ é dever do bom cidadão tomar conhecimento das técnicas de mani· os discursos da crise e, posteriormente, da guerra para obter consentimen-
pulação da mídia e enxergar por meio da propaganda comercial e da de- to e apoio "'à lntenenção militar norte-americana. Para destrinchar os textos
sinfOrmação promovida pelo governo, pois a democracia só pOde florescer da ".crise do Golfo" e da "Guerra do Golfo" é preciso analisar o processo de
onde há cidadãos be'm informados e ativos. produção das notícias e das infoffi7,ações, ~duindci uma análise das fontes,
Neste capítulo, portanto, aplicaremos os métodos dos estudeis cilltu· da triagem de informações e da censura, dQs códigos e práticas do jornalis-
rais ao "texto" da "Guerra do Golfo" e aos seus efeitos (guerra que, em si mo ':normal", da sociologia da produção de notícias e dos processos de de-
mesma, foi um construto da mídia,como'vereffios). Também ih1straremos sinformação e propaganda. Essa dimensão dos estudos culturais tem sido
nosso modelo de estudo cultural multiperspectívico, que combina 1) aná·' níenosprezada, o que consideramos lamentável porque a análise da produ-
lise da produção e da .economia política dos textos com 2) análise e inter- çáO de notícias e informações, assim como a do entretenimento, lança luzes
pretàção textual e 3) análise da .t;ecepção por parte do público e de seu Sob"re as origens e o contexto do sutgimento dos te.'\":tOs culturais, contri-
uso da cultura d..-1. mídia. Dissemos no, capítulo 1 que,no todo, os trabalhos buindo para a compreensão de seu significado e de' seus efeitos.
recentes na área dos estudos culturais tenden1 a ignorar a economia polí· A análise do texto da "crise do Golfo" indica que, desde o início, as
tica c a produção da cultura, são ostensivamente·textualistâs ou se al:êm grandes agências noticiosas seguiram as linhas do governo Bush e do Pen·
de maneira estrita e unilateral ao estudo etnográfico da recepção· do tágono. 1' 5 A grande mídia americana tem cunho comercial, está sujeita a in-
textos por parte do público. Portanto, os. estudos culturais têm se mostra· tensa concorrência por audiência e lucro. Por conseguinte, sua televisão,
do propensOs a fazer uma análise cdtica da mídia, da cultura co~sumista seris jofnais e suas revistas não desejam hostilizar os consumidores, evitan-
c de sua recepção,em detrimento do contexto e da análise do modo como do ao máximo contrariar a opinião pública c a linha oficial do governo. A
a cultura da mídia é produzida. Em vista disso, demonstraremos a necessi· grande niídia também f.Ívorece ·as fontes governamentais oftciais em: seus
dade de dar atenção à produção, à recepção e aos efeitos dos textos ·da· artigos, sObret1:1do em tempos de crise. Pottanto, tende a ser um canal de
cultura da mídia a fim de explicar o papel desta em eventos como a guerra
contra o Ir-aque.
Essa abordab>em multiperSpectívica é necessária para superar aborda· 155 Por grande niídia. nos &tados Unidos entendemos: QS grandes redes de tdevisào,que
gens mais limitadas que enfOcam sobretudo o texto e o público. Por is,so, compreend<:m os canaisABC, CBS, CNN e NBÇ;as ~istas semani;:o; de âmbito nacional:
primeiramente veremos a produção do texto da "crise do Golfo" e depois nme, Newsu·erk e U.S. News andW·Orfd K'port;e jornais de âmbito nacional como New
York Ttmes, The JValJ Streetjournal, UY Today e Waihtngton Post Ver a comparaçiio
da "Guerra do Golfo". I~so implica a análise da campanha de desinformação. entre grnnd<> mídia e mídia altemati\•a que desenvolvemos em Ke!!ner l990a.
comunicação dos planos de ação e das ;tções do governo amcricàno,
embora haja importantes exceções (ver KéUner, 1990a).
Como reação à invasão do Kuwait pelo -Iraque nó início de agosto de
l990, o governo americano começ.ou imediatamente a criar consenso para
a intervenção armada c, depois, a fazer propaganda da solução militar para
a crise, no que a grande mídia agiu como cúmpliCe dócij. Quando o gover-
no Bush enviou um grande contingente para a tegião, a_ gtande mídia aplau-
diu e transformou-se.em canal de mobilização de apoio para a ação norte-
americana. Durante várias semanas, foram poucas as vozes discordantes ou-
vidas na grande mídia; de modo especial, as reportagens, os comentários e
as discussões-na TV privilegiaram sobremaneira a sofução militar para a_cri-
se, servindo de veículo de propaganda para o aparato militar americano e
o''sisrema de segurarÍça nacional que ha\-iam enfrentando sérios cortes or-
çamentários às vésperas da invasão. Não houve debate significativo na TV
sobre as graves conseqüências da maciça reação armada dos norte-ameri-
canos à invasão. do Iraque, ou en1 torno dos interesses políticos a que a
intervenção armada atendia. Os críticos da atitude americana eram os gran-
des ausentes da cobertura dada pela mídia à crise, e poucas for-<Im as análi-
ses que deixaram de aderir às questões apresentadas pelo governo.

(,ramks mentiras e desinfonna~ào

O governo Bush controlou o discurso da mídia em parte por meio da


desinformação e da propaganda e em parte-pelo controle da imprensa gra-
ças _ao sistenta de pool. Nos Primeiros dias da "crise' do Golfo", por exem-
plo, o governo levou a cabo urila campanha de desinformação muito bem-
sucedida gmças ao controle e à manipulação das fontes quC legitimavam a
mobilização militar americana na Arábia Saudita .em 8 de agostO de 1990.
Durante os primeiros dias da crise, o governo americano afirmava constan-
temente que os ir'".lquianos estavam mobilizando tropas nas fronteiras da
Arábia Saudita, dispostos a invadir esse reino rico em petróleo. Era pura dc-
sinformação, e os estudos feitos posteriormente· revelaram que o Iraque
não tJ:nha intenção de.invadir aArábi<i Saudita e não tinha grande contin-
gente nas fronteiras em posição de ataque (ver documentação no estudo
abaixo c Kellner, 1992b).
A campanha de desinformação que legttimava o envio de tropas ame-
ricanas à Arábia S~uidita começou pelo Washington Postem 7 de agosto de
1990, o mesmo dia em que Bush anuncioU que estava mandando tropas
americanas àArábüt Saudita, Em reportagem de primeira página, feita por Pa-
ttick 1'yler, afirmava..ge que, numa reu(lião ocorrida no dia anterior_ entre o
encarregado de negócios norte-americano, Joseph Wilson, c o presidente

257
256
iraquiano Saddam Hussein, este se mostrara extremamente beligerante, afir- país que sua derrota, mesmo por .forças estrangeiras, seci adamada ~omQ
mando que o Kuwait fazia parte do Iraque, que não eta possível nenhuma uma libertação por sua própria nação e por gr--.mde parte do mund•Y árabe.-
negociação, que ele invadiria a Arábia Saudita se fossem interrompidos os Como se viu, o It-aquc e o mundo árabe estavam profimdament.e divididos
oleodutos que tr.tnsportam petróleo iraquíano para o Golfo através .do ter- · quanto a Hussein, e a grande generalização feita. por Hoagland estava total-
ritório saudita, e que as areias'_ dO. deserto se dngiria.Ót de sangue norte-ame- mente fora da realidade.
ricana·caso os Estados Unidos mandassem tropas para a região. H0agland tambCm afÚ:mava que a decisão de Ronald Reagan, di! bom-
Uma transcrição posterior do encontro Wtlson-Hussein, poréfn, reve- bardear a 'Lt"ô-1a, era o modelo certo que Bush deveria seguir. Esse exemplo'
lou que Husscin foi cordial, deu indícios de pretender negociar, afinnou rei- era revelador, pol'que Muammar J(adhafi pre~edia Saô_jj.'llll Hussein como
teradamente que não tinha inteóção de invadir a Arábia Saudita' e abriu as inimigo simbólico para o qual o ódio -nadona);~ia sé!:' projetado, servin-
portas para uma solução diplomática da crise . .A.reportagcm do Washing- do portanto de lição para os países do Terceiro Mundo que se recUsassem
ton Post, porém, foi usada_ pelas redes d~ televisão, pelo serviços de telex e a submeter-se à dorilinação das superpotências neo-impcrialistas.'s.; Ade-
pela imprensa em geral, criando a idéia de que em impossível qualquer so- mais, ninguél)l sabe ao certo se o incidente terrorista pelo qual Kadhafi foi
lução diplomática e de que seria necesSário tomar medidas decisivas para "puniQ.o'J,{l\~~atentado a bomba imm salão de baile de Berliril) foi·executa'-
proteger a Arábia Saudita da agressão iraquianâ. Foi esse o roteiro que legiÜ- do por ·g&t'pbs llgados à Líbia. 'Mas os fatos tiilham pouca importância no
móu o envio de tropas norte-americanas ao Golfo c forneceu justificativa mc~or-.mdo de um ideólogo.
perfeita para a intervenção de Bush na região. Em sua exposição de . .tp.otivos, Hoagland ensinava .a Gecil-ge Bush por
Os editoriais do Washington Poft no mesmo dia davam apoio à imi- que devia tonwr medida•> urgentes e enérgícas para salvar seu mandato, e,
nente ofensiya militar do governo Dush. Mary McGrory escrevia um artigo assim como ~cGrory, insistia na ação armada contra o lraquc. Hoagland
intitulado "A bf:_sra de Bagdá" em qúe também partia do pressuposto de: que partia do pressuposto de que o Ir-aquc planejava invadir a Arábia Saudita e
o lraque estava Pronto a invadir a Arábi"~. Saudita, c exigia que Bush .bom- de que só a ação militar de George Bush poderia ser decisiva. Na realidade,
bardeasse Bagdá! Exatamente a mesma linha se fazia notar num editorial as- houve várias iniciativas diplomáticas importantes dos árabes em andamen-
sinado por Jim Hoagland, editor assistente do jornalc principal correspon- to, que foram bloqucadas pelos Estados Unklos, mas esses eSforços foram
dente estrangeiro, que chegava às vias de fato com uma coluna intitulada: ignorados pelo belicista Hoagland.'j' Diss~ulando mal suas cre~ças reaCio-
"Obriguem Husscin a retirar-se" (p. ~'\.19). Com tanta certeza quanto nárias, Hoagland interpretava a invasão do Kuwait pelo [raq_ue como um
McGrory sobre a iminente invasão daArábía Saudita pelo Iraquc, Hoagland
começava proclamando que:
'1'56 Em 6 de agosto de 1954, o New York Times publicou. um editorial que festejava a
dtrrubada do governo de MOssadcgh no Irã e a retomada do poder pelo xá, futos estes
Saddam Hussein foi à guerm para obter o controle Jos campos petrolíferos do' acompanhados pela passagem de 40% do pt:tróleo irnniano para empresas nort'e-ame·
Kuwait e, em última análise, da Arábia Saudita: Os Estados Unidos agora deVem ·rica nas, rompendo um monopólio britiinico. ós tditores escre••iam:
recorrer à força militar-persuasiva contra o ditador irnqtúano para defender os
campos JX"trolíferos e preservar a influência americana no Oriente MédiO. Os paí.o>essubd~envolvidos ricos em recur5c)$ rtatllrais ~flôr:l têm um exemplo
côncreto dos altos custos em qu.; inc<.>rre algum deles quando se deixa enlou·
qvoshington Post, 7 de agosto de 1990) quecer pdo nacionalismo funátic<.>.Talvez seja demais esperar que a t-xpetiência
do lrii evite a ascensão de Mossadeglts em Outros países, mas esSa experiência
Segundo Hoagland, Saddam Hussein "respeita só a força e não reagirá pode pelo menos formlec<:r o podtr de lidetts mais racionais e clarividentes.
a nada mais".
O resto do artigo era constituído por falsas aítáliscs, analogias questio- Ou seja, aqueles que vejam com dareza as prioridades esmagadoras dos Estados Uni·
dos (gratos a Noam Chomsl..-y por essa referênci;t). Nesse conto:to, a intenot:nção mili·
náveis c banalidade belicosas. Hoagland afirmava que a "base de apoio do
tar americana e a Guerra do Golfo constituíram uma lição e:,:cmpla~ para os lideres do
ditador iraquiano é pÚ1_ue~a e instável demais para suportar um golpe cer~ Terceiro Mundo que não' se submetiun às prioridades e à política norte-americanas.
teiro e eficaz". No entanto, cerca de seiS semanas do bombardeiro mais fe-
!57 Desde o começo, o Iraque estava tentando d.;-sesperadamente negociar uJria solu·
roz da história foram incapazes de desalojar Hussein, cujo apoio ou po(lcr ção para a crise c qlOper.wa com o~ esfOrços árabes de mediação;m;.is de oito missões
de resistência obvjamente era muito maior do que Hoagland poderia ima- secretas iraquianas tenmram urrm so!uçào diplomática, c todas foram rejdt.adas pelo wr
ginar. Hoagland também acreditava que "ele [Hussein] é tão odiado em seu verno Bush, gue, ob>"iamcute qu;;da a guerr:1; ver estudo em Kdlner, 1992b.

258 259
desafio à "legitimidade de todas as monarquias remanescentes na PenínS~l­ ção apropriada dos americanos à invasão do Kuwait pelo Iraque,Judywoo-
laAcibica, onde a Grã-Bretanha cstabcleccra, duraitte a era colonial, a maior druff, também âncora do programa, afirmou: "O líder suprem,o dO. Iraqué,
parte das fronteiras e dos sistemas políticos existentes". Hoagland, Saddam Hussein, conforme repot1agem de hoje [no Washington Post}, dis--

·portanto, definia os princípios que estavam em jogo como legitimidade de se que a invasão do KuWait é irreversível e permanente~. Mais tarde, no
algumas das monarquias mais reacionárias do mundú, cujas fronteiras h."t- mesmo programa, o ex..consultor para assuntos de segut:ança nacional (e
viam sido tr.1çadas por colonialistas britânicos que haviam, deUberadamen- réu no caso Irã/Contras), Robert McFarlane,dtava a reportagem como evi-_
tc, privado o Iraque de um porto marítimo viável, desapossando certos gru- dência de..,.que Hussein não iria sair do Kuwait, e que, portanto, 'era neces-
pos, como os'palestinos e os curdos, de sua terra natal. sária a intervenção militar americana na Ar_~l:üa Sau~_ta. ~ numa·.conversa·
Na verdade, todo o artigo de Hoaglaud manifesta o que Edward Said com lideres árJ.be-american?s sobre a justlfi~1o 6il nao de_ ~ma inter-
(1978) descreveu como mentalidade ·~orientalista", segundo a qual os ·oci- venção armada, Woodruff exdan10u: "o encarregado de negoctos norte-
dentais brancos marcam sua superioridade fazendo generalizações vazias americano em Bagdá teve, sim, com Saddam Hussein uma reu_nião de duas
sobre o pOvo árabe. Hoágland caracterizava os árabes como gente que s6 horas onte~ que, segw1do consta,fqi insatisfatória pois Saddam Hussein in-
entende a linguagem da força e é incapaz de se defender e de resolver Seus sistiu e)l{fibr no Kuwait e, conforme dizem, fez ameaças veladas a outras
próprios problemas. Para ele, a crise do Golfo consubstanciava então "um naçõê\'íttf,~:fea"- mentiras com que os representantes do governo Bush ha-
caso raro em que os Estados Unidos ·seriam imprude:ntes em não usar a for- viâm alimentado o Washington Post e que estavam sendo disseminadas
ça". Não valeria a pena perder tempo e energia analisando uma justificati- por outros meios de comunicação. · \
va intelectualmente pobre como essa para a ação militar contra o Iraque se Em set.JAc;liscurso tele\-·isionado, da manhã de 8 de agosto, que anuncia-
o governo Bush e seus representantes hâp tivessem dado tanta atenção aos va c defendia 0 envio de tropas americanas it Arábia Saudita, Bush afirmou
artigos de Hoagland.Além do mais, o artigo pedarite, mal escrito, mal ftm- que "o gov~mo saudita pediu nossa ajuda, e eu respondi a esse pedido or-
damentado e banal foi adamadíssimo nos círculos políticos; na verdade, ga- denando a mobilização de forças a.mericahas de ar e terra para o remo da:,
nhou um prêmio Pulitzer"por sua perspicácia e presciência em rehção aos Arábia Saudita". No entanto, relatórios ulteriores das negociações entre os
eventos que Ievar-.1-m à Guerra do Golfo''.Acresce que seus artigos e os de sauditas e os Esmdos Unidos indicaram que os Estados Unidos tinh~m pres-
McGrory eram significadvos porque publicados no Washington Post, su- sionado os sauditas a permitirem a intervenção militar americana no seU
posto bastião da clarividência liberal, e lidos pelOs tomadores de decisões~ país (\Voodward, 1991: 241 ss. e Salinger ç Iaurent, 1991: 110 ss.). Bush re·
nos Estados Unidos.Além disso, a satanização de Hussein por McGrory foi petiu a duvidosa afirmação de que 6 "Iraque reuniu uma enorme máquina
aclimatada e reproduzida no Newsweek (3 de setembro de 1990), que faz de ~uerra na fr~ntcira saudita", e ~eu gov~rno enfatizava esse tema nas con-
parte da empresa Washington Post. versas com a nudia,que reproduZia obedientemente o argumento. As 9h24
Portanto, a desinformação e a propaganda do governo Bush c do do dia 8 de agosto, por exemplo, Bób Zelnick, correSpondente da ABC no
Washington Post sobre a presteza dos iraquianos para invadir a Arábia Sau· .Pentágono, comunicava com grande diligência que o Pentágono o informa-
dita funcionaram com eficácia no sentido de afeiçoar o discurso da mídia ra de que a presença iraquiana dobrara desde a invasão do KuW<t;it, de que
e a percepção da crise pelo público e de legitimar o cntio -de tropas ame- · já havia mais de duzentas mil tropas no Kuwait, com um grande contingen-
ricanas par'.t a região. Em especial, a «:portagem de primeira página feita te disposto a invadir a Arábia Saudita.
por Patrick Tyler sobre o encontro de Hussein com Joe Wilson e a lJ.legáda No entanto, não há certeza absoluta sobre o número de tropas iraqlúa-
recusa do fraque de negociar uma solução ou sair do Kuwait constituíram nas realmente mobilizadas no Kuv:ait durante as primeiras semanas da cri-
o arcabouço decisivo que serviu de base para os debates ocorridos, na mí- se. Todos os relatórios produzidos an'tes da invasão pelo governo Bush indi-
dia sobre a oportunidade de se enviarem trQpas americanas à Arábia Saudi- cavam que o fraque tinha reunido cerca de cem mUtropas n.1 fronteira _?o
ta."" Em 7 de agosto, nos comentários de McNeil-Lehrer na PBS sóbre a 1-ea- Kuwait. Os primeir9s reiâtórios, feitos nos primeiros dias depois da ipvasao,
' levavam a crer que o Iraque de fato tinha de oitenta mil .a cem mil tropas no
Kuwait, mais do que o suficiente para uma ocupação, como gostava de indi-
158 Por meio de pesquisas em bancos de dados, descobrimos como essa reportagem car o governo Bush e como a grande mídia reproduzia diligentemente;
foi usada pelas redes de televisão, pela maioria dos grandes jornais e em muitos tc5\l- quando as forças americanas esta~m a cam~h? daArábia Saudita, as t?rças
mos posteriores para explicar por que B11sh precisava mandar tropas ameri:c~mas à Ará-
bia Saudita; ver docwnentação tm Kellner, l992b.
iraquianas duplicaram de repente, e os ·relatonos afirmavam que havta, no

260 261
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mínimo, cem mil tropas iraquianas junto.'às fronteiras da Arábia S<J-udita. Mas .frontehn com o Kuwait, na tentativa de detectar as tropas iraquianas que
a fonte desses números era sempre a admi.iustração Bush ou o Pent.'Ígono, e os Estados Unidos afirmavam estar reunidas para 1m1a poSsível invaSão de
as fon'tes que criticavam as afirmações -americanas sobre ? número de tro- seu país. "Os aviões Úão reconheceram nada. Não havia vestígios de tropas
pas iraquianas mobilizadas revelaram um valor bem diferente. iraquianas em vias de. çkslocamento para o reino~ (\Vood-tvard, 1991:
Jean HeUer, tepórter do StPetersburg Times, publicou duaS reportagens 258-9). Logo depois, a equiP.e americana chegou com fotos das tropas ira-
(30 de novembro e 6 de jjltleiro) dizendo que as fotos feitas por S<ltélite indi- ,. quianas supostamente reunidas nas fronteiras sauditas, e o genel"'.tl Norman
cavam um número bem menor de tropas iraquianaS; naArábia Saudita do que Schwarzkopftj{plicou aos sauditas que dS iraquianos tin~·wm enviado pe-
o divulgado pela administração Bush c<i reportagem de 6 de jandm foi repe- quenas unidades de comando e controle à frente da má$.~- das tropas, o
tida no In These Times, 27 di:: fevereiro de 1991: 1-2).As suspeitas de He!Jer que explicaria por que os aviões sauditas de reJ~~éimento não as ha-
nasceram quando ela viu no "Periscope", do Newsweek, que o programa "Pri- viam Visto (ibid., 1991: 268). Ralph .McGehec, ex-funcionário da ClA, disse.
me Time Iive», daABC, nunca havia utilizado várias fotos da cidade ocupada c. ao jçrnalista joel Bleifuss: "No passado nunca houve hesitação em usar fo-
d() sul do Kuwait, feitas por satélite no começo de setembro.Adquiridas pela tografias de satélite falsificadas pam apoiar a posição política que os anre-
ABC da empresa soviética Soyez-Karta, esperava-.se que as fotos revelassem a ricanos quiSésS_eJ,Íl" (In These Times, _19 de setembro de 1990: 5). Na
presença de maciça mobilização de tropas iraquianas no Kuwait, mas não re- verdade EniWftí991) disse que o rei Hussein, dajordânia, também rece-
velaram nada que se parecesse com o número de tropas propalado pela ad- beu fot6s de tanques em movimento pelas estradas próximas à fronteira da
ministração Bush.A ABC recusou -.se a usá-las, e Heller conseguiu que seu jor- Arábia Saudita ·com o Kuwait, fotos que haviam sido mostradas ~os saudi-
nal comprasse as fotos tiradas de 8 de agosto a 13 de setem~ro no Kwait e a tas, e 0 rei dissera;4J_ue os sauditas haviam "entrado ~m pânico~ quando as
partir de 11 de setembro na Arábia Saudit1.. Dois especialistas em fotos por sa- . viram. o rei Hussein estava cético e "afirmou que, se Saddam Hussein
télite, que já haviam trabalhado para o govemo americano, não conseguiram tivesse desejado invadir a'Arábia Saudita, teria ido imediatamente, uma vez
encontrar evidências dO alegado aumento de contingente. "O Pentágono con- que a única coisa existente entre de e a capital saudita era um exército sau-
tinuou dizendo que os malandros estavam lá, mas não vemos nada que indi- dita minúsculo e sem treino, ainda que equipado com material caro"
que a presença de uma força irnquiana no Kuwait com pelo menos 20% r;J.o U- (Emery, 1991: 15). .
manho que o govemo afrrniou", disse Peter Zimmennan, que trabalhou para Eis como a campanha de desinformação funcionou para legitimar a
o Arms Contrai e a DisarmamentAgency durante o governp Reagan" (1-teller, mobilização de tropas americanas para a .Arábia Saudita: a c'úpula dO gover-
Jn These Times, 27 de fevereiro de 1991: 2). no Bush convocou oS jornalistas que serviriam de canal para a notícia de
Ambas as fotos tomadas por satélite em 8 de agosto e 13 de setembro que o I.raqpe se recusava a n~gociar a. retirada ~o _Ku~ait. e que suas tro~as
mostravam uma ·camada de areia nas estradas, indicativa de ·que havia poucas estavam estacionadas junto as fronteiraS da A.rábJ.a Saudita, ameaçando m-
tropas iraquianas na fronteira saudita, onde a administração Bush afirmava vadir o reino petrolífero. O Pentágono e a administração Bush também di-
que estavam reunidas, ameaçando invadir a Arábia Saudita. As fotos do prin- vulgaram ihformações em entrevistas coletivas, sobre a ameaça' iraquiana à
cipal aeroporto do Kuwait não mostrayam _aviões iraquianos à Vista, embora Arábia Saudita e sua falta de dispOsição pam negociar, e esses pronuncia•
um grande número de aviões americanos fosse visível na Arábia Saúdita. O mentos "oficiais" complementavam os relatos oficiosos dos repórteres. Por
Pentágono recusou-.se a comentar ~ fotos, mas, às afirmações feitas pelaABC ~ua vez, editorialistas c comentadores da TV reproduziam essas dCdara-
(que decidiu não mostrar as fotos), de que elas não ~inham qualidade Sl,l.fi- ções, usando-as para reforçar os argumentos em favor do envio de t~opas ·
ciente par.l. detectar as tropas iraquianas, Heller retrucou que a fotografia do americanas para a .'\.rábia Saudita.
norte da Arábia Saudita mostrava todas as estradas sem areia e exibia clara- Assim, as reportagens da desinformação tOram criadas, rep~duzidas e_
mente o contingente americano na área. Em setembro, o Pentágono estava disseminadas, produzindo o efeito desejado. Na verdade, como notamos, há
afirmando que havia 265 mil tropas i.rnquianas e 2.200 tanques mobilizados razões para se acreditar que a administração Bush tivesse exagerado no nÍa·
no Kuwalt, o que reprcsef!tâva uma ameaça para a Arábia Saudita. Mas'as fo- mero de tropas iraquianas no Kuwait e na ameaça à .Arábia Saudita pará as-
tografias não revelavam· nada parecido com esse número, e até agora o gOver- sustar os sauditas e levá-los.a aceitar a presença de tropas americanas, justi-
no americano se recusou a exibir suas fotografias feitas por satélite. ficando o aumento de seu próprio contingente na região e a ação nlilitar fi-
Na verdade, segundo Woodward (1991), depois da invasão iraqulana, nal:A"grande mídia reproduziu como fatos as afirmações e os números ame-'
os saw!itas haviam mandado aviões de reconhecimento ao outro lado da ricanos, enquanto jornais como o Wãshingtmi Pdst e as redes de _televisão

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serviam ·de canal para a desinformação criada pela administração Bush. durante a Primeira Guerra Mundial e repetida pelos americanos q~ando en-
Além disso, os editorialistas e jornalistas do W'Úbington Post defendiam ati~ traram na guerra, sobre a "violação da BéÍgica», que satanizava os alemães
vamente a solução militar, insistifido nutri ataque a Bagdá antes mesmo que como estupradores e assassiitOs de crianças inocentes - acusaÇões que,
Bush anunciasse que' estava mandando tropas à Arábia Saudita,.tornando-sc, como se viu depois, eram falsa,s.
assim, duplamente cúmplices na legitimação da linha de_ a,:;ão de Bush. A satanização de Husscin e dos iraquianos era importante porque, se
Além disso, os principais jOrnais, revistas e redes de televisão não cri· eles fossem absolutamente maus_ e constituíssem uma ameÍça idêntica à de·
ticaram a mobilização promovida por Bush nem discutiram se era prudcn. I-ütler e "i:lbs nazistaS, nenhuma negociação seria possível, e estaria excluída
te mandar tantas tropas americanas à.Acibia saudita logo de saída. Os pad qualquer possibilidade de solução diplomática pai-à-~ crise. Para ajudar asa-.
fistas e a imprensa alternativa argumentaram contra-a mobiliza<.-ão, em fa. tarllzar os iraquianos, um grupo do governb:~:;.KuWâlt financiou uma cam·
vor do envio de uma força de paz da ONU para a átea, em· vez de um con. panha publicitária, levada a efeito pela empre-sa americana de relações pÚ·
tingçnte n:Uütar maciço, mas essa posição _não foi ouvida na grande midia blicas, Hill & Knowlton, que inventou. atrOcida~és ·iraquianas no Kuwait,
(FAIR, O~municado à Jinprensa, janeiro de 1991). Ademais, os líderes do como a do assassinato de bebês premamros, que teriam sido arrancados
Partido Democrata tampouco criticaram a mobilização militar americana, e das incilb'ddoraS e deixados no chão até morrer. Em outubro de 1990, uma
a imprecisa tendia a negligenciar os congressistas e outras vozes que se
. ' -''
adof~&ó.tc em prantos fez um depoimento à Comissão de Direitos Huma·
opusessem à ação, especialmente durante as primeiras semanas. Na flos da Câmara dos Deputados, em que dizia ter visto soldados iraquianos
verdade, foram muitas as vozes disc9rdantes simplesmente excluídas da arrnncar quinze bebês de incubadoras e deixá-los'morrer no·chão' do hos.
grande mídia, impossibilitando um debate sério sobre a reação apropriada pital. A idc,atldade da moça não foi revelada, supostamente parn proteger
dos americanos à invasão do Kuwait pelo Ira que. Mas a grnnde nú~ia só se sua famili<J. de represálias. Essa reportagem ajudou a obter apoio para a ação
baseava num número Hmitadíssimo de opiniões e privilegiava sempre os '
militar americana, em algo muito semelhante ao modo como as propagan-
' mesmos altos funcionários do governo e os principais lideres do Partido das sobre Willie Horton àjudaram Bush a ganhar a pt'esidência mexendo
Democrata, alijando pontos de visci importantes dos debates e contribuin· com emoções básicas. Bush citou essa reportagem seis vezes em um mês e
do para a crise da democracia, que é agom um aspecto fundameptal da vida oito vezes- em quarenta e quatro dias; o vice-presidente Dan Quayle referia-
política nos Estados Unidos (Kellner, 1990a). se a ela com freqüência, assim como Norman Schwarzkopf e outros porta·
vozes militares. Sete senadores americanos citaram a reportagem em dis.
cursos de apoio à resolução de 12- de janeiro autorizando a guerra.
A caÚ.1panba publicitária da Hill & Knowlton Num editorial de 6 de janeiro de 1992 no NfW York Times, ]ohn Mac
Arihur, editor da revista Hmper, revelou que a testemunha não identificada
E assim vemos que a administração Bush e o Pentágono empreende· dos congressistas era filha do embaixaçtor do Kuwait nos Estados Unidos. A
ram uma campanha de desinfot'mação bcm·sucedida; sua finalidade em lc· moça fora levada ao Congresso pda Hill & Knowlton, que a instruíra Ç, ajuda-
gitimar o envio de tropas americanas à Arábia Saudita. Iniciada nos ra a organizar a audiência com a Comissão de direitos hwnanos.Além disso,
primeiros dias de outubro, estava em andamento uma campanha persiSten- Craig Fullet; antigo chefe do estado-maior de Bush quando ele era vice-presi·
te de legitimação do uso di força militar americana para obrig:lr o Irnque a
sair do KU\vait. Dessa campanha faziam j}arte a satanização dos iraquianos tler, na década de 1930 a mais poderosa do mundo. Nem podia o lmque,C\lja produção
pela "violação do Kuwait" e de Saddam Hussein c9mo "Outro Hitler" e en· de petróleo respoodc: por mais de 9S% de suas exportações, ser comparado a uma p.o-
carnação do maL ' 59 Essa campanha inspirava-se numa outra, britânica, feita tência industrial como aAlemanha.Também é descabido COJnparar ur~a importante su-
' . perpotência imperialista com um poder regional com<.> o Ira que, que, en1 si, já é produ-
r~ Ja colonização.
159 Um t.-studo realízado pela Oa:nnett Foundation indicou que mais de L 170 artigos
f. também de se notar o mudo como o governo Bush e mídia a personalizar:tf\1 a crise,
associavam Hu~ein a Hitltr (La May et ai. 1991: 42). Essa comp~rnçiio obviai11ente pres.
equiparando o JI·aque a seu governante. Enquanto nas reportagens realizad.1s nos oito
supõe uma falsa analogia em temtos de ameaça militar à "região e ao nnmdo por parte
anos de guerro enrre o Jrâ e o lrique (na qual os Estados Unidos iespaldarnm secreta·
do exército iraqulano -'ameaça esta que foi exaserada desde o começo.A população mente o Jraque), as referências. emm feitas a "Bagdá" e ao"lmque," durante a crise e'a
do lraque, de r';t milhões de pessoas, dificilmente poderá ser·conl.parada à da Alema· ·guerra ôo Golfo os textos referiam-se a "Saddam Hussein" como ator e fonte de todo o
Ilha, de 70 milhões, e suas for~·as armadas eram bem menos ameaçadoras que as de Hi-
mai (agmde<.:em~ a RichanJ Keeble por essa percepção).

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dente e sempre leal a ele, era presidente da Hill & Knowlton e partidpai'-a da capara a clise.Além disso, as constantes menções à guerra criaram uln cli-
'
campanha do Partido Republicano, assim como vários outros altos funcioná- ma propício a acreditar-se que só a ação mili~r poderia.·resolver a <lrise. A.
rios do governo Reagan, que tinham estreitas relações com o governo Bush. apresentação que a núdia fazia do confronto, como luta entre o bem e o,
Portanto, o governo do Kuwait desenvolveu um campanha publicitá- mal, em que o malvado Hussein não desejava negociar e ameaçava os alia-
ria pat"a manipular o povo americano e levá·lo a aceitar a Guerra do Golfo, dos, produziu grande tensão e a necessidade de uma resolução que só a
e o governo Bush usou essa campanha para fomentar seus.objetivos.A Hill guerra poderia trazer. A retórica da "violação" e da "penetração" iraquiana
& Knowlton organizou uma exposição de fotos das atrocidades iraquianas foi acionadad'esde o começo da crise e durou toda 3: guerra. A mídia sata-
que foi exibida nas Nações Unidas e no Congresso americano, com ampla nizava o poder de fogo de Saddam e suas armas qu1miC~~. assim como seus
coberturn pela televisão-.Também ajudou os refugiados do Kuwait a contar mísseis que poderiam atingir o carro e Te! Avi~~seu ;;:orne era pronun-
histórias de tortura, pressio!lou congressistas e preparou material visual e ciado como Sad.dam.lembrando sadismo e danação, e como Sod-dom, lem-
impfesso para a midia. . brando sodomia. Os~entando uma retórica racista c sexual,- Bush afirmava.
Em 17 de janeiro de ·1992, o.programa ·'20/20" daABC revelou' que o que os americanos iam à·gucrr:i contra o "caos negro" de um "ditador bru-
testemunho de um "médico", dizendo que havia "enterrado catorze recém· tal~ que o!JtdG'cia à "lei da selva" e "violava sistematicamente" um "vizinho
nascidos arrancados das incubadoras pelos soldados", também era falso. O pacífico''li'frâdo em ]oel Bleifuss,''The First Stone," In These Times, 20-6 de
"médico" era na Verdade d~ntista e, depois, admitiu n_aABC que nunca tinha març'o de 1991: 4). O subsecretário da defesa Paul Wolfowitz era citado no
exanllnado os bebês e que não tinha como saber de que haviam morrido. O mesmo artigo, perguntando retoricamente se alguém "deixaria wn homem
mesmo o'correu com a Anistia Internacional, que publicou um relatório ba· como esse [H~seinj -pôr as mãos sobre aquilo que representa essencial·
seado nesse testemunho. (A Anistia Interrl.acional depois se retratou do rela- mente os órgi\os vital~? do mundo".
tório, que fora citado com freqüência por Búsh e por outros membros da. Em toda a história americana, a Vingança da violação - especialmente
sua administração). AABC também revelou que a Hill & Knowlton enco- a violacão de mulheres brancas por homens não brancos - foi usada para
mendara uma pesquisa (~jocus group"), que reúne grupos e pergunta às Iegitim~r ações poUticas e militares. Os dramas que narravam o cativeiro de
pessoas o qtÍc as comove ou revolta.A grande maioria respondeu que eram nwlhere:5 branca:5 capturadas c violadas por indígenas constituíram um
as atrocidades dos iraquianos com os bcbê_s, e a HHl & Knowlton mostrou gênero-padrão qa literátura colonial; na: guerra com a Espanha, os jornais de
essas pessoas nas aunpanhas do Partido Republicano pelo Kuwait livre. Hearst popularizaram a história do rapto de uma mulher cubana de classe
O efeito da satanização de Saddam Hussein foi a criação de um clima alta pelos espanhóis como pretexto p4ra a intervenção a'~lericana. john
em que se privilegiava a necessidade de tomar medidas militares decisivas' GotÚiep escreveu em The Progressive, que:
para. eliminá-lo. Um sem-número de histórias foram contadas inumeráveis
vezes pela grande mídia; falavam de sua brutalidade, reproduzindo às vezes Bush não só usou a violação como justificativa para a guerra contra o Iraque,
de maneira acrítica os relatos da Hill & K.nowlton.Além disso, falava-se o mas também( ...) citou o assédio sexual à esposa de um oficial americano por
temp; todo das armas químjcas dos iraquianos, de seu possível potencial um soldado panamenho cotÚo wna das razões para invadir o país, e( ...) usou
nuclear e de sua capacidade de patrocinar ataques terl,"oristas/nos Estados a violação de uma mulher branca pelo detento negro Wíllie Horton para ata·
Unidos e nos países aliados - histórias divulgadas pela administração Bush car Michael Dukalds em 1988.
para satanizar os iraquianos.A TV dava notícia de estações de rádio que to- (abril de 1991: 39)
cavam paródias de róck com letras que falavam mal de Saddam.Aparece-
ram várias camisetas com imagens maliciosas de Saddam Hussein e dos ira- Além de promover n:taciça campanha publicitária, o governo america-
quianos. Certos tablóides publicavam noticias senpcionalistas com· deta- no também envidou grande esforço para controlar as informações e as ima-
lhes sobre se.us supostos crimes c perversões sexuais (Ri.frts, 1994).É como gens. For montado um sistema de pool que rcst,ringia ·o acesso da impren-
se a cultura popular e ·política americana precisasse de demônios para sen" sa aos soldados e ao campo de batalha; os jornalistas eram levadOs em pe·
tir-se segura de sua própria bondade, e a mídia respond~sse com a demo- quenos grupos a lugares escolltidos, sendo <\-COmpanhados o tempo todo.
nologia do Pitador iraquiano. por militares· que restringiam seu acesso aos locais e até censuravam suas_
Portanto, o retrato extremamente negativo que foi pintado de Hus- reportagens. Esse foi _o controle mais cerrado sobre a in1prensa de todas as
sein e dos iraquianos excluiu qualquer possibilidade de solução diplomáti· guerr-.ts da história americana, garantindo-se, assim, que fossem cr_iadas ima-

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gens e reportagens pos~tivaS da guerra. O sistema de póol foi cri;tdo depois Não só se ignorou o discurso do movimento Contra a guerra,' como
da invasão de Granada, em ·que a· imprensa só teve permissão para entt".tr rainbém ~nenhum dos especialistas_em política externa ligados '<ltl movi-
na ilha depois de levada a cãbo considerável atividade militar. Foi criada mento pacifista - como Edward Said, Noam Chomsky ou os acadêmic(Js do
uma comissão incumbida de ftxar as regras segundo ~quais a imprensa te~ InStitute for Policy Studies - 'apaicceu em nenhum dos noticiários da noi-
da permissão para cobrir a ação militar eni grupüs supervisionados por nii- te" (FAIR, Comunicado à Imprensa, janeiro de 1991). Unia pesquisa do TI·
litares que também ieriam poder de censura. Esse sistema foi usado tanto mcs·Mirror,porém, documentada em setembro (te 1990 e janeiro de 1991,
na invasão do Panamá quanto na guerra contra o h-aque, cOm resultados ex- descobrru..,.«plumlidadc no público, dizendo que queriam ouvir mais sobre
' :"<- •
tremamente controversos.'<i<l a opinião .dos a~ericanos que se opunham1 ~..c~~id~~',..~e forças ao Go~o"
Além disso, foram poucas vozes de importân.cia que puderam ser ou- (Special Trmes-Mtrror News Interest Index, SE;~ Janetto de l99l).Alem
vidas contra a guerra na ·grande núdia durante os primeiros meses de mo- disso, os soldados que se alarmaram com a mobilização para o deserto sau-
bilização de tropas na.Ar,ábia Saudita. Um estudo feito pelo grupO FAIR,ob-· "dita e objetaram, indicando as condições primit~vas de vida no local, foram
servador atento da mídia,'re\•elou que durante os cinco primeiros meses de silenciados,em parte por restrições in1postas pelo Pentágono à cobertura
cobertur-a da crise pela T\~ a ABC dedicou apenas 0,7% do temp'o à pela .jmprêrf$a e em parte pela atitude da própria imprensa, de não desejar
oposição à mobiliZação militar.A CBS dedicou 0,8%, enquanto a NBC dt;di~ buscai"iJplrifões discordantes. ,
cou 1,5%, otl seja, 13,3 minutos para todas as reportagens sobre protestos, " E no entanto, às vésperas da guerra, mais de 50% do público america-
o,_rganizações antibélicas e gente qlre se Opunha por questões de consciên- no se opunham à solução militar para a crise. Talvez a imagem da separa.·
cia e religião. Por conseguinte, dos 2.855 minutos de cobertura da crise ção das famílj~s e do eóvio de jovens para o deserto saudita tenha produ-
pela TV, de 8 de agosto a 3 de janeiro, o grupo FAIR descobriu que apenas zido uma reação negativa à possibilidade de guerra naqucla região, onde
29 minutos, cerca de 1% do tempo, foram dedicados à opoSição popular à '
,poderiam perecer muitos americanos.Apesar da ausência de discursos crí-
intervenção militar americana no GolfO (FAIR, Comunicado à lmprens.'l, ja- ticos na mídia, talvez muitos jndivíduos ainda pudessem pensar sozinhos e
neirode 1991). nutrir opiniões antibélicas na contramão de um governo e de uma mídia
As póucas imagens de dcmo~strnções antibélicas nos Estados Unidos cuja propensão em pela solução militar. Talvez a lembrança do Vietnã e das
que apareceram ·durante a criSe do Golfo eram freqüentemente justapostas desventm-as militares dos Estados tznidos causassem apreensão em torno
a demonstrações antiamericanas feitas pelos árabes, com queimá da ban- de uma guerra. no Golfo Pérsico. Mas a desinformação e a propaganda tive-
deira americana. Essa justaposição, codificaVa o~ manifestantes antibélicos ram sucesso, visto que convenceram a maioria doS países das Nações Uni-
como árabes, oponentes irracionais do plano de ação americano. Os mani- das e o Congresso americano a apoiar a declaração que legitimava o uso da
festantes americanos eram retratados como uma turba indisciplinada, mar- forçá~ para expulsar o Iraque do Kwait. Inicfada a guerra, o governo Bush
ginais cabeludos; seu discurso raramente era citado, e a reportagem focali- logo foi capaz de obter apoio· para as suas posições. Como isso foi possível
zava mais a repetição di: slogans, ou imagens de passeatas, cujos contexto e de que modo os estudos culturais podem contribuir paffi explicar o
e interpretação eram fornecidos pela fala do repórter. Os pr~cipais jornais apoio público a uma avcntma militar repulsiva e condenável?
e revistas também deixaram de cobrir o novo e fervilhante movimento an-
tibélico. Portanto, assim como a mídia construiu simbolicamente uma ima~
gem negativa dos manife·stantes. antíbélicos dos anos 1960, mostrando-os A G1!ElUU\. J'UBUCITÁRJA NA MÍDIA
como irracionais, antiamericanos e anarquistas, também· as redes de TV
apresentaram o mo\imento antibélico que surgia nos anos 1990 com uma Quando os EUA deram irúcio à ação militar contra o fraque em 16
aparência predominantemente negativa. de' janeiro de 1991, a grande mídia transformou·se em canal de comuni-
cação das ações políticas do governo e do Pentágono e raramente permi-
tia que suas posições, sua desinformação e as atrocidade's cometidas
160 Ver estudos eriticos do·sistema de pool nas seguíntes publicações: suplemento de durante a guerra fossem criticadas. A televisão funcionou sobretudo
dómingo do New lt>rk Times, -3 de março de 1991; Wilsbtngton ]ounwltsm Revtew comq instrumento de propaganda para as forças nlultinacionais.réunidas
(março de 1991); Columbia]ourhaltsm Rivlew, março/abri! de 199i,p. 23-9;/ndex on contra os iraquianos e como chefe de tmbda para cada uma ~e suas vi·
Omsorsh!p, abril/maio 1991; Le monde dtplonu/tfque, maío de 1991, p. ll-8: e artiSo5
do Nl!llllbrkTinw$ em 5 e 6 de maio de 1991,além do estudo em Kellm:r, 1992b. ,- tórias.Alguns âncoras como Da9 Rather da CBS e Tom Brokaw da NBC fo-

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ram à Arábia Saudita c, juntamente com ·os correspondentes internaCio-. sendo ressaltadas. e a narratiVa erJ. orientada para uma· conclusão "'feliz,
nais que ali estavam, pareciam identificar-se totalmente com o pontó de - semptc apresentada como uma vitória espantosa.!
vistanülitar. Sempre que alguma proposta de paz era feita pei~s iraquia- Obviamente era grande o. interesse das redes de TV em atrair o públi·
-nos ou pela União Soviética, as redes de TV logo as descartavam 'como co para a sua prógramáção, e a concorrência entre elas girava em torno da
inadequadas~ apresentavam as posições do governo americaQ.o e do Pen~ cobertura mais patriótica, emocionante c completa. Para expor adequada·
tágono sobre todos os aspectos da guerra (para uma análise critica siste- mente essa dimensão do texto da Guerra do Golfo, será preciso enfocar a
mática, ver Kellner, 1992 b). sua produÇli'õ dentro do contexto da economia política da télevisão co- ,
A mídia enquadrou a guerra como· uma narrativa emocionante, uma· merda!. Em primeiro lugar, a fonte de notícia$, da grad~ mídia limitava-se
minis..'>érie notuma, com conflito dramático, aÇão e aventura, perigo para 'as praticame~te ao govémo e às forças armadas~l~ocorda em parte devi·
tropas ·aliadas e para os civis, maldade perpetrata pelos vilões iraquianos e do ao Sistema de pool, que restringia o acesso da mídia ao tcâtro de-
ações heróiC<l$ cometidas pelos estrategistas americanos, por sua tecnolO- batalha e censurava todas as imagens e textos transmitidos. No entanto, as
gia e suas troPas.'Th.nto a CBS quanto aABC usaram nas primeiras horns da próprias rede;s também rest~~ngiam o espectro de vozes que se faziam ou·
guerra o logotipo com as palavras "confronto final no Golfo", que a CBS vir. Um l{;v<iry_{amento feito pelo grupo FAJR sobre a cobertum dada pela
continuou utilizando durante toda a guerra, o que codificava o evento TV nas ~:fã~)Srimeiras semanas de guerra revelou que das 878 fontes no-
como uma batalha entre o bem e o mal. Na verdade, a Guerra dO Golfo foi ticioSas utilizadas pelas três principais redes comercia.is, apenas 1,5% ~ta
apresentada como um fihne de guerra cóm começo, meio e fim. O dramá- constituído por manifestantes antibélicos, o que equivalia a aproximada-
tico bombardeio de Bagdá durante a npite de estréia e as émodonantes ba,- mente a quanWJade de pessoas às quais se pediam comentários sobre o
talhas com o Scud do dia seguinte cativ~m o grande número de especta- modo como a Guerra do Golfo havia posto a perder os· seus planos de via·
dores, e as semanas que se sucederam foram pródigas em emoções, àJtos e gem. Nos 42 r:oticiários noturpos, foi entrevistado apenas um líder de uma
baixos, surpresas e um roteiro riquísSimo.As ameaças de uso de armas quí- organização pacifista, enquanto se perguntava a sete jogadores de-futebol
micas, de terrorismo e de llma sangrenta ofensiva iraquiana por terra pare- o que eles adiavam da guerra (citado emjoei-B\eifuss, In These Times, 20
ciám produzir muito medo dds telespectadores c ajudavam a angariru.- de março de 1991: 5).
apoio contra os vilões iraquianos (ver documentação no estudo abaixo).A · Por outro lado, nas reportagens que se seguiam, a televisão retratava
guerra terrestre em especial produziu um pico de dramatiddade, com des- manifestações favoráveis à gu~rra, fitas amarelas e a onda de patriotismo
fedio rápido e final feliz para a guerra (pelo menos para aqueles que tor- que aparentemente varreu o país. As grandes redes também personalizá·
ciam pela coalizão liderada pelos Estados Qnidos). vam as tropas a'mericanas e suas famílias, vinculando, assim, o público ao
· A televisão também apresentava a guerra viSualmente com imagens contingeme que estava no deserto, ajudando a angariar apoio para a políti-
dramáticas produzidas pela tecnologia e reprisadas em vídeOs blgh-tech ca militar americana. Naqueles dias, Os telespectadores foram mobilizados
que mostravam com precisão os bombardeiOs, a guerra aérea sobre B<Ígdá no Sentido de respaldarem todas as medidas tomadas pelo governo c pelo
e as batalhas entre Patriot e Scud sobre a Arábia Saudita e israel. Os efeitos Pentágono, e, como a guerra avançava s<:m tropeços e com relati~ rapidez,
da guerra sobre as fanúlias americanas foi um tema constante; o patriotis-· o país foi Sendo dominado por uma euforia de vitória 1como se estiv~sse ga-
mo e o apoio às tiopas era um refrão permanente dos comeqt:idores. O~ vi- nhando a supertaça das guerrns e fosse, portanto, um campeão mundial.
deotapes liderados pelos militares, que mostravam os bombardeios com Tais imagens e tal discurso ajudaram a angariar apoio para uma guerra que
afta precisão tecnológica, eram reapresent.'tdos várias_ vezes, comó ocorre dificilmente 50% do público e do congresso desejavam às véspe~s do
com o Teplays dos grandes feitos esportivos. De fato, cr.-un cOnstantes as bombardeio de Bagdá.
metáforas esportivas, e -os manifestantes favoráveis à gtli:rra entoavam Além disso, o público era levado pelo terror a dar apoio às tropas
"USA!~"llSA!", como torcedores de estádios·, como se a Guen-a do Golfo fos- americanas; para tanto, t)_J!l~--~~!-:ie._ife_ prop'!-g~n~;ts fqU:nagi~u,-alm_eJlt_e or~.
se uma decisão de campeonato. Os militares e a núdia mantinham UTQ pla- _g_u_~'!.!E~Q.~- p_9o _g9verno Bosh ~ pelo Pentág<m.o. Logo no começo da ..cr~­
car diário -com a contagem dos tanques e do equipamento iraquiano elimi- se, vazaram notícias de que os iraquianos estavam levando armas qmmt-
nado, embora a cObertura pasteurizada da guerra não coiJ.Í~se "baixasn; nÚ· cas para o campo de batalha, e durante toda a guerra foram muitas as no-
meros e imàgens de soldados mortos ou ferido.s eram coisas estritamente tícias de ameaças do uso ~c arma~ químicas por parte do Iraque.1àmbém
proibidas. A "vencibilidade" e a justificação para· a guerra estavam Sempre eram quase diárias as reportagens sobre as ameaças de terrorismo maní·

270 271
pulado pelos iraquianos. Quando os iraquianos expuseram os prisiOnei- das eram as chamadas "bombas inteligentes~, e que mais dc-70% ct:.S"'bom-
ros ameri_canos na TV, at1rmou-se qúe eles estavam sendo torturadOs. Essas bas l;mçadas não haviam atingido o alvo, enquanto as imagens da guerra
reportagens criaram histeria coletiva em certos setores da população que high-tech passavam a impressão de extrema efidência.Tarnbéni foi revelado,
viam positivamente o envio de tropas. Ademais, depois dos ataques ira- qUe grande porcentagem das baixas americanas decorreu do chamado"fogo
quianos com os mísseis Scud a Israel e à Arábia Saudita, surgiram reporta- amigo"; ou seja, do bombardeio das próprias tropas americanas.
gens que mostravam milhares dç pessoas comprando máScaras, de famí- Embora a grande mídia tenha servido de veículo de propaganda para
lias inteiras vedando compartimentos da casa para proteger-se de even- o govcrno,c"às forças armadas americanas, a n6sso_vcr a rriídia em si n~ é
tuais ataques químicos. Obviamente, essa histeria ajudou a angar~ar mais instrumento de propaganda do Estado, como ~rgumehUVU algtms (Herman
apoio contra os iraquianos, levando as pessoas a desejarem sua derrota c Chomsky, 1988; Chomsky, 1989).Ao cOntráiW,0~veríàtnos ver _as princi-
militar c sua punição. pais rede..~ comerciais de tele_visão con~o máqui.tlM ~e fazer dinheiro, -~m
Analisando-se o discurso de gucrm da perspectiva da produção e dos bUsca de audiência c "lucro. Se a guerJ;a e popular, entao, na luta por audlen-
efeitos da repreSentação que a mídia fazia da guerra, conclui-se que a tele- cia, as redes de televis.'ío apresCntarão uma imagem positiva da guerra, eli-
_minando-vozÇs discordantes, como ocorreu com a Guerra do Golfo. Ade-
visão e a grande mídia scrvifam· de arma de propaganda para o _governo
americano. A mídia repetia sem parar as '·grandes mentiras" da administra- mais, a' ~I Electric c a RC;-\, dona~ _da_ NBC. são importantes :ol'~ec~:
doras dcólarmamentos e tucrar1am mmt~Sstmo com uma guerra v1tonosa,
ção Bush, como por exemplo as alegações de que estavam sendo em-ida-
assim a NBC serviu docilmente como órgão de propaganda do Pentágono
dos esforços para negociar um acordo de paz com os iraquianos, enquanto
desde' 0 comc;ço até o fim da. guerra (ver documentação e~ ~e~lner,
o próprio governo minava a possibilidade de um acordo diplomático. A
l992b). Áfirrri8u-se que aGE produzia peças para todos o!i ponctpals a~­
grande mídia repetiu até o fim que o objetivo da guerra americana era li- mamentos usados na guerra, de tal forma que a filmagem das armas amen-
bertar o Kuwait, ao passo que estava evidente que o verdadeiro objetivo canas e as efusivas reportagens sobre ·sua maravilhosa tecnologia, na
em a destruição das forças armadas iraquianas e cht infra-estrutura ecotlõ-
Verdade, ernm uma propaganda gmtuita dos produtos da GE/NBC - na rea-
mica c militar do Iraquc. E a mídia repetia todos os dias as mesmas palavra._<;, lida:de, a intenção de promover a vcrida de armamentos americanos ern ~m
amplificando as afirmações do governo Bush sobre; a alegada tortl!ra e os
dos principais objetivos da guerra. .
supostos maus-tmtos infligidos aos prisioneiros americanOs (mais tarde ve- · Mas foi 0 ''liberal" Dan Rathcr da "liberal" CBS que funciOnou como o
rificou-se que era tudo um grande exagcro);dizia-se que uma fábrica de lei- maior torcedor e aniin.ador das forças ammdas. Nos primeiros dias da
te em pó iraquiana destruída por bombardeios. americanos na verdade era guerra, Rather era o repórter mais cético e critico. Mas, como sua audiê~c
uma instalação militar que produzia 'armas químico-biológicas, que um da estil-va caindo, ele foi para a .Arábia Saudita fazer uma. reportagem tn
abrigo para civis era na realidade um centro de comando militar, ou que o tOco. Dai por diante, passou a louvar as forças armadas e transforn!ou-s~- no
"terrorismo ambiental" iraqui_ano era responsável pelo vazamento de petró- mais fervoroso defensor da guerra terrestre, e.-..::ultando com a açao militar
leo e por outros desastres ecológicos no Golfo Pérsico (quando, na "fulminante", ~magnífica" e "brilhante" que massacrava os ~esafortunados
verdade, a responsabilidade cabia ao bo!fibardeio dos aliados; ver docu- iraquianos, totalmente desmoralizados depo!s d~ quarenta dtas ~e bombar-
ment.'lção em Kellner, 1992b). deio e sem tecnologia para comb'!-ter a maqwna de guerra htgh-tech da
Ag___t'il!l~~ ~_Qja_projetou a imagem da- guerradesejada_p~lo...E!;JIJt"\gQ:___ coalizão intcrnacionallidemda pdos EUA.
no c pela administração Bush, ou seja. que aquela· era_ uma guerra hikh-tech A ausência de opiniões críticas significativas na grande mídia dumnte
eminentemente limpa e bem-sucedida. Desde o começo, o bombardeio do a crise do Golfo e, depois, na Guerra do Golfo também pode ser explicada
lraque foi retratado como eficiente c humano, objetivando apenas as insta: por meio de uma reflexão sobre a economia política da mídia ~ d~s seus
lações militares. Repetidas vezes, apesar das imageJlS do Iraque mostrando o sistemas de produÇão nos Estados Unidos. Os meios de comumcaçao por
contnúio, o Pentágono e o governo &ish enfatizaJ;am a precjsão dos bom- televisão e rádio tôn medo de co_ntrariar aquilo que parece ser um consen-
bardeios, que era·demonsl;Tada por câmaras de vídeo instaladas nos próprios so popular, de afastar-se do público e de defender pontos de vista impopu-
mecanismos de lançamento das bombas. Assim também as freqüenteS ima- lares porque rec~iain perder s1m fatia de audiênc!a e, portanto, seus lu~ro~.
gens dos misseis Pattiot, aparentemente derrubando os mísseis Scud iraquia- Como as ações militares americanas fomm apmadas pela grande mato~a
nos, criavam a impressão de que aquela era uma guerra tecnológica limpa. das pessoas, pelü ~1enos nos prim~iros estágiOs, a tclcvb-ão relutava mmto
Mais ta. de, o próprio Pentágono admitiu qúe apenas 7% das bombas utiliza- em criticar aquilo que poderia vir a ser uma guerra popular.

272
A televisão e o rádio também costumam depender de um número res- RaiJ,ht.auren, apareceram bordados da bandeira americana. Os anún~io's da
trito de comentaristas fixos e confiáveis e senteni-se pouco propensos a Britches aprego·avam um tipo de- moda chamado de "Patriotismo Rústico"
buscar opiniões novas e controvers~ num período de crise nacional. A mí- enquanto a Ross-Simon anunciava um "Patriotismo Elegante" (McAllister,
dia geralmente espera até que um político importante ou um ''especialista» 1993~224). O discurso da propaganda trocou o "você" pelo "nós", associao- ,
se manifeste contrário a·determinada política e que es~e ponto de.vista ob- d.o os produtos e a nação com "as._nossas tropas".As bolas de golfe tinhan:t
tenha certa credibilidade nas pesquisas de opinião ou em publiêações de o- rosto-de Saddam Hussein desenhado; uma c'!-miseta ti"'J.Zia nm desenho de
jornais ou revistas "respeitáveis». Infelizmente, a crise da democracia nos Hussein fugindo de um míssil com os·seguintes dizeres:"Você pode correr,
Estados Unidos é de tal porte que o Partido Democrata tem dado grande mas não consegue se esconder". Outra· pr0pa$and.a ap'h;lsen,tava uma "cami-
apoio às medidas conservádoras na última década, e os líderes p~JítiCos são sinha" Saddam com "Instmções: Use este pd,~ara '&Vitar COisas irÍdese-
extremamente cautelosos e demorados na critica às açõe~ de Política e:X- jáveis como ~addam Hussein", e no mercado se encontrava toda uma para~
terna, em especial às ações militares que possam ter apoio popula,r.A .Crise fernália"Tempestade no Deserto" (ibid., 1993)., · ,
do liberalismo é tão profunda nog, Estados Unidos que Ós liber-ais do gover- O resultado do ataque propagandístico e da histeria da guerra foi uma
no têm medo ,de ser chamados de"traCotes" ou "moleirões~ diante da·agres- nação de_;g\tÚreiros que transformou muitos telespectadores em torcedO-
são externa, dando assim apoio a medidas que seus melhores instintos os res ~a~âf4~'ÔStÚo governo B~sh e da política Pelicista.
levariam a rejeitar.
Por conseguinte, as únicas criticas à intervenç;\o militar americana
ouvidas na grande mídia durante as. primeims semanas da intervenção \ri e-
ram de"falcões", como Zbigniev Brzezinski, e até de alguns êonservadores
ultradireitistas, como Pat Buchanan, enquanto os democratas e os liberais Parte dci motivo pelo qual as pessoas apoiaram a Guerl"'a do Golfo tem
tendiam a aderir à mobilização militar inicial, até que Bush dobrasse as a ver com aquilo que se poderia chamar de "instinto territorial de horda".
forças americanas depois da eleição de novembro de 1990. Então os demo-
cratas passaram a dar apoio à política de sançõei; (em vez de reivindjçarern
um acordo. negociado) e, iniciada a guerra, a maioria deles apoiou a pnlíti-
ca do governo, o que aponta novamente para a crise do liberalismo nós Es-
l
'I
Quando um país que está em guerra e em perigo, o seu povo tende a apoiar
seu governo e a unir·se. "32 Seria . possívt:l argumentar, porém, que durante a
Guerra do Golfo o país realme'nte não estava em perigo, que uma solução
diplomática, e não militar; poderia ser mais lttil ao~ interesses nacionais, e
tados Unidos. que o apoio às tropas implicava trazê-las de volta para casa o mais breve
Além disso, a natureza comercial da televisão também intensificou os possíveL Além disso, o país estava genuinamente dividido no começo da
efeitos propagandísticos da cobertm3. da Guerra do Golfo. As grandes guerri', e havia um amplo mOvimento antibélico antes que Bush ~esse
agências de propaganda estavam muito preocupadas com o impacto ·nega• início às hostilidades cohtra o Iraque.Acresce que, scgundo.Kolko (1991:
tivo de uma f!Ossível associação entre seus produtos e eventos _controver- 25), a opinião pública desde 1969 era cact.i. vez mais contrária ao interven-
sos e taivez deprimentes como uma guerra. '61 No entanto, a_ guerra prosse- cionismo, e todas as pesquisas de opinião feitas pela Rand Corporation in-
guiu, muitas empresas moldaram suas propagandas ao crescente patriotis- dicavam que uma intervenção militar americana não teria suficiente apoio
mo, semeando seus anúncios co_m bandeiras, elogios às tropas c;: slogans pa- popular. No "entanto, durante a Guerra do· Golfo, o público foi levado a dar
trióticos. Em centros comerciais como Bloomingdale e Neiman r\..Jarcus sur- apoio à política intervencionista de Bush, em parte, pelo rrienos, devido ao
giram lojas enfeitadas de azul, branco e vermelho; o mesmo aconteceu ~-om apoio que a mídia deu à guerra.
seus anúncios. Nos roupões, nos calções de banhO c em outros objetos Para começar, o consensO favorável à guerra foi obtido por meio de
uma identificação entre o público e as tropas, conseguida de várias manei-
ras. A TV apresentava imagens ao vivo, através de ~comunicados do deser-
161 Num outro artigo ·muito elucid~tivo que miiizamos neste estudo, McAUistct (fn
Denton 1993: 212) aftrma:"Durante a Guerra do Golfo, a propaganda produzida pelo
governo foi menos prevalecente d6 que durante as guerras mundiais" Mas McAl!lstcr t6:Z Em seu livro The TerHt&r/.at Imperattve (l<::Jndres: Fontana, 1967), Robert 1\rdrey
nparentemente deb.:ou de ver as campanhas que analisamos aqlll, e que foram ~ita: · conta que, na época do n1aque n Pearl Harbor, era dramaturgo em Nova York e bÓ pen·
mente os anúncios por e!e esto.~dados que cÓnttibuíram para os efeitos da cobertUra sava na carreira e na vid.1 pesSoal, mas tr:msformou{;e em p'atriota da noite para o dia,
dnda pela TV ao en:nto bélico. quando perçcbeu que su.1 pátria estav:t em perigo.

274 275
to'', em que se viam figuras simpáticas de jovens ámericanos de ambos os tamento, 72% dos entrevistados consideraram obje~va a cobertura da im-
sexos" e.'ípostos ao perigo'' a serviço da pátria. Os noticiários de televisão prensa, e 61% a consideraram pt·edsa em sua maior parte. Oito em cada dez
que tratavam das famílias dos soldados também criavam mecanismos de pessoas disseram que a imp~fi:Sa tez um ótimo trabalho, 50% af"lrmaram ser
identificação, principalmen'te porque muito's deles eram reservistas, obriga- viciados em TV e disseram que não conseguiam parar de ver as reportagens
dos a deixar emprego c família, o que os transformava: em objeto de solida- sobre a . guerra. Oos adultos com menos de 30 anos, 58% se qualificaram
riedade, empatia e identificação para aqueles que fossem capazes de ver-se· como "viciados em notícias de .guert'a", e 21%-dcsses "viciados" disseram
em situação semdhantc.1hmbém efa freqüente mostrar grupos furmados que estavarittendo problemas para éoncentrar-se no trabalho e nas ativida-
em igrejas e escolas para ':llilnter correspondência com as troPas sediadas des normais, enquanto 18% disseram que cst~yam sofrendo de insônia ..
na Arábia Saudita, ligando-se ·assim mais irÍtimaínenie os qúe estavam em A·nosso ver, toda a midia e todo o ambiéntç~cialCram responsáveis
casa aos que se encontravam fora. CO!UO veremos nesta seção', as pessoas /
pela mobilização de apoio para a política ameriCana de guerra. Da manhã
também se ligavam às trop~ flOr meio do rirual de exibição de fit~ amare- à noite, a nação era bombardeada por imagens de militares, vinhetas Qe sol-
las, de cânticos e do desfraldar da bandeira em demoristrações favoráveis à dados nos Estados Unidos e no exterior, das fainílias dos militares, de anti- .
guerr-J., além de ingressarem çm vários grupos de apoio. gos pQ.siqn~Úr!)s de guerra e de outras pessoas ligadas aos militares. Hguras,
A mídia também gerou apoio para a guerra, primeiramente por meio imagenSt~·tifJcursos militares dominavam os programas de bate-papo ma-
de avaliações otimistas dos sucessos americanos e depois pela satanização tinaf, os ~oticiádOs, as mesas·rcdondas e as 24 horas por dia da cobertura
dos iraquianos, o que levou o público a desejar fervor-osamente uma vitória de guerra pela CNN, além da saturação produzida pela C-Span c por muitas
da coalizão. No início, o apoio foi obtido por meio da euforia gerada pela outras redes d!il: TV a cabo. Nas redes via satélite, os canais eram saturados
~
midia, con1 base na perspectiva de desfecho rápido da guerra, com vitória por transmissões ao vivo da guerra, com reportagens preparadas no campo
decisiva e fácil- por parte da coalizão liderada pelos Estados Unidos. A de batalha ou'. transmitidas diretamente de lá, c uma da.<> enlissoras fornecia
segúir, o público viu-sf: dentro do drama da guerra ao sentir~ emoções das várias horas por dia de filmagens ao vivo da Arábia Saudita para uso das re-
b~talhas contra o Scud e a sensação da tecnoguerra com suas bombas guia- des. - propaganda gmtuita fornecida pelos militares. 9s noticiários substi-
das e mísseis guiados a laser e os vi~eoteipes de seus sucessos. A questão tuíram a programação regular da 'IV durante várias semanas. O resultado foi
dos prisioneiros de gue1·ra, do vazamento de petróleo, dos incêndios por uma militarização das consciências c a criação de um ambiente Qomlnado
eles causados e da intensa propaganda feita em ambos os lados também en~ por imagens e discursos de militares.
volveu o público numa expetiência emocional de guerra pela 1V o drama Já fizemos notar que o público foi levado pelo terror a identificar-se
da gucna era genuinamente emocionante, e o público imergiu nas ima-: com a inten'enção militar americana, e são fortes os indícios de que real-
gens, nos sons e na linguagem da guerra. mente.(, uma histeria de guerra varreu o país. Os noticiários de televisão apre-
As imagen~ transmitidas pela· mídia das bombas dotadas de Precisão, sentavam rePortagens freqüentes sobre o tremendo aumento nas vendas de
high-tech, das (aparentes) vitórias do Patriot sobre o Scud, do bombardeio produtos usados na guerr_a pelo cxér<:ito. Havia corretores da bolsa que
do lraque, dos armamentos militares e das tropas ajudaram a criar em çompravam máscara.•• para gás porque temiam um ataque terrorista no me-
grande parte d() público sentimtntos positivos em relação ao esforço mm-· trô de- Nova York. Lojas de todo o país vendiam máscaras .em grande quan-
tar americ_ano. A linguagem militar ajudou~ tomar normal a guerra; a pro- tidade apóS a dramatização dos ataques a Israel pelo Scud e de uma notícia
paganda e as campanhas de desinformação mobilizaram um discurso pró- d~ 'que os guarda-costas do presidente Bush estavam carregando máscat".ts
bclicista, e as imagens e os..discursos negativos contra os iraquianos ajuda- - Contra gás todo o tempo. Um noticiário de TV mostrava uma vendedora di-
ram a criar ódio ao Iraque e a Saddam Hussein.As pesquisas de Opinião fei-" zendo que, naquele dia, uma mulher havia entrado desvairada ila loja pe-
t.as durante as primeiras semanas da guerra revelaram que crescia 0 apoio dindo uma coberta de plástico para ·a cama do· fll_ho "igual àquela que usam
ao esforço bélico, indicando uma propensão generalizada a acreditar em em Israel~. Em 29 e de janeiro, a NBC apresentou um mulher comprando
tudo o que a mídia e os militares eStaVam dizendo. Um le-\--antamento' feito wna máscara para gás; dizia que o fllhÓ acordam aterrOrizado durante a noi-
pelaTimcs,Mirmr em·3t de janeiro de 1_991 revelou que 78% da poPUlação te, temendo um ataque, e que ela estava compr-.tndo a máscara para ficar
acreditava que os militares estavam dizendo basicamente a verdade, sem es- mais tranqüila. Em 3 de fevereiro, a CNN tmnsmitiu um noticiário qut: mos--
conder nada de embaraçoso a respeito da condução da guerra e fornecen- trava uma família de Atlanta compl".tndo máscaras para gás e construindo
do com prudência todas as informações que podiam. Nesse mesmo ICvan- "quartos segurqs" em casa para o çaso de um ataque terrorista.

276 27-7
. É difícil determinar o grau de medo e, em particular; medO do terro- rkanos inocentes que estavam no exterior eram vítimas de agressãb es-
nsmo,·evidente no públko americano durante a Guerra do Golfo. Em sua trangeira c vinculava os soldados com as pessoas que lhes davam apoio.no
análise da cultura simbólica da violência nos Estados· ·unidos1 George front doméstico.
Gerbner e colegas daAnnenberg School ofCommunication a'rgumentaram A exibição das fitas amarelas funcionava como talismã, encantamento
durante anos que a cultura de violência pela 1V produz uma síndrome dÕ par.t obter boa sorte e sinal de_ conformidade social áo ritesmo tempo.Alis-
~m.undo médio~, segundo a qual as pessoas submetidas a altas doses de vio- tava todos aqueles que as exibiam no esforço de guerra, tornandü-QS parte
lência tqnsmitidas pela TV são muito medrosas e tendem a submeter-se a da aventura:€omo numa espécie de ressonância mitológica, amarraditas
lideres conservadores que. ófereÇam· alívio para seus medos (Gerbner e às árvores era um ~cio de vincular cultura e natqreza, fi.<~turalizando a sOli-
GToss, 1976). Durante a crise do Golfo, Gerbner e associados (1992) fize- dariedade~ a comunhão daqueles que·apoiav1ffl··~Gue"fta do Golfo.As fi-.
ram uma pesquisa que indicou que o graú de violência da cultura cinema- tas uniiuh Simbolicamente a comuni.dade num tod~J.?lficadO pelo apoio às
tográfica estava aumentando significativamente; o nlunero de episÓdios dC tropas. '6} Portanto, as fitas indicavam que seu portador apoiava as tropas,
violência em continuações de filmçs populares como Roboci>p, Duro de era m:n ftliado leal da comunidade 'patriótica, tinha espírito de equipe e era
matm· e Os jOFens jJistoteiros dobrou ou triplicou em Gomparação com o um bom <\ffittlcano. També~ indicavam, porém, disposição para desfazer-
original, mostrando que uma cultura alimentada de violência precisa de do- se da càp~~idiide de pensar de maneira crítica e p~ra submeter-se a qqal-
ses cada vez maiores para suprir as necessidades. Essas doses fortes de vio- quer política e a qualquer aventura que o governo Bush intentasse.
lência na cultura popular, porém, crhim disposições para o medo que levam Na verdade, a visão das fitas amarcias hipnotizou a mídia, asSustou o
o público a procurar refúgio em líderes autoritários comó George Bush ou Congresso e dt;~oralizou os manifestante;; antibélicos. Em alguns ·baírros
Norma.n Schwarzkopf. e em certas regtões do país, elas estavam por todos os cantos, e alguns in-
A histeria de guerra nos &tados Un'idos produziu uma infa:ntilizáção divíduos que st recusaram a pôr fitas amareias em suas casas foram amea-
da sociedade americana, o que se evidenciou sobretudo no fetichismo das çados pelos vizinhos. Esse modo de conformidade forçada revela uma his-
fitas amarelas e nas manifestações favoráveis à guerra. As fitas amarelas ha- teria quase fascista desencadeada pela Guerra do Golfo e uma massifica-
viam sido 'exibidas amplamente na crise dos reféns do Irã, quando, no fim ção perturbadora do povo. Na verdade, houve muitos exeritplos de caril··
da dé,cada de 1970, alguns americanos foram retidos como reféns por mili- portamento protofascista na população americana durante a Guerra do
tantes iranianos. Essas fitas amarelas tiveram origem na Guerra Civil e nos Golfo. Um jogador italiano de basquetebol da Seton Hall Universit)r foi ex-
conflitos ·com os indígenas, durante os quais as famílias dos soldados exi- pulso do time quando se recusou a usar uma bandeira americana no uni-
biam fitas amarelas sempre que seus entes queridos estayam distantes, na forme, e acabou voltando para a Itália depois de ser fustigado por"patrio-
g~1erra, c eram aprisionados (cabe lembrar o filme de John Ford feito ~spe­ tas". A Professora Barbara Scott, depois de defender numa assembléia ·rea-
cmlmen,tc para Jo!"tn Wayne, Legião invencível [She Wore a l:éllow RibbonJ lizada no campus da State University of NewYork, New Paltz, que os mili-
e a canção popular "Tie a yellow ribbon 'round the old oak tree~).As fitas tares americanos não deveriam matar gente inocente, passou a ser apeli-
reapareceram quando alguns cidadãos americanos foram aprisionados dada de "Baghdad BarbarJ.", foi acusada de traição por um senador doEs-
pelos irJ.quianos no Iraque e no Kuwait durante a crise do Golfo. tado, c tornou-se alvo de uma campanha odienta veiculada por cartas ao
O simbolismo da fita.amarela na Guerra do Golfo combinava a cono· reitor da universidade e ao governador Mario Cuomo; reivindiéando a sua
tação de reféns c soldados em peti.go com uln discurso popular que Ptn-· demissão. Em Kutztown, Pensilvânia, um redator foi expulso de um jornal
tava as tropas americanas como reféns do louco "Sad-dam". Curlosam(.':nte por ter escrito um editorial intitulado "Que tal um pouco de paz?'.' e um
o simbolismo das fitas foi transferido dos reféns para os soÚ:i~do~· n~ outro foi demitido de um jornal de Round Rock, no Texas, por publicar
início, as fitas er.tm exibidas para lembrar a situação dos reféns mn~;ica­
nos no lraque, mas logo foram transferidas para os soldados. Essa t.ransfe- 163 Como escreveu Elissa M~rcter num trabalho- não publicado, 'Arbologies of Roland
I'ência simbólica indicava que as trOpas. americanas. ria Arábia Saudita eraln Barthes", o ato de ~maiTar firas em árvo~'<'s vale-se de ressonâncias mitológi,caS do tipo
reféns, mantidas a contragosto no ,deserto, devido à presença de u~ mal an~lisado por B.irthes em .Mytbologtes (1972). O próprio conceito de "Operação Tem-
que precisava ser cirurgicamente extirpado (na realidade:. as t.ropa'S ·e o pestade no Dtserto" é uma mitolo_g!a no sem ido dado por Barthes, de naturalização de
mundo todo eram reféns dos poderes políticos e militares iraquianos e eventos não natul."ais, transformando um fenômeno da história teia num evento <h na-
·americanos que produziam a guerra).O simbolismo implicava que .os ame- tureza, em que uma ineyltive! tempestade no deserto carreia a .justa retribuição para
os pecados de Saddam Hussein.

278 279
uma entrevista cóm um americano .de origem palestina que express~va Em outra camiseta se lê:"Eritre no exército, visite lugares ititeress'in-·
opiniões contrárias à guerra.""' . · · tes, conheça e maÚ: gente nova".
Os americ~o~ ?e orig~m árabe foram fustigados e intimidad~s pelo Além disso, foi intensa a violência contra americanos ~e origem árabe
governo.desde o ~tcto da cnse. Neal Saad disse que os árabes 'eram visita- tios Estados Unidos durante a Guerra do Golfo.H;s Mesmo antes do começo
dos pelo :FBI em casa, no local de trabalho e em seus bairros, sofrendo um da guerra, estouraram bombas em estabelecimentos comerciais de proprie-
interrogatório sobre. atitl;ldes em relação ~'política americana no "oriente dade de árabes, um comercil:j.nte foi surr-ado por uma turba de segregacio-
Médio, à OLP, às atividades políticas ilos árabes nos Estados Unidos e an ter~ nlstas branc0s"tm T~ledo, em Kansas uma família palestina foi alvejada e~
racismo (in Clark, 1992: 18~ ss.). Dllrn:nte a guerra, a fustigação foi intensi- seu carro, e um árabe que apareceu num progr-.tm.a de te!_~visão na Pensil-
~cada, e a. Pan Amcrkan Airlines de fato decidiu não· permitir passageiros vânia re.cebeu sete ameaças de morte. Mais tard(;:.!fh.va~d'·Said e outros ati-
arabes nos seus aviões! A identificação dos membros de uma das etnias de vistas árabes receberam ameaças de morte, e dura~ a própria Guerm do
um país" com "o inimigo" provoca a opressão das minorias"pertencentes· a Golfo, a violência contra os árabes recmdes_ceu. Os Estados UnidoS tinham,
esses grupos. Essa identificação ocorreu duraftte a Segunda Guerra Muiidial satanizado os árabes durante anos nas figuras de Yasser Arafat, Muammar
c~m os nipo-americanos que foram reco~dos em campos de concentra~ Kadhafi e de fekoristas.A satanização de Saddam Hussein e dos"iraquianos
çao e recomeçou na crise do Golfo com as investigações do FBI sobr'e os acendeu' ~~S racistas que se transformaram em violência contra os
americanos de origem árabe. O resultado foi a ressurgência do raciSmo americ"anos de origem árabe.
contm os ár.Ibcs e a ocorrência de atos de violência contra eles. No entanto, aS guerras também dh·idem os países entre aqueles que
O racismo antiárabe proliferou na ci.J].tura popular americana. Duran- apóiam e os que.fa_~O apóiam a política oficial e a Guerra_~o GoltO nã~ po~lia
t~ vários anos, os árJ.bes foram regúlarmente transformailos eni ·Vilões pelo deixar de produztr divisões e conflitos entre os amencanos. Polarizou-os
cmema de ffollywood e pela televisão americana (ver Kdlncr c Ryan, 1988 entre grupos favOráveis e contrários à guerra, afastou pessoaS que não tinham
c nosso estudo no capítulo 2), mas durante· a Guerra do Golfo os Sentimen- as mesmas opiniões, destruiu famílias, amizades e os vestígios de Comunidade
tos antiár.l.bes foram mobilizados contra os ilt!-quianos. As palaVras "Boffib que. sobreviviam à investida da televisão e da sociedade de consumo. Embora
ltaq" foram sobrepostas à letra da canção dos Bcach Boys, "Barbata Ann". , a1v retratasse a divisão com clareza no .caso de Arcata, Califórnia, cidade di-
Um programa de rádio na Geó'rgia proclamava "fim de semana do turba~­ vidida entre partidários e adversários da guerra (por exemplo, segmento da
te," dizendo aos ouvintes que telefonassem quando ouvissem 0 tradicional CBS de 24 de janeiro e um da NBC de 3 de fevereiro), enquanto a guerra
chamad? islâmico para a prece; um diskjockey de Toledo; Ohio, solicitou ocorria raramente chegaram ao conhecimento dos espectadores as genuínas
aos ouvmtes que levantass.em fundos para a compra de uma passagem aé- diVisões do país .em torno dela ou as opiniões antibélicas ..
rea para que um professor de origem iraquiana voltasse ao Iraque; ele criti- ouhnte a Guerra do Golfo os indivíduos não foram meros espectado-
cava a guerra.Jennie Anderson escreveu: res passivos da nÍ.ídia, mas houve demonstrações e organizações ativas con-
• tráÍias c favoráveis à guerra. Na verdade, o governo Bush deixava cill.ro que
No5 Estados Unidos, a propag~nda antiárabe é um· negócio quente. Uma ca. ou se era favorável à guerra e bom cidadão, ou contrário à guerra e mau ci-
miscta muito usada por aí mostra um fuzileiro naval ameriéano apontando dadão, um não-patriota. Em programas de rádio ê televisão 'qUe recebiam te-
um rifle para um árabe, que está no chão, com os c!izeres: QUANTO É o PE- lefonemas de ouvintes, ouviam-se ataques raivosos e agressi,vos aos que se
lRÓLEO AGORA? Outra camiseta muito vendida mostfa uns a"~<iõé~ militares manikstavam contra a guerra, e a televisão apresentava cada vez mais de-
atacando um árabe montado mun camelo, com os diz_e~s, EU voARIA: DEZ ~onstrações favoráveis à guerra e oposições violentas aos· não-belicistas. Em
MIL MIUIAS PARA FUI'viAR UM CAMEL 17 de jaÕ.eiro, durante ·um jogo de básquetebol em Missoula, Montana,
(The PI'Ogresstve, fevereiro de 1991: 28-9). e"uquanto" os manifestantes contrários à guerra estavam sendo arrastados
para fora da cancha peta polícia, a multidão atirava batatas sobre_eles_c entoa-
va "USA, USA". Na verdade, a televisão começou a exibir demonstraçoes favo-

165 A Ami-Discrimination League relatou que a incidência de atos violentos contra


164 Os três primeiros exemplos são do inverno de 1991, e os éxemplos estão documen- americanos de origem ámbe atingiu o ~uge em 19911,quando fo~m cometidos 119 cri-
tados no The léxas ObSINVi!r (H de fevereiro de 1991:8-9 e 19 de abril de 1991: 22). mes racistas; em 1990 foram 39 (NuwiDrk Times, 22 de feveretro de 1991).
l'áveis à guerrd quase todos os dias; nelas, a 'multidão desfraldava 'a· bandeira e televisão, Em. 2 de fevereiro, formou-se uma bandeira humana àin(fa maior
cantava. É rcvelador que essas demon~trações, geralmente pequenas, Sanha~ em Virginia Beach,Virginia, com quarenta mil pessoas entoando "USA, USN
vam mais cobertura do que as demonstrações contrárias 'de maior porte. As ~o .se tornarem uma unidade. com i pátria c a bande.irà. Em 15 de feverei- ·
redes de TY, por sugcst.'io da administração Busl}, passaram a dedicar mais ·-~ ro, a CNN fez uma reportagem sobre o novo patriotismo na qual apresen-
segmentos ao "novo patriotismo" e ao amor à bandeira Os noticiários moS:. - tava bandeiras esvoaçando em massa por todo o país, e as imagens da TV li-
travam muitas fitas an1arelas e bandeiras, e~ reportagens falavam de fábricas gavam a..'> bandeiras a retratos de George Bush, usando como fundo o hino
de bandeiras cujos gerentes rrial conseguiam atender à demanda. da camt'Jahha de 1988 do Partido Republicano.
· As divisões do p_a~ e a quase-histeria dos que defendiam a guerra Em todo o país, sempre que havia um<). rilaD:ü:estação pró-guerra, a
eram evidentes nas conversas de rádio. Nesses programas, era esmagador 0 __ multidão entoava "USA, USA!".A falta de cdJ:u.f,(ido éSpedfico num refrão
apoio·à guerra, e a maioria dos que telefonavam defeildiam o porito de vis- qtic favorecia um patriotismQ vazio contrasta::V'i-~""com os refrões e slogans
ta dos animadores, na maioria defensores da guerra (Nimmo e Hovind in antiguerra, que sempre tinham um conteúdo especifico - atacando a
Denton, 1993). Os ouvintes freqüentemente defendiam uin·ataque nuclear guerra, pedindo que as tropas Voltassem imediatamente ou afirmando valo-
ao b-aque e atacavam os não-belicistas, chamando-os de "lunáticoS", traido- . res específÍ.cos, como a paz. No entanto, as massas das manifestações pró-
res e de coisas piores. Muitos atãcavam Peter Arnett, da CNN, único corres- gue~_:qti'c,{entoavam "USA!~ sempre que tinham oportunidade, não esta-
pondente ocidental que ficara em Bagdá, dizendo que ele_era partidário dto: vam e~pressando quaisquer valores ou razões espécfficás pára sua posição
S~~dam Hussei~, e muitos animadores e ouvintes desse tipo de programa de apoio à guerra e aos EStados Unidos. Ao contrário, estavan1 simples-
d1z1am no ar que Ted Thrner, proprietário da CNN, tinha simpatia pelo Ira- mente imer!fi?do numa multidão e exprimindo um patriotismo primiÍrio,
que (Nimmo e Hovind, 1993: 95). Um dos ouvintes, por telefone, chamou um narcisismo nacional e ameaças agressivas a quem quer que fosse dife-
Peter Jennings (âncora da ABC) de "burro" por causa de uma reportagem rente. O câhtico "USA!", portanto, expressava lealdade ao time da casa no
sobre o bombardeiO do abrigo iraquiano q\Ie, segundo afirmação dos ame" .campeonato da guerra e unificava a torcida pró-guerra na comunidade na-
ricanos, era um centro de comando e controle;_ o. animador do programá cional dos que se identillcavam com a política de guerra americana, tornan-
concordou, notando que «jennings não é americano de jeito nenhum'; (na do-se, por meio da. participação, parte de algo maior que eles mes~nos.
verdade, ele é canadense; apud Nimmo e Hovind 1993: 95). 106 Além disso, as deinonst(ações pró"guerra pareciam levar as pessoas
Carl Boggs (1991) argumentou que a intensidade do nacionalis~o do a sentir-se bem graças à vivência da. comunhão e do poder, que lhes em
i'acismo, da glorificação da violência e do militarismo, evidentes dumn;c a negada no dia-a-dia. Quem em normalmente impotente podia sentir-se
Guerra do Golfo, foi reação aO aumento da pobreza e da insegurança, algo poderoso, identificar·se como parte da nação fazendo-se valer orgulhosa~
semelhante à situação da Alemanha nazista analis\{da por Erich Fromm e~ men'\.e na guerra. Perdedores de todos os dias, os ·manifestantes pró-guer-
Medo à Liberdade (194Ij.As demonstrações.fuvoráveis à guerra Pareciam ra podiam sentir-se parte do time vencedor na Guerra do Golfo. Partici-
o~fer~cer mecanismos por meio dOs quais as pessoas podiam fugir à impo- par de rituais belicistas, portanto, conferia-lhes uma identidàde nová 'e
tencia e supera!' (temporariamente) a insegurança. Os que agitavam ban- atraente que renovava seu senso de participação numa grande aventura
deiras e entoavam cânticos eram indivíduos 'que imergiram nas massas e os- nacional. Assim como os eventos esportivos e os sbows de rock, as mani-
tentavam um comportamento coletivista e confomtista. Era como· se aque- festações pró-guerra davam aos participantes um senso - ainda que fugi-
las pessoas impotentes se sentissem parte de algo maior ao cantarem e agi- dio - de comunidade que lhes era negado nos templos privados do con-
tarem bandeiras. Começou a aparecer· o fenômeno da "bandeira huniana":· sumo, na mídia feita em série e no isolamento de sua vida. Durante quase
em San Diego, no dia 25 de janeiro, trinta mil se exibiram com camiset.'\S cem anos, os sociólogos vêm estudando o comportamento das multidões
vermelhas, brancas e azuis, formando a maior bandeifa humana: do mundo c analisando os mecanisnios graças aos quais os indivíduos se dissolvem
que, fotografuda d~ um dirigível, foi devidamente traÍlsmitida pelas r~de~ d~ na massa. Durante a Guerra do Golfo, o fenômeno da imersão dos indiví-
duos no comportamento da maSsa foi uma característica diária dos espe-
' táculos da TV. Em geral, a comunidade americana na era da cultura da mí-
166 O correspondente daABC em Bilgdii, Bilt Blakemocc, fez a report-a;:em dlretamen· · dia é um simulacro televisivo de comunidade, em que a integração cOm
te cjo abrigo bombardeado, desmontando a versão norte--americana de que ali ha,·ia um
centro de comando militar; mais tarde, ficou claro que os americanos ~t.wa~ mentin·
os outros se dá pela observação das n'teslnas imagens ~ pela participação
do ou que tinham fnfurnmções erróneru; (ver relato em Kellncr, l992b). na mesma experiência ritualística de eventos como um campeonato es-
portivo ou a Guerra do Golfo. No entanto, era .possível participar do ritual Há, de fato, interessantes nexos e~tre guerra e futebol, patriotismo e·
da Guerra do Golfo de maneira mais plena saindo de casa e entrando em esportes no imaginário americano. Ambas as atividades implicam tral,)alho
manifestações nas quais se podia estar mais vi.tlllmente integrad~ na .em equipe, coorderiação e ~áticas, e ambas as atividades são extremantente
comunidade patriótica. · ·. comp.etitivas e violentas.* Em ambas, grupos de home~s com capacete pro-
Cantar e desfraldar a bandeira eram formas novas de· participação que curam ga1,1har ten·itório e tentam empurrar o inimigo para atrás enquanto
punham os indivíduos num espetáculo estético. Aquelas pessoas tinham vi- atiram bolas·, bombas ou balas canipo afora.Ambas enfatizam valores como
vido anos ime1·sas na estética da cultura de consumo: vendo mercadorias disciplina, "treinamento, rigor rio tratamento do adversál'io e, acima de tudo,
sedutoras em anúncios, _fascinai:las por visões dé luxo, erotismo e poder ná.s a "itória. Em 19 de dezembro, o tenente-general Catvi._n Waller disse à im-
imagens do entretenimento popular, tentadas pela exibição deslumbrante prensa:':Sou como um instrutor de fute~ol. <í9~f;S-tudÓ--o <jue posso conse-
de artigos de consumo nas lojaS, sentindO-se gratificadas por 4u:Úsquer.ob- guir ter do meu lado do campo quando me pre'f:raro para um campeona·
j~tos que conseguissem comprar na vida (carros, roupas, produto~ etetrô- to~ (United.Press !J1-terrzattonal, 20 de dezembro de 1990)_. Num noticiátfo
mco.s, etc.).A Guerra do Golfo vinha acondicionada cdmo um espetáculO matinal da CBS em 25 de janeiro, um fã do esporte. disse que gosta\-·a
estético: a CNN utilizava uma trilha sonora vigorosa e retumbante na aber- qu.ando:.o~B\.úf.llo participava do campeonato porque "ele é uma unidade
tura dos noticiários, sobrepondo imagens da bandeira americana às das tro- impre~.t}rii.tilte com armas poderosas". Um soldado americano, numa re-
pas e recorrendo a hinos marciais cadenciados nos intervalos. o plíblico es- portagem da CNN do dia 23 de janeiro, disse que"Saddant Hussein não tem
tava sendo convidado a participar de um eSpetáculo fascinante de guerra muita coisa de um time; em comp;tpção com o futebol, ele seria o
com essa apresentação. Clcveland Br:~wns". O subtenente do exército Ron Moring disse às véspe·
. Além disso, os manifestantes pró-guerra eram caPazes de .vencer. o ras da guerra: Acabou-se a fase do treinamento. Estamos fazendo tudo com
h~bttual isolamento e a passividade da cultura televisiva participando mais mais seritda<cie. Há muito mais emoção no ar" .107
atlvafl?-ente das celebrações públícas da guerra. Muitos daqueles indivíduos As metáforas do futebol também foram empregadas na retórica de
v~viam normalmente is~lados e impotentes, sentindo-se como parte <h so- guerra ·quando Bush disse, depois de um encontro malogrado em Genebra
Ciedade de consumo so quando conseguiam adquirir o.s ícones e os tótc- ?.s·vésperns da guerra, queTariqAziz havia interceptado seu lance. Ao vol-
mes do prestígio social. Uma manifestação pró-guerra em que ·se desfralda tar da primeirn noite de bombardeio, um piloto americano disSe que "é
a b~ndeira, porém,· é uma emoção de baixo custo, que dá a todos a opor- exatamente como um j9go de futebol no qual o outro time não aparece.
tumdadt de se tornarem parte de um espetáculo estético num mar de ban- Hçlel,l Thomas perguntou a Bush numa entrevista de 18 de janeiro se a ini-
deiras, com música excitante e cântico entusiástico. Embora em ·casa ciativa de paz de "Gorbachev não poderia ser vista como um "drible" [no
vendo televisão, aquelas pessoas fosseh1 passivas e isoladas, nas m.1.nifCsta~ desefo de Bush começar a guerra e ganhá-la]. Uma emissol'<tde rádio cana-
ções eram ativas e socialmente solidárias. dense (CBC) dizia que as forças armadas canadenses no Golfo tinham re-
Na vet·dade, os ·defensQres da guerra torciam pelo time americano cebido sinal verde para entrar na "linha·de ataque" aos iraquianos". O pro·
como se aquilo fosse um evento esportivo, e desde o começo houve uma grama ~Nightline" daABC (17 de janeiro de 1991) citava o entusiasmo dos
estreita relação entte gUerra e futebol. Durante o intervalo de um jogo de pj.lotos que acabavam de voltar das primeirns m~ssõ<:s de guerra: "é como
-futebol transmitido em rede nacional a partir de .EI Paso na véspera de Ano um jogo de futebol quando você é transportado pelo ar e sente aquele jato
Novo de 1990, das arquibancadas u~ locutor cumprimentou os soldados pass.ffido por baixo de você, então você começa a se sentir bem, e simples-
americanos que estavam lij, como cortesia da companhia de seguros john mente .começa a trabalhar: trabalhar no seu plano de jogo". Outro piloto
Hancock. Enüío, como escreveu.IIaynes)ohilson: · exclamou:

Enquanto as câmeras mostravam as fileiras de sOldados acenando e aplaudin-


• Não devemos n05 esqueçer de que ·o autor está falando daquilo que co~ecemos
do, o comentarista-apontava para um rn.ural pintado na parede do ~stádio.·Era
como 'futebol americano". (N.T.)
uma águia mergulh~ndo sobre a presa. De modo prestativo como sempre,
167 Alguns d~~1;es exemplos de futebol ~ão do "Gulf Report" do Greenpeace feitoo em
enquanto as câmaras percorriam lentamente o mural, o comentarista lia em
18 de íandwde l99l,"Situation Report N~2", no PeaceNet mideast.gu!fbuUetin Óuard.
voz alta a mensagem ali Cscrita :«Vai,escudo dà des·erto, derrota o.Iraque.· Durante a guerra terrestre, o general Schwatzkopf e os repórteres usav"m metáforas fu·
. (Washington Post, 4 de janeiro de t991:A2) tebo!ísiicas para descrever as titi<:a~ americanas.
. .
É como ser atleta profissional e nunca ter: jogado, Hoje foi o primeiro dia de . ses que se sucederam à guerra, conversamos com muitas pessoas que fia-
jogo, e o inimigo não apareceu, o adversário não apareceu. Mas fomos até lá viam estado nas regiões rurais de Kentucky, sul doTexas,~MichiWtn, West Vrr~
e fizemos nossa Primeira partida, e ela foi genial; jogaffiÚs a bola para dentro ginia, etc.; segundo elas, era significativa a oposição à guerra- muito rdais
do gol, c não tinha ninguém em casa. do qlle revelavam 'as pesquisas· e a m(dia.Antes do início da guerra, os re-
(ABCs "Nightline", 17 de janeiro de 1991) sultados das pesquisas c o discurso di' mídia revelavam uma nação dividi-
da, mas, depois que a guerra começou, essas divisões se tornaram invisíveis.
Além disso, os estrategistas militares· falavam em fuzer «driblar» as tro-·· Portanto, k-mídia pode ter produzido o uma imagem falsa do ~u de
pas iraquianas reunidas nas fronteiras do Kuwait. Os mísseis Scud"foram "in~ apoio recebido pelo goveÍ'no Bush em sua guerra. t_J_m estlido.feito n~ Grã-~re­
terceptalios" por Patriots, e o Cel. Ray Davi~s descreveu a equiPe americana tanha revelou que o apoio à Guerra do Golfo era b;ç._m..wenó't<-e m.""lts ambtva-
de pilotos ':como o time de futebol Dallas Cowboys. Ele não é um time emo- lente do" que indic~vam as pesquisas. Scgtmdo Martiti''Sliaw e Roy Carr-Inll,
cional de verdade. É cxatam~ntc o que acontece com aqueles Pilotos. Eles
sabem exatamente o que precisam fazer". (Washiniton Post, 19 de janeiro: duas pesqui.~as feitas com a população do norte da Inglaterra., ("Om base _em
CJ).Além do mais, o público assimilava a Guerra do Golfo como um_jogo de _ duas an1o~Uagens aleatórias do eleitorado,~( ... ) [revelaram] que, embora o
futebol. Um professor jesuíta escreveu no Jllattonal Catholic Reporter: mod'a ·~k:-&nf~ a guerra refletisse bastante o quadro transmitk\o pe;la mídia,
erã nm_ito grande a ansiedade (que não se refletia nos ~esultados) e~ "resis-
Um consultor residenie de nossa faculdade disse que seus alunos assistiam à tênda" à eobertum dada pela mídia, o que se ref!t.'tia sobretudo nos result:t-
guerra. ao vivo, transmitida pela CNN, torcendo e fazendo apostas como se es- dos segundo.áj>S quais as minorias afirmavam unanimemente qlLe a televisão
tivessem assistindo a um jogo de futebol. Causa espanto. Uma mentalidade es- e a imprensa P'opular "glorificam demais a guerra.".
portiva nos instiga a guerrear. Há algumàs semanas, a imagem de TV mais des- ~ (Shaw e Carr-Hill, 1991)
concertante foi a. do secn:tirio da defesa Dkk Cheney estim~lando as tropas
num frenesi de luta, como um treinador de futebol que durante ~ lntervalo os autores também· afii-mam que suas pesquisas indicamm ·que a
dá instruções no vestiário. atitude do povo em rela'ção à guerra variava com freqüência, segurido o
(N•ttional CatbO!ic Reporter, lo dC fevereiro de 1991: l) que os jornais dissessem.
um estudo feito nos Estados Unidos notou tendcnciosidade no mo<;lo
E assim a Guerra do Golfo se trdllsformou num jogo em que os aine- de fazer indagações sobre o apoio do público à guerra. !i'veland, McLeod e
riçanos saíram vitori~sos de uma supcrcopa das guerras. · Signoriclli (no prelo) observaram que as perguntas das pesquisas tendiam
a focalizir o modo como o presidente estava .agindo ou a confiança na_s
forças armadas, e não procuravam realmente saber se as pessoas apoiavam
AlGl.L\V\S 'fU;;rL.EXÔES A GUISA DE CONCLUSÃO a guerra e se desejavam que el.;l continuasse. Uma pesquisa feita c~ ~ 7 de
janeiro pela Gallup indicou que, ao se perguntar sobre a aprova4\,<tO a _ma-
As análises feitas acima indicam que a mídia ajudou a angariar apoio . neira como Bush estava conduzindo a·'crise do Golfo, 81% dos entreVIsta-
para a .Guerra do G~lfo: Os exemplos que demos de histeria e mentalidade dos disseram que aprovavam; em 27 de janeiro, o índice de~ aprovação a
.guerreira deriyaram todos da pró.pria mídia "que, em suas pesquisas de opi- Bush (pela condução da situação no Golfo) subiu· para 84%; em 3 de fc.ve-
nião, em seus noticiários noturnos c em seus- pmgramas de bate--papo pas- reiro, a aprováção ao modo como o presidente estava lidando com a situ-
~mm a impressão de que aquela guerra era popularissima e de que a na-.- ação elevou-se para 85%, mas desceu para 79% em 13 de tevereiro (Ev~and
.çao estava passando por uma orgia de patriotismo, além da histeria irracio- et ai. no prelo).
nal que fiZCl)lOs notar. Mas esse quadro poderia ser muito enganoso, repro- Depois do suce;;so da guerra terre.~tre, os índices de aprovação a Bush
duzindo exatamente a imagein produzida pela própria mídia. A maioria daS atingiram 0 pico de 90%. No entanto, uma análise mais detalhada dos dados
pessoas_com quem conversambs, desde nossos vizinhos do Texas até" cole- fornecidos pela pesquisa indicou que não existia o aparente apoio c_smaga-
gas e alunos, era contrária ·à guerra; também eram bastante concorridaS aS dor por parte dos dois partidos. Um estudo de Solop e Wonders (~991) f:i-
asscmbléiàs de todos os dias na Universidade do Texas; portanto, set~ to com os resultados publicados das p~esquisas indicou que o mawr apmo
dúvida, havia um público contrário à guerra nos EstadOs Unidos. NM me- ao presidente Bush e sua política de guerra provinha de homens brancos

286 2!17
e republicanos que tinham atitudes conservadoras. As mulheres, os negros, as imagens noturnas dos soldados no deserto e, depois, as imagens Poste-
'
,___ os liberais e os democratas davam menos apoio. Além dissO, o estudo feito riores à guerra, que mostravam infindável sofrimento e as conturbações na
por Evdand, McLeod, e Signorielli com baSe em entrevistas dadas durante região, t.enh~ suscitado perguntas sobre a prudência de Uma intelvenção
a guerra e depois dela: . militar norte-americana. ·
Acresce que o fato de a guerra ser sentida por grande parte do-:públi-
Revelou Que o apolo à guerra-em geral era menor do que seria de se esperar· co como um espetáculo dramático significa que ela poderia ser esquecida ·
em vista do grau e do tipo da cob~rtura feita pela mídia em relaçãç. à opiniãO rapidamente~ SObrepujada pelo cinema de H~liywood, p~la televisão e por
pÓbli~à sobre a guerra.(...) Durante a guerra e depois dela, rilais de 50% dos outros espetáculos da indústria cultural que ap<l{ecessem::~~pois. No verão
entrevistados dl~scram que eram "neutros" ou qtle discordavam das ,afrrmà- de 1992, o governo Bush estava qlfrentando sé~;;problemas e, conto se
ções sobre a escala de apoio à ·guerra. Além disso, durante a guetro\, apenas viu depois, as imagens e os discursos patrióticos da Guerra do Golfo foram
6,6% dos entrevistados '!lsseram que· concordavam sem restrições com as incapazes de sa1vá-lo nas eleições de 1992.As revelações de _que Reagan e ·
afirmações que descreviam o apolo à guerra; esse número caiu· pafa 2,8% no Bush ha-...iam pfaticado uma .politica positiv-a de apoio ao Iiaque antes da
levantamento feito no ano seguinte. guerra i.ndita~Ql. que Bush e seus assessores tinham errado nos cálcu_los ao
(Evdand ct al. rio prelo) oferecereri\'ilj"i:i\iia e apoio diplomático ao regime iraquiano desde o início da
décadá de 1980 até as vésperas da invasão do Kuwait (ver Friedman, 1993).
É de se notar também qúé, num estudO mais preciso da recepção do O fato de Saddam Hussein continuar governando o Iraque com mão de fer-
público e do inodo como este processou as 'imagens propaganctísticas e ro e de seus viziQ!los continuarem sentindo-se ameaçados, alimentando· um
chauvinistas das fOrças armadas e da intervenção militar, verificou-Se que recrudesciment9 potencialmente catastrófico da corrida annamentista na
as imagens e os discursos propag'ados .pela televisão· podem ter efeitos região, súscitar.ÜO questões quanto ao sucessq das ações bélicas de Bush no
contraditórios, e que o público pode resistir à manipulação pela mídia. Uti- Golfo' e quanto à real obtenção de resultados significativos a longo prazo,
lizando-se uma perspe~tiva desconstrutiva, pode-se argumentar que a na-- coisas que não consistissem apenas na subida temporária dps Íl)dices de po-
tureza extremamente ideológica c propagandística da TV pode sCr lida pularidade de Bush c na produção de uma i.magem positiva da:" forças arma-
como evidência de que a população não estava engolindo as razões apre- das americanas depois da vergonha da derrota no Vietnã.
sentadas por Bush para a guerra, e que precisava estar sendo constante- Portanto no resca1do caótico da intervenção norte-americana, a hipér-
mente doutrinada para que houvesse garantia de apoio à política oficia1. bole ~"tremis;a que mo~trava Saddam Hussein e seu regime cvomo o ma1 a~
Como notamos, um estudo mais minucioso das entrevistas indicou que o soluto, de certa forma foi um tiro que saiu pela culatra porque Hussein não
apoio à política americana era "moder<Ido"; nesse sentido, a· unilateralida- foi alijad~ do poder depois do conflito. Embora Bush:insistisse que- os ira-
de, a limitação numérica e o espalhafato da propaganda poderiam ser in· quianos deviam derrubar Hussein, quando os norte-americanos declararam
terpretados como sinais de que as elites do governo e da mídia sabiam que o fim da guerra e os rebeldes iraquianos se insurgiram contra o regime de
precisavam manter uma camPanha eficaz para obter e conservar uth con- Hussein, os Estados Unidos se mantiveram à parte. O próprio general
senso pró-bélico num público que tinha Sérias (e legítimas) dúvidas em SchwarLlwpf afmnou numa entrevista à PBS em 27 de março de 1991, que
relação à b'llcrra. preferia ter continuado lutando até "aniquilar" de todo as forças armadas ira-
Além do lnais, embora a saturação criada,pela cobertUra da televisão quianas, que estavam reprimindo violentamente as forças que se insurgiram
tiVesse forte caráter de propaganda e pareceSse ajudar a angariar apoio do contra Hussein.A manutenção de Saddam Hussein no poder, os efeitos am-
' .
público para a guerra, as reportagens contínuas dos transtornos ocorridos bientais desastrosos que podem persistir durante anos e a instabilid<tde na
na região, especialml:nte do sofrimento dos curdbs e de oUtros imquianos região podem revelar que a Guerra do Golfo foi uh1a cai.xa de Pandora, ca,
no flm da guerra, indispuseram graÚde parte dO público conti:a a guerra e, paz de produzir breve embriaguez eufórica seguida de longa ressaca.
t<tlvez, contra a iriterveriÇão militar, que. não pareda ter obtido os· result;t- Por conseguinte, a saturação da cobertura dada pela televisão aos epi-
dos positivos prometidos. Portanto, em última análise, a núdia pode ter con- sódios políticos dramáticos é uma faca de dois gumes: pode conformar a
tribuído para voltar 'grandes segmentos da população contra as soluç6cs opinião públka no sentido de apoiar a intervenção norte-americana, como
militares para os problemas do Oriente Médio e outros e contra o compro- realmente o fez'durante a Guerra do Golfo, mas, com sua a repetição infin-
misso das forças armadas..de resolv~r o~ problemas do mundo. Pode ser qi.te dável de imagens dé uma situação de impasse, ou de morte e dest~ição, ou

289
de sofrimento prolongado em <.{ecorrência da guerra, pode levar o público '
como. Guerra do Golfo. Durante. essa guerra, todos os que nos' opúnhamos
a voltar-se contra o sistema e séus governantes, que produzem tal destrui- a ela conseguíamos infm:.mações em bancos de dados" infol:inatizádos,,
ção.A própria onipresença da televisão e' o papel fundamental que ela está como 0 PeaceNC:t, ou em publicações- progressistas como The Natjon, In
desempenhando na política contemporânea faz dela uma força política Tbese Times e Z Magazine. localmente, al~m das asseln.bléias diárias nas
complexa e imprevisivel.A avidt;z por imagens que pudessem atrair o públi- universidades, os críticos da guç:rra tentaram fazer uso. dos sistemas não co-
co levou as redes de televisão a uma corrida cuja meta de chegada era o Ira- merciais de televisão e rádio para criticar a política intervencion.ista do go-
qUe, a éntrevista dos seus líderes c a exibição de seu povo. Embora se veri- verno·ilú:sh c. a sua recu,sa à negOCiação dC uma soluça,o diplomática. A de-
1
ficasse que Saddam Hussein é verdadeiro fiasco em termos de núdia,as ima- mocratização de nosso sistema de comw.lic-açõe.S; exígirá a i-evitalização da
gens do povo iraquiano em s.ua vida cJ.iária foram as únicas imftgens huma- televiSão públiCa, a ampliação do papel d~enhãdo pelos sistemas não
nas de árabes que apareceram durante todo o período. As imagens do sofri- comerciais de televisão, o desenVolvimento de um sistema público via sa-
mento contínuo e crescente do põvo iraquiãno e de outros poVos da região, télite, além da produÇão de bancos de dados progressistas de acesso por
em decorrência da iritervenção militar norte-americana, podi..-1., em última comput:<!dor (Kellncr, l990a). Como a política está cada, Vez mais aconte-
análise,. levar o povo a ver que a guerra não tem condições de resolve.~; con- cçn4o~n(s telas e nos textos da _'mídia, Sem a reconstrução da televisão e
flitos politicos e que só produz destruição, sofrimento e morte. · doS~êi6~ de'comunicação de massa as perspeCtivas de democratizaçã() do
Por isso, uma abordagem mulriperspect'ívica que capte diferentes as- "sistema político no:re-americano são nebulosas. . .
pectos de um fenômeno complexo como a cobertura dada pela grande mí-
dia às intervenções norte-americanas no Oriente Médio deve também ana-
lisar as contradições da recepção pelo público dos textos criados pela mí-
dia hem como das imagens e dos efeitos potencialmente contraditórios
criados pela telc\isão, além de ahatisar o texto da mídia e seus.efeitos con-
servadores de manutenção do sistema. Embora nossa análise tenha focali-
7..ado sobretudo o modo como a cobertura dada pela televiSão à Guerra do
Golfo servia de àpoio à pOlítica do governo B_ush e do Pentágono, da análi-
se da recepção da crise do Oriente Médio, da guerra e de Suas conseqüên-
cias por parte do público, pode-se depreender que ela ajudou a minar a he-
gemonia de Bush e dos conservadores,.contribuindo para sua derrota.
Talvez Bush tenha exagerado na satanização de Hussein, que, co_utinuando '
no governo do Iraque, acabou por desmentir as afirmações de Bush sobre
uma vitÓlia genuína.
De qualquer modo, os efeitos da televisão c da gránde fl1Ídia, como
sempre (ver Kellner, 1990a),são contraditórios e podem ter conseqüências
inesperadas. Enquanto, na prilnavera de 1991, a crise e a Guerra Golfo cons-
tituíam uma tremenda vitória do governo Bush e do Pentágono, o evento
como um todo não garantiu a reeleição e acabou por suscitar questões
sobre a verdadeira eficiência de Bush conio presidente.Seus eft;itos positi-
vos de cmto prazo também dão indícios da volubilidade do público numa
sociedade saturada pela míd_ia, pois ele logo csq~ece os grandes aconteci-
mentos do ano anterior.
No entanto, a cobertura lamentavelmente unilateral dada peL1. grande
mídia à crise e à Guerra do Golfo chama a atenção mais uma vez para a
neçessidade de contarmos com meios de comunkaçãO alternativos, capa-
zes de fornecer informações essenciais sobre' acontecimentos cothple..xos

290 291
Parte

:~Mídia:·
·cultura
· ·· identidade
política·
, _____ --
T

7 Televisão, propaganda e
constmção da identidàde.
PÓ!l-moderna
'<''

.Segundo o folclore antropológico e sociológico, rias spciedades tradi-


cionais a identidade era JLxa, sólida e estável. Era função de papéis sociais
Predetenüinadq{!.e de um sistema tradicional de mitos, fonte de orientação·
e de sanções re)igiosas capazes de definir o lugar de cada LLm no mundo ao
mesmo tempo e de circunscrever rigorosamente ·as campos de pensamen-
to e comportamento. O indivíduo nascia e morria como membro do mesmo
clã, de um sistema ftxo de parentesco, de uma mesma tribo ou grupo, com
a trajetória dt; vida fnmda de antemão·. Nas sociedades pré-modernas, a iden-
tidade não era uma questão problemática e não estava sujeita à reflexão qu
discussão. Os indivíduos não passavam por crises de identidade, e esta não
era nunca radicalmente rriodificada. Alguém era caçador e membro da tribo,
e por ~'~leio desse papel e dessas funções obtinha a sua identidade.
Na modernidade, a identidade torna-se mais móvel, múltipla, pessoal,
reflexiva e sujeita a mtJdanças e inovações.·' 611 Apesar disso, também é so-
cial e está relacionada com o outro. Certos teóricos da identidade, desde
Hegel até G.H. Mead, freqüentemente caracterizaram a identidade pessoal
em termos de reConhecimento mútuo, como se a identidade de uma pes-
soa dependesse do reconhecimento das outraS, em combinação com a va-
lidação dada por essa pessoa a esse reconhecimento. No entanto, as for-

168 Sobre a identidade na modernidade, ver Berman, 1982, e us ensaios coligidos em


Lash e Frledman, 1992. Sobre o.s discursos da modernidade, ''er Antonio e .KeUner; no
prelo. Est~mos interpretando a modernidade aqui como uma épocá de rnud,lnças ~ inó-
vaçõesrápidas, com a negação do velho e a cri~çio do novo, como um processcdiga-
do ao capitalismo industri~l. às revoluções democciticas; .à urbani.z."l.ção e à diferencia-
ção social e cultural. Segundo as convenções da moderna teoria social, pressupomos
urn~ distinção entre sociedade moderna c pré-moderna, mas é predso tt:r em mente:
que t<lis distinções são tipos ideais que saliemanl certas caracterisUca:; de \!ma ordem
social e, às vezes, pas~"l.m por cima de semdhanças e continuidades.

295
mas de identidade na modernidade também são reiàÍivamente _substan- tidade, de que de sempre pode mudar e modificác a sua identi~de. Fo~te
ciais e fixas; ainda têm origem nÚm conjunto ciocunscrito de papéis nor-e de ansiedade também é o reconhecimento e a validação da própd:• iclenti-
mas: pode-se ser mãe, filho, ~exano, escoteiro, professor, soc,ialista, católico, dade pelos outros. Além disso, a modernidade também implica um p:ioces-
homossexual - ou então uma combinação desses papéis e dessas possi- _ so de inovação, de constante renovaç~o e novidaçle. Segundo algmnas for-
bilidadcs sociais. Portanto, as, identidades ainda são rcbth--.tmentc fiXas <; mulações, modernidade significa a destruição cta: for~as passadas de vida,
limitadas, embora os limites para identidades possíveis e novas estejam em valor e identidade, com a produção constante de formas novas (Bcrman,
contínua expansão. 1982). A expêfrência da modernité é a ex~eriência .da novidade, do novo
De fato, foi na modernidade que a consciência de si passou a ser re- sempre mutável, da inovat;ão e da transitorieda~, (Frisbf;.:~.?S?)· A identida-
conhecida; tornou-se possível refletir contin'uamente sobre Os papéis e as de de um indivíduo pode tornar-se superada, supé~ ou detXar de ser SO-
possibilidades sociais disponíveis e distanciar-se da tradição (Kolb, 1986). ciallllente . validada. Ele pode então passar pela eXperiênCia da anomia,
Podemos escotl1cr e criar - c recriar - nossa identidade à 'medida que as condição de extrema alienação em que o mundo deixa de ser a sua casa.
possibilidades de vida mudam e se expandem ou se contm~m. Com a mo- Por outro.lado, a identidade pode cristalizar-se c endurec_er, c, como
dernidade, porém, também aumentOu' a ingerência do outro, pois, à medi- conseqi.i..ênci~,_S,iirgcm o tédio e o fastio. O indivíduo cansa-se da vi~, da-
da que o número de possíveis identidades aumenta, é preciso obter reco- quilo que ·~fé"é'/Fica preso a uma teiã de papéis, expectativas c rclaçoes ~o­
nhecimento para assumir uma identidade socialmente válida. Na moderni- dais. Parece não haver saída nem possibilidade de mudança. Mas tambem
dade há também uma estrutura de interação com papéis, normas, costumes pode ftcar preso a papéis tão diferentes. e, às vezes, conflitantes, que já nã?
c expectativ.t.s socialmente definidos e disponíveis; preçisamos escolhê-los sabe quem é. De~~a maneira., na modernidade a identidade é cada ~ez mats
c reproduzi-los para obtermos identidade num processo complexo de re- problemática, e sua própria qm:stão é um problema. Na verdade, c a~enas
conhecimento mútuo. Dess~ màneira, na modernidade o outro é um cons- numa sociedad~ preocupada com essa questão que os problemas de tden-
tituinte da nossa identidade; por conseguinte, nos últimos tempos é bem tidade pessoal ou de crise d~ identidade podem surgir, ser objeto de preo-·
comum a personagem determinada pelo ~outro»; ela depende dos outros cupações e debates. Os teóricos da identidade m~ita~ veze_s_mostra;:se ~­
para o recOnhecimento c, portanto, para o estabelecimento de sua identi- siosos (Kierkegaard, Heidegger, Sartre) com relaçao a fragilid;tdc da tdentt-
dade pessoal (Ricsman et al., 1950). dadc c analisam detathadamentc as experiências e as forças sociais que so-
Logo, na modernidade, a identidade transforma-se êm problema pes- lapam e ameaçam a identidade pessoaL '
soal c teórico. Surgem certas tensões dentro das teorias da identidade e A identidade na modernidade também foi ligada à individualidade, ao
entre das, bem como na intimidade do indivíduo moderno. Por um lado, al- desenvolvimento de um eu individual único. Enquanto, tradicionalmente, a
guns teóricos da identidade definem a identidade pessoal em termos de eu identida1ie era função da tribo, do grupo, era algo coletivo, na modernida-
substancial, de essência inata e idêntica a si mesma que constitui a' pessoa. de ela é função da criação de uma individualidade particular. Nas socieda-
Do cogito de Descartes ao ego transcendental de Kãnt e Husserl, ao con- des de consumo c de predomínio da mídia, surgidas depois da Segunda
ceito de razão do Iluminismo e a alguns conceitos contemporâneos de su- Guerra Mundial, a identidade tem sido cada vez mais ':inculada ao modo
jeito, a identidade é concebida corria algo essencial, substancial, unitário, de ser, à produção de uma imagem, àaparênc,ia-p~ssoal. E como se cad~ um
fixo e fundarÍlcnta.lmente imutável. ContudO, outros teóricos modernos da tivesse de ter um jeito, um estilo c uma imagem particulares para ter tden-
identidade postulam uma não-substandalidade do cu CHume) ou conce- tidade, embora, paradoXalmente, muitos dos modelos de estilo e -aparência
bem o eu e a identidade como um projeto Cxistencial, como a criação do provenham da cultura de consumo; portanto, na sociedade de consumo
individuo autêntico (Kierkegaard, Marx, Nietzsche, Heidegger, Sartre). O eu atual, a criação da individualidade passa por gr.-mdc mediaçã? ...
existencial é sempre frágil e JWCcisa de compromisso, resolução e ação Assim, na modernidade, o problema da identidade conststta no modo
para manter-se, o que torna a criação da ident~dade um projeto existencial como nos constituímos, nos percebemos, nos interpretamos c nos apresen-
de cada indivíduo. tamos a n:ós mesmos e aos outros. Como notamos, para alguns teóricos, a·
A ansiedade também entra a constituir a O.]Jeriência do eu rúodcrno. identidade é uma descoberta e a afirmação de uma essência inata que de-
Porque nunca estamos certos de que fizemos a escolha correta, de que es- termina 0 que somos, enquanto para outros a identidade é um construto e
colhemos nossa "verdadeira» identidade, ou .que ao menos criamos uma uma criaÇão a partir dos papéis e dos materiais sociais disponív~is. ~ pen-
identidade. O eu nioderno está consciente da natureza de construto da iden- samento pós-moderno contt:mporâneo, porém, tem rejeitado a noçao es-

296 291
~-,

seitdalista e racionalista de J<,l.entidade, baseando-se na noção construtiV:is- um«termo no terminal'' (Baudrillard, 1983c),ou um efeito cibemetizado de
ta por ele problematizada. Conseqüentemente, um dos objetivos de~te · "fantásticos sistemas de contrOle". (Kroker e Cook, 1986). Deleuze e
capítulo será explicar de que modo a identidade é formulada na 'teoria pós- Guattari (1977) festejam as dispersões nômades e esquizóides do desejo c .
moderna c construída nas formas cultuiais contemporâneas. b que está em da subjetividade, valorizando exatamente a desinte"gração e a dispersão do
jogo é saber se a ideritidade é fundamentalmente diferente fia chamada: sujeito da modernidade. Segundo es,sas teorias, a identidade é muito _instá·
pós-modernidade e se é possível defender uma distinção entre modernida- vel e, para alguns, desapareceu pura e simplesmente do "cenário pós-mo-
de e pós-modernidade, entre identidade moderna e pós-moderna. derno" no qual:....,.,

O etl televisivo é ó itldivíduo eletrônico por exceÚ}ri~_$~e ~Úra tudo o que·


IDENTIDADE NA TEORH PÓS-,V!ODERNA · há para retirar do si,mul_acro'cla núdia: uola identidadé mercá(lológica como
consumidor da sociedade do espetáculo; uma galá.xia de humores hiperfibri-
Segundo a perspectiVa pôs-moderna, à medid.'l. que o ritmo, as dimen- lados .. ser sqial trnumatizlldo.
sões e a complexidade das sociedades m'?dernas aumentam, a identidade '' ~ ',-: (Kroker e Cook, 1986: 274)
vai se tornando cada vez mais instável e frágil. Nessa situação, os discursos ... :&"'%~-:- .
da pós-modernidade problematizam a prÓpria noção de identidade, afir- Muitas J~ t~orias pós-modernas privilegiam a culturn da mídia como
mando que ela é um mito e umáilusão. É pos~íveller tanto em teóricos mo- 0 tugai- de implosão da ident_idade c de fragmentação do sujeito, mas foram
demos, tais como il escola de Frankfurt e Baudrillard, quanto em outros teó- poucos os estudo8-&!-proftmdados dos te.xtos da mídia c de seus efeitos a
ricos pós-modernos que o sujeito autônomo e autoconstituído, realização partir d{:ssa púsr,~ctiva. Com exceção da obra de jameson (ver Kellncr,
final do indivíduo moderno, de uma cultura do individualismo, está se frag- I989c), poucos d~s principais teóricos pós-moder~os ftzeram um exame
mentando e desaparecendo devido aos process'os sociais que nh•elam as in- sistemático e substancial dos textos e das práticas ·reais da cultura popular
dividualidades na sociedade racionalizada, burocratizada, consumista e do-- veiculada pela mídia. Por exerÚplo, as poucas referências de Baudrillard às
minada pela mídia.'", Os pús-estrururalistas, por sua vez, desfecharam um produções reais da cultura da mjdia são extremamente incompletas e frng.
ataque contra a própria noção de sujeito c identidade, afirmando que a . mentárias, assim como as de Deleuzc e Guattari (ainda que Delcuze tenha
identidade subjet~va em si é um mito, um construto da linguagem e da so- escrito muito sobre cinema, Oão o teoriza como pós-moderno). Foucault e
ciedade, un;m ilusão sobredeterminada de que somos realmente um sujeit? Lyotard ignoraram a cultura da mídia quase comple~mente. E embora .
substancial, de que realmente temos uma identidade fixa (Coward e ElliS, Kroker e Cook (1986) tenham feito uma leitura detalhada da pintura con·
1977;Jameson, 1983, 1991). temporâneil, também negligenciaram a realizàção de unl estudo concreto
Afirma-se, pois, que na cultura pós-moderna o sujeito. se desintegrou da cultura da mídia em seus exames do cenário pós-moderno (conquat;~to,
num flmw de euforia intensa, fragmentada e desconexa, e que o eu pós-mo-. à maneira de Baudrillitrd, tenham atribtúdo à mídia tremendo poder na
demo descentrado já não sente ansiedade (a histeria torna-se a típica doen- constituição do «cenário pós-moderno') ..~"'0
ça psíquica pós-moderna) e já não possui a proftmdidad~\ a substa'ncialida- · Por exemplo, o fUme Uma linda mulher (P,-etty Woman) põe em
·de e a coerência que eram os ideais e -às vezes a realização do eu moderno ,cena o papel fundaniental da imagem na construção da idençidade nas so--
(Baudrillard, 1983c;Jamesoq, 1983, 1991). Os teóricos pós-modernos aflt'· ciedades contemporâneas. Uma prostituta saída da classe operária (inter·
mam que os sujeitos implodiram, formando massas (Baudrillard, ·1983b), prctada por Julia Roberts) fica conhecendo um príncipe encantado execu-
que a característica fundamental da cultura pós·moderOa é um modo de ex- tivo (interpretado por Richard Gere) e tcansforma-sc: de deselegante mulher
periência fr-agmentado, desconexo e descontínuo, tanto em seus aspectos da ma passa a ser nina elcgantíssima beldade. O filme ilustra o processo de
subjetivos quanto em seus textos Oameson, 1983, 1991).Argumenta-se que autotransformação através da moda, dos cosméticos, da dicção e do modo
~a sociedade pós-modema- da informação e da mídia somos, no máxinio,
170 Para algumas outras tentatívas de an~Hsat o pós-modÍ:rnismo e a cu!tum popular,-'
, 169 Sobre n análise da Escola de Fmnkfurt do declínio <la individualidade,"ver Kellner, ver 0 artigo cmjounwl (if r:mmmmfcatlon Jnquiry, Vol 10, N" l (1986) e Vol. 1_0, ~,
l989a. Sobre n dissolução da identidade na pós-modenlid.1de, ver B:mdrillnrd, 1983a, 2 (I986):Screen Vol. 28, N' 2 (l98i); &lplan 1987;Ross 1988; Connor 1989,com bJbho-
1983b, l983c:Jnmeson, 1983, 1984, 1991, e outros textos de qué trataremos nb1ixo. grafia:263 ~.;e Hurd1eon 1989·.107 s.

298 299
I

de ser, bem como o grau de t:nediação da identidade pela imagem e pela apa- das artes operada por este, a intervenção pós-moderna na televisão é unia
rência na cultura contemporânea. b:resultado da transformação da persona· reação conu~ o realismo e o sistema de gêneros codificados Chumo~ismo,
gem de Roberts é, portanto, uma nova personalidade, uma.nova identidade, nOvela, ação/aventura, etc.), que definem o sistema da televisão comercial
o que a capacita a prender o seu homem ·e a tornar-se um sucesso no mer- nos Estados UnidOs. Nesse sentidó, as intervenções pós-modernas na tele·
cado da imagem como identidade. A mensagem do filme, portanto, é que vísão reproduzem um ataque sofrido pelo realismo e pela diviSão em gêne·
quem quiser transformar-se em novo eu, transformar a própri:fidentidade, ros ,qu"e o próptio modernismo antes ftzera. O modernismo. nunca "pegou"
ser bem-sucedido, precisará dar atenção à imagem, à aparência, à moda. na televisão, especialmente na variedade comercial produztda nos Estados
Neste capítulo e no próximo, cxaininaremos algumas produções po- Unidos e culturalmente hegemônica em muitos l,ugares:.,,do mundo. Ao
pulares de uma maneira um jJouco mais detalhada do que o usual nas rápi- contrário, 'a televisão comercial é predominante~.~-i;Ç...regida pela estética
das vistorias pós-modernas da cultura da mípia; tentaremos a.-.sim descobrir do realismo representacional, de imagens e histórias'que fubricam o rea1 e
o que elas nos dizem .sobre a identidade nas sociedades contemporâneas. ·tentam produzir um efeito de realidade (Kellner,.l9SO). O ínexorável realis-
Não se pode dizer que a seleção aqui feita seja absolutamente Cândida, mo representaciona1 da televisão também se tem subordinado aos códigos
embom seja sintomática daquilo que em gemi é visto como car-.tcterísticas narrativos, da, história contada, e às convenções dos gêneros codifiddos.A
mais salientes da cultura pós-moderna: proliferação e disseminação de ima- . televisão ~~ei:dal é constituída como um_instrumento ~e ~ntrete~men-
gens sem profundidade; intensidade de emoções produzida por tecnologia to, e está claro que· seus produtores acredttam q_ue 9 publico se dtverte
esmerada e de gosto duvidoso; pastkl_1o e implosão de formas; citação e re- mais com histórias, com narrativas que contenham personagens, argumeiJ-
petição de imagens e formas passadas. Nosso foco recairá sobre as imagens tos co~vcnções e mensagens familiares e reconhecíveis, e com gêneros
identitárias da popular série de televisão Niami Vlce, freqüentemente con- ber'n conhecidos.·tsa pobreza estética do meio provavelmente foi respon-
sidemda sintomática dos textos da mídia pós-moderna, e sobre os anúncios sável pelo desprézo com que tem -sido ele tratado pelos teóricos eruditos
de cigano, até agora rclátiv.unente pouco estudados pela teoria pós-moder: e pela sua designação como um vasto "ermo intelectual" por parte daque-
na, mas capazes de revelar algumas interessantes mudanças na produção les que iêm outros gostos e valores estéticos.
contemporânea de imagens. Em conjunto, esses ·estudos devem elucidar Se, na maior parte da história da televisão, a palavra-chave foi. narra-
algo da dinâmica da identidade nas chamadas sociedades pôs-modernas. ção, a visão pós-modernista da televisão como imagem muitas vezes des-
O modo como trataremos a identidade na sociedade e na cultur-a con- centra a importância da narrativa. Costuma-se afirmar que nos programas
temporâneas, porém, conterá uma visão crítica sobre várias afirmações im- geralmente de.signados como "pós-modernos"'- videoclipes da MTY,Miami
portantes da teoria pós-moderna.. Criticaremos aquilo que consideramos Vice, Max Headroout, anúncios bigh-tech, etc.- há um novo visual e um
unilateral e insuficiente nessas pOsições sobre a cultura contemporânea c novo tipo" de sentimento: o significante foi liberado, e a imagem tem prece-
aquilo que a nosso ver constitui as limitações de análises excessivamente dência sobre a narração, visto que certas imagens estéticas contundentes,
formalistas.Também questionaremos certas afirmações sobre o pós-moder- de grande artificialidade, se afastám da diegese televisiva c se transformam
nismo enquanto conceito iôterpretador da cultura contemporânea como em centr~ de fascinação, de prazer sedutor, de uma intensa porém frag-
um todo e <;oncluiremos com algumas reflexões criticas sobre o próprio. mentária e transitória experiência estética.
conceito de pós-modernidade como nova época da história e sobre o con- Embora haja· alguma verdade nessa posição pós-moderna convencio-
ceito de pós-modernismo como dominante cultural. nal, tais descrições também são de alguma forma enga~adoras. Em parti.;
cular, rejeitaríamos a conhecida visão de que a cultum pós-moderna da
imagem é fundamentalmente rastdra e unidimensional. Paça Jameson, o
pós-modernismo manifesta "a emergência de um novo tipo de platitude e ·
falta de profundidade, um novo tipo de superficialidade no seqtido mais
Enquanto a intervenção pós-moderna nas artes é muitas vezês inter- , literal - talvez o traço formal supremo de todos os pós-m9dernismos"
pretada como reação ao moderilismo, 17 ' à canonização elitista e sufocante (1984": 60). Segundo Jame~on, ~"míngua afetiva" da cultul,<l pós-mod~rna

171 Sobre o modernismo em artes, ver estlldo do capímlo 4. Estamos usando o termo inovação nas an~s em tcrmos.dc forma, estilo e conteúdo; algo que, inkiando-~>e eotn
«modernismo" aqui pam indic.Ír uma st'rie de prátkas anísticas que tentam produzir Baudel:lire em meados do sén1lo"XIX eontin11a até hoje, com Madonna.

300 301
da imagem é reproduzida nos eus··pós-modemos, supostamente desprovi- (1983b, 1983c), de que a televisão é puro ruído no êxtase pós-mo(lcr'ho,
dos de énergias expressivas e da indi\iduaUdade característica do mo9,er- pura implosão, buraco negro por onde todos os signific~dos e m~nsage-11s
nismo c do eu moderno. Dizem que tanto os textos quanto os eus pós,mo-. são absorvidos no sorvedourO e no caleidoscópio da semi urgia radical, da
dernos carecem de profundidade, :?ão planos, superficiais e· estão perdidos ince~santc disseminação-de in1."lgens e informações, até que se atinjam a
na intensidade e na vacuidade do momcnto,sem substância e significado, saturação, a inércia e a apatia totais, nas quais os.signific;:ados se dissolvem,
sem nexo com o passado. ficando a brilh!lr c bruxulear apenas a fascinação das, imagens descontí-
This textos e cus pós-modernos ~idimensionais põem em xeque a mlas do medíftscape, em que nenhuma imagem tem quaisquer ddtos dis-
continuidade da pertinência dos modelos de profundidade hermenêutica, cerníveis, em que a velocidade e a quantidade v~rtigirÍcisa,produz uma tela
como o marxista,_de essêné_ia c aparência, consciência verdadeira e falsa, mental por onde as imagens voam com tal rapitl~-;que P'erdem qualquer
ideologia e verdade; o freudiano, de significados latentes e manifestos; o função significativa, referindo-se apenas a outras ittfagens ad ínfinitum,
·.;'
existencialista, da existência autêntica e inautêntica; o semiótico, de signi- em que, por fim, a multiplicação de imagens produz tal satutação, tal apa·.
ficante e significado. Cuniulativamente, O pós-modefhismo sig~ifica, k' tia e tal indifer~nça que o rclt:Sllectador se. perde para sempre numa su·
portanto, a morte da hermenêutica; em lugar daquilo que Ricoeur (1970) cessão fragmtritária de espelhos, jog~ infinito de imagens supérfluas e
chamou de "hetmenêutica da desconfiança" e da leitura modernista pOJis- sem sig~i·dó~ · ·
sêmica dos símbolos e dos textos culturais, surge a versão pós-moderna de Sêm dúvida, porém, a tdevisão pode ser vivenciada como um deser-
que nada existe por trás da superfície dos textos, de que não há profundi- to e unidimensional plano de imagens superficiais, podendo funcionar
dade nem multiplicidade de significados que uma investigação critica pos- também como p~ro ruído sem referente e significado. O fl~xo, a vel.oci~­
sa descobrir c e."<plicitar. de e a intensidade das imagens podem esmagar-nos - ou de1xar-nos mdtfe-
Dessa visão pós-moderna dos textos e dos cus, segue-se que uma teo- rentes -,de tal ffiodo que a fu~ção significante ctà. telev~são pode serdes-
ria cultural pós-modet•na deve contentar-se em ·descrever as superfícies ou ccntrad;i e simplesmente ruir. No entanto, há algo de errado nessa perspec-
as formas dos textos culturais, em vez de procurar significadps ou signifi- tiva.As pessoas assistem com regularidade a certos programas e eventos; j-lá
dincias.m Contra tal tipo de análise pós-mockrn:~ fOl·m:dista e anti-herme- fãs das Várias séries c estrdas com um grau incrível de informação e conhe-
nêutica, vinculada à postulação de uma cul~ura da imagem pós-moderna cimento sobre o obj~to de sua fascinação; as pessoas realmente modelam
rasteira, gostaríamos de defender um estUdo cultural inspirado tanto nas comportamentos, estilos c atitudes pelas- imagens da televisão; os anúncios
teoriàs pós-modefna.<> quanto em outras teorias criticas, a fim de analisar a por ela veiculados de fato desempenham certo papel na manipulação da
imagem c o significado, a superfície e a profundidade, a pOlítica e a erótica demanda do consumidor; e, mais reCentemente, qtuitos ailalistas concluí-
das produções culturais. Portanto, argumentaremos aqui que a análise in- ram que~a televisão tstá desempenhando papel fundamental nas eleições,
terpretativa da imagem, da narrativa, das ide0logias e ·dos significados con- que estas- se transformaram numa batalhá. de imagens travada nas telas da
tiJma sendo importante até mesmo para o exame dos textos considerados televisão, e que a teleVisão está desempenhando papel essencial na nova
paradigmáticos da cultura pós-moderna, embora a análise da forma, da su- arte de governar (Kellner, 199Da).
pertície e da aparêttcia t'unbém sejam importantes. Argumentaremos nas Obviamente, públicos diferentes assistem à televisão de diferentes
próximas páginas que as imagens, os fragmentos e as narrativas da cultura maneiras. Para alguns, ela nada mais é do que uma colagem fragmentada de
da mídia estão saturados de ideologia e de significados poUssêmicos, c que, imagens que apena.<> intermitentemente "s pessoas vêem ou ligam com
por conseguinte - contrariando certas posições pós-modernas (Foucault, aquilo que veio antes ou depois. Hoje em dia, muitos indi_víduos usam dis-
1977; Báudrillard, 1981; e Deleuze e Guatt"Ui, 1977)- a crítica da ideologia positivos que lhes permitem ir percorrendo os programas, pulando de um
continua sendo uma arma importante e indispensável np nosso aisenal canal pam outro ou simplesmente dando um "vôo rasante" pãm "ver o que
(ver no capítulo. 2 estudo. das questões em jogo aqui). está rolando" e acompanhar o fluxo desconexo de imagens. Muitos indiví-
Além disso," há outra· conhecida posição pós-modcçna de que gosta- duos que assistem a programas inteiros se atêm simpleSmente à superfície
ríamos também de nos distanciar: trata-se da visão associada a Baudrillard das imagens, ·enquanto progC".Imas, anúncios, i~uervalos comerciais, etc. vão
fluindo de um para outro c afogando o significado no jogo de significantes
desconexos. Muitas pessoas não conseguem lembrar o que viram na noite
IT.! Essa IX>~ição anti·hennenêutica foi di~cutida antes por s:mtag,em 1969, e por Bar·
thes, em 1975. anterior ou fazer um relato coerente da programação d-1. noite anterior.

302 303
Conttido, é exagero dizer que, em si, o apàrato televisivo sOlapa ine-
A série assumiu a forma de filme p.oli~ial cc~traddo e~ d~~sc~~~~~~:~~:
C ck tt nascido em Mtamt e ex-Joga or e . ·.
xoravelriiente o significado e .afoga os significantes sem significados num tOS, Sonny ~- c ' J h on) c Ric;:trdo ntbbs (Paul Michad Thoma<;),
hiperespaço plat10 e unidimensional sem profundidade, efeitos ou Slgnifi- sidad~ da Flon~ (Don o ns ~~do.de Nova York, migrou para o sui.O.su-
ca.,"Ões. Portanto, contrariando a noção pós-moderna de desintegração da d~tettve porto-nq~tenho que~tJames Olmos), éra um americAno de origem
cultura na imagem pura sem referentes, éontcúdos ou efeitos - ruído puro, perior cteles, Castillo (~~ar. r boradores na polícia e informantes de rua
em última análise -;argumentaremos que a televisão e outras formas da cubana, c eles tinham v anos co a - . A a -o girava em torno da droga c ct'o
cultum da mídia desempenhan1 papel fundamental na reestrutui-ação ,da que _apareciam,regutarmentc na sene. fe;'as em iocações, -reais da Flórida,
crime em Miami, e as filmagens eram t 'lc,~,~-, ...:~~
identidade contemporânea e na confurmação de pensame!ltos e coínpor-
tame·ntos. Eni outro local, aftrrhamos que a televisão hoje em dia assume al- perto ctc Miami. . em desli "d~a narrativa e part;-
Em Miami Vice, as tmagens aparec .. ,_...., .... ~tons terra mais usados
gumas das funções. tradicionalmt:nte atribuídas ao mito e ao ritual (ou seja, .__,, - · Seus produtores reJel .......... .
integr'tlr os indivíduos numa ordem social, celebrando valores dominantes, cem ter Vlu<'t propna. . . agens artificiais ressaltando as cores
· ·ram luxunantes un '
e, em seu I ugar, P1) 5C • d li _ caribcnho pastéis suaves e
oferecendo modelos de pensamento, comportaménto e sexo Para imita- · ·, ........ · -choque ver e- mao, azu1 •
ção, etc.). Também argumentam~s que o mito televisivo resolve contradi- do ~ul da Bor-~~· r,osa rd d d ção de imagem e som, desde o co-
ções sociais da mesma maneira como levi-Strauss descreveu a função do néons cintil~~!,Na vangua- a ad pro ",- p'<stas e usava t"ocks populares
.. • . "b", um esterco e qua •v . d
mito tradicional, e que ele fornece mitol<?gias do tipo descrito por Barthes, meço, a serte CXJ ta fr .. t mente músicas inteiras como ftm o
para criar ambiente, tocando cqu~ e li da MTY.''·' 0 uso que faziam da
mitologias que idealizrup os valores· e as instituições contemporâneas, exal-
tando, portanto, o modo de vida vigente (Kellner, 1982). Ilustramos esses da ação, reproduz~o a form: de v edoocs cpoettcs do ~om e do. exotismo de
. . - __,_ ~ng"ulos de camara. '
pontos de vista nas páginas que se seguem, onde estudaremos o modo ilununa.çao, uvs a . · . altos prédios altos crimes, cultu-
. ~~ de alta tecno 1og~.a, '
como os programas populares de televisão e, de maneira m"ais geral, a pro- Mianu com sua cu tura . d . agens ressonantes que seus produ-
.
ra multU"racm1, c · -n·ava uma nqueza e tm em espetáculos estéticos .mten-
paganda, funcionam no sentido de oferecer modelos de identificação no tores às vezes transformavam, com sucesso,
mundo contemporâneo.
Conseqüentemente, argumentaremos qnf" grande parte da análise cul-
k trilha sonorn dt série. Uma
tural pós-moderna é também unilateral e limitada, seja por restringir seu· 173 Público e critica lmédiaramente gostaram do tvc na '
foco à furma c à imagem apenas, seja por a_bandonar a análise da cultura da das primeims criticas not.wa: ,
mídia pura e simplesmente em favor de metáforas totalizadoras grandiosas e ao ritmo das cenas. a série &ern."mal esta na vanguar·
Palpitando ao ~om do rock . ''"..' ' ritmo como marCa re·
(buracos n~gros, implosão, cultura excremental, etc.). Em vez disso, é pre- · - que começaram a "" • 0
"da dos programas 1Ie .teIev,sao · do mar aO som
. .. stem ao som do Devo, fazem a tr.~vessla '
ferível analisar forma e conteúdo, imagem e narrativa, supcrfide pós-mo- gistrnda.Scus herms se ve . . e ao som dos Ro!Hng Stones. Como obsen"ll
de phil Collins e, lutam contra .;~:~~-o "Miami VIce e a MTV são parentes con-
0
derna e problemáticas ideológicas mais profundas dentro do contexto de
exercícios específiCos q~e exponham a natureza polissêmica de imagens e Michae! Mann, seu produtor ex
.... "
'
enta o compo~itor ]ames 0 I s
. p, qua!e·"Não há dúvida de que
·•• A • •

textos e que referendem a possibilidade de múltiplas codificações~ desco- sang.,meos . E acresc .. fj , do cada \"eZ mais romant!co .
o casamento da tele~isií.o com o rock esta l<an '
dificações. Com essas ressalvas em mente, ·passemos ao exame d(: Miami u>eoJ>le, 29 de outubro de 1984)
Vice para descobrir o que podemos aprender sobre televisão, pós-moderni-
dade e identidade.
'. - Hfamt Vice i; o uso da músk.a. Na maioria dos
i o que mais chama a atençao em • d <,·,,~ ~ or•ão da tela ' parares-
. - '"a" tilizaaparaena••··~~~·
programas de televisao.a mu~,c cu d • d ,_ .... ,, tristeza Mas Múimtl1ce usa
.Miami f/ice
.
t.'
.
a política da imagem c da idcntidad(; .
saltar a tensao.por exe~t •
seleções de roc k In
terpre
pio ou para ar es,... 4 .. ~ '
.
··
b"m conhecidos como os RollmS '
tad\l.S pot COilJUiltoS ~ ' '
b U . ma~--· ~onheddos como os dos grupos
.

. então trn a lOS .._.,..,.., ~ · ,


Miami Vice, jUntamente com a MTY.·fui o exemplo preferido por mui- s10nes e Ph!! Co11tns,ou mbin~ com mont."lgens c
lnetnato~..:iRcas ctudado-
~-· .. .
05
jamaicanos de reggae, e <.o !I videoc!!pes da MTY. <:analtntet·
tos criticos para a televisão pós-moderna (Gitlin, 1987; Fiske, 1987b; Gross- samente editad:l~. criando algo seme Jante ao 5
. .
berg, 1987). Esse programa nasceu "em 1984·como produto de "Hill Street ;.;.mente dedicado. ao t-ock.
Blues" do produtor Anthony Yerkovich e do diretor Michael Mann; Mann (Tfu! New Hwk Times, 3 de janeiro de 1985)
tornou-se a figura mais importante e ficou no programa até o fun,cm !'989.

305
304
_,:

sos, fascinantes~e sedutores. As rulrrativa5 às Vezes tortuosas refletiam expe- de ou de camadas de significados. Segundo nossa leitura, porém, a f5r 111a, a
ritncias de fragmentação c tédio lento;mar~das por uma intensidade alll- narrativa e as imagens constituem um texto p~Ussêmico, com múltiplos ~ig~
cinogênica.A imagem freqüentemente tinha precedência sobre a narrativa, nificados possíveis, que exige leituras polivalentes capazes de penetrar nas
e a visão e a sensação se tomavam primordiais, relegando muita~ vezes para suas várias camadas. Segundo nossa herrhenêutica política, o programa.
segundo plano a linearidade e os significados da narração. deve ser lido como um contexto social a nos dizer algumas coisas sobre a
Sem dúvida, esse indubitável estilo pós-moderno é um aspecto funda- .sociedade contemporânea. Em especial, parece-nos que Mia.mi Vice possi-
mental de Mimni Vice, mas diríamos ainda que a maioria' das análises que bilita um,entendimento da fragmentação, da reconstruÇão e da fragilidade
'qualificam a série corito "pós-moderna" incide em erro ou deixa de ver as- da identidade na cultura contemporânea, o que tamhé!,ll que nos possibili--
pectos fundamentais do fenô~eno. Privilegiando a categoria de Jamesdn, ta entender de que modo as identidades_são.êt;>.a~tJ;uídà'S-·por meio da incor-
de míngua afetiva, Gitlin (1987), por exemplo, afirma que iJJiamt Vice é a poraçãO ·de"posições de sujeito" off;recidas à eiifulação pela cultJJra da mí-
última palavra enl incxpressividade, vacuidade e fastio pós-moder~os. En- dia. Contrariando o ponto de vista t;le Althusser, assumido durante certo
tretanto, contrariando essa leitura, poderíamos argumentar que nela pulsa tempo por Screen, segundo o qual os·t~xtos ideológicos enquadram os in-
também uma intensa emoção, um conflitO de. valores, além de mensagens dh---íduo~,eni,f'posições de sujeito" homogêneas, unificadas e intpe.tturbá.-
e posições políticas específicas (ver Dest e Kellner, 1987 e análise abaixo). veis, diri~.S que, ao contrário, as "posições de sujeito" da cultura. da mí-
Grossberg (1987) também afirma que Miam/Vice e outros produtos da cul- dia -são &trcmamente específicas, cont~ditória5, frágeis c sujeitas a rápida
tura pós-moderna obliteram o significado e a profundidade, dizendo: reconstrução e transformação."'
Para começar, a cultura da mídia põe .à di~osição imagens e 'figuras
Miami Vice está, como disseram setÍs crítkos, todo na superfície. E ~ superfi- com as quai~~Seu público possa identificar-se, imitando-as. Portanto, ela
de nada mais é que uma coleção de citações de nossos escombros históricos exerce impohantes efeitos socializantes e cÚlturais por meio de seus mo-
coletivos, um jogo móvel de trivialidades. De algum modq, é a perfeita ima- delos de papéis, sexo e por meio das várias "posições de sujeito" que valo-
gem tcl~isiva, minimalista (as cenas e·sparsas, as constantes tomadas longas, rizam certas formas de comportamento e modo de ser enquanto desvàlo-
etc.), contudo concreta. rizam e denigrem outros tipos. Por eXemplo, está bem documentado que ·
(Grossberg, 1987: 28) os detetives Crockett (Don JohnsOn) e 1\1bbs (Paul Michacl Thomas), de
Miami Vice, se transformaram em ícones da móda, árbitros do gosto. Os pa-
. Grossberg chega a dizer que a "indiferença" (a significados, à ideolo- letós italianos despojados de Croçkett, seus tênis usados sem meias, suas
gia, à política, etc.) é a característica distintiva fundamental de Miami Vice camisetas e suas calças largas, a barba freqüentemente por fazer, o corte
e de outros textos pós-modernos que, segundo ele, pelo que nos dizem mutá~el de cabelo, etc. constituíram o modelo ~e novo visual masculíno,
sobre nosso tern;no cultural, têm mais afinidade com cartazes sobre os uma nova alte~;"nativa à moda convencional, uma legitimação do "solto e ca-
quais çorremos os olhos do que com textos que possamos ler e· interrogar. sual".Tubbs, por outro lado, transformou-se em um ícone do meticulosa-
Contrariando -Grossberg, diríamos que Miami Vice é bastante polissê- mente elegante, com seuVero Uomo transpassado, gravatas italianas estrei-
~ico e saturad_o de ideologias, mensagens, significados e valores bem espe- tas, sapatos de bom gosto, brinco da última moda e um jeito nouveau~coot.
cíficos. Por tras do glamour high-tech, encontram-se vários lugares de Os colaboradores, Zito e Switek, com as camisas havaian<"J,s largas, calças co-
significado, diversas "posições de sujeito" e problemáticas ideológicas ex- loridas, avessos à alta moda, são modelos de um modo de ser e vestir mais
tremamente contraditórias. O programa tinha um público apaixonado c;: informal, enquanto as mulheres, Gina e Tntdy, estão constantemente mu-
fiel; este, claro, não era indifere.t:~te à série que, ccimo tentaremos mostmr, dando de roupa, de corte de cabelo c aparência, validando a constante mu-
continha investimentos e paixões intensas e afetivas. No estudo que- se dança e reconstrução da imagem e 'da aparência.
segue, argumentaremos que a leitura hermenêutica e critiCa do texto de
Mimnt Vice dá acesso à ·sua riqueza polissêntica, sendo, portanto, um erro 174 Hesitamos em usar a terminOlogia "posições de sujeito" pois- não acreditamos na
tratar apressadamente de tais produções, sem levar em conta o modo co mó existência de coisas como "sujeito", mas sim que a noção de sujeito é tm1a ficção de
certo público ,s.e relaciona com das. - constntção puramente ideológica e sociaL No entanto, como a cultura da mÍdia real-
Por outro lado, numa leitura unidimensional pós-moderna, um produ- mente produz poslç(J(!s com as quais o público é convidado ou induzido a identificar-
se, utilizamos a expressão "posições de sUjeito" nesse sentido;de descrever identidades,
to como Miami Vice, é totalmente superficial, desprovido de . . profundida- papéis, apal'ências ou imagens fiXados pélo5 modelos ou pelos dlscurMS da mídia.

306
301
--i
O horizonte social de Miami Vice é a sociedade materialista e consU- À medida que as ·narmtivas .se desenrolam, Miami Vice apresenta aigu.; :,_
mista da década de 1980 c a ênfase reaganista na riqueza, na prosPeri~idc, mas visões reveladoras sobre a problemática da identidade nas sociedades ca~
na moda, no estilo e no visual. Naquela époq., uma nova cultl).i:a definia. a pitalistas tecnológicas contemporâneas. As principaiS personagens (Crockett,
identidade em termos de imagem .. Miami Ví'ce, com suas imaiens e histó- Tubbs e o chefe Ca<;tillo) têm múltiplas identidades e diferentes passados que
rias, transcodificava esses discurseis da modá e da idcn'tidade, .influencian- entrccn17.am de maneiras instáve:is o presente. Em cada caso, a identidade de- - _,
do, por sua vez, a (!lO da, o estilo e o yisual da 'época. Efeito Miaini Vice: pas- k-s é fritgmcntada e instável, diferente e distintiva em cada person<lgem, mas
sa a estar Por dentro todo aquele que usar um estilo mais caSual, rÚUdando sempre sujeita~ ru_J,ldanças dramáticas. Crockett é apresentado como um ex-
constantemente de aparênda _e imagem. Don Johnson e "outros atores do ·. craque de futebol, veteraflo do Vietnã e homem acostumado .som o su~un­
p~grama trarisformaram·se em ícones da moda e rriodclos de papéis '5 (~ do do crime e da droga. Seu apclido,''Sonny" ,codifica.-ç,·como''tfw ícone da ju-,
c_1ms, ~ ? grog:rama promo;e~ um visu_al high-tech cheio de glamour-que ventude, enquanto o seu sobrenome "Crockctt" evoc~'f~ imagem de herói,
smtet1zava propaganda e tecmc_as deTY, combinando imagens deslumbran- um dos heróis do Alamo, Davy Crockett, objeto de uma mittissérie de muito
tes-com edição ágil, trilhas e segundos-plano~ intensamente emoCionais. sucesso produ?Jda pcla Disney na década de 1950 e representado por John
Crockett, Th1bbs e colegas sãO, sem dÚvida, modelos para homens, mu- waYne em Th!f, 4-liJmo em 1960. Ao contrário de Davy, burguês insensível,
lheres e adolescentes brancos, negros e hispânicos, enquanto os detiflqüeil- Sonny é api-~~ como alguém que já foi casado e se divorciou, e vár~s
tes retratados fornecem identid.'ldes criminosas. Portanto, projetam-se com , epi~ódios·o m~)Stl'am com a ex-mull)er c o fillto, embora esses encontros nao
~a~de especificidade modelos de papéis sexuais e sociais, bCm como "po- _sejam freqüentes e com eles ele não acabe adquirindo uma identidade real e
stçoes de sujeiton bastante diferentes das imagens de sexo, ·raÇa c classe· duradoura <:orno pa~ ou marido na série.
usuais no panorama típico da mídia e da televisão. De modo geral .Miami Ao contt·.-ario,';-trockett tem vários relacionamentos, é relativamente
VicC põe seu espectador em posição d~ identificação co~ um e'stilo de desestruturado e e'Stá sujdto a rápidas mudanças. Nos p1·imeiros episódios,
vida próspero e em a'>censão, por meio da projeção de imagens de uma so. nós o vemos envolvido com a colega Gina c também com uma arquiteta.
cicdade próspera, consumista e tecnológica. Suas· imagens icôniCas de arra- eteSante, uma aeromoça que morre de superdose de droga e mna médica
nha..céus, casas luxuosas, mullu:re~ ç carros _pussantcs e caros, alérÍl das ca- que também é viciada. Essas relações foram apresentadas em episódios úni-
I~S~as e ambíguas met·cadorias representadas pelas drogas e pela pcosti- cos nos quais o relacionamento se desiittcgra c nunca mais rt::aparccc (as
tmçao, produzem imagens de riql!ez: e alto nível de consumo que põem duas· amantes envolvidas com drogas morreram). No período de 1987-
os espectadores em posição de invejar a opulência e o poder dos vilões ·ao 1988, Crockett c~a-se com uma cantora de rvck mL,Ilto populat' que ele ti-
mesmo tempo em que Se identifica.m com o estilo de vida, a personalidade. nha por missão proteger (interpretada pela cantora escocesa Shcena Eas-
e o comportamento dos heróis. O desafio enfrentado por Miami Vtce é· ton), mas ela logo desaparece f!_uma turnê aparentemente interminável, e
apresentar os policiais "bonzinhos" em papéis mais adequados e invejáveis quando recebe um tiro e está para morrer CA Bullet fOr Crockett", 1988),
do que os dos "malvados"traficantes do sÚbmundo endinheirado do crime não é possível ~alvá-la, c apenas seus colegas estão ali para a assistir à sua
que, em certo sentido, vivem fora da fantasia do capitalismo desenfreado. morte: sucedãneo de fanúlia cada vez mais comum no mundo da TV, uma·
O programa também convida os espectadores a identificar-se ·com uin vei que o os índices de divórcios são galopantes no mundo' da teali<.lade.
estilo de vida ágil e móYel que focaliza o lazer consumista e emocionante. Tubbs, ao contráJ·io, é apresentado como um policial negro conhece-
As icônicas imagens da abertura apresentam uma lancha atrave'ssando 0 dor das ruas que vai morar em Nova York depois que seu irmão é alvejado
oceano enquanto na sua es.teira as ondas azuis e brancas pulsan~ num rít· e vai a Miami em busca do assassino dele; decide ficar e une-se a Crockett.
mo musical vivaz; há um corte, e as imagens focalizam pássaros exótiCos Seu nome é Ricardo Tubbs, cognome Rlco, e sua pele escura, porém mati-
mulheres senstmis; competições esportivas, corridas de cavalo e de cãés ~ ~da, codifica..a como d~scendcnte de várias raças. Ele raramente fala ·sobre
outras imagens de lazer, ·usando a próspe_ra Miami como pano de ftiltdo. o passado e ~ve um perpétuo presente, ligado intimamente apenas aei só-
Essas ima~e-ns de abertura são_ fruto de um trabalho de edição competCnte_ do Crockett. O chefe Castillo, assim como Crockett, é também veterano do
que transmttcm a sensação ~e velocidade e mobilidade; convites· irrêcusá- Vietnã c trabalhou 'paJ'a a Drug Enforcement Agency na Tailândia, onde se
veis ~viver perigosamente c a fazer parte do mur~:do dos ricos. o prograrila casou c perdeu a mulher numa batalha contra um chefão das drogas. Ele
em SI demonstrará então de que modo os Índivíduós entram nessa utopia ·acreditava que ela estivesse morta, rrias um dia ela chega a Miami çom o
do lazer e encontram boa vida em seus espetáculos e engodos. chefe da,s drogas ("Golden Triangte, 1985); Castillo fica sabendo que ela

309
agora está casada e feliz,-mas que na ~~rdade foi seqüestrada e está c~mo lidade moral ou psicológica intríns.eca. Também indica que a identidade é
refém do traficante, que ameaça matar seu marido se ela o deixar ou ~ trair." um jogo que se joga, que é poSsível trocá-la facilmente. ~
Depois que Castil!o fesgala a mulher, com um desfecho inspirado em ca- A identiÇadC pós-modçrna, então, é constituída teatfalnu!nte pelare~
~ sablanca, despede-se dela e do marido no fim do episódio. prese_ptação de papéis e pela construção de imagens. Enquanto o Iugat>' da
· C~stillo é mostrado como. o patriarca protetor, indivíduo independen- identidade moderna girava em torno da profiSsão e da funçãú na esfera pú-
te, canudo e fechado que se define pela moralidade de'suas ações. Consti- blica (ou familiar), a identidade pós-moderna gira em torno·do lazer e estii
~~i a identidade mais estável de Miami Vice e representa a fig 11ra do eu au- centrada na-aparência, na imagem e no consumo.A identidade moderna era
tonomo com identidade pessoal forte e firme. No entantO, também é apre- um negócio sé~:io que implicava escolhas fundament<~,is caPazes de definir
sentado como um homem. de grande paixào ê emoções intensas constan- quem somos (profissão, família," identificaçõ~~Qliti"Cás, etc); enquanto a
tem,en.te reprimidas, produzindo'5e a imagem de um fogo lento que pode identidade pós-moderna é uma função do lazei-~'~"baseia-se no jogo, no lu-
explodi~ a quaJquer mom<;nto em violência 'e caos, figlllfl cujos limites mo- díbrio: para a produção de uma imagem. A noção de"jogador"·~- central.na
nUs cuidadosamente construídoS podem desfazer-Se. a qualquer momento: construção da ideptidade em 1l1iami V'ice - dá-nos a chave da natureza da
figura silenciosa e trágica que poderia.facilmente cair no mundo mais caó- idçntidaAA' ~,ós-moderna. O "jogadOr" c;onhece as regras do jogo e as joga-
tico da violência e do niilismo que ameaça todos os limites de identidades das e ~gfi&-;;hcordo com elas. O jogador joga com as convenções sociais e
no mundo instável e frágil de Miami Vice. muitas Jezcs as despreza; tenta distinguir-se por meió de atividades rituali-
Crockett e.Tl!bbs, ao contrário de Castillo, estão constantemente mu- :zadas, da jogatina, dos esportes, do tráfico c do uso de drogas, do ato sexual
dando de aparência, estilo e comportamcnto.No início da temporada 1988- ou de outro~i,assatempos Ou atividades sociais. O jogador "torna-se al-
1989, Crockctt apareceu de cabelos até os ombros, às vezes preso em rabo- guém~ quando e bem'5ucedido e _obtém identidade por meio da admiração
de.cavaio, enquanto 'fubbs aparecia de barba espessa; tudo isso desapare- e do respeitá de outros jogadores.
ceu na temporada seguinte.A estabilidade das identidades dos policiais em Um dos princípios estruturantes de Miami lií'ce aponta para wna dico-
Miami Vice é explorada num roteiro que utiliza suas múltiplas identidades tomia esquizóide na construção da identidade das duas principais person-
com,~ policiais e psel!dodelinqüentes do submundo.Ambos desempenham agens, o que, a nosso ver, é indicio de tensões dentro da construção de iden·
papets secretos; Crockett mora num barco de luxo, fazendo-se passar por tidade:5 na nossa época. Como nOtamos, Crockett e Tubbs representam ao
traficante, com o nome de: Sonny Burnett, enquanto Tubbs assufr!e o papel mesmo tempo policiais e delinqüentes em muitos episódios,agindo como cri-
do comprador/traficante Ric.ardo Cooper; ora com personalidade jamaica- minosos para prender os."verdadeiros" delinqüentes. Na temporada de 198&
na. ora caribenha, enquanto aparece outras vezes <:Orno um negro marginal 1989, os roteiros jogavam com· essa dupla identidade, mna vez que Crockett
da cidade. ~eda de se imagina'r-que. logO corresse_ boato de que "BurneÚ" resvat.tva esquizofrenicamente de Burnett para Crockett e dc~tc para aquéle.
era "na verd!lde" o policial "Crock~tt", e que os vários criminosos "represen- O argumento sugere que é fácil incidir ou transformar-se no papel desempe-
tados" porTubbs eram ~na verdade" máscaras para o policial '·TubOs". No en~ e
nhado, que a construção d;l identidade hoje em dia ·é algo extremamente tê-
tanto, programa após programa, Crockctt e1\1bbs vãó assÚmindo suas iden~ nue e frágil O suspense foi constrLúdo em tomo da questão "'Crockett' pode
tidades de criminosos e deslizando do bondoso ao malvado com a mesma continuar. sendo 'Crockett' ou de repente se tomaria 'Bumen'».A mornl pare-
fucilidade com qUe se troca de camisa.'.'s Essas duplicidades dão Jtldícios âa ce querer dizer que, quando mudamos de identidade à vo:iltade,podemos per-
artificialid<J,de da identidade, de que á identidade é construída e não dada der o controle, podemos cair num conflito e'numadivisão patológica, ficar in-
de que é uma questão de escolha, estiio e comportamento, e hão uma qu~~ capacitados para a autonomia de_pensainento e ação.
P~rtanto, e.stá claro que-a ideritidade pós-Uloderna teiÍ.de mais a ser
construída a partir de imagens de lazer e consumo do que as identidades
175 ~sa iden~idade dlí_p_Hce dos polícia_is enganou Gitlin (l987),quc disse:" o eSpectador
prtc!Sa engohr que dois poli<:iais de Miami (salário líquido em 1985: US$429 por Sema-
na) <:onsegtten\, tranqüilamente, arcar com o qué há de mais novo c \istoso em matéria • Aqui convém esclarecer todas as noções que o autor pretende tran'smitir com a pala·
de carro e roupa"(l987: 152):afirma também que os po!idais apresentam"traços de ban· vr-a "p!ayer" e que não podem ser indic.'1.das <:Om uma palam só em português. Em in·
ditismo"(ibid.: 15;3). Ele dt:i.'mu de atentar pat:l o roteiro, segundo o qual eles devem as. g!ês, "playcr" tem as seguintes acepções principais: jogador, ator, intérprete (de ínstru·
swnir identidades se<:retas, de panicipanttis do submundo da droga, o que é expliciu.do mento mtiSical) e, na gíria, délinqlientc (sentido este com que ap:~rccerá no pró~o
no prilne~ filme da sétie (disponível em video) e em muitos outros episódios. parágrafo). Em ponuguês, somos obrigados a nos restringir ao termo "jogador". (N.T.)

3.10
311
modernas, e ttuc tende a ser mais instável e su· . - . dos de atnbos os sexos imitam seu comportamento. O espectador, ·portanto,.:
identidade moderna quanto a po' d J~Ctta a mudanças. Tanto a i: posto na posição de considerar desejável o comportamento agresSivo,·
. s-mo ema contem certo ' 1 d .
''ldad_e, a consciência de <lllC.a identidade é esc Jh'da ruve,- e tetl~xt· nlasculinlsta e, com muita freqüência, sexista; dessa forma, o indivíduo ama-
na ~ociedacfule contemporânea, pode ser mais~n~u~l"t~~~;s~:u;~~~~i~:~~· cho"é privilegiado como o modelo mais invejável. As duas mulheres poli-
em~ ar con rmc OS ventos volúveis da moda Embo . ' ~iais - Trrtdy e Gina - muitas vezes recebem a missão de agirem como pros-
ra ts~o produza um~
erosão da individualidade e aumente o c fo . .
contemporâneos de identidade) exi t
trato pós-moder d 'd .d '
tnr~ttsmo soctal (aos modelos
5 e, a gum potencial positivo nesse re-
titutas ou de seduzirem criminosos, sendo então apresentadas em estereóti-
pos negativos ·dç ~retrizes e sedutoras; freqôentementc acabam em situa·
na a t entJ ade como const t · · - çõcs de 11erigo e precisam ser salvas pelos policiais homerg;. Quando i.ém
~ão de identidade indÍca que sempre é. possí~~; ::ifictal._ Porque ~I no- ~c:;rmissão para most~r,sua ~r~pria subjetivida~e, ac\~ª'~ naS.~~Ihas de cri·
ttdade sempre pode ser rcconstmída e que somosl~ ar de vida, que.a Iden- mmosos; como no eptsodib mtttuiado "Whcn Irish EyeS'ãie Shmmg~ (1985),
marmos e nos produzirmos conforme nossa escolhavres para nos transfor- em que Gina se apaixona por um sujeito inescrupuloso do IRA. As mulhe-
Pode ser interessante coritrapor essa no ã0 d : . , reS.poHciais são apresentadas de maneira ~1ais positiva ao assumirem com-
escolhidas e descru·távcis da po'"-m d . 1 dç c Jdenttdades multiplas,
. .,-- o erru<a e com as·· . . portamento ro~.s«tiJino agressivo, como quando Gina acerta os pistoleítos
ctonais de policiais que tinham identidades "mode m;:agens ~ats tradi- do IRA ou Tr~fira num criminoSo particularmente desprezível com o
com "posiç?es d_e sujeito" bem distintas. Em
sa_rgemo Fnday, mterpretado por Jack Webb era 0 m
Dragne/;t;5 ~;~ ~~~c;_~~~es,0
' '
qual foram ob'ligadas.a dormir numa missão secreta. Esse comportamento
masculino reproduz as imagens de mulheres guerreiras ·cada vez mais fre·
de rigorosa moralista ascética e aut .,- . ' odeio. de personaHda-
b ' ' on ana, enquanto 0 Elllof N d qüentes nos fins da,P,écada de 1970 e na década de 1980 (Al{en,Aliens, Mu"
el't Stack, em Os Intocáveis (1959-63) era literalm : ; css e Ro- fher iUcmwilba, Sh"lêtw). Nesse quadio ideológlco,portanto, igualdade sig·
ruptível por mulhere-- 0 ,, c . . 'b ente mtocavcl e incor-
. ., rumnosos.Am os eram fig , nillca oportunidade igtlal de rilatar, set· uma mulher guerreira igual a um
gtdas e autoritárias, sem aparência de vida pessoal i~;;;:i~{rl~~ment.e n- homem guerreiro no campo da agressividade primitiva.
ços complexos de 1,ersonalidadc . 0 .c h e ' e na sene , . 'FBJ (196S m t a e ou tra- A série é inegavelmente racista, pois privilegia o homem branco
74) b.
era bem impessoal ' sen'• ·rdent"dI a c
d d'tstmtiva
. . o que tal b, ::o -· tam
. em Crockett como sujeito de poder e objd:o de desejo, como centro em torno
os policiais das séries da década de 1950 , ' R . n em ocorna com do qual gira a maioria das narrativas. Em janeiro de 1989, a NB<: Ucdicou
Squad e Cidade Nua. ' como att·ufha rodoviária, M•
seu horário nobre das sextas-feiras ao programa "Three for Crockett", apre-
Nas décadas de 1960 e 1970 comcç·a · . sentando três episódios inteiros centrados na figura masculina branca. Em
'·pessoalizáveis~ como Colombo K .ak B ram a aparecer policiais mais
, . , OJ , aretta, Starsky e Hut h M termos· de construção de imagem, o branco também é a cor privilegiada:
tambem ttnham identidades relativamente fixas . c .. , as ~stes Crockett f~qüentemente usa paletó branco, dirige carro branCo, faz farras
p~los trejeitos, pelas marcas de individualidade ' facH~ente dts~tngurveis em areias brancas e vai atrás de lindas rriulheres brancas. O preto - como
çao armstados, despretensiosos e matreiros de c~~u metodos ~~ mterroga~ no melodrama tradicional - é qualificado como lugar de perigo, mistério,
cho valentão de KoJ'ak a id tifi . • d mbo, as tattcas de ma-"
- . ' en caçao e Baretta com 0 0 · . 'd incerteza e mal. Alguns episódios usaram panos de fundo noturnos, negros,.
odto dos crimino"O"
"' " q· rre p-· d'
n.JU tcavatn a "Su " t P vo mm o e o ameaçadores, nos qu:iis as formas e as figur.ts luminosas são privilegiadas
ror moral de Starsk, c Hutcl• co-" .. a gen ~·e as explosões de fu- ·
u..ertam a e"ses poli · · ·d . como índice positivo contra o fundo escuro desvalorizado.
Ctats 1 entidades está~
·1 •
vcis e familiares _ mais individualiz· d d . '
. . a as 0 que os anteriores . · b, No entanto, a amizade entre o branco Crockett e o negro Tubbs. -·
su bstancta15 e ftxas. Essa es~nbr"lid d " _ . , . , , mas tam em interpret.1.da por alguns críticos como dara·mçnte homoerótica (ButÍer
' . "" a e Ja nao e vtsrvel em 111' i V.
que Crockett-. e Tubbs diversificam cortes de ca e os e aparenc;,.,,. 'ice,
b I ''!m. e em 1985)- representa uma das mais impressionantes imagens de amizade e in-,
mem papets e condutas diferentes de """ assu-.. ter-mcial na história da televisão, e Tubbs e Castillo constituem duas das
temporada para outra um programa para outro, de uma
imagens mais positiv.ts de negros já smgidas. Por outro lado, enq\larito
. Embora 0 ~ figu~ de Crockctt e Thbbs de . . . . Tubbs e Castillo sem dúvida representam modelos positivos pam jovens ne·
SeJa instável fluida """gme t' . d ' Miamz VIce, a 1denttdade
· , "" n ana, esconexa múlfpl 1 b · gros e hispânicos, na maioria das ·vezes são extremamente ncga~ivas as imar
transformações drásticas ass· .. ' .. a, a erta e sujeita a
. . ' un mesmo pnvdcgta certa . gens que aparecem na série de negros, hispânicos e de gente do 'rÚceiro
ntstas. De modo particular, a identidade machi t , . ~ posturas mascul!- Mundo. Dois informantes que aparecem em muitos episódios- o cuban·o
Iie. Crockett, ntbbs e CaStillo são acima de tu~oa ~;:onzada em toda. a se- lzzic e o negro Noogie - são estereótipos dos malandros hispânicos c ne-.
. os, e seus subordina-

312 313
•:r'.'.l
,·,,

gros, modelos impróprios contra os quais Thbbs e Castillo' se definem. Dois equiparação entre crime e altas finanças é muito ambígua - ambigüidade
policiai"s negros· foram apresentados em papéis coadjuvantes: um. antipáti: que percorre toda a série e constitui a identidade pós-moderna como aJgo
co de Nova York e outro, agente federal do_ ·f!arcoiráfico, ostensivamente ambivalent_e que está além do~ modelos tradicionais de "bem~ c "mal~ .Isto
agressivo e incompetente; eles também repre'sentam a__ antítese do profis- po'rque na cultura da mídia c na sociedade a identida.de muitas vezes é
sional negro il:ieal. Os criminosos também são estereotipados como gente construída contrariamente às convenções ·e à moralidade dominantes;
de cor a deseinpcnhar papéis convencionais: traficantes, chefes de bandos, portanto, há algo de amoral ou moralmente ameaçador no eu pós-moder-
prostitutas, contrabandistas_ de arm~, etc.,g~nte p~dominantemenÚ~ degé- no fluido, ~tiplo e sujeito a rápidas mudanças.- Dessa perspectiva,
nerada, sem princípios, perigosa e violenta. CrQckett é um herói extremamente ambivalente para a'.:qdtura americana:
As cenas do Terceiro Mundo são também apresentadas de modo ne- com freqüência sua bar_ba está por fazer, de flMÍt.fit usà:.,.gravata e muitas-
gativo como locais de corrupção, violência e de várias formas de m'al; essas vézes anda sem meias; é sexuaJmentc pronúscuo C:"""êStá sempre revertendo
emanações negativa;; da alte~idade, tipo "çoração das trevas", são mostradas para o papel clandestino de "AurnetC, em que irterpreta com prazer o 'ljo-
~orno uma ameaça à utopia de Miami com sua prosperidade fácil e sua fa- gador'' sempre disposto a fazer qualquer coisa por alguns dólares.
cilidade de ascensão social. O lurnpemproletariado dos. liDA, por outro No -ei]J:an~o, Miami Vice nãó é um programa realmente niilista nem
lado, raramente é niostrado, embora alguns episódios tenham aDresentado enaltcce'd~,%d.P:;~rime.:\Ssim como o tradicional gênero "ftl'me de gãrigster':
imagens cruas dos guetos; um deles, de 1986, retra.ta realisticamente ·os do dnema~hollywoodiano (vcrWarshow, 1962), a série pode ser interpre-
problemas dos negros que -vivem nos guetos, na história de um jovem atl~­ tada como um conto moralizador: mostra que quem ultrapassa os limites
ta nt:!,.'l'O t~car)az de escapar à violência e à degradação ôo gueto. aceitáveis em busca de riqueza e poder está fadado à queda.Assim como o
Na verdade, há alguns aspectos socialmente ériticos e progressistas na gênero_ do filmc'"âe gângster, Miami Vice tem forte atração pelo submundo
série. Em certo·sentido,o"vício"retratado é,em·grandc parte, o vício doca- do crime e põe~ em cena o jogo de paixões primitivas da livte- empresa ca-
pitalismo tanto quanto o vício de Miami.Ao mesmo tempo que Miami é o pitalista: devoção a qualquer custo ao acúmulo de capital. Assim, Miami
lugar do crime sem freios, também é o lugar da "livre empresa" sem freios,. Vice identifica as posturas ultmcapitalistas como um dos apetites ávidos e
c ·o tráfico de droga é o máximo em termos de aC(Imulo de capital ·por al· incqntroláveis e cOm a agressão violenta que leva inevitavelmente à morte
tos _lucros, visto que a droga representa o sonho ultracapitalista de ~erca­ e à destn!ição.
dQria produzida a baixo Custo e vendida com lucros astron'õmicos. Um che- Apesar disso, as imagc_ns da -grande riqueza dos criminosos são tão
fão da droga" que aparece no episódio de 1985, intitulado "1he- Golden atraentes c sedutoras que a série qn si é _moralmente ambivalCnte, revéstin-
Triangle~, afirma que a droga "não é düCrcntc da tapioca ou do minério de do de .,.-alar positivo tanto a identidade profiSsional dos policiais quanto a
estanho que chega da Malásia. É simplesmente uma mercadoría para a qual identidade delihqüentc dos criminosos - ambivalência intensificada pela
·existe dcma!lda". Na verdade, essa série é uma das poucas que apresenta dupliddade de identidades de Crockctt.cTubbs, que desempenham papéis
imagens criticas do capitalismo. Outro episódio, intitulado ~Thc Prodigal de criminosos abastados e de policiais no mesmo episódio. Essa antbivalên-
Son"(1985), mostra)ulicn Beck,cmpresário do Living TbeateJ;.no papel de · da talvez intensifique o tipo de relathismo que certos teóricos pós-moder-
banqueiro nova-iorquino; numa reunião com os chefões da droga, o ban- nos afirmam ser sintomático da condição contemporânea. A série também
queiro atlrma que a comunidade fmanceira favorecia a continuação do co- põe à mostra e reforça tendê~cias da sociedade contemporânea a adotar
m~rcio da droga pará que este a ajudasse a recuperar .os empréstimos fei- mÚltiplas identidades, a trocàr de identidade e aparência do mesmo ~odo
tos aos país~s do Terceiro Mundo, para os quais as drogas constituíam uma. como se troca de roupa, trabalho o~ moradia. Essa análise de Mim~i Vice in-
das poucas: exrortações rentáveis. Nest~ e em outros episódio~ existe, di(:a, na verdade, que a. imagem, a aparência e o modo de ser são comporien-
portanto, uma ligeira critica social. J7G tes fund'lmentais da cultura pós·m{ji:Jerna e di identidade pós-moderna.
Assim como Balzac e Brecht, Miami Vicd associa rique;za com crime, Por conseguinte, Miami Vice põe à mostra a maneira comO a identi~
empresa capitalista com triminalidade.'~or outro lado, a glamourização do dadc (: constituída na sociedade contemporânea pÓr meio da imagcm.e dó
crime também enaltece o capitalismo todo-poderoso, de tal modo que a modo de ser, indicando que tal mod_ó de identidade é extremamente flui-
da, múltipla, móvel e transitória. Contudo, tentamos mostrar que certas ima-
gens da mÓda, do sexo c do oiodo de ser estão vinculadas a determinados
176 Para mai~ exemplos de a!gul)las mensagens políticas progressistas f!a séries; ver
Sesr e KC!!ner, 1987. teores e valores e, assim, constituem dctç::rminadas modalidades c formas

"314 315
de identidade. Da mesma' fnandra;as imagens e as narrativas da cultura da verdade, ·quando a mudança de imagem e modo de ser é freqüente, há
midia também estão saturadas de ideologia e valores, de tal sorte que ~ sempre ansiedade em relação à possibilidade de aceitação e validação por.
identidade nas sociedades contemporâneas podem (ainda) ser interpreta- parte dos outros, por meio do recon~ecim~nto da nova identidade.
das cómo' um constructo ideológico, como um meio· pelo qual a cultura age No entanto, é possível pressupor na fotmação das. identidàdes a exis-
no seritido de produzir "posições de sujeito~ Ctue reproduzam valores e mo- tência de uma mudança graças à qual os eus pós-modernos estão se tornan-
dos dt: vjda capitalistas e masclilinistás dominantes. dO mais múltiplos, t~sitórios e abertos. Para Jameson (19.84: 76), a f~gun~:
Em todo este livro, temos tentado resgatar uma crítica da ideologia de David Bo'Wiie-6lhandó fascinado para lima pilha de televisores constituiu
marxista, feminista e multicul.turalista em oposição ad fo;malismo pós-mo- uma imagem privilegiada do eu pós-moderno - image,m ;H=~,ual poderíamos
derno· que abstrai o conteúdo ideológico das froage1lS e dos espetáculos e /acrescentar fi_guras de oUtros habituais trocador~~~tcani~S:·dos que vão.
que postula a destruição do significado e da identidade no mediasciij.Je passando raprdamente de um canal. para outro, de um ccnarro a olitro; ou
pós-moderno. Contrariando esse modo· de agir, afirmamos que, ao invés de a figura do maníaco do computador, ~cmpre ligaçlo a um modeni., trocando
desaparecer na sociedade coniempOrãnea, a identidade está Sendo recons-· de jogo a todo m?mento, indo a bancos de dados c B6S, voltando a seus sis-
truída c redefinida; temos tentado mostrar a Pertinência e a importância temas de prqces5,amento de texto, figura do novo eu pós-moderno dos ter-
das teorias que se atêm a determinadas posturas ideológicas e a modos es- minais de 'e<!ipW.líador.Aiém disso, há indícios antecipatórios na perpétua
pecíficos de formação da identidade para ajudar a elucidar esses processos. possibilrdad~ de ser capaz de mudar de cu e de identidade, de ir de uma
Portânto. embora o cu moderno muitas vezes assumisse múltiplas identida- identidade a outra, de deleitar-se no jogo âe identidades múltiplas e plurais.
des, a necessidade de escolha e a instabilidade de uma identidade construi- Em todo c as~- seja qual for sua natureza - moderna ou pós-moderna
da muitas ve7.es produzia anskdade.Além do mais, a identidade estável e - a identidade na Sbcied.>de contemporânea é cada vez mais mediada pela
substancial - ainda que fruto da reflexão e da iiv1'C escolha - era pelo me- mídia que, com Suas imagens, forne<:e moldes e ideais para a modelagem
_nos um objetivo normativo para o eu moderno, tipo"de identidade estávd da identidade pessoal. Astros como os policiais de Miami Vice ou certas
·claramente observável nos heróis de televisão da década de 1950 ,até 1970. mcgaestrelas como Michael Jackson ou Madonna também constituem mo-
A t-ápida trarisfm·mação da identidade em Miami Vice, pOr outro lado, indi- delos de identidade por meio da constn1ção de uma aparência, de uma ima- -
ca qu~ o eu pós-moderno acdta c afii'ma identidades múltiplas e imutáveis. gem c de um modo de ser. A publicidade também fornece modelos de iden-
Assim, hoje a identidade torna-se um jogo de livre escolha, uma represen- tidade; nas próximas páginas, pretendemos mostrar como alguns anúncios
tação teanal do eu, em que e~e é capaz de apresentar-se numa grande va- de cigarro apresentam figuras representativas da drástica mudança ocorri-
ried~de de papéis, imagens e atividades sem Sj:: preocupar nmit<;l_ com- as da na natureza e na substância da identidade pessoal na sociedade contem-
modificações, as transformações e as mudanças drásticas. porânea. Ikpois de um e.'Glme dessas produções, tiraremos alguma<: con-
Essa-análise levaria a crer que aquilo que se pode chamar de identida- clusões provisórias sobre identidade e,pós-modcrnidadt:. ·
de pós-moderna é uma e.xtensão das identidades múltiplas livrêfnente es-
colhidas do cu moderno que aceita e afrrma.uma condição instável e mpi-
da.mente mutáveL Contudo, predsantente essa condição de multiplicidade A.) lMi\CiENé> DA l'UllUClOi\llE
de escolhas era um problema para o eu moderno, produzindo ansiedade e
crise de identidade. Para o eu pós-moderno, porém, a arisiedade suposta- Assim como ocorre com as narmtivas da televisão, pode-se 'dizet que
mente desaparece pela imersão em fragmentos eufóricos de cxpe_riência e a publicidade também põe à disposição alguns equivalentes funcionais do
em freqüentes mudanças de imagens e identidades. No entanto, não iría- mito. Do mesmo modo que os mitos, as propagandas freqüentemente solu-
mos tão longe quanto Jameson_ (198-t 62f.) na afirmação de que a ansieda- cionam contradições sociais,forneccm modelos de identidade e enaltecem
de desaparcct; na cultura pós-moderna, nem negariamos que as crises de a ordem social vigente. Barthes (1972 [19571) percebeu que a propaganda-
identidade ainda ocorrem C freqüentemente são agudas (um 'amigo psiquia- fornece um repertório de mitologias contemporâneas; no estudo que se
tra disse-me que hoje em diá a confusão_ de sexo é especialmente aguda segue, mostraremos de que modo as propagandas de cigarro contêm "po-
entre os adolescentes, que se sentem profunda!nente al:raídús por figuras sições de sujeito" e modeíos de identificação carregados de códigos-ideo-
an!lróginas como Boy George c Michael Jackson c por figtJras masculinas lógicos.Assim como no estudo anterior, aqui argumentaremos- contrarian-
feminizaúas como Prince ou por mullieres "machos" como Madonna). Na do certo tipo de análise formal pós-moderna - qu~ a<; imagens da cultura

317
·. ·~···
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,,
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da núdia são importantes tanto pdó modo como ~ão construídas e tratadas
formalmente quanto pelos signitkados e_ Valores que transmitem. Por·e·sse
motivo, examinaremos alguns cart.'lZCS que, sendo muito conhecidos e f:r.--
cilmcnte. cncontr".wcis, prestan'J-se a uma- anârise crítica. ·
Os cartazes constitue~ um importante segmento do mundo da publi-
cidade: 50% da ri:ceita do setOr silo destinados a vários tipos de meios im-
pressos, enquahto 22% destinam-se ·à. televisão. Passemos enclio; primeira-
mente, a alguns anúncios dç cigarro. entre os quais oS do Marlboro, cujo
alvo é constituído sobretudo por homens, e os do Virgínia Slims, que ten-
tam convencer as mulheres de que é charmoso fumar· e de que o produtO
anunciado é perfeito· para a ml!-lher"modcrna_» (ver ilustração .ao lado)Y7 AS
indústrias que atuam no setor do tabaco empreendem campanhas publici-
tárias cuja tlnalidade é associar seu produto a imagens _positivas c invejá-
veis e a modelos de comportamento sexual. Assim, na década de 1950, a
Marlboro fez uma ca!llpanha cujo objetivo __ era associar seu cigarro à mas-
culinidade, vinculando. o ato de fumar seu produto ao fato de ser "homem
de verdade". O Madboro era antes visto c.omo-,um cigarro fraco par.t mu-
lheres, e a campanha do "hom.em Marlboro" foi uma tcritatí~a de Çonquis-
tar o mercado mascuHno com imagens e personagens masculinas arquetí-
picas. Uma vez-que a imagcnl do caubói representava um ícone facilmentC·
identi:ficávêl de masculinidade, independência e bravura, foi o síritbolo p:r~­
fcrido para a campanha. Mais tarde, o "homem Marlboro" passou· a fazer
parte do folclore americano c tornou-se um símbolo cultural facilmente
identificável. ,
Tais imagens simbólicas na propaganda tentam criar uma associação
entre os produtos oferecidos e certas características social me ri te· desejá-
veis e significativJ.s, a fim de produzir a impreSSão de que é possível vir a
ser certo tipo de pessoa (por cxemplo;um "homem de verdade") compran-
do aquele produto (no caso, os cigarros Marlboro). Conseqüentemente,
durante várias décadas, a Marlboro usou a figura do caubói como símbolo
de masculinidade c persOnagem central de seus anúncios.' Numa· cultura
pós-moderna da imagem, os indivíduos haurem realmente a sua identidade
dessas tiguras; portanto, a propaganda tortia-sc um mecanjsmo importante
e geralmente negligenciado de socialização, além de ser um.meio de con-
trolar a demanda do consumidot·.
A publicidade forma ~istemas tc..xtuais com componentes básicos' in-
ter-relacionados de tal maneira que apresentem o péoduto sob luzes.posi-
tivJs. Os principais componentes dos clássicos anúncios da MarlbOro são a

177 O mét~do de leitura de anúncios e de intel'pretação da propaganda que se seg~e


devemos à obra de Roben Goldman (1992) e~ seu trabalho feito em colaboração com
Steve Papson (no prelo).

319
c
conjunção entre natureza, caubói, cavalos e cigarro (ver figura 1). Esse' sis-- Portanto, as imagens da natureza salubre são uma .mitologia po
tema associa o cigarro Marlboro- com masculinidade, poder e natureza. sentido de Barthes (1972), ou seja, tentam encobrir a imagem dp perigo
Note~se, Qorém, que no anúncio _da figura z,.o tamanho dos caubóis dimi- que o tabagis~o representa para a saúde. O anúncio da Madboro tambéffi ·
nui, sobrepujado pelas imagens·do deserto e do céu. Enquanto nas primei- ·se inspira em imagens tradicionais (caubói), no trabalho duro, no trato dos
ras propagandas o "homem Marlbol:o"' avultava no centro do- quadrl), agora animais c em outras características desejáveis, como se fumar fusse uma ati-
o que se ressalta são as imageos da natureza. Por que essa mudança? vidade nobre, metonimicamente equivalente a essas outras atividades so-
Todas as propagandas são textos sociais que respondem a desen- ciais PosithraS:l\s imagens, os textos e o produto mosrrados nos anúncios
Volvimentos fundamentais do período em que elas apareCem. Durante a dé- camuflam, então, as contradições entre o traQalho "P~_S:_ado" e o cigarro
-L '-- ,_"
cada de 1980, foram muito divulgadas na mídia informações sobre os ris-. "leve H, entre a cen~ "natural~ e o- produto_"artifiti~;cntrc os cenários gra-
cos do tabagismo para a saúde - e passou a ser obrigatório incluir na p"arte tos e salubres dos outdom·s e a atividade ingrata c insalubre de ftunar, ·e
de baixo do anúncio a advc_rtência de que "fumar é prejudicial à saúde». · entre a masculinidade- mde do homem Marlboro e o cigarro suave, origi-
Como reação a esse ataque, os anúncios da Marlboro passaram a apresen- nalmente destinado a mulheres. De. fato, esta últHna contradição pode ser
tar imagens de uma naturc;~..a limpa, pura e saudável, como se fosse "natu- explica9a :pr..-"ia·,;.estratégia de marketing que consiste em sugerir aos ho--
ral" fumar, como se o cigarro fosse um produto saudável e "natural", uma mens qu~'ête":f pode-fll ser ao mesmo tempo extremamente masculinos,
emanação da natureza benigna e hígida. O anúncio, na rcaUdade, apregoa o como'o homem Marlboro, c fumar um cigarro (supostameotc)"mais saudá-
lHarlboro Lights, e uma dt: suas legendas descreve o produto como um "ci- vel", enquanto tantbém apela para. as mulheres ffiasculinizadas que talvez
garro com baixO teor de alcau-ão;'. As próprias imagéns ostentadas por apreciem um dfi!tlrro "de homem" que tàmbém é "mais suave" e "mais sau-
muitos anúncios da marca na dé"cada de 1980 eram "leves", branCas, verde- dável"', como se espera que sejam os cigarros para mulheres.
jantes; nevadas, arejadas. Por meio dO processó de metonímia ou de asso- :Em 1983, Õ anúncio da Virginia Slims, que se vê na figura 3, tenta, de
ciaçãO contígua, a propaganda tenta associar o cig~ro a desertos "lights", maneira semelhante, associar o seu produto a características socialmente
«natut"ais" e saudáveis, à neve clara, a ca.."alos, caubóiS; árvores e céus lim~ valorizadas, oferecendo "posições de sujeito" com as (tuais as mulheres pos·
. pos, como se todos eles tOssem produtos "natUrais" correlatos, comparti- sam identificar-se. Classicamente, b seu sistema textual inclui uma vinheta
lhando as características da "natureza", encobrindo-se, assim, o fato de que no topo e, logo abaixo, uma foto da mulher "Vitginia SUms" perto de um
o cigarro é um produto artificial e sintético, cl_leio de pesticidas, conservan- maço de cigarros em posição proeminente. No e:,xemplo ilustrado, o topo
tes e outros produtos químic?s perigosos.''" do anúncio mostra um quadro com imagens c mensagens narrativas, liga-
das às mudanças na situação das mulheres rdtratadas, através de uma con-
traposiç3o com a mulher ~moderna" mostrada abaixo. A legenda situada
178 De todas as plantas, a foil1a do tabaco i: o que há de mais doce c ~aboro50 ... para os logo abaixo do quadro, que mostra sessões ~eparadas d~ exercícios para
iuse!Os; por isso, parn que elrtS não ·5e)arn devoradas, é preciso usar grande quantidade "eles" e para ~elas" no ano dc 1903, contém o conhecido slogàn do Virgínia
de pesticidas. Os fabrk:ames de cit>,arro ~~~;un produtos químicos para produzir sabor e
odor carnckristicos do produto e cquserv:mtes para impedir que ele se deteriore. São
Slims, "O caminho foi longo, mod!lha". Essa legenda, associada à nmlherVtr-
miliZados out~ produtos químicos para co•\tmlar n processo de combustão e filtrar o glnia Slims ao lado do maço de cigarro~, tem uma conotação de progressh,
alcatrão e a nicotina. Embora a· publicidade aponte esies últimos como os truti~ perigo- o que vincula metonimicamente a marca do cigarro com a "muJher pro-
sos, na n:alidadc, os pesticidas, os produtos químicos e·os conservantes podem sér mais gressista v e a vida "thoderna". Nesse anúncio, são os vínculos c os nexos
ktai~. É rnn escindalo que o cigarro ~eja 1m1 dos produtos menos controlados nns Esta- entre as parte-'.1 que estabelecem a mensagem capaz_de asso dar a marca Vir-
dos Unidos (os países da Europa, por o;x.emplo,controlam rigidamente os pesticidas uSa-
dos f!O plantio do t.1haco c os produtos sintéticos usados da produção do cigarro).
ginia Slims à idéia de progresso. O aflÚncio diz às mulheres que é pro8;res-
As <.>xpcriências patrocinadas pdo governo parn verificar os deítos do tabagismo usam
dgarros genéricos qúe podem não ter os produtos químicos e os conservantes utiliza-
dos pda5 várias marcas; ·por isso, na re~lidadc, o governo americano nunca fez nenhum· do go~mo e da míd~1 nos Estado~ Unido~. O vício do çigarro é, portamo, algo muito
estudo importante sobn: os pÚigos do t<~bagi_smo que fosse cientificamente preciso. instrutivo em termos de perig<.>S não ~dvertidos c de ctCmentos des!rutivos na sacieda·
Os meios de c6munit.a.\·>1o mais importantes, ;nuitos dos quais fdZein parte de t.·on:glo- de de consumo, bem·· conio dos modos como e~es perigos são ent.·obertos. (As infor-
memdos que têm gr:mdts intéresses na indústria do cigarro, ou cujo5 rendimentos de- mações que temos sobrt a indústria do d{;;l.rro provt'm de wna entrevista de televisãO
pende::n da propaganda des._-;a ind(istria, de fato. nunca se dispuseram a e.""por ao púbJ;: '~ltetnative Views" que, junE~tiJCnte com Fmnk J\.rorrow, fo.zcmos com Bill Drake sobre
co os venbddros perigos do dgarro c o escandaloso descaso dess~ quest~o por parte a pesquisa quo.: comporá seu próximo livro sobre os perigos do cigarro.)

321

i

sista .e socialmente valorizado fumar, e associa a marca a modernidade, pro- Mais uma vez a vinheta sépia do alto do anúncio contém uma imagem: "
gresso social e esbelteza, outro traço social desejado. . . de mulher servindo um homem no ano de 1902; a pose cômica L' o olhar
De fato, a marca Lucky Strike realizou uma campanha publicitária de irritado da mulher levam a crer que aquela servidão é indesejável, e o -
grande sucesso na década de 1930 em que associava tabagismo c emagre- contraste com a mulher "Virginia Slims" (que agora usa botas, luvas e jaque-
cimento ("Pegue um Lucky, ein vez de pegar uma bala!"), e o Virginia Slims ta de couro) sugere que as mulheres percorreram Jlm longo· caminho,
vale-se dessa tmdição que está embutida no próprio nome do produto. enquanto o onipresente cigarro associa o progreSso social com o direito da
Deve-se notar também que esse cigarro é da variedade "Lights" e que, assim mulher de filiihr em pÓblico. Dessa vez, está ausente C! conhecido slogan,
como no caso do Marlboro, sua propaganda tef!.ta aSsociar o produto com ''O caminho foi longo, mocinha", talvez porque a·mulhet: ' retratada dificil-
a saúde e o bem-estar. O sorriso aberto no rosto da mulher também tenta mente toleraria ser descrita como ~mocinha'' e t~..m pÚ~que alguns gru-
"lrincular o produto à felicidade e à satisfação pessoal, lutando cOntra a: as- pos feministas protestaram contra a rotul'ação sexista c aviltante do slogan.
sociação do tabagismo com ? sentimento de culpa c o perigo para a saú- É de se notar também a 'transfOrmação da imagem de mulher no anúncio.
de.A imagem da mulher ·esguia, por Sua vez, associada à suavidade e à leve- Não se trata mais da sadia, sorridente e mimosa mocinha Casadoira.; agora
za, não só estabelece uma ligação entre o produto e certas características ela é majs atii'-çt!~adora, ~ensual, masculina, menos núbil. Os óculos escuros
sociais desejáveis, mas também promove o ideal de esbelteza como tiPo de conotam l'~i"§tà:Ocia em relação. ao Olhar masculino que ela quer manter, c
feminilidade. , a jaqueta de couro com a insígnia militar conota a sua igualdade em relação
No fim da década de 1980, a marca C..apri anun'ciava seu produto aos homens, mostrando que ela é capaz de desempenhar papel masculino,
como "o mais fino dos finos!", baseando-se na contínua e intensa associa- que é mais autô~ma e forte do que as mulheres do passado.
ção entre csbdte-m e feminilidade. A valorização do tabagismo e da esbel- O anúncio de 1988 é bastante antipatriarcal e até C.""íprcssa hostilidade
teza está longC de ser inócua c já conttibuiu para Provocar distúrbios ali- em relação aos 'homens, pois o homem gorducho, de óculos c bastos bigo-
mentares e m~dismos em matéria de dietas e exercícios, além de .um des parece ligeimmente ridículo, enquanto se mostra que o progresso da
grande aum~nto na anorexia entre mulheres jovens e uma elevação no nú- mulher está sendo barrado por uma n:toda ridícula e por um papel social in-
mero de casos de câncer. Como mostra Judith WiiJiamson (1978), a propa- tolerável. A "nova" mulher Virginia Slims, porém, que domina completamen-
ganda '"interpela" os indivíduos e convida-os a identificar-se com produtos, te a cena, é símbolo de um estilo, do poder. Essa mulh~t fOrte pode, tranqüi-
imagens e comportamentos.Apresenta uma imagem utópica de novidade, lamente, segurar e fruir o falo (ou seja, o cigarro como signo do'poder mas-
sedução, sucesso e prestígio mediante a compra de certos bens. Oferece culino acompanhado pela roupa masculina e pela insígnia militar)' c funcio-
magicamente uma autotransformação e uma nova identidade, associando na tambtm como um ícone dO gtamour feminino. Esse anúncio vincula
as mudaÚças de comportamento, modo de vestir e aparên!"ia ·do consumi- poder, charme e sexualidade, ofereceúdo um modelo de força feminina as-
dor com wna metaQtorfose em nova pessoa. Por conseguinte, os indivídu()s sociada ao cigarro e ao tabagismo. A publicidade funciona em parte geran-
aprendem a identiQcar-se com valores, modelos e comportamentos sociais do insatisfação e oferecendo imagens de transformação. de nova identidade
através da propaganda, que é, portanto, 'um importante instrumento de so- pessoal. Esse anúncio, em particular, promove a_ insatisfação com as imagens
cialização ao mesmo tempo que detúmina a demanda do consumidor. . tmdicionais e apresenta uma nova imagem de mulher mais poderosa, de um
A propaganda vende produtos e visões de mundo por meio de ima- novo estilo- de vida c de uma nova identidade para a fumaQtC de Virginia
gens, retórica e slogans justapostos em anúncios nos quais são postos em Slims. Dessa maneira, as imagens associam os produtos anunciados com cer-
ação tremendos recursos artísticos, psicolÓgicos c mercadológicos. Tais tas características socialmente desejáveis e transmitem mensagens referen-
anúncios expressam e reforçam imagens dominantes de sexo, pondo ho- tes às vantagens simbólica_<; obtidas por aqueles que consomem o produto.
mens e mulheres em posições de sujeito bem específicas. l!m anúncio do Embom as variedades Lights c Ultm Ughts continuem sendo domi-
Virginia Slims feito em 1988 (figura 4) revela, de fato, que durante aquela nantes na marca Virginia Slims, essas car.tctecisticas não são ressaltadas no
década foi grande a transfOrmação na sua in1agem de mulher e na estraté- cartaz de 1988 como costumavant ser, e o maço também não aparece. Sem
gia usaQa para convencer as mulheres dC que fumar está correto e é até dúvida, essa nm~er "da pesada" contradiz'a imagem de "leveza", e o anún-
"progressista" c ultramodcrno. Essa mud<J,nça indica uma transformação no cio, ao contrário, tem a conotação de poder c dé (duvidoso) progresso para
poder relativo de homens e mulheres e revela nestas últimas a existência as mulheres, e não de leveza e esbelteza. No etltanto, os cabelos loiros, ~ri­
de novas posições. de sujeito validadas Pela indústria cultural. çados e soltos, os dentes perfeitos que conformao~ um sorriso Condescen-

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dente e, em especütl, as entre pernas em posição sugesfiVa e convidativa ·são tenta incorporar ícones de saúde e natureza. como se esses cigarros "leves" de
fatores que a codificam como símbolo de beleza e sexualidade, ainda que mental protegessem o compfador dos riscos do tabagismo.. Sem dúvida, Cssa
mais autônomas e fortes. · transformação ocorrida nas· anúncios do Marlboro indicam uma crescente
O que queremos moStl'fU' é que :Precisamente as imagens ~eJculam a~ preocl1pação com ós problemas de saúde causados pelo cig-arro, ·o que exigiu
'posições de sujeito e, portanto; aprender a ter vis~o crítica da ~ultura pós- uma ênfuse ainda maior na natureza.Entretan,to, a ausência do caubói também
moderna da imagem exige que se saiba ler de modo crítico essas imagens poderia indicar a obsolcscência do trabalhador braçal numa nov-a socied1de
e desvendar as relações entre elas, os textos, as tendências sociais e os pro- pós-modertt:i'"da infot·mação e da prestação de serviços, ~a qual importantes
dutos da cultura comercial (Kellner, 1989d).A lei.tum que fizemos desses st:tores da chamada "nova classe ihédia"trabalhaw nas ind'ústrias da produção
anúncios indica que a propaganda está tão preocupada em vender estilOs e da mani[mlação de símbolos e imagens. ~~~"""'": '"''
de vida e identidades socialmente desejáveis, associados a seuS prodUtos, As imagens proeminentes de cavalos vigoroS8s do fim da década de.-
quanto em vender o próprio produto - ou melhor, os publicitários utilizam 1980, porém, indicam que continuam ~lendo o desejo de poder e as fan-
construtos simbólicos com, 'os quais o consumidor é convidado a identF · tasias de virilidade e másculinidade.A real impotência dos· tribalhadores na
ficar-se para tentar induzi-lo a usar. o produto anunciado. Portanto, o sodeda_de-.'c~fPJtalista'· atual, por sua-vez, torna difícil apresentar imag:ns
homem Marlboro (isto é, o consumidor qtte fuma o cigarro) está fumando C!Jncre~iltv':poder masculino que possam seduzir diversos tipos de fu-
masculinidade e vigor natural tanto quanto ·um cigarro, enquanto a mulher mantês do sexo masculino (e feminino).A eliminação da .figura masculina
Virginia Slims eStá exibindo modernidade, esbelteza e poder feminino também per~ite exercer influência sobre um espectro mais amplo de clas-
quando acende o seu "slim". ses sociais e pr2-fissões, incluiildo homens e mulheres que talvez respo~­
Esse tjpo de leitura da propaganda não sÇ) ajuda a resistir à manipula- dam· de forma mais positiva a imagens da natureza e de poder do que a
ção mas também-mostra qüe uma coisa tão aparentemente inócua quantp figura até cerr(; ponto. obsoleta do caubói. Além, disso - e essaS imagens são
a propaganda pode revelat· mudanças significativas nos modos e nos mo- cL1ramente pOiissémicas e sujeitas a múltiplas leituras -,a nova ênfase no
delos de identidade. Por exemplo, os dois anúncios do Virginia Slims suge- "maior frescor em embalagemjlip-jlap" não só se harmoniza com as ima-
rem que pelo menos certo tipo de mulher (branca, de cL1sse média alta e gens "refrescantes" do verde e da natureza, como também ·aponta para uma
de classe superior) estava obtendo mais poder na sociedade, e que as mu- nova cultura hedonista do lazer na sociedade pós-moderna, com sua ênfa-
lheres em geral se sentiam atraídas por imagens mais fortes, autônomas' e se nos prazeres do consumo, do espetáculo e do rçfrigério.A menção ao
masculinas. As campanhas publicitárias tentam incorporar tais imagens frescor também constitui um novo tipo de legitimação do tabagismo como
para associar seus produtos com Características sodalmeflte desejáveis, e atividade refrescante (partirá do famoso slogan da Pcpsi "a pausa que re-
esti}.s são ainda mais fomentadas à medida que os anúncios tentam promo- fresca~?), o que codifica uma atividade evidentemente perigosa como "re-
ver seus produtos. •c~ frescante" e, portanto, benéfica à saúde.
Uma comparação entre os anúncios do Marlboro feitos na década de Além do mais, a ausência de figuras humanas nos anúndos.do cigar-
1980 e os anteriores trunbém produz alguns interessantes resultados. EnqUan- ro Marlbo1'0 do fim da década de 1980 poderia ser interpretada c~mo sinal
to o centro da sua publicidade antes ei".t o "homem Marlb<;~to", que cO_ntinua · do apagamento do se~ humano na sociedade pós-mo"denm, a crer-se na afir-

I
vigorando no começo d.1. década de 1980, no fim da década os seres humanos mação de Foucault de que numa nova epistemc o próprió ser humano po-
desaparecem por completo de alguns an(mcios, que projetam imagens puras deria ser varrido como um rosto desenhado na areia da pmia (1970: 387).
da natureza lúgida, associadas ao produto. A legenda "eSpecialmente-pata os No entanto, o ser humano não pode ser tão facilmente apâgado, e eis que,
apreciadores do mentol", a insígnia verde, indicativa d.1..presença de mentol em 1989, numa nova campanha publicitária, voltaram não só as figuras hu-
no maço de cigarro, e o fundo azul e verde com _árvores, relva e água, tudo isso manas mas também o homem Marlboro em pessoa. Um dos anúncios apre-
senta -um exemplo de nóva estratéSia publi-citária que exige a produção de
significados por pm1e do. próprio Consumidor, de forma muito semdhante
179 Michae! So:;hudson (1984) resume a literatura e os estudos que põem em xeque a a um te::\.'10 modernista. Tais anúncios de página dupla retratam mãos gigan-
efkácia d:t propaganda em conseguir realmente que os conswnidores comprem os tescas (provavelmente do próprio homem Marlboro) segurando um.parde
produtos: na Y<:rdade. a função da propaganda como divulgadora de ideologias, estilos,
modelos e imagens pal':1 Identificação é mais interessante para os estudos cultlll':lls,qttc luvas, com 'um cigarro entre dois çiedos nodosos e curtidos pelas inte!T!pé-
devem \-é-la como importante e poderoso legislador nesse5 campo5. ries.A única legenda- além da mensagem obrigatória com a lista dos ingre-

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dientes e as advertências sobre a saúde - diz "Venha-para onde está O sa- esse anúncio e outros, da mesma ma:rca, que apagaram o ser humano' mini-
bor''. Não há maço de cigart'()s nem nome.algum. Em lugar disso, é preciso mizam a questão da identidade sexual, o que pode ser lido como um dcs-
olhai co~ muita atenção para a inscrição em letras peqUenas no'ptóprio centramento da identidade sexual na sociedade contempOrânea, como
cigarro, para termos certe-La da marca que está sendo a..·mnciada. uma dissociação ei'i'tre o produto e o scxà de seu consumidor, como uma'
Metade do ;múncio está imerso na penumbra, da qlial emergem diminuição da centralidade do sexo na constituição da identidade. O apelo .
apenas a legenda e os fragmentos de imagens de difícil dec.ifração.A outra aqui é feito diretamente ao valor de uso, ao prazer e ao sabor que_o cigar-
· metade tem como centro as mãós nodosa-;, projetand?, talvez, a mensagem ro produz e"não ao valor de sigrio da masculinidade.~ do poder.
subliminar, a quem se pt·eocupa com os riscos dO tabagismo, de que é pos-
sível fumar c continuar vivo. J,orque as mãos fortemente marcadas perten-
lhmbém se deve notar que e:sse texto funciona
t
·nu sentido de levar ó
-,~'

lei~or a identificar-se com o produto e a extl.1lif;~açã0 prazerosa do fei-


cem, sem dúvida, a alguém que viveu a vida em toda a sua plenitude, vida to de conseguir produzir signific~dos, de ler um texto ambíguo, ·o' que ~~­
cujas {,jdssitudes· e experiências estão gravadas na própria pele das mãos, · sumivdmente é tranSferido para o produto e a ele associado,·de tal modo
mãos cuja pele profundamente sulcada são testemunho de vida longa. Des- que a imagCl:li do cigarro passa a ser vinculada à livre escolha ~ à criativi-
se modo, o cigarro é assOciado com a sobrevivência e a vida plena, atenuan- dade.,No.:e)Ii~nto, os intérpretes culturais que trabaU1am para as agências
do as preocupaçõeS causadas ~los sérios riscos de c~cer e de outr.ts de profl"~~a, ganharido altos salários, nos últimos atlos não têm aposta-
doenças e desempenhando uma função subliminar de redução da ansied"l- do tOdas as fichas num só tipo de anúncio, pois na 4écada de 1'990 assistiu-
de, típica· tarefa da prOpaganda em nossos dias. se a um retorno do realismo anterior que tem como centro o velho caubói,
Esse anúncio do Marlboro pertence a um gênero de propaganda con- juntamente cw a produção de um tipo de anúncio que ;tcabamos de ana-
tempor-ânea que obriga o cons~midor a se esforçar por discernir a marca lisar, além de uma nova série de natureza pura.
que está sendo vendida e decifmr o te;xto a fim de construir um sighificado.' Na déclda de 1990, a Marlboro voltou a reciclar velhas imagens, espe-
O minimalismo do significado atrai o leitor cansado da propaganda tJ.?di- cialmente do famoso caubói e da natureza. A quarta capa da publicação TV
cional, enjoado das mesmas imagens velhas e gastas e entediado e cético Guide de 11 a 17 de dezembro de 1993, por exemplb, trazia o anúncio de
com a manipulação publicitária. Pam o leitor pós--moderno mais frio, a asso- um caubói que, montado, ia através de um campo cheio de ~ieve seguido
ciação entre masculinidade e uso do cigarro Madboro pode ser risível, ainda por outro· cavalo, que de conduzia por· uma 'corda.A'neve é levada pelo
que mesmo esses anúncios minimalistas utiliZem a diferenciação do produ- vento atrás do caubói, nUma exibição de imagens da natureza. Portanto, o
to c usem imagens novas a partir de situações velhas. Além de apelar para " anúncio combina poder e capacidade de contêolc com imagens da nature-
o surto de preocupação com a sobrevivência no fumante contemporâneo, za, significando que quem quer ser um homem natural e ter o controle nas
o amíncio de 1979 convida-o a "ir par.a oi1de está o sabor". A ênfase no sa- mãos 'fuma Marlboro. O cut'ioso, porém, é que, embora a marca ~Marlboro"
bor é. um apelo ao gosto hedonista, a gozar o sabor, a! acender um cigarro seja exibida em vermelho vivo, não há maço de cigarro, nem mesmo um
por prazer. Tais apelos interpelam o conSumidor contemporâneo nos seus único cigarro, e o caubói, retratado em pleno tr.tbalho, não está fumando.
.in1pulsos individualistaS e hedonistas, convidando-o a divertir-se, a fazer o É como se a Marlboro estivesse embaraçada com o seu produto e só pudes-
que quer e· aprecia a qualquer custo, mesmo·corp. a destruição da saúde. se vender as qualidades üa natureza e da masculinidade- e da morte,como
O sistema textual desses anúncios dos cigarros Marlboro feitos em -faz notar corajosamente a advertência no cantO inferior dirdto.
1989, no todo, interpda o leitor como indivíduo, como alguém capaz de ler A multiplicidade de estratégias nas propag:l.ndas de cigarro mostra
a complexidade do anúncio e de escolher seus próprios prazeres a seu bel- que as agências de publicidade do capitalismo contemporâneo não estão
prazer. Há, portanto, um apelo sublirninar à liberdade e à criatividade indi- muito sCguras quanto àquilo que atrairá os consumidores par-.t seus produ-
viduais 'que convida o leitor a interprt:tar o anúncio da maneira que esco- tos ou. quanto às imagens com as quais eles se identificarão. Como argu-
lher e a acender um cigarro quando bem lhi~ aprOuver, a despeito das ad- mentamos .aqui,, uma das características da cultura contemporânea é
vertências obrigatórias dÇl governo que· vinculam o cigarro a graves pro- precisamente a fragmentação, a transitoriedade e a multiplicidade de ima-
blemas de saúde. As mãos nodosas também pertencem a um indivíduo que gens, que se recusam a cristalizar-se nwna forma cultural estável. Portanto,
é respOnsável por sua própria vida, que toma suas próprias decisões, de ta) a indústria da propaganda c da cultura recorrem a estr.ttégias modernas e
modo que o texto, como um todo, está estruturado para associar o uso do pós-modernas bem como a temas. e a uma iconografia de cunho tradi-
cigat·rr:·,.~'(arlboro com individualidade e poder. É interessante observar que cional, moderno e pós-moderno.

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Jt
COMO SITUAR O PÓS~lVlODERNO '-f nossos dias está extremamente fragmentada em termos de gostos, o que ex-
c

_j
plica a produção de imagens e valores muito diferentes.
Em certo sentidO, não é possível decidir se a cultura- da imagem e as Visto que uma megaenlpresa como a Marlboro está preocupada em
formas de identidade_ nos dias de hoje devem ser descritas como modernas . atingir todos esses 'públicos, percebe-se certa heterogeneidade nas imagens
ou pós-modernas. A multipliciQade de tipos de propaganda dos cigarro's que produz, com um tipo dt- apelo para cada tipo de públic~. segundo uma
Marlboro atualmente-em circulação ajuda a pôr em xeque as af1rn1ações Segmentação mercadológica: o antigo homem Marlboro para os leitores dO
sobre wna ruptura pós-moderna radical com a cultura moderna ç sobre o 7V Guide; t:àV-àlos e natureza para as p~ssoas conscientes da necessidade de
Predominio cultura] do pós modernisnío.Isto porque os atuais anúncios da manter a saúde e a \itaüdade,leitoras de revista,S <!Orno 'Êlle e .M;e visões es-
Marlboro recorrem a uma produção de imagens e ·a estratégias estéticas ao téticas ma~s complexas para os gounnets hedOh~~ qu~""Iêcm Vanity Fair
mesmo tempo tradicionais, modernistas e pós-modernas, nlobílizando uma- e que tais. A multiplicidade das cstrâtéglas publicitárias demonstradas pelo
grande variedade de apelos ideológicos tradicionais e contemporâneos. Em pessoal da Marlboro também aponta para as contradições imanentes da cul-
vez de tomar a pós-modernidade C<?mo uma totalidade cultural nova, diria- tura da merqdoria. Isto porque ·a propaganda tenta produzir identidades
mos que. faz mais sentido interpretar as muitas facetas do pós-moderno oferec(:;nd.0 pfçdutos associados a certas caracteristicas e valores. No entan- .. ·
como uma tendência cultural emergente que se contrnpõe aos valores e às to, as in~ifufeis tendênciaS da moda e as novas campanhas publicitárias
práticas tradicionais remanescentes e àinda atuantes e como uma moderni- · vão Solapando as identidades e as assOciações anteriormente forjadas, na
dade capitalista dominante defmida como projeto de hegefflonia do capital promoção de novos produtos, nov:l$ imagens e novos valores.
graças ao qual a mercadorização, o individualismo, a frngmentação, a reifica- Sem a mel!9r dúvida, existem campanhas publicitárias que adotani·es--
ção e o consumismo ainda são compone.rttes-chave da idade moderna. '30 tratégias pós-modernas na construção das imâgens destinadas a vender seus
Por outro lado, poderiam~s dcscrt.'Ver como "pós-moderna" precisa- produtos. Robert' Goldman descreve uma campanha malograda da Reebok
mente essa coexistência de estilos, essa mistúra de formas culturais tradi- I 0992),e em 1993-4 a Lcvi's promoveu uma campanha publicitária que mos-
cionais, modernas e pós--modernas. Talvez seja pós~moderna exatamente a ~ trava fmgmcntos desconexos de imagens e palavras do cenário contempo-
falta de dominante cultural, a mbtur-.t de vários estilos e estratégias estéti- râneo, em que o logotipo do produto ficava submerso no texto,_como mais
cas, tal como o que vimos na propaganda. No entanto, as campanhas publi-
1 um fragmento, obrigando o espectador a tentar descobrir o que estáva
citárias contemporâneas dos cigarros Marlboro estão a indicar que certas sendo anunciado; supõe-se ser este um modo cflçaz de introduzir a marca
pessoas, regiamente pagas a serviço de grandes empresas, muitas vezes são na mente do espectador; função principal da propaganda, mas, como indi-
capazes de interpretar com argúcia o cenário contemporâneo e perceber cam os fracassos das campanhas publicitárias pós·modernas, a tática de re-
a persistência de identidades tradicionais para as quais ainda é importante correr ão pós-modernismo na estética publidtátja é arriscada.
a masculinidade que, combinada a mna preocupação moderna com o E é assim que a propaganda, a moda, o conSumo, a televisão e a cultu-
poder e com a fruição, constitui uma força social permanente e a matrb:: de ra da mídia estão constantemente desestabilizando identidades c contri-
valores e identidades contemporâneas. Essas propagandas mostram a coe- buindo para produzir outras mais instáveis, fluidas, mutáveis e variáveis no
xistência das culturas tradicional c -moderna com a cultura pós-moderna, cenário contemporâneo. No entanto, também vemos em funcionamento os
havendo, pois, necessidade de encontrar novas fbrmas iconográficas capa· implacáveis processos de mercadorização.A segmentação do mercado em
zes ~e chamar a atenção de um conSumidor sáturado e cético. Se a pós-mo- diversas campal'!has e apelos publicitários reproduz e intensifica a frag-
dernidade fosse a totalidade cultur-al que alguns de seus a·pologistas ifir- 1 mentação, dcsestabilizando as identidades às quais os novos produtos· e as
mam ser, poderíamos imaginar que os sofisticados publicitários muito bem novas identificações estão tentando devolver estabilidade. Portanto, o
remunerados pelo grande capital estãriam jogando sobre seus concidadãos próprio çapital é o demiurgo da alegada fragmentação pós-moderna; da dis-
uma enxurrada de imagens pós-níodernas; mas não, a propaganda e a cul- persão de identidades, das mudanças e da mobilidade. Contrariando o que
tura da mídia contcmporilleas levam a crer qUe, ao contrário, a cultura' de dizem Baudrillard (1976) e outros- que a pós-modernidade constitui uma
ruptura com o capital e com a economia política-, o que detectamos por
trás dos tenômenos de cultura pós-moderna é a lógica do capitaL
180 A distinção entre cultura residual, emergente c dominante tem origem. em Rar- Esse argumento leva a crer que grande parte da teoria pós·modcrna é
mond Wi!liams (1977). excessivamente abstrata quando desvincula a economia política e o capiril-

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,,
lismo dos fenômenos que descreve, c assim oblitera os esteios econômicos tas características fundamentais da identidade moderna, como a autoria-
destes ídtimos.Aiém di,sso, tal teoria tende a generalizar em demasia, toman- mia, a racionalidade, o compromisso, .a responsabilidade, de., ou .entil.o
do exemplos de novas tendências, emergentes e fundindo-os para formar tentar reconstruir esses conceitos, como, por exemplo, Habermas tentou·
uma nova dominante cultural. Algumas teorias culturais pós-modernas fazer com a racionalidade. De qualquer modo, a identidade continua sendo
também abstràem do tonteúdo e dos efeitos ideológicos, enfoCando o problerria que sempre foi em toda·a modernidade, ainda que tenha sido
apenas as estruturas formais como a construção de imagens. Opondo-nos problematizada de nova forma na atual orgia de mercadorização, fragmen-\
a tais posições, argumentamos que,. ao inVéS de serem planas, unidimensio- ta:ção e proll'üÇão de imagens e na transformação soda~, poli~ica e cultural
nais c desprovidas de codificações ideológicas, a propaganda e outras ima- que ocorrem por obra do capitalismo consum~ta. · ·._·_~:,_.
gens da cultúra da mídia são multidiruensionais, polissêmicas c ideologica- Na verdade, atUalmente, a busca de identi~ estâ 'mais Intensa do
mente codificadas, abertas a várias leituras, capazes de expressar a merca- que nunca. Está havendo uma espécie de rebeliãO contra a produção de
dorização da cultura e as tentativas do capital de colonizar a totalidade da identidade apenas como feito indhidual, dando-se maiot· ênfase às fo:tmas
vida, desde o desejo até a sua satisfação. de identidade ~ribais, nacionais e grupais, além de Outras· coletl-<;as. Em mui-
Nossas análises, portanto, indicam que, numa cultura pós-moderna da . tos lugarcs.'Ô"Sl. 'fimndo, houve um retorno ao iribalismo, a formas antigas de
imagem, as imagens, as cenas, as reportagens e os textos culturais da mídia identidad~\!'ê~l{;tiva - nacionais, religiosas ou étnicas -,e é pdssível reco-
oferecem uma enorme quantidade de po~ições de sujeito que, por sua vez,
ajudam a estruturar a identidade individual. Essas imagens projetam mode-
.
. nhecer projetos semelhantes nas chamadas políticas identárias, graças às
'
quais os indivíduos obtê~ identidade participando de grupos. e aftrmando.
los sod.ais e sexuais, formas apropriadas e inapropriadas de comportamen- úma identidade-~oletiva (por exemplo, como mulher, como negro, como
to, estilo e moda, além de comportarem engodos sutis que levam à identi; gay ou em suar combinações).
fi cação com certas identidades e à sua imitação, enquanto se· evitam outras. No entanto, continua viva a busca de individualidade e do particula-
Em vez de desaparecer na sociedade pós-moderna, a identidade está rismo no que se refere à aparência, à imagem, ao modo de ser, ao estilo de
simplesmente sujeita a novas determinações e a novas forças, ao serem ofe- vida. Certas figuras da mídia, como Michael jackson e. Madonna, mostra~
recidas novas possibilidades, novos estilos, novos modelos e novas fqrmas. que iderttidade é construto, que pode ser constantemente modificada, refi-
li
No entanto, a esmagadoéa variedade de possibilidades de identidade exis- nada e requintada, que identidade é uma questão de imagem, de estilo, de
tentes na próspera cultura da imagem, sein dúvida, cria identidadCs extre- aparência. Michael Jackson, por exe_mplo, desfaz as fronteiras entre negrO e
mamente instáveis enquanto vai oferecendo novas aberturas para a reestm-
turação da identidad.e pessoal.
j branco, mulh~r e homem, adulto e jovem. Em algunS de seus videoclfpes.
ele aparece como negro; em outros,_ como branco; em outros ainda, é inde-
É difícil dizer se, no todo, isso é "bom" ou "ffiau";provavelmente é me-
nos arriscado concluir, assim como jameson, que os fenômenos associados I terminado. Às vezes parece muito" masculino, às vezes mais feminino, e às
vezes andrógino. Em algumas ocasiões aparece como adulto que tem firme
à pós-modernidade São 'extremamente ambivalentes e contêm característi·
cas progressistas e reacionárias ao mesmo tempo. De fato, no meio cultural
contemporâneo parece ser maior do que antes a aceitação de identidades
I
I
controle de sua carreirá de rei do pop,_enquanto em outras ocasiões apare-
ce comO jovem, amante de criànças, alguém que se sente mais-à vontade.
com guris e sendo um guri do que ao lado de adultos.'s'
m(dtiplas e instáveis.As'identidades modernas, por mais múltiplas e mutá-
veis que fossem, pareciam ser mais estáveis, ao passo que hoje parece ha,
ver maíor aceitação da mudança, da fragmentação e da encenação teatral
l
I 181 Em 1993, surgiram várias acusações contra Michael ]ackson, segundo as quais ele
costumava assediar meninos. era pedófilo, e sua casá .:ra um verdadeiro chamariz para
das identidade's do que ocorria na época anterior, da modernidade, que era
mais sóbria e séria.
POr um lado, isso aumenta a liberdade individual de agir sobre a pró-
I tais crian~·~ts, <::ujos pais de costumava subornar a fim d.: obter perntissiío para as "visi·
tas" e pernoites. Se interpretados nesse contexto, alguns dos videodipes de Mkhaei

pria identidade e de mudár drasticamente a própria vida (o que pode ser I Jackson possibilitarão a leitura de grande número de suas letras como legitimação da
pedofilia endtreçada aos jovens amantes. Não sabemos se essas acu-sações procedem,
bom para alguns individuas), mas, por outro, pode tornar a vida totalme.n-
te fragment.-uia c dcscom.:xa, sUjeita aos caprichos da moda e à sutil doutri- I mas esÍá claro que a grande coberntta dada pda mídia, com apoio de antigos emprega-
dos da ·mansão de Jackson e até de uma de ~u:ts irmãs, produziu a seu respeito,a ima-
gem de pedófilo,assediador de crianças. Quem da núdia vive, também terá sua iroagem ·
nação da propaganda e da ctdtura popular. Para nos opormos à dispersão, morta· por ela. No entanto, tambÇm é possivd a ressurreição pela mídia. ~o veriio de
à fragmentação e à desconexão da identidade, precisaremos valorízar cer- 1994.Jackson casou-se cóm a filha de Elvis Presley, posicionando-se como adulto res-

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Ocorre que muitos dos ícones da cultura da mídia estão mostrando gia q\le deveríamos usar para descrevei a matriz sócio-cultural contempo-
que identidade é uma questão de .escolha e ação individual, e. que cada rânea. Se a terminologia esdarcd:r as mudanças ocorridas na culil3ra con-
indivíduo pode produzir a sua identidade própria e exclusiva. De qualquer temporânea, será útil. Se encobrir certos tCnôinenos, como a continuidade
modo, a questão da identidade é mais premente c contestada hoje do q_ue do papel do capitalismo na corl.strução da sociedade e das identidades. con-
antes. Contra a globalização da cultura travam?e íntensas lutas no sentido temporâneas, então será nociva.
de preservar c fortalecer a identidade nacional; contra as identidades obri- Do mesmo modo, é questão aberta saber se ·queremos continuar usan-
gatórias da moderna nacionalidade (freqüentemente produto de imperia- do a categotiit"êlo sujeito na teoria cultural e em outros I1;1gares. Foi demons-
lismo), alguns indivíduos e alguns grupos estão constrUindo identidades trado que o conceito de sujeito é 4m construto .f!OCial, e··q~e é ilusóri~ a no-
em termos de religião, etnia e regiao; contra todas as identidades coletivas, ção de sujeito unificado, coerente e essencial.''*'~vez ele constrwr algo
outms individ~ws estão tentando constmir sua própria identidade pesSoal, pru·ecido com um sujeito ou de interpelar os indivíduos para que eles se
que, no entanto, muitas vezes é me·diada. por. forças coletivas. identifiquem como sujeitos, a cultura da mídia tende a construir. identida-
Portanto, a questão da identidade pessoal está carregada de contradi- '' des e posições ,de sujeito convidando os indivíduos a identificarem-se com
ções e tensões. Muitos indivíduos, freqüentemente por razões diversas, são figlttaS, imag~n'ey~ ou posturas bem específicas, como o homem Marlboro, a
indiferentes às identidades nacionais ou coletivas em 'geral e desejam cons- mulherVí4,$JJYií{Siims, uma mãe ·de nOvela ou Madonna.
truir sua própria identidade por meio de um estilo de vida, de uma aparên- êontudo, parecem exageradas as aflrmáções pós-modernas referentes
cia, de uma imagem particulares. Outros abraçam com fervor a política à completa dissolução do sujeitó na culttJra contemporânea. Em vez disso,
identitária racial e constroem sua própria identidade, seu sentido mais pm- parece que a cu~ da mídia coqtinua fornecendo imagens, discw:~s, nar-
fundo de individualidade pa"rtícipando de vários gn1pos ou coletividades rativas e espetáculos capazes de produzir prazer, entidades e _postçoes de
(por exemplo, muiheres, negros, gays e outms).Aigtms rotulard.m de pós- sujeito dt que.~ pessoas se apropriam. Aos indivíduos de nossa época ela
moderna eSsa forma de política identitária, mas a participação em grupos fornece imagens daquilo que é apmpriado em termos de -modelos sociais,
de interesse e até mesmo a obtenção de identidade por meio da filiação po- .I comportamentos sexuais, estilo c aparência. Assim, fornece recursos para a
lítica e grupal também constituem um fenômeno moderno. ,
E assim flca no ar a seguinte pergunta: a atuál forma de construção de
identidade é distintamente pós-moderna, e terá ocorrido uma mudança
I' formação de identidades e apresenta novas tOrmas de identidade nas quais
a aparência, o jeito de ser e a imagem.substituem coisas como a ação e o
I compromisso na constituição da identidade; daquilo que alguém é. Houve
ftmdamental na forma de construção de identidades? Em éaso de resposta um tempo em que identidade era aquilo que se éra, aquilo que se fazia, o
positiva, estaremos vivendo uma época completamente nova, a pós-moder- tipo de gente que se era: constituía-se de compromissos, escolhas morais,
nidade? Afirmaríamos ser arbitrária e indefinível qualquer discussão tanto políticas~ e existenciais. Hoje em dia, porém, ela é aquilo que se aparenta, a
em torno da atual situação, de funde modemidade ou de nova pós-moder- imagem, o estilo c o jeito como a pessoa se apresenta. E é a cultura da mí-.
nidade, quanto em tomo da definição da identidade, como prin~ipalmcntc dia que cada vez mais fornece material e recursos para a constituição das
moderna ou pós-moderna. Seria possívcl ..dcfender qualquer dessas posi- identidades.
ções. As características que atribuíni.os aqui à identid:áde pós-moderna po- Por isso, "Faça pose! Seja moda!" ordena Madonna.A vantagem.disso
dem ser interpretadas como uma inteil.sificação das características já pre- tudo é que as identidades pós-modernas indicam que é-possível mudar, que
sentes na modernidade ou como uma nova configumção cuja ênfase pode-
ria ser descrita como «pós-moderna». De fato, certos conceitos e certos
182 Durante a década de 1970, os colaboradores da revista Screen abrimrn polêmica
termos, como a própria identidade, são construtos sociais, noções arbitrá-
contra m; concepções ess.,ndalistas de sujeito uníflcado,seguindo o pói-estruturnlis~o
rias que servem para marcar certos fenômenos e chamar a atenção para francês; argumentavam - de aCordo com a teoria da ideologia de Althusser- quê o
eles; cumprem "tarefaS analíticas e classificadoras. Por iss(), o debaté em tor- cinema consti"Uía sujeitos lud!viduai.s iiusórios,"interpdando" os indivíduos-a se verem
no do pós-modemo é em gt-ande parte um debate em torno d~ terminolo- como sujeitos. É provável que essil também seja uma ilusão, pois faz mais sentido ver a
cultui"".\ da mídia como "interpeladora' dos individuas no sentido de comtruir determi-
nadas idcntldades, de identificarcse com determinadas postç/Jes de sujefto, e não cOm
P<l!JS::Ívd, marido c partícipe da linhagem do rei do pop, papel que sempre cobipm.A algum "sujeito" oculto. De futo, o conceito de sujeito é muito abstnlto, e freqüentemen-
cultura da mídia é, portanto, uma questão de imagc"m: dt; sua produção e sintonia e da te pode ser útil substituí·lo por termos cogna10s como ldentidade,posiç~s de sujeito,
as
rentativa de apagar imagens negativas que porventura apareçam. modos de \'er, posturas discursi~s, etc.

332 333
podemos nos reconstruir, que podemos liberta:ç-nos dos laços e das restri-
ções atqis do.'> quais nos escondíamos.A desvantagem é que a identidade se
toma rasteira e é trivializada em termos de estilo, aparência e consumo, e o
· individuo se define pela imagem, pelas posses e pelo estilo de vida. A iden-
8 Madonna, moda e imagem
tidade individual é construída, constituída por ,matedais da situa,Ção de vida
de cada tun, e cada um pode mudar e transformar a sua vida segUndo seus f

projetos, conforme nos lembram Sartre, Foucault e outros. Mas constituir


uma identidade substancial é trabalho que exige vontade, ação, compromis-
so, inteligência e criatividade, e muitas das identidad~s pós-modernas cons-
truídas com mak"Tial fornecido pela mídia e pela cultura consumista care-
·cem dessas características, sendo pouco mais do que um jogo, uma pose, um
estilo e uma aparência que amanhã mesmo podemos trocar: identidades
descartáveis e facilmente substituíveis no carnaval pós-moderno.
Ai.nda mais espantosas são algumas das muta.ções de ideotidáde pos- ·i~-~;::.
sibilitadas pela cultura do computador. MUitas pessoas que participa1n de
grupos de conversa c jogos por computador assumem identidades diferen- Nesta última década, Madotula iouise Ciccone tem exercido enorme
tes das suas em termos de sexo, raça, classe, profissão, etc.Algumas chegam influência na cultura póp, situada no.:.._ollio de um furacão de controvérsias.
a assumir várias personalidades e identidades e a desempenhar diferentes É· a ,mais vendida·~, mais discutida das cantorAS populares, uma das estrelas
papéis nessas interações. Nelas, conforme nota Sherry Turklc, "o eu é não mais proeminentes do videoclipe, aspirante a atriz de cinema c, acima de
só descentrado mas multiplicado ilini.itad.1.mente'' (apud David, 1994: 44). tudo, supcrst<U" pop. Para seus fãs, ela é um ícone máximo, imagem da moda
Thrkle também notou, numa conferência proferida em 1994, que a drásti- o
e da identidade; produz legiôes de imitadoras que copiam servilmente tudo
ca eleva,ç-J.o no número de diagnóstic<)S de transtornos de personalidade o que ela dita em matéria de moda. Pal"a seuS detratores, ela ~ a última paN
múltipla poderia ter relação com o computador c c:om outros jogos em que I lavra em comerclalismo grot.sdro e mánipulação da núdia, simbolo do con-
é possível desempenhar vários papéis, embora ela também defma a saúde sumismo banal que ava.:;sala essa cultura.
como "tluidez de acesso a diferentes eus~ e tenha afirmado que essas inte- Assim, Madonna transformou-se num foca· de discussão e controvér-
raçõeS lúdicas por computador t~1bém podém funcionar como um forma sia, sendo adorada c abominada pelo público, crítica c estudiosos em geral.
de autoterapia (David, 1994; 44). .
A maioria das polêmicas, porém, te1p caráter apaixoi-tado, sua natureza é
~ ' .
"pro ou contra", deixando de detectar os muitos lados do fenômeno Ma-
'

No capítulo 9, estudaremos melhor as transmutações de identidad.é


donna. Enquanto alguns a celebram como subversiva e revoh~~ionália,
na sociedade contemporânea segundo as teorias de Jean Baudrii!Úd e da :-
ficção cyberpunk. Mas, primeíro, passemos ao exame -de .Madonna como ' outros a atacam como antifcminista óu inemediavelmente desprezível e
vulgar. Opondo-nos a tais interpretações unilaterais, porém, argumentaría-
celebridade e máquina identitáda deste fim de milênio. Continuando nos-·.
mos que "Madonna" é um foco de genuína contradição que deve ser articu-
sa sondagem da cultura, da po_Iítica e da identidade conÍemporâneas, bem
lado e avaliado para Que seja possível interpretar adequadamente suàs ima-
como da terminologia aproptiada para descrever nossa atualidade, passare-
gens e suas obras, bem como os efeitos por estas prodtJzidos.
mos a interrogar o fenômeno Madonna, que está profundamente .ligado à
A nosso ver as imagens criadas por Madonna e sua recepção esclare-
problemática esboçada neste capítulo.
cem o caráter de construto social da identidade, da moda e da sexualida-
de. Ao destruir as fronteiras estab_clecidas pelos códigos donúnantcs de
sexo, sexual-idade e mbda, ela incenthn a -.experimentação, a mudança e a
j produção" da identidade individual. No entanto, ao privilegiar a imagem, a
aparência, a moda c o estilo na produção de identidade, f\.-Jadonoa reforça
'
•! as normas da soçiedadc consumista que possibilita a criação de um novo
"eu-mercadoria" por meio do consumo e dos produtos da indústria da
moda. Argumentaremos que a compreensão dc~sa contradição é a cruive

334
para entender os.efeítos Madolllla e para interrogar as condições nas quais os membros de certas classes de vestir e ostentar em público os tcijcs des-
é produzida a muh:ipHcidade de discursoS sobre Madonna, beln como suas tinados às elites governantes (Ewen e Ewen, 1982; Ewcn, 1988).
leituras c. avaliações contraditórias. Madonna toca nas· cordas mais sensí- A modernidade t.ambé1n ofereceu n~vas possibilidadeS de constn1ção
veis de se.xualldade, sexo, raça e classe, criando imagens e produtos desa-- da identidade. As sociedades modernas p~rmitiam <lúc o indivíduo produ-
fiadores e provocadores ao mesmo tempo, que reforçam as convenções' . zisse - dentro de certos limites - a sua própria id~ntidade e passasse por
dóminantes. O construto Madonna é uni conjunto de contradições, e nas criseS de ideptidadc. Já n·o século XVIII, o filósofo David Huille formulava
páginas seguintes estudaremos imagens, códigos c efeitos que constituem ' o problema d<Mdentidade pessoa!, daquilo que constituía a· verdadeira in di-·
esse tf'nômeno. Vidualid.ade de cada um, chegando a sugerir que não eXi's;e eu· substancial
__ ou transcei.ldcntal. Essa questão transform<\l~~.s-- em·~·obsessão com
Rousseau)ilerkegaard e muitos outros europeus ql~j>assavam por rápidas
MODA E IDENT!f)ADE tiansformações, pela desagrégação das sociedades tradicionais-e pelo sur-
gimento da modernidade (ver capítulo 7).
Madotula desperta o interesse dos est_udos culturais porque sua obr.a, Na.mQçlerhidade, a moda é um componenté1mpórtante da identida-
sua popuL'lridade e sua influência revelam importantes características da de, ajuda.U~a";i;kterminar de que modo cada pessoa é percebida e aceita
natureza e da função da moda e da identidade no mundo contemporâneo. (verwnson~ 1985; Ewen, 1988). Possibilita,cscolher as roupas, os estilos e
A moda oferece modelos e m·aterial para a construção d,a identidade. Asso. ;.,s imagens pot" meio dos quais será possível produ?ir uma identidade indi-
ciedades tradicionais tinham papéis sociais e códigos sup.ttiários relativa- vidual. Em certo.. sentido, a moda é uma característica da modernidade,
mente fixos, de tal modo que o traje e a aparência indicavam instantanea- interpretada està~omo uma era da história marcada pela perpétua inova,-
mente a classe social, a profissão e o status da pessoa. '"l Nessas sociedades, ção, pela destrufÇão do velho e a criação do novo (Bcrman, 1982). Um dos'
a identidade costumava ser ftxa~a pelo nascimento, pelo casamento e peia '
,·'I predicados d;t moda é a constante produção de novos gostos, estilos, trajes
realização pessoal; o repertório de papéis sociais era restritO. Os papéis se- c práticas.A màda petpetujl a perso~alidade inquieta~ moderna, sempre à
xuais eram especialmente. rígidos, enquanto o status c o trabalho se cir- procura daquilo que é novo e adntirado, enquanto foge do que é velho e
cunscreviam estritamente por códigos sociais estabelecidos e por um sis--- ultrápassado .. Moda e modernidade aliam-se para produzir personalidades
tema obdurado de atribuição de status. modern-as à cata de identidade em cOnstantes renovações c atualizações de
Na Idade Média, a identidade na parte ocidental da Europa er.a espe- roupas, aparêricia, atitudes e est'ilos, com medo de estar desatualizadas e
)
cialmente circmtscrita, e as normas chegavam a ditar aquilo que os mem- fora de moda.
bros de diferentes classes podian~ Óu não usar. Nas sociedades _modernas, Evidentemente, nas sociedades modernas, a moda foi limitada por c:;:ó-
foram eliminados os códigos rígidos de vestuário e moda, e a partir mais ou digos sexuais, pelas realidades econômicas e pela tOrça do conformismo so-
menos do início do século XVIII começou a proliferar uma grande varieda- cial que continuava a ditar aquilo que cada um deveria ou não usar, aquilO
de de trajes e aparências (Wilson, 1985)._Embora as imposições do merca- que cada um deveria ou não ser. A própria moda, nesse pe_riodo, passou por
do capitalista permitissem a ~penas certas classes a possibilidade de arcar estágios complexos de desenvolvimento histórico, até que, no início do
com uma indumentária mais cara, símbolo de privilégio social e de poder, século XX, houve uma racionalização dos trajes e dos cosméticos, e o mer-
comO conseqüência da revolução francesa a moda 'se democratizou nos cado começou a produzir mudanças tais que possibilitassem o acesso das
países que passaram por essa transformaÇão dcm~crática, de tal modo qtu; massas ao consumo (Ewen e Ewen, 1982; Ewen, 1988). No entanto, os có-
qua1quer um que pudesse pagar por cert.'"lS roupas poderia vestir'e exibir digos da moda continuaram a ser relativamente fixos para algumas classes
aquilo que bem entendesse (ao passo que, antes, as leis sutltuárias proibia~t e' regiões. Entre outras fontes, o documentário apresentado pela ABC em
1982, chamado Heroes of Rock, mostra que na década de 1950, noS Esta-
dos Unidos, os pais, 'Os professores e outros árbitros do bom gosto tenta-
18.:$ O tipo Ideal ~apaz de criar perfeita distinção entre sociedades tmcÍicionais e ·mo- vam ditar aquilo que era apropriado ou não usar, policiando, assim, os có-
dernas é, de certa forma, uma sirnplíficação t:XCessiv:i, mas estamos usnndo essa
distinção parn'tentar salientar as carncterisricas fundamentais que·vinculam a indumen-
digos de moda e identidadc.A transgressão dos códigos sexuais em matéria
tária,a imagep1 e a identidade n.1s sociedades modemas.Ver mais a respeito dos discur- de mod;l sempre foi, durante séculos, uma boa maneira de identificar-se
,;.,, da modernidade, suas contribuições c limitações, em Antonio e Ke!lne~; 1994 ss. como proscrito ou até de ir parar na cadeia ou no hospício.

336 337
Na década de 1960, assistiu-se à maciça tentativa de destruir os códi- prando nos ventos". Certos grupos como os Beaties, os Rolling Ston~s,
gos culturais do passado, e para isso a moda foi um elemento iJnportantc Jefferson Airplane c intérpreteS como Janis Joplin ou Jimi Hcridrix sancio-
de construção de novas identidades, ao lado do sexo; daS cjrogàs- e do_mck, navam a revolta contracultural e a adoção de ·novos estilos de vestuário
fenômenos estes que também fizeram parte ~ mudanças da éppcà, Na- ~ompc;utamento e atitu(kA associação entre roCk,·.cabelo comprido,rcbei:
queles anos, es,tava na moda a "antimoda" em roupas, t; passaram a ser nor- dia soda] e incotúormismo em moda continuou por toda a década de 1970
ma a subversão e a derrubada dos códigos cultunüs.A chamada subversão com ondas sucessivas de fJeavy nietal,punk e new wave.
da moda continuou em voga durante as décadas seguintes, e a indústria li- Os programas de televisão, os ftlmes e os segmentos musicais mais
gada ao setor possibilitou maior flexibilidade:, pondo no mcrcadq produtOs· conservadores, por outro lado, ofereciam modelos ~ais COl)Vencionais à ju-
que permitiam a constante mutação de estilo e aparência. Por meio dess"as. ventude. Durante as duas última·s décadas, os co·t!~c:n:adotes culturais rea-
mutações, os indMduos pOdiam produzir i'apidamente suas próPrias iden- giram violentamente cOntr.t o radicalismo c a mod<i."'tffi década de 1960;no.
. tidades, resistindo aos códigos ~ominantes e criando sua própria .moda ~u campo de batalha representado pela cultura e pela moda para a juveritudc,
usando os estilos dominantes à sua maneira. Um dos alunos de Stuart Ewen travou-se a luta entre os tradicionalistas e os radicais que tCntavam subver-
_dá um testemunho muito interessante sobre o modo como t:r.t possível ter os papéi~,~:X,uais, os códig\)s _de -~nada, os valores c os compOrtamentos
.produzir estilo próprio contrariando os códigos dominantes: . ,
, tradicionáis,.;!~' a moda e a identidade social fazem parte de um: proces-
so de luta C)iconflito social entre modelos e ideologias opostas. Os conser-
Est\1dei numa escola católica durante 12 anos. No primário, usei uniforme por v~dores têm seus próprios modelos e estilos, tanto quanto os rebeldes cul-
oito anos. Costumava tentar me r.ebelar contra isso de alguma maneira sutil, t~rais. Portanto, ~-lutas políticas são travadaS em parte no campo da moda,
como deixando de usar a gravata, que era o~rigatória, ou usando o tipo erra- tanto quanto nas-~eições e nos dCbates políticos.
do de colarinho, etc. Foi o jeitinho que encontrei de me sentir um pouco A fase do côlegial, em especial, é um período em que os jovens cons-
livre, um jeito de lutar um bocadiQho contra o sistema. troem sua identiQade, tentando «tomar-se alguém" (Wexler, 1992). Essa fai-
(Apud Ewen, 1988: 5) xa etária tem constituído um terreno de contradições e lutas nas últimas
décadas. Embora c_ertos pais e professores _tentem instilar valores e idéias
Na verdade, a própria Madonna .conta, numa de suas primeiras ehtre- tradicionais, a cultura da juventude muitaS vezes está em oposição à cultu-
vistas, o modo como expressava a rebeldia de adolescente por m~ío da ra conservadora.Ainda qüe a década de 198'0 tenha sido um petíodo pre-
moda desde o tempo em que era menina, mostrando c0n1o ela e uma ami- dominantemente conservador, com a eleição de Ronald Reagan e·a "guina-
ga se vestiam de maneira extravagante: - da direitista" na cultura americana (ver Ferguson e Rogers, 1986; Kellner e
Ryan, 1988; Kellner, 1990a), as imagens derivadas das figuras~ d<t-música po-
, Só porque ~ossos pais não gostavam.A gente achava engraçado.E caprichava' pular às vezes estão na contramão do conservadorismo. Michael Jackson,
·na roupa. Púnhamos sutiãs bem estofados para ficar com peitos enormes e Princc, Boy George e outros grupos de rock rri~ram as tradicionais divi-
usávamos malhas bem apertadas. Umas verdadeiras pemas de suéter. Batom, ,·,, sões de sexo e promoveram a sexualidade polimorfa. Cyndi Lauper delicia-
era de tonelada; a gente carregava 'na maquiagem, fazia pintas ·enormes; 0 ca- ,·'I va-se na excentricidade extrema, enquanto Pei: Wee Herman entregava-se a "
belo era, desfiado no cstiloTammyW'ynette. I um comportamento infantil e tolo para deleite de sua platéia jovem (e nem
(Madonna, apud l.ewis, 1993: 1~2)

Naquele período, a cultura da mídia se transformou numa fonte


'l tanto). Jogando pela janela décadas de sofisticação, maturidade, respeitabi-
lidade e bom gosto, Pee Wee transformou em algo 4 legal" ser bobo e estra-
nho, ou, pelo menos, diferente.
particularmente poderosa' de mod<l cultural, pondo à dispo"Siçãe> modelOs
de aparência, comportamento e estilo. Os astros d0 rock, que usavam cabe-
I
los longos e se vestiam de inodo pouco convencional 'fias décadas de t96o ()FENÔMENO i\!ADONNA
e 1970, influenciavam as mudanças nos cortes de cabelo no modo de ves-
tir e no comportamento, ao mesmo tempo que suas ati;udes, às veze~ re- Foi nesse período, na década de 1980, em que a identidade dos jo:vens
beldes,-scrviam de sanção para a revolta social, como quando Bób 'Dylàn · estava sendo reformulada numa era conservadora, que ?>-Íàdonna apareceu."
prodam~u que "os tempos estão mudando", ou que a mudança estava "so- Seus p~imciros videoclipes e shaws transgrediam, ao; fronteiras do trajar

339
1
tradicional, e ela se entregava a urú comportamento sexual desinibido~su.;.

II vertendo os limites do "apropriado" para a mulher.Assim, desde o começo,


Madonna foi um dos ícones femininos mais escandalosos do repertório das
imagens que circulavam com a sanção da indústria culturalllÍnbora; sem
düvida, existissem muitas figuras bem mais. subyersivas, suas imagens e
.i' menSagens não circulavam pela cultura dominante; portanto, 'não tinhám a
I eficácia da,.ppp:ularidade. Em sua primeira fas~, Madonna sancionava a re-
beldia, o inconformismo, a individualidade e a experim~ntação com um jei-
>' ,., ' to de vestir e de viver. Suas constantes mudarr\~s, B_~ imâgem e identidade
h·. ~.-~~~;]~-·. preconizavam a experimentação e a criatividade i'i'êsses campos. Suas trans.·
,, ....,.. .::; ',' .. formaçõ.es às ·vezes drásticas em matéria de imagem e estilo indicavam que
;._
I a identidade é um constmto, algo que, produzido por nós, pode ser modi-
· . &:;;/
'<;' •
'·i
i ficado à v.q~àQ.e. O fl).Odo como Madonna usava a moda na constn1ção de
~:.:. · sua idch~~.f=cteixa"\~a d'lro que a aparência c a imagem ajudam a produ-
zir o que ~amos, ou pelo menos o modo como somos percebidos e nos re-
lacionamos.
Portanto,. Madonna problematizava a identidade, revelando seu
caráter de con·~ruto e sua possibilidàde de ser alterada. Ela foi, sucessiva-
mente dançarina, musicista, modelo, cantora, estrela do videoclipe, atriz de
cinema e teatro, "a empresária maiS bem-sucedida dos Estados Unidos" e su-
perstar pop que se esmerava em fazer marketirig da própria imagem e em
vender seus produtOs. Traballtando Çom consciência e perícia a própria
imagem, ela foi deixando de ser o objeto sexual, a garota intci-eSseira, a loi-
ra ambiciosa, para ser artista de videodipes, ftlmes e. espetáculos pop. Sua

l música deixou de ser o mck fácil de discotheques adolescentes e passou a


ter letras intímistas, dor-de-cotovelo, passou ao modernismo pop (com a
ajuda de seus videocliPes). Os cabelos de Madonna mudaram do loiro en-
I'
.,
cardido para o louro platinado, pai-a o negro, par'.t o castanho, para o iUivo
e para suaS infinitas variações. Seu corpo passou do suave e sensual ao char-
' -moso e esbelto, à máquina se.xual rija e musculosa, ao tecnocorpo futuris-
ta. A roupa e a moda que ostentava mudou do barato espalhafatoso para a
\
.. alta-costura, para a tecnocostura radical, para o lésbico-sadomasoquista,
•'i' para o pasticho pós-moderno da moda vale-tudo. Novas imagens e nova
identidade pata todas as ocasiões c todas as épocas. Como se vê, as mudan-
ças na moda de Madonna em geral captaram as· mutações culturais e esté-
j ' ticas, atingindo, assim, o status de popularidade, e oferecendo moddos e
' material para apropriaçãà por parte de seu grande e variado público.
Por conseguinte, para se entender devidamente o fenômeno Madonna,
é preciso perêeber suas estratégias de marketing, os modos co.mo ela ven-
deu sucessivas imagens e incorporou vários públicos, os mecanismos pelos
'.1
quais da se tomou uma superstarpop. Madonna é uma das maiores máqtii-
.nas de relações públicas da Wstória; contratou agentes c publicitários de·

340 341
primeira, gente «criativa" para fazer seu marketing e prodi.JZir suas imagens. Madonna 1: objeto sexual
Desde o começo, todos os seus movimentos foram cercados de publicida-
de, e ano após ano proliferavam referências a Madonna na cultura da mídia. Em 1983, Madonna lanççm o primeiro álbum, Madonna, e duas .das
Na Verdade, uma pésqui'la no banco de dados Nexis com os termos "Madon- cah.ções ("Lucky Star" e "Holiday-~) alcançaram grande sucesso. Suas primei-
na e pop", no_ período de 1984" a 1993, rendeu mais de vinte .mil citações! ras realizações mu~icais são de um tipo convencional, so_bretudo pOpular
"Madonna~ é sua publicidade e Sua imagem, e o "fenômerío .Madonna" é; dançante; seu alvo, os adolescentes. Mas Madonna era muito esfuziante e
portanto, um grande suces~o de marketing e propaganda. começou a atraffi-a a~enção com seus videoclipes dos maiores sucessos
Embora haja certa continuidade no desenvolvimento de Madonn.'l (que apresentados na MTy, canal relativamente novo que desem,e,enharia·papel
exporemos), há também pelo menos três períodos distintos que podem ser fufl.damental em sua cátreira. 'a' Na verdade, Mà:@.Q!lJ;1..a citava surgindo
(grosso modo) equiparados às mudança<; na sua produção "musical; nÓ tipo como uma das primeiras superstars da MTV~ e seus vi"ilêôclipes logo vende·
de moda e de sexualidade e na construção de sua imagem. De acordo com ram sua·ima.gem a um enorme público. Desde o começo, Madonna criava
isso, ddin~aremos esses períodos para dCsenhar os contOrnos do que passou videocliPes capaz~s (je produfír uma imagem distinta, vendàvel a vários ti·
a SCJ." conhecido como "fenômeno. Màdonna". Nosso foco s~clo sua'i imageris pos de públic-os~ 'i,
e sua produção culnmd, o impacto que estas produziram em seu público e . Seu pl-~ilx{ videoclipê, "Lucky Star," apresenta Madonna cómo um
seus efeitos culturais na última década. Mesmo recorrendo aos métodos con- objeto s6mat'l voluptuoso, como dançarina cheia de energia, lançadora de
vencionais dos estudos culturais, com a análise do texto c de sua reCepÇão. uma moda inovadora. O vídeo começa com uma seqüência em preto.,e."
pelo público, árgumentaremos que um componente geralmente negligencia- branco em que M~~onna usa uns óculos escuros que aos poucos vai abai-
do dos estudos culturais - a economia política e a produção da cultura - é xando para revelar'tm 91har ardente, fixado na câmera (e no espectador).
uma importante chave para a colnpreensão do fenômeno Madonna•M poís 0 Os óculos, evidentemente, eram um símbolo da geração punk que influ-
sucesso de Madonna é em grande parte um sucesso de markettng,c i músi- enCiou Madonna no início da década de 1980 em Nova York; tornar-se-ia
ca, os vídeos, outros produtos seus e sya própria image;m são ttiunfus de es- símbolo do movimento~ cyberpunk também (como afuma Bruce Sterlíng
tratégias a:trcmamcntç bcm·suç.;;:dida.:~ de produção e marketing .:. aittda ·ha ·introdução de sua antolo~ia Mirrors/Jades 1986: vü). Sua presença indi-
que tenha havido fraCassos de público e critica, principalmente no que se re-". Cava que,_naquclc vídeo, Madonna revelaria algo de si mesma, porém sahen-
fere a seus filmes. Madonna fez os contatos certos, trabalhou com músicos e ·do que aquilo era uma representação e que ela manteria o contrplc e a sub-
produtores de vídeO talentosos, tem um exército de adm.ihistradores e publi- jetividade. A seqüência flnal volta ao preto-e-brnnco,refratando Madonna a
citários profission:Us e, na maioria das vezes, produziu brilhantemente sua lançar ~ombras S<,Jbrc seus olhos à medida que a cena esmaece.
própria imagem, vendendo-a com sucesso. Ao firl'l. de uma breve seqüêlncia de abertura, o hranco-e-preto se dissol-
ve, e uma seqüência colorida mostra Madonna vestida totalmente de preto.
A medida que a música começa, lenta, ela se contorce numa pose erótica, a
184 Grande parte dos estudos culturais modem os concentr:un:.Se apenas na análise tex- · câmera congela seu rosto, da dá uma piscada, e a cena seguinte a mostra
tua! e;ou na recepção por pat"le do público, em geral ignorando a economia po!iti"(:a e I dançando e fazendo cabriolas com dois donçarinos.A piscadela, assim como
a produção cultural. Em seu estude de Madonna, por exemplo,john Fi.ske ei;cr-eve:.
a cena inicial, diz ao espectador que não leve aquilo multo a sério e, talvez,
Uma análise cultural, portanto, revelará tanto o modo como a ideologia pr>:do- sirva para dizer às mulheres é às feministas que, apesar de estar se. apresen-
minante se estrutur<l em tt='>."tO e no sujeito leitot; bem como as camCterísticru;
tando cOmo objeto do olhar mascÚ!ino, como sexualidade objetificadà,-ela
textuais que permitem as interpretações concordantes, resistentes cu contesta·
doras, A análise cultural chega a uma Conclusão satisfatória quando os estudos sabe o que está fazen(\o, está no controle da sua Imagem. IsSo leva a pensar
etnográfkos jeitos sobre os significados situados histórica e SO<:ialmente são re· que Madonna virá ~ subverter as suás própriaS imagens e as cenas que ago-
!acionados com a an~lise semiótica do texto. ra está explorando para transformar-se numa "estrela felizarda". ·
(1989a: 98)
Fugitldo ao esquema narrativo da maioria dos videoclipes da época,
"Lucky Star" apresenta urDa colagem de imagens do corpo de Madonn.'_l. O
Argumenl~mos, ao contrário. que a aniÜise da ccoilumia política e da produção cultu-
ral é \lnJ componente importante que tem sido menus prezado e até i$fl.orndo na recen-
te explosão dos estudos cullurnis. e que as estmtégias de marketlng de Madonna têm 185 A respeito da MTV; ver Kaplan,1987 c os cstudoo de Fdth, Goodwin e G:ross-
sido essend:!ls ao seu sucesso. . berg,l993.

343
vídeo a mostra danf,.<Indo com grande energia, sozinha ou com os dois dan- Em "Bordediqe" c ta derruba o tabu das relações inter-raciais; retratanf •,-
çarinos-; fazendo poses eróticas e exibindo corpo e roupas. É imP~rtante do sua personage:m com um jovem hispánico.Ao mesmo tempo que pare:
notar que o surgimento do tenômeno Madonna; de Madoti.na como super- . ce rejeitá-lo em favor do fOtógrafo que fará dela uma estrela,_ rejeita também
megastar pop tem relação com o modo como ela apresefltava,a música, a o fotógrafo, o que talvez implique um desejo de controlar a sua próPria
dança e a fmagem. A música é ~ançável e convencional, mas é justamente imagem o de seguir seus prÓprios prazeres sexuais. Madonna já está tocan-
a boa música dançávcl que dâ ao público o ânimo de dançar e exibir-se ao do as cordas da sexualidade e ultrapassando as fronteiras estabelecidas nes- -
modo de Madonna. Na verdade, anteriormente ela se distinguira como dan- se tipo d~ ativid_.a~ artística, pois suas letms prometem a utópia do êxtase
çarina nos clubes noturnos de Nova York, c surgia nos videodipes'comü sexu"l ("você continua transpondo as"fronteiras do meu a.J11.9(), enquanto
uma intérprete esfuziante de suas próprias canções na forma-de dança. a músic;:t tem um ritmo dançante bem ritarcado, o q\ls;!l:t$ poSsibilita extbir
Ora, Madonna podia não ser uma grande dançarina, mas graças à edi- toda a sua energia e todo o seu talento de dançarina. -~~
ção, ao enquulramento e à dinâmica de seus videodipes, ela aparecia como Nesse vídeo, M-adonna ostenta difereiltes tipos de indumentária, e
uma imagem atraente, com movimentos de mulher jovem, livre, vivaz e ex- seus cabelos vão do loiro escuro c despenteado, nas seqüências coloridas
pressiva, que usava a dança para mostrar-se numa imagem dinâmica, atraen- com o hispânipJta? glamour do loiro bem, posto e armmado das seqüên-
te e sedutora. Em "Lucky Star~, Madonna veste saia preta, justa e curta com cias em prel:~~co·. As imagens contrastantes das duas Madonna indi-
colante preto por baixo. Usa um blusão largo e preto, que mal encÜbr~ um cam que a- ide~tidade de uma delas é um construto que pode ser modifica-
corpete.-preto de t"enda, por baixo. Na cintura, é possível ver o famoso "cin- do ou transformado à vontade, e, na verdade, era o que a própria Madonna
to da incastk41.de", mais ~te comercializado em sua linha de· moda Boy estava para fazer. Além disso, ao se oferecei" a homens de várias cmes em
Toy, com uma grande fivela e correntes em torno da cintura. Madonna usa seus.vídeos (e na vi<ireal, a acreditar-se nas fofocas). ela estava 'quebrando
uma tiara preta nos cabelos e um caracteóstico brinco em forma de estre- as barreiras raciais -<da se..'nJalidade, mas também estava pondo em prática
la, além de alguns brincos menores em fot"ma de crucifiXo. Completando o uma inteligente estratégia de mat·keting por convidar jovens broncos, lti&-
visual, ela usa meias soquetes pretas e botas pt"etas de cano curto. pânicos e negros à fantasia de poderem ter ou ser Madonna. Na verdade,
A indumentária de Madonna nesse estágio constituía uma subversão foi, sem dúvida, a estratégia de marketing de Madonna que lhe possibilitou
dos códigos convencionais e justificàva o uso de qualquer combinação 4e atrair primeiramente a classe tr-abalhadora. branca das cidades e dos subúr-
roupas e ornamentos que se quisesse. Evidentemente, a própria l\oladonna bios e as garotas de classe média que se identificaram com a sua rebeldia e
tornou-se um modelo da moda adolescentcflashy tmsh, que suas famige~ com sua moda descartável e bamta, para depois atmir uma ampla gama de
radas imitadoras copiavam servilmente. Ela vinculava moda, exibkionisino diferentes públicos, seduzindo novos ías a cada novo lance da sua carreira,
e sexualidade agressiva, associando a irreverência em matéria de moda à re- como veremos abaixo.
beldia sexual c ae: uso. não convenciopal de sím~olos religiosos como c.ru- Já em seus priineiros vídeos, Madonna lança rilão da moda, da sexua-
cifixos.Assim, Madonna legitimava a moda e o comporumento sexual nã~ Iidáde e da construção da imagem para apresentar-se como objeto s~ual
convcndonais, cativando um público que se seÍltia estimulado pelo seu tentador e como transgt"cssora das normas estabelecidas. Por um lado, o ví-
desdém áos códigos c às convenções tradicionais. deo valida o sexo inter-racial e apresenta imagens raríssimas- da cultum doS
Outro _grande sucesso seu em vídeo, ·'Bon.lerline», mostra temas e es- l::Jairros hispânicos. No entanto, as duàs seqüências narrativas em contraste
tratégias que tariam de Madonna uma grande estt"ela. O enredei costura t(ansmitem a mensagem de que, embora seja possível passar Ótimos mo-
duas seqüências para ilustrar-a canção de amor." Na seqüência colot"ida,Ma- mentos ao lado dos hispânicos, será o fotógrafo branco _que lhe dará o .bi- ,
donna canta para um jovem hispânico com querri flerta no intuito de se- lhe te de passagem para a riqueza e o sucesso. Mas ela termina com o jovem
duzir, enquanto na seqüência em preto-e-branco um fotógrafo anglo-saxão hispânico, e assim a narrativa valoriza as relações multirraciais, pois a
bate suas fotos e a corteja. Numa das cenas em preto-e-branco, ela lança ja~ personagem Madonna-continua a encontrar-se com os dois jovens durante
tos de tinta spray sobre escultUras clássiCas, num gesto modernista Qaqtie~ as seqüências narrativas, projetando a fantasia de que é possívei ter tudo,
les que codificam seus videoclipes como transgressores dos c.ódigos dá transpondo as fronteiras de uma cultura para outra, apropriando-se dos pm-
alta cultura, marcando-a como praticante da subversão modernista pop zeres de ambas as culturas e de múltiplos relacionamentos.
que desrespeita as normas e intenta a ino"-ação, ainda que -dentro dós limi- O vidco também põe à mostra o contraste entre os códigos da moda
tes do popular. adotados pela,cultura das classes mais altas e pela cultura hispâni~a, iden-

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c'
tificando a _cultura anglo-saxônica com o que há de mais .elcva(ja· em sucesso, "Uke a.Vugín", Madonna aparecia de vestido de noiva e.gridva
termos de moda, arte e luxo. Por·outro lado, a cultura hispânica é equipa- "Qu~r se casar comigo?" ao que as garotas c os rapazes respondiam "Siiii-
rada aos guetos urbanos, ao blue jeans, aos salões de sinuCa e à moda mais ilin1" Balançando os quadris e~quanto cantava "Você me faz sentir virgem",
barata. Um vídeo !eito mais tarde, chamado "la Isla Bonita", porém, utiliza a ia desenrolando a fuixa ~ cintura e dizendo "tocado pela primeiríssima
fantasia da moda hispânica como ícone de beleza e romantismo. Como se vez"·. Essa versão e;xtremàmente seioJal da canção zomba da virgindade,
pode ver, esse "multicultumlismo» e suas posturas culturalmente trànsgres- mas também brinca com a sexualidade ironizando seus códigos e g~tos.
sivas (por exemplo, a sexualidade explícita e inter-racial) acabarat'!l sendo Seu 'modo deJ>.tWcar com os códigos sexuais revela que a sexualidade é um
muito bem-sucedidos em tefmos de mcwketing, pois ela foi capaz de cati- · construto, fabricado c!ll parte pelas imageÍís e pelos códigçs da cultura pa-
var um público juvenil amplo e variado. · .. pular, ê, ~ão por l!ffi fenômeno "natural". Tamb'Ç,qt.$vd~tlue ela é um
No entanto, Madonna transformoU-Se em importante figura da cultu- c:ampo lúdico, de autocriação. e auto-expressão, desê~c prazer. Desde ~ co-
ra pop quando começaram as suas turnês em 1985 ·e ela deu início, cons- meço, Madonna e.s:ptorava con,t sucesso a sexualidade e, por sua vez, a apre-
cientemente, ao marketing d.i
stia própria imagem c de um a~plo espec- sentava como algo natural, desfrutável e divertido - atitude esta seni
tro de artigos da moda vendidos com a griffe BoyToy.já em 1985,fazia-se dúvida, sadi..;.,nj.Iip.a cultura ~utrora puritana. 1si '
sentir o primeiro "efeito Madonna", mostrando sua forte influência sobre o As iin~dt:{r-ts de MadonJ.;Ia prolifcf".tvam, e- ela logo se transformou em
público: modelo- de identificação, associando as mudanças na identidade com as
mudanças da moda e do estilo. Lewis resume assim os primeiros efeitos Ma-
Nos shows, a venda pe1· captta de camisetas e lembranças está entre as maiS donna:
altas da histólia do mck. "Ela vende mais do que Springsteen, Rolling Stones
ou Duran Duran", diz DeU Furano, agente de negócios em suas turnês. No O shopping temer é o ponto aglutinador da participação das fãs nos vídeos
show de San Francisco, as camisetas de US$20 eram vendidas numa média de de adereços femininos. "MadÓnna está por toda parte", escreve um de seus
uma a cada :Seis segundOs. Ela começou a comerdaliZRt o "il.fadonna-wem-~ biógrafos. Existe até um siJopplng center na Califórnia que foi apelidado de
por ela descrito comu "moda esportiva 'para objetos do desejo". A linha con- '"Shopping Madonna", porque a maioria das adolcs~cntes que compram lá
tinha "um top rendado de US$25, um agasalho de US$30, calças de US$20 e tenta se parecer com ela.(. .) Para atender à demanda do "Estilo Madonna",
uma minissaia de preço médio (US$30)"cuja cintum pode ser enrolada para a loja de ~epartamentos Macy criou wn setor chamado "Madonnaland" para a
bai:xo quando se quiser m~strar o umbigo". venda de mini blusas (US$30), calças curtas (US$21) e uma série de bijuterias
(people, 13 de maio de 1985) como brincos com crucifixos.e colares de "pérolas"·enormes' (US$4-59) pare~.
ciclo& com os usados por Madonna. O departamento tornou-se o ponto_ de
Embora também fosse comçrcializada uma coleção mais requintada, mobilização das fãs de Madonna no verão de 1985, quando a Macy's patroci-
como os kits de maquiagem, a sua imagem incentivava a moda de carrega-. nou ttm concurso de sósias da Madonna tla ~esma data do sbow da estrela
'ção: roupa de baixo aparecendo, camisetas largas, bijuterias baratas (pulsei- ~:m Nova York.

ras, brincos, correntes e crucifiXos). Na verdade, o "visual Madol).na" ficou (Lewis, 1993: 144) ·
conhecido como "jlash-tntsh", e quase todas as adolescentes tinham con-
dições financeiras de se parecer conl Madonna c de reproduzir seu com- A elaboração da moda e da sexualidade de Madonna durante essa
portamento c seu jeito de ser. Madonxia deu às adolescentes a pbssibilida- primeira fase é mais complexa do que parece à primeira vista. Embora seja
de de produzir uma identidade própria, de afirmar a sua própria moda e de fácil menosprezar a posrura inicial de Madonna, tachando-a de objeto se-
rejeitar os códigos da moda convendonal. xt~.al descaràdo, garota fácil, materialista e interesseira, que funde identida-
Durante a turnê "Virgin", .Madonna vestia uma jaqueta de cor Vi~ e de com imagem t: estilo, uma observação mais atenta. de seus videoclipes
minissaia justa, ligas de lii'tJibie cintilaüte, meias 'rendadas pretas áté O'joe;
lho e uma paiafcrnália de enfeites, entre os quais' crucifrxos·, um medallião
186 Madonna não sabia nessa época qu~ a dissen11naçiio da AIDS faria dn ~el'.<Jalidade
da paz e braceletes. Saltitando sobre botas, com o umbigo à mostra, urn 1:ampo çada vez mais arriscado. Mais t:trde elfl se torn~tria ativi,<;ta contm a Nos e
Madonna tirava· a jaqueta para revelar uma biusa púrpura de renda e um 'su- inseriria mensagens de" sexo seguro" em seusshows e álbuns. Apartir de 1990, também
tiã preto, marcando uma sexualidade exuberante e acessíveL Para cantar o começou a encenar os aspectos arrisc:idos do próprio seXo.

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produz outro Ctuadro. Por exemplo, o videoclipe "Material Girl" (1984) pa- terpretações do texto polissêmico. O vídeo também expressa elementos tia·
rece, à primeira vista, um hlno ao reaganismo, que glorifica o materialismo fi!psofi.a da própria Madonna e tambéni algumas de suas contradições (isto
frívolo e louva ·a ganância e a manipulação. ("O endinheirado é sempre o é, te.ntar ganhar sempre).Assim, da mesma fOrma que a a,rte modernista, o vi-
homem certo ... porque sou uma garota materialista~). Nessa Íeitura, a lnú- deocijpe cria uma çstmtura inovadora, expressa a visão do artista e exige
sica é uma reprise de "Os homens preferem as. louras". de Marilyn Monroe üm lejtor atento para descodificar a possível gama de signillcados. 187
e defendi as mesmas posturaS calculistas e superficiais. · Ademais, o vídeo "Material Girl" problematiza a identidade e desfaz O
Embora Madonna tenha assum.idÚ aparência semeUtantc à de Monroc· elo entre roupas-.-.caras, ri<Í.ueza e posição social. Carradine está de camise-
nesse video e ostente um pouco d.a moda e das poses do hino d~;: M~nr~e ;· ta e calça marrom de operário, o que está perfeito, segurídb._,o vídeo, as-sina-
aó materialismo burguêS da década de 1950, um exame mais minucioSo lando que moda e identidade detJendem d,o indivÍ'UM..~ nãO· d<t códigos so-
apresenta alguma_s· perspectivas diferente~. As cenas musicais est.ão enqua- ciais. As imagens e os videodipes de Madonna, portàtitb, legitimam o gosto
dradas num roteiro em que o produtor vê as imagens ·de Madonna cantari- pessoa'! na apropriação da moda e na produção- da própria imagem. Não
do e começa a cortejá-la. Ele se' traja de· maneira informal, com uma cami- obstante, as imagens mais atraentes das cenas musicais exaltam as roupas
$eta marrom, e ela o toma por empregàdo do estúdio. Mas ele a convida caríssimas, o~, diáp-lantes e outros ornamentos caros como representantes
para sair e, na cena final, os dois aparecem beijando-se num caminhão ve- da imagen:l ,-~a:;J.Çientidade bem-sucedidas. E pode ser que as potentes-ima-
lho que ele havia alugado para tal ocasião. gens de"'r:iqueza c alta moda, reforçadas pela letra da música, de fato privi-
Há, então, mna tensão entre as cenas musicais, que exaltam a riqueza legiem o materialismo burguês, em detrimento do romance e da escolha in-
e o materialismo, e o roteiro, que _privilegia o "verdadeiro amor". Nui11a dividual no videoso_\ipe. . ._
leitura d.1. própria Madonna, o vídeo mostra a "materialiSta" rejeitando SCJJS A obra e a im'"igem de Madonna são permeadas por ambigüidade, iro-
pretendentes ricos para favorecer um trabalhador pobre. Diante _da critica nia e humor em <fito grau. Seu uso da moda é humorístico e irônico, assim
de que estava exaltando a ganância vulgar, Madonn:a respondeu:"Atente para como muitos de seus vídeos e shows.As peças comercializadas em suas
o vídeo que acompanha a música. Quem fica comigo no fim é o rapaZ sen- marcas BoyToy e Slutco são sempre bem-humoradas, da mesma forma que
sível e sem dinheiro" (People, 11 de março de 1'985). Segundo esse relato, os nomes das próprias marcas rque significam "garota fácil" e"Prostituta &
Madonna rejeita os rapazes que a cortejam nas cenas de dança e-múSita e Cia"]. Na verdade, o·próprio termo pejorativo Boy Toy ê· irônico e permite
prefere o rapaz pobre, porém sincerO, que aparece nas cenas de "realismo"·. múltiplas interpretações. Numa d~las, Madonna é um brinquedo para os ra-
A int~tpretação n'tais minuciosa levanta, porém, a questão de ser pazes (objeto sexual), mas, em oui:ra os rapazes são brinquedos para ela, os
"pobre" mesmo o "ràpaz pobre" -do vídeo, representado por Keith R:Ípazes-Brinquedo_ estão à sua disposição para que eÍa brinque, e o "cinto
Carradine, ou se Madonna na verdade não ganhou uni executivo riqllíssi: da incastidade" cai quando ela, bem entende. De fato, "Mater~al Girl" mostr-a
mo e bem-sucedido. As imagens do roteiro revelam ser a persOnagein de· os homens como brinquedos dela~ e suas cenas de dança com homens
Carradine um dos magnatas do estúdio, que, ladino, se faz passar por rapaz
pobn;: e·sinccro para conquistar o coração de Madorina.Assim, em "Mate-
187 Ann Kap!an (1987) interpreta "Material Glrl" e Madonna em geral como sintoma
rial Girl" ,Madonna é tudo para todos, e sempre consegue o que -quer: para
do pós-modemismo porque Madonna é run pastkhe de Marilyn Monroe c mistura se-
os conservadores da era Reagan, ela ex..-llta os valores materiais é a materia- xos e estilos, como realismo e número~ rnusicaJs em "Material Glrl". Mas ess.1 é uma
lista do sexo, da ambição e do ffiateriallsmo sem c~lpa. Para 'e,sse público, irrterpreta~·ão pardal db pós-modernismo; pode-se argumentar que, para uma criação
ela é a reencarnação de Marilyn Monroe,a superes trela pop, o objeto sexual artbti<:a se• exemplo de "pós-modernismo", é preciso que também desconstrua
superideal·da fantasia masculit'ta e o ícone da fantasía feminina do objeto eXpreS5ãO e significado, que n:~mpa as Cadeias significantes e projete um jogo pl~no
de desejo. Para a juventude idealista e rOmântica r todavia, ela é a boa moci- de significados, de imagens eufóriats,que rejdte o significado c a Interpretação; como
!lO Conceito de pós-modernismo extrak\o de Jame~on (1991), com o qual trabalha-
nha em busca do amor, que opta pelo verdadeiro. amor e resiste às te'nta-.· mos. Comparados a tal te:>.1:o Pós-moderno plano, a maioria dos videoclipes de
ções materialistas. No roteiro do videoclipe, porém, ela consegue os dois: o Madonna exige interprt·taÇão, e alguns contêm- estruturas cstCtic~ ·comPlexas a ex-
amor e um rapaz bem-sucedido. pressarem as próprias idéias e o estilo de Madonna, exigindo um trabalho interpreta-
Por conseguinte, o videoclipe de "Material Girl" sem dúvida emprega tivo e produzindo interpretações poli valentes; $li.O, portanto, "modernista~" no sentido
estratégias estéticas modernistas que geram tensão entre a narrativa e os.có-- em que estamos usando o termo. Voltaremos a esse tema mais adiante, neste caPítulo,
e cOmpararemos o uso que Laurie Andci'Son faz· das estratégias estcétic'lS pós-moder-
_digos sociais, exigirido um espectador atento para ext~r significados e in-
na5 com o uso que Madonna faz do modernismo .

.)
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durante os shows da turnê "Virgin" os apresenta como seus lacaios e aces- grau como uma das artistas de maior sucesso da música pop. F~i cap~ da
sórios, com quem ela brinca e a quem domina. revista Time e mereceu matérias de destaque nas revis~as Peop!e, News-
Em essência, a Ma9onna do início da càrreira projeta nos vídeos e na· - week, Rotling Stone e outras de gr-ande tiragem. Seu primCiro álburn,Ma-
música uma intagem raríssima de mulher livre, que toma suas próprias ini- donna, vendera mais de três milhões de exempÍares, e o álbum Li"ke à
ciativas e decide a própria vida. Sua imagem de mulher liberad.'l flanando Vi1"gin, 4',5 milhões nos Estados Unidos e 2,5 milhões no resto do mundo
pela vida como bem quer foi 0tPtada co-111 perfeição no papel que ela re- no início de I985.Ademais, Madonna sabia que era uma grande estrela;
presenta em Procm·a-se Susau Desespemdamente, de Susan Seidelman planejava seus-.passos de acordo c()m isso.
(198'5). A mensagem desse filme, compatível com todo o trabalho inícial Não é preciso dizer que Madonna recorria .à mod<~o e à sexualidade
de Madonna, é de que se pode troCar de identidade quando se muda o es- . para produzir a imagem que a marcaria de m~p.s-.a fth:s da década de
tilo de vestir, a aparência e a imagem. A própria Madonna seria um ex.Cm· 1980, Caracterizada por megassucessós continuas e1t: álbuns e videodipes,
pio impressionante dessa filosofia em setís dois estágios posteriores, nos mais uma turnê bem-sucedida eW'ho's that girl?"), um _casamento comen-
quais modifica de maneira radical tanto a imagem quanto a identidade. , tadíssímo e fatalmente fracassado com o ator Sean Penn, e dois filmes que
Na verdade, só em 1986 Madonna sé metamorfoseou, passando da ga-' foram frac<!SSO ~-e crítica c bilheteria (Swpresa de Xangai e Quem é eSsa
'•' " '
rota fácil, quase prostituta,- de alguns de seus vídeos c shaws e de Procura- garota?). '-"i>"":!:',
se Susan desesjJei-adamente, à mulher mais requintada e séria que se apre- X prui~cn:a transformação visível na imagem tinha relação com o peso,
senta no videoclipe ''Live to TeU", música favorita de seu então marido Sean e o corpo.A Madonna anterior era tenra e um tanto rechonchuda, mas seu
Penn e tema de um dos filmes dele. Depois, apresenta-se cômo adolescen- corpo fof,transf9~mado por ginástica e dieta rigorosas. Ela também mudou
te loura de cabelo curto em "Papa Don't Preach" ,em que a personagem de o penteado e o lftiarda-roupa, recorrendo à alta-costura, mais glamourosa,
Madonna se dedde contra o aborto, ao engravidar. Esse videodipe recor~ embora mudass~ o penteado com freqüência. Em muitas fotos e no filme
reu a um roteiro de formato realista para contar a história de uma jovem St.npresa de Xangai de 1986, Madonna ia se tornando cada vez mais pare-
com um problema, ao passo que outro videoclipe daquele ano, "Open Your cida com Marilyn Monroc, ostentand.o um· deslumbrante cabelo lou'ro, on-
He'art", engendra uma complexa desconstrução modernista em que Ma- dulado e macio.1à.mbém jmitava o estHo de outras estrela.'> clássicas do cio
donna problematiza o olhar masculino, aparecendo como artista de strtft- nema, como lana Turner e Marlene Dietrich. Não obstante, em seus vídeos
tease numa boate jwrnô em fOrma de carrossel, e encerra da'nçando com· de rock "Cherish" e "Papa Don't Preach", aparece com o cabelo bem curto
um rapazinho vestido de Charlie Chaplin, desconstruindo oposições entre (à la Jeatt Seberg em Acossado) e um louro p!àtinado brcga no filme de
"pecado" e "inocência", adultos e jovens. Esses videodipes, portan'to, recor- 1987, Quem é essa garota?, que reprisa a figura da protagonista e.xcêntri-
rem a estmtégias estéticas distintas, indo da forma tradicional do roteiro de ca da Hóllywood da década de 1930. A música "Üke a Prayer'' apresentava
"Ilve to Tell" e do duro re~smO de"Papa Don't Preach", em que, sem pro- Madonna com seu cabelo escuro natural; ela também aparece ruiva e com
blematizar, as imagens ilustram a letra da música e a letra comenta as ima- vários tons entre o claro e o escuro nos vídeos, nas fotos e nos documen-
gens, ao modernismo desconstrutivista de "Open Your Heart". Madonna es- tários do período de 1986 até fins da década de 1980.
tava fazendo experiências com formas e estilos diferentes e, enquanto isso, A turnê "Quem é essa garota?" de 1987, gravada no videocassete Ciao.
construindo uma nova série de imagens e u_ma nova identidade::. Italia!, mostm-a com dez quilos a menos c um corpo atlético. Passara anos
fazendo dieta, malhando várias horas por dia e até fazendo halterofilismo
para modelar· o corpo. A turnê apresentava uma danç<!- cheia de energia,
.l\1adonna U: quem é e;.;sa garotit? c_om acompanhamento de dançarinos de b1·eak, efeitos de luz elaborados,
sete ou oito trocas de roupa e mudanças de imagem impressionantes
Madonna chegam para ficar. Em 1985, vendeu 16 milhões de discos1 duraríte toçlo o show. Com um espartilho justíssimo no início, Madonna in-
entre singles e álbuns.AlCa-riçou o primeil-o lugar das paradas coni.."Uke a terpretava a imagem de gatinha se.x)', mas pasSava ao clima romântico-senti-
Virgin" e "Crazy fot·You", c, aos 26 anos de idade, passou 17 meses eilire os mental do álbum Tme Blue. Depois de usar um vestido de balle_de debutan-
vinte primeiros lugares em venda de singles (Barbra Streisand levou 17 tes da década de 1950 pa.t-a expressar a inocência de True Blue; vestia uma
ahos para conseguir o mesmo). Madonna e~treou com sucesso no cinema jaqueta negra de couro sobre o vestido para cantar "Papa Don't Pl'Cach",
com Procura-se Susan desesperadamente, e sua turnê "Virgin" a co~sa- enquanto as palavras "sexo seguro" eram projetadas no fundo do palco.

350
c.
Para zombar de "Material Girl'", Madonna vestia uma roupa cafona e Como já salientamos, as estratégias de marketing de Midonna apon-
catJtava rium tom agudo e fanhoso, no estilo de Bctty Boop, para ironizai' a taram com "êxito para públicos distintos. Embora tivesse atraído as adoles-
letra. Para "La Isla Bonita", escolheu um _Vestido de cabaré de estilo espa- centes no início da carreira, rapidamente conquistou platéia entre a$ mino-
nhol; e em "Holiday", uma mistura internacional de roupas, o que indicavá rias étnicas, com o uso de personagens e da cultura hispânica e. neS!'l nos
a postUra festiva e sadia que queda difundir. Fugindo da sexualidade ema e vídeos e no palco.A fase n·ue Blue agregou um público mais velho c talvct;
dos comentárÍos sexuais que marcaram a turnê_"Virgin"(e que :voltariam de· mais conservador, por intermédio da exploração de imagens e tipos de mú-
forma ainda mais radical nas excursões posteriores monde Ambition e Gii- Sica mais tradic'iOriàis.Assim·, em vez de cair para uma pop1,1!aridade de "mí-
lie), Madonna se contém um pouco nos trajes e na sexualidade· durante Ítimo denominador comwn", Madonna alcançou o estrelato:''êbr via de con-
esse período, parecendo "madura" em imagens e roupas mais tradici~nais:. quistas sucessivas de públicos diversificados. "19 ~~~ ~.
O palco de True Blue, com imagens mais tradicionais de mulher c se• O efeito da segunda fase de Madonna consistiu, entãO, em legitimar a
xualidade, porém, desvanece o q.ráter subversivo de sua imagem de mo~a e moda e as imagens femininas mais tradicionais. O período foi especialmen- ·
modelo para as jovens. Embora o jlash-trash do início de sua carreira tivesse te criativo no campo dos videoclipes. O álbum Like a Prayer (1989) reve-
legitimado a afirmação de uma moda própria, com mistura de roupas bara- lou seu amadutc~ifPento psicológico Cmusicai.As músicas falam da dor do
tas, agora Madonna pissava· a reproduzir. a imagem tradicional da ·mulher casamento d~ft"fió com Sean Peno, da culpa reprimida pela morte da mãe,
bem-vestida, bonita e magra, obrigando as imitadoras a freqüent.v academias de confliios com o· pai e do sofrimento e das dificuldades do amadureci-
. de ginástica e salões de beleza e a comprar roupas, cosméticos e jóias caras.l~ mento_ O videoclipe da música-título revela mOtivos religiosos da educação
Na verdade, dúrante. esse periodo, houve uma procura aCentuada de acade- católica de Madonn:i!.e acrescenta mais uma fase modernista complexa na
mias e dietas, com o cultivo da magreza como idcát feminino.A imagem de produção dos vidc~pdipes, qtlc serviria para atrair um grande séquito aca-
Madonna nas revistas de moda também dava o recado de que a moda de bom dêmico. Embora nos primeiros clipes c na constmção de sua imageffi Ma-
gosto estava de volta, e que a ant~moda jlash--trash já era. dona utilizasse crucifiXoS como acessórios da indumentária, o videoclipe
De 1987 a 19.89, Madonna adotou estilo e postura mais tradicionais, e da faixa "lik~ a Prayer~ foi montado principalmente ao redor" de imagens e
tentou aparentar mais respeito aos paptis tradicionais dos sexos. N.i tenta- temas religiosos. O clipe f1,1nde' religião e erotismo numa· na~tiva que exal-
tiva de salvar o casamento arruinado com Sean Pcnn, Madonná apresentou- ta o amdr, tanto espiritual quanto físico. O refrão,"à meia-noite sinto sua for-
se em vídeos de músicas românticas (True Blue), cantando as alegrias da ça, como se fosse uma prece, você sabe que vou levá-lo ao êxtase", poderia
devoção, da dedicação é do verdadeiro amor_ Resolveq descartar-se da ilna- estar se rderindo tanto ao êxtase religioso quanto ao sexual.
gem de· gatinha sexy e vadia, objeto sexual, para adotar wna imagem femi- Mado~na revela o erotismo latente na religiãO católica e o usa para
nina mais convencional. A revista ForbeS dizia: atingir fins estéticos e morais. Ela também agrega a alegria e o entusiasmo
da música gospel negra, fundindo temas e imagens sagradas e profanas, ca-
Ela com~:çou a cantar com uma voz mais gr.1ve ~: sérta, c, num vídeo de seu tólicas e protestantes. O clipe põe em contrastC imagens de um mundo in-
terceiro álbum, aparece com cabelo cor de mel e um vestido sóbrio de estam" terior c exterior, onde o exterior é o lado da violência racial e seyual, da in-
pa florida. Em julho de 1987, apai-ece lOlU'a e g!runourosa na capa da revlsta tolerância e da injustiça. O mundo interior da igreja, porém, é de amor, co-
Cosmopoiitafl, e, em maio de 1988, adorna a capa da Harpe1·"s Bazaar como munhão e bondade - fortes mensagens e imagens religiosas.'%
morena· pudica. O álbum' "True Blue" desse período vendeu quase 17_ ~ilhõcs
de exemplares, e mais do que nunca os c?mpradores tinham mal~ de vinte
anos de idade. 189 Sem dúvida hou\·e superposição de seus vários estágios, e MadÕnna não abando-
(1" de outubro de 1990) nou sua primeiru platéia nem negligenciou os interesses dda. Uma das mú~ica5 de Tt1te
Btue, ·'""here"s t!Je Party", dá continuidade à amiga ênfJ.se na libertação das preocupa·
çües da vida cotidiana por meio de farras, com refrões como "Quero soltar a alma" e
"Quem perder o comro!e'",Assim, ~obra de Madonoa sempre salienta a farn e o diver:
timento, !egirimando o hedonismo e o prazer.
188 Ver o estudo de Bordo em Schwldnenberg 1992, que vincula essa ftt.se da car<<ilra
de Madortha à produção de"cotpos plástiCos" nos ramos do entretenimento e da moda, I90 Na mesm~ semana em que Madonna lançou o videodipe dc"LikeA Prayer",foi vei-
a prolifemçiio da anorexia c de outros distúrbios da alimentação·, bem como a obsessão culado seu éomerdal da Í'epsi no qual se us.wa a letra dessa música çom uma <:olagem
por dieta$ e emagrecimento. de imagens qu~: transmitiam a ffiensagem ""beba Pepsl''. Um grupo ft.md~ntalism 'de

353
o roteiro dQ clipe.~llke a Prayer"·apresenta um negro "inocente acusa- expressão, dar o melhor de si em tudo eNão se conforme com o scgurldb '
do de um crime que a personagem: de Madonna ob.serva. Ela ·entra numa lugar, querida"), e superar 0bstáculos para atingir os objetivos.A letra usa o
igreja, sonha que faz amor com a estátua de ·um santo negro e, depois, libe_r- imperativo, e Madonna, com ar de desafio, grita "~pressem-se!" nos Pontos
ta o n!!grO inocente, passando o vídeo a apresentar imagens alegres de can- principais da música. Embora um dos versos indiqut: que 'éVocê precisa é
tosgospe~ cruzes em chamas (representando a intolerância maligna da Ku de uma mão forte que a erga ao seu mais alto nível", está claro nas entreli-
Klux Klan), velas e outras iconognúias religiosas. Nas cenas de sonho/fan- nhas, e nas in).agens que acompanham o 'videoclipe, que a "inão fone" deve
tasia, !\-ladonna usa uma combinação qu~ significa o sono, o estado onírico ser a da p'tt}p1ia mulher, e não a típica mão masculin,a.
e o erotismo, explorando o potente simbolismo e os efeitos estáticos do ne- De fato, Madonna constantemente inver.~;e._ as reJJ~~s de poder c do-
gro.As'imagens promovem integração e harmonia entre ne~oS e brancos, minação entre os sexos nesse vídeo, pondo kh~a as imagens femininas
e apresenta Madonna cantando com um coro de negros numa il:ireja de ne- engendradas pela sociedade e exibindo as fantasias masculinas que produ·
gros, beijando um negro e salvando .outro .. O vídeo, portanto,.projt;_ta uma zenl tais imagens da mull1er e da sexualidade .. Utilizando J.l!etropolís de
imagem potente de bondade e tp.oralldadc,_ de fazer a coisa certa. 191 lang como atpbiente para o clipe, Madonna inverte o tema liberal hUmanis-:
Tais são as contradições de Madonna que o uso das imagens prejudi· ta do film'e~ ségundo Morton (in Schwichtcnberg, 1992). O filme de lang
ca a merisagem religiosa, pois ela aparece de combinaç~o, dançando na represeiffi~Ílllitos entre trabalhadores e capitalistas numa cidade futuris--
igreja, e seu comportamento erótico dentro da igreja provavelmente u.ltra- ta, bêm como t':ntre pais e filhos, homens e mulhet:es. No fim, todos os con-
passa os limites convencionais da dcc.ência - na verdade, a televisão italia· flitos são superados em imagens ingênuas de reconciliação total. O dipe de
na proibiu a exibição desse videodipe devido 'à pres.">ão de grupos católi- Madonna, pelqjfontrár~o, apresenta imagens cruas das diferenças entre ca-
cos (Savan, 1993: 88). Mas, como sempre, Madonna lucra com suas contra- pital e trab~o, homens e mulheres. As imagens próximas ao ruv- do clipe,
diçõe·s, atraindo tanto os católicos, satisfeitos por ver uma ·injeção de ero- de dois homens brigando e do enfrentamento que beira à violência entre
tismo e vida em suas instituições e a dramatização de sua moralidade, f\.-lado~a e um trabalhador, insinuam a impossibilidade de reconciliação
quanto os católicos não praticantes ou os não-<:atólicos, que ficam empol- dos interesses em conflito de classe e sexo e da luta contínua efltre as elas-:
gados cotn imagens subversivas como a de Madonna beijando um negro e ses e os sexos, como se fosse a sina~du humanidade.
dançando de combinação na igreja. As imagens dos homens brigando tan1bém_ podem ser interpretadas
No videodipe de "Express Yoursclf" (1989), talvez o)on~o culminan- como uma critica feminista à violência e à brutalidade masculinas - inter-
te de seu segundo período, Madonna produz um texto modernista muito pretação que se sustenta na leitura do te>."to integr.tl. O clipe apresenta um
complexo que mexe com questões de sexo, sexualidade e dasse.A flores-- conjunto de representações patriarcais tradicionais de mulheres:no come-
ta de símbolos se revela Com imagens de uma cidade futurista. no ar, susten· ço Ma3onna está em cima de um ds:ne; depois aparece segurando um gato
tada por máquinas, inspirada na iconografia do filme modernista d~sic<? e tmnsformando-se ·em gato, que desllia pelo chão e lambe um pires de lei-
de Fritz Lang Metropolis. Madonna surge de repente em pé, sobre um cis- te. Nessas imagens Madonna se apropria de imagens femininas tradicionais,
ne gigantesco. Dirigindo-se a um público feminino (atitude raríssima), Ma- mas as destrói depois, fazendo um contraste com imagens discordantes de
donna proclama: "E aí, garotas, vocês acreditam no amor? Tenho algo para mulheres que assumem a posição dominadora masculina, mostrando que
lhes dizer sobre o amor. É o seguinte". A letra da música aftrma a auto· . todas as representações dos sexos são construtos sociais que podem ser as-:
sumidos e descartados à vontade.
direita, porém, ameaçou bokotar a Pepsi 6e o comercial não s:~ísse do ar; a empresa, in·
A imagem mais ultrajante, da perspectiva feminista - Madonna sUbju-
timicbda, capituiQt.!, provando mais uma vez que ~ direita religiosa não ~abe aquilatar gada -,pode ser interpretada como a fantasia do macho capitalista que a
imagens estêticas capazes de promover ínteresses religiosos e quo: as empresas capita· projeta numa tela de vídeo, acorrentada. É fundamental perceber que essa
listas são covardes e antiestétid:s em sua busca dõ lucro. O próprio comercial da imagttln se apresenta como a fantasia do capitalista/patriarca do v-ídeo, que
Pepsi, atacado por algWJs dos criticas de Madonna, ê.um "ideoclipe modernista' com- usa um monóculo para banquetear os olhos com o víl,ieo de Madonna acor-
plexo que merece ser interpretado na galeria de seus videos musicais.
rentada. Essas imagens estão obviamente trabalhando com . a idéia do cine·
19-1 Assim como Madonna é o veiculo de moralidade e irltegrndonismo liberal em "Like ma engendrado pelo olhar masculino, e insinuam que as imagens que reifi.-
A Prayer", no' comercial da Pepsi ela "lltlÚa"un\ grupo de estudante~ católicas, que co- .:·
cam as mulheres são projeções de homens q1,1e fantasiam as mulheres
meça a dançar quando ]o1adonna aparece, induzirldo-as à autO-expressão e a beber como objetos sexuais. Dessa perspectiva, Madonna está mostrando as ma-
Pepsi, que, no cómercia!, se equipara i\ salvação e alegria seculares.

354 355
I
II
• I • c
neiras como a fantasia e o poder masculinos relficam as mulheres, fanta- na que as pessoas produzam sua própria i<h":ntidade e se construam - pro-,
siando-aS acorrentadas.. como animais ' como
' -
belos
-,
objetos da Iuxúriâ e d11. jeto totalmente modernista que explicaremos adiante .
dominação masculina.l92 _ Contudo, mais uma vez "Mãdonna solapa seu próprio feminismo ao se
Dentro dessa exibição de imagens masculinas, porém, Madonna surge mostrar em imagens fetichistas tradicionais de mulher e ao se tornar obje-
subitamente de terno, üsando um riionóculo, e segura a virilha, denotando to para o olhar masculino, ao mesmo tempo· que sujeito com contrai~ do
"que assumiu a posição masculina. de poder e conti-oJc. '9' Em certo ponto, roteiro e do próprio vidéoclipe. Hã, então, contradições entre o femini<;mo.
ela abre o paletó com violência para revelar os seios e mostrar que a ima-- pop de Mad"õnna, sua desconstrução das imagens fen).ini.nas predominantes
gem masculina é apenas mais um construto social, uma posiÇão de sujeito e a .reprodução justamente dessas imagens. Mais uma>f,_çz, porém, Maddona
que qualquer um pode ocupar. Conseqüentemente, as imagens femininas lucra com suas Contradições, conquistando f~ espectadoras femin.istas
também são imagens ct<: sujeitç., produzidas pelo poder masculino, que as_ quanto homens, como as personagens Beavis e Butt-Head, que 'gostam de
mullieres podem optar por ocupar, ou dei:xar vagas em prol das_ posições ofuar aS paries do corpo feminino. Por conseguinte, pode-56 j.nterpt·etar seú
de sujeito masculii:l.as - oú algo totalmente diferent_e._ Essa interpretação ' hino de lib<;11ação como um texto feminiSta, ou sinlples:inente como mais
desconstrutivista insinua que uExpress Yourself" salienta a artificialidade
das imagens dos papéis dos sexos e que as pessoas podem escolher ima-
gens e construtos próprios. A letra de "Expre5s Yourself", na verdade, orde-
I ,,
umardtlc~Çjl.o dos corpos femininos pata.. o prazermasculino.
..... ,,,
~"-10.<:·/

l
,\.ladonna !U: ambição loura·
192 Desconstrução semelliantc. do olliar ma~culino cstit presente no videodipe de ·4
1986 "OpetJ. Your Heart". O cenário mostra Madomi.a trabalhando num espetáculo de Assim, Madonna produzia cada vez mais contradições. Por um lado,
voyeurismo e sendo observada por homem; desprezíveis. Parece lUll tanto distante e I apresenta . se' como feminista que tem a vida e carreira sob ' controle, e:, por
tranqüila, embora se possa interpretar que o vídeo põe em destaque as modalidades do ' outro, apresenta-se como apenas mais um corpo feminino para o deleite
voyeurismo, por meto do qual ocorre a rcificaç'io do corpo feminino. N~ssa Interpre-
1
tação, Madonna se recusa, no vídeo, a ser objeto do desejo masculino;o espectador que
I masculino e ot('rta de modelos dc·roupas femininas. Durante séu terceiro
período, na década de 1990, continuou a forçar os limites da representação
desejar VNa desse modo se sentirá constmngido porque é posto na posição daqueles
voyeurs de~pre~h-eis.Assim, embora o vídeo ofereça o corpo de Madonna como espe-
1 sexual 'e tornou-se um símbolo da liberação sexual. Ademais,-tornou-s(:
táculo, como ob)eto' do prazer voyeurista, o enquadramento das imagens dificulta a ainda mais eclética no modo de se vestir e na produção da im.agem, inspi-
visiío fetichista porque identifica o voyeuri~mo e a rciflcação do corpo feminino como rando-se em algumas di: suas imageqs anteriores, que citava Com freqüên-
partkipantes de um processo soda! que explora as mullieres para o entretenimento de cia ou, às vezes, parodiava. Nesse período Madonna também· entrou no ter-
FQ)ICUTS ridículos. . ~no 'éla política, fazendo declarações em nome das vítimas da AIDS, ' 9; dos
·susan Bordo (1992) :ttgunletJ.t.'l que o vídeO, não obstante, incentiva o espetáculo da rei-
ficação da mulher, que o espectador"não fica, realmente, deslocado e confuso com esse pobres; da preserv;tção d'ls. florestas tropicais, dos direitos femininos e, em.
vídeo", apesar das •ambigüidades" formais que contén1, e que o contexto n;1rrntivo é 1990, chegou à.filmar um vídeo "vã vota:r", ameaçando espancar quem se,
"praticamente irrdev:mte" (1992). De fato, não é possh·d concluir dt: que modo os es- recusasse a votar. Em 1992 deu apoio à campanha de Bill Clinton para a

··t
pectadores Vão introjetar o conteúdo do vídeo, e, embora suas imagens possmn.refor· presidência.
_çar o voyeurlsn\O dos corpos femininos rclficados,como afirma Bordo, o roteiro c a jus-
Depois do ronlpimento com Sean Peno em 1989, Madonna' continuou
taposição da letra e d.a.s imagens podem desintegrar o vorcurlsmo, à maneira modemis-
ta.Assin:l como "Material Girl", o vídeo de "Open Yom Heart" pode ter efeítos c apelo a explorar representações da sexualidade e dos ::;exos, desafiando no palco,
contraditórios, tanto para os críticos culturaL~ quanto para as fcminlstas;que adoram sistematicamente, as representações converidonais da sexualidade. Essa
ver des<..--onstrução e suhversão, para os homens que adorem ver corpos femininos, e fase da década de 1990 atraiu legiões de lésbicas e gays, femin_istas pró-sexo
para mulheres. que sintam prozer em identificar-se com 9bjetos de <lcscjo; sorte de·Ma- e libertárias sexuais, além de acadêmicOs, com a criaçãô de uma verdadei-
donna, cujos textos poÚssêmicos geram um amplo conjunto de leituras c púbU<:os.

193 O capita!ist:J u~a i'i monóculo para olhar Madonna em "Expi:ess Yoursclf", trnnsfor·
mando-a em objeto de fetiche ECA"ual. Contudo. como vemos no lh·ro Ltpstfck Traces ' 194 M.1donna começou a fazer shows bcn;.;ficenics em prol das yít!mas daAI.ÓS em fins
(1989), de Grei! Ma{(;l\S, o monóculo fazia parte do repertório do dadaísta Richard da década de 1980, e ~eu álbum "Like a Prayer'; c.Õntinha infor:m~ções sobre AIDS/HIV
Huelsenbeck ~ pode, ponanto, ser interpretado como símbolo dadaísta e sinal de que e conselhos ncerca de sexo seguro.Na década de 1990,porém, ela se tomou mais aber-
devemos zomhar de tod.1s essas imagens tradicionais e rejcitá:las. O Juunor, a ironia e a tamente politica,favorecendo uma série de cattsas, e <:omcçou a sç ~utódenominar"re-
caticatu.tü.ação de Madonna respaldariam tal interprewção dadaísta. voluclonáriil''. .

356
ra indústria informal de interpretações de Mad_onna que tentayam Qecifrar Densos banquetes de imagens, seus \'ideoclipes podem ser -desfruta-
suas imagens e seus téxtos. São fantásticos os extremos a qtie Madonna dos em diversos níveis, por platéias diversificadas: os adolescente;,·.podem
chegou ao ultrapassar as froriteirns das normas e.stabeleddas da represen~ Processar as músicas c as imagens de várias maneiras, segundo as próprias
tação sexual, pois ela passou a apresentar imagens de sexo inter~radal, mas- fantasias· Ós críticos de música e da: cultura gostam de um corpo-a-corpo
turbação (na turnê), !eshianismo, sadomasoquisffio e orgias, na tentativa-in- com os .;extos modernistas polissêmicos e do Uso ocasional de Cstratégias
cessante de cruzar a fronteira do sexualmente··permissívd. pós-modernas; e os estudiosos da cultura populár tentam descobrir como
.Durante a década de· 1990, Madonria explorou um tipo bizarro de e por que Mãttonna é estimada. Vemos, novamente, como seus métodos ar-
guarda-rouPa e de sexualidade, produzindo uma série de videoclipes mo~ tísticos "subversivos~ também se aglutinam_ com -lima estratégia de
dernistas coffiplexos que expandiam as fronteiras dessa forma de arte e até marketing bem-sucedida. Assim, Madonna devé<~intefpretada tanto em
levaram a MTV a cen~urar uma de suas pro'duções, "Justify my
love", em termos de suas táticas estéticas quanto de sua<; estfulégias de marketing, ~
1990, e a raramente exibir "Erotica" em 1992. Também produziu um livro suas obras podem, porcitnto, ser. interpretadas como obras de arte ou anali-
de imagens eróticas, Se.'l: (1992), e, como prodUto da culturapop, passou a sadas corho m!;!rcadorias que exploram os mercados com grande sagacida-
aparecer regularmente em revistas que intercalavam entrevistas ou artigos de. De fatq, ~~donna é interessante como um fenômeno tanto estéticO'
com imagens provocantes de Madonna em poses de ninfcta, drag, etc. Ma- quanto d~·~:fkettng, e uma interpretação multidimensional deve interro-
doMa havia evoluído: de jovem agitada, objeto sexual, passara a mulher ma- gar affi.bos os lados da equação Madonna.
dura, preparada para controlar à próprio destino e levar o videoclipe a no- Na década de 1990, Madonna tentou produzir uma identidade artisti-
vas áreas da produção de imagens. ca. Seus "ideoc4.Res foram se tornando cada vez mais cOmplexos, ou tenta:
Em seu período mais recente, marcado por wna série de vldeos de rock vam expandir as froriteíras do permissível nos papéis masculino c feminino,
bem controversos, a turnê~BlondAmbition"e o filme da turnê de 1991 CMa.- da sexualidade,.aberta, dit paródia da religião e da ambigüidade modernista.
donna:Truth m· Dare), o álbum Emb'ca de 1992, e o Girlie's Show de 1993, Em termos de indument~ria, ela às v:ezes retornava aos trajes se~ e bizarros-
i\ladonna se consagrou como uma das maióres estrelas pop c até como ~a da primeira fase, mas os misturava com alta costura, tccnomoda futurista, sa-
mais inteligente empresária dos FÁ"itados Unidos~ Sua máquina de p'uh!icida- domasoquismo chique e um pasticho põs-moderno de vários estilos, subver-
de e 1narketing continuava a despejar propaganda em ritmo furioso, e o pú- tendo as oposições entre moda car-a e barata, mais ou menos como a arte
blico continuava fasciriado com cada íninúcía da vida de Madoruta. · pós-moderna detona as hierarquias culturais modernistas consagradas entre
Mas talvez tenha sido em seus vídeos de mck do fim da década de
1980 c da dé<;ada de 1990 que Madonna gerou as mais notáveis controvér-
sias culturais, capazes de chamar a atenção de crítícos acadêmicos e de teó- poilssêmicos com significados múltiplos e exigem um público/leitor atento para. extrair
ricos culturais.jlmtamente com Michae!Jackson, ela é, provavelmente, uma sentidos do texto. Uma definição "pó:rmodernac mais recente do modernismo reduz a
das maiores~estrelaS do. rock e talvez a suprema mestra da forma. "Open tradição e os costwnes modernb'tas a elitlsmo <I e cultura erudita,encastclado em textos
canônicos nos quais os exemplos de rebeldia modernista são transfonnadas em noVl\S
Your Heart", "Likc A Prayer~, ~Express Yourself", "justify My Lave" e "Vogue"
norm;~s culturnis acadêmicas. Em oposição aos dogmas modernistas, os textos e os co:r
são obras-píimas modernistas da arte em vídeo. Rompendo com as conven· tumes pó:r!llodernos subvertem a separnção modernista emre forn1as de culrura supe-
ções dos "ideoclipes, que empregam inlagens expressivas para ilustrar a le- rior e inferior, rejeitam a tentativa de produzir textos monwnentais que rompam com a
tra, os melhores vídeos mUsicais de Madonna contêm uma estrutura multi- tradição e expressem a subjeti~idade do autor. e com freqüência dtam obras e fonnas
facetada de imagens que exigem espectadores atentos para gerar as even- anteriores em pastkhe. Muitos críticos interpretam Madonna como artista "pós-moder-
na" (ver K:tp!an, 1987, Fiske, l989a, Bordo, 1992 c muitos outros que contribuímm com
tuais interpretações complexas que prolifetan). no jogo de música, letra e
Schwichtenberg, 1992), provavelmente porque .ela atua na arena da cu!rum da comuni-
imagens. Ou, ã maneira do pós-moderrtismo, pode-se apenas ver seus video- cação de massa, mas preferimos interpretar muitas de sua~ pr-.itkas de signifidlção como
clipes como uma seqüência estonteante. de imagens, pois, como veremos tull "iuodcmismo pop" em que há emprego de estratégias estêtkas modernistas na área
adiante, Madonna emprega cstmtégias tanto moderpas quanto pós-moder· dos vídeos musicais e da apresent;~çào cm-sbows.'Ilunbêm afirm.'lmos, porém, que ela re-
nas, atraindo, assim, devotos de ambas as correntes. '9 ; corre igual~ente:: a estratêgías realistas e narr<~.tivas tradicionais em seus '\ideodlpes, e
de~cobr~nos um exemplo de estrat~gia daramente pós-moderna, que discutiremos
adi:u1te. Portanto, resistiríamos a encarJJ: um fenômeno como Madonna como "pó~mo-.
!95 Estamos usanJo o termo "modemismo' no sentido tradidqna!, de práticas culturaiS derno" em essência, e preferimos interpretar o modernismo c o pós-mo<leolismo como
que trn115gridem nonnas consagradas.. tentam produzir formas inovadoms, geram textos estratégias e_ pcitic~s estéticas empregadas pelos artistas da écna, como Madonna.

353 359
3. "alta" e a "baixa'' cultura. Não obstante, Madonna recorria à estratéglà ·cto Truth or Dare. Sua interpretação de "Material Girl" na tum~ "BiondAÍntii-·
ch_oque, típica do modernismo, no uso esquisito das roupas, da,sexualidade tiÚn", por exemplo, é pura caricatura; Madonna_e duas cqntoras tlcam sen-
c das ímagens religíosas, cspeci31mente nos vídeos de rock, textds culturais tadas numa plataforma de bóbi e roupão de banho, cantando em falsete,de-
bastante complexos que pennitem uma multiplicidade de i?-tcrpretações. safi~ado e agudo. A imàgcm põe em evidência as atividades trabalhOsas e
Para quem acha que a "arte pÓ!Ymoderna" é uma exposição fragmenta- ridículas a que as mulheres se sujeitam para ficarem "bonitas" e deboCha do
da de elementos desconeXos nwn jogo monótono e superficial sem profun- ídel}l da "material girl"(natm;almente, a própl'ia Madonna é o exemplo radi-
didade ou sentido (como era a opinião de Jameson, 1991 e outros), grande cal do traball'IO.quase sobre-humano e das despesas para ficar~bonita", 'con-
parte da obra de :Madonna não é "pós-modcma"nesse sentido.Pelo contrário, tradição que permeia sua obm e à qual retornaremos rra;:;::onclusão);
tanto seus vídeos m~'i realistas quanto os modernistas têm sentido e man- · Seus ·videoclipes mais m.arcantes são ext!~~~ntb-estetizados, em-'
dam recados, embora nos vidcodipes mais modernistas como "ExpressYour- · pregando as técnicas moderrustas da construçao 1tê unagens atraentes. As
self' o sentido seja semQre fugidio e difkU de apreender. A estratégia moder- cenas de orgia em "Justify My LOve" são abstratas e teatrais, e"Vpgue" empre-
riista de empregar as té~nicas ·de choque tem sido uma constante na 'obra de ga poses para _exaltar a pura afetação ("Faça uma pose! MOda! Mod.'t! ").De
Madonna, c, embora ela recorra à caricatura,·à ironia e ao buffior, seus temas fato, "Vogue':'plt:,rodia as convenções da moda - manequins, poses, fotografia
costumam ser bem sérios. Assim, em certo sentido, Madonna é mais moder- c reif1 c;ç~~-·~áhas as incentiva ao identificar a moda com um fenôn:'-eno de
nista do que pó!Ymodemista, ainda Que sua ·obra também inclua temas e e!Y dançâ gay c, depois, com a celebridade culturaL Por outro lado, o vtdeo ex-
tratégias estéticas pós-modernas, conforme assinalamos adiante. põe as condições de produção da imagem ao revelar as poses da mo4jl. as
Durante toda a turnê "Blonde Ambition" ,·Madonqa fez uma representa-
ção desconstnltiva, brincando com os papéis sexuais, usando freqüente-
l' figurns das est~~ e o modo como são co~s~ruídas suas ima~ns.'<f'
o video começa com penas que se dividem, com o senudo do estilo
.

mente roupas masculinas, segurando a virilha e declarando que era ela


!
i afetado e artüÍ'Cialidade, e depois apresenta uma montagem de poses, com
quem mandava, ocupando, assim, posiçÕc'i masculinas.Tamb~m fez seus bai- o grupo de dança fazendo poses de modelo. Duas criadas, ~zen do poses ao
larinos usar seios postiços, roupas femininas c submeterem-se a seu poder limpar a casa, irisinuam o desejo de criação de imagem em todas as esferas
e controle. O recado era:"masculino" e "fem.inino" são construtos' sociais qpe , da vida cOtidiana.Madonna entra em enquadramento e manda:"Faça pose!"
podem set· desconstruídos, é- as mufueres podem Ocupar posições e po,stu: c um conjunto de imagens mostra o grupo obedecendo.A letra fala da fuga
ras masculinas, e vice-versa. Contudo, como discutiremos na conclusão, Ma- da vida cotidiana por meio de poses, transformarido-se numa imagem mais
donna não subverte as relações de dominação nem oferece imagens .iguali- desejável, "você é uma superestrela, é isso que você é!" Fazer pose, insinua
tárias das relações.Assim como ocorre com a desconstrução conservadOra, a letra, está ao alcance de qualquer pessoa ("não import:)vse você é preto
Madonna apresenta as oposições binárias que constituem nossa cultura ~ ou bra:Ôco se é home~1 ou mulher'') e produz uma autotranscendênda es-
nossa sociedade, demonstra sua artificialidade e questiona a priorização de tética par--; todos ("a beleza está onde você a enconti:l").As imagens estáti-
uma das oposições em detrimento da outm, sem pôr nada de novo no lugar. cas, porém, oriundas do ramo da moda, são transpost~ para o estilo de d~~­
Por conseguinte, costuma pôr a mulher, prir\.cipalmçntc ela mesma, na posi- ça gay documentado em Paris is Burning c infundidos com ene.rgia erqtt-
ção de poder e autoridade, exercida com rigor sobre homens e mullieres. ca, E, por fim, a gal~ria de imagens privilegjadas ("Greta Garbo e ~onroe, ~·
Para des~onstruit· as oposições tradicionais entre os sexos c as rela- Bette Davis, Rita Hayworth fizeram bonito~) é ilustrado por imagens da pro-
ções de poder e dominação, Madonna recorre à ironia, ao humor e_ à paró- pria Madonna fazendo poses que ímitam as celebridades acima.
dia, a fim de tocar nos pontos sensíveis do "masculino" e do "feminino" e
·provocar reações à i{~ versão das imagens e aos estereOtipas tradicionais e
à sua troca e mistura nos sexos do futuro, que talvez sejam múltiplos, e não

I
do inatural. artilidal, exagerado e irônico, brincando com fonnas e imagens culturais,
binários. Re<Ílmente, desde o início houve forte mistura de ironia c sátira na contendo alto nível de teatr.llidade (; tmvestimento (1969, 277ff.)- excelent~ cam.::t<:.-"-
obra de Madonna, e suas apresentações ao vivo foram-se tornando cada vez rização pa estética de 1'1-ladonna.
mais caricaturais, '><i como ocorreu com a dramatização de sua carreira em 197 Da mesma forma, no vídeo"Open Your Hean", Madonna exib(' a produção da rei-
ficaçiio e fetkhização das mulheres ao se apresentar num espet:ÍC.lJ\o de voye~is.mo.
I Recorre a imagens reifkadas e n1achisbs de mull1eres, mas as enfraquece ao· e->::Jb~r as
196 Com relação à crricaturização, vt:r Susan Sontag, que a defme como sensibilidade origens da'feÚchização dos corpos· nos salões de b'aile reles e nos olhares voy~unstas
"inequivocamente moderna" (note bem: n.'lo "pós-moderna), ca:racteriz.'tda pelo gosto
...I' de homens marginais e "tarados".

360 361
1\-ladonna tem sido acusada de se apoderar de imagenp e fenômenos '
Madonna continua a superar-se e a romper os limites do pennis;sível, a uti-
(como da_s modelos e da cultura gay) e utilizar imagens e estilos fora do lizar estratégias estéticas modernistas de excesso, choque, espetáculo e tea-
contexto Original. Também foi acusada por críticos negros de usar muita tralidade. Na turnê "Blonde Ambition", Madonna produziu um viSual futu-'
mÍlsica negra c bmitir as referências aos negros ou a pessoas. de cor, na ga- rista, adotou uma tecnomoda esquisita, sugerindo uma nova síntese de tec~
leria de imagens de "Vogue". Com relação à' primeira critica, pode-se argu- nologia esq humano. Com o cabelo louro bem preso atrás, um microfone
mentru· que Madonna empenhou-se ao máXimo para "normalizar" a sexua- preso à cabeça e o c01-po enfeitado co~ bustiês e roupas futuristas criadas
lidade gay e lésbica na cultum da comunicação de m,assa, e é, de futo, idoc por )ea,-t Paul <i'ãultier, Madonna parece outra espécie, up novo tecnocor-
latrada por muita gente das comunidades gay e lésbica. Da mesma forma, po, elabora.do para o próximo século. _ _,,:~, . ,
ela poderia reagir aos críticoS negros dizendo que fez o máximo possível O show "Bionde Ambition" também apresàt'f~Wailarinos com seios
para promover a música, os bailarinos, os cantores c os músicos negros (e postiços e bailarinas com pênis, insinuando uma nova espécie ·no tecnofu-
hispâniéos), enquanto tentava romper as barreiras entre as mças. Poderia turo, que subverte limites anteriores entre homens e mulheres. Ao segurar
também responder que seu pa·nteão em "Vogue" é uma galeria gay que con- a virilha durante o show, uma Madonna arrogante se apresenta como sím-
tém precisamente quem ela cita. bolo de poder:! e;'Sexualidadc. Os nÍlmeros de dança também exploram tra-
Por outro lado, também se pode argumentar que Madõnna, em Íllti- jes esquisit"~-~~~sexualidade expUcita para éo~Stituir sua identidade de
ma análise, privilegia a brancura, c que as pessoas de cor ao seu redor figura iéonoclasL'l. de transgressora das csmvenções consagradas. Ela, no pa-
simplesmente salientam sua brancura distintiva. Ademais, os vídeOs e as pel da artista modernista bem-sucedida, defme novas normas ao romper
apresentações em s}Jows são réplicas do poder e da superioridade dos com as antigas. -~ . · ,
brancos, mostrando que Madonna está no controle total de todas as pes- Seu álbum Erotlca de 1992 e o livro Sex assinalam que Madonna_-pode
soas·, ofuscando-as e dominando-as. De qualquer forma, a complexidade e estar caindo nu~a armadilha capaz de torná-la tediosa e previsível. As mú-
a sensibilidade das questões raciais, sexuais, de preferência sexual e de sicas do álbum e o vídeo musical "Erotica" empregam algumas imagens e a
classe que Madonna desafia demonstram a coragem de abordar temas con- -l se~ualidade espalhafatosa de "Justify My Love" e suas provocações sexuais
troversos que poucos artistas famosos do cenário musical atacam com a anteriores, mas não desbmva novos territórios. O livro Sex é uma vergonha:
sua constância e provocação. as fotos são impressas em papel barato, a·capa é de alumínio; e a encader-
"Vogue" contém imagens de espartilhos c sutiãs e da desconstmção nação metálica quebra-se com fucilidade (segundoi.o dono de uma livraríà
dentro/fora da-moda que se observa nos vídeos é. nas apreselltações ao - que nos mostrou diversos livros devolvidos).As fotos de sadomasoquismo,
vivo de Madonna, nos quais sutiãs, espartilhos e calcinhas são usados por em especial, são maçantes e prevísívds, e o texto, que supostamente relata
fora de blusas, ~~ias ou conjuntos, insinuando que toda moda é artificial. as "fantasfas sexuais de Madonna", também é vulgar e nada erótico. 19s Os
Suas imagens declaram que espartilhos, sutiãs e outras peças comuns do-. trajes dessas obras têm a intenção de chocar e provocar excitação libidino-
vestuário feminino são símbolos da submissão feminina aos modelos cultu- sa, mas hoje em ·dia essas imagens são lligar--corimm.
rais, que podem muito bem ser usadqs por fora para tornar vi~ível a escp.- Em seus melhores videoclipes, porém, Madonna surge como desbra-
vidão. Por outro lado, esses símbolos da subjugação feminina pelos P>!-drões vadora modernista de fronteiras. Sua idéia de arte privilegia a auto-
da moda se apresentam de maneira erótica na iç;:mografia ~de Madonna, expressão, a experimentação, a .derrubada dos limites do bom gosta: e o
mostrando que os símbolos da opressão podem ser transformados elu rompimento de fronteiras para ingressar em novas áreas da experiêqcía e
símbolos de deboche e de pra.zer libidinoso. da representação. Madonna continuava a estabelecer novos ll.mites·p~ a
A desconstmção modernista de Madona se disseminou por intermé- cultura pop e a subverter regraS, convenções e limites estabelecidos. O uso
dio de uma estética do choque e do excesso, def,inida pelo modo de vestir--' que faz· do· guarda-roUpa e da sexualidade, em especial, destrói normas e
se, pela postura e pelo comportamento. Havia, é claro,· motivos mercadoló- convenções anteriores e define sua identidade como iconoclasta modcrnis-
gicos para a adoção dess~s estratégias: elas geram uma imagem, chamam a
atenção e vepdem. O narcisismo intenso é aind~ mais evidente como ele-
mento essenCial do fenômeno Madonna; esta, na década de 1990, po<Je ser 198 É' dt" st" presumir que essa st"ja apenas __uma opinião pessoal. Um jornalista des-·
interpretada como uma tãbtica de imagens na qual sua própria inlagem é C!'(.''>' e como _chegou ao orgasmo mastutbando-se e vendo as fotos, assim como Caro!
A. Queen em Frank and Smilh (1993: 139), texto dedicado ií discussão dO ''evento"
o sign 'ficado de seus textos Ínusicais e de outras produções de imagens. do livro.

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ta. Por ôutro lado, até agora-suas atitudes modernistas foram muitíssimo mires convencionais do vestir-se e compottar-se.Tal postura dá às pessoas·
bem-suci!didas do ponto de vista comercial, e Madonna se afirma tanto forças para se vestirem e se comportarem como quiserem, pru;a se'rem o
como empresária quanto como artista iitteligente. , que quiserem, ao mesmo tempo que as escrnviza à necessidade de criar
Por const:guinte, é preciso compreender o "fenômeno Madonna" uma imagem, de ter pose, de construir a- própria identidade por intermédio
como empreendimento comercial. Em abril de 1992, divulgou-se ainplamen- do estilo, obrigando-as a se preocupar com o modo de vestir-se, com a apa-·
te que ela havia assinado um· contrato de US$60 milhões com a ;nme- rência, ccim a reação afueia à sua imagem.
Warner, que iria comercializar seus álbuns, vídeos musicais e fdmes e lhe O fcnôÕl:êno Madonná indica que na cultura da publicidade consu-
oferecer um grande percentual em direitos autorais, capital de giro e a opor- mista a identidade é construída por intermédio da ima·g~ e da indumen-
tunidade de promover o trabalho de artistas jovens_ Empregando terminolo- tária, que abrange o visual, a pose c o estilo. A il!~de não tem nada de
gia modernista, Madonna disse que interpretava o contrato como a oportu- /) profundo, como supunham as teorias modernas, que presumiam um eu es-
nidade de prodUzir um grupo de artistas çolaboradores que constituiriam sencial,' ou o projeto de criação de üm eu autêntico. Embora para Heideg-
um "acervo de idéias artísticas", o que seria uma mistura da Bauhaus, que re- 'i ger Selbstãndlgkeit (a identidade, a constância d~ si) e. Wiederholung (re-
volucionou a arte, a arquitetura e o desenho industrial na Alemanha da dé- petição,respfu!>;t perante a morte de uma_ escolha fundamental de identida-
cada de 1920, com a fábrica deAndy Warhol, que reuniu artistas do cinema, de) const'f%il~m o eu e a ide-ntidade autênticos (ver l}ellncr, 1973), para
da música, da pintura, da moda e outros artistas contemporâneos a partir da MadoÔna a construção da idemidade pós-moderna, imagem e a identidade
década de 1960 (NewYork Times, 20 de abril de 1992,Bl).AForbes relatou são transformação, recriação êonstarite do própriO visual, pose chocante e
que, no período 1991-2, Madonna recCbeu uS$48.000.000, o que a tornou, mutável. Está cl~ e é curioso o fato de J\1adonna ser"autêntic;;L"no se~tido
novamente, uma das artistas mais bem pagas do período (28 de setembro heideggeriano, <p<;>is aderiu com determinação a esse projeto depo1s de,
de 1992). As jogadas artísticas, indumentárias c idcntitárias. de Madonna uma década de indumentária, imagens e poses chocantes e de comporta-
compensaram e chamam a atenção para o fato de que a cultura de massa é mento iconoclasta, tudo o que criou e promoveu "Madonna".
cultura comercial, que vende mercadorias culturais par-a as platéias. Além disso, para Madonna, a indumentária e a identidade são insepa-
ráveis de suas práticas estéticas; do cultivo de sua imagem nas músicas, nos
vídeos, nos filmes, nas apresentações na T\1,' nos Shows e em outros inter-
t\1ADONNA I:NTRE O \IODERNO E O PÓS-;\-'l'ODERNO venções culturais. O emprego que Madonna faz da moda e da sexualidade
é estruturado por uma estética da criatividade, da produção do próprio vi-
No tocante ao uso da modas e da sexualidade, a mensagem cumulati- sual e da próPria identidade. Seu método está vinculado a uma estética do
va de Madonna parece ser de que podemos fazer, dizer e ser o que bem en- excesso~e, até hoje, Madonna continua a ultrapassar as fronteiras do pcrmis-
tendennos.A construção da própria identidade começa· com o vestuário, 'Sívd, para subverter e u··,msgredir as frqnteiras convencionais da moda e da
com o"visual". Nesse caso, o recado é que se pode usar qualquer coisa, que atle. Nesse sentido, a suposta l\-l.adonna pós-moderna está interpretando
'tudo combina, que é possível construir o visual com materiais da prÓpria uma estética pós-modCrna. De fat~, uma reflexão mais ponderada e teorica-
cultura. O uso exagerado que Madonna faz da indumentária, apresentando- mente itúo_rmada do fenômeno Madonna pode desconstruir, ou pôr em
se com as roupas mais extravagantçs e excêntricas que se possa imagin~r, questão, certas distinções entre o modernisino e o pós-modernismo. Mui-
sugere que a moda não é um código rígido, não é um c'onjunto de normas tos discursos acadêmicos deixam de conceituar o modernismo e definem
ao qual seja preciso obedecer, mas \lm campo da inlaginação e da criativi- como "pós-modernas" estratégias típicas da estética, dos métodos e das me-
dade no qual se pode construir qualquer imagem que se queira. tas modernistas - ou teorizanl inadequadamente o "pós-moderno".
Naturalmente, o fato de Madotma vincular imagem, indllmentária c . Madonna foi teorizada con~o "pós-moderna" devido ao uso de estraté-
ide:ntidadc também declara que é no visual, no modo de se vestir e de se gias de simulação e pastiche,à implosão das fronteiras sexuais e raciais e ao
maquiar que está ancorada a idep.tidade - afirmação discutível. Mas, uso da ironia Cda caricatura (ver os artigos de Schwichtenberg, 1992). Não
segundo intimação de Madonna, a indumentária não é suficiente: é preciso obstante, a implosão de fronteii"'JS,,a ironja e a caricatura constituem estraté-
·fazer pose, fazer moda, elaborar uma "postura", comportar-se de certa ma- gias modernistas, e Madonna, de fato, t;ecorre de maneira consciente e
neim. O estilo Madonna é o excesso, o chdque, a ·transgressão de limites, à constante a estratégias modernistas, apresentando sua obra como arte~éria
cónstante novid:lde. O estilo Madonna é chamar atenção transporido os li- e transgressora. Na ·entrevista de 1990 à Nigbtlíne e no filme rruth o r Dare

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de 199l",Madonna define seu trabalho como "artistico", afirmando que Sere- e sexualidade, desafiando os estereótipo~ convencionais (NetV York-Times,.;
cusa a fazer concessões em sua integridade artística. 'núnbém declara que 14 de dezembro de l990,Bl).;w\T<lmbém nós salientamo~ que Madoima in-
pretende COlJtinuar a "tocar em pontos fracos", Ser"política", ultraf>ass~ os· verte as relações de poder e domínio, apresentando fo~es imager:' afirmat_i-
limites convencionais e criar obras de arte nm"'aS,e inovadoras- tudo mttas 1' vas de mullieres. Mas podé-se argumentar que ela apenas transpoe as rela-
'' ções de dominação, invertendo os papéis masculin~s e femininos, e~ vez de_
,,_l
e valores conscientemente modernistas. 119 Por conse'guinte, embora haja
quem interprete Madonna como "pós-modÇrna" à luz do uso que fuz das ca- dissolvê-las. Em suas apresentações, as bailarinas sao meros acessónos que
tegorias baudrillardianas da simulação e da implosão, é preciso ter consciên- ,,'i' e!~ domina e cólt'U-Oia, encenando rituais claros d!!- dori'linação no palco. No
vídeo do HBO da turnê "BlondeAmbition", de 19901 por exé~plo, ela cons-
cia de que Madonna pode também ser interpretada como modernista.
Em grande pane, teorizar sobre o "pós-moderno" é tão superficial e
unidimensional quanto os textos e os métOdos descritos dessa forma como
l
I tantemente se coloca em posições de poder e contf.u~ob&"os bailarin?s
(homens e mulheres). Nas cenas de sexo simulado do shOw, Mad?nna estava
"pó~-modernos". Um fenômeno complexo· e provocador como Madonna i quase sempre por.cima. e, em sua abominável cena de m~s~urbaçao/o~smo
põe em xeque as categorias e os compromissos estéticos. Contudo, ,J
i simulado de "likc a Virgin", os baihrinos primeiro a acanoam e dcpots desa-
Madonna não recorre a um conjunto muito amplo de estratégias ·estéticas parecem, enqli~l1~_4:!=1a se est~ebucha num ~rgasmo exagerado. ,
e, portanto, se a definição de "pós-modernismo~ for um conjunto de costu- Em reaç'âP 'lr:tssa critica, pode-se argumentar que Madonna esta _cons-
mes culturais que combine formas e temas tradicionais, modernistas, pós- tantemente ironizando as relações de domínio, pondo seus mccamsmos
modernistas, então é posSível interpretar Madonna como "pós-moderna". em evidência c. conforme explicamos na interpretaç~ de "Express Your-
Entretanto, deve-se reparar até que ponto ela se baseia em estratégias, 'ima- self", subve 1-.:endo~,ao revelar a artifidalida~e: o ca~tcr de construçã~ e
gens c formas modernistas clássicas nos videoclipes e nas apresentações a reversibilidade das relações de poder e domuuo. Porem, em suas relaçoes
mais impressionantes dos últimos anos. Ela também tem um vasto repertó- cotidiahas "reais" ~om o elenco, os anúgos e a família, no documentário
rio de videoclipes "realistas", nos quais as imagens são meras ilustrações da Tt-uth or Dare (1991), ela também se püsidona.como m,ãe da equipe e está
letra da música e narrativas realistas para acompanhar letra e música (por constantemente atlrmando seu poder sobre todos, não raro admitindo ~m
· exemplo,"Papa Don't Preach", "Uve toTell", "Oh, Fathern, "Titis Used to be cntrcl-istas qne é"mandona" e "controladora" Antes de ~ad~ apresentasao,
My Playground" e "Rain"). E, em "Fever", emprega estratégias pós-moderÓas Madonna faz uma "oração", mais ou menos como os tecmcos de futebol
explícitas, nas quais a letra da música, sucesso da década de 1950, é canta- america~o ao prepararem o time para entrar em campo e, ganhar (numa se-
da de maneira enfadonha sobre imagens abstratas de uma Madonna de qüência, ela encerra com Uma ordem para que os subordma4os entrem em
bronze e eletronicamente distorcida, apresentando uma superfície plana cena e"matem a pau").Janto nas cenas de trabalho quanto de laz~r _do fil-
de imagens desconexas sem significado mais profundo. me Tt-uth Ór IJ(:u'l?, Madonna está claramente no comando,:!"- mustca _de
Embora algumas pessoas tenham acusado Madoillla de ser antifeminis- abertura do documentário do HBO a apresenta com um chtcote na mao,
ta, uma dcsgra~ja para as mulheres, outras a louvaram como a verdadeira fe- declarando "Quem manda aqui sou eu!~
minista dos nossos tempos e um exemplo para as jovens. Camille Paglia, por
exemplo, exaltou Madonna como "verdadeira feminista" e· ideal de mulher 200 Quando Paglia rotula Madonna de"vÚdadeira feminista", salie~ta o do~mat~s~o e
forte, independente e bem-sucedida, que ftrma com êxito seu próprio poder --o e:ssencialisnw que caracteriza a sua própria ubra. Para ela, extste .W:• femnusmo
verdadeiro", e Madonna o representa, desconsiderando-se outras fcmuustas. De futo,
existe uma multiplicidade de 1nodelos de feminisJnO, e rotular tlffi modelo de
199 Na entrevista à Nlgbtlitw de 1990, Madonna defende "Justify My Love" como arte, •\'erae1ro,un
d d · ·· · pJ'•,•d•
h .... v
que o resunte seria espúrio, é, em si, uma
. atitude
, arrogante, e
como"expressão artí~tka",afunmodo:"Acho que arte é exatamente isso, I:Xperilnemar, dogmiitka, pois é Paglia quem defme que é "feminismo ':erdade~"; IS~ ll~c _pe'!mte
mas é uma expressão, e a minha e.'<pressão artistiea" (com-relação à fantasia sexual). Ela aucar diversas versões do •feminismo fu!so". Paglia mml;lem teortza o fenunmw e?
também admitiu "chegar aos ümires do que é permiSsível". Em TI'Utb OI' Dare, fala de "masculino" essenciais e genuínos, oposto5 binários que~"- ~cre~ita consti~ire"m o~~­
recusar-se a compromete•· a "integridade anístka" de s1ia obrn quando ameaçada pela cerce metafísico da cul_tura. De fato, conforme argumentavamos, masculino e fenun~­
polícia em Toronto, que exigia a atenuação da Ct:'na de mastw:bação do show. Em con- no"são construtos ~ociais.Ademais, simpl~smente.existem inúmeros modelus de felm-
V'ersa postcorior sobre o filme, ela disse que cpminuatia â '-rocnr em pontos sensíveis", nismo com seus respectivos pontos fort~s e fracos (o que não significa -a existêilda.de
a explonr os limites do permissive1 e a ser polític<t, Por fm1, numa entrevista de 1992 ~ '· ·
um .enumsmo -'~de'~")
"vc,u~ uv . D••"<"'"''o<<na
~ " ,..,. '' , existemmodelosdiversosdemasculinl-
_
ao jornal USA Today, Madonna define-se como ·~revoludon.'íria", categoria suprema:da dade c feminilidade a circularem pela sociedade contempo~ea,e não um "masculino"
t<coria e da política modernistas (9 de outubro de 1992,p. D'l). e um "feminino" essenciais. '

367
365
Pode-se, naturalmente, argumentar que o filme T1·uth 01' Dare 'ê, ele-- pós-moderna. Em sua coleção de vidcoclipes de 1990,Anderson apresenta
mesmo, uma encenação que desconstrói o próprio gênero de docu'mentá- um "clone" mascu!ini:l de s,i mesma para ajudá-la na produção e na pubiici·
rio, solapando a opos!ção entre basti_dores e ·palco (Pribram in dade, e depois cria o clone de .uma mulher, e ambos os clones são bem gro-
Sdtwichtenbcrg, 1992). Para a comitiva de Madonna, os bastidor"es são pai-' tescos. Madonna segura a virilha c se pavoneie num terno masculino para
co, com a oniPresente câmera captando cada nuance de Madonna, e mui- simbolizar que assumiu as prerrogativas ~âsculina<;,_ o po4er fálico, ao
tas pessoas de seu Círculo estão obviaÕu~nte interprctàrido pa~ o ftlme passo que Anderson usa aparelhos eletrônicos pam -bai.-xar o timbre em
que está sendo feito. Não -obstante, pode-se argumentar que as imagens, uma oitava c 1tssim produzir voz masculina - mas uma voz masculina inse-
cenas e comentários da família, da equipe, dos amigos e dos fãs encerram gura, ambígua, que denota a fragiliçiade da identidade P-f<SJ>Oal e sexuai.Vcs-
aspectos da "Verdade" de Madonna e apresentam perspectivas da "verda- 'te-sc de maneir--a wdrógina e às vezes assume {!g~Hda'<andrógina·, elimi-
deira" Madonna. Pois o que é Madonna, senão oS efeitos que ela produz é nando a diferença entre "masculino" e "feminin6~amhos construtos so-
_gera, a persona pública que _ela está sempre construindo? E a única coisa ciais), enquanto Madonna é invariavelmente "mulher", mesmo 9uandO.as-
que transparece com freqüência, reforçada por suas inúmeras entrevistas sumc o poder masculino (como quando desnuda os seios depois de segu-
e apresentações musicais, é que -Madonna está no comando, que ela domi- rar a virilha n& trecho de "Express Yourself'', em que apareL-e de terno,
na completamente todos que a cercam."'1 como s~ ~~:SSe"\rejam,-sou mulher mesmo"). .
Os textos de MadÜnna são sistemas de significação em que abundam
signUlcados e mensagens polissêmicas. Suas apresentações nos videoclipt;:S
l\'ladonna e l.aurie salientam os si15,2_ificados das palavras ou usam imagens que dcstrua~n ou
subvertam o significado da letra - conforme escolha dela mesma. Os v1deos
Nesse aspecto, pode-se contrapor Madonna à artista performática de são sempre cd'mplexos sistemas modernistas de significação a exigirem
vaHguarda Lauric Anderson. Enquanto lVladonna quase sempre se apresenta interpretação, possibHitando leituras polivalentes. Madonna é uma máqui-
como sujçito soberano a dominar o ambiente c a controlar os circtmdantes na de significados, c suas apresentações expressam ideologia, ideais c men-
Luuic Anderson apresenta imagens mais igualitária."> de rdacõcs sociais :E~ sagens pfóprias. Na verdade, um dos níveis de significado sempre expresso
Ho-me of tbe Brave, documentário de 1986 de seus espetá~ulos,Ande~son ém SeuS vídeos e em suas apresentações é quC Madonna é realmente1 uma
desliza en~c interação e ausência de interação com os membros dit equipe, superestrCia, que Madonna é. legal, que Madonna é rainha. A narcisista men-
o que não raro privilegia os· outros artistas, ou se apresenta cantaHdo e dan- ção a si própria e a autopl'omoção em suas apresentações talvez sejam o
çando em conjuHto, pondo-se às vezes de lado e outras 1.-'t:zes fundindo-se significado subli.m1nar de suas imagens, que significam incansavelmente:
com o conjunto. Madonna, ao contrário, Sempre domina o elenco e está "Madodna! Madonna! Madonna!''
sempre no centro das ateHções; os números musicais_) destacam os seus ta- A inteq,rctação de Laurie Anderson em Horne of tbe Brave, ao
lentos, a sua importânCia e, principalmente, o seu estrdismo. cont~rio, apresenta fragme~1tós de significados que não se juntam em ne-
Madonna é, portanto, o sujeito moderno soberano c egocêntrico, Hhum sistema claro de significação. Seus textos, portanto, rompem num es-
sempre no comando, sempre no controle, ao passo que Laurie Anderson é tilo pós-moderno a çadeia de significações, e suas imagens e seus sons não
1
mais fmgmentada, di.:;persa e descentralizada, à maneira-da subjetividade se relacionam nem configuram nada em especiaL Em vez disso, apresentam
uma colagem de significanteS desconexos, de sons e imagens que não têm
significado, ou que simplesmente apontam para si mesmos. o objetivá de
201 A própria Nadonna sallenro <::om ti:cqüência o elemento controle, como na entr<::- suas ap,resentações é a própria apresentação, no momento, e não produz
~~staem que declara:
nenhuma declaração, postura, mensagt~m ou ·ideologia em especial - ao
Em gemi se ::t<::ha que qu!:m é sensual, bonita e provocante provavelment(e n.'io contrário de Madonna, que está sempre esfregando na cara da plat~ia sua
tem mais nada que. oferecer. Semp1t1 existiu essa imagem de mulhet. E, emborn mais recente declaração ou mensagem."" L'lurie Anderson, port~mto, repre-
possa ter parecido que eu estava me comportando de maneira estereotipada, na
verdade. eu est:tv:l,ao mesmo tempo, fazendo tudo calculadamente. Estava no <Xl-
mando de tudo o que faúa, e acho que as pessoas ficaram cnJ,1fus;\s qúandn per· 202A síntese anterior dos espet:iculo5 de LaurieAndernon, United States, com d~_:~rnç:ío
çcber:uu isso. de cinco horas, continha mais coment~tios sociais, refl~i'ics sobre a cultura, a socieda·
(Apud .\kC!ary- in Sem:on. 1993: 102) de e a tecnologia, e talvez uma visão individual mais nítid-t do que as imagens dispcr"

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senta uma desconstrução pós-moderna da expn::ssão e da identidade, frag- corÚAndcrson, onde ·os seres humanos intplodem com a tecnologia, in~tru- c •

menta e dispersa suas imagens e sons, c resiste à criação de sistemas de sig-- mentos conhecidos emitem sons estranhos, com mediação detrô.iuca ~·
oificação. Ob~dcce à ordem de David Byrne, "Pare de fazer sentido" ("Stop nada é e."'l:atamente o que parece. A prÓpria Umrie Anderson não raro 'se
Ma~g Se~tse") e, ao contrário, faz e_spetáculos que são simplesmente O aprt!senta como cxtratérrestre, e seu Obermensch nietzschiano (assinalado
que são - espetáculos. em: sua música pop "O Superman") é uma síntese interessante entre huma-
Enquanto Madonna está sempre se exibindo ao redor çie mundos co- no e tecnológico, uma nova espééie de tecno-hlunano que produz novos
nhecidos e cotidianos (ou explorando os espaços utópicos d3. fantasia se- sons ou, corno-. o define Sayre, "um 'noVo ruído'( ... ) num novo território".,
'xual),Anderson nos leva a mundos completamente novos, visões, sons e ló- (1989, 155).
gica diferentes. A piatéia entra, então, numa paisagem 'nova e pós-modefna · De fato,Anderson destcrritorializa os cspãçQs-.9-e sti'<f-apresentação, es-
paços estranhos, conquanto conhecidos.Tarttbéni~ncentra a atenção nos
instrumentos musicais tocados e, cOm um conjunto de gestos explosivos,
sas e descentralizadas de Home of tfJC Brave. Isso decepcionou alguns críticos que ti-
nham escrito sobre a turnê precedente ao filme: ·
funde o humano c orgânico aos instrumentos inanimados. Gravatas trans-
fórmam-s~.~m\pianos que emitem sons elétricos, as guitarras tornam-se or-
Decepcionante foi a natureza fmgmentária da noite. Com seu monumental gânicaS, ,.4glando-sc ··e agitando-se, enquanto os ser.~s humanos se fun-
"United States" de quatro atos, duas noites, apresentado três anos atrás na
dem com a tecnologia ou se tornan1 meras sombras e imagens fotográficas.
BmoklynAcademy o f Musk,Andersonlevava a crer numa afim1aÇão mais ampla
do que a de cada wna de suas músicas, individualmente. Agora, talvez enJeada Muitas das apresentações de Anderson são extremamente atraentes e emi-
pelo clima ou pelas concessões dó mundo do rock, parece que ·resolveu fiCar tem imagens e _Sons intensos e estranhos que quase sempre têm cérta fas-
pura e ~tmplesmeme <'Om as tn{•sicas, O programa da turnê tem um título, cinação e pode"í~'Embora as imagens de Madonna tenham significado e exi-
'·Natural HistoJi·~,mas parece que isso não quer dizer nada, e as músicas não vão jam interpretaÇão, as imagens de Anderson resistem à interpretação. Sua
além de sua aura andersoniana generalizada.
arte é uma erótica de superfides e um jogo de luzes, sons, movimentos, pa-
(]ohn Rockwell,Newl'hrk 11mes, 4 de março de 1986:C13) lavras e interpretação. Seus textos n.'io são, portanto, polissêmicos; resistem
O critico obviamente não entendeu que, do 'modernismo e da cntica social de "Un!ted à interpretação e se comprazcm no jogo e na desconstrução de significado
·States",Anderson passou ao pós.modernismo de Home of the Bm/)q. Um crítico do fil- que lhe são próprios.
rne e~crcveu; Madonna costuma explorar os gêneros conhecidos de música popu-
Eu e~pernva que Anderson desse prosseguimento aos aspectos mais sérios de lar, ao passo que Anderson mistura pop, jazz, blues, gospel, clássico e
"~nited Smtes" em seu mais r~ceme traballlo, aprofundando os comcritários " · outros estilos com novos sons eletrônicos e ·imagens geradas por computa-
sobre a~ fraquezas pessoais, sociais'e Cl~turai~ dos 1_10ssos tempos.llfas ela agora· dor paf:t produzir uma nova arte performática multimídia - uma implosão
parece menos interessada em cdticar nossa era de alta 'tecnologb• e baLw intros.
pós-moderna qe arte "superior" e "inferior" e gêneros musicais conhecidos.
pec.;·ão do que em expressá-la como um espcHlo consciente. Em seu filme, Í:.au-
ricAndcrson, a "artista performática", tornou-se LauricAndenlon, a ~:strela pOp::. Em certo ponto de Home ojthe Brave, ela diÍ: "Bem-vindos à difícil arte"e
fazeudo um grande espetáculo, mas concentrnndo-se totalmente 11a furma, e ·não interpreta "Language is a Vírus from Outer Space". O acompanhamento mu-
na, substância. sical mistura cantores de blues, um saxofonista de jazz, percussão de rock,
(David Ste!.Titt, 1be C!Jrtstfan Sclenc_e Montto1; 2.de inaio d~ 1986:-2,5) guitarra e piano, tudo junto num som pop híbrido. Palavras e imagens pis-
cam na tela na modalidade multinúdia que Anderson emprega, e na conclu-
Esse crítico também não entendeu; ou Seja,Anderson dern uma guinada r<?s.modema,
desconstruindo identida<le e texto, fragmentandO c dispersando imagens e sons. resis·
são .ela emite sons batendo na cabeça c rangendo os dentes.
tindo ao signific~do, ao sentido e ao comentário sodal. - Em certo sentido, a obra de Anderson não é tão dificll; é apenas dife-
Comudo, está claro que da logo retornou a questões mais políticas no grande espetá- rente: seus fragmentos não se coneCtam, ela opera num outro continuu'fi!
culo_ seguinte, "Empty Pbces"; ver "Laurle Ançlerson Gets Politica!", d~: Da\id Sterrltt, espaço-tempo, e suas apresentações têm como objetivo a alteridade e a es-
The Onistfan Scle11ce Monitor (25 de' outubro d"e 1989).Ademais, em seus espetku· tranheza, e não a forma, a harmonia c a simetria clássicas, ou a proliferação
los de l99l.da pa~sou muito tempo falando de sua oposição à Guerrn do GoUÔ.Andet-
rrÍodernista de significados. Gestos, sons, imagens e interpretações, ao
son deu continuidade aos experimentos pós·modernos em sua coleção d~ videoclipes
de 1990, mas tambêm voltou à critica social moderlili;ta.Assim, modernismo e pós-mo-, contrário, são simplesmente estranhos e não comunicam absolutamente
demismo sào ütratégias estéticas distintas que podem ser utilizadas para fins distinto:; nada - ou seus significantes comunicam simPlesmente a si mesmos, nada
ou combinados, à vontade. · ' mais. Contudo, em estilo bem típico da vanguarda, Anderson questiona o

371
'que de fato é arte- e especialmente a música e a performance.Assim como terior de Anderson em United States. Madonna, por sua vez, é un\a 'ináqui-
John Cage,Anderson parece ins-inuar que o próprio som é música, e t~s­ na de comentários e·se apresenta constantemente como uma revolucioná-,
gride todos os limites musicais ao miSturar sons conhecidos com sons eie- ria .cultural engajada em críticas sqtiais, ~a inovação da cultura e na promo-
trônico._<;_ novos. Da mesnia forma, a interpretação em Hom"'e of the Bra~ ção de mudanças sociais. Isso .nos leva às reflexões fmais sobre a poütíca
combina números musicais com narrativas, trechos da vida cotidiana,· de Madonna e a seus efeitos.
drama, comédia e multimídia.
Assim, em estilo de vanguardà, Anderson emprega algumas técnicas ' """"
A rnáquina de contradições chamada I\l,:.t~ionmr
pós-modernas para interrogar o que ~ a arte e ampliá suas fronteiras pqr
meio de performances. Suas apresentações não acarretam a produção de l.~""'""' .,,~ '
significados unificantes, e seu "texto» é, portanto, todo fragmentado, com Seja qual for a ~verdade" de MaP,onna (veifuide sem dÓvida inacessí-
momentos de euforia, mas sem signifiCado mais profundo. Quando ela diz vel em sua multiplic~dade), está claro que seus vídeos musicais e suas apre-
"LanguagC 'is a Virus From Óuter Space" ("A linguagem é um vírus do eSpa- sentações em sbows estão sempre encenando relações de pode!"' e domí-
ço"), citando a frase de William Burroughs, que sobe ao palCo imediàta~ nio, e n~p.p(.expressám relações igualitárias, rcdpr.ocas ou comunitárias,
mente antes da apresentação para recitar alguns comentários tipicamente Quan't.O..~I:zsche, a vonta~e de poder está n~ ~mago do universo ·de Ma-
burroughescos sobre olhos, imagens e representações, seguido pela inter- dollna, que representa a st mesma como SUJeito dessa vontade, como
pretação de Andcrson e elenco, não há introspecção profunda na lingtla- .centro do poder e sujeito todo-podq:oso.Assim, embora seja salutar que
gt:m, c as interpretações e palavras que pis.cam.rapidamente na tela não elu- ela apresentc:.:.:!imagens de mulheres poderosas a superarem a dominação
cidam a frase. Pelo contrário, a interpretação simplesmente pergunta o que masculina, e ífu1da que tais imagens possam ajudar a fortalecer as mulhe-
é essa linguagem, que obriga a p~nsar e refletir (e a discutir, quando~ a mú- res,.na verdaí:l.e não superam a estrutura hierárquica de poder e domínio
sica é apresentada em grupo). em n.ossa sociedade. Nem àpresefltam alternativa às relações de domínio
Anderson é, naturalmente, uma artisia pelÍormática de va:nguarda,·e e opressão que estruturam atualmente a vida cotidiana das sociedades
Madonna é a atual rainha do pop; portanto esta comparação se faz entre Contemporâneas. .
duas espécies de cultura completamente distintas.Apesar disso, revela os li- . É óbvio que a maneira de avaliar Madonna depende da política e da
mites da novidade e da criatividade de Madonna, bem como as diferenças ..
' moralidade de cada um,.e quem cultiva uma estética do choque e do ex-
~ntre estratégias estéticas opostas. Por estranho que pai:eça, a diferença não ··r' . cesso, como Madonna, com certeza ofenderá e se tornará alvo de críticas.
e entre um modernismo robusto e criativo e um pós-modernismo monóto- Madonna, porém, viceja com a crítica, que, aliada a seu uso da-indumentá-
no c chato, como alguns podem crer. Ao contrário, as estratégiàs estéÚcas i ria e 8a sexlolalidade, a ajuda a produzir uma identidade transgressora. Sua
de Madonna são modernistas, ao passo que Laurie Anderson vem empre- transgressão M narinas tem elementos progressistas, uma vez que ela se
gando estratégias pós-modernas em parte de sua obra, como em Home Of volta contra. tudo o que é dominante em terntos de sexo, inoda e as hierar-
tbe Brave. Madonna projeta um toque individual de estilo, visão e voz, e quias sociais; além disso, sua mensagem de que a identidade é algo que tO-
tenta produzir textos Inovadores e complexos dentro da forma do videbcli- dos podem e devem construir para si mesmos também é atraente. ContU:-
pe.Algumas de suas obras desconstroem .significados conhecidos, projetam do, ao construir a identidade praticamente em.termos de moda e imageni,
uma complexidade polissêmica de significados que exige interpretação e Madonna faz·precjsamente o jogo dos imperativos da moda e do consumo,
que produz tL-xtos nos quais visão, som e interpretação trabaU1am juntos Que oferecem um "novo eu" e uma solução para todos Os problemas por
para criar um manancial de significados. na forma semelhante, Madonu.i meio da Compra de produtos, sérviços ·e regimes de moda e beleza.i~ 3 Ao
sempre_tem intenções políticas e está quase sempre promovendo sua ver-
são do feminismo, da libcraç~ sexual e da autocriação.
203 A revista EnterWinme!lt, num número especial de 4 de .setembro de 1992, calcu"
Anderson, por outro lado, desconstrói a expressão, fragmenta a cadeia lava que ctútivar 9 visual Madonna poderia custar US$377.012, se somadas as despesas
de significados, implode estilos musicais, resiste à inÍ:erpretação e~ produz de um 'ano com um guarda·roupa, jóias, l'{laquiagem e seniços. A primeiro Mildonna,
uma cadeia de significados que, na verdade, não significam, ou significam pelo comrário, legitimou a moda misturada, o vale-tudo. A transformação de suM estra:
pouco além de si mesmos- à maneira pós-modernista. Contudo,essa obra tégi:w indumentárias e das imagens do Corpo express<ml, ~ssim, uma imersão cada vez
pós-moderna não "diZ nada" e foge ao comentá.do social da própria obra an- maior na cuhur:t de consumo e uma cn;;-;cente transfonnação de sua imagem em mer-
cadoria.
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pri\ilegiar a imagem, ela entra' n·a dinãmica da cultura publi.dtáda conte·m- quantidade de imagens possibilitam a circulação de imagens positivas dos
porânca, que reduz arte, política -e trama da vida cotidiana a jogo de ima- s_ubgrupos marginalizados. De qualquer tbrma, Madonn:i é um foco de ge-
gens, subestimando o papel da comunicação, do compromisso; da solidarie- nuina contradição. De um lado, promove o' Jêminismo, mas algumas de suas
d."'lde e da preocupação com o próximo na constituição da identidade e da imagens contradizem as críticas feministas à...:; questões da feminilidade, da
personalidade. bele~a; da reificação das mulheres, etc. De outro, Madonna sanciona a rebel·
Madonna é, portanto, símbolo da narcisista década de 1980, período dia e a construção individual da imagem e da identidade, embora o modo
que ainda exerce forte influência, quando o çultivo do eu individual e a Como realiza·-~ rebeldia seja a dos modelos da moda C:: da indústria do
Procura obsessiva dos próprios inte1·esses eram venerados como mitolo- consumo. Madonna se aUtodenomina revoludonári\l artístiça e exaJta a sub-
gias cultumis. O imperativo "vai fnndo!" ecoou durat:J.te toda a década de .. versão modernista, porém sua obra é divulgada ~,WmatÕ"de mercadoria
1980 e Madonna foi fundo e chegou lá. Porém, ao tornar-se a -artista mais fa- da música'popular e de vídeos musicais, que no fuátfo são, afinal, publici-
mosa de sua era (e 'talvez de todos os tempos), Madonna produziu obràs dade das músicas.
que·surtiram conseqüências múltiplas e contraditórias, e que, de diversas Embof'.1 exista material_ suficiente tanto para elogiá-la quanto para cri-
formas, ajudaram a subverttT- as ideologias Çonservadoras predominantes.
Conforme argumentamos, o' uso que Madonna faz da indumentária e da se-·
xualidade tocaram em pontos sensíveis .das questões de raça, sexo, classes
II
I
ticá-la, é precisoi,apreender os muitos lados do fenômeno Madonna e suas
conseqüêneigs---4}últiplas e contraditórias. De fato, Madonna é um deS;afio
provocánte \os estudos culturais. Para deslimhtr seu manancial de estraté-
e religião, que provocaram reações contraditórias, salientaram as carac- gias artísticas, significados e conseqüências é preciso lançar mão de um
terísticas de construtos sociais desses fenômenos, e indicaram a possibili-
dade de modificar essas categorias da vida cotidiana, ou de modificar pelo I conjunto comple'.? de criticttS textuais, pesquisa de audiência e análise da
economia polític~i: da produção da cultura pop na nossa sociedade con-
menos a postura com relação a coisas como raça e preferência sexual. Em
certo sentido, com as limitações qtJe assinalamos, Madonna pôs em evidên-
I temporânea da éomunicação de massa. Sua obra torna-se cada vez mais
.complexa, e é precisamente essa complexidade, berÍl como seu sucesso
cia grupos e questões culturais-antes marginalizadas e expressou com vee- contínuo, que faz de Madolilla um objeto controverso paf'.t a análise acadê-
mência os anseios das jovens por mais indepcrÍdência e poder. mica nos últimos anos. Madonna permite muitas interpretações, até ·con~­
Não obstante, fomm muitas as criticas dos grupos marginalizados e ditórias, com base em seus textos polissêmicos e modernistas c nas conse-
. oprimidós, de cujas imagens c estilos Madonna lançara mão; segundo eles, i
.t
qüências culturais contraditórias. Se a reunião estiver chata, toque no as-
ela explora pessoas de cor, gays, lésbicas e subculturas sexuais marginaÚza- sunto Madonna: tenha certeza de que a discussão será ~iolenta, que algu-
das em proveito próprio. belihooks argumenta q~e Madonna tem·um com" i mas pessoas a atacarão com veem~ncia enquanto outras a defenderão:
ponente racista, pois privilcgià a si mesma e à sua brancura em detrimen- Amada mt detestada, Madonna é uma provocação constante a revelar a pri-
to das pessoas de cor. Madonna está sempre no centro do foco e é sempre mazia da moda e da imagem na cultura contemporânea e a qualidade de
a figura predominante, parecendo a hooks mais uma "feitora de escravos" construto social da identidade.
do que uma "irmã espiritual" (hooks, 1992: 157ss.). hooks salienta que 1.\Ia-
donna, em última análise, privilegia o "visual louro" em detrimento de seu
cabelo naturalmente escuro e, assim, ,

no frigir dos ovos, a imagem que MadOnna mais explora é a da quinte;ssênda da


"nudher branca'" .Para manter ess.1. imagem,ela precisa sempre posicion~-se furn
da cultm-a negra. É-essa posição de não-participante que lhe pennite colonizar a
vivênda negra e apropriar-se dela para fins oportunistas, mesmo quando ll:nta.
disfurçru· SCt1S :~tos de agreSSão rnctsta sob ó manto da :~ceitação. (i,bid.: 159).

Porém, também se pode argumenta~; que as constantes mudanças de


estilo de Madonna, da cor do cabelo inclusive, bem como o modo como ela
se apropria do negro, do hispânico, do homossexualismo e de uma grande

374
9 Como mapear o presente a
partir do futuro: de Baúdrillard
aq {;)'berpunk

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Jeâu Baudrillard foi sem dúvida o teórico mais provoc:ante da cultura


da núdia na década de 1970 e início da década de 1980. Seus estudos de si-
muJação, implos~ hiper-rcalidade e'tt;cnologias utilizadas pela mídia de-
marcaram os n~s caminhos da teoria social contemporânea e desafiaram
as ortodoxias reinantes~ Sua afirmação de radical ruptura com as socieda-
deS modernas valeram-lhe o epíteto de profeta da pós-modernidade nos
círculos teóricos de vang9arda em todo o mundo: Baudrillard proclamava
o i:lcsaparccimento do sujeito, da economia política, do significado, da
verdade e do sócial Das formações sociais contemporâneas. Esse. processo
de drástica mudança e mutação exigia teorias e conceitos inteiramente no-
vos para. descrever os processos sociais em rápido desenvolvimento e as
novidades no momento atual. •o.~

Baudrillard descreveu o surgimento de uma nova sociedade pós-mo-
derna organizada em tomo da simulação, cuja'ruptura radical com associe-
dades modernas tem como demiurgos os modelos, os códigos, a comunica-
çãO, as infOrmações e a núdia. Nesse dclir-àtltc circo pós-moderno, as subje-
tividades estão fragmentadas e perdidas, enquanto surge um novo domínio
da experiência, tornando obsoletas e irrelevantes as teorias sociais e a pOlí-
.- tica anteriores. O mundo de Baudrillard é uma implosão dramática; neles as
dasses,.os sexos, as diferenças políticas e os reinos outrora autônomos da
sociedade e da cultura implodem uns sobre os outros, apagando as frontei-
ras e as :diferenças num caleidoscópio pós-moderno. Seu estilo de escrita
ta~bém é implosivo; com~ina material 4e campos drasticamente diferen-

204 Sobre Baudrillard, ,-e r Kdlner.1989 b, Besi e Kcllncr, 1991, e Kellner, 199'4a. Esse
<:apítulo basela-se em nossa ob.ra anterior sobre Baudrillard, mas aprese nu algumâs n~·
vas perspectivas e faz um pai'a!elo entre ele e a ficção cyberpunk com o fito de jndi-
<:ar as suas contribuições e expor as sua5li.mitaçõcs.

377
tes, juncados de exemplos retirados da ·cultura da mídia numa nova níodali· Gibson (1984), que foi recebido como um dos romances maÍs importantes
dade de teoria pós-moderna que apaga todas as fronteiras disciplinares. O dOs últimos anos e como um texto fundamental do movimento cybcrpunk.
universo pós-moderno de Bauc;lrillard também é o da Wper-realidade; nele, . N:a verdade,o Neuromancer fQi uma estréia literária brill1ante que ganhou
modelos e códigos determinam pensamentos e comportamentos, e o entre- todos os principais prêmios da ficção cient~ca. Para alglUls, Gibson cons-
tenimento, a itúormação e a comunicação fornecem uma experiência mais truiu uma nova mitologia e uma nova visão .científica da era tecnológica. o·
intensa e envolvente do que as cenas banais da vida diáÍia. Em seu ~undo sempre entusiástico e extravagante Timothy Leary declarou que Gibson
pós-moderno, os indivíduos abandonant' o "deserto do real" pelo êxtase da
hiper-realidade e pelo novo reino do computador, da núdia e da teCnologia. produziu nada mais do que o mito sUb liminar, a lenda âudear do pt•ó:itimo cS..
Durante alguns anos, Baudrillard foi wn teórico social de proa, o pen~ tágio da evolução da humanidade. Ele está d;~nha!iào a função filosófi-
sador contempot1i.neo mais estimulante e provocador. Mas, no início da dé- ca que Dante desempe~ou para o feudalismo e que escritores como Mann,
cada de 1980, deixou de produzir as impressionantes análises da nova cena TolStoi [e] Melville ... desemp~nhamm em relação à' era industrial.'"
pós-moderna, alvo de tanta. aienção na década anterior. Exaurido e' irreme-
diavelmente cínico, Baudcillard começou a desovar repriscs medíocreS de . A otitra Ql?ra de Gibson também é estimulante. Sua coletânea de contos
suas antigas idéias, temperadas com um vezo metafísico banal, o que pro- Bunti11.g~'lne (198~) cohtém unia visão vigorosa de um novo tipo de so-
duziu uma patafísica do .triunfo do Objeto sobre o Sujeito no mundo con· ciedá'de tecnológica na qual os seres humanos e as máquinas estão constan-
temporâneo. '"'As conferências de viagem, os apo~tamcntos, as simulações temente implodindo, e o próprio ser humano está em dramática mut.1ção.
teóricas e as eventuais peças que produziu caíram para um nível drastica- Seus romances~~guintes Count Zero (1986) c Mona Lisa Operdrive (1988)
mente inferior ao de sua obra da década.de 1970, e ficou claro pata ffiuitos continuaram as explorações cyberpunk do Neuromancer, utilizando uma
que ele se tornara tedioso e irrelevante, um pecado capital_paca qualq~cr parte das persÓnagens e do argumento já apresentados, para nielhor interro-
teórico pós-moderno que se; supusesse de vanguarda.!M · gar os seus temas de ambiente tecnológico em rápida mutaf,.'ão e dos efeitos
Enquanto Baudrillard vagava e divagava do fun da década de 1980 até deste sobre os seres humanos. Seu romance The Dif!iwence Engitle (1991),
hOje, a ficção cybwpunk transformav~-se numa tendência liteÍ:-ária do mo· . i::SCtito _em co-autoria com Bruce Sterling, apresenm. uma reconstntção ima-
menta e, para muitos, na vanguarda da visão e do insight teóricos. Para seus ginativa ~o mundo da _revolução industrial, na Inglaterra do século XIX.
muitos entusiastas, a obra de William Gibson, Bruce Sterling, Rudy Rucker," V!rtual.Reality (1993) apreserita uma visãd da Califórnia no começo do
John Shirlcy, Greg Bcar, Lewis Shincr e outros era uma fonte das imagens século XXI e um pesadelo tecnológico antiutópico no qual conglomerados
mais estimulantes e do melhor mapa de nossa cultura contemporânea da econômicos mal-intencionadas lutam pelo domínio de' novas tecnologias,
mídia e da alt<;t tecNologia. De se destacar é o ,Veuromancer de William Cfimulativamente, esses teXtos produzem um ·dos mais impressionan-
tes corpos da escrita recente em torno dos destinos da sociedade hipertec-
nológica desde os textos--chave de Baudrillard, peritos na Çécada de 1970 ..
20) Ver em c~pedal Baudrillard,l990 [19931 e o estudo presente em Keli.ner,l989b, Assim como a melhor obra de Baudrillard, eles iluminam o cenário contem-
capítulo G.A "pataíhica" é a deAlfredJar11' e sua "escola";ver estudo em KeUner, 1989b. · porâneo com uma dança brilhante de conceitos, metáforas, imagens e uma
206 Sem dúvida, pode-se argumentar que Baudrijl_ard nunca foi um teó>ico"pós-moder- prosa dinâmica. Tanto Baudrillard como os autores cybe1punk destruíram
no", que sua~ rnízes sempre estiveram em certas correntes do.pensamento co~testador as fronteiras entre filosofia, teoria social, Uteratum e cultura da núçlia, criao~
francês b:l5eado nas vertentes românticas c boêmias do século XIX, em Jarry e na pata- do ·textos que tentam captar as vertiginosas vicissitudes e a pungente in·
física, em pensadores como Nietzsche, Bataille e Debord e nos situacionistas (algo .: tensidade de nossos ambientes hlgh-tech. Neste estudo, é crucia.l elucidar
assim se diz em Gane,I99la el99ib). Mas em oposição a tais leitl,rns insistiríamos no
o presente por me.io da análise das tendênciás futuras que já se manifes- '
fato de que o interesse despertado por Baudrillard provinha de suas afirmações sobre'
a teorização radical de fenômenos, tendências e t--xpcriênçias novas do atual momc:n·
to, e que sua força c su~- il\.lluênda culturnl derivavam precisamente da)JOVtd;ide de
suas de~crições da nova tecnologia e das fonnas c•liUJrais e sociais, bem como das ex· 207 MoMo 2(}/)(J, n' 7 (1990): )6. Os fãs da ficção científica e os afidonados da llter-
periências geralmente rotulada~ de "pós-modernas" (\·er Kellner, l994a). É curioso que 3tum pós-modetna n'io.fornm meno.s efusivos. Ver os artigos em McCaffcry,l99l.Além
no exato momento en1 que Baudril!anl pendurou as chuteiras teórkas, largando mão disso, ~s publicações litecirias e culrurnis e os boletins de notícias acessíveis por <."Om·
de sua iniciativa, Gibson e o cybel"punk as calçaram e sairnm a explorar o novo mundo putildor fizt:rnm incontávds análises laudatórias sobre Gibson e o rybtnpunk nos últi-
futuro que BaudriUard vinha explorando 3té então. mos anos.

373 379
tam. dentíiica. 100 Essa óptica também sugere a desconstníção das opog""fções
Na verdade, o próprio Gibson a:Íirmou que o Neuromancer "trata do nítidas entre literatura e teoria social, mostrando que grande parte da teo-
presente. Não trata de um futuro im.1.ginário. É uma maneira de tentar en- ria social contém uma visão narrativa do presente do futuro, e que certos
trar num acordo com o pavor e Oterror inspimdos em mim pelO mundo tipos de literatura apresentam um mapeamento convincente do ambien-
no quaJ vivemos" (Mondo 2000, n° 7 [l990]: 59). Realmente, do nosso te contemporâneo e, no caso. dos cyberpunk, das tendências futuras. Por
ponto de vista, Gibson mapeia o presente a partir da posição privilegiada . í"sso, diríamos que Gibson pode ser lido como um teórico social,
de um futuro imaginado, numa demonstração das possíveis conseqüências enquanto ,Baudrillard pode ser lido como um autor de ficção científica, e
das tendências atuais de desenvolvimento. Em particular, ele está traçando que ambos podem ser vistos como pensadOres c_ap:tz~s de' nÓs oferecer
o mapa dos modos pelos quais as noVas tecnologias estão influindo. sobre mapas_e figurações poéticas iluminadoras d~-~RJ;'telà'Ções de nossa cul-
o ser humano, criando novos indivíduos e novos ambientes: .exatamente os tura high-tech contemporânea:'~ 9 ·

temas de BaudriUard na década de 1970.


No entanto, em certo sentido tanto Baudrillard quanto 0 cybf:rpunk
tornaram-se fenômenos da cultura da núdia, oferecendo visões teóricas e fic- DE BAUDJULLARD AO Cl BERPlJVK
"','·' '·
._..,,...,_.;.,J-
cionais de runa sociedade cada vez mais dominada pelos meios de comuni-
cação e informação. Ambos retratam um mundo no qual as novas tecnolo- • Bri:~ ;;cHale descreveu a curiosa influência reciproca entre ficção
gias e a mídia e~>tão em toda parte e no qual os seres humanos se fundem pós-moderna e ficção científica durante a última década."" Bse intercâm-
com as tecnologias e perdem o controle dessas extensões de si mesmos e de bio é sintomát~o do processo que Baudl"illard acredita carac~erizar Uma so-
seus novos an1bientes tecnológicos. Por sua· vez, tanto Gibson/cybeJjJUp.k ciedade pós-moderna: o de implosão de diferentes fenômenos um no
quanto Baudrilla~ tornaram-se fenô91-enos populares da cultuh da núdia, ~e­ outro. A ficçãÓ cybe1ptmk, portanto, consistC numa implosão das técnicas
lebridades pop aclamadas como gurus e profetas pelo público, que pode não da ficção modernistas e pós-modernistas, do gênero .ficção científica e de
ter idéia nenhuma d.-1. complexidade do pensamento e da visão deles. outros códigos genéricos popu.lares, com o estilo e as .figuras do movi-
Por isso, neste estudo, pretendemos argumentar que, conquanto mento punk e 4e outras subculturas urbanas contestadoras. No cyber- ·
Baudçi!Iard tenha sido um dos UW:is ivançados teóricos da cultura da mídia punk, a visão pós-moderna encontra a sua expressão literária par-adigmáti-
e das novas tecnologias desde meados da década de 1970 até 0 início da ca e dissemina as suas visões para a cultum contemporânea da qual extraiu
década de 1980, tO i William Gibson e os qberpunks qUe realizaram alguns energia e agudeza.
dos mais impo~tantes mapeamentos do nosso momento e de suas tendên- Os escritores cyberpunk foram primeiramente chamados de coisas
cias futuras durante a última década.Afirmatemos que a ~-isão de Gibson e como 'tecnólogos inconformistas, ncuromantes, óculos espelhados, símbo-
do cybmtmnk bas.eia-se nas perspectivas pós-modern.as .de Baudrillard, 111as lo este importante do antiautoritaiisnio em muitos dos seUs trabalhos (Ster-
que de algumas maneiras signitkativas se afastam do - cada vez mais retró, ling, 1986: ix-xii). Valerido-se dessa imagem, Bruce Sterling publicou uma ·
grado - teórico francês. Do nosso pOtltO de vista, tanto naudrillard qua~to antologia de ficção cyberpunk intitulada Mirrm'Shades [óculos espelha-
Gibson tr-açam os mapas da mídia e das sociedades higb-tecb atuais, bem dos], em que se encontra uma nota elogiosa do autor Michael Swanwick
como da tmjetória incerta rumo a um futuro não tão distante, contribuin- com as seguintes palavras:
do assim com insights importantes sobre as prOfundas mudanças peias-
quais estamos passando. São rodos uns pilotos verbais da pesada que não se importam em peiar qua-
O presente, segundo esses mapeamentos, ~ visto da persp~ciiva de renta mil toneladas de prosa beavy metal berrante e despejá-Ias direto no
um futuro i::[ue se faz visível a partir das experiências e das tendências do ch,1.o num poderoso mergulho forçado que despede fagulhas e atos litáárlo
atual momento. Dessa perspectiva, a ficção científica cybe1punk pode
ser lida como uma espéCie de teoria social, enquanto a teoria social pós-
moderna futurista de Baudrillard pode ser lída, por sua vez, como ficção 209 A expressão "mapeamento cognitivo" é extt"Aíd.a de]an1eson,l984 e 199l;vet estu-
dos em Kellner, l989"c e lkst e Kcllner, 1991 ;sobre as dificuldades dc.m.apcar o momen-
to contemporâneo.
208 E realmente desse modo que recomendamos a leinu.·a de BaudrHl'lrd em
Kellnt'r, 1989b:1Qj s.
,, ;210 Ver McHale em McCaffe!J; 1991, e .McHale, 1992.

381
e só se detêm no -derradeiro possível instante à beira da total imj}\osãb gra-
matical apenas para verem nos pálidos rostos erguidos dos civis a expressãO
de horror quando os dispositivos de pÓS<Oftl.bustãojnterrompem tudo.
(orelha da quarta capa)

Essa prosa intensa e hiperbólica é típica dos cyberpunks que se em-


penham em"'<-aptar ritmos, sensações, fluxos, imagens e expe;·iências do
presente muna prosa candente, com personagens ertl-,situaçõcs-limite c
narrativas ágeis capazes de imprimir em seus leitores úh:agens poderosas
ao projet:lrem visões aterradoras e prescientes di.fn()sso presente tantas
vezes angustiante e de nosso futuro ainda mais assustador. ·
Afmal, o termo "cyberpunk~ pegou, embora algumas pessoas se te-
nham reb~iati&. contra tal rótulo. ucyber~ é grego; significa "controle". Com
ela foi io~atl~:fa palavra cibernética, indicativa de um sistema de. controle
altam"cnte tecnológico que combina computadores, novas tecnologias e
. realidades artitkiais com estratégias de mam1tenção e controle de siste-
mas:Também c~ ela foi formada apalavra (.)'borg, que descréve novas sín-
teses d~ seres huinanos e máquinas; geralmente indica artefatos e experiên-
cias tecnológi2as de ponta. O "punk':, que faz parte da palavra cyberplnik,
.der;va do movimento homônimo; indiCa a rispidez e a atitude da dura vida
ur~ana em aspectos como o sexo, as drogas, a violência ~ a rebeldia contra
O autoritarismo no modo .de viver, na cultura Potre na moda. Em conjunto,
os·~ois termos referem-se ao casamento da subcultura high-tecb com as
cultu~ marginalizadas <;las ruas, ou à tecnoconsciênda e à cultura que fim-
dem tecnologia de ponta com a alteração dos sentidos, da mente e da vida
pttsente nas subculturas boêmias.
ü'lmo fenômeno subcultural, tyberpunk em geral significa uma
postura vanguardista inc}siva em relação à tecnologia e à cultura, ávida de
abraçar o novo e disposta a tebeL'tr-se c.ontra as estruturas e as autoridades
estabelecidas, a fim de ganhar mais experiência e pôr em. funcionamentO
novas.tecnologias. "A rua tem seus costumes", conforme ·gosta de dizer
Gibson; como movimento, o cyberpunk atua à margem da leJ, rebelando-se
contra o estado centralizadot· e as grandes estrutut"as econômico-financei-
ras, a favor de um uso subeultuml mais descentmlizado da ciência e da tec-
t:tologia a" serviço dos indivíduoS. Enquanto grande parte da ficção cientjfi-
ca tendia a centralizar-se no estabelecido, em personagens conformistas
que -agem dentro ,das instituições estabelecidas da lei e·da ordem, a lite-
ratura e o cinema (.yberpunk tendem a utilizar personagens pardal ou to-
talmente marginalizados. E enquanto certas subculturas contCstadoras an-
ter.iores, como os bippies e os punks, tendiam a ser antitecnológicas, a cul-
tura cyberpunk abraça a tecnologia, que é usada para atender aos objetivos
dos indivíduos (embora muitas veze~ contrariando os objetivos c os inte-

383
··-r
resses das instituições e dos ·costumes estabelecidos). tas .a lutarem pelo poder c pela 59brevivêncía no mundo· contempod~eo
Como gênero, o cyberpunk·podc.ser visto como sistemas de adver~ das cidades e ·dos negócios. VeloCidade e energia são características das
tência,como narrativas moralizadoras e acauteladoras, a nos avisarem sobre narmtivas cyberpunks: elas são vivazGs, cheias de personagens incomuns
os desenvolvimentos futuros, quando ,não haverá futuro controlável pelo de narmtivas tortuosas e estranhas surpresas: exatametite como a vida n~
ser humano em atendimento aos seu's objetivos. Portanto, é interessante o sociedade higb-tecb.
paralelo entre a literatura cybettJunk c o romance oitOcentista de Mary Ao contrário da ficÇão científica anterior, muitas vezes de autoria de
Shelley, Frankenstein, que também adverte sobre ·o uso desenfreado dàs escritores otilrndos do centr(}-()este .dos Estados Uriidos, Neurornancér e
riovas tecnologias."' Mas o cybe1punk mostra todo um universo já em es- outros escritos cyberpunks têm origem urbana;, trata dà..~::.novas experiên-
tado de desarranjo avançado, caminhando a !}assas largos para um futuro cias urbanas do crime, das drogas, do sexo, do rdc~o ánibiente mercan-
apavorante em que;tudo· é possível e.cm que a sobrevivência é cada-vez til e high-tech, bem como das subculturas heterodoxas e marginais que
mais problemática. proliferam e vivem lutando pela riqueza e pela sobrevivência. É típica da
No entanto, os cyberpunks não são apocalípticos e. negativos, como ficção cybe1pu~1k a visão antiutópka do futuro iminente, quando os mega-
alguns livros e ftlmes de ficção .dentífka ·das últimas décadas. Alguns de cong!om_ern,dq~;,econômicos controlarem todos os aspectos da vida, movi-
seus escritores, como Gibson, dão ênfase tari.to à negatividade quanto à po- da por prajió-'SifOs iníquos, quando a tecnologia possibiJit~r sistemas mais
s~lividl).de da tecnologia e do futuro tecnológico, não sendo tecnofóbicoS petfeitÜs de controle mas continuar precisando enfrentar a resistência das
nem tecnófilos. c;rande parte da antiga ficção científica, por ·outro lado, éra forças subterrâneas e contraculturais, quando tudo for mercadejado, e a
tecnófila; festejava a tecnologia sem reflexão crítica sobre seus ·efeitos. ou: Vida for mercadq{!a barata (por exemplo, como nos romances de Gibson,
tra linhagem.da literatura apocalíptica c antiutópica, por outro lado,era pu- em que assassinos contratados estão sempre em atividade, e várias perso-
ramente ~egativa em relação-à tecnologia, vendo..-.a somente cotno algo que nagens '
. estão sempre dispostas a matar por alguma paga).
levaria a um futuro catastrófico. Os cyberpunks,.em sua maioria, são mais Os cyberpunks sãO em grande paxte produto da explosão tecnológi-
dialéticos, embora se encontre algum resíduo de pessimismo antiutópicÓ ca da década de 1980, com sua proliferação na mídia, nos computa.dorcs c
em alguns lle seus esCtitores. ein novos meios técnicos. Sua obra é muito influenciada pela satur-.!ção da
Como fenômeno literário, os precursores dos escritores cyberpunks cultu;.a e da vida pela ciência, pela tecnologia e pelo consumlsmo; apre-
foram William Burroughs, Philip K. Dick,J. G. Ballard c Thomas Pynchon; o senta uma sobreposição de tecnologia de ponta e cultura de m;lssa. Como
mck, a droga e o computado,r também são importantes 'fontes de-influên- diz Bruce Sterling:
cias. Os cyberpunks provêm de origens bastante diterentes; alguns da
ciência, outms dà literatura e outros do J'OCk, mas todos parecem familia- Amfgamentc, havia um abismo culiurnl hiimte entre as ciências e as humani-
rizados com a contnlcultura.Ape~ar das-diferenças de visão políticã, estilo dades: um oceano entre a cultura literária, o mundo formal das artes e da po-
e atitudes, eles têm em comum a sensibilidade a o fato de assentarem raí~ lítica e a cultura da ciência, 9 Immdo da engenharia e da indústria.
zcs no ambiente contemporâneo higb-tecb. Em vez de fantasiarem em· ror- Mas eSse abismo está mindo de uma maneira inesperada. A cultura tecnoló-
no do destino dos impérios em outra galáxia e· em outrú.s' tempos, Os gica está esCapando ao controle. Os progressos' das ciências são tão radicais,
cybeltJunks encaram a realidade ameaçadora de nosso próprio mundo. tão perturbadores, tão chocantes e revolucionários que já n.ãq podem ser
Seu estilo de escrita implica um amálgama de iinagcns intensas e vívidas contidos.Alastram-se pela cultura como um todo; são lnvasivos; estão em toda
descrições, com argUmentos intdncados e personagens bizarras e violen-
.. parte. A tradicional estrutura de poder, aS instituições tradicionais, perderam
controle do ritmo das mudanças.
(Sterling, 1986: xii)
lJ l É intt:r<::»anlc notar que William Gibspn e Bruce Sterling uniram t.·llentos para produ-
zir um romance que descreve outros camiJ:ihos para a Revolução l.ndustnai;intitÚla~ The
D!ffenmce Engine (1998). Nclc,o computadot apareceu antes, Lord Byron e os tccn~cra­ A ficção c.-ybmpunk é uma resposta a -essa situação; tent;l. desenhar
tas radical.~ ·govc.mav;un a lnglaterm duratlte a Révolução lndusuial, e, naquele fuesm~ , um mapa das realidades tecnológicas, econômicas, soci:Us, políticas c cul-
pa~<;,a re,·oiução dos tr:~balhadorcs foi t:vitada por wn triz; além disso, nos &mdos Unidos,
tur.ais da ai:ualidade, captando a intensidade e o dinamismo das momento-
o Sul· saiu vimrio,o;o da Guerra Civil (que estourou algumas dé<:adas antes) e p.1ssou a ser
o poder dominante; o Texas U'ansfonnou~ em estado independente, enquanto Manhattan
sas mudanças, bem como as novas possibilidades e as novas ·ameaças pam
surgia como comuna soefulísta govematb por K:u-1 Mar:x c seguidores. os seres humanos. Portanto, assim como a teoria e a cultura pós-modernas,

384
,,
a ficção CJibepunk é uma reação explosiva à proliferação da tecno~ogia e grandes corporações tantbém se encontra ein Thoma<> Pychon, uma das fi.
da cultura de massa, coisa.<; que, útcorporadas no seu estilo e no seu tema, guras mais influentes da ficção cyb<!1punk. 2 ' ' No mundo C)lbetpu;}k, oca-
são por elas iluminadas. Assim, teoria e cultura pós-modernas e ficção pitalismo desbragado reduz a sociedade a uma grande desordem: o meio
CJiberpunk são produtos do mesmo ambiente high-tech, servindo, ao ambiente está arruinado, tudo é cada vez mais artificial, e a vivência é mC·
mesmo tempo, para mapeá-ló e elucidMo. dia da pela tecnologia. Outro tema fundamental de Baudrillard, presente ~o
Dessa perspectiva, a teoria pós-moderna é a primeira teoria sócia! cyberpunk, é a implosão entre biologia e tecnOlogia: os órgãos- do corpo
high-tech, e a ficção cybetpunk é uma nova literatura. high-tech para os sa- -humano sãõ IâCilmente substituíveis por próteses tecnológicas, as persona-
turados e sôfregos integrantes da era do computadór e da mídia. A ficção ·''-
!idades são programáveis, a neuroquinüca modifica a int6),igência e a perso-
cyberpunk também reage à aVidez predatória do capitalismo. sem freios nalidade, há interação e implosão entrç cérebrá~omputadores, e os in-
durante a em Reagan/Bush/Clinton. O capitalismo representado nos filmes divíduos ingressam em novos e estranhos mundos tecnológicos. 'Além
e nos romances CJibepunks é em gránde parte de forma globalizada, com disso, a inteligência artificial luta pelo poder, e os indivíduos procuram a
mistura de culturas e línguas (pOr exemplo Blade Runne1· e Neuromancer), imortalidade P.Or meio da criogenia ou c:x--rernando sua pCrsonalidadc em
com uma cultura de massa homogênea c um mercado que se dissemina por constru_tos;>_ qe;;computador. Esse é exatamente o terreno mapeado por
todo o globo, constituindo uma aldeia global num dia-a-dia permeado por Baudrillai"~~tt't,rúk na década de 1970 C início dos anos 1980 estudou os fe-
produtos, formas culturais e minúcias provenientes de todo o mundo. Essa nõme.nos da simulação, da implosão entre seres humanos e tecnologia, da
forma de capitalismo é também um tecnocapitalismo, uma organização da clonagem, da engenharia genética, dos .meios de comunicação e infonna-
sociedade que reúne tecnologia e capital, na qual a tecnologia (especial- ção, e da prolif~ção e disseminação da mídia e da informática.
mente os meios de informação e comunicação) se transfomtam em capital, Baudrillard, portanto, foi um precursor e profeta do admirável mundo
e o capital é ca(ja vez mais mediado pela tecnologia. Na verdade, no univer- ' .
novo tecnológico que seria palmilhado c mapeado pefo cyberpunk, ainda
so de Gibson, a inform?-ção é a forma privilegiada de capital, fonte de rique- que, como veremos, este trate de temas ignorados por Baudrillard.m Nas
za e poder. 212 _ próximas páginas, mostraremos as semelhaf!.Ça5 entre Baudrillard e o
De modo semelhante, o mundo social retratado pela ficção cyber- Neummancer de Gibson, indicando que eSte concretiza e visualiza algu-
pun~ é um capitalismo sem freios, refletindo O· desbragantt~nto das gigan- mas das categorias abstratas de BaudriUard.lambém existem afmidades fi-
tescas corporações incentivadas pelo regimes políticos conservadores da losóficas enti·e o ftlósofo francês e o cybe-~punk: este problematiza a noção
década de 1980 - Reagan/Bush, Thatcher/Major, Kohl e outros. Nesse de sujeito, c:: põe em xeque os conceitos de realidade, tempo c espaço com
mundo social darwinista, o capital é totalmente amoral; apenas os mais ca- as noções de cibcrcspaço; nele, a implosão entre indivíduos c tecnologia
pacitados sobrevivem e prosperam (ou se;a, os mals capacitados para a subvertê o conceito de ser humano, e o s.olapamento dos valores tradicio-
exploração e a corrupção), enquanto um amplo lumpemproletariado se nais suscita questões sobre os valores que merecem sobreviver e os novos
acotovela em cidades violentas na luta pela sobrevivência. A visão de uma valores que poderão ajudar a produzir um futuro melhor. Na verdade, tanto
sociedade capitalista totalmente amoral está Qelineada em Simulatíons,-de Baudrillard <tuanto o cybé1punk trazem à baila a própria natureza da socie-
Baudrillard, que descreve o capital como "imoral e incscmpuloso";' seu "ce· dade, da. cultura, dos valores e da política contemporâneas, obrigando-nos
náiio primitivo" é cheio de crueldade instantânea, ferocidade incompreen- a enft·entar problemas teóricos e políticos fundamentais. ~
sível, imoralidade fundamental(. . .) de é um monstruoso-empreendimento
sem princípios, nada mais" (Baudrillard, 1983 a:28-9)."'
A visão de um mundo governado por misteriosas conspirações entre

214Acerca da intluênda de Pynchon sobre o 'yberpunk, ver McHale,l991:315 ss. Gib-


212 Sobre o concdto de tccnocapltalismo, ver Kelloer, 1989a, capítulo.s 7 e 8. ~on freqüentemente cita 'r;-nchon como grande infh1ência literiÍria;ver comentários na
213 Essa caracterização surpreendeotemente predsa do capital é prejudicada por uma entre>i~ta t.-vm Timothy Leary, op. ctt., 62 s: <i"com McCaffery,l99I:267. Sobre o mapea-
análise anterior de Baudrillan! sobi:'e "o fim da economia política~ na sociedade do si- mento do capitalismo contempoclneo feito por Pynchon, ver Best,1992.
mulacro (ver Baudriilaxd,l976: 20 ss.. e o est\•do em Kellner,l989 b:61 ss.).Tais trechos 215 Baudrillard (1981) também ficou impressionado com ü.m dos precursores da fic-
indicam as orlge.ns marxista~ do pensamento de Baudrlltard,que não 'foram inteitameh· ção cybe!punk, J. G. Ballard, e escreveu um estudo entuSiástico sobre seu romance
te suprimidas.nem mesmo ein suas polêmicas mais violentas contra o grnnde barbudo. Cmsb.

387
O NEUIIOMANCER E A V!Si\0 DE BA UlllULLARD manas e íntegras num mundo desumano e corrupto. Assim como ocorre
na ficção policial, em seu argumento encontram-se elementos de romance,
Todas as principais categorias de Baudrillard - hiper-realidade, simu~ pontuadoS por trapaças e banditismo tecnológico-( desde o colarinho bran-
!ação e implosão- estão presentes em ;Veuromancer, sendo intereSsantes co até as contravenções de rua), mulheres de bandidos e mulheres bandi-
as semelhanças e as diferenças entrc·as visões de ambos a resp.eito do <;ir- das, subculturas contestadoras, estruturas empresariais complexas, incestos
co high-tech no qual representamos, sofremos e morremos. Ambos retra- e persOnagens de ficção científica, como as inteligências artificiais que ten-
tam tuna sociedade da informática, cujos limites de todos os tipos for.lm tam -ganhar''ô contrai~ do mundo e os construtos "de computador que
implodidos: entre culturas, entre biologia e tecnologia, entre a realidade e criam "realidade" no ciberespaço. ., -.,!_,, · _
a irrealidade (ou siÍnulacro). Nesse mundo, 'os simulacros ocuparam o lugar O fulcro narr-Ativo estâ nas aventuras ctt!'-~, Jadcio de dados infor-
da "reali(L'tde~, e o corpo e a subjetividade do ser llmnano foram drastica- matiz.'ldos, cujas células neiTosas são extintas por uma biotoxina éomo pu-
mente alterados pelas novas tecnologias. No estudo que se segue, portanto, nição pelo roubo perpetrado contra seus chefes. Um indivíduo misterioso,. ·
gostaríamos de mapear as senlelhançaS e diferenças entre a visão pós-mo- chamado Arq1itrage, que já atuara nas Forças Especiais, contrata-o para um
derna de BaudriUard e a visão cyl?erpunk de Gibson. trabalho<d~ V#Ito numa operação ilegal n-o mercado negro, o que restitui a
Enquanto a visão de Baudrillard é um tant9 abstrata, Gibson traça o Case a i1PS~'hilidade de ter acesso ao ciberespaço usando sua mente e seu
mapa de um mu11do onde o simulacro e a hiper-reatida~e são onipresentes, coffiputador. Trabalha em equipe com um criminoso profissional chamado
onde abundam identidades artificiais geradas pelos computadores, onde os Monf, portador de muitos bioimplantes, entre C?S quais algunias navalhas
indivíduos são reconstnúdos e modificados por meio da engenharia genéti-. que se projetê}rl de suas unhas. A narrativa avança por uma roteirização
ca, de implantes e de fármacos, e onde reina a total indefinição nas frontei- tradicional eq1 que são reunidas as personagens pam o Grande Roubo. Na
ras entre realidade física e virtual, com as correlatas confusão e indetermi- primeim a"-entura, case e Molly combinam forças para roubar um constru~
nação odontológicas: precisamente a visão de Baudrillard em forma de ·lite- to de computador de rnn complexo empresarial gigantesco, que usarão nC?
ratura. Portanto, tanto Gibson quanto Baudrillard descrevem um mundo
onde subjetividade, realidade e identidade s.'io postas em xeque, maS Gibson
foge ao intenso nillismo de Blmdrillard e empreende uma busca de valores,
identidades e expressões das qualidades humanas como prinCipal força es-
l próximo trabalho. O çonstruto, chamado ~Dixie Flatline", é a inteligência
reconstruída do homem que ensinara a Case como roubar ~ádos e que o
ajudaci a roubar outro conglomerado 'ainda maior.
A segunda aventura importante consiste numa viagem à Freeland, ""
truturadora e motivadora de seu universo futuro. Mas, enquanto o (anti)teó- ! planeta' de propriedade da família Tessier-Ashpool, em cuja residência se
rico Baudrillard tende a ser abstrato e desprendido, os textos de Gibson os- encontra a inteligência artificial (IA) Neuromancer"' com a qual Wintermuie
tentam grande paixão -por Objetos, texturas e particularidades concretas·. deseja"'fundir-se. Para isso é preCiso entrar na residência,~ gr.mde parte do
Como veremos, ele se mantém fiel a-certas categorias que Bau9riÚard aban- romance se passa na reunião do elenco de personagens: um hom<:;m malva-
dona, em especial à noção de individuo soberano que tenta cOntrolar o seu do chamado Riveria, que, capaz de pl'Ojetar hologramas, é contratado para
meio e manter a sua soberania num niundo perigoso e vertiginoso. _ seduzir a filha de Tessier-Ashpool, 3Jane; um grupo de rastafáris que servem
O estilo de Neuromancer é "pós-moderno" no sentido explicitado
por )ameson (1991): Gibson combina narrativa tradicional e técnicas literá-
216 Es~a referência talvez ~cja uma homenagem a Naked lunch,dc Burroughs, que in-
rias modernistas. Nele, derruem as distinções entre cultura en1dita e popu- ventou a "Free!and Repub!ic,. [República dt Terra Livre], "lugar inte!I:imente dev<>tado
lar e há uma mistura de gêneros e convenções da ficção e do cinema po- ao amor livre e ao eterno banho:· (Burroughs,l959:21).
pulares. Neuromancer é tradicional quando dá atenção ao argumento, à
• Foram feitas duas traduções desse romance em língua portuguesa. Uma é da Ed.
personagem e à narrativa (não é metatk_ção), mas é pós-moderno no modo Aleph, 1' ed. 1991; a outm é da Ed. Gradiva (de Portub'lll), 1' ed. 1988.Ambas estão eS:
como combina ê implode os gêneros, misturando ficção científica com g01adas.A da Ed.Aleph foi publicada com o título Neuromuncer;a da Gmdiva, com o
história de detetive, roman-hoir com aventura high-ted:J e westem (a prin- título Neuromante. Para simplificar, adotaremos uniformemente "Neuroma.ncer" a Jim
cipal personagem, Case, é descrita como caubói de computador), trama de de indicar tanto o título do livro quanto o nome da L'\.. No entanto, cabe len1brar que
o nome "Neuromanccr', além da explicação transcrita adiante por Kel!ner, também
negócios, mjto e 'fantasia. Contém também visões de Raymond Chandler _
pode ser dcsm.:mbrndo t;m neuro + mancer (-mancer então corresponckria ao nosso
acerca da comtpção social, pois suas personagens tentam se conservar bu· -mante "' adivinho, profeta). Essa, naturalmente, foi a opção da tradução portuguesa.
Quanto a Wmtermute, sua tradução literal seria "mutismo hibem:li''. (N.T,) ·

388 389
I
I
para ajudar nos trabalhos braçais; a inteligência artificial Wmtermute, que bém são abundantes os termos e as referências mode"rnistas. Molly adota
aparece na fot"ma de várias personagens na última parte do romance. O o pseudônimo de "Rose Kolodny", numa referência à obra de· Duchamps
objetivo é roubar a IA Neuromancer da residência dos Tessier-Ashpool, (Gibson, 1984:143; ver também 207), e há freqüefite uso de metáforas da
Straylight, usando a chave 'de 3Jane parà abrir a porta do quarto onde está dança, da escultura c da música para desci-ever os vários ~movimentos" das
Neuromancer, o que exige a perícia de MoUy e os conhecjmentos de Case personagens, o que provoca uma implosão de arte e profissiop.alismo. Na
em computadores para desativar os,sistemas de segurança e orientar Molly verdade, mesmo o universo mcrcadejante de Neuromancer é peimead?
na sua· tentativa de "libertar" Neuroma~ccr para que este possa fundir-se de formas ãrristicas modernistas:m Ao procurar irúormaçõ_es sobre a pos-
com Wintermute. , sibilidade de vir a ser assassinado, Case visita,o escriiÓflo de Julius Deane,
A narrativJ. e a sensação passada pelas imagens é muito dinâmica; numa que tem 135 anos de idade e anualmente é lsU~etido a um reajuste de
entrevi-.ta dada por Gibson, ele afirma tÚse inSpirado muito nos· elementos do ADN e a uma de cirurgia genética. Ao entrar em Seu escritório,
filme noi1' e ter sido muito influenciado por Blade Rumzer!' 7 Nêummancer
também te~ o tradicional desfecho com resolução dos mistérios, embora a estantes neo-astecas empoeirava_m-se contra uma parede da sala onde case
conclusão continue envolta em enigmas e ambiglüdades, sendo difícil faZer espt;'~~: Um par de luminárias em forma de globo, estilo Disncy, empoleira-
wna dcsc'odificação de cunho modernista.Assim como os textos modernistas, V:l:~~:fnau jeito sobre uma mesinha baixa. estilo Kandinsky,de aço laquea-
Neuromancer exige um leitor e.xtremamente ativo, embora, como já dissemos, do de esc<ttlate. Na parede, um relógio Dali pendia entre as estantes, com o
ele seja pós-moderno em termos de forp1a e de temas; na verdade, a implosão m~strador deformado descaído para o chão de concreto nu. Seus ponteiros
das complexas formas modCrnistas de ficção com motivos, convenções ':: gê- eram hol~as que, girando, -iam-se modificando para co!llbinar com as si-
neros folhetinescos é, em si, ~pós-moderna" pois combina fonnas, estilos e nuosida9es do mostrador, mas a hora certa nunca era mostrada.A saia estava
camcterísticas literárias modernistas e tradicionais. abarrotada de caixotes de embarque que exalavam forte odor de gengibre em
Os temas e a visão de NeUromancer contém muito de Daudrillard;- conset·va.
apresentam uma implosão de culturas hadonais numa sociedade totalmen- (12)
te implodida, onde a distinção entre tecnologia e ~atureza' também está mi-
nada. O romance começa com uma iconografia tecnológica que tolda a E assim, em Gibson, como em Baudrillard, a estética permeia o dia-a-
própria aparência da natureza:"o céu acima do porto tinha· cç>r de televisor
sintonizado num canal inativo"{Gibson, 1984: 3)!'" O cenário é urra mundo 1
i dia, e a cultura erudita e a popular implodem no universo da mercadoria.
Mas, acima de tudo,<Veuromancer projeta uina visão de implosão entre se-
onde raças, culturas e nacionalidades irnplodiram, formando uma cultura
futurista high-tech do tipo Blade Runne1'. As fronteiras1 nacionais já não I res humanos~ tecnologia no mundo da cirurgia plástica, dos implantes, dos
Iarm~os, dos órgãos artificiais, dos cérebros artificiais e da engenharia ge-
têm grande importância e, lingüisticamente, os discursos implodem uns
nos outros, com fragmentos de diferentes línguas, em especiaUnglês, japo-
nês, francês e alemão, o que produz uma nm-a forma de poliglotismo inter-
nacional. O romance também funde discursos sobre com'putadÜr e alta tec-
l nética. O garçom Ratz, que serve Case. na primeira cena, tem um braço ar-
tificial "que se contraía em espasmos monótonos enquanto ele enchia to-
dos os copos da bandeja com jatos de Kirin" (3). Seus dentes ostentam
"uma tda de aco do. leste europeu e cáries escurecidas" (3). Os ócUlos de
nologia, gíria da droga, jargão do crime e dos. negócios, linguagens das sub- Molly ~foram i~seridos cirurgicamente, selando-fue as órbitas. As lentes de
culturas (raStafári sObretudo), referências à cúltura da· mídia, com alusões prata paréciam projetar-se da pele lisa c pálida por sobre'· seus pômulqs"
esotéricas a música, pintura, dança e outras formas de arte. · (24).A arma que usa parece parte intri:nseca dela; na cena de introdução,
Como ocorre com o modo de ver de Baudrillard (1993), a estética '1
' ela "estendeu as mãos, com as palmas para cima, os dei::!os brancos ligeira-
permeia o dia-a-dia, e Case é descrito como um "artista" logo. no início;
todas as personagens principais são artistas de um tipo ou de outro. Tam-
219 Nos romances posteriores de Gibson continua ocorrendo a implmão entre arte e
217Ver a entrevista de Gibson em McOúfrey, 1991. Sobre !Jlade Runne!' e os fJlmes de tecnologia. Em Count Zero procuro-se um objeto misterioso que nos leva às obras de
ficção científica 'antlutópkos, ver o estudo em Kd!ner e Rya.11, 1988. J~scph Comell d~ coleção do Chi<:agoAn lnstitute. Eln Mona Listl·ovelrirlve, ~ma-das
per.:;onage.ns, Slkk Henry, usa suas escu!tuÍ:ls robóticas como armas durante tun assal-
218A panir daqui. as referências ao Neurorrumc~n· rüio seriio po!>tas no texto com_o _dtaçiíes. to ~ sua ca~a. E toda a obra de Gibson apresenta uma implosão entre os seres humanos
Se o leitor aind:~ não tiv<.'i" lido o romance, recomend.-unos que o .&Ç\ antes de prosseguir. e a tecnologia.

390 391
mente afastados, e, com tim estalido escassaniente audível, dez lâmipaS de duzir uma nova síntese de ROM e RAM, infonnação e personali~ade, tor-
quatro centímetros e dois gumes cada uma desliz.'tram de sob suas unhas nando-se, efetivamente, Deus, um novo supt-a·ser e uma _int<~lig&lcia· capaz
esmaltadas de bordô" (25). de controlar o universo.
No fim da versão da trilogia feita em disco para computador, GibSon . O episódio em que Case e seus comparsas fazem uma parada ·na co-
afirma que seus romances não são meramente sobre computadores, lônia espacial rastafári de Zion confere um ·sabor teológico aos eventos.
Zion foi colonizada por antigos viajantes rastafáris, que continuam vivendo
mas tratam d'l tecnologia em sentido mais amplo. PessOalmente, desconfio no espaço:<':fs'"andãos de Zion»prevê<:m a chegada do fim do mundo c de-
que, na realidade, tratam da Cultura Industrial, ·daquilo que fazemos com as signam uma 1_1ave, a Marcus Gm·vey (do nomç do Iíd~~~o movimento de
máquinas, do que as máquinas fazem conosco e da falta de consciênda (e em retorno à África na década de 1920). Indicam o~f~o Maelcum como guat'- _
geral de legislação) que houve, há e haverá nesse processo. dião e ajudante (talvez uma alusão a Malcolm X).A profecia religiosa sobre
(Gibsçm, 1991:564-5) , o fim do mundo codifica o triunfo da tecnologia como teniática religiosa.
Alegoricamente, essa profecia póde ser descodificada da seguinte fonna:
Enquanto uma parte da ficção científica atual (por exemplo, Crash de fim do munt~J··= fim da modernidade em que os seres humanos reinaram ...
Ballard) retrata a perda do ser humano e sua transformação em objeto, ou pc~s~'fti.:...A:inar. Daí por diante, os. computadores e a inteligência artifi-
numa visão de reítkação total, semelhante à de Baudrillard, ou apresenta o cial Passarão a reinar à maneira de Baudrillard, e esse reino significa que o
desaparécimento do ser humano e sua substituição pela tecnologia Ou por fim da soberania da espécie humana está chegando.
novas formas de vida, na visão de Gibson o ser humano subsiste.As emo- Tanto Bau!Jrillard quanto Gibson compartilham uma visão pós·modet-

ções humanas, em particular, são a principal motivação dos protagonistas, na que é o revrrso do projeto moderno, para o qual a tecnologia é .~xtensão
especialmente o medo, o ódio, a lealdade c, talvez, o amor, embora este seja
questionado no universo cyberpunk de Gibson. l dos seres humanos, que a usam com a finalidade de controlar e dominar a
natureza. Dessa vez, porém, a tecnologia está predominando e assumindo o
Portanto, Gibson mantém uma visão romântica de individualismo, da
possibilidad.é de cada um controlar seu própri9 destino, lutando pela sobe-
I controle dos seres humanos, que lutam para manter a liberdade. o poder, a
soberania, sua própria humanidade. Na verdade, no fim de Netwomance1·, a
rania num mundo de tecnologia e corporações gigantescas. O individuaJis. tecnologia triurúou, e o futuro dos seres humanos é incerto. Esse tema é an-
mo romântico de Gibson, porém, está mais próxi~9 do romantismo ale- tecipado no filme 2001, Uma odisséia no espqço (em que o computador
mão de Schiller, que não celebrava a natureza sobre a cultura, como acon- Hal assume o comando da nave espacial). em Colossus [Colossus: 17:~e For-
tece com Blake e alguns românticos ingleses; ao contrário, mostra que a di· bM Project] (em que supercomputadores n1ssos e americanos se fundem
versidade, a ironia e a complexidade delineiam as relações entre os s<:res na ten&tiva de tomar conta do mundo), e em Geração Proteus [Demon
humanos, a cultura e a tecnologia. No entanto, existe também em Gibson Seed] (em que um computador violenta Julic Christie e assume o controle
umá evidente saudade de coisas do passado e de sentimentos e sensações de sua casa). Em Neuromancer, porém, Gibson retrata a luta de um herói
humanas!'" Além do mais, é patente em Sua obra o medo das possíveis que ainda tem desejos, esperanças, medos, anseios, ódios e lembranças e
conseqüências da perda de controle da tecnologia e da suplantação dfÍ ser está em luu para manter o controle de seu meio ambiente. Nesse aspecto,
humano por ela no domÚ)io do universo. Em certo sentido, Néuromancer segue a tradição dos durões de Raymond Chandler, que retrata indivíduos
é uma fantasia sobre o predomínio dos computadores ou da inteligência ar- em Juta pela honrn e pela autonomia num mundo corrupto.Assint como os
tifidal.Acaba-se sabendo que uma IA chamada Wintermute está por trás das detetives de Chandler, os heróis de Gibson têm seu próprio código de valo-
maquinações. do enredo, desejando fundir-se com Ncuromancer para pró- res e ·marcham em sua própria cadência, a despeito de todas as forças tec-
i nológicas e econômico-financeir.IS que tenlilm controlá-lo.
NãO há dúvida de que as subjetividades em Gib~on são vulneráveis e
220 Gibson já foi vcndedor_.;le antigüidades, e sul! obra e'·idencia gt;mde amor por pe-
ças antigas especiais. Do mesmo modo, de demonstra sentir saudade das antig~s for-
imperfeitas, mas representam individualidades que teritam sob,reviver, man-
mas de individualidade e humanidade, tOrmas que estão desaparecendo nas sodedades ter. o controle e até preservar a honra e a dignidade num mundo ameaça-
tecnológicas atuais. Assim como Orwe!J, em !984, Gibson envolve em emothdd;~de os dor. Essa preservação da subjetividade indhidual é uma das mais importari-
objeto~ antigos que repre~entam um tempo mais feliz e mais simples para os críticos tes difetenças em relação a Baudrillard, para quem o sujeito é um termo
da atual, forma degrndad:< de 'ida social. num terminal, perdido no êxtase da comunicação (1983 c:l28): Para Bau-

4 392 393
---:-]--

,,
drillard, o sujeito já não vive''como ator oq dramaturgo, nias como um ter- No universo de Gibson, o dinheiro, os dados, os programas de compu-
minal de mliltiplas redes" (íbid.).As personagens de Gibson, em contrapar- tador, as patentes, os arquivos do governo, os segredos militares e as fichas
tída, têm emoçõés humanas comuns e Vivem aventuras de romance, intri- dos indiVíduos, bem corno outros importantes dados, estão armazenados
Sa, comércio e busca de identidade, poder e significado, ainda que seu cor- no cib'crespaço: ao qual têm acesso os caubóis de computador po-r méio de
. po esteja diminuind~ de importância e que ela.<i estejam mais vivas no rei- seus consoles; na cabeça deles há fios chamados "trodos" (provavelmente
no do "ciberespaço". uma abreviatura de eletrodos), graças aos quais a mente de cada um deles
O.termo "ciberespaço" foi usado pela 'primeira vez por: Gibson nUm -interage com "ô~mundo dos computadores. Para Gibson, o ciberespaço tem
conto de 1982, "Burning Chrome", ·como referência a uma realidade virtual arquitetura e forma coloridas; ele o imagina trid.jmcnsio'rt.~ e navegável. Tal
gefada pelo Computador (Gibson, 1986). Hoje eSse termo é usado comu- é a velocidade ~ transformações tecnológicagt.-~:g: modo como_ a "reali-
mente para designar vários tipos de espaço gerados_por computador cOmo, dade" imita a ficção mais fantástica que as empresas de verdade estão arma-
por exemplo, vários serviços de informação e-sistemas de comunicação, sis- zenando dados em configurações gráficas, empregando sistemas de segu-
tel)las de realidade virtual (experiências audiovisuais e táteis, telépresença, rança para impedir o seu roubo, o acesso indesejável c a invasão por ví-
etc.). Esse conceito foi incorporitdo num tilme de 1982 chamado Tron, uma , rus.'" Em todb ~asa, o mundO da informaçãO no ciberespaço, para Gibson,
odisséia eletrônica [Tron], cujas personágens entram em computadores tem for~~jf~rutum; é um universo e uma realidade para si.
para participar de aventuras. A série deT\-: Max Headroom baseou-se nesse O reino da hiper-rea!idade do ciberespaço, a que se tem acesso por
conceito, e o mesmo ftzeram algum> filmes_ de Holl:ywood, como The Lawn meio do computador, é mais real c envolvente no universo de Gibson do
Mou.lf1r Man e O fantasma da máqúina [The Ghost in the .Machine]. que o mundo da~xperiênda cotidiana. Case refere-se a seu corpo com des-
Em Neummancer o "ciberespaço" é defuÍido por Gibson da seguinte dém como "carn'ê;, e como "prisão de carne"* (6; ver também 9,passim).A
maneira: ex'periência fisib, inclusive o sexo, é relativamente desinteressai) te e _sem
importância para ele; seu orgasmo é descrito como ~um azul fulgurante no
Uma alucinação coletiva, sentida diariamente por bilhões de operadores pro- espaço atempora.l, um_a vastidão como a matriz [do computador (33). Só r
fission:tis em todas as nações( ... ) uma representação gráfica de dados ab5traí- quando entra: no ciberespaço, ao que parece, é que Case se torna realmente
dos dos bancos de todos os computadores do sistema humano. Col?plexida- vivo, e seu anseio por entrar no reino do espaço-<:omputador é uma répli-
de inimaginável. Unhas de luz estendidas no não-espaço na mente, aglomera- ca dos anseios de transcendência religiosa (ou da necessidade frenética dos
dos e constelações de dados. Como às luzes da cidade recuando.(...) viciados em droga).
(51) Embora não se _entregue ao jJathos da vida nem à celebração do cor-
po à ma'heira nietzschiana, Gibson repete os conhecidos motivos nietzs-
E..<>sa definição do ciberespaço como "alucinação coletiva" é, porém, chianos da vontade de poder e da vontade c;le identidàde como principais
um tanto enganadoi-a, pOis os fenômenos que agora estão sendo descritos impulsos dos seres humanos. O universo tle Gibson, assim çomo o de
com esse termo são atuais c reais no presente; são os sistemas de bancos Nietzschc, -é um universo de· luta, e o· motivo da auto-superação, da
· de dados, as comunicações por mensagem eletrônica e on-line, a televisão constante transcendência, é também um importante motivo (nietzschiano)
por satélite e os jogos e máquinas que·se valem da realidade virtual. Esses em G!bson. E emQora as relações pessoais e o amor sejam relativamente
fenômenos não são alucit'latórios nem subjetivos·, mas simplesmente espa- pouco importantes para Case, um -resíduo de romantismo atravessa a obra
ços e redes de um.'l sociedade tecnológica dominada pela mídia.w de Gibson. Na sua ausência, os textos de Gibson promovem um anseio pelo
amor romântico. Confiança, traição e relações entre homem c mulher são
temas importantes para Gibson, assim como o eram na ficção noir com a
221 Inicialmente não havia nada semelhante ao dbere~paço de Gibson, mas apenas al-
qual a sua obra tem profundas afinidades.
gumas aproximações rudes, como dispositivos de s~nulação ou úculos de realidade vir-
tual. Hoje, porém, sobre o dbei-espaço e a realidade virtual proliferam estudos que apre-
sentam Gibson como profeta desse novo espaço e dessa experiência nova (ver artigos 222 Sobre o roubo de informaçõe~, ver Hafner e Mrkoff, 1991, i: sii:rling, 1992.
sobre O çiberespaço em Benedict, 1991). En.contramos centenas de a_rtigos de jornais e i
re\-i.stas em bancos de dados de computa(\or que descrevem as formas contempori_- • Cabe notar aqui que a palavra usada em inglês é "meat"(carne como alimento), e não·
neas do ciberespaço, atribuindo a origem do termo a Gibson. Esse é um claro exemplo "t1esh'', palavl'll normalmente Us;\da par4 designar a "carne" como matéria em oposição
em que alguém cunha tun termo e uma idéia que os inventores ai:l.otam e concretizam. a espírito.(N.T) '- .

394 395

I
.. i
As personagens de Gibson movem-se do ciberespaço para."o rear· c '
Voce não .<jC preocppa coro n s_ua espécie. Ducinte milênios o homem sonhou
deste para aquele (isto é, aquilo que se re:trata no espaço narratiVO. do ro- em fazer pactos com os demônioS. Só agom essas CoiSas são possível>,'. E o que
mance), e, assim como os sujé:itos em desaparição de Baudrillard, vivem I você está ganhando para isso? Qual seria o seu prfÇO por ajudar ess,a coisa a
num mundo· onde é impossível fazer a distinção entie simulacro c reali-- libertar-se c crescer?
dade, n'um universo onde o corpo habita aquilo que Baudrillard chama de
"deserto do real" (1983 a:2).Ao longo de todo o romance, nãO fica claro se
as personagens estão no espaço "real", no espaço do computador, na me-
mória implaÓ.tada, no espaÇo simstim (simulacro da realidade c~ad~ pe;o
I No enltrnto, Gibson não demonstra simpatia por essa posição,. c o lei-
(16:))

tor é levado a aplaudir a fuga de Case da poliçia.


computador) ou em outros reinos do dberespaço. Portanto, o propno con- O· roman~e também trata do poder e d1s::-~o âê"'·imortalidade que .
ceito de realidade desaparece à maneira de Baudrillard, e a implosão entre pode ser atingida pelos grandes cOnglomerados econôlTl!cos e, suposta-
"realidade" e outras dimensões da experiência cria um novo reino multidi- e
menté, pelos computadores pelos indivíduos que interage(n com a tecno-
mensional e desorientador da· experiência. ., logia. "Poder"_, no mundo de Case, significa tJoder e controle empresarial-fi-
Embora Gibson utilize temas presentes em Baudrillard, como o simu- nanceiro;sdbl-e a informação e a tecnologia. Os zaibatsus, grande's conglo-
lacro e a hiper-realidade, o ciberespaço de Neuromancer é complexo, te- mérad"o~~ÚStriais e financeiros mlli.tinacionais q'ue mOdelaram o curso
tal, misterioso, multidimensional e aventuroso, ao passo que o êxtase de co- da história humana, no mundo de Gibson transpuserain antigas barreiras.
municação de Bandrillaid, por sua vez, é plano, unidimensional e explícito, Vistos como organismos, eles atingiram uma espécie de imortalidade."Não
sem profundid<!-de nem mistério, totalmente visível e "~bs~eno" (19~3 podemos acab~r com um zaibatsu matando uma dúzia de s.eus executivos
c:130-l). Enquanto o mundo pós-moderno de Baudril!ard e frlo,_operacJO- mais importantes; haveria outros esperando para subir um degrau, a assu-
nal, racional ·e funcional, sem segredos nem surpresas, o utüverso de mir o posto v~go, ter acesso aos vastíssimos bancos de memória da compa-
Gibson é candente, violento, opaco, misterioso e cheio de -segredos, surpre- nhja"(203). Nesse mundo, a família empresa'rialTessier-Ashpool "era um atf~
sas e ameaças. _ vismo, um clã" (203), que queria manter a po~se de sua riqueza e de seu
Para Gibson, a tecnologia é antropomorfizada; os c::trros falam ,e an-- poder dentro da unidàde fumiliar. O clã TesS.ier-Ashpool, portanto, represen-
dam sozinhos (87 s.), "J e os construtos de computador têm personalidade. ta uma forma anterior de capitalismo, o capitalismo familiar, agora obsole-
os seres humanos, porém, são tecnologizad~s com implantés, cirurgias, fár- to no contexto global transnacional.
macos e intervenções genéticas que alteram' a própria substância do indi- Dessa perspectiva, a ' IA Wintermute representa uma nova forma ' de
víduo e produzem-novas sínteses de tecnológico e humano. Na verda~~· a tccnocapitalismo, na qual os computadores e uma estrutura econômico-fi.
alegoria de Neur01nancer, segundo a qual a tecnologia acaba predomman- nancdta impessoal controlam as informações c o poder, e os indivíduos
do concretiza a visão de Baudrillard (1990) do triunfo do objeto.Alérn do éonquistam o poder de acordo com'os vínculos que tenham com essas es--
m~is, Gibson, assim como Baudrillard, não reproduz meramente impulsos truturas e seus campos de dados. A mãe "de 3Jane, Marie-Frnnce, tem uma
tecnofóbicos, mas descreve um novo Cstado de coisas no qual a tecnologia visão sobre o futuro das estruturas industrial-financeiras que difere da visão
assume mais poder c autonomia do que os seres humanos.A certa altura, a do patriarca antiquado (cuia morte ela de ô~to engendra), e sua visão é pro-
policia francosa prende Case, acusando-o.de traição à espécie por traba-~ar gramada na IA Ncuromanccr. Marie-Fr.tnce nos imaginava "numa relação
para uma inteligência artificial. Lembrando a lenda de Fausto, um polictal simbiótica com as IAs, sendo as deçisões tomadas em nosso fa~or.A Jessier-
francês diz: Ashpool seria imortal, uma colméia, em que cada um de nós seria uma
unidade de wna entidade maior". (229). Embora o velho Ashpool tenha ma-
223 Baudrlllard (1983c J 27) imagina umá nova interação comunicacional em que os tado sua filhá 1\-iarie-France, a visão desta provavelmente triunfou no fim,
automóveis substituem o prnzerda embri_aguez e o poüer da vdocidade, e Gibson apre- visto que sua estratégia foi prQgtamada no Neuromance~ que afinal deverá
senta run novo estágio d~ .desenvol11imento e a imagem t:oncreta dessa fantasia. É in te: fundir-se com Wintermute.
rcssante o relato de Gibsun, nruna entr<.:vista à Rolllng Stone. de que ouvia Dtll"knes.ç Nesse sentido,Neuromancer é uma alegoria sobre a morte do capita·
on tlw Jidge oj1bwn, de Bn~ce Springsteen, enquanto escrevi<1 Neummancer: "e me lismo familiar e do triunfo de nova tOrma de capitalismo, dos grandes con-
perguntava se pode riu haver uma mitologia do5 computadores que tivesse algo em co--
mum com a mitologia dos automóveis de Springsteen" (Ro!Hng Stone, 4 de dezembro glomerados, em que a tecnologia assume pOsição dominante. Mas ta~bém ..
de 1986:107}. há uma alegoria do triunfo da tecnologia sobre o ser humano e da lu,ta pela

396
I' .397

1

'

. .
imortalidade.A IA \Vmtermute deseja ser parte de algo maior, em última ins- ter sido à ffianipulação de 3Jane. Case.também pare~e 'ter obtido a~ma
tância ftmdir~e com Neuromanccr, tornar-se uma nova inteligência supec imortalidade de Computad()r no fim do romanCe, que se encerra com ô
· rior, unir inteligência c personalidade para produzir t.ima. força: vital màis seguinte trecho:
, elevada, Deus, mas não Deus Pai.Além disso, na forma de onipotência infor-
mática, em que a tecnologia se torna Deus, não há ressurreição do corpo à Gastou a maior parte do que tinha num banco da Sufça com um pâncreas e
maneira cristã e budista. mWintermute pode conseguir uma peisonalidade, ~mt fígado novos; o resto gaswu num novo Ono-Sendai [console de computa-
mas não há indícios de que terá um corpo, assim como não há indícios do d~r] eií:Uma passagem de volta para o. Spmwl. .
tipo de divindade que será .
Portanto, o futuro· no qual a tecnologia assumiu o controle é apre-
Eocontrou
' . tmballio. , ~

~ncont~~u ~1ma moça que se autodcnOmin~:"*~tad. · ·


sentado como questão aberi:a. Gibson não se entrega ao pavor tecnofól:>i- E muna no1te de outubro, ao passar pelo terço ·escarlate ~Jurisdição da Fis-
co c apocalíptico, mas simplesmente retrata Uma situação na qual os ·sâo Costeira leste, viu três figur.ts ritinúsculas, impossíveis, paradas na beiri-
computadores parecem predOminar.")Talvez o coitstrutQ.de computador nha de u,m dos grandes degraus de dados.Apcsar de pequenaS, ele conSI!gltia
Dixie\Flatline dê· um indício sobre o futuro e o destinq de Wintermute/ disC~rflit';9 sorriso aberto do rapaz, suas gengivaS rosadas, Ó brillio dos longOs
Neuromancer. Dixie, que só está vivo quando ligado a, um computador • olh,'f~'ilizentos que haviam sido de Riveria. linda ainda e~tava de jaqueta;
com seu programa ativado e uSadO, conségue fular, interagir ~ movimen~ acenou pam ele. Mas a terceira figUra, bem ao lado dela, com o braçO sobre
tar-se pelo campo do ciberespaço, mas se sente entediado com aquela seus ombros, era ele mesmo.
vida virtual e implora a Case que o apague, como se essa forma de imor- (270-1)
talidade (ou seja, sem t•essurreição do corpo) fosse insatisfatória c até in-
tolerável (Wintermute acaba por realizar o desejo de Dixic, apagando-o). E assim '~ase também parec~e ter obtido alguma forma de imortalida-
Essa cena parece implicar que a imortalidade do computador não é abso- de como construto de computador, vivendo para sempre no cibc'respaço.
lutamente imori:alidade, que sem a ressurreição do corpo não pode haver Isso é simplesmente apresentado como mistério no fim do romance; não é
felicidade eterna. Ou será isso apenas tJma limitação dos· humanos, que vi- festejado nem sondado. Serve de alegoria de uma situação n·a qual as-implo-
vem amarrados, enquanto os computadores -podem ser pcrfdtamentc fe~ sões entre seres humanos e tecnologia podem produzir espécies novas, ca-
e
lizes vivendo para sempre sem corpo, que é o invólucro a densidade pe~ pazes de viver em novas arenas do espaç0 e do tempo, aponJ;ando, assim,
culiares dos seres humanos? Por outro lado, como sabemos e Gibson · para uma pós-modernidade <i_ue estaria além do ponto atua,!, em que tecno-
sabe, toda tecnologia ,logo se torna obsoleta e se transforma em péça de ~ogia e seres huínanos coéxistem em reL'lções contraditórias e instáveis. -
museu- ver a introdução de Gibson à publicação eletrônica de sua trilo- , )_\!vez a principallfu-Jitação do Neuronumcer de Gibson seja a apresen-
gia, que fala sobre esse aspecto (1991). taÇão sumária e in~ufidente da sP"tteSe entre Wmtermute e Neuiumancer, o
Além disso, o vellto patri~ca Tessier-Ashpool ficou insatisfeito co~ que é feito de modo abstrato e pouco detalhado .Já p~rto do final, Neuroman-
sua imortalidade criogênica, embora nesse caso a causa do mal-estar possa cer causa a morte cerebral de Case e o atira num ciberespaço,onde .os d(;lis se
encontram, assumindo Neuromancer a fot:r:na de garoto· bmsileiro (243-4).
224 O tema da ressurreição da carne é esotérico nó cristianismo; encontra·se nos Evan· Numa alocução abstrata e poética, Neuromanc·er diz seu nome a.C..a.se e conta
geU1os, mas nem sempre foi alçado a dogma. Certas seitas do budismo, porém, 'repre- como "Marie-France, minha senhora, preparou esta estrada" (ou seja, progra-
sentavam o paraíso ou o Nirvana em termos muito concretos, em (jUC os corpos ressur· mou<l), "mas seu senhor calou-lhe a voz antes que eu pudesse ler o livro de
gem fnlindo os prazeres da carne (ver as pinrnras do 'paraíso" nÓ Museu Nacional de seu~ dias"(o seja, seu pai a matou antes q1.1e ele pudesse tomar conhecimen~
Tóquio). to dos ,planos dela para- reestruturar a companhia sob o controle da tecnoló-
225 A ficção cybetpunk posterior de Gibson trata da~ aventuras subseqüentes de mui- gta). A IA então explica:"Neuro de rÍervos, os caminhos prateados.Romancer,
tas das mesmas personage-ns, mas não mostra a trajetória deWintermute(Neuromancer; romancdro. Eu evoco os mortós (...)sou os .mortos e a rttra deles (. ..)Fique.
nio diz se o seu reino foi benévolo ou opressivo, SU!,>Ctinào que megaprograma se de- Se a sua mulher é um espectro, não sabe disso. Nem você saberá".
compôs nuln!L.pluralidade de programas descentra!izados.Tudo o que Gibson escreveu
depoi>, porém, implica que os snes humanos continuam coín certa parcela de sobera- Neuromancer diz então a Case "a escoth.a é sua", como se Case pu<ies-
ni~, embo~ esta e~teja sempre sendo amcaç~da pelo grande poder econômico e pela se decidir se qttcria uma ·espécie .de imortatidade (morta) no ciberespaç<)
·, tecnologia. (que Case encont.ra de novo na última página),ou se queria retÓrnar à exis-

398
têqda física. (de carne [comestível]). Case volta à- consdêtÍda e ao cOrpo, namcntc. Uma vez que 9s seres humanos se tornam mais técnolôgkos e
mas não !Jca claro por quê, assim como Oão fica claro exatamerite o que que a tecnologia se·torria mais humana, prenuncia-se uma novâ implosão
Neuromancer lhe oferecia. Como notamos, também não está c_laro qual o entre seres humanos e tecnologia numa nova era histórica do murido
significado da fusão entre Wintennute e Neurom~cer, nem o da fusão cybe1punk com um novo sujeito histórico (ou o desaparecimento deste
entre ROM e RAL\1, inteligência· e personalidade. A personagem Ncuroman- num mundo de objetos).Tal universo mereceria se~ descrito em ~ermos de
cer é pouco desenvolvida, e não temos certeza do que está reservado para ruptura pós-moderna e constituiria uma genuína·fratura histórica.
os seres humanos controlados pela tecnologia e qual o destino deles mun Tal~ Neuromancer'qu.eira mostrar que, sem a ressurreição do cor·
mundo tecnológico.u 6 · po, a "ida eterna não. é satisfatória, ou talvez que a I:A.,será perfeitamente fe-
No entanto, Gibson não glorifica nem condena a inteligência ártificial liz sem corpo e sem forma humana. Quem,.:§ª-.lJ.ç;? Enl'todo caso, o universo
quando esta tenta aumentar seus domínios. "Wintermute~ é o signo da tec- de Gibson é aberto. O que acontecerá a segtif?'não está certo, e .o futuro
nologia morta; "'Winter~ é o inverno c a ausência de vida; "mute" é o mutis- tecnológico é desconhecido. Mas, se soubermos que ocorreram mudanÇas,
mo. Portanto, esse termo estabelece uma antinomia entre tecnologia rítor- importantes, teremos mais probabilidade de sobreviver e medrar do que se
ta e gente "iva, mas sem nenhum pafhos nietzschiano de superioridade da conti~\.latfuos vivendo nas ilusões do passadq.
<. ·.. ',:
vida, da vida humanã., sobre as coisas mortas. Case, afinal, descreve desde- ·:o'.» ..
,:..;,~

nhosamente seu próprio corpo como "carne" [comestível], e nissO não há i'ir ~--
nenhuma glorificação do corpo e da natureza; na verdade, o cenário cyber- .YIAPEAR O FUTURO: JLU:vl!NAR O PRESENTE
punk parece ser um ambiente pós-holocausto, onde a natureza se estiolou
e morreu: os animais são raros, e algumas espécies, como o cavalo, desapa- O Neflmmancer de Gibson e outras criações cyberpunk constituem
receram. A "natureza humana", para Gibson, consiste apenas em memórias tlm ótimo mapeamento de uma possível trajetória do presente para o futu~
e emoções - como medo, raiva e ódio -, t<: num corpo mutável, capaz de as- ro, apontando par;t desenvolvimentos fundamentais da tecnologia, capazes
sumir now.s formas em suas implosões com a tecnologia. de produzir um futuro diferente.A ficção cyberpunk lança um olltar infle-
Portanto, enibora se mantenha fiel a um individualismo romântico (ao xível e realista para-Os poderes que estruturam nos"so mundo, suscitando
contrário de Baudrillard), Gibson não é ~humanista" sentimental nem tec- importantes questões acerca do modo como a tecnologia estrUtura a expe·
nófobo. Como ocorre em Baudrillard, a tecnologia venceu, é is_>:;o aí, e .a riência e o status do ser humano, à medida que ..a infra-estrutura cja socie-
aventura deve continuar. No entanto, o romance também sugere uma nova e
dade vai deixando de ser industrial de estar ligada à produçãó, paSsando
espécie de imortalidade: se noss~ cérebro, nossa inteligência pudesse ser a ser .uma cultura da mídia e da informâção na nova e~. do tecnocapitalis-
danada, viveriam os para sempre.Neuromancet· descreve a criação dC uma rrío~.Há,portanto, uma interessante diferença entre a ficção cyberpunk e os
inteligência artificial vivente e a duplicação dos seres hUmanos (Dixie romances históricos tradidonais, descritos por Lukács e Jameson, que ten-
Flatline e Case) no ciberespaço, adquirindo uma espécie de imortalidade tavam iluminar o presente apresentando uma visão critica do passado (Cs-
cibernética. Ora, realmente poderia ocorrer uma fratura histórica caso Os ti"""J.tégia também empregada por escritores do "realismo rilágico", como
objetos controlassem os sujeitos humanos c produzissem o espaço de Marquez e Carpenter). O cybe;purzk, ao contrário, ilumin;t o ·presente pro·
outr-a realidade viva - fantasia da última fase de Baudrillard, t<_Ullbém suge- jetando visões do futuro que realçam fenômenQs-chave do momento atual
rid.1. em Gibson. E com a superação da finitude na tfanscendência da morte, e seus possíveis efeitos.m '
o ser humano sem dúvida desapareceria, pois as emoções humanas mais Gibson e Baudrillard, portanto, fazem uma arqueologia do futUro·com
profundas estão ligadas ao medo da morte e ao ódio daqueles Que amea-. o fito de delinear as estruturas, as tendências c a dinâmica do presente.
çam a vida.Aiém disso, tanto em Baudrillard como em Gibson, a tecnologia
pode refazer e modificar drasticamente os seres humanos, externa e inter- 227 As·teorias modernas também temam entender o presente a partir ilo passado: Con-
dorcct c seus e~tlígios hi.stóricos, C~mte·e as três eras históticas, Marx e petlodizaç:io
Ua história, NietzsChe e suas genealogias e comparações histÓriC:Is c Weher. com seus
226 Num romance posterior, Count :iem, cuja ação se passa sete anos depois da ação poipudos tratado~ históricos; tudo isso é estudado emAntonJo e Kellner, no prelo. Nes-
de Neuronumcer, percebe-se que a inteligência artiflcinlunitáda 5C fragmemou numa se sentido, Foucault é um teórico moderno, assim como Baudrilbrd em sua, primeira
multlpliddade ,de deuses guerreiros, apresentados no panteiio da:; divinda'\es t!Udu. f; fase, quando traça um esboço dos estágios da história em Stmulations. Portanto,entert<
como se o centro não se sustem asse, e o futuro estivesse condenado a reviver as guer- der o presente do ponto de vista do fumro faz parte de" um :r. postura indubitavelmen-
d:; entre divindades em CO'!flito: precisamente ,1 visão de modernübde de J\.1a.'< Wi:"ber. te pós-modema, ou pelo mellos ')'be1punk.


400
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I 401 -
.

-
j .
Ess~s "sistemas de advertência à distância" constituem uma moralidade cau- Hão política nos_ romances de Gibson com freqüênêia é re~ratada tle inodo
telar acer<?a daS futuras conseqüêndas de certas tendências e fenômenos negativo." 9 Embora a resistência subcultural seja retratada de modo positi:
do presente.Assim como O admirável inundo novo,1984 e outras proje- .vo nos C$boços de "Panther Moderns" (que combinam a iconografia dos
ções prescientes sobre o futuro, Baudrillard e o cybe1punk exercem fim- · Pit:Ó.teras Negras coni os grupos subculturais britânicos Mod da década de
ções mapeadoras e terapêuticas. Extrapolar as atuais tem;lências tecnológi- 1960), raramente se encontram revolucionários políticos no mundo cultu-
cas, culturais e sociais para posSívCis resultados futuros é algo que ajuda os ral e tecnológico basicamente pós-político de Gibson.
indivíduos a mapearem as Suas atuais constelações sociais e a desenvolve- A nostalgia do individualismo romântico e das produções do passado
rem a capacidade de enfrentar o choqi.1e do futuro, uma vez que este ine- c a ausência da polltica são compensadas em Gibson:>~elo sentido de am-
vitavehnente baterá de frente contra nós, com a velocidade da irúormação bigüidade dos efeitos da tecnologia; ele, cofttg..,~ mai~ria dos escritores
eletrônica e a força da explosão nuclear. cyberpunk<;, é mais positivo do que Baudrillaid:'Mfl relação à tecnologia e
Gibson c os cyberpunks.não são tão_antiutópicos quanto Baudritlard à pOssibilidade que têm os seres humanos de usá.Ja em seu próprio provei-
ou certos pressagiadores do presente/futuro, como Huxley e OrwelL São to. Em certo sentido, Gibson é apenas um genuíno americano ao afirmar a
muito mais positivos em relação à tecnologia do que seus predecessores, importâry;:ill (Ja autonomia individual c~mtra as forças sociais e cconõmicas.
e, embora· não sejam ingenuamente tecnófilos, também não são tccnófo- É gem.l+ÇP."te americano em sua visão dos poderes redentores. da ciên-
bos, tendendo a equilibrar as avaliações sobre os efeitos da tecnologia, pois cia é da tecnologia.- Para Gibson, além da fro.nteira existem novas oportuni-
enxergam aspectos positivos e negat.ivos na sua explosão e na sua implo- -dades, e seus contos, romances e relatos de viagens sempre têm uma desti-
são com a cultura c o ser humano na era contemporânea. Graças aos naçãO e um o~ctivo. Como diz Csicsery-Ronay,
próprios_produtos da cultura tecnológica e consumista;entrc os quais com-.
putadores, videocassetes, walkmen, rádios "faixa do cidadão", televisão a Gibson e ktL~ protagonistas entregam-se,conto após 'conto, à busca do restabele-
cabo e satélite, designer drug e toda a parafcrn;Wa de uma sociedade con- ' dmento dos valores~ do significado.Têm nffia vantagem em relação aos habitan-
sumista high-tecb, os cyhe1punks vêem a tecnologia como algo onipresen-
i) tes mais antigos da ficção moderna: o ciberespaço promete a possibilidade da
te, mas que aprçscnta novas possibilidades para o prazer e a liberdade do construção artifictal da transcendência. Como no passado o cibercspaço sempre
indivíduo, bem como paia sua destruição c escravização. .abson'eu os afetos e objetos associados à sacralídadc e ao valor, os protagonistas
Neuromancer e outras obt'as da ficção cyberpunk também propõem de Gibson não têm outni opção, senão tentar a transcendência artifiCial.·
profundas questões fiiosóficas sobre a natureza da realidade, da subjetivida- 0992:226)
de e do ser humano no mundo da alta tecnologia: o que é autenticamente
humano quando se tornam indefin~das as fronteiras entre humanidade e tec-
nologia? O que é identidade humana, se ela for programável? O que sobra
das noções de autenticidade e identidade numa implosão programada entre
tecnologia e ser humano? O que é "realidade", se ela é capaz de tanta simu- Baudrillard, ao contrário, dissolve o significado e o sujeito no êxtase.
lação? De que modo a "realidade" está hoje sendo corroída, e quais são as
da coml_lnicação e despreza a ação individual eficaz, negando até mesmo a
possibilidade de autonm;nia individual num mundo governa:do pelos obje-
conseqüências disso? Evidentemente, Gibson· não responde a essas pergun-
tas, mas pelo menos suas obras as formulam e nos obrigam a pensar nelas. tos. Vê a tecnologia triurúante nuln mundo pós-humano e demonstra algu-
CÓmo ocorre com Baudrillard, é nos aspectos políticos que a cibra de ma saudade da humanidade apagada no universo tecno~ógico. Não procu-
Gibson se mostl"J. mais problemática.m Seus heróis não são realmente mo-· ra transcendência e~parece cont~ntar-se em documentar as fraquezas e. os
desatinos da era contemporânea. Não existe nada de novo sob o sol para o,
delos de resistência política ou cultural. Podem ser tudo, com demasiada fa-
francês saturado que já vlu tudo e para quem tudo já foi dito, mostrado e.
cilidade, pois se envolvem em interações com as novas· tecnologias. Sem a
feito, para quem tudo o que se pode fazer é' jogar com pedaços.~Jo
menor dúvida, freqüentemente são personagens marginais, ou ·estão além
da lei, e seus livros muitas vezes retratam grupos de contraculturas resisten-
tes, mas cujas principais personagens nunca são rebeldés poÚticos; a rebe- 229 Ver rett'llto extremamente negativo da revolu<,.--ão dos truOOlhadores em Gib6on e
Sterling, 199L

228Ver noss."' avaliação crítica da ,;são política de Daudrillard em KeUner, 1989b. 230 Numa entrevista de 1974, Baudrillard descreve o pós-mÜ<:Jemo como:

402 403
Em suas obras posterioreS à década de 1980, Baudrillard apresenta o mO pelos signos reduz a complexidade e as contradições dos EStadoS UnÍdos
cspetáctdo de um intelectual európeu alienado a fàzer um levantamento do a simples jogo. Em sua primeira fase, Baudtillard estava intéiramente imerso
colapso da modernidade numa crônica fria e irônica. Sua visão niilista e cí- na semiótica, no estudo dos signos e dos sistemas de significação. Embora
nica do presente é bem visíVel na -obra America "<1988), em que ele viaja23 ' tenha rejeitado seu formalismo e o objetivismo de grande parte da scmiótk
pelos Estados Unidos e vê o futuro no presente americano. Ou, em outras ca, ail_lda se mantém fiel a seu modo de ver, de reduzir o mundo a signos. Sua-
palavras, Baudrillard -vê a América de hoje cotlto ficção cientifica, como o visão semtológica vulgar conforma todo o ensaio, no qual Baudrillard afirma
panorama futurista que é o destino do Ocidente, um presente que será o que a América----é um "holograma gigante" em qUe "as informações sobre o
futuro da Europa e do resto do mundo. · tOdo estão contidas em c3.da um de seus elementos" (29).-Ssguindo esse prin-
Faz observações constantes sobre a hlper'-realidade de ficção científi- .. cípio, ele não -hesita em fuzer grandes genct'al.izj.§Q_çs sobre seu objeto de
ca dos Estados Unidos hoje. Salt Lake City "tem uma transparência e uma estudo. oS Estados Unidos são "a única sodedade j)"'f§;tnitiva 1Ymzanescenté"
limpeza sobrenatural e extraterrena das coisas do espaço cósmico'' (2). Nos (7); são uma "utopia realizada~ (75 ss.); e são t1m deserto e um ermo cultural.
institutos de pesquisa de Torrey Canyon, "todos os futuros mandamentos Utiliza o deserto como metáforâ básica para a interpretação dos Estados Uni-
biológicos estão sendo concebidos'~; eles são"lugares subliriJ.es e transpolí- :o
dos c desct%'v:e milagre americano" como "obsceno", (8) no qual mdo está
ticos de extraterritorialidade, ao combinarem a grarideza geológica incólu- reVelado', ~~.ti presente e Patente. Essa sociedade rasa, superficial, caractc-
me da terra como uma tecnologia computadorizada sofisticada, nuclear e riza-se""Por' desertos de não-significado", e sua viagem através do país produz
orbital" (4). A maratona de Nova York é um "espetáculo de fun-de-mundo "uma evaporação de significados escassamente perceptível" (8,9).
(. .. )que traz uma mensagem de catástrofe para a raça humana~ (p. 19-20). "América" ~pois, a alegoria de um-país que para ele. é um jogo de sig-
E o grande deserto do Oeste mostra-se a Baudrillard como um "fragmento nos puros, desprOvidos de significado, finalidade ou valor. Sua redução s~:;­
de outro planeta (que no mínimo precede qualquer forma de vida humà- miótica dos Esddos Unidos a deserto, a espaço vazio, a riào-signifÚ:ado, a es-
na), onde reina outra temporaUdade mais proftmda e em cuja superfície trutura e evento puros, é em parte resultado de sua escolha metodológica,
flutuamos como se estivéssemos em águas saturadas de sal~ (68). que consistiu em privilegiar ayelocidade e o uso do automóvel como modo
Os pequenos ensaiós de Baudrillard sobre AmN'iC?I ilustram sua inaba- de acesso ao seu objeto, de preferir os 'desertos às cidades. Percorrer o Esta-
lável fascinação pela semiótica, pelos signos, pOis ele vê os Estados Unidos dos Unidos a toda velocidade, com o aparelliO estéreo do carro a todo v~ lu-
como uma constelação de signos, como uma ~América astral" _JJt Seu fetichis- me e uma garr-.úa de uísque como companheira inseparável, é algo que es-
vazia o significado e cria um espetáculo de velocidade pura, viagem pura,
signos puros a flutuarem na indiferença vazia, isenta de significado.-
A característka de mn ui:üverso onde não há mais definições possíveis.(... ) Não, No"entanto, incapaz. de aderir ao seu princípio metodológico ascéti-
eS!amo~ m;th nmna história da arte <XltnO histôn'a das formas. Elas foram des-
<:Onstmí<.b~.destnlÍdas Na ieal.idade.n.'io há mais referência a formas.Thdo já foi
co, BaudrUlard freqüentemente desacefera, em especial nas cidades, e
feito. O limite extremo dess."15 possibilidades foi atingido. Destruiu-se. Descons-
truiu-se todo o ~eu universo.As~im. o que sobr~ou foram pedaços.Tudo o queres-
nárío semiológico no objeto "América'. Portanto, quem lê mal é Gane, que tnicrpretou
ta fazer é jogar com pedaços. jOgar com pedaços: eis o pós-moderno.
de modo tot".Umentc errõnco a nossa lcimm. distorçendo nossa crítica e apre5Cllt~ndo a
(1984:24)
) sua "leitum" irremediavelmente atabaU1oada, como"um espelho da própria forma de es-
crever de BawJtillan.l, ou ~eja, fatal ou poéti<-a" (p.l32). Gane. porém. sempre evasivo,
Pode-riamos descrever' a ficção 'J'he!punk, que aparecia justamente quando Baudrillard obriga o leitor a deslocàr-se pam uma nota de rodapé afunde descobi-ir o que ele en-
pontiticava,seja como algo novo e inesperado, seja como um jogar com os pedaços da tende por fonna "superficial e apropriada" de "leitura fatal":"tmta-se apenas de um mo-
culturn contempocinca, portanto, como um "jogo de vestígios", pam usar a t:l<pressão mento da leitura: aquele que segue uma episte!llDiogia (aparentemente) regressiva rumo '
de Baudrillard. ao futa! e àpars total/s_ Segue-se a subida de volta ao êxtase poético. O que, porém,aca-
231 A seguir, indicaremos ent-':C_ parênteses o número das páginas das referências ao en- 00 sendo perverso; segundo n próprio p~nsamento de BaudrHbrd: pura col~ção" (p.
saio Amr.wta1. 228). O próprio livro de Gane é"'ptim coleçlio", tamb.ém petversa,de fragrnen10s;e!e fica
gimndo em torno de Baudri!l:u:d numa critica que não tem continuidade argumen!Jtiva,
232 Nwna polêmica com ma nossa leitura do ens,lio Ame rim de Baudrillard, Mike Gane organização coerente, interpretações fundamentadas nem espírito crítico. A nosso ver,
ataca nossa inte!"pretação "sintomá~ica" e afirma que, na verdade. não empreendemos t;U e~sa prosa confusa ~ atabalhoada. incapa::z de estruturar ttma argumentação ou uma
leitura (ver G:ine,l991 a:178 ss:). Na realldade,fa::zemos mnaleittn-a de Amerlca como interpretação coerente, contribui par.> a derroéada do significado que o próprio
algo sintomático do fetkhi~mo do signo em Baudril!ard, como a proje<;ão de seu imagl- Baudtillard tão b~m descreve.

40'1 405
_então tudo o que vê significa alguma coisa, tudo é um signo de alguma ser intCrpretado como o· fim da modernidade, e a alvorada de ,um""~ovo
outra coisa. Para de, Os dançarinos do break, faZendo espirais no chão, sig~ mundo poderla ser '"ista com.O o adveúto de umà'nova pós-modernidade.
ni.ficam uma tentativa de cavar um. buraco, para si mesmos, irradiam:~o -'a · BaudrHlard, porém, não põe as coisas nesses termos, e ass"im-suas reflexões
pose irônica ·e indolente dos mortos" (19); o jogging na CalifÓrn.ia é "corno são apenas observações tiradas do bolso do cOlete, reveladoras de uma ima-
muitas outras coisas ( ... ) um signo de servidão voluqtária" (38); o "olhos g_ínação apoc~ptica late!lte que nunca se soltou por inteiro.
sorridentes" dos esquilos em lrvine revelam :'um animal frio e feroz a nos Em certo sentido,America, de Baudrillard,.representa um fr~nesi do
espreitar amedrontado" (48); os televisores ligado"s em quartos vazios do seu imagiqát:MJ semiológico. O turista francês reduz tudo a signos e dcixa
HotCI Porterville revel."lm a TV"para aquilo que ela realmente é:,v'ldeo de de ver ~base m,aterial e os efeitos desses signos, a es't;t:l,!tura social na qual
' outro mundo, em última análise destinado a ninguém, a entregar imab>efis eles cstao incrustados, oU a IUstória que prod!f~~jgnosoce· Cstrutuf'a.s. Es~>as
indiferentémehte, indiferente às suas próprias mensagens" (50); e uma pla- reduçõ_es, semiológicas são especialmente eviderilês no estudo ''Utopia rea-
ca de saída de uma aúto-estrada é "um sinal do de~tino" (53). Trecho rrie- lizada" ,em que ele contrapõe os Estados Unidos à Europà e a outros países
moráVel é o dos americanos a lhe sorrirem, que para Baudrillard significa: do mundo. Para ele, os Estados Unidos são a "ve'rsão original da modernida-
de~, não "lt.p1 :;tradições nem história, "Vivem num perpétuo simulacro, no
O sorriso da imunidade, o sorriso da publiddade:"Este país é bom. Eu sou petpét'u~-~~s'ente dos signos" (p. 76). A Europa, em contrapa~lida, tem
bom.Nós somos os melhores" É também o sorriso de Reagan: o atÍgc da auto- história, ~dições políticas e culturais (portanto, tem política e cultura) c
satisf,u;ão de toda a nação americana.(. ..) Sorria, c os çmtros lhe sorrirão. Sor- profimdidade. Os Estados Unidos, porém, exibem .. ·
ria pill-a mostr.tr como você é transparente e cândido. Sorria se não tiver nada ,.,
para dizcr.Adma de tudo, não esconda o fato de não. ter nada para dizer nem o que pod&-ia ser chamado de o grau zero da cultura, poder da incultttra. De
sua total indiferença para com os outros. DeixC esse vazio, essa profunda in- nada nos~ adianta tentar adaptar-nos em maior ou menor grau; a visão de
dlfereÍl.ça brilhar espontaneamente em seu sorriSo. Dê o seu vazio C a sua in- murido deles sempre estará além do nosso alcance, assim cmllo 0
diferença aos outros, e ilumine o seu rosto com o grau zero da àlegria do pra- Wettanschauung histórico e transcendental-da Europa estará sempre fora· do
zer, sorria, sorria sorria .. os americanos pocteni não ter identidade, mas têm alcance dos amerlcanos.Assim como os países do Terceiro Mundo nunca in-
belíssimos dentes. teriorizarão os Valores cb democradit e progresso tecnológico. Existem al-
. (34) guns àbismos que são definitivos e não podem ser transpostos.
(78)
Misturando apocalipse·ficção-científica com súa ·obsesSiva semiótica,
muitas coisas significam para Baudrillard"o fim do mundo", in~llisive a ffiara- ~~e se notar-até que ponto Baudrillard emprega tiposjdéais de .Amé-
tonade NovaYork (19 s.) e a Califónüa com seu~ aparelhos,seufoiging;seus rica, Europa e Terceiro Mundo, tipos que ele mantém em sua pt1reza, afir-
intelectuais trabalhando em processadores de texto, suas seitas políticas, Seus mando que há alguns abismos de difcreriça que não podem !let transcendi-
obeSos e anoréxicos, seus doentes mentais andando pelas n1as (31 ss.). No dos. Esse pensamento essendalista e idealista é, sem dúvida, camcteristica
entanto, Baudrillard também sente que, embora os Estados Unidos sejam "um da pior teoria moderna, que os pós-modernos rejeitam; no enta.nto, Baudril-
mundo completamente podre, com riqueza, poder; senilidade,_i.ndifercnça, lard cai nas malhas de ,um modo de pensar baseado e·m estereótipos culttt·
puritanismo e higiene ment.'ll, pobreza e desperdício, ·futHidadc tecnológica rais que beira o radsmo. 233 É curioso, pois as primeiras análises da implo-
e violência cega", "têm em si aJgo da alvorada do universo" (23).Além disso,
como cle,sempre diz, os Estados Unidos são o centro do mundo (14,23, 28,77
233 Realmente, os textos posteriores de Baudril!ard contêm observaçües sexistas e ra-
s.), modelo para o qual o restante do mundo está caminhando, cistàs que, baseadas na sua surpreendente guinada para o imaginário metafísico, assen-
Embora raramente u.""~ à categoria do pós-moderno, no seu texto, Bau-
·-,·1
i tam num novo tipo de pensamento binário que ele antes rejeit:u-:~. Vér nos.~'ll critica em
dtillard está constantemente fazendo um paralelo entre os Estados Unidos ',! Kdlner,1989b, capítulo 7. É!e também deixa de ver o racismo endênt.ico nos Estados
, __ ;.· Unidos (ver análise da miscigenação, p.82 ss.),e entrega--se a dig.ressõt!s mcísc:is do tipo:
e a modernidade, caracterizando sua sociedade Como prototipicamente A
modcfna, desde sempre li~TC do feudalismo e das limitações da sociedaçle "Como todos sabem, os ameriçanos são fusdnados pt:fas pessoas de pele amarela, nas
quais pressentem uma forma superior de sagacidade, uma fonna mais e\e\o-:tda da áusên-
tradicional, representando a modernidade em suas formas mais, puras (75 · da de .ven:!:lde que os :tpavon"(85).Aqui BaudriUard Unpinge seus próprios preconcei-
.ss.).Portanto, o ''fim do mundo" que ele sentiu nos Estados Unidos poderia tos e temores na fofina de "como todos sabem",

407
.I
sã9, feitas pelo própri~ Baudrillard, continham .cçmentários sobre a imp!Ü-. para um reducionismo semiológico unidimensional, para um fctlchism~ que
são das diferenças r.tciais nas sociedades contemporâneas. i reduz a complexidade daAmérica e do rimndo contempor-Jneo a algtms sig-
nos escolhidos que, etp geral, significam para ele o fim do mundo -e 0 rdno
do vazio e do não-significado. DepoiS disso Ô deserto, e para sempre.
A visão cylw;ynmk No entaino, o não-significado, a indiferença e o -vazio qile Baudrillard
encontra na América é exatamente ó seu próprio -vazio e a sua alienação.
Como nofamos, a visão da implosão radiCai entre raças, culturas e par- Por outro Jadú, as formas mais avançadas de cultura americana, comO 0
tes do mundo é fundamental no cybe1punk de Gibson; sem- dúvida, esse cyberpunk, expressam as energias da nova soCiedade tCçnológica, a alegria
modo de ver descreve o atual-apagamento das fronteiras cntré a América, a e o poder de utilizar novas tecnologias, o êxtaS\1-:~tefã:í;ão com ela, a pu~
E~o{_)a e o Terceiro Mundo, vocação d9 presente. No entanto, observa:m::se jança poss.ibilitada pelo acesso a novas informaçt?es e a nOvos tipos de co-
tendêt;~cias contraditórias: UQla no sentido da maior assimilação, da destrui- municação, a transcendência de ver imagens e criações de todo o mundo,
ção das fronteir.ts culturais e raCiais e da homogeneização da sociedade e da' i entre as quais o que há de melhor em cinema e televisão, tudo isso ao al-
cultura, em contr-.tposição à outra, de créscimento do racismo, âá ênfase nas ' cance da !V-~0~-No entanto, os cyberpunks também retratam o lado escuro
diferenças nacionais e culturnis e da fragme~1tação.Más, como Gibson e Bau- da novà ·~~tlade tecnológica, as crescentes discrepânc}as de riqueza e
drillard tendem a uma visão implosiva de raça e cultura, não captam adequa- poder enfte pobres e ricos, a rápida proliferação do lumpemproletariado,
damente a explosão de diferenças e c.onflitos no atual momento. ' a explosão do crime e da violência, o aumento do podá dos criminosos e
Em outros aspectos, porém, Gibson e os cybe1punks têm uma visão do tráfico de drogas.
.mais precisa e dara do que Baudrillacd, que continua ligado a um modelo O capítul{:f. sobre a ''utopia realizada" no ensaio America afirma fre-
obsoleto e pernicioso de tipos ideais (por exemplo, de raça e seexo), des- qi.íentemente que nos Estados Unidos falta qlltura, ou seja, a cultura erudi-
prOvido de qualquer visão sobre economia política, classe e. capitalisnio.31' i ta européia. Baudrillard realmente nunca mergulha na cultura americaqa,
O mundo dos cyberpunks, em conu-apartida, é constituído pelas novas for-
'
' como o jazz, o blues, o rap ou qualquer forma de música popular; ele pare-
ce achar que a atte americana·está completameme abaixo do nível da arte
mas de tecnocapitalismo, iliclusivc dos grandes conglomerados transnacio·
nais, em especial por firmas an1ericanas e japonesas, e pela proliferaçãó de européia, e, embora sempre se refira aos importantes efeitos do dnqna de
novas tecnologias. É um mundo high-tech onde a informação-é a mercado:. HollyWood, considera o ciÕema, a televisão e outr.1s formas culturais ameri-
riíl mais cobiçada, on;de os computadores e o ciberespaço dão acesso a no- .) canas como simples espaço, forma e velocidade, que fazem parte do
vos reinO$ da experiência, onde os fármacos, a clonagem e os implanteS "american u;ay of life", portanto não como genuína cultura no sentido eu-
produzem novas implosões entre seres humanos e tecnologia. Esse é exa- ropeu. Es~ pensamento binário (eleva~o/inferior, europeu/americano) é
tamente o mundo teórico de Baudrillard na década de 1970, o mundo que· extremamente dúbio c foi rejeitado pela maior parte dos teóricos e práticos
ele abandonou em favor da exploração do "deserto do real~ nos Estados do pós-modernismo, o que demonstra o retrocesso de Baudrlllard para os
Unidos e em~ outras sedes contemporâneas do desaparecimento do signifi- preconceitos do' modernismo elitista europeu. O cyberpunk, ao contrário,
cado, do sujeito, da história, da política e do real. · ~e compraz nas formas de arte popular, assim como nas do modernismo.
Em oposição ao reducionismo do imaginário semiológico,faz-se neces-' _ Na maior parte do tempo Baudrillard circula peL1 classe média e em
sária uma teoria social mu!tiperspectívica q'ue combine cconorilia política, meio ao luxo, o que ele descreve como "utopia realizada"' (p.75 ss.). Rara-
socioloSia, cultllra'c filosofia c políticas radicais, precisamente a mistura do mente vê os p'obres, os miseráveis ou o racismo e o sexismo virulentos da
cyberpunk e da melhor teoria pós-mode.J::na, que se encontra em· Foucaul_t, .. sociedade americana. Deixou de ver as Condições de deterioração social da:
Delcuze e Guattari, }ameson e outros. Baudrillard, ao contrá.r:io, volt?u-se classe média, para a qual não e..-...:iste utopia e cujo declínio de padrão de
vida custou a eleição de George Bush em 1992. Embora Baudrillard identi-
234 Baudrillard mendona qtíe os Estado~ Unidos siio "um posto a...--ançado do capit;Uis-
fique os doentes mentais a perambularem pelas ruas, não identifica os gran-
mo" (90). mas em nenhum momento amdísa o .capita.!ismo americano, talvez co~n a fal· des problemas dos sem-teto nem as origens de~se problema. na política
sa desculpa de que"o capital nunca pode ser de fato apreendido na re;ditlade atual", de conservadora de Reagan e Bush. Só em um momento, porém, toma Conhe-
'i'
que ele está sempre escapnndo e <'$quivando-se à teoria (p. 80). Portanto, :ürrma a-dís- cimento do problema dos pobres. Reconhece que a fácil vida califomíaria
ska posição marxista da "iniciativa absoluta do capital no evento histôrico" (80), mas da utopia re.alizada ·
proclan1a com insinceridade :1 impossibilidade de teorizá-lo. ·

403
~

I
não sabe o que é piedade. Sua lógica é impiedosa. Realiz.1da a utopia, nã& tci. grupos de notícia, de trocas de mensagens, de. havcos de dados e d~ gru~
in.felicidade. Os pobres deixam de ser cóveis. Se a América ressuscitou, então pos de discussão on-line, escrevendo em nova velocidade e nova intensida-
o massacre dos índios não aconteceu, o Vietnã n.'í.o a,conteceu. Freqüentando de. Baudrillard, ao contrário, qtibe uma metitalidade retrógrada, haurindó
os fazendeiros e industriais ricos do Oeste, Rcagan nunca teve a mais leve no- satisfação da velocidade, dâ viagem de automÓVfõl, de uina exíJCriência que
ção de pobreza e da existência dos pobres, nem com o ·menor contato co~ ele já dedarara obsoleta. >)s Suas mitologias pCssoais da velocidade, dos car-
eles. Só c~mhece a evidência da riqueza,a taut9logia do poder, que ele amplia: e
ros do deserto chegam a dâr origem a fantasias arcaicas, influenciadp..·•
para as dimensões da nação ou ,mesmo do mun(lo inteiro. Os necessitas!ós pelo uísqu&,.e:omo quando ele escreve:
serão condenados ao esquecim·ento, ao abandono, ao desaparecimento puro
e simples. Essa é a lógica do "dever sair":"os pobres devem sair". O Vale da Mol'te está grande e misterioso cookmpr~:l'Ogo, calor, luz: todos
(1 ll) os elementos do sacrificio e~tão aqui. Sempre é ~ciso trazer ao deserto algo
para ser sacri.flcado, para lhe ser oferecido como vítima. Uma mulher. Se algo

·-
Baudrillard então disc~te' a dcstituiçã? total dOs pbbres; a sua queda tem de desaparecer, algo· que riv-alize cOm o descl'to em belez.-l, por que não
na ~zona deserta do Ql!arto Mundo~ ,cômo se"o Juízo Final já tivesse acon- uma, tmllher?
• "".:.>.'.···(
~
tecido" (112). Esses trechos retratam com precisão a lógica e a mentalida-
de do reaganismo, mas na realidade essa mentalidade é vítima da história,
e não se eterniza num tipo ideal transpolítico e transistórico, como a análi~ À leitura que fazemos aqui de Amertca de Baudrillatd como um texto
se de Baudrilfard implicaria. Ao contrário, em 1992, esse Quarto Mundo de teoria pro~ssocia1 haverá quem objete que seu texto é apenas lite-
tornou-se b_em visível em LosAngeles e em outras insurreições urbanas, en- . ratura, que se trata de um diário de viagem, que a ironia é o seu tropa do-
contrando voz cultural no rap (ver capíntlo 5), forma ignoradà :Por minante e qu~ o levamos muito ~ sériÓ, '·"' Mesmo assim, diríamos que tanto
BaudriUard.Além disso, os problemas dos pobres, dos seilHeto e de out~ Baudrillard quanto os cybetpunks apresentam visões elucidativas da socie-
vít1mas dos governos Conservadores foram produto do ~alogro' econômi- dade contemporánea, que estão descrevendo tendências e fenõmenos fun-
co da política de Reagan, Bush e dos .republicanos, cuja análise Baudrillard t'fatl'\entais do presente, que estão traçando um grande mapa da sociedade
também ignora (ainda é preciso ver se Clinton c os democratas faÍ'ão algo· riá qual vjvemos e morremos, c que, portanto, estão contribuindo para a
mellior nesse campo). teoria sOda!, mesmo sem seguirem as diretriz<ts ou metodolbgias das esco-
Além do mais, o trecho que acabamos de citar é á única reflexão de las convencionais de pensamento.Nos últimos anos foram inúmeros os re-
Baudrillard a respeito dos pobres e· do Iumpemproletariâdo em todO o clamos .no sentido de se rçjeitarem os modelos da moderna teoria social
livro. Na maior parte de sua viagem, ele percorre desertos e cidades a toda '
velocidade, sozinho ou ácompanhado pelos acadêmicos que o convidam 235 Em •ll:Xtase da connmicação", Baudrillard (1983 e) compara os mitos da moderni·
para dar conferências.O cyberpunk, por outro lado, explora as profundida-. '!ade, t:lis como a veloddade c o automóvel, com as experiências da pós-modernidade,
des, aquilo que é recusado e rejeitado pela prosperidade capitalista. Tam- exemplificadas no"êxtase da comunicação" ,em especlal através da interação com a mí;
bém retrata os mais ek""Vados podc.t:es, os grandes conglomerados econõmi- dia, os computadores c as llO\'as _tecnologias. Declarava "obsoleta" a modalidade de ex-
periência na qual logo depois mergulhou.
cos e as forças .que monopolizan1 a riqueza e o poder, bem como a infor-
m;u,;ão e a tecnologi.'l que estão se tornando os novos árbitros.da riqueza e 236 BaudrUlal'd de fato reconhece que est~ mergulhando na "fic<;:ão da Aqlériea", en·
do poder. Çom a medjação da experiência, explora entidades, pOssibili- trando na "América como ficção" (p.29). Num artigo posterior, afll'tila· que suas refi e"
xõt"S sobre a América são "bm.ieamente ficção" (B;'I.udrillard,1993:243 s.). No entanto,
dades e efeitos das no~-as modalidades de tecnologia, enquanto Baudrillard argumentaríamos que seu texto çonstitui um mru.ldo da 'Sociedade americann, uma
dispam por antigas paisagens do oeste e entrega-se a refleXões gastas sobre visão teórica dos Estados Unidos, e que seu empreendimento ficcional na verdade des-
o deserto, o vazio das cidades e o fim do mun'do. constrói as dicotomias entre ficç~o e teoria social, como faz a lkção qofwrJ}unk. Mas,
No todo, Baudtillard revela-se redu.tor, irremediavelmente feacionário, enquanto o cyberpunk possibilita enxergar com dareza tendências, processos, expe·
obsoleto e muito europeu. Baudril.lard, velho prosa, zomba dos ifltelectuais riências e problemas novos, a obm de Baudrillatd, após a década de 1980, tende a falar
em seus processadores de texto (34 ss.), sem saber que eles estão ligados sobre ele mesmo, e não sobre os objetos da sua escrita, deL;.mdo de ver o·que há de
mais oi"iJiinal na socíed'!de americana contemporânea e na proliferação de novas tec·
ao cib~spaço, tendo ácesso a uma enorme quantidade de dados em velo~ nologias e novas modalidides de experiência tecnológica, assuntos que ele outrorn
cidade inimaginável, encetando novos tipo::; de comunicação por meio· de acompanhava e sobre os quais eocre•iil com ihteresse e acuidade.
em favor da experimentação 9e ~ovas modalidades de discurso e análise cnt3nto, a sua própfia teoria, sem dúvida, deixa de captar as realidades do
· teórica, e aqui afirmamos qui Bá.udrillard e o cyberpunk devem ser lidos tempo e. desqualifica a teoria crítica e a política demociltica. Assim, 0
nesse contexto. O nosso argumento é que mesmo o diário de viagem de" cybetpunk. posta-se nas primeiras fileiras da vanguarda que tenta mapear a
Baudrillard e Outros, como Cool Mcmortes, são uma forma de teoria social realidade social contemporilnea, incitando a teoria social e os estudos cul-
que pOde ser louvada segundo o grau de contribuição que dê para a teofi- . tutais a teorizarerit sobre suas percepções, sobre os mapa.'> que lhes ofer~­
zação c a elucidação das tendências, dos -fenômenos e 9as experiências- ce e sobre.s,eus pontos ·cegos.
atuais, ou criticada desde que mistifique, ignore ou diStorça as realidades Assim;'€m certo sentido, Baudrillard faz aqUilo que a moderna teoria
sociais contemporâneas. , social fez desde o século XIX: descrever as vicissittideS)·de uma nova (então
Portanto, em certo sentido, até a antiteoria de Baudrillard é uma for- moderna) era (ver Antonio e Kellner, no piel&);~s fa'tisso de. uma nova
ma de visão c mapeamento teórico. Por lllfllado, ele está api_'Csentando um maneit"a:A;nosso ver, nesse sentido, os textos de"'Gibson e do cyberpunk
novo tipo de discurso que combina teoria social, ficção, digressões narrati- também contêm uma forma de teo'ria social, e nos 'últimos anos sua obra
vas, observações e críticas cultorais e aforismos; pàr outro, porém, sempre tem sido mais útil que a de ·Baudrilliu-d para o desenvoivim:ento das análi-
afirma que está propiciando o entendimento da situação atual, expondo ses e da ~omJ?rcensão de nossas sociedades .contemporâneas, questão esta
suas novidades e as rupturas em relação ao passado, proclamando a morte
dos fenômenos modernos e a necessidade de novas estratégias c respostas
. ,
que reio~·tt:.ffios na condus."í.o desse livro.
:

teóricas para o desaparecimento do moderno-.


Embora ele forneça alguns instrumentos essenciais para a atiálise da LlTEHATURA. TEORL\ SOCIAL E POLÍTICA
'4 .
nossa cultura da mídia, está -completamente ausente de sua obra a análise
do aparato produtor da ruptura pós-modema, aquele que cria a hiper-rea- Baseandó-nos na teoria do mapeamentO cognitivo de Jameson, disse-
lidade, a implosão, os simulacros, a proliferação de imagem e informações I mos que tanto as produções teóricas de Baudrillard como os textos de ficção
e o êxtase de comunicação.Ao elimi!J-ar de-sua análise a economia políti~a (dentifiéa) de G-ibs_o~ projetam mapas da trajetória 9ue vai do presente ao
e a produção, ele impos'sibilita qualquer teniativa séria de teorizar a cultu- futuro. Dessa perspectiva, teorias éomo a de Baudrillard mapeiam ou apre- ·
ra e as comunicações Contemporâneas.A atual teoria crítica, portanto, de- sentam as condições, as tendências e ·as possibilidades sociais futuras a partir
veria rejeitar essa sua "super.tção~ da economia política e criar novas sínte· da eJctrapolação do presente para-? futuro; isto também é feito por certas mo-
ses de economia política, semiótica e teoria social a frm de mapear as nO- dalidades da literatura, em especial a ficção científica.· e o t-ybetpunk. Além
vidades e os conflitos da nossa áa. do mais, afinnamos que suas análises do futuro mapeiam o presente, apon-
Os mapas produzidos ·pelo cyberpunk e por grande parte -da teoria tando !'ara aquilo que é novo e significativo no nosso tempo e seus poten-
pós-moderna precisam da teoria critica da sociedade para traçar as vicissi-
ciais efeitos futuros. Declaramos que os textos de Baudrillatd, especialmente
tudes da nossa cultura da mídia, para contextualizar suas produções e deli-
os da década de 1970, e os textos de Gibson e do cyberpunk constituem tuna
near seus efeitos. BaudriUard, porém, tcoríza um êxtase da comunicaçãO.
carta geográfica dos aspectos mais importantes da nossa sociedade da midia
que é plano, raso e superficial, cujas imagens e discursqs circulam nõ esPa-
e da tecnologia, feita com o uso do discurso teórico, da metáfora, da narrati-
ço hipcr·real sem nenhum contato com a realidade. O curioso é que esse é
va, da alegoria e de outras técnicas, a fun de elucidar características distinti-
exatamente o destino de sua própria teoria, que de admite ser um sinlula-
cro a flutuar e sofrer mutações num espaço hipérteórico cada v~z ~is des- vas do presente e abordar com rapidez o mundo futuro.
ligado das realidades e dos sofrimentos da vida diáçia. Suas ficções teóricas O momento presente é inegavelmente tenso; nele, as noxas tecnolo-
estilhaçam a teoria, criando fragmentos e cacos que ele acredita captarem gias escapam ao controle, epquanto o poder sociopolítico e suas institui- \
a realidade da nossa sociedade extremamente fragmentada e desintegrada. I ções derruem (como no mundo comunista) ou parecem-incaPazes de so-
lucionar os desafios da era contemporânea (como no mundo capitalista).
No entanto, sobra alguma coisa da crença de que a teoria, seja Já erit q4e
forma, consegue captar o real. Por isso, trata-se d~ um momento de desolação e pessimismo, e Baudrillard
Baudrillard aposta que pequenos ensaios teóricos, fragmentos e simu~ c Gibson traduzem c0m prOPriedade o atual estado de espírito de pânico
lacras de teoria podem fazer o mesmo que as teorias sociais mais coefen- e ansiedade ém relação ao presente c ao futuro (atitudes previstas no
tes e racionais: traçar um mapa do nosso presente, orientar o pensamento mundo profético de Pynchon c Burroughs), além de mapearem as.força.'>
e a ação, ajudar a enfrentar as mudanças e os conflitos da vida social. No que cansam o mal-estar do nosso tempo. -

413
l
de direção. Sem dú:vida, não se trata do tipo de interação face a face.; v.lloftz'à~
da pelas teorias políticas HQerais da esfera pública, mas sim de novas modali-
dades de comunicação numa nova esfera pública mediada pelo computador
· Baudrillru·d é mais sombrio e desesperador do que . Gibson embota e pela núdia, tão lmportante para o futuro da polltíca contempoclnea quan.
este último ache seu livro otimista e que o futuro será bem me~o~ acolhê- to a anterior esfera pública da democracia liberaL
dor do que aquilo que e1e descreve como presente em Neurornanêer m Démocracia do ciberespaço: os novos espaços do computador e da·
Our_ros críticos também acham que 9 livro de Gibson é otimista, que ele de. mídia possi~iliJ.ilm maior parti"ipação no debate público, oferecem mâi.S
posita esperanças no futuro das novas interações entre sere.s humanos e canais de e.Xpressão pol}tica e c"ultural e, com isso, a map.ifestação de dife-
tecnologia (Leary, 1990:53 s.). Em geral, os cybe1punks evitam atacar a tec- rentes opiniões e visões, em grau maior do qu\:!!e,Joci&iade anterior ao
?o~ogia em si, e .põem a tônica nas forças sociais que a empregam em ob- a9vento do computador. O reino da esfera públic~ortanto, expandiu-se,
Jetivos destrutivos e maléficos. Na obf<!. de Gibson e de oulroS·autores dó permitindo a revitalização da democracia, que êstava em declínio e em cri-
cyberpunk, a tecnologia e a comunicação são representadas como instru- se havia. décadas (ver Kellner,l990a e a conclusão deste livro).
mel;ltOs funda_ment.<tis de poder, portanto como algo importante para o con- Ao cqq~io do ativismo cybcrpunk,Baudrillard é tecnofóbico e aPo-
trole democratico. Existe, pois, uma espécie de populismo no movimento lítico, mbs~.~O um futuro no qual a tecnologia domina e o sujeito desapa- .
cyberpunk, segund~ o qual os indivíduos devCm usar a tecnologia para rece, sem &plorar"Os modos como as novas tecnologias podem propiciar o
ate~der aos seus proprios objetivos e devem atuar nos meios de comunÍ.- crescimento da subjetividade e produzir novas modalidades de experiência,
caçao e tecnologia. informação e participação em interação democrática. Baudrillard desdenha
Na ve~dade, surgiu toda uma nova ética dos "hackers", qUe pro pugna a mídia altcmad~à, falando com desprezo do "êxtase negativo do rádio", no
a democratização da informação, a luta contra o controle por piute das qual se expressam qpiniões alternativas (1983 c: 131-2). Em seus textos pos-
grandes empresas e monopólios da informação. Surgiram novos bancos dé teriores à década de 1980 não existe política cultural, enquanto nos textos
~~os e novos BBS como fontes de infonnação e comunicação.Hoje é bem anteriores ele expressava várias formas de cultura de contestação."""
VISivd para a grande mídia a intensa interaçãà entre as pessoas. por meio Além disso, Gibson e os cyberpunks oferecem um mapeamento críti-
do CO!llf~Ula:dur, t.:um lrucas dt: idéias que vão desde música dás~ic.l att': nu- co das ,forç:as empresariais que controlam a tecnologia, formulando em sua
vela e·política, (New York Tímes, 1° de dezemliro de 1992: IÚ).Trata-se de obra questões sobre a_ propriedade e o controle da tecnologia, seus usos e
u~a nova fonte de intercâmbios que dá acesso a diversos tipos dé infurina- abusqs. Gibson retrata o duradouro poder do capitalismo, mostrando o de-
ça_o e con;u~ic~ção, ~ssibi~tando a e..xpressão ,de opiniões num fórum pú- sejo de lucro e poder como motivação básica dos seres humanos num
bli~~ pa~tct~ativo ~ ~temttvo (a~ co~trário dos sistemas de comunicação mundo de competição. Portanto, pará Gibson, os imperativos do acúmulo
urudireciOnaiS do radto e da televisão). J
capitalista e da conipetição por pequenas quantidades de bens continuam
_ Outro p~tencial subversivo favorável à democracia está em certas ino- sendo princípios organizadores da sociedade. Seu mapeamento, portanto,
vaçoes tecnologicas, como os computádores pessoais e outros instnnnen(os s....uscita a questão de quem deve ter acesso à informação e quem deve con-
presentes na ficção cybe-rpunk e nos movimentos qÚ.e útillzam a tecnologi~ trolá-la, num mundo onde informação e conhecimento são poder. MaiS:
para p~move:r ?' ~te:Câm~io humano. Com fihnadoras 'compactas é pàssí- quais são os potenciais usos c abusos do ciberespaço, da inteligência artifi-
v~l registrar a vtolencta policial, confomte ocorreu no famoso caso Rodnev
c;iid e da engenharia genética? Gibson apresenta esses desenvolvimentos
Kin~,. quan~o um amador filmou o brutal espanCamento de um neSro que ~ como algo inevitável, que está acontecendo diante dos nossos olhos, levan-
pohct~ ~avm detido por excesso de velocidadc.A tclevisãp de acesso públi.-
do·nos para o amanhã e obrigando-nos a enfrentar as implicações da explo-
c_o •.a. radto com fa~' de cidadão e os sistemas interativos ,de computador pos-
são informática e tecnológica que hóje vivemos.
s:~ill~ a exp':ssao de opiniões, o debate de questões preocupantes, a par-
tlnpaçao no dtálogo social e cultural. POrtanto, tais 'tecnologias facilitam a
participação individual' e posSibilitam a c'omWlidÇão social com duas mãos 238 ver a importância que B.·mdrillard atribuía antes à política culturnl em Le mtrotr de
la pmdudfon (1973) e na parte que trata do grafite em Nova York na obra LY!change
symboltque et la mort (1993 [1976]: 118 ~s.), Ctui.os:tnl.ente omitida na 1mduç.~O mgies:t
deSimukltions (Baudrillard, 1983 a).A partir do fim da década de 1970,porém,ele pass.ou
:a_7 ParnGibso~, o terror do futuro serâ o tédio e o çonfom1ismo induzidos pelas ré-
a de5prczar cada vez mais qualquer ativismo nos mcios.culttu:ai~ ou de comunicação.
phças de Jerry hlweU e pela direita r.uJkal (Mondo 2000, n" 7:59). ·

415
. . Baudtilhrd, ao contrário, oblitera a problemática do poder e da slibje- Quantas vezes podemos nos arrastar por narrativ:ts criadas segundo a fórmula·
tlvtdade ao descrever. os sistemas cibernétiCos bígh-tecb, sem jamais des- do jove~ que tem tendênciaS autodestrutivas ffias grande se~Sibilldade,que tem
crever as forças, os grupos ou o~ indivíduos que os controlam. Ao eliminar. \lffi talento (implantado/ artificiaV teletrônico),_que se faz perseguir pelo poder

a economia política do seu-campo conceitual; Baudrillard acaba Por cair maléfico de (megacmprcsas;estados policiais/submundos do crime) a~ravés de
nas malhas do determinismo tecnológico. São 'poucas as referências ao ca- um espaço (urbano devastado/ luxuoso das elites/sideral excêntrico), em meio
pitalismo ou à economia e suas últimas obras,_e ele pareCe estar descreVen- ao grotesco (cortes de cabelo/nlodelos de roupas/nmtilaç.ões/rocks/passatem-
~o l~ma nova ordem tecnológica na qual só a tecnologia govema, impondo pos Sef.uaisjdesigner drugs/bugigangas telctrônkas/no.,--as armas detestáveis;
lmptedosamente seus impemtivos e exigências sobre seres humanos impO- alucinações exteliorizadas), representando ( cosntmes/tflq,dis) da civilização mo-
tentes paru controlar os produtos de sua_própria criatividade. derna na etapit final d'L decadêhcia, jovem qu43...q®fl po?se ligar a (jovenS/ínte-
Os textos de Gibson, por outro lado, induzcmcnos a tefletir sobrc·o ligêndas artificiais/roqueiros) rebeldes que mo~m firmeza c lhe oferecem
modo como a tecnologia pode, ao mesmo tempo, mellio~ a vida humana uffia alternativa, não de. visão (comunit4ria,tsocialist;l/tradicionaljtrah~dcn­
e agir como força: destrutiva. Esse na verdade é o desafio do nOsso futuro tal), mas de suprema e vitalizadora condição de ligado, a acompanhar o fluxo
tecnológico: como podemos usar a tecnologia para melhorar a vida huma- · que; ,e·sco,a pela máquina contm o espectro de um agente subversor rcpresenta-
na, promover a democracia ~ produzir um futuro melhor? Embora nio res- {)~~;-tiima inteligência artificial/tun conglomerado multjnaçionaV ~un gênio
pondam a essas perglmtas, os romances de Gibson podein ajudar-nos a. re- mafifico)? No entanto, a julgar-se até pelos melhores escritores da antologia de
f~etir sobre a n_atureza da nossa atual sociedade e sobre os desafios e os ·pe- Sterllng, para os C)'berpu:zks," estar ligado é o que basta".""
ngos_ que enfrentaremos no futuro. Apesar disso, muitos aftrmam que a_ (1991:184)
c;,
hora do cybe1punk já passou, que ele agora é obsoleto, e que d~vcrfamos
dar atenção a outras coisas. De fato; o processo de criação/disseminação/assimilação do cyber-
jmnk foi tão rápido que a paródia e o pasticho já se tornaram táticas cos·
torneiras de criação narrativa. Por exemplo, e·qt Empire oj the Senseless,
Esqu>:ccJ· o (J'be1·jntnk? Kathy Acker já produziu uma paródia (ou pasticho, é dificil saber) de
NeurOmancer.A ftcção cyberpunk teve ;seu momento; assim como B"audril-
~ouve quem afirmasse que a ficção cyberpunk talVez tenhá produzi- lard, teve brilhantes arrancadas e, depois, tediosas repetições. Essa ficção e
do efettos positivos dentro d~ literãtura de ftcção científica e que agom está es~ teoria vanguardista tiveram seus altos e baixos e seus acertos c erros;
ultrapassada, dé-modé.m Ela foi mapeada, esquematizada, diSsecada antro- por isso, talvez esteja na hora de passar para algo novo e diferente: além de
pologizada e organizada na utilíssima antol~gia acadêmica de La;ry Me Baudrlllard, além do c;Yberpunk. O Algo Novo talvez seja mais ecológico,
Caffery intitulada Stormtng tbe Reality Studio (199I)."a E~ses ensaios nos mais feminino, mais comunitário e mais inovador, intuindó modos· ainda
dizem tudo o que queremos saber sobre o cyberpunk: antecedentes !iterá- não previstos de escrever, viver e relacionar-se. Como notou Lewis Shiner.
Tios e cinematográficos, origem e trajetória, temas e obsessões, vínçulos so- em seu_adeus ao cybe~punk, este reahnente não atende à atual necessidade
cioló~icos c relações com a ficção científica e a literntura pós-moderna.As nacional de valores espirituais c não trata dos problemas da desintegração
coletaneas deram ao leitor uma boa noção sobre estilo sentimentos inten· da famllia, do alcoolismo, da dependência de drogas, do tabagismo e do
sidadc e atualidade da literatura cybtirpunk, beffi co·m~ de suas afl~idades sexo. Em vez de responder às interrogações atuais sobre valores e signifi.
com o cinema, a MTV, a droga e o cibúespaço dos universos de computa- I cada, o_ cyhe1pitnk oferece "fantasias de poder e os mesmos impasses emq-
~ionantes dos videogames c dos ftlmes populares, como Rambo e Alien.
dor. Lendo os textos da ficção cyherpunk temos a impressão de que 0
principal já foi feito, de que os documentos iniciais fundadores. já mapea-
t'4m a iconografia, o jargão, os temas e o estilo do cyberpunk, e que dbra-
i Julga a natureza como coisa morta, aceita a violência e a rapacidade como
~evitáveis e promove o culto da insodabilidade."~
vante tudo é derivação. De fato, como nota Csicsery-Ronay: _ I- '
241 O manual de leiturn de MCCaffecy (1991) também ilustra a afirmação da crescen-
te repetição que grassa no' çy/Jerpunk por melo de uma coletânea de tcxtos.muitos dós
239 É o que afirtuam Csicsery-Ronay (1991) e l'itting (1991).
quais derivam da obra de Gibson ou imitam autores como Burrougl15 e Pynchon.
240Ver também os artigos nas .-evistasMtsstsstpt Revtew n" 47 e -4s e Critique (1992).
242 Le'Wis Sbine~ "Confis<>é)cs de um ex-ciberpunk" ,New York Ttmes,-XX.l991,editorial.
'
Talvez Shiner devesse ser mais generoso com seus -ex-camaradas
(assim cOmo nós) pois ao cyberpunk cabe o mérito de.ter assumido posi-
Conclusão
ção de proa na esCrita e no .mapeamento radicais do presente, à medida
que nos encaminhamos para um novo futuro te<: no lógico aterrador, mas es-
timUlante. Sem a menor dúvida, a literatura cybe1punk começou a repetir-
se e a parodiar~ quase. imediatamente;_ é um clube que curte fantasias
high-tech fortes e a euforia das subculturas marginais, resposta a um
periodo cujo caráter reàcionário foi sem paralelos - os anos Rea~n/Bush
-,período cuja história agora escrevemos. Mas conta-se entre os méritos do
cyberpwlk o fato de ter captado o lVeltgeist de s~a época em plena ação e
de ter expressado um mapeamento . e' um~ visão . inctivelmente precisos do
futuro. Algumas das fantasias mais arrojadas de Gibson já são r'ealidades; e
.
não há dúvidas de que o amanhã suplantará a a'tuil.lidade em velocidade,
surpresas e pesadelos tecnológicos. 243
Além disso, embora a ficção cyberpunk possa estar ulúapassada, com
as energias criativas exauridas,-está claro que o cybe1punk, como estado de
espírito, atitude e até movimento cultural alternativo, pode continuar pros- As _socicdâd.es e as culturas capitalistas contemporâneas, objeto deste
perando e permanecer conosco durante algum tempo ainda. Prolifer.un li- estudo, estão quma situação de aparente crise eterna em que a deteriora-
vros e artigos sobre sua ficção, sua cultura e seu modo de us<~;r a tecnologia, ção das condições sociais aumenta o sofrimento humano. Nos Estados Uni-
e os ba:ncos de dados dos computadores estão _repletos de debates e discus- dos, mais de 34 milhões de pessoas vivem abaixo do nível de pobreza; mais
sões sobre ele.10mado como fenômeno cultural amplo, o cybe;punk contí- de 3 milhões não- têm onde morar; mais de 1O milhões estão desemprega-
nua a ter energias criadot'i\S c a produzit' efeitos, aparecendo como uma van- d<S; e milhões de amt:rkanos não têm um Seguro de saúde básico nem ga-
guarda radical. E, no entanto, ainda estamos procurando as fdosofias que nos rantia de atendimentd médico (Hoffman, 19~7).Durnnte a década de 1980,
ajudarão a orientar' nossa vida, as teorias que traçarão a trajetória da história· o processo de distribuição de renda tolheu· milhões de dólares dos 20%
contemporânea e a política que lutará contra o pior para prOduzir o que de mais pobres da nação, eriquanto os mais ricos ficaram muito mais ricos. Na-
rhelhor 'podemos imaginar. Sem dúvida, Baudrilla:rd e ~ cybb-punk furão quela ét?oca, "o abismo entre o~ mais ricos e o~ mais pobres alargo;•-.se ~aí~
parte desse mapeamento e dessa visão, mas apenas uma paqe, conquanto do que en'l qualquer outro penado des(.{e a de,cada de 1940: o salano Iíqm-
indispensável. E, assim, é provável que não devêssemos esquecer o cyber- do do quinto mais pobre da nação caiu 5,2%, enquanto o do quinto mais
punk quando criarmos novas teorias e uma nova polítíca. pois o futuro po- rico subiu 32,5%, e o da classe média cresceu apenas 2,7%.A renda líquida
derá reservar algumas surpreSJS e revelações, e a teoria pós-moderna e o do 1% mais rico, após ajuste inflacionário, cresceu 87% e quase igualou a
cybe~punk são parte da história que ainda precisa ser contada e feita à me- renda total dos 40% mais pobres. Em 1990, de acordo com relatório do Çen-
dida que nos aproximarmos rapidamente d~ novo século. ter on Budget and Policy Priorities, a renda líquida dos mais ricos Se~-á ig'ual
à do resto da população em sua totalidade (Grossberg, 1992:313).
Os dados divulgados pelo gilbinete orçamentário do Congresso ame-
ricano, em março de 1992, mostravam que"entre 19'~!7 e 1989 a renda total
dos americanos expandiu-se em 740 bilhões de dólares, dos. quais a espan-
tosa parcela de 550 bilhões~ 74%- foi parar nas mãos de 1% da população.
A renda dessa parcela ínfima constituída por seisçentos mij. famílias cres-
ceu de uma média de US$315.000 para. US$560.000 num período de 12
anos (com ajuste infladonário)"(McQuaig,l993:62).Aiém disso, essas es~­
243 Nas entrevistas, Gibson notá que a existência dos hackers c dos vírus de compu·
tísticas mostram que, para as pessoas situadas na extremidade inferior d1.
radar confinnam suas fantasias; e insllite em dizer que estas são proje'ções da sU;t ima-
gin~ção, e não d-eduçàes inferi da:; de conhecimentos técnicos.
c;:scala;a renda de fato declinou.

419
A proporção de trabalhadores de baixa renda nos Estados Unidqs ' '
·como compensação pela deterioração das condições sociais, aqueles
continuou crescendo, e suas condições fmanceir4s continuaram piorándo, que podem pagar recebem uma dose cada vez maior de cultura consuinis-
enquanto os altos salários se' mantiveram em alta, criando uÍna estrutura sa- ta veiculada pela núdia. O número de TV a cabo continUa nlultiplicando; as
larial de dois terços I"' provocando o crescimento daS divisões de classe, de estimativas atuais falam em mais de quinhentos canais no horizonte. Tain-
acordo com relatório divulgado em 1994 em conjuntO pelos Ministérios-do. bém há previsões da chegada iminente de programas complementares que
Trabalho e do' Comércio do governo Clinton (jtssodated Presíi, 3 de junho· poderão ser solicitados por computador. As horas passadas diante da tele-
de 1994). Esse relatório obs_e~ava que a remuneração horária ·"re'al" haviil visão cõõlinuam aumentando. e a quantidade de anúncios p·ublicitários
estagnado nas últimas ctuaS décadas e até caíra para os trabalhadores do continua crescendo, enqual!-to. se-~anté~ <lf~_le~dã'~\t~Ominação do lazer
sexo masculino, fato "sem precedentes nos últimos 75 anos neste- país" e da sociedade pela cultura da mtdla. ""~~ ·
(ibid.). Também na Grã-Bretanha, os 10% mais ricos "contam com ó dobro Os mais explorados e oprimidos pela ordem social, porém, podem pa-
de recursos do que tinham no fim da década de 19~. enquantO o padrãO gar pouco mais do que o entretenimento "gratuit?", especialmente teleVisi-
de vida da parcela mais pohre, de 1/6, da população está pior do que no co- vo. Conl.o çscapatória da miséria social ou' como distiação das preocupa-
meço da década de 1980",dc acordo com um dos mais importantes relatá-· ções e:.teW9res da existência do dia-a-dia, as pessoas se voltam para a cu!-,
rios publicados na Inglaterra no ano de 1994 (The DailyTeleffraph,·3 de ju- tura d~ifilidia procurando encontrar algum significado e algum valor para
nho de 1994). a ~da. O esporte possibilita .a identificação com o glamour, o poder e su-
Além disso, eni. 1998, "as nações ·do mundo gastaram em armamentOs cesso,fortalecendo aqueles que se identificam com as equipes e os craques
mais de US$1 f O per capita, muitíSsimo mais do que com alimentos, água, vencedores,&_s novelas e os programas humorísticos ensinam como convi-
moradia, saúde, educação ou proteção do ecossistema (French,1992:37). Ê ver com a prdem social contemporânea, enquanto os filmes de ação de-
também: monstram quem tem o poder e quem não tem, quem pode e quem não
pode exercer a violência c quem é ou não gratificado pelos benefícios da
De 1980 a 1984,os recursos destinados às forças armadas no mundo _cresce- "boa vida" na mídia e na sociedade de consumo. A propaganda demonstra
ram de 564 bilhões de dólares para 649 bilhões (em"valores de 1980), num como resolver problemas e como ser feliz, bem-sucedido c popular adotan-
índice de crescimento superior a 3,5%. Mais de S% da produção do mundo do um comportamento . apropriado. O cinema mostra o charme do
(27 veLes mais do que o que fui gasto no desenvolvimento externo) foram "American way of Ufe" e oferece modelos irreais de identificação,
destinados a armamentos no ano de 1983, a maior parte por paísés industria- enquanto aumenta sem parar o número de imagens violentas.
liz.tdos. Os recursos globais destinados às forças armadas em 1985 foram de- Muitos dos que praticam os estudos culturais festejam essa cultura e
900 bilhões de dólares, mais do Qlte a renda de metade da humanidade. Os seu 'modO de vida, contribuindo assim para a perpetuação de uma ordem
gastos com armamentos stlplantaram a soma do PIB da Qlln:i, da ínclia e de social injusta c opressiva. Neste livrá, tentamos apresentar perspectivas crí-
todos os países africanos abaixo do Saara. num valor comparável à sóma do ticas sobre a sociedade e a cultura contemporâneas, acreditando que desis-
PNB de toda a África e da América latina. (French, 1992 : 37) tir da crítica e da t•êsistência contestadorA nada mais é .do que capitular ao
'modo de vida que produz incríveis condições de niiséria e sofrimento para.
Enquanto isso, as condições de vida, mesmo nas metfópoles dos Esta· a população múndial.
dos Unidos, ~eterioraram-se drasticamente. O número de pessoas sem mo- Os nossos descendentes, quiçá, olharão com espanto este nOsso
radia e emprego continuou crescendo; proliferam epidemias de câncer, tempo. Talvez os participantes de uma era de tecnologia interativa conside-
AIDS e outras 4oenças letais: sem perspectiva de tratamento; o ~rime e a rein com assombro o nosso telespectador passivo. Os que forem capàzes
·violência estão em alta; o fumo, as drogas e o álcool causam milhões de de ter acesso à informação num riquíss'uno número de fontes informáticas
mortes todos os anos; a água potável continua sendo contaminada por pro- talvez sê admirem com esta época em que a enorme maioria do povo de-
<,futos químicos tóxicos, e os alimentos Qásicos são _adulterados com produ- pende da televisão como fonte principal de informação. As gerações futu-
tos químicos, conservantes e pesticidas, muitos dos quais contribuerit para ras, que venham a ter ao alcance da mão· um .arilplo espectro de textos cul-
as doenças letais. Cresce o número de acidentes de trabalho e de rilortes turais significativamente diferentes e melhores, talvez se surpreendam ao
deles decOrrentes, enquanto as populações sofrem com o aumento da vigi- saber que hoje as pessoas, de fato, assistem aos programas comerciais da te-,
lâncfa e da jnsegurança, enquanto os benefícios sociais vão sendo cortadOs. levisão, do rádio e do cinema. No futuro, talvez as pessoas ·fiquem paSl}la·

.i

"420 421
das ao sabere~ que hoje se ,,ê tanta televisão, tanto filme ruim,qüe se ouve não tinham aprendido a governar-se e a controlar a tecnologia e ~ mídia.
/
tanta música medíocre, que se lê tanto lixo em re\istas e livros, durante h~­ Talvez as futuras g~mções riam da pretensão que temos de ser ~esclareci­
ras e horas, dias e dias, anos e anos. dos" e "modernos". Talvez a futura geração entenda melhor os ·novos meios
É concebível que á sociedade do futuro olhe para a nOssa época da cul- de 'comunicação e as novas tecnologias e os use no serÍtido de melhorar a
tura da mídia c6mo uma espantosa era do barbitrismo cultural, em que as in- vida.Talvez a crescente seleção dos produtos da mídia dê aos.indivíduos ca-
dústrias da cultura, geridas por interesses coffierciais e g,uiadas pelo núnimo pacidade de aumentar seu âmbito de escolha e controle sobre a cultura,
denominador comum, desovam filmes, programas deTY, romances e outras pOrtanto t:Je aumentar sua autonomia e soberania. Talvez, no futuro, haja
criações em que a violência aparece como a melhor maneira de resolver grupos de estudo da núdia, assim como existem grup~ de estudo em livros
problemas, rebaixam ;ls mulheres e os negros e repetem incansavelmente
velhas fórmulas.As infindáveis ·'continuações" dos filmes populares e o eter- ·
i hoje, e as pessoas possam reunir-se para .di~e ffiã'nelra crítica as pro-
duçõeS· díJ. mídia, c o ensino da mídia passe a fazer parte dos currículos es-
no retorno do me·smo na televisão, na ffiúsica popular e em outras formas Colares, do ensino fundamental à tmiversidade e daí por diante. Talvez as
da cultura da mídia poderiam ·chocar uma idade futura, parecendo-lhe pri- ' pessoas aprendam a us.'lf as novas rccnologias a ftm de comunicar-se, de
mitivos e bárbaros. O futuro poderá achar que uma era em que se idolatram l-
. produzir ;sUàs própria'> criações, que drcufarão e serão _distribuídas por
Sylvester StaUone, Madonna, Mich~!Jackson, Beavis e Butt-Head, modelos e toda· a"'l~i:!ê'dade, de tal modo que as vozes antes marginalizadas se possam
outras celebridades é de fato muito estranha, esquisita mesmo.As futuras ge-
rações podem achar que a nü?sa cultura Satur-ada de publicidade configura
I faier ouvir, que um amplo espectro e uma grande diversidade de culturas
encontrem expressão, que as pessoas possam conversar entre si, ser criati-
o comercialismo mais grosseiro e crasso, um dos mais espantosos exemplos I vas c partici{??r da produção da sociedade e da cultum.
de desperdkio de tempo e recursos na história da civilização. I
j Talvez, no futuro, os indivíduos e os governos sejam capazes de dis-
Os futuros historiadores talvez se surpreendam com o fato de que, cernli a imbortância da cultura e subsidiar grande número de produções
I
durante a década de 1980 e de 1990, período abrangido por este· estudo, ·-~
culturais, libertando a expressão cultut<ll da tirania do meocado e do jugo
mediocridades como Ro_nald Reagan, George Bush e Bill Clinton tenham · de ferro da propaganda. Talvez as obras dos monstmosos conglomerados
sido presidentes dos Estados Unidos; que uma reacionária como .Margaret das comunicações - Time/Warner, SON'{/Columbia, Paramount/Via·
Thatcher e uma nulidade como Jollll Major tenham governado a Inglatér-. com/Blockbustcr, Disney/America - sejam descartadas e rejeitadas pelo pú-
ra; que Helmut Kohl e seu tacanho partido conservador tenham govermído blico, que-as achará intrinsecamente-rasteiras, um insulto, tun tédio, e esses
a Alemanha; que o governo da Itália, ocupado por sodahdemocratas cris- conglomerados definharão, sendo substituídos por uma vibrante gama de.
tãos tremendariiente corruptos, tenha depois sido transmitido a um b{lrão- expressões cultunüs, pontos de vista e opiniões,
da ~ídia que galgou ao poder graça<>~ av~rsão que o eleitorado nutria pelo "Talvez sim, talvez não. Talvez, no futuro, gaste-se mais tempo vendo
sistema pol#ico vigente;_ que conservadores inexpressivos como "Brian cada vez mais programas mais estúpidos, e o. mínimo denominador comum
Mulrooney e Kim Cantpbell tenham governado o Canadá; que o vulgar talvez fique ainda mais mínimo, numa era de barbarismo cultural impossi-
Doris Ieltsin tenha governado a Rússia após o _colapso da União Soviética; vel de imaginar hoje. Talvez o Presente pàreça uma idade de ouro do indi-
e que indi..iduos também mediocres, ávidos, corruptos e degenerados te· vidualismo, da liberdade e da democracia para os futuros habitantes das so-
nham exercido o governo em gr;mde parte dos países do mundo. ciedades antiutópicas, mais ou menos como um, como os filmes dé ficção
As futuras gerações poderão contemplar a incrível concentração de cientifica apocalíptica, do tipo pós-holocausto, representam o nosso final
riqueza, as impressionantes diferenças de classe, a fenomenal ocorrência de de século XX: utopia em comparação com o melancólico futuro re~tado
fome e miséria no mundo, as doenças mortais, a violência; a dc;sordem so- nesses filmes.
cial e a falta de instituições sociais e humanas e igualitárias, e achar que esta Os estudos culturais podem desempenhar algum papel, ainda que
sociedade é realmente um espanto. Nosso tempo pode algum dia ser visto modesto, na luta por um futuro melhor. O cyberpunk, a ficção científica e
como uma idade das trevas-, reino de incrivei ignorância e attaso, em que a e
os estudos culturais, voltando-se para o futuro, pod'em imaginar expres-
vida é muito mais feia, brutal e curta do que precisaria ser. sar um porvir futuro e ajudar a guiar nossas escolhas e ações presentes e
Talvez o nosso tempo seja visto como uma era especialmente retró- futuras. A retlexão sobre os possíveis futuros da mídia chama a atenção_
grada em que os indivíduos ainda não se. tinham ajustado às Oovas tecnola-. para a urgência das tarefas prementes dos estudos culturais, tarefas q:ue
gias, em que emm esmagados pelos novos meios de comunicação e ainda foram negligenciadas ou suprimidas no tumulto na çonfüsão do ?resente. _

422 423
De uma perspectiva pOsitiva, estamos vivendo uma momento emo- tritivos. Isso exige o aprendizado d.1. discriminação e do cultivo dós ~elho­
cionante em que os novos meios de com~nicação e as novas tecnologias res sabores da cultura da mídia,-além de otJtni.S modalidades ·de";.·ultuci,
produzem novas possibiüdadcs de comunicação e expressão cultural e no- como a poesia, a literatura e· a pintura, além de formas alternativas de mú-
vas maneiras de viver a vida diária - pelo menás para os privilegiados. Não sica, cinema e televisão.
devemos esquecer, pórém, a miséria da imensa màioria daS pessoas, e deve- ''
Em oposição a McLuhan, as gerações mais· jovefl§ e satumda:s da atua-
mos lutar parà que elas possam ter acesso às mesmas opornmidades dos lidade não são criticas nem ~struídas em rdação à mídia. Portanto, o
mais aquinhoados. Além dO mais, precisamos conviver conscie~temcnte desenVohiffit:nto de uma pedagogia critica exige o desenvolvimento de es-
com aS novas teCnologias e encontrar maneiras de usá-las no sentido de tmtégias explícitas de pedagogia cultural, o que deL-f~~ de ser feito pelas
melhorar a nossa vida e de torná-Ias acessíveis a todos. Isso exige "reflexão escolas teóricas- mais importantes: Frankfurt~~doS "'Cidturais e a maior
sobre a mídia, a tecnologia, os desafios e os problemas de viver numa nova parte da teoria pós-moderna."' <
sociedade como esta. Com essas preocupações em ménte, dirí(lmos que os Dentro: dOs círculos educacionais, tem-se discutido o que constitui o
estudoS culturais precisam cuidar de vários assuntos apontados nos últi- campo da pt;dagogia ·da mídia, havendo difet·elltes programas e métodos.A
mos anos, mas que nunca realmente foram incorporados nos seus projetos abord.agc;tri. 1·:Protedonista" tradidonalista tcntari<1; "vacinar" os jovenS
e na sua problemática. contra: ~Pô~Sibilidade de se vici.areni. na mídia e de serem por ela inanipu-
ladÔs; isso seria feito por meio do cultivo da leitura, da cultura erudita e de
valores como verdade, beleza t: justiça. Neil Postman, em seus livros
PEDAGOGIA CRiTICA DA MÍDIA. Amusing 0U1;Jelt•es to De;tb (1985) e TechnopoÍis (19"92) é um exemplo
dessa aborda~ém, ao atacar a cultura da mídia e dctender a cultura impres-
Os estudOs culturais muitas vezes subestimaram a importância de se sa. O movimento que defende a "pedagogia da núdia", por outro lado, ten-
criar uma pedagogia crítica da mídia. Enquanto a Escola de Frankfurt Via a ta ensinar a ler, analisar e descodificar os textos da· núdia, de um modo
indústria cultural como absolutament~ manipuladocà e ideológica, algumas semelhante ao que se faz com os textos cscritos.A pedagogU'da arte da mí-
versões dos estudos culturais argumentam que a núdia simplesmente for- dia, por sua vez, ensina a avaliar as qualidades estéticas da.<i produções da
nece recursos para o uso e o prazer do público. Evitar suas imagens e men· mídia e a usar suas várias tecnologias como ferramentas de auto-expressão
sagens parece sér a conclusão final da critica da Escola de Frankfurt, ao e criação. A pedagogia crítica da míd1.1., por fim, baseia-se nessas aborda-
p3.sso_que alguns estudos culturais simplesmente .celébram os esportes, El- gens, ensinando a ser crítico em relação às representaçõCs e aos discursos
vis, a tietagcm e outros fenômenos da mídia. da mídia, mas também ressaltando a importância de aprender a usar a mí-
, A total rejeição da cultura de massa pela Escola de Frankfurt parece. dia co~mo modalidade de auto--expressão e ativismo social.~.-
inapropriada, visto que a cultura da midia chegou para ficar e, no mínimo, Pessoalmente, ratificaríamos esta última abordagem, mais ·abrangen-
seus produtos estão se tornando cada vez mais populares e poderosos. No te, que transmitiria atitudes críticas, ensinando os modos de usar a inídia
entantO, também é perniciosa a louvação irrefletida da cultura da mídia, como instrumento de transformação social. A tecnologia da comunicação
sem o cultivo de métodos capazes de' promover a sua pedagogia. Por isso, está cada vez mais acessível aos jovens e aos cidadãos comuns, e deve sçr
é 1mp0ltante que esse projeto seja des(!nvolvido, para o ensino de um usada no sentido de promover a autO-expressão e a transfot;mação social
modo critico de dcscodificar as mensagens da mídia e de distinguir seu democrática. Portanto, a mesma tecnologia que ajudasse a destruir a de-
complexo espectro de efeitos. É importante a capacidade de perceber as mocmcia participativa, transformando a política em espetáculo da m~dia e
váriaS expressões e os vários códigos ideológicqs presen~es nas produções em batallm de imagens, poderia ajudar a revigorar o debate e a participa-
da nossa cultura e fazer uma distinção etÚre as ideologias hegemônica:s e ção democrática.
as 'imagens, os discursos e os textos que as subvertem.
Também é importante·aprender a discriminar entre o melhor e o pior
da cultura da mídia e cultivar as subculturas conÍestadoras e alternativas.
Somos aquilo que vemos e ouvimos, assim como somos aquilo que come- 244 Sobre a pedagogia crítka da mídia,' ver Giroux, 1992 e l994;Sholle c ~n:;ki, 1994;
mos; por isso, é importante imprímir nos indivíduos a necessidade- de evi- Mcútren et ai., no prelo.
tar a comida ruim da cultura da 'mídia c escolher produtos mais sadios e nu- 245 Sobre a polírica da núdia e Qas comunicações, ver Kdlncr, 1990a e .Schiller, 1989.

''''
< 424
-I 425
I
I
JVfÍDIA E ATP/!Sl\'IO CULTlJHAL ção ou de libertação, de manipulação ou de esclarecimento social, e cabe
aos produtores da cultura e aos intClectuais ativistas do p'teSente e do futu-
Os estudos cUlturais têm sido especialmente negligentes· no desén- ro determinar de que modo as novas tecnologias serão uSadas e desenvol-
. volvimento qe teorias ~ práticas de intervenção e de produção alternativa vida_..- e a que interesses atenderão.
na mídia. Pouco discutiram o modo como o rádio, a televisãO, o cinema, os Por esse motivo, o objetivo de qualquer política d~mocrática será pos-
computadores e outros meios te~nológkos poderiam ser transformados ~ sibilitar que essa nova tecnologia seja usada. a serviço dos interesses de
usados como instrumentos de 'esclarecimento e progresso social. Assim todas as P'êssoas, e não das elites econômicas. Lu~ para que a mídia, seja
·também, a Escola de Frankfurt parecia inerentemente cética em relação à usada com o fim de informar e esclarecer, e não 'd,~ manipiilar. Ensinará
tecnologia dos meios de comunicação c considerava-a controlada pelas como us~ as nov~ tecnologias, como exprê'%~ovaS experiência<; c inte- ·
empresas capitalistas.u6 De fato, quando as teorias clássicas da indúStria resses e como prothovcr o debate c a diversidade democrática, permitindo
cultural foram criadas, era mais ou menos isso o que acontecia. O fato de . que um grande número de idéias e opiniões passe ;1. fuzer parte da ciberde-
os estudos cuhumis hoje não cuidarem da questão da mídia alternativa é m(>crncia do futuro.·
mais intrigante e menos desculpável, pois são várias as a)ternativas para ·a '
; "~
.,, '·!"
~:
produção de cinema e "ideo e rádios comunitárias, com fontes .de informa- i ·~:fi','<!/
ção por computador, fónms de ,dischssão e outras formas de comunicação II MÍDlA E POLÍTICA CULTURAL
nas quais os cidadãos e os ativistas podem intervir com rapidez.'P ·,
Por isso, hoje em dia os estudos culturais deveriam discutir como a Os estl!dos culturais também falharam ao deixarem. de discernir a
mídia e a cultura podem ser transtürrttadas em instrumentos de mudança importâncijl de uma política para a cultura e a mídia. Será cada vez mais
sàcial. _para tanto, é preciso dar mais atenção à mídia alternativa do que se importante saber quem controlará a mídia do.futuro, como se dará o aces-
fez até agora, refletindo-se mais no modo. como a tecnologia da mídia pode
ser reconfigurada e usada em favor das pessoas. E.<>sa tarefa implica o 'desen-
volvimento de um ativismo capaz de intervir na tclevl<>~o de acesso pÍl~li­
l '
so do pÍiblico a ela, quem se responsabilizárá e responderá por ela, q"uat a
fonte de suas verbas e de sua ttgulamentação e. Que tipo de cultura é me-
lhor para cultivar a liberdade individual, a democracia, a felicidade e o bem-
co, na rádio comunitária, nos meios de comunicação por computadof e em estar da humanidade. Com a proliferação da cultura e da tecnologia da rui-
outros domínios que hoje estão surgindo. Para obterem uma participaçã<? dia cabe dar mais atenção .à imporl..'lncia da pOlítica adotada no setor, bem
genuína, as pessoas precisam adquirir conheciment<?_S sobre a produção da como à necessidade de intervenção do público nos debates sobre o futuro
midia e sobre a criação de produtos divulgáveis. A intensificação do ativis- ·da cultura e das comunicações nas vias (principais) de acesso à informação
mo na mídia poderia ampliar significativamente a democracia, cmn a pro.- e (s~cundárias) de acesso ao entretenimento.
liferação de novas idéias e com a possibilidade de manifestação das opi- Uma das questões básicas do fiituro será a de possível aume1it0 ou di-
niões até agora silenciad1S ou marginalizadas. minuição da comercialização nos meiOs de comUnicação e de cultura. Os
A pedagogia crítica e o ativismo na mídia pressupõem que os intelec- defensores da televisão comercial no Estados Unidos estão sc::mp.re decan-
tuais assumam novos papéis e novas funções. O computador e a n1ídia · tando a "televisão gratuita", que no entanto ê um produto duvidoso, só pos-
estão produzindo -novos cibcrcspaços que precisam ser explorados e ma- sível à. custa de se pennitir a algaravia da publicidade nas ondas atmosféri-
peados, novoS terrenos de luta e intervenção política. Os novos cibcrinte- cas, conferindo-se aos anunciantes e aos interesses comerciais um gratide
lectuais do presente podem não ser os intelectuais Orgânicos de certa clas- poder sobre a programação, enquanto as mercadorias anundad.'lS se tor-
se, rrías podemos tornar-nos tecnointelectuais de novás teénologias, novas nam mais caras para' o consumidor. Nó futuro, porém, é possíve't-que até
experiências culturais e novos espaços, traçando a cartogfafia dos admirá- mesmo os próprios programas de TV sejam comercializados, Comprados
veis mundos novos da cultura da mídia e da tecnocultura, pdos quáís na- por empresas que se encarregarãO d~ tudo. Sabeffios que os atuais meios
vegaremos. Ess~ tecnologia -pode ser usada como instrumento de domina- de comuniCação por computador e pela IJ}ternet são géatuitos para as uni-
versidades ou para os órgãos governamentais, mas 'todas as cOmunicações
por computador poderão ser comercializadas no futuro, como ocorre hoje
246A exceção aí foi \'l;'a!ter &njaulin (1969). com os telefones.A luta aqui,port<;mto, é a favor da não-comercialização'das
comunicações e irúormações por computador, a favor da abertura das vias

fI
24í Prun saber m.1is sobre a mídia alternativa, ver Kellner, 1990a e no prelo.

426 427
I
_·_.';L_
I
I
c
de informação pela Internet, c outras,. ao público, para que das sejam iSen- ·to de informações, os cidadãos não poderão ser bem informados, e sem o
tas de custos, para que haja uma expansãO da televisão de acesso público acesso aos fóruns públicos de troca de idéias' e debates, os cidadãos cistacio.
e da rádi~ comunitária e um desenvolvimento das instituições e prá_tkas excluídos do diálogo que constitui o cerne da democracia partíciPativa.
culturais alternativas, custeadas pela comunidade ou pelo Estado c acessí· De fato, são várias as iniciativas em andamento nos meios governa-
veis ao público em geral. mentais, empresariais e públiCós Cfll torno do controle da nova tecnologia
Na França, o governo fez a C."{pedência de form::cer colnputadorés Mi· e das chamadas supcrautovias da informação, de seus beneficiários. e do pa-
nirel a todos os usuários de telefone. Inicialmente, os computadores deve- pel que t)~público desempenhará na detemtinação do seu futuro. Todos
riam ser usados para obter informações como hora, condições de tempo, precisam participar desses debates c infortnar-se s'ó~:e a importância das
horários de trem e aviões e coisas desse tipo. No entant_o, logo começaram questões implicadas. Por exemplo, recente~ tentou-se censurar a CO;-
a ser usados para comunicações, giupos de discuss_ão, BBS e outros, que de- municação pela Intcrnet,_çomercializâ-la, cobrar pelo. que· hoje é gratuito, -
Pressa se desenvolveram. Com isso queremos dizer q:ue os computadores permitir seu uso comercial e abri-la para a exploração das empresas. Ou-
farão parte dos objetos usuais de todas as casas do futuro, mais ou menos fros b>rupos. estão lutando por preservar a comunicação' gratuita, garantir o
como a televisão hoje; portanto, devem-se envid."lr esforços para que tOdos ace~sQ,~~ '!,?articipação democrática e tomar acesstveis
' a to d os os recursos
aqueles que não possuem o seu próprio computador venham a obtê-lo e da n<)\'i:i"t-êénologia, ampliando a democracia, em vez de restringi-la. Essas
assim participem da nova cultura e -sociedade a que terão acesso, em vez lUtas determinarão o futuro de nossa cultura e de nossa ·sociedade; .
de restringir o uso da nova tecnologia a grupos privilegiados que sejam ca- portanto, são de prln10rdial importância para todos os que estiverem prco-
pazes de adquiri-la. cupad_os cotf o futuro da democracia. . , _ _
Na verdade, o próprio conceito de ''superautovias da informação" con- E possJVel que o descaso pela eCOJlOffila polínca e o nao-desen-
tém um cerne democrático que constituirá um terreno para discursos ,e lu- volviment6 de uma política para a mídia no â_mbito dos estudos culturais
tas. A afirmação de que as superautovias da informação garantirão automa- l. sejam um dos motivos pelos quais estes seriJ.pre evitaram pensar num
ticamente o fluxo livre de informações úteis e. abundantes para todos sem·-
dúvida é ideológica c constitui uma propaganda enganosa para vender pla-
I plano de ação para o público, conforme criticou Tony-Bennett (1992, in
Grossbcrg et ai.). Sem uma noção da ingerência que as forças -sociais mais
nos de empresas poderosas, mas é preciso convir que a metáfora da supe- ampla!) (ou seja, natureza da indústria da comunicaçãO por iádio e televi-
rautovia tem algum significado para as lutas democráticas pois o nosso es- . são, política governamental para as comunicações, etc.) têm sobre a vida
paço vi.ário é de dominio público,faz parte de um espaço público aberto, cotidiana, é impossível entefider a importância de se formular uma polí-
gratuito e acessível a todos. O perigo _da comercialização da informação é tica para 0 público e a mídia em torno da natureza do sistema de comu-
do entretenimento, no futuro, é a posse, e o coptrole des::'ieS recursoS por nidção e cultura em dada sociedade. No entanto, num contexto em que
megaconglomerados que_ imponham tarifas de acesso e uso, transforman- a nova tecnologia da comunicação está provocando transformações drás-
do as autovias em "heterovias". ticas na cultura, no lazer e na vida diária, é preciso perceber a importân·
Por isso, embora hoje a Internet e outras redes de comunicação por cia de uma política para a mídia e da compre(;':OSão do m~do como o sis-
computador sejam gratuitas, há plan~s dé privatização, com cobrança de tema e as estruturas das comunicações ajud~m a deternünar o tipo de
acesso e uso. Conu-a tais planos, devemos recorrer ao discurso da esfcra"pú- programação e seus efeitos.
blica e do domínio público e lutar para ·manter tais supervias abertas e Mas se não forem situadas po contexto da teoria social e da econ_omia
acessíveis, gr-atuitas e livres de controle privado.Assinl também, a luta polí: poHtica, que analisam as configurações' de poder e dominação existentes,
tica democrática na mídia terá em vista o livre acesso aos meios de comu- · as discússões scibre a participaç~o do público serão irremediavelmente
nicação por parte de todos os cidadãos, para que a comunidade possa par- , abstratas e digressiva.<>. Nos Estados Unidos, durante o reinado de Reagan e·
ticjpar do debate democrático (ver Kellner, 1990a). Bush (1980-92),'de fato não havia aberturas para as intervcnçõe~ progres-
O fluxo gratuito de informações e comunicações é essencial à socieda- sistas em torno da participação do público, em nível nacional. Ao contrário,
de democrática; democracia implica acesso pleno a instrumentoS- de informa- '-i a urgência do momento era defender as conquistas liberais passadas·con~ra
ção e Comunicação. Par.il isso, portanto, é fundamental manter ab~rtas essas as Investidas conservadoras (imaginamos que algo semelhante tambem
vias de acesso, proteger meios de comunicação e informação como a Inter- ocorria na Inglaterra durante os regimes de Thatchcr e Major, betn como
net-e btiar pelo acesso de wn público cada vez maior. Sem u.m fluxo gratui- em outros países governados por conservadores):

428 429
I
Por outro lado, na época do governo conservadOr assistiu-se a muitas Assim, os estudos cultUrais· .têm algumas tarefas importantes pela fren-
intervenções locais interessantes, com a prolikração de culturas alternati- te; podem tornar-se parte do processo de participação c esclárccimcnto.
vas vívidas e de 'Intensas lutas políticas, niuitas vezes de cunho cultural. Essa Por outrO lado, também podem dCgencrar, tornando-se apenas outro nicho
experiência talvez tenha influenciado os ativistas pós-modernistas, que en- acadêmico, co'm a seus, textos canOnizados, seus luminares c stlas confortá-·
fatizaram a atua<;ão local, c não global, mas é importante perceber :J. gr.indc vds instituições. Cabe a nós e à próxima get?Ção determinar o futuro ·de
relevância assumida pelas questões nos dois âmhitos. Em nível local, mui- nossa mídia e da sociedade tccnàlógica; esperemos que os mais jovens
tas vezes é mais fácil obter alguma coisa, embora a atuação defensiva dé re- usem os" eStudos cultqrais como arma de crítica soCiaÍ, csclafcdmento e
taguarda em nível nacional também seja importante, como ocorre com a mudança, e não como mais uma fonte de catital cuf~L
políiica de ação d9 público, cujos partidários adyogam. refOrmas genuínas . ·~·;-.""'
>Jf.'o!' '
em todos os níveis. O descaso pela politica cultural por pàrte dos· esi:udos
críticos que se dedicam à cultura e às corpunicações é contristador, sinal
da dcspolitização- dos intelectuais na atualidade.
Portanto, os estudos culturais podem ser importantes para o projeto
democrático r.tdical.A pedagogia critica da mídia pode cultivar a cidadania,
ajudando a formar indivíduos imunes .à manipulação, capazes de criticar o
que recebem da mídia e de obter informações de diversas fontes, criando:
se, assim, uma cidadania bem info;>rmada e capaz de ter juízos políticos in·
teligentes. Portanto, essa pedagogia pode funcionar como parte de um pro-
cesso de· esclarecimento social, criando novos papéis para os intelectuais ..
A cultura da mídia, em si, está produzindo no'\--as esferas públicas e criando
a necessidade de intervenção em novas arenas do debate' público- rádiq
comunitário, televisão aberta, vias de comunicação por computador, etc.
Portanto, está produzindo novos textos c criando a necessidade de cultivar
I
uma pedagogia que ensine a ler e a 'descodificar imagens, cenas, narrativas
c espetáculos do tipo fundamental à cultura da mídia. ·
No entanto, a cultura da núdia também nos desafia a cultivar novos es-
paços de discussão e interação política, a produzir formas alterriativas de co- '
municação e cultura, a usar a mídía para esclarecer a sociedade, e de pensar
os. modos como sua cultura poderá ser Voltada para a democratizaç~o. Seu
desafio, portanto, produz novas vocaçõ'es para os intelectuais: sua onipresen-
ça e sua complexidade exigem que os intelectuais críticos subvertam as fron-
teiras disciplinares e recorram a várias disciplinas para entendê-la. Desafia os
intelectuais a usá-la para promover a. democratização e criar novos espaços
e alternativas. Em outras palavras, é tão errôneo dar as costas à cultura da mí-
dia c ignorá-la quanto abraçá-la de modo acritico.A cultura da mídia ·deve ser
perfeitamente analisada, e é prc;ciso explorar todas as possibilidades de inter-
vir na cultura dominante como também de criar modos alternativos de cul- ·j
tura e discurso fora. das formas e dos gêneros convc.ricionais. Na cultura da I·

mídia talvez esteja nOsso destino e nosso ambiente cultural, à medida que I
avançamos para o futuro; por i~so, precisamos mapear esse novo terreno e .1

descobrir como levá-lo a atender os objetivos de aumentar'a lib'erdade, a fe- I


licidade, a demoCracia e outros valores que desejamos preservar e ampliar.

430 43'
,,
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Ewen, Stllart, 337-8. KeUner, Douglas, 5, 23~ 28, 30, 32n, 34.n, Marcus, Greil, 3S8n.
H 38, 421\,.?.6, 47n, 54n, 57n, 62n, 6Sn, Marcuse, Herbert, 36, 59,239.
F Hall, Stuart, 30n, 39, 41n, 47-9n, Sln, 71, 73n, 78n,-80n, 81, 83,107, 117, Marder, Elissa, 281n.
Fanon, Frantz, 57. 53n, 57, 60, 62-3;64ri, 131, 134. 119, 1234, 127, 129n, 13~7, 142-3, Mayb~%'Lrace}•f.l38n.
Featherstone, Mike, 72. Hatl, Stuart and MartinJacques, 30n. 145, 147--8, 152n, 156n, I65.6o, 't67; McCaffe~I.arry, 38ln, 383n, 389n,
Ferguson, Thomas and Joel &ogcrs, 30n, Hall, Stumt and PaddyWhannel, 54.· I68n, 198n, 200n, 209n, 2lln, 222, 419n.
165n, 339. Hammer, Rhonda, 21, 213n'. 255n, 256, 2'57n, 258, 261-2n, 266, McGrory, Mary, 260-2:
Fiske, John, 3Sn, 41n, 49-51, 56-9, 78n, Harvey, David, 28, 40n. 270n, 27f, 274-5, 282, 284n, 292-3, McGulgan,Jim, 53, 6·-ln.
8ln, 85-6n, q7, 139, 142,150, 236n, Hebdigc, Dick, 60,67-8. 297l'J.;> ~0\Jn, 301, 303, 305-6, 308, McHale, Brian, 383, 389q.
304, 342n, 359n. Heidegger, Martin, 296-9,-365. . 3Í6a~12.6, 338n, 341, 367, 379-80n, Mclaren, Peter, 77, 85n, l28n, 427n.
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85n, l73n, 299, 302, 325, 334, 40 In, Hil1 and Knowlton, 264-6. 78n,81, 83~17, 124, 134, 136-7, 147, Morrow, Frank:, 323n.
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398-403, 408,413-6, 417n, 418. 50, 252. 250,254. Paglía, Camille, 368, 369n.
Gilroy; Paul, 53n, 79, 207n, 230n. Lee,Spike and Lisa)ones, 2~7n, 223. Patterson,Aiex, 207n, 213.
GU:oux, Henry, 21, 75, 83n, 126n. 127, J Lee, Spike and RalphWiley, 221n. Penn, Sean, 352-5, 359.
425n. Jackson,]esse, 211, 227, 234. Levi-Strauss, Claude, 306. Perez, Roslc, 226n.
Gitlin,Todd, 20ln, 304, 306, 310n. Jackson, ;'11ichael, 14, 16, 316-7,331, 339, Linklater, Rlchat'd, 186-90, 196. Postman, Neil, 427.
Goda.a'd,Jean-Luc, 186. I 358, 422 .. Lorde,Audre,81, 253. ·Presley, Elvis, 143, 333n .
Goldman, Robert, 318n, 329. -· ]rimeson, Fredl'ic, 18, 39, 40n, 79n, 70; 81, . Lowenthal, Leo, 46, 57n. Prince;Stepheq, 121.
Goodman, l'aul, 187. 143-5, 164n, 185n, 208n, 246, 298-9, Lu\.-ács, Georg, 44, 80, 403. Pynchon, Thomas, 72, :386, 389n, 415,
Gore, Tipper, 249.. ~ 301,306,316-7,330, 349n,360,384n, Lyotard, ]ean-François, 30, 38, 73, 211,, 419n.
Gon, Andre, 29n. 388,401,408,413. ' 301.
Gramsci;Antonio, 42, 48, 48n, 78, 85n, Jarry,Aifred, 378n.
133-4,247. ]eff?fds, Susan, 31n;58, 88,92-3n, 94,133.

450 451
l

Q
'Q-Tip, 237n.
Shusterman, Richard, 234,249.
Singleton,John, 24?0...
i
Queen Latifah, 233·5, 237. Solop, F. I. and N.A. Wondcrs, 289.

R
Sontag, Susan, 304n, 362n.
Souljah, Sister, 17, 233, 236, 239. 242,
243n, 248.
I
f
Reagan, Ronald, 5, 15-6, 18, 22, 32, 79, 82,
84,89,92-3,97, 99-100, 105-7,-116-7, Spielberg, Steven, 169, 172, 175. 176n,
119, 122n, 123,134,139,142, 155·7, 178-80.
161, 166, I67n, 169-70,172,174,176, Spivak, Gayatri,Sl, 133.
178, 206, 236, 25ln, 261, 264, 268, Stallone,. Sylvester, 60; 89-9"0, 92; 95·9,
291,' 3.41;350, 388, 408, 411-2, 420, ' 101-2, 104·5, 117,135,434.
424,43L Sterling, Bruce, 345, 380..1, '383, 386n,
Reed,Adolph, 227n, 228. 387, 397n, 405n, "419.
Reid, M<q"k, 205n, 207..Sn, 225. Sterritt, David; 372.
Ricocur, Paul, 40n, I48n, 304. Stone, Oliver, 9:7-8, 126, 157, 159-60.
Riggs, Marlon, 250. Swanwick, Mkhael, 383. ''
Rockwcli,John, 372.
Rorty, Rkhard, 34n, 21ln. T
Rosenberg, Bernard and David \1Vhitc, ·Thornpson,E. P., 56,62.
46n. Thompson,]olut, 79-.SOn, 83n.
Rdsenthal, Michacl,· 7 4n. Toop, David, 232n.
Ross,Andrew, 30 In. TÜyobée,Amold, 73n.
Rucker, Rudy, 380. Turkle, Sherry, 335.
Ryan, Michael, 5, 16, 22, 46n, 78, 133,
148. ' v
van der Rohe, Mies, 72.
s Venturi: Robert, 72.
Said, Edward, 81, 122,262,271,283.
Sartre,Jean-Paul, 59, 298-9,335. w
Sayre,Hcnry,373. Wallace, Michdle, 225.
Scatamburlo,Valerie, 23, 128n. Warhol,Andy, 72, 366.
Schiller, Herbcrt, 394, 427n. Warner,V:'illiant,9&7, 105.,
Schorr,Juliet, 3In. Warshow; Robert, 317.
Schud5on, 1\Uchael, 325n. Wayne,John. 156, 159, I76n,280, 311.
Schwar:zenegger,Arnold, 60, 96, 135. \1/ebeF, Max, 402·3n.
Schwichtenberg, Cathy, 3 54n, 35 7, 36ln, West, Corncll, 205n, 218n, 228, i29n.
367,370. W'eXleF, Philip, 341.
Scott-Heron, Gil, 230, ~32n. White Zombie, 202n.
Seagal, Stcven, 120n. Williams, Raymond,4Sn, 52, 53n, 56,64-
Seidelman, Susan, 352. 5,69-70,136, t68n;330n.
Shahcen,Jack, 12[.. ~ i
Williamson,Judith, 324.
Shaw, M(lrtin a~d Roy Carr-Hií( 289.
Sheen,Charlic, 157.
Willis, Bruce, 60, 135.
Wilson, Elizabeth, 338·9.
i
Sbe!ley, Mary, 386. Wood,Robin, 151, 156n, 168n.
Shiner, I.ewi5, 380,419-20. Woodruff,Judy, 263.
Sltirley,John, 380. Woodward, Bob, 263-5.
Sholle, Da..,.id and Stan Denski,"427. \Vuthnow, Robert, 139.

452
Sobre o livro

Formato t6x23 cni


1'ipo!ogia . Gru.:am&nd Bóok IO(texto)
Garamond Bold 12 (títulos)
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Papel lleddato 70gfm' (miolo) ·.
Cartão Supremo 250glm' (capa) ''
!mptesdiD Sob demanda
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Aá<hmnento Costurado e Colado
. Tiragem 2.00,0

) .
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Equipe.de Realização

Coordenação F.ucutiva Lillii Bianchi


Produção Gnfjica Renato V~derrrunas
Edlçifn tk-Texto Carlos Valero
Assistentes de Úiçifn de Texto Renata VIeira e Villas Bôas
Valéria Bio11do
Pmrxer Técnico Mario Vitor Santos
Rwisão Jussnra Di Lolli
Pmjeto Gráfico Cássta Letícia CarraraDomiciano
Cl'iação da Capa Renato Vald~n:,amas •
Catalogação e
Referências Bibliogr4(icas Valéria Maria Campaneri
Diagramaçiin CarlOS fende!
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Impressão e Acabamento

Bf\.NDEIRANTES

Gráfica Bandeirantes SIA


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