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FLÁVIA AGRA
FLÁVIA AGRA
BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
transdisciplinar.
À minha orientadora Profª Drª Tânia Mara Campos de Almeida, que desde o início
psicologia.
de forma generosa os seus conhecimentos, em especial à Profª Dra. Ondina Pena Pereira,
À Ana Cristina, que além de revisar este trabalho com doçura, respeito e dedicação,
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
À minha querida irmã, que ao longo da vida vem inspirando a minha busca
intelectual e emocional, a partir de seu precioso exemplo.
Aos amigos que sempre acreditaram no meu potencial acadêmico, até mesmo
quando eu fraquejava.
a experiência da maternidade.
RESUMO
Ramos, Flávia Regina Agra da Silva Ramos (2006). O sofrimento psíquico da mulher
no pós-parto: uma expressão de resistência ao modelo tradicional de maternidade.
Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Católica
de Brasília.
Ramos, Flávia Regina Agra da Silva Ramos (2006). Women’s postnatal psychic
suffering: a expression of resistence to the traditional model of maternity. Master’s
Dissertation. Postgraduation in Psychology. Brasília Católica University.
This study had the aim to reflect on the by the modern woman after giving
birth, particularly the one interpreted by the current biomedical paradigm as “postnatal
depression”. On the contrary of the majority of researches about the issue – which
associate the phenomenon to physiological alterations related to birth and a supposed
emotional fragility characteristic of women – we prefer to understand this psychic
postnatal suffering as one amongst other possible dimensions of the maternity
experience. Our approach is based on the ideas of authors who have studied the social
and economical aspects which influenced, during the last three centuries, the
construction of the notion of bourgeois family, as well as how the model of “the good
mother” (according to Rousseau) was created in history and then, imposed to the
modern woman. To complement this bibliographic survey, we conducted a brief field
research with Xavante Indians, in order to get to know how women in this tribe
experience maternity, given that their cultural context is completely different from the
urban one. The parallel between these two cultures allowed us to elaborate a critical
discussion of the modern urban values that guide the experience of the contemporary
maternity.
Introdução 1
amor materno 55
ou os abandonam 61
uma doença 83
Projeto 121
Xavante 127
Nascimento 139
formas de realização pessoal, ou seja, não têm a maternidade como destino inexorável.
engravidam e têm seus filhos, buscam a assistência de um obstetra da rede privada, não
vinculada a convênio, que lhes presta um atendimento instrumentado pela mais moderna
tecnologia médica, e as coloca também em contato com outros especialistas, que irão
vivido por elas, no pós-parto, nos comunica acerca do que é ser mulher e mãe na
interesses que o levaram a ser definido como uma categoria nosológica, nomeada
tristeza, que se acentua no final da tarde, acessos de choro sem causa aparente, angústia
medo de ficar sozinha com o recém-nascido, temor de lhe fazer algum mal, desejo de
1
morrer – na maioria das vezes, não se trata de um desejo de atentar contra a própria
Diante desse fenômeno, intriga-me o fato de que, essas mesmas mulheres que me
primeiros dias com o bebê como momentos de extrema felicidade e prazer. Quando
eram questionadas sobre as possíveis dificuldades de adaptação que poderiam vir a ter,
situações que, no caso das primíparas, eram associadas à inexperiência com recém-
nascidos.
transforma de maneira radical. A imagem de mãe passa a ser descrita como alguém
aprisionada e oprimida por um tirano que lhe “tomou a vida de antes”: o bebê. É
tanto como docente quanto discente, além do convívio com vários profissionais de
saúde, posso afirmar que, inclusive nas universidades, pouco se fala sobre o sofrimento
2
pessoas dispostas a assumir o lado sombrio da maternidade. A irritação, a raiva, a
filho são raramente confessáveis. As puérperas que conseguem falar destes sentimentos
Trata-se de um tema-tabu, uma vez que o senso comum define o amor materno
não se revela no idealizado pós-parto, elas são consideradas, por si mesmas e pelos
outros, estranhas, e até subversivas, na medida em que alteram a dita ordem natural e
esperada, transgredindo o rígido código moral da “boa mãe”. Seu comportamento chega
a ser considerado uma anormalidade, uma doença que precisa ser tratada para que a
nascido; b) fatores sociais, como relação com o pai da criança, dificuldades financeiras,
2001).
3
patologizou e medicalizou o parto e o pós-parto, esvaziou de sentido coletivo os ritos de
puérperas com o conflito hoje instalado entre a “boa mãe” rousseauniana, modelo
século XXI. Esta última, diferentemente daquela, vive a dissociação entre sexualidade e
mulheres ocidentais que têm um bebê, em nosso país, não foi desenvolvida nenhuma
política de saúde pública preventiva que preste informação sobre o tema, tampouco
parto.
compreender o sofrimento vivenciado por essas mulheres. Observo, contudo, que minha
intenção não foi estudar a “depressão pós-parto” como categoria nosológica, explicável
medicina (uma vez que não me identifico com estas explicações). Também não me
psicólogos e psicanalistas, já que ela não me parece dar conta suficientemente bem do
fenômeno.
4
Minha proposta é compreendê-lo a partir da análise crítica das nuances, dobras,
maternidade atual, campo no qual este sofrimento se forja e se desenvolve. Por esta
ótica, espero contribuir com os estudos atuais, bem como ampliar as possibilidades de
Para tanto, realizei, inicialmente, uma vasta revisão bibliográfica sobre o tema.
Minha experiência clínica com puérperas e gestantes, por sua vez, valeu-me como
não ter utilizado os relatos das pacientes, em consultório, como dados diretos da
pesquisa, fiz uso de algumas de suas falas para ilustrar as diversas facetas que compõem
o ciclo gestação-parto-puerpério.
A partir das observações que fiz em minha prática clínica e por acreditar que o
Realizei, para tanto, uma pequena incursão a campo, com o objetivo exclusivo, é
e não, de realizar uma pesquisa de campo propriamente dita com todos os elementos
como instrumento de aproximação dos sujeitos. Os ricos relatos colhidos nesta visita,
que se deu por cinco dias, durante um evento realizado na Aldeia Cachoeira, foram
puerpério que se contrapõe àquele vivido pela mulher burguesa, verdadeiro foco de
5
Outra fonte de dados que compõe minha análise acerca do fenômeno do
discussão – sobre o caso de uma mãe (Simone) que recentemente abandonou seu bebê
que é ser mãe, a partir de valores biologicistas e sexistas, que associam a maternidade à
que possuem a força de mito – o amor materno instintivo, a maternidade como caminho
6
Também me propus a explorar como a medicina, por intermédio de seu ideal
higienista, penetrou nas famílias e estabeleceu novos papéis para as mães e pais
seja, “o mito do amor materno”. Refiro-me, então, àquelas que, nos dias atuais,
denominado nesta dissertação de “Caso Simone”, que foi amplamente explorado pela
saúde mental e ao direito, que buscaram explicações para seu comportamento, que
reações do público em geral e dos especialistas, em relação ao ato praticado por Simone.
da nossa história, as mulheres que abandonavam seus filhos eram tratadas de forma
7
perfeição universal, fomentou, de modo particular, a antiga concepção do corpo
defeituoso da mulher. Corpo este cujas peculiaridades e diferenças, percebidas pelo viés
de Psiquiatria, não cria categorias nosológicas específicas para esta suposta patologia.
assim, outra maneira de enxergar o fenômeno, segundo a qual este sofrimento pode ser
para tanto, em autores contemporâneos que criticam fortemente esta sociedade e seus
O capítulo 5 resulta do contato que tive com os Xavante e das observações que fiz
mencionei, minha principal intenção na ida ao campo foi obter conhecimentos de fontes
8
variadas que possibilitassem ampliar meu olhar crítico acerca do sofrimento vivido pela
seus interesses dominantes naquele momento e às questões de gênero. Por este motivo,
optei por estudar e me inserir em uma cultura que possui uma organização social,
política e econômica bastante distinta da sociedade urbana moderna. Sendo assim, não
fenômenos ditos inerentes à natureza feminina e aos instintos presentes nas fêmeas em
geral.
Meu objetivo no contato com este grupo social foi, portanto, mostrar que não há
que emergem nesse período. Isto me forneceu subsídios para sustentar a crítica ao
cultura e tentar estabelecer com eles um diálogo intercultural, ainda que preliminar, tive
uma perspectiva bastante diversa daquela instaurada como única referência e modelo
para nós, à medida que pude apreender a dimensão relativizadora dessa aproximação.
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bebê. Ou seja, procurei identificar a existência de manifestações que freqüentemente são
Acompanhei uma das fases deste projeto, ocorrida no período entre 17 a 20 de maio de
maioria delas não falava português, o que impossibilitou a minha comunicação direta
com elas.
homens, que vivem em seis aldeias diferentes, situadas nas seguintes Terras Indígenas
padre salesiano Bartolomeu Giaccaria, que convive e trabalha com o povo Xavante há
50 anos. Este religioso é, hoje, autor de vasta literatura, editada no Brasil e no exterior,
1
O ISPN é uma Organização não- governamental, sediada em Brasília, que é responsável pela coordenação técnica e administrativa
de “Programas de Pequenos Projetos Eco-Sociais” (PPP Ecos) financiados pelo Banco Mundial.
2
O projeto da ONG Associação Xavante Warã: “Valorização das práticas culturais das mulheres Xavante: dieta alimentar e
medicinal na gestação e no parto” vem sendo desenvolvido junto às mulheres Xavante desde 2005, com previsão para ser concluído
no final de 2007; e tem como objetivo principal reforçar, junto a elas, a importância da produção e do consumo da alimentação
tradicional para as aldeias e para a manutenção da cultura Como parte deste projeto, já havia sido realizado, em dezembro de 2005,
um encontro com as mulheres na Terra Indígena de Sangradouro, Aldeia Abelhinha, onde estavam presentes Xavante de outras
Terras Indígenas, logo, o encontro que acompanhei era o segundo do projeto.
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às questões. Enquanto alguns deles demonstraram pouca receptividade e vontade de
complexas e detalhadas.
O contato com as mulheres Xavante foi bastante difícil, mesmo com aquelas que
falavam português. Elas evitavam conversar comigo e pediam para que eu procurasse
uma Xavante que havia feito curso de auxiliar de enfermagem, como se apenas ela
disse: “eles não gostam de pesquisadores porque eles vêm aqui, pesquisam e depois vão
embora, não voltam nunca mais e ainda querem levar os nossos segredos”.
A intenção inicial era gravar integralmente as entrevistas e tomar nota por escrito
apenas de informações adicionais, o que não foi possível, uma vez que três dos
entrevistados me pediram para não usar o gravador. Cinco entrevistas, portanto, foram
lentamente, foram anotadas na íntegra. Foram utilizados nomes fictícios com a intenção
de cada uma dessas culturas, que influenciam as diversas dimensões que compõem a
entre nós.
apresentar minhas conclusões sobre a função e o sentido que o sofrimento vivido pela
11
Conclusivas”. Neste espaço, inspirada na teoria de Baudrillard (1976/1996 e 1999/2002)
parto”.
nós, cheguei ao entendimento de que tal “depressão” pode ser um dos únicos meios
encontrados pela mulher moderna para lidar com o lado sombrio da experiência da
maternidade e expressar sua dor, a qual foi socialmente banida das trocas simbólicas na
sociedade moderna.
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Capítulo 1 – A construção do modelo burguês de maternidade
(Lewontin, Rose & Kamin, 1984). Suas conquistas têm extrapolado o campo
proposições das Ciências Biológicas vêm sendo utilizadas para explicar as complexas
relações entre os seres humanos e, de modo mais abrangente, entre populações humanas
em sua diversidade (Souza, 2005). Em particular, ao longo dos séculos, têm sido
existentes entre os cérebros de homens e mulheres explicam uma maior aptidão dos
homens para tarefas que exijam compreensão e criação, bem como para lidar com
máquinas, computadores, sistemas abstratos, música e política. Por outro lado, explicam
uma maior aptidão das mulheres para as áreas ligadas à comunicação e empatia.
3
Baron-Cohen, S. (2004). Diferença Essencial. A verdade sobre o cérebro de homens e mulheres. São
Paulo: Objetiva.
13
capacidades diversas, variações das habilidades, padrões cognitivos ou até mesmo sua
cerebrais, configura-se o que vem sendo definido como determinismo biológico (Souza,
2005).
os gêneros, portanto, seria algo imutável, uma vez que estariam associadas à natureza,
concebida, por sua vez, de modo estático e fixo. Este argumento vem sendo utilizado
para justificar uma série de preconceitos a respeito da inexorabilidade dos destinos das
pessoas. Sendo assim, o determinismo biológico tem estado a serviço da supremacia dos
Um bom exemplo do uso de tais teorias encontra-se nas idéias dos biólogos e
médicos do século XIX. Uma delas afirmava que o cérebro da mulher era menor que o
do homem, o que se articulava com a idéia de que os ovários e útero exigiam muita
escolaridade, já que elas deveriam ser mantidas longe das escolas e faculdades, sob pena
dos seus genitais se atrofiarem em função da energia requerida para aprender, pondo em
14
igualdade entre os sexos em relação ao acesso à educação, à oportunidade de trabalho e
às diferenças entre os gêneros não se perdeu no tempo, nem tampouco foi superada
pelas revoluções sociais. Um fato recente, ocorrido em janeiro de 2005, demonstra bem
sexos explicariam o porquê de as mulheres não serem tão bem sucedidas nas ciências
homem, ou até superior a ele, na carreira científica, devido à sua menor aptidão
biológica para matemática e ciências, bem como às suas obrigações como mãe (Folha
científicos” dessa natureza. Ou seja, dados que reafirmam as bases biológicas das
deficiência estava inscrita nos ossos, no cérebro, nos ovários, no útero, nos
15
hormônios. Ainda hoje, encontramos com freqüência esse tipo de afirmação
científica estampada em notícias de jornal. Olhar para esse passado nos ajuda a
feminina eram reflexos de consensos entre cientistas imersos num contexto social
gente, até mesmo cientistas, a comprovação das bases biológicas somente seria
25/10/2005, p.13).
significa dizer que estas informações se disseminam de forma rápida e passam a ser
governam estas pesquisas e sua divulgação. Ainda mais grave é o fato de que os
alarmantes sobre o trato que a mídia confere ao tema. Tal estudo analisou 646 matérias
16
mídia brasileira, ao tratar temas científicos, o faz com excessiva simplificação; não
toma as correlações como relações de causa e efeito; altera título e conteúdo dos
(Souza, 2005).
Conforme este estudo, a mídia, em geral, privilegia a divulgação das pesquisas que
suas crenças e preconceitos acerca das diferenças, ditas naturais, entre homens e
simplificam seus achados, tornando-os mais acessíveis ao grande público, tanto para
(1979/2005) de “regime de verdade”. Segundo o autor, cada sociedade tem sua política
geral de verdade que consiste nos tipos de discurso que ela acolhe e que irão atuar como
verdadeiros dos falsos; na maneira como se sanciona uns e não outros; nas técnicas e
que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder, induzidos por ela, que a reproduzem,
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justificam as diferenças sociais e definem todo o complexo de gênero – papéis sociais,
identidade sexual, inscrição afetiva no mundo, etc. (Segato, 1997) – que reproduz o
modelo hegemônico das relações de poder entre eles e fixa nas bases anatômicas de
amamentar e cuidar dos filhos, por exemplo: a maternidade como destino natural da
maternos normais e patológicos; as normas para uma boa maternagem que garantirão o
desenvolvimento saudável dos filhos. Questões que exploro ao longo desta dissertação.
essência da feminilidade e vêm sendo usadas para justificar as construções dos papéis
Os traços anatômicos contribuem para uma visão dicotômica dos dois sexos e
facilitam a naturalização das distinções das tarefas e posições sociais relativas aos
criação dos filhos. Esse fato é definido por Bourdieu (1998/2003) como “socialização
construção de uma relação de causalidade circular. Se, por um lado, o social constrói a
18
por outro, a diferença biológica e anatômica entre homens e mulheres, explicitada nos
corpos e nas funções sexuais, é usada como justificativa natural da diferença social
da ordem das coisas, dentro daquilo que é considerado normal e natural, uma vez que se
experiências sociais, elas são percebidas pelos indivíduos como meramente naturais.
Bourdieu (1998/2003) defende que tais fenômenos são, na verdade, produto de uma
imposição social que se efetiva por meio do processo de formação e educação, como
por exemplo, a divisão sexual do trabalho. Isso ocorre pelo fato de esses fenômenos
estarem presentes de forma marcante e objetiva no mundo social e por terem sido
incorporados à própria estrutura cognitiva das pessoas, de tal modo que são concebidos
tarefas, papéis sociais e formas de subjetivação às mulheres, de tal modo que elas os
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diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial
maternidade, no entanto, o que se pode fazer é cercá-la por uma realidade em que o
tornar-se mãe é a única saída que lhe resta. São citados os costumes do casamento, a
utilizados para a construção deste cerco. A mulher se vê sem alternativas, a não ser
contexto da década de 60, no entanto, ao longo das décadas, outras autoras como Chauí
para a compreensão de gênero, composto por seis níveis independentes4. Este modelo
permite que enxerguemos a circulação dos sujeitos por esses níveis, de forma que
4
Os níveis propostos por Segato (1993) para o estudo do gênero são: o anatômico; o do gênero; o da
personalidade masculina e feminina; o da preferência ou orientação sexual; o da sexualidade e dos papéis
sociais de gênero.
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e lugares que lhes estão disponíveis na sociedade, favorecendo também esta permuta no
registro afetivo.
desmontar a associação entre a biologia da mulher e seu destino, seus papéis sociais
contribuem para desconstruir uma forte relação entre a capacidade que a mulher tem de
para a maternidade.
temperamento dos habitantes de três tribos que habitam ilhas do Pacífico e constatou
variavam entre os povos dessas ilhas. A título de exemplo, citarei algumas das
gostavam de amamentar; a relação entre mãe e filho era marcada pela impaciência e por
A partir dos resultados desta pesquisa, a autora concluiu que não é possível
21
desde o nascimento, diferentes papéis sociais e expectativas são atribuídos a cada sexo
cartas, obras literárias e pinturas. Nessa pesquisa, a autora encontrou, ao longo dos
séculos, uma grande variação nas atitudes das mulheres em relação aos seus filhos. Em
uma argumentação que desnaturaliza o amor materno. Segundo a autora, nem sempre as
mães foram tão dedicadas à maternagem como tendemos a acreditar quando nos
para exemplificar que a preservação da prole não foi, por muito tempo, prioridade para
as famílias. A forma como as francesas lidavam com a nutrição e os cuidados com seus
filhos variou de acordo com a época, a classe social a que pertenciam, os valores sociais
instituições sociais, dentre outros fatores. Durante o período estudado pela autora, o
comportamento das mães variou entre: a) amamentar o bebê ao seio; b) contratar uma
ama-de-leite que morava na casa da família, amamentava e cuidava do bebê como uma
mãe substituta; c) enviar o bebê para a casa de uma ama-de-leite mercenária que
22
A primeira agência de amas-de-leite de Paris data do século XIII e servia
este período, as mulheres ricas traziam as amas para trabalhar em suas casas, afastando-
as de seus filhos biológicos, que ficavam sem mamar, entregues à própria sorte.
filhos recém-nascidos nas casas das amas-de-leite para que fossem cuidados por elas. Já
no século XVIII, esse costume se estendeu por todas as camadas da sociedade urbana,
de tal modo que, em 1780, das 21.000 crianças que nasceram em Paris, 19.000 foram
enviadas para a casa das amas e ali ficaram até os quatro ou cinco anos. Das outras
2000 crianças, metade foi amamentada pela própria mãe e a outra metade por amas-de-
e XVIII exemplificam bem o valor que a vida dos filhos tinha para os pais. Na cidade
de Lyon, tanto burgueses quanto artesãos perdiam cerca de 2/3 de seus filhos sob os
cuidados das amas de leite e, apesar desta alta taxa de mortalidade, o hábito das mães de
entregar o filho para outra mulher criá-lo não era condenado pela ideologia moral ou
sociedade burguesa contemporânea e sua morte era sentida como um acidente quase
das amas para a casa dos pais com quatro ou cinco anos de idade, eram entregues, se
das vezes, não passava de um empregado comum. Entre oito e dez anos, os meninos
23
Segundo Badinter (1980/1985), esses dados parecem mostrar que a mãe, quando
não sofre nenhuma pressão ideológica, não é impelida por um instinto ou amor natural a
cuidar do filho e a se sacrificar por ele. A autora diz que “veremos que se tornará
necessário, no final do século XVIII, lançar mão de muitos argumentos para convocar
a mãe para sua atividade ‘instintiva’. Será preciso apelar ao seu senso do dever, culpá-
la e até ameaçá-la para reconduzi-la à sua função nutritícia e maternante, dita natural
e espontânea” (p.144).
comportamento da mulher em relação aos filhos e os papéis por ela exercidos na família
não parecem ser biologicamente determinados, pelo contrário, variam em função das
políticos, além de serem influenciados por fatores oriundos da luta entre os sexos. Ou
seja, os papéis de pai, mãe e filho são determinados em função das necessidades e
No final do século XVIII, a criança adquiriu um valor mercantil, uma vez que o
ser humano converteu-se em provisão preciosa para o Estado, não só porque produzia
riquezas, mas também porque era uma garantia de poderio militar. Sendo assim, o
passou a ser a sobrevivência da criança na primeira etapa de vida, que tinha sido
intelectuais, um movimento que engendrou um mito, que permanece vivo até hoje,
24
duzentos anos depois: o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo
Rousseau, filósofo iluminista, foi o precursor dessa nova mentalidade, que ainda
autor “construiu” a mulher ideal por intermédio da personagem Sophie, esposa e futura
mãe dos filhos de Émile. Ele pensava a diferença sexual apenas sob a forma de
era definida por ele como fraca, passiva e criada para “complementar” a masculina,
subjugar a ele, cedendo e suportando todas as situações. A mulher, por sua natureza, foi
feita para ser boa esposa e mãe, vivendo pelo marido e para os filhos, seguindo o
inencontrável (...) Só o homem detém a faculdade dos princípios, e por isso constitui-se
em fim absoluto” (conforme citado Badinter por 1980/1985, p. 242). A visão de mulher
como “o outro” será, no século XX, um dos temas mais combatidos pelos movimentos
feministas.
A partir desse modelo de mulher ideal, Rousseau construiu a mãe ideal que
amamentar) e um caráter doce (para tudo suportar e educar bem seus filhos com doçura,
zelo e afeição). Como boa mãe, deveria ignorar o prazer e a agressividade, portanto, não
25
Para Rousseau, a mulher seria a única pessoa a mandar em casa, mas seu poder se
reclusão onde os filhos seriam criados. A maternidade era entendida como sacerdócio,
discurso da felicidade e igualdade, que persistiu por quase dois séculos. Este discurso
“vendia” para a mulher a idéia de que se ela fosse boa mãe seria feliz e respeitada e, se
em sua maioria, acataram prontamente seu novo papel. Entretanto, não o fizeram
hegemônico, sem modificar sua antiga rotina; estas mães continuaram a contratar amas-
de-leite que assumiam totalmente o cuidado de seus filhos. Aquelas que abertamente
famílias em relação a seus filhos tenha demorado a se alterar, a ideologia que associa o
26
mentalidades” (p.101), de modo que a imagem de mãe, seu papel e sua importância
tenha convencido todas as mulheres a se tornarem mães dedicadas, seu discurso teve
mulheres.
Para a autora, se, por um lado, algumas mulheres ganharam um status importante
materna criaram um mal estar inconsciente. A pressão ideológica foi tão grande que
muitas se sentiram obrigadas a exercer a função materna mesmo sem desejá-la, vivendo
a maternidade sob o signo da culpa e da frustração, o que pode ter sido “a origem da
Até o século XVII, a vida da criança pequena – o infante ou lactente – valia muito
pouco e não havia para ela um espaço social particular, de tal forma que compartilhava com
infanticídio que, mesmo sendo considerado prática criminosa, persistiu até o final do século
XVII. Vale observar aqui a semelhança com o que ocorre atualmente no Brasil em relação ao
aborto provocado que, apesar de ser definido no código penal como crime contra a vida,
Naquela época, era relativamente comum a ocorrência de morte de bebês por asfixia
“acidental” durante o sono. Em algumas famílias aconteciam casos sucessivos, apesar das
27
seguidas advertências das autoridades sociais a respeito do perigo que representava colocar o
burguesas, preocupadas com uma suposta queda nas taxas populacionais e convencidas de
meios para estimular o aumento da população. Sendo assim, a progressiva valorização social
da criança se deu motivada pelos ideais iluministas e pela preocupação com o crescimento
demográfico.
As mães foram, aos poucos, persuadidas por argumentos que exaltavam a necessidade
diminuição da população, é uma idéia que parece ter sido obra de filósofos (Montesquieu,
às transformações nos modos de produção dos bens materiais, à nova configuração social da
família burguesa supervalorizava a vida privada, morava em bairros próprios onde se sentia
5
Fisiocracia: doutrina econômica e filosófica do séc.o XVIII que se baseia no conhecimento e no respeito
às leis naturais, considera a terra como única fonte de riqueza e defende o liberalismo econômico.
28
protegida da barbárie; cabia à mãe, por sua vez, se ocupar exclusivamente dos cuidados dos
filhos, e ao pai, proteger e prover a família (Ariès, 1973/1978). A mãe passou a ser porta-voz,
A estatística, com seus números muitas vezes questionáveis, também foi utilizada como
argumento junto às autoridades públicas para retirar as práticas popularizadas das mãos dos
ultrapassadas, não científicas e perigosas, que deviam ser substituídas por aquelas oriundas de
Neste contexto, a saúde da população ganhou uma dimensão que não existia na Idade
Média e passou a ser apreciada como questão social de importância estratégica para as
A medicina, pois, não permaneceu alheia ao processo iniciado pelo novo discurso
burguês que era, ao mesmo tempo, legislador, ético e pedagógico. Pelo contrário, passou a ser
disciplinador, fiscalizador e autoritário, que se apropriou das práticas populares e ampliou seu
29
campo de atuação no interior das famílias, regulando até os mínimos atos privados que a
tal forma que no século XIX já não era mais permitido à mãe escolher entre os diversos
métodos de criação dos seus filhos. A natureza não mais deveria ser tomada como guia,
comportamento moderno.
por quase dois séculos, o pensamento da classe burguesa a respeito do valor da criança, e
mulher com a maternidade deu início à história da culpa materna, nos moldes como a
conhecemos hoje.
século XVII. Esta propagou um discurso capitalista populacional, com argumentos sobre a
precioso do Estado.
individual e valorização do amor, na busca da evolução dos espíritos. Este discurso forçou o
procriação passou a ser o ponto alto do casamento: a partir do nascimento do filho, emergia a
em detrimento da paterna.
30
administradores, pedagogos e chefes de polícia – defendia a idéia de que a mulher era a
principal educadora do filho e a grande responsável pelo tipo de cidadão que ele viria a ser.
Por conseqüência, a mãe se tornou a interlocutora privilegiada destes profissionais, alvo tanto
& Moura, 2003). Apresento, a seguir, como ocorreu esta transição tendo como base a
de exploração do Brasil, visando o lucro sem fazer investimentos. Para isto, estimulou a
iniciativa privada dos colonos. A família colonial brasileira construiu uma ordem social
próprios interesses de Portugal, de tal modo que a família patriarcal tradicional passou a
pai-proprietário era visto pela mulher e pelos filhos como patrão e protetor, fato que
31
Os senhores rurais, que gozavam, até aquele momento, de grande poder e
e famílias. Eles o fizeram não apenas no que dizia respeito à sua ordenação econômica,
administrativa.
família real se transferiu com a corte para o Rio de Janeiro. Em tal momento, a
sobre a organização das cidades e das famílias, a coroa portuguesa alterou a estratégia
baseada em uma ética punitiva e legal, que havia sido utilizada ao longo do século
Munido de um discurso higienista, que defendia a saúde física e moral das famílias, o
poder médico executou a política do Estado em nome dos direitos do ser humano. Para
tanto, criou dois tipos de intervenção normativa: uma, por intermédio da medicina
coletividade.
32
Os médicos, em nome dos interesses do Estado, penetraram na família burguesa
citadina para regular a conduta física, intelectual, moral, sexual e social dos seus
p.33).
inadequadas pelo alto índice de mortalidade infantil, associando a morte das crianças ao
casal em relação à prole. A partir destes argumentos, a família burguesa foi convencida
de que era incapaz de proteger a vida de suas crianças e que deveria, portanto, seguir as
relação aos filhos. A sua estratégia consistia, também, em descobrir funções latentes e
virtudes escondidas, tanto no pai quanto na mãe, que deveriam ser desveladas pelo
médico. Desta forma, os indivíduos eram adaptados à ordem do poder não apenas pela
Na mulher, este processo teve um efeito específico. Ela foi reduzida à figura de
poder médico.
Para a criação da mãe higiênica, tanto no Brasil quanto na Europa, foi fundamental
aleitamento mercenário (realizado, aqui, pelas escravas) pela mortalidade infantil e por
33
uma suposta deformação moral das crianças decorrente da convivência com amas-de-
da mãe biológica, não ecoava apenas a voz do discurso higienista, mas, sobretudo,
aquela que entoava a “ojeriza racial contra os negros”. Portanto, aqui se entrelaçam o
cuidavam das crianças para que suas mães fossem trabalhar, sob o argumento de que a
especialmente a moral.
indicavam que ela protegia a saúde da criança, mas, sobretudo, porque se transformou
ser exercidas pelos homens, consistia em supervalorizar as funções que somente elas
eram capazes de exercer, como a amamentação. Este discurso seduzia as mulheres, pois
oferecia a possibilidade de realizar uma tarefa valorizada socialmente, que lhes conferia
34
uma importância jamais experimentada pela grande maioria delas (Badinter,
1980/1985).
modelo de pai provedor, funcionário do Estado, que tinha como maior missão
Segundo este modelo, a vida matrimonial se caracterizou por uma repartição dos
aquilo que a mulher, conforme os valores culturais, não poderia realizar e ela, por sua
vez, efetuava as tarefas que não estavam inscritas na competência do marido. Ou seja,
se estende ao público, servia, e até hoje ainda serve, para legitimar a dominação
havia uma polarização da educação dos homens e mulheres. A das mulheres centrava-se
la para ser uma mãe virtuosa, pilar de sustentação do lar e educadora dos futuros
vocação feminina, e tudo que afastasse a mulher deste “destino” era considerado como
desvio da norma, sujeito a sanção legal e social. Este fato demonstra que, apesar dos
35
Se, nos tempos da colônia, o casal se formava para manter e fazer crescer a
propriedade, ao longo do século XIX, do império até a república, novas normas para o
contrato conjugal foram engendradas pela razão higiênica. Os cônjuges não deveriam
mais ser escolhidos em função dos seus atributos econômicos e, sim, por sua capacidade
prática do casamento não apenas reprimindo o que nela era inconciliável com a nova
ordem política. Em troca dos valores religiosos e patriarcais que foram suprimidos,
e dos prazeres sexuais, uma vez que a higiene exaltava a importância da sexualidade
De acordo com este relato histórico, sobre como se construiu a sociedade burguesa
brasileira, é possível perceber que não foi pela ordem da lei ou do poder punitivo e
transformar o antigo modelo das famílias coloniais em uma nova organização que
36
diferença” (p.35), pois se originou do interesse da medicina pela diferença entre homens
feminino.
psicológica e intelectual das mulheres em relação aos homens estava nas diferenças
desordens. De acordo com Rohden (2001), a ginecologia se constitui sobre essa lógica.
mulher, mas também aos valores e padrões estabelecidos para o sexo feminino o que,
extrapolaram a função de cuidar das doenças femininas e estenderam o seu poder aos
vários aspectos da vida social. Rohden (2001) afirma que, na maior parte dos
traçada sobre uma quase redução das funções da mulher à maternidade e ao lar, e
sobre uma ênfase nos perigos representados pelas tentativas de rompimento dessa
37
equação” (p.149). Logo, a mulher que transgredisse o modelo idealizado de mãe e
esposa corria o risco de ser rotulada como doente, uma vez que a doença tinha um
saber médico, deixaria de ser a responsável pela transmissão de males e pelo atraso
Esses autores defendiam, por um lado, a idéia de que a maternidade estava inscrita
no corpo e, até mesmo, no coração das mulheres e, por outro, que era necessário instruí-
las para que cumprissem a função materna com êxito. Nesse contexto, em meados do
espaço que se situava além da doença, exercendo seu poder também sobre a saúde.
de higienização das famílias. As regras ditadas pelos médicos ganharam mais força,
uma linha que dividia o que pertencia à medicina legítima e o que dela devia ser
planejador urbano, à medida que o projeto de higienização migrou dos espaços públicos
ambição de alcançar o interior das consciências e impor suas regras ao exercício de cada
38
acreditavam que elas necessitavam). Nesse contexto, cada gesto da mãe foi
sobre desenvolvimento infantil é enorme, de tal forma que as informações sobre o tema
cursos, fitas de vídeo e DVD’s; todos destinados a ensinar como cuidar adequadamente
do bebê.
aquela/e que tenha a “coragem” de sair com o filho recém-nascido da maternidade sem antes
adquirir um manual de “como criar bebês”, que ensina desde como cuidar do coto umbilical a
como fazê-lo dormir. Estas publicações chegaram a um grau de especificidade tal que se
dividem entre “como criar meninas” e “como criar meninos”; reafirmando, assim, as
criação de filhos, já que, numa sociedade que valoriza o saber científico e utiliza cada vez
(Foucault, 1979/2005) que cria e alimenta essas informações, bem como o sentimento e a
ideologia que motivam o seu consumo. Ou seja, o “terror” que as mães e pais sentem de
“fazer errado” e ter como conseqüência filhos infelizes e desajustados; conforme “advertem”
os disciplinadores de plantão.
39
Tampouco tenho a intenção de negar que as mães e pais sofrem com as mudanças que a
chegada de um filho ocasiona em suas vidas e que a família burguesa moderna, muitas vezes,
minha própria prática clínica, bem como o objeto desta pesquisa: o sofrimento da mulher no
pós-parto.
social burguesa.
como provas de que eles não estão suficientemente convertidos ou submissos às normas
de saúde.”
médica, à medida que utilizam o sofrimento das famílias como matéria-prima para adaptar os
indivíduos a uma norma física, psíquica, moral e sexual típica e exclusiva do universo
burguês. Assim, apesar de estes profissionais não possuírem a intenção deliberada de, a partir
das suas práticas terapêuticas, adaptar as pessoas que os consultam aos valores político-
40
ideológicos dominantes, acabam prestando-se a esta função por não questionarem as matrizes
filosóficas e sociais da ciência que orientam os postulados teóricos e técnicos de suas práticas
(Costa, 1979/1999).
Nos atendimentos psicoterápicos não são raras as queixas de mães e pais que se vêem
confusos diante de tantas prescrições sobre a forma correta de cuidar e educar os filhos. É
avalanche de informações acerca de suas novas funções. Cito alguns relatos extraídos da
minha prática clínica, que ilustram bem a angústia e a ansiedade destas mães e destes pais:
“Será que eu vou me lembrar de todas estas informações que tem chegado de todos os
lados? Será que eu vou saber fazer certo?” (L., 42 anos, primeira gestação).
“A amamentação me parecia tão instintiva, mas depois de uma palestra que eu assisti
de uma enfermeira especializada em amamentação eu comecei a achar que eu não vou dar
conta, não vou lembrar de todas aquelas dicas e recomendações... pensei até em gravar a
palestra e ficar ouvindo enquanto eu amamento, será que é necessário?” (S., 34 anos,
primeira gestação).
“Eu tenho três filhos, cada um criei numa época diferente, um tem 25 anos, e a mãe
dele nunca amamentou, o outro tem 16, este já mamou uns quatro meses, agora a minha
mulher tá desesperada porque não consegue amamentar e ouviu do médico que tinha que
amamentar exclusivamente no peito até 6 meses, senão aconteceria isso e aquilo outro ...
quer saber, acho que ela está deprimida por causa disso ... fico ouvindo ela e pensando: que
bobagem! Se fosse assim meus outros filhos tinham que ter uma meia dúzia desses problemas
41
que o médico falou.” (A. 50 anos, pai de três filhos, esposo de C., 35 anos, primeiro filho, a
qual chegou no meu consultório com diagnóstico de depressão pós-parto, feito pelo
pediatra).
O discurso médico atual, dirigido aos casais burgueses modernos, continua associando a
função materna e o amor da mãe pelo filho à existência de um suposto instinto, ou seja,
feminina” para cuidar dos filhos. Por outro lado, o mesmo discurso medicaliza o corpo da
mulher e normatiza as suas práticas. Durante a gravidez, regras rígidas que devem ser
seguidas pela mãe são instituídas e uma gama de exames para controlar o funcionamento do
seu corpo são solicitados; já no pós-parto, são prescritos os cuidados com o neonato.
maternidade é condição intrínseca à natureza da mulher, mas que esta natureza, muitas
vezes, desvia-se do seu curso e, assim, depende da intervenção do saber médico para
direcioná-la. Esta crença se revela em idéias como as encontradas na pesquisa feita por
podem ser perniciosas na formação dos papéis femininos e a mulher, quando não
orientada de perto, pode entregar-se aos seus impulsos sexuais e a seu desejo de
independência; por conseqüência, pode não cumprir o papel materno. A mulher deve ser
ensinada a parir, amamentar e cuidar dos seus filhos e, se for o caso, ensinada até
mesmo a engravidar.
Essas idéias indicam que, segundo a lógica médica, a natureza é algo maleável e
42
domesticando-a, sempre que julgar necessário. Assim, os casais não se sentem capazes
aos filhos alimentam o poder disciplinador dos profissionais de saúde. Este poder
Costa (1979/1999) sintetiza bem esta dependência dos pais burgueses modernos
“Na família burguesa os pais jamais estão seguros do que sentem ou fazem com
Os médicos não foram, e não são, portanto, os únicos agentes responsáveis por
relação aos filhos. Este sentimento, apesar de ser fruto de uma construção histórica, é
43
considerado inerente à natureza da mulher, assim como as outras qualidades atribuídas
reforçar o sentimento de culpa das mães, uma vez que as responsabilizam pela saúde
física, o equilíbrio emocional e o ajuste social dos filhos. A estratégia dos especialistas,
que não se limita a orientar as mães sobre como cuidar dos filhos, consiste, sobretudo,
em adverti-las dos perigos da educação “incorreta”. Este discurso sinaliza que, apesar
mesmo que sob uma aura de modernização dos conceitos ligados a maternidade.
parto, dos cuidados com o bebê e da educação dos filhos. O modelo burguês de família,
desigual dado às demandas emocionais da mãe em relação às dos filhos, que são
desdobramentos das teorias de Freud nas idéias de seus seguidores. Creio, entretanto,
que cabe ressaltar como os fragmentos das teorias psicanalíticas – que chegaram ao
44
público em geral por intermédio dos meios de comunicação de massa e dos livros sobre
medo das conseqüências negativas que o seu “mau comportamento” poderia ter sobre o
moralizadoras do século XVIII. Ainda hoje, os dois discursos se superpõem tão bem
malvada e doente. Sendo assim, a angústia e a culpa maternas nunca foram tão grandes
45
relação mãe-filho, como a “teoria das relações objetais”, têm amplamente ignorado até
que ponto os processos da mãe são “singulares e internos”. Nas palavras dela:
“Em minha opinião, as feministas têm, com razão, criticado a psicanálise por ver
Parker (1995/1997) embasa sua crítica em uma pesquisa realizada em 1983, por J.
periódicos da área médica nos anos de 1970, 1976 e 1982, nos quais se discutia a
quase sempre as mães eram responsabilizadas pela causa das doenças que acometiam
seus filhos. Parker defende então que não só os psicanalistas se mobilizam para impedir
46
maternidade. Segundo ela, os ginecologistas interessam-se pelos órgãos femininos e
suas doenças e os obstetras, pelo fruto desses órgãos. Os pediatras, por seu turno,
concentram seus cuidados nas crianças a tal ponto que, mesmo quando estão
conscientes do sofrimento materno, estão tão polarizados pela criança, que tendem a
permanecer passivos diante da mãe e, até mesmo, a se proteger dos sentimentos que
elas expressam.
sentimentos de amor e ódio que a mãe tem pelo filho. Para ela, a ambivalência materna
ambivalência materna, porque têm terror de que o ódio que a mãe sente pelo filho
destrua o amor que ela sente por ele, fazendo com que o abandone. Isso ocorre porque o
ódio, em nossa cultura, não é aceito como uma emoção presente na vivência da
monstruosa, doente e não tem amor para dar a seu filho; a mãe idealizada é incapaz de
Segundo Parker (1995/1997), as mães tendem a usar as outras mães como espelho.
acertos e de se reassegurarem como boas mães. Do mesmo modo, elas procuram, umas
47
nas outras, a “absolvição” para as emoções maternas culturalmente definidas como
inaceitáveis e que são vivenciadas por estas mulheres, na maioria das vezes, como
dolorosas e imperdoáveis.
dificilmente serão, por este motivo, tranqüilizadoras. Isto ocorre, em parte, porque os
truncados pelas expectativas culturais. Dito de outra forma, quando uma mãe se
compara com outra, ela é influenciada pelo que pensa sobre si mesma, sobre o outro,
sobre o que pensam dela e, até mesmo, pelo conceito de “boa mãe” construído
culturalmente.
O sentimento de uma mãe face à condição materna, ou frente aos significados que
esta possa ter para ela, é fortemente influenciado pelas representações culturais de
aumenta a mobilidade na vida das mulheres” (Parker, 1995/1997, p. 32). Vale notar,
entretanto, que as mulheres não são vítimas passivas do modelo de boa mãe que é
período posterior ao parto, os sentimentos das mulheres pelos seus filhos. Sendo assim,
representação e dos valores atribuídos à maternidade pela classe social e pela cultura a
48
Desta forma, as pesquisadoras às quais recorri para entender a questão da
materno mantém-se tão rígida quanto nos períodos anteriores aos movimentos
assim como a Virgem Maria permanece sendo o modelo de perfeição perseguido pela
“boa mãe”. Para Ribeiro (2000), o cristianismo criou dois modelos de mulher: Eva e
Maria. Para a Igreja, Eva, com suas características demoníacas, representa aquilo que a
mulher é; Maria, por sua vez, é o modelo de virtude daquilo que a mulher deveria ser:
santa, abnegada, obediente a Deus e aos homens e, sobretudo, devotada ao filho. Eva
está associada a um caráter imperfeito de seu corpo que a deixa fisicamente mais
vulnerável.
âmbito privado.
Estes modelos, amplamente veiculados pela igreja católica, integram não somente
a construção social do “que é ser mulher”, mas, principalmente, a percepção que elas
porém, que estas questões não podem ser reduzidas à mera conseqüência do discurso
49
teológico, porque tanto o cristianismo influenciou e influencia a cultura e a sociedade,
feminismo, certa flexibilidade no decorrer das últimas décadas, mas o ideal feminino (o
maternidade permaneceu curiosamente estático. Quanto mais rápido mudou a vida das
defende que, apesar da rápida evolução dos costumes, as mães de hoje são muito mais
vítimas dos mitos do que seria possível supor. Para a autora, as mulheres permanecem
atadas aos modelos ideais de mãe perfeita e da mãe-virgem. Portanto, grande parte das
pelo discurso moralizador e normatizador do século XVIII. Discurso este que define as
(1978/1990) define bem esta situação: “idealizar e culpar a mãe são dois lados da
desenvolvimento infantil ainda apontam a mãe como a principal responsável por cuidar,
50
Muitas mulheres vêm resistindo à pressão ideológica que constrói uma ponte
direta entre o feminino e a maternidade e que limita o exercício dos seus outros papéis
convicções e representações a respeito do que é ser mulher, muitas delas dividem seu
tempo entre educar os filhos, cuidar da casa e gerar recursos financeiros que garantam o
mulheres que trabalham fora de casa (por opção ou por necessidade) praticam uma
verdadeira ginástica diária para cumprir todas as suas funções e, ainda assim, sentem-se
tempo dedicado aos filhos, mas a qualidade da relação que estabelecem com eles. Estes
profissionais pregam que as mães devem equilibrar o tempo dedicado aos filhos e às
outras atividades e ressaltam os seus benefícios, mas raramente se dão conta do quanto
todos os seus outros papéis, inclusive aqueles que ela adquiriu após conquistar o direito
51
1.9 - Desconstruindo o mito do “amor materno”
questionou o caráter natural do sentimento de amor que a mãe tem por seu filho/sua
filha, bem como o fato de este sentimento ser vivenciado do mesmo modo por todas as
mulheres.
Para a autora, o conceito de instinto não é adequado para definir a origem do amor
que a mãe sente pelo filho, uma vez que falar em instinto é referir-se à “tendência inata
Suas vivências e sentimentos são influenciados pela sua subjetividade e pelo contexto
sociocultural no qual está inserida, o que faz com que a maternidade seja uma
experiência única e singular para cada mulher, bem como o sentimento que ela
Badinter (1980/1985) alerta para o fato de que muitos teóricos não fazem
existência de um amor da mãe pelo filho que é tão forte e tão geral que “provavelmente
deve alguma coisinha à natureza” (p.12). Ou seja, muda-se o vocábulo de instinto para
amor, mas conserva-se neste as características do outro, de tal forma que os conceitos
“amor materno”, como qualquer outro sentimento humano, é incerto, frágil, imperfeito
e sujeito às circunstâncias.
universal que persiste na idéia de amor materno. Ela não nega a existência deste
52
sentimento, ao contrário, acredita que ele sempre existiu, no entanto, recusa a idéia de
que o amor materno nasça junto com o bebê, defendendo, na verdade, que ele se
mulheres, nem mesmo que a espécie humana dependa dele para sobreviver, visto que a
criança pode ser maternada por outras pessoas. Para ela, a mãe não cuida do filho
catalisadores tão ou mais poderosos que o desejo da mulher de maternar seu filho.
Conforme sua teoria, portanto: “(...) uma mulher pode ser ‘normal’ sem ser mãe, e toda
De acordo com as idéias defendidas pela autora, a mulher é encarada como ser de
desejo, que simboliza, constrói e é construída pela cultura num dado momento histórico.
pois, refutar o mito – que tanta angústia e culpa causa nas mulheres – de que um
suposto amor instintivo e natural “magicamente” brota logo após a mulher descobrir
Ao sustentar que o desejo da mulher de ter um filho e/ou de materná-lo não está
opção de algumas mulheres por não ter filhos ou por não criá-los, sem que por isso
53
venham a ser consideradas anormais ou perversas. É importante notar, porém, que a
não têm filhos, e a condenar, duramente, aquelas que porventura tenham atitudes
o preconceito sofrido pela mulher que entrega o filho para adoção, ou aquela que decide
interromper uma gravidez não desejada, já que se contrapõe à idéia de que a mulher
“normal” ama e deseja o filho, independentemente das circunstâncias de sua vida. Outro
possível compreender e aceitar que a mulher muitas vezes se sente confusa, triste,
Orientada por esta perspectiva, passo então à reflexão, nos próximos capítulos,
sobre como este sofrimento, vivenciado pela mulher moderna no puerpério, vem sendo
significado e acolhido por uma sociedade que tem como paradigma de saúde o modelo
54
CAPITULO 2 – Os comportamentos da mulher moderna que negam o mito do
amor materno
maternidade tem para determinada cultura ou grupo social. Neste capítulo, optei por
trilhar caminhos que levassem a uma reflexão sobre como a sociedade burguesa
brasileira enxerga e se relaciona com as mulheres que, após terem um filho, entregam-
tantos outros como o aborto, ou a recusa de mulheres casadas em ter filho – foi
motivada pela repercussão, na opinião pública, do caso de uma mãe que abandonou a
filha recém-nascida na Lagoa da Pampulha em Belo Horizonte, que ora nomeio como
“Caso Simone”.
bebê, que foi retirada da lagoa, aonde boiava, dentro de um saco plástico, em cima de
uma tábua. As cenas foram veiculadas por grandes redes de TV e causaram forte
55
histórica dos conceitos de abandono e infanticídio, tomando como base os estudos
realizados por Motta (2001), em seu livro Mães Abandonadas: a entrega de um filho em
adoção.
ilegitimidade não cabia para a maternidade, apenas para a paternidade, uma vez que não
havia distinção entre maternidade legítima e natural, já que a identidade materna não
dependia do casamento como fato jurídico. Somente a partir de 519, a lei decretou que
herança materna.
relação aos filhos ilegítimos, a gravidez não desejada foi resolvida por intermédio do
infanticídio se tornou tão comum que a Igreja recorreu a sanções para controlá-la.
Naquele período, somente a pobreza da mãe era aceita como atenuante para o delito e,
conforme documentos do século XVI e XVII, muitas jovens, quase sempre menores de
em relação à maternidade ilegítima chegou a tal ponto que, no século XIX, em Buenos
Aires, a mulher que cometia infanticídio para esconder sua desonra recebia uma pena
mais leve do que aquela que cometia outro tipo de homicídio. Nos tribunais, as
mulheres não se esforçavam por descrever seu remorso ou arrependimento por ter
matado o próprio filho, mas sim, por terem traído seus maridos. A sua defesa dava
56
ênfase à questão da desonra e da expectativa de certa “morte civil” ou “social”, se o fato
mulher, o argumento utilizado na defesa da mãe que mata ou tenta matar o próprio filho,
concentra-se na idéia de que esta mulher está acometida por uma doença e que,
portanto, não está no seu estado emocional normal, nem no controle total das suas
brasileira, que a prevê no código penal como atenuante de pena. Voltarei a este assunto
eram deixados em calçadas, florestas, terrenos baldios e praias – ambos motivados pelo
desejo de manter em segredo a origem da gravidez. Como saída para esta questão, o
governo e a sociedade criaram e mantiveram as “Rodas dos Expostos” nas Santas Casas
A Roda dos Expostos era um cilindro instalado na parede lateral ou frontal das
Casas de Misericórdia, que unia o interior da Santa Casa à rua. O “expositor” colocava
o bebê no cilindro, girava-o e depois tocava uma sineta, avisando assim para a rodeira
que ali havia sido deixado um “exposto”, que a partir daquele momento ficava sob a
constranger pessoa alguma: nem aquele que lá deixava o bebê, tampouco quem o
recolhia.
Império e chegaram à República, sendo que a última delas foi desativada em 1950. No
57
início do século XX, as Santas Casas de Misericórdia, espalhadas por todo o Brasil,
além de ainda manterem algumas Rodas dos Expostos, também criaram creches, jardins
social gerado por órfãos ou filhos não desejados. Tais instituições de ensino tinham o
currículo composto por disciplinas como instrução moral, religiosa, cívica e cantos
patrióticos.
visto que a moral cristã restringia a reprodução aos limites do casamento, a gravidez
familiares brasileiras, já que esta instituição protegia as mães brancas e solteiras dos
escândalos, dava à mulher adúltera um remédio para a sua “má conduta”, além de
sociedade”.
enjeitadas em razão da pobreza dos pais, que não tinham alternativa no caso de os filhos
nascerem doentes, restando assim a opção de entregá-los aos cuidados de uma Santa
Casa, além da ocasião da morte dos pais, ou ainda, em decorrência de fatores fortuitos,
mulher.
58
Um fato importante que merece ressalva é que, naquela época, existia uma dupla
acordo com a cor e o status social. Para a mulher branca, constituía uma grande desonra
ter um filho ilegítimo; para a mulher negra ou mestiça, nem tanto. As citadinas sofriam
mais preconceito que as campesinas – a explicação está no fato de que para os pequenos
em relação aos valores, mitos e atitudes que dizem respeito à maternidade permanece,
uma vez que grande parte das mulheres que entrega seu filho para adoção é adolescente
2001 e Gonzáles & Albornoz, 1990). Nas famílias burguesas, o filho não desejado ou
não planejado tem destino diferente, já que não é aceito socialmente que uma família
que tem condições financeiras para criar mais um membro o entregue para adoção.
O aborto tem sido utilizado pelos diversos estratos socioeconômicos como solução
para uma gravidez não planejada ou indesejada. Para as mulheres de maior poder
por profissionais qualificados, que zelam pela integridade física e moral de suas
pacientes.
com o relato de mulheres burguesas que estão vivendo uma gravidez tranqüila e
59
planejada, e que no passado optaram por interromper outras gestações por não
desejarem ter um filho naquele momento de suas vidas. A maioria destas mulheres me
relatou que, na época dos abortos, procuraram clínicas privadas onde realizaram o
1999, universitárias da USP e da Unicamp que haviam passado por situações de aborto.
Segundo os resultados de sua pesquisa, a maioria das estudantes era bem informada
/cotidian/ff073200501).
Galvez, fazem parte de um universo privilegiado que aborta com segurança e que jamais
chegam aos hospitais, em geral, são de mulheres pobres que sofreram complicações em
que levam as mulheres à morte. Muitas delas são vítimas de falta de cuidado médico
60
curso ou com complicações em virtude de um abortamento recém-feito.
que poderiam ter sido evitadas, e até mesmo a morte de um número significativo delas.
vista que a legislação criminaliza os abortos provocados. O Estado não desenvolve uma
ação eficaz para fechar as clínicas particulares, que realizam o procedimento para as
mulheres em melhores condições econômicas e, por outro lado, este mesmo Estado não
cria condições dignas para a mulher de baixa renda interromper uma gestação
indesejada, sem ter que, para isso, arriscar a própria vida. Tampouco se implementa na
massa.
Sendo assim, a forma como a sociedade brasileira lida com o aborto – a legislação,
a assistência pública à mulher que aborta, bem como a postura dos profissionais de
saúde que a atendem – expressa não apenas as desigualdades sociais que marcam esta
abandonam
As mulheres das classes sociais menos favorecidas, que optam por não abortar
mas decidem não criar seu filho após o nascimento e o entregam para adoção, são
vítimas de duras críticas. Segundo pesquisa realizada por Hartmas (1994), a mãe
61
doadora tende a ser vista como uma pessoa socialmente excluída, estigmatizada, de má
por “não quererem criar seus filhos”, por outro lado, quando decidem ficar com a
consideradas irresponsáveis, uma vez que colocaram no mundo um filho que não têm
Mello & Dias (conforme citado por Motta, 2001) pesquisaram, em 2003, a
nas como pessoas imaturas, irresponsáveis e incapazes de criar o filho devido à falta de
condições financeiras.
Os homens defendiam duas idéias paradoxais a esse respeito: a primeira delas, que
a mãe não se preocupava com o filho, e a segunda, que ela acreditava que os pais
filho após entregá-lo para adoção. Os autores sugerem que a severidade dessas mulheres
talvez esteja abalizada na crença de que o amor materno é inato e no ditado: “mãe que é
mãe não abandona” (Mello & Dias, conforme citado por Motta, 2001).
mães que entregam o filho para adoção – basicamente mulheres jovens, pertencentes
casos passageiros e sem acesso aos meios contraceptivos – Santos (2001) alerta para o
fato de se considerar uma pluralidade neste universo e que, mesmo dentro desta maioria
62
homogênea, há uma diversidade de subjetividades. Conforme a autora, é, portanto,
ingênuo e ineficiente analisar o fenômeno da entrega para adoção como sendo restrito a
cada mulher.
não aceitam a possibilidade de uma mulher optar por não exercer a maternidade de uma
uma forte expectativa de que esta mulher apresente motivos plausíveis que justifiquem
socialmente o seu ato, ou no mínimo, que manifeste dor e sofrimento por se separar do
filho.
que entregam o filho para adoção, esclarece que nem todas as doadoras são pobres e
Segundo Santos (2001), quando elas são ouvidas de forma respeitosa, muitas
vezes manifestam abertamente que não desejam efetivamente maternar e que, por este
motivo, não estão dispostas a buscar alternativas para possibilitar esta maternagem. A
autora cita alguns comentários dessas mulheres que ilustram bem a marca da
subjetividade na decisão de não maternar (“Essa história de cuidar de filho não é meu
63
forte”); a presença de motivos de ordem pessoal que a fazem decidir por não ficar com a
criança (“Eu tinha que escolher entre a criança e o marido, então eu prefiro ficar com o
homem que paga as minhas despesas, filho a gente pode ter um todo ano”); bem como,
a irritação diante do processo que o Estado as impõe para legalizar a entrega (“Porque
eu tenho que passar por tantas entrevistas para explicar que não posso e não quero
ficar com esse filho?”; “Se eu soubesse que ia dar tanto trabalho, teria deixado o
de entrega e adoção, na maioria das vezes, não criam as condições para que a mulher
manifeste os reais motivos pelos quais está entregando seu filho. Isto ocorre porque
esses profissionais evitam, em razão de seus preconceitos, entrar em contato com o fato
de que algumas delas simplesmente não desejam ser mães, e outras encontram na
entrega uma oportunidade de oferecer ao filho uma vida melhor do que ela teve, ou
pois, apesar dos nove meses de contato com o filho no ventre, não desenvolveram com
ele qualquer vinculação. Sendo assim, para o bem da criança e dos pais adotivos, elas
devem ser esquecidas, suas identidades devem ser guardadas sigilosamente nos registros
– aos quais ninguém tem acesso – de modo que, a partir do momento em que elas
mesmos valores sociais e morais que a condenam por ter entregado seu filho para
adoção. Segundo a autora, a própria lei “faz” subentender que a mãe deve esquecer a
64
criança para sempre, não lhe garantindo o direito de estabelecer contato futuro com o
filho, nem mesmo saber notícias dele. A mensagem é: “você deve entregar o filho e
pagar calada pelos sacrilégios que cometeu: o primeiro, de ter concebido a criança, e o
Este modelo de adoção fechada, que pretende evitar a ameaça que assombra a
família adotiva de perder a criança para a mãe biológica, caso elas se encontrem,
sustenta-se na crença de que a união mãe-filho, dada pela biologia, é muito mais forte
do que os laços tecidos pelo amor construído na convivência. Conforme este modelo,
portanto, para que a adoção seja bem sucedida, qualquer contato com a história da
Muitas mulheres, que decidem entregar seus bebês para outras pessoas criarem,
encontram formas para driblar a condenação social a que serão expostas caso desafiem
portas alheias, em latas de lixo e em locais os mais variados, a fim de não terem que
abrir mão voluntariamente do pátrio poder, evitando, desta forma, tornar pública a sua
por elas, sem o intermédio da Vara da Infância e da Juventude, que o registrará como
filho biológico. Esta prática, apesar de ser um ato ilegal, exime as mães de assumir
infanticídio, sem dúvida, a atitude que mais choca a opinião pública e, em especial, os
membros da sociedade burguesa. Em geral, diante deste fato social, as pessoas não
65
indagam sobre os motivos que levaram uma mulher a matar o próprio filho, nem
mantidos pela sociedade da qual fazem parte podem “incentivar” este tipo de atitude.
Quase sempre as concepções apriorísticas que prevalecem nessas situações são de que a
criminosa.
matam, remete-me à frase de Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento,
mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Justifico a licença poética
para defender que acredito serem muitos os fatores que constituem as “margens que
comprimem o rio”, ou seja, a atitude das mulheres que matam seus próprios filhos é
culturais e sociais que, por sua complexidade, não podem ser reduzidos a uma questão
brutal que milhares de crianças eram mortas após o nascimento, sobretudo as meninas,
causam angústia nos interlocutores, pois os remetem a conceitos como o de “boa mãe” e
assim, pode-se dizer que em cada cultura existe um conjunto de elementos simbólicos e
imaginários a partir do qual foram construídas certas redes de significação, nas quais a
66
idéia, ou o ideal de maternidade, acabou se constituindo sob os parâmetros de um
determinado modelo.
rompe com as estruturas e as bases desta rede de significados que dá sentido e define o
das pessoas que compõem a cultura ocidental contemporânea. A relação com a própria
mãe e também com os próprios filhos não deixa de ser igualmente afetada, suscitando
Para a sociedade burguesa urbana, a mãe que se separa do seu filho transgride os
cânones que definem que as mulheres devem cumprir o mandado da espécie e devem
entregá-la para quem possa encarregar-se dela pode significar aceitar a impossibilidade
de criá-la ou a sua rejeição a ela, ou, ainda, a frustração de seu amor e desejo
maternantes.
decidir por não criar o próprio filho, a tendência atual de associar esta decisão a uma
67
suas funções reprodutivas, condiciona os papéis sociais exercidos por ela à sua
Segundo este modelo, pelo fato da mulher estar fisiologicamente apta para
procriar, parir e amamentar, ela estaria instintiva e “naturalmente” preparada para ser
mãe, além de exercer a sua maternagem com amor e dedicação. Dentro deste modelo
que transgride o tão bem articulado mito do amor materno está nas reações e opiniões
Pampulha – provocou, tanto no público em geral, quanto nos agentes que representam
(Foucault, 1979/2005).
mães que abandonam ou tentam matar seus filhos, que circulam nas duas classes
o pensamento erudito em geral, com sua objetividade, seu rigor lógico e metodológico,
ocupantes não são autorizados de forma igualitária para representá-la e falar em seu
68
Nos universos consensuais, por seu turno, a sociedade se vê como um grupo feito
de indivíduos que são irredutíveis e de igual valor, sendo livres para se comportar como
Simone, 27 anos, promotora de vendas, mãe de uma menina de dez anos, vivia
com seu companheiro há cinco meses, um advogado de 57 anos e morava num bairro de
classe média alta em Belo Horizonte. Ela, após seis meses de gestação, deu à luz uma
menina chamada Iara, que permaneceu, durante dois meses, internada na UTI neonatal
de uma maternidade em Belo Horizonte. No dia em que Iara teve alta do Hospital
Pampulha, onde, segundo ela, teria entregado a filha a moradores de rua porque não se
A menina, porém, foi encontrada por um casal que passeava às margens da Lagoa
bebê, cuja origem ninguém até então conhecia, após ter sido levada a um hospital para
esperava um bebê para adoção. Este fato virou notícia e ganhou repercussão
internacional, pois o resgate de Iara foi filmado por um cinegrafista amador e foi
69
A partir da divulgação pela imprensa, o comportamento de Simone, mãe da bebê,
profissionais ligados a área de saúde mental e do direito, que buscavam uma explicação
As investigações policiais concluíram que havia sido Simone quem “tentou matar
a própria filha, jogando-a na lagoa” (Globo Online de 05/02/2006). Este fato gerou
grande comoção social, fazendo emergir nas falas das pessoas questionamentos sobre o
que é ser mãe e o que é maternar, acerca dos papéis socialmente atribuídos à mulher, e
dissertação.
Usei como fonte de informação para analisar a repercussão deste fato social, as
Internet. Esclareço que, ao estudar este material, me restringi a levantar (a partir das
falas das pessoas que se manifestaram publicamente sobre o caso) alguns dos valores
infanticídio. Não tive, pois, a intenção de analisar a atitude desta mãe e suas motivações,
ou ainda, de tentar traçar seu perfil psicológico; da mesma forma, não me propus a
atuais, que norteiam o julgamento das mães que abandonam ou matam seus filhos, com
70
esses dados me ofereceram subsídios para discutir as idéias dos especialistas acerca das
por um morador do Rio de Janeiro, de 44 anos. O fórum foi iniciado dois dias após a
veiculação da notícia de que Simone havia “jogado” sua filha na Lagoa da Pampulha e
trazia, como mote do debate, a seguinte pergunta: “O que pensar dessa mulher que
A partir dos depoimentos dos participantes do fórum, foi possível reunir um bom
conjunto dos efeitos provocados no grupo pelo ato de Simone, bem como dos conceitos
que os internautas construíram acerca de uma mulher que transgrediu o “mito do amor
eu me lembrei da noite em que minha cadela poodle teve os seus primeiros filhotes. E vi
como foi bonito ver um animal irracional lambendo sua cria de maneira tão carinhosa,
e como os trata até hoje, e como ela ficou triste quando a partir de certo tempo ela os
foi perdendo para outra casa. A minha intenção não é debater a irracionalidade dos
animais, nem confrontá-la com a racionalidade dos homens. Aliás, as imagens são tão
chocantes que nem sei o que se pode debater nesta história toda”.
71
Nessas palavras, descortina-se a necessidade que este homem sentiu de nomear o
uma pessoa ou coisa, ela ganha a possibilidade de ser descrita e adquire certas
características e tendências; torna-se então objeto de uma convenção entre aqueles que a
adotam e a partilham. Sendo assim, segundo o autor, ao nomear algo, esta coisa ou
qual pertence.
“anormal”, “não tem coração”); de alguém indigna do título de mãe (“alguém que não
pode ser chamada de mãe”, “aquilo que chamam de mãe”); que merece ser castigada
morte”, “devia ser linchada”, “eu enfiava a mão na cara dela”, “deveria ser mantida
Um fato significativo referente à idéia que este grupo construiu sobre a “depressão
72
ironizaram o fato de a própria Simone, ou de seu advogado, alegar que a atitude de
tentar matar a filha foi motivada por uma depressão pós-parto, conforme transcrevo
abaixo:
“O mais absurdo é que o advogado dessa louca esta tentando provar que ela fez
“(...) uma depressão pós-parto também não justifica tal ato só insanidade mental
e olha lá!!!”
senso comum, como uma ocorrência que não é suficientemente grave para justificar um
ato de “loucura” como matar o próprio filho. Na opinião de alguns especialistas que se
uma mãe com depressão pós-parto é capaz de matar seu próprio filho, mas dificilmente
teria condições de planejar a morte, portanto, para ela, Simone não sofre de “depressão
pós-parto” porque “é muito difícil que uma mulher com o quadro mórbido de depressão
tentativa de homicídio ocorre num ataque súbito.” E mais, sustenta que Simone tem
Rio de Janeiro, defendeu que há dois tipos de depressão pós-parto; o “maternity blues,
que segundo Marco é a mais comum delas e se caracteriza por um estado de depressão
73
manifestado logo após o parto, de duração breve, sem necessidade de tratamento; e a
psicose puerperal, que é mais grave e mais rara. Neste tipo de depressão, a mãe pode
chegar a matar a criança; o tratamento é intenso e pode demorar alguns meses. Para o
resumo, a visão do psiquiatra é de que não existe uma categoria nosológica denominada
“depressão pós-parto”, e sim, duas classificações distintas para a depressão que ocorre
no pós-parto.
Talvane de Moraes, a psicose puerperal é rara, mas pode acontecer e, neste caso, a
pessoa “não tem noção dos seus atos”. Para o obstetra carioca Francisco Vilela, existe a
07/02/2006).
caracteriza por uma depressão de maior grau, precipitada pelo parto, com todos os seus
para ele, é a rejeição da mãe ao bebê, que pode ocorrer imediatamente após o
nascimento da criança, ou ao longo dos três primeiros meses. A mãe se isola, não cuida
de seu filho e pode demonstrar total desinteresse por ele. Conforme o médico, o
7
Anedonia: ausência de prazer, interesse diminuído.
8
Apatia: falta de vontade ou interesse para efetuar esforço físico ou mental.
9
Adinamia: redução da força muscular, fraqueza.
74
psicóticos”, acrescentando que, “após a crise depressiva, a mulher deve completar o
Este fato social também traz à tona outra questão relevante: o quanto se
modificou, ao longo da história, a forma como a sociedade lida com a mãe que não quer
perceber, a partir das declarações dos profissionais que foram ouvidos sobre o “caso
Simone”.
companheiro de Simone não era o pai do bebê e que, portanto, este talvez fosse o
motivo para ela ter escondido a gestação dele e de toda a família, conforme depoimento
prestado por ele à polícia: “E não só eu, como ninguém sabia da gravidez. Nem a
família dela, nem o pai, nem a mãe, nem a minha empregada. Ninguém sabe, ninguém
sabia”(http://noticias.enter-net.com.br).
da criança porque vive com um homem e engravidou de outro”. Este fato foi
considerado pela psicóloga forense já citada, Maria de Fátima dos Santos, como indício
de que Simone tem uma personalidade perversa e que mantém uma forma narcisista de
75
viver: “(...) ela não pensou na criança, apenas na vida dela e em como a criança
representava um obstáculo. Outra mulher teria optado pela adoção (...) não me parece
porque estava arrependida de ter engravidado fora do casamento, podemos notar que um
comportamento que já foi aceito e até mesmo valorizado por nossa sociedade, em
séculos passados, é hoje totalmente condenado. Sendo assim, para que o comportamento
fundamental que ela se arrependesse de ter tentado matar a própria filha e declarasse
Horizonte, Lucas Rolla, a propósito da mãe desejar reaver a guarda da menina: “Simone
teria que provar que foi um ato impensado, que estaria arrependida e em condições
momento, quando a notícia ganhou maior repercussão na mídia, pelo contrário, ela
negou ter abandonado Iara na Lagoa e se mostrou irritada com as acusações: “Não fui
eu que joguei essa criança na água. Vocês vão achar que fui eu quem jogou essa droga
consensual) para que formassem opiniões a respeito das questões que integram o
76
Se considerarmos ainda como a legislação brasileira classifica penalmente o
comportamento das mães que matam seus filhos, poderemos nos aprofundar um pouco
mais nas representações que são construídas em nossa cultura sobre o tema. Atualmente,
preservar o seu casamento e sua família e, por isto, tinha tentado matar um filho gerado
numa relação extraconjugal. Intenção esta claramente manifestada por Simone quando
questionada sobre o seu companheiro atual: “Amo o Gérson de loucura e não gostaria
de perdê-lo. Ele foi uma benção na minha vida e quero continuar com ele”
(www.correioweb.com.br, 16/02/2006).
imputada à mulher que mata ou tenta matar o próprio filho reflete, sem dúvida, a moral
vigente entre a burguesia brasileira, pois se baseia no argumento de que a mãe não
estava consciente dos próprios atos, ou estava sofrendo de algum distúrbio psíquico que
Conforme o diretor do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro: “Se Simone fosse
pois de acordo com o artigo 26 do código penal, uma pessoa considerada incapaz de
entender a seriedade dos seus atos é isenta de pena” (Globo Online, 07/02/2006). Do
mesmo modo, se ela fosse julgada e condenada por infanticídio – definido como aquele
crime em que a mãe mata o filho durante ou logo após o parto – ela receberia uma pena
menor (de dois a seis anos de reclusão) do que se fosse condenada por homicídio
simples (de seis a vinte anos de reclusão), pois o código penal brasileiro atribui uma
77
pena diferenciada para o crime de infanticídio em relação aos outros crimes contra a
vida.
relevante para esta reflexão, pois demonstra que o legislador, ao criar este diferencial,
próprio filho ou cometer algum ato que, sob outras condições, presume-se não seria
praticado.
de que uma mãe “normal” somente irá rejeitar, abandonar e tentar “se livrar” do próprio
filho se houver alguma “falha” fisiológica. Estas falhas, a propósito, devem ser
Todavia, se ficar comprovado que a mulher que atentou contra a vida do próprio
sociedade em geral uma reação apaixonada. Nesta situação, é comum as pessoas não se
simples; muitas vezes, o público em geral manifesta o desejo de “fazer justiça com as
próprias mãos”, desejo este que vai de encontro com os direitos humanos – ícone da
78
2.5 - A negação da maternidade como resistência ao modelo atual
que as mulheres têm encontrado de dizer não à maternidade como fato biológico
serem mães ou exercerem a maternidade não seria um modo de resistir a uma condição
social e existencial que lhes foi atribuída como natural e, assim, reivindicar o direito de
qual a mulher assume que não deseja ter filhos e investe em outras identidades sociais,
ou seja, aquelas que “se subjetivam para além da maternidade” (p.3), e lançam mão de
eventual diagnóstico médico não detectar, nem nela, nem no parceiro, qualquer causa
desejo de não ser mãe e a cobrança, da própria mulher e de seu grupo social, de que ela
mulheres vivenciam um conflito entre o que elas verbalizam como desejo (“eu quero
engravidar”) e o que o corpo delas efetivamente expressa. Costa (2004) propõe que a
infertilidade feminina é “um texto a ser interpretado, ou seja, um sintoma que diz além
das deficiências orgânicas” (p.151). Ela defende, pois, que em alguns casos a
79
infertilidade, pode ser vista como uma manifestação contrária à associação entre
mulher-maternidade.
Nesse mesmo sentido, cabe questionar se o sofrimento vivido pela mulher urbana
criar obstáculos à constituição da mulher sob outras referências, que a permitam circular
entre outros papéis sociais possíveis, além do materno, e a formar sua identidade de
na esfera política, nas instituições de ensino e pesquisa, ela ainda não conquistou o
“direito” de ser “boa mãe” de um modo diferente daquele conceituado como tal no
costumes e dos insistentes movimentos da mulher para combatê-lo. Para ela, o mito da
“boa mãe” continua a agir no sistema familiar, pois o mito e, sobretudo este, que é uma
80
As mulheres vêm aprendendo que as mudanças fundamentais nas relações sociais
não garantem uma “reforma nos afetos” (Segato, 1997, p. 238), nem, mudanças
estrutura social não se adaptou as mudanças ocorridas na vida das mulheres e das
bem distintos do tradicional – casal heterossexual monogâmico que criam juntos seus
formas, nem gerou recursos que permitam que a mulher solteira crie seu filho, trabalhe e
Esta mesma sociedade também não desenvolveu dispositivos sociais para apoiar a
mãe que decide entregar seu filho para adoção ou interromper a gravidez precocemente,
nem sequer investiu em uma política que propicie o acesso amplo e gratuito aos
métodos contraceptivos.
81
CAPÍTULO 3 – O sofrimento psíquico da mulher burguesa moderna no pós-parto
relacionamento da puérpera com o pai da criança e, quando houver, com os outros filhos
e seus familiares em geral. Na maioria das vezes, o nascimento do bebê acarreta uma
famílias e a sociedade freqüentemente exigem da mulher que ela esteja feliz, receptiva e
apta a desempenhar, sem conflitos, as suas funções maternas. Essas exigências geram,
uma tendência de que as famílias se organizem segundo um modelo nuclear: pai, mãe e
filhos, o que faz com que a mulher viva de forma ainda mais solitária a maternidade e
obtenha pouco ou quase nenhum apoio no desempenho de seu papel de mãe. Os rituais
cooperação e proteção à mãe, foram abandonados. Isso implica em uma menor atenção
que preparavam coletivamente os membros de uma sociedade para a nova fase de sua
vida, e a diminuição das redes de apoio social, vêm tornando a gravidez, o parto e os
82
de cada família nuclear, portanto, sem envolvimento nem comprometimento da
comunidade. Tudo isto se dá de modo contrário ao que ocorre em sociedades nas quais
os ritos e as trocas simbólicas ainda são conservados, culturas em que esses eventos são
Não é por acaso que a literatura psiquiátrica moderna vem apontando o pós-parto
um filho acarreta em sua vida, vêm sendo classificados como doença, na maioria das
puérpera foram associadas, por muito tempo, aos órgãos reprodutores femininos
seguir.
3.2 - O sofrimento vivenciado pela mulher no pós-parto descrito como uma doença
a.c. por Hipócrates, e a chamada “depressão pós-parto”, em 1968, por Pitt. O histórico
83
psiquiátrica em torno da classificação nosológica, da etiologia, da prevalência e
incidência do fenômeno.
nos seios, à legitimidade dos filhos e à gemelaridade. Ele relatou o caso de uma paciente
que, após dar à luz a gêmeos, apresentou um quadro delirante e morreu em 17 dias
puerpério aos vapores que atingiam o cérebro, vindos do útero, e no início do século
XIX, Pichard defendeu que os distúrbios mentais do puerpério eram causados por um
refluxo para o cérebro da circulação sangüínea do útero para os seios nos primeiros dias
do pós-parto.
conceituando a psicose puerperal, pela primeira vez, como uma entidade independente e
Em 1858, outro psiquiatra francês, Louis Victor Marcé, abordou com maior
em três: “loucura das mulheres grávidas”, iniciados durante a gestação; “loucura das
iniciados após 6 semanas. Ele afirmava que estas síndromes eram típicas, apresentavam
o delirium estava vinculado a alterações do útero e seus anexos (conforme citado por
Santos, 1995).
84
Com o desenvolvimento da psiquiatria, o sofrimento vivenciado pela mulher no
parto.
No final do século XIX, Kraepelin defendeu que o parto nada mais seria do que
um fator de estresse que desencadeia e agudiza uma doença psiquiátrica. Suas idéias
pós-parto e autores que, até então, agrupavam esses quadros em síndromes específicas,
especificador “com início no pós-parto” para ser utilizado se os sintomas surgirem nas
294.4 era reservado para as psicoses associadas ao parto, porém recomendava-se que
85
atípica que não pudesse preencher os critérios referentes às psicoses funcionais ou
orgânicas.
considerar que não há dados suficientes para classificar o distúrbio em outra legenda.
distúrbios puerperais não são entidades psicopatológicas distintas, e sim quadros típicos
desenvolvem no puerpério com hipóteses etiológicas que não tenham sido estritamente
comprovadas, por outro lado, a literatura psiquiátrica vem utilizando amplamente uma
classificação tripartite que vincula estes distúrbios ao evento do parto e puerpério, como
86
a) Pós-parto blues
Durante este período são freqüentes sintomas como tristeza, ansiedade, fadiga,
casos em que existe um suporte familiar, não causa maiores prejuízos para a díade mãe-
bebê.
Alguns estudos sugerem o blues em estágio grave como fator de risco para
depressão clínica: “esse distúrbio embora seja auto-limitado não raramente pode
fundir-se a uma mais prolongada enfermidade depressiva puerperal” (Cox, 1986, p.56).
87
De acordo com Santos (1995), alguns autores como Medges (1968) e Pitt (1973)
b) Depressão pós-parto:
ainda, depressão pós-parto não psicótica. A descrição clássica desta síndrome foi feita
por Pitt, em 1968, que a denominou “depressão atípica do puerpério”. Segundo o autor,
Desde então, o distúrbio vem sendo descrito como quadro depressivo de duração
88
c) Psicose puerperal
alucinações. Ela pode acreditar que será punida por ser uma má mãe, ou pensar
países ocidentais, entre 10% a 20% das puérperas. Muitos investigadores, contudo,
89
emocional na vida da mulher e, portanto, um período em que ela está mais vulnerável à
Este questionamento é precedido por outro, que subsiste há pelo menos quatro
décadas e que pode ser percebido mediante a observação da evolução histórica das
cada vez maior na tentativa de responder a esta questão. Cito alguns resultados a seguir.
sucessivos (1983, 1986, 1990) e, por fim, encontrou uma freqüência de depressão de
conclusão do estudo:
“Os resultados deste estudo deixam pouca dúvida de que há alguma deterioração
90
significativo nos índices de depressão. Ao invés, o que parece acontecer é que as
Estes achados são contestados pelo grupo de Cox (1993) que encontrou uma
incidência de depressão três vezes maior nas cinco primeiras semanas do pós-parto.
transtorno emocional.
parto e doença.
modelo biomédico, não há um consenso a respeito das causas que geram o sofrimento
91
modificações fisiológicas (sobretudo as alterações hormonais) próprias da gravidez,
pós-parto). Negar esses sinais seria negar os meus oito anos de prática clínica, durante
os quais atendi dezenas de mulheres que me procuraram para falar de seu sofrimento e
da culpa que sentiam por não estarem felizes e realizadas após a chegada de seus filhos,
dificuldade de lidar com o novo papel de mãe por intermédio de sinais bastante
integridade física, falta de paciência com o filho, vontade de morrer (às vezes
(sobretudo ao pensar que uma cansativa noite de cuidados com o bebê irá começar),
medo de ficar sozinha com o filho e sensação de que a vida “nunca mais voltará ao
normal” (que nunca mais irá exercer outro papel senão o de mãe).
crítico sobre o modelo biomédico, sustentado pelo paradigma positivista das ciências
92
naturais, o qual cria e mantém as normas disciplinadoras da maternidade na sociedade
Este modelo, adotado pela maioria dos psiquiatras e dos psicoterapeutas, reduz as
(relação com a própria mãe e estrutura de personalidade frágil), ao seu contexto de vida
compreender o sofrimento vivenciado pela mulher moderna no pós-parto para além das
contexto cultural no qual tais mães estão inseridas, assim como não questionam as
características da sociedade moderna urbana ocidental que acabam por gerar e sustentar
que se sente pressionada entre duas exigências sociais inconciliáveis: exercer o papel
materno conforme os moldes da “boa mãe rousseauniana” do século XVIII, e dar conta
De um lado está a “boa mãe” que deve dedicar-se prioritariamente aos filhos, pois
emocional e moral; sendo assim, ela deve cultivar suas características “naturais”:
93
Por outro lado, encontra-se a “mulher moderna”, fruto da sociedade capitalista de
produção, aquela que deve ser independente; lutar pelas igualdades entre os gêneros,
ótima remuneração), vaidade (deve se manter jovem, bonita, e atualizada com a moda),
além de inteligência; ou seja, não deve limitar a sua vida a maternidade, pois tem a
Motherhood in the Age of Anxiety” resume bem esta contradição: “No meio do caminho,
para refletir acerca do sofrimento vivenciado pela mulher burguesa contemporânea após
o nascimento do seu bebê é a partir de uma visão crítica que transcenda a atual
com base em uma visão que transcenda o modelo padronizado e patologizante por
94
simbólicos e reais da maternidade per si, mas está alimentada por outros núcleos de
sentido subjetivos da vida da mulher” (p.192) e, para entender esses núcleos, será
95
A categoria patológica “depressão pós-parto” é um subproduto dos fenômenos da
contra os antigos saberes cosmológicos. Esta categoria é, assim, fruto de uma cultura na
fisiologia.
– utilizada para designar e definir o sofrimento vivido pela mulher após o nascimento de
Entretanto, alguns pensadores críticos desta sociedade apontam para sua outra
96
subjetivação que pode ser compreendida de duas maneiras: como a submissão ao outro,
pelo controle e pela dependência; ou como submissão à sua própria identidade, pela
1999b, p.66).
escolar. Por outro lado, ao verdadeiro ser, ao ser cognoscente – já que a constituição da
o espírito a se separar dos outros sentidos, condição para que ele ascenda aos valores
entre indivíduo e sociedade. Portanto, os indivíduos modernos urbanos, que buscam sua
oculta, de uma cadeia de dependência funcional da qual os indivíduos são elos que
livre para fazer escolhas, na verdade, está sujeito a “micropoderes”. Estes disciplinam
97
ponto específico da estrutura social e funcionam como uma rede de dispositivos ou
mecanismos aos quais nada ou ninguém escapa. Eles mantêm uma relativa
macropoder.
Da mesma forma, a resistência ao poder não ocupa um lugar específico. Ela existe
como pontos móveis e transitórios que se distribuem por toda a estrutura social. Logo,
nem o controle nem a destruição do aparelho de Estado são suficientes para fazer
Esse tipo de poder não intervém na vida dos cidadãos a partir da violência,
coerção ou opressão explícita. Pelo contrário, o que mantém a sua força e o torna aceito
é que ele induz ao prazer, forma saber e produz discurso: “De fato, o poder produz; ele
p.12).
adestra o corpo humano. O controle dos indivíduos não se opera simplesmente pela
consciência ou pela ideologia, mas inicia no corpo, com o corpo. Assim, não é por acaso
que esta sociedade valoriza tanto o poder bio-político da medicina, que fabrica o
seus principais instrumentos de controle. Trata-se de uma vigilância discreta por parte
de quem a exerce, e indiscreta com respeito a quem ela se dirige. É um olhar invisível
que permite ver tudo permanentemente, sem ser visto (o “big brother”). Este olhar tem a
98
mesmo, a visão de quem o olha (eu sou o que o outro diz que sou; eu vejo o que o outro
médicos e seus colaboradores (qualquer especialista que seja indicado pelo médico para
física etc.) possuem uma tecnologia de sujeição própria. Sua tática não inclui a
e a sua vivência de fato, enquanto seres sociais, permeados por “normas” das quais são,
em outras culturas, houve, e ainda há, diversas maneiras de se vivenciar “o eu” e “os
Leenhardt (1979). O Canaca percebe o corpo como o suporte da sua existência, mas não
o sente como seu, não o possue, portanto, “não pode separá-lo do meio social, mítico,
99
em que ele vive, não pode isolá-lo e transformá-lo no limite entre o eu e o mundo ou no
contorno que faz dele um dos elementos do indivíduo” (Pereira, 1999b, p.78). Sendo
assim, o Canaca apreende sua existência social apenas por intermédio de suas relações
uma organização social que não oferece muitas possibilidades de escolha para os seus
possibilidades é apresentada aos seus membros, sobre os quais recai a exigência social
papéis históricos como os de profeta, místico, curador, xamã, feiticeiro, bandido social,
ocidental que a experiência do indivíduo isolado do grupo passou a ser uma instituição
central e normativa. Em tal civilização, o indivíduo não é somente uma parte essencial
100
Conforme Elias (1994), o indivíduo moderno vive como se houvesse um muro
invisível que separa o mundo interior, e o mundo social, exterior. Este estado de
separação “eu, mundo” e “eu, outros” gera um sentimento de vazio, que se transforma,
por sua vez, em questões existenciais, tais como: a solidão, a angústia, a dor, a morte;
individual.
desnudar a dita razão moderna e o seu sujeito do conhecimento, que acredita ser capaz
Baudrillard (1999/2002) faz uma crítica a tal sujeito, autocentrado, que se julga
praticam um tipo de troca em que a instância econômica não é determinante. Aí, o que
101
está em jogo não é a mercadoria ou o valor, mas a reversibilidade da obrigação ritual –
Nesse sentido, Pereira (1999) percebe as trocas modernas como opostas às trocas
“primitivas”, uma vez que, nas trocas econômicas (sociedades modernas), trocam-se
moderna se caracteriza pelo fim das trocas simbólicas e a ascensão da ordem de valor.
racionalidade moderna. A partir dessa cisão originária, geram-se duplos de opostos, nos
quais o primeiro termo será sempre positivado como valor, e o segundo, negativado e
excluído. Essas separações se ramificarão ao infinito, tais como: corpo e alma, bem e
felicidade e depressão.
das trocas, o ciclo do dar e do restituir” (p. 35), defende que, quando um dos lados de
seja, quando dois termos são separados, um torna-se o imaginário do outro e o habita
102
resultado da interdição da nossa cultura sobre a troca coletiva e simbólica: o que não
pode ser trocado, precipita-se em nosso foro interior” (Pereira, 1990, p.47).
À luz dessa teoria, pode-se pensar que, na sociedade moderna – que positiva
sentimentos não circulam livremente na sociedade, uma vez que não há espaço para as
pilares da prática clínica por séculos – foram substituídos pela consulta técnica,
Não há lugar, nas práticas terapêuticas, para as “trocas simbólicas”. Também não
há espaço, portanto, para que o cuidador e a pessoa que sofre possam compreender e dar
10
O termo paciente foi usado propositalmente para marcar a distância entre o profissional e a pessoa que
sofre, bem como o comportamento de passividade, falta de autonomia e submissão imputada a ele.
103
agentes, esses elementos são percebidos como fenômenos extraordinários, que devem
ser eliminados ou, pelo menos, adiados o máximo possível, já que perturbam a saúde11 .
Vale observar, contudo, que esta forma de lidar com as práticas terapêuticas é
sempre foi um aspecto preponderante dos tratamentos e era utilizada por todos aqueles
sua estruturação como ciência. No Ocidente, a partir do século XIX, esse lado “mágico”
proveniente da cultura dos índios Cuna, do Panamá. Ele se refere a uma cura xamânica,
que descreve um ritual no qual um xamã auxilia uma mulher de sua comunidade a
O canto é uma manipulação puramente psicológica do órgão doente, uma vez que
o xamã não toca no útero da parturiente, nem lhe ministra medicamentos. Ele apenas
estabelece uma relação direta entre o estado patológico e a sua sede; a comunidade, por
sua vez, espera que a cura dos “males” da parturiente seja alcançada por meio desta
manipulação.
11
Conforme o conceito desenvolvido pela Organização Mudical de Saúde: “situação de perfeito bem-
estar físico, mental e social”
104
O xamã conduz a mulher, que, devido ao sofrimento, está com a sensibilidade
mito de origem, refazendo-o em detalhes. A partir de seu ritual, o xamã introduz uma
A cura se desenrola numa oscilação cada vez mais rápida entre os temas míticos e
as dores e o seu canto tem como finalidade principal descrevê-las à doente e nomeá-las,
apresentá-las sob uma forma que possa ser apreendida pelo pensamento consciente ou
Após terminar o ritual de cura, o xamã parte para a montanha com os moradores
da aldeia para recolher plantas medicinais e repete seu ritual de uma nova forma, à
uma mitologia psicossocial, caracterizada pelo apelo aos habitantes da aldeia. Como nos
diz Lévi-Strauss (1959/1975), é relevante ressaltar que o canto se conclui após o parto,
reencontram seu lugar e ingressam numa ordem sobre a qual não paira mais ameaças
105
Segundo o autor, a cura consiste em tornar pensável uma situação dada
que não possuem significado no seu sistema simbólico. Por intermédio do mito, no
criando uma rede de significados. É importante notar, porém, que a cura só se faz
possível porque a parturiente não questiona a mitologia xamânica, que faz parte da
de cura se dá à medida que o xamã fornece uma linguagem com a qual é possível a
inteligível o que, até aquele momento, era anárquico e inefável. O xamã esclarece a
simbolizados.
utilizada pelas sociedades ocidentais com o processo de cura xâmanica, na qual os ritos
“(...) nada disto se produz em nossos doentes, quando se lhes explica a causa de
monstros não existem. E não obstante, a relação entre micróbio e doença é exterior ao
106
espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito; ao passo que a relação entre
xamanismo e relaciona a cena da cura psicanalítica com a cena da cura xamânica. Para
ele, em ambos os casos, a estratégia utilizada consiste em suscitar uma experiência que
conduza à consciência conflitos até então inconscientes. À medida que esta experiência
reviver.
partir de atos ou palavras: “verdadeiros ritos que atravessam a tela da consciência sem
Pereira (1999b), por sua vez, compreende a cena analítica “para além” da
percepção de Lévi-Strauss, que a interpreta como lugar de cura dos sintomas; para ela,
há um outro recorte ainda mais importante, o qual também ilumina as reflexões que ora
realizo: a psicanálise escapa do paradigma utilitário e racional, ou seja, de uma ação que
107
A autora nos fala da cena analítica como um lugar especial, que possibilita as
cotidiano; “lugar onde certo tipo de pessoa realiza uma experiência e representa-a
simbólico. Nesse sentido, a relação psicanalista-analisado pode ser pensada como uma
rara alternativa que a mulher burguesa encontra, na sociedade de produção, para escapar
do utilitarismo moderno e dar sentido aos seus sofrimentos a partir das trocas
simbólicas, de forma análoga ao que acontece nas curas xamânicas descritas por Lévi-
Strauss (1959/1975).
autor defende a necessidade de resgatar o poder mágico do médico, pois acredita que a
ele e o “paciente”. Botsaris adverte que, apesar das técnicas utilizadas pelos antigos
xamãs e feiticeiros não pertencerem ao nosso contexto cultural e, portanto, não serem
eficazes para nós, “existem formas de adaptar a magia à nossa realidade e simbolismo
cultural” (p.182).
Para o autor, todo trabalho médico, seja durante uma consulta, um tratamento ou
uma cirurgia, pode ser vivenciado pelo “paciente” como um ritual de cura. Portanto, o
108
simbologia construída pelo paciente sobre a sua doença, para estruturar um ritual
paciente, respeitando seu contexto cultural e simbólico. Além disso, ele defende que o
médico deve ter uma boa noção de psicologia para que possa entender e interpretar os
antecipar às demandas dos pacientes para não ser pego de surpresa com perguntas para
as quais a sua ciência não possui resposta, mantendo-se fiel a um hedonismo superficial
Baseada em minha prática clínica, percebo que as queixas das mulheres no pós-
parto vêm sendo ouvidas, quando o são, pela equipe de saúde basicamente de duas
formas: a) como sintomas de uma doença que deve ser tratada com medicamento e/ou
com alguma psicoterapia, que a faça desaparecer o mais rápido possível; ou b) como um
fenômeno que não merece maior atenção, pois é considerado normal uma mulher, que
como estão sofrendo por acreditar que não conseguem cuidar de seus filhos, por se
sentirem tristes no momento que esperavam ser o mais feliz de suas vidas, por chorarem
109
aparentemente sem motivo, por terem vontade de nunca ter engravidado, apesar da
gravidez ter sido planejada e/ou aceita, por acreditarem que não estão correspondendo
as suas próprias expectativas como mãe, nem às expectativas do marido e das famílias
de origem.
No entanto, como esperar que os profissionais de saúde tenham uma outra leitura
cultura em que a morte, o sofrimento e a dor não fazem parte do curso da vida? Quando
com a da Virgem Maria, ou seja, com um modelo de mãe abnegada que se sacrifica
pelos filhos? Quando foram treinados, desde a universidade, para eliminar o sofrimento
de uma formação profissional que não estimula a reflexão a respeito de suas próprias
emoções e vivências como filhas e filhos, como mães e pais, e como pessoas que lidam
emocionais para lidar com a angústia que a imagem de uma mulher em sofrimento
psíquico, após parir um bebê saudável, suscita neles. Afinal, em nossa sociedade, esta
maternidade.
recebem, como resposta aos seus apelos de ajuda, um diagnóstico que reduz seu
110
sofrimento a uma categoria nosológica, encaminhando-se então a puérpera para um
tratamento farmacológico.
pós-parto pode comunicar sobre a experiência daquela mulher como mãe, sobre a
outras bases.
Os ritos são definidos como uma ação, ou conjunto de ações, evitações, palavras
determinados efeitos individuais e sociais. Segundo Mauss, é o rito “que cria e que faz”,
“por uma virtude que lhe é intrínseca”, isto é, por ser “como que animado de um poder
imanente, por ter mana” (conforme citado por Pereira, 1999, p.165).
define o rito de passagem como uma série de rituais pelos quais as pessoas são
111
Van Gennep (1960/1978, p.12) os definiu como “ritos que acompanham toda a
mudança de lugar, estado, posição social e idade”. Segundo ele, os ritos de passagem
têm como propósito essencial “tornar o indivíduo apto a passar de uma posição definida
a uma outra que é, da mesma forma, bem definida”. (Pereira, 1999, p.167).
transitante (do sujeito ritual) são ambíguas e passam por um domínio cultural que tem
situação liminar não parecem estar em lugar algum: elas “são necessariamente
interpreta por Victor Turner (1969/1974) como reagregação. O autor privilegia a relação
do ritual com a estrutura original do iniciado; ou seja, nesta fase, onde se consuma a
passagem, o iniciado recupera novamente uma situação relativamente estável mais uma
vez (Pereira, 1999). Em virtude disto, adquire obrigações e direitos claramente definidos
e estruturados perante os outros sujeitos. A comunidade espera, pois, que ele passe a se
112
comportar de acordo com certas normas e padrões éticos, que vinculam os incumbidos
desta posição social com os demais que fazem parte deste sistema.
procedimentos que constituem a cena do parto hospitalar, que a maioria das mulheres
fisiologia do parto.
que, apesar dos movimentos de “humanização do parto”, que têm como objetivo
instituição. As rotinas são justificadas por supostos argumentos científicos, que deixam
a mulher sem escolha e sem possibilidade de lhes oferecer resistência, uma vez que ela
não possui saber (formal/ médico) para se contrapor ao poder disciplinar dos agentes da
ciência.
confiança que ela deve ter em “seu” médico – confiança que mais se parece com um
dogma de fé, pois deve ser incontestável. Mesmo as mulheres burguesas, que pagam
caro pelo pré-natal e pelo parto particular, são submetidas a práticas reconhecidas como
12
A palavra "doula" vem do grego "mulher que serve". Nos dias de hoje, aplica-se às mulheres que dão
suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto.
113
desnecessárias e danosas, já desaconselhadas pelo Manual de Assistência ao Parto da
Essas práticas impõem que a mulher assuma uma postura passiva diante do parto,
como, por exemplo, ter que permanecer deitada ao longo do período de dilatação presa a
mulher a possibilidade de sentir o próprio corpo e ser “dona” de suas ações, como a
analgesia de parto, vendida sob o argumento de que retira a dor das contrações. Além
vivenciado pela mulher, de forma inconsciente, como um ataque a seus órgãos genitais,
ou do sofrimento que provocam. Afinal, trata-se de respostas para o medo extremo que
nossa sociedade tecnocrática tem de processos como o nascer e o morrer, que possuem
Pereira (1999): “os ritos, socialmente previsíveis, visam a um controle sobre uma
que as mulheres não são capazes de parir sem a intervenção tecnológica que,
13
Alteração patológica provocada no paciente pela ação do médico ou pelo tratamento por ele prescrito.
114
parto. Este discurso reforça, pois, os medos que a mulher tem de morrer e de matar ou
de fazer mal ao neném, além de amparar a crença de que somente o médico poderá
garantir o sucesso de seu parto. Tais crenças acabam por desempoderar as mulheres, já
por intermédio de seu poder disciplinar, um controle individual sobre os corpos, gestos,
procedimentos, por sua vez, não apenas sofrem passivamente a ação dos valores da
manutenção desses valores. Por conseguinte, o parto, como evento cultural, expressa o
ideário dos agentes nele envolvidos; nas palavras do historiador francês Jacques Gélis:
sociedade tem de melhor e de pior” (conforme citado por Mott, 2002, p. 399).
No mesmo sentido, Maldonado (1997) nos diz que o parto pode ser considerado
burguesa das grandes cidades, constitui-se em uma troca econômica (no sentido
115
signos vazios, incapazes de dar sentido à vivência da mulher, uma vez que negam e
efetiva troca simbólica (Baudrillard 1976/1996). Neste tipo de parto, não há lugar para a
morte física (na cesárea, o médico supostamente tem total controle sobre os riscos), para
a morte simbólica (quando a possibilidade da morte física é banida, não há lugar para a
existência da falta), para a dor e o sofrimento inerentes ao processo natural de parir (que
dadivoso (que é substituído pelo tempo linear, mensurável e produtivo, de acordo com
morte, o sofrimento, a dor e o tempo dadivoso, que foram banidos da circulação social
insegurança que as pessoas têm acerca de atividades que são vividas e praticadas pelos
não mais acreditar em sua própria experiência, somente nos conhecimentos científicos
116
Na sociedade moderna, que disciplina e vigia cada ato cotidiano de seus
social.
sobretudo, agentes que decidem o que deve ser excluído e abolido da circulação social,
medicina, nem mesmo no interior de cada uma das especialidades. Existe, sim, o
conceito de um ou outro autor, nesta ou naquela época, e até mesmo vários conceitos
concomitantes numa mesma época. É importante considerar, portanto, que não há “uma
Seguindo o mesmo raciocínio, Foucault (1972/1995) nos diz que “a doença só tem
realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal”
paradigma adotado por sua cultura, define um evento como patológico ou uma
experiência como dolorosa, e oferece ao seu paciente “um estado melhor”, ele cria uma
117
Um bom exemplo deste mecanismo é a relação que se estabelece entre o obstetra,
a partir desta concepção – amplamente sustentada pela sociedade médica, a qual eles
pertencem, e pelo senso comum – sugerem à parturiente que ela faça uso de um
analgesia. Assim, antes mesmo que a mulher elabore sua própria percepção acerca das
em toda parte, de tal modo que, atualmente, fenômenos que, até pouco tempo, eram
vezes, anormalidade.
biomédico que, ao positivar alguns valores, orienta sua ação no sentido de excluir os
valores negativados.
118
mecanismo de fortalecimento dos seus valores. Afinal, à medida que valoriza a vida e
escondendo “o morrer” nos hospitais), ela alimenta a busca incansável pela felicidade e
as anomalias não são elimináveis, já que a remoção de uma delas somente abre espaço
para a criação de uma nova, gerada por um critério ainda mais rigoroso que define os
Mentais (DSM), algumas categorias nosológicas são excluídas e outras, ainda mais
pelas dos especialistas não significa apenas a criação de meios mais efetivos para lidar
119
Em minha prática clínica, percebo freqüentemente que muitos pediatras – que
acreditam que o leite materno e o ato de mamar ao seio são indispensáveis para o
normalidade do processo a mãe desejar e conseguir amamentar seu filho ao seio por,
visão fragmentada do ser humano, julga que a falha na amamentação está relacionada
com fatores que escapam a sua competência, ele encaminha a mãe para outro
acordo com a minha experiência profissional, percebo que a mulher que não deseja ou
120
não consegue amamentar seu filho experimenta um intenso sentimento de culpa,
como doença é a mesma que institui normas rígidas para a maternagem, muitas vezes
inconciliáveis com os demais papéis sociais e desejos que a mulher possui frente à
pelos profissionais que a orientam acerca do seu papel de mãe, entram em choque com
a realidade vivenciada por ela no contato com o seu filho no pós-parto. Como resultado,
121
de rotinas hospitalares desnecessárias, intervencionistas, geradoras de risco, inclusive a
cesárea.
considera que o parto não é um evento patológico, mas sim, existencial e social,
patológico. Por este motivo, é comum encontrar em livros e manuais de preparação para
14
Um bom exemplo é o livro de Moisés Paciornik – obstetra paranaense, forte integrante do movimento
de humanização, presença constante em eventos e conferências sobre o parto humanizado – intitulado
“Parto de Cócoras: aprenda a nascer com os índios”, de 1979, fruto de sua atuação como médico
comunitário em reservas indígenas no Sul do Brasil. O livro foi traduzido para várias línguas e esteve
esgotado por anos.
122
2002b, p. 488). Em outras palavras, este ideário prega a necessidade de se livrar dos
vícios da cultura, para assim poder resgatar, no ser humano, a sua verdadeira natureza,
cultura, que é vista apenas como um constrangimento, e não como condição humana da
dicotômica entre natureza e cultura sustentada pelo modelo biomédico, que valoriza a
inverte esta dicotomia, positivando a dimensão tida como natural e negativando aquela
mesmo tempo em que acreditam ser necessário neutralizar a influência cultural no ato
de parir para, assim, empoderar as mulheres e ajudá-las a resgatar seu saber natural e
exercícios específicos. Ou seja, eles acreditam poder ensinar a mulher a parir de uma
forma mais natural por intermédio de cursos para “casais grávidos”, yoga para o parto
se à idéia sustentada pela obstetrícia de que este seria um corpo faltoso, incapaz de parir
de um instinto e uma natureza poderosa e positiva presente nas mulheres que sugere a
123
Este discurso constrói um modelo idealizado de parir amplamente difundido
entre as mulheres burguesas modernas, no entanto, nem sempre alcançado por elas, o
que muitas vezes gera frustração e culpa. Durante a gestação, as mulheres são
hábitos de vida modernos que interferem na fisiologia do corpo da mulher, pois não
que escolhe dar à luz, que é dona de seu corpo e de sua sexualidade. Esses cursos,
vezes, têm como objetivo principal treinar o casal a desenvolver recursos para lidar com
Esses profissionais preparam as gestantes para o parto que eles consideram ideal,
parte. O parto ideal segue, pois, um ritual que visa conferir liberdade à mulher, além de
profissionais que a assistem. Estes, por sua vez, se valem dos conhecimentos científicos
“alternativos” pelo saber hegemônico. Sob esta perspectiva, as gestantes que aderem ao
124
Outro paradoxo emerge aqui: quando o projeto de parto humanizado cria regras
para o parto ideal, ele não gera mecanismos para proteger e respeitar o direito que a
mulher tem de parir livremente e de fazer suas próprias escolhas; ao contrário, acaba
criando mecanismos que regulam e controlam não somente o parto, mas também a
humanização, adverte sobre o perigo de a pedagogia para o parto vaginal se tornar tão
devemos fazer a Gestapo do parto natural (...) Não devemos transformar o direito em
apesar de sua proposta inovadora, ele termina por reproduzir os valores da sociedade
vezes severas, que faço ao movimento de humanização do parto, não tenho o intuito de
125
desvalorizá-lo, tendo em vista seu papel fundamental no questionamento de algumas
haja excessos e distorções na concepção humanista, ela, sem dúvida, trouxe à tona a
forma cruel como este modelo lida com o parto, impondo às mulheres um procedimento
sofrimento.
Apesar das ponderações, portanto, acredito que este movimento, que sempre
reflexão crítica acerca de suas atuações, bem como dos pressupostos que as norteiam,
para que não se tornem cúmplices ingênuos das práticas que combatem.
126
CAPÍTULO 5 - Um olhar sobre o ciclo gestação-parto-puerpério na cultura
Xavante
esta exposição, tenho o intuito de traçar, em linhas gerais, um paralelo entre a vivência
da mulher Xavante, e aquela da mulher burguesa urbana no período pós-parto, tema que
será desenvolvido no capítulo seguinte. Saliento, no entanto, que o paralelo a ser traçado
tem como principal objetivo ampliar minha capacidade crítica, bem como aumentar
obras do padre Bartolomeo Giaccaria (1984 e 2000), estruturo este capítulo em três
para a fase jovem, quando poderão se casar e ter filhos. Em seguida, apresento os rituais
A cultura Xavante reconhece e divide seus membros em oito grupos etários. São
(padrinho); IPRÉDU (adulto) e IHIRE (velho). Cada grupo na aldeia é constituído pelos
127
anos. Os indivíduos não são promovidos de uma fase para outra isoladamente, pelo
contrário, são promovidos em grupo, sendo esta passagem celebrada com ritos
complementares, que têm a finalidade primária de preparar e levar, tanto o rapaz, quanto
(conjunto de ritos que estabelece um Xavante na função de “padrinho”, sendo este nome
recai sobre as mulheres, portanto, elas têm como principal rito “a iniciação familiar”
contrapartida, como a vida social é quase que exclusivamente dos homens, o rito que
meninice para entrar na adolescência. Neste momento, ele abandona o lar paterno e vai
habitar a casa dos solteiros (uma oca construída exclusivamente com este objetivo, em
um local diferenciado na aldeia), onde irá conviver por cerca de cinco anos com outros
membros da aldeia que fazem parte de uma determinada faixa etária, na qual ele está
incluído. No momento em que o filho sai de casa, os pais choram como se ele tivesse
familiares de cada rapaz levam comida para ele. Os membros da casa de solteiros
128
O rito de passagem que marca a transição do Xavante da condição de WAPTÉ
para ‘RITÉIWA é constituído por várias cerimônias: a) o banho ritual, que dura o dia
física; b) a perfuração da orelha que educa para a coragem (a perfuração é feita com o
acompanham a iniciação, devido à grande carga simbólica que trazem em si, levam a
IPRÉDU (adulto), o que ocorre somente após vários anos de casamento e até mesmo
“Fiquei dos 14 anos aos 19 na casa dos adolescentes, lá eu aprendi a falar baixo,
a me relacionar com os outros, a respeitar os outros, tive contato direto com os outros
meninos, enquanto a gente ta lá, a gente não tem muito contato com as meninas, não é
porque é proibido, é porque a gente sente mesmo que deve ser assim.”
“A gente passa o dia todo no rio, no frio, quando vai furar não dói porque tá
dormente. Não dói, não. Você sabe que, depois que eu furei a orelha, atraiu mais
mulher, o brinco chama mulher, é pra isso mesmo.O tamanho do brinco depende da
129
fase de maturidade, se for mais maduro, fase mais avançada, o brinco é maior. Mas tem
gente que não respeita isso e usa maior porque quer mesmo.” (Falando do ritual da
furação de orelha).
padrinho, representa a sua separação do grupo familiar, uma vez que ela sai do poder
paterno e passa para a autoridade do padrinho que sempre pertencerá ao clã da mãe da
com colares e cordas (que serão amarrados nos tornozelos e pulsos) feitos por ele.
Esta separação torna-se pública para a família e para a comunidade por meio do
ritual de divisão do grande bolo, preparado pela esposa do padrinho, que o entrega à
mãe da afilhada, quando esta vai à casa do padrinho buscar a filha para levá-la de volta
para a casa dos pais. Ao chegar em casa com a filha, a mãe entrega o bolo para o pai,
que o divide em duas partes: uma fica com a família e a outra é distribuída para os
demais membros da aldeia. Comendo deste bolo, o grupo e a família tomam ciência do
Deste momento em diante, até o casamento, a menina vive num estado marginal
com relação aos meninos da mesma faixa etária que a dela, já que é considerada
perigosa por eles, pois tem o poder de lhes roubar a força por intermédio da relação
sexual. Ela também se encontra num estado marginal com relação ao grupo das
moradia (muitas vezes, as meninas vão morar na casa da avó para receber as suas
tiver filhos.
130
O casamento Xavante consiste em um ritual constituído de várias cerimônias que
em dois clãs, o Clã Girino (POD’REDZA’ÕNO) e o Clã Grande Rio (ÖWAWE). Como
os Xavante são enxogâmicos, um membro de um clã deve casar com o membro do clã
noivo falam que tá na hora de fazer o adabatsa (casamento ritual dos Xavante) que
significa “a comida da noiva”, adaba é noiva, tsa é comida. Aí vai o pai e os parentes
do noivo saem para caçar, o noivo acompanha mas não pode caçar. Aí eles tem que
pegar pelo menos uma anta e muitos outros animais. Quando chegam a uma
determinada distância da aldeia eles gritam para avisar que estão chegando. Então o
noivo se pinta fora da aldeia. Aí quando eles chegam no centro da aldeia, eles colocam
toda a caça num cesto bem grande e o noivo tem que carregar o cesto sozinho do
centro da aldeia até a casa da noiva. O cesto pesa uns cem, cento e cinqüenta quilos.
Ele põe a alça na cabeça, e carrega nas costas (parecido com a forma como as mães
carregam os bebês, sustentando a alça pela cabeça e o cesto sustentado pelas costas).
Quando ele chega na casa da noiva, ele despeja a caça no chão, na frente da casa, e
vai para a sua casa. Aí o padrinho do casamento, que é o defensor do casal, que irá
acompanhá-los por toda a vida, que é o segundo pai, pega a caça leva para a casa dele
e distribui para a aldeia. Aí, ele volta para a casa da noiva, enfeita a noiva com colares
especiais, pinta ela. Então a mãe da noiva coloca uma esteira a quatro, cinco metros na
frente da casa, a noiva sai, ajoelha lá. Aí vem uma outra moça, que tem alguma relação
131
de proximidade com a moça, correndo e tira os colares e leva para ela. A partir daí os
noivos já podem se encontrar. Esse casamento eles continuam fazendo. Por isso que eu
não faço casamento religioso para Xavante, nós fazemos batizado, se eles pedem, mas
casamento não, porque eu descobri que muitos deles pediam o casamento no religioso
para se livrarem dos deveres que tinham com o casamento Xavante, porque este
casamento é um só, se já estão casados, eu não vou casar quem já está casado. Eles já
pediram e eu falei não. Eles fazem o casamento religioso e logo estão se separando.
Agora eles se separam muito, antes não, eles só tinham uma separação ritual, que o
de um homem Xavante casar-se com duas ou mais irmãs. Isto ocorre quando os pais das
moças oferecem ao futuro genro mais de uma de suas filhas, e ele as aceita como
Mano, casado há mais de dez anos com duas irmãs, relata como funciona a
“Eu tenho duas mulheres, sou casado com duas irmãs, com a primeira eu tenho
“Eu casei com uma em 93 e depois casei com a outra em 95. Hoje eu vivo com as
duas mulheres na mesma oca e durmo no meio das duas. Nunca deu problema, não.”
“A minha sogra quer que eu pegue mais uma (a sogra quer que ele despose mais
uma de suas filhas), meus cunhados também, porque eles também decidem. Ela é
criança ainda, querem separar ela pra mim. Mas eu acho que não vai dar certo. Já
perguntei pra as duas elas estão estudando a idéia, ainda não dei a resposta, tô
132
estudando também, mas acho que não vai dar certo, já tem muito tempo que tô casado
só com as duas.”
Quando perguntei para Mano se um Xavante pode casar com duas mulheres de
famílias diferentes, ele respondeu: “Já aconteceu, mas não dá certo, dá confusão.”
acordo.
“Foi o pai da minha ex-mulher que me escolheu, eu aceitei porque era uma
devem fazer para que a gestação e o parto de seus filhos sejam saudáveis. Uma destas
do ponto de vista fisiológico, mas também de acordo com as regras sociais que definem
o momento certo para eles se casarem e terem filhos), devem seguir uma dieta alimentar
qualquer alimento e na quantidade que desejarem quando atingirem uma idade na qual
133
gravidez e, portanto, sua carne não deve ser consumida enquanto a pessoa estiver em
fase reprodutiva.
vida, depende da disciplina alimentar do pai e da mãe, que devem seguir a dieta própria
para cada período. Alguns exemplos: durante a gestação, a mulher não pode comer
carne de nhambu, mutum, perdiz, porque estas caças fazem mal para o bebê, podendo
causar a sua morte intra-útero. Se a mulher comer carne de tripa de tamanduá, anta,
Quando o casal come carne de alguma ave durante a gestação, o bebê, ao nascer,
demora cinco minutos para chorar, podendo até desmaiar. No pós-parto, se o casal
comer carne de capivara, caititu, couro de tamanduá, “o bebê fica pretinho e demora
para dormir”. O peixe “faz mal para o bebê que fica empachado, chora a noite inteira e
Seguem algumas citações colhidas nas entrevistas que fazem referência às crenças
“Não adianta nada levar a mulher para ter filho no melhor hospital da cidade,
porque se eles não seguirem a dieta, durante a gestação, o bebê não vai nascer bem.”
“Depois do parto a mulher tem que comer batata, cará, abóbora tudo assado na
panela com água, se colocar para assar na brasa, o neném vai ficar pretinho.”
“O bebê novinho só come milho branco, isso é para ficar branquinho, devemos
“São coisas delicadas, pois é da competência do pai e da mãe para levar a vida
134
“Eu fiz a dieta (quando a esposa estava grávida) porque eu sempre escutei muito o
meu avô e a minha avó e eles sempre disseram que é para respeitar a dieta e é verdade,
acontece mesmo. Quando eu furei a orelha, que eu tava na casa dos adolescentes não
orelha, branquinho, nas duas, eu fiquei tampando com o meu cabelo que era grande na
época, pra ninguém ver e nunca mais comi nada que não podia. Acontece mesmo.”
(Trovão).
à dieta alimentar. Ele também realiza rituais para definir o sexo da criança, que será
concebida, bem como para escolher o seu nome. Para os Xavante, o sexo das crianças
pode ser induzido por intermédio da posição adotada pelo casal durante o ato sexual,
pelo uso do brinco apropriado pelo pai da criança, pelos pedidos feitos aos espíritos
Quando um homem Xavante deseja escolher o sexo do filho, ele realiza, com a
ajuda do seu pai, um ritual para confeccionar um “pauzinho” especial, que será
utilizado, como brinco, no momento da relação sexual. Pai e filho, então, saem de casa
meia-noite, o filho volta-se para o oriente, retira o pauzinho da orelha direita, levanta-o
e abaixa-o enquanto reza para pedir que DANHIMITE (entidade que se aproxima do
brinco, o futuro avô assume uma posição corporal específica e ornamenta o “pauzinho”
com uma pintura feita de urucum, que varia de acordo com o sexo pretendido para o
futuro bebê. Se menina, o pauzinho será pintado com apenas uma listra vermelha, se
135
No momento do coito, o homem adota uma posição sexual específica, previamente
orientada pelo pai. Após o coito, ele retira o pauzinho da orelha e o coloca sobre o
ventre da esposa “para que DANHIMITE faça com que ele sonhe com o filho que
nascerá”. No entanto, caso a prece não seja escutada e um bebê de sexo oposto ao
desejado venha a nascer, não há conseqüências, nem desilusão por parte dos pais
“Chamei meu pai, pai tá vivo, ele saiu à noite, fez pauzinho bem, ele sabe, para
acertar, pedi pra Deus, veio! Fiz no primeiro, veio menino.” (Paulo, pai de oito filhos,
“No segundo filho, da primeira mulher, eu fiz, porque o primeiro foi uma menina,
aí eu pensei, tenho que fazer alguma coisa, se continuar assim vai dar problema, vai
dar trabalho para mim. Vim procurar o cacique daqui, ele já morreu, pedi pra ele que
ele me ajudasse a fazer o pauzinho para por na orelha. Ele saiu comigo, fez o pauzinho
comigo, me disse para fazer sexo assim, colocando as pernas da mulher aqui (mostra
não pedi explicação, eu fiz e deu certo, não pedi explicação.” (Mano, pai de seis filhos.)
para aconselhar-se e obter seu consentimento sempre que vai tomar uma decisão
136
importante no âmbito familiar, social ou cultural. Desde o nascimento até a morte, o
Xavante fica sujeito à autoridade paterna, que é exercida pelo pai legítimo e pelos pais
Cada Xavante (seja homem ou mulher) tem um pai e dois padrinhos (membros do
ligadas essencialmente ao grupo de idade e aos ritos de iniciação, portanto sendo mais
sendo, portanto, mais importante para as meninas. Os padrinhos são responsáveis por
Conforme o Pe. Giaccaria, na sociedade Xavante não existe uma pessoa que não
tenha “pai”. Assim, se uma mulher solteira engravida e ninguém assume a paternidade,
a criança deve ser morta. Caso algum homem assuma a paternidade desta criança,
independentemente de ser ou não seu pai biológico, ela será, contudo, aceita pela
Quando perguntei ao padre Giaccaria, se a criança “sem pai” era de fato morta, e
“(...) se não tem ninguém que assuma a paternidade, a criança deve ser eliminada
porque não pode ter ninguém sem pai nesta sociedade. Não, sem pai não pode, é uma
ameaça terrível à sociedade. Alguém sem pai não pode ser. Uma pessoa de 100 anos
tem que ter seu pai (...)Eu tenho pai Xavante, quando tem cerimônia, ele me pinta.”
“(...) eu só vi um caso (em que mataram a criança) e já faz 45 anos, foi na Terra
Indígena São Marcos. Geralmente alguém assume a paternidade, mesmo sabendo que
137
não é o pai, para a criança não ser sacrificada. E aí assume mesmo.Eu já vi um homem
bom, que nunca tinha feito mal nenhum , que não tinha nada a ver com aquilo, que
nunca tinha abusado de ninguém, mas ele disse que o filho era dele e todo mundo
aceitou e ele cria o filho como dele. O pai biológico é o que menos conta, porque tem os
biológico.
Tradicionalmente, o pai não participa do parto e fica fora da casa, uma vez que
parto “é assunto de mulher”, conforme as respostas dadas às perguntas: “Os pais ajudam
“Geralmente não, cada um tem as suas funções. Quem mais ajuda é a avó, ela
está sempre aí. O genro muitas vezes vai morar com a sogra.” (Padre Giaccaria)
“Hum, hum (e balança a cabeça negativamente). Não dá, é homem, não pode.”
(Dona Íris).
“O homem em casa? Não! Ele vai lá pra fora (faz sinal um sinal com a mão para
vejamos:
“Dos três primeiros não, porque eu não podia, não tava na fase (...) não tava na
segurar a minha mulher no parto, cortei o cordão com bambu. Minha mãe que ajudou.
138
Depois que eu vi o primeiro parto, eu passei a valorizar muito mais a mulher, porque
eu penso que homem não agüenta. A mulher passa por aquela dor, é forte. Acho que a
presença do homem é muito importante, deixa a mulher calma, com coragem, feliz.”
“Minha avó dizia que papaizinho tem que ajudar, eu não quis não. Eu levei minha
mulher para ter no hospital, fiquei com medo. Hoje eu ajudaria se eu tivesse outro
filho, ou até ajudaria outra mulher da minha aldeia a ter filho.” (Trovão, pai de uma
filho, cumprindo a dieta alimentar, “escolhendo” o sexo do filho que será concebido e
sonhando com o nome com o qual o filho será batizado: “Eles sonham, o avô ou o pai
Na cultura Xavante, o nascimento de uma criança não interessa apenas aos pais,
mas sim a toda comunidade. O Xavante é educado desde que nasce para viver em
grupo, o que se evidencia nas danças, nos cantos e nos jogos, realizados em conjunto
(Giaccaria, 2000).
filhos, mas quando tentaram isso, não conseguiram sobreviver; porque somente as
sogra, visto que é considerado um assunto familiar. Em alguns casos, as avós são
139
auxiliadas por uma parteira: “Todas as mulheres são parteiras, mas tem uma que tem
mais habilidade, aí é mais chamada. Mas a mãe, a sogra tão sempre aí para ajudar no
sua aldeia”, ela respondeu: “Não, eu acompanho, porque (parto) domiciliar mesmo são
as parteiras de casa mesmo que fazem, seria familiar mesmo. É só a família mesmo”.
Dona Íris, que se auto-intitula parteira, teve sete filhos em casa, quando lhe
perguntei quem a ajudou nos seus partos, ela respondeu: “Minha avó, agora que perdi
minha avó, sou eu a parteira”. Hoje, ela segue a tradição da avó, fazendo os partos das
assumindo a posição de cócoras. Ao nascer, ele é pego pela avó (quase sempre a
materna), que corta o cordão umbilical do neonato com uma lasca de bambu e o coloca
saída da placenta que, após ser expulsa, será enterrada no solo da casa, no mesmo lugar
Logo em seguida, o bebê é levado para perto do fogo onde é lavado com água
morna (a finalidade do banho não é limpá-lo, mas fazer com que a criança cresça bela e
forte). Neste momento, a avó irá fazer movimentos com as mãos na cabeça do bebê,
“O parto era dentro de casa, né? Era de cócoras, com a mãe, a avó e a parteira.
Quando a criança nasce, pega, não deixa a criança cair no chão, né? Pega a água
quente, já lava a criança. E a placenta elas enterram no mesmo lugar, dentro da casa.
140
Enterravam, agora não sei. Não tenho como saber isso mais, não tenho mais
“A parteira pega comprime o corpo. Agora, uma coisa que elas faziam que eu
insisti para elas deixarem, é que logo quando a criança nascia a vó apertava a cabeça
da criança com força para ficar logo redonda, aí acontecia traumas, não tinha trauma
logo no parto, mas tinha no pós-parto. Eu insistia para elas não manipularem com
força, porque elas queriam que ficasse logo com a cabeça redonda, isto era um
problema. A gente deixava elas fazerem o parto, a gente só acompanhava quando tinha
algum problema aí levava para o hospital. As vezes nascia no carro, ou logo nascia no
2005, o número de mulheres Xavante que estão tendo seus filhos no hospital vem
aumentando bastante nos últimos anos. Dados levantados nos hospitais, pronto-
Sangradouro mostram que, em 1999, 69% dos partos foram feitos nas aldeias; dos
partos feitos na cidade, 25% eram vaginais e 6% eram cesareana; já em 2004, 51% dos
partos foram feitos nas aldeias, 44% foram vaginais feitos na cidade e 5% cesareana.
aldeias diferentes, localizadas em três terras indígenas distintas, apenas dois deles
afirmaram que as jovens Xavante de suas aldeias estão preferindo ter seus filhos na
“A maioria quer ter bebê no hospital. Só nasce uns cinco bebês por ano em casa
na aldeia, é pouco. Todas as xavantes mais novas querem ter na cidade.” (Pandora,
141
“Acompanhei minha sobrinha ao hospital porque a mãe dela não quis deixar ela
ter em casa, ficou com medo. O médico me perguntou se a gente era parteira se não
fosse não deixa entrar pra acompanhar. Eu fui ao hospital porque ela (sobrinha) não
fala português.” (Alma, teve dez filhos em casa ajudada pela mãe, mas a irmão não quis
deixar a sobrinha ter em casa). “Eu ajudei outra sobrinha a ter em casa e a minha nora
também, mas da minha nora eu tenho vergonha, aí a mãe dela veio ficar junto, aí eu fiz
o parto”
“Eu levei minha mulher para ter no hospital, fiquei com medo”. (Trovão).
Os demais entrevistados disseram que, nas suas aldeias, as mulheres têm seus
filhos em casa e atribuíram o fato das mulheres jovens das outras aldeias buscarem o
Ao comentar com Dona Íris que Pandora (auxiliar de enfermagem Xavante) havia
dito que muitas Xavante estavam parindo no hospital, ela disse: “Só as de lá mesmo,
Sangradouro, São Marcos (nomes de algumas Terras Indígenas) vão pro hospital, pra
Barra” (Barra dos Garças, cidade mais perto dessas T. I.). Aqui não! Aqui mesmo, não
pede pra levar (pro hospital), não é “branco”. Aqui mesmo, de Areões, nasce aqui na
Aldeia”.
Betunia que teve quatro filhos em casa, ajudada pela mãe, disse que “os maridos
Paulo, pai de oito filhos, todos nascidos em casa com a ajuda da sogra, disse
acreditar que as mulheres estão querendo ir para o hospital porque estão ficando fracas,
já que se alimentam com a comida WARADSU (do branco), usando refrigerante, sal,
142
açúcar, arroz e feijão (refinado, beneficiado): “Tem que buscar a natureza, raiz,
importante, comida tradicional (...), não pode levar no hospital, abrir barriga.
Natureza tem remédio pra sair (se referindo ao bebê), não pode esperar remédio no
hospital, tirar raiz.(...)Nós têm cultura, têm Deus, têm tradição, têm velho, velha. As
O padre Giaccaria também defendeu que foi o contato com o não-índio que
provocou esta mudança nos costumes: “Porque tiveram muito contato com o branco.
Você sabe o que a nossa sociedade fala do índio? Quando eles vão para a cidade, você
sabe o que eles escutam lá? O de pior! Eles logo de início são convidados para uma
bebida, depois falam contra ele. Dizem que são preguiçosos, falam contra a cultura
deles, que é atrasada, que o progresso é viver na cidade, só ter coisas boas. Isso
O bebê fica aos cuidados das avós, até que a mãe se recupere do parto. Até o
quarto dia após o nascimento, o neonato é amamentado pela tia ou pela avó, pois,
segundo a cultura Xavante, a mãe não tem leite nos primeiros dias após o parto, uma
vez que eles desprezam o colostro (primeiro leite produzido pela mãe).
“A avó dá o leite enquanto a gente sara”. (Alma, que amamentou seus dez
filhos).
Luar, pai de oito filhos, e Paulo, pai de sete, disseram que suas mulheres
amamentaram todos os filhos a partir do terceiro dia de nascimento. Até então, eles
“Do primeiro dia até o terceiro mês nós amamentamos com o leite materno,
depois disso, a mãe dá comida para as crianças colocadas na posição sentada para
143
comer mingau de milho. A mãe sempre mastiga com o próprio dente até a criança
“Meu filho vai fazer três anos e eu ainda amamento, quando ele tinha cinco meses
comecei a dar mingau de milho mastigado e depois pedaço de carne para ele chupar. A
mãe mastiga com o próprio dente até a criança aprender a comer sozinha.” (Betunia,
novo).
é a sogra, a tia, quem tiver leite, até que a mãe tenha leite”. Então, eu lhe perguntei se
as mães não amamentavam os seus filhos com o colostro: “Depois que eu estudei, eu
fiquei observando em tudo, eu fiquei imaginando este colostro pra gente é jogado
As Xavante amamentam seus filhos sempre que eles choram ou buscam o seio,
por mais ou menos três anos, não cumprindo normas precisas para o desmame. Por volta
do sétimo mês, a mãe começa a alimentar o bebê com mingau de milho mastigado
“Elas amamentam até dois, três anos. Elas estão assim conversando, fazendo
qualquer coisa, a criança chora, elas põem no peito, a hora que a criança quer, o
tempo todo. Elas carregam sempre a criança com elas para todo lado. Elas estão
sempre com os filhos, levam pra roça, colocam no cesto, carregam nas costas, ou
assim, de lado (aposta para a lateral do corpo na altura da cintura). Elas mamam toda
A criança permanece estreitamente ligada à mãe até cerca de sete anos de idade.
Esta união é simbolizada pelo fato de a mãe conservar o cordão umbilical dentro de uma
144
cabacinha até esta idade, quando ela então esconde o cordão umbilical num cupim.
(Giaccaria, 2000)
As mulheres Xavante são “maternadas” pela mãe e pela sogra, que utilizam os
de começar a cuidar do filho – fato referido por todos os entrevistados, tanto homens
quanto mulheres. Nos primeiros dias, os bebês são amamentados e cuidados pelas tias,
Algumas ervas e raízes são utilizadas para facilitar a expulsão dos lóquios
(sangramento característico, que ocorre após o parto), o que “ajuda a mulher a sarar
mais rápido”. Também são utilizados alguns óleos, como o da castanha de babaçu, por
Existem plantas que são usadas exclusivamente pelos homens e, outras, pelas mulheres.
“Fiquei três semanas de repouso, tem raiz (rarepa) para parar mais rápido” (faz
mímica com a mão, indicando algo que sai da altura do umbigo para baixo, se referindo
ao sangramento pós-parto, os lóquios). Depois que a gente sara a gente cuida do bebê,
toma banho, passa óleo da castanha no peito para ter leite mais rápido (...) marido só
após o parto, portanto, ele só terá contato com o bebê nos momentos em que este estiver
com as avós ou com algum parente. Conforme as entrevistas, porém, este costume está
145
caindo em desuso: “Antes era assim, tem alguns que ainda seguem. É a tradição, não é
Para tanto, perguntei aos entrevistados se ela/ele já tinham visto alguma mulher
triste no pós-parto, ou sem querer cuidar do bebê, ou ainda, com algum comportamento
estranho. Propositalmente, evitei a pergunta direta “você ficou triste após o nascimento
do seu bebê?” por acreditar que seria mais fácil para elas falar da experiência de uma
“terceira pessoa”, a falar delas próprias. A maioria dos entrevistados respondeu que
com que eu a utilizava naquele contexto, elaborei perguntas como: “Você já viu algum
Xavante triste?”, ou ainda, “Quando os Xavante ficam tristes?”, ou “Os Xavante não
F: Você já viu alguma mulher Xavante ficar triste, ou estranha depois que teve
filho?
146
F: Dona Iris, a senhora já viu mulher Xavante ficar triste depois que tem neném,
F: Você sabia que mulher Waradsu (como eles chamam os não-índios) às vezes
Iris: “Eu vi ela, mulher de branco, deitada na cama, é que abre, opera, opera,
F: Mas, você já viu alguma mulher Xavante triste, sem querer cuidar do filho
Nas falas, abaixo, fica claro que a rede de apoio familiar e social é percebida como
F: “Você já viu alguma mulher ficar triste, estranha, sem querer cuidar do bebê
depois do parto?”
Luar: “Já, vi uma mulher muito triste porque o bebê dela morreu no parto.”
Luar: “Eu já vi triste, chateado, mas logo a família e os amigos vêm para tirar a
pessoa da tristeza, para animar. Por isso que são dois clãs, que tem os “Girinos” e os
“Grande Rio”. Quando alguém dos “ Girino” fica triste, os outros vêm logo para ele
melhorar.
147
Duas entrevistas foram particularmente importantes para reforçar a minha
Atribuo à entrevista que fiz com Pandora um valor especial, porque esta Xavante,
pós-parto”. Foi ela que introduziu o tema em nossa conversa, ao ser questionada se já
depressão pós-parto, ela jamais havia ouvido falar sobre nenhum fenômeno parecido, de
mesmo após conhecê-lo e ter ficado atenta a qualquer manifestação dos ditos sintomas
F: “Você já ouviu falar que uma mulher Xavante tenha ficado triste depois do
parto?”
Pandora: “Eu quando fiquei sabendo disso, dessa depressão, eu imaginava porque
esta depressão. Eu perguntei pro professor porque esta depressão. Eu não conheço esta
Pandora: “Só quando morre um parente, fica triste, chora. Eu fiquei pensando
porque esta depressão depois do parto, conversei com o professor. Ele me explicou.
148
Outra entrevista bastante significativa sobre a ocorrência ou não da depressão pós-
parto na cultura Xavante foi feita com o Padre Giaccaria, que convive há 50 anos com
os índios de todas as aldeias Xavante e que publicou cinco livros sobre este povo. Ele
afirmou que nunca viu uma manifestação de depressão no período pós-parto e ressaltou
que o máximo que ele observou foi a mulher Xavante manifestar cansaço nesta situação.
pós-parto”, sendo que 20% das mulheres sofre de depressão neste período e muitas
de tristeza ou irritação?
Pe.: “Não! O máximo que vi foi a mulher na rede cansada depois do parto. O que
eu já vi foi uma mulher no meio do mato à dez, quinze quilômetros de casa, vindo da
roça, deu a dor de parto, ela abaixou, deu à luz, pegou a criança e foi sozinha para
casa.”
“Elas ficam aqueles dois, três dias de resguardo, depois é vida normal. A mãe
delas dá uma comida própria para elas comerem depois do parto e pronto, tá boa!”
Pe: “Mãe, não. O que tem é a mulher que não está casada, ela tem um filho, se
não tem ninguém que assuma a paternidade, a criança deve ser eliminada porque não
pode ter ninguém sem pai nesta sociedade. Uma pessoa de 100 anos tem que ter seu
pai.”
Pe.: “Não, eu nunca vi. Mãe matar um filho, entre os xavantes é absurdo”.
149
F: E caso de abandono? Estou perguntando isso porque a nossa sociedade vem
discutindo muito sobre os casos de mulheres que abandonam seus filhos logo após o
nascimento.
Pe.: “Não, o que acontece é entregar para a avó. No caso de gêmeos, o que já
aconteceu foi de a mãe criar um e deixar o outro morrer. Ou tenta criar os dois e aí os
dois morrem porque o leite não dá para os dois. No ano passado, nasceram dois
gêmeos na Aldeia Palmeiras, uma menina e um menino. Para evitar que um morresse, a
irmã da mãe, imediatamente, disse que gostaria de ter uma menina, aí ela levou a
menina para casa, cuidou e amamentou. É dela! Então os dois estão sadios.”
gêmeos. Não é verdade, quando tem ajuda para criar vivem os dois. Mas é que o mais
forte, o mais valente, chora mais, mama mais e o outro, o mais fraco, chora menos,
Os dois entrevistados, que disseram ter visto uma mulher triste após o parto,
parto difícil, ao resguardo propriamente dito ou aos incômodos físicos associados a ele.
F: Você já ouviu falar de alguma mulher que ficou triste depois que o neném
nasceu?
F: Você já viu alguma mulher triste depois que o bebê nasce, estranha, sem querer
pegar no neném?
150
F: Nunca?
Mano: (Faz uma pausa, pensa e diz): “Só uma vez quando o neném era muito
(1960/1978), o grande teorizador dos ritos de passagem, divide estes ritos em três fases:
151
liminaridade). Esses tempos formais de cerimônia têm como propósito essencial tornar
o indivíduo apto a passar de uma posição definida a uma outra que é, da mesma forma,
bem definida.
claras a respeito do que é permitido ou não. Eles dedicam especial atenção à transição
da fase adolescente para a fase jovem, marcada por ritos de passagem bem específicos,
que têm como principal objetivo prepará-los para o casamento e para a procriação.
emocionais nos neófitos e os capacitam para lidar com as obrigações da nova fase.
qual o pai escolhe e comunica o nome do rapaz que irá desposar sua filha, e pela
bebê, seu nome e seu desenvolvimento saudável. Estes rituais possibilitam que os
estado de mãe e pai, e os preparam para assumir seus novos papéis na família e na
próprios filhos.
152
O parto Xavante é realizado na oca em que a mulher mora e é tratado como
maioria das vezes, assume apenas a função de auxiliar a mãe da parturiente. O parto é
marcado por atos ritualísticos que possuem significado e valor simbólico para todos os
cuidar do recém-nascido até que se restabeleça, período no qual ela é maternada por
seu papel materno. Em contrapartida, quando chega o momento de cuidar dos próprios
filhos, ela também divide esta função com seus familiares, não sendo, portanto, a única
responsável por eles; alimenta-se, deste modo, uma rede constante de solidariedade e
suporte.
transição, que marcam a passagem da infância para a adolescência e desta para a fase
de formatura, que marca o fim de uma etapa escolar e o início de outra, a festa de quinze
153
anos, que tem a função de apresentar a adolescente à sociedade, ou o casamento
cooptados pelos valores capitalistas. Isto ocorreu de tal modo que estes ritos de
passagem, apesar de continuarem sendo executados, são constituídos por rituais que
possuem pouco ou nenhum significado para quem os vive, uma vez que se
adulta.
parto constitui o momento da reagregação – tem sido vivido pela mulher burguesa
(as mulheres burguesas e suas famílias) partilham de uma cosmologia “científica”, que
social.
Os procedimentos relacionados com este ciclo são guiados pelo modelo biomédico
154
pode “ver” o/a seu/sua filho/a; e os grupos destinados aos “casais grávidos”, que os
que dificultam que o futuro pai e a futura mãe elaborem simbolicamente as suas
experiências, uma vez que não dominam o código de signos com o qual os
das mulheres não-gestantes. Com o intuito de evitar que sua vida seja “reduzida” à
maternidade, ela se esforça para manter a aparência do seu corpo o mais próximo
objetivo de “continuar a vida como era antes”, e assim, provar para si mesma e para a
sociedade que a maternidade é apenas mais um dos papéis que irá assumir após o
mulher (como sujeito ritual) não possui as mesmas características, nem o mesmo status
status do seu estado futuro. Esta forma de a mulher burguesa vivenciar a gestação vem
sendo endossada pelo discurso médico, que sustenta a idéia de que “gravidez não é
15
O desejo de manter o corpo de antes manifesta-se pela reação de contentamento que se pode notar em
uma grávida quando ela ouve de outra pessoa “você está tão bonita, nem parece que está grávida”
155
exercer as atividades cotidianas normalmente; em contrapartida, ela deverá seguir
saudável do bebê.
realizado em um ambiente hospitalar onde, tanto a mulher, como sua família, ocupam
uma posição passiva (paciente) no processo, que é totalmente dominado pelo “saber
médico”.
para a mulher no puerpério, uma vez que ela não tem oportunidade de simbolizar a
transição do estado anterior (de não-mãe, ou mãe de outros filhos) para um novo estado
emocionalmente para a chegada do bebê e para as novas obrigações e direitos que ela
como mãe. Muitas vezes experimentam, com culpa, o desejo de escapar de sua nova
interpretado por elas como rejeição ao bebê, o que lhes gera grande sofrimento,
Para agravar tal situação, a mulher burguesa não concede a si mesma, no pós-
parto, um tempo para viver “o seu estado especial”. A sociedade burguesa dos grandes
centros urbanos, ao contrário do que ocorre nas sociedades onde as redes comunitárias e
Nas culturas que preservam esse hábito, como a Xavante, por exemplo, durante tal
período, a nova mãe “se resguarda” de qualquer desgaste físico e emocional e se prepara
156
para assumir uma nova posição social, juntamente com suas atribuições. A família e a
comunidade se mobilizam para fornecer à mulher as condições para que ela se alimente
descanse (para isto, ela é substituída por outra mulher nos afazeres domésticos
capacidade de maternar o próprio filho (a partir da atenção e orientação que ela recebe
de outras mulheres).
sociedade Xavante são substituídos por uma assistência medicalizada, que se limita aos
primeiros dias após o nascimento do bebê e visa quase que exclusivamente a integridade
Sendo assim, é comum a mulher burguesa das grandes cidades retornar, logo nos
primeiros dias após o parto, às suas atividades cotidianas. Ao voltar do hospital, além
dos cuidados com o bebê, assume prontamente o comando das funções domésticas,
recebe as visitas, esforça-se para se manter bonita, bem vestida e voltar rapidamente à
forma física anterior à gestação.Desta forma, a mulher moderna não tem direito a gozar
gravidez) e do parto, bem como para se preparar emocionalmente para o seu novo papel.
família – esposa, amante, profissional, acadêmica, entre outros. Este conflito gera
157
sentimentos ambivalentes em relação à maternidade e exige da mulher um alto padrão
pertence ao casal, cabendo a ele o ônus da criação. Sendo assim, o “casal grávido” –
origem são alijadas do processo de criação dos seus descendentes e seus conhecimentos
são considerados ultrapassados diante da velocidade com que as ciências criam novas
cuidados com os filhos desde a gestação, uma vez que cuidam da saúde da mãe visando
quais atividades pode, ou não, fazer; decidem quando, onde e como o bebê deve nascer;
158
A mulher burguesa vivencia os dias que se seguem ao parto de forma muito
pesquisas mais recentes sobre amamentação, cuidados com o neném, relação mãe-bebê
tradicionais.
burguesa não conta com uma rede de suporte familiar, nem, muito menos, comunitária
com quem possa dividir as funções maternas, restando a ela duas alternativas: deixar os
encurtado no caso das profissionais liberais. Após esta licença, ela transfere, na maioria
das vezes com grande sentimento de culpa, os cuidados do filho a uma outra mulher de
estrato social menos favorecido, que é paga para assumir as funções ditas maternas.
A mãe pobre, portanto, é obrigada a deixar seu filho com as avós, com as mães
precário – para trabalhar cuidando dos filhos das mulheres mais abastadas, perpetuando,
da nossa sociedade, as mulheres dos estratos sociais menos favorecidos aspiram, por sua
159
vez, a contratar babás para os seus próprios filhos, como um bem prezado no universo
querem deixar seus filhos com as babás, recorrem a centros alternativos de cuidados: as
mais elevado do que o gasto com uma babá – serviços especializados prestados por
Tal opção, entretanto, tem gerado controvérsias tanto no meio científico como no
meio leigo. Afinal, predomina ainda a idéia de que, ao longo dos três primeiros anos de
vida, é mais saudável a mãe cuidar dos filhos no ambiente doméstico. E também, de que
mães, sobretudo, naquelas que, devido ao seu bom nível socioeconômico, teriam a
opção de deixar de trabalhar para cuidar dos filhos, mas não o fazem porque almejam a
realização profissional (Weber, 2006). Além da culpa, elas são igualmente assombradas
pelo medo de que sua/seu filha/o as substitua afetivamente por quem cuidar dele durante
a sua ausência, uma vez que, em nossa sociedade, a maternagem deve ser exercida por
uma só pessoa: a mãe biológica; e o afeto do filho não pode ser dividido.
16
Conceito de Suely Gomes Costa : em Proteção social, maternidade e lutas pela saúde reprodutiva.
Revista de Estudos Feministas, 2, 2002: 301-323.
160
Conforme Chodorow (1978/1990), o papel da mulher no cuidado com os filhos foi
trabalho, tanto mais crescia a ideologia da “mãe moral”, dedicada e responsável quase
que exclusivamente pelos filhos. Esta mãe deveria agir ao mesmo tempo como
educadora dos filhos, responsável por guiar moralmente e alimentar toda a família
pelo casal. Este processo exigiu, e continua exigindo, grande investimento emocional de
paternidade.
Este novo modelo, que tem como ícone o “casal grávido”, prevê que o pai burguês
“ajuda” a cuidar do bebê. Em contrapartida, o modelo preconiza que cabe à mãe cuidar
devem assumir todos os cuidados com o bebê desde o início, dispensando o auxílio de
Cabe lembrar, porém, que enquanto a mãe goza 120 dias de licença-maternidade,
o pai tem direito à cinco dias apenas. Portanto, após este período de licença-paternidade,
161
a participação do pai no cuidado com o bebê limita-se ao tempo no qual não está
“déjà vu”, já que a sua retórica coincide com o discurso rousseauniano sobre “a boa
desespero quando, ao longo do dia, fica sozinha em casa com o bebê e, ao entardecer,
indivíduo moderno tem de que “vive separado do mundo por um muro invisível” (Elias,
bem como com a família extensiva, predominando a sensação de vazio entre o “eu” e o
“mundo”: “Se as pessoas são privadas dos benefícios das relações sociais que as
162
sustentam psiquicamente, acabam se deparando com a condição de indivíduos sós e
associais, o que vai ser vivenciado por cada um como vazio, como perda de algo que
entre mãe, pai e filho. A existência do suporte comunitário e familiar foi apontada por
um dos Xavante como explicação para o fato das mulheres de sua aldeia não sentirem
A sociedade Xavante não exige que a mãe seja “a grande responsável” pelo
desenvolvimento físico, emocional e moral dos filhos, pois outras pessoas da família
crianças até que cheguem à fase adulta. Por conseguinte, os membros da família
os nos três primeiros dias de vida e, quando gêmeos, criando um deles por toda a vida.
Duas ou mais irmãs podem até se casar com o mesmo homem e assumir conjuntamente
se restringindo apenas à mãe. Nessa cultura, o homem e a mulher possuem funções bem
alimento, por intermédio da caça, e cabendo à mãe, ajudada pelos familiares e pelas
família.
163
No geral, toda a comunidade Xavante se envolve com cada um dos seus membros,
se preocupando com eles, e formando uma espécie de irmandade, uma grande família.
Esta característica é reforçada pelo fato de que toda a aldeia se divide em dois clãs (“Os
Girinos” e “Os Grande Rio”), os membros destes clãs se consideram irmãos entre eles,
não podendo, portanto, casar entre si. A mulher que herdou o clã do pai (a transmissão é
patrilinear) somente poderá casar com um homem do clã oposto (que pertence ao
mesmo clã da mãe da noiva). Os padrinhos ocupam um papel especial nesta cultura, já
Xavante têm uma relação importante com quem exerce a figura paterna, seja ele o
próprio pai biológico ou, na falta deste, um pai substituto e os padrinhos; estes pais
terão, assim, a função de orientar e aconselhar o Xavante ao longo de toda a sua vida.
6.3 - A cura
da sociedade burguesa urbana, uma vez que, em sua cultura, o conceito de doença e de
espíritos.
164
Segundo os Xavante, a doença é causada por uma entidade estranha, pessoal,
cultura, a doença tanto pode ser induzida quanto afastada pelos poderes de
mas engloba tudo o que se opõe à doença, com possibilidade de afastá-la, e que pode
pulsos (que têm função curativa e também preventiva, fechando “as portas” para que a
doença não penetre no corpo), os cacetes batidos ao lado do doente com a finalidade de
farmacêutica, cujo uso indiscriminado vem causando danos para sua saúde. Este
fenômeno tem origem nas políticas de assistência à saúde indígena, executadas pelos
Estado17.
17
Não pretendo explorar, aqui, a questão das conseqüências do contato com o não-índio, pois tenho
como objetivo discorrer sobre os aspectos tradicionais da cultura Xavante que ainda permanecem
preservados, graças, sobretudo, aos esforços dos mais velhos, que possuem o papel de guardiões desta
165
Para eles, há uma distinção marcante entre curar e sarar. Curar é induzir, no
doente, o retorno ao estado normal, a partir do qual ele deixa de ser perigoso para a
elementos que lhe faltavam para sarar. Este processo se dá a partir do momento em que
devolvido ao doente.
No campo religioso, não há uma autoridade única que detenha o poder entre os
Xavante. Os vários poderes são exercidos por uma pessoa ou por um grupo de pessoas,
chamadas senhores ou donos, que os receberam por hereditariedade. Quem possui poder
Uma doença leve é curada pelo pai, que pode ser substituído por qualquer membro
da família; uma mais séria requer a intervenção dos ditos senhores, por exemplo, no
caso de uma picada de cobra é chamado o “senhor das cobras”. Quando a doença é
doente raspam a cabeça dele (sinal de luto) e permanecem ao seu redor chorando como
se ele já tivesse morrido. O conselho dos anciãos decide então que a alegria deve voltar
cultura, e dos movimentos de lideranças indígenas que lutam por manter a tradição Xavante, a exemplo
da Associação Warã..
166
diferentes categorias de espíritos. Eles encenam a luta entre o espírito que entrou no
doente e lhe causou a enfermidade, bem como os espíritos da força e fertilidade que
tentam salvá-lo, sendo que estes últimos sempre devem vencer. Enquanto o doente não
melhora, a cerimônia continua sendo repetida até que a cura seja alcançada.
Muitas vezes, a cura ocorre sem o doente sofrer nenhuma manipulação direta do
delírio, significa que um espírito está sufocando-o. Neste caso, a cura consiste em bater
com paus ao redor do doente, para simbolicamente matar o espírito. Se esta ação não for
suficiente, um homem do grupo “dos caçadores” identifica-se com o espírito que está
causando a doença, pinta-se todo de preto e se joga por cima do doente para sufocá-lo.
identificam com os espíritos da força e da fertilidade e lutam com ele até expulsá-lo. Se,
mesmo assim, o doente não melhorar é porque mais de um espírito se apoderou dele e,
tensões entre o indivíduo e o grupo (que se identifica com os espíritos) são dirimidas e a
à qual me referi nas entrevistas, vem sendo estudada e classificada pela psiquiatria como
167
modelo biomédico como “blues pós-parto” ou “depressão pós-parto”, dependendo da
psíquico no pós-parto”.
imposto por nossa cultura como gerador de conflitos, culpa e sofrimento para as mães.
De acordo com essa pesquisa, a literatura médica aponta para uma incidência da
que ela estabeleceu com a própria mãe e à forma como foi maternada e paternada na
puérpera com a própria mãe e que construíram, juntamente com outros fatores, a sua
(Forna, 1988/1999).
168
Em geral, a psicologia tradicional vem tomando por modelo operacional a clássica
família nuclear burguesa ocidental, na qual se baseia para formular a maioria de suas
na psicologia, por sua vez, prevalece um enfoque que valoriza a subjetividade e atribui
uma expressão do sofrimento que a mulher de sua cultura vem experimentando diante
dessa sociedade.
maternidade pela burguesia é marcada pela pobreza simbólica dos rituais, escassez dos
169
ritos de passagem, carência de uma rede de suporte familiar e social no pós-parto,
170
que as impele a ter filhos e determina previamente os seus comportamentos e
lo como uma expressão das angústias vividas pelas mulheres burguesas frente à
maternidade.
desculpabilizante para elas, pois atribui a origem dos seus sentimentos a uma “entidade
lado socialmente negado e obscuro da maternidade. Por outro lado, essa compreensão
reafirma a mulher, de forma perversa, na mesma posição que ocupou durante a gestação
Assim, mais uma vez, ela é desempoderada, sua auto-percepção é suplantada pelo
paciente, esvaziada de efetiva eficácia simbólica, a mulher nada sabe, perde a autoria de
171
para além das explicações oferecidas pelas teorias psicológicas e psicanalíticas
sofrimento da mãe no pós-parto focando, sobretudo, os riscos que este pode representar
uma vez que foca exclusivamente a díade “mãe-bebê” e neutraliza o grande potencial
172
Ao longo do percurso realizado, espero ter mostrado que o amor materno,
Brasil, em séculos anteriores. Tais dados são contundentes ao nos revelar que o
comportamento das mulheres em relação aos seus filhos é moldado por aspectos
distintas daquelas vividas pela mulher burguesa moderna. Nessa cultura indígena, a
maternada durante o parto e o puerpério imediato e divide a função de cuidar dos filhos
com sua família extensa e toda a comunidade. As mulheres Xavante têm seus papéis
familiares e sociais rigidamente definidos, pois não estão inseridas numa sociedade de
173
diferenças culturais, acima citadas, devem ser consideradas como fatores decisivos para
pós-parto. Para adotar esta visão, sem dúvida, é preciso transcender nossas habituais
ação devastadora das alterações hormonais. Um corpo doente que deve ser medicado
para que volte a funcionar de modo a corresponder à sua dita natureza. Reafirmo,
A partir das conclusões extraídas da minha prática clínica e das reflexões acerca
das idéias expostas nesta dissertação, optei por abandonar este paradigma iluminista e
propor outro caminho de apreensão do sofrimento psíquico vivenciado pela mulher nos
174
Entendo, assim, que os ditos “sintomas da depressão pós-parto” – aqui nomeados
como sinais do sofrimento vivido no período do pós-parto – têm sido o único meio que
humanidade.
transgressão, recebido como uma ameaça por uma sociedade, na qual os momentos de
em situação de perda de controle e total entrega – devem ser neutralizados. Isto porque,
nestes momentos, o sujeito ritual (a gestante burguesa). ao assumir o seu novo status
social (de mãe), pode reafirmar a ordem estabelecida (de sua própria vida e de sua
com ele (a partir da sua reação subversiva de tristeza e recusa de cuidar do próprio filho,
ela vinculados).
sofrimento, de forma brutal, silenciosa e solitária, em foro íntimo. Único espaço onde é
possível (se é que é possível) viver o lado sombrio, não dito, negado e recalcado – por
recalcado”, ou seja, o que foi banido e reprimido volta com grande intensidade e outra
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experimentação mortífera. O real apagado por seu duplo é um fantasma
Esse retorno dos sentimentos banidos é experimentado pela mulher com grande
dor e culpa, porque, conforme ensina Baudrillard (1999/2002), o sujeito moderno tem a
no pós-parto, é vivida como perda do controle (do sujeito sobre si mesmo e das
produtivo de sociedade.
feministas alimentam a falsa idéia de que as mulheres são livres e autônomas para
escolher se querem, ou não, ter filhos. Tal escolha, entretanto, não se restringe a uma
questão biológica; pelo contrário, como desenvolvi ao longo deste trabalho, trata-se de
opressão, mas sim, da liberdade ora propagada entre nós A ilusão de que a mulher
quase exclusiva, por suas decisões, além de uma auto-cobrança para que corresponda ao
modelo hegemônico de “boa mãe”. Afinal, se o filho foi uma escolha sua, não lhe cabe
e opressor, no qual elas cobram de si mesmas, e umas das outras, que correspondam ao
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padrão rousseauniano de “boa mãe” e que se responsabilizem quase que exclusivamente
por seus filhos, pagando, assim, por suas alegadas livres escolhas. Portanto, a mulher
burguesa, que “opta” pela maternidade, despende grande esforço para se desenvolver
e à administração do lar de modo impecável. Nesse sentido, recorro, mais uma vez, às
idéias de Baudrillard (1999/2002), que discute o peso opressor que as decisões têm na
sociedade moderna:
“Ora, toda decisão tomada é uma faca de dois gumes. Uma vez assumida,
então, qualquer diferença entre o fato de que seja uma decisão sua ou de
determinar em relação à sua própria decisão, voltar atrás com toda liberdade,
liberdade, uma vez que a obediência à vontade própria é pior do que a sujeição à
vontade dos outros. “Aliás, são aqueles que se submetem impiedosamente à sua própria
que fazem a si mesmos para impor às outras pessoas sacrifícios ainda maiores”
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sociedade moderna; uma vigilância especial, que dispensa armas, violências físicas e
coações materiais. Constituída por um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar
sobre si, acabará por interiorizá-lo, a tal ponto, que passará a exercer esta vigilância
Essa é a lógica que move o sofrimento silencioso (ou silenciado) das mulheres no
social e cada agente disciplinador (as outras mulheres, os próprios familiares), que cria e
perseguição de uma mulher pela outra, de uma mãe pela outra, à medida que as
e, ao se culpar pela sua suposta conduta insatisfatória como mãe, a mulher se esforça
ainda que isto lhe custe grande sofrimento. Ao mesmo tempo, é vigiando e punindo a
conduta das outras mães, que a mulher se legitima como “boa mãe”.
ou não, uma boa mãe, mas se esforça para se apresentar como tal. Assim, gera-se entre
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sacrificar mais em prol do desenvolvimento saudável do filho. Desta forma, reproduz-
até então utilizado para designar o fenômeno. Assim, será possível encontrar novas
carregam a ideologia que permeia seus significados. A exemplo do que tentei fazer, para
Por fim, qual seria o papel dos profissionais de saúde dentro da perspectiva que
seria a conduta esperada, nem reduzir toda a reflexão feita até aqui aos procedimentos
adotados por eles na relação com as mulheres. Tampouco é meu objetivo negar a
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ressignificar o seu sofrimento no pós-parto, devem ampliar a sua escuta e o seu olhar
para além das funções para as quais as fêmeas estão fisiologicamente preparadas: gestar,
como um fenômeno social múltiplo, que deve ser apreendido e compreendido a partir
próprias concepções acerca do que é “ser boa mãe”, poderão oferecer às mulheres que
sofrem no pós-parto, um espaço acolhedor no qual suas dores e inquietações não sejam
tratadas como sintomas de uma doença orgânica ou psíquica, mas como um pedido de
este, onde as trocas econômicas possam ser substituídas pelas trocas simbólicas e,
reconhecidos como parte da experiência humana. Somente numa relação como esta,
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