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Marília Mattos1
O século XVIII, no qual Rousseau está inserido, foi fortemente marcado pelos
ideais racionalistas da filosofia iluminista, que culminaram com a queda da Bastilha. No
entanto, embora simpatizantes de seu aspecto revolucionário, filósofos da Europa – tais
como Rousseau, na França, Hume, na Inglaterra e Kant, na Alemanha –, pautados na
exigência de novos ideais que abarcassem também os sentimentos, passaram a criticar a
supremacia da razão, exaltada pelo Iluminismo. Estes haviam sido sufocados pelo
racionalismo, que afastara os homens da natureza e, por conseguinte, de si próprios,
enquanto parte integrante daquela. O Romantismo está, portanto, intrinsecamente ligado
ao movimento iluminista, cuja elucidação é imprescindível à compreensão da arte
romântica, em geral, e de Frankenstein, em particular. O zeitgeist iluminista é
encarnado por Victor Frankenstein, enquanto sua criatura representa a reação romântica
ao Iluminismo, como pretendo demonstrar.
1
Professora de Literatura e Estudos Culturais da UNIJORGE.
O movimento intelectual ocorrido na Europa do século XVIII, conhecido como
Iluminismo, pode ser compreendido, segundo o historiador Calazans Falcon (1986),
principalmente sob duas perspectivas: como a culminação de um processo, ou como seu
começo. De acordo com a primeira visão, o Iluminismo representaria o clímax de um
processo originado no Renascimento, mas que, nas palavras de Falcon, “só alça vôo”,
efetivamente, com a revolução científica do século XVII. Se o tomarmos como ponto de
partida, conclui Falcon, ele será considerado o início de “uma aventura intelectual que é
também a nossa” (FALCON, 1986, p. 6). Optarei por vê-lo como resultante de um
processo que remonta ao Renascimento: o da ruptura com o realismo conceitual,
mencionado na introdução, por ser esta a perspectiva mais compatível com a concepção
de modernidade vigente neste trabalho.2 A referida ruptura torna o pensamento cada vez
mais nominalista e gera um processo de secularização da realidade, que constitui a
principal característica do mundo moderno. Podemos definir a secularização como a
expressão de um processo que se caracteriza pela passagem da “transcendência à
imanência, da verticalidade à horizontalidade” (FALCON, 1986, p. 31), e que encontra
na ciência sua legitimação definitiva. À medida que o nominalismo vai se fortificando,
os elementos individuais do mundo físico passam a ser mais valorizados do que os
conceitos aos quais correspondem. Tal fato imprime nova importância à realidade
experienciada pelos sentidos, o que estimula a observação dos fenômenos, fomentando
as ciências empíricas, baseadas em cálculos matemáticos (FALCON, 1986).
2
Ver nota 3 da Introdução, a respeito.
A idéia de uma relatividade espacial conforme a perspectiva do observador, é
considerada por Rosenfeld como a mais exata expressão de uma época que, bem antes
da Idade Média, introduzira a perspectiva pictórica (desconhecida da arte medieval)
como recurso para conquistar, por meios artísticos, a realidade física: a Grécia clássica
no auge da arte trágica. A perspectiva tem o poder de criar a ilusão de um mundo
tridimensional, projetado a partir de uma ótica individual, o que fortalece o
individualismo moderno. Descartes, com seu cogito ergo sum, desenvolveu
filosoficamente a nova concepção espacial centrada no sujeito racional, cuja dúvida
metódica, envolvendo tudo, apenas é detida pela certeza do próprio Eu, que se define
por pensar. É a partir deste “Eu”, enfatiza Rosenfeld, que o mundo desfeito pela dúvida
é reconstruído (ROSENFELD, 1973, p. 129). O método cartesiano de investigação
cética da realidade lança as bases do pensamento racionalista que orientará toda a
ciência moderna e o Iluminismo, sua máxima expressão ideológica.
Cabe lembrar que a metáfora das “Luzes” é antiqüíssima. A oposição entre luz
e sombra, dia e noite – expressa por ritos ao deus sol e mitos sobre a origem do fogo –
remonta à pré-história da humanidade e está presente em várias culturas. Prometeu e
Frankenstein, enquanto portadores do fogo e da eletricidade, respectivamente,
compartilham com Lúcifer o papel de portadores da luz. Esta, por possuir um caráter
ambíguo como o fogo que lhe origina, pode criar ou destruir, sendo as referidas
personagens ilustrativas da ambivalência daquele elemento, pois, para eles, a criação –
obtida através do fogo – causou a destruição. A luz, como símbolo da Verdade, está
presente na filosofia, com o platonismo e o neo-platonismo, e na esfera religiosa, com o
judaísmo e o cristianismo. A iluminação mística cristã foi relida e secularizada pelo
Iluminismo, que tornou o século XVIII “cada vez mais esclarecido, e numa tal escala
que todos os séculos anteriores nada mais serão do que trevas, se comparados a ele.”
(BAYLE, apud FALCON, 1986, p. 15, grifo meu).
[...] cada vez que se examina [a razão] parte-se; cada vez que se
contempla, descobre-se outra. A razão aspira à unidade, mas,
diferentemente da divindade, não repousa nela nem se identifica com
ela. A trindade, uma evidência divina, torna-se incompreensível para a
razão. Se a unidade reflete, torna-se outra: vê-se a si mesma como
alteridade. Ao se confundir com a razão, o Ocidente condenou-se a ser
sempre outro, a negar-se a si próprio para se perpetuar (PAZ, 1984, p.
46).
Otávio Paz analisa longamente a íntima relação entre a crítica e a arte moderna,
convicto de que a história dos movimentos artísticos modernos é a história de suas
rupturas. Para ele, a modernidade inicia-se com a ruptura chamada Romantismo, da qual
vieram todas as rupturas artísticas posteriores: versões do Romantismo, em última
análise. O que quero salientar é, principalmente, a concepção de Paz do movimento
romântico enquanto a mais intensa e paradigmática ruptura moderna com a própria
modernidade. Sua rejeição ao Iluminismo é a rejeição ao mais expressivo traço
identitário moderno: a razão crítica. O irônico é que, ao negar criticamente a
modernidade, os românticos, como enfatiza Paz, afirmam-se como modernos e
confirmam a noção, exposta acima, do “caráter totalitário” do Iluminismo, do qual não
escapam nem mesmo seus mais ardorosos opositores. O Iluminismo, ao criticar-se,
torna-se outro. Este “outro” é o Romantismo: duplo antagônico desdobrado do
Iluminismo e sua face dionisíaca, censurada pelo racionalismo socrático e apolíneo. Tal
desdobramento é análogo ao de Frankenstein em sua criatura antitética.
O monstro, sem ter passado pela fase da horda (pois foi sempre um solitário),
aspira pertencer a uma família, o que significaria a transição do nomadismo ao
sedentarismo. É quando ele sente mais intensamente a necessidade da linguagem, que,
segundo Rousseau (1981), nesta fase desenvolve seus elementos convencionais. Eis o
monólogo que se segue à fala do monstro, que acabo de citar:
Maldito, maldito criador! Por que eu vivi? Porque não extingui eu,
naquele instante, a centelha de vida que você tão desumanamente me
concedeu, não sei. O desespero ainda não se apoderara de mim. Meus
sentimentos eram de raiva e vingança. Eu poderia com prazer ter
destruído a casa e seus moradores e ter me saciado com seus gritos e
sua desgraça. [...] Eu, como um arquidemônio, sentia o inferno
devorar-me e desejava devastar e assolar tudo o que me cercava, para
depois sentar-me e contemplar satisfeito a destruição. [...] Ninguém
havia entre as multidões de homens vivos que se apiedassem de mim
ou me ajudassem; e deveria ser bom para os meus inimigos? Não ! A
partir daquele momento declarei guerra sem quartel contra a espécie, e
mais do que tudo, contra aquele que havia me criado e me lançara a
esta insuportável desgraça. (SHELLEY, 1991, p. 131).