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O patriarca
e
o bacharel
Livros do autor
Romances
Lapa, Rio de Janeiro, Schmidt, 1936 (1ª ed.); José Olympio, 2004 (2• ed.)
A terra come tudo, Rio de Janeiro, Schmidt, 1937
Fazenda, Curitiba, Guaíra, 1940
A girafa de vidro, São Paulo, Martins, 1971 (prêmio Jabuti)
Memórias
Noturno da Lapa, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964 (1ª ed.; prêmio Jabuti);
São Paulo, Vertente, 1979 (2 ª ed.); Rio de Janeiro, José Olympio, 2004 (3• ed.)
Um bom sujeito, São Paulo, Paz e Terra, 1983
Crônicas
Futebol da madrugada, São Paulo, Martins, 1957
Noturno do Sumaré, São Paulo, Cultrix, 1961
Ciranda dos ventos, São Paulo, Moderna, 1981
Poesia
Sinos, Rio de Janeiro, edição do autor, 1928
Cantigas da rua escura, São Paulo, Martins, 1950
Novas cantigas, São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1973
Traduções (poemas franceses), São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1975
Infantil
Viagens de Guri-Guri, Rio de Janeiro, Selma, 1934
Crítica de arte
A pintura moderna no Brasil, Rio de Janeiro, Schmidt, 1937
Arte e polêmica, Curitiba, Guaíra, 1942
A evolução social da pintura, São Paulo, Col. Departamento de Cultura, 1942
Di Cavalcanti, São Paulo, MAM-SP, 1953
Os pintores, São Paulo, Cultrix, 1960
Introduções a Di Cavalcanti, 50 anos de pintura, São Paulo, Aleksander Landau, 1971, e
Portinari, São Paulo, Aleksander Landau, 1972
Ensaios literários
Uma coisa e outra, Rio de Janeiro, MEC- Serviço de Documentação, 1959
Homens & livros, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1962
João do Rio, uma antologia, Rio de Janeiro, Sabiá-MEC, 1971 (l• ed.); José Olympio, 2005 (2' ed.);
Suplemento literário, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1972
Didático
São Paulo, Rio de Janeiro, Bloch, 1976
Ensaio
O patriarca e o bacharel, São Paulo, Martins, 1953
Luís Martins
O patriarca
e
o bacharel
2-ª edição
Copyright © 2008 herdeiros de Luís Martins, representados por Ana Luísa Martins
Primeira Edição: Livraria Martins Editora, 1953
M341p
2.ed.
Apêndice
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-98325-68-2
1. Pedro II, Imperador do Brasil, 1825-1891. 2. Brasil - História- Século XIX.!. Título.
[2008]
Todos os direitos dessa edição reservados à
ALAMEDA CASA EDITORIAL
Rua Iperoig, 351 - Perdizes
CEP 05016-000 - São Paulo - SP
Te!. (11) 3862-0850
www.alamedaeditorial.com.br
Índice
Introdução .................................................25
1.Três álbuns de família ......................................37
II.O patriarca ..............................................51
III.D.Pedro II ..............................................63
IV.A questão religiosa ........................................75
V. Evolução do pensamento liberal .............................85
VI.Geração parricida ........................................95
VII.O complexo ...........................................105
VIII."Não era esta a República dos meus sonhos..." ..............119
IX.Rui Barbosa ............................................129
X.Afonso Celso e Joaquim Nabuco ............................139
XI.Martim Francisco, Oliveira Lima, padre João Manuel .........147
XII. Conclusão .............................................155
Bibliografia ................................................161
Apêndice (texto integral do álbum de Carmo Cintra) .............167
Prefácio à 2 ª edição
Haroldo Ceravolo Sereza
1. No belo Aí vai meu coração (Planeta, 2003), organizado por Ana Luísa Martins, filha de
Luís Martins e Anna Maria, o leitor interessado encontrará os documentos (cartas dos pro
tagonistas e crônicas de Martins) que essa tumultuosa e comovente relação entre os três dei
xou. Aproveito para registrar que esta edição de O patriarca e o bacharel deve muito ao em
penho de Ana Luísa e à colaboração das instituições que mantêm os acervos do autor.
O PATRIARCA E O BACHAREL 9
Ele, que se notabilizara por seus textos de jornal e que já era reconhecido
como romancista, graças ao polêmico Lapa, (que lhe valeu a perseguição
pelo Estado Novo) , mergulhou na história paulista para tentar entender
um momento peculiar do país: o período que se seguiu à Proclamação da
República, quando alguns dos mais destacados líderes do movimento co
meçam a desenvolver uma espécie de arrependimento em relação ao fim
da Monarquia e ao tratamento dispensado ao ex-imperador.
A inspiração declarada de Luís Martins era a obra de Gilberto Freyre.Foi
a partir da leitura de Sobrados e mucambos, em especial dos capítulos "O pai
e o filho" e "A ascensão do bacharel e do mulato': que Martins decidiu arris
car-se a sua interpretação do Brasil - pelo menos, a interpretação de um mo
mento muito importante para a história brasileira.Martins analisa os docu
mentos que lhe foram cedidos pelo pai de Tarsila - dois álbuns de fotografias
e um de autógrafos de famílias tradicionais paulistas - para tentar entender
o que fez aqueles bacharéis tão defensores da República viver um sentimen
to bastante difundido de "remorso" em relação à própria atuação histórica
"num período imediatamente posterior à proclamação': nas palavras do pró
prio Martins.Para isto, buscou embasamento teórico em Freud: ''A minha
contribuição, sugerida diretamente pelo drama que se podia entrever nos ál
buns da família a que me referi, foi apenas a segu inte: a geração dos bacharéis
românticos fez a República, assimilando a figu ra hostilizada do Pai, até então
encarnada na do potentado rural, à do imperador D.Pedro II, que passou a
simbolizar, mais do que nunca (já era, pela situação de rei, um símbolo na
tural de paternidade) a entidade paterna.Pedro II foi uma síntese de todos
os pais particulares, polarizando os ódios filiais da horda rebelde': escreve na
introdução ao livro.
A versão de Martins para a história dos primeiros anos da Repúbli
ca, finalmente publicada em livro em 1953 com prefácio de Freyre, gerou
grande repercussão.Foram inúmeras resenhas nos jornais e não pouca a
correspondência que Martins recebeu comentando o livro.
Muitos argumentos foram usados para defender e para criticar a obra,
inclusive por Gilberto Freyre, que assina um prefácio bem ao seu gênero,
republicado nesta edição, que "assopra e morde" o estudo.Chama as pá
ginas de "inteligentes': mas também resiste ao método psicanalítico em
pregado por Martins. Freyre retoma os termos do prefácio na "Introdu-
10 LUÍS MARTINS
2. Raimundo Magalhães Jr. chegou a discutir com Luís Martins a possibilidade de editar
em formato de bolso o livro, um projeto que não seguiu adiante.
O PATRIARCA E O BACHAREL 11
4. Pessoalmente, pude conferir a popularidade de L.M. quando, em 2000, escrevi pela pri
meira vez sobre Martins no Caderno 2, do Estadão. O jornal publicou, nos dias seguintes,
uma carta de um leitor, elogiando o cronista morto quase vinte anos antes, em 1981, num
acidente na rodovia Presidente Outra.
O PATRIARCA E O BACHAREL 13
O sr. Luís Martins faz bem em expandir em livro o estudo que publi
cou na Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo: O patriarca e o bacha
rel. Sugestivo como é, esse estudo terá agora maior repercussão.
São páginas, as do escritor de Fazenda, 1 que vêm concorrer para o
esclarecimento como que psicanalítico daquela nostalgia ou saudade
quase doentia do Imperador e do Império em que se extremaram, de
pois dos quarenta ou dos cinqüenta anos, tantos bacharéis da primeira
geração de republicanos desencantados com a República, alguns deles
filhos de barões e viscondes feitos por Pedro II.Filhos de patriarcas que
eram uma espécie de imperadores em ponto pequeno dentro do siste
ma patriarcal brasileiro.
Tendo me ocupado, a meu modo, do assunto, em ensaio publicado
em 1936, e depois na introdução às Memórias de um Cavalcanti (1939) ,
era natural que me interessasse pelo estudo do sr. Luís Martins e pela sua
tentativa de interpretar a nostalgia ou o remorso daqueles pecadores ar
rependidos - seu sebastianismo às vezes pungente - sob critério senão
puramente psicanalítico, meio freudiano, de interpretação psicológica da
história do Brasil.
Tal nostalgia ou sebastianismo exprimiu-se através de atitudes diver
sas assumidas por antigos republicanos ou antigos monarquistas indife
rentes, quando moços, à sorte da Monarquia. Explica tentativas de restau
ração monárquica, de que tais elementos participaram com uma persis
tência ou uma ousadia verdadeiramente romântica.Conta o sr.João Dor
nas Filho, em seus Apontamentos para a história da República (1942) , que
Campos Sales chegou a dizer desse sebastianismo: "Não é mais que sonho
Note-se, de passagem, que Pedro II fora por algum tempo, por deli
berado esforço e inclinação natural - como já indiquei em estudo sobre
o declínio do patriarcado rural entre nós -, aliado dos filhos-bacharéis e
não dos pais-senhores de engenho: a contragosto e por força da sua con
dição de imperador de um Brasil patriarcal e escravocrata é que se tornou
para os olhos da gente mais moça saída das academias de direito e medi
cina "a figura que simbolizava coletivamente todos os atributos paternos':
Como não era homem que remasse afoitamente contra a maré, o pobre
Pedro II - caricaturado pelos inimigos em Pedro Banana - resignou-se a
um papel que não era o de sua escolha nem o da sua disposição íntima.
Insistindo em falar em "geração parricida", o sr. Luís Martins nos pre
para o espírito para a sua teoria de sabor freudiano, segundo a qual a "re
beldia liberal, republicana e abolicionista" teria retomado, no Brasil,
1. Palavras de Sérgio Milliet apresentando o autor ao público que assistiu à primeira con
ferência, da série de duas, sobre O patriarca e o bacharel, na Biblioteca Municipal de São
Paulo, em 28 de setembro de 1944.
22 LUIS MARTINS
1. Mas nem todos os sociólogos pensam assim. Prefiro, aliás, a posição adotada por H. Hubert
e M. Mauss, discípulos de Durkheim, quando afirmam: "En sociologie, les faits de la psycolo
gie sociale et les faits de la morphologie sociale sont liés par des liens íntimes et indissolubles"
[Em sociologia, os fatos da psicologia social e os fatos da morfologia social estão ligados por
laços íntimos e indissolúveis. Trad. do Ed.] (H. Hubert e M. Mauss, Mélanges d'histoire des re
ligions, Félix Alcan, Paris, 1929).
26 LU!S MARTINS
perador D.Pedro II, que passou a simbolizar, mais do que nunca (já era,
pela situação de rei, um símbolo natural de paternidade) , a entidade pa
terna.Pedro II foi uma síntese de todos os pais particulares, polarizando
os ódios filiais da horda rebelde. Depondo-o e exilando-o, os filhos ex
travasaram o seu ódio ancestral, reconstituindo, de maneira menos selva
gem, o episódio dramático da horda primitiva, descrito por Darwin.Ora,
a conseqüência desse parricídio foi o remorso, de que nasceu a comuni
dade fraternal totêmica.Encontrar-se-ia, em situação análoga, o mesmo
remorso, a mesma contrição, entre os republicanos brasileiros de 1889?
Penso ter demonstrado que sim, estribado em documentação histórica,
que me parece ampla e convincente.Foi a esse sentimento que eu chamei
- talvez abusivamente para os ortodoxos da terminologia psicanalítica -
"complexo de remorso".
***
si les processus psychiques d' une génération ne se transmettaientpas à une autre, ne se con
tinuaient pas dans une autre, chacun serait obligé de recommencer l'apprentissage de la
vie, ce qui excluerait la possibilité de tout progrés et de tout développement3
3. Wilhelm Wündt (1832-1920), psicólogo alemão, um dos fundadores da disciplina e dos estu
dos experimentais da área. [Se os processos psíquicos de uma geração não se transmitissem à se
guinte, não continuassem em outra, cada um seria obrigado a recomeçar o aprendizado da vida,
o que excluiria a possibilidade de todo progresso e de qualquer desenvolvimento.] N. do E.
30 LUÍS MARTINS
Todo ser vivo se encontra sempre em estado permanente de ajuste. Todavia, ten
demos a passar por alto o fato de que nossas atitudes se referem de modo contínuo
ao mundo circundante porque, em condições normais estacionárias, utilizamos
geralmente modelos tradicionais de conduta. Porém, os modelos tradicionais de
conduta, como os costumes e as convenções, não são em si mesmos senão os resul
tados prévios de acomodações e ajustes realizados por nossos antepassados. As so
brevivências se explicam porque são respostas a situações críticas que ainda surgem
em nossa sociedade. ( Os grifos são meus.)
***
Sei bem que esta tentativa de conciliação não será suficiente para afastar as
dúvidas dos que não aceitam, como ponto de partida, a hipótese do assassina
to do pai da horda primitiva, postulada por Freud.Ora, nenhum homem nes
te mundo poderá, cientificamente, decidir definitivamente sobre a veracidade
de tal hipótese.Ela deverá ser aceita a priori, como matéria de fé.
Alguns sociólogos, aceitando embora certas conclusões da psicanálise
como contribuições ao conhecimento psicológico do comportamento
social, negam qualquer valor à sua metodologia.De um modo geral, in
vertem os termos do problema propostos pelos psicanalistas: não é o psi
cológico que explica o sociológico, é este que determina as condições em
que aquele se cria e desenvolve.
O PATRIARCA E O BACHAREL 31
4. Seria oportuno recordar aqui a correlação entre o microcosmo e o macrocosmo, que se
duziu Léo Frobenius. Segundo ele, a evolução individual repete as etapas da história da civi
lização, pois tanto os homens como a própria humanidade, em conjunto, são meros instru
mentos do Paideuma, essa misteriosa alma das civilizações, que é a própria essência da vida.
(Léo Frobenius, Le destin des civilizations, trad. N. Guterman, Gallimard, Paris, 1940.)
32 LUÍS MARTINS
***
Em muitos e muitos casos, a psicanálise pode abrir uma das portas de acesso à
compreensão dos processos sociais. Não será uma chave-mestra - uma gazua esperta
- para todas as portas, mas uma simples chave como as outras, com fins e possibilida
des específicos. Não creio que Luís Martins tenha desejado mais.
***
***
6. Luís Gonzaga da Silva Leme, Genealogia paulistana, tomo I, Duprat & Cia., São
Paulo, 1 903.
40 LUÍS MARTINS
muito lirismo de segunda mão melando tudo com suspiros e ais irre
mediáveis, e também bastante coisa interessante, a que me referirei.
Uma curiosidade de certa importância é o retrato de Prudente de Morais,
jovem, com uma dedicatória no verso, datada de 1879 e assim redigida:
7. Mas que não era dele. Era do clássico português Dom Francisco Manuel de Melo.
O PATRIARCA E O BACHAREL 43
A vida literária em São Paulo não ia mais na altura dos tempos de Álvares de Azeve
do, Bernardo Guimarães, Ferreira Viana, Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, po
etas, oradores e publicistas. Mas o nível da inteligência e da cultura não baixara: lá vi
viam e brilhavam, na Congregação da Faculdade, nas rodas acadêmicas, na imprensa e
nos clubes, José Bonifácio, Saldanha Marinho, Ferreira de Menezes, Joaquim Nabuco,
Rui Barbosa, Carlos Ferreira, Ramos da Costa, Brasílio Machado e outros. Castro Al
ves, com o seu "gênio elegante'; a todos se impôs. Nenhum estudante soube, como ele,
estreitar com vínculos de fraternidade a camaradagem acadêmica; nenhum inspirar
44 LUÍS MARTINS
8. Xavier Marques, Vida de Castro Alves, 2• ed.; Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, s.d.
O PATRIARCA E O BACHAREL 45
Cintra -
Duas coisas me unem muito estreitamente a ti - a amizade e a idéia que traze
mos sempre em mente - a República; a primeira, que guardamos no coração, será
conservada com toda sinceridade por mim, a segunda, nós juntos, trataremos de
procurar quem, unindo-se a nós, possam (sic) nos ajudar a trabalhar para o dia
da nossa redenção.
Já tenho dito de mais, pois daqui a duas horas vais deixar Pernambuco, quem
sabe se para sempre. Adeus. Um abraço em nossos irmãos.
Francisco Pitanga F 0
Recife, 1 2 de Novembro de 1 874.
com tua lúcida - mas modesta inteligência, estais fadado a seres em nosso país um
poderoso paladino da grande causa que pleiteamos e que, como sabes, foi o laço
que nos ligou em cordiais relações de amizade.
O BRASIL
Amigo Cintra
Para manifestar-te os sentimentos de verdadeira amizade que me inspiram tua
republicana individualidade, não recorrerei aos atavios e filigranas quintilinescas.
Falar-te-ei somente a linguagem singela e eloqüente do coração e cedendo ao seu
magnético impulso deixarei nesta folha de teu álbum, como eterna lembrança, esta
simples frase:
Apesar da divergência profunda que existe entre nossas idéias políticas e religiosas
crê - serei sempre teu amigo e admirador do teu belo caráter. Ah! Se todos os nossos
grandes homens fossem assim!
Recife, 16 de Novembro de 1 879
Tarquinio de Sousa Filho
Dr. Cintra
Católico e conservador, saúdo de coração ao livre-pensador e ao republicano
convencido e desvaneço-me em um dos admiradores de seu vigoroso talento e
excelente caráter.
José Augusto de Sousa Amarantho
Recife, 1 6 de Novembro de 1 879
AD US UM PRINCIPIS
10. Ministro da Marinha de D. Pedro II, o Barão de Ladário recusou-se a render-se ao Ma
rechal Deodoro da Fonseca no 15 de Novembro de 1889. N. do E.
José Pinto Ferreira de Oliveira Sampaio Ferraz
sem ter quem possa servir de vereador, nem servir cargo autorizado e só habitadas
de oficinas mecânicas, pescadores, marinheiros, mulatos, pretos boçais e nus, e al
guns homens de negócios, dos quais muito poucos podem ter esse nome.
1 1 . Toda revolução contra a ordem social começa pela revolta contra o pai. O absolutismo
constrói-se a partir da ordem familiar que dá o direito de vida e de morte ao pater-famí
lias. Wilhein Stekel ( 1 868 -1 940), psicanalista austríaco. N. do E.
1 2. O do Conde de Cunha.
52 LUIS MARTINS
Essa ligação, essa aliança, essa fusão dos nobres vindos d'além-mar com os nossos fa
zendeiros do interior, prova quanto a obra de adaptação rural, de conformismo rural -
em uma palavra, a obra de ruralização da população colonial, durante o III século, é rá
pida, vasta, profunda. Sente-se que o nosso tipo de homem rural - homo rusticus - com
os característicos com que o conhecemos hoje, já se vai modelando por esse tempo, e di
ferenciando-se cada vez mais do tipo peninsular originário. De maneira que nada há a
admirar ao vê-lo surgir, um pouco mais tarde, já no IV século, depois da independência
nacional, no governo do país, com a sua fisionomia inconfundível e própria. 13
13. Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil, 3• ed., Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1 933.
14. É o que reconhece um escritor de formação marxista, o sr. Caio Prado Júnior: "Tanto não
era apenas o regime de colônia que artificialmente mantinha tal situação, que abalado ele com
a Independência, vemo-la perpetuar-se. O Brasil não sairia tão cedo, embora nação soberana,
do seu estatuto colonial a outros respeitos, e em que o 'sete-de-setembro' não tocou" ( Caio
Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo, Liv. Martins, São Paulo, 1 942.)
O PATRIARCA E O BACHAREL 53
15. Hermes Lima, Tobias Barreto, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1939.
16. Lima Barreto, Bagatelas, Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro, 1923.
54 LUÍS MARTINS
"não são ciosos; e ainda que achem outrem com as mulheres, não matam a
ninguém por isso e, quando muito, espancam as mulheres pelo caso:' 1 7
Com esse espírito, com essa concepção do direito patriarcal do chefe
de família, é fácil de se conceber as proporções que assumiu a prepotência
do marido, do pai, do patriarca, na família colonial brasileira. Prepotên
cia que as condições sociais levaram a se exercer em forma sádica. Gilber
to Freyre, melhor do que ninguém, estudou o sadismo básico da socieda
de colonial, estimulado desde a infância pelo contato, pela convivência da
escravidão. É um ponto em que desejamos insistir.
Casos houve, numerosos, em que o pai exerceu contra os seus o que ele
interpretava tiranicamente como um direito: o assassinato. A crônica das
famílias coloniais apresenta vários desses tristes episódios. O mais comum,
entretanto, porque praticamente não sujeito a sanções penais, era a tortu
ra infligida aos escravos, propriedade privada dos senhores, que deles dis
punham como bem entendiam, inclusive tirando-lhes a vida. Para não fa
larmos de outros casos, mais ou menos conhecidos, basta lembrarmos que
ainda em 1886, às vésperas da libertação, quando a propaganda abolicio
nista já se apossara quase completamente da consciência do país, em pleno
Rio de Janeiro, ocorreu um desses monstruosos atentados, mais melancóli
co ainda porque dele foi autor uma senhora. 1 8
1 7. Gabriel Soares de Sousa, Notícias do Brasil, tomo II, Liv. Martins, São Paulo, s.d.
1 8. O caso provocou indignação. A Semana, o famoso semanário de Valentim Magalhães,
publicou sobre ele a seguinte nota, em seu número 60, de 20 de fevereiro de 1 886:
"Aos horrorosos sofrimentos infligidos pela sua senhora, sucumbiu, no dia 14, a escravi
zada Joana. No necrotério foi-lhe feita a autópsia pelos Drs. Tomás Coelho e Autran, mé
dicos da polícia, e o resultado do exame cadavérico foi já publicado em todas as folhas, o
que nos dispensa de reproduzir esse horror.
Tendo o sr. João Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, pedido autorização para ser
feito o enterro por conta dessa benemérita associação, e tendo lhe sido concedido, saiu o corpo
às 5 1/2 da tarde do dia 15 para o cemitério de S. João Batista, acompanhado por membros da
Confederação, com o respectivo estandarte, e por vários representantes de alguns jornais. A Se
mana fez-se representar pelos nossos colegas Filinto de Almeida e Henrique de Magalhães.
A beira da sepultura o sr. José do Patrocínio pronunciou uma breve e brilhantíssima ora
ção, que emocionou fundamente os assistentes.
Foi este o epílogo sombrio do pavoroso drama da Praia de Botafogo, drama que só por si
não chega a constituir uma cena da sanguinolenta e interminável tragédia da escravidão."
O PATRIARCA E O BACHAREL 55
Algo sumamente curioso, de que não havíamos suspeitado e que, não obstan
te, é bem natural. A agressão é introjetada, interiorizada, devolvida, realmente, à
região de onde procede: é dirigida contra o próprio "eu" incorporando-se a uma
parte deste, que, na qualidade de superego, se opõe à parte restante e, assumindo
a função de "consciência moral", exerce em relação ao "eu" a mesma agressividade
severa que o "eu", de bom grado, satisfaria em indivíduos estranhos. A tensão cria
da entre o severo superego e o "eu" subordinado ao mesmo, nós a qualificamos de
"sentimento de culpa"; manifesta-se sob a forma da necessidade de castigo24 ·
23. Freud, E/ ma/estar en la cultura, trad. de Ludovico Rosenthal, s. ed., Buenos Aires, 1 930.
24. Freud, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 57
punição imposta pelo superego, a vingança dos pais, a sua vitória final ex
plodindo no inconsciente de toda uma geração.
Evidentemente, eu não atribuo a proclamação da República à ação do
complexo de Édipo. Ela teve causas complexas e múltiplas. E seria arbitrá
ria essa distinção entre "geração de filhos" e "geração de pais" - pois todas
as gerações é claro que participaram igualmente das duas condições -,
não fossem as circunstâncias históricas do antagonismo em que aquelas
causas - econômicas, culturais, psicológicas - colocaram a maioria dos
brasileiros de certa categoria social (a categoria que influía nos destinos
do país) em relação aos seus pais, a partir de meados do século XIX. O
que eu afirmo é que, desde que as circunstâncias levaram os bacharéis do
século XIX a tomar, no campo político e social, uma posição prática e os
tensiva, contrária à dos patriarcas rurais, seus progenitores, criou-se uma
atmosfera propícia à manifestação, à ação, à exteriorização dinâmica do
complexo de Édipo, com todas as suas conseqüências dramáticas.
Encerremos, porém, este parêntese prematuro, que já vai longo. Importa
nos, no momento, frisar a relevância da organização doméstica das classes in
fluentes dominadoras na formação social e política do Brasil. Porque foram
elas, de fato, que modelaram a feição da nossa nacionalidade, senão em seu
aspecto substancial, profundo, ao menos na sua aparência estrutural. Ain
da em fins do século passado, dizia de nós Luís de Conty: "O Brasil não tem
povo''. Tem e tinha em 1822, mas ninguém o ouvia, todos se tinham acostu
mado a resolver seus problemas sem o consultar, sem auscultar suas opiniões,
seus desejos e aspirações. Realmente, a nossa história política, até talvez dias
muito recentes, não é a história do povo, tomado como coletividade indistin
tamente democrática, porém apenas a história de algu mas classes.
Era o que, com vivacidade, Tavares Bastos acentuava numa de suas
Cartas do Solitário: "Sim, há uma coisa que se esquece muito no Brasil: é
a sorte do povo; do povo que não é o grande proprietário, o capitalista ri
quíssimo, o nobre improvisado, o bacharel, o homem de posição" 2 5.
A razão desse esquecimento foi penitentemente posta em relevo pelo
sr. Gilberto Amado: "O povo brasileiro" escreveu,
25. A. C. Tavares Bastos, Cartas do solitário, 3• ed., Companhia Editora Nacional, São Pau
lo, 1938.
O PATRIARCA E O BACHAREL 59
não podia ser o milhão e meio de escravos, o milhão de índios inúteis que a con
tagem do governo reduziu, com evidente imprecisão, a quatrocentos mil apenas;
não podia ser os cinco milhões de agregados das fazendas e dos engenhos, caipi
ras, matutos, caboclos, vaqueiros do sertão, capangas, capoeiras, pequenos artífi
ces, operários rurais primitivos, pequenos lavradores dependentes; não podia ser
os dois milhões ou o milhão e meio de negociantes, empregados públicos ou par
ticulares, criados e servidores de todas as profissões. O povo brasileiro, existente
como realidade viva, não poderia deixar de ser apenas as 300 ou 400.000 pessoas
pertencentes às famílias proprietárias de escravos, os fazendeiros, os senhores de
engenho de onde saíam os advogados, os médicos, os engenheiros, os altos fun
cionários, os diplomatas, os chefes de empregos, únicas pessoas que sabiam ler,
tinham alguma noção positiva do mundo e das coisas e podiam compreender,
dentro de sua educação, o que vinham a ser Monarquia, República, sistema repre
sentativo, direito de voto, governo etc. 26
O sr. Hermes Lima, que cita em seu livro sobre Tobias Barreto essa lumi
nosa síntese do escritor sergipano, pôde concluir, completando e corrigindo
Luís Conty: "O Império não tinha povo, no sentido político da palavra''.
Quem dominou o Brasil até meados do século XIX foi o patriarca
rural. Ele que o governou, através de seus homens responsáveis. A orga
nização da família patriarcal transbordou assim dos limites exclusiva
mente domésticos, para modelar a sociedade brasileira a seu gosto, para
imprimir à nossa política o caráter de suas qualidades e seus defeitos.
Sendo a propriedade das terras um fator decisivo de classificação social,
era o fazendeiro o ponto culminante de nossa sociedade, cujo modelo
de vida servia de padrão ideal. É essa a tese do sr. Oliveira Viana, quando
diz que "a família fazendeira, tal como aparece no quarto século, é re
almente a mais bela escola de educação moral do nosso povo". 27 E tam
bém quando assevera:
26. Gilberto Amado, Grão de areia, Jacintho Ribeiro dos Santos, Rio de Janeiro, 1 9 1 9.
27. Oliveira Viana, ob. cit.
60 LUIS MARTINS
32. Gilberto Freyre, Perfil de Euclides e outros perfis, José Olympio Editora, Rio de Janei
ro, 1944.
66 LUIS MARTINS
***
33. Roger Caillois, El hombre y lo sagrado, Fundo de Cultura Económica, México, s.d.
34. Roger Caillois, idem.
35. Eder, visitando a Rússia em 1920, notou a abundância de bustos de Karl Marx, provi
dos de enormes barbas, e atribui-lhes um caráter patriarcal (Veja-se "Introdução" a este
livro). Quando, em 1942, escrevi a primeira versão de O patriarca e o bacharel, publicado
pela Revista do Arquivo Mu nicipal de São Pau lo, fazendo referência às barbas de D. Pedro
II, eu desconhecia por completo o estudo de Eder.
O PATRIARCA E O BACHAREL 67
Quem não sabe a existência desse terrível poder pessoal egoístico, dessa tirania, a
pior das tiranias, porque com a aparência de legalidade, tirania que, por não vibrar o
punhal, não dava ocasião ao grito de dor ou de revolta da vítima, mas que asfixiava sob
a pressão do cansaço, do abatimento, do esgotamento de forças? 38
Quem escreve estas linhas não é inimigo partidário nem desafeto pessoal do
Imperador; muito pelo contrário, assim como sempre fala respeitosamente do
chefe do Estado, desejaria poder ocupar-se da política do país sem envolver
a alta personalidade que a Constituição neutralizou tornando-a irresponsável.
Mas seria evidente hipocrisia comentar os grandes fatos, a arquitetura do rei
nado, sem considerar a ação do Imperador, que, se não é tudo em política, é
quase tudo. 39
39. Joaquim Nabuco, O erro do imperador, Typ. de G. Leuzinger & Filhos, Rio de Janei
ro, 1 886.
O PATRIARCA E O BACHAREL 69
40. O presente capítulo parece contradizer a tese do sr. Gilberto Freyre expressa em Sobra
dos e mucambos e mais explicitamente em Perfil de Euclides e outros perfis. Segundo o emi
nente sociólogo, no conflito psicológico travado entre o Pai e o Filho, isto é, entre a men
talidade conservadora e a rebeldia liberal, o imperador estaria decisivamente do lado do
último, aliado do bacharel contra o proprietário rural. Do Filho contra o Pai.
"Eis o que faltou à política do Império brasileiro", diz ele no segundo daqueles livros, "e
muito por falta do monarca: o embate de divergências; o branco e o preto, energias defi
nidas, uma ortodoxia brasileira mais forte contra o liberalismo europeu que sem contra
peso tornou-se absorvente e, afinal, exclusivo, através da revolta de Filhos contra Pais em
que D. Pedro II tomou ostensivamente o lado dos Filhos, deixando o povo brasileiro pra
ticamente sem Pais".
Mas a contradição é apenas aparente. O monarca brasileiro foi, de fato, nos primeiros
tempos, aliado natural da mocidade e um liberal avançado em sua época. Mas isto até um
certo ponto, até certo momento. Depois, já na velhice (e é o Pedro II da velhice que inte
ressa a este estudo), ele foi ultrapassado pelo seu tempo e se tornou, para o exagero parti
dário de seus contemporâneos, um símbolo de reacionarismo.
70 LUÍS MARTINS
brasileiro se sentia ligado a ele pelos laços desse sentimentalismo bem na
cional, que inventou os diminutivos carinhosos não raro piegas e as inti
midades derramadas que irritavam Machado de Assis.Era como se o pe
queno príncipe crescesse no meio de uma família grande.O clima afetivo
era o de uma fazenda ou engenho, em que o filho do senhor fosse confia
do à bondade dos escravos.
O menino cresceu e, embora imbuído daquela intimidade familiar,
não esqueceu que ele é que era o senhor.Alcançada a maioridade, os pa
péis se inverteram.O protetor, o poderoso, passou a ser ele.Conservou
se, porém, a mesma atmosfera afetiva, com a diferença de que, agora,
quem paternalmente afetava os outros era o rei.
Logo ao assumir o governo efetivo do país, Pedro II enviou aos rio
grandenses do sul, então revoltados, a seguinte proclamação, datada de 2
de agosto de 1840:
Rio-grandenses! Tendo entrado no pleno exercício dos meus direitos, como im
perador constitucional e defensor perpétuo do Brasil, por assim o pedirem a ne
cessidade do país e o desejo unânime da capital, com o qual ia de acordo o das
províncias, vi com mágoa profunda que um dos mais brilhantes florões da minha
coroa, a outrora província do Rio Grande, embaciara a minha menoridade. Im
possibilitado então por minha idade de dirigir-me aos meus amados súditos, não
pude prover remédios a queixas que porventura fossem então justas, mas ora tem
mudado de natureza. Agora porém a lei me faculta o falar-vos. Como pai comum,
cuja felicidade depende da de seus filhos, ouvi riograndenses, vozes que partem de
uma alma contristada. Tendes dilacerado as entranhas da pátria, movidos por pai
xões e interesses; e seduzidos por nomes vãos, em busca da liberdade quimérica,
tendes perdido a verdadeira liberdade, tendes preferido a sombra à realidade. O
meu imperial coração sangra-se à vista do encarniçamento com que irmãos se di
laceram; se nas mãos do poder humano está ainda o remédio a tantos males, contai
comigo, contai com o vosso patrício e imperador do Brasil. Se continuardes porém
surdos à minha voz, acabará o tempo da clemência e soará bem mau grado meu a
hora do castigo. A natureza deu-me um coração para perdoar-vos; o concurso da
nação inteira ministra-me forças para subjugar-vos. Aproveitai-vos, enquanto é
tempo, do que o coração vos oferece e temei de arrostar as forças do Império. Eia,
riograndenses, deponde aos pés do trono as armas fratricidas, vinde aos braços do
O PATRIARCA E O BACHAREL 71
vosso monarca, que, como o sol, luz até para o filho desvairado. - Imperador4 1 (Os
grifos são meus).
Não importa dizer que, provavelmente, não foi o próprio Pedro II o au
tor da redação.O possível redator interpretou seu modo de sentir.Aliás, a
proclamação, escrita num estilo juvenil, talvez não fosse destituída de ha
bilidade política, mas é impossível de se ler hoje sem um sorriso...
***
42. Veja-se a propósito o livro de Alberto de Faria, Mauá, Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1 933.
43. Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, vol. 2, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1 936.
74 LU!S MARTINS
44. Todo este capítulo talvez não agrade muito aos entusiastas de D. Pedro II, certamente
um homem dotado de belas qualidades morais, um brasileiro digníssimo, tolerante como
rei e irrepreensível como cidadão. Mas a história se relata com fatos e não com sentimen
tos pessoais. Como já tive ocasião de dizer, o defeito principal da Monarquia provinha da
própria instituição, e não das qualidades do monarca. Não se pode, honestamente, contar
a história do Império como se tem feito muitas vezes, isto é, atribuindo-se ao monarca to
dos os seus aspectos simpáticos e poupando-o em face de suas deficiências e erros. "Antes
de tudo'; reconheceu Joaquim Nabuco, "o Reinado é do imperador. De certo ele governa
diretamente e por si mesmo, cinge-se à Constituição e às formas do sistema parlamen
tar; mas como ele só é árbitro da voz de cada partido e de cada estadista, e como está em
suas mãos o fazer e o desfazer os ministérios, o poder é praticamente dele. A investidura
dos gabinetes era curta, o seu título precário- enquanto agradassem ao monarca; em tais
condições só havia um meio de governar; a conformidade com ele. Opor-se a ele, aos seus
planos, à sua política, era renunciar ao poder:' (Joaquim Nabuco, ob. cit.).
A Constituição do Império é que criara uma situação anômala e paradoxal, com o mito da
irresponsabilidade do imperador. A criação do Poder Moderador era uma excrescência ju
rídica. O monarca, pela Constituição, encarnava dois poderes, o Moderador, privativo de
sua pessoa, e o Executivo, de que era o chefe. "O imperador é o chefe do Poder Executivo e o
exercita pelos seus ministros de Estado'; rezava o texto constitucional. Mas como Poder Mo
derador ele estava isento da referenda ministerial. Pelos atos desse poder, portanto, os minis
tros não podiam ser responsabilizados. Mas nem sequer o próprio imperador o podia, por
que a Constituição o tornava intangível. Daí decorrerem situações absurdas, como a tratada
no discurso do Barão de Cotegipe, como presidente do Conselho, em sessão de 18 de agosto
de 1887, no Senado, referindo-se ao perdão de um condenado, devido à clemência imperial.
Acossado pela oposição, o presidente do Conselho assim se exprimia: "Sr. Presidente, desde
que assim penso; desde que estas são as minhas convicções e de muitos anos, que estranheza
podia causar ao nobre senador que, à pergunta que me foi dirigida daquela bancada: 'Quem
é o responsável?', eu respondesse: 'Ninguém! "' (Barão de Cotegipe, Discurso pronunciado no
Senado, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1887) .
Devemos reconhecer, portanto, que a própria Constituição poderia levar o monarca a uma
forma de quase absolutismo, de que aliás, é de justiça reconhecer-se, D. Pedro II, por incli
nação pessoal, esteve longe de abusar. Mas, por menor que fosse a sua índole absolutista, não
lhe deveria pesar aos escrúpulos o poder pessoal, sendo, como era, um exercício legal. É nes
ses termos desapaixonados que desejo colocar a questão.
IV. A questão religiosa
considerava o procedimento dos bispos como uma ofensa muito grave contra a
majestade do Império e, pessoalmente, contra a Coroa. Por isso foi que, muito
mais do que o Visconde do Rio Branco, chefe do governo e grão-mestre da maço
naria, tomou ele a peito o dissídio e impôs a jurisdição civil do Conselho de Estado
e do Supremo Tribunal, indo mesmo ao ponto de tornar conhecida a sua vontade
aos magistrados desse alto pretório. O Visconde, ao contrário, andava aflito por fa
zer as pazes com Roma, por meios diplomáticos. 45
Seria possível ver-se, na insólita demonstração de força, que chegava mesmo aos
limites do abuso, uma atitude ciosa do patriarca em oposição ao outro grande poder
patriarcal, a Igreja, exercendo-se por intermédio dos bispos. O mesmo conflito que
deve ter sido freqüente entre senhores de engenho e padres intrometidos, capazes de
levar o ardor apostolar até a coragem de censurar qualquer ato do potentado menos
de acordo com os preceitos cristãos. Na grande fazenda de D. Pedro II quem manda
va era ele. Ele era o pai dos brasileiros. E a Igreja, é claro, uma força rival.
45. J. Pandiá Calógeras, Formação histórica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1938.
46. Folha da Manhã, São Paulo: "Gilberto Freyre e Pedro II" (23-4- 1 944).
76 LUIS MARTINS
Frei Vital de Oliveira, bispo de Olinda, nascido e criado, como Euclides, em am
biente patriarcal de fazenda escravocrata, parece ter sublimado o apego à mãe em
extraordinário e talvez voluptuoso apego à Santa Madre Igreja; e o possível ressen
timento do pai - autoritário e identificado talvez com a imagem do imperador, do
Império maçônico ou da Maçonaria (sociedade só de homens ou só de pais) no
vigor ao mesmo tempo de filho revoltado contra o pai ( o imperador, o Império, a
maçonaria) e de pai contra pai - padre contra o governo civil - com que enfrentou
o mesmo Império e a mesma maçonaria, para ele decerto irritantemente masculi
na em sua composição e em sua ação social". 47
47. Gilberto Freyre, Sociologia, tomo II, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1 945.
O PATRIARCA E O BACHAREL 77
52. Rui Barbosa, "Introdução''. in Janus, O Papa e o Concílio, 2• ed, Liv. Acadêmica, São
Paulo, 1930. Janus (Johann Joseph Ignaz von Dõllinger, 1799-1890), teólogo católico ale
mão, foi excomungado pela Igreja. N. do E.
O PATRIARCA E O BACHAREL 79
tas, a realeza teria se originado no filho mais jovem da horda, que, re
cuperando a pujança fálica do pai, com ele se identifica e acaba com o
matriarcado. 53
Tanto o rei como o deus (da mesma forma o sacerdote, como seu re
presentante) são, portanto, encarnações da figura paternal.
É natural, portanto, o conflito. A libido filial só se pode prender a um
pai - não a dois ao mesmo tempo, pelo menos sob as mesmas formas.
Para que haja duas representações simultâneas da entidade paterna, é ne
cessário que uma seja a contrapartida da outra. Então a carga de senti
mento afetivo dos filhos em relação ao pai se bifurca em direções opos
tas. Porque esses sentimentos são ambivalentes, comportando ao mesmo
tempo o amor e o ódio. É necessário que duas imagens diferentes encar
nem os dois pólos opostos, porém de forma exclusiva.
Muito curioso a esse respeito é o estudo (que, aliás, nada tem a ver com
a psicanálise) de Roger Caillois sobre o carrasco, na França. O sociólogo
francês demonstrou que as representações coletivas fazem do carrasco e
do soberano figuras simétricas, colocadas nos extremos da sociedade, sujei
tas às mesmas interdições e gozando dos mesmos privilégios. "Le souverain
et le bourreau remplissent clone, l'un dans la lumiere et la splendeur, l'autre
53. Otto Rank, em sua obsessão de tudo explicar pela projeção do traumatismo do nas
cimento, vê a Pátria, a Nação, o Estado como transformações substitutivas e abstratas da
casa, da cidade protetora, do burgo fortificado, que seriam, por sua vez, interpretações
simbólicas, em fases sucessivas de evolução, do útero materno.
Daí, aproveitando a concepção de Freud, que faz derivar a vida política da história da hor
da primitiva, parte Rank para uma teoria ousada. Os filhos matam o pai para entrar na
posse da mãe, isto é, para voltar ao seio maternal. Mas, como isto não seria possível, cria
se a "mentira heróica" que, no mito e na lenda, faz com que apenas um filho, o mais jovem,
seja o assassino do pai, o seu substituto junto à mãe.
Esse motivo psicológico pode ser considerado como a razão decisiva da formação do Es
tado puramente masculino. Sob o ponto de vista social, com efeito, era necessário que um
só se identificasse com o pai e tomasse seu lugar, a fim de transpor a barreira constituída
pelo "matriarcado''. que tornara a mãe inacessível. O restabelecimento do poderio pater
nal efetua-se, assim, em favor do filho mais jovem, que será o chefe, o rei. Esse rei será alvo
de um sentimento afetivo ambivalente por parte de seus súditos; ele é protegido e venera
do, é "tabu''. enquanto representante da mãe, de outra parte, odiado, torturado e assassina
do, como representante do pai primitivo junto à mãe. (Veja-se Otto Rank, Le traumatisme
de la naissance, Payot, Paris, s.d.)
80 LU!S MARTINS
54. Roger Caillois, La communion des forts, Quetzal, México, 1943. [ O soberano e o car
rasco complementam-se portanto, um na luz e no esplendor, o outro, nas sombras e na
degradação, em funções cardinais e simétricas. Trad. do Ed.]
55. Idem. [Não é assim, surpreendente que sejam os dois objetos de sentimentos de horror e
de veneração, em que se reconhece claramente a natureza sagrada. Trad. do Ed.]
56. Theodor Reik (1888-1969), psicanalista austríaco. N. do E.
O PATRIARCA E O BACHAREL 81
A questão religiosa foi, afinal, uma criação artificial dos bispos, in
fluenciados pelo reacionarismo ultramontano do Syllabus. Como bem
acentuou Hermes Lima, não havia no Brasil clima propício a tais confli
tos.Em suma, a Igreja se colocava contra todas as conquistas liberais do
século, numa nostalgia absurda do absolutismo feudal.Mas,
zão, que denotaria fraqueza do governo a concessão da medida sem que os bis
pos levantassem os interditos; e retirou-se para São Paulo, em sinal de desagrado
à atitude do gabinete. No seu regresso, entretanto, o governo colocou a questão
no terreno da confiança, coagindo o monarca a consentir no seu exame. 6 1
6 1 . João Domas Filho, O padroado e a Igreja brasileira, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, s.d.
62. Poder-se-ia, a propósito da questão religiosa, fazer ainda uma outra observação. Gil
berto Freyre, no trecho do seu livro Sociologia, citado neste capítulo, alude, referindo-se
a D. Vital, "ao possível ressentimento do pai, autoritário e identificado com a imagem
do imperador, do Império Maçônico ou da maçonaria (sociedade só de homens ou só
de pais)"; com efeito, a maçonaria era uma instituição de essência patriarcal, a que a
Igreja se opunha, como força rival da mesma essência. E é curioso, a respeito, o que es
creveu Joaquim Nabuco, em 1 887, citado por João Domas Filho em seu excelente livro
O padroado e a Igreja brasileira e que aqui transcrevo em parte: "Nós, abolicionistas, te
mos procurado unir todos os elementos sociais em torno de nossa idéia, e se amanhã
do colégio de Itu, por exemplo, saísse um brado a favor da abolição, os próprios jesuí
tas seriam objeto dos nossos aplausos e reconhecimento. Mas, apesar disto, nada con
seguimos e ainda não houve no Brasil bispos que levantassem a voz contra a escravi
dão, como os houve para levantar a voz contra a maçonaria, apesar de estar a escravidão
mais condenada por bulas pontifícias - e até por concílios - do que a maçonaria".
Barão de Campinas, pai de Carmo Cintra
V. Evolução do pensamento liberal
O governo republicano é o melhor, é o que por sua essência mais convém a uma
Nação Livre, principalmente no solo americano. Neste governo todos os cidadãos são
iguais (perante as leis) e não se olha para seus vencimentos ou empregos; o homem vir
tuoso, sábio, literato, seja qual for a sua classe, é hábil para qualquer emprego, até para
ser presidente da República. Feliz o Estado que pode gozar semelhante governo! 64
63. Não podemos confundir a rebeldia colonial em face da coroa, o espírito de indepen
dência e de altivez que caracterizou certas insurreições nacionalistas, com o verdadeiro
espírito republicano.
64. Apud Hélio Vianna, em Contribuição à história da imprensa brasileira. Imprensa Na
cional, Rio de Janeiro, 1 945.
65. Veja-se o estudo citado do prof. Hélio Viana e também Um estadista do Império, ob.
cit. vol. 1 , p. 272-278.
86 LU!S MARTINS
66. Euclides da Cunha, À margem da história, Lello & Irmão, Porto, 1926.
67. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 87
68. Idem.
88 LUIS MARTINS
se a ausência de opinião, a falta de povo tiravam à nossa vida política seus aspectos à
inglesa, degradavam a política à mera atividade de grupos e abastardavam os pleitos,
não devemos perder de vista a função de classe que o governo parlamentar, aqui como
em toda a parte, foi chamado a desempenhar. Através das formas parlamentares, as
camadas dominantes imprimiam às suas divergências caráter constitucional. [ ... ] As
lutas políticas refletiam as transformações que se operavam na sociedade e que a divi
diam, de modo geral, em duas partes, a progressista e a conservadora. Em regra, o que
se chamava partido conservador mostrava menos entusiasmo por mudanças radicais.
Porém, em verdade, o que havia eram, nos dois partidos, grupos representativos dos
velhos e novos interesses e que se colocavam, sob influência dos mesmos, em atitudes
que objetivamente correspondiam a sentidos sociais diversos, até contrários. Quem
desejasse conservar, principalmente porque se achava ligado à propriedade territorial,
cuja exploração se baseava no elemento servil, podia sublimar esses interesses fazen
do do Conselho de Estado, do Senado vitalício, das prerrogativas do Poder Moderador
bandeira ideológica. Quem estivesse pelas mudanças, opunha-se àqueles símbolos.70
69. Machado de Assis, Páginas recolhidas, Livraria Garnier, Rio de Janeiro, s.d.
70. Hermes Lima, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 89
Aqui chego a um ponto em que sou obrigado a divergir não apenas de Gil
berto Freyre, como também de muitos outros estudiosos que se têm ocupa
do da nossa história.Segundo eles, D.Pedro II estaria com os tempos novos,
seria um aliado do liberalismo contra o conservadorismo, da cidade contra o
engenho, do filho contra o pai.Quanto a mim, acredito que as circunstâncias
históricas dividiram ao meio a personalidade do monarca.Criaram duas ima
gens.A primeira é a da juventude, da mocidade, até cerca da metade do século;
a outra, a da maturidade e da velhice.Não que essas duas imagens divergissem
realmente entre si; o ambiente é que se modificara em torno do seu vulto imó
vel.O ponto de referência era o mesmo; as perspectivas é que eram outras.
D.Pedro II foi ficando com os velhos tempos.Como ele não saíra do lu
gar, em breve os acontecimentos se foram distanciando.E, aos poucos, ele co
meçou a ser - justa ou injustamente, pouco importa - um símbolo vivo de
mentalidade retrógrada, de um estilo de vida ultrapassado, de uma concep
ção política anacrônica...
Pretender descrever o conflito inconsciente que se processou no sécu
lo XIX entre o homem rústico de um lado e o homem urbano do outro,
entre o fazendeiro e o bacharel, entre o pai e o filho, seria repetir o que já
se acha excelentemente feito por Gilberto Freyre nas páginas do seu livro
Sobrados e mucambos.Todo o meu esforço limitar-se-á a tentar demons
trar o paralelismo que se estabeleceu entre a decadência da idéia imperial
e a do patriarcado rural; de forma que, por fim, a luta inconsciente dos
7 1 . J. Pandiá Calógeras, Formação histórica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Pau
lo, 1 938.
90 LU!S MARTINS
72. "Essa eleição de 1860 pode-se dizer que assinala uma época em nossa história política;
com ela recomeça a vencer a maré democrática, que desde a reação monárquica de 1837 se
tinha visto continuamente baixar e cuja vazante depois da maioridade chegou a ser com
pleta. No Rio de Janeiro, a campanha foi ardente, entusiasta, popular, como ainda não se
vira outra; a mocidade tomou parte nela, o comércio subscreveu generosamente, o povo
dirigia-se de uma para outra freguesia capitaneado por Teófilo Ottoni, Octaviano, Salda
nha Marinho; e esse acontecimento tomou as proporções de uma revolução pacífica, que
tivesse finalmente derribado a oligarquia encastelada no Senado." (Joaquim Nabuco, Um
estadista do Império, ob. cit.)
O PATRIARCA E O BACHAREL 91
73. Desta vez não agiu Pedro II como seria seu hábito, segundo assevera o sr. Afonso de E.
Taunay: "Tinha o imperador por hábito escolher os candidatos do partido com que estava
no momento governando. E nada mais leal e criterioso." (O Senado do Império, Livraria
Martins, São Paulo, s.d.).
74. José Maria dos Santos, Os republicanos paulistas e a abolição, Livraria Martins, São Pau
lo, 1942.
92 LUÍS MARTINS
75. Apesar de toda a sua preocupação de desculpar o imperador, Joaquim Nabuco não
pode deixar de reconhecer, em Um estadista do Império, a má-vontade de D. Pedro II em
relação a Zacarias, inclinado como estava o monarca a sustentar Caxias, que abrira luta
com o gabinete.
76. Euclides da Cunha fala na "lenta ascensão do Partido Conservador, ostensivamente es
timulado por D. Pedro II''.
O PATRIARCA E O BACHAREL 93
Tito Franco indicava, logo depois, em 1 867, a causa única da decadência do país "no
polichinelo eleitoral dançando segundo as fantasias dos ministérios nomeados pelo
imperador''. Saião Lobato, antigo reacionário, caracterizava em frases vigorosas o con
traste da esplêndida arquitetura governamental com os vícios e abusos que a derran
cavam. José de Alencar comprometia a sua próxima escolha para ministro ferretoando
com aticismo incomparável todo o regime. Para José Antônio Saraiva, o paraninfo da
Liga em 1 862, o poder ditatorial da coroa era uma verdade só desconhecida pelos nés
cios ou pelos subservientes aos interesses ilegítimos da Monarquia.
Veja esta: há poucos dias, a Reforma disse que mais fácil seria ao Partido Liberal
unir-se com os republicanos do que com os conservadores. Uma folha monárqui
ca pode dizer isto? Um partido que diz isto pode querer o poder? 79
Com a extinção deu-se uma transformação maravilhosa. Este fato, diz o Relatório
da Comissão de Inquérito sobre o meio circulante em 1 860, teve um imenso alcan
ce, mudando completamente a face de todas as coisas na agricultura, no comércio,
80. A relação filho-parental é a base e o protótipo de toda aristocracia, a relação entre ir
mãos e irmãs, a forma primitiva da democracia. N. do E.
8 1 . John Carl Flügel ( 1 884- 1955), psicanalista inglês. N. do E.
82. Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, ob. cit.
96 LUIS MARTINS
83. Idem.
84. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, Compahia Editora Nacional, São Paulo, 1936.
O PATRIARCA E O BACHAREL 97
a maior parte deles formados em direito e medicina, alguns em filosofia e todos uns
sofisticados, trazendo com o verdor brilhante dos vinte anos as últimas idéias inglesas e
as últimas modas francesas, vieram acentuar, nos pais e nos avós senhores de engenho,
não só o desprestígio da idade patriarcal, por si só uma mística, como a sua inferiori
dade de matutões atrasados. 87
está nesse ponto em que o talento alcança o seu mais perfeito desenvolvimento;
um pouco antes é ainda o verdor da mocidade, um pouco depois é o declínio. Por
isso mesmo que ele sente em si qual seja a fase da mais completa expansão da in
dividualidade, é que o culto da velhice em política lhe parece exageração, uma su
perstição fatal, um preconceito de que só pode resultar, à imagem dos que o gover
nam, a decrepitude do corpo social. 88
Não receie o chefe da nação de confiar-se nos homens novos; está neles a força
real, embora os outros a tenham na aparência; quem pode ter a glória de ser o pri
meiro entre os homens não se contenta em ser o primeiro entre as sobras. 90
91. Sérgio Milliet, Roteiro do café, 3• ed., Dep. de Cultura, São Paulo, 1941.
100 LUIS MARTINS
92. J. F. Normano, A evolução econômica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Pau
lo, 1939.
93. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 101
e talvez se possa dizer até hoje, essas gerações de moços, espalhando-se anualmente
pelo país inteiro, levavam para o que se chamava nos banquetes de formatura "a vida
prática''. as miragens, as ilusões poéticas, o mau gosto artístico e literário, a divinização
da palavra, todo o divórcio entre a realidade e o artifício, que é, em suma, a própria es
sência do mal romântico. Vinha a infecção das miragens do Tietê e do Capibaribe e aos
poucos contaminava o Brasil inteiro.94
Enfim, pelos gostos, pelas idéias, pelas predileções políticas, pelas normas
de vida, pela profissão, pela própria conformação moral, o bacharel filho de
fazendeiro, desde meados do século XIX, assumiu posição contrária ao pai.
Entretanto, essa reação foi se processando aos poucos, de maneira quase in
sensível - era uma luta inconsciente. Exteriormente, os filhos continuaram a
ter o maior respeito pelos pais. Foi na campanha republicana, contra D. Pe
dro II, que essa reação antipaternal se concretizou em oposição a uma figura
que simbolizava coletivamente todos os atributos paternos.
95. Poder-se-ia argumentar que o 15 de Novembro foi uma revolução militar, feita por milita
res, e não por bacharéis. Responderei citando Eduardo Prado: "Muitos dos oficiais brasileiros
são apenas bacharéis de espada: eles prezam mais do que tudo as graduações do seu curso ma
temático, e o título de bacharel ou de doutor é por eles mesmo anteposto à designação das suas
patentes" (Frederico de S., pseudônimo de Paulo Prado, Fastos da ditadura militar, ob. cit)
e
/f �. f,I.
Do álbum de Carmo Cintra,
Lúcio de Mendonça e seus dois filhos
VII. O complexo
96. Sistema social que Mac Lennan descobriu em meados do século XIX. Suas formas
mais rudimentares existem entre os selvagens da Austrália. O livro de Prazer sobre o as
sunto, Totemism and exogamy, é hoje clássico.
97. Sigmund Freud, Totem y tabú, trad. de Luiz-Lopez Ballesteros y de Torres, Biblioteca
Nueva, Madrid, 1 934.
O PATRIARCA E O BACHAREL 107
A massa se nos mostra, pois, como uma ressurreição da horda primitiva. Assim
como o homem primitivo sobrevive virtualmente em cada indivíduo, também toda
massa humana pode reconstituir a horda primitiva. Devemos pois deduzir que a psi
cologia coletiva é a psicologia humana mais antiga.98
98. Freud, Psicologia de Ias masas y analisis dei yo, Ediciones Ercilia, Santiago, 1 937.
99. Idem.
1 00. Idem.
1 0 1 . Seria oportuna uma referência aos atentados políticos, nos quais vê o psicanalista Dr.
René Allendy a satisfação de impulsos inconscientes. "Le chef d'État incarne tout naturelle
ment l'image paternelle et sa puissance déchaine des vocations criminelles qui se rationali
sent comme elles peuvent" [O chefe de Estado encarna de forma completamente natural
108 LU!S MARTINS
viu levantar-se contra ele a mesma hostilidade, renovando-se as lutas, até que to
dos se convenceram de que deveriam renunciar à herança paterna. Então cons
tituíram a comunidade fraternal totêmica, cujos membros gozavam de todos os
direitos iguais e se achavam submetidos às proibições totêmicas, que deveriam
conservar a memória do crime e impor a expiação. 1 0 3
a imagem paternal, e seu poder libera vocações criminais que se racionalizam como po
dem. Trad. do Ed. ] . René Allendy, Le crime et les percersions instinctives, número especial
do Crapouillot, Paris, maio de 1 938.
1 02. Freud, ob. cit.
1 03. Freud, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 109
ele exerce, enfim, a mais nobre das ditaduras - aquela "ditadura da moralidade"
de que fala um historiador e que é, sem dúvida, a mais poderosa força de retifica
ção moral na ordem pública e privada, que jamais conheceu o nosso povo, desde
o primeiro século cabralino. 105
106. Emprego expressões de Artur Ramos: "A horda primitiva matou um dia o pai, em quem
enxergava um ideal, modelo temido e adorado. Sucedeu um período de turbulências e lutas
fratricidas, porque ninguém se atrevia a tomar o lugar do pai. Formou-se assim uma socie
dade fraternal totêmica, com o dever de expiar a morte do pai" (Artur Ramos, O negro bra
sileiro, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1940).
112 LU!S MARTINS
Sabe-se que mais de uma vez se negou que esses versos fossem de D.Pe
dro II.Que o Barão de Loreto, Carlos de Laet, ou outro qualquer monarquis
ta os tenha escrito, isto revela um fim político, o desejo secreto de explorar no
povo um sentimento de revolta contra os ingratos que fizeram a República...
"Ingratos" é mesmo o nome do soneto.Havia um propósito claro de criar
um estado de espírito propício à propagação do grande complexo...
Beijar a mão paterna era um dos gestos típicos de respeito filial.No
regime patriarcal monárquico, até quase ao fim do reinado de D.Pedro
II, o beija-mão foi um dos hábitos protocolares da Corte, cerimônia que
muito escandalizava os estrangeiros que nos visitavam.Consciente ou in
conscientemente, o soneto acentuava o símbolo parricida, mais uma vez
identificando a figura do imperador ao pai coletivo.
No soneto "Ã Imperatriz': o símbolo vem ainda mais claramente ex
presso:
1 07. Carlos de Laet, Predição-saudação, Leite Ribeiro & Maurílio, Rio de Janeiro, 1 92 1 .
1 14 LU!S MARTINS
108. Visconde de Ouro Preto, Advento da ditadu ra militar no Brasil, Imprimerie F. Fi
chon, Paris, 189 1 .
O PATRIARCA E O BACHAREL 115
O desgosto profundo que lhe abalou a alma, quando, há oito anos, o expulsou
do Brasil o motim dos quartéis; a agravação conseqüente de sua saúde de velho,
gasta abnegadamente, durante mais de meio século, em serviços inolvidáveis à ter
ra pátria; e, mais a ingratidão com que muitos retribuíram os benefícios de que seu
coração fora sempre pródigo - tudo concorreu para apressar o fim daquela vida
por tantos títulos preciosa. 1 1 0
109. Veja-se, por exemplo, o livro O imperador no exílio, Magalhães & Cia., Rio de Janei
ro, 1893.
110. Afonso Arinos, Notas do dia, Andrade, Mello e Comp., São Paulo, 1900.
111. Eder, em Jones, Ernest, Social aspects of psycho-analysis, Williams & Norgate Ltd.,
Londres, 1924.
116 LU!S MARTINS
As minhas idéias são todavia conhecidas; têm sido pregadas na tribuna, publicadas
na imprensa e podem resumir-se nessas palavras de Prevost-Paradol' 12 eu chamo bom
cidadão, ao rigor da palavra, aquele que não repele nenhuma das formas de governo
livre, que não suporta a idéia de perturbar o repouso da pátria em proveito de suas
ambições ou de suas preferências particulares, que não se inebria nem se indigna com
as palavras Monarquia ou República e que limita suas exigências a esse único ponto,
que a Nação se governe a si mesma, debaixo do nome de República ou de Monarquia,
por meio das assembléias livremente eleitas e de ministérios responsáveis.
que Ferreira Viana, tendo sido um espírito liberal, democrático na extensão da palavra,
independente de ligações monárquicas, reafirmou-se, depois da queda do Império,
nos sentimentos conservadores, fenômeno que, entre nós, aliás, não se deu só com ele,
mas também com outras notáveis personalidades de nossa elite intelectual. 1 1 3
[ ... ] mas instando o Imperador para que eu fechasse o livro com um poema origi
nal de minha lavra, "O sonhador profeta", e havendo nesse poema versos contra o
trono e a Igreja, pois sempre mantive a mais ampla independência de idéias polí
ticas e religiosas durante o Império - o que digo com sincero arrependimen to, para
penitenciar-me tardiamente! -, pediu-me Sua Majestade que modificasse um ver
so meu contra o papa. 1 1 5
117. Literalmente, jornada "dos tolos" ou "dos logrados". Referência ao dia 10 de novembro
de 1630, em que o rei da França Luís XIII, contra as expectativas, reitera sua confiança no
ministro Cardeal de Ríchelieu e elimina do jogo politico seus adversários. N. do E.
118. Euclides da Cunha, À margem da história, ob. cit.
119. Euclides da Cunha, Contrastes e confrontos, Ed. Literaria e Typographica, Porto, 1907.
O PATRIARCA E O BACHAREL 121
Eis aí: "estou velho, desalentado, desencantado. . .': Variação bem ca
racterística da frase de Saldanha Marinho. Creio que devemos procurar a
causa profunda desse desgosto do grande republicano, superficialmente
estimulado pelos seus reveses político-partidários, no obscuro subcons
ciente sentimento de remorso que amargurou a sua geração. E é curioso
lembrar que ele fora distinguido por D. Pedro II com a condecoração da
Ordem da Rosa, conforme se pode ver pelo seguinte documento:
nos tempos do Império a época feliz, a idade de ouro, para sempre aca
bada.Elogiar o imperador era outra forma de autopunição.O padre João
Manuel não perdoava Francisco Glicério por causa disto: "O sr.F. Glicé
rio", escrevia ele,
em vez de lavar-se das gravíssimas imputações que lhe são feitas, elogia com entu
siasmo a pessoa do ex-imperador, tecendo a mais fervorosa apologia de suas vir
tudes, encarecendo os méritos do seu reinado e exaltando o seu patriotismo, des
mentindo assim o seu passado de propagandista, que descarnava os vícios da Mo
narquia e expunha às massas populares a incapacidade e falta de patriotismo do
seu augusto representante. 1 24
É verdade que logo adiante ele acrescenta não ter tomado parte na
campanha republicana, permanecendo fiel ao imperador.Será que, por
essas alturas, a memória do velho político não o traiu? De qualquer for
ma, pela sua atuação destacada no período iniciado em 15 de novembro
de 1889, ele era e sempre foi considerado republicano histórico.
Aquela referência de Seabra a D.Pedro nos faz perguntar, como Anatole
France: "Mas afinal, se ele era tão perfeito, por que então o depuseram?"
Mas o tema desencantado tinha formas sutis de se manifestar. Em
relação a Lúcio de Mendonça, por exemplo, só ficamos sabendo que ele
Proclamada a República, o mais ardente sonho ... (aqui, por ser exata a expressão
da realidade, bem pode ser permitida a tão estafada frase) o mais ardente sonho de
toda a sua mocidade, não quis Lúcio ocupar nenhuma posição política de comba
te, o que tão bem se ajustaria à sua índole e qualidades de lutador. Depois de exer
cer alguns cargos burocráticos e de auxiliar a magistratura, veio afinal refugiar-se
nesta. Que se teria passado naquele nobre espírito, dominado sempre até a obses
são por estas duas idéias, que foram os lemas supremos de toda a sua vida: coerên
cia e independência? Menos feliz do que o trovador da Aquitânia, que, embalado
nos braços de sua princesa adorada, mas não possuída, ouviu, à guisa de consola
ção extrema, estes versos sonoros e de um conceito tão verdadeiro:
ele viveu muitos anos em íntimo contato, a familiarizar-se com o seu ídolo, cujos
defeitos e delitos, assim foi constrangido a conhecer. 1 2 7
1 26. Tu não conhecerás a sombria tristeza/ do ídolo, com que a gente se familiariza. Trad.
do Ed.
12 7. Discursos acadêmicos, publicação da Academia Brasileira, Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, 1 935.
O PATRIARCA E O BACHAREL 125
Restituído agora D. Pedro II à terra da Pátria, com os restos do seu corpo e a areia
do seu travesseiro, levanta-se na alma de alguns republicanos um grito de alarme:
131. Honoraldo Caldas, O marechal de ouro, T ip. Popular, Rio de Janeiro, 1898.
132. T homas Carlyle, History of Frederick II of Prussia called Frederick The Great, Dana Es
tes, Boston, 189.
128 LU!S MARTINS
133. Rui Barbosa, Queda do Império, Livraria Castilho, Rio de Janeiro, 1921.
130 LUÍS MARTINS
Sinceramente monarquista era eu, a esse tempo. Não por admitir pré-excelências for
mais desse ao outro sistema de governo - visível preconceito, apenas digno de fanáticos,
ignorantes ou tolos ( o que tudo, bem a miúde, não vem a ser senão nomes diversos de
um só estado mental); mas porque a Monarquia parlamentar, lealmente observada, en
cerra em si todas as virtudes preconizadas, sem o grande mal da República, o seu mal
inevitável. O grandíssimo e irremediável das instituições republicanas consiste em dei
xar exposto à ilimitada concorrência das ambições menos dignas o primeiro lugar do
Estado e, desta sorte, o condenar a ser ocupado, em regra, pela mediocridade. 134
E adiante:
nunca teve. O meu antagonista será capaz de apontar, entre as minhas expressões
de opinião, escritas ou faladas, uma só palavra que autorize contra mim o asserto
de superstição, ou sequer, de predileção republicana?
Documentos de superstição republicana encontrar-se-ão nos escritos daqueles
que sustentavam, ou sustentam, a pré-excelência da República, em princípio, ou
em essência, sobre as outras formas livres de governo.
Eu nunca o fiz. Eu, pelo contrário, afirmei sempre a indiferença das formas de
governo, a equivalência de todas as constituições, monárquicas ou republicanas,
onde se assegure ao povo o governo representativo e ao indivíduo o regime jurí
dico da liberdade. 1 37
Duas delas datam, até, de bem cerca da época em que se inculca haver-me Sua
Majestade trancado com veto irredutível os conselhos da coroa.
O ministério Lafaiete, nos seus últimos dias, solicitara para mim, ao imperador,
o título de conselho, alegando meus serviços ao ensino.
Estava bem longe das praxes e normas, àquele tempo, uma tal graça. Não se usa
va conceder senão nos casos taxados em lei, como os de ministros, diretores do Te
souro, membros do Supremo Tribunal de Justiça, magistrados de certa graduação
e antiguidade, professores do magistério superior com certo número de anos de
serviço. Não obstante, porém, ir contra o costume, não hesitou Sua Majestade em
colher o alvitre do gabinete, abrindo-se, assim, a exceção, até ali creio que única, ou
raríssima, da outorga do título de conselho por mero arbítrio imperial.
1 37. Rui Barbosa, Cartas da Inglaterra, Editora Saraiva, Rio de Janeiro, 1929.
132 LUIS MARTINS
Ora, apesar de todo o seu tardio afã em demonstrar que jamais fora
republicano, que era simplesmente um liberal, o fato iniludível é que Rui
Barbosa fez, ou ajudou eficientemente a se fazer, a implantação do novo
regime. Nesse mesmo documento em que faz tanta questão de salientar
sua indiferença às formas de governo, ele próprio é obrigado a reconhe
cer: "ainda após a ruína da Monarquia, ruína em que tamanha parte me
coube"; ou então: "acontecimentos fatais ao príncipe reinante, nos quais
tive sempre os papéis mais diretos"
Uma vez proclamada a República, Rui Barbosa se tornou figura proe
minente da situação. Ministro da Fazenda do governo provisório de Deo
doro, sua atuação é tão destacada que os mais severos ataques monárqui
cos são dirigidos contra ele.
Desde 1889 até 1923, ano de sua morte, ele é uma espécie de oráculo
do regime, a figura mais alta da política, onde representa e encarna a pu
reza dos princípios liberais. Seus discípulos assim o consideram.
Num dos melhores estudos feitos sobre ele, o sr. João Mangabeira,
que foi reconhecidamente figura brilhante do seu entourage, o proclama,
no próprio título, "O estadista da República". 1 39 Talvez o próprio Rui não
concordasse com esse título, preferindo o mais amplo e menos compro
metedor de "um estadista liberal':
A participação de Rui Barbosa na organização da República foi, sem
dúvida, de última hora, e sua adesão se parece quase à de Floriano - com
a diferença de que Floriano exercia um posto militar de responsabilidade
Poucos dias antes da revolução republicana de 1 5 de novembro foi que Rui Bar
bosa teve dela notícia clara. Imediatamente pensou em fazer francamente a decla
ração de que passava a republicano. Mas os revolucionários o dissuadiram disso,
mostrando-lhe que, se muita gente começasse a declarar-se republicana, o fato
constituiria uma advertência para o governo monárquico. 1 40
140. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, Calvino Filho, Rio de Janeiro, 1 933.
1 34 LUÍS MARTINS
Não é com o exemplo de uma ou outra injustiça, uma ou outra fraqueza, uma
ou outra pequenez do imperador que se lhe há de caracterizar o reinado e o
sistema de governo. O Império se definia com sua alta moralidade, a elevação
do crédito nacional e os grandes nomes que ilustraram o regime. A República
se debuxa com a extinção dos nomes nacionais, com o achatamento geral da
inteligência no governo e nos corpos deliberativos, com a ostentação habitual
da nudez nos escândalos reinantes, com a consagração da soberania da igno
rância, com a solene proclamação do princípio da competência da incapaci
dade universal nos chefes de Estado, nos ministros, nos partidos, nos árbitros
das situações, com a guerra, enfim, à j ustiça, enxovalhada com o título de di
tadura pelos mais servis cortesãos de todas as ditaduras do poder, das armas
e do Tesouro. 1 4 1
Declara o ministro da Fazenda que a minha candidatura foi recebida com desprew.
Não vale a pena discutir por que meios maravilhosos pôde assim conhecer, instantanea
mente, o sr. Barbosa as manifestações do espírito público reveladas em lugar não sabido,
e sobretudo a propósito de fato que não ocorreu, pois não me apresentei candidato por
parte algwna. Não foi o telegrama de 18 de dezembro, em duas edições, a única prova da
correção e gravidade do ministro da Fazenda, recebida pelo fio elétrico. 142
142. Visconde de Ouro Preto, Advento da Ditadura Militar no Brasil, ob. cit.
136 LUÍS MARTINS
O sr. Rui Barbosa telegrafou para a Europa dizendo que o imperador recebera ao
partir cinco mil contos que lhe dera a ditadura. O sr. D. Pedro II chegou a Lisboa a 7
de dezembro e a Europa soube que o sr. Rui Barbosa havia mentido em seu próprio
nome e no de seus colegas. 143
Assim se fechou, às vésperas da viagem eterna, a amizade com que, há cerca de sete
anos, me distinguia tão benévola quão generosamente. Documentos dela, guardo as
suas cartas entre os meus papéis mais preciosos, entre os que mais cativarão, talvez,
algum dia, o interesse de meus filhos. 1 45
143. Frederico de S. Eduardo Prado, Fastos da ditadura militar no Brasil, 2• ed., Revista de
Portugal, Porto, 1 890.
1 44. Frederico de S., ob. cit.
145. Rui Barbosa, Correspondência, Livraria Acadêmica, São Paulo, 1 933.
O PATRIARCA E O BACHAREL 137
A divergência que nos separou numa fase importante de sua vida e da minha
nunca alterou em mim o respeito que a sua alta personalidade me inspirava, nem
o reconhecimento pela distinção com que tão benevolamente me distinguiu, cha
mando-me à pasta do Império, no gabinete de 7 de junho.
Depois a dignidade admirável de sua atitude e a inquebrantável têmpera do seu
caráter, nesses vinte e dois anos de abstenção, com que tanto perdeu o país, au
mentaram constantemente uma estima de que me senti feliz em lhe dar mais de
um testemunho e que sinto a impressão de cumprir um grato dever, reafirmando
sobre o seu túmulo, honrado pela veneração de todos os brasileiros. 1 46
146. Idem.
X. Afonso Celso e Joaquim Nabuco
147. Não consegui encontrar, quer em livrarias ou sebos, quer na Biblioteca Municipal de
São Paulo, o livro que talvez fosse o mais expressivo de todos: Guerrilhas. Com efeito, em
sua obra Oito anos de Parlamento, Afonso Celso inseriu, à página 257, a seguinte nota: "So
bre a minha atitude republicana na Câmara e ulterior conversão ao monarquismo, vide
meu livro Guerrilhas, Tip. Morais, Rio de Janeiro, 1895, caps. 'Aos Srs. Anônimos'; 'Até 15
de Novembro'; 'Depois de 15 de novembro'; pp. 283, 297 e 313, em que explico os fatos
com minuciosidade e máxima isenção''.
140 LUÍS MARTINS
Com remorso, confesso que cheguei a atacar, não raro, o imperador na imprensa
e na tribuna, atribuindo-lhe a responsabilidade exclusiva de todos os nossos males,
e isto não só na fase demagógica da Academia, a diátese política do meu tempo.
Continuei depois de representante de Minas Gerais, na Câmara dos Deputados.
Fazia-o convencido, sem cálculo nem ambição. A prova é que publicamente me de
claro contrito e me alisto orgulhoso no número de seus mais fervorosos cortesãos, quan
do em vez de diadema, cinge-lhe apenas a fronte a coroa de espinhos da desgraça. 148
nenhum republicano confesso ali tinha assento. Dizia-se que Mata Machado, Felí
cio dos Santos, Vieira de Andrade, Silviano Brandão e João Penido, eleitos comigo
por Minas, eram republicanos. Nenhum deles, porém, fez profissão de fé republi
cana. Fi-la eu. No meu discurso de estréia, a 28 de fevereiro de 1 882, declarei que,
representante da nova geração, era republicano, adotando o manifesto de 3 de de
zembro de 1 870 etc. 150
***
1 5 1 . Afonso Celso, ob. cit.
142 LUÍS MARTINS
152. Álvaro Lins, Rio Branco, vol. !, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1945.
O PATRIARCA E O BACHAREL 143
Mas antes de nos deixarmos, vinde comigo depor estas homenagens, estes tro
féus, estes símbolos no altar que os deve receber. Espírito supremo daquele que me
ensinou a sentir o direito e querer à liberdade; daquele cuja presença íntima respi
ra em mim nas horas do dever e do perigo; daquele a quem pertence, nas minhas
ações, o merecimento da coerência e da sinceridade; emanação da honra, da vera
cidade e da justiça, espírito severo de meu pai... 1 54
1 53. Idem.
1 54. Rui Barbosa, "Rui Barbosa (coletânea)", in Estante Clássica da Revista da Língua Portu
guesa, vol. l , Rio de Janeiro, 1920.
1 55. João Mangabeira, Rui, o estadista da República, José Olympio Editora, Rio de Ja
neiro, 1 943.
1 56. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, Calvino Filho, Rio de Janeiro, 1 934.
144 LUÍS MARTINS
não lhe armei uma cilada; na humilde parte que me coube, o que fiz foi acenar-lhe
com a glória, com a imortalidade, com a perfeição do seu traço na história ... Nin
guém pode afirmar que, desprezando a abolição, ela se teria mantido, ou que não
teria degenerado ... A abolição, em todo caso, era o seu dever e ela recolheu a glória
do ato; deu-nos quitação.
Que seria feito na história da lenda monárquica brasileira se no mesmo dia se tivesse
proclamado a República e a abolição? Gratidão infinita pelo 1 3 de maio, isso sim, lhe
devo e deverei sempre; nunca, porém, reparação de um dano que não causei ... 1 62
160. Idem.
1 6 1 . Veja-se Discursos acadêmicos, publicação da Academia Brasileira, vai. 2, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1 935.
1 62. Joaquim Nabuco, ob. cit.
146 LUIS MARTINS
sua lealdade, sua correção.E faz questão de proclamar, até ao fim, o seu apego
à Monarquia extinta e a sua veneração pelo monarca desaparecido...
Esse é o drama secreto de Joaquim Nabuco, que talvez tenha passado des
percebido a seus contemporâneos, fascinados pela sua figura encantadora e
olímpica.Porque ele foi certamente, entre os homens de seu tempo, dos que
maior fascinação exerceram; não há quase depoimento de pessoas que com
ele privaram em que não se faça referência à sua beleza, ao seu charme, à sua
elegância, à sua capacidade de seduzir, de atrair e de se deixar amar.Parece,
todavia, que ele mesmo não se sentiu alheio a essa fascinação; de fato, não
nos podemos furtar à idéia de que, de seu feitio moral, fazia parte um doce e
complacente narcisismo, nada irritante, aliás, dadas a sua ternura natural, a
nobreza de sua vida e a superioridade de sua inteligência.
É duro pensar que tínhamos então, para representar a imagem do Brasil
aos olhos do estrangeiro, homens como Nabuco, Rio Branco e Rui Barbosa.E
hoje? A nitidez desse contraste creio que basta para nos dar uma idéia bastante
melancólica de nós mesmos.
Destas palavras finais não se conclua que também o autor se acha im
buído dos mesmos preconceitos saudosistas que vem procurando estudar
nos homens da primeira República...
Saudosista, sim, foi Joaquim Nabuco.Talvez o desgosto do seu drama lhe
tenha dado a nostalgia do passado.Referindo-se a Gomes de Castro, Barão de
Campo Grande, "quase inédita figura de sebastianista" que confessava ler ape
nas o Memorial de Santa Helena, ele diz:
Uma das coisas mais grotescas que existem neste mundo é a teimo
sia hereditária dos "pretendentes". Refiro-me aos descendentes das di
nastias depostas que não desistem da idéia de uma possível restauração,
proclamando obstinadamente seus direitos a um trono que não exis
te... Esses príncipes sem púrpura, esses reis sem coroa lembram certos
apaixonados platônicos que dedicam a vida toda à contemplação muda
das mulheres que amam em silêncio.Elas se casam com outros.Conhe
cendo o feitio inofensivo desses amantes espirituais, os maridos aca
bam por lhes permitir o flerte inocente, a fidelidade contínua e enlevo
sem conseqüência... Eles não se cansam, não desistem, não compreen
dem o ridículo de sua situação.Não abdicam.E morrem virginalmente
apaixonados, contentando-se apenas em olhar, em ouvir, em respirar a
dama de seus pensamentos...
As dinastias depostas acabam sempre apresentando exemplares per
feitos desses pretendentes inócuos.No Brasil, entretanto, um deles, de
temperamento mais ardente e voluntarioso, não se contentou com a
simples miragem desses devaneios cândidos.E andou tramando a esca
lada ao balcão da castelã de seus sonhos ...
De fato, D.Luís de Orleans e Bragança pensou seriamente em restau
rar o trono de seu avô nas terras de Santa Cruz.Não sei se chegou a haver
realmente uma conspiração organizada nesse sentido.O que sei me veio
da leitura de umas cartas suas a Martim Francisco, transcritas no livro
Contribuindo, desse descendente dos Andradas. Por elas se vê que aqui
mesmo no Brasil havia quem pensasse no assunto como idéia viável.
O príncipe a trata com uma freqüência que revela nele a existência de
uma quase obsessão restauradora.Assim, numa dessas cartas menciona
das, ele diz:
148 LUÍS MARTINS
Em outra carta chega D.Luís a detalhes maiores: "Não imagina': diz ele,
quanto me custa ficar aqui, de braços cruzados, quando penso que um punhado
de homens decididos bastaria para arrancar a Pátria das garras dos aventureiros
que a exploram.
Ainda não sei qual será a sua atitude na questão das candidaturas. Quanto a
mim, julgo ambos os candidatos "indesejáveis"; mas a ter de optar, optaria pelo
Rui, cujos partidários representam o elemento mais são e de maior prestígio no
país. Parece-me mesmo que poderíamos aproveitar o momento para um acordo
com os próceres desse grupo, a fim de conseguirmos um esforço comum pela res
tauração, logo após as eleições presidenciais. Que lhe parece? 1 65
Ora, esse Martim Francisco, que assim recebia provas de tamanha con
fiança do "pretendente" ao trono brasileiro, era nada menos que Martim
Francisco Ribeiro de Andrada, comumente chamado Martim Francisco
III, pra distingui-lo dos outros dois ascendentes seus do mesmo nome.
Ele foi um monarquista do tipo de Carlos de Laet, cheio de rabugice e sar
cástico desprezo pelas coisas do novo regime.
Acostumando-me a ler suas diatribes contra a República, surpreendi-me
quando, no livro do sr.José Maria dos Santos, Os republicanos paulistas e
a abolição, encontrei o relato de várias ardorosas façanhas republicanas do
espirituoso escritor santista. É assim que, segundo conta aquele historiador,
por ocasião da inauguração da linha férrea Ituana, que coincidiu com a fa
mosa convenção republicana de Itu, em 1873, foi Martim Francisco quem
mais inconvenientemente se portou durante o banquete oferecido ao pre
sidente da então província de São Paulo, o dr.João Teodoro.Ao banquete,
que fazia parte dos festejos comemorativos da inauguração da estrada de
ferro, compareceram vários líderes republicanos que se achavam em Itu
para a convenção, que se deveria realizar logo em seguida.
1 64. Apud Martim Francisco, Contribuindo, M. Lobato & Cia., São Paulo, 1 92 1 .
1 65. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 149
Conta ainda o sr. José Maria dos Santos que Martim Francisco, com
Silva Jardim, foi um dos principais fundadores de um clube republicano
em São Vicente.
Diante de tantas manifestações republicanas do intransigente monar
quista, fiquei na dúvida. Seria esse Martim Francisco o mesmo que re
cebia cartas tão íntimas de D. Luís? Escrevi, então, ao eminente mestre
Afonso de E.Taunay, que assim bondosamente me respondeu:
[ ... ] A alusão do sr. José Maria dos Santos refere-se a Martim Francisco III, autor
do Rindo, Contribuindo e outros gerúndios sobremodo interessantes. Com efeito,
foi ele exaltado republicano e dizem até que em 15 de novembro mandou espe
daçar o retrato do imperador que estava na Câmara de Santos e foi salvo pela ati
tude de Júlio Conceição, voltando a figurar ultimamente no Paço daquela cidade.
Lá por 1 900, Martim voltou a ser monarquista também exaltado, disse horrores da
República, como por exemplo no interessantíssimo "Enterro de Brasilina Améri
ca" (no Rindo). Não creio que haja conspiração com D. Luís, se o fez foi conspira
dor platônico ou pelo menos bisonho. É verdade que conspirou contra Floriano
Peixoto, o que lhe valeu muitos meses de cadeia e bons sustos.
1 66. José Maria dos Santos, Os repu blicanos pau listas e a abolição, Livraria Martins, São
Paulo, 1 942.
150 LUÍS MARTINS
***
1 67. Oliveira Lima, Memórias, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1937.
O PATRIARCA E O BACHAREL 151
intransigente como Robespierre mas não incorruptível como ele, referiu-se a mim
como "o nosso companheiro que nos abandonou". 1 68
***
Não tenho elementos para saber, com certeza, se o padre João Manuel
repudiou a República, voltando à Monarquia. O certo é que ele também
se mostrou desencantado . . .
O padre João Manuel é autor de um discurso que se tornou célebre.
Quando, no dia 11 de junho de 1889, o gabinete Ouro Preto apresentou
se ao Parlamento, aquele deputado, pedindo a palavra, terminou sua vio
lenta arenga dizendo: "Abaixo a Monarquia e viva a República! "
Foi um escândalo. O Presidente da Câmara teve que intervir, proibin
do manifestações das galerias. No recinto, os aplausos misturaram-se a
numerosos e veementes protestos. O Visconde de Ouro Preto, presidente
do gabinete, levantou-se impetuosamente para revidar:
"Viva a República, não! Não e não! "
Pois esse padre assim tão turbulento parece não se ter dado muito
bem com a República que, pelos modos, também não foi a de seus so
nhos. Assim é que apenas dois anos depois do 15 de Novembro, em 1891,
já ele escrevia, em sua maneira desabusada:
1 72. Idem.
XII. Conclusão
social, porém, apenas psicologia tou t court. Psicologia tou t court porque o
fenômeno analisado seria incapaz de interação social.Tratar-se-ia quiçá
de casos isolados, embora provocados por estímulos comuns, que estabe
leceram certa constância e certa unidade de sintomas, porém sem nenhu
ma atuação eficaz no meio social em que se manifestaram.
Mas, realmente, não penso assim. Porque, de fato, acredito que o que
denominei "complexo de remorso" agiu, tomando formas generalizadas
capazes de influir dinamicamente na sociedade brasileira, produzindo ou
modificando certos fenômenos que assinalarei.
Seria pretender demais atribuir exclusivamente às conseqüências do
complexo de Édipo, manifestadas num episódio da história brasileira, gra
ves transformações na fisionomia moral do nosso povo.No máximo, caso
se aceitem os fatos aqui mencionados, poderíamos considerar esses efeitos
numa geração.Essa geração viveu atormentada pelo "complexo de remorso''.
Sua instabilidade nervosa manifestou-se em constantes comoções armadas,
golpes de estado, lutas fratricidas, discussões acerbas, acusações recíprocas.
Pelo contágio e pelo exemplo, entretanto, essa geração imprimiu às se
guintes a mesma inquietação que a caracterizou.O Império foi um lon
go período de paz, apenas perturbado por pequenos intervalos de luta. A
República foi precisamente o oposto.
Vivemos, depois de 1889 (principalmente durante a primeira Repúbli
ca) , num clima permanentemente revolucionário, sempre ameaçados de
levantes armados.Evidentemente, não penso em atribuir toda essa insatis
fação a causas meramente psicológicas.Devemos levar em conta motivos
sociais ponderáveis.Mas creio não exagerar supondo que, por baixo deles,
havia uma fermentação surda, subterrânea, inconsciente. Os homens de
1889 implantaram no Brasil, por culpa do seu inquietante complexo, uma
atmosfera de nervosismo e inadaptação."Em política", diz Mannheim, "o
elemento racional está estreitamente ligado ao irracional." 1 73
Depois da proclamação da República, os brasileiros, fatalizados pe
los acontecimentos de que foram atores, ficaram forçados, pelos miste
riosos impulsos do superego, a encontrar um substituto do pai sacri-
173. Karl Mannheim, Ideologia y utopia, trad. de Salvador Echavarria, Fondo de Cultura
Económica, México, s.d.
O PATRIARCA E O BACHAREL 157
pois de sua deposição e morte. Nas camadas mais incultas do povo, o mito
imperial sobreviveu às novas formas de constituição política do Estado.1 74
Estabelece-se assim, por força dos poderosos resíduos de culpa que fi
caram no subconsciente popular, a ressurreição do Pai.E só aos poucos
essa mentalidade se desvanece diante das novas contingências sociais que
vão criando uma nova forma de consciência.Quando chegarem a extin
guir para sempre o fantasma do velho patriarca, numa sociedade estru
turada em bases fraternais, os brasileiros começarão, enfim, a viver num
regime verdadeiramente democrático.
Como se viu, aqui não adotamos uma rígida subordinação à teoria
dos impulsos, independente do tempo histórico e de sua corresponden
te situação social. Se no Brasil se criou e se desenvolveu o sentimento
de culpa inerente à consumação do sacrifício do Pai, é porque as condi
ções peculiares à mentalidade colonial proporcionaram uma "consciên
cia patriarcal", possibilitando assim a completa analogia entre a rebeldia
filial dos bacharéis e a dos filhos da horda primitiva. Pouco importa que
seja discutível a existência real desse episódio sanguinário da pré-história
humana. Aceitamos aqui a sua existência como um "fato" no sentido -de
simbolizar uma situação e um estado de espírito. Para nós, tenha ou não
ocorrido o assassínio coletivo descrito por Darwin, a verdade é que sub
siste a "situação psicológica" que ele encarna e simboliza. Mito ou realidade,
o que interessa é sua ação social. Como se vê, bem longe estamos de qual
quer ortodoxia psicanalítica, que tudo subordina à atuação de impulsos
libidinosos.Dissemos, na introdução, que o episódio da horda seria utili
zado como "hipótese de trabalho".E assim foi.
Sem a estrutura econômica da colônia, que fez do pater-familias um
senhor quase absoluto em seus domínios rurais, o complexo de Édipo te
ria tido, em seus filhos, uma projeção normal. Não criaria aquela hostili
dade aguda, que apenas se saciaria num ato de violência.
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166 LUÍS MARTINS
para traçar estas linhas nas primeiras páginas do teu - Álbum - e, se o fiz, foi
só para satisfazer o teu pedido, do contrário procuraria a última página, e não
a primeira, que deve ser guardada para uma pena, que não fosse tão baldada
de recursos intelectuais.Enfim, mandaste, e obedeci.
Como teu grato e sincero amigo
Francisco Nicolao Schmidt
Itu, 5 de Outubro de 1869
AMITIÉ
Meu Cintra: Queres que eu escreva alguma cousa no teu Álbum! Eu que
nada sei! Que vou fazer? Marear as douradas páginas do teu Álbum...Quisera
conhecer a linguagem dos poetas para assim escrever uma cousa que fosse digna
de ser lida, v.g. uma epopéia! Mas eu que nem sem lira rachada tiro... é muito
difícil satisfazer ao teu pedido...Mas como lembrei-me agora do ditado - Inter
amicos non est geringontia - animo-me a dizer duas palavras.Amigo: Eu creio
no progresso.A humanidade caminha sempre apesar de tudo, somente seu mo
vimento não é tão rápido como se pensa. Tu entras agora na vida, meu Cintra,
cheio de esperanças. Sentes a ambição legítima, e as aspirações elevadas, esses
incentivos que abrasam a imaginação de todos os mancebos dotados como tu,
de talento, de espírito, e de sentimentos nobres. Prepara-te para as decepções da
175. "Por teus cuidados que consolam, és tu que nos alivia,/ Tesouro em toda parte, alegria
em qualquer dia,/ Os céus te fizeram para o homem e as emoções de teus encantos,/ São
nossos últimos prazeres, são nossos primeiros cantos". Trad. do Ed.
176. Deve provavelmente tratar-se de Jean François Ducis, poeta trágico francês, nascido
em Versalhes em 1733 e morto na mesma cidade em 1816. Adaptou para a cena francesa,
as principais tragédias do grande poeta inglês.
O PATRIARCA E O BACHAREL 171
***
José: Queres que eu trace algumas linhas em teu Álbum?! Mas como,
se sou ignorante? Nada sei! Tenho apenas um coração para corresponder a
nossa amizade fraternal! Ah! Irmão! Quisera possuir a imaginação de Gon
çalves Dias, A. d'Azevedo, Magalhães e outros para assim deixar em teu Ál
bum uma canção de amizade! Mas nem tudo é como se deseja. O que posso
fazer, Irmão, é escrever esta palavra Amizade - essa preciosa dádiva que o
nosso Altíssimo deixou: palavra essa que nem na fria lousa do sepulcro dei
xarei de pronunciar.
Teu irmão e fiel amigo
Joaquim Pinto da Silveira Cintra177
***
Querido Mano:
Não posso escrever em teu Álbum coisa que preste, já pela escassez de inteli
gência, e já por haver há pouco largado do ABC por isso limito-me ao seguinte.
Sempre direi - José é meu fiel amigo, e igualmente eu sou dele.
177. Segundo informa Silva Leme, esse irmão de Carmo Cintra formou-se em medicina
em Bruxelas, foi deputado provincial, elegeu-se deputado geral em 1889, não chegando
a empossar-se em virtude da queda da Monarquia. Já na República foi eleito deputado à
constituinte do estado de São Paulo.
172 LUIS MARTINS
O que julgo escrever com mais acerto nesta página, e com letras grandes é
esta palavra: Nada.
Teu
Felício Pinto de Alencar Cintra
***
FOLHA SOLTA
A meu amigo José Pinto do Carmo Cintra
Amigo Cintra.
Se os meus desejos se converterem em realidade, há de o meu amigo encon
trar neste mundo todas as felicidades humanamente possíveis.
ltu, 18 de Novembro de 1869
Francisco Antonio Barbosa
***
Meu Cintra.
A mocidade é rápida como o tufão, e a vida tão cheia de incertezas, que
o que hoje nos sorri amanhã se desvanece. O que então nos dulcifica as má
goas da existência são as horas que gastamos a relembrar o passado, nas de
silusões do presente.
Quando assimfor, leia esta página do teu Álbum: é pobre de eloqüência, mas
é rica de afetos. Guarda esta mesquinha lembrança do,
Amigo
José Innocencio do Amaral Campos
ltu, 25 de Novembro de 1869
***
174 LU!S MARTINS
***
O PATRIARCA E O BACHAREL 175
Amigo Cintra
Há no mundo objetos, que prendem corações e os tornam amigos; entre
nós foi o elo da amizade.
Teu sincero e grato amigo
Augusto de Freitas Lima
ltu, 26 de Novembro de 1869
***
Amigo Cintra
Cônscio de minha acanhada inteligência, jamais poderia expandir, como
desejava, as palavras de afetos e amizade que vos tributo, limito-me unica
mente a desejar-vos do fundo d'alma um porvir risonho e prazenteiro. Peço
lhe que nas horas tardias de teus refletidos cismar[ es] lance um vislumbre de
saudades a este que foi e será
Teu menor criado
Francisco d' A. Pompeo
ltu, 28 de Novembro de 1869
***
Dear Cintra
If human supplications are heard by the Almighty, you shall have, by mine
one shiningfuture filled with pleasures and enchantment. 1 78
Of your friend
Luiz de Anhaia Mello
***
178. Há um certo truncamento neste texto em inglês. Aparentemente, o autor quis dizer
algo como: "Caro Cintra /se os pedidos dos homens são ouvidos pelo Todo-Poderoso,
você terá, como peço eu, um futuro brilhante, repleto de prezeres e encantos,/do seu ami
go/ Luiz de Anhaia Mello." N. do E.
176 LUÍS MARTINS
Amigo Cintra
Amizade, esse sentimento nobre e sublime, não pode ser descrito por mi
nhafraca pena; mas ao menos posso querer descrevê-lo.É este sentimento que
consagra-te, em rigor, este teu fiel amigo e colega
Bento José de Mesquita
***
Cintra
Como teu amigo que sou, não posso deixar de pegar em minha fraca
pena, não para deixar em teu Álbum palavras eloqüentes, mas para com
minhas toscas expressões dizer duas palavras. Ei-las: Amizade! Ó Santa
Amizade! Dádiva preciosa que o nosso Supremo legou-nos, sois vós que
presidis nossos corações. Praza a Deus que nunca se corte o laço que une
nossos corações.Amigo, em tuas horas de vigílias lance um golpe de vista
nesta página, é mesquinha de saber, mas rica de puros sentimentos.Aceite
o coração, e um saudoso abraço de quem muito te estima, e estimará até
a hora da morte:
Severo de Camgº Campos
ltu - Novembro de 1869
***
Cintra
Uma das primeiras virtudes é a amizade, por isso, não tendo senão uma in
teligência curta e uma fracapena, não posso dizer tudo quanto desejo, o que pos
so vos afirmar é que sou e serei sempre
Teu Amigo sincero
Álvaro Dias Ferraz da Luz
***
Cintra
Escrever num Álbum é coisa muito séria, por isso mesmo que vamo-nos
expor à crítica austera de todos aqueles que passarem os olhos por estas pá
ginas; porém aceitando a honra que me dás ofertando-me teu Álbum para
O PATRIARCA E O BACHAREL 177
A INFÂNCIA
* * *
Amigo Cintra.
Baldo de recursos intelectuais, não posso pois deixar em teu - álbum - um
bonito pensamento; visto isso, o que posso fazer é exclamar com o poeta:
1 79. Na primeira edição do livro, Luís Martins aponta com sics seis incorreções no fran
cês de Paulino Pacheco Jordão. Os versos corretos de Voltaire são: "O divine amitié! féli
cité parfaite,/ Seul mouvement de l'âme ou l'exces soit permis,/ Change en bien tous les
maux ou !e ciel m'a soumis;/ Compagne de mes pas dans toutes mes demeures,/ Dans
toutes les saisons, et dans toutes les heures:/ Sans toi tout homme est seu!; il peut par
ton appui/ Multiplier son être, et vivre dans autrui./ Idole d'un coeur juste, et passion
du sage,/ Amitié, que ton nom couronne cet ouvrage!/ Qu'il préside à mes vers comme il
regne en mon coeur!/ Tu m'appris à connaitre, à chanter !e bonheur." (Numa tradução
livre, "ó divina amizade, felicidade perfeita/ Único movimento da alma onde o excesso
O PATRIARCA E O BACHAREL 179
Praza aos Céus que nossa amizade nunca se acabe, e que mesmo na fria
lousa do sepulcro pronunciemos esse doce nome: Amizade! Cintra, o que es
crevi é mesquinho, porém com a ajuda do poeta Voltaire tornou-se rico de
puros sentimentos. Em tuas [ horas] de vigília lança um golpe de vista nesta
página que encontrarás nela prova de sincera amizade, e gratidão.
Paulino Correa Pacheco Jordão
Itu, 29 de Novembro de 1869
***
Cintra
Queres ouvir um canto, jovem mancebo? Escuta
seja permitido,/ Transforma em bem todo o mal a que o céu me submeteu!/ Companheira
de meus passos em todas as minhas moradas,/ De todas as estações, e de todas as horas,/
Sem ti todo homem está só; ele pode com teu apoio/ Multiplicar seu ser, e viver como ou
trem./ ídolo de um coração justo, e paixão do sábio,/ Amizade! Que teu nome coroe esta
obra;/ Que presida aos meus versos como reina em meu coração,/ Tu me ensinastes a sa
ber como cantar a felicidade." N. do E.
180 LUIS MARTINS
***
Cintra.
Como o - Álbum - é um porta-lembranças; se algum dia percorreres suas
folhas para recordar-vos dos teus amigos, entre eles encontrarás o nome do mais
humilde de todos.
Pedrinho Dias
Itu, 30 de Novembro de 1869
***
***
***
O PATRIARCA E O BACHAREL 181
Cintra
Conquanto não haja entre nós aquela célebre amizade que eternizam os
nomes de Pylades e Orestes, Theseo e Pirithous, Pythias e Damon, Dubrenil
e Picheméjá, sou dos que te consagram amizade sincera; por isso com muito
gosto aceito a honra que me fazes em querer que meu obscuro nome seja es
crito numa página de teu Álbum.
Itu, 30 de Novembro de 1869
José Alves Corrêa
***
Cintra
Desde a primeira vez que te conheci, simpatizei tanto com a tua pessoa
que de então para cá senti por ti verdadeira amizade, que considero uma
forte cadeia, cujos elos se acham presos ao meu coração...Não poderei duvi
dar que sou retribuído da mesma maneira, porque as provas contínuas que
me tens dado são bastantes para acreditar. Portanto, partindo para seguir o
brilhante futuro que te espera, não posso deixar de vir saudoso manifestar-te
com estas insignificantes palavras o meu sincero reconhecimento como tri
buto de íntima amizade e ao mesmo tempo desejando-te todas as felicidades
deste mundo.Nunca te esqueça pois do
Teu amigo e criado
Miranda Russo
***
***
182 LUIS MARTINS
Estimado Disdpulo
É a saudade essa mimosa paixão d'alma, e por isso tão sutil que equivo
cadamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É
um mal de que se gosta, e um bem de que se padece. Pelo que diremos que
a saudade é um suave fumo do fogo do amor; não necessita de larga ausên
cia; qualquer desvio lhe basta para que se conheça.Assim prova ser parte da
união de todas as coisas amáveis e semelhantes. Fica gravado para sempre
no coração de vosso preceptor a lembrança do digno discípulo Cintra.
Itu, Dezembro de 1869
Joaquim Mariano da Costa
***
Cintra
Eu vi uma pura verdade num álbum e aqui reproduzo-a, e que bem
depressa a pessoa que escreveu esse pensamento tão grandioso, abandonou
uma amizade que devia apreciá-la, e espero que outro tanto não nos acon
tecerá, por isso que trarás na memória esse pensamento que aqui transcrevo.
''.A amizade é um nó gordio que as mais das vezes é cortado pela espada da
intriga." Aceite um apertado abraço do teu amigo.
Alfredo Alves Corrêa
***
Querido Cintra
Amizade! ó santa Amizade! Palavra doce de se procurar gozar - doce
de se pronunciar! Praza o nosso Onipotente que nossos corações estejam
sempre unidos como hoje. Em tuas horas de repouso lance um vislumbre
de saudades ao teu amigo que sempre vos estimou e estimará até a hora
da morte.Adeus...
Getulio Alves Corrêa
***
O PATRIARCA E O BACHAREL 1 83
Querido Irmão.
Quisera conhecer a linguagem de Madame de Sevigné, de Mme. de
Maintenon e outras para deixar em teu - Álbum - um bonito pensamento,
porém nem tudo que se deseja consegue-se! Deixo então em teu - Álbum -
uma descriçãozinha do que ontem me aconteceu, porém desde já previno-te
que não posso seguir o que recomendou Boileau quando disse: "Soyez riche
et pompeux dans vos descriptions1 8º ''. A aurora vinha encantadora e pura,
os passarinhos, alegres, saltitando de ramo em ramo, apitavam seus sonoros
gorjeios; então eu contemplava a natureza procurando reviver o passado nas
desilusões do presente - quando de repente vi reboar o trovão, o céu tornar
se negro, o tempo pluvioso, os passarinhos alegres calarem-se como calam-se
ao rugido do leão depois que empolga a presa! E quereis saber o que motivou
tudo isso? Eu to digo: - foi o lembrar-me que em breve partes para a Corte! . . .
porém vais gozar duma vida de flores e encantos; digo isto com experiência,
pois o melhor tempo é o do Colégio, embora tenha-se às vezes alguns dissa
bores. ..por ver que se acha ausente da pátria minha etc. etc. Mas tudo isso
nada é, o tempo passa tão rápido como o tufão, e os anos que passa-se no Co
légio tornam-se em dias; isto talvez não te aconteça agora, mas ainda acon
tecerá. Esta é a esperança que dulcifica minhas mágoas; visto isso que te sirva
também, enfim, meu Irmão, logo ver-te-emos reconstituído aqui.
Em tuas horas de descanso lance um olhar de saudades nesta página que en
contrarás palavras de amizade, ou para melhor dizer - de verdadeira irmã.
S. Antonio, 1 6-1-1 870
Maria Joaquina de Morais Cintra
***
Meu Primo
Aceitando uma página do seu Álbum, não possofazer outra coisa senão dei
xar nela meu humilde nome. A amizade é a dádiva mais preciosa que temos nes
te mundo de espinhos, e dores, e como tributo-lhe-a atrevo-me a pegar na pena,
molhá-la na tinta, e sobre esta página escrever estas palavras: Amizade Sincera.
Partes logo para a Corte a fim de ultimar seus estudos, pois praza nosso Criador
que encontre na vereda que pretende mil fiorinhas das mais purpurinas que pos
sa-se encontrar. Concluo aqui meu desalinhavado e insignificante escrito sentin
do sinceramente que no Álbum do meu primo coubesse uma página a quem vive
completamente afastada da brilhantefalange de talentos.
Sua prima que muito o estima
M.do Carmo Pinto
16 de Janeiro de 1870
***
Meu Primo
Não possuo a imaginação de Castro Alves, Varella e outros para deixar em
teu álbum uma canção de amizade; não tenho o pincel de Angelo para aqui dei
xar um bouquet de flores; só tenho a palavra amizade, vale mais que todas as
riquezas mundanas. Partes logo para a Corte a fim de conquistar esse grande te
souro: ciência! Pois praza o nosso Todo-Poderoso que traga de lá uma coroa de
louros; eu, como não tenho essa felicidade, aqui fico maldizendo a sorte. Meu
primo: é tarde, e muito tarde, temo perder no recinto de minha obscuridade;
aqui fica uma página rabiscada, agradeço-vos a honra que me destes em ofertá
la; Morpheo bate à porta, repousemos.
Teu primo que muito te estima e estimará
Pedro Elias Pinto
***
O PATRIARCA E O BACHAREL 185
Meu Primo
Aceitando uma página de teu Álbum não escreverei nela uma poesia, por
que esse dom ou antes raio da divindade tem sido parcamente concedido só a
Gonçalves Dias, Varella e Bernardo Guimarães, que têm sabido entre outros
poucos falar essa sublime linguagem. Não tendo cultivado a literatura, o meu
espírito recente-se da aridez da carreira que sigo. Bem sabes que o espírito é
como o espelho, que reproduz as imagens dos objetos que lhe ficam em frente,
assim pois o espírito em seus prismas mostra a fonte onde bebeu os conhecimen
tos. Outra coisa não poderia escrever que algum mal digerido texto de direito,
isto é o que de mais enfadonho existe; não escreverei. Se ao menos eu pudesse
como A. Herculano pintar os sentimentos do coração com as cores tão vivas que
ele empregou no Eurico ou como Angelo pudesse no retrato duma flor, ou num
desses sublimes quadros da natureza, pintar as melancolias de minha alma,
ou finalmente como C. Gomes pudesse exprimir em inspiradas notas o que vai
nesta alma! ... Mas pobre advogado da roça, sem ter penetrado o santuário per
mitido aos que tem gravado na fronte a centelha divina - inteligência -, nada
mais posso fazer do que gravar meu nome. Se porém não tenho uma coroa de
poeta, uma alma de escritor, o pincel de Angelo; nem mesmo como os povos
d'Arábia perfumes para vos oferecer, tenho ao menos casta, a singela expressão
- amizade. Ela vale mais que todas as riquezas dos avarentos Cresas; ela faz do
homem muitas vezes feroz um humilde cordeiro. Não há dor, tristeza, contra
riedade que se não mitigue quando vemos um amigo compartilhando nossos
sentimentos, e nem há satisfação para o coração quando ele goza só. Enquan
to lerdes estas linhas não sentirás a eletricidade do gênio, ao menos esquecerás
tuas mágoas. Nenhum merecimento teriam os grandes frutos dos gênios, nem
admiração causaria a virtude dos mártires, se todos fossem iguais. Assim ne
nhum valor teriam as páginas do teu Álbum e nem atenção chamariam as lin
das poesias que ele contém, e sublimes pensamentos que aí estão, se não inutili
zasse esta página. Desculpa; nãofoi propósito de ofazer. Bem conheço a escassez
de meu espírito, todavia não quis recusar ao teu pedido. Não pertenço à escola
dos que, não podendo obter o sublime, nada querem. Não! - aceito o imperfei
to, e procuro aperfeiçoar. Não te deixando uma página brilhante, deixo uma
rabiscada. Vale a intenção que foi a de dar-te o melhor, o Sublime.
S. Antonio, 12 de Fevereiro de 1870
A. F. A. Cintra
186 LUIS MARTINS
***
José.
Como em breve uma grande distância tem de mediar-nos; e há tantas cir
cunstâncias que impedem o homem de manter contínuas relações epistolares
com os amigos ausentes; e ao mesmo tempo queres que eu manche teu álbum,
faço-vos o seguinte que renovarei, ao menos em desejo, todas as vezes quefor pri
vado de escrever-vos; esperando que tu me desculparás essas faltas renovando a
recepção desta. Invejo-te, meu primo, quanto licitamente posso invejar-te!... Vais
sulcando as ondas neturninas prestar na Corte um culto a Minerva! Estais na
primavera da infância; os raios d'aurora científica começam a dourar a vasta e
verde campina de tua inteligência; a estação estial de tua vida é um dosfocos em
que a humanidade concentra suas esperanças. Cultivas um solo tão vasto como o
Oceano, tão fértil como a margem do Nilo: a árvore aí plantada será tão frondo
sa como a do cedro do Líbano. Tudo te enche de esperanças, tudo te promete um
risonho porvir!... Beatus venter qui te portavit 1 8 1 • Oxalá que eu tivesse a mesma
felicidade que tu! Então seria convosco um trabalhador, um conquistador dessa
riqueza, Ciência! Mas como não a tenho, aqui fico lamentando-me; tu porém
vai, corre, voa com rapidez de seta; atravessa a atmosfera, deixa a esfera terrestre
e entra na desse astro luminoso, dominador do mundo intelectuat mas lá nessas
alturas, não te esqueças de baixar os olhos sobre este humilde inseto, que embora
vague por entre as trevas, terá sempre a honra de ser teu primo
João Baptista de Campos Cintra
Paineira, 16 de Fevereiro de 1870
***
Amigo Cintra.
O que poderei dizer-vos eu que venho acabrunhado de uma grande viagem
de Minas para esta heróica província de S. Paulo, vossa cara província, cheia de
esperanças, e que aguarda um grandioso futuro? Sim, Cintra, há dezesseis anos
freqüento a feira de Sorocaba, tendo-me dedicado ao comércio de animais com
muita assiduidade; e ora volto para minha cara província onde deixei minha
cara esposa e meus seis filhinhos, entre os quais dois estão bebendo as águas da
ciência, tendo de seguirem se for gosto dos mesmos a carreira que segues, e estou
certo que a educação é o primeiro passo que os pais devem dar aos seus filhos,
por isso que deves desde já ser grato ao vosso pai., meu caro Senhor, que não pou
pa sacrifícios para que vos eduque, e quando concluíres teus estudos virás enfim
beijar grato as mãos paternais, e uma lágrima de júbilo correrá por tuas faces,
tendo ao teu lado vossos amigos, entre os quais, se possível for, contarás com este
que muito te estima e preza ser teu amigo
afetuoso e menor criado
Joaquim Victor de Souza Meirelles
***
Meu amigo
Amizade, esseforte elo que prende nossos corações, não pode ser descrito por
minha fracapena, qual a do Pintassilgo! Triste é a posição do homem ignorante!
O que possofazer aqui é deixar meu humilde nome, e quando o meu amigo per
correr as páginas deste álbum achará nesta o nome daquele que sempre o esti
mou e estimará até quando sua boca entreabrir para soltar os últimos suspiros.
Adeus
José Franco do Amaral
***
Caríssimo Cintra
Peço-te permissão para escrever algumas linhas em teu álbum.Acho tão
doce traçá-las porque enfim a isso obriga-me a próxima saudade, porque
188 LUIS MARTINS
vais partir. Recorro pois ao livro de minhas recordações para ver se encontro
toscas expressões que possam ser depositadas em teu álbum, como prova de
amizade.Escrevendo estas linhas, eu poderia copiar de teu coração mais de
um traço, que faria sobressair a minha nova amizade predileta; mas há sen
timentos que amam o silêncio, como há flores que se abrem durante a noite
e se fecham ao raiar a luz do dia.Deixe-me ao menos (como já fiz) escrever
teu nome querido, na primeira destas linhas.A amizade é o drama eterno,
é a chama que arde sempre.Se se dispersa é para reconstituir-se mais longe;
se se extingue, é para renascer de suas cinzas; se o facho da civilização vacila
em uma atmosfera impura, é no centro da amizade que readquire a sua luz.
Ali está a origem de todos os sentimentos, de toda a verdade e finalmente da
inteira virtude.
***
DESPEDIDA
***
QUEIXUME!
Tenho medo de empunhar a pena para traçar algumas linhas em teu Ál
bum, porém como vou escrever frases arrancadas do fundo do coração, pen
so que não sairão melodiosas como a cachoeira que se despenha precipitada
da pedreira. Escrever? O que hei de escrever? É uma pergunta que não deve
fazer a mocidade, e sabes por que, meu Cintra? Não sabes, porém eu te direi:
O PATRIARCA E O BACHAREL 191
***
Amigo Cintra!
***
AD USUM PRINCIPIS"'
Lúcio de Mendonça 1 8 3
S.Paulo, Agosto de 1873
* * *
1 83. Pela primeira vez nos defrontamos, no álbum de Carmo Cintra, com um verdadeiro
escritor. Lúcio de Mendonça é um nome conhecido: foi autor de vários livros e animador
principal da fundação da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira Fagundes
Varela. Morreu ministro do Supremo Tribunal Federal. Pela primeira vez, também, depara
mos no álbum com o tom revolucionário republicano, de que se encontrarão adiante ou
tras ressonâncias.
O PATRIARCA E O BACHAREL 195
Cintra,
A ti o meu derradeiro adeus, as minhas primeiras saudades. Deixo para sem
pre esta doce ilusão da vida acadêmica, esta perfumada manhã de tantos sonos,
dourados sonhos que circularam em torno de nossa fronte, como abelhas em tor
no da colméia fecunda.
Aos poucos, eu o sei, todas estas caras recordações ir-se-ão apagando.
Outros destinos nos chamam, novos laços tendem a substituir os antigos.
Ontem era pura fraternidade que só a Academia de S. Paulo soube manter,
era esse ansiar contínuo pelo infinito desconhecido. Hoje são os pesares da
separação, a presciência, talvez de que nunca mais tornaremos a ver tanta
coisa que amamos. Amanhã. . . quem sabe o será! A luta das paixões apa
gando, talvez, esse nobre devotamento por tudo que nos faltava ao coração e
ao espírito. De todo esse desastre procuremos salvar uma coisa, ao menos, a
nossa amizade; procuremos estreitá-la continuamente pela prática de ações
dignas dos sentimentos que alimentamos e das aspirações que tivemos, de
maneira que em cada um de nós cresça, se é possível, esse sentimento de
mútuo apreço e de simpática afeição. A ti, o meu derradeiro adeus, pois que
foste o último dessa altiva e dedicada falange de amigos sinceros que en
contrei nesses belos arraiais da mocidade acadêmica de S. Paulo. Eu sei que
neste momento um justo pesar enluta a tua alma generosa. Isto aumenta
também a tristeza do meu adeus, mas não diminui a confiança que tenho
em teu futuro. Procura a tua vocação, segue-a com verdadeiro entusiasmo,
luta como um espírito valente e vencerás necessariamente. Quanto a mim,
hei de longe bendizer todos os teus esforços, e guardar a lembrança do tem
po que passamos juntos.
São Paulo, 5 de Novembro de 1873
Candido Drummond Furtado de Mendonça1 84
***
Cintra.
Na última hora da tua partida o que posso dizer-te? Sabes que sou teu ami
go, e crê - quando abrires o teu álbum verás uma de suas folhas ocupadas por
mim - e então lembrar-te-ás das nossas reuniões, segredos, prosas. Adeus, meu
Cintra, e desejo-te milhares de felicidades.
O teu amigo ex carde
A.Sanchez
***
Cintra.
Duas coisas me unem muito estreitamente a ti - a amizade e a idéia que
trazemos sempre na mente - a República; a primeira, que guardamos no co
ração, será conservada com toda a sinceridade por mim, a segunda nós jun
tos trataremos de procurar quem, unindo-se a nós, possa nos ajudar a traba
lhar para o dia da nossa redenção.
Já tenho dito demais, pois daqui a duas horas vais deixar Pernambuco, e
quem sabe se para sempre. Adeus. Um abraço em nossos irmãos.
Francisco Pitanga Filho
Recife, 12 de Novembro de 1874
O meu nome abaixo desta linha lembrará ao Cintra que ele me encon
trou em um dia de sua vida -
M. Fernandes Barros
Recife, 12 de Novembro de 1874
***
O BRASIL
* * *
Meu Cintra: em álbuns só devem escrever amigos; por isso aqui assino
o meu nome que testemunhará sempre que sou teu amº e que sempre de ti
me recordarei.
J.Palma
***
Amigo
O que será possível escrever em teu álbum, eu pobre de inteligência, que
nada sei, que tudo ignoro? Mas, se não escrevo, é certo que garatujo, e ao meu
propósito é quanto basta, porque, assim me exibindo, faço sacrifício, e quem
faz sacrifício dá provas de amigo. Pois bem - assim digo-te: que com tua gran
de alma, com o teu grande desinteresse, com tua lúcida mas modesta inteli
gência, estais fadado a seres em nosso país um poderoso paladino da grande
causa que pleiteamos e que, como sabes, foi o laço que nos ligou em cordiais
relações de amizade, colocando-nos ao lado um do outro - mas para chegar a
isto cumpre que sejas sempre atento e vigilante - a fim de evitares as ciladas
e os enganos que de necessidade haveis de encontrar no grande mundo, cujas
portas se vos abriram. Refleti que o homem empenhado pelo triunfo de uma
grande idéia - assemelha-se ao navio em luta com as tempestades do oceano
- e então para evitá-las basta o olhar seguro e severo do que comanda. Eis o
que te posso dizer de momento - para ter ocasião de escrever o meu nome em
uma folha do teu álbum - onde brilha tanta luz e tanta graça.
Recife, 21 de Novembro de 1879
Joaquim S.Cisneros d'Albuquerque
***
AO BRASIL
***
***
***
Se encontrares um tropeço
Nessa jornada de glória,
Seguro caminha avante
Que alcançarás a vitória.
***
***
Meu Cintra:
Abraço-te. Afastado de ti nas convicções políticas, minha alma se ajoelha
respeitosa ante o teu talento e o teu caráter: nos tempos que correm a amizade é
uma nota que se troca no primeiro banco defalsidade que se encontra, ou então
é uma letra sacada aos interesses do futuro, eu me felicito por seu teu amigo, é
uma honra que me eleva, sendo meu nome repetido por ti nasfileiras democra-
202 LUÍS MARTINS
tas, onde a verdade e a justiça serão sempre o móvel de teus atos. Sêfeliz e não te
esqueças do teu contemporâneo e
amigo certo
J.Monteiro Peixoto
Re.18 de Novembro de 79
***
Cintra
É provável que não nos vejamos mais; lá estarei, porém, no meu Pará para
aplaudir os teus talentos, o teu caráter e os teus nobres esforços pela nossa cau
sa política.
Peço-te que te lembres um pouco do
Amigo, col. e correligionário
Amazonas d'Almeida
***
Amigo Cintra
Para manifestar-te os sentimentos de verdadeira amizade que me inspi
ram tua republicana individualidade, não recorrerei aos atavios e filigranas
quintilinescas.Falar-te-ei somente a linguagem singela e eloqüente do cora
ção e cedendo ao seu magnético impulso deixarei nesta folha de teu álbum
como eterna lembrança esta simples frase:
***
Dr. Cintra,
Católico e conservador, saúdo de coração ao livre pensador e ao republicano
convencido, e desvaneço-me em ser um dos admiradores do seu vigoroso talento
e excelente caráter.
Recife, 16 de Novembro de 1879
José Augusto de Souza Amarantho
***
***
Cintra
É sempre duro ao coração do amigo a separação do amigo e a ausência
da pessoa que estimamos é muitas vezes funesta à amizade. Não digo sem
pre, porque quando a amizade é profunda e sincera, nem o tempo que tudo
destrói nem a ausência que tudo faz esquecer, nem a distância, o longo in
tervalo dos mares e a incerteza da volta, é capaz de enfraquecê-la. Não temo
pois pela constância de tua amizade, e se escrevo estas linhas não é para que
nunca te deixes de lembrar do amigo, que aqui fica, mas para dar-te teste
munho do quanto te estimo e expansão aos sentimentos q nutro a teu respei
to e me transbordam d'alma. Sê feliz no meio dos teus e permita Deus que
204 LUfS MARTINS
* * *
Caro Cintra
Ao apagar-se essa fase de nossa vida boêmia cheia de tão gratas recorda
ções revela-me consagrar em teu Livro Querido - uma lembrança do nosso
conhecimento: se não é ele o fato mais eloqüente da vida, que ontem deixei, é
ao menos o que mais profundamente desafiou ao coração o princípio da fra
ternização, porque simboliza a minha homenagem ao teu caráter reto e se
gura inteligência: essa dualidade preciosa que te levará bem longe. Pois bem,
quando algum dia, cansado do Combate das dificuldades que se apresentam
ao homem de letras no Brasil, lembra-te do sábio preceito - que o mérito e
o trabalho têm sempre uma recompensa na consciência social, e prossegue.
Agora um pedido: quando levares a vista por estas páginas cheias de tanta
sinceridade, porque vem da mocidade, não te esqueças daquele que ao dei
xar o teu Amparo levou a alma enlutada de saudades, mas o coração con
victo da grandeza desse bom povo, e então tinhas o mesmo mundo de emo
ções que acomete
O Teu do Coração
Antonio Madeira
Amparo, 16 de Novembro de 1880
Este livro foi impresso no inverno
de 2008, na Prol Gráfica, em fonte
Minion, corpo 1 0,5, entrelinha 14.