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Luís Martins

O patriarca
e
o bacharel
Livros do autor

Romances
Lapa, Rio de Janeiro, Schmidt, 1936 (1ª ed.); José Olympio, 2004 (2• ed.)
A terra come tudo, Rio de Janeiro, Schmidt, 1937
Fazenda, Curitiba, Guaíra, 1940
A girafa de vidro, São Paulo, Martins, 1971 (prêmio Jabuti)

Memórias
Noturno da Lapa, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964 (1ª ed.; prêmio Jabuti);
São Paulo, Vertente, 1979 (2 ª ed.); Rio de Janeiro, José Olympio, 2004 (3• ed.)
Um bom sujeito, São Paulo, Paz e Terra, 1983

Crônicas
Futebol da madrugada, São Paulo, Martins, 1957
Noturno do Sumaré, São Paulo, Cultrix, 1961
Ciranda dos ventos, São Paulo, Moderna, 1981

Poesia
Sinos, Rio de Janeiro, edição do autor, 1928
Cantigas da rua escura, São Paulo, Martins, 1950
Novas cantigas, São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1973
Traduções (poemas franceses), São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1975

Infantil
Viagens de Guri-Guri, Rio de Janeiro, Selma, 1934

Crítica de arte
A pintura moderna no Brasil, Rio de Janeiro, Schmidt, 1937
Arte e polêmica, Curitiba, Guaíra, 1942
A evolução social da pintura, São Paulo, Col. Departamento de Cultura, 1942
Di Cavalcanti, São Paulo, MAM-SP, 1953
Os pintores, São Paulo, Cultrix, 1960
Introduções a Di Cavalcanti, 50 anos de pintura, São Paulo, Aleksander Landau, 1971, e
Portinari, São Paulo, Aleksander Landau, 1972

Ensaios literários
Uma coisa e outra, Rio de Janeiro, MEC- Serviço de Documentação, 1959
Homens & livros, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1962
João do Rio, uma antologia, Rio de Janeiro, Sabiá-MEC, 1971 (l• ed.); José Olympio, 2005 (2' ed.);
Suplemento literário, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1972

Didático
São Paulo, Rio de Janeiro, Bloch, 1976

Ensaio
O patriarca e o bacharel, São Paulo, Martins, 1953
Luís Martins

O patriarca
e
o bacharel

2-ª edição
Copyright © 2008 herdeiros de Luís Martins, representados por Ana Luísa Martins
Primeira Edição: Livraria Martins Editora, 1953

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza


Editora Assistente: Marília Chaves
Assistente de Produção: Luciana Santoni, Pedro Henrique de Oliveira
Projeto gráfico: Clarissa Boraschi Maria
Diagramação e capa: Gustavo Temo Fujimoto
Revisão: Vivian Miwa Matsushita, Luciana Santoni
Imagem da capa: Revista Ilustrada, 21 de janeiro de 1882. Rodolfo Dantas, chefe da oposi­
ção [e monarquista], põe D. Pedro no chão, enquanto o Garoto da Revista e o índio bra­
sileiro riem da cena, de camarote. Desenho de Angelo Agostini.
CIP-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M341p
2.ed.

�artins, Luís, 1907-1981


O patriarca e o bacharel / Luís Martins. - 2.ed. - São Paulo : Alameda, 2008.

Apêndice
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-98325-68-2

1. Pedro II, Imperador do Brasil, 1825-1891. 2. Brasil - História- Século XIX.!. Título.

08-1513. CDD: 981


CDU: 94(81)

16.04.08 17.04.08 006252

[2008]
Todos os direitos dessa edição reservados à
ALAMEDA CASA EDITORIAL
Rua Iperoig, 351 - Perdizes
CEP 05016-000 - São Paulo - SP
Te!. (11) 3862-0850
www.alamedaeditorial.com.br
Índice

Prefácio à 2ª edição, por Haroldo Ceravolo Sereza ..................7


Prefácio à 1ª edição, por Gilberto Freyre .........................15
Apresentação de Sérgio Milliet.................................21

Introdução .................................................25
1.Três álbuns de família ......................................37
II.O patriarca ..............................................51
III.D.Pedro II ..............................................63
IV.A questão religiosa ........................................75
V. Evolução do pensamento liberal .............................85
VI.Geração parricida ........................................95
VII.O complexo ...........................................105
VIII."Não era esta a República dos meus sonhos..." ..............119
IX.Rui Barbosa ............................................129
X.Afonso Celso e Joaquim Nabuco ............................139
XI.Martim Francisco, Oliveira Lima, padre João Manuel .........147
XII. Conclusão .............................................155

Bibliografia ................................................161
Apêndice (texto integral do álbum de Carmo Cintra) .............167
Prefácio à 2 ª edição
Haroldo Ceravolo Sereza

São Carlos, no interior de São Paulo, guarda na biblioteca de sua Uni­


versidade Federal dois acervos que ajudaram a capital do Estado a tornar­
se muito mais inteligente. Separadas por apenas uma parede, estão as bi­
bliotecas de Florestan Fernandes e de Luís Martins.
Tudo indica que eles nunca foram tão próximos quanto estão seus li­
vros hoje, embora tivessem inúmeros amigos em comum: Antonio Candido,
quando ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro, foi para as ruas com
o candidato a vereador Luís Martins colar cartazes de uma campanha fadada
ao fracasso, nos anos que se seguiram à redemocratização de 1945; Fernan­
do de Azevedo, que contratou Florestan para ser seu assistente na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, correspondia-se bastante com Martins (como
mostra outra parte do acervo do escritor, bem guardado pelo Arquivo-Mu­
seu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio - uma
outra parte dos arquivos de Martins encontra-se no MAM-SP, no Centro de
Estudos Luís Martins), porém menos que Roger Bastide, o companheiro de
Florestan na pesquisa sobre negros e brancos na cidade de São Paulo, iniciada
no final da década de 1940, a convite da Unesco.
Apesar disso, nem Luís Martins está presente nos principais relatos auto­
biográficos de Florestan, nem Florestan aparece, por exemplo, em Um bom
sujeito, o último e, do ponto de vista biográfico, o livro mais importante de
memórias de Martins. Um, embora tenha tornado-se uma referência tam­
bém entre antropólogos, historiadores e educadores, foi, sobretudo, sociólo­
go. O outro, que foi antes de mais nada jornalista, assumiu uma enormidade
de outras "qualificações" durante a vida: muito jovem foi poeta e até letrista de
samba, depois romancista, divulgador do modernismo, crítico de arte, editor
de livros, cronista célebre e diretor do arquivo do jornal O Estado de S.Paulo
(arquivo que é em si uma "instituição" entre os jornalistas) . E ainda membro
8 LU!S MARTINS

do conselho e da direção do Museu de Arte Moderna de São Paulo - que deve


muito de sua própria criação ao empenho do jornalista Luís Martins.
Florestan, de origem menos do que modesta - foi auxiliar de barbeiro
e engraxate ainda com seis anos e era garçom antes de voltar a estudar -,
no início dos anos 1940, soube aproveitar as oportunidades que a Facul­
dade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, cria­
da poucos anos antes, abriu para muitos jovens nascidos fora do círculo
da elite paulistana.A partir daí, construiu uma obra que figu ra entre as
principais interpretações do Brasil, ombreando com Caio Prado Jr., Sér­
gio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.Martins, um carioca nascido
em 1907 que aproveitara a vida nas noites da Lapa, estava nesta época vi­
vendo com a pintora modernista Tarsila do Amaral e escrevia nos jornais
paulistanos. Apesar da união com uma "quatrocentona" e do trabalho
como jornalista no Estadão, ele jamais se sentiria completamente acei­
to pela elite da cidade - se aquelas núpcias extra-oficiais com alguém de
uma família tão tradicional criavam um belo incômodo em algumas ro­
das, a coisa pioraria quando, mais tarde, Martins deixaria a pintora para
se casar com a prima de Tarsila, a escritora Anna Maria Martins 1• Nos
anos 1940, o jovem Florestan embrenhou-se pelos bairros e bibliotecas da
cidade e iniciou-se na vida intelectual com um lúcido e bem escrito estu­
do sobre as brincadeiras das crianças que habitavam São Paulo - inicial­
mente publicados em revistas acadêmicas, entre elas a Revista do Arquivo
Municipal, os textos resultantes dessa pesquisa, dentre os quais destaca-se
"Trocinhas do Bom Retiro", estão reunidos no Folclore e mudança social
na cidade de São Paulo. Na mesma década, Luís Martins tornava pública
sua mais ousada incursão no debate acadêmico, ao escrever o artigo que
resultaria no livro O patriarca e o bacharel.
Para Martins, a publicação em livro de seu estudo, que inicialmente
também teve uma primeira versão publicada na mesma Revista do Arquivo
Municipal, em 1944, foi resultado de uma longa negociação com editores.

1. No belo Aí vai meu coração (Planeta, 2003), organizado por Ana Luísa Martins, filha de
Luís Martins e Anna Maria, o leitor interessado encontrará os documentos (cartas dos pro­
tagonistas e crônicas de Martins) que essa tumultuosa e comovente relação entre os três dei­
xou. Aproveito para registrar que esta edição de O patriarca e o bacharel deve muito ao em­
penho de Ana Luísa e à colaboração das instituições que mantêm os acervos do autor.
O PATRIARCA E O BACHAREL 9

Ele, que se notabilizara por seus textos de jornal e que já era reconhecido
como romancista, graças ao polêmico Lapa, (que lhe valeu a perseguição
pelo Estado Novo) , mergulhou na história paulista para tentar entender
um momento peculiar do país: o período que se seguiu à Proclamação da
República, quando alguns dos mais destacados líderes do movimento co­
meçam a desenvolver uma espécie de arrependimento em relação ao fim
da Monarquia e ao tratamento dispensado ao ex-imperador.
A inspiração declarada de Luís Martins era a obra de Gilberto Freyre.Foi
a partir da leitura de Sobrados e mucambos, em especial dos capítulos "O pai
e o filho" e "A ascensão do bacharel e do mulato': que Martins decidiu arris­
car-se a sua interpretação do Brasil - pelo menos, a interpretação de um mo­
mento muito importante para a história brasileira.Martins analisa os docu­
mentos que lhe foram cedidos pelo pai de Tarsila - dois álbuns de fotografias
e um de autógrafos de famílias tradicionais paulistas - para tentar entender
o que fez aqueles bacharéis tão defensores da República viver um sentimen­
to bastante difundido de "remorso" em relação à própria atuação histórica
"num período imediatamente posterior à proclamação': nas palavras do pró­
prio Martins.Para isto, buscou embasamento teórico em Freud: ''A minha
contribuição, sugerida diretamente pelo drama que se podia entrever nos ál­
buns da família a que me referi, foi apenas a segu inte: a geração dos bacharéis
românticos fez a República, assimilando a figu ra hostilizada do Pai, até então
encarnada na do potentado rural, à do imperador D.Pedro II, que passou a
simbolizar, mais do que nunca (já era, pela situação de rei, um símbolo na­
tural de paternidade) a entidade paterna.Pedro II foi uma síntese de todos
os pais particulares, polarizando os ódios filiais da horda rebelde': escreve na
introdução ao livro.
A versão de Martins para a história dos primeiros anos da Repúbli­
ca, finalmente publicada em livro em 1953 com prefácio de Freyre, gerou
grande repercussão.Foram inúmeras resenhas nos jornais e não pouca a
correspondência que Martins recebeu comentando o livro.
Muitos argumentos foram usados para defender e para criticar a obra,
inclusive por Gilberto Freyre, que assina um prefácio bem ao seu gênero,
republicado nesta edição, que "assopra e morde" o estudo.Chama as pá­
ginas de "inteligentes': mas também resiste ao método psicanalítico em­
pregado por Martins. Freyre retoma os termos do prefácio na "Introdu-
10 LUÍS MARTINS

ção à 2ª Edição" de Sobrados e mucambos e, apesar de discordar do que


considera "excessos" de Martins, retoma-o duas vezes em Ordem e pro­
gresso, o seu terceiro livro sobre a saga da sociedade patriarcal brasileira.
Em carta ao autor guardada pelo Arquivo do Museu da Casa de Ruy Bar­
bosa, o catedrático em Sociologia I da USP, Fernando de Azevedo, afirma
concordar com o colega da universidade Roger Bastide, para quem a in­
terpretação psicanalítica não podia ser extendida a todo um grupo, de­
vendo ser limitada como explicação de comportamentos individuais.
O uso da teoria de Freud para interpretar um fenômeno histórico e
social parece, de fato, ter encontrado uma resistência imerecida. Nem
Bastide, autor de Psicanálise do cafuné (um dos livros que Martins e Sér­
gio Milliet editaram numa famosa coleção, a Cadernos Azuis) , cujo artigo
sobre o livro Martins qualifica de "consagrador, sem falsa modéstia': nem
Fernando de Azevedo nem Freyre pareceram acreditar suficientemente
nos avisos do autor que, da introdução à conclusão de O patriarca e o ba­
charel, procuram relativizar o alcance da sua análise."Vivemos, depois de
1889 (principalmente durante a Primeira República) num clima perma­
nentemente revolucionário, sempre ameaçado de levantes armados.Evi­
dentemente, não penso em atribuir toda essa insatisfação a causas mera­
mente psicológicas", escreve, por exemplo, na conclusão - é verdade que,
depois, ele reafirma suas convicções: "Mas creio não exagerar supondo
que, por baixo deles, havia uma fermentação surda, subterrânea, incons­
ciente.Os homens de 1889 implantaram no Brasil, por culpa do seu in­
quietante complexo, uma atmosfera de nervosismo e inadaptação".
Em Um bom sujeito, Luís Martins elenca as críticas que recebeu, des­
tacando, além da de Bastide, a de Wilson Martins.Também afirma con -
siderar O patriarca e o bacharel o livro mais importante que escreveu e
que não o reeditava porque achava que, para isso, deveria revê-lo, acres­
centar coisas e fazer alguns cortes2 • Mas, significativamente, como já o
fizera na edição do livro, procura deixar claro que não se considera "um
historiador ou um psicólogo social" e que não teve a pretensão de inva­
dir seara alheia.

2. Raimundo Magalhães Jr. chegou a discutir com Luís Martins a possibilidade de editar
em formato de bolso o livro, um projeto que não seguiu adiante.
O PATRIARCA E O BACHAREL 11

Essa "diplomacia" intelectual e política3 de Martins - que, para além de


Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda e de todo um circuito culto
paulistano, tinha uma enorme rede de relações no Rio, na qual figu ravam
nomes como Carlos Lacerda, Carlos Drummond de Andrade, Di Caval­
canti, Rubem Braga e Manuel Bandeira, entre tantos outros -, talvez possa
ajudar a explicar porque este livro, em que pese sua ousadia interpretativa e
seu cuidado na análise de documentos indiscutivelmente relevantes para a
compreensão dos primeiros anos do que hoje chamamos de República Ve­
lha, tenha passado mais de 50 anos sem uma reedição.Na São Paulo que se
especializava intelectualmente a partir daquele "meio do século XX" (faço,
aqui, uma alusão ao subtítulo de Metrópole e cultura, de Maria Arminda do
Nascimento Arruda, que, por meio de ensaios, analisa as principais movi­
mentações culturais na cidade nessa época), Martins era por demais ecléti­
co. Combinar sociologia com história e psicanálise, naquele momento, pelo
menos ao modo ensaístico adotado por ele, não combinava com os novos
padrões de atuação intelectual da Universidade de São Paulo e da Escola de
Sociologia e Política, as instituições que estavam transformando a paisa­
gem intelectual da cidade.
Se seu estudo, nesse aspecto, é abertamente influenciado pelo esti­
lo mais livre de Freyre, por outro lado, é praticamente impossível não
perceber em O patriarca e o bacharel uma busca de rigor que combina
muito mais com a seriedade paulistana do que com a prosa doce e pe­
rigosamente envolvente do pensador pernambucano. No meio do ca­
minho entre a sociologia pernambucana e a paulista (Gilberto Freyre,
numa carta a Luís Martins em que trata da edição de O patriarca e o
bacharel, sugere que o escritor procure por Bastide ou pelo geógrafo
Pierre Mombeig, os franceses da USP, para ser orientado por eles em
suas pesquisas - conselho que, aparentemente, Martins nem cogitou
seguir) , Martins acabou não conquistando um espaço em que sua con­
tribuição fosse não apenas lida e debatida, mas o que é fundamental na
permanência de ensaios do gênero, assimilada e adotada por um gru­
po de intelectuais.

3. Em Um bom sujeito, ele praticamente ignora questões politicamente delicadas depois de


1945 e, principalmente, de 1964.
12 LUÍS MARTINS

Se O patriarca e o bacharel enfrentou o fato de não se enquadrar per­


feitamente nos grandes modelos de interpretação sociológica que dispu­
tavam espaço no Brasil na época (além de Freyre e dos uspianos, havia os
desenvolvimentistas do ISEB construindo um outro tipo de análise no Rio
de Janeiro) , a falta de especialização de Martins foi também um fator cru­
cial para que ele, embora respeitado pela academia paulista (em 1959, foi
convidado a compor a banca que avaliou a tese de livre-docência de Roque
Spencer Maciel de Barros na Faculdade de Filosofia da USP) , não fosse de­
finitivamente adotado por esse grupo de intelectuais.
Luís Martins chegou a ter duas colunas diárias no Estadão. Uma delas,
assinava como Luís Martins, a outra, como L.M4 • Um cronista tão presen­
te nos jornais e, ao mesmo tempo, tão envolvido com o dia-a-dia e a direção
do periódico como foi Martins não pode, em geral, dar-se ao luxo de cuidar
da própria obra em livros.Cuidar dela significa não apenas editá-la, mas "de­
fendê-la" em encontros, mesas-redondas, debates, seminários.Significa, tam­
bém, ampliá-la por meio de novos estudos e textos, responder academica­
mente a questões metodológicas feitas pelos piores críticos e, principalmente,
pelos melhores leitores - coisa que Martins não fez. Significa buscar, em salas
de aula ou em conferências, discípulos ou pelos menos leitores entusiasma­
dos, capazes de passar esse entusiasmo adiante. Pensando psicologicamente,
há nesse movimento que os acadêmicos conhecem tão bem uma espécie de
prazer que os bons jornalistas acabam, muitas vezes, por conhecer em outra
dosagem e intensidade.Houve uma concorrência entre o jornalista e o acadê­
mico no caso de Martins, e não há dúvida de que o acadêmico conheceu uma
derrota diante do jornalista - para voltar ao paralelo inicial, foi exatamente o
oposto do que ocorreu com Florestan, que, desde os primeiros anos de facul­
dade escrevia constantemente nos jornais, mas que se afastou rapidamente de
uma possível vida de jornalista para virar um sociólogo profissional.
Dessa derrota do Martins pesquisador, quem saiu perdendo, na ver­
dade, foi O patriarca e o bacharel. Se não pode explicar todo o "arrepen-

4. Pessoalmente, pude conferir a popularidade de L.M. quando, em 2000, escrevi pela pri­
meira vez sobre Martins no Caderno 2, do Estadão. O jornal publicou, nos dias seguintes,
uma carta de um leitor, elogiando o cronista morto quase vinte anos antes, em 1981, num
acidente na rodovia Presidente Outra.
O PATRIARCA E O BACHAREL 13

dimento" dos homens que fizeram a República, a obra certamente ajuda


a entender mais do que posições políticas individuais. Posições que, ra­
cionalmente, são incoerentes, por mais que seus protagonistas busquem
justificativas no discurso político e na idéia - que nunca é puramente po­
lítica, aliás, mas também sentimental - de "traição" aos valores republica­
nos.Reeditar O patriarca e o bacharel é, assim, reapresentar essa leitura ecléti­
ca - hoje, podemos dizer, elogiando, transdiciplinar, numa combinação de
história e psicanálise que já não é novidade para quase ningu ém - de um
momento central para a história do país e de suas elites.Tudo isso amarra­
do por um texto de quem sabia agradar ao leitor.
Para esta nova edição, a Alameda Casa Editorial introduziu algumas no­
tas informativas e traduziu as citações feitas em outras línguas cujo signifi­
cado não estava suficientemente esclarecido pelo contexto.Elas estão indica­
das como N.do E.(Nota do Editor) e Trad.do Ed.(Tradução do Editor).

São Paulo, janeiro de 2008


***

PS - Eu, que por questões meramente geracionais, ouvi bastante o rock


dos anos 1980 e fui introduzido ao conceito de "capitalismo selvagem" pelo
grupo Titãs.Tão forte foi essa referência que, ao escrever um livro sobre
Florestan, fiquei com medo de atribuir-lhe essa imagem poderosa.Ao es­
crever esta apresentação, deparei-me com uma situação semelhante. Co­
mentando o livro Noturno da Lapa, Antonio Candido, numa carta a Luís
Martins, queixa-se que o amigo "pega leve" com as noitadas do passado.
Justo ele, Martins, que chamava Candido e seus amigos de "geração coca­
cola': por serem tão pouco amigos do uísque.O que eu queria dizer com
isto é apenas e tão somente que a expressão "geração coca-cola" não é uma
invenção de Renato Russo, como eu acreditava (talvez também não seja de
Luís Martins, mas isso realmente não importa agora).Por mais que Russo
tenha feito a partir dela um excelente refrão ao cantar que "somos burgue­
ses sem religião/ somos o futuro da nação/ Geração coca-cola':
Prefácio à 1ª edição ( 1953)
Gilberto Freyre

O sr. Luís Martins faz bem em expandir em livro o estudo que publi­
cou na Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo: O patriarca e o bacha­
rel. Sugestivo como é, esse estudo terá agora maior repercussão.
São páginas, as do escritor de Fazenda, 1 que vêm concorrer para o
esclarecimento como que psicanalítico daquela nostalgia ou saudade
quase doentia do Imperador e do Império em que se extremaram, de­
pois dos quarenta ou dos cinqüenta anos, tantos bacharéis da primeira
geração de republicanos desencantados com a República, alguns deles
filhos de barões e viscondes feitos por Pedro II.Filhos de patriarcas que
eram uma espécie de imperadores em ponto pequeno dentro do siste­
ma patriarcal brasileiro.
Tendo me ocupado, a meu modo, do assunto, em ensaio publicado
em 1936, e depois na introdução às Memórias de um Cavalcanti (1939) ,
era natural que me interessasse pelo estudo do sr. Luís Martins e pela sua
tentativa de interpretar a nostalgia ou o remorso daqueles pecadores ar­
rependidos - seu sebastianismo às vezes pungente - sob critério senão
puramente psicanalítico, meio freudiano, de interpretação psicológica da
história do Brasil.
Tal nostalgia ou sebastianismo exprimiu-se através de atitudes diver­
sas assumidas por antigos republicanos ou antigos monarquistas indife­
rentes, quando moços, à sorte da Monarquia. Explica tentativas de restau­
ração monárquica, de que tais elementos participaram com uma persis­
tência ou uma ousadia verdadeiramente romântica.Conta o sr.João Dor­
nas Filho, em seus Apontamentos para a história da República (1942) , que
Campos Sales chegou a dizer desse sebastianismo: "Não é mais que sonho

1. Romance publicado por Luís Martins em 1940. N. do E.


16 LUIS MARTINS

mórbido da velhice". Engano de Campos Sales . Eduardo Prado, Afonso


Arinos, João Mendes de Almeida, Augusto de Sousa Queiroz, Antônio
Ferreira Castilho, Rafael Correia da Silva Sobrinho, Bento Francisco de
Paula, ao fundarem o partido restaurador em São Paulo e ao organiza­
rem o Comércio de São Paulo, não agiam como velhos que quisessem vol­
tar às situações de prestígio perdidas em 15 de novembro. Como Joaquim
Nabuco e Afonso Celso Júnior, os restauradores paulistas eram principal­
mente republicanos e quase-republicanos antigos, ou homens na primei­
ra mocidade indiferentes à sorte do Império patriarcal que ainda moços,
numa demonstração ostensiva de arrependimento dos seus pecados de
comissão ou de omissão, tornaram-se impetuosos na devoção pelo mes­
mo Império, empenhando-se, como filhos pródigos, na restauração do
prestígio do Pai e dos Pais por eles traídos, negados ou abandonados .
Pois mesmo que não se adote o critério psicanalítico de interpretação
da história brasileira, seguido com entusiasmo pelo sr. Luís Martins no
seu estudo, é difícil deixarmos de reconhecer, na formação da nossa gen­
te, considerada do ponto de vista psicológico que complete o sociológico,
um processo de integração e de desintegração do poder ou do complexo
patriarcal, em que as relações entre pais e filhos tiveram sempre impor­
tância decisiva. A importância que tenho procurado salientar em mais de
uma página. Era natural que essas relações se manifestassem na história
política. Natural que no conflito brasileiro entre Monarquia e República
o choque entre pais e filhos se aguçasse no drama que separou bacharéis
de patriarcas para fazer depois, de alguns desses bacharéis arrependidos
do seu republicanismo ou do seu indiferentismo, os apologistas mais en­
fáticos do regime monárquico-paternalista - regime que fora coerente
expressão política do complexo patriarcal.
Dentro do complexo patriarcal ainda se move, aliás - com menos
coerência, é claro - parte considerável da política brasileira atraída por
substitutos mesmo postiços do velho paternalismo. Daí o êxito alcan­
çado pela mística de "Getúlio nosso pai". Daí o prestígio alcançado pelo
ainda jovem capitão revolucionário Carlos Prestes quando atravessou
os sertões brasileiros com barbas de pai, de frade da Penha, de pregador
de Santas Missões . Um Rasputine mais afoito ainda hoje conseguiria
submeter multidões brasileiras ao seu paternalismo arrogante e mesmo
O PATRIARCA E O BACHAREL 17

sádico.O Brasil menos esclarecido continua a sentir a vaga necessidade


de pais que o governem paternalmente, que o castiguem, que o discipli­
nem, que continuem a tradição do Rei Velho, de Pedro II, de Floriano.
Porque Floriano também deixou uma nostalgia ou um culto que se ex­
plica pela ação ainda ativa do complexo patriarcal sobre o ânimo brasi­
leiro.E não nos esqueçamos que neste particular, nós nos antecipamos
ao povo russo - outro que ainda não se libertou do complexo patriar­
cal, ou seja, da herança social de uma formação semelhante à brasileira.
Antes do culto russo do Marechal de Aço, nós tivemos o culto brasilei­
ro do Marechal de Ferro.Um e outro, explicáveis sociologicamente.Ex­
plicáveis pela experiência histórica que predispôs russos e brasileiros a
governos fortemente paternalistas.E dessa predisposição só lentamente
nos libertaremos, russos e brasileiros.
Despedaçaram-se no Brasil e depois na Rússia coroas imperiais.Im­
plantaram-se regimes ousadamente fraternalistas em seus princípios ou
em suas teorias.Mas foi como se à anedota célebre do sofá se tivesse acres­
centado a da coroa.Despedaçadas as coroas, continuou a haver a dispo­
sição para o velho paternalismo, comprometendo de tal modo o frater­
nalismo novo que tanto o regime hoje dominante na Rússia como a Re­
pública estabelecida em 1889 no Brasil tornaram-se, sob alguns aspectos,
regimes mais acentuadamente paternalistas que os antigos. E para isso
concorreram, sem o saberem, os apologistas do Império empenhados na
sua restauração pelo remorso de terem sido "republicanos".
O que o sr.Luís Martins desenvolve com muita sagacidade no seu es­
tudo da Revista do Arq uivo, agora expandido em livro, é precisamente
isto: uma "teoria do remorso" aplicada à história republicana do Brasil.E
tendo se baseado, para o seu estudo, na análise de casos paulistas, chega a
conclusões que podem ser generalizadas a outras áreas do Brasil agrário,
escravocrata e patriarcal.Mais uma evidência de que o passado patriar­
cal - agrário ou pastoril - do Brasil é um só, embora com expressões re­
gionais diversas.Mais uma evidência de que a história brasileira pode ou
deve ser estudada através dos seus grandes complexos - entre os quais o
patriarcal - sem sacrifício do critério regional de análise.
Ninguém tem insistido mais do que eu na necessidade de estudar­
se o Brasil - tanto o seu passado como o seu presente - de forma re-
18 LUIS MARTINS

gional. Mas salientando que as regiões de estudo que permitem inter­


pretações gerais nem sempre correspondem às puramente geográficas:
escondem-nas às vezes, contraindo-se ou expandindo-se de um sécu­
lo a outro.Tal é o caso do patriarcado agrário entre nós que teve o seu
centro, até meados do século XIX, no Norte - mais dedicado que o Sul
à cultura do açúcar: Pernambuco, Bahia, Maranhão. No século XIX,
porém, alcançaria no Rio de Janeiro e em São Paulo opulência igual à
que atingiu no Norte, do qual atraiu, aliás, escravos e fidalgos arruina­
dos, em grande número.
Os álbuns - dois de fotografias, um de autógrafos - que o sr.Luís Mar­
tins encontrou em São Paulo, entre as relíquias de velha e ilustre família
paulista, poderia tê-los encontrado e estudado na Bahia ou em Pernam­
buco.O que se passou em São Paulo de forma aguda, nos fins do século
XIX, passara-se de forma aguda em Pernambuco ou na Bahia, na primei­
ra metade e no meado do mesmo século: o conflito entre o patriarca e o
bacharel - conflito que se esboçara, aliás, desde o século XVIII.
O sr.Luís Martins resume o conflito com olhos de paulista:

O filho do lavrador se metamorfoseava demasiadamente em cidadão, em indi­


víduo urbano. Ficava um inadaptado à vida rural... Muitos desses moços deram
mesmo preferência, na escolha de um meio de vida, às atividades urbanas, ou in­
gressando na política ou, mais raro, exercendo a profissão de advocacia, ou fim­
dando bancos e casas bancárias, ou ainda dedicando-se ao alto comércio.

Daí terem se desenvolvido no que o sr.Luís Martins chama, com ên­


fase que parece literária mas é apenas freudiana, "geração parricida': Daí
casos como o de Carmo Cintra, estudado com particular atenção pelo sr.
Luís Martins em álbuns e papéis da família do Barão de Campinas, fazen­
deiro patriarcal cujo filho bacharel se tornaria homem de cidade, aboli­
cionista e republicano. Casos que foram numerosíssimos em São Paulo
como noutras áreas de patriarcado opulentamente agrário do Brasil es­
cravocrata.''A geração que fez a República - escreve o autor de O patriar­
ca e o bacharel - acabando com o antigo regime e enviando o velho im­
perador para morrer no exílio, constituiu portanto, simbolicamente, uma
geração parricida."
O PATRIARCA E O BACHAREL 19

Note-se, de passagem, que Pedro II fora por algum tempo, por deli­
berado esforço e inclinação natural - como já indiquei em estudo sobre
o declínio do patriarcado rural entre nós -, aliado dos filhos-bacharéis e
não dos pais-senhores de engenho: a contragosto e por força da sua con­
dição de imperador de um Brasil patriarcal e escravocrata é que se tornou
para os olhos da gente mais moça saída das academias de direito e medi­
cina "a figura que simbolizava coletivamente todos os atributos paternos':
Como não era homem que remasse afoitamente contra a maré, o pobre
Pedro II - caricaturado pelos inimigos em Pedro Banana - resignou-se a
um papel que não era o de sua escolha nem o da sua disposição íntima.
Insistindo em falar em "geração parricida", o sr. Luís Martins nos pre­
para o espírito para a sua teoria de sabor freudiano, segundo a qual a "re­
beldia liberal, republicana e abolicionista" teria retomado, no Brasil,

o espírito revolucionário da horda primitiva que derrubou a entidade dominadora


do pai [ ... ] entidade essa encarnada particularmente nos potentados rurais e cole­
tivamente na figura centralizadora de Pedro II, admirável símbolo paternal, contra
o qual ia convergir toda a rebeldia filial, concretizada num transfert político.

Feita a República - e morto o Pai - viera a luta (dissolução da Consti­


tuinte, renúncia de Deodoro, revolta da esquadra, Canudos etc.) : "porque
ninguém se atrevia a tomar o lugar do Pai': E logo, a generalização do sen­
timento que o sr. Luís Martins foi encontrar quase mórbido no bacharel
Carmo Cintra por ele estudado com especial cuidado: "o dever de expiar
a morte do Pai". É onde o sr. Luís Martins, trazendo Freud para o terre­
no da interpretação da história política e social do Brasil, pretende ver "a
ação dissolvente do complexo do remorso".
Vê-la dominadora e única, como parece que ele a vê, creio que é exa­
gero e exagero evidente; vê-la entre as influências de ordem psicológica e
ao mesmo tempo sociológica que explicam a "insatisfação nervosa" que
se apoderou das primeiras gerações de republicanos no Brasil, me parece
razoável. Aos casos de remorso como o de Carmo Cintra, cujo republi­
canismo se transformaria em nostalgia da velha ordem e em saudade do
velho Imperador, numerosos poderiam ser acrescentados. Bacharéis arre­
pendidos do seu antipatriarcalismo, do seu antipaternalismo, do seu an-
20 LU!S MARTINS

timonarquismo. Eu próprio me referi a essas nostalgias e arrependimen­


tos na introdução às memórias do velho Félix Cavalcanti de Albuquer­
que Melo, baseando-me em respostas a um inquérito, 2 em que continuo
empenhado, entre brasileiros nascidos ainda no tempo do patriarcalismo
escravocrata e da Monarquia patriarcal e crescidos sob as influências da
época de transição e de "insatisfação nervosa" vivida quase dramatica­
mente pelo filho do Barão de Campinas e estudada agora, em páginas tão
inteligentes, pelo sr. Luís Martins.

2. Este levantamento de informações embasaria o livro Ordem e progresso, o terceiro da tri­


logia de Freyre iniciada com Casa-grande & senzala. Martins, indicam cartas de Freyre a ele
endereçadas, colaborou na coleta de questionários desta pesquisa em São Paulo. N. do E.
Apresentação
Sérgio Milliet 1

Cabe-me, mais uma vez, o prazer de pronunciar algumas palavras a


respeito da obra de Luís Martins: não se trata de uma apresentação, por­
quanto o público já o conhece bem através de suas crônicas e de suas con­
ferências.Nem se trata de uma crítica, que o momento não seria indicado
para tão soporífico exercício.O que quero dizer é apenas o interesse que
tem para a história brasileira e a nossa literatura a sua curiosa interpreta­
ção psicanalítica dos sucessos republicanos. Aos sociólogos ortodoxos e
aos economistas decididos uma tal contribuição há de parecer puro aca­
demismo.Para os mais ecléticos, como Gilberto Freyre e os psicologistas,
a pesquisa de Luís Martins comporta perspectivas valiosas.Sem entrar no
seu mérito científico, podemos afirmar que sua tese se apresenta pelo me­
nos engenhosa e perturbadora.
As explicações rigidamente científicas da história nunca nos satisfa­
zem inteiramente porque desprezam o lado humano, subestimam a ação
dos indivíduos em proveito exclusivo de determinismos cegos que, a se­
rem aceitos na íntegra, justificariam todos os fatalismos.É evidente que
os fatores econômicos pesam de um modo decisivo na evolução dos po­
vos, mas a estes se agregam, para modificá-los, outros fatores de reper­
cussões menos simplisticamente previsíveis. Se as condições econômicas
condicionam o homem e lhe impõem uma filosofia, o homem, por sua
vez, influi nas condições econômicas e lhes deforma em parte o molde.O
velho debate determinismo ou livre-arbítrio já me parece ultrapassado.
O que ocorre na realidade é uma interação complexa, para cujo entendi­
mento importam grandemente os estímulos econômicos, mas não menor

1. Palavras de Sérgio Milliet apresentando o autor ao público que assistiu à primeira con­
ferência, da série de duas, sobre O patriarca e o bacharel, na Biblioteca Municipal de São
Paulo, em 28 de setembro de 1944.
22 LUIS MARTINS

atenção deve ser dada às reações psicológicas.Toda e qualquer teoria que


não queira correr o risco de se transformar em doutrina mística terá de
levar em conta, no campo sociológico, a natureza humana.Terá que pon­
derar em suas leis os desvios e variações provocados pela reação impul­
siva de uns tantos instintos elementares.O campo do social não pode ser
identificado ao campo das demais ciências em que não entra o homem.
E a própria sociologia obj etiva, que tentou de início colocar-se diante dos
problemas sociais como a física diante dos problemas físicos, de há muito
admitiu a relatividade de suas conclusões. Por isso mesmo, dia a dia a so­
ciologia se confunde com a psicologia social.
Não sou um entusiasta da psicanálise na interpretação dos fatos so­
ciais.Malinovsky, aliás, a pôs em prática entre algumas tribos pré-letra­
das e não chegou a resultados satisfatórios.Porque a psicanálise somente
explica o patológico, e se se adapta tão eficientemente à nossa civilização,
é que esta pouco tem de normal.Diante da normalidade dos povos pré­
letrados, com suas culturas tão próximas da natureza, a psicanálise fra­
cassa.Não é ela pois um instrumento de trabalho eficaz para o estudo de
uma sociedade simples, nem mesmo de todos os fatos sociais de uma ci­
vilização complexa.Em muitos e muitos casos, porém, a psicanálise pode
abrir uma das portas de acesso à compreensão dos processos sociais.Não
será uma chave-mestra - uma gazua esperta - para todas as portas, mas
uma simples chave como as outras, com fins e possibilidades específicos.
Não creio que Luís Martins tenha desejado mais.
No caso presente, do conflito entre o patriarca e o bacharel, creio ter
havido conjugação de fatores. Por um lado, as circunstâncias econômi­
cas: abolição do trabalho dos escravos e crise dela decorrente. Por outro, a
educação do bacharel nas idéias liberais e republicanas da época. É verda­
de que sem essas idéias não teria havido a propaganda republicana e abo­
licionista; mas não é menos verdade que sem a política econômica ingle­
sa repercutindo na própria estrutura das potências semicoloniais como a
nossa, não se teria verificado a abolição nem as novas idéias encontrariam
campo fértil para vingar. As causas das ocorrências sociais são sempre
complexas, e o grande, talvez o único, mérito da sociologia moderna foi
ter apontado essa complexidade e advertido os espíritos sérios do perigo
das doutrinas inteiriças.Foi ter permanentemente apelado para os fatos,
O PATRIARCA E O BACHAREL 23

aceitando-os mesmo quando não correspondiam à teoria e a esta rejei­


tando se não os explicava.
A sociologia não pode ser considerada uma ciência positiva, dados os
imponderáveis humanos que jogam nos fatos sociais; mas ela deve ser re­
cebida como um método científico de encarar a realidade.Há que admi­
tir-se a existência de um espírito sociológico, de uma mentalidade socio­
lógica, ainda que se ponha em dúvida a sociologia em si.
Introdução

Não sei se será correto falar em "ortodoxia sociológica': mesmo por­


que os próprios sociólogos não chegaram ainda a um acordo definitivo
sobre a extensão e a capacidade da sua jovem ciência.De qualquer forma,
creio que a tendência mais recente, talvez influenciada pela escola norte­
americana, é a de limitar a sociologia, tanto quanto possível, a uma espé­
cie de morfologia dos fatos sociais, encarados objetivamente.Se a socio­
logia, na melhor das hipóteses, se interessa pelas origens dos fenômenos
sociais, não se interessa pela essência íntima, profunda e secreta, isto é, o
"substratum" psicológico dessas origens.1
Ora, a psicanálise é, por essência, analítica, perquiridora e investiga­
dora.Os fatos não a satisfazem, quer a explicação dos fatos.Os fatos per­
tencem ao mundo consciente, e o seu campo principal de ação é o in­
consciente. Calcando a sua teoria filogenética em sua experiência onto­
genética, ela pretende realizar um mergulho profundo no passado da hu­
manidade, como já realizara um profundo mergulho na alma individual,
arrancando de lá o segredo da evolução humana.
Não pretendo reeditar aqui os mal-entendidos e as tentativas de apro­
ximação entre a psicanálise e a sociologia - o que escaparia por comple­
to às dimensões e aos intuitos deste trabalho.Muitos sociólogos aceitam
algumas pesquisas de Freud e seus discípulos como elementos auxiliares
da sociologia. Outros, até certo ponto conciliadores, recusam-se a aceitar
a contribuição da psicanálise.

1. Mas nem todos os sociólogos pensam assim. Prefiro, aliás, a posição adotada por H. Hubert
e M. Mauss, discípulos de Durkheim, quando afirmam: "En sociologie, les faits de la psycolo­
gie sociale et les faits de la morphologie sociale sont liés par des liens íntimes et indissolubles"
[Em sociologia, os fatos da psicologia social e os fatos da morfologia social estão ligados por
laços íntimos e indissolúveis. Trad. do Ed.] (H. Hubert e M. Mauss, Mélanges d'histoire des re­
ligions, Félix Alcan, Paris, 1929).
26 LU!S MARTINS

Ora, o presente trabalho é, de certo modo, calcado justamente na hi­


pótese de Freud, do complexo edipiano fundado num episódio trágico da
horda primitiva.Antes, porém, que os adeptos da sociologia ortodoxa me
acusem de excessiva ingenuidade científica, hão de me permitir que expli­
que a minha posição.Inicialmente, não pretendo ser um sociólogo.Além
disso, aceitei a teoria freudiana como "hipótese de trabalho", útil para o
fim a que me propus.
Realmente, a ambiciosa intromissão de Freud no campo da sociolo­
gia, da antropologia e da psicologia social é, para muitos entusiastas da
psicanálise, a parte mais fraca de sua obra.Já se chegou a falar no "roman­
ce da psicanálise" e não há dúvida de que, de certa forma, Totem e tabu
chega a ter qualquer coisa de romanesco, na ousadia de suas hipóteses.
Freud não poderia estar a par das concepções modernas imperantes
no terreno das ciências sociais.Não apenas o seu campo específico era
a psicologia, como, de certo modo, ele foi ainda um homem do século
XIX.Toda a sua teoria é calcada numa aventurosa hipótese do evolucio­
nista Darwin.
Não quero, evidentemente, penetrar no terreno de uma discussão teó­
rica acerca da psicanálise - pois me sinto totalmente incompetente para
fazê-lo -, porém parece-me que hoje em dia, mesmo no seu setor restrito
de método de terapêutica psicológica, ela comportaria uma revisão total,
tanto na essência como na forma de sua utilização.É, pelo menos, o que
sugere o convincente estudo em que Karen Horney2 dá uma interpreta­
ção nova às teorias do mestre de Viena.
É justo reconhecer, contudo, que Freud foi bastante coerente em toda
a sua obra. Seu evolucionismo mecanicista, que o levou a considerar
como base da vida instintiva a compulsão de repetição, arrastou-o numa
viagem retrospectiva através do tempo, à horda primitiva, onde se encon­
trariam o começo e a explicação do comportamento humano e os germes
informes da vida social.
Assim, sem pôr em discussão a validade científica da teoria de Freud,
dela servi-me como uma hipótese de trabalho e uma explicação possível
- possível, afinal de contas! - para um fato real e insofismável, para um

2. Psicanalista alemã radicada nos EUA, nascida em 1885 e falecida em 1952. N. do E.


O PATRIARCA E O BACHAREL 27

fenômeno ocorrido não ocasionalmente num ou outro caso, porém com


uma constância verdadeiramente impressionante.Que se despreze a ex­
plicação, mas que se reconheçam os fatos.Eu os aponto, baseado em am­
pla documentação: houve, num período imediatamente posterior à pro­
clamação da República em 1889, um sentimento generalizado de culpa e
remorso que atingiu, senão a totalidade, grande parte dos seus entusias­
tas. Esse sentimento se manifestou de uma forma ou de outra, ostensivo
ou disfarçado, porém quase sempre será possível encontrá-lo.
Em verdade, as circunstâncias ajustavam-se demasiadamente à situa­
ção edipiana para que o registro da curiosa coincidência não me tentasse.
Não vejo outra explicação que melhor se adapte aos fatos.
O patriarca e o bacharel nasceu da confluência de duas sugestões, apa­
rentemente bastante díspares: a leitura do livro de Gilberto Freyre Sobra­
dos e mucambos e o folhear distraído de três álbuns de tradicional família
paulista, dois de fotografias e um de autógrafos.O que havia de comum
entre esses documentos meramente sentimentais e a análise do sociólogo
pernambucano é que o seu leitmotiv - inconsciente nos primeiros e cons­
ciente na segunda - era a decadência do patriarcado rural e conseqüen­
te ascensão do liberalismo urbano.Duas entidades históricas do passado
brasileiro sintetizavam os dois grupos sociais, as duas gerações: o fazen­
deiro e o bacharel.
A segunda substituiu a primeira, isto é, os filhos venceram os pais na
luta pelo progresso e pela civilização.Tratava-se, nitidamente, de uma si­
tuação edipiana.D e fato, não havia, no caso, uma simples sucessão, im­
posta pela marcha do tempo.Num momento decisivo da evolução bra­
sileira - segunda metade do século XIX -, estabelecia-se um conflito de
concepções, de mentalidade, de moral e de posição diante dos problemas
sociais.Um conflito radical, entre o homem rural, conservador, escravo­
crata, monarquista, de gostos clássicos, e o indivíduo mais jovem, urbano
por excelência, liberal, republicano, de tendências românticas. Esse con­
flito foi magistralmente estudado por Gilberto Freyre.
A minha contribuição, sugerida diretamente pelo drama que se po­
dia entrever nos álbuns da família a que me referi, foi apenas a seguinte:
a geração dos bacharéis românticos fez a República, assimilando a figura
hostilizada do Pai, até então encarnada na do potentado rural, à do im-
28 LUÍS MARTINS

perador D.Pedro II, que passou a simbolizar, mais do que nunca (já era,
pela situação de rei, um símbolo natural de paternidade) , a entidade pa­
terna.Pedro II foi uma síntese de todos os pais particulares, polarizando
os ódios filiais da horda rebelde. Depondo-o e exilando-o, os filhos ex­
travasaram o seu ódio ancestral, reconstituindo, de maneira menos selva­
gem, o episódio dramático da horda primitiva, descrito por Darwin.Ora,
a conseqüência desse parricídio foi o remorso, de que nasceu a comuni­
dade fraternal totêmica.Encontrar-se-ia, em situação análoga, o mesmo
remorso, a mesma contrição, entre os republicanos brasileiros de 1889?
Penso ter demonstrado que sim, estribado em documentação histórica,
que me parece ampla e convincente.Foi a esse sentimento que eu chamei
- talvez abusivamente para os ortodoxos da terminologia psicanalítica -
"complexo de remorso".

***

O risco de fundamentar a teoria da criação do complexo de Édipo num


problemático episódio ocorrido durante a existência de uma não menos
problemática horda, aceitando uma fantasiosa hipótese de Darwin, não
passou despercebido a Freud.E ele próprio procurou se antepor a várias
objeções que se lhe poderiam fazer.Em verdade, essas objeções são mais
do domínio da antropologia que da sociologia propriamente dita.
O defeito principal de sua teoria - deixando-se de lado a discussão da
verossimilhança do episódio dramático do assassinato e devoramento do
pai - é a implícita aceitação da hereditariedade dos caracteres adquiri­
dos.O complexo edipiano, com todo o seu cortejo de remorso, arrepen­
dimento e contrição, seria um drama pessoal dos filhos, incapaz portanto
de se perpetuar em seus descendentes e de ocasionar a instituição do to­
temismo, de onde nasceriam as religiões (ato ritual da comida totêmica) ,
a moral (criação do superego) e o sentimento social (fraternidade ho­
mossexual) , assim como da exogamia e, em conseqüência, os fundamen­
tos da organização doméstica (tabu do incesto) . Que o episódio provo­
casse em seus praticantes um traumatismo psíquico, compreende-se.Mas
a perpetuação desse traumatismo, sob formas diversas e evoluídas, é o re­
conhecimento implícito da hereditariedade dos caracteres adquiridos.
O PATRIARCA E O BACHAREL 29

O outro ponto discutível da teoria psicanalítica é a existência de uma


"consciência coletiva" postulada por Freud, ou de uma "memória coleti­
va", proposta por Jung.
Roger Bastide, em seu livro Sociologia e psicanálise, cita o seguinte tre­
cho de Wündt:

si les processus psychiques d' une génération ne se transmettaientpas à une autre, ne se con­
tinuaient pas dans une autre, chacun serait obligé de recommencer l'apprentissage de la
vie, ce qui excluerait la possibilité de tout progrés et de tout développement3

Concluindo daí que a criança é a herdeira do passado da espécie.Além


do inconsciente pessoal, mais superficial, haveria, portanto, em todos nós,
um inconsciente mais profundo, coletivo e tradicional.A algumas dessas
questões Freud tentou opor uma resposta antecipada, no Totem e tabu.
Não pretendo entrar aqui numa discussão acerca desses complicados
problemas, mas ouso sugerir um palpite: não se poderia talvez dispen­
sar a existência de uma consciência ou memória coletiva, adotando-se o
mero conceito de "tradição"?
Não se poderia, talvez, condicionar tudo à herança cultural, por meio
da transmissão oral ou escrita, de educação doméstica, hábitos, normas
de conduta, lendas, mitos, religiões, obediência aos pais, mores e folkways
transmitidos de pais a filhos e que vão formando o fundo permanente de
cada alma individual?
Dessas noções fundamentais, transmitidas através dos séculos, ficaria
sempre, em cada ser humano, uma partícula, um resíduo, um pequeno
fermento dos estímulos iniciais.A herança seria, portanto, exclusivamen­
te cultural.Determinado momento histórico, determinada circunstância
ocasional poderia despertar a sobrevivência de um estado de espírito se­
melhante a outros momentos ocorridos num passado remoto.
É mais ou menos o que diz Mannheim:

3. Wilhelm Wündt (1832-1920), psicólogo alemão, um dos fundadores da disciplina e dos estu­
dos experimentais da área. [Se os processos psíquicos de uma geração não se transmitissem à se­
guinte, não continuassem em outra, cada um seria obrigado a recomeçar o aprendizado da vida,
o que excluiria a possibilidade de todo progresso e de qualquer desenvolvimento.] N. do E.
30 LUÍS MARTINS

Todo ser vivo se encontra sempre em estado permanente de ajuste. Todavia, ten­
demos a passar por alto o fato de que nossas atitudes se referem de modo contínuo
ao mundo circundante porque, em condições normais estacionárias, utilizamos
geralmente modelos tradicionais de conduta. Porém, os modelos tradicionais de
conduta, como os costumes e as convenções, não são em si mesmos senão os resul­
tados prévios de acomodações e ajustes realizados por nossos antepassados. As so­
brevivências se explicam porque são respostas a situações críticas que ainda surgem
em nossa sociedade. ( Os grifos são meus.)

Certamente, tudo isso seria a negação de um postulado fundamental


da sociologia psicanalítica, isto é, a subordinação do social ao biológico.
Mas a nossa tendência é fugir a toda ortodoxia.Aceitamos a lição de Gil­
berto Freyre:

O iniciando em sociologia encontra na sociologia geral um campo de batalha em


que as escolas, as doutrinas filosóficas, os compromissos teológicos se acham de tal
modo organizados em alianças e contra-alianças, que entre eles parece impossível a
aventura do franco atirador que pense abrir novo caminho, ou do eclético que supo­
nha possível um entendimento entre antagonismos ainda crus. A verdade, entretan­
to, é que tais entendimentos são possíveis e que novos caminhos vão sendo abertos
pelos ecléticos.

***

Sei bem que esta tentativa de conciliação não será suficiente para afastar as
dúvidas dos que não aceitam, como ponto de partida, a hipótese do assassina­
to do pai da horda primitiva, postulada por Freud.Ora, nenhum homem nes­
te mundo poderá, cientificamente, decidir definitivamente sobre a veracidade
de tal hipótese.Ela deverá ser aceita a priori, como matéria de fé.
Alguns sociólogos, aceitando embora certas conclusões da psicanálise
como contribuições ao conhecimento psicológico do comportamento
social, negam qualquer valor à sua metodologia.De um modo geral, in­
vertem os termos do problema propostos pelos psicanalistas: não é o psi­
cológico que explica o sociológico, é este que determina as condições em
que aquele se cria e desenvolve.
O PATRIARCA E O BACHAREL 31

Assim, no caso deste ensaio, a ação violenta do complexo de Édipo


não seria determinada pela reminiscência remota de um problemático
episódio da horda primitiva, conservado na profundidade do inconscien­
te humano, mas seria, sim, determinada pelas condições especiais da vida
social brasileira, condicionada pelo latifúndio e pela monocultura, que
criariam a mentalidade patriarcal.
Questão ociosa seria, a meu ver, estabelecer uma relação acadêmica de
causa e efeito, isto é, se foi a forma de organização econômica - o latifún­
dio - que produziu o patriarcado, como norma de vida e mentalidade, ou
se foi este, pelo contrário, que proporcionou o desenvolvimento e a pre­
dominância daquele.
Um psicanalista ortodoxo, fiel à concepção que faz da família a célu­
la nuclear da sociedade, talvez optasse pela segunda hipótese.Entretanto,
um culturalista julgaria certamente mais razoável e simples que tenham
sido os fatores econômicos que condicionaram a instituição do patriarca­
do agrário, nas grandes famílias brasileiras do passado.
Escapam por completo às proporções deste ensaio especulações dessa na­
tureza. Procuro apenas fixar minha posição, ao registrar "fatos históricos"
que julgo condicionados pelo complexo de Édipo.E nem quero me perder
longamente na discussão de um ponto de sociologia genética, relativo às ori­
gens daquele complexo.Tentando opor o conceito de "tradição" ao de "ca­
racteres adquiridos" para explicar a sua transmissão através das gerações, não
me escapa que apenas fugi à dificuldade sem resolvê-la.Porque a dificuldade
verdadeira é inicial, é fundamental.Voltamos sempre ao mesmo caroço en­
gasgante, que é a aventurosa hipótese de Freud; ao postulado da ontogenia
repetindo a filogenia, a história da formação psicológica de cada ser humano
sendo, assim, um resumo individual da própria história do mundo.4
Como já disse, o episódio do assassínio do pai é para mim uma sim­
ples "hipótese de trabalho". Podem dispensá-la os que apenas se ative-

4. Seria oportuno recordar aqui a correlação entre o microcosmo e o macrocosmo, que se­
duziu Léo Frobenius. Segundo ele, a evolução individual repete as etapas da história da civi­
lização, pois tanto os homens como a própria humanidade, em conjunto, são meros instru­
mentos do Paideuma, essa misteriosa alma das civilizações, que é a própria essência da vida.
(Léo Frobenius, Le destin des civilizations, trad. N. Guterman, Gallimard, Paris, 1940.)
32 LUÍS MARTINS

rem às conclusões " históricas" deste ensaio, os que virem na psicanáli­


se somente um método de análise psicológica do homem condicionado
por fatores culturais.Se há em todos os indivíduos o mesmo substratum
anímico, é natural que a formação da psique coletiva se processe através
dos mesmos estágios, ainda que em detalhes esses estágios divirjam, de
acordo com as contingências do meio e da educação. Creio que assim
não se ofenderiam demasiadamente os escrúpulos dos adeptos da esco­
la histórico-cultural.
No caso de que nos ocupamos, o desenvolvimento do patriarcado,
proporcionando aos pais uma autoridade demasiada, teria por conseqüên­
cia uma reação violenta dos filhos.Uma pergunta, entretanto, exigirá res­
posta: por que as reações dos "filhos" ( os bacharéis) se caracterizaram
pela identidade ao mesmo comportamento dos "filhos" da horda ances­
tral, isto é, foram manifestações de contrição e remorso? Não haverá nis­
so uma repetição impressionante?
A isso se poderia replicar que o complexo de Édipo existe, mas como
fato individual, sendo uma fatalidade imposta pelas próprias condições
da nossa civilização (o que é evidentemente uma inversão da sociolo­
gia psicanalítica) e que suas reações estão mais ou menos subordinadas
às circunstâncias do meio histórico. Isto é, o complexo de Édipo seria
uma conseqüência da coação social.Assim se explicariam certas analogias
existentes entre a nossa revolução de 1889 e outros grandes movimentos
revolucionários ocorridos no mundo.
Nesse caso, o episódio da horda não passaria, na acepção rigorosa do ter­
mo, de um mito, representando, simbólica e dramaticamente, uma das for­
mas características assumidas pelos impulsos libidinosos de cada homem.

***

Insisto em reafirmar que não pretendi, de maneira nenhuma, realizar


uma análise freudiana - ao menos uma análise que empregasse a técnica
comum da psicanálise - nem da situação geral imposta pelas circunstân­
cias históricas, nem dos estadistas que nelas representaram os principais
papéis.Também é útil dizer que não pretendo explicar a evolução política
do Brasil exclusivamente à luz da psicanálise.Sou dos que pensam que os
O PATRIARCA E O BACHAREL 33

fenômenos sociais comportam uma grande complexidade de interpreta­


ções: econômicas, psicológicas, geográficas etc.
Referindo-se às minhas conferências pronunciadas na Biblioteca Mu­
nicipal em 1944, sobre o assunto deste livro, em palavras destinadas a
apresentar o autor ao público - e posteriormente publicadas no volume
II do seu "Diário Crítico"- , disse o seguinte o escritor Sérgio Milliet:

Em muitos e muitos casos, a psicanálise pode abrir uma das portas de acesso à
compreensão dos processos sociais. Não será uma chave-mestra - uma gazua esperta
- para todas as portas, mas uma simples chave como as outras, com fins e possibilida­
des específicos. Não creio que Luís Martins tenha desejado mais.

Os adeptos da sociologia cultural não se conformarão certamente com


a minha tentativa de interpretação psicanalítica de fatos históricos. Espe­
cialmente os marxistas. Em que pese o esforço de alguns psicanalistas mar­
xistas para realizar uma conciliação dos dois métodos sociológicos, a ver­
dade é que eles permaneceram irredutivelmente separados e antagônicos.
É que, como diz Roger Bastide, em sua obra já referida, tratam-se de socio­
logias de tipo exclusivo. Ambas pretendem explicar os fatos sociais por um
fator apenas - a libido num caso, a produção econômica no outro.
Quando, em 1942, escrevi a primeira versão de O patriarca e o bacharel,
eu não conhecia a análise de Eder5 sobre a Revolução Francesa. Há nela um
trecho que me parece de significativo interesse para a minha tese.
Registra Eder a diferença entre o reinado francês do Terror, que em
18 meses após a morte de Luís XVI fez tombar a cabeça de quatro dos
chefes revolucionários (Marat, Hébert, Danton e Robespierre) , e a revo­
lução bolchevista de 1917 na Rússia, onde não houve tais mortandades
em sucessão imediata à morte do tzar. A explicação que ele dá é que os
chefes russos, se bem que matassem o pai, o tzar, acharam um outro pai a
que adorassem, Karl Marx, cujos bustos providos de enormes barbas (em
1942 eu também assinalava as barbas de Pedro II como um típico atribu­
to patriarcal) os surpreenderam pela abundância, quando de sua visita à
Rússia no inverno de 1920-1921.

5. M.D. Eder ( 1 866- 1936), tradutor de Freud para o inglês


34 LU!S MARTINS

Quem ler O patriarca e o bacharel verificará que alguns líderes repu­


blicanos permaneceram mais ou menos imunes ao sentimento de remor­
so que encontrei na maioria das figuras proeminentes da revolução de 15
de novembro.Ora, urna observação mais atenta nos mostraria que qua­
se todas essas exceções foram de positivistas.A figura de Augusto Cornte,
cujo culto para muitos positivistas tornou proporções de um quase mis­
ticismo cego, agiu provavelmente no mesmo sentido da de Marx para os
comunistas russos: o pai, para os positivistas, não era tanto Pedro II corno
o pensador francês; este pelo menos atuava corno substituto eficaz, pro­
porcionando a transferência da libido dos seus adeptos - do monarca de­
caído para o ídolo em pleno prestígio.

***

Com este ensaio, acredito trazer urna contribuição à compreensão de


um período histórico capaz de influir na posterior ação coletiva política
dos brasileiros.Não creio - corno me afirmou certo escritor marxista - que
se trate de simples especulação acadêmica sem importância prática para
a solução dos problemas nacionais.Afinal de contas, julgo ter ajudado a
compreensão psicológica do nosso povo, que se manifesta em normas de
conduta política condicionadas pelas causas dramáticas aqui descritas.
Parece-me ser urna fragilidade da concepção materialista da história a sua
mecânica correlação de causas e efeitos, aplicáveis indiferentemente a quais­
quer situações, sem que importe o estudo das condições psicológico-sociais
capazes de, em face dos mesmos estímulos, apresentar reações diferentes.
A rigidez marxista esquece urna circunstância importante, quando
atribui exclusivamente à produção a responsabilidade dos fenômenos so­
ciais.É que estes se manifestam por intermédio dos homens, sujeitos por­
tanto a reações psicológicas peculiares a determinadas situações históri­
cas, criadas por fatores imprevisíveis e alheios à economia.
Paremos por aqui.Nas páginas finais deste livro, nas quais pretendo
chegar resumidamente a algumas conclusões, encontrar-se-ão outras re­
flexões que completam estas.
José Pinto do Carmo Cintra,
desenho de Assunpção Junior, do álbum de Carmo Cintra
I. Três álbuns de família

A decadência do patriarcado rural brasileiro, que o sr.Gilberto Freyre


magistralmente descreveu em seu livro Sobrados e mucambos, coincide
com a germinação das idéias liberais que alcançaram seus fins de propa­
ganda com a abolição da escravatura e a proclamação da República. O
grande potentado rural, conservador em política como em moral fami­
liar, proprietário de escravos e opressor da mulher, via em seu próprio fi­
lho bacharel, que voltava de São Paulo ou do Recife, centros de estudos de
direito, o maior e mais encarniçado inimigo de suas idéias.Um inimigo
dócil, bem-educado, tímido, que o tratava com todo o respeito que tan­
tos anos de patriarcado poderoso impunham - "Senhor meu pai" -, mas
nem por isso menos perigoso em sua rebeldia dissimulada e fecunda.
Eram dois mundos adversos que se chocavam, duas concepções dife­
rentes de vida, dois conceitos divergentes de moral, de liberdade, de so­
ciedade, de dignidade humana.O velho fazendeiro formara o espírito na
luta árdua contra a terra, auxiliado pelo braço escravo, e era um ser cons­
ciente de sua responsabilidade de constituidor e defensor de uma família,
entre os perigos de uma sociedade desagradável pela senzala e pelo apeti­
te de todos os aventureiros na terra despoliciada, onde o regime autárqui­
co era quase uma necessidade de defesa.O moço, entretanto, quase não
tivera contato com a terra, a não ser na infância solta e livre, onde exer­
citara passageiramente o sadismo hereditário no lombo infeliz dos mo­
lecotes e a libido incipiente nas formas robustas e luzidas das Vênus ne­
gras das senzalas.Rapazinho, era enviado para as cidades grandes, a cargo
de algum "correspondente" ou parente de confiança, a fim de se preparar
para os estudos superiores.Adolescente, travava contato com um mundo
novo e brilhante que, vindo de todas as províncias do Império, se juntava
nas cidades universitárias.Da segunda metade do século XIX em diante
(principalmente mais para o fim) , essa gente constituía uma geração ou­
sada, liberal, romântica, revolucionária, republicana, abolicionista, entu-
38 LUÍS MARTINS

siasta do socialismo de Proudhon; geração de jovens sentimentais e ca­


beludos, amantes das grandes tiradas oratórias e dos versos chorosos dos
poetas que morriam aos vinte anos, gente que admitia todas as utopias
generosas, todos os sonhos humanitários e todas as grandes reivindica­
ções líricas da espécie, postas na mesa dos debates pelos reformadores
sociais da época.O rapazinho se via subitamente em pleno turbilhão re­
volucionário, sem nenhuma capacidade de resistir, sem nenhuma prepa­
ração, carregando em sua bagagem a nostalgia sentimental da infância e
o respeito, quase o temor, pela entidade formidavelmente autoritária do
velho Pai, o grande patriarca.
Numa idade maleável, plástica, o rapaz se entusiasmava, se adapta­
va, se transformava. Virava republicano e abolicionista. Deixava cres­
cer a cabeleira romântica, declamava, procurava se apossar de todas as
grandezas e todos os ridículos da época, aplaudia os grandes oradores,
recitava nos teatros, escrevia num estilo detestável cheio de líricos luga­
res-comuns e tiques convencionais.E quando, formado já, ia influir na
vida social do país com todo o peso de um bacharel rico e proprietário,
era para apressar as grandes revoluções reclamadas pelo liberalismo de
então: a abolição e a República.Mas também, muitas vezes, esse período
de grande exaltação liberal influía como elemento desagregador para o
futuro da vida rural.O filho de lavrador se metamorfoseava demasiada­
mente em cidadão, em indivíduo urbano.Ficava um inadaptado à vida
rural, um homem sem nenhum jeito para voltar ao labor da terra, para
tratar com os seus problemas. O ensino acadêmico, romântico e abso­
lutamente destituído de senso prático criava no jovem bacharel certos
preconceitos prejudiciais que o impossibilitavam de continuar a obra
paterna. Aí talvez se encontre a explicação ( ou uma das explicações)
para grande número de famílias tradicionais de fazendeiros que decaí­
ram e perderam toda a antiga grandeza nas mãos inexperientes dos ba­
charéis românticos e liberais.
Muitos desses moços deram mesmo preferência, na escolha de um
meio de vida, às atividades urbanas, ou ingressando na política, ou, mais
raro, exercendo a profissão de advocacia, ou fundando bancos e casas
bancárias, ou ainda dedicando-se ao alto comércio.Em São Paulo, vários
desses advogados fundaram casas comissárias de café, em Santos.
O PATRIARCA E O BACHAREL 39

***

Três álbuns - dois de fotografias e um de autógrafos - que tenho


em mãos poderiam fo rnecer interessante documentação para o es­
tudo desse estado de transição da sociedade brasileira. Foi seu orga­
nizador e proprietário o bacharel José Pinto do Carmo Cintra, filho
mais velho do Barão de Campinas. Procuro na Genealogia paulistana
de Luís Gonzaga da Silva Leme o nome Pinto e lá encontro, no volu­
me I, página 120:

6 - 5 - Joaquim Pinto de Araújo Cintra, falecido em 1 894 no Amparo, casou-se


em 1 8 5 1 em Atibaia, donde era natural, com sua prima-irmã Anna Francisca da
Silveira Cintra, falecida antes de seu marido, filha de Joaquim Cintra da Silveira
e de Helena de Moraes Cintra. Tit. Lemes Cap. 5 § 5. Foi chefe do partido liberal
no Amparo no regime monárquico e por seus valiosos serviços foi agraciado com
o título de barão de Campinas ( o 22 deste título); foi importante fazendeiro com
cultura de café, e opulento capitalista. Fundou em 1 890 no Amparo o hospital que
tem o nome de sua virtuosa esposa - Anna Cintra. Teve os seguintes filhos:
7 - 1 - José Pinto do Carmo Cintra, bacharel em direito, fundador do banco
construtor e agrícola de São Paulo, à cuja frente se acha ainda neste ano de 1 903.
Está casado com Genoveva de Toledo, filha de Francisco Dias de Toledo e de Ma­
ria Ursulina Dias. Tit. Toledos Pizas, Cap. 3° § 1 °, 2 - 3, 3 - 2. Tem um filho menor.
(segue-se o registro dos outros filhos do barão. ) 6

Os álbuns a que me refiro têm aquele sabor meio triste do passado,


um jeito de caixinha de música que toca pequenas árias bem diferen­
tes das congas e fox-trots deste século saracoteante. Nos dois álbuns de
retratos, os homens de sobrecasaca e cabeleira, geralmente jovens, nos
olham fixamente com a ardente expressão dos sonhadores românti­
cos. Muitos deles devem ter morrido bem moços: naquele tempo era
moda, e os poetas, que raramente chegavam aos trinta, davam o me­
lancólico exemplo. No álbum de autógrafos, há muita ingenuidade,

6. Luís Gonzaga da Silva Leme, Genealogia paulistana, tomo I, Duprat & Cia., São
Paulo, 1 903.
40 LUÍS MARTINS

muito lirismo de segunda mão melando tudo com suspiros e ais irre­
mediáveis, e também bastante coisa interessante, a que me referirei.
Uma curiosidade de certa importância é o retrato de Prudente de Morais,
jovem, com uma dedicatória no verso, datada de 1879 e assim redigida:

Ao distinto amigo e correligionário Carmo Cintra - oferece.


Prudente de Moraes
Piracicaba, 18 de Setembro. De 1 879.

(Pelo "correligionário': vê-se claramente que o filho do Barão de Cam­


pinas era republicano.) O homem que viria a ser, tantos anos mais tarde,
o primeiro presidente civil da República, apresenta nesse retrato antigo
uma bela e nobre cabeça, coberta de cabelos ondulados, a barba abun­
dante emoldurando a fisionomia serena e enérgica.
Outro republicano histórico que consta dos álbuns é Francisco Glicé­
rio, o famoso político que, amigo de Prudente de Morais, viria mais tarde
a se indispor com ele, passando para a oposição, de que foi um dos che­
fes (fotografia sem dedicatória. ) Com dedicatória, mas sem assinatura,
é a de Lúcio de Mendonça, o conhecido escritor fundador da Academia
Brasileira de Letras, que foi dos estudantes mais reconhecidamente repu­
blicanizantes de sua época.A oferta é de um período muito posterior aos
tempos da faculdade: 1896, quando o sonho de ambos já se realizara (em­
bora a República não fosse também a de seus sonhos) e Lúcio já era ca­
sado e pai de dois filhos, que o ladeiam na fotografia. Lúcio de Mendon­
ça, magistrado, chegou a ministro do Supremo Tribunal, cargo em que
morreu.Há também, com dedicatória e datada de 1876, uma fotografia
de Sampaio Ferraz, o famoso chefe de polícia do Distrito Federal, primei­
ro da República, que se celebrizou por sua campanha contra os capoeiras.
Sampaio Ferraz, que foi republicano histórico, aparece nesse retrato mui­
to moço, provavelmente ainda aluno da Faculdade de Direito.
Os álbuns ainda contêm uma infinidade de fotografias, retratos de es­
tudantes, bacharéis, fazendeiros, médicos, alguns indivíduos cuja iden­
tidade se perdeu na noite dos tempos, outros que tiveram o cuidado de
assinar as dedicatórias, outros ainda que foram recentemente identifica­
dos.Encontro também o retrato de Luís Gonzaga da Silva Leme, autor da
O PATRIARCA E O BACHAREL 41

Genealogia paulistana, jovem e algo diferente do que vem no 9° volume


daquela obra.Este tem dedicatória em que se proclama "primo e amigo"
de Carmo Cintra.Há também nos álbuns uma fotografia de Proudhon, o
que acentua ainda mais as simpatias políticas de seu jovem possuidor.
Quanto à coletânea de autógrafos, marca ela um dos hábitos senti­
mentais da época.Em geral, as pessoas convidadas à colaboração nela re­
gistravam, com abundância de lugares-comuns, os seus sentimentos, sin­
ceros ou não, em relação ao proprietário.E vinham as chapas infalíveis de
falsa modéstia: "baldo de recursos intelectuais", "sinto não ter expressões",
"a escassez da minha inteligência", "eu que nada sei! " - coisas assim; e to­
dos, ou quase todos, proclamando a força e a importância da amizade,
"esse sentimento sublime", "Amizade, ó santa Amizade! ", em termos calo­
rosamente inexpressivos.
O álbum de José Pinto do Carmo Cintra principia em 1869.É o ano da
primeira inscrição, datada de Itu a 5 de outubro e assinada por Francisco Ni­
colau Schmidt.Carmo Cintra deveria ter então 17 anos no máximo.Toda a
sua excessiva mocidade se revela nas primeiras páginas do volume, a maio­
ria delas escrita em Itu.Por exemplo, uma das primeiras inscrições, aliás sem
data, é assinada por Joaquim Pinto da Silveira Cintra, que comparece várias
vezes fotografado nos dois álbuns de retratos.O que ele escreveu é de uma
ingenuidade completa, que nem sequer dispensava os erros de ortografia.
V ê-se que são palavras de menino.Entretanto, esse irmão de Carmo Cintra
foi médico de valor, segundo nos informa Silva Leme, formou-se em Bruxe­
las, ocupou a cadeira de deputado provincial, elegeu-se deputado geral em
1889, não chegando a tomar posse em virtude da queda da Monarquia e, na
República, foi eleito deputado à constituinte do estado de São Paulo.
O que nos interessa aqui é assinalar que as primeiras preocupações do
futuro bacharel, então adolescente, naturalmente criado na fazenda pa­
terna, eram de ordem abstratamente sentimental, que se revela nos escri­
tos das pessoas com quem convivia, das pessoas que encheram as primei­
ras páginas do seu álbum.
De passagem, poder-se-ia insistir no registro do elevado número de
personagens de Itu que constam daquelas páginas.Revela de certa maneira
um índice elevado de instrução, pois várias das inscrições estão recheadas
de citações literárias.
42 LUÍS MARTINS

Há algumas composições em verso e até um acróstico, aproveitando


o nome todo de José Pinto do Carmo Cintra.Os versos traem a moda do
tempo, um lirismo açucarado e piegas que, quando não era manejado
pelos poetas de primeira ordem, como Casimiro de Abreu, descambava
para a banalidade.Aliás, talvez muitas das composições poéticas não se­
jam originais, mas apenas simples cópias.Ainda hoje é moda, nos álbuns
de mocinhas, a transcrição de trechos poéticos de autores conhecidos
sem a menor referência a eles.Em todo caso, e no intuito de salvar de um
olvido completo algumas possíveis vocações poéticas que o tempo esque­
ceu, citarei aqui os nomes de: João Batista Leme (nome do poema: "Folha
Solta" ; data: 18-11-1869) ; Francisco Nicolau Schmidt (o tal do acrósti­
co, Itu, 25-11-1869) ; José Álvares da C.Lôbo (este declara expressamen­
te, numa pequena introdução em prosa, que os versos são seus, escritos,
diz ele, "quando eu era ainda mais moço do que tu", e antecipa-os de uma
quadra de Casimiro de Abreu; Itu, 29-11-1869) ; José Antônio Aparício
D'Almeida Garret (descendente do grande poeta português?) pergunta
antes: "Queres ouvir um canto, jovem mancebo? Escuta" e sapeca quatro
quadras de métrica indefinível (Itu, 30-11-1869) ; Paulino Corrêa Pache­
co Jordão, "baldo de recursos intelectuais", cita uns versos do "poeta Vol­
taire" (Itu, 29-11-1869).Em prosa aliás, há muitas outras coisas escritas
que se dirigem ao "Estimado Discípulo': dizendo-se seu "preceptor".Esse
mestre era um poeta que não sabia se exprimir em versos, pois chama a
saudade "um suave fumo do fogo do amor", imagem aérea e delicada.7
A poesia continua, porém. Em São Paulo, a 28 de junho de 1870,
Henrique Nicolau Schmidt escreve em versos decassílabos.O fecundo
Francisco Nicolau Schmidt enche uma folha com a "Despedida", es­
crita numa fazenda, em Amparo, a 5-12-1869. E, no Rio, escreve um
"Queixume" a 20-2-1872, Fernando de Queiroz Barreto, que devia ser
um colega de estudos do dono do álbum, pois se confessa como fazen­
do parte da "falange" da mocidade.
Até aqui nada de manifestações políticas.Carmo Cintra já estudante
de direito, tendo perdido um ano, resolveu ir terminar o curso em Recife.
Na capital pernambucana tudo se transforma.Há uma completa mudan-

7. Mas que não era dele. Era do clássico português Dom Francisco Manuel de Melo.
O PATRIARCA E O BACHAREL 43

ça no tom da literatura do álbum.Um sopro de liberdade varria nobre­


mente a poesia romântica.Em Recife, onde os ecos das lutas condoreiras
de Tobias Barreto e Castro Alves abalavam ainda todos os entusiasmos
juvenis, formava-se uma mentalidade revolucionária, eloqüente, porven­
tura mais ardente ainda que a de São Paulo.
Os estudantes sulinos já saíam de sua terra impregnados de grandi­
loqüência lírica e tribunícia.A espantosa geração que reunira no mesmo
ano em São Paulo as figuras solares de Castro Alves, Rui Barbosa e Joa­
quim Nabuco impressionava todos os espíritos com o seu porte excep­
cional.Entretanto, contam acadêmicos daquele tempo, a maior figura da
faculdade, que empolgava a multidão de estudantes com seu verbo elo­
qüente e romântico, era Martim Cabral. Outro de grande prestígio era
Ferreira de Menezes.Todo mundo abolicionista.Quase todo mundo re­
publicano. Fora da faculdade, Luís Gama congregava, em torno de sua
figura apostolar de negro predestinado, todos os entusiasmados jovens.
Antônio Bento era outro líder, seguido e respeitado.
A influência de Castro Alves foi enorme. Passara rapidamente pela
faculdade para morrer, na Bahia, pouco depois, em 1871.Entretanto, a
tradição tendia para perpetuá-lo como um prestígio quase lendário.Os
calouros ouviam, embevecidos, dos veteranos, que o tinham conhecido
pessoalmente, as anedotas de sua vida e de seus amores com o mesmo
carinho religioso com que os adeptos da cristandade primitiva deveriam
ouvir, da boca dos apóstolos ainda vivos, a lenda maravilhosa de Jesus...
Xavier Marques, na sua Vida de Castro Alves, assim evoca o tempo em
que o grande poeta dos escravos deslumbrava a Paulicéia com a sua pre­
sença prestigiosa:

A vida literária em São Paulo não ia mais na altura dos tempos de Álvares de Azeve­
do, Bernardo Guimarães, Ferreira Viana, Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, po­
etas, oradores e publicistas. Mas o nível da inteligência e da cultura não baixara: lá vi­
viam e brilhavam, na Congregação da Faculdade, nas rodas acadêmicas, na imprensa e
nos clubes, José Bonifácio, Saldanha Marinho, Ferreira de Menezes, Joaquim Nabuco,
Rui Barbosa, Carlos Ferreira, Ramos da Costa, Brasílio Machado e outros. Castro Al­
ves, com o seu "gênio elegante'; a todos se impôs. Nenhum estudante soube, como ele,
estreitar com vínculos de fraternidade a camaradagem acadêmica; nenhum inspirar
44 LUÍS MARTINS

mais sincera admiração e duradouras afeições, quer a condiscípulos, quer a professo­


res. Tudo convergia, da sua parte, para essa invejável situação: a alma caroável, o talento
pujante sem fatuidade, a palavra - arrebatadora na tribuna - cariciosa na intimidade,
as prendas de um nobre e gracioso físico, o seu próprio alheamento das "realidades da
vida e ambições da mocidade''. Fora da poesia, não havia para ele interesses que per­
turbassem o lago de bondade interior em que se lhe banhava o coração. Sem esforço
tornou-se um dos "leaders" da Academia. O outro era Ferreira de Menezes. O lente
José Bonifácio deu-lhe a mais cordial estima e fazia garbo de sair com ele de braço. Se
no Recife - a boa terra das suas loucuras e dos seus amores - o haviam ferido nalguns
espinhos, aqui só de flores se lhe juncava a larga estrada.8

No Recife, porém, as lutas eram mais vivas, sentia-se mais de perto a


ressonância das idéias políticas e filosóficas do momento; e, mesmo ain­
da ao tempo em que Carmo Cintra lá esteve, a lembrança de Castro Alves
influía em todos os rapazes que faziam versos. Um dos mais interessantes
exemplares dessa musa incendiária, que ia até ao excesso das mais violen­
tas apóstrofes, é a seguinte poesia da lavra de José Pinto Ferreira de Oli­
veira, datada do Recife, 1876, e intitulada "Ao Brasil":

Não é com ferros, cadeias


que se conquistam laureis;
o povo esmaga os tiranos
e cospe a fronte dos reis.

Que vale o cetro do ferro


que vale o manto de ouro?
a liberdade do Povo
é maior, maior tesouro,

Se p'ra nós não há direitos,


se para nós não há lei,
os pulsos quebrem cadeias
esbofeteie-se o Rei.

8. Xavier Marques, Vida de Castro Alves, 2• ed.; Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, s.d.
O PATRIARCA E O BACHAREL 45

Os filhos d'essas montanhas


têm sangue de Briareus.
Sim, o povo Americano
só tem um Senhor, é Deus.

Nós queremos - liberdade.


Igualdade seja a lei;
ou não haja rei n'América
ou o Povo seja o Rei.

O retrato do poeta, José Pinto Ferreira de Oliveira, consta de um dos


álbuns de fotografias.No ano em que ele escreveu a poesia acima trans­
crita, no álbum de Carmo Cintra, fazia já cinco anos que Castro Alves
morrera. Sua presença, entretanto, está visível naquele "sangue de Bria­
reus" e no gosto da eloqüência viril.
O sentimento republicano é bem vivo e bem evidente em tudo que
os amigos de Cintra escreveram no Recife. As páginas de seu álbum, des­
sa época, demonstram claramente a evolução operada no estudante, em
seu espírito e na escolha dos amigos. Assim, Francisco Pitanga Filho deixa
este testemunho expressivo de profissão de fé republicana:

Cintra -
Duas coisas me unem muito estreitamente a ti - a amizade e a idéia que traze­
mos sempre em mente - a República; a primeira, que guardamos no coração, será
conservada com toda sinceridade por mim, a segunda, nós juntos, trataremos de
procurar quem, unindo-se a nós, possam (sic) nos ajudar a trabalhar para o dia
da nossa redenção.
Já tenho dito de mais, pois daqui a duas horas vais deixar Pernambuco, quem
sabe se para sempre. Adeus. Um abraço em nossos irmãos.
Francisco Pitanga F 0
Recife, 1 2 de Novembro de 1 874.

Também na capital pernambucana, a 21 de novembro de 1879, Joa­


quim S. Cisneros D' Albuquerque assevera ao amigo que,
46 LUIS MARTINS

com tua lúcida - mas modesta inteligência, estais fadado a seres em nosso país um
poderoso paladino da grande causa que pleiteamos e que, como sabes, foi o laço
que nos ligou em cordiais relações de amizade.

E Laudelino Rocha escreve este inflamado soneto, onde certos laivos


de sátira se misturam a uma grande revolta cívica:

O BRASIL

O que é o Brasil?...Um vasto Império


De um povo escravo e quase sem cultura
Que humilde se sujeita à ferradura
De um governo cruel e sem critério.

Aqui o ser honrado é vitupério;


Confiar no direito é grã loucura;
Pois só pode fazer boa figura
Quem for servil ou não passar por sério

O jornalismo aqui é uma quimera


Que só vive incensando aos figurões,
Dos quais gordos proventos sempre espera.

Eis o que é esta terra dos barões,


Na qual já se olvidou de todo a era
Em que a virtude e a honra eram brasões!

Recife, 20 de Novembro de 1 879

Parece que em 1879 o filho do barão terminou o curso e voltou a São


Paulo. Quase todos os seus amigos pernambucanos têm expressões de
despedida. Um deles assina-se "o republicano Romualdo Alves de Olivei­
ra". E Amazonas de Almeida refere-se "aos teus nobres esforços pela nos­
sa causa política".
O PATRIARCA E O BACHAREL 47

Mas subitamente, no álbum, uma nova revelação se nos apresenta. Es­


crevem dois amigos divergentes em política e religião, e por um deles fica­
mos sabendo que Carmo Cintra era livre-pensador. Ainda neste detalhe
estava aquele bacharel filho de fazendeiro, certamente católico, coerente
com o seu tempo, integrado corretamente no seu papel histórico de re­
presentante típico de toda uma classe social.
Eis os dois depoimentos:

Amigo Cintra
Para manifestar-te os sentimentos de verdadeira amizade que me inspiram tua
republicana individualidade, não recorrerei aos atavios e filigranas quintilinescas.
Falar-te-ei somente a linguagem singela e eloqüente do coração e cedendo ao seu
magnético impulso deixarei nesta folha de teu álbum, como eterna lembrança, esta
simples frase:
Apesar da divergência profunda que existe entre nossas idéias políticas e religiosas
crê - serei sempre teu amigo e admirador do teu belo caráter. Ah! Se todos os nossos
grandes homens fossem assim!
Recife, 16 de Novembro de 1 879
Tarquinio de Sousa Filho

Dr. Cintra
Católico e conservador, saúdo de coração ao livre-pensador e ao republicano
convencido e desvaneço-me em um dos admiradores de seu vigoroso talento e
excelente caráter.
José Augusto de Sousa Amarantho
Recife, 1 6 de Novembro de 1 879

Deixei para o fim o principal documento - aliás bem anterior, de 1873,


e datado de São Paulo - de exaltado sentimento revolucionário republi­
cano contido no álbum de Carmo Cintra. É o poema "Ad usum Princi­
pis"9, de Lúcio de Mendonça, que eu não sei se foi posteriormente incluí­
do em qualquer de seus livros. Lúcio foi grande amigo de Carmo Cintra e
com ele morou algum tempo numa "República': É esta poesia:

9. Para o uso do príncipe. Trad. do Ed.


48 LUÍS MARTINS

AD US UM PRINCIPIS

O clarão da alvorada - liberdade


Nasce do sangue derramado puro.
Da barricada avista-se o futuro.
E a luz - democracia - o mundo invade.

O trono, campa que o passado encerra.


A estrada do progresso toma o leito.
O povo quer seguir: deite-o por terra.
Pereça a tradição! viva o direito!

Posto nas mãos de um soberano astuto,


Muda-se o cetro em mágica varinha.
Do rei toda a nação move-se ao nuto,
Qual boneco de pau puxado à linha.

Ninguém contesta que o reflexo exista;


Mas eu conheço um argumento oposto:
É que do rei não há rubor no rosto,
Ainda que de púrpura se vista.

Que peso o da coroa carregada


De crimes sobre a fronte do rei langue!
Pois que do povo está tinta de sangue,
Toda a púrpura é amaldiçoada!

Contra o salteador que nos agride


A reação mortal é permitida.
Todo rei é ladrão que reincide.
Conseqüência: não tem direito à vida.

São Paulo, Agosto de 1 873


Lúcio de Mendonça
O PATRIARCA E O BACHAREL 49

Vemos, em face de tudo que acabamos de expor, que Carmo Cintra,


filho do Barão de Campinas, era, em muitas coisas, o completo oposto
de seu pai. Este, "chefe do partido liberal no Amparo no regime monár­
quico': "por seus valiosos serviços foi agraciado com o título de Barão de
Campinas"; o filho se torna "republicano convencido".O pai, "importan­
te fazendeiro com cultura de café", possuía certamente escravos; o filho
devia pertencer ao partido abolicionista, dadas suas idéias avançadas. O
pai, lavrador; o filho, bacharel, abandona a terra e torna-se "fundador do
Banco Construtor e Agrícola de São Paulo", a cuja frente o filho - isto Sil­
va Leme não diz, mas eu sei por informações de pessoas que o conhece­
ram - morreu pobre.
Muitas das informações aqui contidas me foram fornecidas pelo sr.
José Estanislau do Amaral, fazendeiro e decano dos advogados formados
pela Faculdade de Direito de São Paulo. Ele foi colega de Carmo Cintra,
com ele morou numa "República" de estudantes (a mesma em que tam­
bém habitou Lúcio de Mendonça) e conheceu-o intimamente.
Mas a informação mais curiosa que dele obtive - e que veio a servir de
ponto de partida para este ensaio - é a seguinte:
José Pinto do Carmo Cintra foi um grande republicano.Como propa­
gandista, era fanático, intransigente, irredutível."Chegava a ser importu­
no", acrescenta o seu antigo colega.Entretanto, consumado o golpe de 15
de novembro, encontraram-se os dois e José Estanislau apresentou a Car­
mo Cintra calorosos parabéns.Mas o antigo republicano estava indigna­
do e, com grande espanto do amigo, retorquiu-lhe veemente:
- Uma vergonha! Uma vergonha! Só houve em tudo isso um homem
digno: o Barão de Ladário! 1 0
Desde então, o filho do Barão de Campinas abandonou o republica­
nismo, voltando a cultivar, numa saudade impotente, as idéias paternas.
Esse curioso sentimento de remorso, como adiante havemos de ver, foi a
marca trágica de toda uma geração.

10. Ministro da Marinha de D. Pedro II, o Barão de Ladário recusou-se a render-se ao Ma­
rechal Deodoro da Fonseca no 15 de Novembro de 1889. N. do E.
José Pinto Ferreira de Oliveira Sampaio Ferraz

Lúcio de Mendonça em 1873 Prudente de Moraes em 1879


II. O patriarca

Chaque révolution contre l'ordre social com­


mence par la révolte contre le pere. L'absolutisme se
construit sur l'ordre familia/ qui donne le droit de
vie et de mort au pater-familias.
STEKEL 1 1

Para bem estudarmos a estrutura patriarcal da nossa sociedade, perdu­


rável, de forma nítida e predominante, até quase fins do século passado, se­
ria talvez preciso que nos aventurássemos a uma análise minuciosa da fa­
mília brasileira, nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX; nela procuraríamos a
formação dos estilos de vida que caracterizaram as atividades sociais brasi­
leiras naqueles séculos e tiveram uma repercussão tão grande na política.
Nos grandes latifúndios formou-se a base da nossa fisionomia social,
alicerçada no trabalho escravo.A bem dizer, nos três primeiros séculos e
meio da vida brasileira, mal mereciam o nome de cidades os agrupamentos
de humildes proporções que vegetavam melancolicamente à margem dos
grandes domínios de criação de gado ou de plantação para os engenhos.
Enquanto os latifúndios ostentavam uma vida brilhante e faustosa, as
cidades mais importantes se estiolavam numa vidinha sórdida, segundo
testemunho célebre, 1 2

sem ter quem possa servir de vereador, nem servir cargo autorizado e só habitadas
de oficinas mecânicas, pescadores, marinheiros, mulatos, pretos boçais e nus, e al­
guns homens de negócios, dos quais muito poucos podem ter esse nome.

1 1 . Toda revolução contra a ordem social começa pela revolta contra o pai. O absolutismo
constrói-se a partir da ordem familiar que dá o direito de vida e de morte ao pater-famí­
lias. Wilhein Stekel ( 1 868 -1 940), psicanalista austríaco. N. do E.
1 2. O do Conde de Cunha.
52 LUIS MARTINS

O sr.Oliveira Viana, que estudou, em livro muito citado, a evolução


das nossas populações meridionais, insistiu bastante nessa feição da nos­
sa formação social, que viria dar ao Brasil, até quase o fim do segundo rei­
nado, a primazia de sua orientação política ao homem rural.
É característico esse trecho do ilustre escritor:

Essa ligação, essa aliança, essa fusão dos nobres vindos d'além-mar com os nossos fa­
zendeiros do interior, prova quanto a obra de adaptação rural, de conformismo rural -
em uma palavra, a obra de ruralização da população colonial, durante o III século, é rá­
pida, vasta, profunda. Sente-se que o nosso tipo de homem rural - homo rusticus - com
os característicos com que o conhecemos hoje, já se vai modelando por esse tempo, e di­
ferenciando-se cada vez mais do tipo peninsular originário. De maneira que nada há a
admirar ao vê-lo surgir, um pouco mais tarde, já no IV século, depois da independência
nacional, no governo do país, com a sua fisionomia inconfundível e própria. 13

A colônia, como concepção de vida, não termina com a Independên­


cia, 14 antes continua com a maioridade e com os primeiros anos do reinado
de Pedro II.Ela vem sofrer os primeiros embates já na segunda metade do
século XIX, quando se iniciou entre nós um período mais ou menos inten­
so de renovação material.Até então o país era um sólido amálgama social
em que todas as forças influentes se auxiliavam mutuamente, unidas, para­
lelas e solidárias: clero, política, magistratura, família, economia, latifúndio
- num vasto edifício de que os alicerces eram o braço escravo e a cumeeira
era o poder real.
O clero, em sua maioria, não agia como força dissolvente ou revolucio­
nária, apesar de, como coletividade, ser a classe mais instruída."Os interesses
do Estado e da Igreja coincidiam': diz Hermes Lima. "Os capelães das casas-

13. Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil, 3• ed., Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1 933.
14. É o que reconhece um escritor de formação marxista, o sr. Caio Prado Júnior: "Tanto não
era apenas o regime de colônia que artificialmente mantinha tal situação, que abalado ele com
a Independência, vemo-la perpetuar-se. O Brasil não sairia tão cedo, embora nação soberana,
do seu estatuto colonial a outros respeitos, e em que o 'sete-de-setembro' não tocou" ( Caio
Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo, Liv. Martins, São Paulo, 1 942.)
O PATRIARCA E O BACHAREL 53

grandes cumpriam discretamente seu ofício no meio da nobreza, das suavi­


dades e das regalias patriarcais, que a escravidão gerara': 15 acrescenta o mes­
mo escritor adiante.
De certo modo, mesmo, não conseguimos até hoje nos libertar intei­
ramente do complexo colonial, que se manifesta em inúmeras reminis­
cências inconscientes como, por exemplo, naquele curioso desejo de re­
gresso à Europa, tão finamente posto em relevo creio que por João Ribei­
ro; na nossa instintiva posição de inferioridade diante do estrangeiro; na
ânsia que pomos em nos mostrar "civilizados" diante dele; na sofreguidão
com que lhe acatamos os elogios e na profunda mágoa que nos causam
suas restrições. Na nossa fisionomia moral, mesmo, conservamos ainda
restos soterrados da mentalidade colonial, que era a do patriarcado.
Um dos aspectos mais cruéis dessa mentalidade - aspecto que só ago­
ra se vai felizmente modificando - é a simpatia popular que em geral
cerca o uxoricida passional. Lima Barreto, que foi sem dúvida um dos
homens mais esclarecidos e mais "modernos" do seu tempo, comentou,
condenando com veemência, essa solidariedade pública ao assassinato
conjugal (por parte do marido somente) , solidariedade essa que é uma
espécie de reivindicação masculina ao direito de dominar tragicamente a
mulher. "O homem que lava a sua honra" era, e em parte ainda é, cercado
de um aplauso tácito à sua barbaridade ignóbil.
A sociedade permite tolerantemente o adultério masculino, porém
indigna-se diante do feminino. Lima Barreto conta um episódio típico.
Servindo de jurado no julgamento de um uxoricida passional, estava fir­
memente disposto a condená-lo. Cedendo porém aos rogos da mãe do
réu e aos apelos meio irritados dos seus colegas de conselho, acabou por
concordar em absolvê-lo. Pois à saída do júri - coisa que parece inacredi­
tável - os irmãos da vítima agradeceram-lhe a resolução! 1 6
Ora, esse preconceito medieval foi uma importação da cultura européia.
Os nossos indígenas adotavam, a respeito, uma largueza de vista que escan­
dalizou Gabriel Soares de Sousa, espantado de que os Tupinambás não ma­
tassem as esposas adúlteras: "Os machos destes Tupinambás" estranhava

15. Hermes Lima, Tobias Barreto, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1939.
16. Lima Barreto, Bagatelas, Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro, 1923.
54 LUÍS MARTINS

"não são ciosos; e ainda que achem outrem com as mulheres, não matam a
ninguém por isso e, quando muito, espancam as mulheres pelo caso:' 1 7
Com esse espírito, com essa concepção do direito patriarcal do chefe
de família, é fácil de se conceber as proporções que assumiu a prepotência
do marido, do pai, do patriarca, na família colonial brasileira. Prepotên­
cia que as condições sociais levaram a se exercer em forma sádica. Gilber­
to Freyre, melhor do que ninguém, estudou o sadismo básico da socieda­
de colonial, estimulado desde a infância pelo contato, pela convivência da
escravidão. É um ponto em que desejamos insistir.
Casos houve, numerosos, em que o pai exerceu contra os seus o que ele
interpretava tiranicamente como um direito: o assassinato. A crônica das
famílias coloniais apresenta vários desses tristes episódios. O mais comum,
entretanto, porque praticamente não sujeito a sanções penais, era a tortu­
ra infligida aos escravos, propriedade privada dos senhores, que deles dis­
punham como bem entendiam, inclusive tirando-lhes a vida. Para não fa­
larmos de outros casos, mais ou menos conhecidos, basta lembrarmos que
ainda em 1886, às vésperas da libertação, quando a propaganda abolicio­
nista já se apossara quase completamente da consciência do país, em pleno
Rio de Janeiro, ocorreu um desses monstruosos atentados, mais melancóli­
co ainda porque dele foi autor uma senhora. 1 8

1 7. Gabriel Soares de Sousa, Notícias do Brasil, tomo II, Liv. Martins, São Paulo, s.d.
1 8. O caso provocou indignação. A Semana, o famoso semanário de Valentim Magalhães,
publicou sobre ele a seguinte nota, em seu número 60, de 20 de fevereiro de 1 886:
"Aos horrorosos sofrimentos infligidos pela sua senhora, sucumbiu, no dia 14, a escravi­
zada Joana. No necrotério foi-lhe feita a autópsia pelos Drs. Tomás Coelho e Autran, mé­
dicos da polícia, e o resultado do exame cadavérico foi já publicado em todas as folhas, o
que nos dispensa de reproduzir esse horror.
Tendo o sr. João Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, pedido autorização para ser
feito o enterro por conta dessa benemérita associação, e tendo lhe sido concedido, saiu o corpo
às 5 1/2 da tarde do dia 15 para o cemitério de S. João Batista, acompanhado por membros da
Confederação, com o respectivo estandarte, e por vários representantes de alguns jornais. A Se­
mana fez-se representar pelos nossos colegas Filinto de Almeida e Henrique de Magalhães.
A beira da sepultura o sr. José do Patrocínio pronunciou uma breve e brilhantíssima ora­
ção, que emocionou fundamente os assistentes.
Foi este o epílogo sombrio do pavoroso drama da Praia de Botafogo, drama que só por si
não chega a constituir uma cena da sanguinolenta e interminável tragédia da escravidão."
O PATRIARCA E O BACHAREL 55

A criança colonial, como fez ver Gilberto Freyre, educou-se em am­


biente propício ao desenvolvimento de um complexo sádico-masoquista.
Tinha perto dele o moleque negro para judiar.

Nas brincadeiras, muitas vezes brutas, dos filhos de senhores de engenho, os


moleques serviam para tudo: eram bois de carros, eram cavalos de montaria, eram
bestas de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas. 1 9

"Eram-lhe o cavalo, o leva-pancadas" 2º, diz Veríssimo.


Ainda Gilberto Freyre, embora sem o menor preconceito psicanalítico,
acentuou, com perspicácia, que "o sadismo de senhor e o conseqüente ma­
soquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, tem-se
feito sentir, através da nossa formação, em campo mais largo: social e polí­
tico". 2 1 Acrescentando:

A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada


a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode cha­
mar "povo brasileiro" ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e
corajosamente autocrático. 22

No número 64, de 20 de março de 1 886, "Filindal" (Filinto de Almeida), fazendo a resenha


da semana, volta a comentar o sombrio episódio, nos seguintes termos:
"O Dr. Gusmão, 3 ° delegado de polícia, remeteu no dia 12 ao Dr. Juiz do 9° distrito crimi­
nal os autos do inquérito que iniciou sobre o caso das infelizes escravas Joana e Eduarda.
O relatório apresentado pelo Dr. Gusmão, publicado no Jornal de 13, é uma peça impor­
tante. Desvendam-se aí as circunstâncias mínimas desse horrível drama da escravidão. Na
impossibilidade de reproduzir aqui todo o relatório, transcreveremos apenas o depoimen­
to de Maria Joana, ex-criada de Francisca da Silva Castro:
Disse que Eduarda e Joana eram conservadas por D. Francisca da Silva Castro, presas no quar­
to em que esta sempre permanecia, sem terem consentimento de transpor os limiares do mes­
mo, que D. Francisca mandava-as despir e aplicar-lhes sobre o corpo nu chicotadas até que as
duas infelizes ficassem em estado lastimável, atando-lhes os braços com cordas, e assim con­
servando-as por muito tempo, e sem tomarem alimento, que afinal lhes era dado, colocando­
se-o sobre o chão, a fim de que Joana e Eduarda, de bruços, o apanhassem com a boca!"
19. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, 2• ed., Schmidt Editores, Rio de Janeiro, 1936.
20. José Veríssimo, A educação nacional, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, s.d.
2 1 . Gilberto Freyre, ob. cit.
22. Idem.
56 LU!S MARTINS

Assim, pois, aqui se confirma um dos postulados da psicanálise: a socio­


logia política não é mais que uma extensão da sociologia doméstica.
Freud propôs uma curiosa teoria do superego que talvez seja interessan­
te tomar em consideração. Fiel ao seu método dualista, ele acreditou desco­
brir, ao lado do instinto que tende a conservar a matéria viva (a libido) , um
outro destruidor e negativo, o instinto de morte ou de destruição. Dirigido
contra o próprio "eu", pode chegar aos excessos masoquistas; dirigido para
fora, para a sociedade, estimula os indivíduos à luta, à competição e às de­
monstrações sádicas.
Os homens são ligados entre si pela libido, que possibilita os laços
morais e o desenvolvimento da cultura; porém, o instinto de destruição
opõe-se a esse desígnio constante. "Assim, creio que o sentido da evolução
cultural já não nos parecerá impenetrável; ele nos mostra, forçosamente,
a luta entre Eros e a morte, instinto de vida e instinto de destruição, tal
como acontece na espécie humana". 23
Porém, a cultura, que quer se desenvolver, deveria dominar o ins­
tinto de morte, que lhe é antagônico. Que acontece, então, para que
seus desejos agressivos se tornem inócuos?

Algo sumamente curioso, de que não havíamos suspeitado e que, não obstan­
te, é bem natural. A agressão é introjetada, interiorizada, devolvida, realmente, à
região de onde procede: é dirigida contra o próprio "eu" incorporando-se a uma
parte deste, que, na qualidade de superego, se opõe à parte restante e, assumindo
a função de "consciência moral", exerce em relação ao "eu" a mesma agressividade
severa que o "eu", de bom grado, satisfaria em indivíduos estranhos. A tensão cria­
da entre o severo superego e o "eu" subordinado ao mesmo, nós a qualificamos de
"sentimento de culpa"; manifesta-se sob a forma da necessidade de castigo24 ·

Assim, pois, ao superego incorpora-se um componente sádico pro­


veniente do instinto de agressão. Mas o que é, em última análise, o su­
perego, senão a introjeção da imagem do pai, seja ontogeneticamente,
como conseqüência do contato e da educação, seja filogeneticamente

23. Freud, E/ ma/estar en la cultura, trad. de Ludovico Rosenthal, s. ed., Buenos Aires, 1 930.
24. Freud, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 57

- e de acordo com o postulado do Totem e tabu -, como conseqüência


do remorso posterior ao crime da horda? Usando de uma imagem, po­
demos dizer que acontece, na fo rmação do superego, um ato análogo
ao realizado pelo crente católico no ritual da comunhão; é uma espé­
cie de hóstia que se incorpora ao nosso próprio ser, identificando- nos
com ele e tomando a forma de consciência moral. O crente absorve,
na hóstia, a mesma carne de Cristo; todos os homens absorvem, na
formação do superego, a própria essência paterna, idealizada.
O instinto de destruição incorpora-se, pois, ao superego e dirige-se
contra o "eu" ; um exagero patológico dessa introjeção poderá levar o in­
divíduo aos casos mórbidos de masoquismo.
Na formação social do brasileiro, as condições da economia escravocrata
familiarizavam o indivíduo com cenas de violência sádica que chegavam, al­
gumas vezes, à execução capital; a própria situação da criança era dúbia, pois
que, violenta e malvada em relação aos moleques "leva-pancadas': era sub­
missa e humilde diante do pai todo-poderoso que a intimidava e seviciava.
Quer dizer que o meio estimulava, exagerava suas possíveis predisposições
inatas, sádicas ou masoquistas, fazendo dos meninos coloniais senhores pre­
potentes e mandões ao extremo, ou então passivos participantes da grande
massa masoquista a que se refere Gilberto Freyre no passo há pouco citado.
Mais tarde, quando a economia rural se modificou, quando, com a
expansão do ensino superior e a facilidade dos meios de transporte, ope­
rou-se uma rápida urbanização do país, os hábitos modificaram-se e hu­
manizaram-se, perdendo bastante da sua violência inicial. Todas essas
tendências sádico-masoquistas, que antes tinham campo vasto para exte­
riorizar-se, recalcaram-se penosamente. A rebeldia contra o pai manifes­
tou-se então num antagonismo violento e talvez inconsciente que estu­
daremos adiante - rebeldia essa que, nos filhos dos fazendeiros e senho­
res de engenho, se resumiu no sentimento republicano que, dirigido in­
conscientemente contra os pais, era-o também, de forma mais conscien­
te, contra a figura do pai coletivo - o Imperador.
Não antecipemos, porém, o que se há de ver nos capítulos seguintes;
quero todavia, desde já, chamar a atenção para a possível exacerbação do
sentimento de culpa e remorso manifestado após a proclamação da Re­
pública na maioria dos seus líderes; exacerbação essa que seria, talvez, a
58 LUIS MARTINS

punição imposta pelo superego, a vingança dos pais, a sua vitória final ex­
plodindo no inconsciente de toda uma geração.
Evidentemente, eu não atribuo a proclamação da República à ação do
complexo de Édipo. Ela teve causas complexas e múltiplas. E seria arbitrá­
ria essa distinção entre "geração de filhos" e "geração de pais" - pois todas
as gerações é claro que participaram igualmente das duas condições -,
não fossem as circunstâncias históricas do antagonismo em que aquelas
causas - econômicas, culturais, psicológicas - colocaram a maioria dos
brasileiros de certa categoria social (a categoria que influía nos destinos
do país) em relação aos seus pais, a partir de meados do século XIX. O
que eu afirmo é que, desde que as circunstâncias levaram os bacharéis do
século XIX a tomar, no campo político e social, uma posição prática e os­
tensiva, contrária à dos patriarcas rurais, seus progenitores, criou-se uma
atmosfera propícia à manifestação, à ação, à exteriorização dinâmica do
complexo de Édipo, com todas as suas conseqüências dramáticas.
Encerremos, porém, este parêntese prematuro, que já vai longo. Importa­
nos, no momento, frisar a relevância da organização doméstica das classes in­
fluentes dominadoras na formação social e política do Brasil. Porque foram
elas, de fato, que modelaram a feição da nossa nacionalidade, senão em seu
aspecto substancial, profundo, ao menos na sua aparência estrutural. Ain­
da em fins do século passado, dizia de nós Luís de Conty: "O Brasil não tem
povo''. Tem e tinha em 1822, mas ninguém o ouvia, todos se tinham acostu­
mado a resolver seus problemas sem o consultar, sem auscultar suas opiniões,
seus desejos e aspirações. Realmente, a nossa história política, até talvez dias
muito recentes, não é a história do povo, tomado como coletividade indistin­
tamente democrática, porém apenas a história de algu mas classes.
Era o que, com vivacidade, Tavares Bastos acentuava numa de suas
Cartas do Solitário: "Sim, há uma coisa que se esquece muito no Brasil: é
a sorte do povo; do povo que não é o grande proprietário, o capitalista ri­
quíssimo, o nobre improvisado, o bacharel, o homem de posição" 2 5.
A razão desse esquecimento foi penitentemente posta em relevo pelo
sr. Gilberto Amado: "O povo brasileiro" escreveu,

25. A. C. Tavares Bastos, Cartas do solitário, 3• ed., Companhia Editora Nacional, São Pau­
lo, 1938.
O PATRIARCA E O BACHAREL 59

não podia ser o milhão e meio de escravos, o milhão de índios inúteis que a con­
tagem do governo reduziu, com evidente imprecisão, a quatrocentos mil apenas;
não podia ser os cinco milhões de agregados das fazendas e dos engenhos, caipi­
ras, matutos, caboclos, vaqueiros do sertão, capangas, capoeiras, pequenos artífi­
ces, operários rurais primitivos, pequenos lavradores dependentes; não podia ser
os dois milhões ou o milhão e meio de negociantes, empregados públicos ou par­
ticulares, criados e servidores de todas as profissões. O povo brasileiro, existente
como realidade viva, não poderia deixar de ser apenas as 300 ou 400.000 pessoas
pertencentes às famílias proprietárias de escravos, os fazendeiros, os senhores de
engenho de onde saíam os advogados, os médicos, os engenheiros, os altos fun­
cionários, os diplomatas, os chefes de empregos, únicas pessoas que sabiam ler,
tinham alguma noção positiva do mundo e das coisas e podiam compreender,
dentro de sua educação, o que vinham a ser Monarquia, República, sistema repre­
sentativo, direito de voto, governo etc. 26

O sr. Hermes Lima, que cita em seu livro sobre Tobias Barreto essa lumi­
nosa síntese do escritor sergipano, pôde concluir, completando e corrigindo
Luís Conty: "O Império não tinha povo, no sentido político da palavra''.
Quem dominou o Brasil até meados do século XIX foi o patriarca
rural. Ele que o governou, através de seus homens responsáveis. A orga­
nização da família patriarcal transbordou assim dos limites exclusiva­
mente domésticos, para modelar a sociedade brasileira a seu gosto, para
imprimir à nossa política o caráter de suas qualidades e seus defeitos.
Sendo a propriedade das terras um fator decisivo de classificação social,
era o fazendeiro o ponto culminante de nossa sociedade, cujo modelo
de vida servia de padrão ideal. É essa a tese do sr. Oliveira Viana, quando
diz que "a família fazendeira, tal como aparece no quarto século, é re­
almente a mais bela escola de educação moral do nosso povo". 27 E tam­
bém quando assevera:

Essa preponderância da vida de família influi consideravelmente sobre o ca­


ráter e a mentalidade da nobreza rural. Torna-se uma classe fundamentalmente

26. Gilberto Amado, Grão de areia, Jacintho Ribeiro dos Santos, Rio de Janeiro, 1 9 1 9.
27. Oliveira Viana, ob. cit.
60 LUIS MARTINS

doméstica. Doméstica pelo temperamento e pela moralidade. Doméstica pelos


hábitos e pelas tendências. 28

É verdade que o sociólogo das Populações meridionais do Brasil nos


dá a impressão de se deixar levar um pouco pelo entusiasmo apologé­
tico, exagerando talvez a austeridade, a honestidade, a grandeza moral
dessa organização doméstica patriarcal e quiçá esquecendo um aspecto
menos majestoso, porém muito mais realista da vida das fazendas e dos
engenhos: a promiscuidade sexual das casas-grandes e das senzalas, tão
bem estudada pelo sr.Gilberto Freyre.O papel dissolvente da escravidão
exercido nos nossos costumes e na nossa formação psicológica.Creio que
ele exagerou num sentido contrário ao de Paulo Prado, que via a origem
da timidez nacional no esgotamento físico oriundo dos excessos sexuais:
"No Brasil, a tristeza sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviada
para as perversões eróticas e de fundo acentuadamente atávico".29
Nem tanto nem tão pouco.O que parece mais razoável é que o fazen­
deiro, o senhor de engenho, o latifundiário em suma, apenas exibisse com
ostentação o lado confessável, e realmente dotado de certa grandeza, de
sua complexa formação moral.Era com esse aspecto austero e grave que
ele comparecia à cidade, que ingressava na corte, que ia influir nos des­
tinos do país fazendo parte da Câmara dos Deputados, do Senado ou do
Conselho de Estado.Trazia então para o ambiente urbano seus precon­
ceitos, suas limitações e suas regras morais.Fazia do Brasil o seu engenho
de açúcar ou a sua fazenda de café.Ao sr.Oliveira Viana não escapou o
fato: "Nos dois Impérios", diz ele, "os elementos dominantes, na política e
na corte, são já, como veremos, na quase unanimidade, homens de pura
formação rural".30
Mas tudo isso vai mudar.Os filhos desses fazendeiros e senhores de
engenho estudam nas cidades.Aos poucos transforma-se o critério de
classificação social: o tipo ideal não será mais o "senhor de engenho",
porém o "doutor".

28. Oliveira Viana, ob. cit.


29. Paulo Prado, Retrato do Brasil, Dupra-Mayença, São Paulo, 1 928.
30. Oliveira Viana, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 61

De fato, o desenvolvimento das cidades, transferindo para o ambiente


urbano a predominância da vida social brasileira, até então rural, acompa­
nhou a decadência da mentalidade patriarcal.Nos primeiros tempos, mes­
mo nas cidades, os estilos de vida eram quase os mesmos dos grandes lati­
fúndios agrários; aos poucos, porém, o convívio mundano, o contato com as
novas idéias importadas, a participação da mulher em esferas de atividades
culturais ou econômicas, a industrialização criaram uma nova concepção de
vida.O patriarca, se de todo não morreu, sofreu bastante em seu prestígio.
Nesse particular, é interessante a comparação dos folhetins de França Júnior
com as crônicas de João do Rio.Em França Júnior - homem dos primei­
ros tempos do domínio urbano, ainda não de todo consolidado -, a cidade
é ainda a continuação do engenho e da fazenda; a familia é uma célula de
constituição patriarcal; é em torno do homem, do pater-familias, que todos
os outros personagens vivem, como meros reflexos e dependentes.O grupo
familiar - de que participam a "mucama" e o "moleque" - age e pensa por
intermédio do chefe, é um corpo unido e homogêneo.Em João do Rio - que
representa uma época de plena dominação urbana - vemos uma fragmen­
tação, uma dissociação dos membros da família, que passam a ser elementos
autônomos, pensando e até certo ponto agindo por conta própria.Há maior
igualdade e quase que relativa independência entre os cônjuges.No turbi­
lhão, no dinamismo, no frêmito da cidade vitoriosa, dissolveu-se o velho
núcleo patriarcal, criando formas novas de organização doméstica.
Essa transformação não se realizou da noite para o dia, é lógico. As
formas embrionárias de urbanização, na sociedade brasileira, datam do
tempo da vinda da família real para o Brasil, da época da Independência,
da Regência e da Maioridade.Documentos curiosos desses primeiros sin­
tomas de vida de cidade são os pequenos jornais que agitavam a política
em torno da Corte.O Rio de Janeiro era então o palco onde representa­
vam os homens formados, em grande parte, nas comodidades do interior.
Eles levavam para a metrópole os seus hábitos roceiros e sua mentalidade
rústica.A cidade, cadinho persistente, absorvia-os, incorporava-os e aos
poucos modificava-os, criando assim uma fisionomia própria e original,
um "espírito urbano" que levou mais de meio século a se solidificar.
O momento culminante dessa luta surda, e certamente ignorada de
seus próprios participantes, ocorreu em pleno reinado de D.Pedro II.
III. D. Pedro II

O historiador que desejar modelar para o futuro a personalidade intei­


riça e real de D.Pedro II esbarra numa impossibilidade: esse fantasma, ain­
da hoje inquietante, influiu tanto em nossa formação social; foi, durante
tanto tempo, o objeto de tantas discussões, tantas divergências, tantas opi­
niões apaixonadas; tudo girou tanto em torno dele - que a sua verdadeira
fisionomia moral e política se perde, talvez de maneira definitiva, no tu­
multo contraditório dos depoimentos apaixonados.
E, de fato, em face dos perfis desencontrados e dificilmente conciliáveis
que os seus contemporâneos lhe traçaram, poderíamos formar hoje, do ve­
lho monarca, duas imagens diferentes, opostas e rivais. É como se hou­
véssemos tido dois Pedro II.Um, o Pedro II dos depoimentos monarquis­
tas, era bom, liberal, erudito, inteligente, grave, honesto, tolerante e sábio.
O outro, o Pedro dos republicanos históricos, teria sido mau, mesquinho,
medíocre, invejoso, pérfido, grotesco, tirânico e ao mesmo tempo "banana",
sem uma noção exata da dignidade imperial, que lhe competia.
Para os primeiros, teria sido quase um gênio; para os segundos, an­
daria beirando os limites da imbecilidade. Isso se explica facilmente
pela longa duração do segundo reinado.Num grande período de ama­
durecimento, de evolução constante do país, as idéias se transforma­
ram, tomaram feições novas, o povo adquiriu novos hábitos, novas con­
cepções, novos conceitos. O que era ontem excelente poderia hoje ser
mau, ou vice-versa.Depois, havia a luta natural dos partidos. Pedro II
não era um simples indivíduo perdido na turba, não era um cidadão
como os outros.Nele se encarnavam um símbolo político, uma filoso­
fia, uma concepção de vida. Quando as idéias liberais, que eram as do
século, começaram a se afirmar em preferências republicanas, o monar­
ca passou a ser um ponto de doutrina, um assunto de controvérsia, ex­
primindo menos suas qualidades humanas do que as do regime que ele
simbolizava.Para um republicano exaltado, combativo e crente, a mal-
64 LU!S MARTINS

dade estava na raiz, na índole, na substância da realeza, e não poderia


haver boas qualidades num rei.
Além disso, é preciso não esquecer que, em quase meio século de vida
pública, os homens mudam muito.Com a idade, com a continuidade do
mando, Pedro II poderia ter adquirido um certo hábito da autoridade, que se
acentuaria à proporção que envelhecia.No começo ele era um menino des­
lumbrado e tímido no meio de famosos e adestrados estadistas, hábeis na
arte de governar.Mas no fim era o homem encanecido, experimentado, que
vira passar ministros e ministérios, imutável em seu poder acima dos ho­
mens e dos partidos.A inevitável decadência intelectual, uma certa imperti­
nência de velho e a possível convicção íntima de que a sua longa experiência
o colocava em situação superior a todos3 1 certamente amadureceram nele
uma indisfarçável atitude paternal em face do país, um jeito tutelar e bona­
chão de pater-familias, que não possuía no começo de seu reinado.
Se tirarmos a média de suas qualidades e seus defeitos, se tentarmos ex­
trair da contradição apaixonada dos depoimentos uma razoável imagem
contornada pelas constantes que mais ou menos resistem de um lado e de
outro, poderemos julgar que o segundo imperador do Brasil foi, de fato,
um homem honesto; um liberal a seu modo, muito mais liberal do que
a maioria dos seus coevos republicanos na América Latina.Era tolerante,
com um certo respeito supersticioso das instituições jurídicas do Império,
não só por inclinação pessoal mas também porque se impressionava mui­
to com o conceito que dele pudesse formar a opinião pública estrangeira.
Influiu beneficamente na educação moral do seu povo.Um pouco ingê­
nuo, deixando-se facilmente incensar pelas adulações palacianas, tomava
não raro atitudes conceituosas dignas de Mr.de la Palisse.Tinha a vaidade
de aparecer aos olhos do mundo como um sábio profundo, que não era.
Medíocre intelectualmente, isto me parece incontestável; ele foi um medío­
cre sem a menor suspeita de sua mediocridade; a publicação de seus incrí­
veis versos atesta uma inocência intelectual sem paralelo entre os homens

31. ''A revolução de 15 de Novembro deu-lhe o último golpe, tornando-o um inconscien­


te. No simulacro de Conselho de Estado que se reuniu no paço da cidade na noite daquela
data, D. Pedro articulava palavras sem nexo, parecendo alheio a tudo, repetindo sempre:
'Não há nada; os senhores são marinheiros de primeira viagem" (Suetônio, O antigo regi­
men, Cunha & Irmão Editores, Rio de Janeiro, 1896).
O PATRIARCA E O BACHAREL 65

públicos do Brasil.E - ponto capital e sempre discutível - exerceu o poder


pessoal de maneira decisiva, intervindo no governo do país com todo o
peso de sua autoridade.No fundo, quase tudo se fazia de acordo com a sua
vontade.Caprichoso, vingativo às vezes, a sua mesquinhez se revela na es­
colha das listas tríplices senatoriais, onde nem sempre se elevou acima de
suas simpatias e antipatias individuais.Exerceu, de fato, uma tirania mansa,
paternal, sobre o povo (a famosa "tirania da moralidade") com seus hábitos
de burguês meticuloso, ordeiro, um pouco puritano, um pouco estreito.
Faltou a Pedro II o senso decorativo da majestade, essa dignidade apo­
teótica do décor, que é um atributo essencial da realeza.Ele não foi propria­
mente um rei, mas um manso patriarca burguês, cercado de seus filhos, al­
guns irrequietos e rebeldes, como acontece em todas as famílias grandes.
Gilberto Freyre32 acentuou admiravelmente esse "acinzentamento" so­
cial que caracterizou o meio século do nosso segundo Império, tão pou­
co imperial, tão longe do brilho ofuscante das grandes cortes, tão distante
da plástica marcial de Napoleão, tão burguesmente doméstico que o cetro
parecia terminar em cabo de guarda-chuva...
Não obstante, o arremedo de Monarquia liberal que se quis implantar
no Brasil, caricatura do parlamentarismo inglês, chocava-se com a concei­
tuação tradicional da imaginação popular.O povo não poderia ver, no rei,
o Poder Moderador, essa abstração política.Para ele, o monarca era El-Rei
Nosso Senhor das velhas expressões do absolutismo português, o guia, o
chefe, o todo-poderoso, o onisciente, o onipotente, o demiurgo, o Pai.
O instinto popular via na realeza uma criação da ordem cósmica que
estabeleceu as hierarquias universais.Os reis seriam os mandatários ter­
restres dos deuses.
Para a lógica do povo, as Monarquias só se explicam pela origem divi­
na.Querer, como quiseram os liberais, atribuir-lhes uma essência humana,
racional, meramente política, era exigir das massas uma capacidade de abs­
tração interpretativa que elas não possuem. Biologicamente, todos os ho­
mens são iguais.O poder dos reis só poderia provir de um mandato divino,
sobrenatural, um fundo místico e indiscutível, como um dogma religioso.

32. Gilberto Freyre, Perfil de Euclides e outros perfis, José Olympio Editora, Rio de Janei­
ro, 1944.
66 LUIS MARTINS

"Todo rei é um deus, descende de um deus, ou reina pela graça de


um deus", diz Roger Caillois33 estudando o caráter sagrado do poder.E o
mesmo sociólogo lembra ainda que, nas sociedades primitivas, o crime
de lesa-majestade se situa entre os atos sacrílegos (o uso dos animais sa­
grados ou das mulheres proibidas) que atacam a ordem universal e pro­
vocam uma ruptura, um transtorno, uma quebra no funcionamento da
sociedade.34
Pedro II não foi evidentemente um monarca que, pelo prestígio do
decorativo imperial, pela observância do ritual majestático, impressio­
nasse a imaginação das massas populares. Ele foi - e essa feição se ia
acentuando à medida que envelhecia - um honesto e respeitável cida­
dão com uma ascendência paternal sobre o povo.Essa feição moral era
a mais própria para conquistar uma gente sentimental como a nossa,
cheia de meiguice espontânea, em cujo sangue mestiço se encontram
ainda reminiscências próximas da organização tribal do instinto de clã,
do patriarcado primitivo.
Uma coisa é certa: pelo físico, pelo temperamento, pelas circuns­
tâncias, ninguém estava mais apto do que D.Pedro II a encarnar o tipo
simbólico de pai do povo.Seu longo reinado foi uma espécie de episó­
dio doméstico.O palácio de São Cristóvão era uma casa-grande de fa­
zenda, e o imperador um tipo tão a caráter que nem dispensava as so­
lenes barbas do estilo.35

***

Muito se discutiu, durante o Império, a natureza do chamado Poder


Moderador. Irresponsável constitucionalmente, o imperador intervinha

33. Roger Caillois, El hombre y lo sagrado, Fundo de Cultura Económica, México, s.d.
34. Roger Caillois, idem.
35. Eder, visitando a Rússia em 1920, notou a abundância de bustos de Karl Marx, provi­
dos de enormes barbas, e atribui-lhes um caráter patriarcal (Veja-se "Introdução" a este
livro). Quando, em 1942, escrevi a primeira versão de O patriarca e o bacharel, publicado
pela Revista do Arquivo Mu nicipal de São Pau lo, fazendo referência às barbas de D. Pedro
II, eu desconhecia por completo o estudo de Eder.
O PATRIARCA E O BACHAREL 67

direta e ostensivamente no governo do país, criando aquela situação anô­


mala a que se refere Suetônio:

O último imperador, como chefe do Poder Executivo, presidia a reunião dos


ministros, que faziam parte do mesmo poder com a bizarra diferença de serem os
únicos responsáveis pelos atos que praticavam, excluindo-se, porém, dessa respon­
sabilidade o cabeça que como tal sempre predomina. 36

O que se praticava no Brasil era um arremedo de parlamentarismo,


adaptado às condições patriarcais da vida brasileira.Foi uma campanha
perdida dos liberais a implantação do verdadeiro parlamentarismo de
molde inglês entre nós. Tobias Barreto demonstrou a impossibilidade
de tal improvisação, sem fundamentos na tradição histórica, formado­
ra dos costumes políticos, contrariando os teoristas acadêmicos que a
queriam imposta por uma legislação arbitrária e de importação.37
O liberalismo do Império honra D.Pedro.Basta vermos hoje os ata­
ques que sofreu no Parlamento, na imprensa e na tribuna popular, para
aquilatarmos o grau de liberdade de que gozava o país.Mas seria hipo­
crisia atribuir ao Poder Moderador aquela neutralidade superior, acima
dos partidos e da política, que constitui a base estrutural das Monar­
quias parlamentares, sobretudo na sua forma modelar, que é o Império
Britânico.D.Pedro intervinha na política e, em última análise, se nem
tudo se fazia exclusivamente por sua vontade, quase tudo se fazia...
Poder-se-ia, sem dúvida, taxar de parcial o testemunho combativo
de Silva Jardim, que dizia em 1888:

Quem não sabe a existência desse terrível poder pessoal egoístico, dessa tirania, a
pior das tiranias, porque com a aparência de legalidade, tirania que, por não vibrar o
punhal, não dava ocasião ao grito de dor ou de revolta da vítima, mas que asfixiava sob
a pressão do cansaço, do abatimento, do esgotamento de forças? 38

36. Suetônio, ob. cit.


37. Tobias Barreto, Questões vigentes, Liv. Fluminense, Pernambuco, 1 888.
38. Silva Jardim, "A República no Brasil", in Biblioteca Internacional de Obras Célebres, vol. 22.,
Sociedade Internacional, Lisboa, s.d.
68 LUÍS MARTINS

Mas ninguém poderia encontrar vestígio de suspeição no depoimento


de um monarquista, Joaquim Nabuco, que escreveu:

Quem escreve estas linhas não é inimigo partidário nem desafeto pessoal do
Imperador; muito pelo contrário, assim como sempre fala respeitosamente do
chefe do Estado, desejaria poder ocupar-se da política do país sem envolver
a alta personalidade que a Constituição neutralizou tornando-a irresponsável.
Mas seria evidente hipocrisia comentar os grandes fatos, a arquitetura do rei­
nado, sem considerar a ação do Imperador, que, se não é tudo em política, é
quase tudo. 39

Seria enfadonho repetir aqui a abundante literatura oposicionista


que, num tempo em que a liberdade de pensamento não era um mito,
se multiplicava em frases incisivas, pronunciadas ou escritas com o
propósito evidente de fazer fortuna popular. Frases em que Ferreira
Viana era mestre. Não seria difícil, aliás, a demonstração de que D.
Pedro II foi talvez ainda menos poupado pelos próprios monarquis­
tas do que pelos republicanos.Os ataques que sofreu na tribuna par­
lamentar, na imprensa ou em livros, pelos simpatizantes da realeza, al­
cançaram, às vezes, uma violência extrema, amarrando, com freqüên­
cia, no manto real, uma estardalhaçante nota de ridículo bem pouco
reverente.
Entre os que atacaram pessoalmente o poder pessoal do imperador,
podemos citar Joaquim Nabuco, Tavares Bastos, Ferreira Viana, Ouro
Preto, Paula Sousa, Silveira Martins, Andrade Figueira etc.
Todos esses monarquistas foram depois atingidos pelo complexo
de remorso, que venho pretendendo estudar neste ensaio, e se torna­
ram saudosistas românticos.Mas o fato de se terem insurgido (não ape­
nas eles, porém a quase totalidade dos políticos eminentes do Império)
contra aquele poder pessoal que Silva Jardim considerava a pior das
tiranias demonstra que o imperador não foi um Pedro tão "banana"
como se julga.

39. Joaquim Nabuco, O erro do imperador, Typ. de G. Leuzinger & Filhos, Rio de Janei­
ro, 1 886.
O PATRIARCA E O BACHAREL 69

E se era, no começo de seu reinado, como quer Gilberto Freyre, um


patrono da mocidade, um veículo das idéias novas, um liberal, um alia­
do do bacharel contra o proprietário rural, do Filho contra o Pai, 4º na
velhice foi se tornando, ele também, um patriarca, se não um reacioná­
rio ferrenho, ao menos uma personalidade que, logicamente, pela po­
sição que ocupava, resumia a resistência conservadora e a tradição das
instituições monárquicas contra a demagogia liberal dos elementos no­
vos que se agrupavam em torno da República.
Na verdade, o patriarcalismo do segundo imperador era uma conse­
qüência das condições do meio social.Em escala maior, ele repetia o mes­
mo fenômeno das fazendas, das casas-grandes e das senzalas.O Brasil era
uma vasta fazenda.
A educação de D.Pedro II contribuiu também, a meu ver, para lhe im­
primir esse caráter de intimidade carinhosa, caseira, burguesa, que cons­
tituía o tom de suas relações com seus súditos.Uma vez abdicada a coroa
por seu pai, que seguiu logo o caminho do exílio, ficou o jovem prínci­
pe como que órfão, adotado pela ternura do país inteiro.Estabeleceu-se,
desde logo, um clima de carinho, de proteção. O menino de sangue real
quase que se confundia com o menino Jesus na adoração do povo, uma
adoração em que havia muita piedade pelos seus infortúnios.Enfim, cada

40. O presente capítulo parece contradizer a tese do sr. Gilberto Freyre expressa em Sobra­
dos e mucambos e mais explicitamente em Perfil de Euclides e outros perfis. Segundo o emi­
nente sociólogo, no conflito psicológico travado entre o Pai e o Filho, isto é, entre a men­
talidade conservadora e a rebeldia liberal, o imperador estaria decisivamente do lado do
último, aliado do bacharel contra o proprietário rural. Do Filho contra o Pai.
"Eis o que faltou à política do Império brasileiro", diz ele no segundo daqueles livros, "e
muito por falta do monarca: o embate de divergências; o branco e o preto, energias defi­
nidas, uma ortodoxia brasileira mais forte contra o liberalismo europeu que sem contra­
peso tornou-se absorvente e, afinal, exclusivo, através da revolta de Filhos contra Pais em
que D. Pedro II tomou ostensivamente o lado dos Filhos, deixando o povo brasileiro pra­
ticamente sem Pais".
Mas a contradição é apenas aparente. O monarca brasileiro foi, de fato, nos primeiros
tempos, aliado natural da mocidade e um liberal avançado em sua época. Mas isto até um
certo ponto, até certo momento. Depois, já na velhice (e é o Pedro II da velhice que inte­
ressa a este estudo), ele foi ultrapassado pelo seu tempo e se tornou, para o exagero parti­
dário de seus contemporâneos, um símbolo de reacionarismo.
70 LUÍS MARTINS

brasileiro se sentia ligado a ele pelos laços desse sentimentalismo bem na­
cional, que inventou os diminutivos carinhosos não raro piegas e as inti­
midades derramadas que irritavam Machado de Assis.Era como se o pe­
queno príncipe crescesse no meio de uma família grande.O clima afetivo
era o de uma fazenda ou engenho, em que o filho do senhor fosse confia­
do à bondade dos escravos.
O menino cresceu e, embora imbuído daquela intimidade familiar,
não esqueceu que ele é que era o senhor.Alcançada a maioridade, os pa­
péis se inverteram.O protetor, o poderoso, passou a ser ele.Conservou­
se, porém, a mesma atmosfera afetiva, com a diferença de que, agora,
quem paternalmente afetava os outros era o rei.
Logo ao assumir o governo efetivo do país, Pedro II enviou aos rio­
grandenses do sul, então revoltados, a seguinte proclamação, datada de 2
de agosto de 1840:

Rio-grandenses! Tendo entrado no pleno exercício dos meus direitos, como im­
perador constitucional e defensor perpétuo do Brasil, por assim o pedirem a ne­
cessidade do país e o desejo unânime da capital, com o qual ia de acordo o das
províncias, vi com mágoa profunda que um dos mais brilhantes florões da minha
coroa, a outrora província do Rio Grande, embaciara a minha menoridade. Im­
possibilitado então por minha idade de dirigir-me aos meus amados súditos, não
pude prover remédios a queixas que porventura fossem então justas, mas ora tem
mudado de natureza. Agora porém a lei me faculta o falar-vos. Como pai comum,
cuja felicidade depende da de seus filhos, ouvi riograndenses, vozes que partem de
uma alma contristada. Tendes dilacerado as entranhas da pátria, movidos por pai­
xões e interesses; e seduzidos por nomes vãos, em busca da liberdade quimérica,
tendes perdido a verdadeira liberdade, tendes preferido a sombra à realidade. O
meu imperial coração sangra-se à vista do encarniçamento com que irmãos se di­
laceram; se nas mãos do poder humano está ainda o remédio a tantos males, contai
comigo, contai com o vosso patrício e imperador do Brasil. Se continuardes porém
surdos à minha voz, acabará o tempo da clemência e soará bem mau grado meu a
hora do castigo. A natureza deu-me um coração para perdoar-vos; o concurso da
nação inteira ministra-me forças para subjugar-vos. Aproveitai-vos, enquanto é
tempo, do que o coração vos oferece e temei de arrostar as forças do Império. Eia,
riograndenses, deponde aos pés do trono as armas fratricidas, vinde aos braços do
O PATRIARCA E O BACHAREL 71

vosso monarca, que, como o sol, luz até para o filho desvairado. - Imperador4 1 (Os
grifos são meus).

Não importa dizer que, provavelmente, não foi o próprio Pedro II o au­
tor da redação.O possível redator interpretou seu modo de sentir.Aliás, a
proclamação, escrita num estilo juvenil, talvez não fosse destituída de ha­
bilidade política, mas é impossível de se ler hoje sem um sorriso...

***

Para melhor compreendermos a ação, tão aparentemente contraditó­


ria, exercida por D.Pedro II em seu quase meio século de reinado, é ne­
cessário que o situemos em relação às circunstâncias sociais em que ele se
criou e desenvolveu.
O Brasil é uma vasta construção patriarcal, partindo da célula inicial
constituída pela família para culminar na abóbada política representada pelo
imperador. Patriarcal foi a estrutura moral do engenho, da fazenda, da bur­
gu esia urbana, em sua organização inicial; patriarcal a situação do senhor
em relação aos escravos; patriarcal a ordem política, com um povo hipotéti­
co se dividindo indiferentemente entre conservadores e liberais, à feição das
conveniências do governo do momento; o Senado vitalício, onde os "padres
conscritos" encaneciam cercados pela veneração supersticiosa das massas; o
quase olímpico Conselho de Estado; patriarcal a ação da Igreja, ligada ao Es­
tado, o que viria ocasionar mais tarde o conflito de autoridades concretizado
na "questão religiosa''. Patriarcal, sobre tudo e sobre todos, a figura veneranda
do imperador, acima dos partidos e dos governos, irresponsável e solitária,
como um semideus colocado entre o céu e a terra.
Em que pese a admiração póstuma dos monarquistas de hoje, a ação da
Monarquia no Brasil foi, como não poderia deixar de ser, retrógrada e con­
servadora.Pouco importa que, pessoalmente, D.Pedro II fosse um espíri­
to adiantado e liberal, preocupado com a opinião européia a seu respeito.
Como instituição, a Monarquia ultrapassava a personalidade privada do

4 1 . Jornal do Comércio, edição comemorativa do 1 2 centenário da Independência do Bra­


sil, Rio de Janeiro, I 922, p. 2 1 7.
72 LUÍS MARTINS

monarca.Cumpria um destino histórico, condicionado pela sua própria


razão de existência.Todas as grandes conquistas progressistas do país se
processaram à margem da iniciativa imperial, que, no máximo, em alguns
casos, se limitou a sancioná-las.
Esse alheamento não acarreta a possibilidade de uma censura à pes­
soa de D.Pedro II.No caso, as circunstâncias se encadearam determinadas
pelo fatalismo histórico. Desde que o pêndulo da economia, da cultura e
da moral do país inclinou-se para novas perspectivas, o equilíbrio até então
estabelecido entre a Monarquia e a nação se desfez e aquela passou a não
mais sincronizar com a sensibilidade da segunda.Uma forma de governo
é a conseqüência de determinadas circunstâncias históricas, fatores sociais,
estado cultural de um povo.Desde que essas circunstâncias se modificam,
desfaz-se a estrutura política que as espelhava e resumia.E, como o governo
é imutável, tem que atuar, não obstante as tendências individuais de seus lí­
deres, como força conservadora, retrógrada, paralisadora, criando conflitos
que de ordinário só se resolvem revolucionariamente.
A Monarquia do Brasil era um fruto colonial, uma conseqüência da eco­
nomia latifundiária e da estrutura patriarcal da família.Ela sintetizava admi­
ravelmente essa tranqüilidade social, apenas quebrada acidentalmente, aqui e
ali, pela inquietação efêmera de um levante armado ou de idéias importadas,
sem ressonância real sobre as massas.O país pousava sobre a escravidão, a
monocultura, o latifúndio, o padre, o conselheiro de Estado e todas essas coi­
sas representavam forças conservadoras, estáticas e hostis a transformações.
A Monarquia foi, pois, uma encarnação da mentalidade colonial que so­
breviveu ao seu desaparecimento como forma política.Se todo rei tem, por
natureza, uma origem e uma essência sagradas, no Brasil o seu prestígio mís­
tico crescia em virtude de circunstâncias peculiares à nossa própria história.
Durante três séculos, ele foi para as gentes uma espécie de ser mitológico, ina­
cessível, distante, cercado do mistério das coisas que nunca se vêem.O Brasil
era governado por prepostos seus.Sua palavra atravessava os mares, vinda do
outro lado do mundo, com todos os atributos de uma coisa extraterrena e so­
brenatural.De maneira que esse ente formidável, que de longe distribuía jus­
tiça e determinava o destino dos homens, que tinha os poderes da vida e da
morte, era seguramente quase um semideus.Não perdemos desde logo essa
mentalidade de povo colonial.Pelo contrário, continuamos a sê-lo durante
O PATRIARCA E O BACHAREL 73

muito tempo, até que o estudo, o progresso e a continuidade do trato próxi­


mo nos fizessem verificar os pés de argila dos supostos ídolos.
O fato é que, mesmo talvez contrariando suas inclinações pessoais, o
imperador encarnou, na segunda metade do seu reinado pelo menos, o
espírito retrógrado e conservador que se opunha à marcha do progresso.
É bastante significativa a sua teimosia e incrível má vontade manifestada
inúmeras vezes contra Mauá.42 E não se deve esquecer que a onda liberal
coincidiu com os primeiros melhoramentos urbanos e empreendimentos
industriais, dos quais Mauá foi a grande figu ra, talvez até hoje não ultrapas­
sada por nenhum outro homem deste país.
No Império não se processaram as grandes reformas solicitadas pelo pen­
samento liberal, decorrendo desse fato um quase permanente conflito entre o
imperador e os homens mais adiantados e esclarecidos do seu tempo.Parece,
contudo, que o conflito foi muito mais dramático no próprio íntimo do mo­
narca, entre duas tendências contraditórias e antagônicas: suas inclinações
pessoais e o que considerava os seus deveres de rei.Em muitos casos, o fi.m­
cionário venceu o homem, porque, se ele quisesse realmente, teria quase sem­
pre imposto a sua vontade.A verdade é que não quis.Deixou sem solução as
grandes reformas reclamadas pelo pensamento liberal: federação (veja-se Rui
Barbosa na Queda do Império) ; casamento civil (idem) ; extinção do Senado
vitalício; separação da Igreja e do Estado; responsabilidade dos ministérios e
prática parlamentarista de que o rei reina e não governa.
A abolição só se fez no penúltimo ano da Monarquia e sob a irresistível
pressão da vontade popular.
"Monarca dos brasileiros, reconciliai-vos com a democracia, tomai a ini­
ciativa e à frente das reformas liberais, salvai vosso trono e vosso país:'43 Essa
exortação do velho Nabuco de Araújo ao imperador vem confirmar a mi­
nha tese.A política do trono foi sempre a mesma: "Pedro, põe a coroa na
cabeça antes que um aventureiro a tome para si." "Faça-se a abolição antes
que o povo a faça." "Salvai vosso trono:' É significativo o ponto de honra, o
cuidado, a exigência que fez a coroa de que as duas grandes leis emancipa-

42. Veja-se a propósito o livro de Alberto de Faria, Mauá, Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1 933.
43. Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, vol. 2, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1 936.
74 LU!S MARTINS

doras - a do Ventre-Livre e a de 13 de Maio - tenham sido obra do Parti­


do Conservador. O trono chegava ao ponto de tomar a iniciativa dessas leis
através do seu braço mais retrógrado, o que melhor espelhava a sua men­
talidade e a sua essência. Ela cedia. Ela sancionava um fato vencido. Ela ou­
torgava uma conquista já consumada. A onda liberal cavava, cada vez mais
fundo, o grande sulco que começara a se abrir, nos meados do século, entre
o Imperador e a opinião das gerações novas. 44

44. Todo este capítulo talvez não agrade muito aos entusiastas de D. Pedro II, certamente
um homem dotado de belas qualidades morais, um brasileiro digníssimo, tolerante como
rei e irrepreensível como cidadão. Mas a história se relata com fatos e não com sentimen­
tos pessoais. Como já tive ocasião de dizer, o defeito principal da Monarquia provinha da
própria instituição, e não das qualidades do monarca. Não se pode, honestamente, contar
a história do Império como se tem feito muitas vezes, isto é, atribuindo-se ao monarca to­
dos os seus aspectos simpáticos e poupando-o em face de suas deficiências e erros. "Antes
de tudo'; reconheceu Joaquim Nabuco, "o Reinado é do imperador. De certo ele governa
diretamente e por si mesmo, cinge-se à Constituição e às formas do sistema parlamen­
tar; mas como ele só é árbitro da voz de cada partido e de cada estadista, e como está em
suas mãos o fazer e o desfazer os ministérios, o poder é praticamente dele. A investidura
dos gabinetes era curta, o seu título precário- enquanto agradassem ao monarca; em tais
condições só havia um meio de governar; a conformidade com ele. Opor-se a ele, aos seus
planos, à sua política, era renunciar ao poder:' (Joaquim Nabuco, ob. cit.).
A Constituição do Império é que criara uma situação anômala e paradoxal, com o mito da
irresponsabilidade do imperador. A criação do Poder Moderador era uma excrescência ju­
rídica. O monarca, pela Constituição, encarnava dois poderes, o Moderador, privativo de
sua pessoa, e o Executivo, de que era o chefe. "O imperador é o chefe do Poder Executivo e o
exercita pelos seus ministros de Estado'; rezava o texto constitucional. Mas como Poder Mo­
derador ele estava isento da referenda ministerial. Pelos atos desse poder, portanto, os minis­
tros não podiam ser responsabilizados. Mas nem sequer o próprio imperador o podia, por­
que a Constituição o tornava intangível. Daí decorrerem situações absurdas, como a tratada
no discurso do Barão de Cotegipe, como presidente do Conselho, em sessão de 18 de agosto
de 1887, no Senado, referindo-se ao perdão de um condenado, devido à clemência imperial.
Acossado pela oposição, o presidente do Conselho assim se exprimia: "Sr. Presidente, desde
que assim penso; desde que estas são as minhas convicções e de muitos anos, que estranheza
podia causar ao nobre senador que, à pergunta que me foi dirigida daquela bancada: 'Quem
é o responsável?', eu respondesse: 'Ninguém! "' (Barão de Cotegipe, Discurso pronunciado no
Senado, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1887) .
Devemos reconhecer, portanto, que a própria Constituição poderia levar o monarca a uma
forma de quase absolutismo, de que aliás, é de justiça reconhecer-se, D. Pedro II, por incli­
nação pessoal, esteve longe de abusar. Mas, por menor que fosse a sua índole absolutista, não
lhe deveria pesar aos escrúpulos o poder pessoal, sendo, como era, um exercício legal. É nes­
ses termos desapaixonados que desejo colocar a questão.
IV. A questão religiosa

Ocorreu, já nos últimos anos da Monarquia, um episódio significa­


tivo e curioso, porque demonstra com nitidez o fundo psicológico do
patriarcalismo de D.Pedro II. Foi a célebre "questão religiosa': em que
se viu envolvido o famoso D.Vital.
Calógeras diz que o imperador, de ordinário tão pacato e tão apa­
rentemente acomodatício,

considerava o procedimento dos bispos como uma ofensa muito grave contra a
majestade do Império e, pessoalmente, contra a Coroa. Por isso foi que, muito
mais do que o Visconde do Rio Branco, chefe do governo e grão-mestre da maço­
naria, tomou ele a peito o dissídio e impôs a jurisdição civil do Conselho de Estado
e do Supremo Tribunal, indo mesmo ao ponto de tornar conhecida a sua vontade
aos magistrados desse alto pretório. O Visconde, ao contrário, andava aflito por fa­
zer as pazes com Roma, por meios diplomáticos. 45

Em artigo publicado na Folha da Manhã, em 1944, 46 eu dizia, refe­


rindo-me a essa questão:

Seria possível ver-se, na insólita demonstração de força, que chegava mesmo aos
limites do abuso, uma atitude ciosa do patriarca em oposição ao outro grande poder
patriarcal, a Igreja, exercendo-se por intermédio dos bispos. O mesmo conflito que
deve ter sido freqüente entre senhores de engenho e padres intrometidos, capazes de
levar o ardor apostolar até a coragem de censurar qualquer ato do potentado menos
de acordo com os preceitos cristãos. Na grande fazenda de D. Pedro II quem manda­
va era ele. Ele era o pai dos brasileiros. E a Igreja, é claro, uma força rival.

45. J. Pandiá Calógeras, Formação histórica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1938.
46. Folha da Manhã, São Paulo: "Gilberto Freyre e Pedro II" (23-4- 1 944).
76 LUIS MARTINS

Mais tarde, Gilberto Freyre veio confirmar meu ponto de vista,


achando que

Frei Vital de Oliveira, bispo de Olinda, nascido e criado, como Euclides, em am­
biente patriarcal de fazenda escravocrata, parece ter sublimado o apego à mãe em
extraordinário e talvez voluptuoso apego à Santa Madre Igreja; e o possível ressen­
timento do pai - autoritário e identificado talvez com a imagem do imperador, do
Império maçônico ou da Maçonaria (sociedade só de homens ou só de pais) no
vigor ao mesmo tempo de filho revoltado contra o pai ( o imperador, o Império, a
maçonaria) e de pai contra pai - padre contra o governo civil - com que enfrentou
o mesmo Império e a mesma maçonaria, para ele decerto irritantemente masculi­
na em sua composição e em sua ação social". 47

Ora, evidentemente, esse conflito de autoridades entre o imperador e


o bispo não mais era que a concorrência natural de dois poderes igual­
mente paternais.A dependência em que então se achava a Igreja Católica,
no Brasil, em relação ao governo civil, colocava-a como sua rival no ter­
reno das prerrogativas temporais.A sábia sentença de Cristo "dai a César
o que é de César" não se podia aplicar rigorosamente num país onde o
sagrado estava de certa forma subordinado ao profano.
A própria lingüística demonstra a identidade de origens entre o rei e
o sacerdote.Um é o Padre, o Pere, o Father, o Pai em suma.Quanto ao rei,
Max Müller demonstrou que gannak em sânscrito significa pai (de gan,
gerar) , termo de onde derivam o alemão Chuning e o inglês king, da mes­
ma forma que mãe, em sânscrito gani, correspondente ao grego gune, ao
gótico quinô, ao eslavo xena e ao inglês queen.
Prazer atribuiu à realeza origens mágicas.Para ele os reis teriam sido
os mágicos das sociedades bárbaras primitivas, aos quais o clã atribuía
uma influência considerável sobre o curso da natureza.Mais tarde esses
mágicos se dividiram em duas categorias, a temporal e a espiritual, isto é,
em reis e sacerdotes.Davy acredita que a realeza saiu da religião.
Levy-Bruhl, que estudou as representações coletivas do chefe primiti­
vo, conclui que ele "é o intermediário obrigatório entre o grupo social e

47. Gilberto Freyre, Sociologia, tomo II, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1 945.
O PATRIARCA E O BACHAREL 77

as potências do mundo invisível, das quais depende a fertilidade do solo e


da vegetação".48 Ele exerce funções sacerdotais e é, além do mais, sagrado,
não no sentido corrente de "digno de respeito e de admiração': porém no
de que se acha "posto num estado especial que proíbe que se lhe aproxi­
mem ou toquem".49 É sagrado como o são o enfeitiçado, o prisioneiro, o
náufrago, o enfermo.
Nas civilizações antigas, as prerrogativas do rei misturam-se ainda às do
sacerdote. "Le roi grec est avant tout le chef du culte, celui qui fait les sacri­
fices, dit les prieres, également des prêtes. En Êgyp te, le Pharaon est le pos­
sesseur des charmes, le dominateur du soleil, le maitre de la foudre:' 50
Mas o poder religioso não se resigna ao campo espiritual. Quer o do­
mínio temporal. Por outro lado, no próprio campo político, conservam­
se reminiscências do tempo em que o rei era também o sacerdote ou o
mágico ( exemplo: a lenda que atribuía aos reis de França o poder de curar
escrófulas.)
O conflito entre a Igreja e o imperador, no Brasil, reflete pois um cho­
que de influências muito profundo, porque estava na própria essência dos
dois poderes patriarcais. Aliás, esse mesmo conflito se vinha verificando,
em escala maior, desde o começo do desenvolvimento do poder papal.
Um livro clássico de John Neville Figgs5 1 demonstra que o tão malsina­
do "direito divino dos reis': doutrina político-teológica dos escritores rega­
listas ingleses do século XVII, representou uma reação nacionalista destina­
da a contrabalançar a pretendida subordinação do rei da Inglaterra ao Vati­
cano. Mas a luta vinha de muito mais longe, desde os tempos do Sacro Im­
pério Romano do Ocidente, e suscitou toda uma longa polêmica medieval,
em que os contendores de ambos os lados reclamavam para o imperador
ou para o papa o direito de soberania, emanado diretamente de Deus. Essa

48. Levy-Bruhl, La mentalidad primitiva, Lautaro, Buenos Aires, s.d.


49. Levy-Bruhl, ob. cit.
50. Roger Bastide, Éléments de sociologie religieuse, Lib. Amand Colin, Paris, 1935. [O rei gre­
go é, antes de tudo, o chefe do culto, aquele que faz os sacrifícios, diz as rezas, assim como
os padres. No Egito, o Faraó é o que possui encantos, domina o Sol, o mestre dos raios.
Trad. do Ed.]
51. John Neville Figgs, E l derecho divino d e los reyes, trad. Edmundo O'Gorman, Fondo de
Culltura Económica, México, 1942.
78 LUÍS MARTINS

polêmica alimentou toda uma geração de doutrinadores gibelinos, entre os


quais o próprio Dante.Na França, o mesmo conflito provocou a mesma es­
pécie de literatura, quase com os mesmos argumentos, e culminou drama­
ticamente na célebre questão entre Felipe, o Belo e Bonifácio VIII.
Em seu aspecto inicial, entre o imperador e o papa, a controvérsia se
resumia em estabelecer quem seria o verdadeiro representante de Deus
sobre a Terra, porque ambos os poderes aspiravam a uma influência uni­
versal: um tinha que ser o senhor, e o outro, o vassalo. Os argumentos
eram freqüentemente tirados da Bíblia, do Velho e do Novo Testamento
e, como sempre acontece nessas questões, serviam indiferentemente para
os dois lados.
Na sua verdadeiramente monumental "Introdução" ao O papa e o
concílio, de Janus, escrita em 1877, Rui Barbosa estudou exaustivamen­
te a questão, historiando, apoiado em ampla documentação, as ambições
imperialistas do papado e as grandes lutas que decorreram de sua políti­
ca tradicional, tendente a estender seu domínio temporal sobre todas as
nações da cristandade.
Nessa obra, o nosso maior publicista - representante do pensamento
liberal que se opunha às pretensões dominadoras de Roma, recentemente
fortalecidas pelo reacionarismo do Syllabus e, principalmente, pelo Con­
cílio de 1870, que decretara a infabilidade papal -, ressalta francamente
o caráter permanente, duradouro, doutrinário do conflito existente en­
tre a cúria e a coroa, no Brasil, decorrente da insubordinação do bispo de
Olinda às leis civis do país."Essa pretendida questão religiosa é a mais es­
sencialmente política de todas as questões" 52 , - clamava o grande baiano.
Na questão religiosa, repitamos, o que houve foi um conflito de duas
entidades encarnando um mesmo símbolo de paternidade, em disputa
pela primazia inevitável sobre a massa popular - os filhos.
Psicanalíticamente, o conceito de religião está ligado ao da criação
do superego, que, como se sabe, é o resultado da identificação dos fi­
lhos com o pai. Por outro lado, segundo outras suposições psicanalis-

52. Rui Barbosa, "Introdução''. in Janus, O Papa e o Concílio, 2• ed, Liv. Acadêmica, São
Paulo, 1930. Janus (Johann Joseph Ignaz von Dõllinger, 1799-1890), teólogo católico ale­
mão, foi excomungado pela Igreja. N. do E.
O PATRIARCA E O BACHAREL 79

tas, a realeza teria se originado no filho mais jovem da horda, que, re­
cuperando a pujança fálica do pai, com ele se identifica e acaba com o
matriarcado. 53
Tanto o rei como o deus (da mesma forma o sacerdote, como seu re­
presentante) são, portanto, encarnações da figura paternal.
É natural, portanto, o conflito. A libido filial só se pode prender a um
pai - não a dois ao mesmo tempo, pelo menos sob as mesmas formas.
Para que haja duas representações simultâneas da entidade paterna, é ne­
cessário que uma seja a contrapartida da outra. Então a carga de senti­
mento afetivo dos filhos em relação ao pai se bifurca em direções opos­
tas. Porque esses sentimentos são ambivalentes, comportando ao mesmo
tempo o amor e o ódio. É necessário que duas imagens diferentes encar­
nem os dois pólos opostos, porém de forma exclusiva.
Muito curioso a esse respeito é o estudo (que, aliás, nada tem a ver com
a psicanálise) de Roger Caillois sobre o carrasco, na França. O sociólogo
francês demonstrou que as representações coletivas fazem do carrasco e
do soberano figuras simétricas, colocadas nos extremos da sociedade, sujei­
tas às mesmas interdições e gozando dos mesmos privilégios. "Le souverain
et le bourreau remplissent clone, l'un dans la lumiere et la splendeur, l'autre

53. Otto Rank, em sua obsessão de tudo explicar pela projeção do traumatismo do nas­
cimento, vê a Pátria, a Nação, o Estado como transformações substitutivas e abstratas da
casa, da cidade protetora, do burgo fortificado, que seriam, por sua vez, interpretações
simbólicas, em fases sucessivas de evolução, do útero materno.
Daí, aproveitando a concepção de Freud, que faz derivar a vida política da história da hor­
da primitiva, parte Rank para uma teoria ousada. Os filhos matam o pai para entrar na
posse da mãe, isto é, para voltar ao seio maternal. Mas, como isto não seria possível, cria­
se a "mentira heróica" que, no mito e na lenda, faz com que apenas um filho, o mais jovem,
seja o assassino do pai, o seu substituto junto à mãe.
Esse motivo psicológico pode ser considerado como a razão decisiva da formação do Es­
tado puramente masculino. Sob o ponto de vista social, com efeito, era necessário que um
só se identificasse com o pai e tomasse seu lugar, a fim de transpor a barreira constituída
pelo "matriarcado''. que tornara a mãe inacessível. O restabelecimento do poderio pater­
nal efetua-se, assim, em favor do filho mais jovem, que será o chefe, o rei. Esse rei será alvo
de um sentimento afetivo ambivalente por parte de seus súditos; ele é protegido e venera­
do, é "tabu''. enquanto representante da mãe, de outra parte, odiado, torturado e assassina­
do, como representante do pai primitivo junto à mãe. (Veja-se Otto Rank, Le traumatisme
de la naissance, Payot, Paris, s.d.)
80 LU!S MARTINS

dans l' obscurité et la honte, des fonctions cardinales et symétriques."54 E con­


clui: "II n' est donc pas étonnant qu'ils soient tous deux l' object de sentiments
d'horreur ou de vénération, dont on reconnait clairement la nature sacrée':ss
Um psicanalista veria facilmente, no fato, um desdobramento da enti­
dade paternal motivado pela ambivalência da libido filial.O monarca é a
parte adorada, respeitada e homenageada do pai; o carrasco é a sua parte
odiada, desprezada e hostilizada. É o mesmo princípio dualista que,
segundo Reik56 , explica a criação do Demônio como contrapartida de
Deus: ambos são sobrevivências do pai primitivo.
Assim, pois, só há um pai.A conciliação entre o rei e o padre, des­
de que um conflito se manifesta entre ambos, é impossível.Mas como
explicar, então, que muitos povos possam ser - ou sejam quase sempre
- simultaneamente católicos e monarquistas?
Em última análise, o rei nada mais é que o representante de Deus
sobre a Terra, isto é, acha-se tão intimamente identificado com a idéia
de Deus que ambos fazem um só.O monarca é o "ungido do Senhor".
Enquanto o rei se acha em boas relações com a Igreja, o povo não per­
cebe a existência de duas entidades diversas e as confunde no mesmo
culto. Quando, porém - como aconteceu no Brasil na questão reli­
giosa -, essas duas entidades se dissociam, se separam, se exibem em
co.ntornos independentes e hostis, então é preciso escolher, é necessá­
rio decidir, de acordo com a palavra evangélica: "Um só rebanho, um
só pastor". Daí a comoção, que assumiu proporções verdadeiramente
apaixonadas, de que se deixaram possuir o povo, a imprensa, o clero,
a Câmara, o Senado, todas as classes e todas as instituiçõ es, tomando
partido pelo imperador ou por D.V ital.
O interessante é que, no caso, estava com D. Pedro II a opinião li­
beral, contrária à intransigência ultramontana do bispo de Olinda,
mas apenas nos limites do incidente provocado pelo prelado.Porque,

54. Roger Caillois, La communion des forts, Quetzal, México, 1943. [ O soberano e o car­
rasco complementam-se portanto, um na luz e no esplendor, o outro, nas sombras e na
degradação, em funções cardinais e simétricas. Trad. do Ed.]
55. Idem. [Não é assim, surpreendente que sejam os dois objetos de sentimentos de horror e
de veneração, em que se reconhece claramente a natureza sagrada. Trad. do Ed.]
56. Theodor Reik (1888-1969), psicanalista austríaco. N. do E.
O PATRIARCA E O BACHAREL 81

de fato, as aspirações dos espíritos liberais eram no sentido de chegar


à libertação dos cultos religiosos, separando por completo a Igrej a do
Estado.A fórmula "a Igrej a livre no Estado livre", tão superiormente
defendida por Rui Barbosa, já o fora antes, entre outros, por Tavares
Bastos, que, ainda em 1861, dizia:

Entretanto, porém, quando a Igreja não quer despojar-se do poder temporal na


Itália, dos auxílios pecuniários do Estado em todos os países católicos, e dos pri­
vilégios da antiga intolerância que ainda sustenta sobre casamentos civis etc., en­
tretanto, digo, é impraticável a máxima: Igreja livre no Estado livre. A liberdade de
ensino, como todas as demais, só pode caber à Igreja Católica quando ela se achar
no mesmo pé de igualdade perfeita com todas as outras perante o Estado. 57

A questão religiosa foi, afinal, uma criação artificial dos bispos, in­
fluenciados pelo reacionarismo ultramontano do Syllabus. Como bem
acentuou Hermes Lima, não havia no Brasil clima propício a tais confli­
tos.Em suma, a Igreja se colocava contra todas as conquistas liberais do
século, numa nostalgia absurda do absolutismo feudal.Mas,

no Brasil, de formação e características sociais diversas da Europa, a Igreja não


possuía espírito feudal nem restaurador e o clero não formava uma casta dotada
de privilégios, cuja natureza os tornasse agressivamente incompatíveis com as mu­
danças que se anunciavam. 58

O que sempre houvera fora uma espécie de compromisso tácito, de


tolerância mútua, de concessões recíprocas, em que, afinal, o clero só ti­
nha a lucrar, na tranqüila manutenção dos bens temporais.Os padres fa­
ziam vista grossa à ingerência dos maçons na administração das socieda­
des religiosas, mesmo porque aqui a maçonaria nada tinha de anticató­
lica, admitindo suas associações até a adesão de alguns sacerdotes.Era,
porém, a vanguardeira do liberalismo em nossa terra e, no tempo, empe­
nhava-se sobretudo na abolição da instituição servil. Tomando posição

57. Tavares Bastos, Cartas do Solitário, ob. cit.


58. Hermes Lima, Tobias Barreto, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1 939.
82 LUÍS MARTINS

ostensiva contra ela, os bispos de Olinda e do Pará pareciam se colocar ao


lado do pensamento escravocrata, como, com muita finura, Tobias Barre­
to chegou a assinalar, ao tempo da questão.
O imperador irritou-se.Não me parece, contudo, que se possa ver em
sua atitude uma demonstração pura de liberalismo - como querem al­
guns -, senão, como já assinalei, o ciúme do patriarca contra outro poder
patriarcal de igual calibre.Por que, então, esse mesmo liberalismo não se
fez sentir decisivamente em outras medidas reclamadas com energia pelos
mais ilustres publicistas e políticos do tempo - tais como a temporalidade
do Senado, a extinção do Conselho de Estado, a federação, a abolição total,
a liberdade da navegação de cabotagem, o casamento civil e a própria laici­
dade do Estado? Por que, então, em muitas dessas questões, a atitude de D.
Pedro II se limitou a uma simpatia expectante, platônica e inoperante, que
era apenas do homem privado, do soi-disant59 filósofo liberal, do amigo de
Victor Hugo -, e não do monarca que soube tão bem fazer prevalecer sua
vontade no caso religioso?
É porque, como disse no início deste capítulo, D.Pedro II - apesar de
certas aparências determinadas não por hipocrisia, mas certamente por
um sincero desejo de marchar ao ritmo das idéias do século - tinha, no
fundo, e sem que ele mesmo o soubesse, a mentalidade de um fazendeiro
ou de um senhor de engenho: em seus domínios, quem mandava era ele.
Era o patriarca.Era o pai dos brasileiros.
Daí a forma profunda que o feriu a oposição dos bispos."Há um tanto
da dignidade imperial ofendida na atitude do imperador", comenta mui­
to sagazmente Joaquim Nabuco."Ele sente pessoalmente a ofensa, recebe
o desafio e desde logo avoca a si a questão:' 60
Sua irritação se reflete até na pertinaz má-vontade com que cedeu, fi­
nalmente, à instância do ministério, no sentido de conceder anistia aos
prelados presos.

O imperador, no ferrenho regalismo que se sentia ofendido pelos excessos da


luta, manifestou-se contrário à sugestão do ministério, alegando, talvez com ra-

59. Autonomeado, pretenso. Em francês no original. N. do E.


60. Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 83

zão, que denotaria fraqueza do governo a concessão da medida sem que os bis­
pos levantassem os interditos; e retirou-se para São Paulo, em sinal de desagrado
à atitude do gabinete. No seu regresso, entretanto, o governo colocou a questão
no terreno da confiança, coagindo o monarca a consentir no seu exame. 6 1

Consultado o Conselho de Estado para dar parecer, este opina unani­


memente em favor da anistia. Afinal, o monarca é obrigado a ceder, po­
rém deixando bem clara sua opinião contrária ao ato de clemência. Ele se
limita a lavar as mãos. E, mais tarde, quando veio a se tratar do pagamen­
to das côngruas aos bispos anistiados, o imperador escreve a Cotegipe:
"Faça-o o ministério; mas sem a aprovação de minha parte ao ato dele".
Vê-se, por aí, como D. Pedro II se sentiu afetado pela questão religiosa. 62

6 1 . João Domas Filho, O padroado e a Igreja brasileira, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, s.d.
62. Poder-se-ia, a propósito da questão religiosa, fazer ainda uma outra observação. Gil­
berto Freyre, no trecho do seu livro Sociologia, citado neste capítulo, alude, referindo-se
a D. Vital, "ao possível ressentimento do pai, autoritário e identificado com a imagem
do imperador, do Império Maçônico ou da maçonaria (sociedade só de homens ou só
de pais)"; com efeito, a maçonaria era uma instituição de essência patriarcal, a que a
Igreja se opunha, como força rival da mesma essência. E é curioso, a respeito, o que es­
creveu Joaquim Nabuco, em 1 887, citado por João Domas Filho em seu excelente livro
O padroado e a Igreja brasileira e que aqui transcrevo em parte: "Nós, abolicionistas, te­
mos procurado unir todos os elementos sociais em torno de nossa idéia, e se amanhã
do colégio de Itu, por exemplo, saísse um brado a favor da abolição, os próprios jesuí­
tas seriam objeto dos nossos aplausos e reconhecimento. Mas, apesar disto, nada con­
seguimos e ainda não houve no Brasil bispos que levantassem a voz contra a escravi­
dão, como os houve para levantar a voz contra a maçonaria, apesar de estar a escravidão
mais condenada por bulas pontifícias - e até por concílios - do que a maçonaria".
Barão de Campinas, pai de Carmo Cintra
V. Evolução do pensamento liberal

Mais ou menos, a idéia republicana sempre existiu no Brasil; porém


em manifestações isoladas e fragmentárias, sem real ressonância na cons­
ciência coletiva da nacionalidade. Para apenas nos limitarmos aos casos
mais conhecidos, bastaria que lembrássemos a Inconfidência Mineira e
a Revolução de 1817, em Pernambuco. 63 Ao tempo do Primeiro Império
e sobretudo durante as regências da minoridade, essas manifestações to­
maram um caráter mais doutrinário, na pena de alguns dos muitos pas­
quineiros que agitavam o meio político da época. O jornalzinho A Trom ­
beta dos Farroupilhas, em seu número de 3 de março de 1832, portanto
menos de um ano depois da abdicação de Pedro I, proclamava a excelên­
cia da República nos seguintes termos:

O governo republicano é o melhor, é o que por sua essência mais convém a uma
Nação Livre, principalmente no solo americano. Neste governo todos os cidadãos são
iguais (perante as leis) e não se olha para seus vencimentos ou empregos; o homem vir­
tuoso, sábio, literato, seja qual for a sua classe, é hábil para qualquer emprego, até para
ser presidente da República. Feliz o Estado que pode gozar semelhante governo! 64

Antônio Borges da Fonseca, panfletário temível que tomou parte ativa


na Revolução Praieira, publicou incansavelmente, durante cerca de quaren­
ta anos, sucessivas fases de seu jornal O Repúblico, no qual, embora com al­
gumas contradições, foi um paladino das instituições democráticas.65

63. Não podemos confundir a rebeldia colonial em face da coroa, o espírito de indepen­
dência e de altivez que caracterizou certas insurreições nacionalistas, com o verdadeiro
espírito republicano.
64. Apud Hélio Vianna, em Contribuição à história da imprensa brasileira. Imprensa Na­
cional, Rio de Janeiro, 1 945.
65. Veja-se o estudo citado do prof. Hélio Viana e também Um estadista do Império, ob.
cit. vol. 1 , p. 272-278.
86 LU!S MARTINS

A leitura de Rousseau e dos enciclopedistas e o exemplo norte-ameri­


cano animavam, desde o século anterior, esses espíritos inquietos e rebel­
des, que misturavam a uma sinceridade certamente espontânea e natural
uma possível preocupação de simples agitação oposicionista, sempre fa­
dada, entre nós, a grande simpatia popular.
Durante algum tempo, a forma republicana chegou a gozar de maiores
possibilidades de vir a se implantar no Brasil.A vinda do príncipe regen­
te, entretanto, fortaleceu o poder real e possibilitou a transição suave que
se processou com um príncipe bragantino no trono brasileiro.Não creio
que houvesse uma preferência definida do povo pela República ou pela
Monarquia.Na verdade, não havia ainda aqui verdadeira educação polí­
tica, capaz de possibilitar às massas populares decisiva opção por uma ou
outra forma de governo.
Casos como o de Borges da Fonseca, de exaltado liberalismo radical e
até de republicanismo, não passaram de fenômenos isolados, sem real re­
percussão popular, sem que representassem uma idéia coletiva e sem que
satisfizessem, de fato, uma aspiração generalizada.O povo era indiferente.
Assim, os primitivos republicanos, que agitaram o ambiente político
durante o primeiro reinado e as regências, não passaram de alguns indi­
víduos embebidos de teorias, de erudição livresca, que expunham suas
idéias num campo totalmente incapaz de as fazer medrar.
Os próprios autores da Constituição de 24 de março de 1824 realiza­
ram obra que, de certa forma, não correspondia à consciência cívica do
país.Daí a justeza da observação de Euclides da Cunha, dizendo que eles
"tinham cravado um marco ao longe, no futuro" e que "a nossa história,
daí por diante, recorda um fatigante esforço para o alcançar".66
No estudo em que isto escreveu ("Da Independência à República") ,
o autor de O s sertões realizou, a meu juízo, uma análise bastante lúcida
da marcha da idéia liberal no Brasil.Vemos, então, com nitidez, como se
processou a consolidação do poderio imperial, através de algumas con­
tramarchas conservadoras, até o seu clímax, o seu cume, o "ponto culmi­
nante do Império", que "separa duas épocas", 67 o governo do Marquês de

66. Euclides da Cunha, À margem da história, Lello & Irmão, Porto, 1926.
67. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 87

Paraná, de 1855.Daí por diante, decai o prestígio imperial.À sua curva


ascensional, que durara cerca de trinta anos, corresponde, simetricamen­
te, uma outra, de declínio, que terminará bruscamente, na "parada" de
1889..."Realmente", diz Euclides da Cunha, "a República, que não deve­
mos confundir com a bela parada comemorativa de 15 de novembro de
1889, tinha lançado os seus primeiros fundamentos." 68
Talvez haja uma certa imprecisão nessa maneira de assinalar datas
rígidas para marcar a transformação geral que se apossou da mentalida­
de do país e que os acontecimentos políticos apenas refletiam de manei­
ra vaga e indireta.Evidentemente, essas coisas não ocorrem por decre­
to, do dia para a noite.Mas, no caso, a década de 1850 a 1860 me parece
de significativa importância: nela ocorreram certos fatos aparentemen­
te alheios à política e que, entretanto, viriam a estabelecer modifica­
ções profundas na nossa psicologia social.Por exemplo: a inauguração
das primeiras estradas de ferro e de certas indústrias urbanas, devidas
ao gênio revolucionariamente progressista de Mauá; a disseminação do
ensino superior; a importação das idéias românticas, que extravasavam
das criações literárias para se transformarem numa aspiração generali­
zada da juventude, num estilo de vida.
Ora, por menos que a representação política espelhasse realmente es­
sas oscilações do gosto nacional, ela não podia deixar de lhes ser sensível.
É certo que a dança dos partidos liberal e conservador alternando-se no
poder significava, em última análise, um jogo hábil do imperador, mani­
festando-se indiferentemente por meio das duas extremidades dessa gan­
gorra pitoresca...Era o que Nabuco de Araújo condenava no seu famoso
sorites: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar
ministério; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a
maioria.Aí está o sistema representativo do nosso país." E era o que, mais
tarde, Machado de Assis viria a comentar discretamente irônico, nas belas
páginas em que evocou o velho Senado:

As eleições de 1 860, na capital, deram o primeiro golpe na situação; se também


deram o último, não sei; os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas

68. Idem.
88 LUIS MARTINS

imediatas da própria queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a


violação ou a restauração da carta constitucional. 69

Entretanto, por menos bem que funcionasse o nosso arremedo de sis­


tema representativo, sempre seria o Parlamento (ou melhor, a Câmara, já
que o Senado dependia da escolha imperial) uma caixa de ressonância,
imperfeita embora, das tendências que coloriam, senão a totalidade do
povo, ao menos as classes mais elevadas da nossa sociedade. Acho perfei­
tamente justas, a propósito, as ponderações de Hermes Lima, que tomo a
liberdade de aqui transcrever em longa citação: "Contudo," diz ele,

se a ausência de opinião, a falta de povo tiravam à nossa vida política seus aspectos à
inglesa, degradavam a política à mera atividade de grupos e abastardavam os pleitos,
não devemos perder de vista a função de classe que o governo parlamentar, aqui como
em toda a parte, foi chamado a desempenhar. Através das formas parlamentares, as
camadas dominantes imprimiam às suas divergências caráter constitucional. [ ... ] As
lutas políticas refletiam as transformações que se operavam na sociedade e que a divi­
diam, de modo geral, em duas partes, a progressista e a conservadora. Em regra, o que
se chamava partido conservador mostrava menos entusiasmo por mudanças radicais.
Porém, em verdade, o que havia eram, nos dois partidos, grupos representativos dos
velhos e novos interesses e que se colocavam, sob influência dos mesmos, em atitudes
que objetivamente correspondiam a sentidos sociais diversos, até contrários. Quem
desejasse conservar, principalmente porque se achava ligado à propriedade territorial,
cuja exploração se baseava no elemento servil, podia sublimar esses interesses fazen­
do do Conselho de Estado, do Senado vitalício, das prerrogativas do Poder Moderador
bandeira ideológica. Quem estivesse pelas mudanças, opunha-se àqueles símbolos.70

Não há dúvida de que, em meados do século XIX, começou a se ope­


rar mudança fundamental na fisionomia política e social do país. Embora
imperceptivelmente, o Império decaía. Ele cumprira sua missão histórica
e os tempos começavam a querer ultrapassá-lo. O pensamento liberal agi­
tava-se mal dentro dos limites monárquicos e viria a tomar forma concreta e

69. Machado de Assis, Páginas recolhidas, Livraria Garnier, Rio de Janeiro, s.d.
70. Hermes Lima, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 89

ostensivamente hostil ao regime no manifesto republicano de 1870.A Guerra


do Paraguai fora uma trégua.Depois, o movimento libertário continuou sua
marcha, que não mais se interromperia: "Depois da Guerra do Paraguai",
diz Calógeras,

contudo, as brasas do sentimento libertário supresso tomaram novamente a arder,


para nunca mais serem apagadas. De 1 864 a 1 870, a desafeição pela dinastia, a oposi­
ção tácita das classes armadas, a crescente frieza dos conservadores e do clero começa­
ram a se revelar em grau cada Vf2. mais intenso.71

Aqui chego a um ponto em que sou obrigado a divergir não apenas de Gil­
berto Freyre, como também de muitos outros estudiosos que se têm ocupa­
do da nossa história.Segundo eles, D.Pedro II estaria com os tempos novos,
seria um aliado do liberalismo contra o conservadorismo, da cidade contra o
engenho, do filho contra o pai.Quanto a mim, acredito que as circunstâncias
históricas dividiram ao meio a personalidade do monarca.Criaram duas ima­
gens.A primeira é a da juventude, da mocidade, até cerca da metade do século;
a outra, a da maturidade e da velhice.Não que essas duas imagens divergissem
realmente entre si; o ambiente é que se modificara em torno do seu vulto imó­
vel.O ponto de referência era o mesmo; as perspectivas é que eram outras.
D.Pedro II foi ficando com os velhos tempos.Como ele não saíra do lu­
gar, em breve os acontecimentos se foram distanciando.E, aos poucos, ele co­
meçou a ser - justa ou injustamente, pouco importa - um símbolo vivo de
mentalidade retrógrada, de um estilo de vida ultrapassado, de uma concep­
ção política anacrônica...
Pretender descrever o conflito inconsciente que se processou no sécu­
lo XIX entre o homem rústico de um lado e o homem urbano do outro,
entre o fazendeiro e o bacharel, entre o pai e o filho, seria repetir o que já
se acha excelentemente feito por Gilberto Freyre nas páginas do seu livro
Sobrados e mucambos.Todo o meu esforço limitar-se-á a tentar demons­
trar o paralelismo que se estabeleceu entre a decadência da idéia imperial
e a do patriarcado rural; de forma que, por fim, a luta inconsciente dos

7 1 . J. Pandiá Calógeras, Formação histórica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Pau­
lo, 1 938.
90 LU!S MARTINS

moços bacharéis contra seus pais, que integravam e representavam uma


concepção de vida ultrapassada, tomou forma consciente e ativa na opo­
sição desses moços à figura do imperador. Era uma transferência banalís­
sima e, afinal de contas, bastante natural: como rei, D. Pedro II era o pai
coletivo, era o chefe do clã, o patriarca da horda.
Há um episódio na história do Brasil que, embora não se tenha reves­
tido de características teatrais, capazes de comover a imaginação popular
com a violência de um levante armado, por exemplo, ou de uma data his­
tórica - pois não passou de um vulgaríssimo drama parlamentar, uma re­
volução de gabinete -, foi de importância máxima para os destinos do país.
Refiro-me à queda do gabinete Zacarias de Góes, em 14 de junho de 1868.
Esse governo representava, com relativa exatidão, o clima liberal que en­
volvia então as camadas mais esclarecidas do povo, e de que era expressão
eloqüente a Câmara temporária, formada, em grande maioria, pelos libe­
rais progressistas e radicais. A "maré democrática" a que se referiu Joaquim
Nabuco72 envolvera os círculos melhores da opinião e exigia, com urgên­
cia, a abolição do elemento servil. Zacarias, elevando-se nobremente aci­
ma de questões partidárias, resolvera o espinhoso caso do comando em
chefe na Guerra do Paraguai, confiando-o a Caxias, que nobremente o
aceitara. E, uma vez liquidado o assunto delicado, achou azado o chefe do
gabinete o momento para dar golpe de morte na escravidão.
Podia contar com a Câmara, mas . . . o Conselho de Estado, que lhe
traçara os limites de ação dentro das propostas protelatórias de Pimenta
Bueno, era contra qualquer medida radical, como o era o Senado, ater­
rado com o tabu do "direito de propriedade". Permitam-me um parênte­
se: poder-se-ia - claro que sem insistir muito no assunto, que não deixa

72. "Essa eleição de 1860 pode-se dizer que assinala uma época em nossa história política;
com ela recomeça a vencer a maré democrática, que desde a reação monárquica de 1837 se
tinha visto continuamente baixar e cuja vazante depois da maioridade chegou a ser com­
pleta. No Rio de Janeiro, a campanha foi ardente, entusiasta, popular, como ainda não se
vira outra; a mocidade tomou parte nela, o comércio subscreveu generosamente, o povo
dirigia-se de uma para outra freguesia capitaneado por Teófilo Ottoni, Octaviano, Salda­
nha Marinho; e esse acontecimento tomou as proporções de uma revolução pacífica, que
tivesse finalmente derribado a oligarquia encastelada no Senado." (Joaquim Nabuco, Um
estadista do Império, ob. cit.)
O PATRIARCA E O BACHAREL 91

entretanto de ser curioso - assinalar aqui, mais uma vez, o antagonismo


entre duas gerações: a Câmara liberal, casa dos moços, e o Senado conser­
vador, casa dos velhos, dos "padres conscritos': que guardavam ainda as
velhas idéias e os velhos preconceitos - pais contra filhos.
O que se poderá, sem nenhum artifício de argumentação, pôr em relevo
é que os senadores, escolhidos pelo imperador em lista tríplice, representa­
vam, de certo modo, o seu pensamento e com ele se achavam identificados.
Dessa vez, o procedimento do monarca não deixou dúvida nenhuma acerca
de suas preferências.A situação era liberal.Morto D.Manuel de Mascare­
nhas, dá-se uma vaga no Senado.Realizadas as eleições, alcançaram os libe­
rais os dois primeiros lugares, cabendo o terceiro ao conservador Sales Tor­
res Homem.E o imperador, num verdadeiro acinte ao chefe do gabinete, es­
colhe Torres Homem para a Câmara vitalícia.73
Em conseqüência, demitiu-se Zacarias, que se recusou a indicar suces­
sor, sendo então escolhido o conservador Itaboraí, que dissolveu a Câma­
ra.Caía assim, na mais paradoxal das situações, criada pela má-vontade
do monarca, um gabinete que tinha o apoio da Câmara! E caía o Partido
Liberal para um longo ostracismo de que, para se recompor, chegou a he­
sitar entre uma paciente reabilitação legal ou a violência de uma represá­
lia revolucionária.
Não é possível atribuir - como se tem feito - ao Conselho de Estado a
responsabilidade do fato.Afinal, a escolha de senador na lista tríplice de­
pendia, em última análise, exclusivamente da vontade imperial.Quando
muito, poderia o Conselho ter influído com insinuações ou intrigas, mas
a execução do ato era de inteira responsabilidade do monarca. Assim,
quando o sr.José Maria dos Santos escreve: "O ministro [Zacarias] não
tinha nenhum motivo de supor que o Conselho de Estado pretendesse
hostilizá-lo naquele ponto", 74 o que se deve entender é que "Conselho de

73. Desta vez não agiu Pedro II como seria seu hábito, segundo assevera o sr. Afonso de E.
Taunay: "Tinha o imperador por hábito escolher os candidatos do partido com que estava
no momento governando. E nada mais leal e criterioso." (O Senado do Império, Livraria
Martins, São Paulo, s.d.).
74. José Maria dos Santos, Os republicanos paulistas e a abolição, Livraria Martins, São Pau­
lo, 1942.
92 LUÍS MARTINS

Estado" está aqui como um eufemismo, que pretende apenas encobrir a


figura de D. Pedro II.75
A vitória conservadora era uma aparência ilusoriamente perigosa. De
fato, aquela era uma vitória de Pirro. Compelida pela indignação popular,
que ameaçava tomar proporções revolucionárias, a situação conservadora
é obrigada a ceder, com a Lei do Ventre Livre, simples paliativo, que já não
correspondia às aspirações radicais da mocidade.
A revolta liberal, transbordando dos limites parlamentares para a rua, a
tribuna popular e a imprensa, começa então a tomar consciência mais nítida
da aliança do trono com a reação, a perceber a identidade que cada dia se es­
tabelecia de maneira mais íntima entre os conservadores e a coroa; 76 princi­
pia, então, a ver que o vício fundamental residia nas instituições. É de então
que se começa a atacar rijamente não o Partido Conservador, mas a própria
Monarquia e a própria pessoa do monarca, juntando-se à bandeira abolicio­
nista as primeiras reivindicações democráticas.
Em 1869 os radicais apresentam como proposta para resolução do pro­
blema nacional o dilema inquietante: "Ou a reforma ou a revolução': Em
1870, aparece o manifesto republicano!
Desde então, a imagem do imperador aparecia associada à idéia de tira­
nia, de reação, de coisa ultrapassada e gasta pelo tempo; a imagem da velhi­
ce. Desde então, sem que o deseje certamente, porque no fundo seu coração
era nobre e seu espírito liberal, desde então ele está em posição contrária
aos moços. Desde então, ele passa a encarnar o grande símbolo paternal em
contraposição à juventude liberal, revolucionária e romântica: os filhos, os
"filhos do século" e do patriarcado latifundiário que se desmoronava...
A oposição à Monarquia e ao próprio monarca toma uma forma osten­
siva e ousada, na atitude de homens públicos comprometidos com o regi­
me, mas que não podiam deixar de sentir a influência das novas cor­
rentes de opinião. Rememoremos, com Euclides da Cunha:

75. Apesar de toda a sua preocupação de desculpar o imperador, Joaquim Nabuco não
pode deixar de reconhecer, em Um estadista do Império, a má-vontade de D. Pedro II em
relação a Zacarias, inclinado como estava o monarca a sustentar Caxias, que abrira luta
com o gabinete.
76. Euclides da Cunha fala na "lenta ascensão do Partido Conservador, ostensivamente es­
timulado por D. Pedro II''.
O PATRIARCA E O BACHAREL 93

Tito Franco indicava, logo depois, em 1 867, a causa única da decadência do país "no
polichinelo eleitoral dançando segundo as fantasias dos ministérios nomeados pelo
imperador''. Saião Lobato, antigo reacionário, caracterizava em frases vigorosas o con­
traste da esplêndida arquitetura governamental com os vícios e abusos que a derran­
cavam. José de Alencar comprometia a sua próxima escolha para ministro ferretoando
com aticismo incomparável todo o regime. Para José Antônio Saraiva, o paraninfo da
Liga em 1 862, o poder ditatorial da coroa era uma verdade só desconhecida pelos nés­
cios ou pelos subservientes aos interesses ilegítimos da Monarquia.

Um caráter, D.Manuel de Mascarenhas, pronunciara em pleno Sena­


do uma frase cruel: "Morreram os costumes, o direito, a honra, a piedade,
a fé e aquilo que nunca volta quando se perde o pudor".Completou-o, no
mesmo recinto, Silveira Lobo, deplorando a morte do sistema represen­
tativo e chegando, temerariamente, à conclusão de que "o vício não esta­
va nos homens, mas nas instituições".Para Francisco Octaviano, o Impé­
rio constitucional "era a última homenagem que a hipocrisia rendia ao
século", e a frase ficou célebre.Tavares Bastos, o paladino da franquia do
Amazonas, num quase ostracismo na Europa, volvia o último brilho do
seu grande espírito para a República, para a qual se dirigiria em breve, os­
tensivamente, um outro, José Maria do Amaral.O visconde de Camara­
gibe e o grupo conservador do norte previam a desagregação do país na
condenável concentração que se formava.Antônio Prado, João Mendes
de Almeida, Duarte de Azevedo, conservadores do sul, estadeavam em
frases por igual amargas o desquerer pelo trono.77
Nesse crescendo, chegar-se-ia em breve às violentas objurgatórias de Sil­
veira Martins e ao "césar caricato" de Ferreira Viana...
Realmente, a impossibilidade do terceiro reinado apresentava-se aos es­
píritos mais representativos da Monarquia com coisa indiscutível.E a "Repú­
blica" passou a ser encarada, por algu ns, como hipótese viável e passável. Nela
se falava abertamente, sem temor supersticioso ou preconceitos irredutíveis.
Aceitavam-na como se aceita uma fatalidade inelutável e invencível. As novas
gerações, pertencentes às classes intelectual e economicamente dominantes,
eram republicanas, em sua maior parte. Mesmo homens de outras eras, com

77. Euclides da Cunha, ob. cit.


94 LUÍS MARTINS

outra mentalidade e outra formação, dominados pelo espírito de irreverên­


cia, que era a marca do tempo, voltavam-se para a República.
Leão Veloso escrevia ao Conselheiro Nabuco de Araújo:

Se não somos ainda republicanos, também não tememos a República como um


cataclismo ... e havemos de nos deixar levar pela onda, agarrados à Monarquia que
nem tem o instinto de conservação? 78

Já aos partidos políticos da Monarquia começava a faltar a mística da rea­


leza.Era o que estranhava, escandalizado, o velho Nabuco, em carta ao Con­
selheiro Dantas:

Veja esta: há poucos dias, a Reforma disse que mais fácil seria ao Partido Liberal
unir-se com os republicanos do que com os conservadores. Uma folha monárqui­
ca pode dizer isto? Um partido que diz isto pode querer o poder? 79

Daí por diante, o advento da República é realmente apenas uma questão


de tempo e de oportunidade.

78. Apud, Joaquim Nabuco, em Um estadista do Império.


79. Idem.
VI. Geração parricida

La relation filio-parenta/e est la base et le pro­


totype de toute aristocratie, la relation entre fré­
res et soeurs constitue la forme primitive de la
democratie. 80
Flügel8 1

É precisamente em meados do século XIX que se opera, no Brasil, de


forma mais evidente, o começo da transformação de sua fisionomia social.
Intensifica-se o espírito urbano, até então quase inexistente. É verdade que
as cidades viverão ainda muito tempo relativamente dependentes da fazen­
da e do engenho, mas é de então que principia a separação, a caracterização
das duas mentalidades, a urbana e a rural, como antagônicas e rivais.
O primeiro golpe lançado contra o comércio africanista, a extinção do
tráfico, propicia e acelera essa metamorfose. "Eusébio': diz Nabuco,

desfechara em 1 850 o seu tremendo golpe contra o comércio de africanos [ ... ] . A


antiga classe dos proprietários territoriais mudava assim rapidamente de consti­
tuição e de caráter, ao passo que a força do africanismo duplicara por essa solida­
riedade da agricultura devedora do interior com o comércio credor da capital. 82

Em outro capítulo, acrescenta:

Com a extinção deu-se uma transformação maravilhosa. Este fato, diz o Relatório
da Comissão de Inquérito sobre o meio circulante em 1 860, teve um imenso alcan­
ce, mudando completamente a face de todas as coisas na agricultura, no comércio,

80. A relação filho-parental é a base e o protótipo de toda aristocracia, a relação entre ir­
mãos e irmãs, a forma primitiva da democracia. N. do E.
8 1 . John Carl Flügel ( 1 884- 1955), psicanalista inglês. N. do E.
82. Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, ob. cit.
96 LUIS MARTINS

na indústria. Os capitais que eram empregados nessas ilícitas transações afluíram à


praça, do que resultou uma baixa considerável nos descontos; o dinheiro abundava
e uma subida extraordinária teve lugar nos preços das ações de quase todas as com­
panhias ... Daí a criação de um banco de emissão, o papel-moeda abundante de que
carecia a especulação. Já sobre as ações do Banco do Brasil tinha havido grande jogo
na praça, em que se perderam e se fizeram rapidamente muitas fortunas. 83

É de então que as cidades começaram a se delinear em contornos


próprios, a criar o seu "tipo urbano" característico, a atuar como for­
ça antagônica do rural, de que viriam a se beneficiar por meio dos "in­
termediários" de negócios. Por muito tempo ainda a aristocracia rural
atuará na vida política do país, mas desde esse momento ela terá no ho­
mem da cidade o seu rival e seu eventual sucessor.Porque muitos filhos
de fazendeiros e de senhores de engenhos desertam de seus imensos la­
tifúndios e se implantam definitivamente nas cidades.O comércio e a
especulação bancária possibilitam a criação de riquezas capazes de ri­
valizar com as conquistadas penosamente no trato da terra.As profis­
sões liberais, que levam ao predomínio político e à consideração social,
exercem atração cada vez maior sobre os jovens."E é curioso constatar",
diz Gilberto Freyre,

que as próprias gerações mais novas de filhos de senhores de engenho, os rapa­


zes educados na Europa, em São Paulo, em Olinda, no Rio de Janeiro, foram-se
tornando, em certo sentido, desertores de uma aristocracia cujo gênero de vida,
cujo estilo de políticos, cuja moral, cuja justiça já não se conciliavam com seus
gostos e estilos de bacharéis, médicos e doutores europeizados, afrancesados, ur­
banizados, policiados. 84

O declínio da escravidão - solapada pela abolição do tráfico - requer


novas formas de exploração das terras, a que os fazendeiros apenas penosa­
mente se habituam.As primeiras tentativas de colonização, por intermédio
de imigrantes, fracassam lamentavelmente.Em 1857 ocorre a sublevação

83. Idem.
84. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, Compahia Editora Nacional, São Paulo, 1936.
O PATRIARCA E O BACHAREL 97

dos colonos suíços de Ibicaba85 • Realmente, o que há é um choque brusco


entre a mentalidade dos velhos senhores da terra, acostumados às facilida­
des da escravidão, e o espírito europeu, já afeito às fórmulas jurídicas do
trabalho livre."É compreensível': diz Sérgio Buarque de Holanda,

diante de tais condições, que os fazendeiros amoldados à nossa economia agrária


tradicional, baseada sobretudo na existência do braço escravo largamente acessí­
vel, nem sempre conseguissem adaptar-se a uma nova situação criada com a intro­
dução de trabalhadores livres procedentes do Velho Mundo. 86

Esses fazendeiros desajustados às novas exigências da exploração agrícola


começam a perder a mística da terra.Muitos se passam para as cidades e pro­
curam adaptar-se à mentalidade urbana que principia a se impor.São seus
filhos, entretanto, criados desde pequenos no novo meio, muitas vezes sem o
menor contato com o ambiente rural de onde procediam, que passam a in­
tegrar uma geração dotada de estilos de vida inteiramente diferentes dos de
seus pais."Os bacharéis e doutores que iam chegando de Coimbra, de Pa­
ris, da Alemanha, mais tarde os que foram saindo de Olinda, de São Pau­
lo, da Bahia", assinala Gilberto Freyre,

a maior parte deles formados em direito e medicina, alguns em filosofia e todos uns
sofisticados, trazendo com o verdor brilhante dos vinte anos as últimas idéias inglesas e
as últimas modas francesas, vieram acentuar, nos pais e nos avós senhores de engenho,
não só o desprestígio da idade patriarcal, por si só uma mística, como a sua inferiori­
dade de matutões atrasados. 87

A partir da década de 1850, essa nova geração, dotada de novas concep­


ções e de nova mentalidade, está ansiosa por entrar em cena, influir, impor­
se, dominar politicamente.Em 1858, Francisco Otaviano escreve, no Correio
Mercantil, sintetizando as aspirações da mocidade, dois artigos que marcam

85. Fazenda no interior de São Paulo. N. do E.


86. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda a Thomas Davatz, Memórias de um colono no
Brasil, Livraria Martins, São Paulo, s.d.
87. Gilberto Freyre, oh. cit.
98 LUIS MARTINS

época e que Joaquim Nabuco veio a transcrever no Um estadista do Império.


"Otaviano", diz Nabuco,

está nesse ponto em que o talento alcança o seu mais perfeito desenvolvimento;
um pouco antes é ainda o verdor da mocidade, um pouco depois é o declínio. Por
isso mesmo que ele sente em si qual seja a fase da mais completa expansão da in­
dividualidade, é que o culto da velhice em política lhe parece exageração, uma su­
perstição fatal, um preconceito de que só pode resultar, à imagem dos que o gover­
nam, a decrepitude do corpo social. 88

Nesses artigos, Otaviano toma decididamente o partido dos moços,


assumindo um tom petulante e orgulhoso."Mas o que faria", diz ele,

um ministério de jovens, como tão chistosamente o chama o admirador das an­


tigualhas? Pois quer saber o colega o que havia de fazer? Uma coisa de que se tem
perdido a tradição. Havia de governar. 89

E ainda mais audaciosamente:

Não receie o chefe da nação de confiar-se nos homens novos; está neles a força
real, embora os outros a tenham na aparência; quem pode ter a glória de ser o pri­
meiro entre os homens não se contenta em ser o primeiro entre as sobras. 90

Os filhos querem tomar o lugar dos pais.A oposição, a luta incons­


ciente, entre uns e outros, assume, na sociedade brasileira, as proporções
de um conflito latente, um antagonismo permanente.Recordemos o caso
típico de Carmo Cintra, repetindo o que já escrevemos em outro capítu­
lo.Seu pai, "chefe do partido liberal no Amparo no regime monárquico':
"por valiosos serviços foi agraciado com o título de barão de Campinas";
o filho se torna "republicano convencido".O pai, "importante fazendeiro
com cultura de café", possuía certamente escravos; o filho pertencia com

88. Joaquim Nabuco, ob. cit.


89. Apud Joaquim Nabuco, ob. cit.
90. Apud Joaquim Nabuco, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 99

toda a certeza ao partido abolicionista. O pai, lavrador. O filho, bacharel,


abandona a terra e torna-se "fundador do Banco Construtor e Agrícola de
São Paulo': à cuja frente se achava em 1903. O pai, "opulento capitalista";
o filho - isto Silva Leme não diz, mas eu sei por informações de pessoas
que o conheceram - morreu pobre.
Essa oposição ao pai é a situação de quase todo filho de fazendeiro, a co­
meçar da segunda metade do século passado. Do filho de fazendeiro, que se
formava em direito, em medicina ou em qualquer outra ciência; mas princi­
palmente em direito.
Já aludi, em outro capítulo, ao perigo que constituíam, para o futuro
da vida rural brasileira, esses moços românticos que não mais se adapta­
vam às duras necessidades da terra. E disse que nisso talvez se encontrasse
uma das explicações para o grande número de famílias tradicionais de fa­
zendeiros que decaíram e perderam toda a antiga grandeza nas mãos inex­
perientes daqueles bacharéis liberais.
Sérgio Milliet, estudando o roteiro do café, 9 1 anota que as zonas da
Mogiana e da Paulista foram as que melhor aproveitaram a mão-de-obra
do imigrante. Ora, essas zonas são relativamente novas. Observando-se os
quadros estatísticos publicados no ensaio daquele escritor, podemos veri­
ficar que apenas de 1854 em diante começaram elas a progredir, tanto em
população quanto em produção de café. Mas esse progresso só se acen­
tua de 1886 em diante, vindo a alcançar seu zênite em 1935. Em compen­
sação, na zona central - Campinas, ltu, Capivari, Jundiaí, Piracicaba -, o
café começa, a partir de 1886, a dividir seu reinado com outras culturas,
principalmente o algodão. Ora, a monocultura foi sem dúvida a forma
típica de cultura agrícola adotada pela velha nobreza rural; a policultura
parece coincidir com o desmembramento dos latifúndios nas mãos dos
pequenos lavradores, sitiantes europeus enriquecidos, antigos imigrantes
que substituíram os velhos fazendeiros arruinados. Muitos desses "no­
vos-ricos" estabeleceram-se nas zonas da Mogiana e da Paulista e aquela
"mão-de-obra do imigrante", a que alude Sérgio Milliet, não deve se re­
ferir apenas aos trabalhadores propriamente ditos, mas também aos pro­
prietários de terras.

91. Sérgio Milliet, Roteiro do café, 3• ed., Dep. de Cultura, São Paulo, 1941.
100 LUIS MARTINS

Essa coincidência de datas entre a decadência da monocultura nas zo­


nas tradicionais, onde imperavam os grandes patriarcas do café, e a intensi­
ficação do liberalismo romântico nas academias, me parece interessante.
Sentindo que não poderiam mais se readaptar à terra, os bacharéis
procuravam então profissões urbanas.E essa apressada transformação dos
antigos meninos caipirinhas de fazendas em graves senhores de escritório,
dirigindo bancos e bancas de advocacia, era muitas vezes desastrada. Os ra­
pazes ficavam uns incapazes de tudo, nem mais homens de campo nem mais
indivíduos citadinos, inaptos para qualquer atividade lucrativa, servindo
apenas para esbanjar em poucos anos a fortuna penosamente amealhada pe­
los velhos fazendeiros.
Na Europa, a tendência para as dinastias profissionais estabelece verda­
deiras sucessões familiares de tapeceiros, vinhateiros, cozinheiros, lacaios,
camponeses e até carrascos.No Brasil, a extrema mobilidade profissional não
chega a produzir nenhuma tradição de família, fazendo com que, em geral,
cada geração tenha que se adaptar improvisadamente a uma nova profissão.
De qualquer forma, são os filhos de fazendeiros que, estabelecendo-se
na cidade, transformam a fisionomia econômica do país.É a geração dos
estudantes liberais (que já no período republicano viriam influir decisiva­
mente nos destinos da pátria) que desloca o eixo da nossa vida, consolidan­
do o elemento urbano.
Normano acentua exatamente essa circunstância: "Do ponto de vista fi­
nanceiro': diz ele,

o período republicano apresentou uma série de tentativas de reajustamento entre as


finanças e a economia. A República começou a considerar o elemento urbano como a
espinha dorsal do novo sistema financeiro.92

Aliás, o próprio Normano sintetizara a função essencial do fazendeiro na


estrutura do período imperial, ao escrever que "o declínio do fazendeiro ge­
rou o declínio do Império''. 93

92. J. F. Normano, A evolução econômica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Pau­
lo, 1939.
93. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 101

O desenvolvimento da indústria e do comércio, como forças de influ­


ência social no Brasil, coincide com a expansão do liberalismo político. O
próprio Mauá, esse gigantesco propulsor de progresso, sofreu de certa for­
ma a hostilidade do meio, pouco favorável aos homens de ação prática. Aliás,
seu exemplo foi utilíssimo para a transformação da mentalidade brasileira.
Não há dúvida de que sua ação preponderante no cenário político, econômi­
co e financeiro do segundo reinado constituiu uma autêntica vitória liberal.
Quando afinal veio a falir o formidável lutador, já o modo de encarar as coi­
sas se modificara e os homens formados pelas academias superiores podiam
se dedicar sem grande constrangimento às aventuras comerciais, tentando os
primeiros passos da indústria e a administração de bancos. Era a nova gera­
ção que assim pensava. A sua maturidade se viria concretizar apenas na Re­
pública. Daí a justeza da observação de Normano.
A partir de meados do século XIX, o liberalismo é a marca da mocidade.
O liberalismo e o romantismo. À frieza, à secura, ao equilíbrio clássico su­
cedem o ardor, a falta de medida, o entusiasmo românticos. "De 1840 em
diante", diz Paulo Prado,

e talvez se possa dizer até hoje, essas gerações de moços, espalhando-se anualmente
pelo país inteiro, levavam para o que se chamava nos banquetes de formatura "a vida
prática''. as miragens, as ilusões poéticas, o mau gosto artístico e literário, a divinização
da palavra, todo o divórcio entre a realidade e o artifício, que é, em suma, a própria es­
sência do mal romântico. Vinha a infecção das miragens do Tietê e do Capibaribe e aos
poucos contaminava o Brasil inteiro.94

Enfim, pelos gostos, pelas idéias, pelas predileções políticas, pelas normas
de vida, pela profissão, pela própria conformação moral, o bacharel filho de
fazendeiro, desde meados do século XIX, assumiu posição contrária ao pai.
Entretanto, essa reação foi se processando aos poucos, de maneira quase in­
sensível - era uma luta inconsciente. Exteriormente, os filhos continuaram a
ter o maior respeito pelos pais. Foi na campanha republicana, contra D. Pe­
dro II, que essa reação antipaternal se concretizou em oposição a uma figura
que simbolizava coletivamente todos os atributos paternos.

94. Paulo Prado, Retrato do Brasil, Brasiliense, São Paulo, 1938.


102 LUÍS MARTINS

A geração que fez a República, acabando com o antigo regime e ba­


nindo o velho imperador, constituiu, portanto, simbolicamente, uma ge­
ração parricida. 95

95. Poder-se-ia argumentar que o 15 de Novembro foi uma revolução militar, feita por milita­
res, e não por bacharéis. Responderei citando Eduardo Prado: "Muitos dos oficiais brasileiros
são apenas bacharéis de espada: eles prezam mais do que tudo as graduações do seu curso ma­
temático, e o título de bacharel ou de doutor é por eles mesmo anteposto à designação das suas
patentes" (Frederico de S., pseudônimo de Paulo Prado, Fastos da ditadura militar, ob. cit)
e

/f �. f,I.
Do álbum de Carmo Cintra,
Lúcio de Mendonça e seus dois filhos
VII. O complexo

Vimos, nos capítulos anteriores, como a geração que começou a assumir


posição influente na vida do país de meados do século XIX em diante era, pe­
las próprias condições sociais do meio e de sua formação intelectual, inteira­
mente oposta às precedentes.Seus componentes encarnavam um espírito de
renovação, de revisão total de estilos de pensamento e de idealização política.
Para o homem de 1870, não tinham mais sentido os valores consagrados
pela tradição nacional, simbolizados no conservadorismo estreito das gera­
ções anteriores.Uma luta surda travou-se, então, não entre moços e seus pais,
como individualidades, mas entre os símbolos sociais, políticos e morais de
que ambos os lados eram encarnações vivas - e antagônicas.O jovem liberal,
abolicionista, republicano, urbanizado e romântico encontrara o seu oposi­
cionista natural em seu próprio pai, conservador, escravocrata, monarquista,
rural e imbuído de gostos clássicos.
Ora, essa oposição ao pai, subconsciente talvez na maioria, vai encontrar
uma excelente oportunidade de extravasar, de se manifestar de forma dinâ­
mica e prática na campanha republicana.D.Pedro II, admirável símbolo pa­
ternal (até pelo físico imponente e respeitável), polariza assim os ódios filiais
e passa a simbolizar coletivamente a figura do Pai.
A rebeldia filial aparece-nos, portanto, como curiosa sobrevivência do
episódio revolucionário da horda primitiva.Para quem possua quaisquer ru­
dimentos de psicanálise, é impossível deixar de reconhecer, nas revoluções
democráticas, uma forma de manifestação dramática do complexo de Édipo.
O rei representa o pai e a massa revolucionária é composta de filhos possuí­
dos de instintos parricidas.
No nosso caso, a eclosão desse complexo fora estimulada pela oposição
dos bacharéis contra os proprietários rurais e desviada de seus fins naturais
num transfert político.
A política é, naturalmente, uma forma ativa da vida social dos povos e
encobre um fundo misterioso onde tumultuam reminiscências deturpa-
106 LUIS MARTINS

das do subconsciente coletivo. Sob uma aparência de lucidez e lógica, atu­


am elementos arcaicos sepultados sob a carga da censura social imposta
pelo desenvolvimento das culturas.
Para a compreensão exata da hipótese aqui formulada, vale a pena re­
memorar a estrutura psicológica do complexo de Édipo, que Freud encon­
trou como explicação básica das origens do totemismo96 e para demonstrar,
posteriormente, as afinidades da massa popular com a horda primitiva.
Considerando o totemismo como o começo da evolução, Freud pro­
curou uma explicação para essa curiosa forma de organização social, fun­
dada na exogamia, e adotou como ponto de partida a hipótese de Darwin,
segundo a qual a forma primitiva da sociedade humana teria sido a horda
submetida ao domínio absoluto de um poderoso macho.
Acrescentando à hipótese de Darwin a tradição do sacrifício ritual da
"comida totêmica': descrita por Robertson Smith, o fundador da psicaná­
lise chegou à seguinte conclusão: o macho ancestral que dominava a horda
primitiva, não permitindo aos filhos a concorrência sexual junto às mulhe­
res que lhe pertenciam,

os irmãos expulsos se reuniram um dia, mataram o pai e devoraram o seu cadáver,


pondo assim um fim à existência da horda paterna. Unidos, empreenderam e levaram
a cabo o que individualmente seria impossível. Pode-se supor que o que lhes inspirou
o sentimento de sua superioridade foi um progresso da civilização, talvez a aquisição
de uma nova arma. Tratando-se de selvagens canibais, era natural que devorassem o
cadáver. Ademais, o violento e tirânico pai constituía seguramente o modelo invejado
e temido de cada um dos membros da organização fraternal e, ao devorá-lo, identi­
ficavam-se com ele e apropriavam-se de uma parte de sua força. A comida totêmica,
talvez a primeira festa da humanidade, seria a reprodução comemorativa desse ato
criminoso e memorável, que constituiu o ponto de partida das organizações sociais,
das restrições morais e das religiões. 97

96. Sistema social que Mac Lennan descobriu em meados do século XIX. Suas formas
mais rudimentares existem entre os selvagens da Austrália. O livro de Prazer sobre o as­
sunto, Totemism and exogamy, é hoje clássico.
97. Sigmund Freud, Totem y tabú, trad. de Luiz-Lopez Ballesteros y de Torres, Biblioteca
Nueva, Madrid, 1 934.
O PATRIARCA E O BACHAREL 107

Assim, Freud estabeleceu a identificação do animal totêrnico à imagem pa­


terna. Ulteriormente, ele desenvolveu a sua tese ao estudar a transformação da
psicologia coletiva em psicologia individual, tratando do mito do herói.
É elementar, em psicanálise, a identificação do governante de povos, do
imperador, césar, tzar etc. à entidade paterna, que, por sua vez, é como vimos
uma uma sobrevivência do pai primitivo.
Quanto aos povos, seriam uma sobrevivência da horda ancestral. Eis o
que diz textualmente Freud:

A massa se nos mostra, pois, como uma ressurreição da horda primitiva. Assim
como o homem primitivo sobrevive virtualmente em cada indivíduo, também toda
massa humana pode reconstituir a horda primitiva. Devemos pois deduzir que a psi­
cologia coletiva é a psicologia humana mais antiga.98

E adiante: "Os indivíduos da massa se acham enlaçados mutuamente pela


mesma forma que hoje, mas o pai da horda permanecia livre, e ainda achan­
do-se isolado, eram enérgicos e independentes seus atos intelectuais':99
Vemos, pois, que existem duas formas subconscientes distintas: a do go­
vernante e a das massas subordinadas ao seu poder. É ainda Freud quem
afirma essa disparidade de mentalidades:

Os indivíduos componentes de uma massa precisam ainda atualmente da ilusão de


que o chefe os ama a todos com um amor justo e eqüitativo, ao passo que o chefe mes­
mo não precisa amar ninguém, pode erigir-se em dono e senhor e, absolutamente nar­
cisista, acha-se seguro de si mesmo e goza de completa independência. 1 00

Como disse acima, é banal o processo de identificação do pai ao


governante de povos. 1 0 1 Ora, segundo afirmam os psicanalistas - e isto

98. Freud, Psicologia de Ias masas y analisis dei yo, Ediciones Ercilia, Santiago, 1 937.
99. Idem.
1 00. Idem.
1 0 1 . Seria oportuna uma referência aos atentados políticos, nos quais vê o psicanalista Dr.
René Allendy a satisfação de impulsos inconscientes. "Le chef d'État incarne tout naturelle­
ment l'image paternelle et sa puissance déchaine des vocations criminelles qui se rationali­
sent comme elles peuvent" [O chefe de Estado encarna de forma completamente natural
108 LU!S MARTINS

é importante para a compreensão da nossa tese -, o homem só atin­


ge sua verdadeira liberdade quando consegue se afastar da autoridade
paterna.
Resumindo seu longo arrazoado do Totem e tabu, Freud concluiu que "no
complexo de Édipo coincidem os começos da religião, da moral, da socieda­
de e da arte': 102
A situação edipiana, como todos sabem, tem sua forma clássica na
tragédia de Sófocles e resume-se na ação duplamente criminosa de herói,
matando o pai e possuindo a mãe.As origens desse complexo dramático,
que Freud encara como a base da civilização humana, mergulham, como
vimos - segundo a hipótese do mestre de Viena -, no longínquo episódio
ocorrido entre os componentes da horda primitiva. Mas a conseqüên­
cia dessa tragédia, perdida na noite dos tempos imemoriais, foi o remor­
so dos parricidas, que viveram então um período turbulento, esmagados
pela necessidade de expiar o crime cometido.
Uma vez morto o pai, nenhum dos seus filhos pôde ocupar seu posto
predominante, "e se algum tentou fazê-lo", diz Freud,

viu levantar-se contra ele a mesma hostilidade, renovando-se as lutas, até que to­
dos se convenceram de que deveriam renunciar à herança paterna. Então cons­
tituíram a comunidade fraternal totêmica, cujos membros gozavam de todos os
direitos iguais e se achavam submetidos às proibições totêmicas, que deveriam
conservar a memória do crime e impor a expiação. 1 0 3

A continuação desse processo evolutivo, passando pelo ciclo do ma­


triarcado e culminando no aparecimento do herói mítico, não tem im­
portância para o entendimento de nossa tese.
O sentimento de culpa e remorso, exigindo a expiação, teria criado as
restrições morais, seria a base das religiões e a pedra angular da evolução
social da humanidade. Como afirmou Freud, em palavras memoráveis:

a imagem paternal, e seu poder libera vocações criminais que se racionalizam como po­
dem. Trad. do Ed. ] . René Allendy, Le crime et les percersions instinctives, número especial
do Crapouillot, Paris, maio de 1 938.
1 02. Freud, ob. cit.
1 03. Freud, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 109

A sociedade repousa então sobre a responsabilidade comum do crime coletivo, a


religião sobre a consciência da culpa e do remorso e a moral sobre as necessidades
da nova sociedade e sobre a expiação exigida pela consciência da culpa. 1 04

Integrado assim à origem da moral humana, incorporado à psicologia co­


letiva, é natural que esse sentimento de culpa e remorso reapareça como um
reflexo consciente cada vez que as circunstâncias sociais reproduzam as mes­
mas condições dramáticas de revolta da horda contra o pai primitivo.
Se admitirmos essa preliminar, devemos colocar os dados em equação,
para caracterizar o ambiente em que se teria processado a atuação do famo­
so complexo na política brasileira.
Vimos a geração que fez a República agir duplamente num sentimen­
to antipaternal, reagindo contra o patriarcado e contra a Monarquia.Psi­
cologicamente, segundo as lições da psicanálise, era um movimento de
virilidade (maioridade política, governo do povo pelo povo, emancipa­
ção da tutela imperial).
Já demonstramos como D. Pedro II encarnava um admirável símbolo
paternal que centralizou as rebeldias inconscientes antipatriarcais dos mo­
ços do Segundo Império.
Todas as pessoas que deixaram depoimentos pessoais sobre o imperador
estão acordes na referência à sua bonomia meio sabichona, à vigilância um
tanto estreita que ele próprio exercia pessoalmente - tanto quanto possível
- sobre a moral de seu povo.Diz-se que prestava ouvidos demasiadamente a
denúncias, quando se tratava de funcionários públicos com amante, ou da­
dos ao vício de beber, ou ao de jogar, ou a outro qualquer.Gente indecente
não ia com ele.Como se vê, governava de maneira patriarcal, influindo dire­
tamente no caráter do povo, aquele povo tão imbuído de preconceitos mo­
rais, do tempo do segundo reinado (menos quando se tratava da escravidão,
onde tudo se permitia, numa tolerância verdadeiramente animal).
O sr.Oliveira Viana, referindo-se à ação pessoal de Pedro II à frente de
seus súditos, "alude à repressão do predomínio dos maus instintos, dos
maus sentimentos, dos maus preconceitos e dos maus costumes': "Du­
rante o meio século do seu reinado", acrescenta o ilustre sociólogo,

1 04. Freud, ob. cit.


110 LUIS MARTINS

ele exerce, enfim, a mais nobre das ditaduras - aquela "ditadura da moralidade"
de que fala um historiador e que é, sem dúvida, a mais poderosa força de retifica­
ção moral na ordem pública e privada, que jamais conheceu o nosso povo, desde
o primeiro século cabralino. 105

Todavia, os jovens republicanos não queriam saber de ditaduras. E a


campanha liberal-democrática foi sempre crescendo em vigor e eficiên­
cia, ao mesmo tempo que se combalia em seus alicerces a estrutura pa­
triarcal da vida brasileira.
Quando, por fim, se destruiu, como força social preponderante, a fi­
gura do patriarca, e se realizou a República, ficaram satisfeitas as aspira­
ções daqueles moços românticos e livres pensadores saídos das acade­
mias. Mas, uma vez alcançados os seus fins, a rebeldia liberal começou a
se amortecer sentimentalmente num verdadeiro complexo de remorso. E
o slogan desencantado de quarenta e um anos de liberal-democracia viria
a ser a frase lírica de um republicano histórico talvez por demais idealista:
"Não era esta a República dos meus sonhos."
O século XIX estava por pouco. No Brasil o seu declínio representava o
declínio do patriarcado rural e se distinguia por uma efervescência de idéias
liberais dirigidas principalmente pelo objetivo generoso de redimir os cativos
e de anular a única exceção monárquica no continente americano.
Realizada a abolição, a campanha republicana assumiu proporções
avassaladoras. O golpe militar de 15 de novembro de 1889 coroou, com
um aparato de força, uma aspiração generalizada dos moços, imbuídos
de democracia, igualdade, fraternidade e liberdade, palavras mágicas que
eram cantadas em todos os tons pela juventude acadêmica, pelos literatos
mais novos, pelos professores positivistas.
Proclamada a República, pareciam satisfeitas todas as aspirações libe­
rais. Mas logo começaram estranhamente deserções, remorsos, divergên­
cias, suspiros saudosos. E, o que é pior, revoltas, conspiratas, pronuncia­
mentos armados.
Uma estranha sensação de insatisfação avassalou as hostes mais orto­
doxas de republicanos. Muita gente se tornou saudosista, vendo na época
do Império e do patriarcado rural os "bons tempos" ideais, evocados com

105. Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil, ob. cit.


O PATRIARCA E O BACHAREL 111

suspiros e frases de efeito. Vários republicanos históricos se arrependeram


mesmo abertamente e a Primeira República viveu sempre numa notável
instabilidade nervosa, onde havia o pressentimento subconsciente no slo­
gan desalentado e lírico: "Não era esta a República dos meus sonhos':
Implantou-se então no Brasil um período turbulento. Pode-se dizer que
esse ambiente de grande insatisfação nervosa começou nos primeiros tem­
pos do regime: dissolução da Constituinte, renúncia de Deodoro, revolta da
esquadra, Canudos. Motins, desordens, meetings, exílios, prisões em massa.
E a coisa continuou. Não passava um presidente que não tivesse de domi­
nar uma revolução.
Tentaremos demonstrar adiante como esse período de turbulências e
lutas fratricidas estava ligado à ação dissolvente de um sentimento sub­
consciente de remorso e necessidade de autopunição. Era "o dever de ex­
piar a morte do pai': 106
Resta dizer, entretanto, que essa predisposição psicológica foi alimenta­
da, cultivada, insuflada sabiamente, de maneira a facilitar a sua dissemina­
ção. Houve, de fato, uma certa exploração política em torno do fato de se
ter exilado o velho monarca, com o intuito de comover a opinião popular:
exploração que pretendia tornar mais nítido e claramente manifesto o re­
morso sentimental dos republicanos.
Assim, um dos famosos "sonetos do exílio" de D. Pedro II fecha com es­
tes tercetos:

Mas a dor que excrucia e que maltrata,


A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata

É ver na mão cuspir na extrema hora


A mesma boca aduladora e ingrata
Que tantos beijos nela pôs outrora.

106. Emprego expressões de Artur Ramos: "A horda primitiva matou um dia o pai, em quem
enxergava um ideal, modelo temido e adorado. Sucedeu um período de turbulências e lutas
fratricidas, porque ninguém se atrevia a tomar o lugar do pai. Formou-se assim uma socie­
dade fraternal totêmica, com o dever de expiar a morte do pai" (Artur Ramos, O negro bra­
sileiro, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1940).
112 LU!S MARTINS

Sabe-se que mais de uma vez se negou que esses versos fossem de D.Pe­
dro II.Que o Barão de Loreto, Carlos de Laet, ou outro qualquer monarquis­
ta os tenha escrito, isto revela um fim político, o desejo secreto de explorar no
povo um sentimento de revolta contra os ingratos que fizeram a República...
"Ingratos" é mesmo o nome do soneto.Havia um propósito claro de criar
um estado de espírito propício à propagação do grande complexo...
Beijar a mão paterna era um dos gestos típicos de respeito filial.No
regime patriarcal monárquico, até quase ao fim do reinado de D.Pedro
II, o beija-mão foi um dos hábitos protocolares da Corte, cerimônia que
muito escandalizava os estrangeiros que nos visitavam.Consciente ou in­
conscientemente, o soneto acentuava o símbolo parricida, mais uma vez
identificando a figura do imperador ao pai coletivo.
No soneto "Ã Imperatriz': o símbolo vem ainda mais claramente ex­
presso:

Feriu-te a ingratidão em seu delírio

Mãe do povo, acabou-se-te o martírio ...

Carlos de Laet, em cujo ânimo a idéia da restauração assumiu um


aspecto místico de sebastianismo, publicou em 1921 uma plaquette in­
titulada Predição-saudação, na qual reproduziu um artigo seu, de 189 1,
prognosticando a volta do corpo de D. Pedro II à pátria; e uns versos de
1920, de exultação pelo decreto que revogava a ordem de banimento.
Esse poema começa assim:

Sim, Ele há de voltar, não como um rei banido,


Que reconquiste o trono, irado, a batalhar,
Mas como um "patriarca" amigo, bem querido,
Chamado pelos seus, que enfim regressa ao lar!

O Gigante de Pedra, altivo, sobranceiro,


Que das nuvens ao mar soberbamente cai,
O PATRIARCA E O BACHAREL 1 13

Terá, para saudá-lo, um brado alvissareiro:


- Deus salve o que ali vem, nosso rei, nosso pai! 107

E, referindo-se à imperatriz, o refrão infalível:

Protetora ideal, da vida na batalha,


Mãe de infelizes foi ... e de ingratos também ...

A verdade é que os monarquistas não perdiam oportunidade de fa­


zer alusões ao que eles consideravam uma "traição" política, reforçando
a predisposição psicológica para a expansão do que chamaremos "com­
plexo de remorso".
Habilmente, explorando um sentimento não confessado, mas que se
sentia existir, subconsciente ou não, os partidários do trono decaído insis­
tiram na necessidade de expiação das culpas, como se a proclamação da
República tivesse sido um crime.E como expiar? É claro: processando-se a
restauração da Monarquia...
Esse "tema da expiação': aliás bastante significativo, é encontrado com
freqüência em muitos escritores monarquistas.
Porque a preocupação constante dos homens do Império era apresen­
tar a proclamação da República como um ato monstruoso, um atentado à
moral, à dignidade humana, um crime enfim.Não se tratava de um simples
episódio político, uma transformação de regimes, tão comuns na história
de todos os povos.Insistiam os próceres restauradores em incriminar a fra­
gilidade moral da República, revestindo a revolução democrática de negros
aspectos culposos, propícios à psicologia de autopunição, que desde os pri­
meiros tempos se esboçou.Eles criavam habilmente o clima dramático no
qual se desenvolveu o "complexo de remorso".
O Visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho de Ministros derru­
bado pela sedição de 15 de novembro, insistia em escrever do exílio:

Depois de publicado o Manifesto, tive conhecimento de uma queixa mais do Exér­


cito. Ignoro se efetivamente constituiu ela uma das causas que determinaram a su­
blevação de 15 de novembro, ou se foi lembrada postfactum como justificativa.

1 07. Carlos de Laet, Predição-saudação, Leite Ribeiro & Maurílio, Rio de Janeiro, 1 92 1 .
1 14 LU!S MARTINS

Acontece isso freqüentemente no mundo moral. Consumado um atentado,


sua enormidade patenteia-se aos olhos de quem o praticou, já desanuviado das
paixões, e então a consciência aflita busca explicá-lo por motivos diversos dos
que realmente atuam. 1 08

Estamos em plena atmosfera trágica. A "consciência aflita" se debate


pateticamente nas convulsões dos grandes arrependimentos . . . É quase a
linguagem que um autor de dramalhões poria na boca do protagonista
que acabasse de apunhalar o pai . . .
Ora, s e analisarmos com cuidado a conduta da geração que fez a Re­
pública, veremos a maioria de seus componentes atacada de uma estra­
nha necessidade de autopunição, cuja generalização não pode ser eviden­
temente um mero acaso. Houve exceções, é claro. Mas o "complexo de re­
morso" - chamemo-lo assim - é visível numa constância verdadeiramen­
te alarmante e suas manifestações nem sempre se processam da mesma
forma. Mas de um jeito ou de outro, encontraremos, no fundo de condu­
tas aparentemente diversas, o mesmo resíduo subconsciente que, a meu
ver, tem origem naquela remota necessidade de expiação que abalou a
horda primitiva.
Recordemos a lição de Freud: uma vez morto o pai, nenhum dos fi­
lhos pôde ocupar o seu posto e, às tentativas de qualquer um deles para
fazê-lo, sucediam-se lutas e hostilidades, que os obrigaram por fim a re­
nunciar à herança paterna. "Então constituíram a comunidade fraternal
totêmica, cujos membros gozavam de todos os direitos iguais e se acha­
vam submetidos às proibições totêmicas, que deveriam conservar a me­
mória do crime e impor a expiação." Dir-se-á que existe uma diferença
fundamental de situações entre a atitude dos republicanos em face de
D. Pedro II e a dos homens da horda em face do pai. No Brasil as coisas
correram sem sangue, o patriarca não foi morto. Mas não é bem isso. O
banimento do ex-imperador proporcionou-lhe uma auréola de martí­
rio, comparável, na opinião dos monarquistas, a um verdadeiro assas­
sinato. Escolhiam os escritores fiéis ao trono as notas mais comoventes

108. Visconde de Ouro Preto, Advento da ditadu ra militar no Brasil, Imprimerie F. Fi­
chon, Paris, 189 1 .
O PATRIARCA E O BACHAREL 115

para realçar o sofrimento do monarca.Afonso Celso foi um especialista


nesse gênero de literatura.1 09
Mas o hábil estratagema dos restauradores não parou aí. Quando,
em 1891, o antigo imperador morreu em terra estrangeira, não faltaram
insinuações de que o exílio lhe encurtara a vida. Já não se tratava mais
de uma equivalência simbólica, de um homicídio moral - era homicí­
dio no duro.Vejamos, por exemplo, o que dizia Afonso Arinos, em 2 de
dezembro de 1897:

O desgosto profundo que lhe abalou a alma, quando, há oito anos, o expulsou
do Brasil o motim dos quartéis; a agravação conseqüente de sua saúde de velho,
gasta abnegadamente, durante mais de meio século, em serviços inolvidáveis à ter­
ra pátria; e, mais a ingratidão com que muitos retribuíram os benefícios de que seu
coração fora sempre pródigo - tudo concorreu para apressar o fim daquela vida
por tantos títulos preciosa. 1 1 0

A violência primitiva pode, aliás, manifestar-se em formas atenuadas,


impostas pela civilização. A essência permanece a mesma. Se nos apro­
fundarmos analiticamente em certos processos substitutivos de elimina­
ção política, encontraremos aquilo a que Otto Rank chamou o "arquétipo
de todos os crimes", isto é, o assassinato do pai.Eder, por exemplo, acredita
que "psicanaliticamente, a eleição pode ser encarada como a sublimação
do regicídio (parricídio) ".1 1 1
Veremos, em páginas que se seguirão, os efeitos do assassínio simbóli­
co do pai (banimento do imperador) imposto dramaticamente à geração
que fez a República. Desde já observemos, entretanto, um fato curioso,
que não poderá passar despercebido a quem, de espírito prevenido, estu­
de a transição da forma monárquica para a republicana no Brasil.

109. Veja-se, por exemplo, o livro O imperador no exílio, Magalhães & Cia., Rio de Janei­
ro, 1893.
110. Afonso Arinos, Notas do dia, Andrade, Mello e Comp., São Paulo, 1900.
111. Eder, em Jones, Ernest, Social aspects of psycho-analysis, Williams & Norgate Ltd.,
Londres, 1924.
116 LU!S MARTINS

É claro que não podemos generalizar, mas em geral os monarquistas


que mais sentiram o advento do novo estado de coisas foram os que, por for­
mas diversas, mais se tinham mostrado hostis ao monarca e ao trono.É extre­
mamente chocante que conservadores intransigentes como Paulino de Souza,
por exemplo, se tenham acomodado ao novo regime, numa indiferença que
mereceu reparos, ao passo que liberais da irreverência combativa de Silveira
Martins e Ferreira Viana passaram a fazer parte das fileiras restauradoras.
Ocorre aqui um drama de essência puramente subconsciente.Paulino de
Souza, que não combatera pessoalmente o imperador nem o hostilizara des­
respeitosamente, não poderia sentir aquela misteriosa ação de remorso, que
é a fatalidade hereditária do complexo de Édipo.Fora um súdito obediente e
passivo, que não concorrera para a queda do rei; isto é, um filho que não se
incorporara ao grupo parricida.Daí a sua serenidade de espírito, a sua indife­
rença, a sua fácil acomodação ao novo regime.
Quanto a Ferreira Viana e Silveira Martins, o caso é muito diverso.
Como Lafaiete Rodrigues Pereira, signatário do manifesto de 1870, ambos
sofreram as conseqüências do remorso republicano.À sua atitude constan­
te de desmoralização da Monarquia corresponde realmente uma forma de
deposição do trono que apenas não se concretizou em ação, permanecen­
do no mundo das idéias.Nem por isso, entretanto, o remorso deixou de
agir exatamente como agiu no caso dos republicanos.Será também, como
adiante veremos, o drama de Joaquim Nabuco. Porque, efetivamente, todos
eles ajudaram na demolição do Império.E embora não tivessem aderido ao
golpe de 1889, sentiram-se intimamente culpados, sem entretanto a cora­
gem de se confessarem ou de sequer poderem colocar o problema diante de
sua própria análise consciente.Sob o ponto de vista da crítica psicológica,
esses monarquistas estão exatamente na mesma situação dos que derruba­
ram efetivamente a Monarquia.Lembremo-nos aqui do postulado psica­
nalítico da "onipotência das idéias".
Silveira Martins, por exemplo, veio a ser, depois do 15 de Novembro,
um dos mais ardorosos, dos mais dedicados, dos mais combativos chefes
restauradores. Fiel ao imperador deposto, ele foi o "cabeça" da revolução
chamada "federalista" (mas na realidade restauradora) que acabou alian­
do-se ao movimento de Saldanha da Gama.Mas, anos antes, poucos ad­
versários tão veementes tivera o monarca.Chegou a se declarar quase re-
O PATRIARCA E O BACHAREL 117

publicano, ou pelo menos indiferente às formas de governo, como neste


trecho de discurso, pronunciado na Câmara, em 1873, contra Mauá:

As minhas idéias são todavia conhecidas; têm sido pregadas na tribuna, publicadas
na imprensa e podem resumir-se nessas palavras de Prevost-Paradol' 12 eu chamo bom
cidadão, ao rigor da palavra, aquele que não repele nenhuma das formas de governo
livre, que não suporta a idéia de perturbar o repouso da pátria em proveito de suas
ambições ou de suas preferências particulares, que não se inebria nem se indigna com
as palavras Monarquia ou República e que limita suas exigências a esse único ponto,
que a Nação se governe a si mesma, debaixo do nome de República ou de Monarquia,
por meio das assembléias livremente eleitas e de ministérios responsáveis.

Quanto a Ferreira Viana, não há quem ignore o sarcasmo de seus ata­


ques pessoais a D.Pedro II, a quem chegou a chamar "César caricato".Em
1873, protestando na Câmara contra o empastelamento do jornal Repú­
blica, de que eram diretores Quintino Bocaiúva, Salvador de Mendonça e
Saldanha Marinho, assim se exprimiu: "A República, que fez a glória da an­
tiguidade grega e romana, que preside aos destinos do maior povo do nosso
século, que mantém felizes e independentes no meio das potências da Europa
os livres e pacíficos cidadãos da Suíça, nos deve inspirar outros sentimentos.
Os acontecimentos de 27 e 28 do mês passado são sintomas da falsa e fatal po­
lítica do gabinete atual:'
Entretanto, esse espírito desabusado e livre, uma vez proclamada a Re­
pública, permaneceu fiel ao trono.Rodrigo Otávio assinalou o fato, acen­
tuando que aconteceu o mesmo com outras personalidades.
"É curioso assinalar': escreveu,

que Ferreira Viana, tendo sido um espírito liberal, democrático na extensão da palavra,
independente de ligações monárquicas, reafirmou-se, depois da queda do Império,
nos sentimentos conservadores, fenômeno que, entre nós, aliás, não se deu só com ele,
mas também com outras notáveis personalidades de nossa elite intelectual. 1 1 3

1 1 2. Prevost-Paradol ( 1829- 1 870), jornalista e ensaísta francês. N. do E.


1 1 3. Rodrigo Otávio, Minhas memórias dos outros, Livraria José Olympio, Rio de Janei­
ro, 1 935.
118 LUIS MARTINS

Lafaiete Rodrigues Pereira, o famoso jurisconsulto, assinou o manifesto


republicano de 3 de dezembro de 1870. Mais tarde viria a ser também daque­
les que, segundo um cronista do começo do século, fizeram "voto de castida­
de política': u4 assim permanecendo até a sua morte, ocorrida em 1917.
Que nessa atitude de abstenção ou de francas tendências restaurado­
ras havia um fundo latente de remorso, poderemos verificar pela con­
fissão explícita de um outro monarquista, que - no seu caso se pode di­
zer exatamente isto - "pecara apenas em pensamento': Trata-se de Múcio
Teixeira, válido do Palácio Imperial que, em 1917, assim se penitenciava:

[ ... ] mas instando o Imperador para que eu fechasse o livro com um poema origi­
nal de minha lavra, "O sonhador profeta", e havendo nesse poema versos contra o
trono e a Igreja, pois sempre mantive a mais ampla independência de idéias polí­
ticas e religiosas durante o Império - o que digo com sincero arrependimen to, para
penitenciar-me tardiamente! -, pediu-me Sua Majestade que modificasse um ver­
so meu contra o papa. 1 1 5

Vejamos, a seguir, como esse complexo de remorso se manifestou em


alguns republicanos.

114. "Crônica fluminense", de Saltônio, na revista A Universal, de 30 de janeiro de 1902 ( a


propósito de Afonso Celso).
115. Múcio Teixeira (Barão Ergonte), O imperador visto de perto, Leite Ribeiro & Maurí­
cio, Rio de Janeiro, 1917.
VIII. "Não era esta a República
dos meus sonhos .. :'

Na tribuna do Senado, Saldanha Marinho, republicano histórico, excla­


mou certo dia, de maneira um tanto lírica: "Não era esta a República dos
meus sonhos! ':
E essa frase desencantada veio a se tornar, entre nós, o slogan de qua­
renta e um anos de liberal-democracia, isto é, todo o tempo que durou a
Primeira República.A toda hora ouvia-se o gemido célebre.Todos se de­
claravam decepcionados.Ninguém estava satisfeito. O mote desalentado
foi glosado em todos os tons. Parece que, afinal, a República de 1889 não
foi a dos sonhos de ninguém...
A primeira voz desajustada que se elevou no coro entusiástico da vitória
foi a de um membro do próprio governo provisório e no mesmo dia em que
a República se proclamou.
Escrevendo, com data de 15 de novembro de 1889, para o Diário Po­
pular de São Paulo, Aristides Lobo, ministro do Interior do gabinete revo­
lucionário chefiado por Deodoro, parecia amedrontado e apreensivo:

Eu quisera dar a esta data a denominação seguinte: 1 5 de novembro do primeiro


ano da República; mas não posso infelizmente fazê-lo. O que se fez é um degrau,
talvez nem tanto, para o advento da grande era. Em todo caso, o que está feito pode
ser muito, se os homens que vão tomar a responsabilidade do poder tiverem juí­
zo, patriotismo e sincero amor à liberdade. Como trabalho de saneamento, a obra
é edificante. Por ora, a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O
fato foi deles, deles só. Porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O
povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava.
Muito acreditavam sinceramente estar vendo uma parada. 1 1 6

1 1 6. O Diário Popular publicou essa carta em sua edição de 18 de novembro de 1 889.


120 LU!S MARTINS

Esse comentário pessimista não sugere evidentemente a idéia nem de


alegria nem de triunfo.Quase parece um lamento decepcionado.]ournée
des dupes 1 1 7 , chamou Paulo Prado ao 15 de Novembro.Segundo Aristi­
des Lobo, o povo acreditava estar assistindo a uma parada militar."Bela
parada comemorativa': foi aliás como Euclides da Cunha denominou o
movimento chefiado por Deodoro.1 1 8 Em outra oportunidade referiu-se,
com a mesma ironia um tanto depreciativa, à data republicana: "o 15 de
Novembro foi uma glorificação exagerada de minúcias".1 1 9 Note-se que o
republicanismo ardente de Euclides, de que não se pode duvidar, culmi­
nou no célebre episódio da Escola Militar, quando, simples cadete, atirou
a espada aos pés do Ministro da Guerra, em visita ao estabelecimento.
A forma por que se processou o advento da República - concretizada
num simples movimento de quartéis - decepcionou os chefes populares
da propaganda, que viam o povo mais ou menos alheio a tudo.Essa de­
cepção se manifestou em formas humorísticas, amargas ou bonacheiro­
nas, que não escondiam certa intenção satírica. O próprio Deodoro da
Fonseca, com bonomia, viria a achar, afinal, que quem lucrara no meio
de tudo aquilo fora o cavalo que ele montava quando se pôs à frente das
tropas amotinadas...
O fato é que os republicanos, como os monarquistas, talvez jamais ti­
vessem sonhado com um desfecho tão simples e tão incruento.Um aca­
dêmico, referindo-se, em discurso de recepção, ao 15 de Novembro, defi­
niu-o como "uma ameaça em surdina e uma capitulação apressada':
Esse desgosto, entretanto, que apenas se manifestava em relação à for­
ma da proclamação, era mais profundo e se dirigia subterraneamente ao
próprio fundo, à própria essência da República.Suas raízes mergulhavam
no sentimento de remorso filial.É sabido que o próprio Marechal Deo­
doro muito prezava o imperador, a quem sempre se referiu com o maior
respeito.O poder só lhe trouxe atribulações.No dia 6 de maio de 1890,
ele escreveu uma carta a Rui Barbosa, em que anunciava o desejo de lhe

117. Literalmente, jornada "dos tolos" ou "dos logrados". Referência ao dia 10 de novembro
de 1630, em que o rei da França Luís XIII, contra as expectativas, reitera sua confiança no
ministro Cardeal de Ríchelieu e elimina do jogo politico seus adversários. N. do E.
118. Euclides da Cunha, À margem da história, ob. cit.
119. Euclides da Cunha, Contrastes e confrontos, Ed. Literaria e Typographica, Porto, 1907.
O PATRIARCA E O BACHAREL 121

transmitir a chefia do governo, "porquanto", explicava, "nem tenho a pa­


ciência de Jó nem desejo os martírios de Jesus Cristo".1 2 0
Se isto pode parecer despido de qualquer significação - mesmo por­
que Deodoro, como costumava asseverar, era republicano do dia 15 de
Novembro -, o mesmo não se poderá dizer dessa surpreendente carta
de Quintino Bocaiúva, o principal elemento da propaganda republicana,
que, no Governo Provisório, ocupou o posto de Ministro das Relações
Exteriores.Vamos reproduzi-la na íntegra:

Petrópolis, 1 2-8-90 1 . Estimado correligionário e amigo general Mena Barreto. -


Respondo à sua afetuosa carta, na qual senti vibrar, com a mesma antiga energia,
o sentimento republicano do meu bravo e dedicado companheiro da jornada de
1 5 de novembro de 1 889. Meu caro amigo, tudo quanto posso e tudo quanto devo
dizer-lhe sem amargor, mas com profunda amargura, é que vejo a nossa República
envolvida na caligem de uma atmosfera escura e pesada - como nos pródromos de
uma tempestade! A nação inteira parece agonizar; desapareceu de todos os espíri­
tos a fé e a esperança - e no naufrágio das crenças parece afundarem-se igualmente
com elas os caracteres e as virtudes que únicos poderiam salvar-nos.
Pela minha parte, embora ocupando (e com grande sacrifício) um posto oficial,
conservo-me propositalmente fora dos conselhos e dos conciliábulos políticos.
Não tenho hoje senão uma aspiração: a de enterrar-me na obscuridade do meu
lar, de tal sorte que o meu nome nem possa mais ser lembrado senão no registro
do obituário quando chegue a minha hora.
Vejo como o meu amigo terá visto figurar o meu nome na lista dos pretendentes
ao cargo de presidente da República. Figuro, porém, a contragosto, porque sendo
ainda um homem público, estou no caso das mulheres também públicas, das quais
todos se podem dizer donos. A verdade, porém, é que não sou nem desejo ser candi­
dato, e que ante a hipótese de poder ser eleito tremo de pavor mais do que se estivesse
para subir os degraus de um cadafalso. Estou velho, desalentado, desencantado - não
tenho ressentimentos nem ambições ou pretensões. Como republicano e como pa­
triota sou hoje acessível a dois únicos sentimentos - o da tristeza e da vergonha.
Como creio em Deus, para ele apelo porque só dele espero a salvação da Pátria
e da República.
Aperta-lhe a mão o velho correligionário e amigo - Quintino Bocaiúva. 1 2 1

1 20. Apud Ernesto Senna, Deodoro, Imprensa Oficial, Rio de Janeiro, 1 9 1 3.


1 2 1 . Apud Ernesto Senna, ob. cit.
122 LU!S MARTINS

Eis aí: "estou velho, desalentado, desencantado. . .': Variação bem ca­
racterística da frase de Saldanha Marinho. Creio que devemos procurar a
causa profunda desse desgosto do grande republicano, superficialmente
estimulado pelos seus reveses político-partidários, no obscuro subcons­
ciente sentimento de remorso que amargurou a sua geração. E é curioso
lembrar que ele fora distinguido por D. Pedro II com a condecoração da
Ordem da Rosa, conforme se pode ver pelo seguinte documento:

Atendendo aos estudos e trabalhos feitos e publicados pelos cidadãos Francisco


Sotero dos Reis, Quintino de Souza Bocayuva, Drs. Nicolau Joaquim Moreira, Fran­
cisco Pinheiro Guimarães, bacharéis Carlos Antônio Cordeiro e Antônio Achiles de

Miranda Varejão e de conformidade com o art. 92 parágrafo 3º do decreto nº 2.853
de 7 de dezembro de 1 86 1 , hei por bem nomeá-los Cavalheiros da Ordem da Rosa.
Palácio do Rio de Janeiro, em 1 O de junho de 1 863, 402 da Independência e do Impé­
rio. Com a rubrica de S. M. o Imperador - Marquês de Olinda. 122

Outro desencantado. O general Sebastião Bandeira tomou parte ati­


va nos preparativos do movimento de 15 de novembro de 1889. Era en­
tão tenente do Exército e participou destacadamente entre os conjurados
militares mais jovens, que cercavam Deodoro e Benjamim Constant. Pois
anos depois ele também viria a desabafar na seguinte confissão: "Precisa­
mos e queremos ser verdadeiros: a realização do nosso ideal, tal como o
conseguimos, não correspondeu à expectativa dos bons patriotas: todos
o sentem e lastimam . . ." 123
Também, para ele, não era aquela a República que sonhara . . .
O padre João Manuel, mais desabusado, não tinha meias palavras:
"Diabo leve semelhante República" - explodia.
Evidentemente, nem sempre será fácil encontrar confissões assim tão
explícitas. O tema "não era esta a República" etc., já por si um disfarce,
muitas vezes deverá ser procurado, extremamente modificado, em de­
poimentos de terceiros. Este assumiu formas diversas. O saudosismo foi
uma delas. Muitos homens responsáveis pela República passaram a ver

1 22. Jornal do Comércio, edição comemorativa do Centenário, Rio de Janeiro, 1 922.


1 23. Apud Ernesto Senna, ob. cit.
O PAT R I A RCA E O BAC H A R E L 123

nos tempos do Império a época feliz, a idade de ouro, para sempre aca­
bada.Elogiar o imperador era outra forma de autopunição.O padre João
Manuel não perdoava Francisco Glicério por causa disto: "O sr.F. Glicé­
rio", escrevia ele,

em vez de lavar-se das gravíssimas imputações que lhe são feitas, elogia com entu­
siasmo a pessoa do ex-imperador, tecendo a mais fervorosa apologia de suas vir­
tudes, encarecendo os méritos do seu reinado e exaltando o seu patriotismo, des­
mentindo assim o seu passado de propagandista, que descarnava os vícios da Mo­
narquia e expunha às massas populares a incapacidade e falta de patriotismo do
seu augusto representante. 1 24

Essa estranha insistência em elogiar D.Pedro II e o regime monárqui­


co, a gente encontra a toda hora em vários políticos republicanos, entre
os de maior projeção.Um deles é J.J.Seabra, que ocupou lugar de tanto
destaque na história da Primeira República. Numa entrevista concedida
ao jornalista Francisco de Assis Barbosa, o antigo líder baiano declarou:

Veja você. Era assim na Monarquia. Um regime liberal. Um regime republica­


no. Sim, não tenha dúvida. A Monarquia, no Brasil, com D. Pedro II, foi um regi­
me republicano. 1 25

É verdade que logo adiante ele acrescenta não ter tomado parte na
campanha republicana, permanecendo fiel ao imperador.Será que, por
essas alturas, a memória do velho político não o traiu? De qualquer for­
ma, pela sua atuação destacada no período iniciado em 15 de novembro
de 1889, ele era e sempre foi considerado republicano histórico.
Aquela referência de Seabra a D.Pedro nos faz perguntar, como Anatole
France: "Mas afinal, se ele era tão perfeito, por que então o depuseram?"
Mas o tema desencantado tinha formas sutis de se manifestar. Em
relação a Lúcio de Mendonça, por exemplo, só ficamos sabendo que ele

124. Padre João Manuel, Reminiscências, Correio Amparense, Amparo, 1 894.


1 25. Francisco de Assis Barbosa e Joel Silveira, Os homens não fa lam demais... , Rio de Ja­
neiro, Alba Editora, 1942.
124 LUÍS MARTINS

também não lhe permaneceu indiferente devido a Pedro Lessa, que, no


discurso de recepção na Academia Brasileira, onde ia ocupar a cadeira
fundada pelo poeta das "Vergalhas", disse o seguinte, ao lhe fazer o elo­
gio póstumo, em sessão de 6 de setembro de 1910:

Proclamada a República, o mais ardente sonho ... (aqui, por ser exata a expressão
da realidade, bem pode ser permitida a tão estafada frase) o mais ardente sonho de
toda a sua mocidade, não quis Lúcio ocupar nenhuma posição política de comba­
te, o que tão bem se ajustaria à sua índole e qualidades de lutador. Depois de exer­
cer alguns cargos burocráticos e de auxiliar a magistratura, veio afinal refugiar-se
nesta. Que se teria passado naquele nobre espírito, dominado sempre até a obses­
são por estas duas idéias, que foram os lemas supremos de toda a sua vida: coerên­
cia e independência? Menos feliz do que o trovador da Aquitânia, que, embalado
nos braços de sua princesa adorada, mas não possuída, ouviu, à guisa de consola­
ção extrema, estes versos sonoros e de um conceito tão verdadeiro:

Tu n'auras pas connu cette tristesse grise


De I'ido/e, avee qui I' on se familiarise, 126

ele viveu muitos anos em íntimo contato, a familiarizar-se com o seu ídolo, cujos
defeitos e delitos, assim foi constrangido a conhecer. 1 2 7

Em outras palavras: não era aquela a República dos seus sonhos. . .


Se Lúcio de Mendonça conseguiu mais ou menos recalcar o complexo,
o mesmo não se deu com seu irmão Salvador.Este, que dirigira o jornal A
República, acabou grande admirador (fã, diríamos hoje) de D. Pedro II.
Também para Silva Jardim, cuja morte trágica na cratera do Vesúvio
foi por alguns fantasistas interpretada como um suicídio, a realidade re­
publicana não correspondeu às expectativas do propagandista. É José do
Patrocínio quem o diz:

1 26. Tu não conhecerás a sombria tristeza/ do ídolo, com que a gente se familiariza. Trad.
do Ed.
12 7. Discursos acadêmicos, publicação da Academia Brasileira, Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, 1 935.
O PATRIARCA E O BACHAREL 125

Proclamada a República, a figura de Silva Jardim ganha ainda maiores propor­


ções na sua história. O futuro historiador, quando tiver de julgar as alianças par­
tidárias que o grande batalhador celebrou para dispor de um partido, poderá ser
rigoroso, mas ao ver tanto devotamento esquecido, tanto sacrifício mal aquinhoa­
do e ao mesmo tempo tanta altivez da parte da vítima, há de lembrar-se destas pa­
lavras de Guizot: "Duas coisas tão grandes quanto difíceis são necessárias à glória
de um homem: suportar o infortúnio resignando-se com firmeza e crer no bem e
confiar nele com perseverança." 128

Como já assinalei, o tema de saudade e desencanto, consubstanciado


na frase de Saldanha Marinho, assumiu formas disfarçadas e nem sempre
conscientes. Explodiu aqui e ali, tendo muitas vezes como pretexto uma
situação imediata, de oposicionismo político.É assim que o encontramos
em Sílvio Romero, republicano notório, quando desta forma se exprimiu:
"É a hora dos grandes desenganos, dos profundos abatimentos.O Brasil
é um país de descontentes".129
O estribilho é sempre o mesmo.Por baixo dessas formas mais ou me­
nos transparentes, pode-se sempre reconhecer a saudade recalcada, a
inadaptação latente, a insatisfação surda.Por detrás dos entusiasmos de­
mocráticos, aparece a sombra severa do velho imperador, incomodando,
inquietando, martirizando a geração republicana.No inconsciente de to­
dos agia a figura vindicativa do fantasma.Ele atormenta uma geração in­
teira, não lhe permitindo satisfazer-se na glória da missão cumprida. As
revoluções se sucedem, todos se sentem logrados.Era a sombra do impe­
rador que agia, comovendo esse povo de sentimentais.
Humberto de Campos teve a intuição desse drama.Num número es­
pecial da Revista da Semana de 1925, dedicado ao D.Pedro II, encontro
um artigo seu, intitulado "O fantasma': em que há estas palavras referen­
tes à volta do corpo do antigo monarca à terra brasileira:

Restituído agora D. Pedro II à terra da Pátria, com os restos do seu corpo e a areia
do seu travesseiro, levanta-se na alma de alguns republicanos um grito de alarme:

128. José do Patrocínio, Silva Jardim, ob. cit.


129. Apud Afonso Celso, O imperador no exílio, ob. cit.
126 LUÍS MARTINS

- Que vem fazer aqui, de novo, esse fantasma?


Esse grito de terror é significativo. É o grito do rei shakespeareano, diante do espec­
tro do irmão, a quem tomara a coroa. É em suma o grito do pavor e do remorso.
Esse pavor e esse remorso não provém, contudo, da deposição de 89. O trono
dos Braganças não foi derrubado: caiu, tombou, deslocou-se. A inquietação de que
dão mostras os políticos é filha, apenas, da convicção que têm de não haver a Re­
pública superado, em trinta e seis anos, a obra civilizadora do Império. 130

Um exemplo curioso de manifestação desse complexo de remorso,


que venho procurando estudar, é uma velha página de O Malho, de 1905.
Trata-se de um desenho de Ângelo Agostini, publicado como homena­
gem à República. Mas a homenagem quase se limitava a ser uma pági­
na apoteótica a D. Pedro II. O velho monarca morto, como um fantasma
inoportuno, ocupa quase todo o espaço do desenho, que era encimado
pelas palavras "Salve! República! " e tinha a seguinte legenda:

Homenagem d'O Malho à data fulgurante de 15 de novembro de 1 889. A pre­


sente estampa recorda o ato vigoroso da proclamação da República em frente ao
Quartel General do Exército; o banimento da família imperial, a bordo do Ala­
goas; a morte de D. Pedro II e o vulto do venerando brasileiro que foi um pa­
triota insigne.

Fazendo uma referência direta ao ato de Deodoro e Benjamim Constant,


aquela geração vítima do terrível complexo sentia-se na obrigação de reve­
renciar o rei deposto, como num sacrifício votivo destinado a aplacar os ma­
nes do patriarca morto. Evidentemente, o fato de se homenagear a memória
do venerando monarca só poderia merecer elogios, pela nobreza de que se
revestia; apenas a circunstância era a menos oportuna possível; logicamente,
o que se deveria exaltar era um vulto proeminente da República.
Essa atmosfera de arrependimento e contrição não passou despercebida
a algu ns comentadores da época. Em 1898, o general Honorato Caldas, fe­
chando um livro de homenagem à memória do Marechal Carlos Machado

1 30. Humberto de Campos, "O fantasma", na Revista da Semana, de 28 de novembro


de 1 925, número em homenagem ao centenário de D. Pedro II.
O PATRIARCA E O BACHAREL 127

de Bittencourt (o ministro da guerra assassinado por Marcelino Bispo, quan­


do em defesa do presidente Prudente de Morais), exclamava misticamente:
"Por isto, pois - e que não é da missa nem metade -, pode-se dizer que a
República de 15 de Novembro está no período da expiação".1 3 1
Esse "período de expiação" prolongar-se-á por muitos anos.Veremos,
mais adiante, casos evidentes e confessos de arrependimento entre mui­
tos republicanos - alguns deles sem nenhum disfarce que pudesse enco­
brir o verdadeiro motivo emocional sob aparências irracionais.Por ora, o
que me interessa é caracterizar o clima de melancólico arrependimento,
inconsciente sem dúvida, manifestado nas variações do tema desencanta­
do: "Não era esta a República dos meus sonhos".
Sob o ponto de vista aqui adotado, é fácil ver nesse desgosto uma for­
ma disfarçada do arrependimento filial. O parricídio, ou o equivalente
atenuado do parricídio - que seria no caso o banimento do imperador
- vem seguido do seu fatal cortejo de inquietações psicológicas.O remor­
so, se em alguns se manifesta claramente, como veremos, em outros - na
maioria - apenas escapa ao poderoso recalque em frases características de
insatisfação, de mal-estar, de inadaptação à nova situação.
D.Pedro II era o pai dos brasileiros.A propósito, desejo assinalar aqui
uma curiosa imagem de Carlyle, que prova o caráter libidinoso (no senti­
do em que o termo é empregado pela psicanálise) da ligação entre os reis
e as pátrias em que reinam.Referindo-se ao príncipe Frederico Guilher­
me, pai do grande Frederico, o famoso escritor inglês tem a seguinte ex­
pressão: "Como marido de uma nação, não tem igual entre os reis, anti­
gos e modernos': 1 32
Marido de uma nação! Essa imagem, tão significativa, de um escritor
tão anterior a Freud e à sua teoria, vem, de maneira impressionante, confir­
mar a hipótese de Otto Rank, que vê na pátria uma transformação abstrata
e substitutiva da casa, por sua vez, forma simbólica do útero materno.
Os republicanos brasileiros, uma vez consumada a revolução que vi­
timara o imperador, foram atingidos pelo mesmo remorso dos filhos da

131. Honoraldo Caldas, O marechal de ouro, T ip. Popular, Rio de Janeiro, 1898.
132. T homas Carlyle, History of Frederick II of Prussia called Frederick The Great, Dana Es­
tes, Boston, 189.
128 LU!S MARTINS

horda primitiva depois do assassínio do pai. Chamo aqui a atenção do


leitor para o fato tão significativo assinalado na introdução deste livro:
em geral, os mais imunizados a esse remorso foram os positivistas.Fato
idêntico ao que Eder notou na Revolução Soviética de 1917, em compa­
ração com a francesa, de 1789.Os russos, se bem que matassem o próprio
pai - o tzar -, acharam outro a quem pudessem dedicar a sua adoração:
Karl Marx.Os positivistas brasileiros, embora destronando e banindo D.
Pedro, ficavam com o culto de Augusto Comte, que, entre nós, chegou a
ser verdadeira mística religiosa. Essa transferência da libido filial livrou
certamente os positivistas dos efeitos do remorso que atingiu a maioria
dos republicanos.
IX. Rui Barbosa

Um dos mais injustos preconceitos da geração que fez o modernis­


mo no Brasil foi o esquecimento ou a negação sistemática desse homem
extraordinário, notável em qualquer parte do mundo em que nascesse.
Hoje, já com perspectiva histórica, começamos a encará-lo com o respeito
e a admiração que merecem o seu talento, a sua cultura e o seu civismo. Seu
liberalismo inflexível é uma lição.Toda a sua vida foi, de fato, na síntese de
Alcindo Guanabara, "uma reta traçada entre a liberdade e o direito': Rui é
um grande espetáculo humano, que recordamos com saudade.
Mas o grande liberal foi também vítima eminente do "complexo de re­
morso': Para melhor compreendermos a essência do sentimento martiri­
zante que lhe amargu rou a vida e que o tornou uma espécie de Jeremias
permanente da República, é necessário que lhe conheçamos as origens.
Na introdução que escreveu, em 1921, dois anos antes de morrer, para
a edição em livro dos artigos que publicara em 1889, no Diário de Notí­
cias, 1 33 defende-se calorosamente Rui Barbosa da acusação que se lhe fize­
ra repetidamente de ter aderido à República por despeito, devido ao veto
oposto por D. Pedro II ao seu nome, quando apresentado pelo Conse­
lheiro Dantas para integrar seu gabinete.E pondo todas as culpas no seu
velho amigo e chefe, com uma preocupação exaltada em demonstrar que
do venerando monarca só recebera finezas e que dele só poderia esperar
boa vontade.
Essa "introdução" é curiosíssima, como documento psicológico.É todo
um longo arrazoado tendente a demonstrar que D.Pedro II não tinha ra­
zão algu ma para vetar seu nome ("Por que essa implicância pessoal comi­
go? Pelas minhas opiniões adiantadas?") .É toda uma justificação da con­
duta de trinta anos antes, repisando nas suas convicções monárquicas, si­
tuando a sua oposição liberal nos próprios limites da Monarquia. ("Éra-

133. Rui Barbosa, Queda do Império, Livraria Castilho, Rio de Janeiro, 1921.
130 LUÍS MARTINS

mos, assim, o que, na Inglaterra, se chama oposição de Sua Majestade''.) Evo­


ca carinhosamente os seus contatos pessoais com o imperador, tendo todo
o cuidado em exaltar a atenção, a bonomia, a delicadeza do neto de João VI.
E mais urna vez afirma a sua indiferença aos sistemas de governo, desde que
qualquer deles observasse os preceitos de que se fizera campeão:

Sinceramente monarquista era eu, a esse tempo. Não por admitir pré-excelências for­
mais desse ao outro sistema de governo - visível preconceito, apenas digno de fanáticos,
ignorantes ou tolos ( o que tudo, bem a miúde, não vem a ser senão nomes diversos de
um só estado mental); mas porque a Monarquia parlamentar, lealmente observada, en­
cerra em si todas as virtudes preconizadas, sem o grande mal da República, o seu mal
inevitável. O grandíssimo e irremediável das instituições republicanas consiste em dei­
xar exposto à ilimitada concorrência das ambições menos dignas o primeiro lugar do
Estado e, desta sorte, o condenar a ser ocupado, em regra, pela mediocridade. 134

E adiante:

É assim que, republicano sob o Império, por querer a Monarquia constitucional,


havia eu de vir a ser taxado, com a mesma lógica e justiça, de monarquista, na Repú­
blica, por não admitir a República senão dentro da Constituição. 1 35

Já nas Cartas de Inglaterra escrevera a Afonso Celso:

Segundo S. Excia. eu pareço estar curado da superstição republicana. 136 Antes


de mais nada: não me parece que alguém possa curar-se de uma enfermidade que

1 34. Rui Barbosa, ob. cit.


1 35. Idem.
136. Afonso Celso escrevera: "Em anteriores escritos, o sr. Rui Barbosa patenteara outra revira­
volta de seu espírito. O ex-vice-chefe do governo provisório constituído pelo exército e a armada
em nome da nação parece totalmente curado da superstição republicana e desanimado de que o
sistema adotado no Brasil, pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891 , possa realizar a felicidade
pública, promovendo o progresso e a liberdade nacionais. Os panegíricos e ditirambos do copio­
so panfletista voltam-se presentemente para a Monarquia parlamentar, qual a compreendem a
Inglaterra e a Bélgica, tipo de que a deposta a 15 de novembro de 1 889 procurava, não raro com
êxito, aproximar-se. Assim, em religião como em política, S. Excia retrata-se solenemente, bra­
dando com cordial contrição: Poenitet me... poenitet me... Ainda bem!''.
O PATRIARCA E O BACHAREL 131

nunca teve. O meu antagonista será capaz de apontar, entre as minhas expressões
de opinião, escritas ou faladas, uma só palavra que autorize contra mim o asserto
de superstição, ou sequer, de predileção republicana?
Documentos de superstição republicana encontrar-se-ão nos escritos daqueles
que sustentavam, ou sustentam, a pré-excelência da República, em princípio, ou
em essência, sobre as outras formas livres de governo.
Eu nunca o fiz. Eu, pelo contrário, afirmei sempre a indiferença das formas de
governo, a equivalência de todas as constituições, monárquicas ou republicanas,
onde se assegure ao povo o governo representativo e ao indivíduo o regime jurí­
dico da liberdade. 1 37

Não constituiria excesso de imaginação afirmar-se que o grande tri­


buno viveu dramaticamente entre os compromissos que o prendiam à
República brasileira e um obscuro sentimento de remorso, oriundo dos
laços sentimentais que o envolviam à figura do imperador morto. Não
esqueçamos que ele fora escolhido para conselheiro de Sua Majestade e
é ele próprio quem o recorda, nessa introdução que tem o sabor patético
de uma confissão e uma defesa.
"Nem são só essas as provas inelutáveis de que os sentimentos de Pe­
dro II para comigo eram antes benévolos que hostis," argumenta ele, "Ou­
tras há, que citarei."

Duas delas datam, até, de bem cerca da época em que se inculca haver-me Sua
Majestade trancado com veto irredutível os conselhos da coroa.
O ministério Lafaiete, nos seus últimos dias, solicitara para mim, ao imperador,
o título de conselho, alegando meus serviços ao ensino.
Estava bem longe das praxes e normas, àquele tempo, uma tal graça. Não se usa­
va conceder senão nos casos taxados em lei, como os de ministros, diretores do Te­
souro, membros do Supremo Tribunal de Justiça, magistrados de certa graduação
e antiguidade, professores do magistério superior com certo número de anos de
serviço. Não obstante, porém, ir contra o costume, não hesitou Sua Majestade em
colher o alvitre do gabinete, abrindo-se, assim, a exceção, até ali creio que única, ou
raríssima, da outorga do título de conselho por mero arbítrio imperial.

1 37. Rui Barbosa, Cartas da Inglaterra, Editora Saraiva, Rio de Janeiro, 1929.
132 LUIS MARTINS

Era nos fins de maio quando se deliberou em conselho de ministros a inespe­


rada graça. Mas o imperador houve de se pronunciar segunda vez a seu respeito;
pois, vindo a cair, inopinadamente, aquela administração, coube à sua sucessora,
a do senador Dantas, levar à assinatura de Sua Majestade o título, já lavrado ain­
da ao tempo do gabinete anterior. Esta circunstância punha de novo em condições
de ser reconsiderada a concessão, ainda por se consumar com a firma imperial. O
chefe da nação, porém, com a mesma boa vontade com que acedera à proposta de
um ministério, conveio na assinatura do ato, solicitada pelo outro. 1 38

Ora, apesar de todo o seu tardio afã em demonstrar que jamais fora
republicano, que era simplesmente um liberal, o fato iniludível é que Rui
Barbosa fez, ou ajudou eficientemente a se fazer, a implantação do novo
regime. Nesse mesmo documento em que faz tanta questão de salientar
sua indiferença às formas de governo, ele próprio é obrigado a reconhe­
cer: "ainda após a ruína da Monarquia, ruína em que tamanha parte me
coube"; ou então: "acontecimentos fatais ao príncipe reinante, nos quais
tive sempre os papéis mais diretos"
Uma vez proclamada a República, Rui Barbosa se tornou figura proe­
minente da situação. Ministro da Fazenda do governo provisório de Deo­
doro, sua atuação é tão destacada que os mais severos ataques monárqui­
cos são dirigidos contra ele.
Desde 1889 até 1923, ano de sua morte, ele é uma espécie de oráculo
do regime, a figura mais alta da política, onde representa e encarna a pu­
reza dos princípios liberais. Seus discípulos assim o consideram.
Num dos melhores estudos feitos sobre ele, o sr. João Mangabeira,
que foi reconhecidamente figura brilhante do seu entourage, o proclama,
no próprio título, "O estadista da República". 1 39 Talvez o próprio Rui não
concordasse com esse título, preferindo o mais amplo e menos compro­
metedor de "um estadista liberal':
A participação de Rui Barbosa na organização da República foi, sem
dúvida, de última hora, e sua adesão se parece quase à de Floriano - com
a diferença de que Floriano exercia um posto militar de responsabilidade

1 38. Rui Barbosa, ob. cit.


1 39. João Mangabeira, Rui, o estadista da República, Livraria José Olympio, Rio de Janei­
ro, 1943.
O PATRIARCA E O BACHAREL 133

e de confiança imediata do governo, ao passo que o título de conselheiro,


atribuído a Rui, era mais uma distinção decorativa do que um cargo efe­
tivo.Mas em verdade, até a data - ou poucos dias antes da data da revolu­
ção - ele não estava a par dos intuitos conspiradores.É este, pelo menos,
o teor do depoimento de Medeiros e Albuquerque:

Poucos dias antes da revolução republicana de 1 5 de novembro foi que Rui Bar­
bosa teve dela notícia clara. Imediatamente pensou em fazer francamente a decla­
ração de que passava a republicano. Mas os revolucionários o dissuadiram disso,
mostrando-lhe que, se muita gente começasse a declarar-se republicana, o fato
constituiria uma advertência para o governo monárquico. 1 40

Nessa atitude de dubiedade em que as circunstâncias o colocaram,


resiste toda a razão do drama íntimo do grande brasileiro, no remorso
subconsciente que o martirizou. Sua reação foi uma atitude de hostili­
dade permanente, combativa, vigilante, contra ao regime que construíra,
atitude que se manifestava por meio de imprecações, apóstrofes violen­
tas e duras invectivas.Comprazendo-se em amesquinhar a República, em
comparações desalentadas com os tempos do Império, ele assumia uma
atitude típica de autopunição.
"Um mês de governo Hermes': dizia ele logo após a campanha civilista,

sobraria, no Império, para fazer cair cinqüenta gabinetes. Os abusos, as preterições de


direitos, os excessos de poder, contra os quais, em 1 889, eu assentava baterias no Diário
de Notícias combatendo o ministério João Alfredo e o ministério Ouro Preto, dariam
que rir hoje aos mais severos catões republicanos. Em todos eles poderia incorrer uma
administração de agora, continuando a ser tida em conta de mais pura que essa mulher
de César, cujo culto professa o nobre senador pelo Rio Grande do Sul. Se as vibrações
que de casos tais extraiu então a imprensa encheram, abalaram e levantaram a nação, é
que esta ainda não perdera o seu pudor e o tinha muito melindrável.
Nada honra mais o Império do que essa sensibilidade, notável prova de que ele
não nos extinguira o senso moral, não nos obliterara o civismo, não nos aborrece­
ra da honestidade. Eis aí por onde se estabelece a diferença entre os dois regimes.

140. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, Calvino Filho, Rio de Janeiro, 1 933.
1 34 LUÍS MARTINS

Não é com o exemplo de uma ou outra injustiça, uma ou outra fraqueza, uma
ou outra pequenez do imperador que se lhe há de caracterizar o reinado e o
sistema de governo. O Império se definia com sua alta moralidade, a elevação
do crédito nacional e os grandes nomes que ilustraram o regime. A República
se debuxa com a extinção dos nomes nacionais, com o achatamento geral da
inteligência no governo e nos corpos deliberativos, com a ostentação habitual
da nudez nos escândalos reinantes, com a consagração da soberania da igno­
rância, com a solene proclamação do princípio da competência da incapaci­
dade universal nos chefes de Estado, nos ministros, nos partidos, nos árbitros
das situações, com a guerra, enfim, à j ustiça, enxovalhada com o título de di­
tadura pelos mais servis cortesãos de todas as ditaduras do poder, das armas
e do Tesouro. 1 4 1

A necessidade subconsciente de autopunição é visível nessa catiliná­


ria eloqüente, que ultrapassa a individualidade do presidente militaris­
ta para atingir a própria estrutura moral do regime republicano. Esse
sentimento íntimo aparece de forma mais dramática ainda no discur­
so que pronunciou o eminente baiano na Liga da Defesa Nacional, a 1 4
d e dezembro d e 1 920, manifestando-se sobre a revogação d a lei d e ba­
nimento da família imperial. O tom de sinceridade dessa oração ainda
hoje nos comove estranhamente. Dizia Rui:

último dos sobreviventes do governo provisório que assinaram a destronização da


Monarquia e expatriação da família imperial, agradeço à Providência o ensejo, que se
me depara, a mim, o derradeiro deles no merecimento e na sobrevivência, para dar o
testemunho dos sentimentos que nesse ato nos animavam a nós todos.
Única expressão ainda vivente desse passado, única encarnação pessoal hoje restante
da junta revolucionária, que decretou a extinção do antigo e deu organização ao novo
regime, sinto em mim, pelo desaparecimento de todos os meus companheiros, um
mandato de além-túmulo, para dizer a verdade autêntica e solenemente.
Esse testemunho já estaria dado há muito tempo, se as circunstâncias não me hou­
vessem retardado a iniciativa, que eu trazia em mente assumir, como podem atestar os
meus amigos. Vai por mais de dois anos que, cogitando no próximo encerramento de

1 4 1 . Rui Barbosa, Discurso no Senado, 30/ 1 2/ 1 9 1 4.


O PATRIARCA E O BACHAREL 135

minha carreira pública, me embebi na decisão de a ultimar, propondo em nome do go­


verno provisório, cuja evocação me competia, o termo de wna severidade, que já se não
justificava: a revogação do banimento da família imperial.

A acusação de ter retornado à Monarquia não escapou a Rui Barbosa,


depois da República. Quando Andrade Figueira, implicado numa conspi­
ração restauradora, foi preso para prestar depoimento, o antigo ministro
da Fazenda de Deodoro não só saiu em sua defesa, pelo Diário de Notí­
cias, que dirigia, como também ofereceu-se para funcionar como seu ad­
vogado. Os mais exaltados republicanos, então, o acusaram francamente
de monarquista.
De fato, Rui sempre viveu mais ou menos preso sentimentalmente ao
passado. Em 1889, em pleno clima revolucionário, ele atacara com vee­
mência as velhas instituições e seus estadistas, principalmente o Visconde
de Ouro Preto, de quem chegou a dizer, em telegrama para Lisboa assina­
do por ele, oficialmente, como ministro da Fazenda:

Temos aqui em telegramas algumas noções do manifesto do Visconde de Ouro


Preto. É um documento indigno que caracteriza o seu autor, que recompensa as­
sim a generosidade da revolução, a qual salvou-lhe a vida. Caluniando, ele diz ter
estado em risco de ser fuzilado na prisão.

Duras palavras, a que o velho visconde, com altiva dignidade, opõe


apenas estas expressões serenas, mas que não escondem certo desdém:

Declara o ministro da Fazenda que a minha candidatura foi recebida com desprew.
Não vale a pena discutir por que meios maravilhosos pôde assim conhecer, instantanea­
mente, o sr. Barbosa as manifestações do espírito público reveladas em lugar não sabido,
e sobretudo a propósito de fato que não ocorreu, pois não me apresentei candidato por
parte algwna. Não foi o telegrama de 18 de dezembro, em duas edições, a única prova da
correção e gravidade do ministro da Fazenda, recebida pelo fio elétrico. 142

Se o Visconde de Ouro Preto foi apenas desdenhoso, Eduardo Prado che­


gou positivamente ao insulto. Nos artigos que escreveu em 1889 e 1890 para a

142. Visconde de Ouro Preto, Advento da Ditadura Militar no Brasil, ob. cit.
136 LUÍS MARTINS

Revista de Portugal, sob o pseudônimo de Frederico de S., logo depois jun­


tos em volume, o escritor paulista, atacando rijamente os próceres da nova
situação e especialmente os ministros do governo provisório, demora-se
mais em combater Rui Barbosa. Chega então a chamá-lo de mentiroso e
caluniador, como se verá destes trechos, que transcrevo:

O sr. Rui Barbosa telegrafou para a Europa dizendo que o imperador recebera ao
partir cinco mil contos que lhe dera a ditadura. O sr. D. Pedro II chegou a Lisboa a 7
de dezembro e a Europa soube que o sr. Rui Barbosa havia mentido em seu próprio
nome e no de seus colegas. 143

E adiante: ''A 7 de dezembro chegava o imperador a Lisboa e desfez-se


na Europa a calúnia que contra o velho soberano havia lançado o sr. Rui
Barbosa". 144
Pois bem. Tanto com Eduardo Prado como com o Visconde de Ouro
Preto, viria Rui Barbosa a se reconciliar, poucos anos depois. Quando o
primeiro morreu, O Comércio de São Paulo quis lhe prestar homenagem,
dedicando-lhe uma edição especial. Convidado por Couto de Magalhães,
em 1901, para dela participar, respondeu Rui em longa carta, de que ex­
traio apenas um pequeno trecho. Refere-se à sua convivência com Edu­
ardo Prado:

Assim se fechou, às vésperas da viagem eterna, a amizade com que, há cerca de sete
anos, me distinguia tão benévola quão generosamente. Documentos dela, guardo as
suas cartas entre os meus papéis mais preciosos, entre os que mais cativarão, talvez,
algum dia, o interesse de meus filhos. 1 45

E em 1912, na carta de pêsames que escreveu a Afonso Celso pela mor­


te do Visconde de Ouro Preto, seu pai, depunha Rui, sobre o adversário de
outrora:

143. Frederico de S. Eduardo Prado, Fastos da ditadura militar no Brasil, 2• ed., Revista de
Portugal, Porto, 1 890.
1 44. Frederico de S., ob. cit.
145. Rui Barbosa, Correspondência, Livraria Acadêmica, São Paulo, 1 933.
O PATRIARCA E O BACHAREL 137

A divergência que nos separou numa fase importante de sua vida e da minha
nunca alterou em mim o respeito que a sua alta personalidade me inspirava, nem
o reconhecimento pela distinção com que tão benevolamente me distinguiu, cha­
mando-me à pasta do Império, no gabinete de 7 de junho.
Depois a dignidade admirável de sua atitude e a inquebrantável têmpera do seu
caráter, nesses vinte e dois anos de abstenção, com que tanto perdeu o país, au­
mentaram constantemente uma estima de que me senti feliz em lhe dar mais de
um testemunho e que sinto a impressão de cumprir um grato dever, reafirmando
sobre o seu túmulo, honrado pela veneração de todos os brasileiros. 1 46

Seria inútil respigar em toda a imensa obra de Rui Barbosa os teste­


munhos de seu apego póstumo, digamos assim, não apenas ao impera­
dor, como ao antigo regime, representado pelos seus homens mais emi­
nentes. Eles abundam, esses testemunhos.No fundo de seu coração per­
durava a mágoa de ter assinado o decreto de banimento de D.Pedro II.Os
ataques dos monarquistas não lhe deixaram ressentimento, porque coinci­
diam com uma necessidade subconsciente, masoquista, de se censurar e se
punir.No fundo, talvez, até esses ataques lhe dessem um secreto prazer: era
como se reproduzissem uma voz íntima e misteriosa, que vinha dele mes­
mo e ao mesmo tempo do passado.A voz do superego.
Essa voz foi uma das grandes comoções de sua vida.

146. Idem.
X. Afonso Celso e Joaquim Nabuco

De todos os casos de exteriorização do sentimento de remorso subi­


tamente manifestado logo após o 15 de Novembro, em indivíduos que se
tinham declarado pelas idéias republicanas, talvez o mais típico e o mais
dramático tenha sido o de Afonso Celso. Em seu caso pessoal, o drama
se complicava, pois que seu pai, o Visconde de Ouro Preto, fora o chefe
do gabinete derrubado pela República.Cultuando a Monarquia deposta,
portanto, numa persistência que durou a vida toda, ele irmanava, con­
fundia, assimilava, no mesmo desagravo, o pai simbólico - o imperador
- e o verdadeiro, o estadista que dirigira o governo monárquico até 15 de
novembro de 1889. Esse culto chegou a tomar aspectos quase místicos.
Afonso Celso se sentiu obrigado a compor em torno do velho monarca
uma auréola de grandeza majestática, quase esquilianamente trágica, no
exílio de Cannes.Essa imagem de austera nobreza, em que se gravou para
a posteridade a estátua moral de D.Pedro II no exílio, é devida, em gran­
de parte, aos cuidados de Afonso Celso em fixá-la, em delineá-la, em tor­
ná-la conhecida.
Abunda a documentação comprobatória do remorso do saudoso aca­
dêmico, manifestado em vários de seus livros. 1 47 O filho do Visconde de
Ouro Preto não usa disfarces nem eufemismos.Suas confissões são cla­
ras, francas, explícitas, aludem diretamente ao seu "remorso", à sua "con­
trição".Veja-se o seguinte desabafo, publicado em 1893:

147. Não consegui encontrar, quer em livrarias ou sebos, quer na Biblioteca Municipal de
São Paulo, o livro que talvez fosse o mais expressivo de todos: Guerrilhas. Com efeito, em
sua obra Oito anos de Parlamento, Afonso Celso inseriu, à página 257, a seguinte nota: "So­
bre a minha atitude republicana na Câmara e ulterior conversão ao monarquismo, vide
meu livro Guerrilhas, Tip. Morais, Rio de Janeiro, 1895, caps. 'Aos Srs. Anônimos'; 'Até 15
de Novembro'; 'Depois de 15 de novembro'; pp. 283, 297 e 313, em que explico os fatos
com minuciosidade e máxima isenção''.
140 LUÍS MARTINS

Com remorso, confesso que cheguei a atacar, não raro, o imperador na imprensa
e na tribuna, atribuindo-lhe a responsabilidade exclusiva de todos os nossos males,
e isto não só na fase demagógica da Academia, a diátese política do meu tempo.
Continuei depois de representante de Minas Gerais, na Câmara dos Deputados.
Fazia-o convencido, sem cálculo nem ambição. A prova é que publicamente me de­
claro contrito e me alisto orgulhoso no número de seus mais fervorosos cortesãos, quan­
do em vez de diadema, cinge-lhe apenas a fronte a coroa de espinhos da desgraça. 148

Referindo-se, com absoluta franqueza, à sua "atitude republicana na


Câmara e ulterior conversão ao monarquismo" (ver nota 136) , Afonso Cel­
so não deixa dúvidas: em ninguém o "complexo de remorso" se manifestou
com maior evidência.Como também é ele próprio quem se encarrega de
nos informar que veio a se tornar monarquista justamente quando a Repú­
blica se proclamou.Eis seu depoimento: "Comecei a ser monarquista com
todos os seus perigos, no momento em que muitos começaram a ser repu­
blicanos, com todas as suas vantagens, a 15 de novembro de 1889".1 49
Os meios universitários, nos últimos anos do Império, constituíam cen­
tros de tal maneira irradiadores de calor revolucionário que quase todos os
estudantes foram, ao menos durante algu m tempo, atingidos pela idéia do li­
beralismo radical, quando não republicano, que era apenas um passo adian­
te.As instituições monárquicas tinham caído em descrédito.Logo depois de
formado em direito, eleito muito jovem deputado por Minas Gerais, Afon­
so Celso, na Câmara, vem se declarar pelo manifesto republicano de 1870.
"Quando entrei na Câmara", depõe, "em 1881",

nenhum republicano confesso ali tinha assento. Dizia-se que Mata Machado, Felí­
cio dos Santos, Vieira de Andrade, Silviano Brandão e João Penido, eleitos comigo
por Minas, eram republicanos. Nenhum deles, porém, fez profissão de fé republi­
cana. Fi-la eu. No meu discurso de estréia, a 28 de fevereiro de 1 882, declarei que,
representante da nova geração, era republicano, adotando o manifesto de 3 de de­
zembro de 1 870 etc. 150

1 48. Afonso Celso, O imperador no exílio, ob. cit.


1 49. Afonso Celso, Oito anos de Parlamento, Laemmert & Cia., Rio de Janeiro, 1 901 .
1 50. Afonso Celso, ob. cit.
O PATRIARCA E O BACHAREL 141

Ironicamente, o destino põe nas mãos do pai desse republicano a sorte


do Império. É durante a gestão do Visconde de Ouro Preto que ocorre o le­
vante militar de 15 de novembro. Todos os seus sentimentos filiais acorrem
então, pressurosos, em defesa da realeza decaída, em que se confundiam o
pai e o monarca. E o revolucionário de outrora se transforma num irredu­
tível saudosista dos velhos tempos, pregando, num apostolado incansável, a
reparação do que passou a supor um "crime': Ele o diz francamente:

Não me surpreendeu a proclamação da República. O modo como se efetuou é


que constituiu uma indigna cilada, um erro, um crime, fonte de tamanhas desgra­
ças, só remediáveis com a restauração. 1 5 1

Sente-se aí, no tom quase místico dessas lamentações, a presença subter­


rânea de um elemento de tragédia: é Édipo que chora a monstruosidade de
seu "crime': "O modo como se efetuou .. :'; entenda-se: fizessem a República,
mas poupassem o imperador; esperassem primeiro que ele morresse; não
atentassem contra ele, não agissem como os filhos da horda ... E, no seu caso
particular: não o colocassem na dura contingência de ter de optar por um
movimento dirigido contra o seu próprio progenitor.
Nunca mais, até o fim de seus dias, voltará Afonso Celso à política.
Permanecerá teimosamente fiel à lembrança dos dois mortos venerandos:
Ouro Preto e o imperador, irmanados na mesma imagem paternal.
Nos primeiros tempos do novo regime, todavia, ele não se limitou a
permanecer nessa atitude de abstenção desdenhosa e ressentida. Foi um
adepto ativo e fervoroso da restauração monárquica, tomando parte sa­
liente na propaganda reacionária. Mas os anos foram-lhe cobrindo a co­
ragem inicial com as sombras dos desenganos. Afonso Celso refugiou-se
na advocacia, no magistério superior e na literatura. O orgulho aristocrá­
tico do pai nele se adoçava numa grande distinção de maneiras. Era um
perfeito gentleman, que vivia sonhando com os tempos idos. Tenho a im­
pressão de que nunca pôde perdoar a si mesmo o momento de entusias­
mo juvenil em que tanto se aproximou da República . . .

***
1 5 1 . Afonso Celso, ob. cit.
142 LUÍS MARTINS

Joaquim Nabuco não chegou a ser republicano, apesar de, segundo


seu próprio depoimento, ter andado beirando a idéia vitoriosa em 15
de novembro.Mas é nele, curiosamente, que eu vou encontrar a con­
firmação mais rigorosa, mais límpida, mais impressionante de que o
sentimento de remorso monárquico não fo i uma ocorrência eventual,
de uma ou outra sensibilidade mais frágil ou mais romântica, porém
quase que uma fatalidade psicológica imposta a toda uma geração.
Com efeito, um trecho da Minha form ação é, como adiante veremos,
quase que uma antecipação da tese que venho procurando defender
nesta obra.
Como Afonso Celso, era Joaquim Nabuco filho de um ilustre esta­
dista do regime decaído.Tenho intentado demonstrar aqui que a devo­
ção póstuma de muitos irreverentes inimigos da Monarquia pela figura
de D. Pedro II constituiu uma espécie de reparação feita às idéias pa­
ternas, que eles tinham ajudado a combater. Pode-se quase falar numa
"geração de filhos" quando nos referimos a alguns homens que media­
ram a juventude e a maturidade entre os últimos anos do século XIX
e os primeiros do XX.Ve ja-se a ternura, o respeito, a devoção com que
Afonso Celso, Joaquim Nabuco, Rio Branco e Rui Barbosa evocavam
seus progenitores, pretendendo assumir uma atitude de humildade e de
anulação própria diante de suas imagens veneráveis.Assim é que a obra
capital de Joaquim Nabuco ( Um estadista do Império) é consagrada a
relatar e a homenagear a vida, a obra e as idéias do Conselheiro Nabu­
co de Araújo.Assim é que Afonso Celso não esconde, antes exibe orgu­
lhosa e abundantemente, a sua admiração reverente pelo pai, o Viscon­
de de Ouro Preto.Assim é que o propósito constante do Barão do Rio
Branco é se declarar discípulo, continuador, imitador do estadista de
quem conservara o nome e as qualidades. Diz-se que o grande conso­
lidador das nossas fronteiras costumava protestar, sempre que a lisonja
dos amigos o designava como "o maior dos brasileiros": "O maior dos
brasileiros foi D. Pedro II e depois meu pai".1 52
O sr.Álvaro Lins, citando essa frase, comenta:

152. Álvaro Lins, Rio Branco, vol. !, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1945.
O PATRIARCA E O BACHAREL 143

Traço sempre vivo, nunca escondido, no segundo Rio Branco: o sentimento de


identificação com seu pai, um sentimento de exaltado e comovido amor ao Visconde
do Rio Branco, chegando sob certos aspectos a um tom quase místico e religioso. 1 5 3

O mesmo se poderia dizer de Rui Barbosa, de quem são aquelas belas


palavras do discurso do Politeama Baiano:

Mas antes de nos deixarmos, vinde comigo depor estas homenagens, estes tro­
féus, estes símbolos no altar que os deve receber. Espírito supremo daquele que me
ensinou a sentir o direito e querer à liberdade; daquele cuja presença íntima respi­
ra em mim nas horas do dever e do perigo; daquele a quem pertence, nas minhas
ações, o merecimento da coerência e da sinceridade; emanação da honra, da vera­
cidade e da justiça, espírito severo de meu pai... 1 54

O sr.João Mangabeira relatou, em seu livro sobre Rui, a unção reve­


rente e ingênua com que o grande brasileiro recitou uma poesia medíocre
do pai, diante de Alberto de Oliveira.1 55
Joaquim Nabuco, se nunca proclamou explicitamente, que eu saiba, a fra­
se do Barão do Rio Branco há pouco citada, certamente, no íntimo, pensava
da mesma forma: o maior dos brasileiros, abaixo de D.Pedro II, seria o Con­
selheiro Nabuco de Araújo.A Medeiros e Albuquerque não escapou o fato,
quando disse que, "da leitura de seus livros resulta que o Brasil, durante a vida
do pai, girou em torno dele.Foi o pai quem fez tudo, quem tudo inspirou''. 156
O velho Nabuco fora, realmente, um político e um jurista de grande va­
lor e um espírito liberal, um homem corajoso que não hesitou em procla­
mar, diante do próprio monarca, a teoria de que o "rei reina e não gover­
na"; o filho exagerou sua rebeldia, chegando mesmo a escrever um folheto,
intitulado O erro do imperador, em que criticava com vivacidade a política
do reinado.Andou beirando o republicanismo, ele próprio o confessa: "Um

1 53. Idem.
1 54. Rui Barbosa, "Rui Barbosa (coletânea)", in Estante Clássica da Revista da Língua Portu­
guesa, vol. l , Rio de Janeiro, 1920.
1 55. João Mangabeira, Rui, o estadista da República, José Olympio Editora, Rio de Ja­
neiro, 1 943.
1 56. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, Calvino Filho, Rio de Janeiro, 1 934.
144 LUÍS MARTINS

artigo que então escrevi na Reforma, com o título Viagem do Imperador, dá


bem idéia de quanto era pequeno nesse tempo o meu ângulo de inclinação
monárquica".E acrescenta: "Esse artigo é quase republicano."
Mais adiante ele declara:

É possível que em mim também existisse o embrião republicano; não duvido


que, nascido em outra condição, se não tivesse meu pai na mais alta hierarquia da
política, se não descobrisse como tantos outros que se revoltaram, modo de ven­
cer o terrível multi sunt vocati, pauci vera electi 157 da antiga oligarquia, eu também
tivesse acompanhado o movimento republicano de 1 870, do qual faziam parte al­
guns dos espíritos que me fascinavam. 1 58

Pode-se talvez dizer que o seu "pecado" foi apenas de pensamento, o


que entretanto não deixa de constituir uma realidade psicológica, vivaz
e atraente.O drama que os outros viveram ele pensou, meditou e sofreu.
Sua apostasia permaneceu um fato de pura substância espiritual.Mas -
fato curioso e expressivo! - para não deixar dúvida nenhuma sobre a rea­
lidade dessa experiência íntima e talvez recalcada, Nabuco leva a hipótese
da evolução de seu republicanismo às últimas conseqüências.Que acon­
teceria se o movimento de 15 de novembro o surpreendesse comungando
ainda nas idéias democráticas - o que não sucedeu? Ele não duvida, não
hesita: agiria sob a marca, a imposição, a coação do "complexo de remor­
so". Eis o trecho a que me referi no começo deste capítulo como sendo
quase uma antecipação da minha tese:

Se, apesar de tudo, eu me tivesse conservado republicano até 1 5 de novembro


- nascesse eu em que condição nascesse, uma vez que fosse o mesmo que sou, isto
é, que tivesse recebido no berço os mesmos rudimentos d' alma -, não tenho a me­
nor dúvida de que o abalo, o choque, do desterro do imperador teria posto fim à
minha fantasia republicana e restabelecido a sinceridade e a lucidez dos meus sen­
tidos políticos. 1 59

1 57. Muitos são chamados, poucos os eleitos. N. do E.


1 58. Joaquim Nabuco, Minha formação, ob. cit.
1 59. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 145

Desde que vivera intimamente, interiormente, subjetivamente o dra­


ma de sua geração, Nabuco sofrerá as mesmas conseqüências dos que o
transformaram em ação.Ele ficará fiel ao imperador.Ficará fiel ao pai.E,
embora, anos depois, venha, já amortecido o choque, a trabalhar na di­
plomacia para a República, imediatamente sua atitude é de abstração.
"A queda do Império pusera fim a minha carreira...A causa monárquica
deveria ser o meu último contato com a política." 1 60
Quando, mais tarde, depois de um longo período de inação, Nabuco
veio a prestar serviços à República, os sebastianistas monárquicos não o
pouparam. Carlos de Laet, no próprio discurso com que recebeu o seu
sucessor na Academia Brasileira (o general Dantas Barreto) , chegou a alµ­
dir maldosamente, por meio de uma parábola, à "traição", lembrando o
chefe que abandona os seus subalternos na trincheira de combate, pas­
sando-se para o campo inimigo...1 6 1
O debate íntimo de Joaquim Nabuco é quase patético.Ele discute con­
sigo mesmo, desculpa-se, justifica-se, explica-se.Há um trecho da Minha
formação que é quase a exteriorização de um monólogo de sua consciên­
cia: "Não devo à dinastia nenhuma reparação", diz ele, referindo-se à sua
participação no movimento abolicionista,

não lhe armei uma cilada; na humilde parte que me coube, o que fiz foi acenar-lhe
com a glória, com a imortalidade, com a perfeição do seu traço na história ... Nin­
guém pode afirmar que, desprezando a abolição, ela se teria mantido, ou que não
teria degenerado ... A abolição, em todo caso, era o seu dever e ela recolheu a glória
do ato; deu-nos quitação.
Que seria feito na história da lenda monárquica brasileira se no mesmo dia se tivesse
proclamado a República e a abolição? Gratidão infinita pelo 1 3 de maio, isso sim, lhe
devo e deverei sempre; nunca, porém, reparação de um dano que não causei ... 1 62

Essa ânsia de se exculpar se me afigura profundamente comovedora.O


grande homem como que duvida do juízo dos outros sobre sua sinceridade,

160. Idem.
1 6 1 . Veja-se Discursos acadêmicos, publicação da Academia Brasileira, vai. 2, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1 935.
1 62. Joaquim Nabuco, ob. cit.
146 LUIS MARTINS

sua lealdade, sua correção.E faz questão de proclamar, até ao fim, o seu apego
à Monarquia extinta e a sua veneração pelo monarca desaparecido...
Esse é o drama secreto de Joaquim Nabuco, que talvez tenha passado des­
percebido a seus contemporâneos, fascinados pela sua figura encantadora e
olímpica.Porque ele foi certamente, entre os homens de seu tempo, dos que
maior fascinação exerceram; não há quase depoimento de pessoas que com
ele privaram em que não se faça referência à sua beleza, ao seu charme, à sua
elegância, à sua capacidade de seduzir, de atrair e de se deixar amar.Parece,
todavia, que ele mesmo não se sentiu alheio a essa fascinação; de fato, não
nos podemos furtar à idéia de que, de seu feitio moral, fazia parte um doce e
complacente narcisismo, nada irritante, aliás, dadas a sua ternura natural, a
nobreza de sua vida e a superioridade de sua inteligência.
É duro pensar que tínhamos então, para representar a imagem do Brasil
aos olhos do estrangeiro, homens como Nabuco, Rio Branco e Rui Barbosa.E
hoje? A nitidez desse contraste creio que basta para nos dar uma idéia bastante
melancólica de nós mesmos.
Destas palavras finais não se conclua que também o autor se acha im­
buído dos mesmos preconceitos saudosistas que vem procurando estudar
nos homens da primeira República...
Saudosista, sim, foi Joaquim Nabuco.Talvez o desgosto do seu drama lhe
tenha dado a nostalgia do passado.Referindo-se a Gomes de Castro, Barão de
Campo Grande, "quase inédita figura de sebastianista" que confessava ler ape­
nas o Memorial de Santa Helena, ele diz:

A marcha, o engrandecimento do país desde 1 822 é um fato incontestável, mas quem


não sentirá, diante dessa quase inédita figura de sebastianista, saudoso do tempo colo­
nial, que realmente os costumes têm outra seriedade, a vida outra dignidade, a socie­
dade outros vínculos, o caráter outra têmpera, à medida que se remonta ao passado? 1 63

Maneira sutil, essa, de fugir ao presente...

163. Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, ob. cit ..


XI. Martim Francisco, Oliveira Lima,
padre João Manuel

Uma das coisas mais grotescas que existem neste mundo é a teimo­
sia hereditária dos "pretendentes". Refiro-me aos descendentes das di­
nastias depostas que não desistem da idéia de uma possível restauração,
proclamando obstinadamente seus direitos a um trono que não exis­
te... Esses príncipes sem púrpura, esses reis sem coroa lembram certos
apaixonados platônicos que dedicam a vida toda à contemplação muda
das mulheres que amam em silêncio.Elas se casam com outros.Conhe­
cendo o feitio inofensivo desses amantes espirituais, os maridos aca­
bam por lhes permitir o flerte inocente, a fidelidade contínua e enlevo
sem conseqüência... Eles não se cansam, não desistem, não compreen­
dem o ridículo de sua situação.Não abdicam.E morrem virginalmente
apaixonados, contentando-se apenas em olhar, em ouvir, em respirar a
dama de seus pensamentos...
As dinastias depostas acabam sempre apresentando exemplares per­
feitos desses pretendentes inócuos.No Brasil, entretanto, um deles, de
temperamento mais ardente e voluntarioso, não se contentou com a
simples miragem desses devaneios cândidos.E andou tramando a esca­
lada ao balcão da castelã de seus sonhos ...
De fato, D.Luís de Orleans e Bragança pensou seriamente em restau­
rar o trono de seu avô nas terras de Santa Cruz.Não sei se chegou a haver
realmente uma conspiração organizada nesse sentido.O que sei me veio
da leitura de umas cartas suas a Martim Francisco, transcritas no livro
Contribuindo, desse descendente dos Andradas. Por elas se vê que aqui
mesmo no Brasil havia quem pensasse no assunto como idéia viável.
O príncipe a trata com uma freqüência que revela nele a existência de
uma quase obsessão restauradora.Assim, numa dessas cartas menciona­
das, ele diz:
148 LUÍS MARTINS

Quanto a nós, monarquistas, devemos convencer o operário da verdade de que,


no caso duma restauração, a sua situação só poderia melhorar.
Conversaremos aliás a miúdo sobre o assunto quando o sr. vier à Europa. 1 64

Em outra carta chega D.Luís a detalhes maiores: "Não imagina': diz ele,

quanto me custa ficar aqui, de braços cruzados, quando penso que um punhado
de homens decididos bastaria para arrancar a Pátria das garras dos aventureiros
que a exploram.
Ainda não sei qual será a sua atitude na questão das candidaturas. Quanto a
mim, julgo ambos os candidatos "indesejáveis"; mas a ter de optar, optaria pelo
Rui, cujos partidários representam o elemento mais são e de maior prestígio no
país. Parece-me mesmo que poderíamos aproveitar o momento para um acordo
com os próceres desse grupo, a fim de conseguirmos um esforço comum pela res­
tauração, logo após as eleições presidenciais. Que lhe parece? 1 65

Ora, esse Martim Francisco, que assim recebia provas de tamanha con­
fiança do "pretendente" ao trono brasileiro, era nada menos que Martim
Francisco Ribeiro de Andrada, comumente chamado Martim Francisco
III, pra distingui-lo dos outros dois ascendentes seus do mesmo nome.
Ele foi um monarquista do tipo de Carlos de Laet, cheio de rabugice e sar­
cástico desprezo pelas coisas do novo regime.
Acostumando-me a ler suas diatribes contra a República, surpreendi-me
quando, no livro do sr.José Maria dos Santos, Os republicanos paulistas e
a abolição, encontrei o relato de várias ardorosas façanhas republicanas do
espirituoso escritor santista. É assim que, segundo conta aquele historiador,
por ocasião da inauguração da linha férrea Ituana, que coincidiu com a fa­
mosa convenção republicana de Itu, em 1873, foi Martim Francisco quem
mais inconvenientemente se portou durante o banquete oferecido ao pre­
sidente da então província de São Paulo, o dr.João Teodoro.Ao banquete,
que fazia parte dos festejos comemorativos da inauguração da estrada de
ferro, compareceram vários líderes republicanos que se achavam em Itu
para a convenção, que se deveria realizar logo em seguida.

1 64. Apud Martim Francisco, Contribuindo, M. Lobato & Cia., São Paulo, 1 92 1 .
1 65. Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 149

Ouçamos, porém, o sr. José Maria dos Santos:

Na extremidade da mesa, oposta àquela a que se sentou João Teodoro, viam-se


realmente Américo de Campos, Quirino dos Santos e Ubaldino do Amaral, que
todos o cumprimentaram com simpática reverência. Era portanto inevitável nem
poderia parecer estranho que uma frase ou outra sobre a esperada reunião dos re­
publicanos pudesse chegar aos ouvidos do presidente. Ninguém entretanto pode­
ria prever, nem certamente desejar, o que se passou, sobretudo com a veemência
com que se deu. Terminados os brindes de saudação e oferecimento do banquete,
levantou-se Martim Francisco ( filho) e, secundando a Barata Ribeiro no seu dis­
curso da praça da estação, saudou a iniciativa dos ituanos, ali triunfantes no seu
cometimento, como prova eloqüente de não precisar mais o povo da tutela do go­
verno na promoção do progresso do país ... 1 66

Conta ainda o sr. José Maria dos Santos que Martim Francisco, com
Silva Jardim, foi um dos principais fundadores de um clube republicano
em São Vicente.
Diante de tantas manifestações republicanas do intransigente monar­
quista, fiquei na dúvida. Seria esse Martim Francisco o mesmo que re­
cebia cartas tão íntimas de D. Luís? Escrevi, então, ao eminente mestre
Afonso de E.Taunay, que assim bondosamente me respondeu:

[ ... ] A alusão do sr. José Maria dos Santos refere-se a Martim Francisco III, autor
do Rindo, Contribuindo e outros gerúndios sobremodo interessantes. Com efeito,
foi ele exaltado republicano e dizem até que em 15 de novembro mandou espe­
daçar o retrato do imperador que estava na Câmara de Santos e foi salvo pela ati­
tude de Júlio Conceição, voltando a figurar ultimamente no Paço daquela cidade.
Lá por 1 900, Martim voltou a ser monarquista também exaltado, disse horrores da
República, como por exemplo no interessantíssimo "Enterro de Brasilina Améri­
ca" (no Rindo). Não creio que haja conspiração com D. Luís, se o fez foi conspira­
dor platônico ou pelo menos bisonho. É verdade que conspirou contra Floriano
Peixoto, o que lhe valeu muitos meses de cadeia e bons sustos.

1 66. José Maria dos Santos, Os repu blicanos pau listas e a abolição, Livraria Martins, São
Paulo, 1 942.
150 LUÍS MARTINS

Não havia dúvida, pois. Estávamos diante de mais um atingido pelo


remorso monárquico. No seu caso, mesmo, há uma circunstância que o
aproxima de Afonso Celso e Joaquim Nabuco: era filho de um notável es­
tadista do Império, Martim Francisco II, conselheiro de Estado, várias ve­
zes deputado e ministro.

***

Numa das cartas de D. Luís ao autor de Contribuindo, nesse livro


transcritas, existe uma alusão a Oliveira Lima.
Depois de perguntar a Martim Francisco sua opinião acerca da possi­
bilidade de um acordo com os próceres de determinado grupo político,
a fim de se fazer um esforço comum pela restauração, acrescenta o prín­
cipe: "Também muito estimaria conhecer o pensamento do dr. Oliveira
Lima que, aposentado, deve ter retomado a sua liberdade de ação".
Num artigo publicado em O Estado de São Paulo em 2 de outubro de
1943, intitulado "O período republicano", escreveu o sr. Gilberto Freyre:

Este [ Oliveira Lima] fora republicano na mocidade; homem feito, desencan­


tou-o a experiência republicana: tornou-se monarquista. Foi talvez um dos casos
de nostalgia e remorso, destacados em página interessante, pelo sr. Luís Martins.
O notável historiador e diplomata brasileiro chegou a receber convite do príncipe
D. Luís para ser ministro do Exterior, caso se restaurasse o Império entre nós.

De fato, Oliveira Lima foi também atingido pelo arrependimento que


atormentou sua geração. "Não julgo que seja sinal de decadência senil a
minha decidida preferência pelo sistema monárquico", diz ele, "o meu
republicanismo foi uma urticária de sangue novo." 1 67
E ainda:

O fato é que eu ganhara em Lisboa as minhas esporas de cavaleiro da República


e quando mais tarde, diante dos desmandos desta dama, disse alto o que muitos
diziam baixinho, a saber, que a Monarquia era melhor. Pinheiro Machado, que era

1 67. Oliveira Lima, Memórias, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1937.
O PATRIARCA E O BACHAREL 151

intransigente como Robespierre mas não incorruptível como ele, referiu-se a mim
como "o nosso companheiro que nos abandonou". 1 68

Esse trecho é significativo por mais de um aspecto. "Disse alto o que


muitos diziam baixinho..:'; isso explica que não se tenham encontrado mui­
to mais confissões explícitas de arrependimento.É necessário surpreender
manifestações veladas na insatisfação, na saudade, no desencanto, no "não
era esta a República dos meus sonhos': frase glosada em vários tons por toda
uma geração de insatisfeitos.
De onde provinha, entretanto, a reviravolta de Oliveira Lima? Estou
que o germe dessa mudança se lhe inoculara sutilmente no espírito quan­
do, em Lisboa, republicano ainda, visitara a bordo do Alagoas a família
imperial que chegava exilada.

Quando cheguei a bordo, onde me conduzia um sentimento de respeitosa pie­


dade, o imperador estava no último convés, sentado num banco entre Penedo e
seu cunhado Aguiar d'Andrade, ministro em Lisboa, conversando. Sua nobre fi­
sionomia não denotava o menor constrangimento; era de uma serenidade olím­
pica, como a de Goethe, de quem Henri Heine escreveu que, só de vê-lo, teve um
impulso de dirigir-se-lhe em grego, julgando estar na presença de Júpiter. Dir­
se-ia uma divindade de fato superior, pelo caráter, aos acontecimentos, se bem
que fosse humana, pois seu coração sangrava. Logo depois, desceram todos para
o almoço, D. Pedro sentando-se à cabeceira da mesa, no lugar do capitão. Ele
simbolizava na verdade o piloto que o Brasil, indiferente e ingrato, desembarca­
ra quando julgara passados todos os escolhos. 1 69

Foi devido ao choque dessa visão infeliz e ao mesmo tempo tão


cheia de majestade que, pela primeira vez, sentiu Oliveira Lima o des­
gosto, o cansaço, o desencanto de seu ideal de mocidade.Anos depois,
as dúvidas desse momento transformaram-se em ardente convicção e,
então, o antigo republicano passou a cultuar, com exaltado carinho, a fi­
gura do patriarca morto.

168. Oliveira Lima, ob. cit.


169. Oliveira Lima, ob. cit.
152 LUÍS MARTINS

***

Não tenho elementos para saber, com certeza, se o padre João Manuel
repudiou a República, voltando à Monarquia. O certo é que ele também
se mostrou desencantado . . .
O padre João Manuel é autor de um discurso que se tornou célebre.
Quando, no dia 11 de junho de 1889, o gabinete Ouro Preto apresentou­
se ao Parlamento, aquele deputado, pedindo a palavra, terminou sua vio­
lenta arenga dizendo: "Abaixo a Monarquia e viva a República! "
Foi um escândalo. O Presidente da Câmara teve que intervir, proibin­
do manifestações das galerias. No recinto, os aplausos misturaram-se a
numerosos e veementes protestos. O Visconde de Ouro Preto, presidente
do gabinete, levantou-se impetuosamente para revidar:
"Viva a República, não! Não e não! "
Pois esse padre assim tão turbulento parece não se ter dado muito
bem com a República que, pelos modos, também não foi a de seus so­
nhos. Assim é que apenas dois anos depois do 15 de Novembro, em 1891,
já ele escrevia, em sua maneira desabusada:

Se o regime republicano é isso que querem e que pregam os generais de boba­


gem, inimigos da religião e da Igreja, propondo-se extinguir no coração do povo
o sentimento católico, nesse caso não cessaremos de gritar cheios de indignação:
- Diabo leve semelhante República! 1 70

Para ele, o estado republicano implantado no Brasil era um regime


desmoralizado. Eis o que escreveu em 1894:

Que bela e adorável República! O último movimento naval contra o governo do


marechal Floriano Peixoto vem coroar a obra de desmoralização do regime im­
plantado a 1 5 de novembro de 1 889 pelo exército e a armada em nome do povo ...
bestializado. 1 7 1

1 70. Padre João Manuel, "Reminiscências", in Correio Amparense, Amparo, 1 894.


_ 1 7 1 . Idem.
O PATRIARCA E O BACHAREL 153

Mais claro que isso é impossível.Os próprios contemporâneos do pa­


dre chegaram a perceber sua marcha-à-ré, conforme ele próprio o diz,
embora sem se definir claramente, nas seguintes palavras:

Tendo eu algum tempo sido considerado profeta da República, cheguei a ser


chamado sebastianista, porque não acompanhava o coro de hosanas que se entoa­
va em homenagem aos governos republicanos que se desmandavam. 1 72

Dá vontade de dizer: deixa disso, padre! Porque, na verdade, está se


vendo que ele procura desculpas para justificar o seu complexo saudosis­
ta.O padre João Manuel, como muitos outros de sua geração, fora atin­
gido pelo remorso...

1 72. Idem.
XII. Conclusão

Hoje, quem deseje pensar em termos políticos não pode desconhecer a


necessidade da análise social.Analisar é tentar compreender, e só com o co­
nhecimento dos elementos profundos que atuam entre os diferentes gru­
pos políticos, criando situações aparentemente paradoxais ou despidas de
lógica, pode o estudioso dos problemas de seu povo, ou de sua classe, ou
de seu país, ou de seu tempo, tomar consciência de sua própria posição.Os
processos dessa análise são múltiplos.O problema pode ser encarado por
faces diversas.Este ensaio talvez ajude a se compreender a atitude de uma
geração política brasileira que influiu grandemente nos destinos da nossa
pátria.Mas essa mesma atitude pode ser também estudada à luz de outros
métodos, da mesma forma legítimos e capazes de chegar a resultados vá­
lidos.Essas questões são extraordinariamente complexas. Os homens não
agem em virtude de um simples fator impulsivo, mas em conseqüência de
um conjunto de estímulos oriundos de fontes diversas.Na atitude retrógra­
da dos republicanos brasileiros de 1889, saudosos da Monarquia (e causa­
dores, em parte, de uma insatisfação política que se manifestou em cons­
tantes comoções armadas) , poder-se-ia ver um reacionarismo conservador,
condicionado por interesses conscientes.Quanto ao autor, à luz da análise
que procedeu, essa posição antes parece derivada de estímulos irracionais
e ocultos à percepção de suas próprias vítimas.Agiriam esses republicanos
de boa fé, impulsionados por qualquer coisa de muito parecido com aquilo
que Karl Mannhein chamaria "falsa consciência''.
Falsa consciência porque presa ao passado, a uma realidade, a uma si­
tuação social e a um momento histórico desaparecidos.A base dessa ati­
tude seria irracional, e só uma análise que a dissecasse em suas compo­
nentes psicológicas nos poderia fornecer uma versão compreensível de
sua estrutura e de sua essência.
Foi o que se pretendeu fazer, com o auxílio de alguns dados fornecidos
pela psicanálise.E talvez a isto haja quem se recuse a chamar psicologia
156 LUÍS MARTINS

social, porém, apenas psicologia tou t court. Psicologia tou t court porque o
fenômeno analisado seria incapaz de interação social.Tratar-se-ia quiçá
de casos isolados, embora provocados por estímulos comuns, que estabe­
leceram certa constância e certa unidade de sintomas, porém sem nenhu­
ma atuação eficaz no meio social em que se manifestaram.
Mas, realmente, não penso assim. Porque, de fato, acredito que o que
denominei "complexo de remorso" agiu, tomando formas generalizadas
capazes de influir dinamicamente na sociedade brasileira, produzindo ou
modificando certos fenômenos que assinalarei.
Seria pretender demais atribuir exclusivamente às conseqüências do
complexo de Édipo, manifestadas num episódio da história brasileira, gra­
ves transformações na fisionomia moral do nosso povo.No máximo, caso
se aceitem os fatos aqui mencionados, poderíamos considerar esses efeitos
numa geração.Essa geração viveu atormentada pelo "complexo de remorso''.
Sua instabilidade nervosa manifestou-se em constantes comoções armadas,
golpes de estado, lutas fratricidas, discussões acerbas, acusações recíprocas.
Pelo contágio e pelo exemplo, entretanto, essa geração imprimiu às se­
guintes a mesma inquietação que a caracterizou.O Império foi um lon­
go período de paz, apenas perturbado por pequenos intervalos de luta. A
República foi precisamente o oposto.
Vivemos, depois de 1889 (principalmente durante a primeira Repúbli­
ca) , num clima permanentemente revolucionário, sempre ameaçados de
levantes armados.Evidentemente, não penso em atribuir toda essa insatis­
fação a causas meramente psicológicas.Devemos levar em conta motivos
sociais ponderáveis.Mas creio não exagerar supondo que, por baixo deles,
havia uma fermentação surda, subterrânea, inconsciente. Os homens de
1889 implantaram no Brasil, por culpa do seu inquietante complexo, uma
atmosfera de nervosismo e inadaptação."Em política", diz Mannheim, "o
elemento racional está estreitamente ligado ao irracional." 1 73
Depois da proclamação da República, os brasileiros, fatalizados pe­
los acontecimentos de que foram atores, ficaram forçados, pelos miste­
riosos impulsos do superego, a encontrar um substituto do pai sacri-

173. Karl Mannheim, Ideologia y utopia, trad. de Salvador Echavarria, Fondo de Cultura
Económica, México, s.d.
O PATRIARCA E O BACHAREL 157

ficado.Não é impossível ver aí a origem dessa nossa tão característica


tendência para o individualismo político, que corresponderia à procura
do herói capaz de preencher as funções paternais momentaneamente
suspensas pela revolução.
Essa tendência para individualizar a política nos tem levado a uma es­
pécie de caudilhismo latente que, aliás, se transformou em realidade du­
rante a ditadura de Getúlio Vargas.No Brasil, o pequeno caudilho, o lí­
der, o meneur, colocado na imaginação popular em lugar de programas
e de idéias, subsistiu sempre no chefe político de arrabalde, no "coro­
nel" de interior, no figurão de zona eleitoral.Em escala mais vasta, vamos
nos surpreender com uma série de "ismos" ligados a nomes de pessoas,
sem conteúdo ideológico senão o da admiração incondicional pelo ídolo.
Nossos partidos políticos, praticamente inexistentes, desapareciam sem
nenhuma significação, em face das seitas formadas em torno de individu­
alidades dominantemente paternais, que assumiam nitidamente o caráter
de "heróis míticos", substitutos do Pai sacrificado. O nosso "ciclo herói­
co" se caracterizou pelo "florianismo", o "pinheirismo", o "epitacismo': o
"bernardismo': Mesmo em nossos dias, quando as massas, relativamen­
te mais esclarecidas, se delineiam - confusamente, embora - em facções,
em grupos dominados pelas reivindicações impostas pela luta de classes,
o fenômeno persiste.Ninguém acreditará seriamente na existência de um
Partido Trabalhista, no sentido de uma agremiação formada em torno de
um ideal ou de um programa; o que existe é simples "getulismo". Mes­
mo o comunismo, entre nós - apesar da existência de alguns verdadeiros
marxistas - se pode caracterizar não apenas pela revolta das massas em
vista das precárias condições econômicas em que vivem, como, sobre­
tudo pela admiração fascinadora que sobre elas exerce a figura de Luís
Carlos Prestes.Há, realmente, mais "prestismo" do que "comunismo".A
maior parte do povo não pensa em termos de "infra-estrutura econômi­
ca", "materialismo histórico", "luta de classes"; acha é que "Prestes é um
homem direito".E por isso vota com ele.
Esses chefes, caudilhos ou líderes representam evidentemente projeções
sobreviventes do Pai, encarnado na figura patriarcal de D.Pedro II. É bem
curioso assinalar que a imagem do imperador permaneceu na imaginação
popular, até bem pouco tempo, como a do chefe da Nação, muitos anos de-
158 LU!S MARTINS

pois de sua deposição e morte. Nas camadas mais incultas do povo, o mito
imperial sobreviveu às novas formas de constituição política do Estado.1 74
Estabelece-se assim, por força dos poderosos resíduos de culpa que fi­
caram no subconsciente popular, a ressurreição do Pai.E só aos poucos
essa mentalidade se desvanece diante das novas contingências sociais que
vão criando uma nova forma de consciência.Quando chegarem a extin­
guir para sempre o fantasma do velho patriarca, numa sociedade estru­
turada em bases fraternais, os brasileiros começarão, enfim, a viver num
regime verdadeiramente democrático.
Como se viu, aqui não adotamos uma rígida subordinação à teoria
dos impulsos, independente do tempo histórico e de sua corresponden­
te situação social. Se no Brasil se criou e se desenvolveu o sentimento
de culpa inerente à consumação do sacrifício do Pai, é porque as condi­
ções peculiares à mentalidade colonial proporcionaram uma "consciên­
cia patriarcal", possibilitando assim a completa analogia entre a rebeldia
filial dos bacharéis e a dos filhos da horda primitiva. Pouco importa que
seja discutível a existência real desse episódio sanguinário da pré-história
humana. Aceitamos aqui a sua existência como um "fato" no sentido -de
simbolizar uma situação e um estado de espírito. Para nós, tenha ou não
ocorrido o assassínio coletivo descrito por Darwin, a verdade é que sub­
siste a "situação psicológica" que ele encarna e simboliza. Mito ou realidade,
o que interessa é sua ação social. Como se vê, bem longe estamos de qual­
quer ortodoxia psicanalítica, que tudo subordina à atuação de impulsos
libidinosos.Dissemos, na introdução, que o episódio da horda seria utili­
zado como "hipótese de trabalho".E assim foi.
Sem a estrutura econômica da colônia, que fez do pater-familias um
senhor quase absoluto em seus domínios rurais, o complexo de Édipo te­
ria tido, em seus filhos, uma projeção normal. Não criaria aquela hostili­
dade aguda, que apenas se saciaria num ato de violência.

1 74. "Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República.


- O homem que manda em nós tudo?
- Sim.
- Pois de certo há de ser o imperadô."
(Monteiro Lobato, Urupês, Livraria Martins Editora, São Paulo, s.d.)
O PATRIARCA E O BACHAREL 159

Como se vê, postula-se aqui a existência de uma inter-relação entre a


ação dos elementos sociais e a dos impulsos irracionais: de uma situação
social origina-se um estado de espírito, que por sua vez vai influir na si­
tuação social subseqüente.
Advém daí a crença do autor na utilidade prática deste ensaio, subme­
tido ao público como contribuição ao conhecimento do homem brasilei­
ro, tal como se apresenta através de um episódio histórico de tão profundas
modificações para o nosso meio social.Não será de supor que este ensaio
venha a servir de objeto de meditação aos nossos políticos, sempre tão pre­
sos a objetivos utilitários e de imediata consecução.Mas talvez venha a ter
algu ma utilidade para os nossos homens de pensamento, que desejem dis­
cutir uma interpretação nova da nossa história.Não - é inútil acrescentar
- pelo seu valor expositivo ou crítico, mas porque apresenta uma série de
"fatos': os quais seria lícito supor que, pelo menos, mereçam algum exame.
Mesmo que seja para contradizê-los ou contestá-los.
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Apêndice
O álbum de Carmo Cintra

MEIA HORA DE TRISTEZA

Já vistes o céu bem negro, o tempo pluvioso, os astros carregados, reboan­


do os trovões, o vento irado, os relâmpagos ferindo os ares; tudo ameaçando
a mais forte e temível tempestade?... É bem certo que já vistes, presenciastes...
e contemplastes a tudo... Assim estou, minh'alma triste vê correr diante de si
todos os prazeres e a tudo foge... o coração massacrado pela dor, enfastiado e
enojado da alegria, só tem tormentos...
Tive sonhos dourados, vida folgasã, gênio prazenteiro, mas a sorte tudo
consumiu. . . As ilusões da juventude já não existem em meu coração!. . .
Amor... eu tenho a realidade! Am o a negrura de uma noite, a tempestade, o
silêncio, a tristeza de uma rola quando geme pelo amante filho, que vê mor­
to. . . Eis o amor, que concentrou-se em meu débil peito e me há congelado...
Bem podeis compreender-me.. . longe dos amigos da infância, dos ver­
dadeiros e fiéis amigos, que no berço enxugarão minha primeira lágrima,
afagando-me ternamente, que presenciarão meu primeiro riso infantil, que
ouvirão-me pronunciar a primeira palavra. . . enfim, meu pai, minha mãe,
irmãos, amigos inseparáveis e jamais traidores e falsos. . . Como poderei en­
carar ao mundo senão com tristeza desde que estou longe deles?
Vós que experimentais a mesma separação, talvez não sofras tanto; por­
que tendes diante de si os divertimentos todos, as folganças, o prazer, etc, etc. ..
além disso, uma idade menos avançada que a minha, sofrimentos, menos que
os meus; porém faço-te a justiça, porque em uma hora deveis sofrer e chorar
ao lembrar-vos dos que te estimam e amam, como sejam teus pais... irmãos...
e amigos (em cujo número quero ter parte). Amigo, bem conheces asfraquezas
deste mundo ilusório, bem conheces as amizades momentâneas, que adquiri­
mos: estudai essas amizades e esses amigos para um dia não causar tédio como
a mim acontece, que estou com a fronte curvada, vida marchetada de dores,
alma torturada, coração denegrido, e o esplendor de meus dias belos já ofusca­
dos, só pensando no que hei sofrido e na taça da amargura que transborda...
A falta de inspiração obriga-me a concluir, assim, pois, peço desculpa ao
meu amigo, e creia que fui eu o primeiro a conhecer a incapacidade minha,
1 70 LUÍS MARTINS

para traçar estas linhas nas primeiras páginas do teu - Álbum - e, se o fiz, foi
só para satisfazer o teu pedido, do contrário procuraria a última página, e não
a primeira, que deve ser guardada para uma pena, que não fosse tão baldada
de recursos intelectuais.Enfim, mandaste, e obedeci.
Como teu grato e sincero amigo
Francisco Nicolao Schmidt
Itu, 5 de Outubro de 1869

AMITIÉ

Par tes soins consolants c'est toi qui nous soulages,


Tresor de tous lieux bonheur de tous les âges,
Le ciel te fit pour l'homme et tes charmes touchants
Sont nos derniers plaisirs sont nos premiers penchants. 175
Ducis 1 76

Meu Cintra: Queres que eu escreva alguma cousa no teu Álbum! Eu que
nada sei! Que vou fazer? Marear as douradas páginas do teu Álbum...Quisera
conhecer a linguagem dos poetas para assim escrever uma cousa que fosse digna
de ser lida, v.g. uma epopéia! Mas eu que nem sem lira rachada tiro... é muito
difícil satisfazer ao teu pedido...Mas como lembrei-me agora do ditado - Inter
amicos non est geringontia - animo-me a dizer duas palavras.Amigo: Eu creio
no progresso.A humanidade caminha sempre apesar de tudo, somente seu mo­
vimento não é tão rápido como se pensa. Tu entras agora na vida, meu Cintra,
cheio de esperanças. Sentes a ambição legítima, e as aspirações elevadas, esses
incentivos que abrasam a imaginação de todos os mancebos dotados como tu,
de talento, de espírito, e de sentimentos nobres. Prepara-te para as decepções da

175. "Por teus cuidados que consolam, és tu que nos alivia,/ Tesouro em toda parte, alegria
em qualquer dia,/ Os céus te fizeram para o homem e as emoções de teus encantos,/ São
nossos últimos prazeres, são nossos primeiros cantos". Trad. do Ed.
176. Deve provavelmente tratar-se de Jean François Ducis, poeta trágico francês, nascido
em Versalhes em 1733 e morto na mesma cidade em 1816. Adaptou para a cena francesa,
as principais tragédias do grande poeta inglês.
O PATRIARCA E O BACHAREL 171

vida.A tua estréia de orador nos bancos da Universidade criou-te reputação e


pretende agora soltar-te em mais largos horizontes.
O que escrevi é mesquinho, Amigo, mas como mesquinho encerra em si pro­
va de sincera amizade.
Recebe um apertado abraço do teu fiel amigo
Antonio de Freitas Pinho

***

... Quando ao lado teu da sombra eu te contemplo vejo em ti um altar...


G. Braga

José: Queres que eu trace algumas linhas em teu Álbum?! Mas como,
se sou ignorante? Nada sei! Tenho apenas um coração para corresponder a
nossa amizade fraternal! Ah! Irmão! Quisera possuir a imaginação de Gon­
çalves Dias, A. d'Azevedo, Magalhães e outros para assim deixar em teu Ál­
bum uma canção de amizade! Mas nem tudo é como se deseja. O que posso
fazer, Irmão, é escrever esta palavra Amizade - essa preciosa dádiva que o
nosso Altíssimo deixou: palavra essa que nem na fria lousa do sepulcro dei­
xarei de pronunciar.
Teu irmão e fiel amigo
Joaquim Pinto da Silveira Cintra177

***

Querido Mano:
Não posso escrever em teu Álbum coisa que preste, já pela escassez de inteli­
gência, e já por haver há pouco largado do ABC por isso limito-me ao seguinte.
Sempre direi - José é meu fiel amigo, e igualmente eu sou dele.

177. Segundo informa Silva Leme, esse irmão de Carmo Cintra formou-se em medicina
em Bruxelas, foi deputado provincial, elegeu-se deputado geral em 1889, não chegando
a empossar-se em virtude da queda da Monarquia. Já na República foi eleito deputado à
constituinte do estado de São Paulo.
172 LUIS MARTINS

O que julgo escrever com mais acerto nesta página, e com letras grandes é
esta palavra: Nada.
Teu
Felício Pinto de Alencar Cintra

***

FOLHA SOLTA
A meu amigo José Pinto do Carmo Cintra

A manhã despende a aurora


Ao crepúscl'o a noite fria,
Assim também de hora em hora
Teu amor se despedia.

Tão santo amor e tão puro


Tu não devias fruir;
Ergue-se a mão dum perjuro
Para tua alma ferir.

A fera supôs-se impune,


Ferindo-te sem piedade
Cegou-a negro ciúme
Cegou-a cruel maldade.

Por entre o pranto bem vias


O punhal na mão ingrata:
- Eu abençôo - dirias,
Aquela que me maltrata.

Choraste porque ausente


Estais do lar querido;
Choraste porque inocente
Não supunhas ser traído.
O PATRIARCA E O BACHAREL 173

E como a aurora garbosa,


Teu amor foi declinando;
E como o viço da rosa,
Teu amor foi se acabando.

E como o crepúscl'o ameno.


O teu amor transmudou;
E como da lira um trono,
Pra longe a brisa a levou.
João Baptista Leme
Novembro - 18 - 69

Amigo Cintra.
Se os meus desejos se converterem em realidade, há de o meu amigo encon­
trar neste mundo todas as felicidades humanamente possíveis.
ltu, 18 de Novembro de 1869
Francisco Antonio Barbosa

***

Meu Cintra.
A mocidade é rápida como o tufão, e a vida tão cheia de incertezas, que
o que hoje nos sorri amanhã se desvanece. O que então nos dulcifica as má­
goas da existência são as horas que gastamos a relembrar o passado, nas de­
silusões do presente.
Quando assimfor, leia esta página do teu Álbum: é pobre de eloqüência, mas
é rica de afetos. Guarda esta mesquinha lembrança do,
Amigo
José Innocencio do Amaral Campos
ltu, 25 de Novembro de 1869

***
174 LU!S MARTINS

Já como louco eu amei na vida


Oh! .. .imagina como então vivi ...
Sonhei amores, esperanças vãs
E encantos da virgem por quem sofri.

Por altas noites quando já dormia


Incauta virgem num cismar tão puro
Na paixão envolto dum cismar profundo
Tudo esperava do gentil futuro.

Oh! Como tudo se mudou na vida


Desde desse dia que eu a ela amei
Oh! Inda me lembro, era tão bela e pura,
Como as puras flores que no jardim plantei.

A vida, o gozo tornou-se em dores


Rico de amores me tornei plebeu
Mas nos altares, onde queimei incenso
O amor intenso, sempre ali viveu.

Criei altares em meus doces sonhos


Infindo amor eu jurei a ela
Nesse momento em que amor jurava
Tudo deixei para seguir uma estrela

Reviver senti-me ao preferir a estrela


A essa virgem que sorriu tão bela.

Itu, 25 de Novembro de 1869


Francisco Nicolao Schmidt

***
O PATRIARCA E O BACHAREL 175

Amigo Cintra
Há no mundo objetos, que prendem corações e os tornam amigos; entre
nós foi o elo da amizade.
Teu sincero e grato amigo
Augusto de Freitas Lima
ltu, 26 de Novembro de 1869

***

Amigo Cintra
Cônscio de minha acanhada inteligência, jamais poderia expandir, como
desejava, as palavras de afetos e amizade que vos tributo, limito-me unica­
mente a desejar-vos do fundo d'alma um porvir risonho e prazenteiro. Peço­
lhe que nas horas tardias de teus refletidos cismar[ es] lance um vislumbre de
saudades a este que foi e será
Teu menor criado
Francisco d' A. Pompeo
ltu, 28 de Novembro de 1869
***

Dear Cintra
If human supplications are heard by the Almighty, you shall have, by mine
one shiningfuture filled with pleasures and enchantment. 1 78
Of your friend
Luiz de Anhaia Mello

***

178. Há um certo truncamento neste texto em inglês. Aparentemente, o autor quis dizer
algo como: "Caro Cintra /se os pedidos dos homens são ouvidos pelo Todo-Poderoso,
você terá, como peço eu, um futuro brilhante, repleto de prezeres e encantos,/do seu ami­
go/ Luiz de Anhaia Mello." N. do E.
176 LUÍS MARTINS

Amigo Cintra
Amizade, esse sentimento nobre e sublime, não pode ser descrito por mi­
nhafraca pena; mas ao menos posso querer descrevê-lo.É este sentimento que
consagra-te, em rigor, este teu fiel amigo e colega
Bento José de Mesquita

***
Cintra
Como teu amigo que sou, não posso deixar de pegar em minha fraca
pena, não para deixar em teu Álbum palavras eloqüentes, mas para com
minhas toscas expressões dizer duas palavras. Ei-las: Amizade! Ó Santa
Amizade! Dádiva preciosa que o nosso Supremo legou-nos, sois vós que
presidis nossos corações. Praza a Deus que nunca se corte o laço que une
nossos corações.Amigo, em tuas horas de vigílias lance um golpe de vista
nesta página, é mesquinha de saber, mas rica de puros sentimentos.Aceite
o coração, e um saudoso abraço de quem muito te estima, e estimará até
a hora da morte:
Severo de Camgº Campos
ltu - Novembro de 1869
***

Cintra
Uma das primeiras virtudes é a amizade, por isso, não tendo senão uma in­
teligência curta e uma fracapena, não posso dizer tudo quanto desejo, o que pos­
so vos afirmar é que sou e serei sempre
Teu Amigo sincero
Álvaro Dias Ferraz da Luz
***

Cintra
Escrever num Álbum é coisa muito séria, por isso mesmo que vamo-nos
expor à crítica austera de todos aqueles que passarem os olhos por estas pá­
ginas; porém aceitando a honra que me dás ofertando-me teu Álbum para
O PATRIARCA E O BACHAREL 177

nele deixar um pensamento, não faço mais do que cumprir um dever de


Amizade e Gratidão, por isso que te ausentas, e faço votos para que junto de
teus pais não passeis pelas vicissitudes por que hei passado. Sabeis perfeita­
mente a minha história, e quanto tenho sofrido em tão pouca idade; sabeis
que quando vim ao mundo meu pai já não existia, enfim tens sido testemu­
nha dos golpes terríveis que tanto me têm acabrunhado. Não podeis avaliar
porque sois ainda mais moço do que eu, e por isso não sabeis o que é uma boa
esposa, e a dor que nos cura imortal separação. Por isso em mim tudo é tris­
te; não posso te dar um pensamento de ocasião, meu Cintra; porém, como és
bom filho e bom amigo deixo em teu Álbum uns versinhos que é uma página
de minha vida escrita ainda quando eu era mais moço do que tu.

A INFÂNCIA

Feliz o bom filho que pode contente


Na Casa paterna de noite e de dia
Sentir as caricias dos anjos d'amores
Da estrela brilhante que a vida nos guia.
- Uma Mãe ­
(C. d'Abreu)

Da infância me lembro que passa correndo


Qual sopro da brisa no campo ou no vai;
Me lembro os instantes que deixam saudades
Mostrando os encantos do amor maternal.

Eu lembro esse tempo da vida inocente


Gozando as doçuras de um beijo infantil!
E quem era esse anjo que assim me afagava
Qual virgem celeste com riso gentil?

Minha Mãe! ... era ela... comigo abraçada


Falava em meu pai, que tão cedo perdi;
E eu pequenino feliz não pensava
Que órfão já era... que o não conheci! ...
178 LU!S MARTINS

E agora que sofro da vida os embates


Qual brisa que geme no campo ou no vai,
Só lembro esses tempos que deixam saudades
Mostrando os encantos do amor maternal.

Teu Amigo sincero


1� Alvares da C.Lobo
Itu, 29 de Novembro de 1869

* * *

Amigo Cintra.
Baldo de recursos intelectuais, não posso pois deixar em teu - álbum - um
bonito pensamento; visto isso, o que posso fazer é exclamar com o poeta:

O divine amitié, félicité parfait


Seul mouvement de l'âme ou l'excés sait permis,
Change en bien tous les maux ou le ciel m'a soumis!
Companhe de mes pas, dans toute mes demeures,
Dans toute les saisons, et dans toute les heures,
Sans toi tout homme est seul; il peut par ton appui,
Multiplier son être, et vivre dans autrui.
Idole d'un coer juste, et passion du sage,
Amitié! Que ton nom couronne cet ouvrage;
Qu'il préside à mes vers comme il regne en mon coer:
Tu m'appris à connaitre à chanter le bonheur. 1 79

1 79. Na primeira edição do livro, Luís Martins aponta com sics seis incorreções no fran­
cês de Paulino Pacheco Jordão. Os versos corretos de Voltaire são: "O divine amitié! féli­
cité parfaite,/ Seul mouvement de l'âme ou l'exces soit permis,/ Change en bien tous les
maux ou !e ciel m'a soumis;/ Compagne de mes pas dans toutes mes demeures,/ Dans
toutes les saisons, et dans toutes les heures:/ Sans toi tout homme est seu!; il peut par
ton appui/ Multiplier son être, et vivre dans autrui./ Idole d'un coeur juste, et passion
du sage,/ Amitié, que ton nom couronne cet ouvrage!/ Qu'il préside à mes vers comme il
regne en mon coeur!/ Tu m'appris à connaitre, à chanter !e bonheur." (Numa tradução
livre, "ó divina amizade, felicidade perfeita/ Único movimento da alma onde o excesso
O PATRIARCA E O BACHAREL 179

Praza aos Céus que nossa amizade nunca se acabe, e que mesmo na fria
lousa do sepulcro pronunciemos esse doce nome: Amizade! Cintra, o que es­
crevi é mesquinho, porém com a ajuda do poeta Voltaire tornou-se rico de
puros sentimentos. Em tuas [ horas] de vigília lança um golpe de vista nesta
página que encontrarás nela prova de sincera amizade, e gratidão.
Paulino Correa Pacheco Jordão
Itu, 29 de Novembro de 1869

***

Cintra
Queres ouvir um canto, jovem mancebo? Escuta

Constância!. .. que tudo vence


Na vida a perseverança!
Zomba até da iníqua sorte
Estuda, vence e alcança.

Fala a linguagem da amizade


Ganha renome pra ti.
Nos estudos do Colégio
O teu gênio se revela ali.

Coragem, mancebo, amigo!


Que glórias hás de fruir...
Não desanimes, oh! gênio,
Tens nas letras o teu porvir.

seja permitido,/ Transforma em bem todo o mal a que o céu me submeteu!/ Companheira
de meus passos em todas as minhas moradas,/ De todas as estações, e de todas as horas,/
Sem ti todo homem está só; ele pode com teu apoio/ Multiplicar seu ser, e viver como ou­
trem./ ídolo de um coração justo, e paixão do sábio,/ Amizade! Que teu nome coroe esta
obra;/ Que presida aos meus versos como reina em meu coração,/ Tu me ensinastes a sa­
ber como cantar a felicidade." N. do E.
180 LUIS MARTINS

Sê na vida feliz; são votos


De teus amigos, colegas e meus!
Cubram-te a fronte floridas grinaldas;
Mentor sincero guie os passos teus!

José Antonio Apparicio d' Almeida Garrett


ltu, 30 de Novembro de 1869

***

Cintra.
Como o - Álbum - é um porta-lembranças; se algum dia percorreres suas
folhas para recordar-vos dos teus amigos, entre eles encontrarás o nome do mais
humilde de todos.
Pedrinho Dias
Itu, 30 de Novembro de 1869

***

A amizade é um dos laços sagrados; sem ela a sociedade deixaria de existir.


Vosso amigo
Luiz de Freitas
Itu, 30 de Novembro de 1869

***

Ao Meu Amigo Carmo Cintra


Sinto não ter expressões para patentear a minha Amizade para contigo; faço
votos para que sejas feliz e que sigas a carreira decretada pelo Onipotente.
Nas tuas horas de descanso lembra-te deste teu humilde criado
Nemezio Olegario Silvº Martins

***
O PATRIARCA E O BACHAREL 181

Cintra
Conquanto não haja entre nós aquela célebre amizade que eternizam os
nomes de Pylades e Orestes, Theseo e Pirithous, Pythias e Damon, Dubrenil
e Picheméjá, sou dos que te consagram amizade sincera; por isso com muito
gosto aceito a honra que me fazes em querer que meu obscuro nome seja es­
crito numa página de teu Álbum.
Itu, 30 de Novembro de 1869
José Alves Corrêa

***

Cintra
Desde a primeira vez que te conheci, simpatizei tanto com a tua pessoa
que de então para cá senti por ti verdadeira amizade, que considero uma
forte cadeia, cujos elos se acham presos ao meu coração...Não poderei duvi­
dar que sou retribuído da mesma maneira, porque as provas contínuas que
me tens dado são bastantes para acreditar. Portanto, partindo para seguir o
brilhante futuro que te espera, não posso deixar de vir saudoso manifestar-te
com estas insignificantes palavras o meu sincero reconhecimento como tri­
buto de íntima amizade e ao mesmo tempo desejando-te todas as felicidades
deste mundo.Nunca te esqueça pois do
Teu amigo e criado
Miranda Russo
***

Sendo a natureza escassa para comigo nos dons da inteligência, vejo-me


impossibilitado de exprimir dois sentimentos que se apoderam de mim, isto
é, prazer e pesar; prazer por escrever duas palavras em teu Álbum, e pesar
por ser isto como uma despedida, não deixando você de se lembrar que mos­
trei-te verdadeira amizade e que vivemos tantos anos juntos e que sempre
encontrará em Itu um verdadeiro Amigo.
Itu, 12 de Dezembro de 1869
José Marianno da Costa

***
182 LUIS MARTINS

Estimado Disdpulo
É a saudade essa mimosa paixão d'alma, e por isso tão sutil que equivo­
cadamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É
um mal de que se gosta, e um bem de que se padece. Pelo que diremos que
a saudade é um suave fumo do fogo do amor; não necessita de larga ausên­
cia; qualquer desvio lhe basta para que se conheça.Assim prova ser parte da
união de todas as coisas amáveis e semelhantes. Fica gravado para sempre
no coração de vosso preceptor a lembrança do digno discípulo Cintra.
Itu, Dezembro de 1869
Joaquim Mariano da Costa

***

Cintra
Eu vi uma pura verdade num álbum e aqui reproduzo-a, e que bem
depressa a pessoa que escreveu esse pensamento tão grandioso, abandonou
uma amizade que devia apreciá-la, e espero que outro tanto não nos acon­
tecerá, por isso que trarás na memória esse pensamento que aqui transcrevo.
''.A amizade é um nó gordio que as mais das vezes é cortado pela espada da
intriga." Aceite um apertado abraço do teu amigo.
Alfredo Alves Corrêa

***

Querido Cintra
Amizade! ó santa Amizade! Palavra doce de se procurar gozar - doce
de se pronunciar! Praza o nosso Onipotente que nossos corações estejam
sempre unidos como hoje. Em tuas horas de repouso lance um vislumbre
de saudades ao teu amigo que sempre vos estimou e estimará até a hora
da morte.Adeus...
Getulio Alves Corrêa

***
O PATRIARCA E O BACHAREL 1 83

Querido Irmão.
Quisera conhecer a linguagem de Madame de Sevigné, de Mme. de
Maintenon e outras para deixar em teu - Álbum - um bonito pensamento,
porém nem tudo que se deseja consegue-se! Deixo então em teu - Álbum -
uma descriçãozinha do que ontem me aconteceu, porém desde já previno-te
que não posso seguir o que recomendou Boileau quando disse: "Soyez riche
et pompeux dans vos descriptions1 8º ''. A aurora vinha encantadora e pura,
os passarinhos, alegres, saltitando de ramo em ramo, apitavam seus sonoros
gorjeios; então eu contemplava a natureza procurando reviver o passado nas
desilusões do presente - quando de repente vi reboar o trovão, o céu tornar­
se negro, o tempo pluvioso, os passarinhos alegres calarem-se como calam-se
ao rugido do leão depois que empolga a presa! E quereis saber o que motivou
tudo isso? Eu to digo: - foi o lembrar-me que em breve partes para a Corte! . . .
porém vais gozar duma vida de flores e encantos; digo isto com experiência,
pois o melhor tempo é o do Colégio, embora tenha-se às vezes alguns dissa­
bores. ..por ver que se acha ausente da pátria minha etc. etc. Mas tudo isso
nada é, o tempo passa tão rápido como o tufão, e os anos que passa-se no Co­
légio tornam-se em dias; isto talvez não te aconteça agora, mas ainda acon­
tecerá. Esta é a esperança que dulcifica minhas mágoas; visto isso que te sirva
também, enfim, meu Irmão, logo ver-te-emos reconstituído aqui.
Em tuas horas de descanso lance um olhar de saudades nesta página que en­
contrarás palavras de amizade, ou para melhor dizer - de verdadeira irmã.
S. Antonio, 1 6-1-1 870
Maria Joaquina de Morais Cintra

***

Meu Primo
Aceitando uma página do seu Álbum, não possofazer outra coisa senão dei­
xar nela meu humilde nome. A amizade é a dádiva mais preciosa que temos nes­
te mundo de espinhos, e dores, e como tributo-lhe-a atrevo-me a pegar na pena,
molhá-la na tinta, e sobre esta página escrever estas palavras: Amizade Sincera.

180. Seja rico e pomposo em suas descrições. Trad. do Ed.


184 LUIS MARTINS

Partes logo para a Corte a fim de ultimar seus estudos, pois praza nosso Criador
que encontre na vereda que pretende mil fiorinhas das mais purpurinas que pos­
sa-se encontrar. Concluo aqui meu desalinhavado e insignificante escrito sentin­
do sinceramente que no Álbum do meu primo coubesse uma página a quem vive
completamente afastada da brilhantefalange de talentos.
Sua prima que muito o estima
M.do Carmo Pinto
16 de Janeiro de 1870

É mão d'espectro, tétrico fantasma


Que a pena empunha aqui para escrever!
Ergueste a lousa; o pálido poeta
No doce sono foste interromper!
Piar de mocho à sombra de ciprestes
São-me os ecos da lira gemedora!
Risonhas vozes, cânticos festivos
Não tem minha lira sempre sofredora
Dr. Ferreira de Menezes

***

Meu Primo
Não possuo a imaginação de Castro Alves, Varella e outros para deixar em
teu álbum uma canção de amizade; não tenho o pincel de Angelo para aqui dei­
xar um bouquet de flores; só tenho a palavra amizade, vale mais que todas as
riquezas mundanas. Partes logo para a Corte a fim de conquistar esse grande te­
souro: ciência! Pois praza o nosso Todo-Poderoso que traga de lá uma coroa de
louros; eu, como não tenho essa felicidade, aqui fico maldizendo a sorte. Meu
primo: é tarde, e muito tarde, temo perder no recinto de minha obscuridade;
aqui fica uma página rabiscada, agradeço-vos a honra que me destes em ofertá­
la; Morpheo bate à porta, repousemos.
Teu primo que muito te estima e estimará
Pedro Elias Pinto

***
O PATRIARCA E O BACHAREL 185

Meu Primo
Aceitando uma página de teu Álbum não escreverei nela uma poesia, por­
que esse dom ou antes raio da divindade tem sido parcamente concedido só a
Gonçalves Dias, Varella e Bernardo Guimarães, que têm sabido entre outros
poucos falar essa sublime linguagem. Não tendo cultivado a literatura, o meu
espírito recente-se da aridez da carreira que sigo. Bem sabes que o espírito é
como o espelho, que reproduz as imagens dos objetos que lhe ficam em frente,
assim pois o espírito em seus prismas mostra a fonte onde bebeu os conhecimen­
tos. Outra coisa não poderia escrever que algum mal digerido texto de direito,
isto é o que de mais enfadonho existe; não escreverei. Se ao menos eu pudesse
como A. Herculano pintar os sentimentos do coração com as cores tão vivas que
ele empregou no Eurico ou como Angelo pudesse no retrato duma flor, ou num
desses sublimes quadros da natureza, pintar as melancolias de minha alma,
ou finalmente como C. Gomes pudesse exprimir em inspiradas notas o que vai
nesta alma! ... Mas pobre advogado da roça, sem ter penetrado o santuário per­
mitido aos que tem gravado na fronte a centelha divina - inteligência -, nada
mais posso fazer do que gravar meu nome. Se porém não tenho uma coroa de
poeta, uma alma de escritor, o pincel de Angelo; nem mesmo como os povos
d'Arábia perfumes para vos oferecer, tenho ao menos casta, a singela expressão
- amizade. Ela vale mais que todas as riquezas dos avarentos Cresas; ela faz do
homem muitas vezes feroz um humilde cordeiro. Não há dor, tristeza, contra­
riedade que se não mitigue quando vemos um amigo compartilhando nossos
sentimentos, e nem há satisfação para o coração quando ele goza só. Enquan­
to lerdes estas linhas não sentirás a eletricidade do gênio, ao menos esquecerás
tuas mágoas. Nenhum merecimento teriam os grandes frutos dos gênios, nem
admiração causaria a virtude dos mártires, se todos fossem iguais. Assim ne­
nhum valor teriam as páginas do teu Álbum e nem atenção chamariam as lin­
das poesias que ele contém, e sublimes pensamentos que aí estão, se não inutili­
zasse esta página. Desculpa; nãofoi propósito de ofazer. Bem conheço a escassez
de meu espírito, todavia não quis recusar ao teu pedido. Não pertenço à escola
dos que, não podendo obter o sublime, nada querem. Não! - aceito o imperfei­
to, e procuro aperfeiçoar. Não te deixando uma página brilhante, deixo uma
rabiscada. Vale a intenção que foi a de dar-te o melhor, o Sublime.
S. Antonio, 12 de Fevereiro de 1870
A. F. A. Cintra
186 LUIS MARTINS

***

José.
Como em breve uma grande distância tem de mediar-nos; e há tantas cir­
cunstâncias que impedem o homem de manter contínuas relações epistolares
com os amigos ausentes; e ao mesmo tempo queres que eu manche teu álbum,
faço-vos o seguinte que renovarei, ao menos em desejo, todas as vezes quefor pri­
vado de escrever-vos; esperando que tu me desculparás essas faltas renovando a
recepção desta. Invejo-te, meu primo, quanto licitamente posso invejar-te!... Vais
sulcando as ondas neturninas prestar na Corte um culto a Minerva! Estais na
primavera da infância; os raios d'aurora científica começam a dourar a vasta e
verde campina de tua inteligência; a estação estial de tua vida é um dosfocos em
que a humanidade concentra suas esperanças. Cultivas um solo tão vasto como o
Oceano, tão fértil como a margem do Nilo: a árvore aí plantada será tão frondo­
sa como a do cedro do Líbano. Tudo te enche de esperanças, tudo te promete um
risonho porvir!... Beatus venter qui te portavit 1 8 1 • Oxalá que eu tivesse a mesma
felicidade que tu! Então seria convosco um trabalhador, um conquistador dessa
riqueza, Ciência! Mas como não a tenho, aqui fico lamentando-me; tu porém
vai, corre, voa com rapidez de seta; atravessa a atmosfera, deixa a esfera terrestre
e entra na desse astro luminoso, dominador do mundo intelectuat mas lá nessas
alturas, não te esqueças de baixar os olhos sobre este humilde inseto, que embora
vague por entre as trevas, terá sempre a honra de ser teu primo
João Baptista de Campos Cintra
Paineira, 16 de Fevereiro de 1870

***

Amigo Cintra.
O que poderei dizer-vos eu que venho acabrunhado de uma grande viagem
de Minas para esta heróica província de S. Paulo, vossa cara província, cheia de
esperanças, e que aguarda um grandioso futuro? Sim, Cintra, há dezesseis anos
freqüento a feira de Sorocaba, tendo-me dedicado ao comércio de animais com

181. Bem-aventurado o ventre que te trouxe (citação do "Evangelho segundo Lucas").


N. do E.
O PATRIARCA E O BACHAREL 187

muita assiduidade; e ora volto para minha cara província onde deixei minha
cara esposa e meus seis filhinhos, entre os quais dois estão bebendo as águas da
ciência, tendo de seguirem se for gosto dos mesmos a carreira que segues, e estou
certo que a educação é o primeiro passo que os pais devem dar aos seus filhos,
por isso que deves desde já ser grato ao vosso pai., meu caro Senhor, que não pou­
pa sacrifícios para que vos eduque, e quando concluíres teus estudos virás enfim
beijar grato as mãos paternais, e uma lágrima de júbilo correrá por tuas faces,
tendo ao teu lado vossos amigos, entre os quais, se possível for, contarás com este
que muito te estima e preza ser teu amigo
afetuoso e menor criado
Joaquim Victor de Souza Meirelles

***

Meu amigo
Amizade, esseforte elo que prende nossos corações, não pode ser descrito por
minha fracapena, qual a do Pintassilgo! Triste é a posição do homem ignorante!
O que possofazer aqui é deixar meu humilde nome, e quando o meu amigo per­
correr as páginas deste álbum achará nesta o nome daquele que sempre o esti­
mou e estimará até quando sua boca entreabrir para soltar os últimos suspiros.
Adeus
José Franco do Amaral
***

Não sendo suficiente a contingência humana para pôr em contato os entes


que se estimam, lanço mão da associação d'idéias que leva o homem a tocar ao
infinito, e assim por este escrito (espinho entre flores) saberás que no Amparo
deixastes o amigo
José Pinto Nunes Jºr
***

Caríssimo Cintra
Peço-te permissão para escrever algumas linhas em teu álbum.Acho tão
doce traçá-las porque enfim a isso obriga-me a próxima saudade, porque
188 LUIS MARTINS

vais partir. Recorro pois ao livro de minhas recordações para ver se encontro
toscas expressões que possam ser depositadas em teu álbum, como prova de
amizade.Escrevendo estas linhas, eu poderia copiar de teu coração mais de
um traço, que faria sobressair a minha nova amizade predileta; mas há sen­
timentos que amam o silêncio, como há flores que se abrem durante a noite
e se fecham ao raiar a luz do dia.Deixe-me ao menos (como já fiz) escrever
teu nome querido, na primeira destas linhas.A amizade é o drama eterno,
é a chama que arde sempre.Se se dispersa é para reconstituir-se mais longe;
se se extingue, é para renascer de suas cinzas; se o facho da civilização vacila
em uma atmosfera impura, é no centro da amizade que readquire a sua luz.
Ali está a origem de todos os sentimentos, de toda a verdade e finalmente da
inteira virtude.

Eia amigo! caminhai - é tempo


Que o estudo é o gesto - e o saber é a vida!
Erguei a fronte - tu vais ser grande
Deixai os transes da mocidade descrida.

C'roai a testa de viçosas flores


Dos estudos vos tornai grande juiz.
Que a mocidade - ignorante - inculta
É a vergonha fatal do seu país! ...

Deus te leve na carreira


Sem tropeçar no caminho
Sabeis que um frágil raminho
Grande arvoredo produz!
Ninguém morre ignorando
Se erguendo foste ilustrado
Nas terras de Santa Cruz! ...

Oh! Deus permita que um milhão de vezes


Eu possa repetir quando vos digo:
Eia amigo! caminhai, é tempo
A voz sincera do sincero amigo!
O PATRIARCA E O BACHAREL 189

Eis as palavras deste teu amigo e criado


Henrique Nicolau Schmidt
São Paulo, 28 de Junho de 1870

***

DESPEDIDA

Adeus sítio de tanta ventura,


Onde vim o prazer encontrar;
Adeus margens e belas campinas
Vou a ti bem depressa deixar.

Adeus povo de tanta bondade


Vou de vós com tristeza apartar-me
E bem longe, talvez a chorar
De vós sempre eu hei de lembrar-me.

Adeus lagos serenos e belos


Onde eu ia de noite pescar,
E belas horas então empregava
Nos contrastes da vida a cismar.

Adeus belas e lindas campinas


Onde alegre eu ia cantar
Vou deixar-vos, talvez para sempre,
Vou minhas penas e dores findar.

Adeus cafezal, onde ouvi muitas vezes,


A rola bem triste pelo filho gemer:
E depois de cansada, do galho voando,
Voando e gemendo, cair e morrer.
190 LUÍS MARTINS

Adeus matas, onde eu ia contente,


Belas horas na caçada passar,
E sozinho refletindo na vida
Ouvir na encosta a araponga cantar.

Adeus campinas, cafezais e matas


Lago, sítio, e povo amado
Vou deixar-vos de dor oprimido
Vou cumprir o rigor do meu fado.

Adeus amigo, a ti ofereço


Os protestos de minha amizade,
Se um dia de mim te lembrares
Em meu peito acharás lealdade.

Fazenda S. Antonio, Distrito do Amparo


5 de Dezembro de 1869
Francisco Nicolao Schmidt

***

QUEIXUME!

Como a vaga que queixosa


Vem a praia deleitosa
Doce queixume soltar,
Deixa-me que venha agora
Como a fonte que sonora
Vem na campina brincar!

Tenho medo de empunhar a pena para traçar algumas linhas em teu Ál­
bum, porém como vou escrever frases arrancadas do fundo do coração, pen­
so que não sairão melodiosas como a cachoeira que se despenha precipitada
da pedreira. Escrever? O que hei de escrever? É uma pergunta que não deve
fazer a mocidade, e sabes por que, meu Cintra? Não sabes, porém eu te direi:
O PATRIARCA E O BACHAREL 191

a mocidade é inteligente, sempre na estação das flores, sempre no mundo das


ilusões, sempre recebendo o pó da estrada no rosto, sempre espinhando-se no
caminho do deserto; pede a seus cantos queixumes ou risos!
Eu que faço parte dessa falange, e que tenho até hoje recebido duros espi­
nhos, assento-me sobre o tronco da árvore caída pelo tufão, e principio como
um ancião de lábios de gelo, coração de granizo:

Sou triste, meu Deus, sou triste


Como a vaga d'azul mar,
Sou triste como o suspiro
Da pobre rola a cantar:
Nos meus amores passados
Em meus versos decantados
Fui triste, mas sem penar.

Eu era feliz como a pomba


Que vai na fonte brincar,
Era gentil como a barquinha
Num mar de leite a vagar;
Hoje sou triste e desgraçado
Como a flor de ermo prado
Tão sozinha a suspirar.

Eu sou triste como o eco


Que perde na solidão,
Sou triste como a folhinha
Batida pelo tufão;
Hoje triste e desgraçado
Sou de todos desprezado
Sem ninguém ter compaixão.

Meu Deus, é como o suspiro


Da rolinha no sertão
O pobre canto que arranco
De meu triste coração.
192 LUIS MARTINS

É meu canto desprezado


Como o peito desgraçado
Que aos ares o solta em vão!

Rio, 20 de Fevereiro de 1872


Fernando de Queirós Barreto

***

Quando a amizade é sincera


Que lhes dê mais alegria .. .
Não há ventura aos mortais .. .
Que os corações são leais.
Um poeta

Amigo Carmo Cintra.


A separação, palavra indescritível, não m urchou a flor que em nossos
corações brotou, desde os primeiros dias que a pátria de Álvares de Azeve­
do nos viu, quando alegres e contentes estudávamos no Culto à Ciência! . . .
Tu deves compreender o que eu sinto! . . . Cinco anos de ausência foram cin­
co anos que mais fortificaram essa palavra tão bem expressada pelos poetas
- plêiade da divindade que habita a terra, e a qual os pobres d 'inteligência
como eu nada mais fazem que curvar-se ante seu majestoso altar, sem lhes
ser lícito, ao menos, balbuciá-la . . . Em nome, pois, dessa preciosa palavra,
em nome dos nossos corações, que se exaltam ao recordar qualquer tempo
da nossa infância, eu te desejo o maior progresso em teus estudos, a ti que,
eu um dia, verei engrinaldado pela ciência, como um dos seus mais fervo­
rosos atletas! . . .
Em homenagem ao que levo de dizer, recebe o coração do teu amigo
smcero
Antonio de Queiroz Telles Neto
***
O PATRIARCA E O BACHAREL 193

Amigo Cintra!

A amizade é o apanágio dos infelizes para


alívio de seus males e consolação de suas penas
J. J. Rousseau

Decorreram-se já bastantes meses e ainda não cumpri com o que te havia


prometido. Escrever em teu mimoso Álbum! Fraco de inteligência, o que farei?
Escrever em um Álbum, ornado, como o teu, de escritos brilhantes, denotando
força de inteligência e robusto cultivo dela em seus autores, não é dado a mim,
pobre estudante! Sobre quefalar? Em amores? Nesse evangelho de todos os que
têm coração, como diz o imortal Byron? Nessa flor que trescala perfumes na
sombra e no mistério . . . ? Não, porque bem infeliz com eles tenho sido. Em que,
meu Deus, em quê? Meu cérebro agita-se. Revolve-se e não luzem duas idéias.
Por quê? Tenho pejo de errar, apesar do erro ser peculiar aos homens. Perdoa,
amigo, esse meu vão e néscio orgulho, orgulho de estudantezinho.
Termino saudando-te e pedindo a Deus para que encontres nas tuas lides es­
colar e acadêmica o caminho semeado de flores e que essas flores sejam colhidas
por tua nobre eforte inteligência.
Adeus, Cintra, e no teu bem-aventurado torrão natal não te esqueças de teu
amigo e colega
Alfredo Freitas
Rio, 18 de Março de 1872

***

AD USUM PRINCIPIS"'

O clarão da alvorada - liberdade


Nasce do sangue derramado puro.
Da barricada avista-se o futuro.
E a luz - democracia - o mundo invade.

1 82. Para uso do Príncipe. N. do E.


194 LUÍS MARTINS

O trono, campa que o passado encerra.


À estrada do progresso toma o leito.
O povo quer seguir: deite-o por terra.
Pereça a tradição! Viva o direito!

Posto nas mãos de um soberano astuto


Muda-se o cetro em mágica varinha.
Do rei toda a nação move-se ao nuto,
Qual boneco de pau puxado à linha.

Ninguém contesta que o reflexo exista;


Mas eu conheço um argumento oposto:
É que do rei não há rubor no rosto,
Ainda que de púrpura se vista.

Que peso o da coroa carregada


De crimes sobre a fronte do rei langue!
Pois que do povo está tinta no sangue
Toda a púrpura é amaldiçoada!

Contra o salteador que nos agride


A reação mortal é permitida.
Todo o rei é ladrão que reincide.
Conseqüência: não tem direito à vida.

Lúcio de Mendonça 1 8 3
S.Paulo, Agosto de 1873

* * *

1 83. Pela primeira vez nos defrontamos, no álbum de Carmo Cintra, com um verdadeiro
escritor. Lúcio de Mendonça é um nome conhecido: foi autor de vários livros e animador
principal da fundação da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira Fagundes
Varela. Morreu ministro do Supremo Tribunal Federal. Pela primeira vez, também, depara­
mos no álbum com o tom revolucionário republicano, de que se encontrarão adiante ou­
tras ressonâncias.
O PATRIARCA E O BACHAREL 195

Cintra,
A ti o meu derradeiro adeus, as minhas primeiras saudades. Deixo para sem­
pre esta doce ilusão da vida acadêmica, esta perfumada manhã de tantos sonos,
dourados sonhos que circularam em torno de nossa fronte, como abelhas em tor­
no da colméia fecunda.
Aos poucos, eu o sei, todas estas caras recordações ir-se-ão apagando.
Outros destinos nos chamam, novos laços tendem a substituir os antigos.
Ontem era pura fraternidade que só a Academia de S. Paulo soube manter,
era esse ansiar contínuo pelo infinito desconhecido. Hoje são os pesares da
separação, a presciência, talvez de que nunca mais tornaremos a ver tanta
coisa que amamos. Amanhã. . . quem sabe o será! A luta das paixões apa­
gando, talvez, esse nobre devotamento por tudo que nos faltava ao coração e
ao espírito. De todo esse desastre procuremos salvar uma coisa, ao menos, a
nossa amizade; procuremos estreitá-la continuamente pela prática de ações
dignas dos sentimentos que alimentamos e das aspirações que tivemos, de
maneira que em cada um de nós cresça, se é possível, esse sentimento de
mútuo apreço e de simpática afeição. A ti, o meu derradeiro adeus, pois que
foste o último dessa altiva e dedicada falange de amigos sinceros que en­
contrei nesses belos arraiais da mocidade acadêmica de S. Paulo. Eu sei que
neste momento um justo pesar enluta a tua alma generosa. Isto aumenta
também a tristeza do meu adeus, mas não diminui a confiança que tenho
em teu futuro. Procura a tua vocação, segue-a com verdadeiro entusiasmo,
luta como um espírito valente e vencerás necessariamente. Quanto a mim,
hei de longe bendizer todos os teus esforços, e guardar a lembrança do tem ­
po que passamos juntos.
São Paulo, 5 de Novembro de 1873
Candido Drummond Furtado de Mendonça1 84

***

Cintra.
Na última hora da tua partida o que posso dizer-te? Sabes que sou teu ami­
go, e crê - quando abrires o teu álbum verás uma de suas folhas ocupadas por

1 84. Irmão de Salvador e Lúcio de Mendonça.


196 LU!S MARTINS

mim - e então lembrar-te-ás das nossas reuniões, segredos, prosas. Adeus, meu
Cintra, e desejo-te milhares de felicidades.
O teu amigo ex carde
A.Sanchez

***

Cintra.
Duas coisas me unem muito estreitamente a ti - a amizade e a idéia que
trazemos sempre na mente - a República; a primeira, que guardamos no co­
ração, será conservada com toda a sinceridade por mim, a segunda nós jun­
tos trataremos de procurar quem, unindo-se a nós, possa nos ajudar a traba­
lhar para o dia da nossa redenção.
Já tenho dito demais, pois daqui a duas horas vais deixar Pernambuco, e
quem sabe se para sempre. Adeus. Um abraço em nossos irmãos.
Francisco Pitanga Filho
Recife, 12 de Novembro de 1874

O meu nome abaixo desta linha lembrará ao Cintra que ele me encon­
trou em um dia de sua vida -
M. Fernandes Barros
Recife, 12 de Novembro de 1874

***

O BRASIL

O que é o Brasil? Um vasto Império


De um povo escravo e quase sem cultura,
Que humilde se sujeita a ferradura
De um governo cruel e sem critério.

Aqui o ser honrado é vitupério;


Confiar no direito é grã loucura;
O PATRIARCA E O BACHAREL 197

Pois só pode fazer boa figura


Quem for servil ou não passar por sério.

O jornalismo aqui é uma quimera,


Que só vive incensando aos figurões,
Dos quais gordos proventos sempre espera.

Eis o que é esta terra dos barões,


Na qual já se olvidou de toda a era
em ( que) a virtude e a honra eram brasões!

Re. , 20 de Novembro de 1879


Laudelino Rocha

* * *

Meu Cintra: em álbuns só devem escrever amigos; por isso aqui assino
o meu nome que testemunhará sempre que sou teu amº e que sempre de ti
me recordarei.
J.Palma

***

Meu caro Cintra


Não bastam estas palavras escritas rapidamente para mostrar-te toda a
estima, que te consagro, depois de alguns dias de íntima e agradável convi­
vência, que me fez conhecer as belas qualidades de teu coração e de teu espí­
rito...Apenas posso pedir-te acertares um saudoso abraço, como lembrança
destes bons tempos, que passamos no Rio de Janeiro.
Teu
Epaminondas Ferreira
198 LUÍS MARTINS

Amigo
O que será possível escrever em teu álbum, eu pobre de inteligência, que
nada sei, que tudo ignoro? Mas, se não escrevo, é certo que garatujo, e ao meu
propósito é quanto basta, porque, assim me exibindo, faço sacrifício, e quem
faz sacrifício dá provas de amigo. Pois bem - assim digo-te: que com tua gran­
de alma, com o teu grande desinteresse, com tua lúcida mas modesta inteli­
gência, estais fadado a seres em nosso país um poderoso paladino da grande
causa que pleiteamos e que, como sabes, foi o laço que nos ligou em cordiais
relações de amizade, colocando-nos ao lado um do outro - mas para chegar a
isto cumpre que sejas sempre atento e vigilante - a fim de evitares as ciladas
e os enganos que de necessidade haveis de encontrar no grande mundo, cujas
portas se vos abriram. Refleti que o homem empenhado pelo triunfo de uma
grande idéia - assemelha-se ao navio em luta com as tempestades do oceano
- e então para evitá-las basta o olhar seguro e severo do que comanda. Eis o
que te posso dizer de momento - para ter ocasião de escrever o meu nome em
uma folha do teu álbum - onde brilha tanta luz e tanta graça.
Recife, 21 de Novembro de 1879
Joaquim S.Cisneros d'Albuquerque

***

AO BRASIL

Não é com ferros, cadeias


que se conquistam lauréis;
o povo esmaga os tiranos
e cospe a fronte dos reis.

Que vale o cetro de ferro?


que vale o manto de ouro?
a liberdade do Povo
é maior, maior tesouro.

Se pra nós não há direitos,


se para nós não há lei,
O PATRIARCA E O BACHAREL 199

os pulsos quebrem cadeias


esbofeteie-se o Rei.

Os filhos dessas montanhas


têm sangue de Briareus,
Sim, o povo Americano
só tem um Senhor, é Deus.

Nós queremos liberdade


Igualdade seja a Lei;
ou não haja rei n' América
Ou o Povo seja o Rei.
Re., 1876
José Pinto Ferreira de Oliveira

***

Meu Caro Cintra.


Como recordação deixo aqui escrito o meu nome. Fazem seis anos que
nos vimos pela primeira vez e logo (deves lembrar-te) nos ligou uma simpa­
tia pura, que bem depressa transformou-se em sincera amizade. O teu trato
jovial e ameno, o teu caráter nobre, a tua inteligência fértil e bem cultuada,
o teu todo enfim contribuiu para isso.
Voltaste mais tarde a esta província e foste para comigo como eu fui para
contigo o mesmo sempre.
Hoje de novo nos encontramos, e a ausência cada vez tornou mais sólidos
e mais doces os laços que unem nossos corações.
Em breve nos separaremos um do outro, cheios de saudades!
Terás em meu pobre peito um altar, e aí terás o incenso que mereces.
Serei contente se quando abrires este álbum , lendo estas páginas, mergu­
lhando-te no passado, disseres: em Pernambuco tenho um amigo dedicado,
um colega que me considera e que se chama
Augusto Sérgio Lopes Lima
Re., 19 de Novembro de 1879
200 LUÍS MARTINS

***

Meu caro Amigo Cintra.


Depois de tão luminosos escritos, o que escreverei em vosso livro? Os
grandes focos de luz derramam intensa claridade.As Estrelas, pequenos cor­
pos fosforescentes, são atraídas pelos grandes - Sol, Lua, etc.
Eu, que mal posso conhecer as letras do alfabeto, no meio destes vultos
que ilustram vosso livro, vou apenas significar minha nulidade.Paciência.
Mas, como nas relações da vida humana, o que mais se deve apreciar é a
sinceridade, posso afirmar-vos que vos consagro sincera estima.
Ide para longe, porém daqúi mesmo meu coração saberá guardar a lem­
brança do amigo sério, do republicano inelutável.A imaginação vence espa­
ços mais rapidamente do que a eletricidade; pelo que ela irá buscar-vos lá
em S.Paulo para ter sempre presente.Aceitai os votos de minha afeição.
O republicano
Romualdo Alves de Oliveira
Re., 22 de Novembro de 1879

***

Ontem, apenas ontem


Te encontrei; e logo o peito
Ao brilho de teus talentos
Ficou de todo sujeito.

Foi lá no vasto oceano,


No seio da imensidade,
Menos vasto, menos grande
Que a minha pobre amizade.

Foi ontem; mas num momento


Virá a separação!
Eu caminho p'r'ocaso,
Tu demandas a amplidão.
O PATRIARCA E O BACHAREL 201

Se encontrares um tropeço
Nessa jornada de glória,
Seguro caminha avante
Que alcançarás a vitória.

Caminha, nauta perdido,


No meio da cerração,
Que a luz mais tarde arrebenta
Do seio da escuridão.

Caminha! E quando tocares


A meta que te seduz,
Eu chorarei de contente
Vendo brilhar tanta luz.
Corte, l º de Setembro de 1872
M.N.P.

***

Meu caro Cintra


Quis a fortuna conceder-me o venturoso ensejo de assistir ao coroamento
dos teus tão sonhados desejos. Vejo-te enfim transpor o limiar da vida pú­
blica, cheio de coragem e de esperança.Eu te bendigo, e auguro-te um futu­
ro cheio de flores.
Re., 11 Nov. 1879
Ferreira de Oliveira

***

Meu Cintra:
Abraço-te. Afastado de ti nas convicções políticas, minha alma se ajoelha
respeitosa ante o teu talento e o teu caráter: nos tempos que correm a amizade é
uma nota que se troca no primeiro banco defalsidade que se encontra, ou então
é uma letra sacada aos interesses do futuro, eu me felicito por seu teu amigo, é
uma honra que me eleva, sendo meu nome repetido por ti nasfileiras democra-
202 LUÍS MARTINS

tas, onde a verdade e a justiça serão sempre o móvel de teus atos. Sêfeliz e não te
esqueças do teu contemporâneo e
amigo certo
J.Monteiro Peixoto
Re.18 de Novembro de 79

***

Cintra
É provável que não nos vejamos mais; lá estarei, porém, no meu Pará para
aplaudir os teus talentos, o teu caráter e os teus nobres esforços pela nossa cau­
sa política.
Peço-te que te lembres um pouco do
Amigo, col. e correligionário
Amazonas d'Almeida

***

Amigo Cintra
Para manifestar-te os sentimentos de verdadeira amizade que me inspi­
ram tua republicana individualidade, não recorrerei aos atavios e filigranas
quintilinescas.Falar-te-ei somente a linguagem singela e eloqüente do cora­
ção e cedendo ao seu magnético impulso deixarei nesta folha de teu álbum
como eterna lembrança esta simples frase:

"Apesar da divergência profunda que existe entre


nossas idéias políticas e religiosas, crê -
serei sempre teu amigo e admirador de teu belo
caráter. Ah! Se todos os nossos grandes
homens fossem assim! "

Recife, 16 de Novembro de 1879


Tarquínio de Souza Filho
O PATRIARCA E O BACHAREL 203

***

Dr. Cintra,
Católico e conservador, saúdo de coração ao livre pensador e ao republicano
convencido, e desvaneço-me em ser um dos admiradores do seu vigoroso talento
e excelente caráter.
Recife, 16 de Novembro de 1879
José Augusto de Souza Amarantho

***

Ao Dr. José Pinto do Carmo Cintra.


Que posso eu, depois de tão brilhantes escritos, pobre de inteligência e de
instrução, escrever no vosso álbum? Mas é uma lembrança que pedis, vou
escrever. Vou gravar nestas páginas um voto pela amizade que vos consagro.
Vós que possuis a beleza física, moral e intelectual, compreendeis melhor do
que ninguém esta mimosa flor que se chama - amizade.
Faço votos para que façais feliz viagem e peço-vos que não vos esqueçais dos
amigos que cá ficam.
Aceitai os votos da mais pura amizade que vos dedica a amiga dedicada
Josepha Agueda Felisbello de Oliveira
Recife, 22 de Novembro de 1879

***

Cintra
É sempre duro ao coração do amigo a separação do amigo e a ausência
da pessoa que estimamos é muitas vezes funesta à amizade. Não digo sem­
pre, porque quando a amizade é profunda e sincera, nem o tempo que tudo
destrói nem a ausência que tudo faz esquecer, nem a distância, o longo in­
tervalo dos mares e a incerteza da volta, é capaz de enfraquecê-la. Não temo
pois pela constância de tua amizade, e se escrevo estas linhas não é para que
nunca te deixes de lembrar do amigo, que aqui fica, mas para dar-te teste­
munho do quanto te estimo e expansão aos sentimentos q nutro a teu respei­
to e me transbordam d'alma. Sê feliz no meio dos teus e permita Deus que
204 LUfS MARTINS

um dia eu possa, apontando às plagas paulistanas, voar ao teu Amparo a


estreitar-te num abraço e apertar a mão daqueles que te deram o ser e que,
sem ter ainda a felicidade de conhecer, estimo.
Recife, 22 de Novembro de 1879
João Pedro de Saboia Bandeira de Mello

* * *

Caro Cintra
Ao apagar-se essa fase de nossa vida boêmia cheia de tão gratas recorda­
ções revela-me consagrar em teu Livro Querido - uma lembrança do nosso
conhecimento: se não é ele o fato mais eloqüente da vida, que ontem deixei, é
ao menos o que mais profundamente desafiou ao coração o princípio da fra­
ternização, porque simboliza a minha homenagem ao teu caráter reto e se­
gura inteligência: essa dualidade preciosa que te levará bem longe. Pois bem,
quando algum dia, cansado do Combate das dificuldades que se apresentam
ao homem de letras no Brasil, lembra-te do sábio preceito - que o mérito e
o trabalho têm sempre uma recompensa na consciência social, e prossegue.
Agora um pedido: quando levares a vista por estas páginas cheias de tanta
sinceridade, porque vem da mocidade, não te esqueças daquele que ao dei­
xar o teu Amparo levou a alma enlutada de saudades, mas o coração con­
victo da grandeza desse bom povo, e então tinhas o mesmo mundo de emo­
ções que acomete
O Teu do Coração
Antonio Madeira
Amparo, 16 de Novembro de 1880
Este livro foi impresso no inverno
de 2008, na Prol Gráfica, em fonte
Minion, corpo 1 0,5, entrelinha 14.

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