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ed.

21
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES
ECONÔMICAS E IDENTIDADES
CULTURAIS

Instituições e crise
a emergência de novas práticas culturais

(Re)produção cultural
a economia política do imaginário

Saberes em movimento
imigração, trânsitos e diásporas
Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. - N. 21 (nov. 2016/maio 2017). –


São Paulo : Itaú Cultural, 2007-.

Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa)


ISSN 2447-7036 (versão online)

1. Política cultural. 2. Cultura e política. 3. Representação cultural. 4.


Identidade cultural. 5. Racismo. 6. Privilégio.
expediente
REVISTA Supervisão de revisão Produção
OBSERVATÓRIO Polyana Lima Rafael Figueiredo

Edição Revisão
Silvio Luiz de Almeida Equipe Itaú Cultural NÚCLEO DE
COMUNICAÇÃO E
Conselho editorial RELACIONAMENTO
Luciana Modé EQUIPE ITAÚ
Rafael Figueiredo CULTURAL Gerência
Ana de Fátima Sousa
Projeto gráfico Presidente
Marina Chevrand/ Milú Villela Coordenação de arte
Serifaria Jader Rosa
Diretor
Design Eduardo Saron Curadoria de imagens
Serifaria André Seiti
Superintendente
Produção gráfica administrativo Produção editorial
Lilia Góes Sérgio Miyazaki Raphaella Rodrigues
Toninho Amorim

Ensaio artístico NÚCLEO DE


Sidney Amaral INOVAÇÃO/
OBSERVATÓRIO
Ilustração
André Toma Gerência
Marcos Cuzziol
Preparação de texto
(terceirizada) Coordenação do
Rosana Brandão Observatório
Luciana Modé
aos leitores

Se é certo que não se pode reduzir a cul- As obras de Luiz Gama, Castro Alves,
tura às condições da economia e da política, Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro
tampouco a separação total entre cultura, Lobato, Jorge Amado, Graciliano Ramos e,
economia e política nos ajuda a compreen- em outros contextos, James Baldwin, Toni
dê-la. Os conflitos sociais e suas dimensões Morrison, F. Scott Fitzgerald, John Stein-
raciais, étnicas e religiosas giram em torno beck, Wole Soyinka, Salman Rushdie, Gabriel
de diferentes formas de conceber e significar García Márquez, Haruki Murakami e Chima-
a realidade e, portanto, de definir posições manda Ngozi Adichie são alguns exemplos,
individuais e coletivas diante da vida. apenas no campo da literatura, de como a arte
Por outro lado, a dinâmica da econo- desvela a dimensão cultural – e ideológica,
mia torna-se incompreensível se apartada por isso tantas vezes oculta – dos grandes di-
dos processos culturais. Lembremo-nos lemas e das grandes transformações socioe-
de que o chamado “mercado” – inclusive o conômicas e seus impactos na subjetividade.
“cultural” – é, antes de tudo, um complexo Convido leitoras e leitores a uma refle-
de relações sociais. Assim, todas as gran- xão acerca do tema “Política, transformações
des transformações socioeconômicas da econômicas e identidades culturais”. Abor-
história foram acompanhadas de profun- daremos aqui, a partir de diferentes enfo-
das mudanças culturais que implicaram a ques, o modo como as transformações das
reorientação de valores e de sentimentos. condições objetivas (estruturas da política e
A tensa relação entre cultura e economia da economia) manifestam-se concretamente
política foi muito bem captada por Walter nas condições subjetivas (identidades indi-
Benjamin ao afirmar que “nunca houve um viduais e suas narrativas e formas de perten-
monumento da cultura que não fosse tam- cimento de grupo) e, de outro modo, como o
bém um monumento da barbárie”1. subjetivo se manifesta como dado objetivo
Para tratar de tão importante questão, na dinâmica das estruturas sociais.
este número da Revista Observatório é dedi- Os artigos e a entrevista que compõem
cado à dimensão político-econômica da cultu- este número da Observatório traduzem a
ra e à dimensão cultural da economia política. tentativa de reaproximação entre cultura e
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

política, ambas consideradas manifestações protagonismos midiáticos e culturais”,


concretas, cotidianas e, ao mesmo tempo, Dennis de Oliveira oferece a relação entre
globais e processuais. as transformações midiáticas ocorridas
A relação estrutural entre cultura e po- nas últimas décadas e as mudanças cultu-
lítica é destacada pelo fato de que todos os rais expressivas responsáveis por alterar a
autores e autoras deste número da Obser- percepção subjetiva sobre a realidade e os
vatório são negros e negras que, a partir de significados da vida política. Em “Privilégio
experiências intelectuais e políticas distin- e opressão”, Adilson José Moreira discute
tas (mas que em algum momento se unem na como o mito da neutralidade estrutura o dis-
negritude), pretendem captar a inextrincável curso jurídico, fazendo com que privilégios
relação entre o universal e o particular; em se naturalizem nas práticas culturais. Már-
especial se trata de compreender as nuances cio Farias, em “Imigração na sociedade con-
da tensa relação entre o político e o cultural. temporânea: reestruturação produtiva do
Quanto aos artigos, a abordagem do capital e das relações sociais de produção”,
tema será feita por dois eixos temáticos mostra como a imigração é parte da lógica
complementares: excludente da economia contemporânea. E
no artigo intitulado “Estado e cultura: polí-
1. Cultura e estrutura: o objetivo na ticas de identidade e relações econômicas”
constituição do subjetivo discorro sobre a relação entre a formação
A cultura pensada em sua materialida- do Estado, as crises econômicas e o conflito
de, como prática social que molda os valores, das identidades.
os múltiplos sentidos e as diferentes visões
que estão na base dos processos políticos e 2. Cultura, produção e reprodução do
econômicos. Sob esse eixo, a reflexão está imaginário político: o subjetivo na
no papel das instituições – em especial o sua manifestação objetiva
Estado – perante as transformações socioe- Um dos grandes desafios propostos
conômicas que desencadeiam processos de neste eixo é pensar a cultura como econo-
conformação ou de resistência no plano da mia política do imaginário. Nesse sentido,
representação cultural. retoma-se a discussão sobre o processo de
No artigo, “Cultura e crise: transfor- formação dos sujeitos, as manifestações
mações sociais e emergência de novos estético-políticas da identidade cultural e
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  11

seus espaços conflituosos de produção e re- da matriz de pensamento modernista” uma


produção. Para tanto contamos com Rosane perspectiva “afro-periférica”, para então fa-
Borges, que no artigo “Imaginário e política: zer submergir da história e da memória “a
a constituição material da subjetividade” cidade negra que habita São Paulo”.
trata da relação entre a teoria da formação Por fim, esta edição da Observatório traz
do imaginário social e os movimentos reais uma entrevista com um dos maiores pensa-
da economia e da política. Djamila Ribeiro, dores da cultura de nosso tempo: Kabengele
em “O que nos torna mulheres? Os perigos Munanga, professor titular do departamento
de novas normatizações e a importância do de antropologia da Faculdade de Filosofia,
caminho descontínuo”, fala sobre como por Letras e Ciências Humanas da USP. Nessa
trás da forma do feminino podem ser vis- entrevista, o professor relembra sua traje-
lumbrados os mais diversos modos de ser tória e reflete sobre os desafios de pensar a
mulher. A compreensão da dinâmica socio- cultura como elemento central da vida social
cultural da multiplicidade do feminino pode e política. Ficam aqui registrados nossa ho-
ser a chave para a transformação política menagem e nosso agradecimento ao mestre
das relações de gênero. Kabengele Munanga.
Na sequência, em “Artes e culturas
não hegemônicas no Brasil: uma discussão Silvio Luiz de Almeida (editor)
necessária”, Nelson Fernando Inocêncio
da Silva nos oferece uma instigante leitura
das culturas negra, indígena e popular como
formas de resistência política. Goli, em “Per-
cepções do Atlântico – antropologia estética,
produção de conhecimento e antirracismo”,
discorre sobre a produção de conhecimento
no campo da antropologia estética por meio
Notas
do conceito de terceira diáspora. E, por sua
vez, Salloma Salomão traz para a revista o
1 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de
texto “Que cidade te habita? Sampa negra: história. In: ______. Magia e técnica, arte e
periferia, contracultura e antirracismo”, que política: ensaios sobre literatura e história da
em tom ensaístico opõe à “narrativa única cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 225.
9. Aos leitores
Silvio Luiz de Almeida

1. CULTURA E ESTRUTURA:
O OBJETIVO NA CONSTITUIÇÃO
47. Imigração na sociedade
contemporânea: reestruturação
DO SUBJETIVO produtiva do capital e das relações
sociais de produção
20. Cultura e crise: transformações Márcio Farias
sociais e emergência de novos
protagonismos midiáticos e culturais 59. Estado e cultura: políticas de
Dennis de Oliveira identidade e relações econômicas
Silvio Luiz de Almeida
30. Privilégio e opressão
Adilson José Moreira

Os textos/entrevistas desta revista não necessariamente refletem a opinião do Itaú Cultural.


sumário

2. CULTURA, PRODUÇÃO E
REPRODUÇÃO DO IMAGINÁRIO
112. Percepções do Atlântico –
antropologia estética, produção
POLÍTICO: O SUBJETIVO NA SUA de conhecimento e antirracismo
MANIFESTAÇÃO OBJETIVA Goli Guerreiro

3.
78. Imaginário e política:
a constituição material da
subjetividade DA PONTE PRA CÁ
Rosane Borges
130. Que cidade te habita?
86. O que nos torna Sampa negra: periferia,
mulheres? Os perigos de novas contracultura e antirracismo
normatizações e a importância Salloma Salomão

4.
do caminho descontínuo
Djamila Ribeiro

96. Artes e culturas TRÂNSITOS ÁFRICA-BRASIL


não hegemônicas no Brasil:
uma discussão necessária 168. Entrevista
Nelson Fernando Inocêncio da Silva Kabengele Munanga
Sidney Amaral (1973)
É licenciado em artes plásticas pela Fundação Armando
Alvares Penteado (Faap). Em 2016, participou de uma
residência artística em Gludsted, na Dinamarca, e em
2013 ficou um período no Tamarind Institute (EUA),
onde fez litografias trabalhando o tema da identidade
racial no Brasil e nos Estados Unidos.
Os desenhos criados para este ensaio foram construídos a partir das práticas de ano-
tações e apontamentos de desenhistas documentaristas/viajantes do século XVIII e XIX,
porém, buscando um olhar e observações sobre as coisas e objetos banais da casa, do coti-
diano. Muitas vezes, nosso olhar contaminado não se apercebe de como essas coisas/objetos
dizem sobre nossa identidade, sobre o que somos e quem somos. Assim, elas convidam o
observador a entrar num lugar, numa casa, num Brasil muitas vezes difícil de enxergar, de
falar exatamente o que ele é a partir do íntimo e pessoal.
18 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  19

1. CULTURA E ESTRUTURA:
O OBJETIVO NA CONSTITUIÇÃO
DO SUBJETIVO

20. CULTURA E CRISE: TRANSFORMAÇÕES


SOCIAIS E EMERGÊNCIA DE NOVOS
PROTAGONISMOS MIDIÁTICOS E CULTURAIS
Dennis de Oliveira

30. PRIVILÉGIO E OPRESSÃO


Adilson José Moreira

47. IMIGRAÇÃO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA: REESTRUTURAÇÃO
PRODUTIVA DO CAPITAL E DAS RELAÇÕES
SOCIAIS DE PRODUÇÃO
Márcio Farias

59. ESTADO E CULTURA: POLÍTICAS


DE IDENTIDADE E RELAÇÕES ECONÔMICAS
Silvio Luiz de Almeida
20 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

CULTURA E CRISE:
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E EMERGÊNCIA
DE NOVOS PROTAGONISMOS MIDIÁTICOS
E CULTURAIS

Dennis de Oliveira

Este artigo trata dos impactos causados no campo da cultura e da comunicação com a
emergência do que conceituamos de novos protagonistas midiáticos, que se legitimam não
mais pelo capital cultural no sentido dado por Pierre Bourdieu (domínio de conhecimentos
legitimados socialmente), mas pela competência no manejo dos recursos existentes nas
novas tecnologias de comunicação e informação. Há, assim, uma perda constante da auto-
ridade de fala do campo intelectual-acadêmico em benefício de novos atores que modificam
o cenário da cultura.

E
m 2011, a cantora brasileira Maria O interessante nessa polêmica é que
Bethânia teve aprovado no Minis- as posições de um lado e de outro transcen-
tério da Cultura um projeto na Lei deram o tradicional espectro político-ideo-
Rouanet no valor de R$ 1,3 milhão. O proje- lógico. Primeiro, houve uma manipulação
to em questão tratava da criação de um blog grosseira na informação veiculada por vários
para divulgação de poesias musicadas pela órgãos da mídia hegemônica, dando conta de
voz da cantora1. que Bethânia iria receber R$ 1,3 milhão para
A gritaria foi grande. Os argumentos seu projeto, quando na verdade ela estava
contrários à aprovação centravam-se no fato autorizada a captar tal valor na iniciativa
de que a cantora já era uma celebridade e, privada por meio da lei de incentivo fiscal.
portanto, não necessitava de um aporte de re- Segundo, não se tratava apenas de um blog –
cursos via isenção fiscal para um trabalho de muitos questionavam a cantora acerca do
sua autoria. Já os defensores da cantora ar- porquê de ela não usar as ferramentas gratui-
gumentavam que se tratava de uma iniciativa tas existentes para criar esse tipo de página
que ajudaria a popularizar uma modalidade na internet – mas também da produção de pe-
de expressão cultural pouco difundida – a quenos vídeos para ser exibidos na internet.
poesia – e, para tanto, nada melhor que ser O mais interessante, entretanto, é que
protagonizado por uma cantora popular. No esse episódio foi duramente criticado por
fim, a cantora desistiu do projeto. meios de comunicação que têm uma linha
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 21

editorial contrária ao espectro político do conceito, entretanto, intensifica a ambigui-


governo federal, embora o fundamento legal dade e a complexidade do próprio conceito,
da aprovação do projeto tenha sido justa- segundo Terry Eagleton (2005). Para o pen-
mente o principal instrumento de financia- sador inglês, cultura é diferente de natureza
mento à cultura de governos alinhados com (o que é cultural não é natural), porém brota
a visão da maioria da mídia hegemônica. Em dela – cultura vem do latim colere, que quer
outras palavras, as críticas à aprovação do dizer “cultivar”.
projeto de Bethânia se inseriam na perspec- Avançando mais na dimensão ambígua
tiva de uma pretensa “má administração” da e complexa, Eagleton afirma que cultura é
política cultural. liberdade e determinismo. A cultura tanto é
Citamos esse exemplo recente para um processo de determinação de comporta-
apontarmos os dilemas pelos quais passa mentos, como também possibilita a criação,
o debate sobre cultura no mundo contem- a inovação. A cultura, por ser um cultivo da
porâneo. Transformações profundas nas natureza, implica uma libertação dos de-
formas de sociabilidade – na qual destaca- sígnios naturais. Cultura é mudança (é por
mos mudanças significativas nos modos de ela que se modificam significados) como
transmissão simbólica que redundam em também identidade. Ela é o dado e o criado.
novas tecnologias de socialização –, bem Essas ambivalências compõem este campo
como as reorientações socioeconômicas complexo que é a cultura, segundo Eagleton.
daí advindas impactam os paradigmas do O pensador britânico conclui que cultura é
campo da cultura. Este artigo, sem ter a a transcendência da natureza construída a
pretensão de esgotar o assunto, pretende partir dela própria.
apresentar algumas ideias para contribuir Um elemento que impactou essa ambi-
com esta reflexão. valência do conceito de cultura, não na sua
negação, mas na sua radicalização, foi a crise
E o que é cultura? da concepção autocentrada de sujeito ilumi-
Há um bom tempo, o conceito de cul- nista. Para Stuart Hall (2005), essa crise, que
tura transcende o da dimensão meramente está mais exposta neste período conhecido
estética, ampliando-se para todos os pro- como “pós-moderno”, tem início nas próprias
cessos de construção de significados. Esse descobertas científicas do período moderno.
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Ele cita a tradição marxista, que quebra o pa- [...] os fenômenos sociais podem ser
radigma de autocentramento e linearidade vistos como ações intencionais levadas a
do sujeito com o conceito de classes sociais; a cabo em contextos sociais estruturados. A
psicanálise freudiana, com as teorias da frag- vida social é feita por indivíduos que per-
mentação intrassujeito pelas categorias do seguem fins e objetivos os mais variados.
consciente e do inconsciente do ser huma- Assim fazendo, eles sempre agem dentro
no; a linguística saussureana, apontando as de um conjunto de circunstâncias previa-
distintas formas de expressão e codificação mente dadas que proporcionam a diferentes
simbólica do ser humano; e, finalmente, os indivíduos diferentes inclinações e oportu-
movimentos feministas contemporâneos dos nidades. Estes conjuntos de circunstâncias
anos 1960, que colocam a temática de gênero podem ser conceituados como “campos de
como categoria socialmente construída. interação” para usar um termo fertil-
Ocorre, para Hall, um múltiplo des- mente desenvolvido por Pierre Bourdieu.
centramento do sujeito que se expressa nas (THOMPSON, 1998: p. 21).
múltiplas perspectivas de compreensão, ex-
pressão e ação. A cultura, vista durante certo Mais adiante, o autor afirma que os
tempo como um mecanismo de formação de campos de interação se transformam em
determinada tipologia de sujeito para uma instituições quando o conjunto de regras,
ordem sociopolítica (Eagleton), se esvai à relações sociais e recursos mobilizados são
medida que tal ordem também perde a sua estáveis. E quando as posições de dominân-
condição de unicidade. cia e subordinação se tornam estáveis tais
Com isso, as instituições tradicionais campos de interação se transformam em
da transmissão cultural entram em crise. Se estruturas sociais.
a ordem sociopolítica para a qual a cultura O que importa nessa conceituação de
como formação de determinada tipologia é Thompson construída a partir de Bourdieu
questionada, e se outras sociabilidades bus- é a ideia de capital. Capital, aqui, são os re-
cam sua legitimidade, consequentemente cursos mobilizados por determinados seg-
outras modalidades de transmissão cultural mentos sociais ou indivíduos que buscam
se fortalecem e se legitimam a partir de pa- exercer um poder dentro de determinados
radigmas que não o de enquadramento nesse campos de interação. Assim, as relações so-
ordenamento social. ciais dentro dos campos de interação são
constantes conflitos de busca ou de manu-
Transformações institucionais tenção dos capitais ou, ainda, de exercício
na transmissão do poder e resistência a ele.
Recorrendo ao conceito de Bourdieu A arquitetura do poder social, segundo
(1983, 1989 e 2000), John B. Thompson Thompson, reside na ação de quatro dimen-
considera que os seres humanos estabele- sões articuladas: poder econômico, poder
cem relações com outros semelhantes dentro político, poder coercitivo e poder simbólico.
de certas circunstâncias e condições. Diz ele Poder, para Thompson, é a mobilização de
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 23

recursos ou capitais dentro de instituições Isso ocorre, ainda segundo Thompson


paradigmáticas para que determinadas von- (2002), porque tais dispositivos constroem
tades (ou sentidos) sejam mobilizados em formas específicas de interação social em
favor de certos segmentos sociais. que as características convencionais (lin-
O poder econômico é exercido pela guagem) e estruturais das expressões sim-
mobilização de capital econômico (recursos bólicas se modificam.
materiais), e a instituição paradigmática (o Uma questão abordada pelo autor é o ad-
lócus) onde é exercido são as empresas co- vento da televisão e o seu uso, cada vez mais
merciais. O poder político é exercido pela frequente, pelos ocupantes de cargos públicos
mobilização do recurso da autoridade e o seu para interagirem com aqueles que deveriam
lócus são as instituições políticas do Esta- representar. O caráter icônico e a situação de
do. O poder coercitivo tem como recursos uma quase-interação direta entre os emisso-
a força física e armada, e o seu lócus são as res e os receptores da mensagem constroem
instituições coercitivas militarizadas (como uma atmosfera de intimidade, quebrando o
a polícia e as Forças Armadas). O poder sim- distanciamento existente entre tais sujeitos.
bólico, por sua vez, se exerce pelo recurso dos Ao mesmo tempo que tal situação é aproveita-
meios de comunicação e informação, e o seu da por determinados representantes políticos,
lócus são as instituições culturais (educação, para que se prevaleçam certas características
igreja, indústria cultural). não necessariamente presas a um universo
Thompson (2002) aponta que no sé- da racionalidade – como o carisma e a bele-
culo XVII houve mudanças significativas za física –, também traz armadilhas como a
em termos institucionais na transmissão presença cada vez maior de situações da vida
de informações. O surgimento da imprensa privada no universo público, uma das prin-
dá início à constituição de dispositivos le- cipais características do “escândalo político
gitimados socialmente para transmitir in- moderno”, segundo Thompson (2002).
formações e, mais tarde, com o avanço das O que Thompson traz de novo na sua
tecnologias de comunicação tais dispositi- reflexão é uma mudança paulatina, porém
vos se transformam em novas fronteiras de consistente, das características do poder
expansão do capital. simbólico exercido. O exercício do poder
A consolidação desses novos disposi- simbólico mobiliza o capital simbólico, no
tivos institucionais altera a forma de trans- sentido dado por Bourdieu, o “prestígio” exis-
missão cultural e, diante disso, as formas de tente em determinado campo de interação.
compreensão e valorização das expressões Bourdieu fala do capital simbólico como
simbólicas. Thompson considera que os um atributo obtido por meio, por exemplo,
mecanismos de atribuição de valor às ex- do domínio de certo repertório de conheci-
pressões simbólicas são influenciados pelo mentos legitimados em determinado cam-
contexto socialmente estruturado e, desse po de interação – como o conhecimento de
modo, ele destaca os mecanismos de trans- obras clássicas prestigiadas em um campo
missão das formas simbólicas. do saber – que confere a tal pessoa uma
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 25

“distinção” das demais, um “prestígio” que se atuação em determinada ordem sociopolí-


transforma em um mecanismo de exercício tica – a democracia, o exercício da cidada-
de poder (BOURDIEU, 1989). nia e a participação na esfera pública – e que
Na indústria da comunicação e da cul- esse ordenamento sociopolítico está fundado
tura, determinados personagens têm poderes na racionalidade como fica tal ordenamen-
distintos para, por exemplo, atribuir valor às to com sujeitos sendo formados a partir de
suas opiniões pessoais em razão da posse dis- processos culturais baseados em outras pre-
to que é chamado capital cultural (repertório missas que não a do capital cultural?
de conhecimentos legitimados). Conforme
afirma Thompson em Ideologia e Cultura Os novos protagonismos midiáticos
Moderna, a opinião de um curador do Museu Voltando ao caso da cantora Maria
Guggenheim tem mais peso que a de um tran- ­Bethânia, boa parte de seus defensores con-
seunte qualquer que tenha visitado uma expo- siderou uma injustiça a forma como foi tra-
sição de artes plásticas. (­THOMPSON, 2000). tado o caso, levando-se em conta a grande
Isso ocorre porque a relação entre os contribuição que a artista exerceu na Música
meios de comunicação e o público é movi- Popular Brasileira e na cultura nacional.
da por credibilidade e encantamento. Para Façamos uma conexão desse caso de
tanto, o uso do capital simbólico dos seus Bethânia com a ação desenvolvida pela blo-
protagonistas é fundamental para que se gueira Stephanie Ribeiro, estudante da PUC/
mantenha esse exercício do poder. Campinas e militante do movimento negro,
Entretanto, tal processo sofre um im- contra o uso do black face na peça A Mulher
pacto com a consolidação dos mecanismos do Trem, da companhia de teatro Os Fofos
de quase-interação de que fala T ­ hompson. Encenam. A ação da estudante repercutiu
Com eles, outras características nessa mo- nas redes sociais, e o diretor da peça, Fernan-
dalidade de transmissão sinalizam para a do Neves, pediu desculpas a quem se sentiu
emergência de novos recursos, para além do ofendido e retirou a máscara. O Itaú Cultural,
capital cultural propriamente dito. Há uma que seria o palco do espetáculo, cancelou a es-
erosão constante do poder simbólico do treia e realizou um debate sobre o tema, com
“curador do Museu Guggenheim” em bene- a presença, inclusive, de Stephanie Ribeiro.
fício de sujeitos que, desprovidos de capital Nos dois casos, observamos a confron-
cultural, mobilizam outros recursos mais tação de expoentes do campo intelectual-
adequados às novas modalidades de trans- -artístico, com evidentes repertórios que
missão de quase-interação. configuram um capital cultural por pessoas
Isso pode parecer uma democratiza- que mobilizaram outros recursos. Nos dois
ção ou uma superação do poder aristocrá- casos, o campo em que se desenvolveram
tico de uma “cátedra de acadêmicos”. Mas tais conflitos foi a configuração dos meios
se levarmos em conta a noção de Eagle- de comunicação em rede.
ton de que a cultura é um processo peda- As tecnologias de informação e comu-
gógico-ético de formação do sujeito para nicação, sustentáculos da nova configuração
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de organização do capital global, ao ser comunicação. Em um contexto de tecnologias


apropriadas por um número cada vez maior de comunicação ponto a ponto, a construção
de pessoas, permitem que cada vez mais e das celebridades está concentrada nas mãos
mais sujeitos passem a também emitir opi- de determinadas elites que controlam os
niões, ideias e informações. É o surgimento pontos de emissão. Porém, em um contexto
do que chamamos de novos protagonismos de tecnologias de comunicação em rede, esse
midiáticos. O capital cultural, recurso cen- poder de construir celebridades se desloca
tral para se conferir a autoridade de fala, para a competência de mobilizar sentimentos
continua existindo, mas concorre com ou- imediatos. De uma forma ou de outra, a cele-
tros recursos e atributos. bridade não se move por um discurso que se
Em 10 de junho de 2015, o professor constrói no campo da racionalidade (nem a
Umberto Eco, em discurso proferido na ce- instrumental) e sim no campo das sensibili-
rimônia em que recebeu o título de doutor dades, conforme afirma Muniz Sodré2.
honoris causa na Universidade de Turim, Nesse novo arquétipo da autoridade de
afirmou que a “internet deu voz a uma legião fala, as sensibilidades possibilitam a emer-
de imbecis, e que idiotas têm o mesmo espaço gência de novos discursos e novos saberes
que prêmios Nobel”. O professor Vladimir (propiciando uma ecologia de saberes) e,
Safatle, em coluna intitulada “A miséria da portanto, questionando o monopólio de
cultura” na revista Carta Capital, afirma que ­determinado conhecimento e os mecanis-
“enquanto a última década foi marcada por mos de violência simbólica como os ocor-
um crescimento econômico real e pelo ad- ridos no campo escolar conforme afirma
vento de uma dita nova classe média, a cultu- Pierre ­Bourdieu. Porém, também possibili-
ra brasileira parece em ritmo de estagnação” tam que os recursos das sensibilidades sejam
(CARTA CAPITAL: 27 mai. 2012). mobilizados para interditar qualquer debate
São reações típicas de figuras que per- racional sobre temas de relevância pública.
ceberam o refluxo desse recurso no campo de Em outras palavras, a ideologia – na defini-
interação cultural. Os repertórios culturais ção dada por Thompson, como atribuição de
concorrem, como mecanismos de obtenção sentidos a serviço do poder – ocorre também
do capital simbólico, com a capacidade de nesse novo campo arquetípico.
manejo da linguagem das redes sociais, com
os valores impostos pelo discurso do marke- Desafios e perspectivas
ting e com outros atributos inerentes aos me- As sociabilidades constituídas com a
canismos de transmissão de quase-interação. ação desses novos protagonistas midiáticos
Em outras palavras, o momento que deslocam o campo dos conflitos. O discurso
observamos é o da transição da autoridade racional, embora tenha a sua presença, con-
de fala do intelectual para a da celebridade. flita com o da “verossimilhança”, isto é, uma
A celebridade é um arquétipo ambí- narrativa em que a sua lógica estruturante
guo. Ela está diretamente ligada à capacida- interna passa a ter o caráter de validade. Des-
de de conquistar visibilidade nos meios de sa forma, narrativas ficcionais passam a ter o
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 27

mesmo peso, na compreensão da realidade, possibilitem ir além dos seus movimentos


com as narrativas técnico-científicas. de busca de legitimidade. A cultura que foi
Além disso, as narrativas são legitima- considerada uma dimensão de constitui-
das não só por quem as emite, mas, funda- ção de uma sociabilidade está na berlin-
mentalmente, por como elas são transmitidas. da – entre reinventar-se dentro das novas
Já não se trata do “currículo” do emissor, mas configurações sociais e dissolver-se em um
da forma como tal mensagem é transmitida e movimento de retrocesso.
as pontes que tal forma constrói nas relações Freud, em O Mal-Estar na Civilização,
com o destinatário. A dimensão relacional afirma:
passa a ter papel fundamental na construção
da credibilidade da narrativa. É por essa razão A questão fatídica para a espécie hu-
que um dos atributos mobilizados pelos novos mana parece-me ser saber se, e até que pon-
protagonismos midiáticos é a identidade. to, seu desenvolvimento cultural conseguirá
A identidade, deslocada e fragmentada dominar a perturbação de sua vida comunal
conforme afirma Hall (2005), vai se recons- causada pelo instinto humano de agressão e
truindo pontualmente em momentos espe- autodestruição (2010: p. 48).
cíficos de conflitos e tensões, de forma que
podemos falar mais em uma “busca por uma Para ele, a cultura é a dimensão da vida
identidade” ou “identificações” (novamente social em que o ser humano transcende o
um conceito de Hall). seu instinto natural de agressão e autodes-
Bauman (2003) afirma que em uma so- truição. O processo histórico mais recente
ciedade na qual se evanescem as instituições mostra algo mais complexo: é na própria di-
sólidas, o indivíduo busca desesperadamente mensão cultural que se sinaliza a total barbá-
referências que propiciem um sentido e um rie ou a plena expressão do caráter agressivo
conforto para a sua existência. A retomada do ser humano.
do conceito de “comunidade”, como lugar
idílico, em que vínculos se sobrepõem à fu-
gacidade dos contratos, é uma dessas buscas.
Nesse sentido, a busca por identidade como
ação existente dentro dessa nova realidade
dos campos de interação é o elemento que
possibilita esses novos acordos simbólicos.
A virulência que permeia determinados Dennis de Oliveira
debates públicos é produto dessa busca de- Professor associado da Escola de Comunica-
senfreada, em que a identidade se configura, ções e Artes da Universidade de São Paulo (USP);
muitas vezes, no temor e na tentativa de ne- coordenador científico do Centro de Estudos La-
gação do outro, do diferente. tino-Americanos sobre Cultura e Comunicação
O desafio dos novos protagonismos mi- (­Celacc) e membro da Rede Quilombação. Contato:
diáticos é construir novas pactuações que dennisol@usp.br.
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:


Editora Zahar, 2003.

BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

______. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

EAGLETON, T. A ideia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco. São Paulo:
Unesp, 2005.

FREUD, S. O mal-estar na civilização e outros textos. São Paulo: Companhia das


Letras, 2010.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-miseria-da-cultura>. Acesso em:
6 abr. 2016.

SODRÉ, M. Antropológica do espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. Estratégias sensíveis. Petrópolis: Vozes, 2006.

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______. Mídia e modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

______. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis:


Vozes, 2002.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 29

Notas

1 O título do projeto era O Mundo Precisa de Poesia, cuja síntese apresentada


pela proponente dizia: “Um blog inteiramente dedicado à poesia.
Diariamente, será publicado um vídeo diferente no qual Maria Bethânia
interpretará uma grande obra em verso ou prosa. A ideia é invadir a internet
com lirismo, delicadeza e difundir a cultura na rede. Será um calendário
virtual, que apresentará ao público 365 pílulas diárias de pura poesia. Uma
forma democrática e idealista de levar poesia para a vida das pessoas por
meio da mais potente ferramenta de comunicação do mundo atual”.

2 Sobre esse assunto consultar a trilogia de Sodré: Reinventando @ Cultura


(Vozes, 1996); Antropológica do Espelho (Vozes, v. 1, 2002, 268 p.) e As
Estratégias Sensíveis (Vozes, 2006).
30 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PRIVILÉGIO E OPRESSÃO
Adilson José Moreira

Este artigo examina um aspecto sempre excluído das discussões sobre a inclusão de mino-
rias sexuais e raciais: as relações entre o privilégio branco e a opressão negra e entre o privilégio
heterossexual e a opressão homossexual, elementos encobertos pela ideologia brasileira da
transcendência racial e pela invisibilidade da heterossexualidade como forma de identidade
normativa. Temos nos dois casos a redução da discussão a uma questão biológica, o que encobre
o caráter eminentemente político desse debate.

O
debate sobre a adequação e a neces- política pública depende então da compreen-
sidade de políticas de inclusão so- são da extensão e das suas consequências da
cial no Brasil envolve uma série de discriminação racial nas relações sociais1.
questões particularmente complexas, como Minorias sexuais formularam uma
demonstra as discussões atuais sobre direi- série de demandas nos últimos 30 anos. Os
tos de minorias raciais e sexuais. A primeira representantes desses segmentos afirmam
questão diz respeito à presença do racismo que a Constituição Federal não permite que
na nossa sociedade. Aqueles que defendem cidadãos permaneçam em uma condição
ações afirmativas atestam que o racismo é de exclusão social indefinidamente2. Eles
um problema social estrutural, posição dis- almejam o reconhecimento como pessoas
tinta dos que são contra essas iniciativas por igualmente dignas e que merecem as mes-
compreendê-lo como um comportamento mas oportunidades e direitos garantidos a
individual. Os que defendem a primeira po- pessoas heterossexuais. Entretanto, lide-
sição alegam que a igualdade racial requer a ranças religiosas e políticas interpretaram
adoção de políticas racialmente conscientes, o avanço de direitos de homens e mulheres
meio necessário para que minorias raciais homossexuais como o prenúncio de uma pos-
possam enfrentar os obstáculos à inclusão sível desestruturação social, pois eles altera-
social. Seus opositores negam o caráter sis- ram o sentido das relações e das instituições
têmico do racismo no nosso país e dizem que sociais, entre elas o casamento. Segundo eles,
suas manifestações devem ser enfrentadas essa instituição tem sido pensada como a
pelas leis que criminalizam essa prática. As união de dois adultos de sexos opostos que
duas perspectivas parecem coincidir em um ocupam papéis claramente definidos dentro
ponto importante: o racismo é a referência de uma relação conjugal. Políticos e juristas
central para a discussão sobre a legalidade de argumentam que uniões homossexuais e he-
ações afirmativas. A defesa ou a crítica a essa terossexuais são essencialmente diferentes,
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 31

motivo pelo qual o nosso sistema jurídico instituições de ensino superior porque a
não deveria equipará-las. Além de ser uma construção de uma sociedade democrática
condição essencial para a procriação, alegam requer a diversificação racial das institui-
esses atores sociais, a diversidade de sexos ções públicas e privadas. A decisão esta-
dos pais é uma condição para um desenvol- belece então uma clara correlação entre
vimento psicológico infantil saudável, sendo igualdade e democracia ao classificar a
um mecanismo facilitador da formação da diversidade racial como um requisito para
identidade heterossexual3. a construção de uma sociedade inclusiva e
A decisão do Supremo Tribunal Fede- justa. Esse objetivo não pode ser alcançado
ral que declarou a constitucionalidade de enquanto os membros de um mesmo grupo
cotas raciais nas universidades públicas racial ocuparem a vasta maioria das posi-
utilizou um argumento que até agora atraiu ções de poder e prestígio4.
pouca atenção dos participantes dessa dis- O acordo que reconheceu uniões ho-
cussão. Entretanto, ele tem consequências moafetivas como uniões estáveis utilizou
significativas para as formas como exami- argumentação semelhante. O ministro
namos questões relacionadas ­Carlos Ayres Britto afirmou
com o tema da igualdade ra- A exclusão social que a falta de acesso a direitos
cial. O ministro relator Ricar- permite que pessoas matrimoniais implica a im-
brancas sempre
do Lewandowiski reconheceu possibilidade de atuação como
ocupem essas posições;
que o racismo estrutura as um agente autônomo no espa-
o racismo reproduz
relações sociais no Brasil, o tanto a desvantagem ço privado, o que contradiz o
que pode ser observado pelo negra quanto o princípio da igualdade, ideal
pequeno número de pessoas privilégio branco. baseado na noção de que uma
negras em cargos de prestígio sociedade democrática não
nas nossas instituições públicas e privadas. pode estar fundada em relações hierárqui-
Segundo ele, a exclusão social permite que cas. A supremacia heterossexual estabelece
pessoas brancas sempre ocupem essas po- essa orientação sexual como um requisito
sições; o racismo reproduz tanto a desvan- para o pleno gozo de direitos e impede a
tagem negra quanto o privilégio branco. Ele construção de uma sociedade verdadeira-
afirma algo que a maioria dos atores sociais mente democrática. Ele argumentou que a
envolvidos na controvérsia sobre inclusão cidadania sexual implica a necessidade de
racial geralmente não reconhece: o privi- democratização do espaço privado para que
légio branco está na base da estratificação os indivíduos possam ter a liberdade de es-
racial existente no Brasil. Essa constatação colher o sexo do parceiro com o qual querem
fundamentou a defesa de cotas raciais nas construir uma vida íntima5.
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Teorias recentes sobre discriminação estereótipos inconscientes que motivam


corroboram a argumentação dos referidos as escolhas de pessoas acreditando estar
ministros. Elas representam uma mudança agindo sem preconceitos, além de poder ser
paradigmática nas pesquisas sobre a opres- produto da simples preferência por indiví-
são social. Esses estudos sempre enfatiza- duos de um mesmo grupo6.
ram a noção de que práticas excludentes Tendo em vista esses fatos, pesqui-
procuram manter uma ordem social basea- sadores começaram a examinar outros
da na estratificação entre diferentes grupos. possíveis mecanismos responsáveis pela re-
Tendo em vista tal postulado, os pesquisado- produção da opressão dentro da sociedade.
res procuraram entender o funcionamento Alguns deles observaram que a discrimina-
de mecanismos discriminatórios; a identifi- ção fomenta desigualdades de status cultu-
cação deles seria suficiente ral e também desigualdades
para a formulação de estra- Afirmava-se até então que materiais. Enquanto certas
tégias efetivas de combate práticas discriminatórias classes de pessoas gozam
às desigualdades. Uma mu- envolvem necessariamente de estima social, outras são
dança significativa ocorreu as noções de arbitrariedade tratadas de forma inferior.
ao longo das últimas décadas e intencionalidade, uma Essa diferença na valora-
nesse campo de pesquisa. premissa que levava os ção dos indivíduos acaba
tribunais a impor àqueles
Afirmava-se até então que funcionando como um cri-
que procuram remédios
práticas discriminatórias tério para distribuição de
para violações de direitos
envolvem necessariamente a obrigação de provar a oportunidades. Algo então
as noções de arbitrariedade intenção de discriminar. fica claro: o tratamento dis-
e intencionalidade, uma pre- criminatório de uma pes-
missa que levava os tribunais a impor àque- soa tem origem em estigmas sociais sobre
les que procuram remédios para violações membros do grupo ao qual ela pertence; isso
de direitos a obrigação de provar a intenção impede que ela tenha acesso a oportunida-
de discriminar. des sociais. Elas serão então destinadas aos
Esse postulado, entretanto, começou membros de grupos majoritários, indivíduos
a ser questionado à medida que os desen- sobre os quais não pesam estereótipos ne-
volvimentos teóricos dessa área mostraram gativos. Assim, pessoas brancas sempre
que muitos tipos de discriminação não im- recebem uma vantagem indevida quando
plicam necessariamente a existência de pessoas negras são discriminadas. Por esse
motivação pessoal. A subordinação pode motivo, ser negro ou ser branco não designa
ocorrer em razão da convergência de des- apenas uma identidade racial. Esses termos
vantagens atuais com outras já existentes, também indicam posições sociais que sig-
de normas que não fazem referências a nificam exclusão ou privilégio7.
características pessoais, mas que causam Aqueles que trabalham nessa área afir-
um efeito negativo sobre um grupo que já mam que o privilégio é um mecanismo de ex-
enfrenta algum tipo de desvantagem, de clusão porque a discriminação não pretende
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 33

apenas afirmar a suposta inferioridade de criar vantagens competitivas para os mem-


minorias; ela procura garantir a permanência bros de grupos majoritários. Por exemplo,
de oportunidades sociais nas mãos daqueles aquelas instituições controladas por pessoas
que fazem parte dos grupos dominantes. A brancas atuam como verdadeiros cartéis
eles são garantidas várias vantagens apenas raciais por reproduzirem formas de discri-
em razão do status que possuem, embora minação que permitem a concentração de
muitos deles frequentemente afirmem ocu- benefícios nas mãos desses indivíduos.
par o lugar que ocupam por mérito pessoal. A Assim, da mesma maneira que cartéis
literatura sobre esse tema afirma que o pri- econômicos dominam o mercado por meio
vilégio é uma vantagem especial atribuída a do controle dos preços e da oferta, cartéis
um número limitado de pessoas que vivem raciais garantem privilégios sociais ao man-
em uma sociedade estruturada a partir de ter minorias raciais fora de oportunidades
diversas diferenças de status. Essas vanta- que poderiam garantir o mesmo status que
gens beneficiam aqueles aos quais elas são pessoas brancas possuem. Isso impede que
destinadas e oprimem aqueles que não têm negros possam competir por oportunida-
acesso a elas. Privilégios sociais são direitos, des nos mesmos termos. Embora muitos
sanções, imunidades, poderes e vantagens argumentem que a discriminação possui
que um grupo majoritário atribui a uma pes- um custo significativo, já que o mercado re-
soa simplesmente por fazer parte dele. Os pri- compensa os mais competentes, o controle
vilégios de certas categorias de pessoas estão sobre o funcionamento das diversas institui-
diretamente relacionados com a opressão ções sociais permite que privilégios raciais
de minorias porque a condição na qual tais sejam mantidos porque toda a estrutura so-
pessoas vivem provoca a contínua privação cial funciona de acordo com os interesses
de oportunidades sociais. Assim, a opressão do grupo majoritário. Práticas discrimina-
acontece porque grupos majoritários têm o tórias ou meras preferências na contrata-
poder de impor a outros rótulos e condições ção fazem com que trabalhadores brancos
que legitimam uma organização social na tenham acesso aos melhores salários. Esse
qual as pessoas ocupam lugares específicos. poder de consumo superior permitirá que
Mais problemático ainda é que a situação de eles garantam melhor educação para os fi-
subordinação de grupos minoritários passa a lhos, os quais não sofrerão exclusão dentro
ser explicada a partir de supostas caracterís- de escolas frequentadas por elites brancas.
ticas desses indivíduos, o que contribui para Nesses lugares os filhos construirão redes
a invisibilidade dos sistemas de privilégio8. de relacionamentos com pessoas brancas,
Os elementos já mencionados apontam cujas famílias ocupam posições de destaque
para um aspecto importante, mas frequen- dentro da sociedade, e estes estarão dispos-
temente ignorado nos estudos sobre os pro- tos a dar àqueles tratamento preferencial em
cessos de exclusão social: eles não implicam processos de seleção, vantagens que serão
necessariamente motivação individual, mas, passadas para a próxima geração, reprodu-
sim, ações coletivas que procuram manter ou zindo assim a estratificação racial9.
Alguns
pesquisadores
observaram que a
discriminação fomenta
desigualdades de
status cultural e
também desigualdades
materiais.”
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Isso também permite a formação de grupos majoritários sem que isso possa ser
uma epistemologia social que torna o pri- visto como inadequado. Sua operação se
vilégio invisível aos olhos dos membros dos torna ainda mais imperceptível em razão da
grupos majoritários. Pessoas brancas não prevalência da defesa da igualdade formal
classificam a si mesmas em termos raciais como forma de justiça racial, um elemento
porque a raça serve apenas para descrever central da percepção social de atores públi-
minorias. Isso significa que a vasta maioria cos e privados.
delas não consegue perceber um aspecto Podemos afirmar que o discurso liberal
importante do sistema de dominação social: dos direitos tem papel central na formação
ser branco significa estar em uma posição da apreensão do mundo. Essa doutrina esta-
na qual não há necessidade de construção belece a proteção das liberdades individuais
de uma consciência racial. Um dos aspectos como o objetivo fundamental do Estado;
centrais dessa epistemologia é a transparên- cria-se a percepção de que todas as pessoas
cia: a raça não tem significação na vida dessa estão em uma situação de igualdade, e que
parcela da população porque não é um crité- o sistema jurídico impossibilita a repro-
rio objetivo de construção da identidade pes- dução de hierarquias sociais. Mas muitos
soal ou de determinação do futuro pessoal. afirmam que o liberalismo é uma forma de
O grupo racial majoritário tem o po- epistemologia que impede o conhecimen-
der simbólico de universalizar seus traços to adequado das dinâmicas sociais. Assim,
culturais e interesses setoriais e, em razão como a moralidade pública característica
disso, as pessoas que fazem parte dele po- das sociedades liberais condena práticas
dem viver sem se preocupar com a raça discriminatórias, o comportamento racista
porque representam a regra universal. Es- apenas expressa a atitude de alguns indiví-
sas representações atuam tanto no plano duos que se afastam do ideal social do tra-
cultural quanto no plano inconsciente, de- tamento igualitário11.
terminando o comportamento daqueles que Observamos no Brasil a longa presença
controlam o acesso a bens e oportunidades. de uma ideologia que poderíamos conside-
O problema com o fenômeno da transparên- rar como um liberalismo racial, discurso que
cia decorre do fato de que a branquitude é aparece em diversos contextos, notoriamen-
um sistema de dominação, uma vez que a te no debate sobre a constitucionalidade de
estrutura de privilégios raciais é construí- ações afirmativas. O liberalismo racial bra-
da tomando-o como uma referência cultu- sileiro é uma forma de epistemologia social
ral universal10. fundamentada no pressuposto de que nossa
Não podemos classificar o privilégio suposta homogeneidade racial exige o tra-
apenas como uma vantagem indevida. Ele tamento simétrico entre negros e brancos.
possui outras dimensões importantes. Ele Sendo a raça uma categoria que não possui
se reproduz dentro da sociedade em razão significação social, ela não pode ser um pa-
da sua invisibilidade, o que permite a ga- râmetro para políticas públicas, pois com-
rantia de oportunidades aos membros de prometeria uma moralidade institucional
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 37

calcada no tratamento igualitário entre como atores sociais interpretam a reali-


pessoas com as mais diversas colorações de dade impede que eles percebam o papel do
pele. O Brasil teria criado uma cultura com privilégio nos processos de estratificação
características claramente humanistas: racial no Brasil.
nosso amalgamento racial e cultural possi- Essa epistemologia social permeia a
bilitou a construção de referências culturais petição inicial da ação judicial que levou
universais para a formação de identidades o Supremo Tribunal Federal a julgar a
individuais e coletivas. constitucionalidade de ações afirmativas.
Se esse liberalismo racial estava ante- Seus autores atribuíram as disparidades
riormente fundamentado na valoração da entre negros e brancos fundamentalmente
miscigenação como expressão de tolerância a problemas de classe social. Porém, mais
racial, hoje ele encontra uma formulação do que argumentar que grupos raciais es-
mais complexa. Certos autores mencionam tão igualmente posicionados, o partido
estudos genéticos que demonstram a mul- Democratas, autor da petição, afirmou que
tiplicidade de origens dos negros não devem ser reco-
brasileiros para argumen- Enquanto certas classes de nhecidos como um grupo
tar que todos nós somos pessoas gozam de estima socialmente diferenciado
produtos de uma combina- social, outras são tratadas de porque a raça não possui
ção genética única, o que forma inferior. Essa diferença fundamentação científi-
na valoração dos indivíduos
afirma a necessidade de ca. Sua utilização cria um
acaba funcionando como
tratar todos como indiví- processo de fragmentação
um critério para distribuição
duos. Segundo eles, a ciên- de oportunidades. na nossa sociedade, ins-
cia fornece fundamentos taurando o problema do
precisos para a discussão de problemas so- racismo de estado no Brasil, o que nos equi-
ciais, uma referência importante para ava- pararia com os piores regimes totalitários
liar a necessidade e adequação das políticas já existentes. Os autores da ação defendem
públicas. Esses estudos genéticos têm sido então uma forma de epistemologia social
apontados como um novo paradigma para baseada na absoluta neutralidade racial
a construção de relações sociais baseado ao classificar qualquer tipo de consciência
no reconhecimento do legado comum de racial como discriminatória, mesmo que
todos os indivíduos. tenha sido adotada para beneficiar grupos
Por esse motivo, as instituições es- minoritários12. Essa compreensão da reali-
tatais deveriam implementar medidas de dade tem ainda outro ponto de grande rele-
caráter universal, uma exigência em um vância: ao negar a existência da raça como
estado centrado em premissas liberais. Ob- uma categoria socialmente relevante, eles
viamente, esse discurso conflita diretamen- criam um discurso baseado na articulação
te com uma realidade social inteiramente entre homogeneidade racial e igualdade
fundada na opressão negra. A prevalência formal, o que é apresentado como algo ne-
dessa forma de epistemologia no modo cessário para o funcionamento adequado de
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

uma democracia liberal. Ações afirmativas substantivo de diversidade para advogar a


seriam extremamente perigosas porque miscigenação dos círculos do poder por
despertariam o ódio entre grupos raciais, meio de ações afirmativas. Pensamos que
comprometendo então uma moralidade pú- isso deve ser visto como requisito essencial
blica baseada na neutralidade racial. para a quebra de um sistema de privilégios
Ações afirmativas seriam então uma po- que frequentemente cria vantagens apenas
lítica discriminatória contra brancos, grupo em função da cor da pele dos indivíduos. Ri-
que não possui responsabilidade sobre er- cardo Lewandowiski afirmou algo impor-
ros cometidos no passado. A explicação das tante: a diversidade racial nas instituições
disparidades raciais como desigualdades públicas e privadas é um passo essencial
materiais e a negação da relevância social para o avanço da democratização da socie-
demonstram como o fenômeno da transpa- dade brasileira.
rência atua: a subordinação não está basea- Se os que criticam ações afirmativas
da apenas em uma categoria biológica nos compreendem o direito como um instru-
processos de racialização que perpetuam mento que deve manter o consenso social
privilégios para aqueles socialmente cate- entre grupos raciais, seus defensores acre-
gorizados como brancos. ditam que a igualdade constitucional tem
Os opositores de ações afirmativas uma função transformadora, perspectiva
argumentam que elas são inerentemente fundamentada na correlação entre o res-
problemáticas por causa da miscigenação peito pelo pluralismo e a defesa da justiça
do povo brasileiro, um claro empecilho à social. Essa visão da igualdade tem como
identificação de seus beneficiários. Segundo ponto de partida a afirmação de que o sis-
esses atores sociais, nosso amalgamento ra- tema jurídico pode ser um mecanismo de
cial e cultural permitiu a construção de uma emancipação social, entendimento que
moralidade pública responsável pela for- oferece parâmetros para a justificação de
mação de relações harmônicas entre negros ações afirmativas nas instituições de en-
e brancos. A decisão do Supremo Tribunal sino superior e no serviço público. Os que
Federal que afirmou a legalidade de cotas advogam essa perspectiva afirmam que a
raciais estabelece que ações afirmativas são raça é uma construção social que tem con-
cabíveis porque o grupo que controla qua- sequências concretas na vida das pessoas:
se todas as instituições públicas e privadas ela legitima diversas formas de exclusão
brasileiras é racialmente homogêneo. Tal que atuam conjuntamente para promover
fato é produto de processos sistemáticos de a estratificação racial, pois serve como pa-
exclusão social que afetam brasileiros cujos râmetro para a ação arbitrária de agentes
fenótipos denotam origem africana ou ame- públicos e privados. As consequências do
ríndia, a mesma razão pela qual oportuni- racismo presentes nas relações sociais se
dades profissionais estão concentradas nas estendem por várias gerações porque são
mãos dos membros do grupo racial domi- fruto de práticas institucionais que afetam a
nante. O ministro relator utilizou o conceito vida de minorias raciais ao longo do tempo.
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Argumenta-se que a miscigenação não eli- observada com os ideais culturais brancos.
mina práticas discriminatórias nem a con- Se o fato de ser branco aparece como algo
centração do acesso a oportunidades nas invisível para os que são assim classifica-
mãos daqueles classificados como brancos. dos, a heterossexualidade é vivida como a
Os que defendem a constitucionalida- expressão da normalidade14.
de de ações afirmativas sustentam que o ra- Podemos dizer que a resistência à in-
cismo não é um problema comportamental clusão de minorias sexuais está baseada em
decorrente de uma percepção incorreta da uma política da virtude moral que procura
realidade, mas um sistema de dominação. preservar a heterossexualidade como fun-
Sendo tal sistema um fator que oprime uma damento central da ordem social. Aqueles
geração após outra, esses autores interpre- que defendem essa posição sugerem direta
tam o princípio da igualdade dentro de uma e indiretamente que os princípios do direito
linha temporal: ele procura reparar as con- natural devem nortear a interpretação das
sequências de processos históricos de exclu- normas jurídicas. Eles implicam a superio-
são e também estabelecer parâmetros para ridade da heterossexualidade em relação à
a construção de uma sociedade igualitária13. homossexualidade, e por isso as instituições
Os discursos sociais contrários à pro- estatais não deveriam tratar homossexuais
teção jurídica de minorias sexuais também e heterossexuais igualmente, pois isso pro-
ignoram o caráter estrutu- move um estilo de vida
ral de formas de exclusão O liberalismo racial brasileiro moralmente condenável.
social que existem nas é uma forma de epistemologia Segundo os propositores
sociedades contemporâ- social fundamentada no desse discurso social, a
pressuposto de que nossa
neas. Da mesma forma heterossexualidade deve
suposta homogeneidade racial
que o racismo, a homofo- ser pensada como uma ex-
exige o tratamento simétrico
bia afeta uma variedade de entre negros e brancos. pressão normal da sexuali-
dimensões da vida social e dade humana. Além de um
cultural, fazendo com que minorias sexuais requisito fundamental para a reprodução,
sejam excluídas de diversas oportunidades ela também é um princípio de organização
profissionais e acadêmicas. Essa prática social e política, afirmam esses indivíduos15.
social opera pela construção da heterosse- Os relacionamentos heterossexuais teriam
xualidade como um padrão cultural a partir uma dignidade intrínseca porque contri-
do qual as relações sociais são estruturadas. buem para a sobrevivência da nação, o que
Nesse sentido, ela funciona da mesma forma está longe de ser o caso das uniões homoafe-
que o racismo ao estabelecer o atributo de tivas. Para os que defendem essa posição,
certo grupo como padrão e como requisito a proteção jurídica de homossexuais é um
para o acesso a oportunidades sociais. Tendo obstáculo à realização do interesse estatal
em vista que a heterossexualidade funciona na reprodução, pois encoraja uma forma
como uma regra social, ela adquire um status de orientação sexual que objetiva apenas o
de plena invisibilidade, a mesma realidade prazer individual16.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 41

A política da virtude moral propõe a vantagens materiais e subjetivas a hete-


existência do consenso social sobre ques- rossexuais. Esse privilégio funciona como
tões culturais como fundamento da soli- um veículo de opressão porque estabelece
dariedade entre os cidadãos, consenso que a heterossexualidade como a norma central
só pode ser construído e mantido à medida para o acesso a oportunidades sociais, como
que indivíduos se comportem de acordo referência de conduta moral e de comporta-
com as expectativas culturais. Ao pressu- mento sexual adequado e como exemplo de
por a heterossexualidade como uma forma maturidade emocional. Como a heterosse-
de identidade compulsória, esse discurso xualidade é socialmente construída como
político corrobora uma forma de morali- expressão de normalidade sexual, todas as
dade característica de sociedades orgâni- outras formas de exprimir a sexualidade hu-
cas. Dentro dessa concepção das relações mana aparecem como desviantes.
humanas, a coesão social torna-se possível Muitos afirmam que o privilégio he-
porque as pessoas se comportam de acordo terossexual é mais insidioso que o privilé-
com normas culturais cuja autoridade tem gio racial por causa da tolerância social em
um caráter transcendente ou natural. O di- relação à homofobia; o que funciona como
reito tem um papel essencial na construção uma forma de culpar os homossexuais pe-
e manutenção desses vínculos porque as los problemas que eles enfrentam, o mesmo
normas jurídicas devem corroborar o con- mecanismo largamente utilizado para atri-
senso moral. Além disso, elas compelem as buir a negros a responsabilidade por seus
pessoas a reconhecer a heterossexualidade problemas. Dessa forma, a proteção jurídica
como um valor cultural que simboliza o que de homossexuais seriam apenas demandas
a sociedade considera como moralmente injustas de privilégios de uma sociedade que
correto. O caráter orgânico da política da eles mesmos rejeitaram18. A invisibilidade da
virtude moral decorre então da noção de que heterossexualidade como uma norma cul-
as pessoas devam se comportar de forma tural permite que muitos atores sociais não
similar para que elas possam ter segurança percebam que ser heterossexual os coloca
simbólica na vida diária17. em uma posição de privilégio permanente.
Vimos anteriormente que o privilé- Assim como poucas pessoas têm consciência
gio pode se manifestar de diversas formas. dos inúmeros privilégios advindos do perten-
Ele pode ser produto de acesso a certos di- cimento ao grupo racial dominante, muitas
reitos conferidos a apenas parte da socie- também não se dão conta de que estão em
dade ou ainda decorrer da representação de uma posição hierárquica superior por ser
certos grupos como o parâmetro a partir do heterossexuais, e de que a homofobia atua
qual todos os outros grupos são comparados. para manter essa estratificação.
Assim, o privilégio heterossexual encontra A elaboração de uma plataforma políti-
amparo dentro dos sistemas de opressão ca baseada na articulação entre moralidade
que estruturam muitas sociedades huma- e nação como meio para justificar a subor-
nas, processos que existem para conferir dinação social de grupos minoritários tem
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

uma longa história na nossa sociedade. Se argumentos para manter uma estrutura de
nos dias de hoje a homossexualidade fun- privilégios. A possibilidade de construção
ciona como catalisador ideológico de um de uma sociedade democrática no Brasil
discurso que prega a exclusão de um grupo depende da desconstrução de uma retórica
como um passo necessário para a salvação da social que esconde um mecanismo essen-
nação, algumas décadas atrás a miscigenação cial para a reprodução das desigualdades
racial era apontada como um processo que na nossa nação.
arruinaria o nosso país. A política higienista
brasileira tinha como objetivo principal tra-
tar as consequências do cruzamento entre
as raças para que o progresso social pudesse
ser alcançado. A questão moral circundava
o problema racial: não se discutia apenas a
questão da contaminação das raças suposta-
mente superiores, mas também a da pureza
racial necessária para a construção de uma
comunidade política.
A apontada degeneração de pessoas de
ascendência ameríndia e africana não era
pensada apenas como fator de caráter bio-
lógico que limitava a possibilidade de criar
uma população racialmente pura. Suposta-
mente, esses indivíduos não eram capazes
de participar da vida política como cidadãos
livres por causa da sua inferioridade moral
constitutiva. Apenas os europeus carrega-
vam em seus genes as características morais
adequadas para a promoção do progresso.
Para os higienistas, o destino da nação de-
pendia necessariamente da contenção da
miscigenação racial, como também da me-
lhora da população miscigenada por meio da Adilson José Moreira
purificação racial19. Professor assistente na Faculdade de Direito da
O mesmo discurso fundamenta agen- Universidade Presbiteriana M
­ ackenzie. Doutor em di-
das políticas baseadas na luta contra a reito pela Universidade de Harvard; doutor em direito
inclusão de minorias sexuais. Mas esses constitucional pela Faculdade de Direito da Univer-
debates deixam de abordar o verdadeiro sidade Federal de Minas Gerais (UFMG); mestre em
ponto central da questão: a forma como os direito pela Universidade de Harvard e bacharel em
grupos dominantes articularam diversos direito pela Faculdade de Direito da UFMG.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 43

Referências bibliográficas

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social privilege. Journal of Multicultural Counseling and Development, v. 33, n. 2,
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Ithaca: Cornell University Press, 1999.
44 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Notas

1 GOSS, Karine P. Retóricas em disputa: o debate intelectual sobre ações


afirmativas para estudantes negros no Brasil. Ciências Sociais Unisinos, v. 45, n. 2,
p. 114-124, 2009.

2 O artigo 3º da Constituição Federal estabelece: “Constituem objetivos


fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre,
justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 502995, Órgão


Julgador: Quarta Turma, DJ de 16 de maio de 2005. Afirma que casais formados
por pessoas do mesmo sexo não podem desempenhar o papel de marido e
esposa um perante o outro nem de pai e mãe perante os filhos.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito


Fundamental nº 186. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relator: Ricardo
Lewandowski, DJ de 26 de abril de 2012.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito


Fundamental nº 132. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relator: Carlos Ayres Britto,
DJ de 24 de agosto de 2011.

6 LIPPERT-RASMUSSEN, Kasper. Born free and equal? A philosophical inquiry into


the nature of discrimination. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 13-54.

7 DESMOND, Matthew; EMYRBAYER, Mustapha. What is racial domination?.


Du Bois Review, v. 6, n. 2, p. 335-355, 2009.

8 BLACK, Linda; STONE, David. Expanding the definition of privilege: the concept
of social privilege. Journal of Multicultural Counseling and Development, v. 33,
n. 2, p. 244-246, 2009.

9 ROTHMAYR, Daria. Racial cartels. Michigan Journal of Race & Law, v. 16, n. 1,
p. 50-55, 2011.

10 FLAGG, Barbara. Was blind, but now I see: white race consciousness. Michigan
Law Review, v. 91, n. 4, p. 954-973, 1992.

11 FITZPATRICK, Peter. Racism and the innocence of law. Journal of Law & Society,
v. 14, n. 1, p. 119-132, 1987.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 45

12 BRASIL. Partido dos Democratas. Petição Inicial. Argumentação de


Descumprimento Fundamental nº 186. Brasília, 20 jul. 2009.

13 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ações afirmativas e princípio constitucional


da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

14 PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Vianna. Preconceito contra


homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008. p. 11-17.

15 Ver ESKRIDGE, William. No promo homo: the sedimentation of antigay discourse


and the channeling effect of judicial review. New York University Law Review,
v. 75, n. 5, p. 1-13/1328-1333; In: NUSSBAUM, Martha. From disgust to humanity.
Sexual orientation & constitutional law. Oxford: Oxford University Press, 2010.

16 NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. As novas guerras sexuais.


Diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro:
Garamond, 2013.

17 SMIRDELE, Carlos Gustavo Samert Moreira. Entre Babel e Pentecostes:


cosmologia evangélica no Brasil contemporâneo. Religião e Sociedade,
v. 31, n. 2, p. 79-83, 2011.

18 BLACK; STONE, op. cit. p. 247-248.

19 STEPAN, Nancy. The hour of the eugenics: race, nation, and nation in Latin
America. Ithaca: Cornell University Press, 1999, p. 25-65.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 47

IMIGRAÇÃO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA:
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL
E DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO
Márcio Farias

O objetivo deste artigo é assinalar algumas premissas basilares da relação entre imigração
contemporânea e economia política, averiguando tendências estruturais do fenômeno social
da migração sob a égide do capital, bem como aspectos conjunturais. Nesse sentido, busca-se
uma contrapartida analítica em relação ao establishment acadêmico sobre o tema em questão,
apontando a necessidade de correlacionar imigração, racismo, xenofobia e sexismo com as
relações sociais de produção.

A
história do capitalismo é marcada Nessa fase do capitalismo também se
por transições que remodelaram consolidam estados-nações diante de um
as relações sociais. Do capitalismo cenário repleto de crises econômicas, de-
comercial, que abalizou os primeiros e signi- sapropriação e lutas por terras, além das
ficativos avanços para a sociedade do capi- guerras civis na Europa, fatores que impul-
tal, passando pelo capitalismo industrial de sionaram uma onda massiva de emigrações
característica concorrencial até a transição dessa região para outras partes do mundo. A
para o capitalismo monopolista, em que o se- América Latina foi um território que rece-
tor financeiro e industrial se fundiu. Este últi- beu grande contingente desses emigrantes
mo período mencionado é significativamente europeus. Essa imigração massiva atendia
importante para o presente debate, pois dian- a interesses econômicos, políticos e ideoló-
te dos processos sócio-históricos encadeados gicos para consolidar um novo povo para as
nessa etapa, a discussão sobre imigração e re- nações latino-americanas que emergiam. O
lações raciais ganhou novas veredas. É diante racismo científico justificou o investimento
do avanço do capitalismo monopolista que se de governos para recepção desses imigrantes,
edifica a eugenia, teoria das “raças humanas” como também possibilitou arranjos jurídicos
orquestrada por intelectuais como Joseph Ar- que facilitaram o ingresso desse estrangeiro
thur de Gobineau e Herbert ­Spencer, entre de maneira a garantir direitos básicos e in-
outros, tanto na Europa quanto nos Estados serção como cidadãos dessas novas pátrias
Unidos (­SKIDMORE, 2012). que se erguiam (SCHWARCZ, 1993).
48 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Quando observamos os movimentos primeiros períodos de imigração massiva de


de migração contemporâneos nos grandes força de trabalho europeia para os Estados
centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos (BARAN; SWEEZY, 1966).
Unidos, é possível observar certas tendên- As guerras mundiais, na primeira me-
cias “clássicas” desses processos, “repeti- tade do século XX, forjaram um processo de
ções” históricas de certos traços sociais em grandes emigrações na Europa, somadas às
relação ao deslocamento humano sob a égide crises de produção agrícola e ao incremento
do capital. Nesse sentido, o estudo sobre o de novas tecnologias no campo, que repelia
capital monopolista feito por Baran e Sweezy o uso de força de trabalho de maneira mais
(1966) adentrou questões pertinentes para, extensiva. Baran e Sweezy (1966) comentam:
em primeiro lugar, situarmos o problema da
imigração como um elemento importante Os Estados Unidos, tendo sempre con-
diante das relações sociais de produção e, tado com a imigração do exterior, agora des-
em segundo, para entender a relação entre cobriam, repentinamente [...] que poderiam
capitalismo, relações raciais e xenofobia. progredir utilizando seu próprio excedente
Em relação à introdução de força de tra- de força de trabalho rural, exatamente como
balho estrangeira, Baran e Sweezy (1966) co- fizera a Europa desde o princípio da revolu-
mentam que no decorrer do século XIX nos ção industrial (1966, p. 254).
Estados Unidos um singular sistema tinha se
formado para suprir a grande demanda por Esse período marca o início do processo
força de trabalho gerada por uma sociedade de urbanização da população negra estaduni-
cuja economia estava em ritmo acelerado de dense, que deixa o sul agrícola, ou as regiões
expansão e industrialização. Os postos mais do sul que tinham como principal fonte eco-
pauperizados do mercado de trabalho foram nômica a agricultura, e vão se estabelecer nos
ocupados por trabalhadores imigrantes, ad- estados sulinos ou no norte do país, onde há o
vindos, em geral, da Europa, mas também de desenvolvimento industrial. Levando-se em
outros lugares como Ásia, Canadá e México. conta a situação no campo em que a maior
O cotidiano desses indivíduos recém- parte da população negra estadunidense
-chegados à nova terra era de tensão. A esteve até meados da segunda década do sé-
demanda de força de trabalho criava uma culo XX, houve uma melhoria das condições
divisão entre os trabalhadores imigrantes e de vida e um processo de ascensão social
os “americanos natos”, sendo que estes for- (­BARAN; SWEEZY, 1966).
javam maneiras de expurgar a concorrência, No entanto, a experiência urbana dos
pautados num ideal de “supremacia nacio- negros que deixaram seus lugares de origem
nal” e assim agiam de forma a desafogar seus em busca de melhores oportunidades de
sentimentos de superioridade, hostilidade vida difere em grande medida da imigração
e agressão. A partir dessas relações confli- dos outros grupos que a precederam. “Des-
tuosas, muitas vezes com desfecho violen- de 1924, o migrante interno da zona rural
to, o preconceito se tornou uma marca dos para as cidades passou a encontrar maior
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 49

resistência à ascensão sócio-econômica do Na contemporaneidade, ainda que


que a que encontrara seu congênere euro- estejamos sob um novo estatuto histórico
peu, no período anterior a guerra” (BARAN; da sociedade do capital, alguns desses ele-
­SWEEZY, 1966, p. 255). mentos afirmados no que diz respeito “ao se
Ainda que a população negra estadu- descolocar” diante do capital se repetem.
nidense estivesse em desvantagem técnica Naquilo que é “novo”, diferentemente do
quando comparada com os demais segmentos que era afirmado por algumas escolas do
da classe trabalhadora dos Estados Unidos pensamento da teoria social, que se con-
daquele período, por causa do menor acesso solidaram como establishment acadêmico
à educação, ao nível de instrução superior, internacional pós-Segunda Guerra Mun-
Baran e Sweezy (1966) apontam o precon- dial, sobretudo depois da queda do muro de
ceito e a discriminação como impeditivos da ­Berlim e da derrocada da União Soviética, a
ascensão social dessa população negra: sociedade não rumou a uma reorganização
socioeconômica que realocou a humanidade
[...] desde sua mudança para as cida- para uma nova era, tampouco houve o fim
des, os negros foram impedidos de melhorar da história e das relações sociais de produ-
sua posição sócio econômica: não tem con- ção como movimento do real. Para Harvey
seguido seguir o exemplo dos primeiros gru- (2012) houve de fato alterações significati-
po de imigrantes, galgando novos níveis na vas para a humanidade no plano cultural,
escala ocupacional e evadindo-se dos guetos político e econômico, desde pelo menos
(BARAN; SWEEZY, 1966, p. 262). meados da década de 1970.

Os fatores que explicam esse processo Mas essas mudanças, quando con-
seriam: 1) os interesses privados que se be- frontadas com as regras básicas de acu-
neficiam, no sentido mais direto e imediato mulação capitalista, mostram-se mais
do termo, com a existência permanente de como transformações da aparência super-
um subproletariado; 2) pressões psicosso- ficial do que como sinais do surgimento
ciais geradas por uma sociedade capitalista de alguma sociedade pós-capitalista ou
monopolista que intensificam, em vez de mesmo p ­ ós-industrial inteiramente nova
aliviar, os preconceitos raciais existentes e, (­HARVEY, 2012, p. 7).
consequentemente, também intensificam
a discriminação e a segregação; 3) o desen- Segundo Chesnais (1996), esse período
volvimento do capitalismo monopolista e não se caracteriza apenas como um proces-
a procura do trabalho não especializado e so de internacionalização do capital, ou uma
semiespecializado tanto relativa quanto globalização – termo recorrente na biblio-
absolutamente, tendência que afeta muito grafia contemporânea – que se alastra pelo
mais os negros que qualquer outro grupo e mundo desde a década de 1950. Trata-se
acentua sua inferioridade econômica e social de uma nova fase do capitalismo, reconfi-
(BARAN; SWEEZY, 1966). gurado em seus mecanismos de regulação.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A América Latina foi um


território que recebeu grande
contingente desses emigrantes
europeus. Essa imigração massiva
atendia a interesses econômicos,
políticos e ideológicos para consolidar
um novo povo para as nações latino-
americanas que emergiam. O racismo
científico justificou o investimento
de governos para recepção desses
imigrantes, como também possibilitou
arranjos jurídicos que facilitaram o
ingresso desse estrangeiro de maneira
a garantir direitos básicos e inserção
como cidadãos dessas novas pátrias
que se erguiam.”

(SCHWARCZ, 1993)
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 51
52 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

É  desse  período em diante que o capital Do ponto de vista das forças produti-
monopolista vive seu momento de auge, al- vas, houve uma transformação entendida
cançando níveis de crescimento nunca vis- como reestruturação produtiva do capital.
tos antes e que marcaram o ciclo de ouro do Essa mudança ocorreu em meio a grande
capitalismo. Viu-se também, nos grandes crise estrutural do capitalismo no início
centros do capital, a emergência do Estado da década de 1970. Em suma, nos países
com uma característica de de capitalismo avançado
maior intervenção. Assim [...] as causas permanentes da se perpetraram altera-
sendo, o capitalismo mono- imigração para a Europa são, ções em vários âmbitos
polista em sua fase de ouro em primeiro lugar, o histórico no mundo do trabalho que
(1950-1970) nos países de desenvolvimento desigual do significaram novas formas
economia avançada teve capitalismo que forjou países de inserção do trabalhador
uma “refuncionalização”. sem acumulação originária na estrutura produtiva,
e com mercado interno
Em correlação de forças, os nos processos produtivos
garroteados pelas imposições
grandes capitais se viram e nas formas de organiza-
dos centros capitalistas.
pressionados pelo avanço Para grande parte dos ção política. Se durante
do socialismo como alterna- países que são ex-colônias, grande parte do século
tiva, e com a força sindical e a descolonização política não XX tivemos no plano ad-
organizativa da classe tra- reverberou na economia [...] ministrativo do processo
balhadora em alguns países. produtivo o paradigma
Emerge, assim, o Estado de Bem-Estar Social, ­f ordismo-taylorismo, neste momento,
que garantiu melhorias nas condições de vida ­acrescenta-se e toma força o paradigma do
dos trabalhadores do centro do capitalismo, toyotismo (­ALVES, 2011).
os quais usufruíram de algumas conquistas Antunes (1995) analisa da seguinte for-
materiais e imateriais produzidas por ele ma o período supracitado:
(BRAZ; NETO, 2012).
Há uma tendência contemporânea de O toyotismo penetra, mescla-se ou
sobrevalorização do capital financeiro em mesmo substitui o padrão fordista domi-
detrimento dos setores produtivos. Essa nante, em várias partes do capitalismo glo-
financeirização da economia e da política balizado. Vivem-se formas transitórias de
se reflete na vida dos trabalhadores de ma- produção, cujos desdobramentos são tam-
neira a criar um cenário hostil do ponto de bém agudos, no que diz respeito aos direitos
vista das condições de trabalho, bem como a do trabalho. Estes são desregulamentados,
instabilidade e o desemprego de um lado e o são flexíveis, de modo a dotar o capital do
cerceamento das condições de organização instrumental necessário para adequar-se
política do outro. No entanto, a importância a nova fase. Direitos e conquistas histó-
dos estados nacionais, ainda que colocadas ricas dos trabalhadores são substituídos
num grau de dependência maior, não os eli- e eliminados na produção (ANTUNES,
minou (CHESNAIS, 1996). 1995, p. 16).
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 53

É nesse contexto de reestruturação interno garroteados pelas imposições dos


produtiva do capital, reorganização das re- centros capitalistas. Para grande parte dos
lações sociais de produção e realinhamento países que são ex-colônias, a descolonização
do processo produtivo nos centros dinâmi- política não reverberou na economia, por-
cos do capital, sobretudo na Europa e nos tanto, para Basso, enquanto esse ciclo de
Estados Unidos, mas também no Japão e no dependência não for superado, “os atuais
Canadá, que temos a consolidação do fluxo movimentos migratórios não vão cessar.
contemporâneo de imigrantes de países do Eles tendem, ao contrário, a aumentar”
sul para essas regiões ao norte. (BASSO, 2014, p. 31).
Basso (2013) apresenta um panorama Um segundo fator importante para a
complexo sobre a imigração na contempo- existência desse processo de deslocamento
raneidade, envolvendo não apenas as de- humano em grande escala para a Europa se
terminações jurídicas e burocráticas, mas refere à intensificação da penetração direta
também os aspectos estruturais. Partindo do capital transnacional na agricultura dos
dos dados da imigração contemporânea na continentes “em desenvolvimento”. Ainda
Europa (segundo ele, estima-se que existam que o mundo, por causa da reestruturação
atualmente entre 30 a 50 milhões de imi- produtiva do capital, venha paulatinamen-
grantes na Europa ou 15% do total da popu- te se urbanizando, a agricultura, segundo
lação que vive nesse continente), o sociólogo ­Basso (2014), ainda corresponde a 35% da
italiano afirma: força de trabalho total no mundo. Aqui se
repete uma tendência central das migrações
Pela amplitude, pela grande variedade sob a égide do capital, conforme já discuti-
de nacionalidades que a animam, pelo grau mos anteriormente.
crescente de estabilização, pela parte signi- Basso (2014) elenca mais duas causas
ficativa composta por mulheres, pelo nível para a imigração na Europa. Por um lado, as
de auto-organização, essa imigração não tem emigrações africana e asiática representam
precedentes. Embora seja apresentada no simbolicamente uma continuidade do movi-
cenário público como uma fonte de perigos mento anticolonial que não permitiu o com-
à Europa, a imigração, em minha opinião, pleto esfacelamento de povos submetidos à
pode ter um papel crucial, contribuindo para colonização e, como desdobramento de um
transformar as atuais relações sociais numa crescimento populacional vertiginoso em
direção igualitária, antirracista e intercultu- certas regiões desses continentes, emigran-
ral (BASSO, 2013, p. 30). tes, em geral jovens, buscam longe de casa,
em locais muitas vezes hostis, a superação
Para Basso (2013), as causas perma- de certa sina histórica que os relegariam à
nentes da imigração para a Europa são, em pobreza e à marginalização. Por outro lado,
primeiro lugar, o histórico desenvolvimen- encontram uma Europa cada vez mais seden-
to desigual do capitalismo que forjou países ta por força de trabalho suscetível a aceitar
sem acumulação originária e com mercado cargos e condições de emprego que os “filhos
54 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

da terra” se negam a aceitar. Acrescenta-se, desconsiderar outras dimensões do ser social


para essa situação, uma população europeia imigrante, tolhidas não somente pela condi-
cada vez mais idosa e com uma taxa de na- ção de classe explorada:
talidade muito baixa.
Por isso, conforme a análise de Basso Mas não é apenas uma questão de
(2014) certo hiato entre legislação, burocracia superexploração. Na Europa, a vida dos
e demanda de força de trabalho é certamente imigrantes e de seus filhos é marcada por
algo em proveito daqueles que superexploram discriminações. Eles são discriminados no
a força de trabalho desse grupo: local de trabalho, no acesso ao trabalho, no
seguro desemprego, na aposentadoria. São
Apesar disso, continua a reinar no ce- discriminados no acesso à moradia, pa-
nário público a retórica de que a Europa não gando aluguéis caros pelas casas mais de-
aguenta mais as “hordas bárbaras” de imi- terioradas e em zonas mais degradadas. São
grantes, desesperadas e “criminógenas”, que discriminados até nas escolas [...]. (BASSO,
batem à sua porta “felizes”, e exatamente 2014, p. 33).
por esse motivo vê-se obrigada a devolvê-los
em massa às trevas de onde vieram. Mas os Seguindo nesse caminho analítico,
fatos reais dizem algo muito diferente: des- Basso (2014) aponta os imigrantes como
de a metade dos anos 1980, quando a Euro- um setor importante da “classe que vive
pa assinou os acordos “anti-imigração” de do trabalho”. E justamente por serem ex-
Schengen, o número de imigrantes cresceu postos a condições de trabalho precárias
mais do que nos vinte anos anteriores. Com compõem os setores que potencialmente
efeito, esses acordos não são “anti-imigra- têm estimulado processos transformadores
ção”, mas anti-imigrantes, porque nem a na Europa, explicitando as contradições de
Europa e muito menos a Itália estão satu- uma sociedade pretensamente universalis-
radas de imigrantes. Ao contrário, eles são ta, mas que internamente perpetua discri-
cobiçados em grande quantidade. Só que os minações e racismo contra grupos e povos.
países europeus preferem submetê-los ao Basso (2014) discorre sobre a importância
jugo de uma severíssima legislação restri- política dos imigrantes, submetidos ao que
tiva, repressiva, seletiva, para que moderem ele convencionou chamar de “racismo po-
suas expectativas e “pretensões”, desde o pular”, para as relações interpessoais, e de
momento que partem de seu país de origem “racismo institucional”, na base das supe-
(BASSO, 2014, p. 32). restruturas da sociedade, portanto, subme-
tidos a uma série de clivagens sociais que
Basso (2014) desloca a discussão do paradoxalmente os qualifica como vanguar-
âmbito do imediato em relação aos estudos da no atual cenário europeu:
sobre os imigrantes na Europa, reelaboran-
do uma análise desse processo no campo As imigrações internacionais não
das relações sociais de produção, mas sem são uma somatória banal de histórias
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 55
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

individuais. Independentemente da plena a afirmação da mais-valia, seja como grupo


consciência que tem de seu próprio ser so- que substituirá algum segmento da “classe
cial, os atuais imigrantes na Europa cons- que vive do trabalho”, seja na condição de
tituem objetivamente, repito, antes um grupo que será superexplorado. Ainda vale
sujeito coletivo que individual, enquanto como sentença analítica a conclusão do es-
“vanguarda” [...] no opulento e dominante tudo clássico de Jean-Paul de Gaudemar:
Ocidente, de gente dos continentes “não “migrar é buscar a liberdade de vender a
brancos”, colonizados durantes séculos e em força de trabalho”.
luta para sair da interminável era colonial Logo, para pensarmos esse fenômeno é
de sua própria história. Um sujeito coletivo necessário avançar na compreensão de ele-
portador de uma neces- mentos estruturais que
sidade de emancipação
A premissa básica da sociedade permeiam a imigração
capitalista é a exploração. Nesse
social, porque mesmo no mundo contemporâ-
sentido, a migração, como
com a “aventura” cada neo, e não só em pontos
fenômeno social, ainda que
vez mais cara e peri- lhe pesem as derivações que conjunturais, indo, por-
gosa de emigrar, eles ocasionam o deslocamento de tanto, na contramão de
demonstram recusar o indivíduos, e que estes tenham grande parte dos estu-
“destino” de uma exis- múltiplas determinações, o dos atuais sobre o tema.
tência limitada à mera desdobramento fundante desse No caso da realidade
sobrevivência; e por- processo é a afirmação da mais- ­l atino-americana, que
que, uma vez aqui, não valia, seja como grupo que também tem sido local de
podem aceitar passi- substituirá algum segmento da recepção de imigrantes,
vamente a condição de “classe que vive do trabalho”, correlacionar o desenvol-
inferioridade jurídica,
seja na condição de grupo que vimento desigual e com-
será superexplorado.
material, social e cul- binado do capital, mesmo
tural que lhes é reservada. E, de fato, não diante de um cenário de economia mun-
aceitam (BASSO, 2014, p. 36). danizada, atrelado à forma de objetivação
histórica do capitalismo típico dessa re-
As análises mencionadas permitem gião, somado à conformação histórica das
refletir sobre o fenômeno da imigração no relações sociais de produção calcadas na
centro do capital, além de apresentar ten- superexploração da força de trabalho, por
dências elementares desse processo no um lado, e do patriarcado machista e racista
mundo contemporâneo. A premissa básica que legitima esse processo no plano tanto
da sociedade capitalista é a exploração. Nes- das relações sociais de produção quanto
se sentido, a migração, como fenômeno so- em outras esferas da sociabilidade, por ou-
cial, ainda que lhe pesem as derivações que tro, são os elementos fundamentais para
ocasionam o deslocamento de indivíduos, e uma análise da condição do ser imigrante
que estes tenham múltiplas determinações, e da compreensão da importância política
o desdobramento fundante desse processo é de suas lutas.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 57

Márcio Farias
Graduado em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011). Mestre
em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) (2015).
Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Americanos (Nepafro). Colaborador do Instituto
Amma Psique e Negritude. Atua como assistente de coordenação no Museu Afro Brasil.
Tem experiência em atendimento e formação nos temas juventude, cultura e resistência,
psicologia, educação, arte e cultura. Desenvolve estudos sobre o pensamento social
brasileiro e as relações raciais; negritude e lutas de classes no Brasil; África e capitalismo,
o pensamento social latino-americano e as relações raciais.

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58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 59

ESTADO E CULTURA:
POLÍTICAS DE IDENTIDADE E
RELAÇÕES ECONÔMICAS
Silvio Luiz de Almeida

Este artigo trata do vínculo estrutural entre as transformações socioculturais, as estruturas


econômicas e as instituições políticas. Os argumentos que aqui serão expostos são três: 1) as trans-
formações econômicas e políticas – em especial as impulsionadas pelos períodos de crise e pelas
políticas de desenvolvimento – implicam profundas mudanças nas práticas culturais; 2) a cultura
tem sua dinâmica afetada por arranjos institucionais, em especial por aqueles que envolvem o
Estado; 3) a cultura, como complexo de relações sociais afetado pela política e pela economia, é
um campo de disputas políticas interinstitucionais, intrainstitucionais e não institucionais.

N
o primeiro volume de O Processo Com essa distinção, Elias quer demons-
Civilizador, o historiador alemão trar como a identidade – compreendida como
Norbert Elias 1 estabelece uma o plexo de valores presentes no imaginário
notável relação entre as transformações social, bem como sua incorporação às subje-
sociais e a alteração nos costumes ou, em tividades – se relaciona com a formação his-
outras palavras, na cultura. Para sustentar tórica das estruturas políticas e econômicas.
sua tese, Elias expõe a “sociogênese” da dis- Não significa dizer que todas as práticas cul-
tinção entre civilização – que se vincula ori- turais resultam de projetos políticos deter-
ginalmente à experiência histórica da Fran- minados, mas que há uma relação estrutural
ça e da Inglaterra  – e kultur – relacionada à e conflituosa entre cultura e política.
história da Alemanha. Enquanto o conceito A produção de discursos de representa-
alemão de kultur “dá ênfase especial a dife- ção identitária, a determinação dos espaços e
renças nacionais e identidade particular a fixação do tempo são questões centrais da
de grupos” que “reflete a consciência de si política, já que dizem respeito à legitimidade
mesma de uma nação que teve de buscar do exercício efetivo do poder. Esses três as-
e constituir incessante e novamente suas pectos, no plano ideológico, introduzem nas
fronteiras, tanto no sentido político como no ações cotidianas o imaginário socialmente
espiritual”, a noção de civilização, de origens construído que sustenta as práticas institu-
francesa e inglesa, “inclui a função de dar cionais e não institucionais de poder e suas
expressão a uma tendência continuamente correspondentes oposições, fornecendo-lhes
expansionista de grupos colonizadores”. um sentido ético e estético.
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Todavia, a cultura não se resume ao Iniciaremos a discussão a partir do


plano estético, das formas, da imaginação conceito de crise, pois ele evidencia de for-
artística e da afirmação de identidades, tam- ma aguda a relação estrutural entre a cultura
pouco se restringe ao plano ético, dimensão e a política.
insofismável da relação entre identidade,
cultura e sociedade. A cultura se estabelece Crise, ideologia e cultura
no campo das disputas políticas e econô- A crise é uma contradição entre as
micas, e dois conceitos podem demonstrar instituições e a reprodução das condições
isso de modo exemplar: crise econômica e de- consideradas regulares de funcionamento
senvolvimento. O problema colocado nesses da sociedade. Se a sociedade está em crise, a
dois termos envolve a busca de alternativas cultura – como a totalidade das práticas que
para a reorganização da vida social em seus manifestam valores e perspectivas sociais –
aspectos institucionais, éticos e materiais. passa a ser um campo aberto de disputa entre
Envolve também a definição de ambos os grupos e indivíduos.
conceitos no bojo do movimento real das Em outras palavras, na crise eviden-
relações sociais, assim como a reflexão sobre cia-se uma contradição entre o modo de
os limites institucionais para se conduzir funcionamento “normal” da sociedade e as
uma transição social capaz de forjar novos instituições encarregadas de manter essa
consensos e lidar com novos conflitos. As- mesma “normalidade”. Por “normal”, enten-
sim, é possível afirmar que toda produção e da-se a observância de regras e padrões que
reprodução cultural, ainda que nas suas for- precisam ser criados e mantidos para que a
mas mais regionalizadas, é um dado concreto sociedade se estabilize. Não basta apenas que
e relacional do mundo, que se sujeita, mesmo tais regras e padrões sejam criados; devem ser
que relativamente, às transformações da po- inseridos nos sujeitos, nos comportamentos
lítica e da economia. cotidianos, de tal sorte que sejam naturaliza-
Neste artigo trataremos deste vínculo dos na vida prática dos indivíduos (educação e
estrutural entre as transformações sociocul- violência – às vezes, faces da mesma moeda –
turais, as estruturas econômicas e as insti- são dispositivos próprios de assujeitamento).
tuições políticas. São, fundamentalmente, Esse processo refere-se à disciplina
três os argumentos que aqui serão expostos: do trabalho e da produção, à organização de
1) as transformações econômicas e políticas práticas econômicas, ao desenvolvimento, mas
implicam profundas alterações culturais e, também à formação de uma subjetividade
portanto, nas formas de subjetividade; 2) a capaz de sintetizar determinadas narrativas
cultura tem sua dinâmica afetada por ar- sobre o passado, as agruras do presente e as
ranjos institucionais, em especial aqueles perspectivas futuras. Em cada formação so-
que envolvem o Estado; 3) a cultura, como cial específica é papel das instituições – sendo
complexo de relações sociais, é um campo o Estado a mais proeminente delas – o cul-
de disputas políticas interinstitucionais, in- tivo da memória, a manutenção e/ou formu-
trainstitucionais e não institucionais. lação de uma narrativa coesa sobre os fatos
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 61

históricos e a orientação dos projetos sociais pós-modernidade. Nesse sentido, das diversas
e econômicos, que em seu caráter mais espe- abordagens sobre a pós-modernidade, sejam
cífico formam a identidade nacional. as que priorizam a análise da cultura, sejam
Ora, uma vez que a crise altera as con- as que se debruçam sobre as características
dições de normalidade da vida social, a crise estruturais, a ideia de fragmentação aparece
política e econômica se traduz em uma crise com grande destaque. Assim, a crise se re-
das identidades. As crises levam a conflitos velaria no caráter fragmentário, indefinido,
políticos que, no plano cultural, aparecem fluído, líquido, que as identidades assumem
como disputas discursivas tentando expli- no contexto da p ­ ós-modernidade, diferente-
car o panorama de incerteza sobre os rumos mente da modernidade, em que elas aparecem
da sociedade ou buscando legitimar novas na sua inteireza e unidade.
formas de exercício de poder e organização A oposição pós-moderna ao caráter
social. Essa disputa coloca em cena raciona- “universal”, iluminista, da modernidade gerou
lidades diversas, modos distintos de sentir o três interpretações distintas sobre o proble-
mundo e novas concepções de tempo e espa- ma da identidade. A primeira coloca-se em
ço2 que, para além da economia e da política, defesa do legado da modernidade e denun-
também se materializam na cultura em geral, cia a fragmentação cultural e o relativismo
na arte e na ciência. ­pós-moderno. Essa posição destaca o que
É assim que podemos relacionar as seriam algumas das conquistas da moderni-
transformações econômicas da Europa do dade, como os direitos humanos e a distinção
século XVIII às obras de Rousseau, Voltaire, entre economia e poder. A preservação de
Diderot e Kant; a formação da kultur alemã a uma identidade universal seria fundamen-
Goethe; as contradições do Brasil do século tal para que a defesa da vida, da liberdade e
XIX, liberal e ao mesmo tempo escravista, à da propriedade seja tratada como imperativo
obra de Machado de Assis3; o surgimento do ético e jurídico para toda a humanidade4.
rock à ascensão da sociedade industrial; o rap A segunda posição vê problemas justa-
e o funk à resistência a um Estado, cujo não mente na noção de humanidade herdada da
reconhecimento de expressões culturais das modernidade iluminista, relacionando-a ao
minorias é também sinônimo de desprezo eurocentrismo e, por via de consequência, ao
aos pleitos por saúde, educação, moradia, colonialismo e ao imperialismo. Nesse senti-
trabalho e segurança. do, a pós-modernidade traduziria o desejo de
libertação de identidades e práticas culturais
Crise e identidade antes sufocadas pelo discurso universalista,
É nesse contexto de disputa entre senti- que, na verdade, restringia a humanidade ao
dos do mundo que se pode falar de uma crise homem branco europeu forjado sob as prá-
das identidades. A noção de crise das iden- ticas da economia mercantil. Com efeito, a
tidades aparece na forma de uma oposição pós-modernidade, mais que fragmentação
entre o que se convencionou chamar de mo- política, é a afirmação de “humanidades”, da
dernidade e o que se convencionou chamar de diversidade de perspectivas e modos de vida.
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Porém, há ainda uma terceira possibi- “inimigo”, no “estranho” e no “exótico” tudo o


lidade: a que procura ver a identidade como que não era branco e cristão. Por outro lado,
resultante das complexidades do contexto a cultura pós-moderna multifacetada é ca-
social, o que tornaria insuficiente a oposi- racterística de um tempo histórico marcado
ção entre modernidade e pós-modernidade. pela flexibilidade do consumo e do emprego,
A cultura seria então elemento inseparável pelo domínio da fluidez do capital financeiro,
dos movimentos constitutivos das relações pela incerteza, pela insegurança social e pela
econômicas e políticas, o que faz do sujeito diversidade das formas de exploração.
portador da identidade – ou das identidades,
como se queira – um sujeito histórico, atra- Cultura e nacionalismo
vessado pela facticidade e pela alteridade. Um dos grandes exemplos de como a po-
É isso que leva Dardot e Laval5, quando da lítica opera culturalmente e de como a cul-
descrição das transformações subjetivas re- tura opera politicamente está na concepção
lacionadas ao atual momento da economia de nacionalidade. Para Hobsbawn7, “qualquer
capitalista, em vez de a uma pós-moderni- que seja o significado ‘próprio e original’ (ou
dade, referirem-se ao advento de uma “nova qualquer outro) do termo ‘nação’, ele ainda
racionalidade” que cria subjetividades fun- é claramente diferente de seu significado
cionando como empresas e se relacionam moderno”. O significado moderno de nação
segundo a lógica da concorrência. é “basicamente político” e “historicamente
Partindo-se de uma análise que descreve muito recente”, relacionando-se ao processo
as identidades culturais relacionadas à histó- de formação dos Estados modernos.
ria, pode-se afirmar que não há uma contradi-
ção entre sujeito moderno e pós-moderno; o A equação nação = Estado = povo e,
que há é uma alteração drástica no panorama especialmente, povo soberano, vinculou
econômico e político em que esses modelos indubitavelmente a nação ao território,
de subjetividade – moderno e pós-moderno – pois a estrutura e a definição dos Estados
têm lugar na forma de conflitos culturais, mas eram agora essencialmente territoriais.
cujas origens estão além da cultura. No caso Implicava também uma multiplicidade de
do sujeito moderno, o contexto é a mobiliza- Estados-nações assim constituídos, e de
ção cultural formadora da base ideológica da fato isso era uma conseqüência da autode-
luta contra o absolutismo na Europa e que, terminação popular [...]8.
mais tarde, molda a política colonialista que
irá devastar a África, a Ásia e a América La- A formação dos Estados é historicamen-
tina com base num pensamento “totalitário”, te decorrência de uma reorganização radical
nas palavras de Adorno e Horkheimer6. da vida econômica e política, que certamen-
Já o sujeito pós-moderno manifesta te atingiu as condições subjetivas. Uma nova
uma cultura que não mais se rende à indivi- racionalidade teve de ser formada para dar
sibilidade das noções de cultura advindas do conta das concepções de tempo e espaço
iluminismo e que transformou no “outro”, no que acompanharam a substituição de uma
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

sociedade feudal, estática, segmentada e re- identidade, pela mesma lógica também cria
ligiosamente hierarquizada por outra socie- regras de exclusão. Tanto a classificação dos
dade, constituída de indivíduos que veem na indivíduos quanto o ato de inclusão/exclusão
autonomia racional da vontade uma condição são operados em última instância pelo poder
universal, e cujos laços sociais têm a forma de político. Achille Mbembe demonstra como
um contrato. Somente numa “sociedade de in- no final do século XIX a sociedade france-
divíduos livres e iguais” é que o poder político sa teve de se preparar para que a lógica do
aparece organizado como um poder centrali- “nacional-colonialismo” (em clara alusão
zado, “neutro” e exercido sobre determinado ao nacional-socialismo) pudesse “naturali-
território. É certo que a construção dessa nova zar” as atrocidades do colonialismo francês.
razão sobre o poder político e sobre o lugar dos Formado por instituições ligadas ao Estado,
indivíduos na sociedade inaugurada na mo- bem como por setores influentes da socieda-
dernidade não se deu de um dia para o outro. de francesa, o nacional-colonialismo visava
Nesse processo de formação dos Estados “normalizar” o tema da diferença racial na
é que reside a importância da nacionalidade cultura de massas “através do estabeleci-
como narrativa acerca de laços culturais, orgâ- mento de instituições como museus e jardins
nicos e característicos de determinado povo, zoológicos humanos9, publicidade, literatura,
que se assenta sobre determinado território, artes, constituição de arquivos, dissemina-
sob os auspícios de um poder político legíti- ção de narrativas fantásticas reportadas pela
mo. O que faz alguém pertencer a um Estado, imprensa popular e realização de exporta-
submeter-se às suas regras, cumprir suas leis, ções internacionais”10. Portanto, fez parte do
corroborar com seus modos de intervenção? projeto nacional a produção de um discurso
A resposta está na construção da identidade sobre o “outro”, tornando racional e emocio-
expressa na língua, nos modos de produzir a nalmente aceitável a conquista e a destruição
vida (cozinhar, por exemplo), nos gestos, nos daqueles com os quais não se compartilha
sentimentos, na sexualidade, nos padrões es- uma identidade:
téticos, na religião. Essas características não
resultam de um processo “espontâneo” ou Mas, para que se torne um hábito,
meramente ocasional, mas de mecanismos e a lógica das raças deve ser agregada à ló-
práticas de poder condicionadas por estrutu- gica do lucro, à política da força e ao ins-
ras político-econômicas, que atuam tanto no tinto de corrupção – esta é, em rigor, o
cotidiano quanto na lógica das grandes insti- que define a prática colonial. O exemplo
tuições, classificando indivíduos e atribuindo da França mostra, deste ponto de vista, o
identidades a grupos segundo características peso da raça na formação da consciência
raciais, religiosas, étnicas e sexuais. do império e o imenso trabalho que foi pre-
Do mesmo modo que o nacionalismo ciso desenvolver para que o significante
cria as regras de pertencimento dos indiví- racial – inseparável de qualquer esquema
duos a uma dada formação social, atribuin- colonial – penetrasse no interior das fibras
do-lhes ou reconhecendo-lhes determinada de vime da cultura francesa [...]11.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 65

No mesmo sentido, a partir da rea- colonialistas. Neles, a afirmação da nacionali-


lidade latino-americana, Anibal Quijano dade se tornou a base ­cultural-ideológica para
descreve o processo de como a formação a resistência anticolonialista e para as lutas
de identidades raciais foi essencial para o por independência política e econômica13. Sob
processo econômico: as mais diversas formas e contextos históri-
cos, a reivindicação da cultura indígena foi e
As novas identidades históricas pro- ainda é crucial na política latino-americana,
duzidas sobre a idéia de raça foram associa- assim como o pan-africanismo desempenha
das à natureza dos papéis e lugares na nova função crucial na constituição do imaginário
estrutura global de controle do trabalho. de resistência não apenas na África, mas em
Assim, ambos os elementos, raça e divisão todos os países da diáspora africana.
do trabalho, foram estruturalmente associa-
dos e reforçando-se mutuamente, apesar de Cultura, nacionalismo e
que nenhum dos dois era necessariamente desenvolvimento econômico no Brasil
dependente do outro para existir ou para Cabe aqui uma breve nota sobre cultura,
transformar-se. Desse modo, impôs-se uma nacionalismo e desenvolvimento econômico
sistemática divisão racial do trabalho. Na no Brasil. Um dos maiores exemplos da rela-
área hispânica, a Coroa de Castela logo de- ção do discurso nacionalista com a política
cidiu pelo fim da escravidão dos índios, para está na formação do Estado Novo a partir da
impedir seu total extermínio. Assim, foram década de 1930. Em termos econômicos, o
confinados na estrutura da servidão. Aos surgimento do Estado Novo corresponde ao
que viviam em suas comunidades, foi-lhes início do processo da industrialização no Bra-
permitida a prática de sua antiga recipro- sil e, consequentemente, a uma significativa
cidade – isto é, o intercâmbio de força de mudança cultural que se alinharia ao projeto
trabalho e de trabalho sem mercado – como nacional-desenvolvimentista. É certo que an-
uma forma de reproduzir sua força de traba- tes disso, ainda no século XIX, diversos inte-
lho como servos. Em alguns casos, a nobreza lectuais e artistas já buscavam delinear o que
indígena, uma reduzida minoria, foi eximida seria uma cultura brasileira. Todavia, dada a
da servidão e recebeu um tratamento espe- profundidade das transformações sociais pro-
cial, devido a seus papéis como intermediá- movidas nos anos 1930, a relação entre polí-
ria com a raça dominante, e lhe foi também tica e cultura se torna ainda mais evidente: a
permitido participar de alguns dos ofícios consolidação de um processo de industriali-
nos quais eram empregados os espanhóis que zação, a postura intervencionista do Estado e
não pertenciam à nobreza. Por outro lado, os a formação de um mercado interno num país
negros foram reduzidos à escravidão12. agrário, de tradição escravocrata e mentalida-
de liberal, exigiram uma verdadeira revolução
Há que se ressalvar que nos países lati- cultural e reinterpretações do sentido da na-
no-americanos, africanos e asiáticos o nacio- cionalidade, o que foi levada a cabo por diver-
nalismo nem sempre se converteu em práticas sos intelectuais e artistas14 como Villa-Lobos,
66 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Roberto Simonsen, G
­ ilberto Freyre15, Francis- outros países da Europa também ameaçam
co Campos e Ignácio Rangel16. sair da União ­Europeia, expondo as vísceras
de um pacto que agora ameaça implodir pela
Dilemas da cultura e sua incapacidade de fornecer respostas aos
ressignificação da política efeitos sociais da crise.
Em 23 de junho de 2016, a ­Inglaterra – O que aqui, no exemplo do Brexit, é
uma das referências do universalismo e ber- chamado de dilemas sociais não se restrin-
ço do capitalismo – aprova em plebiscito sua ge, como já se disse, a aspectos puramente
saída da União Europeia. Longe de ser um econômicos, mesmo porque até agora tra-
simples acordo diplomático, a União Euro- tamos a economia como uma relação social.
peia nasce de um arranjo político e econômico A economia é também a mobilização de ex-
entre Estados que já haviam experimentado pectativas, de energias, de valores, enfim, da
as tragédias de uma crise econômica, cujo cultura. A União Europeia é uma aposta no
resultado mais visível foi a Segunda Guerra universalismo e no projeto iluminista, e a
Mundial. Ele é portanto o estabelecimento Europa, como todos os demais continentes,
de uma Europa plurinacional, em que o “in- nunca foi apenas um “lugar”: acreditou-se
teresse europeu” sobrepujaria os nacionalis- que uma “cultura europeia”, um modo de vida
mos que tanto mal teriam causado ao velho “europeu”, tidos como padrões de civilidade
continente. Entretanto, outras interpretações e universalismo, pudessem de alguma forma
colocaram em dúvida se a fundação da União sobrepujar as culturas e os modos de vida re-
Europeia atendia ao chamado kantiano da gionais que se opunham.
“boa vontade”, interpretando a comunidade Por certo que o Brexit é apenas a mais
de Estados como um meio de impor, sem a recente e visível face de um mundo de incer-
consulta democrática às populações de cada tezas e em plena crise das identidades. Mas
país, o receituário político e econômico das há outras e talvez ainda mais significativas.
instituições financeiras sediadas em Bruxelas. A crise imigratória talvez seja a mais brutal
Afetada desde meados da década de 1970 pela e a que mais impacto exerce no campo da
crise que levou à supressão de muitos direitos cultura. A chegada à Europa de milhões de
garantidos pelo chamado Estado de bem-es- imigrantes africanos e do Oriente Médio,
tar social (ele próprio um arranjo pós-crise de vindos de países devastados pela mistura de
1929), parte importante da população inglesa, guerras e do receituário econômico que sus-
insuflada por um discurso nacionalista – pre- tenta a União Europeia, leva a um ambien-
dominantemente proferido pela extrema- te hostil em que o discurso da preservação
-direita, mas também apoiado por parte da dos empregos se entrelaça com a defesa de
esquerda crítica às instituições financeiras uma identidade cultural, dos nacionalismos,
internacionais sediadas em Bruxelas – votou quando não de um hiperindividualismo que
pela saída do bloco, decisão que ficou conhe- se caracteriza pela recusa da política.
cido por Brexit (junção das palavras inglesas Se por um lado, os nacionalismos redi-
British e exit). Na esteira do Reino Unido, vivos, o hiperindividualismo e a recusa da
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 67

política denotam a falência dos mecanismos global, que nos alerta para a dificuldade de
tradicionais da política universalista, por ou- as tradicionais instituições públicas e priva-
tro, há uma nítida reação de grupos que se das manterem sob controle a diversidade da
negam a cair nas armadilhas de uma diversi- vida e, por via de consequência, as diversas
dade que condena pessoas a categorias como culturas que brotam das franjas do mundo
“arte étnica” ou “world music” – geralmente diante da radicalidade devastadora da lógi-
reservadas a não europeus e não estaduni- ca mercantil. Mais do que nunca, os dilemas
denses – que lhes retiram a historicidade, da atual conjuntura histórica se revelam nos
que lhes roubam a possibilidade de ter outras conflitos da cultura e na cultura dos conflitos.
referências e de se manifestar fora do figuri- Nesse ponto, cabe-nos retornar aos
no que lhes foi imposto pelo capitalismo, pelo argumentos inicialmente propostos, e que
colonialismo e pelo racismo. visavam demonstrar a relação intrínseca en-
Nesse sentido, um olhar mais atento e tre cultura, política e economia. Viu-se uma
menos idealizado sobre a cultura tem pa- dependência recíproca entre a compreensão
pel fundamental, pois é por meio de suas da formação dos Estados e das economias e
múltiplas manifestações que podemos a descrição das transformações culturais, o
compreender a maneira como os diversos que fica demonstrado quando se verificam
grupos se posicionam estruturalmente em as ligações entre as crises econômicas, as es-
relação ao todo da vida social. Como falar tratégias de desenvolvimento e a construção
de democracia, de novas formas de parti- ideológica da nacionalidade e seus sujeitos.
cipação social, de combate à pobreza e de Todavia, afirmar o caráter estrutural da cul-
desenvolvimento sem que tais posições se- tura não significa determiná-la, reduzi-la à
jam compreendidas? institucionalidade e isso é justamente por-
A produção do espaço é condição sine que, relacionada à economia e à política, a
qua non de qualquer processo político, visto cultura é o lugar do conflito, fornecendo a
que o espaço é o lugar da partilha do sensível17, gramática tanto para a manutenção quanto
sem o que a luta política seria materialmente para a contestação da ordem.
impossível. É imperioso ler em conjunto e na Na relação estrutural e de conflito en-
chave da política, inclusive em suas contra- tre o político e o cultural, mais do que uma
dições, o fenômeno da ocupação das escolas simples reação de grupos que querem afir-
públicas18 em São Paulo e em outros lugares mar sua identidade, a afirmação estética de
do Brasil, a efervescência cultural das perife- pessoas negras, as festas funk, o rap e os sa-
rias, representadas por festas como o Batekoo raus nas periferias são, no plano da cultura,
e pelos festivais de rimas da cultura hip-hop, o índice de que está em curso um processo
os saraus de poesia e a afirmação estética da de ressignificação das concepções de demo-
população negra e periférica dos grandes cracia, de espaço público e de desenvolvi-
centros urbanos. E mais: talvez seja a hora mento, que em seus velhos moldes não mais
de ler esses acontecimentos locais e regio- são capazes de contemplar os anseios de um
nais como parte de algo maior, mais amplo, mundo em convulsão.
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Silvio Luiz de Almeida


Natural de São Paulo, formou-se em direito pela Universidade Presbiteriana
­Mackenzie e em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo (FFLCH USP). Em 2006, graduou-se mestre em direito político e
econômico também pelo Mackenzie. Em 2011, obteve o título de doutor pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco). Atualmente realiza pesquisa
de pós-doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São
Francisco). É professor de filosofia do direito, introdução ao direito e ciência política das
faculdades de direito do Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu (USJT). É advoga-
do sócio da banca Gomes, Almeida e Caldas e diretor-presidente do Instituto Luiz Gama.
É também consultor técnico da Federação Quilombola do Estado de São Paulo. Autor de
livros e artigos nas áreas do direito, da filosofia e da política. Pesquisador dos seguintes
temas: marxismo e direito; relação entre filosofia do direito, teoria geral do direito e eco-
nomia política; teoria crítica do direito; teoria da regulação e direito; direitos humanos e
crise econômica; racismo estrutural e capitalismo; e políticas de ação afirmativa.

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Filme

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e Ghalya Lacroix. Bélgica; França; Tunísia: Imovision, 2010. 1 DVD (159 min).

Notas

1 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de


Janeiro: Zahar, 2011. v. 1, p. 24-25.

2 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.


72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

3 “Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios
da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato ‘impolítico
e abominável’ da escravidão. Este argumento – resumo de um panfleto liberal,
contemporâneo de Machado de Assis – põe fora o Brasil da ciência [...]. É claro que
a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo
eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências,
encobrindo o essencial – a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas ideias
seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original [...]” SCHWARZ,
Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2016. p. 11-12.

4 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.

5 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a


sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

6 ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1985. p. 22.

7 HOBSBAWN, Eric. Nação e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. p. 31.

8 Idem, ibidem, p. 32.

9 Sobre isso ver o filme: VÊNUS noire. Direção: Abdellatif Kechiche. Bélgica; França;
Tunísia: Imovision, 2010. 1 DVD (159 min).

10 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. p. 114.

11 Idem, ibidem, p. 112.

12 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América


Latina. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-
sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2016.

13 Ver CABRAL, Amilcar. Obras escolhidas: unidade e luta. Cabo Verde: Fundação
Amilcar Cabral, 2013. v. 1 e 2; MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana (1923). Lima: Empresa Editorial Amauta, 1995.

14 Sobre a construção ideológica do Estado Novo, ver: PARANHOS, Adalberto.


O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 1999.

15 A noção de democracia racial foi fundamental para a constituição ideológica


de um discurso de unidade nacional. A igualdade, ainda que meramente
formal, é condição necessária à formação de uma sociedade industrial e de um
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 73

mercado interno. Nesse sentido, o “mito da democracia racial” cumpre um papel


importantíssimo, pois trata as desigualdades raciais que, até então “científicas”
e marcas de diferentes estágios evolutivos, passam a ser diferenças culturais
próprias da nacionalidade brasileira, ocultando-se assim a contradição entre a
agora essencial igualdade jurídica formal e a desigualdade econômica e política
de boa parte da população [Nota do autor].

16 “Para realizar a revolução capitalista na periferia do centro imperial moderno que


se forma a partir do século XVIII na Europa e nas ex-colônias de povoamento
inglesas, as novas elites burguesas que surgem, primeiro com a exploração de
alguma commodity e, depois, para industrializar o país, deviam ser e formar
nacionalistas, já que o nacionalismo e sua expressão periférica, o nacional-
desenvolvimentismo, eram então a ideologia que legitimava a formação do
Estado-nação e a revolução industrial. [...]. O nacionalismo, desde o início
do século, já vinha fazendo parte do pensamento de um número importante
de intelectuais do país. A sociedade brasileira, a partir da contribuição de
intelectuais como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Olavo Bilac e
Monteiro Lobato, estava vivendo um ciclo que tenho chamado de Ciclo Nação e
Desenvolvimento, que só terminará nos anos 1970. Grandes intelectuais e artistas
nacionalistas vão de alguma forma se associar a Vargas e a seu governo. Entre
os primeiros temos, entre outros, Oliveira Vianna, Roberto Simonsen, Gilberto
Freyre, Barbosa Lima Sobrinho, Ignácio Rangel, Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe
e Celso Furtado; entre os últimos, Villa-Lobos e Cândido Portinari.” BRESSER-
PEREIRA, Luiz Carlos. Getúlio Vargas: o estadista, a nação e a democracia, p.
103-104. In: BASTOS, Pedro Zahluth; FONSECA, Paulo Cezar Dutra (Org.). A era
Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Unesp, 2012. Uma
demonstração da tese aqui exposta – segundo a qual a cultura resulta de embates
e conflitos – seria a oposição política a Getúlio Vargas protagonizada pelo estado
de São Paulo. Tal oposição se refletiu no plano da cultura, o maior exemplo disso
é a criação da Universidade de São Paulo. Curiosamente, a narrativa de que a
criação da USP se inspirou na necessidade de São Paulo “liderar o país através do
conhecimento científico” contra o “arbítrio” do governo Getúlio Vargas está no
manual do calouro: <http://www.scs.usp.br/manualdocalouro/?p=583>.

17 RANCIÈRE, Jacques. Estética e política: a partilha do sensível. São Paulo:


Editora 34, 2009.

18 A escola que é espaço de reprodução da cultura, do estabelecimento de


disciplina e de formação dos sujeitos.
76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  77

2.
CULTURA, PRODUÇÃO E
REPRODUÇÃO DO IMAGINÁRIO
POLÍTICO: O SUBJETIVO NA SUA
MANIFESTAÇÃO OBJETIVA

78. IMAGINÁRIO E POLÍTICA:


A CONSTITUIÇÃO MATERIAL DA SUBJETIVIDADE
Rosane Borges

86. O QUE NOS TORNA MULHERES?


OS PERIGOS DE NOVAS NORMATIZAÇÕES E A
IMPORTÂNCIA DO CAMINHO DESCONTÍNUO
Djamila Ribeiro

96. ARTES E CULTURAS NÃO HEGEMÔNICAS


NO BRASIL: UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIA
Nelson Fernando Inocêncio da Silva

112. PERCEPÇÕES DO ATLÂNTICO –


ANTROPOLOGIA ESTÉTICA, PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO E ANTIRRACISMO
Goli Guerreiro
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

IMAGINÁRIO E POLÍTICA:
A CONSTITUIÇÃO MATERIAL DA SUBJETIVIDADE

Rosane Borges

Este artigo tem como propósito assinalar o papel da política e do imaginário na formação
da subjetividade contemporânea, considerando que os sujeitos são forjados historicamente.
Parte do pressuposto que, numa época marcada pela hipervisibilidade, a política não pode
ser entendida apenas em sua dimensão racional, requerendo análises que tomam o circuito
dos afetos (SAFATLE, 2015) como nexo prioritário para pensarmos nos agenciamentos que
indivíduos e coletividades empreendem para o reconhecimento social.

As conexões entre de que as incidências imaginárias dinamizam


política e imaginário o fazer político em suas diversas modalida-

E
des. Como se sabe, no painel exploratório so-
m tempos visivelmente marcados bre o tema prevaleceu uma tradição teórica
por novas configurações da política, que reservou ao campo político a responsa-
a necessidade renovada de delimitar bilidade de decidir sobre o destino do homem
as fronteiras de seu habitar e o perímetro de e da sociedade sob o crivo da racionalidade.
seu território se impõe de maneira inescapá- No entanto, vêm ganhando cada vez
vel. Como pensar e agir conforme as normas mais espessura as considerações (­SAFATLE,
contemporâneas de modo a incidir nos con- RATTS, PINHO) de que a política não con-
flitos que regurgitam no tecido social? De que cerne tão somente à razão, fazendo emergir
maneira podemos pensar nas subjetividades pesquisas voltadas para os afetos e sensi-
emergentes? Como pensar a trajetória dos bilidades, imbricando razão, sentimentos e
sujeitos, uma vez que as crises que afligem política. Essa perspectiva franqueia novas
o capitalismo afetam as subjetividades dos possibilidades de pensar a relação entre po-
nossos tempos? lítica e estética.
Um dos endereços de resposta a essas Em seu mais recente livro, O Circuito
questões, entre os vários possíveis, encontra- dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o
-se no laço indissolúvel entre política e imagi- Fim do Indivíduo, o professor de filosofia da
nário, uma vez que partimos do entendimento Universidade de São Paulo (USP) Vladimir
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Rosane Borges 79

Safatle – na tentativa de apresentar novos uma ampliação de suas fronteiras capaz de


paradigmas políticos, já que nem as utopias abarcar a dimensão imaginária. Proponho
de esquerda tampouco o capitalismo conse- falar de uma prática política que não receie
guiram auscultar o contemporâneo – ques- ir além da consagrada circunspecção de seu
tiona qual o sentido da política no mundo de território estritamente racional e universal –
hoje. Safatle vê no circuito dos afetos uma tido por tantos como placidamente indiscu-
dimensão importante para uma teoria polí- tível e insuscetível de alargamento.
tica da transformação, uma vez que as mu- O que garante o traçado, se é que ele
danças significativas não atingem apenas as existe, de uma linha divisória entre política
formas de circulação de bens e de distribui- e imaginário? O que demarca as fronteiras
ção de ­riquezas, mas: entre este e aquele? De que forma os eventos
políticos podem ser pensados como entida-
são modificações na estrutura dos des autônomas, isentas de “contaminações”
sujeitos, em seus modos de determinação, entre aquilo que é solenemente considerado
nos regimes de suas economias psíquicas e subjetivo e o que é considerado racional?
nas dinâmicas de seus vínculos sociais. Pois Cultivo a ideia de que política e imagi-
uma transformação política não muda ape- nário não se separam nem por uma intrans-
nas o circuito dos bens. Modifica também o ponível muralha, tampouco por uma frágil
circuito de afetos que produzem corpos po- treliça, o que parece ser a fechadura que
líticos, individuais e coletivos. Por isto, se protege uma da outra. Ambos, a meu ver,
quisermos ver a força de transformação de quando separados, eles o são por um biom-
acontecimentos que começam novamente bo ao mesmo tempo poroso e treliçado, que
a se fazer sentir, é necessário que nos dei- oferece várias brechas como passagem. E
xemos afetar pelo que pode instaurar novas essas passagens moldam as subjetividades
corporeidades e formas de ser (2015). que se materializam fundamentalmente no
trançado entre afetos e racionalidades.
As imbricações entre racionalidades,
sentimentos e sensibilidades instituem e As vias por onde caminha
partilham o espaço político e reelaboram a transformação política
incessantemente os modos de subjetivação. contemporânea
Desses outros prismas podemos absorver a As discussões relativas à temática ha-
ideia que dá sustentação a este artigo: o cam- bitam o coração dos antes chamados “mo-
po do político requer, nos dias que correm, vimentos de minorias” (negros, mulheres,
80 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

gays, lésbicas, trans) que apontaram a indis- capitalismo acentuaram as assimetrias


sociabilidade entre política, representação e com fundamento racial e de gênero, para
imaginário e propugnaram uma ação trans- ficarmos em dois exemplos. A permanên-
formadora capaz de encontrar maneiras de cia de hierarquias, desta feita sob outro
(re)inventar um mundo pos- viés, suscitou, já no alvorecer
sível numa perspectiva esté- Como pensar a trajetória do século XX, uma explosão
tica, ética e política. Algumas dos sujeitos, uma de críticas referentes à di-
vez que as crises que
pensadoras do feminismo nâmica das representações
afligem o capitalismo
negro como Lélia Gonzalez, dos agrupamentos humanos;
afetam as subjetividades
a ex-ministra Luiza Bairros, dos nossos tempos? essas críticas não pararam
a filósofa Sueli Carneiro e a de se expandir e adentraram
médica Jurema Werneck assinalaram, de o século XXI com força expressiva, puxadas
modos diversos, que as antigas ordens de re- pelo anzol da hipervisibilidade. Sob o cur-
presentação, agora em crise, mostravam-se so de movimentações em fluxo contínuo na
incapazes de abarcar o “mosaico possível plataforma da transparência, reavivam-se
de acepções do humano”, o que supunha a as reivindicações por reconhecimento pú-
tarefa de fundar uma nova gramática políti- blico. De acordo com Muniz Sodré, “a visi-
ca, livre das orientações de um pensamento bilidade – o plano das aparências – não é um
oxidado. Não se pode reduzir a questão ao requisito simples, pois suscita os problemas
par universalismo e particularismo onde do reconhecimento social e do valor huma-
muitos quiseram alocá-la. no. Logo, é uma questão de natureza ética”.
Marcadores históricos indicam parte da E essa disputa pelo valor humano,
trajetória percorrida pelo tema. O discurso como se testemunha, promove de maneira
do reconhecimento é obra da aventura mo- decisiva a insubordinação dos corpos “im-
derna, e a reivindicação de novos/outros perfeitos”, “indesejáveis” (negros, mulheres
regimes de representação/visibilidade negras, obesas, gays, lésbicas, trans) ante os
destinados a grupos historicamente discri- signos visuais que teimam em estigmati-
minados é fenômeno cuja fisionomia deita zá-los, deformá-los, ignorá-los, excluí-los
raízes desde o início do século XX. O edifício da paleta que representa cada um(a) e a to-
moderno suplantou a noção de honra para dos(as). A feminista negra estadunidense
tornar legítima a noção de dignidade, conce- Patricia Hill Collins refere-se aos corpos
bida num sentido universalista e igualitário. negros como imagens de controle (con-
O exercício do visível passou a atuar trolling images) que se prestam a fazer dos
em conformidade com um novo padrão: estereótipos um mecanismo que naturali-
tudo o que havia de hierárquico no reco- za o racismo, o sexismo, as desigualdades
nhecimento social teria de desaparecer, de classe e outras formas de injustiça so-
de contrariar as antigas marcas da “eleição cial (2000). Uma trincheira cada vez mais
privilegiada”, característica da aristocra- compacta, constituída em sua maioria por
cia. Porém, as desigualdades inerentes ao jovens, transborda os espaços materiais e
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Rosane Borges 81

digitais em reação as essas imagens calci- Alex Ratts e Osmundo Pinho, professo-
ficadas. Se toda transformação corresponde res de geografia na Universidade Federal de
a uma mudança de sentido, de sua relevân- Goiânia (UFG) e de ciências sociais na Uni-
cia e de seu valor, quais os sentidos que a versidade Federal do Recôncavo da Bahia
negação das imagens estigmatizantes vêm (UFRB), respectivamente, empreenderam
instaurando? Que novos sujeitos poderão análises em que as corporeidades ocupam
surgir desses deslocamentos, já que o visí- posição central na dinâmica das hierarquias
vel vem cada vez mais conformando nos- socioespaciais. Para ambos, os corpos de ho-
sa ­existência? mens negros são geralmente racializados,
subdivididos, sexualizados, desumanizados,
Rumores (in)discretos da o que interfere diretamente nas formas em
subjetividade1: signos contra signos que esses corpos são inseridos nos desdo-
Segundo o filósofo Gilles Deleuze, bramentos da política.
“o pensamento clássico mantinha a alma Embora partam de lugares diferentes,
afastada da matéria e a essência do sujei- motivados por angulações diferenciadas, as
to afastada das engrenagens corporais. Os proposições desses autores são solidárias
marxistas, por sua vez, opunham as superes- entre si, bebem num poço comum, equili-
truturas subjetivas às relações de produção bram-se sobre elementos de uma mesma
infraestruturais. Como falar da produção de equação: despossuir os sujeitos de velhas
subjetividade hoje?” (2010, p. 32). identidades impostas, desobstruir vias para
Os slogans “Vai ter negra e gorda na que se abram às novas corporeidades, ado-
universidade!”, “Vai ter mulher na aviação tando o capital relativo aos afetos (entendi-
brasileira”, “Vai ter preta periférica e trans dos como aquilo que sinto, vejo e percebo)
na pós-graduação!”, “Respeitem meus cabe- como fonte para o “esclarecimento da na-
los, brancos!” sinalizam para novas formas tureza dos impasses dos vínculos sociopo-
de elaboração e exploração do político, em líticos” (SAFATLE, 2015).
que o ético e o estético se imbricam em be-
nefício da projeção de outras subjetivida- Imaginário: a orquestra que nos rege
des, do reposicionamento das engrenagens Esses rearranjos só são possíveis se
corporais em lugares de prestígio da luta so- acrescentarmos às nossas estratégias de
cial e da reflexão crítica. Signos emergen- reflexão e intervenção o exercício per-
tes/insurgentes rebatem signos “estáveis”, manente de interrogação das incidências
enrijecidos, carcomidos por visibilidades imaginárias vistas como uma matriz, uma
que não cabem mais nos estereótipos de atmosfera, uma fábrica que nos aloja na-
outrora. Perspectivas teóricas diversas se quilo que faz laço social. Política, repre-
reinvestem de outras balizas capazes de sentação e imaginário formam um tripé
responder aos apelos de problemas recor- incontornável, ainda que sobre ele pesem
rentes. Vejamos algumas posições entre as resistências justificadas pela crença de que
mais consistentes. a conquista do poder se dá pela disputa de
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

espaços institucionalizados. Um pesqui- Interessa-nos pôr em relevo, de forma su-


sador do campo das relações raciais publi- cinta e banal, a ideia de que o termo recobre
cou recentemente artigo em que empresta um repositório cultural de onde extraímos,
sua voz a este discurso: para ele, em vez de sem saber, as referências que dão sentido
segmentos da militância negra se aterem às nossas vidas. O imaginário teria, assim,
a denúncias de casos de racismo na publi- um papel precedente, o que não é estranho
cidade e em outros espaços às várias tradições teóricas
midiáticos, deveriam se preo- Que novos sujeitos que consideram o ser humano
cupar em conquistar o núcleo poderão surgir desses resultado de antecedências: na
deslocamentos, já que
do poder em diversas áreas da letra foucaultiana, à exceção do
o visível vem cada vez
institucionalidade brasileira. psicótico, nascemos alienados
mais conformando
Parece não saber o pesquisador nossa existência? no discurso vigente; para os teó-
que a conquista do poder passa ricos da linguagem e da semió-
necessariamente por agenciamento de ima- tica, ao falar somos falados (Julia Kristeva),
gens, por visibilidades (não fosse assim, o o humano já nasce como um efeito do outro,
marketing político não seria a menina dos um intertexto (Bakhtin); no abecedário psi-
olhos das campanhas eleitorais). O pensa- canalítico, o inconsciente desautoriza qual-
dor Dominique Colas encerra a questão: quer tentativa de proclamarmos um sujeito
“Toda imagem do poder corresponde a um consciente, racional, senhor absoluto de si.
poder da imagem”. Enfim, “o ser humano é pensado em vez de
As campanhas e os slogans que brotam se pensar soberanamente”.
nas redes sociais e nos espaços materiais Qual a lição que devemos tirar dessas
conseguem, assim, interpelar as imagens de espessas referências? Estariam elas indu-
grupos subalternizados, questionando as re- zindo a uma conformação ante as desigual-
gras que ordenam as visualidades, a sintaxe dades e iniquidades do mundo? Teríamos
que lhes dá estrutura, flagrando o fantástico de abdicar da ação política e nos resignar a
descompasso entre as trajetórias múltiplas ver a boa rotina do mundo em sua assom-
e diferenciadas desses grupos e as imagens brosa imutabilidade?
redutoras que insistem em representá-los. Ao contrário. Considerar as incidên-
Claro que não estamos cegas à sombra de cias imaginárias como recursos que nos
melhora que se projeta nas formas de repre- antecedem não corresponde a eliminar “a
sentação dos “tradicionalmente excluídos” potência do indivíduo” (SODRÉ), a rebai-
dos códigos visuais, mas é inegável a persis- xar a importância da política no seu papel de
tência de discursos vinculados a arquétipos reinterpretar, reelaborar e intervir no mun-
cristalizados no passado, reconhecíveis e do tal qual se nos apresenta. Considerá-las
normalmente aceitos, sancionados pelo corresponde antes à adoção de uma tarefa
imaginário de onde provêm. política que também requer movimentos
Não nos cabe aqui mergulhar nas antecedentes, tal como o funcionamento do
definições intrincadas de imaginário. próprio imaginário, ou seja, no território das
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Rosane Borges 83
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

sub-representações ou das visibilidades fra- representação, ela vem facultando a eles a


turadas; mais do que promover a assunção possibilidade de exercerem papéis e funções
de imagens positivas de grupos estigmati- fora do escopo dos quadrantes que predefinem
zados (o que já é uma conquista de enver- os sujeitos. Na condição de “fazedores” de
gadura), é preciso que produzamos outra mundos possíveis tecem o manto da vida em
ortografia do visual, com novas regras que suas múltiplas formas de existir e resistir.
possam acolher a pluralidade do universo.
Como disse Judith Butler, não basta apenas
disputar reconhecimento social, é preciso
mudar as normas que atribuem reconheci-
mento diferenciado. Eis o nosso desafio. Se
“cada um que nasce (re)inaugura consigo
a humanidade inteira”, a responsabilidade
pela construção de outra história, pela ins-
tauração de uma nova ordem de sentido e
pelo declínio do fixo, do inalterável, supõe
um enfrentamento das regras não escritas
que atribuem, de forma desigual, valor aos
seres humanos.
Costuma-se afirmar que cada tempo
possui desafios políticos específicos. Ar-
riscaria dizer que a nossa época está sendo
marcada por embates na ordem do imaginá-
rio, por guerra de imagens e signos, por sede
de representação e visibilidade (até análises
sobre o Estado Islâmico buscam no estatuto
da visibilidade e da sociedade do espetáculo
as chaves de compreensão desse fenômeno
complexo) que conformam subjetividades
emergentes. Pierre Bourdieu advertiu que
“talvez não exista pior privação, pior carên-
cia, que a dos perdedores na luta simbólica
por reconhecimento, por acesso a uma exis- Rosane Borges
tência socialmente reconhecida, em suma, Pós-doutoranda em ciências da comunicação
por humanidade” (2001). E a luta simbólica pela Escola de Comunicações e Artes da Universi-
pela conformação de outras subjetividades, dade de São Paulo (ECA/USP), doutora pela mes-
principalmente de grupos historicamen- ma universidade, professora no Centro de Estudos
te vulneráveis, vem obtendo vitórias par- Latino-Americanos em Comunicação e Cultura
ciais, pois, mesmo com o ônus histórico da (Celacc/USP).
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Rosane Borges 85

Referências bibliográficas

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BORGES, Rosane. Agora é que são elas: pode a subalterna falar-escrever?. Revista
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BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? São Paulo:
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PINHO, Osmundo. Qual é a identidade do homem negro?. Democracia Viva: revista do


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RATTS, Alex. Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base
acadêmica. Nguzu: revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA) da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, ano 1, n. 1, mar.-jul. 2011.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do


indivíduo. São Paulo: Cosac & Naif, 2015.

SODRÉ, Muniz. A liberdade de viver no espelho. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20


dez. 2014. Caderno Aliás.

Nota

1 Este título é inspirado, parcialmente, no texto poético de Rosane Preciosa


Siqueira, cognominado “Rumores Discretos da Subjetividade”.
86 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O QUE NOS TORNA MULHERES?


OS PERIGOS DE NOVAS NORMATIZAÇÕES E A
IMPORTÂNCIA DO CAMINHO DESCONTÍNUO
Djamila Ribeiro

Discutir e refutar a categoria mulheres como universal se mostra fundamental para a


contemplação das diversas mulheres contidas nesse ser mulher. É inegável que deslocar o pen-
samento hegemônico e ressignificar as diversas identidades de raça e gênero, e assim ampliar
a multiplicidade de vozes e possibilidades de existência, é necessidade que vem se mostrando
tarefa urgente. Porém, é necessário abertura às diversas possibilidades de existência e cautela
para não cair em outras normatividades.

S
ojourner Truth, nome adotado em eles falando sobre direitos, os homens bran-
1843 por Isabella Baumfree, foi uma cos, muito em breve, ficarão em apuros. Mas
abolicionista afro-americana e ativis- em torno de que é toda essa falação?
ta dos direitos da mulher. Truth nasceu no Aquele homem ali diz que é preciso
cativeiro em Swartekill, Nova York. Em 1851, ajudar as mulheres a subir numa carrua-
Truth, que também foi oradora, fez seu dis- gem, é preciso carregar elas quando atra-
curso mais conhecido denominado E eu não vessam um lamaçal e elas devem ocupar
sou uma mulher? 1, na Convenção dos Direitos sempre os melhores lugares. Nunca nin-
da Mulher, na cidade de Akron, Ohio, Esta- guém me ajuda a subir numa carruagem, a
dos Unidos. Tal discurso, feito de improviso, passar por cima da lama ou me cede o me-
foi registrado por Frances Gage, feminista lhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem
e uma das autoras do grande compêndio de para mim! Olhem para meu braço! Eu ca-
materiais sobre a primeira onda feminista pinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros
denominado The History of Woman Suffrage. e homem nenhum conseguiu me superar! E
Porém, a primeira versão registrada foi feita não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar
por Marcus Robinson na edição de 21 de ju- e comer tanto quanto um homem – quando
nho de 1851 do Anti-Slavery Bugle2. tinha o que comer – e também agüentei as
chicotadas! E não sou uma mulher? Pari
Bem, minha gente, quando existe tama- cinco filhos e a maioria deles foi vendida
nha algazarra é que alguma coisa deve estar como escravos. Quando manifestei minha
fora da ordem. Penso que espremidos entre dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me
os negros do sul e as mulheres do norte, todos ouviu! E não sou uma mulher?
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 87

E daí eles falam sobre aquela coisa que interseccionalidade, ou seja, o feminismo ab-
tem na cabeça, como é mesmo que chamam? dicar da estrutura universal ao falar de mu-
(uma pessoa da platéia murmura: “intelec- lheres e levar em conta outras intersecções,
to”). É isto aí, meu bem. O que é que isto como raça, orientação sexual e identidade
tem a ver com os direitos das mulheres ou de gênero, foi atribuído mais fortemente à
os direitos dos negros? Se minha caneca não terceira onda do feminismo, sendo Judith
está cheia nem pela metade e se sua caneca Butler um dos grandes nomes. Porém, o que
está quase toda cheia, não seria mesquinho percebemos com o discurso de Truth e com
de sua parte não completar minha medida? as feministas negras estadunidenses como
Então aquele homenzinho vestido de Bell Hooks e Audre Lorde, que na década de
preto diz que as mulheres não podem ter 1970 já denunciavam a invisibilidade das
tantos direitos quanto os homens porque mulheres negras como sujeito do feminis-
Cristo não era mulher! Mas de onde é que mo, é que esse debate já vinha sendo feito. O
vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? problema então seria sua falta de visibilida-
De Deus e de uma mulher! O homem não de. Tal discussão já vem sendo feita desde a
teve nada a ver com Ele. primeira onda, como mostra Truth, por mais
Se a primeira mulher que Deus criou que não a consideremos feminista na acep-
foi suficientemente forte para, sozinha, ção do termo, assim como na segunda onda,
virar o mundo de cabeça para baixo, então apesar de ambas não serem caracterizadas
todas as mulheres, juntas, conseguirão mu- por esse tipo de reivindicação.
dar a situação e pôr novamente o mundo de
cabeça para cima! E agora elas estão pedin- É minha sugestão que as supostas
do para fazer isto. É melhor que os homens universalidade e unidade do sujeito do fe-
não se metam. minismo são de fato minadas pelas restri-
Obrigada por me ouvir e agora a ve- ções do discurso representacional em que
lha Sojourner não tem muito mais coisas funcionam. Com efeito, a insistência pre-
para dizer. matura num sujeito estável do feminismo,
compreendido como uma categoria uma das
Esse discurso de Truth, ainda no sécu- mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas
lo XIX, já evidencia um grande dilema que recusas a aceitar essa categoria. Esses domí-
o feminismo viria a enfrentar: o tema da in- nios de exclusão revelam as conseqüências
terseccionalidade3. Esse debate em torno da coercitivas e reguladoras dessa construção,
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mesmo quando a construção é elaborada com tinha o que comer – e também agüentei as
propósitos emancipatórios. Não há dúvida, chicotadas! E não sou uma mulher? Pari
a fragmentação no interior do feminismo cinco filhos e a maioria deles foi vendida
e a oposição paradoxal ao feminismo – por como escravos. Quando manifestei minha
parte de “mulheres” que o feminismo afirma dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me
representar – sugerem os limites necessá- ouviu! E não sou uma mulher?
rios da política de identidade. A sugestão de
que o feminismo pode buscar representação não estaria ela já denunciando que mulhe-
mais ampla para um sujeito que ele próprio res negras eram tratadas diferentemente em
constrói gera a conseqüência irônica de que relação às mulheres brancas? Que a inter-
secção de raça deveria ser levada em con-
os objetivos feministas correm o risco de fra-
cassar, justamente em função de sua recusa sideração? Truth, por meio de sua vivência
a levar em conta os poderes constitutivos de como mulher negra ex-escrava, já no século
suas próprias reivindicações representacio- XIX, apontava para o fato de que, ao se falar
nais. (BUTLER, 2003, p. 22). de direitos das mulheres, o sujeito represen-
tado não era o sujeito mulher negra. E essa
Nessa citação, Butler está problemati- pergunta, aparentemente tão simples, tam-
zando o quanto a unidade da categoria mu- bém pode ser utilizada para outros sujeitos
lheres é excludente no sentido de deixar de mulheres, como mulheres trans e mulheres
fora muitas outras identidades. Mas quando não ocidentais.
Truth diz Truth, já em 1851, desafiava o modo
pelo qual as representações do feminismo
Aquele homem ali diz que é preciso estavam sendo concebidas; já nos dava uma
ajudar as mulheres a subir numa carrua- pista sobre como o movimento estava se or-
gem, é preciso carregar elas quando atra- ganizando de modo a privilegiar vozes que,
vessam um lamaçal e elas por mais oprimidas que fos-
devem ocupar sempre os O que a voz de Sojouner sem, obtinham algum tipo
melhores lugares. Nunca traz, além de inquietações de privilégio.
ninguém me ajuda a subir e da necessidade de existir, O que a voz de Sojouner
numa carruagem, a pas- é a evidência de que as traz, além de inquietações e
sar por cima da lama ou
vozes esquecidas pelo da necessidade de existir, é a
feminismo já tratavam há
me cede o melhor lugar! evidência de que as vozes es-
muito tempo da questão:
E não sou uma mulher? quecidas pelo feminismo já
Por que demoraram tanto
Olhem para mim! Olhem a ouvir essas vozes? tratavam há muito tempo da
para meu braço! Eu capi- questão: Por que demoraram
nei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e tanto a ouvir essas vozes? A voz de Truth não
homem nenhum conseguiu me superar! E traz somente uma disfonia em relação à his-
não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar tória dominante do feminismo, mas também
e comer tanto quanto um homem – quando em relação à urgência por existir.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 89

Audre Lorde no texto As ferramen- racista são usadas para examinar os frutos
tas do mestre não vão desmantelar a casa do mesmo patriarcado? Significa que ape-
­grande4, de 1979, nos dá uma perspectiva nas os perímetros mais estreitos de mudan-
muito interessante: ça são possíveis e admissíveis.
[...] Promover a mera tolerância de
Eu concordei em fazer parte da con- diferença entre mulheres é o reformismo
ferência do New York University Institute mais nojento. É uma total negação da fun-
for the Humanities um ano atrás, com o en- ção criativa da diferença em nossas vidas. A
tendimento de que eu iria comentar sobre diferença não deve ser meramente tolerada,
trabalhos que lidam com o papel da diferen- mas vista como um fundo de polaridades ne-
ça dentro das vidas de mulheres america- cessárias entre as quais nossa criatividade
nas: diferença de raça, sexualidade, classe pode faiscar como uma dialética. Apenas
e idade. A ausência destas considerações então a necessidade de interdependência
enfraquece qualquer discussão feminista se torna não ameaçadora. Apenas dentro
do pessoal e do político. dessa interdependência de forças diferentes,
É uma arrogância acadêmica particu- reconhecidas e iguais, o poder de procurar
lar supor qualquer discussão sobre teoria novos meios de ser no mundo pode gerar, as-
feminista sem examinar nossas muitas sim como a coragem e o sustento para agir
diferenças, e sem uma contribuição signi- onde não existem alvarás.
ficante das mulheres pobres, negras e do [...] Como mulheres, nós fomos ensina-
terceiro mundo, e lésbicas. E, ainda assim, das a ou ignorar nossas diferenças, ou vê-las
estou aqui como uma feminista negra e como causas de separação e suspeita em vez
lésbica, tendo sido convidada a comentar de forças para serem mudadas. Sem comu-
no único painel nesta conferência no qual nidade não há libertação, apenas o armistí-
dados sobre feministas negras e lésbicas cio mais vulnerável e temporário entre um
são representados. O que isto diz sobre a indivíduo e sua opressão. Mas comunidade
visão desta conferência é triste, num país não deve significar uma queda de nossas di-
onde racismo, sexismo e homofobia são ferenças, nem a pretensão patética de que
inseparáveis. Ler esta programação é pre- essas diferenças não existem.
sumir que mulheres lésbicas e negras não Aquelas de nós que estão fora do cír-
têm nada a dizer sobre existencialismo, o culo da definição desta sociedade de mu-
erótico, a cultura e o silêncio das mulheres, lheres aceitáveis, aquelas de nós que foram
o desenvolvimento da teoria feminista, ou forjadas no calvário da diferença – aquelas
heterossexualidade e poder. E o que signifi- de nós que são pobres, que são lésbicas, que
ca em termos do pessoal e do político quan- são negras, que são mais velhas – sabem
do mesmo as duas mulheres negras que que sobrevivência não é uma habilidade
estão aqui presentes foram literalmente en- acadêmica. É aprender como estar sozi-
contradas na última hora? O que significa nha, impopular e às vezes injuriada, e como
quando as ferramentas de um patriarcado criar causa comum com aquelas outras que
Eu capinei, eu
plantei, juntei palha
nos celeiros e homem
nenhum conseguiu
me superar! E não
sou uma mulher? Eu
consegui trabalhar e
comer tanto quanto
um homem – quando
tinha o que comer – e
também agüentei as
chicotadas! E não sou
uma mulher?”
(Sojourner Truth)
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

se identificam como fora das estruturas a mulheres, como fica a cooperação interra-
fim de definir e buscar um mundo no qual cial entre feministas que não amam umas
todas nós possamos florescer. É aprender às outras?
como pegar nossas diferenças e transfor- Em círculos acadêmicos feministas,
má-las em forças. Pois as ferramentas do a resposta a essas perguntas é quase sem-
mestre não irão desmantelar a casa do pre: “Nós não sabíamos a quem perguntar”.
mestre. Elas podem nos permitir tempo- Mas é a mesma evasão de responsabilidade,
rariamente a ganhar dele em seu jogo, mas o mesmo esquivar-se, que mantém a arte
elas nunca vão nos possibilitar a causar de mulheres negras fora de exposições de
mudança genuína. E este fato é somente mulheres, o trabalho de mulheres negras
ameaçador àquelas mulheres que ainda de- fora da maioria das publicações feministas
finem a casa do mestre como a única fonte exceto na ocasional Edição Especial sobre
de apoio delas. Mulheres do Terceiro Mundo, e textos de
Num mundo de possibilidade para mulheres negras fora de suas listas de lei-
todas nós, nossas visões pessoais ajudam a tura. Mas como Adrienne Rich destacou
montar a base para ação política. O fracasso numa palestra, feministas brancas se edu-
de feministas acadêmicas em reconhecer caram em enormes porções nos últimos dez
diferença como uma força crucial é um anos, por que vocês ainda não se educaram
fracasso de ultrapassar a primeira lição pa- sobre mulheres negras e as diferenças en-
triarcal. No nosso mundo, dividir e dominar tre nós – brancas e negras – quando é algo
precisam se tornar definir e empoderar. chave para nossa sobrevivência enquanto
[...] Se a teoria de feministas ameri- um movimento?
canas brancas não precisa lidar com as di- Mulheres de hoje ainda são chamadas
ferenças entre nós e a diferença resultante a se estenderem através do vão da ignorân-
em nossas opressões, então como você lida cia masculina e educarem os homens sobre
com o fato de que mulheres que limpam suas nossa existência e nossas necessidades.
casas e tomam conta de suas crianças en- Esta é uma ferramenta antiga e primária
quanto você vai a conferências sobre teoria de todos os opressores para manter pessoas
feminista são, na maior parte, mulheres po- oprimidas ocupadas com as preocupações
bres e mulheres negras? Qual é a teoria por do mestre. Agora nós ouvimos que é tare-
trás do feminismo racista? fa de mulheres negras educarem mulheres
Por que outras mulheres negras não brancas – em face de tremenda resistência –
foram encontradas para participar desta sobre nossa existência, nossas diferenças,
conferência? Por que dois telefonemas a nossos papéis relativos em nossa sobrevi-
mim foram considerados uma consulta? vência conjunta. Isto é um desvio de ener-
Eu sou a única fonte possível de nomes do gias e uma repetição trágica de pensamento
Feminismo Negro? E apesar de o trabalho racista e patriarcal.
da palestrante negra terminar numa cone- Simone de Beauvoir disse uma vez: “É
xão importante e poderosa de amor entre no conhecimento de condições genuínas
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 93

de nossas vidas que devemos chamar nossa as estruturas para que uma real emancipa-
ção se concretize. Aponta para os limites da
força para viver e nossas razões para agir”.
Racismo e homofobia são condições política de representação, do modo pelo qual
o movimento opera, não somente pela uni-
reais de todas as nossas vidas neste lugar
e época. Eu incito cada uma de nós aqui aversalização da categoria mulheres – o que é
um erro e também apagamento de múltiplas
descer até aquele lugar profundo de conhe-
identidades –, mas também porque o movi-
cimento dentro de si e tocar esse terror e
mento ainda busca a emancipação dentro dos
ódio a qualquer diferença que vive lá. Veja
moldes preestabelecidos.
de quem é a face que ele usa. Então o pessoal
enquanto o político pode começar a iluminar Esses questionamentos apontam para
todas as nossas escolhas. a importância de discutir a identidade como
um deslocamento, trazendo a possibilidade
Audre Lorde propõe que se repense a de ressignificação e remodelação com o ob-
ação política do feminismo. Ao dizer que “as jetivo de propor rupturas nas velhas corren-
ferramentas do mestre não tes de pensamento, fazendo
desmantelarão a casa gran- Se as ferramentas do assim com que elementos
de”, ela aponta para o fato de mestre não desmantelarão novos e velhos se reagrupem
que o modelo de representa- a casa grande, quais ao redor de uma nova gama
ção utilizado pelo feminis- ferramentas seriam de paradigmas.
mo até então é insuficiente. necessárias para contemplar Trata-se de construir
Evidencia que outras vozes as múltiplas identidades? teorias com o intuito de pen-
precisam ser ouvidas e que a sar outros direcionamentos
universalização deixa de fora muitas iden- ou mesmo questionar o que se compreen-
tidades contidas nesse ser mulher. Há uma de em nossa sociedade como gênero, sexo,
demanda reprimida, não se pode negar. sexualidade, raça, corpo, sujeitos políticos
Mulheres negras, por exemplo, neces- e identidades.
sitam de mais representatividade e políticas O arcabouço teórico crítico trazido pelo
públicas direcionadas. Assim como mulheres feminismo negro evidencia a importância de
trans, lésbicas. Entretanto, esse modelo nos observar que as marcações que promovem a
faz questionar se o abarcamento de múlti- interseccionalidade da produção de identi-
plas identidades na ação política também dades são múltiplas categorias e definições
não criaria uma nova normatividade. Lorde e, nesse sentido, apontam para a necessidade
estaria certa ao dizer que são necessárias de um caminho descontínuo, sem fórmulas
outras ferramentas? fechadas. Caminhos esses que confrontam,
Se as ferramentas do mestre não des- questionam e desconstroem paradigmas no
mantelarão a casa grande, quais ferramentas que diz respeito a (re)pensar as representa-
seriam necessárias para contemplar as múl- ções dos sujeitos. Não há uma resposta ab-
tiplas identidades? Como podemos observar, soluta, o caminho é estar disponível a fazer
Lorde acredita que é necessário romper com novas perguntas.
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mem-
bro fundadora do Mapô – Núcleo de Estudos Interdisciplinar em Raça, Gênero e Sexuali-
dade da Unifesp; e colunista do site Carta Capital e do Blog da Boitempo.

Referências bibliográficas

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PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências


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Sociais da UFG, Goiás, v. 11, n. 2, p. 263-274, jul.-dez. 2008.

Notas

1 E Não Sou Eu uma Mulher? também é o nome do primeiro livro da teórica e


feminista negra Bell Hooks, lançado em 1981 e inspirado no discurso de Truth.

2 Disponível em: <http://www.sojournertruth.org/Library/Speeches/>.


Acesso em: 15 abr. 2014.

3 A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, p. 177).

4 Texto lido por Audre Lorde no painel Personal or the Political – II/
Conference on the Feminist Theory/New York, 1979. Disponível em:
<http://www.geledes.org.br/mulheres-negras-as-ferramentas-do-
mestre-nunca-irao-desmantelar-a-casa-do-mestre/?fb_comment_
id=fbc_144656479070889_118922_144665202403350#f4aad6258>.
Acesso em: 20 maio 2016. Áudios da palestra disponíveis em:
<http://herstories.prattinfoschool.nyc/omeka/document/50> [Nota do editor].
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ARTES E CULTURAS NÃO


HEGEMÔNICAS NO BRASIL:
UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIA

Nelson Fernando Inocêncio da Silva

Breve digressão histórica em torno dos processos que resultaram em hierarquizações


culturais no país, acarretando prejuízos irreparáveis. Interpretação acerca de determinadas
ações na direção oposta, que procuraram valorizar as identidades de segmentos que dão for-
ma e conteúdo às lutas contra-hegemônicas. A presente abordagem objetiva não apenas dar
visibilidade, mas também compreender as estratégias adotadas por tais grupos e por aquela
pequena parcela que, mesmo pertencendo à cultura hegemônica, se torna aliada importante
nos embates culturais da contemporaneidade. Nesse sentido, as artes e os valores estéticos da
alteridade adquirem mais força, pois para além das banalizações usuais estas referências são
substanciais como fomento das afirmações identitárias dos excluídos.

Nosso medo é o de percebermos que


a nossa força era maior do que imaginávamos.
Nelson Mandela

A
experiência cultural brasileira, fru- mento eurocêntrico, capaz de subjugar as vá-
to de intenso e complexo processo rias culturas não ocidentais envolvidas nesse
de caldeamento, tem servido até os processo. Não que queiramos aqui vitimizar
dias atuais para sustentar, sobretudo, a ideia os excluídos, mas devemos compreender as
de uma sociedade singular, supostamente ca- motivações que os levaram à condição de
paz de lidar bem com toda a sua diversidade. condenados da terra, de acordo com as re-
Todavia, um olhar mais meticuloso sobre flexões de Frantz Fanon1.
essa realidade permitirá a observação do O legado das teses racialistas produ-
seguinte paradoxo: somos um país de gran- zidas no século XIX forneceu ao racismo
de diversidade, o que não significa dizer ne- um caráter “científico” que alimentou a
cessariamente que aqui prevaleça o respeito construção de olhares estereotipados por
às diferenças. A sociedade constituída neste longo período. “Pérolas” como o determinis-
território, bem como as demais resultantes mo geográfico, assentado na noção de que
da colonização, sofreu o impacto do pensa- o desenvolvimento cultural resultaria das
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 97

condições climáticas e de que, nessa pers- senso comum, e mesmo a determinados es-
pectiva, as sociedades tropicais represen- paços mais especializados, algumas noções
tariam o atraso; o determinismo biológico, retrógradas acerca das diferenças étnico-ra-
baseado no entendimento de que o desen- ciais e culturais são fluidas.
volvimento humano estaria condicionado Partindo dos argumentos expostos,
a vantagens ou desvantagens genéticas quem sabe possamos definir as bases que
que poderiam ser mensuradas em relação sustentam a discussão em torno da relevân-
a cada segmento, leia-se “raça”; o evolucio- cia de perspectivas excêntricas para pen-
nismo unilinear alicerçado na ideia de que sarmos nas artes e nas culturas produzidas
a “evolução” humana se constitui em via aqui. Conduta que se torna necessária ante
de mão única, considerando as sociedades a permanência de discursos hegemônicos
europeias como modelos a ser perseguidos propensos a inviabilizar o acesso ao conhe-
pelas demais. Essas ideias são abordagens cimento produzido por segmentos histori-
conservadoras e problemáticas que ain- camente marginalizados. Aliás, a questão
da não foram completamente sepultadas. do conhecimento apresenta-se como chave
Todo esse repertório é fruto da aterradora para a desconstrução da lógica eurocêntri-
experiência que procurou desqualificar “os ca, pois quase toda nossa educação formal
outros” não ocidentais. Os ecos desse pas- está baseada na centralidade do conheci-
sado ainda reverberam na contemporanei- mento produzido pelo ocidente, haja vista a
dade, apesar da atualidade do debate sobre estruturação de programas e currículos que
questões alusivas ao multiculturalismo e à vão desde a formação básica até o ensino su-
diversidade cultural. perior. As alterações substanciais sofridas
As práticas mencionadas tiveram e, em na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
certa medida, continuam a ter forte impacto Brasileira a partir da formulação de leis fe-
sobre as alteridades constituídas por povos derais compulsórias, como a 10.639/2003
cujas referências culturais são historica- e a 11.645/2008, que exigem o imediato en-
mente distintas do padrão estabelecido a volvimento docente com os conteúdos que
partir da relação metrópole/colônia. Apesar tratem das histórias e culturas africanas,
dos esforços para a desconstrução de pensa- afro-brasileiras e ameríndias, representam
mentos que no limite deságuam nas fobias, um avanço. Todavia, o comprometimento
ainda há muito por ser feito. No que tange ao das instituições de ensino superior do país
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

em relação às modificações necessárias não hegemônicos. Se fizermos uma breve


aos cursos de licenciaturas, inserindo es- digressão histórica, iremos perceber que
sas novas abordagens no processo de for- na transição do século XIX para o século
mação universitária, parece lento e gradual XX a área de pesquisa, recente na época,
por demais. chamada estudos afro-brasileiros era do-
As ações com alguma visibilidade minada por estudiosos brancos, a maioria
que buscam responder aos desafios apre- entorpecida pelas “contribuições” das teses
sentados pelas reformulações citadas são racialistas citadas há pouco. Entre eles, o
protagonizadas na maioria das vezes por mais conhecido fora Raimundo Nina Ro-
núcleos de estudos afro-brasileiros e em drigues, que, apesar do ineditismo do seu
certas circunstâncias por trabalho, em particular no to-
núcleos de estudos afro-bra- [...] em uma dessas cante aos estudos acerca das
sileiros e indígenas vincula- reviravoltas históricas, artes desenvolvidas pelos co-
dos às varias universidades o ocidente, ao colonizar lonos negros, não conseguiu
e explorar determinados
públicas, poucas particulares, se desvencilhar de determi-
povos não ocidentais,
além dos institutos federais. nadas noções que davam a
acabou revelando
O trabalho desenvolvido por aspectos surpreendentes linha na formulação do ra-
esses núcleos é de inegável de suas culturas que não cismo científico. Foram subs-
importância, principalmente imaginava existir. tanciais também as pesquisas
se levarmos em consideração assinadas por Manuel Queri-
os investimentos que realizam, a exemplo no e Edson Carneiro, duas personalidades
de cursos de pós-graduação lato sensu, na negras que se debruçaram sobre as artes e
maioria das vezes com recursos bastante culturas a­ fro-brasileiras. Porém, a predomi-
limitados. Tais esforços são específicos e nância nesse terreno até meados do século
não expressam o compromisso amplo que XX foi dessa intelectualidade aristocrática
deveria haver, por parte de cada gestão nas e eurocêntrica. Com frequência ela procu-
reitorias das universidades brasileiras, rava interpretar a alteridade representada
quanto a tal demanda. por africanos, ameríndios e por seus des-
A referida questão se traduz, a meu ver, cendentes mais próximos, fenotipicamen-
em um embate que explicita uma das lutas te identificáveis, a partir de análises que só
contra-hegemônicas por reconhecimento e eventualmente escapavam dos vícios oriun-
visibilidade dos segmentos historicamen- dos do evolucionismo unilinear. Isso sem
te preteridos e por esta razão vulneráveis. nos debruçarmos detidamente sobre o mito
Ainda a respeito das perspectivas das cha- da democracia racial2 e o relevante impacto
madas minorias em espaços de disputas sociocultural ocasionado por esse fenôme-
como a universidade, poderíamos dizer se- no. Anteriormente a tal mito, boa parte da
guramente que os perfis predominantes dos sociedade brasileira aprendeu a celebrar a
atuais núcleos de estudos afro-brasileiros ideologia do branqueamento implícita em
já representam uma conquista de grupos determinadas políticas de Estado, como as
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 99

de estímulo à imigração europeia, no anseio mecenato capaz de viabilizar seu espaço físi-
de modernização do país e na vã esperança co. Até 1968, antes do autoexílio nos Estados
de que as presenças indígena e negra um dia Unidos, Abdias Nascimento, fundador do
se tornassem residuais por aqui. TEN, procurou obstinadamente apoio para
Conforme Elisa Larkin Nascimento, instaurar a sede do MAN, sem lograr êxito.
a primeira reviravolta concernente aos es- Ao retornar ao país, durante o processo de
tudos afro-brasileiros teria ocorrido nos abertura política, Nascimento se deparou
anos 1950 com o surgimento do interesse com novos desafios, que provavelmente lhe
de uma parcela de pesquisadores brasilei- tiraram o foco no que tange às aspirações de
ros pelos processos de descolonização da constituição daquele espaço cultural. Fale-
África. Essa tendência teria modificado ceu em 2011, conseguindo fazer do MAN um
substancialmente o modo de ver o conti- museu virtual abrigado pelo sítio do Institu-
nente africano, postura distinta daquela to de Pesquisas e Estudos ­Afro-Brasileiros
predominante assumida por africanistas (Ipeafro), hoje sob coordenação de sua es-
avessos ao debate racial e que enxergavam posa, Elisa Larkin Nascimento.
as culturas africanas e afro-brasileiras com Atendo-nos ainda aos meados do século
certos vícios, ainda sobrecarregadas pelo passado, podemos dizer seguramente que
peso do imaginário do século XIX. o desenvolvimento do Projeto Unesco3 no
Segundo o crítico de arte Mário Pedro- Brasil também cooperou para as mudanças
sa, citado por Lúcia Santaella no livro Arte de rumo nos estudos voltados à diversidade
& Cultura: Equívocos do Elitismo, em uma étnico-racial e cultural brasileira. A partir
dessas reviravoltas históricas, o ocidente, dos anos 1960, o golpe civil-militar impõe
ao colonizar e explorar determinados povos um longo jejum político-cultural ao país,
não ocidentais, acabou revelando aspectos tornando os movimentos sociais proscritos
surpreendentes de suas culturas que não e os assuntos polêmicos como o racismo
imaginava existir. subversivos. Posteriormente, da segunda
Felizmente, interpretações distintas metade da década de 1970 em diante, ante
das mais conservadoras foram possíveis. um nítido desgaste do regime autoritário
O legado do Teatro Experimental do Negro e da rearticulação dos movimentos sociais
(TEN) nos anos 1940 e 1950, em particu- ainda na clandestinidade, começam a se
lar no que se refere às teses e discussões redesenhar as lutas populares. Em relação
proporcionadas pelo I Congresso do Negro ao movimento negro, por exemplo, foi pos-
Brasileiro, merece atenção. Os debates acer- sível constatar o surgimento de uma nova
ca de uma dessas teses, intitulada Estética tendência dentro das universidades: reivin-
e Negritude, resultaram na formulação da dicava-se que o segmento ­afro-brasileiro
proposta de criação do Museu de Arte Ne- deixasse de ser apenas objeto de pesquisa
gra (MAN), que lamentavelmente, apesar para se tornar sujeito da pesquisa. Alguns
de receber várias doações de obras de artis- registros constantes no filme documentá-
tas do modernismo, jamais encontrou um rio Ori: Cabeça e Consciência Negra, dirigido
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 101

pela cineasta Raquel Gerber e baseado no de pessoas negras nos programas de pós-
argumento da historiadora Beatriz Nas- -graduação, com foco também na carreira
cimento, evidenciam a emergência dessa docente. Tanto o Copene quanto a ABPN
conduta coletivizada. Tanto Gerber quanto continuam a desempenhar seus ofícios re-
Nascimento participaram intensamente dos presentando um flanco das lutas culturais
debates realizados na Quinzena do Negro na contra-hegemônicas no que se refere à in-
USP, e nas imagens capturadas por Gerber clusão dos excluídos em um espaço de pres-
ficam nítidas as aspirações do ativismo afro tígio e poder como a universidade, além de
em relação à inserção da população negra colocar sob questionamento a permanência
no espaço acadêmico, como protagonista. e prevalência de currículos eurocêntricos
Outro episódio relevante foi a realiza- nas instituições acadêmicas que formam a
ção em 1983 no Brasil do III Congresso de elite cultural do país.
Culturas Negras das Américas, coordena- A diversidade étnico-racial e cultural
do por Abdias Nascimento e que também é algo mais complexo do que imaginamos,
é objeto de análise do filme e o caso brasileiro não che-
mencionado. Durante o Em relação ao movimento ga a ser tão distinto quanto
evento, foi possível consta- negro, por exemplo, muitos ainda acreditam. Da
tar diferenças, mas por outro foi possível constatar perspectiva de superação da
lado várias afinidades entre o surgimento de uma hegemonia ocidental, esses
nova tendência dentro
os povos que constituem as são apenas alguns exemplos.
das universidades:
culturas afro-americanas. Os povos indígenas também
reivindicava-se que o
Por afro-americano quero segmento afro-brasileiro possuem um histórico de
aludir não apenas ao povo deixasse de ser apenas enfrentamentos e algumas
negro estadunidense, mas objeto de pesquisa para se conquistas em meio a pro-
também aos diversos povos tornar sujeito da pesquisa. cessos de constante afir-
de origem africana que a par- mação de suas identidades.
tir do tráfico atlântico de almas e do advento Em determinados momentos, algumas
da escravidão moderna passaram a habitar alianças entre negros e indígenas foram
o chamado Novo Mundo, constituindo a estabelecidas em busca do fortalecimento
diáspora africana. de ambos os segmentos nas lutas por visi-
Após anos de debates voltados para a bilidade e reconhecimento. Tais parcerias
formação de uma expressiva intelectuali- continuam sendo substanciais como estra-
dade negra neste país, é fundada em 2000, tégias contra-hegemônicas. Uma das mais
durante o I Congresso Brasileiro de Pesqui- emblemáticas talvez tenha sido aquela que
sadores Negros (Copene), na Universidade resultou em manifestação pública na cidade
Federal de Pernambuco (UFPE), a Asso- de Porto Seguro durante as comemorações
ciação Brasileira de Pesquisadores Negros dos 500 anos do “descobrimento” do Bra-
(ABPN), cujos objetivos principais estão sil, realizadas em 2000. Manifestação que,
voltados para a participação mais efetiva por reivindicar políticas públicas voltadas
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

para ambas as populações esquecidas ao sobre o país. Para cada módulo foi elabora-
longo de cinco séculos, foi duramente re- do um catálogo, todos eles com perceptíveis
primida pelo aparato de segurança do Es- qualidades tanto no que se refere à forma
tado. No dia seguinte, os jornais, inclusive quanto ao conteúdo. Destaca-se o equilíbrio
os da grande imprensa, estampavam nas nas curadorias, nas expografias e na produ-
primeiras páginas os dois lados, duas ma- ção dos materiais impressos, tratando-se
neiras contraditórias de enxergar o mesmo da arte acadêmica do século XIX ou da arte
acontecimento. O propósito do governo de popular. A preocupação no modo de lidar
Fernando Henrique Cardoso de promover com os acervos, fossem de arte barroca, fos-
uma grande celebração em torno da data, sem de arte indígena, parecia semelhante. O
abafando as vozes dissonantes levantadas cuidado com as informações a respeito da
naquele momento, não foi plenamente arte produzida pelos viajantes sobre o país
bem-sucedido, pois o protesto dos que não ou da arte afro-brasileira era análogo.
encontravam sentido em tais festejos se Muito provavelmente esse gesto ado-
tornou público e, apesar da repressão, não tado pelos idealizadores dessa imensa ex-
pôde ser emudecido. Tensões semelhantes posição seja uma resposta no campo das
ocorreram no período de comemoração dos artes às questões apresentadas por alguns
500 anos da conquista da América em 1992, movimentos sociais em prol das suas iden-
quando lideranças dos povos autóctones do tidades culturais preteridas. São raros os
continente se contrapuseram às narrativas momentos da nossa história em que tama-
mestras em evidência. nha convergência se estabeleça. Ainda que
Em meio às tensões decorrentes da em 2000 a euforia em torno dos 500 anos
homenagem ao feito de Pedro Álvares Ca- da chegada dos portugueses parecesse
bral, aconteceu uma megaexposição no incontrolável por um lado, a urgência de
complexo da Bienal de São um debate acerca da diver-
Paulo, intitulada Mostra do O trabalho organizado sidade cultural brasileira
Redescobrimento, também por Zanini se constitui em ­tornava-se impostergável,
conhecida como Mostra provocação necessária a fim por outro. O discurso hege-
de que superemos os velhos
Brasil + 500, cujo objetivo mônico sobre o mito funda-
modelos de hierarquização
era agregar as diferentes dor da nação não se mostrou
cultural que contaminaram
produções artísticas que tantas produções na suficientemente capaz de
contribuíram e contribuem história da arte. ofuscar os posicionamen-
para explicar os imaginários tos assumidos por parcelas
dos segmentos formadores da nação bra- expressivas de grupos socialmente vulne-
sileira. Conforme estudos desenvolvidos ráveis. Isso, de acordo com o pensamento
recentemente pela pesquisadora Renata de Antonio Gramsci5, é resultado das arti-
Felinto, o projeto coordenado por Nelson culações contra-hegemônicas que atuando
Aguilar resulta na constituição de 12 mó- em espaços inadvertidamente deixados pela
dulos4 que representam narrativas visuais hegemonia alcança inclusive parcelas dos
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 103

segmentos favorecidos, influenciando-os e módulos que inserissem as artes indígenas,


fazendo com que ajam em prol de deman- as artes afro-brasileiras e as artes do incons-
das reprimidas. ciente. Assim poderíamos enxergar todas
Antes da Mostra do Redescobrimento, essas produções, constantemente margina-
constatamos pouquíssimas situações no lizadas, de uma perspectiva moderna.
campo das artes nas quais a diversidade Essa e outras ações bem anteriores in-
cultural brasileira fora tratada de forma dicam uma tendência não hegemônica nos
democrática, sem a ênfase tão corriquei- modos de pensar arte e cultura no ­Brasil.
ra dada aos preterimentos, acoitamentos Quando Mário de Andrade, à frente da Se-
e silenciamentos. A publicação intitulada cretaria de Cultura nos anos 1930, priorizou
História Geral da Arte no Brasil, organizada registros fonográficos, filmes etnográficos,
pelo pesquisador Walter Zanini, também além do trabalho de catalogação das cultu-
é um marco. Editada em dois tomos, ela ras populares brasileiras de matrizes africa-
apresenta riqueza de detalhes imagéticos nas e indígenas, em sua maioria, certamente
e textuais acerca dos assuntos que mais ex- provocou setores da sociedade brasileira,
ploramos, bem como daqueles relacionados ainda contaminados pela ideia de alta e bai-
às alteridades basicamente representadas xa cultura, mais uma herança, um nefasto
pelas culturas ameríndias, negras e popula- legado do século XIX.
res. Os autores se debruçaram sobre a arte No limiar do século XXI, é possível ale-
brasileira abordando seus diversos aspectos gar que as vertentes indígena, negra e popu-
e enfrentando limitações concernentes às lar com suas culturas e saberes, inclusive no
literaturas disponíveis em determinados plano da cognição estética, vêm estabelecen-
tópicos. A obra, lançada em 1983, continua do desafios e ameaçando paradigmas eterni-
a ser referência e permanece como um dos zados pela tradição ocidental. Limites que se
empreendimentos mais ousados naquilo tornaram objetos de preocupação inclusive
que diz respeito à literatura existente sobre dos pesquisadores do campo das artes vi-
artes visuais no Brasil. O trabalho organi- suais. Hélio Fervenza em publicação intitu-
zado por Zanini se constitui em provoca- lada O + É Deserto alerta para as armadilhas
ção necessária a fim de que superemos os de uma história da arte mainstream. Hans
velhos modelos de hierarquização cultural Belting, por sua vez, coloca em discussão o
que contaminaram tantas produções na modelo de investigação nas artes visuais. Em
história da arte. O Fim da História da Arte ele adverte que
Nessa mesma sintonia, encontra-se certas formas de abordagem estão esgotadas
Mário Pedrosa, citado por Roberto Condu- em suas possibilidades e que o desafio de um
ru em seu livro Arte Afro-Brasileira. Depois mundo cada vez mais globalizado impõe a
do incêndio que devorou boa parte do acervo revisão de determinados padrões.
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janei- Por certo, ao falarmos em mundo glo-
ro (MAM/RJ) em 1977, Pedrosa propôs um balizado não podemos ignorar a análise crí-
projeto de recuperação constituído de vários tica desenvolvida por Milton Santos sobre
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

o assunto. Ao denunciar o que chama de geral da história da arte brasileira, o que


globalitarismo, Santos alerta para as ilu- foi um trabalho hercúleo. Tais ações foram
sões de um mundo que ainda sofre com a protagonizadas por Araújo, que não se bas-
concentração de renda nas mãos dos países tou a esse único empreendimento. Logo em
hegemônicos, fator que faz toda a diferen- seguida, ele mergulhou em novo projeto: a
ça. Seria impensável a existência de trocas constituição do Museu Afro Brasil. Inaugu-
culturais equilibradas entre povos de países rado em 2004 sob os auspícios do Governo
centrais e periféricos nesses termos. de São Paulo, essa instituição vem se dedi-
Mas o que Belting quer dizer, a meu cando à memória das coletividades afro-
ver, é que para o historiador da arte, apesar -brasileiras, não se caracterizando como um
das persistentes limitações de ordem eco- museu etnográfico, histórico ou de arte, mas
nômica, política, social e cultural, os estu- procurando estabelecer interfaces entre a
dos em torno das produções de povos não etnografia, a história e a arte. O acervo que
ocidentais têm relevância. Abordagens que lhe deu forma e conteúdo era na verdade
elucidem as qualidades artísticas e estéti- a coleção particular de Araújo, cedida em
cas de tais segmentos devem superar exotis- regime de comodato para a administra-
mos para se tornar um exercício necessário, ção local. No que se refere à expografia, ele
contínuo e urgente em razão das demandas apresenta seis módulos6 que constituem as
contemporâneas. Um esforço capaz de fazer exposições de longa duração em uma narra-
convergir história da arte, antropologia e tiva que remonta ao período da exploração
cultura visual no intuito de ampliar a per- colonial, atravessando vários séculos até
cepção e cada vez mais o entendimento do chegar à arte contemporânea. Sem dúvida,
visível. Isso também vale para diretores de uma iniciativa ousada e também criticada
instituições culturais como museus e gale- por especialistas cuja avaliação é a de que
rias, bem como para especialistas que de- o Afro Brasil peca pelo excesso. Por outro
sempenham o trabalho de curadoria. lado, a concepção expográfica adotada pelo
Existem realizações significativas que seu diretor/curador é a evidência do silen-
apontam para a direção comentada. O tra- ciamento de tantas demandas que somente
balho de Emanoel Araújo, tanto à frente da agregadas poderiam contribuir efetivamen-
Pinacoteca do Estado de São Paulo quanto te para explicar as trajetórias negras no
no comando do recém-inaugurado Museu país. Nesses termos, o referido museu não
Afro Brasil (MAB) é um testemunho vivo se ancora em determinados referenciais da
que corrobora as afirmações aqui apre- tradição museológica que historicamente
sentadas. Entre 1992 e 2002, a Pinacoteca deu ênfase à exibição das culturas hegemô-
passou não apenas por um grande proces- nicas ocidentais sobrepostas às culturas
so de recuperação do seu patrimônio, mas dos povos por elas colonizados. Isso sem
acolheu também exposições importantes entramos em detalhes acerca das verdadei-
que procuravam inserir a produção artísti- ras pilhagens de patrimônios das culturas
ca negra de modo efetivo no universo mais materiais desses povos promovidas pelos
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 105

museus coloniais. Além do mais, é sempre densas reflexões que subsidiem compreen-
bom lembrar, tomando como referência as sões, para além de achismos. Por certo, há
ideias de Louis Althusser, que os museus, maneiras de lidar com as artes e as cultu-
tradicionalmente falando, também cons- ras das alteridades brasileiras. É possível
tituem os aparelhos ideológicos de Estado. ir da banalização à relação responsável
Agregados aos meios de comunicação, às com tais universos a depender do nível de
escolas, aos templos de culto das religiões interesse e entendimento do que vem a ser
hegemônicas e a outras instituições, ope- diversidade étnico-racial e cultural. Fugir
ram na manutenção de certos valores a fim das armadilhas da constante espetacula-
de eternizá-los. rização do outro também se tornou uma
Não obstante, é possível dizer que o pro- necessidade premente, embora nesse per-
jeto do Afro Brasil difere substancialmen- curso o ambiente pareça um tanto árido e
te daquilo que alimentamos no imaginário sem muitas chances de encontrar um di-
como um museu, bem como outras expe- ferencial na paisagem. O que de fato urge
riências nāo convencionais de instituições ser feito é superar os limites impostos pela
museais espraiadas pelo país. É provável sociedade de consumo, que alimenta um
também que o MAB compartilhe com pes- permanente utilitarismo das artes e cultu-
quisadores vinculados à Nova Museologia7 ras aqui ­mencionadas.
o interesse por algumas questões emergen- À guisa de conclusão, vale dizer que
ciais, a exemplo das provocações conceituais ninguém, a rigor, deixará de ser preconcei-
feitas por Duncan Cameron em seu artigo in- tuoso por gostar de certos produtos cultu-
titulado The Museum: a T ­ emple or a Forum, rais e artísticos elaborados pelos segmentos
publicado no início dos anos 1970. A partir socialmente vulneráveis. O que altera subs-
das problematizações apresentadas por essa tancialmente a disposição para superar as
tendência, podemos fazer conexões com de- ameríndiofobias, as afrofobias e outros
terminados projetos que emergiram nas pe- temores é a disposição para enfrentar os
riferias das grandes cidades, como o Museu fantasmas do passado que amedrontam o
de Quilombos e Favelas Urbanas (Muquifu) presente. Ainda é recorrente, no que se re-
em Belo Horizonte e o Museu da Maré, no fere ao imaginário da cultura brasileira, a
Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. crença de que os brasileiros são mais tole-
Elencamos aqui apenas algumas ini- rantes que os demais povos, mas no final das
ciativas culturais e artísticas contra- contas tudo é uma questão de ponto de vista.
-hegemônicas protagonizadas tanto por Sociedade ideal não existe aqui e provavel-
parcelas de segmentos socialmente vulne- mente não exista em lugar nenhum. Para
ráveis quanto por seus aliados e colaborado- o devir fica às supostas minorias citadas,
res pertencentes, inclusive, a fragmentos de com seus intelectuais orgânicos e aliados,
grupos hegemônicos. Essas argumentações o compromisso de ao menos manter acesa
demonstram que as relações no campo das a chama de um debate que não é inédito mas
artes e da cultura são complexas e exigem sempre enseja novas discussões.
No limiar do
século XXI, é possível
alegar que as vertentes
indígena, negra e
popular com suas
culturas e saberes,
inclusive no plano
da cognição estética,
vêm estabelecendo
desafios e ameaçando
paradigmas
eternizados pela
tradição ocidental.”
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Nelson Fernando Inocêncio da Silva


Doutor em teoria e história da arte, professor adjunto do Departamento de Artes
Visuais (VIS), vinculado ao Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB). Coorde-
nador de curso de graduação no VIS. Membro do Comitê Institucional Gestor do Programa
de Iniciação Científica no Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação. Membro do Núcleo
de Estudos Afro-Brasileiros ligado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares
da mesma instituição. Membro do Conselho Curador da Fundação Cultural Palmares,
Ministério da Cultura.

Referências bibliográficas

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500, 2000.

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CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: C/ Arte, 2007.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo:
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Janeiro: Garamond, 2010.

ZANINI, Walter. História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira
Salles, 1983.

Notas

1 Psiquiatra, ensaísta, marxista de orientação anticolonialista e militante da


Frente de Libertação Nacional da Argélia. Nasceu na Martinica em 1925 e
faleceu precocemente em 1961, aos 36 anos de idade. Fanon deixou uma
obra impactante, da qual conhecemos ao menos dois textos traduzidos
para o português. Um intitula-se “Pele negra, máscaras brancas” e o outro
“Os Condenados da Terra”. Ambas as publicações tratam da relação entre
colonizadores e colonizados. Sua contribuição foi substancial e colaborou
para estabelecer as bases dos estudos pós-coloniais.

2 Emília Viotti da Costa discorre sobre o assunto estabelecendo aproximações


entre o mito da democracia racial no Brasil e o mito do self-made man nos
Estados Unidos. Conforme seus argumentos, em ambos os casos, guardadas
as devidas proporções, tais referências serviram de modeladoras sociais –
cada uma em seu respectivo contexto. O mito da democracia racial teria
sido inspirado nas ideias de Gilberto Freyre constantes na clássica obra Casa
Grande e Senzala. Nela, o autor desenvolve argumentos acerca da suposta
boa convivência estabelecida entre o senhor de engenho e o escravizado, a
despeito de todas as formas de violência que permeavam tais relações. Esse
Brasil cordial, mesmo na desigualdade, serviu de modelo e se tornou uma
grande referência no imaginário social do país.

3 Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a jovem Organização das Nações


Unidas (ONU), por intermédio de uma de suas agências, a Unesco, financiou
uma pesquisa sobre o perfil da sociedade brasileira, difundida mundialmente
como referência. O estudo procurava revelar uma sociedade bem resolvida
no tocante à aceitação das diferenças existentes entre os vários segmentos
que a constituem. A iniciativa da ONU era um esforço no sentido de pensar
alternativas para um mundo tão contaminado pelo racismo e por outras formas
de intolerância que alimentaram os conflitos bélicos daquela época. Todavia, o
Projeto Unesco, como ficou conhecido, chegou a resultados surpreendentes para
os seus esperançosos patrocinadores, revelando, segundo os pesquisadores –
entre os quais Florestan Fernandes –, que no Brasil havia enormes desigualdades,
principalmente entre negros e brancos.
110 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

4 A Mostra do Redescobrimento possuía módulos alusivos a: arte pré-colonial, arte


indígena, arte afro-brasileira, arte popular, arte do inconsciente, arte barroca, arte
acadêmica do século XIX, arte moderna e arte contemporânea, além de módulos
sobre as cartas de Pero Vaz de Caminha, o Brasil dos viajantes e uma segunda
abordagem acerca dos afro-brasileiros, intitulada Negro de Corpo e Alma.

5 Antonio Gramsci, marxista italiano que, entre outras contribuições, se


debruçou sobre o conceito de hegemonia para pensá-lo no âmbito de toda
a sua complexidade. Gramsci foi preso político durante o regime fascista de
Benito Mussolini. Na prisão, escreveu parte de sua obra intitulada Cadernos do
Cárcere, em que discorre sobre alguns assuntos pertinentes às preocupações do
marxismo. Morreu precocemente, deixando um trabalho substancial.

6 Até 2013, ano em que concluí tese de doutorado sobre o Museu Afro Brasil, a
instituição apresentava ao público os seguintes módulos: África: Resistências
e Permanências; Trabalho e Escravidão; Religiões Afro-Brasileiras; O Sagrado
e o Profano; Personalidades Negras; e A Mão Afro-Brasileira: Artes Plásticas.
Além desses espaços, o museu possui ambientes destinados às mostras de
curta duração, o auditório Ruth de Souza, a biblioteca Carolina Maria de Jesus,
locais apropriados para atividades com o público, conduzidas pelo programa
educativo, salas para armazenamento da reserva técnica, oficina de restauração
e setor administrativo.

7 Vertente acadêmica da área de museologia que considera superados vários


padrões estabelecidos pela museologia tradicional, abrindo possibilidades para
abordagens distintas daquelas mais usuais. Nessa perspectiva, fala-se de museus
a céu aberto, ecomuseus, museus vivos e museus virtuais, entre outras aberturas.
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PERCEPÇÕES DO ATLÂNTICO –
ANTROPOLOGIA ESTÉTICA, PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO E ANTIRRACISMO
Goli Guerreiro

O artigo discute produção de conhecimento no campo da antropologia estética por meio


da noção de terceira diáspora, apresentada como uma estratégia de posicionamento ante as
questões estruturais do racismo. Ao discutir a atualização das trocas culturais entre mundos
negros, a partir de um repertório contra-hegemônico, alude ao imaginário como campo de
batalha político e existencial.

O centro do mundo está em todo lugar;


o mundo é o que se vê de onde se está.
Milton Santos

P
rescindir de imagens ao escrever so- estúdios fotográficos em Dakar; jam ­sessions
bre terceira diáspora é, no mínimo, em Freetown.
desafiador, visto que tal ideia remete Terceira diáspora é o deslocamento de
justamente a uma teia de referências na qual signos – textos, sons, imagens – provocado
fragmentos de textos dialogam com imagens pelo circuito de comunicação da diáspora
produzidas em O Atlântico Negro (GILROY). africana. Por meio da web, coloca em cone-
Essa teia cita e remixa a extraordinária ri- xão digital os repertórios culturais de cidades
queza deflagrada pela diáspora africana e o atlânticas. Ícones, modos, músicas, filmes, ca-
vigor de sua produção cultural. Percepções belos, gestos, livros passam a ser virtualmente
do Atlântico bem poderia se chamar o es- compartilhados. Os posts que lhe dão forma
toque de imagens, apresentado como uma e conteúdo são rastreados nas periferias, nos
mostra de belos exemplos da criatividade que centros e nas encruzilhadas do mundo negro.
se desloca nesse oceano de signos. Isso é antropologia estética. Ela não
Escritas africanas em Salvador; pro- busca explicar e sim fazer perceber. Para
dução cinematográfica em Lagos; sante- Merleau-Ponty, “a percepção é uma expe-
ria em Nova York; steelbands em Londres; riência incorporada” (apud IROBI, 2012, p.
sapeurs em Paris; cafés literários em For- 275). François Laplantine acrescenta: “A per-
t-de-France; galerias de arte em Luanda; cepção, de fato, é suscetível de fazer variar as
lanhouses em Uidá; hip-hop em Havana; situações às quais somos confrontados, de
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 113

colocá-las em perspectiva e, deste modo, abrir Pós-contemporâneas, as culturas ne-


possibilidades”1 (LAPLANTINE, 2009, p. 11). gras vivem um processo de recriação cultu-
A ideia de terceira diáspora nasce da per- ral diverso e cosmopolita baseado na troca
cepção de uma forma: uma peça de arte popu- de informações entre repertórios artísticos,
lar africana exposta no Centro de Artesanato comportamentais e ideológicos moldados em
de Cotonou (Benim). Entre diversas pequenas combinações particulares nos variados portos
esculturas em madeira que recriam cenas do do “mundo negro do Atlântico” (­APPIAH).
cotidiano, como mercadoras com fardos na Desenhado na costa leste da América
cabeça, remadores em canoas, pilagem de do Norte, do Caribe e da América do Sul e na
cereal, havia uma em que a personagem (re- costa da África e da Europa, o mundo atlântico
petida nas diversas peças) estava diante de atravessa margens, fronteiras, localidades e
um computador. Essa experiência incorpo- civilizações. Coloca em conexão povos, lín-
rada suscitou uma abertura de possibilidades, guas, lugares e práticas culturais que ganham
que decodificava outra realidade deslocada forma num contexto altamente dinâmico, sus-
de conteúdos e contextos hegemonicamente cetível aos influxos de todos os oceanos.
veiculados sobre o mundo africano. Nesse espaço talássico, impõe-se a con-
tribuição dos diversos mundos culturais. Im-
possível conceber o acervo atlântico sem o
conhecimento dos povos indígenas, árabes,
orientais, europeus, judeus, africanos, que
escravizada, sutil ou imperativamente, er-
gueram a civilização ocidental.
Uma marca se destaca no mundo atlân-
tico – as diásporas negras. A configuração
dessas diásporas implica escravidão e mi-
grações e também trocas, encaixes e (des)
conexões. Esse processo coloca em cena uma
realidade tecida de encontros e antagonis-
mos, de exploração e resistência, de culturas
e contraculturas.
Escultura em madeira, 11 x 14 x 9 cm. Artesão: Mensah de S
­ ouza
(beninense, descendente de “brasileiros” retornados)2. Cotonou, Na história moderna, uma primeira
Benim, jan. 2008. diáspora pela via da escravidão ocorreu com
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

os deslocamentos do tráfico atlântico; uma A primeira plataforma da ideia é um blog


segunda diáspora, pós-tráfico, se dá pela (http://terceiradiaspora.blogspot.com.br)
via dos deslocamentos voluntários, como o publicado em dezembro de 2009. A bloga-
retorno de negros das Américas para a Áfri- gem é uma forma privilegiada de transmitir
ca e o vaivém em massa de a noção de terceira diáspo-
povos negros: a migração Desenhado na costa leste ra. Essa opção estética não
de jamaicanos e nigerianos da América do Norte, do é um adorno; selar forma
para Londres; de cubanos Caribe e da América do Sul e conteúdo é fundamental
e ­sul-africanos para Nova e na costa da África e da para comunicação/percep-
York; de martinicanos e Europa, o mundo atlântico ção. As trocas virtuais, que
beninenses para P ­ aris; de atravessa margens, fronteiras, nascem com a internet, têm
angolanos para Lisboa e localidades e civilizações. nos sites a estrutura ideal
Brasil. Esses deslocamen- para veicular informação
tos transfiguram a ambiência cultural do do século XXI – o hipertexto –, lincando as
­mundo atlântico. imagens digitalizadas em diálogo aos frag-
Na primeira diáspora, quando do trá- mentos de textos; comentários e marcadores
fico de africanos, os negros chegavam des- a outros contextos e linguagens em diversos
pidos de qualquer bem material. Traziam campos criativos.
o seu imaginário potente o suficiente para Logo o blog se transmutaria em dois
reconstruir paisagens culturais. O tipo de livros irmãos: Terceira Diáspora – Culturas
comunicação era a oralidade. Na segunda Negras no Mundo Atlântico (cartografando
diáspora, as pessoas migravam com as suas 21 cidades) e Terceira Diáspora – o Porto da
roupas, livros, fotografias, discos. O tipo de Bahia (cartografando Salvador). Os livros são
comunicação era eletrônica. Havia então blogs analógicos.
outra materialidade e um processo mais en- Foi preciso pensar uma maneira de edi-
fático de globalização das trocas culturais. tar em mídia impressa esse repertório trans-
A terceira diáspora é uma atualização cultural da terceira diáspora sem trair a ideia
desse longo processo. A virtualidade ou “o de fluxo, de deslocamento, e ao mesmo tempo
nó de tendências ou de forças que acompa- organizando muitas referências: filmes, ro-
nha uma situação” (LÉVY, 1996, p. 16) já mances, ensaios, entrevistas, telas, notas de
estava presente nos navios negreiros; mi- campo, canções, impressões de viagem. Era
gra com os grupos deslocados “voluntaria- preciso dar forma aos conteúdos sem amar-
mente” e se potencializa com os meios de ras expostos nos livros-blogs.
comunicação de massa: cinema, rádio, te- A pesquisa etnográfica, que sustenta a
levisão. Com o computador portátil, a web e montagem do repertório, transita entre se-
as tecnologias digitais, as trocas culturais se melhanças e diferenças3. A coleção de posts
elevaram à enésima potência, dispensando quer chamar a atenção também para aspec-
o deslocamento físico. A forma de comuni- tos pouco abordados, como as escritas africa-
cação é digital. nas. Para além da oralidade, um mapeamento
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 115

linguístico mostra que há cerca de 90 siste- A essa realidade histórico-antropoló-


mas de escrita criados na África (CATACH)4; gica agrega-se o estudo da genética. Em seu
as capas dos livros-blogs trazem as escritas livro A Invenção das Raças, o geneticista
africanas nsibidi (cultura igbo) e adinkra italiano Guido Barbujani se debruçou sobre
(cultura akan). diversas formas de classificação racial5 exis-
Para propor uma leitura possível do tentes no mundo e afirma:
mundo negro contemporâneo, fugindo dos
estereótipos que o cercam, é preciso fazer Assim como foi impossível chegar a
recortes. É certo que as trocas não se dão um acordo sobre as raças humanas estudan-
somente entre comunidades negras (al- do a forma de nosso corpo, também não se
tamente híbridas), mas foi nesse “mundo” chega a um acordo estudando nossos genes.
que as informações produzidas por negros, Se, como escrevia Mayr, a presença de fron-
mas não propriedade exclusiva deles, foram teiras é o critério determinante para julgar
sampleadas. Essa produção de conhecimento se uma espécie contém ou não raças distin-
no campo da antropologia estética, a partir tas, as fronteiras ainda não foram encontra-
da veiculação de um repertório contra-hege- das por ninguém (BARBUJANI, 2007, p. 91).
mônico, é uma estratégia de posicionamento
ante as questões estruturais do racismo. É muito interessante o modo como
No livro fundamental Racismo & So- ­Barbujani se coloca ao final do livro: “O que sei
ciedade, o pensador cubano Carlos Moore ao certo é que antes de mais nada eu reparo na
aponta o fenótipo como fator essencial da cor da pele das pessoas que encontro. Acres-
discussão racial, aprofundando a tese do cento que custo a crer que a mesma coisa
cientista senegalês Cheikh Anta Diop, que não aconteça com os outros” (­BARBUJANI,
aponta “o poderoso impacto do fenótipo ao 2007, p. 163).
longo da história dos humanos” (MOORE, Como se sabe, as noções de raça depen-
2012, p. 25-6). O fenótipo é o fator que dis- dem dos contextos históricos e culturais dos
crimina e hierarquiza as sociedades desde lugares onde a hierarquia racial se constrói.
a antiguidade até os dias de hoje. Em todas Trata-se de uma construção simbólica, de
as culturas e em todos os tempos históricos. uma categoria cultural (depende de que
povos se encontraram ali, das relações de
Com efeito, desde o seu início, na Anti- poder que se estabeleceram, da história
guidade, o racismo sempre foi uma realidade enfim daquela sociedade). Algo diferente
social e cultural pautada exclusivamente no do fenótipo baseado em traços genéticos e,
fenótipo, antes de ser um fenômeno político e portanto, biológicos. A genética está plena-
econômico pautado na biologia. O fenótipo é mente ciente da unicidade da espécie huma-
um elemento objetivo, real, que não se presta na que se originou na África e se deslocou
à negação ou a confusão. É ele e não os ge- pelos continentes6.
nes que configura os fantasmas que nutrem Esse deslocamento deu origem às va-
o imaginário social (MOORE, 2012, p. 19). riações fenotípicas produzidas em razão de
116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

fatores ecológicos e de adaptação ao meio O campo estético como campo


ambiente7. De todos os componentes do de batalha
fenótipo, mais que o cabelo, mais que o na- Terceira diáspora é uma centelha no
riz ou lábios, a cor se sobressai. E como nos sentido de contribuir para dissolver o ima-
mostram as obras de Carlos Moore e Cheikh ginário antinegro, que acompanha a história
Anta Diop, quanto mais escura essa cor mais dos negros e dos brancos no Brasil. A estraté-
discriminada a pessoa é. gia é a difusão de repertórios estéticos posi-
Então nós temos essa complexidade tivos, produzidos pelas comunidades negras
para enfrentar: existe o fenótipo (dificil- em todos os campos de criação: intelectual,
mente modificável) e existe um instinto comportamental e artístico.
biológico humano que identifica o fenótipo Então é preciso trabalhar sobre os re-
como um elemento de aliança ou conflito: pertórios e apresentá-los9; massificar in-
quem é meu grupo, quem é o outro (é claro formações positivas que foram apagadas,
que você pode ser branco e olhar o negro silenciadas da história. Colocar em pauta
como seu grupo e vice-versa, isso passa novos conhecimentos, novos sentidos e sig-
por questões subjetivas, biográficas, mas nificados como forma de rivalizar com os
há sempre essa leitura). repertórios hegemônicos.
Essa realidade genética-antropológica Foi possível ter alguma noção do im-
universal, evidentemente, está presente na pacto dessa estratégia. Quando do lan-
sociedade brasileira. O que fazer quando a çamento dos dois livros-irmãos Terceira
isso se soma uma história Diáspora, em 2010, um
de 350 anos de escravidão Terceira diáspora é uma centelha jornalista baiano, em
no sentido de contribuir para
e de construção e veicu- plena Salvador, com 85%
dissolver o imaginário antinegro,
lação sistemática de um de população negra, es-
que acompanha a história dos
imaginário antinegro: o negros e dos brancos no Brasil. tranhou o fato de só haver
negro como escravo, como negros nos livros (não so-
aquele que serve; o negro incivilizado, sem mente as imagens de pessoas e obras, mas
história, sem cultura? também os fragmentos de textos eram assi-
Será possível fazer o trabalho de com- nados por africanos, caribenhos, europeus,
bater esse imaginário racista? Construir ­norte-americanos e brasileiros, quase todos
outro paradigma? Como é que a gente faz negros). Se o livro não falava de fome, guer-
isso? O imaginário é um arcabouço de prin- ras, epidemias, tensões étnicas, como então
cípios, valores, ideias que orientam nossas só ter negros?
práticas cotidianas8. Como a gente faz para O subtexto do espanto era o fato de os li-
simplesmente entrar no restaurante e não vros falarem de cinema, fotografia, literatura,
olhar mais o negro como a pessoa que vai artes plásticas, filologia. Como pode isso se
nos servir? Como não ter mais medo de ser o livro fala de produção intelectual, de esté-
roubado ao cruzar com um negro numa tica? Se o livro fala sobre o belo? Por outro
rua deserta? lado, a comunidade negra de Salvador reagia
118 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

com muita vibração. Era algo novo! Não era A tais recriações estéticas que deram
estranho! Estranho era não ser comum esse origem ao samba-reggae somam-se as refe-
tipo de abordagem10. rências internacionais que vêm do mundo
Esse envolvimento com o mundo ne- anglo-saxão, do Caribe e da África. Mas que
gro, que gerou o artefato terceira diáspora, África é essa? São áfricas imaginadas cujos
começou nos anos 1990 quando escolhi o elementos foram capturados pelas antenas
samba-reggae como tema do doutorado. Mi- do Pelourinho, do Curuzu, de Periperi, de
nha pergunta: Como os blocos afro criaram Itapuã, de Candeal e de Pirajá, locais de ori-
o samba-reggae? Como se inventa um rit- gem das entidades. Por meio de suas per-
mo? Mas estava posto que aquela criação se formances carnavalescas, os blocos afro
tornava uma mercadoria nas mãos de uma desconstroem a imagem da África como um
indústria da música: a axé music comanda- bloco indistinto, realizando um letramento
da por brancos. Era inevitável perceber as estético que descortina a complexidade ci-
relações de poder e o racismo que permea- vilizacional do continente11.
vam o processo de mercantilização dessa Diversas áfricas foram modeladas pelos
invenção musical. blocos afro de Salvador:
Não se pode negar o espaço que os ne-
gros conquistaram nesse momento, mar- |Ilê Aiyê| África tradicional (1974)
cado na virada dos anos 1980 e 1990. O |Olodum| África científica (1979)
movimento de negritude baiana ganhava |Malê Debalê| África islâmica (1980)
peso, e Salvador se projetava como um polo |Ara Ketu| África moderna (1981)
criativo no Brasil, por meio da música dos |Muzenza| África nômade (1981)
blocos afro, que afirmavam em alto e bom |Timbalada| África cosmopolita (1992)
som sua africanidade. |Cortejo Afro| África estilizada (1998)
Mas a música sempre foi o lugar cati- |Bankoma| África bantu (2000)
vo dos negros no Brasil (e no mundo). Era
preciso ir mais além. Era preciso conhecer O Ilê Aiyê (terreiro de negros na lín-
a estética afro-baiana de maneira mais pro- gua iorubá) se volta para uma “África
funda para entender de onde surgiu aquela tradicional” em busca de seus sinais de
música com tanto poder. As pistas estavam identificação. Movido por um orgulho ra-
no imaginário dos blocos afro-carnavalescos. cial, o bloco do Curuzu (área do bairro da
Era preciso então reconstruir esse Liberdade) tem uma característica que o
cenário estético e ideológico. Um olhar diferencia de um modo especial: bloco de
retrospectivo mostra que a transformação negros cuja entrada de associados brancos
das organizações afro-carnavalescas – Ba- é rigorosamente vetada. Lançando mão do
tuques, Clubes, Afoxés, Escolas de Samba, exclusivismo étnico baseado na cor da pele
Blocos de Índio, Blocos Afro – é resultado (antes nunca explicitado como regra), re-
de migrações e mesclas tecidas na evolução mete a uma África anterior à presença eu-
das entidades negras. ropeia no continente. Pinça seus elementos
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 119

estéticos (búzios, palha da costa, grafismos) Negros sudaneses partidários da religião


em pequenas comunidades africanas e delas muçulmana/
retira os elementos que constroem a sua an- os malês pretendiam abolir a escravidão/
cestralidade simbólica. Usa somente tam- no dia 25 de janeiro de 1835 começou a
bores no seu “samba afro” no qual se destaca revolta dos malês/
o ijexá, ritmo do candomblé. Na sede do Ilê atacando quartéis/
Aiyê, a Senzala do Barro Preto, acontece quando foram dissolvidos por forte con-
anualmente o concurso que elege a rainha tingente militar/
do bloco – a deusa do ébano. e mesmo assim não pararam de lutar/
Já o Ara Ketu (em iorubá povo de Ketu) oh negros sudaneses, oh negros malês.
se espelha numa “África moderna”. É para
os grandes centros urbanos do continente Segundo Josélio de Araújo, presidente
que os diretores do Ara Ketu viajam a fim de do bloco, Debalê é uma expressão criada por
pesquisar a modernidade musical africana, eles, inspirada na língua iorubá, e traduz po-
que não dispensa uma tecnologia altamente sitividade e felicidade. Assim Malê Debalê
sofisticada para empreender experimentos significa negros felizes islamizados (In: http://
sonoros. O Ara Ketu, fundado em Periperi, maledebale1979.blogspot.com.br/).
foi o primeiro bloco afro a mesclar o som O Olodum (deus dos deuses na língua io-
acústico dos tambores com a instrumen- rubá), fundado no Pelourinho, quanto mais
tação harmônica. Vera Lacerda, diretora se impregnava de um discurso antirracista
do bloco, explica: “Até na África a música mais se constituía como intelectualidade
popular está se universalizando. Quere- orgânica, dedicada a uma pesquisa históri-
mos inclusive desmistificar esta busca de co-antropológica, visando ao resgate da an-
raízes africanas que alguns grupos procu- cestralidade negra culta e apontando dessa
ram. Nem na África isso existe mais” (In: maneira para uma “África científica”.
­GUERREIRO, 2000, p. 37). Segundo João Jorge, presidente do
Malê Debalê, bloco fundado em Itapuã, Olodum: “Como Pierre Verger que provou o
tematiza a cada Carnaval uma “África islâ- comércio triangular de escravos com docu-
mica”. Malê era o nome dado na Bahia aos mentos, acho que enredo de bloco também pre-
africanos convertidos ao islã, escravizados cisa de bases científicas” (In: G
­ UERREIRO,
em guerras religiosas na África Ocidental. 2000, p. 44). A música “Faraó”, que marca a
A mais forte referência cultural do bloco ascensão midiática do bloco, foi inspirada na
está na história dos negros que protago- tese do senegalês Cheikh Anta Diop sobre as
nizaram a Revolta dos Malês, em Salvador antigas dinastias negras do Egito. A biblioteca
no ano de 1835, uma das mais vigorosas e a videoteca da Escola Criativa do Olodum
insurreições negras com africanos das et- (que alfabetiza crianças e jovens) foram in-
nias nagô e haussá, que liam e escreviam corporadas ao Centro de Documentação e Me-
em árabe. Muitas de suas canções são aulas mória, projeto recente e arrojado que reforça o
dessa ­história caráter acadêmico da trajetória do grupo.
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O Muzenza (dança de iaô em bantu) é ideia de intercruzamentos culturais se ex-


o único bloco afro entre os demais sem ter- pressa também na sede do grupo – o Guetto
ritório fixo; seus ensaios se deslocam por Square. O prédio piramidal exibe no alto um
diversos bairros de Salvador. Esse caráter grande olho de formas egípcias. Na área in-
itinerante aponta para uma “África nôma- terna, filigranas magrebinas e arcos orientais
de”, que tem como pilar os signos da Jamaica. conduzem ao pátio do palco onde esculturas
É também chamado Muzenza do Reggae. O metálicas desenham timbaleiros futuristas,
símbolo do bloco é o Leão de Judá, título que foguetes espaciais, sinais de trânsito, e as
cabe a Hailé Selassié ou Ras Tafari, impera- árvores têm tambores como frutos. O espa-
dor da Etiópia endeusado na Jamaica pelos ço eclético em que se misturam símbolos
seguidores do rastafarianismo. Grande parte de diversas civilizações expressa o aspecto
dos associados segue a filosofia rastafári, usa cosmopolita da Timbalada.
dreadlocks e adota a dieta vegetariana, além O Cortejo Afro, criado no Terreiro Ilê
do uso ritualístico da cannabis. O Muzenza Axé Oyá, em Pirajá, pelo artista plástico e de-
usa as cores da bandeira da Jamaica (verde, signer Alberto Pitta, busca “resgatar as cores
amarelo e preto), tendo Bob Marley como perdidas do Carnaval baiano, reafirmando
ícone maior. Em todos os anos, seu desfile é seu conceito ético e estético”. O primeiro
precedido por um ritual em homenagem ao nome escolhido para o bloco foi Alinhados
rei do reggae. Estabelece assim um contato (como sinônimo de fino, requintado). Dedica-
indireto com a África através de uma ligação do a criar estampas ­baianas-africanas, Pitta
simbólica com a diáspora negra. criou “a contra cor para não competir e para
A Timbalada (conjunto de timbaus) não confundir com todos os outros blocos.
constrói um imaginário pluricultural, bem Se eu não conseguisse dar o salto estético, eu
ao gosto de uma estética pop contemporânea, não conseguiria marcar presença e demarcar
inventando assim uma “África cosmopolita”. meu território. Então o Cortejo Afro é isso:
A banda foi criada pelo percussionista Car- é branco sobre branco” (In: GUERREIRO,
linhos Brown: “Minha música é do mundo 2010, p. 116). O sombreiro, marca do bloco
porque eu sou um cidadão miscigenado, agu- que traz seu slogan “elegantemente sofis-
çado em vários sentidos étnicos e estéticos” ticado”, é inspirado nesse acessório, típico
(In: GUERREIRO, 2000, p. 170). A Banda da realeza daomeana. O Cortejo Afro cons-
do Candeal desenvolveu um estilo percus- tantemente reafirma sua singularidade no
sivo próprio, e sua estética se particulariza compromisso com a questão da elegância.
pelo uso de pinturas corporais e pelo uso de Ao buscar uma forma estética diferente da
signos pop, como óculos escuros, capacetes original, aponta para uma “África estilizada”.
de ciclista e perucas de bombril e adere- Bankoma (povo reunido em festa, em
ços reciclados. “A Timbalada é uma forma kikongo, língua da família bantu), bloco
como os timbaus apontam para o futuro” (In: fundado no terreiro São Jorge da Gomeia,
GUERREIRO, 2000, p. 170). Trata-se de um em Portão (grande Salvador), difunde a cos-
estilo que absorve influências múltiplas. A mologia bantu. O griô Raimundo Kasutemi
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 121

esclarece: “Nossa comunidade é bantu. É um ­político-ideológico no qual nasce esse estilo


terreiro de Angola. Não se cultua somente musical. Essa pesquisa deu origem ao livro
o mar, a mata. Se cultua também esse as- A Trama dos Tambores.
pecto mais energético e cosmológico” (In: Foi tentando entender como um estilo
http://afrobankoma.blogspot.com.br/). tão potente foi inventado em Salvador que
Para Makota Valdina, o bloco traz a essên- a imagem do mundo atlântico se desenhou.
cia e as raízes negras religio- A partir daí, houve uma na-
sas sem profanar a religião. A web abre brechas: vegação incessante em busca
A pesquisa para a elaboração os repertórios estão ali à dos repertórios escondidos:
dos temas carnavalescos do disposição de quem quiser cadê o cinema, a fotografia,
se debruçar sobre eles;
Bankoma está amparada na a literatura, as artes plásti-
é um espaço de difusão
parceria com a Associação cas, a produção intelectual?
de conhecimento que
Cultural de Preservação do alcança negros e brancos. Havia tudo isso em profusão.
Patrimônio Bantu, cujo acer- São imensos o vigor criativo
vo bibliográfico oferece a possibilidade de do mundo negro e a pregnância de sua es-
conhecimento das tradições dessa família tética no ocidente.
linguística partilhada por diversos povos da A internet permitiu que tudo isso viesse
África austral, situados em Angola, na Áfri- à tona. Quando o acesso à rede se difunde,
ca do Sul e em Moçambique. Como todos esses repertórios, que sempre estiveram nas
os blocos afro, desenvolve trabalhos junto a mãos de intelectuais brancos, em bibliote-
sua comunidade e se destaca pela produção cas e coleções particulares, nas gavetas das
da tecelagem kula (de fontes orientais que academias, emergem. A web abre brechas:
banham a África bantu). As peças são co- os repertórios estão ali à disposição de quem
mercializadas na Kitaanda bantu – loja do quiser se debruçar sobre eles; é um espaço de
Bankoma em funcionamento no Pelourinho. difusão de conhecimento que alcança negros
Essas sutis diferenciações de perfil, e brancos e oferece subsídios para a modifi-
entretanto, não desagregam os blocos afro cação da imagem hegemônica dos negros, à
como movimento articulador de uma esté- medida que amplifica e diversifica vozes e
tica afro-baiana que tem como epicentro a posições. Desloca centros e periferias, redi-
difusão do samba-reggae no espaço midiá- mensiona posições individuais e coletivas;
tico do mercado musical. as infovias engendram outros sentidos, mo-
O samba-reggae é produto de trocas delos, direções, em velocidade e potência
atlânticas, típico da era da globalização desconhecidas.
eletrônica. Ídolos, signos, ícones, posturas Logo depois do lançamento dos livros
passam a ser intercambiáveis, por meio irmãos Terceira Diáspora, o antropólogo Her-
de uma rede de relações estabelecida no mano Vianna escreveu:
mundo atlântico, tornando mais densos os
hibridismos culturais que delinearam o mo- Terceira diáspora é conceito para ten-
vimento de Negritude de Salvador, contexto tar entender o estado mutante das trocas
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 123

culturais das culturas negras pós-inter- desconheça verdadeiramente raças e hierar-


net [...] percorre as infovias e os caminhos quias raciais; cabe ir em direção a uma huma-
“reais” entre os portos da terceira diáspora nidade que se quer culturalmente diversa,
com voracidade antropofágica, produzindo usufruindo e compreendendo, na dimensão
novas informações (em textos e imagens), de um imaginário plural, a qualidade do que
sampleando pensamentos, compondo é ser humano.
um panorama ricamente fragmentado de
links transculturais recém estabelecidos”
(­VIANNA, 2010, p. 2).

Disse tratar-se de “filosofia tecnocul-


tural”, que colaborava para “implodir guetos
e identidades fixas”. Mas chamava atenção
para a necessidade de ir mais além:
Goli Guerreiro
É preciso conectar, também e cada Baiana de Salvador, é escritora e pós-doutora
vez mais, a trama dos tambores da ter- em antropologia. Graduada em ciências sociais pela
ceira diáspora com outros núcleos im- Universidade Federal da Bahia (UFBA), é mestra e
portantes de inovação cultural que não se doutora em antropologia pela Universidade de São
situam dentro dos limites, mesmo fractais Paulo (USP). Durante o pós-doutorado, modelou
(como quer Paul G
­ ilroy), do mundo negro. o conceito terceira diáspora sobre trocas culturais
(­VIANNA, 2010, p. 2). pós-internet e publicou dois livros-irmãos sobre
o tema. Em seguida, publicou Terror e Aventura –
Essa crítica, que me acompanha desde Tráfico de Africanos e Cotidiano na Bahia sobre a
então, me levou ao mundo da ficção12 e ga- primeira diáspora. Realizou um segundo pós-dou-
nhou ainda mais substância quando conhe- torado em letras, do qual resultou o romance Alzira
ci a obra do pensador indiano Amartya Sen Está Morta – Ficção Histórica no Mundo Negro do
Identidade e Violência – a Ilusão do Destino, Atlântico, vencedor do Selo Literário João Ubaldo
que afirma: “Nossa humanidade compartilha- Ribeiro. Com essa obra sobre a segunda diáspora
da é selvagemente desafiada quando múlti- compôs uma trilogia, em diferentes narrativas, so-
plas divisões no mundo são unificadas em um bre deslocamentos diaspóricos no Atlântico. Edita
sistema de classificação supostamente domi- o blog www.terceiradiaspora.blogspot.com sobre
nante” (SEN, 2015, p. 11). Foi sob o impacto repertórios culturais do mundo negro. Tem seis li-
dessa leitura e do interesse renovado por essa vros publicados e diversos artigos em publicações
ideia-conceito que este artigo foi elaborado. nacionais e internacionais. É curadora do acervo
Coube defender o recorte no mundo fotográfico de Arlete Soares, fundadora da Editora
negro. Trata-se de guerrilha estética. Mas Corrupio, onde também atua como consultora edi-
cabe principalmente ir além, em direção a torial. Fundou e coordenou o Programa Humanida-
uma “identidade global” (Amartya Sen) que des no Centro Universitário Jorge Amado.
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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VIANNA, Hermano. Terceira diáspora. O Globo, Rio de Janeiro, nov. 2010. Segundo
Caderno, p. 2.

Notas

1 “Em suma, o que Merleau-Ponty e outros filósofos europeus estão tentando dizer é
que o corpo humano é a principal fonte, lugar e centro de percepção e expressão,
seja ela física ou transcendental. Curiosamente isso não é nenhuma novidade para
os africanos. [...] as sociedades africanas conscientemente acostumam-se a uma
semiologia corpórea em que o corpo torna-se receptáculo simbólico e expressivo
do transcendente assim como as ideias filosóficas [...]” (IROBI, 2012, p. 276).

2 Ver GURAN, Milton. Agudás – os “brasileiros” do Benin. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2000.

3 Em Uidá, no Benin, onde se encontra a Porta do Não Retorno (local de partida


de milhões de africanos para as Américas), acontece anualmente o Festival de
Vodum (religião fon que viajou para o Brasil e é uma das matrizes do candomblé).
Diferentemente do segredo que cerca os ritos sacrificiais do candomblé no Brasil,
no Benin, a cerimônia é pública e as TVs locais exibem inclusive o sacrifício de
animais de quatro patas. A celebração reúne centenas de sacerdotes e sacerdotisas,
que se deixam filmar e fotografar por curiosos de todos os lugares do mundo.
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

4 “Há aproximadamente noventa destes últimos sistemas que, a partir de Derrida,


podem ser considerados como escritas. Nem todos derivam do tronco latino,
e inclusive alguns participaram em sua história como as escritas egípcias e
fenícias. Estes sistemas são ou foram utilizados em dois terços do continente
(alguns desde a antiguidade mais distante). Na África subsaariana, levantei cerca
de quarenta sistemas, muitos dos quais são escritas no sentido mais estrito [...].
Que a África tenha sido considerada iletrada é uma consequência da mentira ou
da ignorância” (CATACH, 1996, p. 87) [Tradução do editor].

5 No Caribe, para onde migraram milhares de orientais, é muito comum ouvir:


aquele rapaz é da raça indiana, aquela moça da raça chinesa ou da raça árabe.
São classificações que, para nós, brasileiros, não fazem o menor sentido, uma vez
que a nossa hierarquia racial se ampara no mito das três raças.

6 “Humanos arcaicos saíram do continente africano há aproximadamente dois


milhões de anos, rumo à Ásia e à Europa, iniciando o primeiro fluxo migratório
de seres humanos arcaicos para fora da África. O ser humano anatomicamente
moderno, o homo sapiens sapiens, também se originou na África e de lá saiu para
povoar Ásia e Europa, numa série de migrações iniciadas por volta de cem mil
anos atrás, começando uma segunda fase de ondas migratórias, atravessando a
Eurásia e atingindo as Américas” (NASCIMENTO, Elisa L., p. 83).

7 Em longo e remoto deslocamento, migrando para o norte do planeta, na Europa,


onde a luz é escassa, o Homo sapiens vai se despigmentando, o olho clareia,
o cabelo alisa para cobrir as orelhas expostas ao frio intenso. Enquanto a pele
pigmentada suporta melhor o calor, os cabelos crespos liberam as orelhas e o
pescoço, o nariz alargado suporta melhor a poeira da savana, o afilado equilibra
melhor o metabolismo do corpo que enfrentou invernos rigorosos e ar rarefeito
(JACQUARD, Albert. Éloge de la différence – la génétique et les hommes.
Paris: Éditions de Seuil, 1978).

8 Para Gilbert Durant, imaginário é “o conjunto das imagens e das relações de


imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURANT, 2002,
p. 18). É uma noção que se contrapõe à racionalidade ou à consciência racional
em detrimento do inconsciente e da subjetividade presente em diversas
perspectivas teóricas.

9 O conceito de terceira diáspora ganhou vários desdobramentos: além dos livros


(em dois volumes lançados em 11 cidades, incluindo Luanda e Lisboa) e do blog
(em que os livros estão disponíveis para download), há entrevistas e artigos em
jornais; revistas e sites; texto em catálogo português-inglês do evento Terceira
Metade (MAM/RJ, 2011); curso interativo/oficina; minivídeos; mostras visuais;
matérias televisivas; conferências nacionais e internacionais; tema de concurso de
game (Festival Games for Change – América Latina, 2011).
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 127

10 No Brasil, às vezes sou vista como branca, às vezes como preta. Em Salvador,
Bahia, meu porto de origem, em geral sou identificada como não negra (ou
“tinta fraca”, na gíria local). Então, quando faço a cartografia da cidade, edito um
mundo que vasculho e percebo. Cito a fala das pessoas, evito traduzi-las, exponho
seus próprios termos. Às vezes, arrisco descrições, comentários. Acredito numa
colaboração com a cultura que me envolve. É um livro escrito a muitas mãos.

11 “O que torna o carnaval ainda mais notável, à luz de nossa discussão de que
o corpo possui uma memória podendo ser um lócus de resistência através da
performance, é que ele é um exemplo eloquente da transcendência expressa
através do espetáculo: procissão, cores, música, dança e, mais importante, o
movimento físico do corpo” (p. 278-279).

12 Alzira Está Morta – Ficção Histórica no Mundo Negro do Atlântico. Talvez


nessa narrativa a intenção de “explodir guetos e identidades fixas” tenha
se manifestado com mais ênfase. Trata-se da biografia inventada de uma
mulher negra que não cabe nas amarras de uma identidade étnica, ou que as
desconhece. Em entrevista para o site Rede Angola, esse aspecto foi observado
pela entrevistadora Marta Lança (fundadora do site Buala): “Enquanto
personagem feminina, apesar de verossímil, não é muito típica na sua época:
nada deve a nenhum homem, estuda e viaja à vontade, é dona de seu destino”.
Nesse romance, a imagem da mulher negra se desloca, à medida que ela se
move em direção a suas múltiplas filiações; <http://www.redeangola.info/
especiais/a-historia-de-uma-mulher-entre-cidades-atlanticas/>.
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  129

3. DA PONTE PRA CÁ

130. QUE CIDADE TE


HABITA? SAMPA NEGRA:
PERIFERIA, CONTRACULTURA
E ANTIRRACISMO
Salloma Salomão
130 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

QUE CIDADE TE HABITA?


SAMPA NEGRA: PERIFERIA, CONTRACULTURA
E ANTIRRACISMO
Salloma Salomão

Estudamos a cidade negra-periférica que habita São Paulo, refletindo sobre as presenças
histórica e cultural dos descendentes de africanos e sua marginalização constante no processo
de modernização da cidade. Localizam-se protagonistas artísticos culturais negrxs e periferi-
cxs para compor um novo mapa e salientar vozes silenciadas pelo racismo e apagadas ante o
elitismo cultural. Questionamos a narrativa única de matriz modernista, que ordena a história/
memória oficial da cidade. E como alternativa instauramos perspectiva afro-periférica num
diálogo crítico com as bibliografias afro-brasileiras no Atlântico Negro, em eixo hemisférico sul.

[...] Panaméricas e Áfricas utópicas, túmulo do


samba, mais possível novo Quilombo de Zumbi.
Caetano Veloso

O
otimista poeta baiano viu a cidade Este texto pode ser considerado uma
de São Paulo em meados da década versão sintética e prévia de um livro com
de 1970 como um espelho que não o mesmo título a ser publicado em breve.
refletia sua imagem e projetou-a como uma Minhas referências para a construção da
cidade negra, um moderno quilombo. O pa- pesquisa têm sido cursos, palestras, confe-
norama que construo aqui é incompleto e rências e rodas de conversa que organizo e
provisório, mas carrega em si os contornos dos quais participo. Conversas várias com
não retilíneos de experiência constituída coletivos artísticos e parceiros de aventura.
de aprendizagens intelectuais, escolares e São também leituras de bibliografias sobre
extraescolares, acadêmicas e artísticas, en- culturas urbanas contemporâneas, publica-
tre uma média cidade no interior de Minas das por sociólogos, semiólogos, museólogos,
Gerais e os arredores da capital paulista. gestores públicos e privados de cultura, an-
Trato de práticas e ideias que resultaram em tropólogos, urbanistas, historiadores, artis-
vivências e interpretações, leituras e trocas tas, jornalistas e ativistas.
assistemáticas em diferentes circuitos de Realizei pesquisa de campo, entrevis-
produção cultural e artística, educação pú- tando pessoas e acompanhando os trabalhos
blica a ativismo antirracista. criativos que envolvem grupos e coletivos de
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 131

artes e linguagens múltiplas. Recolhi, siste- saturo de perguntas consideradas incômo-


matizei e analisei parte das suas produções das as meganarrativas hegemônicas. Inten-
e discursos por meio de publicações como ciono esgarçar até o limite as telas canônicas
livros, revistas, fanzines, jornais, vídeos, fôl- que encobrem os olhos dos naïfs e dar a ler
deres, sites e toda sorte de material gráfico textos mal-intencionados. Meu objetivo
impresso e digital. Essa produção subjaz final é elaborar sínteses compreensivas de
o corpo do texto. aspectos estéticos e históricos, étnicos e po-
Minhas escolhas são carregadas de in- líticos, sociais e culturais considerados fun-
tencionalidade política e afinidades estéticas. damentais nesses projetos e assim desvelar
Assim fui sondando narrativas e semânticas estratégias e visões de mundo, colaborações
próprias do contexto e focalizando algumas e potencialidades, conflitos e fragilidades,
cenas contemporâneas de criação e difusão desejos e utopias na dinâmica sociocultural
cinevideográfica e plástica, literária e musi- e política na metrópole paulistana1.
cal, dramatúrgica, teatral e performática. Pro- A web permite acessar conteúdos cada
duções múltiplas foram focalizadas desde que vez mais completos e complexos em vários
autonomeadas negras e ou periféricas. Ten- assuntos e plataformas, mas principalmente
do-se em vista ser passado o tempo em que o imagens históricas e sons e músicas fora de
pesquisador, do alto do seu saber autorizado, catálogo, para meu deleite. Posso dar aos par-
classificava e ordenava sem contestação das ceiros uma ideia geral sobre o que estamos
identidades por parte daqueles que estudava. elaborando mediante leituras solidárias e
Também chequei instituições culturais testar hipóteses sobre comportamentos di-
públicas e privadas, observando seus discur- gitais. Além de ser uma boa plataforma da
sos e práticas, seus métodos e conceitos. A autopromoção, é uma ferramenta relativa-
metodologia da pesquisa básica tem consis- mente barata para evidenciar aquilo que efe-
tido em aproximar os ouvidos dos silêncios tivamente fazemos, mas que, muitas vezes,
e ruídos, dar atenção aos traços de desenhos morre no vácuo.
que, de tão finos, parecem invisíveis e apalpar Entretanto, na rede, questões políticas
objetos de memória quase intangíveis, de tão importantes podem terminar facilmente em
negligenciados pela cultura dominante. afrontas pessoais, delírios de egos e brigas
De posse dos dados analíticos, tenho inócuas, mesmo que rebocadas de erudição
buscado mostrar as tensões e os desloca- sociológica. Conquanto também veicula
mentos atuais. Para isso, sempre que posso, ideias instigantes e úteis que deslocam a
132 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

percepção para coisas não percebidas antes, ao ator e pesquisador Márcio Castro; ao co-
favorecendo o contato direto em encontros reógrafo Firmino Pitanga; aos poetas Sér-
presenciais ou trocas de afetos digitais. Sin- gio Vaz e Márcio B ­ atista; à professora e
to sua positividade em vários aspectos, evi- ­coreógrafa-antropóloga Luciane Ramos; ao
tando o seu lado de simulacro quando certas músico, ator e produtor Euller Alves e ao pro-
postagens e fotos de vidas, estranhamente dutor cultural Josiel Medrado. Especialmen-
coloridas, parecem bem mais virtuosas que te devo a Cia. Capulanas de Artes Negras,
as relações afetivas e sociais construídas Cooperifa, Sarau do Grajaú, Coletivo Negro,
com ausências e solidariedades históricas. Sarau da Ponte pra Cá, Sarau Perifatividade,
Há mesmo uma espécie de euforia co- Sarau do Binho, Cia. de Teatro os Crespos,
municativa que também me arrebata, e eu grupo Dança Movimento Contínuo, Compa-
a retroalimento, mas não sei se é remédio nhia de Teatro Clariô e a Esquina Musical3.
ou compensação para essa falta de tempo De certa forma, esta escrita ainda reflete
para acarinhar os amigos e gentes queridas. a aprendizagem dialógica com professoras da
Confessando-a, alimento-me contra uma Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
solidãozinha progressiva, (PUC/SP) e da Universidade
uma dor pequena, mas cor- Por ser São Paulo a de São Paulo (USP). Devem
rosiva. Lenitivo para insônia cidade mais rica e luxuosa ­c ulpá-las e também meus
ou compensação para neces- do país, é também, por manos e manas feitos na lida,
sidade de trabalhar cada vez contraste, aquela onde as Rafael Galante (USP), Nirle-
iniquidades se pronunciam
mais e receber cada vez me- ne Nepomuceno (UFBA),
de forma mais radical e
nos. No tempo que sobra, eu José ­Carlos Gomes da Silva
aguda. Mas isso depende
durmo e às vezes sonho. Esse muito de onde você a vê. (Unifesp), Maria Odila Dias
texto tem tudo a ver com os e ­Antonieta Antonacci (PUC/
devaneios. Algumas das pessoas que abordei SP), Maria Cristina Wissembach e Marina
constituem coletivos e grupos culturais2. Mello e Souza (USP). Se eventualmente meus
A rede me permitiu entender muitas de leitores perceberem neste trabalho quando
minhas limitações e possibilidades comuni- não pude esconder vícios da escrita e retórica
cativas. Devo a ela essa assunção, tornar efe- acadêmica, mal aprendidas nesses anos de
tivamente compreensível minha caminhada treinamento escolar intensivo, não cismem
nesse quadrante da esfera. Fiz-me com e sem muito. Garanto que sou o único corresponsá-
lamento, mas sem autopiedade. Um intelec- vel por tudo que penso, falo e escrevo.
tual preto, educador público e artista perifé- Por ser São Paulo a cidade mais rica e
rico. É isso que soul. luxuosa do país, é também, por contraste,
No campo das artes negras e perifé- aquela onde as iniquidades se pronunciam
ricas, minha gratidão ao escritor, poeta, de forma mais radical e aguda. Mas isso de-
pesquisador e educador Allan da Rosa; à pende muito de onde você a vê.
artista plástica e professora Renata F­ elinto; A Federação das Indústrias do Estado
à educadora e atriz-cantora Naruna Costa; de São Paulo (Fiesp) tem sido uma das mais
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 133

importantes instituições corporativas patro- a permanência da prática do castigo físico


nais do país. De suas fileiras saem funcioná- em âmbito doméstico, mas também o uso
rios de agências internacionais, ministros, recorrente da violência contra as classes
governadores e secretários de estado. No subalternas. Contrapunha: “A prática ain-
começo da década de 1990, reuniram-se em da comum no país inteiro dos maus tratos
Curitiba jornalistas e intelectuais, políticos e e mesmo da tortura contra presos comuns
sindicalistas para discutir uma nova visão de por parte da polícia reflete sem dúvida esta
cidadania para um país recém-saído da dita- tradição escravista negadora dos mais ele-
dura civil-militar. Júlio de Mesquita Neto foi mentares direitos civis”5.
jornalista e proprietário do jornal O Estado O município de São Paulo, onde fica a
de S. Paulo. O poderoso “Estadão”, considera- sede da Fiesp, que detém a maior arrecada-
do por uns máquina de ideologia retrógrada, ção tributária, poderia ser também o lugar
e por outros um modelo de empresa familiar onde oferecessem os melhores e mais abran-
de comunicação. Mesquita Neto demagogi- gentes serviços públicos e também onde a
camente vaticinava: cidadania democrática e republicana se ex-
pressasse verdadeiramente. Isso se a classe
Ser cidadão não é só fugir da pobreza do política local exercesse atividades marcadas
campo e se abrigar na miserável periferia das por padrões éticos razoáveis. Mas não, por
inchadas e violentas metrópoles brasileiras décadas a fio, a coisa pública paulistana tem
de hoje em dia [...]. A cidadania de primeira sido presa da gatunagem, da expropriação e
classe é a exigência que todo brasileiro, sem do descalabro.
distinção de credo, raça, classe social, precisa Recentemente, foi repatriada parte dos
fazer para se considerar perfeitamente inte- recursos financeiros desviados para contas
grado ao mundo livre e civilizado, que está em paraísos fiscais durante as gestões Maluf
sendo construído neste século XX4. (1993-1997) e Pita (1997-2001), e esses não
são casos únicos. Milhões de reais surrupia-
Nossas elites têm uma visão bem defi- dos em forma de propina de uma única obra,
nida do que seja, ou não, cidadania aplicada a construção da Avenida Roberto Marinho,
ao contexto da sociedade brasileira, mas implantada sobre o córrego Águas Espraia-
têm feito das “tripas coração” para manter das, cujos esgotos subterrâneos deságuam
privilégios seculares, tidos como direitos na sede na Rede Globo São Paulo, limites das
especiais, ou condicionados à participação zonas sul e oeste.
social e política mediante as circunstâncias. Podemos pensar sobre a “miserável pe-
As regras democráticas e republicanas não riferia inchada”, citada por Júlio de ­Mesquita,
são obras do acaso, mas utilizadas confor- como a favela arribada dali da zona sul para
me o contexto. que a Avenida Marinho brotasse, moradias
O renomado historiador José Murilo precárias que se estendiam desde o Rio Pi-
de Carvalho, no mesmo evento realizado nheiros, atravessando toda a parte baixa da
em Curitiba, referido a pouco, mencionou Vila Santa Catarina, os fundos alagados da
134 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Cidade Ademar e alcançavam o município a existência de um setor econômico diferen-


industrial de Diadema. Subdividia-se para ciado do setor do grande capital”8.
leste e oeste, mudando de nome e fazendo A modernidade brasileira combinou tec-
curvas sobre brejos e beiradas de córregos. nologia, cultura artística, políticas urbanas,
Na parte designada Canão, perto do industrialização, mas não abriu mão de velhas
Buraco Quente, viveu e morreu Sabotage, o formas de colonialismo interno, no trato com
anti-herói da segunda geração hip-hop6. O as populações pobres, indígenas e negras9.
córrego morto da Zavuvus corre no mesmo Embora estejamos socialmente situados ao
sentido, do outro lado do morro da Vila Santa lado dos brancos pobres, nossa condução tem
Catarina. Gestão após gestão, os escândalos especificidades que não podem ser anuladas,
de apropriação privada do bem público nos justamente pela longa duração e historicida-
dão apenas uma medida da de dos racismos antinegro e
sua normalização e regra, algo Flagrar e compreender ­anti-indígena. Os tataranetos
que podemos chamar de “ne- concretamente a rua, o dos paulistas quatrocentos
gócios da corrupção estatal”. bairro, a região e a cidade sequestraram para si a ideia
A cidade abstrata pode é desvelar a nossa própria de modernidade europeia,
ser um conjunto de regras aos existência nela e para aproveitando que seus pais
além dela, a existência
olhos dos legisladores, núme- e avós haviam feito fortuna,
daqueles com os quais
ros para demógrafos, traçados combinando tráfico clandes-
convivemos no tempo da
geométricos para urbanistas, construção social daquilo tino, escravismo altamente
categorias de consumidores que chamamos vida. racionalizado e plantation.
para os comerciantes e um Nossa concepção nacionalista
grande enigma para seus moradores. Fla- de modernidade tem essas matrizes: patrimo-
grar e compreender concretamente a rua, o nialismo, escravismo e racismo.
bairro, a região e a cidade é desvelar a nossa No Brasil, as instituições canônicas
própria existência nela e para além dela, a modernas10, quais sejam, os sistemas cul-
existência daqueles com os quais convive- turais, políticos e jurídicos, os sistemas de
mos no tempo da construção social daquilo comércio e escolares nacionais no século
que chamamos vida. XX, sobretudo ou pelo menos a partir da dé-
Milton Santos7 (2009) ao estudar a cada de 1930, tomaram os valores moder-
cidade de São Paulo é quem denomina Mo- nistas europeus como base discursiva para
dernidade Perversa nosso padrão de inser- gestar uma nova percepção de estado-nação
ção no mundo contemporâneo e indica que e suprimiram qualquer possibilidade de di-
nesse modus existe associação intrínseca versidade. Também sondaram as possibili-
entre miséria e abastança, e que ela pode ser dades de inserir o país como protagonista
desvendada. “Portanto, a modernização de nas dinâmicas geopolíticas mundiais.
atividades é simultânea à expansão de formas Ao mesmo tempo em que parte das
econômicas menos modernas que abrigam lideranças políticas e culturais sonha-
uma parcela da ‘pobreza’ urbana, permitindo vam quase secretamente com essa nova
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 135

sociedade, capaz de corresponder à fotogra- país, em todos os campos do saber. [...] Era
fia e­ conômica-cultural germânica ou esta- em São Paulo onde se encontrava, em 1985,
dunidense, nossa intelligentsia dava tratos às o maior número de editoras de livros e folhe-
teorias sociais importadas para alcançar uma tos. ­Pode-se, em consequência com base em
meta traçada no século XIX: uma sociedade sua força econômica e nas relações cada vez
plenamente ocidental na cultura e racialmen- mais íntimas entre economia e cultura, ad-
te branca na “raça”. A mestiçagem coordena- mitir que São Paulo esteja se tornando, igual-
da seria, então, um estágio ­inevitável11. mente, metrópole cultural? [...] A publicidade
Chamamos colonialismo interno por- ilustra bem a ideia de polo mundial: São Paulo
que não se tratava mais de um projeto de é centro difusor de interesse publicitários de
mudança imposto de fora para dentro, da inúmeras marcas e firmas internacionais14.
metrópole para a colônia. Giralda Seyferth
(1996), estudiosa da imigração e da coloni- Sim, os filhos dos fazendeiros-burgueses
zação, traça uma breve e excepcional genea- paulistas criaram tal instituição exemplar
logia da formação do estado-nação no Brasil citada por Santos, com objetivo confesso
e das políticas de imigração seletiva, que, no de preparar as novas elites para o mando.
jargão político do ativismo negro e antirra- Milton Santos, considerado um forasteiro
cista, tem sido definida como uma das fases naquela instituição, sentindo-se cansado, ao
do “projeto de branqueamento” 12. fim dos dias resumia:
Os fazendeiros paulistas não apenas
lucraram largamente com a escravidão de Os ditos chefes de escola na USP sem-
plantation e o controle do estado monárqui- pre foram chefes políticos, que não precisam
co, como também assumiram a dianteira na ter um corpo de ideias para poder se afirmar,
batalha pela abolição da escravatura e contra pois tinham poder de nomear, até quando po-
o império. Quando pensamos em São Paulo, diam, até 1968. Isso não é algo que se pode
não podemos perder de vista essa capacida- atribuir ao sistema de cátedra. [...] O que ele
de de mudar sem mudar ou de reformismo faz é produzir um círculo de aderentes, mas
reacionário das suas elites13. não de discípulos [...]. Em outros lugares
Segundo Santos (2009), já nos anos você tem vergonha de fazer coisa igual. Nos
1980 São Paulo rivalizava com a antiga ca- Estados Unidos, a mobilidade é regra dentro
pital do império escravista em vários tópicos das universidades. Elas não aceitam o seu
da produção cultural e científica rapidamen- próprio aluno imediatamente. Ele tem de cir-
te passando-lhe à frente em números de em- cular e não pode fazer carreira inteira como
presas publicitárias: acontece aqui na USP, que é uma espécie
de família; é considerado normal o menino
São Paulo por suas três universidades entrar na Escola de Aplicação e sair reitor.
estaduais, e sobretudo pela Universidade de Sabemos que não adianta querer participar
São Paulo, representa muito mais da meta- de boa parte dos concursos, porque eles são
de de toda pesquisa científica produzida no para tais e tais pessoas que já estão lá15.
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 137

A modernidade brasileira
combinou tecnologia, cultura artística,
políticas urbanas, industrialização,
mas não abriu mãos de velhas formas
de colonialismo interno, no trato com
as populações pobres, indígenas e
negras. Embora estejamos socialmente
situados ao lado dos brancos pobres,
nossa condução tem especificidades que
não podem ser anuladas, justamente
pela longa duração e historicidade dos
racismos antinegro e anti-indígena. Os
tataranetos dos paulistas quatrocentos
sequestraram para si a ideia de
modernidade europeia, aproveitando
que seus pais e avós haviam feito
fortuna, combinando tráfico clandestino,
escravismo altamente racionalizado e
plantation. Nossa concepção nacionalista
de modernidade tem essas matrizes:
patrimonialismo, escravismo e racismo.”
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Santos teve experiência de pesquisa, vi- São Paulo é atualmente o mais rico
sibilidade e prestígio internacional por causa mercado de cultura, lazer e entretenimento
da sua atividade professoral e acadêmica fora do país, no qual o custo individual de um es-
do país. No Brasil, ao contrário, deparou-se petáculo ou evento da moda pode alcançar
constantemente com preterimentos e de- até dois salários mínimos. Não é incomum
preciação intelectual. Silenciou-se pelo fato espetáculos por 500 dólares. Um contingente
de pertencer à geração da dor em segredo, razoável de pessoas estimuladas paga alegre-
para a qual admitir as práticas racistas in- mente para consumir tais serviços. Em nome
terpessoais e institucionais era considerado do status ou do sentimento de alta exclusi-
demonstração de fraqueza ou de vitimização. vidade, palacetes e prédios de luxo vendem
Chegou à África pela primeira vez no início da festas, shows, eventos gastronômicos e cor-
década de 1960, antes do golpe civil-militar, e porativos e espetáculos cult em salões vips.
lá teve acesso aos revolucionários descoloni- Pessoas que sem tocar o chão levitam sobre
zadores. Após o golpe no Brasil, foi encarce- a cidade. Jovens rastas definem a cidade-i-
rado por um período de cem dias. Ao sair sob lha-lívia: Babilônia.
condição de prisão domiciliar, contou com Dentro da cidade, mas nas margens ex-
amigos e políticos conservadores para fugir ternas dos rios, os eventos culturais perifé-
e exilou-se na França, onde lecionou. ricos denominados saraus têm uma história
Atuou na Universidade de Columbia multifacetada, controversa e épica. Atualmen-
(Estados Unidos), esteve à frente da criação e te há um sem-números de atividades realiza-
instalação do primeiro curso de geografia no das nos mais diversos pontos da periferia da
continente africano, na Tanzânia. Sua leitura cidade e também nos municípios do entorno.
sofisticada, mas não direta das formas de ma- O dramaturgo Marinho Pazzini, falecido dire-
nutenção do prestígio e poder acadêmicos, tor do grupo Clariô de Teatro, contou-me uma
sugere ter ampla analogia com as denúncias versão sobre sua origem que talvez não possa
do racismo antinegro dos movimentos ne- ser considerada muito edificante para alguns
gros brasileiros. membros atuais dessa modalidade cultural.
Podemos abordar seus deslocamen- Segundo Marinho, ao final dos anos
tos no mundo acadêmico e no território da 1970, jovens atores periféricos, que tinham
diáspora como estratégia afro-atlântica, na poucas alternativas no mercado cultural da
medida em que reflete outras narrativas de metrópole, eram convidados por senhoras da
viagem de outros tantos descendentes de elite para animar suas tardes de chá inglês,
africanos dentro e fora do Brasil. Seu saber recitando poemas e fazendo modestas per-
técnico acadêmico pode perfeitamente ser formances. Eles usavam “clássicos” da lite-
contabilizado como contribuição tecnológi- ratura e dramaturgia nacional e “universal”16.
ca própria ao Atlântico Negro, e sua crítica Os saraus artístico-literários cresce-
ao corporativismo racial elitista da aca- ram de tal forma que, no ano 2015, o Sarau
demia paulista, como um vetor no embate do Binho17 organizou na região de Campo
­contra-hegemônico e antirracista. Limpo o que pode ser considerado o maior
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 139

evento de literatura periférica do país. Con- As culturas musicais e literárias urba-


gregaram na praça central do bairro mais de nas brasileiras produzidas e relativamente
cem editoras independentes e durante três evidenciadas dos anos 1990 para cá têm
dias e três noites debateram tematizado e sido produzi-
os circuitos alternativos de Quando pensamos em da por pessoas advindas de
criação, produção e circu- São Paulo, não podemos favelas, subúrbios e perife-
perder de vista essa
lação de livros artísticos e rias não apenas do Sudeste.
capacidade de mudar sem
criativos no país. Os desafios Considero que Ilê Ayê, Ra-
mudar ou de reformismo
principais dos saraus têm reacionário das suas elites. cionais, Chico Sciense e Ba
sido principalmente romper Kimbuta, assim como Paulo
os limites de invisibilidades impostos pelo Lins, Sérgio Vaz, Ferrez, Allan da Rosa e Je-
mercado livreiro tradicional e criar formas nifer Nascimento, levando-se em conside-
alternativas de circulação da produção. ração tempos, modos e paisagens, podem ser
Contudo, o desafio maior da produ- entendidos como cenas de um filme longo,
ção literária periférica e negra, a meu ver, fragmentado e de difícil interpretação. Um
­situa-se no campo político e estético. Aos filme sonoro, uma cacofonia emocionante.
criadores resta entender se tais produções Uma película inédita e de epílogo incerto
têm sido reprodutoras dos valores da cultura cuja diretora é a história. Essa deusa co-
literária dominante e, nesse caso, assumido nhecida e estranha da qual não sabemos a
a condição de uma subcultura. A partir daí, origem nem compreendemos os desígnios.
admitir que anseia simplesmente ser incor- Numa segunda-feira, dia 13 de abril de
porada aos circuitos da elite. Ou, em sentido 2015, Paulo Lins fez uma visita surpresa ao
contrário, fomentar a cisão político-estética Sarau do Binho em Taboão da Serra. O sa-
e inaugurar efetivamente outro campo criati- rau é ambulante mas faz algumas paradas,
vo. Nesse caso, negritude e periferia não são sendo realizado também no Espaço Clariô de
apenas retóricas de identidade e lugar mas Teatro. Lins estava bem descontraído e, pro-
perspectivas de origem e destino, fontes de vocado por Binho, contemplou a todos com
conteúdo e forma. uma explanação livre e muito interessante
Paulo Lins18 é certamente um dos escri- de sua experiência como escritor e nos deu
tores mais prestigiados do mercado editorial alguma ideia da percepção que tem de histó-
brasileiro contemporâneo. Não há dúvida ria e cultura e da sociedade brasileira atual.
de que, quanto à forma, sua escrita colocou Entre outras coisas, contou que, ao ser
em cena um mundo social ofuscado pelos interpelado por um canal de televisão es-
estigmas recorrentes de miséria, violência e trangeiro a respeito de sua condição, de ser
racismo. Diferentemente de Carolina Maria o único negro em um grupo de 40 escritores
de Jesus, Lins experimenta com justiça e em brasileiros selecionados para a Feira do Livro
vida a visibilidade, o prestígio e o trânsito de Frankfurt na Alemanha, respondeu não
socioespacial pouco comum aos criadores ter notado ou pensado sobre o fato. Contudo,
culturais negros e periféricos no Brasil. ao fornecer dados de sua biografia, situou a
140 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

importância sociocultural dos morros e fave- Acompanhando nosso Atlântico ­Negro


las cariocas e enfatizou a “Pequena África” 19
sul, podemos mesmo dizer que os textos abo-
como parte do imaginário que influencia sua licionistas de homens e mulheres negras
vida e obra. Após confidenciar que morava que circularam no mundo consistiram na
em São Paulo havia um ano, encerrou a con- primeira forma literária singularmente ne-
versa com um belo e emocionado poema em gra, confeccionada com utilização da grafia
homenagem à sua mãe. ocidental, e tinham cunho artístico inegável,
Há entre nós, na periferia sul, um poe- assim como objetivos políticos confessos.
ta muito bacana que quer criar a Academia No Brasil atual, as mais altas taxas
Periférica de Literatura. Não considero de analfabetismo são verificadas entre os
impossível imaginar no futuro Paulo Lins pardos e negros. A exclusão escolar é fato
talvez como o segundo es- inconteste, e o racismo anti-
critor negro e o primeiro au- Os desafios principais negro, como sistema de con-
todeclarado na prestigiada dos saraus têm sido trole, tem uma função especial
instituição: Academia Bra- principalmente romper os nesse quesito. A modernidade
limites de invisibilidades
sileira de Letras. As popu- não existiria como conhecemos
impostos pelo mercado
lações negras impedidas de sem a expansão exponencial da
livreiro tradicional e criar
frequentar as escolas reser- formas alternativas de escrita e da leitura, mas tam-
vadas aos brancos médios, circulação da produção. bém das restrições do acesso a
desde a década de 1920, de- elas. O racismo antinegro não
signam suas criações culturais destinadas à seria tão eficaz no Brasil não fosse a exclu-
performance pública, “escolas e academias”. sividade de escolarização média e superior
Academias e escolas de samba, trata-se de dos eurodescendentes.
ironia fina ou simples imitação? Quem lê no Brasil? O que se lê no Brasil
A escrita ocidental foi sequestrada e atualmente?
transformada em tecnologia de combate O movimento dos saraus tem gestado
contra a desumanização de escravizados um novo mundo de leitores e escritores nas
africanos. Um dos mais antigos textos dessa periferias brasileiras. Aqui e acolá, pessoas e
saga foi escrito por Olaudah Equiano20. Um coletivos indicam a existência efetiva de uma
ioruba que viveu na América, lutou e morreu nova cultura escrita apropriada por novos
na Inglaterra no final do século XVIII. agentes sociais, cuja escolarização formal
Muito cedo, textos técnicos, adminis- começa a atingir o ensino médio completo.
trativos, comerciais e diplomáticos em por- A faixa composta de novos e desconhecidos
tuguês arcaico e latim foram produzidos por leitores desenvolve hábitos de consumo cul-
centro-africanos ante os contatos coloniais21. tural pouco compreendidos, e até desconsi-
Alfabetizados negros surrupiaram as técni- derados como tal, inclusive pelos produtores
cas de escrita musical dos eruditos brancos e e livreiros periféricos.
produziram cultura musical negra e erudita Esse mercado de consumo de livros
no Brasil, desde fins do século XVII. faz circular obras, contraideologias, temas
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 141

e materiais ainda não capitalizados pela in- qual pertencem. Por vezes, não conseguem
dústria cultural. Até quando? compreender que o sistemático desprezo que
Algumas questões cruciais são: Até que suas criações sofrem se deve tanto ao inusi-
ponto os produtores culturais marginais, ne- tado do seu lugar e perspectiva quanto a uma
gros e periféricos estão produzindo valores violenta reação do meio cultural hegemônico
culturais efetivamente novos e anti-hege- em que as produções teimam ser inscritas.
mônicos e até onde buscam simplesmente Trata-se de um setor social e profissio-
estratégias para ser incorporados pelas es- nal que não admite a ideia de concorrência
truturas institucionais da cultura dominante advinda de fora do círculo, por isso considera
paulistana e nacional? Até que ponto esses tais produções como algo de menor valor ou
produtores têm consciência ou não do abis- as denuncia como alienígenas, estigmatizan-
mo social e cultural que distinguem e sepa- do-as pelo fato de não se enquadrarem nos
ram os setores negromestiços e subalternos padrões “normais” de criatividade e fruição.
em relação às classes médias e altas dentro Avisado por Guerreiro Ramos sobre o
da sociedade brasileira? Até que limite suas papel da autofagia entre nós, não podemos
criações tomam esses mundos apenas como mais alegar ingenuidade. Também esta-
conteúdo, mas não como forma? Periferia é mos bem atentos à complacência estética
um lugar de enunciação ou há efetivamente e ao paternalismo político, social e cultural
uma estética específica? enraizados nesse padrão de sociedade que
Diferentemente da produção de Paulo herdamos. Como podemos construir um mo-
Lins, a criação e circulação periférica de li- delo interno de crítica capaz de estimular a
teratura não conta com nenhuma estrutura criatividade, fomentar a visibilidade e buscar
profissional de propaganda e difusão. Talvez a unidade política que necessitamos para su-
de fato nem possa ser designada mercado nos plantar a hegemonia da branquitude22?
termos em que trabalha a indústria cultural A indústria do desejo tem proeminência
livreira. Exceto um ou outro poeta ou escritor na breve São Paulo, mas seus famosos out-
consegue transpor a geografia dos saraus e doors foram substituídos paulatinamente por
estabelecer diálogos e padrões de vendagem TVs de metrô e ônibus. Quais as imagens de
“autossustentáveis” e continuidade criativa. São Paulo? Depende de quando, como e por
Entretanto, é possível visualizar um quadro onde você entra na cidade. Quero dizer, de
em que a leitura e escrita criativa não sejam que veículo se penetra na cidade. De quais
mais privilégio de classe e raça, exotismo ou sentidos mobilizamos para apreendê-la des-
rara exceção no Brasil. de os primeiros contatos. E principalmente
Tenho coletado dados e impressões de como nos deslocamos nela, sendo dia ou
sobre dois diferentes tipos de frustração noite. Quais partes dela acessamos?
entre criadores teatrais negros engajados, A suposta identidade paulistana não
por exemplo, quando buscam em vão o re- é muito antiga, mas vigorosa porque desde
conhecimento de suas obras pela crítica tea- a chamada Revolução de 1932, e talvez dez
tral convencional e pelo setor profissional ao anos antes, vem sendo tecida de fios finos
142 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de memórias reais e invenções ficcionais públicas. Sem choro nem registro. O fotógra-
incríveis. Cidade arte pública23, cidade mo- fo, editor e videomaker Cassimano Nanau
numentos24, cidade projeto arquitetônico25. roda por ali, de câmera em punho, a partir do
Involuntariamente, eu e Milton Santos con- limítrofe sudoeste, Jardim Jaqueline. Vem
tribuímos para alimentar essas texturas. fixando digitalmente o pouco que ainda es-
Com nossos desejos e interdições alimen- capou dessa determinação da política urba-
tamos os discursos sobre os aspectos super- na. Terminais de ônibus, unidades básicas
lativos da cidade-cenário. de saúdes, hospitais regionais e creches vão
Diferentemente, a fotógrafa e produto- surgindo onde antes existiam os únicos espa-
ra cultural Sheila Signário registra crianças ços de lazer na periferia. É essa modernidade
sem teto. Em meio à violência desproporcio- urbana tosca, perversa ou nada.
nal, suas existências são frágeis e erráticas, Quem são esses coletores de almas, pas-
novos nomadismos. Ela sente-interpreta sados e horizontes? Helder Girolamo, Alex
imageticamente a cidade aos olhos de in- Ribeiro, Grazii Ribeiro, Douglas Arruda, Ivan
fantes sem chances. Os fotógrafos Wilson Lino? Você, curador oficial, os conhece? Viu
Cortez e Guma Galina tam- algum catálogo deles com
bém têm realizado registros O movimento dos saraus capa dura e emblema de
visuais inéditos, formando tem gestado um novo mundo empresas mineradoras, se-
um belíssimo acervo fo- de leitores e escritores nas cretarias ou ministérios?
tobiográfico das beiras. periferias brasileiras. Aqui Uma casa de cultura se-
Criam poesias visuais der- e acolá, pessoas e coletivos miabandonada, aqui e ali um
ramadas e épicas, imagens indicam a existência efetiva Centro de Educação Unifi-
de uma nova cultura escrita
trespassadas e dramáticas cada (CEU), uma Fábrica de
apropriada por novos agentes
de tudo que transborda vida Cultura ou uma unidade do
sociais, cuja escolarização
urgente: música, cotidiano formal começa a atingir o Serviço Social do Comércio
e beleza, teatros sem palco ensino médio completo. (Sesc), é isso que tem sido
e dança. Panorama aberto capitalizado como “política
e fluido das efêmeras cenas culturais peri- cultural” nas propagandas das campanhas
féricas. Em conjunto, tramam e constroem eleitorais dos candidatos aos cargos públicos.
uma contra contracultura imagética em que Marketing sem desfaçatez nos períodos que
pululam negros e negras, seres periféricos. antecedem os pleitos municipais e estaduais.
Dinamicamente criativos, são criadores e Cultura, arte e lazer para quem?
personagens recriados visualmente. Cida- Desde os anos 1970, a pasta de Cultura
de-texto negra de becos e vielas em con- foi separada da pasta de Higiene. A cidade
traposição aos jardins de alamedas alvas e teve em três tempos três atores e homens de
arborizadas. teatro na pasta da Secretaria Municipal de
Por décadas, nas zonas pobres da cida- Cultura. A partir da década de 1970: Sábato
de, as hordas de jovens negros e pobres per- Magaldi, Gianfrancesco Guarnieri e Celso
deram seus campinhos de várzea para obras Fratesch. Por lá só passaram músico, poeta,
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 143

jornalista, filósofa, dois sociólogos, um ur- se dá conta de que africanos e seus descen-
banista26. Estes últimos formados pela USP. dentes a estejam fabricando. Desde a forma-
A filósofa Marilena Chauí, professora da ção do modesto burgo, circulando inclusive
USP, assumiu o posto de secretária munici- no centro. Conhecemos melhor suas bordas
pal de Cultura no primeiro ano de governo e margens. Cruzamos biqueiras, pinguelas e
de Luiza Erundina, quando esta pertencia pontes. Morrendo nas avenidas e alamedas
ao Partido dos Trabalhadores. Introduziu bem limpas da cidade como operários e só?
uma inovação administrativa ao implantar Até quilombos urbanos os negros paulistas
um sistema de Casas de Cultura, em antigos vivenciaram na formação da metrópole.
prédios desativados das administrações re- A cidade hegemônica se dá conta da
gionais (atuais subprefeituras) da cidade. sua presença somente quando a tensão sai
Durante os anos de gestão, ampla movimen- do nível do racismo pretensamente cordial.
tação cultural foi registrada nas periferias, Quando a tensão latente eclode. A desigual-
com aparecimento e relativo reconhecimen- dade produz um tipo de legitimidade discur-
to de um conjunto de práticas e expressões siva que na maioria das vezes se referenda na
culturais novas de setores pobres e periféri- noção liberal de competência e igualdade ju-
cos. Naquele contexto, a definição recorren- rídica formal. Saudosos somos de uma Chauí
te era cultura popular. O que escapasse era questionadora e contundente dos anos 1980.
catalogado como cultura de massa. Tratando da questão do silêncio e poder cul-
Grupos de teatro, música, dança, litera- tural, ela salientava:
tura, circo, cinevídeo encontraram refúgio
provisoriamente nas 13 Casas de Cultura27 Quando examinamos as precondi-
espalhadas nos extremos da metrópole. Era ções que dão direito a alguém para agir,
acolhimento e espaços para ensaio, criação e falar e ouvir descobrimos que esse direito
circulação das produções. Contudo, os equi- é dado apenas para aqueles que possuem
pamentos públicos centrais continuaram a os conhecimentos científicos, técnicos,
ser utilizados nos mesmos padrões anteriores artísticos e filosóficos estipulados pelos
de favorecimento e corporativismo, princi- dominantes; faz, fala e escuta quem “sabe”
palmente pelos chamados “corpos estáveis”28 e possui “cultura”. O resto obedece porque
e pelas empresas de entretenimento, devida- é incompetente. O mito da “competência”
mente “cadastradas” e inseridas nas formas significa simplesmente um enorme proces-
institucionais de fruição artística. so de uso de uma certa cultura para excluir
Independentemente da política cultural da ação social, política e cultural e do dis-
dessa ou daquela gestão, as presenças negras curso do conhecimento todos aqueles que
citadinas são fatos socioculturais já flagrados foram economicamente e politicamente
por alguns olhares e gravados em registros excluídos. Pela “competência” se realiza a
esparsos, mas consistentes pelas musicalida- invalidação social, política e cultural dos
des e literaturas negras, marginais e periféri- “incompetentes”. Ora, quem em nossa so-
cas. Nem sempre a memória oficial da cidade ciedade é o incompetente por excelência,
144 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

senão os trabalhadores, as mulheres, os ne- poemas, imagens e textos. Montamos cená-


gros, os índios, os homossexuais, os jovens, rios de possibilidades interpretativas, como
as crianças, os velhos?29 quebra-cabeças de tempos, geografias e figu-
ras humanas. Vai se confirmando que ao ati-
Após a implementação mal-acabada do vismo negro brasileiro e paulistano as artes
sistema de casas de cultura, talvez seja pro- engajadas têm sido fundamentais na cons-
vável que a maior inovação política cultural trução de jogos de contraste e alteridades. No
na cidade e no estado tenha sido a regula- deslocamento dos dispositivos de poder32 e
mentação do financiamento público da cria- instauração de outras relações, mas, nem por
ção, produção e circulação ­artístico-cultural, isso, mais equilibradas. Ainda.
por meio do sistema de fomento. Qual seja, Entendo que quem define sua arte como
um regramento de apoio financeiro a grupos negra sabe o risco que corre, mas quer inten-
e indivíduos via licitação pública, sempre cionalmente enfatizar a especificidade e di-
condicionada à contrapartida. Mas, ainda versidade cultural da ascendência africana.
assim, grupos identificados com estéticas Isso significa colocar intencionalmente em
artísticas hegemônicas denominadas uni- evidência visões de mundo que dialogam
versais introduziram em alguns editais cláu- com a cultura ocidental contemporânea, mas
sulas impeditivas quase imperceptíveis, que não podem ser completamente incorporadas,
criam barreiras intransponíveis às estéticas nem refletidas por ela sem tensão.
emergentes e aos grupos culturais periféri- Os críticos desinformados gritam que
cos ou divergentes. isso é essencializar ou mitificar a África. Es-
Medrando sob a velha e nobre São Pau- quecem que durante os dois últimos séculos
lo, encontramos a teimosa Sampa Negra nos quem inventou e inventariou as raças foram
poemas, nos textos jornalísticos e nas me- os intelectuais ocidentais. Quem transfor-
mórias de Luiz Gama30, nas pinturas e falas mou a raça em categoria social fundamental
de José Correia Leite transcritas por Luiz para conhecimento da diversidade humana,
Silva Cuti (1992)31, na poética de Lino Gue- definitivamente hierarquizada, foram os filó-
des e nas polifonias literárias prefiguradas sofos e cientistas ocidentais. Também foram
pelas várias edições do Grupo Quilombhoje eles a definir o fim de sua validade. Diferen-
de Literatura Negra. Atualmente, podemos temente do que se deu no ocidente, ninguém
senti-la pulsar nas edições radiofônicas e aqui está reivindicando a superioridade ra-
impressas da Toró, editora concebida pelo cial dos negros, mas as singularidades cul-
poeta, ensaísta e pesquisador Allan da Rosa. turais das civilizações africanas e dos seus
Essas contraculturas negras e periféricas desdobramentos na diáspora.
paulistanas são nossas locomotivas para a De fato, a África tem funcionado aqui,
modernidade negada. em muitas circunstâncias diaspóricas, como
Outras memórias e histórias negras vão princípio civilizatório organizador de ima-
se configurando à medida que prospectamos ginários, discursos e recursos. Não se trata
novos e velhos materiais, ideias, canções, de continuidades mas de reinvenções. Em
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

outras palavras, elaboração de narrativas al- Movidas por um desejo insaciável de


ternativas à “historia única” do mundo, como aprendizagem e revisão estética, atravessa-
indica a escritora Chimamanda Adichie33. ram as fronteiras do teatro, da dança afro e
Essa reivindicação de pertencimento das musicalidades negras para instaurar
surge de lugares, situações, sensibilidades dramaturgia e performance autoral nas pe-
e princípios civilizatórios absolutamente riferias da cidade. A pesquisa tornou-se uma
distintos, embora provocados palavra de ordem e tem ditado
pelo mesmo movimento da ex- [...] quem define sua o ritmo dos trabalhos e das
pansão econômica e cultural arte como negra sabe apresentações. Por isso, quem
do ocidente. Seus resultados o risco que corre, mas as vê de tempos em tempos fica
quer intencionalmente
culturais, políticos e estéti- com a impressão imediata de
enfatizar a especificidade
cos também são e só podem constante r­ efazer-se, mas mui-
e diversidade cultural
ser de outra natureza. Nesses da ascendência africana. to mais que isso. Seu último es-
casos, a África é uma inflexão petáculo, Sangoma, repertoria
temática e conceitual oportuna e necessária; experiências de cura, a partir da medicina
revela perspectiva e prospecção e é simulta- tradicional africana, tendo em vista a saúde
neamente passado revisto, presente reposto das mulheres negras, principais vítimas do
e futuro antecipado. racismo aplicado a campo do saber médico
Num passado recente, alguns descen- como sistema de controle racial antinegro. A
dentes de africanos desconfiavam das ima- saúde mental foi a medida mais saliente e efi-
gens de selvageria e barbárie do passado. caz contra os inadequados, mas não faltaram
Outros hoje o fazem com a retórica de caos projeto e práticas de esterilização massiva.
e desesperança projetados pela mídia sobre Capulanas é ação e reflexão contínua, su-
o continente africano. Rebouças reteve da peração de limites sociais e artísticos, revisão
África uma ideia de futuro da humanidade34. de conceitos e depuração dos dramas pessoais
A inviabilidade da África no mundo contem- e tudo isso sempre no sentido da sofisticação
porâneo parece significar, por conseguinte, a do conteúdo em foco, do aprimoramento téc-
inviabilidade também dos afrodescendentes nico, textual e interpretativo. O grupo tem
espalhados pelo mundo. uma base técnica composta também de ho-
Capulanas é o nome escolhido por jo- mens negros jovens, que perseguem os mes-
vens atrizes negras para dar materialidade mos objetivos, mas há uma singularidade
à sua Companhia de Artes Negras. T ­ rata-se firmada nas experiências socioculturais das
nominalmente das protagonistas de seu mulheres negras do passado e do presente, que
próprio enredo: Débora Marçal, Priscila o define e coloca sua cara no mundo.
Preta Obaci, Adriana Paixão, Carol Ewaci Trata-se de uma palavra de origem no
e Flávia Rosa, todas oriundas de grupos tronco linguístico bantu (línguas definidas
culturais e artísticos que surgiram e atuam pelos pesquisadores como nigero-congole-
na região sul, na periferia de São Paulo nos sas) e que especificamente pertence ao sub-
últimos dez anos. grupo linguístico tsonga, falado na costa leste
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 147

da África por quase 3,5 milhões de pessoas, por vezes até hermético do seu Atlântico
em Moçambique, Zimbábue e ­Suazilândia. Negro e ajustando a frequência do nosso
Capulanas por aquelas bandas é o nome que receptor para localizar melhor o Atlântico
se dá a um tecido utilizado pelas mulheres Negro no eixo sul. Por exemplo, quando nos-
para cobrir a parte inferior do corpo, uma sos vetores diaspóricos negrxs brasileirxs
espécie de canga. Ocasionalmente, cumpre elaboraram e emitiram sinais gráficos, sono-
papel de sobressaia, podendo ser também ros e imagéticos codificados pelas matrizes
jogado sobre os ombros como xale, turban- africanas ou quando leram e processaram as
te, anteparo de objetos levados à cabeça ou informações, conteúdos estético e políticos,
ainda usados para transportar os nenês às produzindo estímulos contra-hegemônicos,
costas. No passado, era produzido artesanal- e ressignificaram aqueles que alcançaram o
mente, mas desde o século XX passou a ser porto de Santos.
industrializado fora da África e comerciali- Falo aqui de canais marcadamente ne-
zado por lojas e ambulantes nas feiras dos gros, em fluxos descontínuos e desiguais, em
centros urbanos. emissões e recepções na direção dos mun-
Capulanas soma-se, pela temática, a dos negros situados seja nos Estados Unidos,
outros grupos teatrais que tomam as ques- seja em Senegal, em Cuba, na Martinica ou
tões culturais, raciais e étnicas negras como na Europa. Da mesma maneira, podemos
feixe para daí extrair filigranas de negritudes inventariar e dar a conhecer as múltiplas
variadas. Esse é o caso do Coletivo Negro, projeções e imaginários que a África foi as-
Os Crespos, Teatro Popular Solano Trinda- sumindo nos discursos e produções cultu-
de, Quizumba, entre outros, em São Paulo rais afro-diaspóricas brasileiras. Imaginários
e arredores. transformados em canções, roupas, adereços,
Num sentido, vislumbramos as bio- gravuras, pinturas, performances públicas
grafias e criações estético-poéticas, mas e privadas, missas, discos, espetáculos, co-
também os textos jornalísticos e técnicos reografias, discursos políticos, práticas re-
produzidos em diferentes âmbitos por figu- ligiosas etc36.
ras de abolicionistas negrxs como Maria Fir- Podemos ainda observar como educa-
mina dos Reis, Luiz Gama, Teodoro Sampaio dores, artistas, intelectuais e pessoas negras
e Manuel Querino, entre uma centena de no- comuns lançaram mão de tecnologias pró-
mes. Evocando Frantz Fanon35 em sua exege- prias da sociedade moderna para criar pro-
se dos efeitos sociais e psíquicos do racismo jetos e utopias, objetos e ideias vinculadas à
antinegro, também devemos nos preparar do história e à cultura afro-diaspóricas, quando
ponto de vista de uma ética intelectual negra, não para demonstrar outras possibilidades
capaz de pôr foco sobre contradições e equí- de uso desses sistemas fora da ordem vi-
vocos, ambiguidades e ansiedades humanas, gente. Nesse sentido, creio que as máquinas
dos quais nós negrxs não estamos isentxs. voadoras do José do Patrocínio e os projetos
Em outro sentido, podemos acatar Gil- arquitetônicos dos irmãos Rebouças já não
roy, fazendo a crítica ao caráter anglofônico, podem ser dissociados das ações políticas
148 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

destes em prol da abolição da escravatura. eterna proscrição ou invisibilidade em sua


Trata-se de criatividade e liberdade, inven- própria sociedade como no século XIX Re-
tividade e criação artística, mudança social bouças, e no século XX o bailarino Ismael
e revolta tecnológica. Ivo, o músico Nana Vasconcelos, o compo-
As tarefas de uma intelectualidade sitor ­Moacyr ­Santos, o sociólogo Guerreiro
negra contemporânea politicamente com- Ramos e o performer e compositor Satranga
prometida são urgentes e variadas. Ainda de Lima e sua poética homoafetiva.
estamos por mapear e considerar histórica Acima de tudo, devemos nos preparar
e culturalmente como válidos os indícios melhor para receber verdadeiros bombar-
deixados pelos viajantes baianos e flumi- deios supostamente fraternos e interraciais
nenses que faziam comércio de todos os lados, como no
de artigos religiosos entre Rio Podemos também passado receberam Guerrei-
de Janeiro-Salvador e Golfo preparar nosso espírito ro Ramos, Abdias e Maria
do Benim nos séculos XIX e e sensibilidade para Nascimento, do grupo ligado
XX. Como também podemos suportar a leitura labial ao sociólogo Luis Aguiar da
interpretar as relações, visi- de feições vincadas Costa Pinto37. Ou estarmos
tas e correspondências du- pela perda, distância e atentos também aos emba-
radouras de ativistas negrxs profunda melancolia, tes profundamente desiguais,
vozes plasmadas por
brasileirxs de São Paulo e Rio como aqueles travados pelos
lábios, textos e criações
de Janeiro, por exemplo, do membros da Frente Negra
artísticas e intelectuais de
poeta cubano Nicolas Guil- homens e mulheres negras Brasileira contra a intelectua-
lén com membros da Frente enviados para outros lidade paternalista e racista
Negra Brasileira, da bailari- exílios, novas diásporas. dos anos 193038. Ou ainda
na estadunidense Katherine aquela travada por Peter Fry
Dunhan com os ativistas do Teatro Experi- nos anos 1970 contra os ativistas, fundadores
mental do Negro, e os constantes laços do do Movimento Negro Unificado em São Pau-
professor e coreógrafo estadunidense-baiano lo, por ocasião de sua pesquisa sobre Cafundó
Cleyde Morgan com a geração de Firmino ao lado de Carlos Vogt e ­Robert Slenes39.
Pitanga e Mário Gusmão, a partir de Salvador Nossa questão aqui é pensar: Como
desde a década de 1970. ativistas e intelectuais, artistas e criadores
Podemos também preparar nosso es- culturais negrxs têm experimentado e in-
pírito e sensibilidade para suportar a lei- terpretado esse modernismo reacionário no
tura labial de feições vincadas pela perda, Brasil? Em tudo vamos desconstruindo ou
distância e profunda melancolia, vozes parcialmente confirmando percepções mais
plasmadas por lábios, textos e criações ar- ou menos conflitantes sobre a presença ne-
tísticas e intelectuais de homens e mulheres gra em São Paulo.
negras enviados para outros exílios, novas Florestan Fernandes (2010) fez uma
diásporas. Diásporas negras autoimpostas, trajetória acadêmica e política admiravel-
ou não, emigração a ter que viver a dor da mente comprometida com a desconstrução
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 149

da mística da democracia racial freyreiana. convencer a opinião pública das especifici-


Contudo, não deixou de construir inter- dades dos racimos antinegro e anti-indíge-
pretações equivocadas que, num primeiro na no fazer-se dessa mesma sociedade. O
momento, tenderam a sustentar a ideia de reconhecimento ou não do fenômeno tem
incapacidade dos negros à adaptação às a ver com a legitimidade para que se possa
sociedades de classes, revelando profunda cobrar do estado e da sociedade uma nova
negligência com a compreensão do racismo abordagem do problema.
tradicional e estrutural. Qual seja, buscou as Durante mais de meio século o ati-
origens, causas e motivações para as desi- vismo antirracista se embateu com insti-
gualdades raciais contemporâneas no passa- tuições hegemônicas, justamente nesse
do escravagista, quando na verdade lá estão sentido. Nos últimos 20 anos eclodiram
apenas suas matrizes, mas não os mecanis- novas consciências negras, não apenas no
mo de sua perpetuação e desdobramentos. meio urbano, como também no meio negro
Uma passagem crítica do seu pensa- rural, em regiões onde os movimentos negros
mento pode ser localizada em texto apre- não tinham assento. Houve uma verdadeira
sentado em 1976 nos Estados Unidos e descentralização dos movimentos negros,
publicado em circuito fechado: que têm se voltado muito mais para forma-
ção interna do que para o debate externo. Os
A situação histórica, porém, não é tão ativismos negros descentralizados, em larga
adversa à população negra, como foi durante medida, têm produzido como efeito esgotar
o primeiro ciclo de prosperidade econômica os pequenos dutos de prestígio das lideran-
da cidade, dos fins do século XIX, dos fins ças negras institucionalmente atreladas, ge-
do século XIX à crise de 1929. Então a po- rando demandas e ações não previstas nos
pulação negra vivia dentro da cidade mas calendários e agendas oficiais.
sem pertencer a ela, tratava-se de uma con- A recolha de demandas das comunida-
dição extrema de isolamento cultural e de des negras e seu carreamento para os canais
marginalização socieconômica. As oportu- institucionais de participação política, por
nidades iam para os brancos, especialmente décadas, funcionaram como estratégia de
para as famílias tradicionais ou imigrantes. ascensão social individual, mas também re-
O progresso estuante não existia para o meio presou nas bordas as frustrações e tensões
negro, mergulhado na mais extrema desor- acumuladas pelos baixíssimos níveis de mo-
ganização social, pauperismo e desalento, bilidade. Acima de tudo, assimilou as justifi-
uma fase dramática e amarga, que suscitou cativas para a violência sistêmica, qual seja,
a imagem do emparedamento do negro40. aplicação desproporcional das penas ou mes-
mo eliminação física e sistemática dos indi-
Um longo e sinuoso caminho tem sido víduos mediante as características raciais.
percorrido na sociedade brasileira para le- A relativa democratização das ferra-
vá-la primeiramente ao reconhecimento mentas de comunicação digitais a distân-
da existência dos racismos em geral, depois cia e a inovação tecnológica como um todo
150 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

potencializaram essa tendência de descentra- qualquer contestação. Contudo do próprio


lização, que vinha se processando no interior público emergiu um artista que, questio-
das populações negras desde início da década nando o referido diretor, trouxe o fragmento
de 1980. Contudo as instituições, de maneira de um registro textual no qual uma espec-
geral, ainda não assimilaram por completo os tadora da mesma peça havia submetido o
índices dessa profunda mudança. conteúdo do texto dramatúrgico a questio-
De maneira geral, os ativistas antirra- namentos sobre seu caráter antinegro.
cistas, intelectuais e pesquisadores negros Não pretendi tratar da peça de teatro em
têm atribuído pouca ou nenhuma atenção si, mas da permanência do silenciamento do
aos estudos sobre a parcela branca da popu- racismo de maneira geral na sociedade brasi-
lação brasileira. Não por razões instrumen- leira e da especificidade do racismo antinegro
tais, mas também por isso, é importante no meio artístico cultural paulista. Ou seja,
compreender os parâmetros, as dinâmicas, desenvolvo aqui uma reflexão específica so-
o mecanismo da reprodução e a perpetuação bre o que defino como pacto racial brasileiro,
da hegemonia dos brancos brasileiros sobre sua manutenção no âmbito da cultura e, so-
negros, mestiços e indígenas. bretudo, da cultura artística.
Por detrás de uma história triunfalista Estou definindo como cultura toda for-
da imigração europeia repousam tensões e ma de existência material e simbólica huma-
hierarquias entre brancos, degradações e na e afirmando como cultura artística toda
discriminação entre estes e trabalhadores expressão estética, passível de exploração
brancos e negros, xenofobia, como intera- econômica ou não. Trata-se de convenções
ções, intercâmbios e experiências de con- questionáveis, mas ao mesmo tempo am-
vivências interraciais a ser conhecidas e plamente aceitas e difundidas por meio da
enfatizadas41. escolarização e dos veículos de comunicação
Podemos mesmo tratar de uma tradição massiva. Sua origem é certamente a Europa
afro-brasileira de diferentes tentativas de so- ocidental e sua imposição se deu mundial-
lapar a hegemonia branca no âmbito da cul- mente no processo que podemos chamar de
tura letrada e artística. A essa tradição de um expansão do ocidente.
ativismo político, artístico e cultural, em que O racismo antinegro é um fenôme-
predominam descendentes de africanos, nos no complexo porque envolve formas nem
referimos como movimentos negros. sempre visíveis de discriminação e outras
Este texto nasceu do debate desenvol- práticas tradicionais de rebaixamento e
vido em torno do conteúdo racista presente destrato social de difícil percepção e logo
na peça de teatro encenada pelo grupo pau- de igual dificuldade na denúncia e combate
lista Os Fofos Encenam, no instituto Itaú aberto. Sobretudo, envolve também novos
Cultural no primeiro semestre de 2015. A consensos interpretativos, que se embatem
peça, cuja criação teria acontecido nos anos com estabelecimentos conceituais, mani-
1990, já havia sido encenada várias vezes, e pulados por setores culturais, acadêmicos
segundo seu diretor jamais teria sido alvo de e políticos hegemônicos. A interpretação do
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 151

racismo antinegro tem sido, por conseguinte, construção de vínculos e autoestima reali-
desde a década de 1930, um campo de disputa zadas pela Cooperifa e pelo Sarau do Binho,
intelectual e política. pelo Sarau do Grajaú, pelo Sarau da Ponte
Também podemos escalonar leituras do Pra Cá e por tantos outros também reivin-
ativismo antirracista desde os negros dra- dicam uma memória quilombola e retomam
mas de Hamilton Cardoso a mística do texto escrito
e Eduardo de Oliveira e Oli- Estou definindo como cultura e declamado. Palmares e
veira e erigir novos símbo- toda forma de existência Canudos estão lá. Erguem
los. Quiseram nos mostrar material e simbólica humana novos signos identitários,
os prenúncios das novas e afirmando como cultura como aqueles do nego Jan-
relações raciais, quando se artística toda expressão sem em seu inaugural Qui-
constataram o esgotamen- estética, passível de lombo Imaginário de Santo
to e a armadilha da fixidez exploração econômica ou Amaro, nos anos iniciais da
não. Trata-se de convenções
das teorias de classe para década de 198042.
questionáveis, mas ao mesmo
compreender e refutar os Algumas são formas
tempo amplamente aceitas
racismos. Porém, tal inova- e difundidas por meio da longevas de auto-organi-
ção metodológica foi adia- escolarização e dos veículos zaçao, criação e difusão ar-
da ou mesmo abortada pelo de comunicação massiva. tístico-culturais, outras são
desaparecimento precoce de ONGs oportunistas e para-
ambos. Mortes sem explicação, nem sentido, sitárias que penetram no território, atraídas
a não ser o Negro Drama. pelas possibilidades de exploração de mão
Beatriz Nascimento e Abdias Nasci- de obra e obtenção da legitimidade neces-
mento partiram de conceitos similares, mas sária ao acesso de novos financiamentos
elaboraram diferentes versões tendo em vis- em agências nacionais e estrangeiras. Ali,
ta a atualização do conceito Quilombo para aqueles enraizados enunciam as tentativas
moldar novas realidades sociais urbanas e possibilidades de uso e inovação das lin-
negras e brasileiras na segunda metade do guagens artísticas ocidentais, combinadas
século XX. Ambos parecem ter se afinado à com códigos e signos de origem africana
ideia de Malcom X de que o retorno à África ou ­afro-diaspóricas criteriosamente esco-
era de natureza simbólica, e a transformação lhidos. A contar por Equiano, Luiz Gama,
dos valores civilizatórios africanos em sig- Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento, pa-
nos de libertação serviriam como espécie de rece que esse tem sido um método recor-
condutores de energia vital. Beatriz e Abdias, rente e eficaz.
antecedidos por Clóvis Moura, parecem ter Seja como estratégias, seja como tec-
experimentado essa espécie de epifania in- nologias ou veículos, são Barcos Negros na
telectual afro-diaspórica ante a brisa mística Kalunga Infinda. Isso nos coloca em com-
do Atlântico Sul. passo com uma espécie de cosmopolitismo
Hoje, em meados da década de 2010, negro, que possibilita elaboração de versões,
poetas que frequentam as sessões de re- contranarrativas ou “narrativas dissidentes
152 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

da modernidade” brasileira, que tem com- Aqui São Paulo. Cantaram Racionais
binado tanto mudança social e tecnológica Mcs. Terça Afro nasce nesse contexto e
constante com manutenção e controle social, faz emergir o que Stive Biko definiu como
tradicionalismo político e cultural. Consciência Negra na luta contra o racismo
Hall (2005) caracteriza a modernidade institucional na África do Sul. Qual seja, um
como sociedade da mudança enquanto nos impulso político e cultural capaz de mobi-
passa a impressão de que não haveria mu- lizar os negrxs do mundo, em torno de um
dança nas sociedades tradicionais43. Esse projeto de emancipação política e racial de-
aspecto do seu pensamento nos parece um finitiva e humanizadora.
tanto equivocado, pois também nas socie- A consciência negra, entretanto, não
dades tradicionais as mudanças se proces- pode ser aprendida em uma cartilha filosó-
sam, ainda que possam ser compreendidas fica dogmática e fechada como imaginam as
como mais lentas. Nesse caso, a analogia da mentalidades autoritárias. Justamente por-
modernidade como mudança rápida e cons- que deve estar circunscrita a cada dinâmica
tante pode ser considerada uma forma de política, conjuntura temporal e contexto
autoelogio do ocidente, uma herança hege- específico. Lá, Biko lançou um petardo cog-
liana da concepção de história como movi- nitivo que pode ou não ser capturado e sub-
mento. Mas a filosofia da história de Hegel metido a novos desígnios.
é justamente o ponto nodal da negação de Numa conjuntura de profunda desi-
historicidade às civilizações africanas. gualdade e racismo antinegro e anti-indígena
Como poderíamos pensar em mudança que se reinventa, o que podem fazer jovens
rápida se temos consciência de 400 anos de negrxs além de viver sob o impacto cotidiano
duração do tráfico negreiro e escravidão legal da segregação? Qual função e propósito tem
e, ao menos, 250 anos de racismo científico? um grupo de jovens negrxs envolvidxs com
Algumas práticas negras e antirracistas artes, culturas, memórias e identidades? Que
que atuam na cidade abrem mão da institu- tipo de ação tem condições de realizar ante o
cionalização e acatam o signo do movimen- niilismo, o individualismo, o narcisismo diri-
to constante e tudo aquilo que é provisório gido a eles pela indústria do entretenimento
e efêmero. Não há sede nem hierarquia e e do consumo em geral?
primam por uma relação fraterna e horizon- Pelo que tenho acompanhado, eles res-
tal entre os membros jovens masculinos e pondem a esses desafios produzindo micro
femininos. Certamente existem conflitos anti-ideologias e práticas políticas funda-
e problemas variados, mas esses grupos de mentadas em quatro pilares: negritudes,
jovens negros e negras têm conseguido lidar sociabilidades, artes e afetos.
com desafios criativos e educacionais, com Negritudes: admitem a existência de
ações concretas e elaborações intelectuais e pertencimentos diversos à origem africa-
artísticas muito complexas. Por isso, teimo na e tomam como positiva a diversidade
em mencionar o trabalho que o Terça Afro negra experiencial histórica e subjetiva.
realiza para fechar este texto. Fuçam e reviram as memórias, histórias e
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 153

africanidades. Visitam figuras humanas his- de fazer política no Brasil que valorizasse as
tóricas vivas, mas desaparecidas, para esta- matrizes culturais africanas presentes no
belecer um diálogo intenso com as histórias nosso imaginário. Talvez, por compreen-
africanas e diaspóricas. derem criticamente o monopólio das elites
Sociabilidades: elaboram sofisticadas brancas sobre as instituições culturais, so-
estratégias para um “estar juntos”, convi- ciais e políticas (partidárias) convencio-
vendo, partilhando, descobrindo, gerando nais, vislumbraram uma rota de fuga para
tensão e relaxando as relações a partir da os descendentes de africanos, de forma a se
criação e execução de programas, projetos manter fortalecidos e aptos para um novo
e eventos. Contornam conflitos pessoais e tipo de confronto.
competitividades para partilhar horizontal- A ação cultural, artística e política
mente os desafios e retornos (financeiros e chamada Terça Afro é um diapasão afina-
emocionais) advindos de cada ação plane- do com os pressupostos de Biko, definidos
jada e desenvolvida. como Consciência Negra e simultaneamen-
Artes: encontram nas linguagens codi- te repercutem os Quilombismos de Beatriz
ficadas como expressivas as estratégias e os e ­Abdias Nascimento e Quilombagem de
veículos para comunicar suas experiências ­Clóvis Moura. O aquilombamento tem per-
e reanimar memórias negras abandonadas mitido construir autoimagem a partir de
pelo espólio da guerra cultural-racial anti- dentro e elaborar ferramentas de arqueologia
negra. Elaboram, fazem fluir e intercambiam cultural e tecnologias de combate ao racismo
imagens fílmicas e fotográficas digitais; tex- normativo e cotidiano.
tos sonoros, impressos e virtuais; conteúdos São grupo de jovens urbanxs autodefini-
e valores musicais; técnicas de registro e for- dxs como negrxs que a partir de sua própria
mas criativas e tecnológicas. experiência interpretam a realidade brasi-
Afetos: lançam desafios para a aproxima- leira, girando seus binóculos digitais para
ção direta, fomentam troca de gentilezas, mas captar e processar os dados sobre a perife-
não escamoteiam dissidências, medos e di- ria da cidade mais rica do país. Constatam
vergências. Politizam o carinho e a violência, as continuidades dos diagnósticos feitos por
tratando da tendência ao isolamento como gerações anteriores de ativistas. O racismo
um fator de adoecimento que incide sobre os antinegro é rápido, dinâmico. Turva a visão,
urbanos, mas desumaniza mais aqueles so- dilata-se, readapta-se para manter as hierar-
cialmente abandonados e segregados. quias estruturais e seculares.
Tanto na percepção de Beatriz Nasci- A base do trabalho? Rodas de conversas
mento quanto na de Abdias do Nascimento, com convidados abertas ao público. Numa
as experiências sociopolíticas designadas primeira olhada, suas estratégias parecem
Quilombos poderiam servir como platafor- ser bastante simples, mas não são, a saber,
ma tecnológica para redimensionamento da convivência, diálogo, criação estética e lei-
presença negra na sociedade brasileira. Eles turas/interpretações das experiências de
preconizavam como devir uma nova forma si e dos outros.
Numa
conjuntura de
profunda desigualdade
e racismo antinegro e
anti-indígena que se
reinventa, o que podem
fazer jovens negrxs
além de viver sob o
impacto cotidiano
da segregação? Qual
função e propósito
tem um grupo
de jovens negrxs
envolvidxs com artes,
culturas, memórias e
identidades?”
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Cárcere e morte são temas bastante determinações coloniais e imperialistas já


caros aos movimentos negros que, desde a não deve ser lido apenas em um sentido.
década de 1970, têm aprofundado a crítica Atemo-nos aos protagonismos e em-
ao fenômeno que Abdias teria indicado como preendimentos culturais e estéticos de su-
“genocídio do negro Brasilei- jeitos e coletividades negras
ro” bem antes que as políti- Nosso navio então faz no fazer-se da sociedade con-
cas de segurança, baseadas rotas próprias ao Atlântico temporânea tornados opacos
na noção estadunidense de Sul. Tal como Gilroy, não ou nulos pelo eurocentrismo
“tolerância zero”, fossem im- podemos abandonar a inofensivo. Talvez nosso so-
língua nem os sistemas
plementadas por aqui. ciólogo tenha ouvido dema-
de pensamento dos
São jovens negrxs autor- siadamente inglês e menos
colonizadores, mas
xs de suas próprias biogra- podemos também fazer afro nos Negro Spirituals
fias, que buscam compor uma exercícios para não nos apresentados a ele por Wi-
visão de campo e também comportarmos como tal. liam Du Bois45. Na elaboração
redigir um contradiscurso do conceito, ao confundir su-
que fortalece o sentimento de pertença e balternidade com passividade, quase anulou
ao mesmo tempo se contrapõe aos meios todo protagonismo que ele próprio prospec-
de comunicação, os quais cotidianamente tou e deu lume.
normalizam a violência racial e naturalizam Nosso navio então faz rotas próprias ao
as chacinas epidêmicas. Atlântico Sul. Tal como Gilroy, não podemos
Ouço a bela canção de Paul Gilroy (2002) abandonar a língua nem os sistemas de pen-
sobre o Atlântico Negro, embora não possa as- samento dos colonizadores, mas podemos
similar sua concepção de Escravo Sublime. também fazer exercícios para não nos com-
Aparto-me do admirável sociólogo negro no portarmos como tal. A noção de cidadania
caso de sua interpretação metafísica e cristã: aplicada ao mundo da cultura, de cuja cons-
as culturas negras da diáspora nascem, sobre- trução temos participado, não foi definida em
tudo, da sublimação da dor e sofrimento dos gabinetes de empresas jornalísticas, nem em
escravizados. Talvez ele tenha lido e assimi- seminários patrocinados por empresários,
lado involuntariamente alguns sermões do nem em congresso de partidos políticos. Ela
Padre Vieira disponíveis em língua inglesa44. tem sido gestada na prática cotidiana. Daí a
Proponho interpretar como nascente noção de que a sociedade brasileira é efeti-
e base do desenvolvimento das modernida- vamente múltipla no âmbito das formas de
des negras os resíduos e fragmentos de cul- conceber ideias, atitudes, práticas, criações
turas africanas originárias, combinadas com estéticas. Trata-se de uma concepção advinda
elementos, saberes, tecnologias e símbolos da concretude das experiências socioculturais
advindos de escolhas éticas, estéticas e polí- e étnicas e refletem um refinamento da noção
ticas elaboradas marginalmente na expansão de cidadania, que vai muito além da conquista
do ocidente, que chamamos, criticamente, dos direitos à vida e à prosperidade material.
modernidade. Tal alargamento do mundo sob Trata-se de um outro humanismo.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 157

Salloma Salomão
Músico, historiador e produtor cultural. Doutor em história pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pesquisador associado ao Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa. Versa sobre práticas culturais afro-diaspóricas e afri-
canidades com ênfase em música e teatro. (Contatos: mosaiconegrobras.blogspot.com;
sallomasallomao@gmail.com)

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Notas

1 Alguns dos meus interlocutores estão disseminados pelo país, e nossas interfaces
têm sido feitas via web e eventualmente corpo a corpo – por exemplo, com o
artista multimídia Délcio Teobaldo (RJ), a professora Ione da Silva Jovino (mana),
da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR), e Denise Barata, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É importante citar também o
músico afro-mineiro e parceiro nas canções Satranga de Lima (Montreal-Paris), a
pesquisadora Patrícia Schor (Países Baixos) e o sociólogo e professor José Machado
Pais, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL/PT).

2 Alguns se tornaram amigos para toda e qualquer obra, entre os quais menciono o
músico e professor Amailton Magno Azevedo, o livre-pensador Eduardo Bonzatto
e as pesquisadoras Karina Poli e Nirlene Nepomuceno (Bebel). Sou grato
também a Augusto Lopes, Eduardo Rosas Negras e Jean Tible, respectivamente,
ex-alunos e professor do Centro Universitário Fundação Santo André. Figura
ímpar nesse trajeto tem sido a produtora cultural Baby Amorim, criadora da rede
social Aruanda Mundi e uma das coordenadoras do Bloco Afro Ilú Oba de Min.

3 Minhas parceiras de reflexão e ação sobre teatro negro, dramaturgia e negritude


têm sido primordialmente as atrizes, pesquisadoras e arte-educadoras sociais
Priscila Preta Obaci, Flávia Rosa, Débora Marçal, Adriana Paixão, Carol Ewaci, Jé
Oliveira, Maitê Freitas e Thais Dias. Tenho dívidas impagáveis também com os
fotógrafos e designers Helder Girolamo Scantanburlo, Guma e Nanau Cassimano
e Alex Ribeiro.

4 NETO, Júlio de Mesquita. Publicação financiada pelo Banco Bamerindus. Ciclo


de Debates: cidadão brasileiro. Realizado em Curitiba, ago.-nov. 1991. Cidadão
brasileiro. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1992. p. 12.
160 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

5 Idem, p. 98.

6 Rapper paulistano. Assassinado em 2003, desenvolveu uma nova estética


musical, introduzindo elementos do samba urbano na poética e na rítmica da
música rep (ritmo e poesia). Para saber mais, veja: TONI, C. Sabotage: um lugar –
biografia oficial de Mauro Mateus dos Santos. São Paulo: Literatura, 2013.

7 Milton Santos traçou um perfil muito interessante de São Paulo, com dados já
considerados um tanto defasados por ser dos anos 1980, mas algumas análises
ainda valem. Neste caso, especialmente a segunda análise do capítulo 2. Veja:
SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. 2. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2009. p. 80.

8 Idem, p. 92.

9 Para alguns autores brasileiros, parece ser muito complexa a ideia de


colonialismo interno. Meu argumento é bastante simples. Tanto a vinda da família
real portuguesa como a manutenção da ordem escravista, assim como a maior
inserção das elites brasileiras de origem portuguesa no mercado mundial de
coisas e pessoas, em nada denotam uma ruptura da lógica colonial. Mas sua
permanência mais atroz encontra-se no âmbito da cultura e da mentalidade.
Para verificar argumentação contrária, consulte: GOMES, Heloisa Toller. Crítica
pós-colonial em questão. Disponível em: <http://revistabrasil.org/revista/ingles/
heloisa.htm>. Acesso em: 13 maio 2013.

10 Para uma definição crítica de modernidade e modernismo, assim como para


sondar suas semânticas e sua historicidade, vale consultar: WILLIANS, Raymond.
Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução André Glaser.
São Paulo: Editora Unesp, 2011.

11 Sílvio Romero, intelectual comprometido com a causa da mestiçagem


racionalizada pelo Estado, por vezes questionava o que via como tendência de
formação de guetos de povos brancos na Região Sul, em vez de sua disseminação
por todo o território de forma a facilitar o embranquecimento progressivo e o
surgimento de um padrão racial mais homogêneo da população nacional.

12 SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo


na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo
Ventura (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz: Centro Cultural
Banco do Brasil, 1996.

13 Segundo Rei Andrews, as elites paulistas construíram seu próprio projeto de


imigração-branqueamento, tendo-o perseguido sistematicamente até a década
de 1960. ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988).
Tradução Magda Lopes. Bauru: Edusc.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 161

14 Idem, p. 29-31.

15 SANTOS, Milton. Testamento intelectual. Perfis brasileiros. Entrevistador: Jesus de


Paula Assis. Colaboração de Maria Encarnação Sposito. São Paulo: Editora Unesp,
2004. p. 14-15.

16 A raiz etmológica do termo é a palavra latina seranus (pôr do sol,


entardecer, anoitecer).

17 Binho é um poeta radicado na região de Campo Limpo, zona sul. Realizava


encontros em um bar, até que o espaço foi desativado pela gestão Kassab sob
a alegação de falta de infraestrutura. Desde então, as atividades são realizadas
de forma itinerante por uma equipe reunida em torno de um projeto de
expansão da leitura e da escrita criativas. Seu raio de atuação tem se expandido
para as regiões do Mercosul.

18 LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

19 MOURA, Roberto. A casa da tia Ciata. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.

20 O texto de Olaudah Equiano é um entre pouco mais de uma dezena de relatos


e romances de escravizados. São textos autorais autobiográficos com elementos
ficcionais, ainda difíceis de ser encontrados em língua portuguesa. Veja:
EQUIANO, Olaudah. The interesting narrative and other writings. New Zealand:
Penguin Books, 1995. Uma publicação interessante é também a coletânea
GATE JR., Henry Louis. The classic slave narratives. New York: Signet Classic, 2002.

21 LAHON, Didier. O negro no coração do Império: uma memória a resgatar:


séculos XV-XIX. Lisboa: Secretariado Coordenador dos Programas de Educação
Multicultural, Ministério da Educação, 1999. (Coleção Entre Culturas).

22 Por branquitude estou designando tanto a hegemonia socioeconômica dos


descendentes de europeus no Brasil como a discursividade e as projeções de
imaginários eurocêntricos sobre todos os tipos de criação cultural e artística.

23 ARTE PÚBLICA. Trabalhos apresentados nos seminários de arte pública


realizados pelo Sesc e pela Usis de 17 a 19 de out. 1995 e de 19 a 21 nov. 1996. São
Paulo: Editora Sesc SP, 1998.

24 RIBEIRO, Cecília Moura L.; GONÇALVES, Janice (Coord.). Obras de arte em


logradouros públicos de São Paulo, regional Vila Mariana. São Paulo: DPH, 1993.

25 TENTORI, Francesco. P. M. Bardi: com as crônicas artísticas “L’Ambrosiano” 1930-


1933. Tradução Eugênia Gorini Esmeraldo. São Paulo: Instituto Lina Bo e Pietro
Maria Bardi: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
162 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

26 Para uma pequena e concisa história crítica das políticas culturais na cidade, veja:
ALMEIDA, Patrícia Ferreira de; MARCELINO, Julio Cesar José; NETO, João Luiz
de Brito. Movimentações pela cultura. Painel dos movimentos culturais da região
leste de São Paulo. 1980-1990. São Paulo: Movimento Cultural Penha, 2004.

27 Tudo indica que esse modelo foi copiado da política cultural desenvolvida no
México na década de 1970. Ao menos cheguei a essa conclusão ao ler um caderno
publicado pelo Partido dos Trabalhadores em 1985 na cidade de Porto Alegre.
Veja: CHAUÍ, Marilena. Política cultural. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.

28 Corpos estáveis são as designações institucionais para orquestra, coral lírico e


corpo de bailado do Teatro Municipal de São Paulo, que agora, sob auditoria,
consome 50% do orçamento público municipal.

29 Idem, p. 21.

30 Veja: FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos,
cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011. Ainda: AZEVEDO,
Elciene. Orfeu da Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São
Paulo. Campinas: Editora Unicamp, 1999.

31 CUTI, Luiz Silva (Org.). E disse o velho militante José Correia Leite – depoimento e
artigos. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

32 Stuart Hall, já citado, utiliza esse termo para refletir sobre formas de resistência
cultural, nas quais os despossuídos e os subalternos por algum momento
interpelam ou interditam as formas culturais hegemônicas e impõem uma
agenda ou demanda.

33 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>.


Chimamanda Adichie. O perigo de uma história única. Acesso em: 16 jul. 2016.

34 André Rebouças, engenheiro, negro, brasileiro do século XIX, abolicionista e


próximo da Casa Imperial de Bragança, propunha um projeto modernizador
do Brasil, concomitantemente à supressão da aristocracia agrária, da grande
propriedade e do escravismo. Estudou na França e percorreu o mundo em
busca de novas tecnologias que pudessem ser introduzidas no Brasil. Prevendo
as perseguições republicanas, exilou-se na Europa em 1889 e depois viajou
pela África. Uma biografia tanto múltipla e próspera quanto trágica e previsível;
morreu numa ilha atlântica – não se sabe ainda hoje se por suicídio ou por
queda acidental. Veja: SANTOS, Sydney M. G dos. André Rebouças e seu tempo.
Vozes: Rio de Janeiro, 1985.

35 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira.


Salvador: EDUFBA, 2008.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 163

36 Essa rica história cultural tem sido tratada com preconceito enorme nos meios
acadêmico e cultural. Episodicamente, pesquisadores têm tratado da dispersão
de artistas e intelectuais negros ou da passagem de artistas caribenhos e
estadunidenses pelo Brasil. Contudo, parece haver fluxos descontínuos, mas não
menos importantes, integrando produções artísticas, ações políticas e projetos
sociais de afro-brasileirxs, com interlocutorxs negrxs ou não em volta do mundo,
cujos canais não advêm da indústria cultural.

37 Ver: PINTO, L. A. Costa. O negro no Rio de Janeiro: relações de raça numa


sociedade em mudança. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 1998. Ver também:
MAIO, Marcos Chor. A questão racial no pensamento de Guerreiro Ramos. In:
SANTOS, Ricardo Ventura; MAIO, Marcos Chor. Raça, ciência e sociedade. Rio de
Janeiro: Fiocruz: Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. p. 179-194.

38 Tanto no primeiro Congresso do Negro Brasileiro, organizado por Gilberto


Freyre e Solano Trindade em Recife em 1934, quanto no segundo, realizado em
1937, organizado por Edison Carneiro em Salvador, lideranças negras enviaram
representantes para apresentar protesto e fazer denúncias contra o racismo. Em
ambos os congressos, os intelectuais se fecharam em conchas, e a imprensa local
noticiou a participação como baderna, caso de polícia. A intelligentsia brasileira
reagiu às críticas contra o elitismo e o racismo fazendo um silêncio obsequioso,
que durou muitas décadas.

39 Ver a introdução de: FRY, Peter; VOGT, Carlos. Cafundó – a África no Brasil:
linguagem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

40 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre poder


institucional. São Paulo: Globo, 2010. p. 122.

41 Por exemplo, em carta publicada em um jornal negro da cidade por um


trabalhador fluminense recém-chegado. Ao perceber as barreiras sociorraciais,
ele as define como “guerra muda e odiosa”, em DOMINGUES, Petrônio José. Uma
história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-
abolição. São Paulo: Editora Senac SP, 2004. p. 113.

42 Jansem Rafael. Alfaiate, professor público, participou de grupos musicais e


publicações populares. Em canções e poemas, contestava o racismo antinegro
e também reivindicava a noção do triplo pertencimento étnico.

43 HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tadeu Tomaz


da Silva e Guaracira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

44 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. Rio de


Janeiro: Universidade Cândido Mendes/CEAA: Editora 34, 1993.

45 DUBOIS. W. E. B. As almas da gente negra. Tradução, introdução e notas: Heloisa


Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999.
166 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 167

4. TRÂNSITOS ÁFRICA-BRASIL

168. ENTREVISTA
Kabengele Munanga
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ilustração: André Toma


POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 169

TRÂNSITOS ÁFRICA-BRASIL
Entrevista com Kabengele Munanga, por Silvio Luiz de Almeida

“O
verdadeiro desenvolvimento é aquele que respeita a deman-
da e as prioridades de um povo.” Com essa frase, o professor
Kabengele Munanga sintetiza a relação entre desenvolvimento
econômico e cultura. Em nome do desenvolvimento, as mais terríveis tragédias
foram perpetradas: escravidão, colonialismo, genocídios, destruição de povos
e culturas. Nesse sentido, não haveria desenvolvimento, segundo as palavras
do professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), sem o respeito
à vida e a todos os seus variados modos.
O professor Kabengele fala dos dilemas do desenvolvimento e da cultura
com a autoridade de quem dedicou toda a vida a pensar o tema. Nesse senti-
do, busca identificar nas tramas dos tecidos sociais do Brasil e do continente
africano o fio inquebrantável que une as duas culturas, operação que realiza
destacando a unidade entre as dimensões objetiva e subjetiva.
Ao nos apresentar a África, Kabengele Munanga nos ensina muito sobre o
Brasil. Com as suas lições também aprendemos o porquê do esforço de parte da
sociedade brasileira para ocultar a africanidade que nos constitui. Obras como
Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil e Negritudes: Usos e Sentidos revelam o
esforço de estabelecer um novo parâmetro para a discussão racial, tratando a
negritude como um constituinte ativo da cultura brasileira.
Na entrevista a seguir, Kabengele Munanga, um dos maiores antropólogos
do nosso tempo, nos fala da sua trajetória intelectual em que política, economia
e cultura se cruzam com tanta originalidade.
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PROFESSOR, FALE UM POUCO SOBRE COMO Quando olho para trás, pergunto-me às ve-
SE INICIOU A SUA RELAÇÃO COM O BRASIL, zes como consegui tal feito. O que me ajudou
A TRAJETÓRIA NA USP E A RECENTE EXPE- muito foi o fato de eu ter iniciado a tese na
RIÊNCIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO Universidade Católica de Louvain (Bélgi-
RECÔNCAVO DA BAHIA (UFRB). ca) e também ter feito a pesquisa de campo
Cheguei ao Brasil, exatamente em São no Congo. E por que não terminei a tese na
Paulo, em julho de 1975 vindo da Repúbli- Bélgica? Durante a ditadura militar implan-
ca Democrática do Congo (ex-Zaire) com tada no então Zaire, depois do assassinato de
uma bolsa de estudos da Universidade de Patrice Émery Lumumba, em 1961, alguns
São Paulo, para concluir o meu doutorado membros da minha família entraram em
em antropologia. Era uma bolsa de dois oposição contra o regime do ditador ­Mobutu
anos no quadro de cooperação entre a USP Sese Seko. Alguns presos morreram na pri-
e as universidades africanas. O Ministério são e outros se exilaram. Foi nesse contexto
das Relações Exteriores do Brasil pagava que a bolsa de estudo do governo belga para
as passagens de ida e volta, e a USP dava a o doutorado foi cortada, enquanto eu con-
bolsa. Imagine só ter de concluir um dou- cluía a pesquisa de campo no país. Não pude
torado em apenas dois anos! Tive de me voltar e fiquei dando aula na Universidade
esforçar muito nesse período (1975-1977) Nacional do Congo, onde eu já era professor.
para aprender a língua portuguesa, cursar Em 1974, numa conferência na universida-
todas as disciplinas de pós-graduação, a de, conheci o professor F ­ ernando Mourão
fim de cumprir os créditos exigidos, fazer (USP) e, ao lhe falar das minhas dificuldades
as pesquisas bibliográficas e escrever a tese. de concluir o doutorado na Bélgica, ele me
Consegui concluí-la e defendê-la em outu- informou sobre a possibilidade de fazê-lo na
bro de 1977 com nota 10, distinção e louvor! USP, por meio dos acordos de cooperação
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 171

com algumas universidades africanas. Foi como todo aposentado que não quer morrer
assim que cheguei à USP em julho de 1975 cedo intelectualmente, consegui uma bolsa
e defendi o meu doutorado em outubro de da Capes para atuar como professor visitan-
1977. Missão cumprida, voltei ao Congo para te sênior na UFRB, Campus de Cachoeira,
retomar o posto de professor na Universi- onde colaboro com o Programa de Pós-Gra-
dade Nacional. Infelizmente, por causa da duação em Ciências Sociais dando aulas e
ditadura militar, tive de fugir de volta ao com alguns projetos para o crescimento da
Brasil, onde reiniciei a carreira em 1979 universidade. A UFRB é uma universidade
na Universidade Federal do Rio Grande do nova que completou dez anos de vida neste
Norte (UFRN) (1979-1980). Em dezembro ano de 2016. E, como é de esperar, o corpo
de 1980, voltei à USP não mais como es- docente é muito jovem e está crescendo com
tudante, mas como professor concursado a instituição. A bolsa de professor visitante
no atual Departamento de Antropologia. sênior para aposentados foi criada justa-
Também ocupei três cargos de direção: di- mente para que essas novas universidades
retor do Museu de Arqueologia e Etnologia pudessem receber professores com mais
(1983-1989), vice-diretor do Museu de Arte tempo na carreira e com certa experiência
Contemporânea (2002-2006) e diretor do em termos de pesquisas e outras aptidões
Centro de Estudos Africanos (2006-2010). que os jovens ainda não possuem, visto que
Foi na USP que comecei, sem abrir mão da o processo de conhecimento é cumulativo.
África, a estudar a questão do negro no Bra- A bolsa é de dois anos e vence no meio des-
sil e onde orientei mais de 20 teses de douto- te ano. Antes do golpe, já estava garantida a
rado e 10 dissertações de mestrado. Cheguei renovação por mais dois anos. Entretanto,
ao topo da carreira como professor titular tendo-se em vista a situação de indefinição
e aposentei-me em 2012 por idade. Porém, em que vive o país, paira a ­incerteza no ar.
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

NOS ÚLTIMOS ANOS TEM-SE FALADO DE africanos e muitos países africanos abriram
UMA INTENSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES CO- embaixadas no Brasil. Além das relações di-
MERCIAIS COM OS PAÍSES AFRICANOS COMO plomáticas que envolvem acordos bilaterais
ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO. SE e de cooperação, constituintes das relações
CONSIDERARMOS QUE TROCAS MERCANTIS políticas entre os países, paralelamente são
TAMBÉM ENVOLVEM RELAÇÕES CULTURAIS desenvolvidas as relações econômicas e
E POLÍTICAS, QUAIS AS PERSPECTIVAS DESSA comerciais. Empresas brasileiras estão in-
RELAÇÃO BRASIL-ÁFRICA NO CONTEXTO DA vestindo na África, e mercadorias e produ-
ECONOMIA ATUAL? tos manufaturados brasileiros começaram
As relações entre o Brasil e os países a circular com intensidade no continente.
africanos datam da época do tráfico transa- Não tenho informações sobre a balança co-
tlântico, quando milhões de africanos, entre mercial entre o Brasil e os países africanos
os séculos XVI e XIX, foram deportados e em termos de exportação e importação, mas
escravizados neste país, cuja construção foi elas existem certamente. Na época da crise
ajudada por eles com a sua mão de obra escra- petrolífera, o petróleo de Angola interessou
vizada. De acordo com historiadores, cerca ao Brasil. Atualmente, a Companhia Vale
de 40% dos africanos transportados para as do Rio Doce tem concessão para explorar o
Américas tiveram o Brasil como país de des- carvão em Moçambique. A Odebrecht está
tino. Mas as relações das quais falamos hoje em ­Angola atuando na construção civil antes
datam das independências dos países africa- mesmo dos chineses. O esforço diplomático
nos, começando com Gana, onde o presidente do Brasil, em especial do governo Lula, que
Jânio Quadros inaugurou a primeira embai- não pode ser negado, fortaleceu grandemente
xada brasileira no continente africano e para as relações Sul-Sul com a África. São relações
onde ele enviou como primeiro embaixador bilaterais diferentes das existentes entres as
o brasileiro Raimundo Souza, ex-jornalista antigas metrópoles colonizadoras e as nações
negro. Essas relações se intensificaram muito africanas em construção. São relações que
durante os dois mandatos do presidente Lula. envolvem os sentimentos de solidariedade e
O Brasil abriu embaixadas em muitos países de respeito mútuo. Contudo, existem relações
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 173

desinteressadas, pois os interesses existem Graças a essas bolsas, os jovens têm acesso
em ambos os lados: africano e brasileiro. O a uma formação universitária fora dos seus
Brasil, como todo país no contexto da globa- países, sem passar pela lavagem cerebral so-
lização, tem o direito de entrar no mercado frida por muitos que estudam na Europa. O
globalizado, exportar produtos manufatu- CNPQ tem também um programa de bolsas
rados, serviços e comprar ­matérias-primas de estudos para graduação e ­pós-graduação
ou manufaturadas de outros países. Alguns que beneficia estudantes africanos dos países
enxergam isso como um imperialismo bra- conveniados com o Brasil dentro da política
sileiro na África, mas não é o meu ponto de de cooperação cultural ou universitária. Cor-
vista. Os países africanos se libertam rem boatos que o governo golpista de Temer
politicamente das relações bilaterais vai reduzir o número de representações di-
com os antigos colonizadores, que os plomáticas brasileiras nos países africanos
aprisionavam, ao comercializar com no- para contenção de despesas. Entretanto, por
vos parceiros não comprometidos com o que isso não se dá em países europeus e asiá-
neocolonialismo. Os interesses existem em ticos e por que somente na África? Podemos
ambos os lados, mas pautados em vínculos especular que a África não é significativa na
de respeito e sem a prepotência que caracte- diplomacia brasileira por causa das suas difi-
riza as relações com as antigas metrópoles culdades em matéria de desenvolvimento e de
colonizadoras pelas quais o Brasil também governança ou simplesmente por preconceito
foi colonizado. A criação da Universidade contra o continente negro? E a África que está
de Integração Internacional da Lusofonia dentro do Brasil? Essa África que ajudou no
­Afro-Brasileira (Unilab), realizada pelo go- desenvolvimento do país com mão de obra
verno Lula faz parte dessas relações de coo- escrava? Como o atual governo pretende
peração Sul-Sul, pois muitos universitários lidar com ela considerando que alguns dos
africanos que estudam na Unilab, bolsistas seus ministros pertencem aos partidos que
subsidiados pelo governo brasileiro, são filhos se opuseram às políticas afirmativas para o
do povo africano; já que a elite africana man- ingresso dos estudantes negros na universi-
da os filhos para as universidades ocidentais. dade brasileira? Quem viver verá! 
174 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A IDEIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO que ajudam na transformação da vida em


É HISTORICAMENTE ATRAVESSADA POR AM- termos de melhoria de saúde, alimentação,
BIGUIDADES E ASSIMETRIAS. ISSO PORQUE transporte, comunicação e instituições que
DESENVOLVIMENTO IMPLICA NÃO APENAS abrigam os nacionalismos cívicos, as for-
UMA REORGANIZAÇÃO DO AMBIENTE ECO- mas democráticas e o bem-estar em geral.
NÔMICO, MAS TAMBÉM UMA REORIENTAÇÃO O desenvolvimento do continente africano
CULTURAL E IDEOLÓGICA, MUITAS VEZES foi historicamente prejudicado pelos fatores
COM IMPACTOS DESTRUTIVOS SOBRE MO- históricos conhecidos: o tráfico, a coloniza-
DOS DE VIDA QUE NÃO SE ENCAIXEM NO ção e o neocolonialismo que se prolonga até
NOVO ESTÁGIO DA PRODUÇÃO ECONÔMICA hoje por meio de novos mecanismos de domi-
(INDÍGENAS E QUILOMBOLAS SÃO EXEM- nação mais sofisticados dentro do contexto
PLOS). DIANTE DISSO, COMO O SENHOR VÊ da globalização capitalista neoliberal. Afinal,
A RELAÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO ECO- o que é cultura? A cultura não é somente mú-
NÔMICO E CULTURA? sica, dança, artes, religião, cinema, literatu-
Desenvolvimento também é cultura, ra. A ciência, a tecnologia e a educação como
pois só os seres humanos e as sociedades hu- veículo de transmissão do conhecimento
manas transformam a natureza, produzem também são categorias de cultura. Diz-se
riquezas, inventam ciências e tecnologias que os países que investiram maciçamente
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 175

na educação de boa qualidade são os mais europeia e produtos manufaturados, o que


desenvolvidos hoje. Mas o desenvolvimen- chamo de desenvolvimento “enlatado”. Não
to equilibrado é aquele que não degrada a concordo com o conceito de estágio de evo-
natureza e não destrói a cultura de um povo, lução, de desenvolvimento ou de produção
isto é, a sua visão do mundo e do universo, as econômica que remeteria ao evolucionismo
suas religiões, a sua história e as suas tradi- linear com a ideia de estágios mais desen-
ções, embora tais tenham dinâmica própria. volvidos e menos desenvolvidos. Se alguns
Não é por acaso que os médicos sem fronteira plantam para comer e outros plantam para
nos países africanos ou asiáticos trabalham fazer o “agronegócio”; se alguns tiram uma
sempre em colaboração com antropólogos árvore na mata para construir uma casinha
especialistas da região, pois a saúde ou o de- e outros destroem a floresta para importar
senvolvimento não podem passar por cima madeira; se alguns acabam com os peixes de
de outro conceito de saúde e desenvolvi- um rio para comercializar e outros pescam
mento no contexto da cultura de um povo. para alimentação diária... creio que tais rea-
O verdadeiro desenvolvimento é aquele que lidades constituem modelos diferentes de
respeita a demanda e as prioridades de um desenvolvimento a ser relativizados e não
povo e não aquele pensado e elaborado na colocados em estágios de produção econô-
Europa, tendo em vista vender a tecnologia mica no sentido hierarquizante.
176 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COMO UM DOS FUNDADORES DO CENTRO DE mais de 20 anos. Foi o primeiro centro uni-
ESTUDOS AFRICANOS (CEA), FALE UM POUCO versitário no Brasil que começou a se dedi-
SOBRE ESSA EXPERIÊNCIA? E QUAL A IMPOR- car inteiramente à África, sem influência do
TÂNCIA DO CEA HOJE? Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA
O Centro de Estudos Africanos, que e do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da
completou 50 anos, foi fundado nove anos Universidade Cândido Mendes, as primeiras
antes da minha chegada à USP. Aliás, foi por universidades a se dedicar à Á ­ frica. Como
meio do então diretor do CEA, Fernando esta, segundo o acordo da União Africana, in-
Augusto de Albuquerque Mourão, que en- clui a diáspora como a sua sexta parte (África
contrei o caminho do Brasil e da USP. Par- do Norte, África Austral, África Ocidental,
ticipei intensamente da vida do CEA desde África Oriental, África Central e diáspora),
que entrei na universidade paulista, a ponto o Centro de Estudos Africanos da USP não
de me tornar um dos diretores (2006-2010) deixa de estudar a diáspora africana, o que
e ser membro do conselho deliberativo por fiz como estudioso do negro no Brasil. O CEA
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 177

continua a divulgar a África que ainda é mal desses dois cursos não pertencem apenas
conhecida pelo grande público brasileiro e aos quadros da USP. Participam também
a produzir por meio dos seus raros pesqui- intelectuais e notórios saberes negros, jus-
sadores um conhecimento direto sobre a tamente para destruir o mito de que é preciso
África, sem passar pela relação triangular ser branco para ensinar na USP. Aliás, tenho
África-Europa-Brasil como antigamente. É certeza de que é um dos cursos de difusão
por isso que no espírito da Lei 10.639/2003 cultural da universidade paulista com núme-
o CEA é o único centro de estudos africa- ro significativo de professores e professoras
nos no Brasil a introduzir dois cursos para negros e negras. Creio que a presença de dois
a formação dos professores que funcionam professores, um de naturalidade angolana
sem interrupção nos dois semestres do ano (Carlos Serrano) e outro congolesa (eu), que
há cerca de dez anos: introdução aos es- idealizaram e efetivaram esses dois cursos,
tudos africanos e aspectos da cultura e da foi determinante na definição no perfil “mul-
história do negro no Brasil. Os professores tirracial” dos professores e das professoras.
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A IDEIA CONTEMPORÂNEA DE “ESTADO” muitos países ocidentais e asiáticos são


NASCE ALINHADA À VISÃO EUROCÊNTRICA multinacionais ou pluriétnicos, como Ca-
DE MUNDO, QUE NÃO CONTEMPLA – SALVO nadá, Estados Unidos, Espanha, Bélgica e
NA CHAVE DA SUBMISSÃO – PRÁTICAS CUL- Suíça. Deixaram de perceber que a França,
TURAIS E POLÍTICAS NÃO EUROPEIAS. NESSE para construir o seu estado-nação, destruiu
SENTIDO, COMO O SENHOR VÊ A DISCUSSÃO as minorias étnicas como os bascos e os bre-
SOBRE OS ESTADOS PLURICULTURAIS OU PLU- tões; deixaram de perceber que países como
RINACIONAIS? É POSSÍVEL AO ESTADO, CUJA Espanha, Canadá e Bélgica têm conflitos
ORIGEM ESTÁ ATRELADA A DETERMINADO quase separatistas na defesa das diferenças
PROJETO CULTURAL E ECONÔMICO, ALBER- culturais entre as comunidades; deixaram
GAR E PROTEGER A DIVERSIDADE CULTURAL? de perceber que um pequeno país como a
Os Estados africanos modernos ou Suíça fala três línguas; que a Índia tem sete
contemporâneos que são legados infelizes línguas nacionais, sendo o inglês língua
da colonização devem ser distinguidos dos franca e o hindi língua oficial. Esse modelo
Estados africanos antigos, anteriores às in- gerou dificuldade no processo de constru-
vasões e ocupações coloniais. Partiram do ção das nacionalidades africanas. Em vez
modelo de estados-nações ocidentais para de partir de um modelo de estados-nações,
construir nações e estados modernos afri- ou seja, multinacional ou pluriétnico, os di-
canos, deixando de lado a riqueza da diversi- rigentes africanos da primeira geração das
dade e as diferenças culturais, consideradas independências fizeram a limpeza de cam-
“atrasadas”, sem observar atentamente ue po e tentaram construir um estado-nação,
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 179

deixando de enxergar as dificuldades que em luta pelo poder para formar clientelas.
tal modelo acarretaria ao processo de cons- Os conflitos em Ruanda não eram étnicos
trução das novas nações. Por isso, quase porque Ruanda é uma sociedade testamen-
todos socialistas marxistas ou neoliberais tar ou de castas; os conflitos na Somália não
implantaram o partido único como me- eram étnicos porque a Somália é um Estado
lhor caminho para evitar as divisões que construído com base num único grupo étni-
resultariam das brigas pelo acesso ao po- co; os conflitos em Angola durante mais de
der. Isso prejudicou também o processo de 20 anos de guerra não eram étnicos, mas,
construção da democracia na África e está sim, partidários, entre dois partidos políti-
em grande parte na origem das guerras civis cos, o MPLA e a Unita, liderada por Jonas
que a imprensa ocidental chama de guerras Savimbi; a guerra de Biafra não era étnica,
tribais – ou étnicas, pelos mais generosos. mas uma guerra para o controle nacional do
As guerras na África pós-colonial são fun- poder desencadeada por lideranças nacio-
damentalmente guerras civis e não tribais nais no poder e fora dele. Podemos multipli-
nem étnicas. Nenhum país africano tem car os exemplos para desconstruir a ideia de
guerras entre grupos étnicos ou comunida- guerras étnicas, muitas vezes evocada para
des tradicionais, como acontecia na época explicar as dificuldades que o continente
da formação dos impérios em toda a história africano tem para levantar o processo do
da humanidade e não somente na África. É seu desenvolvimento econômico, deixando
claro que as afinidades étnicas e regionais de enxergar o neocolonialismo e o imperia-
são sempre manipuladas pelas lideranças lismo reforçados pela globalização.
180 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O SENHOR COSTUMA AFIRMAR QUE “NO frase de Ali Wiesel, judeu ganhador do Nobel
BRASIL O RACISMO É UM CRIME PERFEITO”. da Paz 1986. Ele disse que o carrasco mata
PODERIA DISCORRER SOBRE ISSO? sempre duas vezes, a segunda pelo silêncio.
O racismo brasileiro é um crime perfei- Aproximei essa frase do racismo brasileiro,
to! Essa coisa de socializar as nossas ideias que, ao discriminar os negros, os mata fisi-
faz com que muitas vezes percamos de vista camente por meio de inúmeras exclusões
autores de algumas frases e conceitos-cha- que criam desigualdades e os levam a ser,
ves a respeito da nossa sorte coletiva como entre todos os pobres brasileiros, os mais
negros na sociedade brasileira. Repeti várias pobres; entre os analfabetos, os mais anal-
vezes essa frase nos meus textos a ponto de fabetos; entre os jovens universitários, o
ser considerado o seu cunhador. Na reali- abismo entre negros e brancos é o mais as-
dade, a primeira vez que escutei essa frase sustador (o que justifica a luta pelas cotas
foi em um dos nossos debates intelectuais ditas raciais); entre os executivos no setor
engajados sobre a discriminação racial ou empresarial, os negros são raríssimos; nos
racismo à brasileira. Recordo-me, se não três poderes (executivo, legislativo e judi-
me falha a memória, de ouvir da boca do in- cial), os negros são contados nos dedos da
telectual e militante negro professor Hélio mão (não sei quando teremos o segundo
Santos; era o que me faltava para qualificar Joaquim Barbosa no STF!); entre os pro-
o racismo e a discriminação contra o negro fessores universitários, os negros são quase
na sociedade brasileira. O professor Hélio invisíveis. Fui o primeiro professor negro
Santos não explicou o que ele entendia por na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
“crime perfeito”, mas fiz um esforço de bus- Humanas (FFLCH), a maior faculdade da
ca e especulação racional para entender o USP, onde ingressei em dezembro de 1980,
que ele queria dizer. Lembrei-me então da três anos antes do ingresso dos professores
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 181

Wilson Barbosa (Departamento de História) eu era. Lembro-me do tratamento fora do


e do grande intelectual brasileiro, o quinto comum que eu recebia do grande intelectual
na lista mundial a receber o Prêmio Vautrin Antônio Cândido todas as vezes que a gen-
Lud de Geografia, criado em 1991, o grande te se cruzava. Partir disso para afirmar que
mestre Milton Santos. É muito estranho ver não há racismo na USP, porque eu ingressei
um jovem que fugiu da ditadura militar de nela, seria mentira e falta de consciência e
Mobutu Sese Seko se tornar o primeiro pro- solidariedade. Além de matar fisicamente
fessor negro da FFLCH/USP. Até a minha os negros, como ilustra hoje o genocídio da
chegada, não existia um negro da terra a ser juventude negra em todas as cidades e pe-
o primeiro professor negro dessa institui- riferias brasileiras, o racismo à brasileira
ção? Aliás, desde que me aposentei por idade mata a consciência de todos/todas os(as)
em 2012, não entrou outro negro no Depar- brasileiros(as), brancos(as) e negros(as),
tamento de Antropologia da USP, onde fui o o que dificulta a mobilização das vítimas e
primeiro e único professor negro. Gostaria a solidariedade dos outros contra atos cri-
de estar vivo para assistir ao espetáculo! minais encobertos pelo mito da democracia
Veio-me à memória o abraço que recebi do racial. Costumo dizer que todas as formas de
grande sociólogo brasileiro Florestan Fer- racismo são abomináveis, pois cada um faz
nandes, quando ele soube, por ocasião do vítimas, mas, comparativamente às outras
recebimento do seu título de professor emé- formas do racismo existentes na história da
rito da FFLCH, que eu havia ingressado na humanidade, a brasileira é uma obra de en-
faculdade como professor. Ele estava muito genharia ideológica sofisticadíssima. Nin-
emocionado e muito contente! Eu estava na guém se assume racista, ou seja, pratica-se
fila para cumprimentar esse grande mestre racismo sem racistas! Que obra perfeita!
sem ter consciência de que ele já sabia quem Quer crime mais perfeito que esse?!
182 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COMO O SENHOR DEFINIRIA A “CULTURA religiosas e filosofias de vida diferentes que


NEGRA”? QUAIS AS PECULIARIDADES DA também modelaram comportamentos co-
PRÁTICA CULTURAL NEGRA? HÁ UMA “CUL- letivos. A Europa e a Ásia são mosaicos
TURA NEGRA BRASILEIRA”? culturais e pertencem, como a África, a
Os negros não produzem cultura “ne- conjuntos civilizatórios diferentes. Os ne-
gra” como as laranjeiras produzem laran- gros deportados do continente africano e
jas, da mesma maneira que os brancos não escravizados nas Américas pertenciam a
produzem cultura “branca” como as man- um continente berço da humanidade, onde
gueiras produzem mangas e os amarelos cientificamente começou a própria história
não produzem cultura “amarela” como as da humanidade. Apesar da atrocidade das
bananeiras produzem bananas. Cientifi- condições históricas em que foram depor-
camente não existe relação entre cultura e tados, atrocidades que provocaram uma
“raça” ou cor da pele. Todos os seres huma- ruptura brutal com as suas raízes, eles não
nos ou sociedades humanas produzem cul- perderam totalmente as lembranças e re-
turas. A cultura é um fenômeno universal cordações das culturas ancestrais, graças à
porque não há cultura sem sociedade e não chamada memória coletiva – o que os aju-
há sociedade sem cultura. No entanto, as dou a recriar essas culturas na nova terra
culturas são diferentes como criação do ser de acordo com as suas necessidades vitais.
humano no encontro com o meio ambiente, A recriação não foi total, pois as condições
com a história, com as condições sociais e assimétricas de vida num contexto colonial
psicológicas. Os africanos ao sul do Saara, e escravista não podiam permiti-la. As es-
na maioria negros, criaram culturas dife- truturas políticas tradicionais não foram
rentes das culturas do norte da África, dita transportadas para o Brasil, daí a perda total
branca ou árabe, não só porque são brancos de alguns aspectos da cultura relacionados
e negros, mas porque tiveram histórias dife- com o poder e a autoridade. O núcleo mais
rentes, formações sociais diferentes, visões duro da sua resistência fixou-se na defesa
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 183

das suas religiões, ou da “alma”, daí por que que desembocaram na promulgação das
desenvolveram estratégias que explicam a leis 10.639/2003 e 11.645/2008, obrigando
existência das chamadas religiões brasi- que sua história e cultura, como também a
leiras de matrizes africanas, como o can- dos povos indígenas, fossem ensinadas na
domblé. Por meio das religiões, resistiram escola básica brasileira. Há, sim, uma cul-
as artes visuais ligadas aos cultos. As con- tura negra de resistência que faz parte do
dições de vida no novo mundo os levaram pluralismo cultural brasileiro cujos símbo-
a criar novas culturas de resistência em los foram integrados na identidade nacional
defesa da sua dignidade e liberdade huma- brasileira. Nesse sentido, samba, feijoada,
nas, como a música, a literatura, a dança e capoeira, candomblé, congado e diversos es-
a capoeira – todas categorias de cultura ou, tilos musicais, inventados pelos negros nas
melhor, da chamada cultura negra. Embora condições assimétricas do Brasil colonial,
essas culturas fizessem parte do cotidiano são culturas negras manipuladas pelo dis-
de todos os brasileiros sem distinção de curso da ideologia dominante por meio dos
“raça”, elas não foram colocadas no mesmo conceitos de miscigenação e mestiçagem
pé de igualdade que os aportes culturais de para escamotear as desigualdades raciais.
origem europeia; não foram incluídas como Não somos racistas porque o samba, a fei-
resultantes de uma história no processo de joada, o candomblé, o maculelê, a capoeira
formação do cidadão brasileiro de modo etc. já são “nossos”. Entretanto, o conheci-
geral. Cruzando o Brasil do norte ao sul, do mento de onde ficam os produtores dessas
leste ao oeste, passando pelo centro, encon- culturas na sociedade brasileira é resolvido
tramos a cultura negra, produto da história pelo mito da democracia racial. Assim as
e das condições sociais, que muitas vezes situações de subalternidade, subserviência,
é vivida e consumida inconscientemente invisibilidade social dos negros em todos os
por todos os brasileiros. Daí as reivindica- setores da vida nacional são resolvidas pelo
ções das entidades do movimento negro binômio socioeconômico.
184 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 185

SE A QUESTÃO RACIAL, COMO O SENHOR E OU- miscigenação e mestiçagem. Muitos acharam


TROS AUTORES JÁ APONTARAM, É CRUCIAL que a solução mais adequada para incluir ne-
PARA A DEFINIÇÃO DOS RUMOS POLÍTICOS E gros e indígenas estaria na melhoria da escola
ECONÔMICOS DO PAÍS, POR QUE A DIFICUL- pública. Outros, de tendência marxista, dis-
DADE EM DEBATÊ-LA? seram que se tratava apenas de luta de clas-
Pesquisas científicas desenvolvidas nas ses e consideraram as políticas afirmativas
universidades brasileiras, desde o projeto da como uma política paliativa que não atingiria
Unesco nos anos 1960, muito contribuíram a verdadeira raiz da discriminação e desigual-
para desfazer o mito da democracia racial dade racial no Brasil. Outros se aprisionaram
brasileira, desmitificado 30 anos antes pela nos princípios de mérito e excelência, como
Frente Negra Brasileira. Pesquisas estatísti- no caso das universidades do estado de São
cas desenvolvidas nos últimos 30 anos pelo Paulo. Apesar de existirem hoje universida-
Ipea e pelo IBGE não deixaram dúvida sobre o des estaduais e federais no país que praticam
abismo chocante em matéria de educação en- as cotas com o amparo das leis, os brasileiros
tre brancos e negros. No entanto, segmentos ainda estão divididos sobre a questão por mo-
dominantes da sociedade que querem manter tivos político-ideológicos, que têm um fundo
o status quo continuam a bater nas teclas do racista (in)consciente. Mas não é preciso es-
mito cuja inércia é ainda muito forte. Vê-se perar a unanimidade para transformar a so-
essa resistência nos debates sobre cotas desde ciedade, pois em qualquer projeto social de
2002. Até alguns estudiosos renomados, que mudanças e transformações profundas have-
durante muito tempo denunciaram o racis- rá sempre discordâncias e dissidências. Fala-
mo brasileiro, foram contrários à implemen- -se tanto de democracia e de estado de direito,
tação das políticas afirmativas para negros mas a questão que se coloca é saber se é pos-
e indígenas, acusando-a de retrocesso, pois sível construir uma verdadeira democracia e
se configurariam como reconhecimento ofi- um verdadeiro estado de direito fechando os
cial das raças no sentido bipolar americano. olhos ao racismo e naturalizando a exclusão
Algo que, no Brasil, não existiria por causa da dos diferentes com base na cor da pele.
186 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

SE DE UM LADO TEM-SE – NO BRASIL E EM OU- momentos de crises, guerras e desemprego


TRAS PARTES DO MUNDO – UMA EMERGÊNCIA agudo, os jovens e as jovens constituem a
DA POLÍTICA, COM JOVENS PROTESTANDO, categoria social mais sacrificada. Nas vio-
OCUPANDO ESCOLAS, PARTICIPANDO MAIS lências urbanas, que aumentam em todas as
ATIVAMENTE DO DEBATE PÚBLICO, SIMULTA- sociedades contemporâneas, eles/elas são as
NEAMENTE, TEMOS ESSES MESMOS JOVENS maiores vítimas. Vendo por esse ângulo, eles
ANSIOSOS POR AFIRMAR UMA IDENTIDADE, têm de se conscientizar e de se politizar para
REALIZAR PERFORMANCES, MARCAR CER- defender os seus direitos nas sociedades
TO PADRÃO ESTÉTICO QUE EVIDENCIE O SEU onde são ora mais explorado(as), ora mais
PERTENCIMENTO A DETERMINADO GRUPO excluído(as) e sacrificado(as). Eles/Elas têm
OU À SUA PRÓPRIA INDIVIDUALIDADE. COMO de construir a sua identidade política como
O SENHOR LÊ ESSA APARENTE CONTRADIÇÃO plataforma de mobilização e solidariedade
ENTRE A AMPLIAÇÃO DE PRÁTICAS POLÍTI- para se defender contra o despotismo e os
CAS, QUE EXPRESSAM POSIÇÕES DE GRUPOS abusos das pessoas mais velhas, que geral-
OU MESMO DE CLASSE, E A PERSISTENTE mente comandam os países. Sem dúvida, em
AFIRMAÇÃO (TAMBÉM POLÍTICA) DE UMA algumas épocas e algumas sociedades os jo-
IDENTIDADE ESPECÍFICA? vens escolheram um caminho de resistência
Em primeiro lugar, quais são os jovens reacionária e conservadora, como no caso
nas nossas sociedades contemporâneas? Os dos skinheads, em alguns países ocidentais
jovens e as jovens não constituem apenas e até mesmo no Brasil, que se alinharam no
uma categoria física em termos de idade ou movimento neonazista contra as diferenças,
faixa etária. Eles/Elas constituem também os homossexuais e os negros. No contexto
uma categoria social e política distinta e político conturbado em que vive o país, vi-
específica, pois têm necessidades e proble- ram-se alguns grupos de jovens mais reacio-
mas diferentes dos chamados adultos. Nos nários que os seus próprios pais, defendendo
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 187

o golpe e até a volta da ditadura militar. Que se os jovens e as jovens querem participar,
educação eles receberam a ponto de esque- a maneira mais dinâmica é a performativa.
cer a história recente do Brasil, tendo-se em Eles/Elas têm de inventar estilos próprios
vista o fato de o ano 1968 não estar tão dis- de linguagem, de expressão, de se vestir, de
tante assim em termos de tempo histórico? se comportar que fujam do modelo mono-
Mas não devemos generalizar, pois muitos lógico da educação passiva recebida nas
jovens tomaram caminho oposto, fazendo escolas tradicionais ou nas suas próprias
até manifestações nas ruas para defender a famílias e dialogar com as sociedades e
democracia e as suas conquistas. No entanto, culturas numa pluralidade de vozes. Nessa
o futuro de uma nação repousa nas gerações perspectiva, não vejo contradições. A ques-
mais jovens, daí a importância da responsa- tão é saber em que ideologia eles se enqua-
bilidade dos “moribundos” ainda no poder, dram para exercer as suas performances, ou
no sentido de não deixar para os jovens uma seja, a serviço de quem eles desenvolvem os
herança envenenada. Essa responsabilidade comportamentos performativos: a serviço
passa pela educação na qual o respeito da da maioria da sociedade ou a serviço de
diversidade e das diferenças é fundamental. uma elite conservadora preocupada com a
Sabe-se que a educação sozinha não resolve manutenção do status quo? Creio que, nas
todos os problemas da sociedade se não for manifestações de rua em defesa do “golpe”
apoiada nas políticas públicas distributivas e contra ele, deu para perceber essas duas
e nas leis justas e equitativas. Não há como categorias de juventude, tendo cada uma um
equacionar todas essas questões quando modelo performativo diferente do outro de
não existe um projeto nacional que sirva de acordo com os interesses em jogo e as ideo-
âncora e de guarda-chuva capaz de abrigar logias envolventes. Quero dizer que a perfor-
todas as diferenças que constituem a riqueza mance em si não representa um problema,
coletiva da humanidade. No meu entender, mas sim a ideologia que a impulsiona.
188 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

NO BRASIL, HÁ UMA ENORME D


­ IFICULDADE cujas explicações estão na história imposta a
DE RECONHECER UMA LIGAÇÃO COM A ÁFRI- esse continente a partir do exterior: tráfico,
CA E A HERANÇA AFRICANA. ALÉM DA NATU- colonização, pilhagens e explorações siste-
RALIZAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO DIRETA E máticas impostos pelos invasores. Claro que
INDIRETA DE NEGROS E NEGRAS, CULTIVA- não devemos deixar de lado os problemas e
-SE UMA IMAGEM DISTORCIDA DA ÁFRICA, dificuldades domésticos ou endógenos que
COMO UM LUGAR SEM PRODUÇÃO CULTURAL os africanos encontram desde a indepen-
PUJANTE, SEM DIVERSIDADE POLÍTICA, SEM dência. Aliás, que país no mundo não tem
TECNOLOGIA, SEM ECONOMIAS DINÂMICAS E seus problemas, mesmo os considerados
ONDE SÓ HÁ MISÉRIA E VIOLÊNCIA. EM REA- mais desenvolvidos economicamente? O
ÇÃO A ESSA VISÃO, HÁ OUTRA TENDÊNCIA DE ­afro-pessimismo, em vez de criar sentimen-
IDEALIZAR A ÁFRICA, OCULTANDO AS CON- to de solidariedade com os africanos, tem a
TRADIÇÕES DE UM CONTINENTE COMPOS- tendência de criar certo distanciamento das
TO DE 54 PAÍSES, MILHÕES DE PESSOAS DAS pessoas, cidadãs do mundo, que nunca visi-
MAIS DIVERSAS CULTURAS E QUE SE INSERE, taram um país africano e nunca conviveram
PARA O BEM OU PARA O MAL, NO JOGO DO CA- com africanos. É aquele fundo preconceituo-
PITALISMO MUNDIAL E A CADA DIA COM MAIS so de “quem nunca viu, nunca provou, mas
IMPORTÂNCIA. COMO O SENHOR VÊ ESSAS GE- nunca gostou”. A ideia que está por trás do
NERALIZAÇÕES SOBRE O QUE É A ÁFRICA E O afro-pessimismo é na realidade uma mon-
SER AFRICANO? COMO O SENHOR DEFINIRIA tanha de preconceitos que alguns povos ali-
A ÁFRICA “REAL”? mentaram a respeito do continente, das suas
A África “real” é a África feita de ho- culturas e dos seus povos ou civilizações. É a
mens e mulheres, crianças, jovens e adultos ideia de que a África é um continente perdido,
que lutam para viver apesar das dificuldades sem passado, sem presente e sem futuro. No
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 189

imaginário coletivo das pessoas que enxer- macacos até nos campos de futebol! Mas nin-
gam a África só por meio dos clichês, ali todos guém se pergunta: por que os ocidentais e os
passam fome, só há miséria por toda parte e imperialistas não saem definitivamente do
os habitantes vivem permanentemente em continente africano se todo ele é tão ruim? É
guerras “tribais”. A única coisa boa que lhes essa imagem negativa da África distorcida e
agrada é a fauna africana exibida a todo tem- falsificada que se tenta descontruir por meio
po, como se no Hemisfério Norte não existis- da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino de
sem também animais dignos de exposição uma África real e verdadeira com os seus pro-
nas telas de TV. No entanto, na África há tam- blemas e dificuldades e não uma África idea-
bém gente que come, ri, canta, dança, festeja lizada e falsificada. Nós fomos surpreendidos
e se diverte enquanto outras adoecem e mor- ao escutar que, para diminuir as despesas,
rem de HIV ou outras calamidades. Quero o governo interino do Brasil quer reduzir o
dizer que existe uma África real com os seus número das representações diplomáticas no
54 países e os seus problemas, além da Áfri- continente africano. Por que não na Europa
ca dos clichês, do Simba Safári e do Tarzan. e na Ásia e sim na África? Deixo a resposta
Porém é esta a permanecer no imaginário sujeita à reflexão de cada um. Quem idealiza
de muitos brasileiros. A África dos clichês, a África ou oculta as dificuldades e os proble-
que é mais exibida que a África real, tem uma mas africanos não são os africanos. Por que
função ideológica indiscutível. Ela serve para não fazer o contrário e mostrar a verdadeira
fazer “calar a boca” de brasileiros(as) de as- África para melhor se aproximar dela no con-
cendência africana. Afinal, por que se queixar texto da chamada solidariedade humana? Se
da discriminação racial quando vivem me- isso não é feito é porque existe o interesse em
lhor aqui que os seus ancestrais na terra dos mostrar a África falsa ou idealizada e não a
“macacos”? Eles também são considerados África verdadeira e autêntica.
190 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

QUAIS INICIATIVAS O SETOR PÚBLICO E A INI- não apenas morais, mas sobretudo políticas
CIATIVA PRIVADA PODERIAM TOMAR PARA A para protegê-la e conservá-la. Porém, isso
PROMOÇÃO DA CULTURA NEGRA E, CONSE- não se faz sem um projeto político-cultu-
QUENTEMENTE, DE NEGROS E NEGRAS QUE ral que se encaixaria no projeto nacional de
PRODUZEM CULTURA? desenvolvimento cultural. Hoje se discute
Não pertence a mim dizer quais inicia- bastante a questão do multiculturalismo na
tivas o setor público e a iniciativa privada educação como se discute também a biodi-
brasileiros poderiam tomar para promover a versidade e a proteção do meio ambiente.
cultura negra e os homens e as mulheres que Não vejo como os setores público e privado
a produzem. Quem sou eu para sugerir o que brasileiros protegeriam a cultura negra fora
o Brasil deveria fazer ou deixar de fazer com do contexto do multiculturalismo, que é o
sua diversidade cultural, que é uma de suas oposto ao eurocentrismo. Os homens negros
grandes riquezas? A cultura negra, como já e as mulheres negras, produtores dessa cha-
disse, nada tem a ver com o fato de ser ne- mada cultura negra, devem ser protegidos e
gro, mas sim com as condições históricas que promovidos dentro do contexto geral do com-
os deportaram a fim de os transformar em bate ao racismo à brasileira, que faz com que
máquinas humanas escravizadas. Mas hoje sua produção cultural não seja incentivada
essa cultura faz parte do patrimônio histó- como ocorre com a produção cultural de seus
rico-cultural do Brasil, que tem obrigações compatriotas brancos.
192 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
Com o Cérebro na Mão
Teixeira Coelho
As inovações tecnológicas estão alterando em alta velocidade a ideia de
cultura e o próprio sentido de vida humana. A produção de bens culturais
nunca foi tão intensa, o consumo de cultura assume novas formas e pro-
fissões aparentemente estáveis, como as de analista financeiro e crítico de
arte, são hoje substituídas por programas de computador – cuja metáfora
mais aguda é o cérebro na mão. O ser humano começa a ter uma vida mais
longa num ambiente cada vez menos amigável enquanto a humanidade,
anotou Walter Benjamin há um bom tempo, se prepara para sobreviver à
civilização. Neste texto breve e intenso, Teixeira Coelho traça um quadro
da cultura contemporânea e das forças que a tensionam.

A Economia Artisticamente Criativa


Xavier Greffe
Neste livro, Greffe redesenha o surgimento da economia criativa e ilustra
as ligações entre cultura e criatividade do ponto de vista individual e
comunitário. Além disso, trata das especificidades das empresas artis-
ticamente criativas, das relações entre bens econômicos, bens artísticos
e produtos culturais e das articulações dos produtores criativos na orga-
nização de territórios culturais ou de redes criativas.

O Lugar do Público
Com a organização de Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e
­Bernardette Goldstein, a publicação tem como foco conhecer efetivamen-
te o público. Acompanhar a visitação, identificar e compreender os tipos
de público tornou-se um desafio para a política de desenvolvimento dos
museus e monumentos. A partir de estudos de caso, O Lugar do Público
apresenta uma visão em perspectiva, lança luz sobre o jogo dos agentes
(quem encomenda e quem executa, os que decidem e os eleitos) e ilustra
o diálogo entre os setores de atividade e o campo acadêmico.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  193

Identidade e Violência: a Ilusão do Destino


Amartya Sen
Nesta obra, Amartya Sen trata da violência relacionada à ilusão
identitária e às confusões conceituais. Ele problematiza a identida-
de apontando que, ao mesmo tempo que ela pode trazer conforto ao
indivíduo que se sente representado em uma cultura, pode impedir
a identificação das pessoas com a humanidade, abordando para isso
as questões relacionadas à divisão dos indivíduos por raça, classe,
religião ou partido a que pertencem.

As Metrópoles Regionais e a Cultura:


o Caso Francês, 1945-2000
Françoise Taliano-des Garets
Esta obra traça pela primeira vez a história das políticas culturais de
grandes cidades francesas na segunda metade do século XX. Seis delas,
Bordeaux, Lille, Lyon, Marselha, Estrasburgo e Toulouse, são objeto
de uma história comparada que examina a articulação entre políticas
culturais nacionais e locais na França desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. É um estudo que contribui para a revisão de certas ideias co-
muns sobre política cultural para as cidades e sobre as articulações entre
as diretivas e os discursos do poder central nacional e a realidade local.
Além disso, mostra como a cultura se impôs em lugares distintos, em
ritmos diferentes, como um campo legítimo da ação pública e fator de
fortalecimento da imagem e de desenvolvimento de cidades que buscam
um lugar de destaque nacional e internacionalmente. Abordando uma
realidade francesa, este livro serve de poderoso instrumento de reflexão
sobre a política cultural para as cidades, onde quer que se situem.
194 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração


de Friburgo
Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault
A publicação organizada por Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault
aborda a Declaração de Friburgo, que reúne e explicita os direitos cul-
turais reconhecidos de maneira dispersa em muitos instrumentos.
Levando o subtítulo Comentário à Declaração de Friburgo, o livro analisa
detalhadamente e comenta os considerandos e os artigos da declaração,
tendo como objetivo contribuir para a discussão e o desenvolvimento do
tema. Percebendo que a universalidade e a indivisibilidade dos direitos
humanos padecem sempre com a marginalização dos direitos culturais,
o Grupo de Friburgo – um grupo de trabalho internacional organizado
a partir do Instituto Interdisciplinar de Ética e Direitos Humanos da
Universidade de Friburgo, na Suíça – preparou um guia para a reflexão e
a implementação dos direitos relacionados à cultura previstos no Acor-
do Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a ocupar-se mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do turismo
e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral – do que de
suas questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é o primeiro
passo para colocar a arte em condições de atender realmente aos direi-
tos culturais, que hoje se reconhecem como seus.

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005


Teixeira Coelho
Neste livro, Teixeira Coelho faz uma seleção dos textos presentes na
coletânea La Politique Culturelle en Débat: Anthologie, 1955-2005, da
Documentation Française, que reflete sobre a relação entre Estado e
cultura na França. A cultura francesa se associa intimamente à iden-
tidade da nação e do Estado, e os autores desta obra, de diversas áreas,
analisam os aspectos dessa proximidade.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  195

Cultura e Educação
Teixeira Coelho (Org.)
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e Cul-
tura realizado no Itaú Cultural em setembro de 2009. Os participantes
­latino-americanos (inclusive brasileiros) e espanhóis refletem sobre
práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de iniciativas admi-
nistrativas e curriculares e de ações cotidianas em sala de aula.

Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos “Matrimonium” e “Apocalipse”, de Michel
­Maffesoli. Neles, o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade
para além do domínio das artes e analisa os fatos e os efeitos pós-mo-
dernos na vida social. A partir desse debate, Maffesoli questiona valores
como indivíduo, razão, economia e progresso – pedras fundamentais da
sociedade ocidental moderna, que está em crise, saturada.

O Medo ao Pequeno Número


Arjun Appadurai
“Arjun Appadurai é conhecido como autor de novas formulações notáveis
que esclareceram os desenvolvimentos globais contemporâneos, espe-
cialmente em Modernity at Large. Neste livro, ele aborda os problemas
mais cruciais e intrigantes da violência coletiva que hoje nos cerca. Um
livro repleto de ideias novas e originais, alimento essencial para o espírito
dos especialistas e de todos os que se preocupam com essas questões”, diz
Charles Taylor, autor de Modern Social Imaginaries. As transformações
na economia mundial desde a década de 1970 produziram efeitos con-
sideráveis nas relações entre as nações e as pessoas. Multiplicaram-se
as disputas e as preocupações sobre soberania nacional, indigenismo,
imigração, liberdade, mercado, democracia e direitos humanos. Algumas
ditaduras sumiram, outras permaneceram ativas e uma ou outra mais
insiste em afirmar-se no palco mundial, como se as mudanças no mundo
ao longo do último meio século não tivessem existido.
196 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A Cultura e Seu Contrário


Teixeira Coelho
As duas últimas décadas do século XX viram a ascensão da ideia de cul-
tura a um duplo primeiro plano: o das políticas públicas e o do mercado,
neste caso de um modo ainda mais intenso que antes. O papel de cimento
social antes exercido pela ideologia e pela religião, corroídas em parti-
cular na chamada civilização ocidental, embora não neutralizadas, foi
gradualmente assumido pela cultura, tanto nos Estados pós-coloniais
quanto, em seguida, nas nações subdesenvolvidas às voltas com os de-
safios da globalização e decididas ou resignadas a encontrar, na identi-
dade cultural, uma válvula de escape. Do lado do mercado, o vertiginoso
crescimento do audiovisual (cinema, vídeo, música) colocou a cultura
numa situação sem precedentes no elenco das fontes de riqueza nacional.

A Cultura pela Cidade


Teixeira Coelho (Org.)
Qual a relação entre a cultura e a cidade? Nesta publicação, 12 autores,
nacionais e estrangeiros, são convidados a refletir sobre o tema. Os
artigos abordam questões como Agenda 21 da Cultura, espaço público
e cultura, política cultural urbana e imaginários culturais.

Leitores, Espectadores e Internautas


Néstor García Canclini
A publicação contém artigos dispostos em ordem alfabética, podendo
o leitor transitar livremente por eles sem interferir na compreensão do
texto. Seu tema são os novos hábitos culturais surgidos com o avanço
das tecnologias de comunicação e entretenimento, e nossas respostas a
eles como leitores, espectadores e internautas. Por meio de provocações,
o autor nos incentiva a pensar sobre nossos “novos hábitos culturais”,
colocando mais questões a ser respondidas do que conceitos estabeleci-
dos, como num fragmento em que questiona as campanhas de incentivo
à leitura: “Por que as campanhas de incentivo à leitura são feitas só com
livros e tantas bibliotecas incluem somente impressos em papel?” (p.
56), abrindo assim a discussão da necessidade de reformulação das
políticas culturais públicas, uma vez que, atualmente, somos leitores
de revistas, quadrinhos, jornais, legendas, cartazes, blogs.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  197

A República dos Bons Sentimentos


Michel Maffesoli
Como observou Chateaubriand, é comum chamar de conspiração po-
lítica aquilo que na verdade é “o mal-estar de todos ou a luta da antiga
sociedade contra a nova, o combate das velhas instituições decrépitas
contra a energia das jovens gerações”. O momento atual é um desses em
que jornalistas, universitários e políticos, em suma, a intelligentsia, se
mostram em total falta de sintonia com a vitalidade popular. Para en-
tender melhor em que isso consiste, é preciso pôr em evidência a lógica
do conformismo intelectual reinante. Só quando não mais imperar o
ronronar do “moralmente correto” é que será possível prestar atenção
na verdadeira “voz do mundo”.

Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser até mesmo
panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as conquistas
teóricas dos séculos passados que não mais servem para entender a
época contemporânea. Discutindo com o pensamento oficial, o autor
investe contra o politicamente correto, o moralmente correto e todas as
formas do bem pensar, isto é, contra as ideias feitas que se transmitem
e se repetem acriticamente.

Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo, os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão eco-
nômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cultural, as
ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida de desenvol-
vimento; para os tomadores de decisões, a contribuição da cultura para
a economia do conhecimento abre oportunidades originais de ação; para
os cidadãos, trata-se de ter os meios para compreender e defender um
setor cujo valor simbólico e potencial de riqueza humana e econômica
não podem mais ser ignorados.
198 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

SÉRIE RUMOS PESQUISA


Os Cardeais da Cultura Nacional: o Conselho Federal
de Cultura na Ditadura Civil-Militar − 1967-1975
Tatyana de Amaral Maia
Neste livro, Tatyana de Amaral Maia discorre sobre a criação e a
atuação do Conselho Federal de Cultura, órgão vinculado ao antigo
Ministério da Educação e Cultura, no campo das políticas culturais.
A autora analisa a relação entre seus principais atores, relevantes in-
telectuais brasileiros, e as questões políticas e sociais do período da
ditadura, bem como os conceitos relativos à cultura brasileira, como
patrimônio e identidade nacional.

Discursos, Políticas e Ações: Processos de Industrialização


do Campo Cinematográfico Brasileiro
Lia Bahia
O tema deste livro é a inter-relação entre a cultura e a indústria no
Brasil, por meio da análise das dinâmicas do campo cinematográfico
brasileiro. A obra enfoca a ligação do Estado com a industrialização do
cinema brasileiro nos anos 2000, discutindo as conexões e as desco-
nexões entre os discursos, as práticas e as políticas regulatórias para
o audiovisual nacional.

Por uma Cultura Pública: Organizações Sociais, Oscips


e a Gestão Pública Não Estatal na Área da Cultura
Elizabeth Ponte
A autora traz um panorama do modelo de gestão pública compartilhada
com o terceiro setor, por meio de organizações sociais (OS) e organi-
zações da sociedade civil de interesse público (Oscips), procurando
analisar seu impacto em programas, corpos estáveis e equipamentos
públicos na área cultural. O estudo é baseado nas experiências de São
Paulo, que emprega a gestão por meio de OS, e de Minas Gerais, que
possui parcerias com Oscips.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  199

A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos


Indígenas na Indústria Cultural
Victor Lúcio Pimenta de Faria
A proteção jurídica das expressões culturais indígenas, de suas formas
de expressão e de seus modos de criar, fazer e viver é analisada sob as
perspectivas do direito autoral e da diversidade das expressões cultu-
rais, a partir do conceito adotado pela Unesco.

AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO

Revista Observatório Itaú Cultural


No 20 – Políticas Culturais para a Diversidade:
Lacunas Inquietantes
Sob a óptica da diversidade cultural e das políticas públicas, esta edição
discute a questão das minorias, do novo cenário midiático, da cultura
“plebeia” e do patrimônio. Traz ainda questionamentos que indicam
outros rumos para a diversidade.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 19 – Tecnologia e Cultura: uma Sociedade em Redes
O mundo passa por um momento de crise: política, econômica e iden-
titária. E parte das causas e das possíveis soluções parece vir de nossa
complexa relação com as tecnologias digitais. Afinal, a tecnologia muda
a cultura? Qual é o papel da arte num contexto de multiplicidade de
atores? Como a política institucional deve enfrentar esse novo cenário?
Esses são os questionamentos da edição 19 da Revista Observatório.
200 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural


No 18 – Perspectivas sobre Política e Gestão Cultural
na América Latina
Esta edição traz análises comparativas da política e da gestão cultural
da América Latina e aborda o seminário internacional sobre o tema
realizado em março de 2015. Autores do Brasil, da Argentina, do Chi-
le, do Paraguai, do Uruguai, da Colômbia e do México nos convidam a
pensar sobre nossos modelos políticos e sobre a importância do papel
da cultura na integração dos povos latino-americanos.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas
ao Mercado Editorial
Esta edição reflete sobre livro e leitura no século XXI, levando em conta
novos aspectos e dimensões que vão além das publicações em papel,
das bibliotecas e das livrarias físicas. A revista contempla abordagens
históricas, discussões contemporâneas e contribuições de pesquisa-
dores acadêmicos e de profissionais do mercado.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 16 – Direito, Tecnologia e Sociedade:
uma Conversa Indisciplinar
Esta edição mistura autores provenientes de campos diversos do co-
nhecimento para tratar de temas que se tornam cada vez mais centrais
em nossos agitados tempos, em que as ruas e as redes se misturam, em
que o real e o virtual se fundem. Privacidade, direitos autorais, liberdade
de expressão, limites e possibilidades do “faça você mesmo”, conflitos
envolvendo mídias sociais e tradicionais, os sucessos e as falhas da
promessa da aldeia global. Temas que estão hoje no centro do palco e
despertam ao mesmo tempo esperança e preocupação.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  201

Revista Observatório Itaú Cultural


No 15 – Cultura e Formação
Esta edição destaca o Seminário Internacional de Cultura e Formação,
realizado no Itaú Cultural em novembro de 2012. O seminário é fruto
de dois processos relacionados: primeiro, uma grande reflexão sobre
os destinos da instituição, que completara, nesse mesmo ano, 25 anos
de fundação; consecutivamente, o desejo de dialogar sobre como o ter-
ceiro setor pode contribuir para o desenvolvimento dos processos de
formação cultural, bem como qual lugar lhe cabe nesse cenário. Para a
revista, selecionamos contribuições de natureza diversificada derivadas
desse encontro: discussão de conceitos, debates de políticas, análise
de situações ou simplesmente narrativas de experiências, compondo,
assim, um pequeno retrato do seminário, bem como das relações entre
cultura e formação na contemporaneidade.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 14 – A Festa em Múltiplas Dimensões
Os muitos carnavais, aspectos socioeconômicos das festas, políticas
públicas e patrimônio cultural. Essas e outras questões acerca das fes-
tividades brasileiras são discutidas tendo as políticas culturais como
ponto de partida.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 13 – A Arte como Objeto de Políticas Públicas
Nesta edição são apresentadas reflexões sobre alguns setores artísticos
no Brasil a partir de pesquisas, informações e percepções de pesquisa-
dores e instituições, vislumbrando-se contribuir para que a arte seja
pensada como objeto de políticas públicas.
202 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural


No 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos
Esta edição se debruça sobre as discussões da relação entre as práticas,
a produção e as políticas culturais. Refletindo sobre o consumo cultural
e o público da cultura com base na experiência francesa, a revista põe o
leitor em contato com a produção atual de pesquisadores que têm como
preocupação central as escolhas, os motivos, os gostos e as recusas dos
“públicos da cultura”.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel
Este número é dedicado aos direitos culturais em diversos âmbitos:
relata o desenvolvimento do campo, sua relação com os direitos hu-
manos, a questão dos indicadores sociais e culturais e o tratamento
jurídico dado ao assunto.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando
Políticas Públicas e Mercado
Esta edição trata das políticas para o audiovisual no Brasil e passa por
temas como distribuição, mercado, políticas públicas, direitos auto-
rais, gestão cultural e novas tecnologias, além de trazer texto de Silvio
­Da-Rin, ex-secretário do Audiovisual. Parte dos artigos é de ganhadores
do Prêmio SAV e do programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão
Cultural 2007-2008.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  203

Revista Observatório Itaú Cultural


No 9 – Novos Desafios da Cultura Digital
As novas tecnologias transformaram a indústria cultural em todas
as suas fases, da produção à distribuição, assim como o acesso aos
produtos culturais. Em 12 artigos, esta edição discute as questões que
a era digital impõe à indústria cultural, os desafios que permeiam po-
líticas públicas de inclusão digital, a necessidade de pensar os direitos
autorais e como trabalhar a cultura na era digital. Traz também uma
entrevista com ­Rosalía Lloret, da Rádio e TV Espanhola, e Valério
Cruz Brittos, professor e pesquisador da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (Unisinos), sobre convergência das mídias e televisão
digital, respectivamente.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos
Esta edição é dedicada à diversidade. Na primeira parte, são explorados
vários aspectos culturais do país – aspectos que estão à margem da
vivência e do consumo usual do brasileiro – e como as políticas de ges-
tão cultural trabalham para a assimilação e a preservação deles, de
modo que não causem fortes impactos na dinâmica social. A segunda
parte da revista é composta de artigos escritos por especialistas em
cultura e tem como fio condutor a discussão sobre a sobrevivência da
diversidade cultural em um mundo globalizado.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre
o Incentivo Fiscal para a Cultura
A Lei Rouanet é o tema do sétimo número da revista. Aqui os autores
discutem diversos aspectos e consequências dessa lei: a concentração
de recursos no eixo Rio-São Paulo, o papel das empresas estatais e
privadas e o incentivo fiscal. O então ministro da Cultura, Juca Fer-
reira, comenta em entrevista a lei e as falhas do atual modelo. O pro-
pósito desta edição é apresentar ao leitor as diversas opiniões sobre
o assunto para que, ao final, a conclusão não seja categórica. O setor
cultural é tecido por nuances; há, portanto, que pensá-lo como tal.
204 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural


No 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para
o Setor Cultural
O gestor cultural é um profissional que, no Brasil, ainda não atingiu
seu pleno reconhecimento. A sexta edição da revista é dedicada a
expor e a debater esse tema. Há uma extensa indicação bibliográfica
em português, além de artigos e entrevistas com professores espe-
cializados no assunto. A carência profissional nesse meio é fruto da
deficiência das políticas culturais brasileiras, quadro que começa a se
transformar com a maior incidência de pesquisas e cursos voltados
para a formação do gestor.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade
A quinta edição da revista é resultado do seminário internacional A
Cultura pela Cidade – uma Nova Gestão Cultural da Cidade, organizado
pelo Observatório Itaú Cultural. Sua proposta foi promover a troca de
experiências entre pesquisadores e gestores do Brasil, da Espanha, do
México, do Canadá, da Alemanha e da Escócia que utilizaram a cultura
como principal elemento revitalizador de suas cidades. Nesta edição,
além dos textos especialmente escritos para o seminário, estão duas
entrevistas para a reflexão sobre o uso da cultura no desenvolvimento
social: uma com Alfons Martinell Sempere, professor da Universidade
de Girona (Espanha), e outra com a professora Maria Christina Barbosa
de Almeida, então diretora da biblioteca da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). A revista núme-
ro 5 inaugura a seção de crítica literária, com um artigo sobre Henri
­Lefebvre e algumas indicações bibliográficas. Encerrando a edição, um
texto sobre a implantação da Agenda 21 da Cultura.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES  205

Revista Observatório Itaú Cultural


No 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais
O que é um indicador, como definir os parâmetros de uma pesquisa,
como usar o indicador em pesquisas sobre cultura? Esta quarta edi-
ção da revista trata desses assuntos por meio da exposição de vários
pesquisadores e do resumo dos seminários internacionais realizados
pelo Observatório no fim de 2007. No final da edição, um texto da Orga-
nização das Nações Unidas (ONU) sobre patrimônio cultural imaterial.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 3 – Valores para uma Política Cultural
A terceira edição da revista discute políticas para a cultura e relata a expe-
riência do programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural e dos
seminários realizados nas regiões Norte e Nordeste do país para a divulgação
do edital do programa. A segunda parte desta edição traz artigos que co-
mentam casos específicos de cidades onde a política cultural transformou a
realidade da população, fala sobre o Observatório de Indústrias Culturais de
Buenos Aires e apresenta uma breve discussão sobre economia da cultura.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural
O segundo número da revista é dividido em duas partes: a primeira trata
das atividades desenvolvidas pelo Observatório, como as pesquisas
no campo cultural e o programa Rumos, e traz uma resenha do livro
Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, de Paul Tolila. A
segunda é composta de diversos artigos sobre a área da cultura escritos
por especialistas brasileiros e estrangeiros.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura
Esta revista inaugura as publicações do Observatório Itaú Cultural. Criado
em 2006 para pensar e promover a cultura no Brasil, o Observatório reali-
zou diversos seminários com esse intuito. O primeiro número é resultado
desses encontros. Os artigos discutem o que é um observatório cultural,
qual sua função e como formular e usar dados para a cultura e as indústrias
culturais. A edição também comenta experiências de outros observatórios.
Esta revista utiliza as fontes Sentinel e Gotham
sobre o papel Pólen Bold 90g/m2. Os pantones 2011
e 704 foram os escolhidos para esta edição. Duas mil
unidades foram impressas pela gráfica Stilgraf em
São Paulo, no mês de outubro do ano 2016.
/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 atendimento@itaucultural.org.br
avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]

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