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POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES
ECONÔMICAS E IDENTIDADES
CULTURAIS
Instituições e crise
a emergência de novas práticas culturais
(Re)produção cultural
a economia política do imaginário
Saberes em movimento
imigração, trânsitos e diásporas
Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural
Semestral
Edição Revisão
Silvio Luiz de Almeida Equipe Itaú Cultural NÚCLEO DE
COMUNICAÇÃO E
Conselho editorial RELACIONAMENTO
Luciana Modé EQUIPE ITAÚ
Rafael Figueiredo CULTURAL Gerência
Ana de Fátima Sousa
Projeto gráfico Presidente
Marina Chevrand/ Milú Villela Coordenação de arte
Serifaria Jader Rosa
Diretor
Design Eduardo Saron Curadoria de imagens
Serifaria André Seiti
Superintendente
Produção gráfica administrativo Produção editorial
Lilia Góes Sérgio Miyazaki Raphaella Rodrigues
Toninho Amorim
Se é certo que não se pode reduzir a cul- As obras de Luiz Gama, Castro Alves,
tura às condições da economia e da política, Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro
tampouco a separação total entre cultura, Lobato, Jorge Amado, Graciliano Ramos e,
economia e política nos ajuda a compreen- em outros contextos, James Baldwin, Toni
dê-la. Os conflitos sociais e suas dimensões Morrison, F. Scott Fitzgerald, John Stein-
raciais, étnicas e religiosas giram em torno beck, Wole Soyinka, Salman Rushdie, Gabriel
de diferentes formas de conceber e significar García Márquez, Haruki Murakami e Chima-
a realidade e, portanto, de definir posições manda Ngozi Adichie são alguns exemplos,
individuais e coletivas diante da vida. apenas no campo da literatura, de como a arte
Por outro lado, a dinâmica da econo- desvela a dimensão cultural – e ideológica,
mia torna-se incompreensível se apartada por isso tantas vezes oculta – dos grandes di-
dos processos culturais. Lembremo-nos lemas e das grandes transformações socioe-
de que o chamado “mercado” – inclusive o conômicas e seus impactos na subjetividade.
“cultural” – é, antes de tudo, um complexo Convido leitoras e leitores a uma refle-
de relações sociais. Assim, todas as gran- xão acerca do tema “Política, transformações
des transformações socioeconômicas da econômicas e identidades culturais”. Abor-
história foram acompanhadas de profun- daremos aqui, a partir de diferentes enfo-
das mudanças culturais que implicaram a ques, o modo como as transformações das
reorientação de valores e de sentimentos. condições objetivas (estruturas da política e
A tensa relação entre cultura e economia da economia) manifestam-se concretamente
política foi muito bem captada por Walter nas condições subjetivas (identidades indi-
Benjamin ao afirmar que “nunca houve um viduais e suas narrativas e formas de perten-
monumento da cultura que não fosse tam- cimento de grupo) e, de outro modo, como o
bém um monumento da barbárie”1. subjetivo se manifesta como dado objetivo
Para tratar de tão importante questão, na dinâmica das estruturas sociais.
este número da Revista Observatório é dedi- Os artigos e a entrevista que compõem
cado à dimensão político-econômica da cultu- este número da Observatório traduzem a
ra e à dimensão cultural da economia política. tentativa de reaproximação entre cultura e
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
1. CULTURA E ESTRUTURA:
O OBJETIVO NA CONSTITUIÇÃO
47. Imigração na sociedade
contemporânea: reestruturação
DO SUBJETIVO produtiva do capital e das relações
sociais de produção
20. Cultura e crise: transformações Márcio Farias
sociais e emergência de novos
protagonismos midiáticos e culturais 59. Estado e cultura: políticas de
Dennis de Oliveira identidade e relações econômicas
Silvio Luiz de Almeida
30. Privilégio e opressão
Adilson José Moreira
2. CULTURA, PRODUÇÃO E
REPRODUÇÃO DO IMAGINÁRIO
112. Percepções do Atlântico –
antropologia estética, produção
POLÍTICO: O SUBJETIVO NA SUA de conhecimento e antirracismo
MANIFESTAÇÃO OBJETIVA Goli Guerreiro
3.
78. Imaginário e política:
a constituição material da
subjetividade DA PONTE PRA CÁ
Rosane Borges
130. Que cidade te habita?
86. O que nos torna Sampa negra: periferia,
mulheres? Os perigos de novas contracultura e antirracismo
normatizações e a importância Salloma Salomão
4.
do caminho descontínuo
Djamila Ribeiro
1. CULTURA E ESTRUTURA:
O OBJETIVO NA CONSTITUIÇÃO
DO SUBJETIVO
CULTURA E CRISE:
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E EMERGÊNCIA
DE NOVOS PROTAGONISMOS MIDIÁTICOS
E CULTURAIS
Dennis de Oliveira
Este artigo trata dos impactos causados no campo da cultura e da comunicação com a
emergência do que conceituamos de novos protagonistas midiáticos, que se legitimam não
mais pelo capital cultural no sentido dado por Pierre Bourdieu (domínio de conhecimentos
legitimados socialmente), mas pela competência no manejo dos recursos existentes nas
novas tecnologias de comunicação e informação. Há, assim, uma perda constante da auto-
ridade de fala do campo intelectual-acadêmico em benefício de novos atores que modificam
o cenário da cultura.
E
m 2011, a cantora brasileira Maria O interessante nessa polêmica é que
Bethânia teve aprovado no Minis- as posições de um lado e de outro transcen-
tério da Cultura um projeto na Lei deram o tradicional espectro político-ideo-
Rouanet no valor de R$ 1,3 milhão. O proje- lógico. Primeiro, houve uma manipulação
to em questão tratava da criação de um blog grosseira na informação veiculada por vários
para divulgação de poesias musicadas pela órgãos da mídia hegemônica, dando conta de
voz da cantora1. que Bethânia iria receber R$ 1,3 milhão para
A gritaria foi grande. Os argumentos seu projeto, quando na verdade ela estava
contrários à aprovação centravam-se no fato autorizada a captar tal valor na iniciativa
de que a cantora já era uma celebridade e, privada por meio da lei de incentivo fiscal.
portanto, não necessitava de um aporte de re- Segundo, não se tratava apenas de um blog –
cursos via isenção fiscal para um trabalho de muitos questionavam a cantora acerca do
sua autoria. Já os defensores da cantora ar- porquê de ela não usar as ferramentas gratui-
gumentavam que se tratava de uma iniciativa tas existentes para criar esse tipo de página
que ajudaria a popularizar uma modalidade na internet – mas também da produção de pe-
de expressão cultural pouco difundida – a quenos vídeos para ser exibidos na internet.
poesia – e, para tanto, nada melhor que ser O mais interessante, entretanto, é que
protagonizado por uma cantora popular. No esse episódio foi duramente criticado por
fim, a cantora desistiu do projeto. meios de comunicação que têm uma linha
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 21
Ele cita a tradição marxista, que quebra o pa- [...] os fenômenos sociais podem ser
radigma de autocentramento e linearidade vistos como ações intencionais levadas a
do sujeito com o conceito de classes sociais; a cabo em contextos sociais estruturados. A
psicanálise freudiana, com as teorias da frag- vida social é feita por indivíduos que per-
mentação intrassujeito pelas categorias do seguem fins e objetivos os mais variados.
consciente e do inconsciente do ser huma- Assim fazendo, eles sempre agem dentro
no; a linguística saussureana, apontando as de um conjunto de circunstâncias previa-
distintas formas de expressão e codificação mente dadas que proporcionam a diferentes
simbólica do ser humano; e, finalmente, os indivíduos diferentes inclinações e oportu-
movimentos feministas contemporâneos dos nidades. Estes conjuntos de circunstâncias
anos 1960, que colocam a temática de gênero podem ser conceituados como “campos de
como categoria socialmente construída. interação” para usar um termo fertil-
Ocorre, para Hall, um múltiplo des- mente desenvolvido por Pierre Bourdieu.
centramento do sujeito que se expressa nas (THOMPSON, 1998: p. 21).
múltiplas perspectivas de compreensão, ex-
pressão e ação. A cultura, vista durante certo Mais adiante, o autor afirma que os
tempo como um mecanismo de formação de campos de interação se transformam em
determinada tipologia de sujeito para uma instituições quando o conjunto de regras,
ordem sociopolítica (Eagleton), se esvai à relações sociais e recursos mobilizados são
medida que tal ordem também perde a sua estáveis. E quando as posições de dominân-
condição de unicidade. cia e subordinação se tornam estáveis tais
Com isso, as instituições tradicionais campos de interação se transformam em
da transmissão cultural entram em crise. Se estruturas sociais.
a ordem sociopolítica para a qual a cultura O que importa nessa conceituação de
como formação de determinada tipologia é Thompson construída a partir de Bourdieu
questionada, e se outras sociabilidades bus- é a ideia de capital. Capital, aqui, são os re-
cam sua legitimidade, consequentemente cursos mobilizados por determinados seg-
outras modalidades de transmissão cultural mentos sociais ou indivíduos que buscam
se fortalecem e se legitimam a partir de pa- exercer um poder dentro de determinados
radigmas que não o de enquadramento nesse campos de interação. Assim, as relações so-
ordenamento social. ciais dentro dos campos de interação são
constantes conflitos de busca ou de manu-
Transformações institucionais tenção dos capitais ou, ainda, de exercício
na transmissão do poder e resistência a ele.
Recorrendo ao conceito de Bourdieu A arquitetura do poder social, segundo
(1983, 1989 e 2000), John B. Thompson Thompson, reside na ação de quatro dimen-
considera que os seres humanos estabele- sões articuladas: poder econômico, poder
cem relações com outros semelhantes dentro político, poder coercitivo e poder simbólico.
de certas circunstâncias e condições. Diz ele Poder, para Thompson, é a mobilização de
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Dennis de Oliveira 23
Referências bibliográficas
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Unesp, 2005.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
______. Mídia e modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
Notas
PRIVILÉGIO E OPRESSÃO
Adilson José Moreira
Este artigo examina um aspecto sempre excluído das discussões sobre a inclusão de mino-
rias sexuais e raciais: as relações entre o privilégio branco e a opressão negra e entre o privilégio
heterossexual e a opressão homossexual, elementos encobertos pela ideologia brasileira da
transcendência racial e pela invisibilidade da heterossexualidade como forma de identidade
normativa. Temos nos dois casos a redução da discussão a uma questão biológica, o que encobre
o caráter eminentemente político desse debate.
O
debate sobre a adequação e a neces- política pública depende então da compreen-
sidade de políticas de inclusão so- são da extensão e das suas consequências da
cial no Brasil envolve uma série de discriminação racial nas relações sociais1.
questões particularmente complexas, como Minorias sexuais formularam uma
demonstra as discussões atuais sobre direi- série de demandas nos últimos 30 anos. Os
tos de minorias raciais e sexuais. A primeira representantes desses segmentos afirmam
questão diz respeito à presença do racismo que a Constituição Federal não permite que
na nossa sociedade. Aqueles que defendem cidadãos permaneçam em uma condição
ações afirmativas atestam que o racismo é de exclusão social indefinidamente2. Eles
um problema social estrutural, posição dis- almejam o reconhecimento como pessoas
tinta dos que são contra essas iniciativas por igualmente dignas e que merecem as mes-
compreendê-lo como um comportamento mas oportunidades e direitos garantidos a
individual. Os que defendem a primeira po- pessoas heterossexuais. Entretanto, lide-
sição alegam que a igualdade racial requer a ranças religiosas e políticas interpretaram
adoção de políticas racialmente conscientes, o avanço de direitos de homens e mulheres
meio necessário para que minorias raciais homossexuais como o prenúncio de uma pos-
possam enfrentar os obstáculos à inclusão sível desestruturação social, pois eles altera-
social. Seus opositores negam o caráter sis- ram o sentido das relações e das instituições
têmico do racismo no nosso país e dizem que sociais, entre elas o casamento. Segundo eles,
suas manifestações devem ser enfrentadas essa instituição tem sido pensada como a
pelas leis que criminalizam essa prática. As união de dois adultos de sexos opostos que
duas perspectivas parecem coincidir em um ocupam papéis claramente definidos dentro
ponto importante: o racismo é a referência de uma relação conjugal. Políticos e juristas
central para a discussão sobre a legalidade de argumentam que uniões homossexuais e he-
ações afirmativas. A defesa ou a crítica a essa terossexuais são essencialmente diferentes,
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 31
motivo pelo qual o nosso sistema jurídico instituições de ensino superior porque a
não deveria equipará-las. Além de ser uma construção de uma sociedade democrática
condição essencial para a procriação, alegam requer a diversificação racial das institui-
esses atores sociais, a diversidade de sexos ções públicas e privadas. A decisão esta-
dos pais é uma condição para um desenvol- belece então uma clara correlação entre
vimento psicológico infantil saudável, sendo igualdade e democracia ao classificar a
um mecanismo facilitador da formação da diversidade racial como um requisito para
identidade heterossexual3. a construção de uma sociedade inclusiva e
A decisão do Supremo Tribunal Fede- justa. Esse objetivo não pode ser alcançado
ral que declarou a constitucionalidade de enquanto os membros de um mesmo grupo
cotas raciais nas universidades públicas racial ocuparem a vasta maioria das posi-
utilizou um argumento que até agora atraiu ções de poder e prestígio4.
pouca atenção dos participantes dessa dis- O acordo que reconheceu uniões ho-
cussão. Entretanto, ele tem consequências moafetivas como uniões estáveis utilizou
significativas para as formas como exami- argumentação semelhante. O ministro
namos questões relacionadas Carlos Ayres Britto afirmou
com o tema da igualdade ra- A exclusão social que a falta de acesso a direitos
cial. O ministro relator Ricar- permite que pessoas matrimoniais implica a im-
brancas sempre
do Lewandowiski reconheceu possibilidade de atuação como
ocupem essas posições;
que o racismo estrutura as um agente autônomo no espa-
o racismo reproduz
relações sociais no Brasil, o tanto a desvantagem ço privado, o que contradiz o
que pode ser observado pelo negra quanto o princípio da igualdade, ideal
pequeno número de pessoas privilégio branco. baseado na noção de que uma
negras em cargos de prestígio sociedade democrática não
nas nossas instituições públicas e privadas. pode estar fundada em relações hierárqui-
Segundo ele, a exclusão social permite que cas. A supremacia heterossexual estabelece
pessoas brancas sempre ocupem essas po- essa orientação sexual como um requisito
sições; o racismo reproduz tanto a desvan- para o pleno gozo de direitos e impede a
tagem negra quanto o privilégio branco. Ele construção de uma sociedade verdadeira-
afirma algo que a maioria dos atores sociais mente democrática. Ele argumentou que a
envolvidos na controvérsia sobre inclusão cidadania sexual implica a necessidade de
racial geralmente não reconhece: o privi- democratização do espaço privado para que
légio branco está na base da estratificação os indivíduos possam ter a liberdade de es-
racial existente no Brasil. Essa constatação colher o sexo do parceiro com o qual querem
fundamentou a defesa de cotas raciais nas construir uma vida íntima5.
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Isso também permite a formação de grupos majoritários sem que isso possa ser
uma epistemologia social que torna o pri- visto como inadequado. Sua operação se
vilégio invisível aos olhos dos membros dos torna ainda mais imperceptível em razão da
grupos majoritários. Pessoas brancas não prevalência da defesa da igualdade formal
classificam a si mesmas em termos raciais como forma de justiça racial, um elemento
porque a raça serve apenas para descrever central da percepção social de atores públi-
minorias. Isso significa que a vasta maioria cos e privados.
delas não consegue perceber um aspecto Podemos afirmar que o discurso liberal
importante do sistema de dominação social: dos direitos tem papel central na formação
ser branco significa estar em uma posição da apreensão do mundo. Essa doutrina esta-
na qual não há necessidade de construção belece a proteção das liberdades individuais
de uma consciência racial. Um dos aspectos como o objetivo fundamental do Estado;
centrais dessa epistemologia é a transparên- cria-se a percepção de que todas as pessoas
cia: a raça não tem significação na vida dessa estão em uma situação de igualdade, e que
parcela da população porque não é um crité- o sistema jurídico impossibilita a repro-
rio objetivo de construção da identidade pes- dução de hierarquias sociais. Mas muitos
soal ou de determinação do futuro pessoal. afirmam que o liberalismo é uma forma de
O grupo racial majoritário tem o po- epistemologia que impede o conhecimen-
der simbólico de universalizar seus traços to adequado das dinâmicas sociais. Assim,
culturais e interesses setoriais e, em razão como a moralidade pública característica
disso, as pessoas que fazem parte dele po- das sociedades liberais condena práticas
dem viver sem se preocupar com a raça discriminatórias, o comportamento racista
porque representam a regra universal. Es- apenas expressa a atitude de alguns indiví-
sas representações atuam tanto no plano duos que se afastam do ideal social do tra-
cultural quanto no plano inconsciente, de- tamento igualitário11.
terminando o comportamento daqueles que Observamos no Brasil a longa presença
controlam o acesso a bens e oportunidades. de uma ideologia que poderíamos conside-
O problema com o fenômeno da transparên- rar como um liberalismo racial, discurso que
cia decorre do fato de que a branquitude é aparece em diversos contextos, notoriamen-
um sistema de dominação, uma vez que a te no debate sobre a constitucionalidade de
estrutura de privilégios raciais é construí- ações afirmativas. O liberalismo racial bra-
da tomando-o como uma referência cultu- sileiro é uma forma de epistemologia social
ral universal10. fundamentada no pressuposto de que nossa
Não podemos classificar o privilégio suposta homogeneidade racial exige o tra-
apenas como uma vantagem indevida. Ele tamento simétrico entre negros e brancos.
possui outras dimensões importantes. Ele Sendo a raça uma categoria que não possui
se reproduz dentro da sociedade em razão significação social, ela não pode ser um pa-
da sua invisibilidade, o que permite a ga- râmetro para políticas públicas, pois com-
rantia de oportunidades aos membros de prometeria uma moralidade institucional
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 37
Argumenta-se que a miscigenação não eli- observada com os ideais culturais brancos.
mina práticas discriminatórias nem a con- Se o fato de ser branco aparece como algo
centração do acesso a oportunidades nas invisível para os que são assim classifica-
mãos daqueles classificados como brancos. dos, a heterossexualidade é vivida como a
Os que defendem a constitucionalida- expressão da normalidade14.
de de ações afirmativas sustentam que o ra- Podemos dizer que a resistência à in-
cismo não é um problema comportamental clusão de minorias sexuais está baseada em
decorrente de uma percepção incorreta da uma política da virtude moral que procura
realidade, mas um sistema de dominação. preservar a heterossexualidade como fun-
Sendo tal sistema um fator que oprime uma damento central da ordem social. Aqueles
geração após outra, esses autores interpre- que defendem essa posição sugerem direta
tam o princípio da igualdade dentro de uma e indiretamente que os princípios do direito
linha temporal: ele procura reparar as con- natural devem nortear a interpretação das
sequências de processos históricos de exclu- normas jurídicas. Eles implicam a superio-
são e também estabelecer parâmetros para ridade da heterossexualidade em relação à
a construção de uma sociedade igualitária13. homossexualidade, e por isso as instituições
Os discursos sociais contrários à pro- estatais não deveriam tratar homossexuais
teção jurídica de minorias sexuais também e heterossexuais igualmente, pois isso pro-
ignoram o caráter estrutu- move um estilo de vida
ral de formas de exclusão O liberalismo racial brasileiro moralmente condenável.
social que existem nas é uma forma de epistemologia Segundo os propositores
sociedades contemporâ- social fundamentada no desse discurso social, a
pressuposto de que nossa
neas. Da mesma forma heterossexualidade deve
suposta homogeneidade racial
que o racismo, a homofo- ser pensada como uma ex-
exige o tratamento simétrico
bia afeta uma variedade de entre negros e brancos. pressão normal da sexuali-
dimensões da vida social e dade humana. Além de um
cultural, fazendo com que minorias sexuais requisito fundamental para a reprodução,
sejam excluídas de diversas oportunidades ela também é um princípio de organização
profissionais e acadêmicas. Essa prática social e política, afirmam esses indivíduos15.
social opera pela construção da heterosse- Os relacionamentos heterossexuais teriam
xualidade como um padrão cultural a partir uma dignidade intrínseca porque contri-
do qual as relações sociais são estruturadas. buem para a sobrevivência da nação, o que
Nesse sentido, ela funciona da mesma forma está longe de ser o caso das uniões homoafe-
que o racismo ao estabelecer o atributo de tivas. Para os que defendem essa posição,
certo grupo como padrão e como requisito a proteção jurídica de homossexuais é um
para o acesso a oportunidades sociais. Tendo obstáculo à realização do interesse estatal
em vista que a heterossexualidade funciona na reprodução, pois encoraja uma forma
como uma regra social, ela adquire um status de orientação sexual que objetiva apenas o
de plena invisibilidade, a mesma realidade prazer individual16.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 41
uma longa história na nossa sociedade. Se argumentos para manter uma estrutura de
nos dias de hoje a homossexualidade fun- privilégios. A possibilidade de construção
ciona como catalisador ideológico de um de uma sociedade democrática no Brasil
discurso que prega a exclusão de um grupo depende da desconstrução de uma retórica
como um passo necessário para a salvação da social que esconde um mecanismo essen-
nação, algumas décadas atrás a miscigenação cial para a reprodução das desigualdades
racial era apontada como um processo que na nossa nação.
arruinaria o nosso país. A política higienista
brasileira tinha como objetivo principal tra-
tar as consequências do cruzamento entre
as raças para que o progresso social pudesse
ser alcançado. A questão moral circundava
o problema racial: não se discutia apenas a
questão da contaminação das raças suposta-
mente superiores, mas também a da pureza
racial necessária para a construção de uma
comunidade política.
A apontada degeneração de pessoas de
ascendência ameríndia e africana não era
pensada apenas como fator de caráter bio-
lógico que limitava a possibilidade de criar
uma população racialmente pura. Suposta-
mente, esses indivíduos não eram capazes
de participar da vida política como cidadãos
livres por causa da sua inferioridade moral
constitutiva. Apenas os europeus carrega-
vam em seus genes as características morais
adequadas para a promoção do progresso.
Para os higienistas, o destino da nação de-
pendia necessariamente da contenção da
miscigenação racial, como também da me-
lhora da população miscigenada por meio da Adilson José Moreira
purificação racial19. Professor assistente na Faculdade de Direito da
O mesmo discurso fundamenta agen- Universidade Presbiteriana M
ackenzie. Doutor em di-
das políticas baseadas na luta contra a reito pela Universidade de Harvard; doutor em direito
inclusão de minorias sexuais. Mas esses constitucional pela Faculdade de Direito da Univer-
debates deixam de abordar o verdadeiro sidade Federal de Minas Gerais (UFMG); mestre em
ponto central da questão: a forma como os direito pela Universidade de Harvard e bacharel em
grupos dominantes articularam diversos direito pela Faculdade de Direito da UFMG.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 43
Referências bibliográficas
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social privilege. Journal of Multicultural Counseling and Development, v. 33, n. 2,
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ROTHMAYR, Daria. Racial cartels. Michigan Journal of Race & Law, v. 16, n. 1, 2011.
STEPAN, Nancy. The hour of the eugenics: race, nation, and nation in Latin America.
Ithaca: Cornell University Press, 1999.
44 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
8 BLACK, Linda; STONE, David. Expanding the definition of privilege: the concept
of social privilege. Journal of Multicultural Counseling and Development, v. 33,
n. 2, p. 244-246, 2009.
9 ROTHMAYR, Daria. Racial cartels. Michigan Journal of Race & Law, v. 16, n. 1,
p. 50-55, 2011.
10 FLAGG, Barbara. Was blind, but now I see: white race consciousness. Michigan
Law Review, v. 91, n. 4, p. 954-973, 1992.
11 FITZPATRICK, Peter. Racism and the innocence of law. Journal of Law & Society,
v. 14, n. 1, p. 119-132, 1987.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Adilson José Moreira 45
19 STEPAN, Nancy. The hour of the eugenics: race, nation, and nation in Latin
America. Ithaca: Cornell University Press, 1999, p. 25-65.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 47
IMIGRAÇÃO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA:
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL
E DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO
Márcio Farias
O objetivo deste artigo é assinalar algumas premissas basilares da relação entre imigração
contemporânea e economia política, averiguando tendências estruturais do fenômeno social
da migração sob a égide do capital, bem como aspectos conjunturais. Nesse sentido, busca-se
uma contrapartida analítica em relação ao establishment acadêmico sobre o tema em questão,
apontando a necessidade de correlacionar imigração, racismo, xenofobia e sexismo com as
relações sociais de produção.
A
história do capitalismo é marcada Nessa fase do capitalismo também se
por transições que remodelaram consolidam estados-nações diante de um
as relações sociais. Do capitalismo cenário repleto de crises econômicas, de-
comercial, que abalizou os primeiros e signi- sapropriação e lutas por terras, além das
ficativos avanços para a sociedade do capi- guerras civis na Europa, fatores que impul-
tal, passando pelo capitalismo industrial de sionaram uma onda massiva de emigrações
característica concorrencial até a transição dessa região para outras partes do mundo. A
para o capitalismo monopolista, em que o se- América Latina foi um território que rece-
tor financeiro e industrial se fundiu. Este últi- beu grande contingente desses emigrantes
mo período mencionado é significativamente europeus. Essa imigração massiva atendia
importante para o presente debate, pois dian- a interesses econômicos, políticos e ideoló-
te dos processos sócio-históricos encadeados gicos para consolidar um novo povo para as
nessa etapa, a discussão sobre imigração e re- nações latino-americanas que emergiam. O
lações raciais ganhou novas veredas. É diante racismo científico justificou o investimento
do avanço do capitalismo monopolista que se de governos para recepção desses imigrantes,
edifica a eugenia, teoria das “raças humanas” como também possibilitou arranjos jurídicos
orquestrada por intelectuais como Joseph Ar- que facilitaram o ingresso desse estrangeiro
thur de Gobineau e Herbert Spencer, entre de maneira a garantir direitos básicos e in-
outros, tanto na Europa quanto nos Estados serção como cidadãos dessas novas pátrias
Unidos (SKIDMORE, 2012). que se erguiam (SCHWARCZ, 1993).
48 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Os fatores que explicam esse processo Mas essas mudanças, quando con-
seriam: 1) os interesses privados que se be- frontadas com as regras básicas de acu-
neficiam, no sentido mais direto e imediato mulação capitalista, mostram-se mais
do termo, com a existência permanente de como transformações da aparência super-
um subproletariado; 2) pressões psicosso- ficial do que como sinais do surgimento
ciais geradas por uma sociedade capitalista de alguma sociedade pós-capitalista ou
monopolista que intensificam, em vez de mesmo p ós-industrial inteiramente nova
aliviar, os preconceitos raciais existentes e, (HARVEY, 2012, p. 7).
consequentemente, também intensificam
a discriminação e a segregação; 3) o desen- Segundo Chesnais (1996), esse período
volvimento do capitalismo monopolista e não se caracteriza apenas como um proces-
a procura do trabalho não especializado e so de internacionalização do capital, ou uma
semiespecializado tanto relativa quanto globalização – termo recorrente na biblio-
absolutamente, tendência que afeta muito grafia contemporânea – que se alastra pelo
mais os negros que qualquer outro grupo e mundo desde a década de 1950. Trata-se
acentua sua inferioridade econômica e social de uma nova fase do capitalismo, reconfi-
(BARAN; SWEEZY, 1966). gurado em seus mecanismos de regulação.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
(SCHWARCZ, 1993)
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 51
52 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
É desse período em diante que o capital Do ponto de vista das forças produti-
monopolista vive seu momento de auge, al- vas, houve uma transformação entendida
cançando níveis de crescimento nunca vis- como reestruturação produtiva do capital.
tos antes e que marcaram o ciclo de ouro do Essa mudança ocorreu em meio a grande
capitalismo. Viu-se também, nos grandes crise estrutural do capitalismo no início
centros do capital, a emergência do Estado da década de 1970. Em suma, nos países
com uma característica de de capitalismo avançado
maior intervenção. Assim [...] as causas permanentes da se perpetraram altera-
sendo, o capitalismo mono- imigração para a Europa são, ções em vários âmbitos
polista em sua fase de ouro em primeiro lugar, o histórico no mundo do trabalho que
(1950-1970) nos países de desenvolvimento desigual do significaram novas formas
economia avançada teve capitalismo que forjou países de inserção do trabalhador
uma “refuncionalização”. sem acumulação originária na estrutura produtiva,
e com mercado interno
Em correlação de forças, os nos processos produtivos
garroteados pelas imposições
grandes capitais se viram e nas formas de organiza-
dos centros capitalistas.
pressionados pelo avanço Para grande parte dos ção política. Se durante
do socialismo como alterna- países que são ex-colônias, grande parte do século
tiva, e com a força sindical e a descolonização política não XX tivemos no plano ad-
organizativa da classe tra- reverberou na economia [...] ministrativo do processo
balhadora em alguns países. produtivo o paradigma
Emerge, assim, o Estado de Bem-Estar Social, f ordismo-taylorismo, neste momento,
que garantiu melhorias nas condições de vida acrescenta-se e toma força o paradigma do
dos trabalhadores do centro do capitalismo, toyotismo (ALVES, 2011).
os quais usufruíram de algumas conquistas Antunes (1995) analisa da seguinte for-
materiais e imateriais produzidas por ele ma o período supracitado:
(BRAZ; NETO, 2012).
Há uma tendência contemporânea de O toyotismo penetra, mescla-se ou
sobrevalorização do capital financeiro em mesmo substitui o padrão fordista domi-
detrimento dos setores produtivos. Essa nante, em várias partes do capitalismo glo-
financeirização da economia e da política balizado. Vivem-se formas transitórias de
se reflete na vida dos trabalhadores de ma- produção, cujos desdobramentos são tam-
neira a criar um cenário hostil do ponto de bém agudos, no que diz respeito aos direitos
vista das condições de trabalho, bem como a do trabalho. Estes são desregulamentados,
instabilidade e o desemprego de um lado e o são flexíveis, de modo a dotar o capital do
cerceamento das condições de organização instrumental necessário para adequar-se
política do outro. No entanto, a importância a nova fase. Direitos e conquistas histó-
dos estados nacionais, ainda que colocadas ricas dos trabalhadores são substituídos
num grau de dependência maior, não os eli- e eliminados na produção (ANTUNES,
minou (CHESNAIS, 1996). 1995, p. 16).
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Márcio Farias 53
Márcio Farias
Graduado em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011). Mestre
em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) (2015).
Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Americanos (Nepafro). Colaborador do Instituto
Amma Psique e Negritude. Atua como assistente de coordenação no Museu Afro Brasil.
Tem experiência em atendimento e formação nos temas juventude, cultura e resistência,
psicologia, educação, arte e cultura. Desenvolve estudos sobre o pensamento social
brasileiro e as relações raciais; negritude e lutas de classes no Brasil; África e capitalismo,
o pensamento social latino-americano e as relações raciais.
Referências bibliográficas
BARAN, Paul A.; SWEEZY, Paul A. Capitalismo monopolista. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1966.
BRAZ, Marcelo; NETO, José Paulo. Economia política: uma introdução crítica. São
Paulo: Cortez, 2012.
ESTADO E CULTURA:
POLÍTICAS DE IDENTIDADE E
RELAÇÕES ECONÔMICAS
Silvio Luiz de Almeida
N
o primeiro volume de O Processo Com essa distinção, Elias quer demons-
Civilizador, o historiador alemão trar como a identidade – compreendida como
Norbert Elias 1 estabelece uma o plexo de valores presentes no imaginário
notável relação entre as transformações social, bem como sua incorporação às subje-
sociais e a alteração nos costumes ou, em tividades – se relaciona com a formação his-
outras palavras, na cultura. Para sustentar tórica das estruturas políticas e econômicas.
sua tese, Elias expõe a “sociogênese” da dis- Não significa dizer que todas as práticas cul-
tinção entre civilização – que se vincula ori- turais resultam de projetos políticos deter-
ginalmente à experiência histórica da Fran- minados, mas que há uma relação estrutural
ça e da Inglaterra – e kultur – relacionada à e conflituosa entre cultura e política.
história da Alemanha. Enquanto o conceito A produção de discursos de representa-
alemão de kultur “dá ênfase especial a dife- ção identitária, a determinação dos espaços e
renças nacionais e identidade particular a fixação do tempo são questões centrais da
de grupos” que “reflete a consciência de si política, já que dizem respeito à legitimidade
mesma de uma nação que teve de buscar do exercício efetivo do poder. Esses três as-
e constituir incessante e novamente suas pectos, no plano ideológico, introduzem nas
fronteiras, tanto no sentido político como no ações cotidianas o imaginário socialmente
espiritual”, a noção de civilização, de origens construído que sustenta as práticas institu-
francesa e inglesa, “inclui a função de dar cionais e não institucionais de poder e suas
expressão a uma tendência continuamente correspondentes oposições, fornecendo-lhes
expansionista de grupos colonizadores”. um sentido ético e estético.
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
históricos e a orientação dos projetos sociais pós-modernidade. Nesse sentido, das diversas
e econômicos, que em seu caráter mais espe- abordagens sobre a pós-modernidade, sejam
cífico formam a identidade nacional. as que priorizam a análise da cultura, sejam
Ora, uma vez que a crise altera as con- as que se debruçam sobre as características
dições de normalidade da vida social, a crise estruturais, a ideia de fragmentação aparece
política e econômica se traduz em uma crise com grande destaque. Assim, a crise se re-
das identidades. As crises levam a conflitos velaria no caráter fragmentário, indefinido,
políticos que, no plano cultural, aparecem fluído, líquido, que as identidades assumem
como disputas discursivas tentando expli- no contexto da p ós-modernidade, diferente-
car o panorama de incerteza sobre os rumos mente da modernidade, em que elas aparecem
da sociedade ou buscando legitimar novas na sua inteireza e unidade.
formas de exercício de poder e organização A oposição pós-moderna ao caráter
social. Essa disputa coloca em cena raciona- “universal”, iluminista, da modernidade gerou
lidades diversas, modos distintos de sentir o três interpretações distintas sobre o proble-
mundo e novas concepções de tempo e espa- ma da identidade. A primeira coloca-se em
ço2 que, para além da economia e da política, defesa do legado da modernidade e denun-
também se materializam na cultura em geral, cia a fragmentação cultural e o relativismo
na arte e na ciência. pós-moderno. Essa posição destaca o que
É assim que podemos relacionar as seriam algumas das conquistas da moderni-
transformações econômicas da Europa do dade, como os direitos humanos e a distinção
século XVIII às obras de Rousseau, Voltaire, entre economia e poder. A preservação de
Diderot e Kant; a formação da kultur alemã a uma identidade universal seria fundamen-
Goethe; as contradições do Brasil do século tal para que a defesa da vida, da liberdade e
XIX, liberal e ao mesmo tempo escravista, à da propriedade seja tratada como imperativo
obra de Machado de Assis3; o surgimento do ético e jurídico para toda a humanidade4.
rock à ascensão da sociedade industrial; o rap A segunda posição vê problemas justa-
e o funk à resistência a um Estado, cujo não mente na noção de humanidade herdada da
reconhecimento de expressões culturais das modernidade iluminista, relacionando-a ao
minorias é também sinônimo de desprezo eurocentrismo e, por via de consequência, ao
aos pleitos por saúde, educação, moradia, colonialismo e ao imperialismo. Nesse senti-
trabalho e segurança. do, a pós-modernidade traduziria o desejo de
libertação de identidades e práticas culturais
Crise e identidade antes sufocadas pelo discurso universalista,
É nesse contexto de disputa entre senti- que, na verdade, restringia a humanidade ao
dos do mundo que se pode falar de uma crise homem branco europeu forjado sob as prá-
das identidades. A noção de crise das iden- ticas da economia mercantil. Com efeito, a
tidades aparece na forma de uma oposição pós-modernidade, mais que fragmentação
entre o que se convencionou chamar de mo- política, é a afirmação de “humanidades”, da
dernidade e o que se convencionou chamar de diversidade de perspectivas e modos de vida.
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
sociedade feudal, estática, segmentada e re- identidade, pela mesma lógica também cria
ligiosamente hierarquizada por outra socie- regras de exclusão. Tanto a classificação dos
dade, constituída de indivíduos que veem na indivíduos quanto o ato de inclusão/exclusão
autonomia racional da vontade uma condição são operados em última instância pelo poder
universal, e cujos laços sociais têm a forma de político. Achille Mbembe demonstra como
um contrato. Somente numa “sociedade de in- no final do século XIX a sociedade france-
divíduos livres e iguais” é que o poder político sa teve de se preparar para que a lógica do
aparece organizado como um poder centrali- “nacional-colonialismo” (em clara alusão
zado, “neutro” e exercido sobre determinado ao nacional-socialismo) pudesse “naturali-
território. É certo que a construção dessa nova zar” as atrocidades do colonialismo francês.
razão sobre o poder político e sobre o lugar dos Formado por instituições ligadas ao Estado,
indivíduos na sociedade inaugurada na mo- bem como por setores influentes da socieda-
dernidade não se deu de um dia para o outro. de francesa, o nacional-colonialismo visava
Nesse processo de formação dos Estados “normalizar” o tema da diferença racial na
é que reside a importância da nacionalidade cultura de massas “através do estabeleci-
como narrativa acerca de laços culturais, orgâ- mento de instituições como museus e jardins
nicos e característicos de determinado povo, zoológicos humanos9, publicidade, literatura,
que se assenta sobre determinado território, artes, constituição de arquivos, dissemina-
sob os auspícios de um poder político legíti- ção de narrativas fantásticas reportadas pela
mo. O que faz alguém pertencer a um Estado, imprensa popular e realização de exporta-
submeter-se às suas regras, cumprir suas leis, ções internacionais”10. Portanto, fez parte do
corroborar com seus modos de intervenção? projeto nacional a produção de um discurso
A resposta está na construção da identidade sobre o “outro”, tornando racional e emocio-
expressa na língua, nos modos de produzir a nalmente aceitável a conquista e a destruição
vida (cozinhar, por exemplo), nos gestos, nos daqueles com os quais não se compartilha
sentimentos, na sexualidade, nos padrões es- uma identidade:
téticos, na religião. Essas características não
resultam de um processo “espontâneo” ou Mas, para que se torne um hábito,
meramente ocasional, mas de mecanismos e a lógica das raças deve ser agregada à ló-
práticas de poder condicionadas por estrutu- gica do lucro, à política da força e ao ins-
ras político-econômicas, que atuam tanto no tinto de corrupção – esta é, em rigor, o
cotidiano quanto na lógica das grandes insti- que define a prática colonial. O exemplo
tuições, classificando indivíduos e atribuindo da França mostra, deste ponto de vista, o
identidades a grupos segundo características peso da raça na formação da consciência
raciais, religiosas, étnicas e sexuais. do império e o imenso trabalho que foi pre-
Do mesmo modo que o nacionalismo ciso desenvolver para que o significante
cria as regras de pertencimento dos indiví- racial – inseparável de qualquer esquema
duos a uma dada formação social, atribuin- colonial – penetrasse no interior das fibras
do-lhes ou reconhecendo-lhes determinada de vime da cultura francesa [...]11.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 65
Roberto Simonsen, G
ilberto Freyre15, Francis- outros países da Europa também ameaçam
co Campos e Ignácio Rangel16. sair da União Europeia, expondo as vísceras
de um pacto que agora ameaça implodir pela
Dilemas da cultura e sua incapacidade de fornecer respostas aos
ressignificação da política efeitos sociais da crise.
Em 23 de junho de 2016, a Inglaterra – O que aqui, no exemplo do Brexit, é
uma das referências do universalismo e ber- chamado de dilemas sociais não se restrin-
ço do capitalismo – aprova em plebiscito sua ge, como já se disse, a aspectos puramente
saída da União Europeia. Longe de ser um econômicos, mesmo porque até agora tra-
simples acordo diplomático, a União Euro- tamos a economia como uma relação social.
peia nasce de um arranjo político e econômico A economia é também a mobilização de ex-
entre Estados que já haviam experimentado pectativas, de energias, de valores, enfim, da
as tragédias de uma crise econômica, cujo cultura. A União Europeia é uma aposta no
resultado mais visível foi a Segunda Guerra universalismo e no projeto iluminista, e a
Mundial. Ele é portanto o estabelecimento Europa, como todos os demais continentes,
de uma Europa plurinacional, em que o “in- nunca foi apenas um “lugar”: acreditou-se
teresse europeu” sobrepujaria os nacionalis- que uma “cultura europeia”, um modo de vida
mos que tanto mal teriam causado ao velho “europeu”, tidos como padrões de civilidade
continente. Entretanto, outras interpretações e universalismo, pudessem de alguma forma
colocaram em dúvida se a fundação da União sobrepujar as culturas e os modos de vida re-
Europeia atendia ao chamado kantiano da gionais que se opunham.
“boa vontade”, interpretando a comunidade Por certo que o Brexit é apenas a mais
de Estados como um meio de impor, sem a recente e visível face de um mundo de incer-
consulta democrática às populações de cada tezas e em plena crise das identidades. Mas
país, o receituário político e econômico das há outras e talvez ainda mais significativas.
instituições financeiras sediadas em Bruxelas. A crise imigratória talvez seja a mais brutal
Afetada desde meados da década de 1970 pela e a que mais impacto exerce no campo da
crise que levou à supressão de muitos direitos cultura. A chegada à Europa de milhões de
garantidos pelo chamado Estado de bem-es- imigrantes africanos e do Oriente Médio,
tar social (ele próprio um arranjo pós-crise de vindos de países devastados pela mistura de
1929), parte importante da população inglesa, guerras e do receituário econômico que sus-
insuflada por um discurso nacionalista – pre- tenta a União Europeia, leva a um ambien-
dominantemente proferido pela extrema- te hostil em que o discurso da preservação
-direita, mas também apoiado por parte da dos empregos se entrelaça com a defesa de
esquerda crítica às instituições financeiras uma identidade cultural, dos nacionalismos,
internacionais sediadas em Bruxelas – votou quando não de um hiperindividualismo que
pela saída do bloco, decisão que ficou conhe- se caracteriza pela recusa da política.
cido por Brexit (junção das palavras inglesas Se por um lado, os nacionalismos redi-
British e exit). Na esteira do Reino Unido, vivos, o hiperindividualismo e a recusa da
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 67
política denotam a falência dos mecanismos global, que nos alerta para a dificuldade de
tradicionais da política universalista, por ou- as tradicionais instituições públicas e priva-
tro, há uma nítida reação de grupos que se das manterem sob controle a diversidade da
negam a cair nas armadilhas de uma diversi- vida e, por via de consequência, as diversas
dade que condena pessoas a categorias como culturas que brotam das franjas do mundo
“arte étnica” ou “world music” – geralmente diante da radicalidade devastadora da lógi-
reservadas a não europeus e não estaduni- ca mercantil. Mais do que nunca, os dilemas
denses – que lhes retiram a historicidade, da atual conjuntura histórica se revelam nos
que lhes roubam a possibilidade de ter outras conflitos da cultura e na cultura dos conflitos.
referências e de se manifestar fora do figuri- Nesse ponto, cabe-nos retornar aos
no que lhes foi imposto pelo capitalismo, pelo argumentos inicialmente propostos, e que
colonialismo e pelo racismo. visavam demonstrar a relação intrínseca en-
Nesse sentido, um olhar mais atento e tre cultura, política e economia. Viu-se uma
menos idealizado sobre a cultura tem pa- dependência recíproca entre a compreensão
pel fundamental, pois é por meio de suas da formação dos Estados e das economias e
múltiplas manifestações que podemos a descrição das transformações culturais, o
compreender a maneira como os diversos que fica demonstrado quando se verificam
grupos se posicionam estruturalmente em as ligações entre as crises econômicas, as es-
relação ao todo da vida social. Como falar tratégias de desenvolvimento e a construção
de democracia, de novas formas de parti- ideológica da nacionalidade e seus sujeitos.
cipação social, de combate à pobreza e de Todavia, afirmar o caráter estrutural da cul-
desenvolvimento sem que tais posições se- tura não significa determiná-la, reduzi-la à
jam compreendidas? institucionalidade e isso é justamente por-
A produção do espaço é condição sine que, relacionada à economia e à política, a
qua non de qualquer processo político, visto cultura é o lugar do conflito, fornecendo a
que o espaço é o lugar da partilha do sensível17, gramática tanto para a manutenção quanto
sem o que a luta política seria materialmente para a contestação da ordem.
impossível. É imperioso ler em conjunto e na Na relação estrutural e de conflito en-
chave da política, inclusive em suas contra- tre o político e o cultural, mais do que uma
dições, o fenômeno da ocupação das escolas simples reação de grupos que querem afir-
públicas18 em São Paulo e em outros lugares mar sua identidade, a afirmação estética de
do Brasil, a efervescência cultural das perife- pessoas negras, as festas funk, o rap e os sa-
rias, representadas por festas como o Batekoo raus nas periferias são, no plano da cultura,
e pelos festivais de rimas da cultura hip-hop, o índice de que está em curso um processo
os saraus de poesia e a afirmação estética da de ressignificação das concepções de demo-
população negra e periférica dos grandes cracia, de espaço público e de desenvolvi-
centros urbanos. E mais: talvez seja a hora mento, que em seus velhos moldes não mais
de ler esses acontecimentos locais e regio- são capazes de contemplar os anseios de um
nais como parte de algo maior, mais amplo, mundo em convulsão.
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
BASTOS, Pedro Zahluth; FONSECA, Paulo Cezar Dutra (Org.). A era Vargas:
desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Unesp, 2012.
CABRAL, Amilcar. Obras escolhidas: unidade e luta. Cabo Verde: Fundação Amilcar
Cabral, 2013. v. 1 e 2.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Silvio Luiz de Almeida 71
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011. v. 1.
HOBSBAWN, Eric. Nação e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2013. p. 31.
RANCIÈRE, Jacques. Estética e política: a partilha do sensível. São Paulo: Editora 34,
2009.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34,
2016. p. 11-12.
Filme
Notas
3 “Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios
da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato ‘impolítico
e abominável’ da escravidão. Este argumento – resumo de um panfleto liberal,
contemporâneo de Machado de Assis – põe fora o Brasil da ciência [...]. É claro que
a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo
eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências,
encobrindo o essencial – a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas ideias
seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original [...]” SCHWARZ,
Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2016. p. 11-12.
9 Sobre isso ver o filme: VÊNUS noire. Direção: Abdellatif Kechiche. Bélgica; França;
Tunísia: Imovision, 2010. 1 DVD (159 min).
13 Ver CABRAL, Amilcar. Obras escolhidas: unidade e luta. Cabo Verde: Fundação
Amilcar Cabral, 2013. v. 1 e 2; MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana (1923). Lima: Empresa Editorial Amauta, 1995.
2.
CULTURA, PRODUÇÃO E
REPRODUÇÃO DO IMAGINÁRIO
POLÍTICO: O SUBJETIVO NA SUA
MANIFESTAÇÃO OBJETIVA
IMAGINÁRIO E POLÍTICA:
A CONSTITUIÇÃO MATERIAL DA SUBJETIVIDADE
Rosane Borges
Este artigo tem como propósito assinalar o papel da política e do imaginário na formação
da subjetividade contemporânea, considerando que os sujeitos são forjados historicamente.
Parte do pressuposto que, numa época marcada pela hipervisibilidade, a política não pode
ser entendida apenas em sua dimensão racional, requerendo análises que tomam o circuito
dos afetos (SAFATLE, 2015) como nexo prioritário para pensarmos nos agenciamentos que
indivíduos e coletividades empreendem para o reconhecimento social.
E
des. Como se sabe, no painel exploratório so-
m tempos visivelmente marcados bre o tema prevaleceu uma tradição teórica
por novas configurações da política, que reservou ao campo político a responsa-
a necessidade renovada de delimitar bilidade de decidir sobre o destino do homem
as fronteiras de seu habitar e o perímetro de e da sociedade sob o crivo da racionalidade.
seu território se impõe de maneira inescapá- No entanto, vêm ganhando cada vez
vel. Como pensar e agir conforme as normas mais espessura as considerações (SAFATLE,
contemporâneas de modo a incidir nos con- RATTS, PINHO) de que a política não con-
flitos que regurgitam no tecido social? De que cerne tão somente à razão, fazendo emergir
maneira podemos pensar nas subjetividades pesquisas voltadas para os afetos e sensi-
emergentes? Como pensar a trajetória dos bilidades, imbricando razão, sentimentos e
sujeitos, uma vez que as crises que afligem política. Essa perspectiva franqueia novas
o capitalismo afetam as subjetividades dos possibilidades de pensar a relação entre po-
nossos tempos? lítica e estética.
Um dos endereços de resposta a essas Em seu mais recente livro, O Circuito
questões, entre os vários possíveis, encontra- dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o
-se no laço indissolúvel entre política e imagi- Fim do Indivíduo, o professor de filosofia da
nário, uma vez que partimos do entendimento Universidade de São Paulo (USP) Vladimir
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Rosane Borges 79
digitais em reação as essas imagens calci- Alex Ratts e Osmundo Pinho, professo-
ficadas. Se toda transformação corresponde res de geografia na Universidade Federal de
a uma mudança de sentido, de sua relevân- Goiânia (UFG) e de ciências sociais na Uni-
cia e de seu valor, quais os sentidos que a versidade Federal do Recôncavo da Bahia
negação das imagens estigmatizantes vêm (UFRB), respectivamente, empreenderam
instaurando? Que novos sujeitos poderão análises em que as corporeidades ocupam
surgir desses deslocamentos, já que o visí- posição central na dinâmica das hierarquias
vel vem cada vez mais conformando nos- socioespaciais. Para ambos, os corpos de ho-
sa existência? mens negros são geralmente racializados,
subdivididos, sexualizados, desumanizados,
Rumores (in)discretos da o que interfere diretamente nas formas em
subjetividade1: signos contra signos que esses corpos são inseridos nos desdo-
Segundo o filósofo Gilles Deleuze, bramentos da política.
“o pensamento clássico mantinha a alma Embora partam de lugares diferentes,
afastada da matéria e a essência do sujei- motivados por angulações diferenciadas, as
to afastada das engrenagens corporais. Os proposições desses autores são solidárias
marxistas, por sua vez, opunham as superes- entre si, bebem num poço comum, equili-
truturas subjetivas às relações de produção bram-se sobre elementos de uma mesma
infraestruturais. Como falar da produção de equação: despossuir os sujeitos de velhas
subjetividade hoje?” (2010, p. 32). identidades impostas, desobstruir vias para
Os slogans “Vai ter negra e gorda na que se abram às novas corporeidades, ado-
universidade!”, “Vai ter mulher na aviação tando o capital relativo aos afetos (entendi-
brasileira”, “Vai ter preta periférica e trans dos como aquilo que sinto, vejo e percebo)
na pós-graduação!”, “Respeitem meus cabe- como fonte para o “esclarecimento da na-
los, brancos!” sinalizam para novas formas tureza dos impasses dos vínculos sociopo-
de elaboração e exploração do político, em líticos” (SAFATLE, 2015).
que o ético e o estético se imbricam em be-
nefício da projeção de outras subjetivida- Imaginário: a orquestra que nos rege
des, do reposicionamento das engrenagens Esses rearranjos só são possíveis se
corporais em lugares de prestígio da luta so- acrescentarmos às nossas estratégias de
cial e da reflexão crítica. Signos emergen- reflexão e intervenção o exercício per-
tes/insurgentes rebatem signos “estáveis”, manente de interrogação das incidências
enrijecidos, carcomidos por visibilidades imaginárias vistas como uma matriz, uma
que não cabem mais nos estereótipos de atmosfera, uma fábrica que nos aloja na-
outrora. Perspectivas teóricas diversas se quilo que faz laço social. Política, repre-
reinvestem de outras balizas capazes de sentação e imaginário formam um tripé
responder aos apelos de problemas recor- incontornável, ainda que sobre ele pesem
rentes. Vejamos algumas posições entre as resistências justificadas pela crença de que
mais consistentes. a conquista do poder se dá pela disputa de
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
BORGES, Rosane. Agora é que são elas: pode a subalterna falar-escrever?. Revista
Fórum, nov. 2015.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? São Paulo:
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GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, São
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RATTS, Alex. Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base
acadêmica. Nguzu: revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA) da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, ano 1, n. 1, mar.-jul. 2011.
Nota
S
ojourner Truth, nome adotado em eles falando sobre direitos, os homens bran-
1843 por Isabella Baumfree, foi uma cos, muito em breve, ficarão em apuros. Mas
abolicionista afro-americana e ativis- em torno de que é toda essa falação?
ta dos direitos da mulher. Truth nasceu no Aquele homem ali diz que é preciso
cativeiro em Swartekill, Nova York. Em 1851, ajudar as mulheres a subir numa carrua-
Truth, que também foi oradora, fez seu dis- gem, é preciso carregar elas quando atra-
curso mais conhecido denominado E eu não vessam um lamaçal e elas devem ocupar
sou uma mulher? 1, na Convenção dos Direitos sempre os melhores lugares. Nunca nin-
da Mulher, na cidade de Akron, Ohio, Esta- guém me ajuda a subir numa carruagem, a
dos Unidos. Tal discurso, feito de improviso, passar por cima da lama ou me cede o me-
foi registrado por Frances Gage, feminista lhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem
e uma das autoras do grande compêndio de para mim! Olhem para meu braço! Eu ca-
materiais sobre a primeira onda feminista pinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros
denominado The History of Woman Suffrage. e homem nenhum conseguiu me superar! E
Porém, a primeira versão registrada foi feita não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar
por Marcus Robinson na edição de 21 de ju- e comer tanto quanto um homem – quando
nho de 1851 do Anti-Slavery Bugle2. tinha o que comer – e também agüentei as
chicotadas! E não sou uma mulher? Pari
Bem, minha gente, quando existe tama- cinco filhos e a maioria deles foi vendida
nha algazarra é que alguma coisa deve estar como escravos. Quando manifestei minha
fora da ordem. Penso que espremidos entre dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me
os negros do sul e as mulheres do norte, todos ouviu! E não sou uma mulher?
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 87
E daí eles falam sobre aquela coisa que interseccionalidade, ou seja, o feminismo ab-
tem na cabeça, como é mesmo que chamam? dicar da estrutura universal ao falar de mu-
(uma pessoa da platéia murmura: “intelec- lheres e levar em conta outras intersecções,
to”). É isto aí, meu bem. O que é que isto como raça, orientação sexual e identidade
tem a ver com os direitos das mulheres ou de gênero, foi atribuído mais fortemente à
os direitos dos negros? Se minha caneca não terceira onda do feminismo, sendo Judith
está cheia nem pela metade e se sua caneca Butler um dos grandes nomes. Porém, o que
está quase toda cheia, não seria mesquinho percebemos com o discurso de Truth e com
de sua parte não completar minha medida? as feministas negras estadunidenses como
Então aquele homenzinho vestido de Bell Hooks e Audre Lorde, que na década de
preto diz que as mulheres não podem ter 1970 já denunciavam a invisibilidade das
tantos direitos quanto os homens porque mulheres negras como sujeito do feminis-
Cristo não era mulher! Mas de onde é que mo, é que esse debate já vinha sendo feito. O
vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? problema então seria sua falta de visibilida-
De Deus e de uma mulher! O homem não de. Tal discussão já vem sendo feita desde a
teve nada a ver com Ele. primeira onda, como mostra Truth, por mais
Se a primeira mulher que Deus criou que não a consideremos feminista na acep-
foi suficientemente forte para, sozinha, ção do termo, assim como na segunda onda,
virar o mundo de cabeça para baixo, então apesar de ambas não serem caracterizadas
todas as mulheres, juntas, conseguirão mu- por esse tipo de reivindicação.
dar a situação e pôr novamente o mundo de
cabeça para cima! E agora elas estão pedin- É minha sugestão que as supostas
do para fazer isto. É melhor que os homens universalidade e unidade do sujeito do fe-
não se metam. minismo são de fato minadas pelas restri-
Obrigada por me ouvir e agora a ve- ções do discurso representacional em que
lha Sojourner não tem muito mais coisas funcionam. Com efeito, a insistência pre-
para dizer. matura num sujeito estável do feminismo,
compreendido como uma categoria uma das
Esse discurso de Truth, ainda no sécu- mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas
lo XIX, já evidencia um grande dilema que recusas a aceitar essa categoria. Esses domí-
o feminismo viria a enfrentar: o tema da in- nios de exclusão revelam as conseqüências
terseccionalidade3. Esse debate em torno da coercitivas e reguladoras dessa construção,
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
mesmo quando a construção é elaborada com tinha o que comer – e também agüentei as
propósitos emancipatórios. Não há dúvida, chicotadas! E não sou uma mulher? Pari
a fragmentação no interior do feminismo cinco filhos e a maioria deles foi vendida
e a oposição paradoxal ao feminismo – por como escravos. Quando manifestei minha
parte de “mulheres” que o feminismo afirma dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me
representar – sugerem os limites necessá- ouviu! E não sou uma mulher?
rios da política de identidade. A sugestão de
que o feminismo pode buscar representação não estaria ela já denunciando que mulhe-
mais ampla para um sujeito que ele próprio res negras eram tratadas diferentemente em
constrói gera a conseqüência irônica de que relação às mulheres brancas? Que a inter-
secção de raça deveria ser levada em con-
os objetivos feministas correm o risco de fra-
cassar, justamente em função de sua recusa sideração? Truth, por meio de sua vivência
a levar em conta os poderes constitutivos de como mulher negra ex-escrava, já no século
suas próprias reivindicações representacio- XIX, apontava para o fato de que, ao se falar
nais. (BUTLER, 2003, p. 22). de direitos das mulheres, o sujeito represen-
tado não era o sujeito mulher negra. E essa
Nessa citação, Butler está problemati- pergunta, aparentemente tão simples, tam-
zando o quanto a unidade da categoria mu- bém pode ser utilizada para outros sujeitos
lheres é excludente no sentido de deixar de mulheres, como mulheres trans e mulheres
fora muitas outras identidades. Mas quando não ocidentais.
Truth diz Truth, já em 1851, desafiava o modo
pelo qual as representações do feminismo
Aquele homem ali diz que é preciso estavam sendo concebidas; já nos dava uma
ajudar as mulheres a subir numa carrua- pista sobre como o movimento estava se or-
gem, é preciso carregar elas quando atra- ganizando de modo a privilegiar vozes que,
vessam um lamaçal e elas por mais oprimidas que fos-
devem ocupar sempre os O que a voz de Sojouner sem, obtinham algum tipo
melhores lugares. Nunca traz, além de inquietações de privilégio.
ninguém me ajuda a subir e da necessidade de existir, O que a voz de Sojouner
numa carruagem, a pas- é a evidência de que as traz, além de inquietações e
sar por cima da lama ou
vozes esquecidas pelo da necessidade de existir, é a
feminismo já tratavam há
me cede o melhor lugar! evidência de que as vozes es-
muito tempo da questão:
E não sou uma mulher? quecidas pelo feminismo já
Por que demoraram tanto
Olhem para mim! Olhem a ouvir essas vozes? tratavam há muito tempo da
para meu braço! Eu capi- questão: Por que demoraram
nei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e tanto a ouvir essas vozes? A voz de Truth não
homem nenhum conseguiu me superar! E traz somente uma disfonia em relação à his-
não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar tória dominante do feminismo, mas também
e comer tanto quanto um homem – quando em relação à urgência por existir.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 89
Audre Lorde no texto As ferramen- racista são usadas para examinar os frutos
tas do mestre não vão desmantelar a casa do mesmo patriarcado? Significa que ape-
grande4, de 1979, nos dá uma perspectiva nas os perímetros mais estreitos de mudan-
muito interessante: ça são possíveis e admissíveis.
[...] Promover a mera tolerância de
Eu concordei em fazer parte da con- diferença entre mulheres é o reformismo
ferência do New York University Institute mais nojento. É uma total negação da fun-
for the Humanities um ano atrás, com o en- ção criativa da diferença em nossas vidas. A
tendimento de que eu iria comentar sobre diferença não deve ser meramente tolerada,
trabalhos que lidam com o papel da diferen- mas vista como um fundo de polaridades ne-
ça dentro das vidas de mulheres america- cessárias entre as quais nossa criatividade
nas: diferença de raça, sexualidade, classe pode faiscar como uma dialética. Apenas
e idade. A ausência destas considerações então a necessidade de interdependência
enfraquece qualquer discussão feminista se torna não ameaçadora. Apenas dentro
do pessoal e do político. dessa interdependência de forças diferentes,
É uma arrogância acadêmica particu- reconhecidas e iguais, o poder de procurar
lar supor qualquer discussão sobre teoria novos meios de ser no mundo pode gerar, as-
feminista sem examinar nossas muitas sim como a coragem e o sustento para agir
diferenças, e sem uma contribuição signi- onde não existem alvarás.
ficante das mulheres pobres, negras e do [...] Como mulheres, nós fomos ensina-
terceiro mundo, e lésbicas. E, ainda assim, das a ou ignorar nossas diferenças, ou vê-las
estou aqui como uma feminista negra e como causas de separação e suspeita em vez
lésbica, tendo sido convidada a comentar de forças para serem mudadas. Sem comu-
no único painel nesta conferência no qual nidade não há libertação, apenas o armistí-
dados sobre feministas negras e lésbicas cio mais vulnerável e temporário entre um
são representados. O que isto diz sobre a indivíduo e sua opressão. Mas comunidade
visão desta conferência é triste, num país não deve significar uma queda de nossas di-
onde racismo, sexismo e homofobia são ferenças, nem a pretensão patética de que
inseparáveis. Ler esta programação é pre- essas diferenças não existem.
sumir que mulheres lésbicas e negras não Aquelas de nós que estão fora do cír-
têm nada a dizer sobre existencialismo, o culo da definição desta sociedade de mu-
erótico, a cultura e o silêncio das mulheres, lheres aceitáveis, aquelas de nós que foram
o desenvolvimento da teoria feminista, ou forjadas no calvário da diferença – aquelas
heterossexualidade e poder. E o que signifi- de nós que são pobres, que são lésbicas, que
ca em termos do pessoal e do político quan- são negras, que são mais velhas – sabem
do mesmo as duas mulheres negras que que sobrevivência não é uma habilidade
estão aqui presentes foram literalmente en- acadêmica. É aprender como estar sozi-
contradas na última hora? O que significa nha, impopular e às vezes injuriada, e como
quando as ferramentas de um patriarcado criar causa comum com aquelas outras que
Eu capinei, eu
plantei, juntei palha
nos celeiros e homem
nenhum conseguiu
me superar! E não
sou uma mulher? Eu
consegui trabalhar e
comer tanto quanto
um homem – quando
tinha o que comer – e
também agüentei as
chicotadas! E não sou
uma mulher?”
(Sojourner Truth)
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
se identificam como fora das estruturas a mulheres, como fica a cooperação interra-
fim de definir e buscar um mundo no qual cial entre feministas que não amam umas
todas nós possamos florescer. É aprender às outras?
como pegar nossas diferenças e transfor- Em círculos acadêmicos feministas,
má-las em forças. Pois as ferramentas do a resposta a essas perguntas é quase sem-
mestre não irão desmantelar a casa do pre: “Nós não sabíamos a quem perguntar”.
mestre. Elas podem nos permitir tempo- Mas é a mesma evasão de responsabilidade,
rariamente a ganhar dele em seu jogo, mas o mesmo esquivar-se, que mantém a arte
elas nunca vão nos possibilitar a causar de mulheres negras fora de exposições de
mudança genuína. E este fato é somente mulheres, o trabalho de mulheres negras
ameaçador àquelas mulheres que ainda de- fora da maioria das publicações feministas
finem a casa do mestre como a única fonte exceto na ocasional Edição Especial sobre
de apoio delas. Mulheres do Terceiro Mundo, e textos de
Num mundo de possibilidade para mulheres negras fora de suas listas de lei-
todas nós, nossas visões pessoais ajudam a tura. Mas como Adrienne Rich destacou
montar a base para ação política. O fracasso numa palestra, feministas brancas se edu-
de feministas acadêmicas em reconhecer caram em enormes porções nos últimos dez
diferença como uma força crucial é um anos, por que vocês ainda não se educaram
fracasso de ultrapassar a primeira lição pa- sobre mulheres negras e as diferenças en-
triarcal. No nosso mundo, dividir e dominar tre nós – brancas e negras – quando é algo
precisam se tornar definir e empoderar. chave para nossa sobrevivência enquanto
[...] Se a teoria de feministas ameri- um movimento?
canas brancas não precisa lidar com as di- Mulheres de hoje ainda são chamadas
ferenças entre nós e a diferença resultante a se estenderem através do vão da ignorân-
em nossas opressões, então como você lida cia masculina e educarem os homens sobre
com o fato de que mulheres que limpam suas nossa existência e nossas necessidades.
casas e tomam conta de suas crianças en- Esta é uma ferramenta antiga e primária
quanto você vai a conferências sobre teoria de todos os opressores para manter pessoas
feminista são, na maior parte, mulheres po- oprimidas ocupadas com as preocupações
bres e mulheres negras? Qual é a teoria por do mestre. Agora nós ouvimos que é tare-
trás do feminismo racista? fa de mulheres negras educarem mulheres
Por que outras mulheres negras não brancas – em face de tremenda resistência –
foram encontradas para participar desta sobre nossa existência, nossas diferenças,
conferência? Por que dois telefonemas a nossos papéis relativos em nossa sobrevi-
mim foram considerados uma consulta? vência conjunta. Isto é um desvio de ener-
Eu sou a única fonte possível de nomes do gias e uma repetição trágica de pensamento
Feminismo Negro? E apesar de o trabalho racista e patriarcal.
da palestrante negra terminar numa cone- Simone de Beauvoir disse uma vez: “É
xão importante e poderosa de amor entre no conhecimento de condições genuínas
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 93
de nossas vidas que devemos chamar nossa as estruturas para que uma real emancipa-
ção se concretize. Aponta para os limites da
força para viver e nossas razões para agir”.
Racismo e homofobia são condições política de representação, do modo pelo qual
o movimento opera, não somente pela uni-
reais de todas as nossas vidas neste lugar
e época. Eu incito cada uma de nós aqui aversalização da categoria mulheres – o que é
um erro e também apagamento de múltiplas
descer até aquele lugar profundo de conhe-
identidades –, mas também porque o movi-
cimento dentro de si e tocar esse terror e
mento ainda busca a emancipação dentro dos
ódio a qualquer diferença que vive lá. Veja
moldes preestabelecidos.
de quem é a face que ele usa. Então o pessoal
enquanto o político pode começar a iluminar Esses questionamentos apontam para
todas as nossas escolhas. a importância de discutir a identidade como
um deslocamento, trazendo a possibilidade
Audre Lorde propõe que se repense a de ressignificação e remodelação com o ob-
ação política do feminismo. Ao dizer que “as jetivo de propor rupturas nas velhas corren-
ferramentas do mestre não tes de pensamento, fazendo
desmantelarão a casa gran- Se as ferramentas do assim com que elementos
de”, ela aponta para o fato de mestre não desmantelarão novos e velhos se reagrupem
que o modelo de representa- a casa grande, quais ao redor de uma nova gama
ção utilizado pelo feminis- ferramentas seriam de paradigmas.
mo até então é insuficiente. necessárias para contemplar Trata-se de construir
Evidencia que outras vozes as múltiplas identidades? teorias com o intuito de pen-
precisam ser ouvidas e que a sar outros direcionamentos
universalização deixa de fora muitas iden- ou mesmo questionar o que se compreen-
tidades contidas nesse ser mulher. Há uma de em nossa sociedade como gênero, sexo,
demanda reprimida, não se pode negar. sexualidade, raça, corpo, sujeitos políticos
Mulheres negras, por exemplo, neces- e identidades.
sitam de mais representatividade e políticas O arcabouço teórico crítico trazido pelo
públicas direcionadas. Assim como mulheres feminismo negro evidencia a importância de
trans, lésbicas. Entretanto, esse modelo nos observar que as marcações que promovem a
faz questionar se o abarcamento de múlti- interseccionalidade da produção de identi-
plas identidades na ação política também dades são múltiplas categorias e definições
não criaria uma nova normatividade. Lorde e, nesse sentido, apontam para a necessidade
estaria certa ao dizer que são necessárias de um caminho descontínuo, sem fórmulas
outras ferramentas? fechadas. Caminhos esses que confrontam,
Se as ferramentas do mestre não des- questionam e desconstroem paradigmas no
mantelarão a casa grande, quais ferramentas que diz respeito a (re)pensar as representa-
seriam necessárias para contemplar as múl- ções dos sujeitos. Não há uma resposta ab-
tiplas identidades? Como podemos observar, soluta, o caminho é estar disponível a fazer
Lorde acredita que é necessário romper com novas perguntas.
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mem-
bro fundadora do Mapô – Núcleo de Estudos Interdisciplinar em Raça, Gênero e Sexuali-
dade da Unifesp; e colunista do site Carta Capital e do Blog da Boitempo.
Referências bibliográficas
______. Nossos feminismos revisitados. In: RIBEIRO, Matilde (Org.). Dossiê mulheres
negras. Estudos Feministas, revista do Centro de Filosofia e Ciências Humanas
(CFH)/Centro de Comunicação e Expressão (CCE) da UFSC, Florianópolis, v. 3,
n. 3, 1995.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo – fatos e mitos. Tradução Sérgio Milliet. 4. ed. São
Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.
_____. O segundo sexo – a experiência vivida. Tradução Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo:
Difusão Europeia do Livro, 1980.
HOOKS, Bell. Feminism is for everybody: passionate politics. [S.l.]: Pluto Express, 2000.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Djamila Ribeiro 95
Notas
4 Texto lido por Audre Lorde no painel Personal or the Political – II/
Conference on the Feminist Theory/New York, 1979. Disponível em:
<http://www.geledes.org.br/mulheres-negras-as-ferramentas-do-
mestre-nunca-irao-desmantelar-a-casa-do-mestre/?fb_comment_
id=fbc_144656479070889_118922_144665202403350#f4aad6258>.
Acesso em: 20 maio 2016. Áudios da palestra disponíveis em:
<http://herstories.prattinfoschool.nyc/omeka/document/50> [Nota do editor].
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
A
experiência cultural brasileira, fru- mento eurocêntrico, capaz de subjugar as vá-
to de intenso e complexo processo rias culturas não ocidentais envolvidas nesse
de caldeamento, tem servido até os processo. Não que queiramos aqui vitimizar
dias atuais para sustentar, sobretudo, a ideia os excluídos, mas devemos compreender as
de uma sociedade singular, supostamente ca- motivações que os levaram à condição de
paz de lidar bem com toda a sua diversidade. condenados da terra, de acordo com as re-
Todavia, um olhar mais meticuloso sobre flexões de Frantz Fanon1.
essa realidade permitirá a observação do O legado das teses racialistas produ-
seguinte paradoxo: somos um país de gran- zidas no século XIX forneceu ao racismo
de diversidade, o que não significa dizer ne- um caráter “científico” que alimentou a
cessariamente que aqui prevaleça o respeito construção de olhares estereotipados por
às diferenças. A sociedade constituída neste longo período. “Pérolas” como o determinis-
território, bem como as demais resultantes mo geográfico, assentado na noção de que
da colonização, sofreu o impacto do pensa- o desenvolvimento cultural resultaria das
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 97
condições climáticas e de que, nessa pers- senso comum, e mesmo a determinados es-
pectiva, as sociedades tropicais represen- paços mais especializados, algumas noções
tariam o atraso; o determinismo biológico, retrógradas acerca das diferenças étnico-ra-
baseado no entendimento de que o desen- ciais e culturais são fluidas.
volvimento humano estaria condicionado Partindo dos argumentos expostos,
a vantagens ou desvantagens genéticas quem sabe possamos definir as bases que
que poderiam ser mensuradas em relação sustentam a discussão em torno da relevân-
a cada segmento, leia-se “raça”; o evolucio- cia de perspectivas excêntricas para pen-
nismo unilinear alicerçado na ideia de que sarmos nas artes e nas culturas produzidas
a “evolução” humana se constitui em via aqui. Conduta que se torna necessária ante
de mão única, considerando as sociedades a permanência de discursos hegemônicos
europeias como modelos a ser perseguidos propensos a inviabilizar o acesso ao conhe-
pelas demais. Essas ideias são abordagens cimento produzido por segmentos histori-
conservadoras e problemáticas que ain- camente marginalizados. Aliás, a questão
da não foram completamente sepultadas. do conhecimento apresenta-se como chave
Todo esse repertório é fruto da aterradora para a desconstrução da lógica eurocêntri-
experiência que procurou desqualificar “os ca, pois quase toda nossa educação formal
outros” não ocidentais. Os ecos desse pas- está baseada na centralidade do conheci-
sado ainda reverberam na contemporanei- mento produzido pelo ocidente, haja vista a
dade, apesar da atualidade do debate sobre estruturação de programas e currículos que
questões alusivas ao multiculturalismo e à vão desde a formação básica até o ensino su-
diversidade cultural. perior. As alterações substanciais sofridas
As práticas mencionadas tiveram e, em na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
certa medida, continuam a ter forte impacto Brasileira a partir da formulação de leis fe-
sobre as alteridades constituídas por povos derais compulsórias, como a 10.639/2003
cujas referências culturais são historica- e a 11.645/2008, que exigem o imediato en-
mente distintas do padrão estabelecido a volvimento docente com os conteúdos que
partir da relação metrópole/colônia. Apesar tratem das histórias e culturas africanas,
dos esforços para a desconstrução de pensa- afro-brasileiras e ameríndias, representam
mentos que no limite deságuam nas fobias, um avanço. Todavia, o comprometimento
ainda há muito por ser feito. No que tange ao das instituições de ensino superior do país
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
de estímulo à imigração europeia, no anseio mecenato capaz de viabilizar seu espaço físi-
de modernização do país e na vã esperança co. Até 1968, antes do autoexílio nos Estados
de que as presenças indígena e negra um dia Unidos, Abdias Nascimento, fundador do
se tornassem residuais por aqui. TEN, procurou obstinadamente apoio para
Conforme Elisa Larkin Nascimento, instaurar a sede do MAN, sem lograr êxito.
a primeira reviravolta concernente aos es- Ao retornar ao país, durante o processo de
tudos afro-brasileiros teria ocorrido nos abertura política, Nascimento se deparou
anos 1950 com o surgimento do interesse com novos desafios, que provavelmente lhe
de uma parcela de pesquisadores brasilei- tiraram o foco no que tange às aspirações de
ros pelos processos de descolonização da constituição daquele espaço cultural. Fale-
África. Essa tendência teria modificado ceu em 2011, conseguindo fazer do MAN um
substancialmente o modo de ver o conti- museu virtual abrigado pelo sítio do Institu-
nente africano, postura distinta daquela to de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros
predominante assumida por africanistas (Ipeafro), hoje sob coordenação de sua es-
avessos ao debate racial e que enxergavam posa, Elisa Larkin Nascimento.
as culturas africanas e afro-brasileiras com Atendo-nos ainda aos meados do século
certos vícios, ainda sobrecarregadas pelo passado, podemos dizer seguramente que
peso do imaginário do século XIX. o desenvolvimento do Projeto Unesco3 no
Segundo o crítico de arte Mário Pedro- Brasil também cooperou para as mudanças
sa, citado por Lúcia Santaella no livro Arte de rumo nos estudos voltados à diversidade
& Cultura: Equívocos do Elitismo, em uma étnico-racial e cultural brasileira. A partir
dessas reviravoltas históricas, o ocidente, dos anos 1960, o golpe civil-militar impõe
ao colonizar e explorar determinados povos um longo jejum político-cultural ao país,
não ocidentais, acabou revelando aspectos tornando os movimentos sociais proscritos
surpreendentes de suas culturas que não e os assuntos polêmicos como o racismo
imaginava existir. subversivos. Posteriormente, da segunda
Felizmente, interpretações distintas metade da década de 1970 em diante, ante
das mais conservadoras foram possíveis. um nítido desgaste do regime autoritário
O legado do Teatro Experimental do Negro e da rearticulação dos movimentos sociais
(TEN) nos anos 1940 e 1950, em particu- ainda na clandestinidade, começam a se
lar no que se refere às teses e discussões redesenhar as lutas populares. Em relação
proporcionadas pelo I Congresso do Negro ao movimento negro, por exemplo, foi pos-
Brasileiro, merece atenção. Os debates acer- sível constatar o surgimento de uma nova
ca de uma dessas teses, intitulada Estética tendência dentro das universidades: reivin-
e Negritude, resultaram na formulação da dicava-se que o segmento afro-brasileiro
proposta de criação do Museu de Arte Ne- deixasse de ser apenas objeto de pesquisa
gra (MAN), que lamentavelmente, apesar para se tornar sujeito da pesquisa. Alguns
de receber várias doações de obras de artis- registros constantes no filme documentá-
tas do modernismo, jamais encontrou um rio Ori: Cabeça e Consciência Negra, dirigido
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 101
pela cineasta Raquel Gerber e baseado no de pessoas negras nos programas de pós-
argumento da historiadora Beatriz Nas- -graduação, com foco também na carreira
cimento, evidenciam a emergência dessa docente. Tanto o Copene quanto a ABPN
conduta coletivizada. Tanto Gerber quanto continuam a desempenhar seus ofícios re-
Nascimento participaram intensamente dos presentando um flanco das lutas culturais
debates realizados na Quinzena do Negro na contra-hegemônicas no que se refere à in-
USP, e nas imagens capturadas por Gerber clusão dos excluídos em um espaço de pres-
ficam nítidas as aspirações do ativismo afro tígio e poder como a universidade, além de
em relação à inserção da população negra colocar sob questionamento a permanência
no espaço acadêmico, como protagonista. e prevalência de currículos eurocêntricos
Outro episódio relevante foi a realiza- nas instituições acadêmicas que formam a
ção em 1983 no Brasil do III Congresso de elite cultural do país.
Culturas Negras das Américas, coordena- A diversidade étnico-racial e cultural
do por Abdias Nascimento e que também é algo mais complexo do que imaginamos,
é objeto de análise do filme e o caso brasileiro não che-
mencionado. Durante o Em relação ao movimento ga a ser tão distinto quanto
evento, foi possível consta- negro, por exemplo, muitos ainda acreditam. Da
tar diferenças, mas por outro foi possível constatar perspectiva de superação da
lado várias afinidades entre o surgimento de uma hegemonia ocidental, esses
nova tendência dentro
os povos que constituem as são apenas alguns exemplos.
das universidades:
culturas afro-americanas. Os povos indígenas também
reivindicava-se que o
Por afro-americano quero segmento afro-brasileiro possuem um histórico de
aludir não apenas ao povo deixasse de ser apenas enfrentamentos e algumas
negro estadunidense, mas objeto de pesquisa para se conquistas em meio a pro-
também aos diversos povos tornar sujeito da pesquisa. cessos de constante afir-
de origem africana que a par- mação de suas identidades.
tir do tráfico atlântico de almas e do advento Em determinados momentos, algumas
da escravidão moderna passaram a habitar alianças entre negros e indígenas foram
o chamado Novo Mundo, constituindo a estabelecidas em busca do fortalecimento
diáspora africana. de ambos os segmentos nas lutas por visi-
Após anos de debates voltados para a bilidade e reconhecimento. Tais parcerias
formação de uma expressiva intelectuali- continuam sendo substanciais como estra-
dade negra neste país, é fundada em 2000, tégias contra-hegemônicas. Uma das mais
durante o I Congresso Brasileiro de Pesqui- emblemáticas talvez tenha sido aquela que
sadores Negros (Copene), na Universidade resultou em manifestação pública na cidade
Federal de Pernambuco (UFPE), a Asso- de Porto Seguro durante as comemorações
ciação Brasileira de Pesquisadores Negros dos 500 anos do “descobrimento” do Bra-
(ABPN), cujos objetivos principais estão sil, realizadas em 2000. Manifestação que,
voltados para a participação mais efetiva por reivindicar políticas públicas voltadas
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
para ambas as populações esquecidas ao sobre o país. Para cada módulo foi elabora-
longo de cinco séculos, foi duramente re- do um catálogo, todos eles com perceptíveis
primida pelo aparato de segurança do Es- qualidades tanto no que se refere à forma
tado. No dia seguinte, os jornais, inclusive quanto ao conteúdo. Destaca-se o equilíbrio
os da grande imprensa, estampavam nas nas curadorias, nas expografias e na produ-
primeiras páginas os dois lados, duas ma- ção dos materiais impressos, tratando-se
neiras contraditórias de enxergar o mesmo da arte acadêmica do século XIX ou da arte
acontecimento. O propósito do governo de popular. A preocupação no modo de lidar
Fernando Henrique Cardoso de promover com os acervos, fossem de arte barroca, fos-
uma grande celebração em torno da data, sem de arte indígena, parecia semelhante. O
abafando as vozes dissonantes levantadas cuidado com as informações a respeito da
naquele momento, não foi plenamente arte produzida pelos viajantes sobre o país
bem-sucedido, pois o protesto dos que não ou da arte afro-brasileira era análogo.
encontravam sentido em tais festejos se Muito provavelmente esse gesto ado-
tornou público e, apesar da repressão, não tado pelos idealizadores dessa imensa ex-
pôde ser emudecido. Tensões semelhantes posição seja uma resposta no campo das
ocorreram no período de comemoração dos artes às questões apresentadas por alguns
500 anos da conquista da América em 1992, movimentos sociais em prol das suas iden-
quando lideranças dos povos autóctones do tidades culturais preteridas. São raros os
continente se contrapuseram às narrativas momentos da nossa história em que tama-
mestras em evidência. nha convergência se estabeleça. Ainda que
Em meio às tensões decorrentes da em 2000 a euforia em torno dos 500 anos
homenagem ao feito de Pedro Álvares Ca- da chegada dos portugueses parecesse
bral, aconteceu uma megaexposição no incontrolável por um lado, a urgência de
complexo da Bienal de São um debate acerca da diver-
Paulo, intitulada Mostra do O trabalho organizado sidade cultural brasileira
Redescobrimento, também por Zanini se constitui em tornava-se impostergável,
conhecida como Mostra provocação necessária a fim por outro. O discurso hege-
de que superemos os velhos
Brasil + 500, cujo objetivo mônico sobre o mito funda-
modelos de hierarquização
era agregar as diferentes dor da nação não se mostrou
cultural que contaminaram
produções artísticas que tantas produções na suficientemente capaz de
contribuíram e contribuem história da arte. ofuscar os posicionamen-
para explicar os imaginários tos assumidos por parcelas
dos segmentos formadores da nação bra- expressivas de grupos socialmente vulne-
sileira. Conforme estudos desenvolvidos ráveis. Isso, de acordo com o pensamento
recentemente pela pesquisadora Renata de Antonio Gramsci5, é resultado das arti-
Felinto, o projeto coordenado por Nelson culações contra-hegemônicas que atuando
Aguilar resulta na constituição de 12 mó- em espaços inadvertidamente deixados pela
dulos4 que representam narrativas visuais hegemonia alcança inclusive parcelas dos
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Nelson Fernando Inocêncio da Silva 103
museus coloniais. Além do mais, é sempre densas reflexões que subsidiem compreen-
bom lembrar, tomando como referência as sões, para além de achismos. Por certo, há
ideias de Louis Althusser, que os museus, maneiras de lidar com as artes e as cultu-
tradicionalmente falando, também cons- ras das alteridades brasileiras. É possível
tituem os aparelhos ideológicos de Estado. ir da banalização à relação responsável
Agregados aos meios de comunicação, às com tais universos a depender do nível de
escolas, aos templos de culto das religiões interesse e entendimento do que vem a ser
hegemônicas e a outras instituições, ope- diversidade étnico-racial e cultural. Fugir
ram na manutenção de certos valores a fim das armadilhas da constante espetacula-
de eternizá-los. rização do outro também se tornou uma
Não obstante, é possível dizer que o pro- necessidade premente, embora nesse per-
jeto do Afro Brasil difere substancialmen- curso o ambiente pareça um tanto árido e
te daquilo que alimentamos no imaginário sem muitas chances de encontrar um di-
como um museu, bem como outras expe- ferencial na paisagem. O que de fato urge
riências nāo convencionais de instituições ser feito é superar os limites impostos pela
museais espraiadas pelo país. É provável sociedade de consumo, que alimenta um
também que o MAB compartilhe com pes- permanente utilitarismo das artes e cultu-
quisadores vinculados à Nova Museologia7 ras aqui mencionadas.
o interesse por algumas questões emergen- À guisa de conclusão, vale dizer que
ciais, a exemplo das provocações conceituais ninguém, a rigor, deixará de ser preconcei-
feitas por Duncan Cameron em seu artigo in- tuoso por gostar de certos produtos cultu-
titulado The Museum: a T emple or a Forum, rais e artísticos elaborados pelos segmentos
publicado no início dos anos 1970. A partir socialmente vulneráveis. O que altera subs-
das problematizações apresentadas por essa tancialmente a disposição para superar as
tendência, podemos fazer conexões com de- ameríndiofobias, as afrofobias e outros
terminados projetos que emergiram nas pe- temores é a disposição para enfrentar os
riferias das grandes cidades, como o Museu fantasmas do passado que amedrontam o
de Quilombos e Favelas Urbanas (Muquifu) presente. Ainda é recorrente, no que se re-
em Belo Horizonte e o Museu da Maré, no fere ao imaginário da cultura brasileira, a
Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. crença de que os brasileiros são mais tole-
Elencamos aqui apenas algumas ini- rantes que os demais povos, mas no final das
ciativas culturais e artísticas contra- contas tudo é uma questão de ponto de vista.
-hegemônicas protagonizadas tanto por Sociedade ideal não existe aqui e provavel-
parcelas de segmentos socialmente vulne- mente não exista em lugar nenhum. Para
ráveis quanto por seus aliados e colaborado- o devir fica às supostas minorias citadas,
res pertencentes, inclusive, a fragmentos de com seus intelectuais orgânicos e aliados,
grupos hegemônicos. Essas argumentações o compromisso de ao menos manter acesa
demonstram que as relações no campo das a chama de um debate que não é inédito mas
artes e da cultura são complexas e exigem sempre enseja novas discussões.
No limiar do
século XXI, é possível
alegar que as vertentes
indígena, negra e
popular com suas
culturas e saberes,
inclusive no plano
da cognição estética,
vêm estabelecendo
desafios e ameaçando
paradigmas
eternizados pela
tradição ocidental.”
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
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ZANINI, Walter. História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira
Salles, 1983.
Notas
6 Até 2013, ano em que concluí tese de doutorado sobre o Museu Afro Brasil, a
instituição apresentava ao público os seguintes módulos: África: Resistências
e Permanências; Trabalho e Escravidão; Religiões Afro-Brasileiras; O Sagrado
e o Profano; Personalidades Negras; e A Mão Afro-Brasileira: Artes Plásticas.
Além desses espaços, o museu possui ambientes destinados às mostras de
curta duração, o auditório Ruth de Souza, a biblioteca Carolina Maria de Jesus,
locais apropriados para atividades com o público, conduzidas pelo programa
educativo, salas para armazenamento da reserva técnica, oficina de restauração
e setor administrativo.
PERCEPÇÕES DO ATLÂNTICO –
ANTROPOLOGIA ESTÉTICA, PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO E ANTIRRACISMO
Goli Guerreiro
P
rescindir de imagens ao escrever so- estúdios fotográficos em Dakar; jam sessions
bre terceira diáspora é, no mínimo, em Freetown.
desafiador, visto que tal ideia remete Terceira diáspora é o deslocamento de
justamente a uma teia de referências na qual signos – textos, sons, imagens – provocado
fragmentos de textos dialogam com imagens pelo circuito de comunicação da diáspora
produzidas em O Atlântico Negro (GILROY). africana. Por meio da web, coloca em cone-
Essa teia cita e remixa a extraordinária ri- xão digital os repertórios culturais de cidades
queza deflagrada pela diáspora africana e o atlânticas. Ícones, modos, músicas, filmes, ca-
vigor de sua produção cultural. Percepções belos, gestos, livros passam a ser virtualmente
do Atlântico bem poderia se chamar o es- compartilhados. Os posts que lhe dão forma
toque de imagens, apresentado como uma e conteúdo são rastreados nas periferias, nos
mostra de belos exemplos da criatividade que centros e nas encruzilhadas do mundo negro.
se desloca nesse oceano de signos. Isso é antropologia estética. Ela não
Escritas africanas em Salvador; pro- busca explicar e sim fazer perceber. Para
dução cinematográfica em Lagos; sante- Merleau-Ponty, “a percepção é uma expe-
ria em Nova York; steelbands em Londres; riência incorporada” (apud IROBI, 2012, p.
sapeurs em Paris; cafés literários em For- 275). François Laplantine acrescenta: “A per-
t-de-France; galerias de arte em Luanda; cepção, de fato, é suscetível de fazer variar as
lanhouses em Uidá; hip-hop em Havana; situações às quais somos confrontados, de
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 113
com muita vibração. Era algo novo! Não era A tais recriações estéticas que deram
estranho! Estranho era não ser comum esse origem ao samba-reggae somam-se as refe-
tipo de abordagem10. rências internacionais que vêm do mundo
Esse envolvimento com o mundo ne- anglo-saxão, do Caribe e da África. Mas que
gro, que gerou o artefato terceira diáspora, África é essa? São áfricas imaginadas cujos
começou nos anos 1990 quando escolhi o elementos foram capturados pelas antenas
samba-reggae como tema do doutorado. Mi- do Pelourinho, do Curuzu, de Periperi, de
nha pergunta: Como os blocos afro criaram Itapuã, de Candeal e de Pirajá, locais de ori-
o samba-reggae? Como se inventa um rit- gem das entidades. Por meio de suas per-
mo? Mas estava posto que aquela criação se formances carnavalescas, os blocos afro
tornava uma mercadoria nas mãos de uma desconstroem a imagem da África como um
indústria da música: a axé music comanda- bloco indistinto, realizando um letramento
da por brancos. Era inevitável perceber as estético que descortina a complexidade ci-
relações de poder e o racismo que permea- vilizacional do continente11.
vam o processo de mercantilização dessa Diversas áfricas foram modeladas pelos
invenção musical. blocos afro de Salvador:
Não se pode negar o espaço que os ne-
gros conquistaram nesse momento, mar- |Ilê Aiyê| África tradicional (1974)
cado na virada dos anos 1980 e 1990. O |Olodum| África científica (1979)
movimento de negritude baiana ganhava |Malê Debalê| África islâmica (1980)
peso, e Salvador se projetava como um polo |Ara Ketu| África moderna (1981)
criativo no Brasil, por meio da música dos |Muzenza| África nômade (1981)
blocos afro, que afirmavam em alto e bom |Timbalada| África cosmopolita (1992)
som sua africanidade. |Cortejo Afro| África estilizada (1998)
Mas a música sempre foi o lugar cati- |Bankoma| África bantu (2000)
vo dos negros no Brasil (e no mundo). Era
preciso ir mais além. Era preciso conhecer O Ilê Aiyê (terreiro de negros na lín-
a estética afro-baiana de maneira mais pro- gua iorubá) se volta para uma “África
funda para entender de onde surgiu aquela tradicional” em busca de seus sinais de
música com tanto poder. As pistas estavam identificação. Movido por um orgulho ra-
no imaginário dos blocos afro-carnavalescos. cial, o bloco do Curuzu (área do bairro da
Era preciso então reconstruir esse Liberdade) tem uma característica que o
cenário estético e ideológico. Um olhar diferencia de um modo especial: bloco de
retrospectivo mostra que a transformação negros cuja entrada de associados brancos
das organizações afro-carnavalescas – Ba- é rigorosamente vetada. Lançando mão do
tuques, Clubes, Afoxés, Escolas de Samba, exclusivismo étnico baseado na cor da pele
Blocos de Índio, Blocos Afro – é resultado (antes nunca explicitado como regra), re-
de migrações e mesclas tecidas na evolução mete a uma África anterior à presença eu-
das entidades negras. ropeia no continente. Pinça seus elementos
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Goli Guerreiro 119
Referências bibliográficas
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Caderno, p. 2.
Notas
1 “Em suma, o que Merleau-Ponty e outros filósofos europeus estão tentando dizer é
que o corpo humano é a principal fonte, lugar e centro de percepção e expressão,
seja ela física ou transcendental. Curiosamente isso não é nenhuma novidade para
os africanos. [...] as sociedades africanas conscientemente acostumam-se a uma
semiologia corpórea em que o corpo torna-se receptáculo simbólico e expressivo
do transcendente assim como as ideias filosóficas [...]” (IROBI, 2012, p. 276).
10 No Brasil, às vezes sou vista como branca, às vezes como preta. Em Salvador,
Bahia, meu porto de origem, em geral sou identificada como não negra (ou
“tinta fraca”, na gíria local). Então, quando faço a cartografia da cidade, edito um
mundo que vasculho e percebo. Cito a fala das pessoas, evito traduzi-las, exponho
seus próprios termos. Às vezes, arrisco descrições, comentários. Acredito numa
colaboração com a cultura que me envolve. É um livro escrito a muitas mãos.
11 “O que torna o carnaval ainda mais notável, à luz de nossa discussão de que
o corpo possui uma memória podendo ser um lócus de resistência através da
performance, é que ele é um exemplo eloquente da transcendência expressa
através do espetáculo: procissão, cores, música, dança e, mais importante, o
movimento físico do corpo” (p. 278-279).
3. DA PONTE PRA CÁ
Estudamos a cidade negra-periférica que habita São Paulo, refletindo sobre as presenças
histórica e cultural dos descendentes de africanos e sua marginalização constante no processo
de modernização da cidade. Localizam-se protagonistas artísticos culturais negrxs e periferi-
cxs para compor um novo mapa e salientar vozes silenciadas pelo racismo e apagadas ante o
elitismo cultural. Questionamos a narrativa única de matriz modernista, que ordena a história/
memória oficial da cidade. E como alternativa instauramos perspectiva afro-periférica num
diálogo crítico com as bibliografias afro-brasileiras no Atlântico Negro, em eixo hemisférico sul.
O
otimista poeta baiano viu a cidade Este texto pode ser considerado uma
de São Paulo em meados da década versão sintética e prévia de um livro com
de 1970 como um espelho que não o mesmo título a ser publicado em breve.
refletia sua imagem e projetou-a como uma Minhas referências para a construção da
cidade negra, um moderno quilombo. O pa- pesquisa têm sido cursos, palestras, confe-
norama que construo aqui é incompleto e rências e rodas de conversa que organizo e
provisório, mas carrega em si os contornos dos quais participo. Conversas várias com
não retilíneos de experiência constituída coletivos artísticos e parceiros de aventura.
de aprendizagens intelectuais, escolares e São também leituras de bibliografias sobre
extraescolares, acadêmicas e artísticas, en- culturas urbanas contemporâneas, publica-
tre uma média cidade no interior de Minas das por sociólogos, semiólogos, museólogos,
Gerais e os arredores da capital paulista. gestores públicos e privados de cultura, an-
Trato de práticas e ideias que resultaram em tropólogos, urbanistas, historiadores, artis-
vivências e interpretações, leituras e trocas tas, jornalistas e ativistas.
assistemáticas em diferentes circuitos de Realizei pesquisa de campo, entrevis-
produção cultural e artística, educação pú- tando pessoas e acompanhando os trabalhos
blica a ativismo antirracista. criativos que envolvem grupos e coletivos de
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 131
percepção para coisas não percebidas antes, ao ator e pesquisador Márcio Castro; ao co-
favorecendo o contato direto em encontros reógrafo Firmino Pitanga; aos poetas Sér-
presenciais ou trocas de afetos digitais. Sin- gio Vaz e Márcio B atista; à professora e
to sua positividade em vários aspectos, evi- coreógrafa-antropóloga Luciane Ramos; ao
tando o seu lado de simulacro quando certas músico, ator e produtor Euller Alves e ao pro-
postagens e fotos de vidas, estranhamente dutor cultural Josiel Medrado. Especialmen-
coloridas, parecem bem mais virtuosas que te devo a Cia. Capulanas de Artes Negras,
as relações afetivas e sociais construídas Cooperifa, Sarau do Grajaú, Coletivo Negro,
com ausências e solidariedades históricas. Sarau da Ponte pra Cá, Sarau Perifatividade,
Há mesmo uma espécie de euforia co- Sarau do Binho, Cia. de Teatro os Crespos,
municativa que também me arrebata, e eu grupo Dança Movimento Contínuo, Compa-
a retroalimento, mas não sei se é remédio nhia de Teatro Clariô e a Esquina Musical3.
ou compensação para essa falta de tempo De certa forma, esta escrita ainda reflete
para acarinhar os amigos e gentes queridas. a aprendizagem dialógica com professoras da
Confessando-a, alimento-me contra uma Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
solidãozinha progressiva, (PUC/SP) e da Universidade
uma dor pequena, mas cor- Por ser São Paulo a de São Paulo (USP). Devem
rosiva. Lenitivo para insônia cidade mais rica e luxuosa c ulpá-las e também meus
ou compensação para neces- do país, é também, por manos e manas feitos na lida,
sidade de trabalhar cada vez contraste, aquela onde as Rafael Galante (USP), Nirle-
iniquidades se pronunciam
mais e receber cada vez me- ne Nepomuceno (UFBA),
de forma mais radical e
nos. No tempo que sobra, eu José Carlos Gomes da Silva
aguda. Mas isso depende
durmo e às vezes sonho. Esse muito de onde você a vê. (Unifesp), Maria Odila Dias
texto tem tudo a ver com os e Antonieta Antonacci (PUC/
devaneios. Algumas das pessoas que abordei SP), Maria Cristina Wissembach e Marina
constituem coletivos e grupos culturais2. Mello e Souza (USP). Se eventualmente meus
A rede me permitiu entender muitas de leitores perceberem neste trabalho quando
minhas limitações e possibilidades comuni- não pude esconder vícios da escrita e retórica
cativas. Devo a ela essa assunção, tornar efe- acadêmica, mal aprendidas nesses anos de
tivamente compreensível minha caminhada treinamento escolar intensivo, não cismem
nesse quadrante da esfera. Fiz-me com e sem muito. Garanto que sou o único corresponsá-
lamento, mas sem autopiedade. Um intelec- vel por tudo que penso, falo e escrevo.
tual preto, educador público e artista perifé- Por ser São Paulo a cidade mais rica e
rico. É isso que soul. luxuosa do país, é também, por contraste,
No campo das artes negras e perifé- aquela onde as iniquidades se pronunciam
ricas, minha gratidão ao escritor, poeta, de forma mais radical e aguda. Mas isso de-
pesquisador e educador Allan da Rosa; à pende muito de onde você a vê.
artista plástica e professora Renata F elinto; A Federação das Indústrias do Estado
à educadora e atriz-cantora Naruna Costa; de São Paulo (Fiesp) tem sido uma das mais
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 133
sociedade, capaz de corresponder à fotogra- país, em todos os campos do saber. [...] Era
fia e conômica-cultural germânica ou esta- em São Paulo onde se encontrava, em 1985,
dunidense, nossa intelligentsia dava tratos às o maior número de editoras de livros e folhe-
teorias sociais importadas para alcançar uma tos. Pode-se, em consequência com base em
meta traçada no século XIX: uma sociedade sua força econômica e nas relações cada vez
plenamente ocidental na cultura e racialmen- mais íntimas entre economia e cultura, ad-
te branca na “raça”. A mestiçagem coordena- mitir que São Paulo esteja se tornando, igual-
da seria, então, um estágio inevitável11. mente, metrópole cultural? [...] A publicidade
Chamamos colonialismo interno por- ilustra bem a ideia de polo mundial: São Paulo
que não se tratava mais de um projeto de é centro difusor de interesse publicitários de
mudança imposto de fora para dentro, da inúmeras marcas e firmas internacionais14.
metrópole para a colônia. Giralda Seyferth
(1996), estudiosa da imigração e da coloni- Sim, os filhos dos fazendeiros-burgueses
zação, traça uma breve e excepcional genea- paulistas criaram tal instituição exemplar
logia da formação do estado-nação no Brasil citada por Santos, com objetivo confesso
e das políticas de imigração seletiva, que, no de preparar as novas elites para o mando.
jargão político do ativismo negro e antirra- Milton Santos, considerado um forasteiro
cista, tem sido definida como uma das fases naquela instituição, sentindo-se cansado, ao
do “projeto de branqueamento” 12. fim dos dias resumia:
Os fazendeiros paulistas não apenas
lucraram largamente com a escravidão de Os ditos chefes de escola na USP sem-
plantation e o controle do estado monárqui- pre foram chefes políticos, que não precisam
co, como também assumiram a dianteira na ter um corpo de ideias para poder se afirmar,
batalha pela abolição da escravatura e contra pois tinham poder de nomear, até quando po-
o império. Quando pensamos em São Paulo, diam, até 1968. Isso não é algo que se pode
não podemos perder de vista essa capacida- atribuir ao sistema de cátedra. [...] O que ele
de de mudar sem mudar ou de reformismo faz é produzir um círculo de aderentes, mas
reacionário das suas elites13. não de discípulos [...]. Em outros lugares
Segundo Santos (2009), já nos anos você tem vergonha de fazer coisa igual. Nos
1980 São Paulo rivalizava com a antiga ca- Estados Unidos, a mobilidade é regra dentro
pital do império escravista em vários tópicos das universidades. Elas não aceitam o seu
da produção cultural e científica rapidamen- próprio aluno imediatamente. Ele tem de cir-
te passando-lhe à frente em números de em- cular e não pode fazer carreira inteira como
presas publicitárias: acontece aqui na USP, que é uma espécie
de família; é considerado normal o menino
São Paulo por suas três universidades entrar na Escola de Aplicação e sair reitor.
estaduais, e sobretudo pela Universidade de Sabemos que não adianta querer participar
São Paulo, representa muito mais da meta- de boa parte dos concursos, porque eles são
de de toda pesquisa científica produzida no para tais e tais pessoas que já estão lá15.
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 137
A modernidade brasileira
combinou tecnologia, cultura artística,
políticas urbanas, industrialização,
mas não abriu mãos de velhas formas
de colonialismo interno, no trato com
as populações pobres, indígenas e
negras. Embora estejamos socialmente
situados ao lado dos brancos pobres,
nossa condução tem especificidades que
não podem ser anuladas, justamente
pela longa duração e historicidade dos
racismos antinegro e anti-indígena. Os
tataranetos dos paulistas quatrocentos
sequestraram para si a ideia de
modernidade europeia, aproveitando
que seus pais e avós haviam feito
fortuna, combinando tráfico clandestino,
escravismo altamente racionalizado e
plantation. Nossa concepção nacionalista
de modernidade tem essas matrizes:
patrimonialismo, escravismo e racismo.”
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Santos teve experiência de pesquisa, vi- São Paulo é atualmente o mais rico
sibilidade e prestígio internacional por causa mercado de cultura, lazer e entretenimento
da sua atividade professoral e acadêmica fora do país, no qual o custo individual de um es-
do país. No Brasil, ao contrário, deparou-se petáculo ou evento da moda pode alcançar
constantemente com preterimentos e de- até dois salários mínimos. Não é incomum
preciação intelectual. Silenciou-se pelo fato espetáculos por 500 dólares. Um contingente
de pertencer à geração da dor em segredo, razoável de pessoas estimuladas paga alegre-
para a qual admitir as práticas racistas in- mente para consumir tais serviços. Em nome
terpessoais e institucionais era considerado do status ou do sentimento de alta exclusi-
demonstração de fraqueza ou de vitimização. vidade, palacetes e prédios de luxo vendem
Chegou à África pela primeira vez no início da festas, shows, eventos gastronômicos e cor-
década de 1960, antes do golpe civil-militar, e porativos e espetáculos cult em salões vips.
lá teve acesso aos revolucionários descoloni- Pessoas que sem tocar o chão levitam sobre
zadores. Após o golpe no Brasil, foi encarce- a cidade. Jovens rastas definem a cidade-i-
rado por um período de cem dias. Ao sair sob lha-lívia: Babilônia.
condição de prisão domiciliar, contou com Dentro da cidade, mas nas margens ex-
amigos e políticos conservadores para fugir ternas dos rios, os eventos culturais perifé-
e exilou-se na França, onde lecionou. ricos denominados saraus têm uma história
Atuou na Universidade de Columbia multifacetada, controversa e épica. Atualmen-
(Estados Unidos), esteve à frente da criação e te há um sem-números de atividades realiza-
instalação do primeiro curso de geografia no das nos mais diversos pontos da periferia da
continente africano, na Tanzânia. Sua leitura cidade e também nos municípios do entorno.
sofisticada, mas não direta das formas de ma- O dramaturgo Marinho Pazzini, falecido dire-
nutenção do prestígio e poder acadêmicos, tor do grupo Clariô de Teatro, contou-me uma
sugere ter ampla analogia com as denúncias versão sobre sua origem que talvez não possa
do racismo antinegro dos movimentos ne- ser considerada muito edificante para alguns
gros brasileiros. membros atuais dessa modalidade cultural.
Podemos abordar seus deslocamen- Segundo Marinho, ao final dos anos
tos no mundo acadêmico e no território da 1970, jovens atores periféricos, que tinham
diáspora como estratégia afro-atlântica, na poucas alternativas no mercado cultural da
medida em que reflete outras narrativas de metrópole, eram convidados por senhoras da
viagem de outros tantos descendentes de elite para animar suas tardes de chá inglês,
africanos dentro e fora do Brasil. Seu saber recitando poemas e fazendo modestas per-
técnico acadêmico pode perfeitamente ser formances. Eles usavam “clássicos” da lite-
contabilizado como contribuição tecnológi- ratura e dramaturgia nacional e “universal”16.
ca própria ao Atlântico Negro, e sua crítica Os saraus artístico-literários cresce-
ao corporativismo racial elitista da aca- ram de tal forma que, no ano 2015, o Sarau
demia paulista, como um vetor no embate do Binho17 organizou na região de Campo
contra-hegemônico e antirracista. Limpo o que pode ser considerado o maior
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 139
e materiais ainda não capitalizados pela in- qual pertencem. Por vezes, não conseguem
dústria cultural. Até quando? compreender que o sistemático desprezo que
Algumas questões cruciais são: Até que suas criações sofrem se deve tanto ao inusi-
ponto os produtores culturais marginais, ne- tado do seu lugar e perspectiva quanto a uma
gros e periféricos estão produzindo valores violenta reação do meio cultural hegemônico
culturais efetivamente novos e anti-hege- em que as produções teimam ser inscritas.
mônicos e até onde buscam simplesmente Trata-se de um setor social e profissio-
estratégias para ser incorporados pelas es- nal que não admite a ideia de concorrência
truturas institucionais da cultura dominante advinda de fora do círculo, por isso considera
paulistana e nacional? Até que ponto esses tais produções como algo de menor valor ou
produtores têm consciência ou não do abis- as denuncia como alienígenas, estigmatizan-
mo social e cultural que distinguem e sepa- do-as pelo fato de não se enquadrarem nos
ram os setores negromestiços e subalternos padrões “normais” de criatividade e fruição.
em relação às classes médias e altas dentro Avisado por Guerreiro Ramos sobre o
da sociedade brasileira? Até que limite suas papel da autofagia entre nós, não podemos
criações tomam esses mundos apenas como mais alegar ingenuidade. Também esta-
conteúdo, mas não como forma? Periferia é mos bem atentos à complacência estética
um lugar de enunciação ou há efetivamente e ao paternalismo político, social e cultural
uma estética específica? enraizados nesse padrão de sociedade que
Diferentemente da produção de Paulo herdamos. Como podemos construir um mo-
Lins, a criação e circulação periférica de li- delo interno de crítica capaz de estimular a
teratura não conta com nenhuma estrutura criatividade, fomentar a visibilidade e buscar
profissional de propaganda e difusão. Talvez a unidade política que necessitamos para su-
de fato nem possa ser designada mercado nos plantar a hegemonia da branquitude22?
termos em que trabalha a indústria cultural A indústria do desejo tem proeminência
livreira. Exceto um ou outro poeta ou escritor na breve São Paulo, mas seus famosos out-
consegue transpor a geografia dos saraus e doors foram substituídos paulatinamente por
estabelecer diálogos e padrões de vendagem TVs de metrô e ônibus. Quais as imagens de
“autossustentáveis” e continuidade criativa. São Paulo? Depende de quando, como e por
Entretanto, é possível visualizar um quadro onde você entra na cidade. Quero dizer, de
em que a leitura e escrita criativa não sejam que veículo se penetra na cidade. De quais
mais privilégio de classe e raça, exotismo ou sentidos mobilizamos para apreendê-la des-
rara exceção no Brasil. de os primeiros contatos. E principalmente
Tenho coletado dados e impressões de como nos deslocamos nela, sendo dia ou
sobre dois diferentes tipos de frustração noite. Quais partes dela acessamos?
entre criadores teatrais negros engajados, A suposta identidade paulistana não
por exemplo, quando buscam em vão o re- é muito antiga, mas vigorosa porque desde
conhecimento de suas obras pela crítica tea- a chamada Revolução de 1932, e talvez dez
tral convencional e pelo setor profissional ao anos antes, vem sendo tecida de fios finos
142 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
de memórias reais e invenções ficcionais públicas. Sem choro nem registro. O fotógra-
incríveis. Cidade arte pública23, cidade mo- fo, editor e videomaker Cassimano Nanau
numentos24, cidade projeto arquitetônico25. roda por ali, de câmera em punho, a partir do
Involuntariamente, eu e Milton Santos con- limítrofe sudoeste, Jardim Jaqueline. Vem
tribuímos para alimentar essas texturas. fixando digitalmente o pouco que ainda es-
Com nossos desejos e interdições alimen- capou dessa determinação da política urba-
tamos os discursos sobre os aspectos super- na. Terminais de ônibus, unidades básicas
lativos da cidade-cenário. de saúdes, hospitais regionais e creches vão
Diferentemente, a fotógrafa e produto- surgindo onde antes existiam os únicos espa-
ra cultural Sheila Signário registra crianças ços de lazer na periferia. É essa modernidade
sem teto. Em meio à violência desproporcio- urbana tosca, perversa ou nada.
nal, suas existências são frágeis e erráticas, Quem são esses coletores de almas, pas-
novos nomadismos. Ela sente-interpreta sados e horizontes? Helder Girolamo, Alex
imageticamente a cidade aos olhos de in- Ribeiro, Grazii Ribeiro, Douglas Arruda, Ivan
fantes sem chances. Os fotógrafos Wilson Lino? Você, curador oficial, os conhece? Viu
Cortez e Guma Galina tam- algum catálogo deles com
bém têm realizado registros O movimento dos saraus capa dura e emblema de
visuais inéditos, formando tem gestado um novo mundo empresas mineradoras, se-
um belíssimo acervo fo- de leitores e escritores nas cretarias ou ministérios?
tobiográfico das beiras. periferias brasileiras. Aqui Uma casa de cultura se-
Criam poesias visuais der- e acolá, pessoas e coletivos miabandonada, aqui e ali um
ramadas e épicas, imagens indicam a existência efetiva Centro de Educação Unifi-
de uma nova cultura escrita
trespassadas e dramáticas cada (CEU), uma Fábrica de
apropriada por novos agentes
de tudo que transborda vida Cultura ou uma unidade do
sociais, cuja escolarização
urgente: música, cotidiano formal começa a atingir o Serviço Social do Comércio
e beleza, teatros sem palco ensino médio completo. (Sesc), é isso que tem sido
e dança. Panorama aberto capitalizado como “política
e fluido das efêmeras cenas culturais peri- cultural” nas propagandas das campanhas
féricas. Em conjunto, tramam e constroem eleitorais dos candidatos aos cargos públicos.
uma contra contracultura imagética em que Marketing sem desfaçatez nos períodos que
pululam negros e negras, seres periféricos. antecedem os pleitos municipais e estaduais.
Dinamicamente criativos, são criadores e Cultura, arte e lazer para quem?
personagens recriados visualmente. Cida- Desde os anos 1970, a pasta de Cultura
de-texto negra de becos e vielas em con- foi separada da pasta de Higiene. A cidade
traposição aos jardins de alamedas alvas e teve em três tempos três atores e homens de
arborizadas. teatro na pasta da Secretaria Municipal de
Por décadas, nas zonas pobres da cida- Cultura. A partir da década de 1970: Sábato
de, as hordas de jovens negros e pobres per- Magaldi, Gianfrancesco Guarnieri e Celso
deram seus campinhos de várzea para obras Fratesch. Por lá só passaram músico, poeta,
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 143
jornalista, filósofa, dois sociólogos, um ur- se dá conta de que africanos e seus descen-
banista26. Estes últimos formados pela USP. dentes a estejam fabricando. Desde a forma-
A filósofa Marilena Chauí, professora da ção do modesto burgo, circulando inclusive
USP, assumiu o posto de secretária munici- no centro. Conhecemos melhor suas bordas
pal de Cultura no primeiro ano de governo e margens. Cruzamos biqueiras, pinguelas e
de Luiza Erundina, quando esta pertencia pontes. Morrendo nas avenidas e alamedas
ao Partido dos Trabalhadores. Introduziu bem limpas da cidade como operários e só?
uma inovação administrativa ao implantar Até quilombos urbanos os negros paulistas
um sistema de Casas de Cultura, em antigos vivenciaram na formação da metrópole.
prédios desativados das administrações re- A cidade hegemônica se dá conta da
gionais (atuais subprefeituras) da cidade. sua presença somente quando a tensão sai
Durante os anos de gestão, ampla movimen- do nível do racismo pretensamente cordial.
tação cultural foi registrada nas periferias, Quando a tensão latente eclode. A desigual-
com aparecimento e relativo reconhecimen- dade produz um tipo de legitimidade discur-
to de um conjunto de práticas e expressões siva que na maioria das vezes se referenda na
culturais novas de setores pobres e periféri- noção liberal de competência e igualdade ju-
cos. Naquele contexto, a definição recorren- rídica formal. Saudosos somos de uma Chauí
te era cultura popular. O que escapasse era questionadora e contundente dos anos 1980.
catalogado como cultura de massa. Tratando da questão do silêncio e poder cul-
Grupos de teatro, música, dança, litera- tural, ela salientava:
tura, circo, cinevídeo encontraram refúgio
provisoriamente nas 13 Casas de Cultura27 Quando examinamos as precondi-
espalhadas nos extremos da metrópole. Era ções que dão direito a alguém para agir,
acolhimento e espaços para ensaio, criação e falar e ouvir descobrimos que esse direito
circulação das produções. Contudo, os equi- é dado apenas para aqueles que possuem
pamentos públicos centrais continuaram a os conhecimentos científicos, técnicos,
ser utilizados nos mesmos padrões anteriores artísticos e filosóficos estipulados pelos
de favorecimento e corporativismo, princi- dominantes; faz, fala e escuta quem “sabe”
palmente pelos chamados “corpos estáveis”28 e possui “cultura”. O resto obedece porque
e pelas empresas de entretenimento, devida- é incompetente. O mito da “competência”
mente “cadastradas” e inseridas nas formas significa simplesmente um enorme proces-
institucionais de fruição artística. so de uso de uma certa cultura para excluir
Independentemente da política cultural da ação social, política e cultural e do dis-
dessa ou daquela gestão, as presenças negras curso do conhecimento todos aqueles que
citadinas são fatos socioculturais já flagrados foram economicamente e politicamente
por alguns olhares e gravados em registros excluídos. Pela “competência” se realiza a
esparsos, mas consistentes pelas musicalida- invalidação social, política e cultural dos
des e literaturas negras, marginais e periféri- “incompetentes”. Ora, quem em nossa so-
cas. Nem sempre a memória oficial da cidade ciedade é o incompetente por excelência,
144 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
da África por quase 3,5 milhões de pessoas, por vezes até hermético do seu Atlântico
em Moçambique, Zimbábue e Suazilândia. Negro e ajustando a frequência do nosso
Capulanas por aquelas bandas é o nome que receptor para localizar melhor o Atlântico
se dá a um tecido utilizado pelas mulheres Negro no eixo sul. Por exemplo, quando nos-
para cobrir a parte inferior do corpo, uma sos vetores diaspóricos negrxs brasileirxs
espécie de canga. Ocasionalmente, cumpre elaboraram e emitiram sinais gráficos, sono-
papel de sobressaia, podendo ser também ros e imagéticos codificados pelas matrizes
jogado sobre os ombros como xale, turban- africanas ou quando leram e processaram as
te, anteparo de objetos levados à cabeça ou informações, conteúdos estético e políticos,
ainda usados para transportar os nenês às produzindo estímulos contra-hegemônicos,
costas. No passado, era produzido artesanal- e ressignificaram aqueles que alcançaram o
mente, mas desde o século XX passou a ser porto de Santos.
industrializado fora da África e comerciali- Falo aqui de canais marcadamente ne-
zado por lojas e ambulantes nas feiras dos gros, em fluxos descontínuos e desiguais, em
centros urbanos. emissões e recepções na direção dos mun-
Capulanas soma-se, pela temática, a dos negros situados seja nos Estados Unidos,
outros grupos teatrais que tomam as ques- seja em Senegal, em Cuba, na Martinica ou
tões culturais, raciais e étnicas negras como na Europa. Da mesma maneira, podemos
feixe para daí extrair filigranas de negritudes inventariar e dar a conhecer as múltiplas
variadas. Esse é o caso do Coletivo Negro, projeções e imaginários que a África foi as-
Os Crespos, Teatro Popular Solano Trinda- sumindo nos discursos e produções cultu-
de, Quizumba, entre outros, em São Paulo rais afro-diaspóricas brasileiras. Imaginários
e arredores. transformados em canções, roupas, adereços,
Num sentido, vislumbramos as bio- gravuras, pinturas, performances públicas
grafias e criações estético-poéticas, mas e privadas, missas, discos, espetáculos, co-
também os textos jornalísticos e técnicos reografias, discursos políticos, práticas re-
produzidos em diferentes âmbitos por figu- ligiosas etc36.
ras de abolicionistas negrxs como Maria Fir- Podemos ainda observar como educa-
mina dos Reis, Luiz Gama, Teodoro Sampaio dores, artistas, intelectuais e pessoas negras
e Manuel Querino, entre uma centena de no- comuns lançaram mão de tecnologias pró-
mes. Evocando Frantz Fanon35 em sua exege- prias da sociedade moderna para criar pro-
se dos efeitos sociais e psíquicos do racismo jetos e utopias, objetos e ideias vinculadas à
antinegro, também devemos nos preparar do história e à cultura afro-diaspóricas, quando
ponto de vista de uma ética intelectual negra, não para demonstrar outras possibilidades
capaz de pôr foco sobre contradições e equí- de uso desses sistemas fora da ordem vi-
vocos, ambiguidades e ansiedades humanas, gente. Nesse sentido, creio que as máquinas
dos quais nós negrxs não estamos isentxs. voadoras do José do Patrocínio e os projetos
Em outro sentido, podemos acatar Gil- arquitetônicos dos irmãos Rebouças já não
roy, fazendo a crítica ao caráter anglofônico, podem ser dissociados das ações políticas
148 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
racismo antinegro tem sido, por conseguinte, construção de vínculos e autoestima reali-
desde a década de 1930, um campo de disputa zadas pela Cooperifa e pelo Sarau do Binho,
intelectual e política. pelo Sarau do Grajaú, pelo Sarau da Ponte
Também podemos escalonar leituras do Pra Cá e por tantos outros também reivin-
ativismo antirracista desde os negros dra- dicam uma memória quilombola e retomam
mas de Hamilton Cardoso a mística do texto escrito
e Eduardo de Oliveira e Oli- Estou definindo como cultura e declamado. Palmares e
veira e erigir novos símbo- toda forma de existência Canudos estão lá. Erguem
los. Quiseram nos mostrar material e simbólica humana novos signos identitários,
os prenúncios das novas e afirmando como cultura como aqueles do nego Jan-
relações raciais, quando se artística toda expressão sem em seu inaugural Qui-
constataram o esgotamen- estética, passível de lombo Imaginário de Santo
to e a armadilha da fixidez exploração econômica ou Amaro, nos anos iniciais da
não. Trata-se de convenções
das teorias de classe para década de 198042.
questionáveis, mas ao mesmo
compreender e refutar os Algumas são formas
tempo amplamente aceitas
racismos. Porém, tal inova- e difundidas por meio da longevas de auto-organi-
ção metodológica foi adia- escolarização e dos veículos zaçao, criação e difusão ar-
da ou mesmo abortada pelo de comunicação massiva. tístico-culturais, outras são
desaparecimento precoce de ONGs oportunistas e para-
ambos. Mortes sem explicação, nem sentido, sitárias que penetram no território, atraídas
a não ser o Negro Drama. pelas possibilidades de exploração de mão
Beatriz Nascimento e Abdias Nasci- de obra e obtenção da legitimidade neces-
mento partiram de conceitos similares, mas sária ao acesso de novos financiamentos
elaboraram diferentes versões tendo em vis- em agências nacionais e estrangeiras. Ali,
ta a atualização do conceito Quilombo para aqueles enraizados enunciam as tentativas
moldar novas realidades sociais urbanas e possibilidades de uso e inovação das lin-
negras e brasileiras na segunda metade do guagens artísticas ocidentais, combinadas
século XX. Ambos parecem ter se afinado à com códigos e signos de origem africana
ideia de Malcom X de que o retorno à África ou afro-diaspóricas criteriosamente esco-
era de natureza simbólica, e a transformação lhidos. A contar por Equiano, Luiz Gama,
dos valores civilizatórios africanos em sig- Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento, pa-
nos de libertação serviriam como espécie de rece que esse tem sido um método recor-
condutores de energia vital. Beatriz e Abdias, rente e eficaz.
antecedidos por Clóvis Moura, parecem ter Seja como estratégias, seja como tec-
experimentado essa espécie de epifania in- nologias ou veículos, são Barcos Negros na
telectual afro-diaspórica ante a brisa mística Kalunga Infinda. Isso nos coloca em com-
do Atlântico Sul. passo com uma espécie de cosmopolitismo
Hoje, em meados da década de 2010, negro, que possibilita elaboração de versões,
poetas que frequentam as sessões de re- contranarrativas ou “narrativas dissidentes
152 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
da modernidade” brasileira, que tem com- Aqui São Paulo. Cantaram Racionais
binado tanto mudança social e tecnológica Mcs. Terça Afro nasce nesse contexto e
constante com manutenção e controle social, faz emergir o que Stive Biko definiu como
tradicionalismo político e cultural. Consciência Negra na luta contra o racismo
Hall (2005) caracteriza a modernidade institucional na África do Sul. Qual seja, um
como sociedade da mudança enquanto nos impulso político e cultural capaz de mobi-
passa a impressão de que não haveria mu- lizar os negrxs do mundo, em torno de um
dança nas sociedades tradicionais43. Esse projeto de emancipação política e racial de-
aspecto do seu pensamento nos parece um finitiva e humanizadora.
tanto equivocado, pois também nas socie- A consciência negra, entretanto, não
dades tradicionais as mudanças se proces- pode ser aprendida em uma cartilha filosó-
sam, ainda que possam ser compreendidas fica dogmática e fechada como imaginam as
como mais lentas. Nesse caso, a analogia da mentalidades autoritárias. Justamente por-
modernidade como mudança rápida e cons- que deve estar circunscrita a cada dinâmica
tante pode ser considerada uma forma de política, conjuntura temporal e contexto
autoelogio do ocidente, uma herança hege- específico. Lá, Biko lançou um petardo cog-
liana da concepção de história como movi- nitivo que pode ou não ser capturado e sub-
mento. Mas a filosofia da história de Hegel metido a novos desígnios.
é justamente o ponto nodal da negação de Numa conjuntura de profunda desi-
historicidade às civilizações africanas. gualdade e racismo antinegro e anti-indígena
Como poderíamos pensar em mudança que se reinventa, o que podem fazer jovens
rápida se temos consciência de 400 anos de negrxs além de viver sob o impacto cotidiano
duração do tráfico negreiro e escravidão legal da segregação? Qual função e propósito tem
e, ao menos, 250 anos de racismo científico? um grupo de jovens negrxs envolvidxs com
Algumas práticas negras e antirracistas artes, culturas, memórias e identidades? Que
que atuam na cidade abrem mão da institu- tipo de ação tem condições de realizar ante o
cionalização e acatam o signo do movimen- niilismo, o individualismo, o narcisismo diri-
to constante e tudo aquilo que é provisório gido a eles pela indústria do entretenimento
e efêmero. Não há sede nem hierarquia e e do consumo em geral?
primam por uma relação fraterna e horizon- Pelo que tenho acompanhado, eles res-
tal entre os membros jovens masculinos e pondem a esses desafios produzindo micro
femininos. Certamente existem conflitos anti-ideologias e práticas políticas funda-
e problemas variados, mas esses grupos de mentadas em quatro pilares: negritudes,
jovens negros e negras têm conseguido lidar sociabilidades, artes e afetos.
com desafios criativos e educacionais, com Negritudes: admitem a existência de
ações concretas e elaborações intelectuais e pertencimentos diversos à origem africa-
artísticas muito complexas. Por isso, teimo na e tomam como positiva a diversidade
em mencionar o trabalho que o Terça Afro negra experiencial histórica e subjetiva.
realiza para fechar este texto. Fuçam e reviram as memórias, histórias e
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 153
africanidades. Visitam figuras humanas his- de fazer política no Brasil que valorizasse as
tóricas vivas, mas desaparecidas, para esta- matrizes culturais africanas presentes no
belecer um diálogo intenso com as histórias nosso imaginário. Talvez, por compreen-
africanas e diaspóricas. derem criticamente o monopólio das elites
Sociabilidades: elaboram sofisticadas brancas sobre as instituições culturais, so-
estratégias para um “estar juntos”, convi- ciais e políticas (partidárias) convencio-
vendo, partilhando, descobrindo, gerando nais, vislumbraram uma rota de fuga para
tensão e relaxando as relações a partir da os descendentes de africanos, de forma a se
criação e execução de programas, projetos manter fortalecidos e aptos para um novo
e eventos. Contornam conflitos pessoais e tipo de confronto.
competitividades para partilhar horizontal- A ação cultural, artística e política
mente os desafios e retornos (financeiros e chamada Terça Afro é um diapasão afina-
emocionais) advindos de cada ação plane- do com os pressupostos de Biko, definidos
jada e desenvolvida. como Consciência Negra e simultaneamen-
Artes: encontram nas linguagens codi- te repercutem os Quilombismos de Beatriz
ficadas como expressivas as estratégias e os e Abdias Nascimento e Quilombagem de
veículos para comunicar suas experiências Clóvis Moura. O aquilombamento tem per-
e reanimar memórias negras abandonadas mitido construir autoimagem a partir de
pelo espólio da guerra cultural-racial anti- dentro e elaborar ferramentas de arqueologia
negra. Elaboram, fazem fluir e intercambiam cultural e tecnologias de combate ao racismo
imagens fílmicas e fotográficas digitais; tex- normativo e cotidiano.
tos sonoros, impressos e virtuais; conteúdos São grupo de jovens urbanxs autodefini-
e valores musicais; técnicas de registro e for- dxs como negrxs que a partir de sua própria
mas criativas e tecnológicas. experiência interpretam a realidade brasi-
Afetos: lançam desafios para a aproxima- leira, girando seus binóculos digitais para
ção direta, fomentam troca de gentilezas, mas captar e processar os dados sobre a perife-
não escamoteiam dissidências, medos e di- ria da cidade mais rica do país. Constatam
vergências. Politizam o carinho e a violência, as continuidades dos diagnósticos feitos por
tratando da tendência ao isolamento como gerações anteriores de ativistas. O racismo
um fator de adoecimento que incide sobre os antinegro é rápido, dinâmico. Turva a visão,
urbanos, mas desumaniza mais aqueles so- dilata-se, readapta-se para manter as hierar-
cialmente abandonados e segregados. quias estruturais e seculares.
Tanto na percepção de Beatriz Nasci- A base do trabalho? Rodas de conversas
mento quanto na de Abdias do Nascimento, com convidados abertas ao público. Numa
as experiências sociopolíticas designadas primeira olhada, suas estratégias parecem
Quilombos poderiam servir como platafor- ser bastante simples, mas não são, a saber,
ma tecnológica para redimensionamento da convivência, diálogo, criação estética e lei-
presença negra na sociedade brasileira. Eles turas/interpretações das experiências de
preconizavam como devir uma nova forma si e dos outros.
Numa
conjuntura de
profunda desigualdade
e racismo antinegro e
anti-indígena que se
reinventa, o que podem
fazer jovens negrxs
além de viver sob o
impacto cotidiano
da segregação? Qual
função e propósito
tem um grupo
de jovens negrxs
envolvidxs com artes,
culturas, memórias e
identidades?”
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Salloma Salomão
Músico, historiador e produtor cultural. Doutor em história pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pesquisador associado ao Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa. Versa sobre práticas culturais afro-diaspóricas e afri-
canidades com ênfase em música e teatro. (Contatos: mosaiconegrobras.blogspot.com;
sallomasallomao@gmail.com)
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FRY, Peter; VOGT, Carlos. Cafundó – a África no Brasil: linguagem e sociedade. São
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SANTOS, Ricardo Ventura; MAIO, Marcos Chor. Raça, ciência e sociedade. Rio de
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POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Salloma Salomão 159
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TONI C. Sabotage: um lugar – biografia oficial de Mauro Mateus dos Santos. São Paulo:
Literatura, 2013.
Notas
1 Alguns dos meus interlocutores estão disseminados pelo país, e nossas interfaces
têm sido feitas via web e eventualmente corpo a corpo – por exemplo, com o
artista multimídia Délcio Teobaldo (RJ), a professora Ione da Silva Jovino (mana),
da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR), e Denise Barata, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É importante citar também o
músico afro-mineiro e parceiro nas canções Satranga de Lima (Montreal-Paris), a
pesquisadora Patrícia Schor (Países Baixos) e o sociólogo e professor José Machado
Pais, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL/PT).
2 Alguns se tornaram amigos para toda e qualquer obra, entre os quais menciono o
músico e professor Amailton Magno Azevedo, o livre-pensador Eduardo Bonzatto
e as pesquisadoras Karina Poli e Nirlene Nepomuceno (Bebel). Sou grato
também a Augusto Lopes, Eduardo Rosas Negras e Jean Tible, respectivamente,
ex-alunos e professor do Centro Universitário Fundação Santo André. Figura
ímpar nesse trajeto tem sido a produtora cultural Baby Amorim, criadora da rede
social Aruanda Mundi e uma das coordenadoras do Bloco Afro Ilú Oba de Min.
5 Idem, p. 98.
7 Milton Santos traçou um perfil muito interessante de São Paulo, com dados já
considerados um tanto defasados por ser dos anos 1980, mas algumas análises
ainda valem. Neste caso, especialmente a segunda análise do capítulo 2. Veja:
SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. 2. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2009. p. 80.
8 Idem, p. 92.
14 Idem, p. 29-31.
18 LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
26 Para uma pequena e concisa história crítica das políticas culturais na cidade, veja:
ALMEIDA, Patrícia Ferreira de; MARCELINO, Julio Cesar José; NETO, João Luiz
de Brito. Movimentações pela cultura. Painel dos movimentos culturais da região
leste de São Paulo. 1980-1990. São Paulo: Movimento Cultural Penha, 2004.
27 Tudo indica que esse modelo foi copiado da política cultural desenvolvida no
México na década de 1970. Ao menos cheguei a essa conclusão ao ler um caderno
publicado pelo Partido dos Trabalhadores em 1985 na cidade de Porto Alegre.
Veja: CHAUÍ, Marilena. Política cultural. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
29 Idem, p. 21.
30 Veja: FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos,
cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011. Ainda: AZEVEDO,
Elciene. Orfeu da Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São
Paulo. Campinas: Editora Unicamp, 1999.
31 CUTI, Luiz Silva (Org.). E disse o velho militante José Correia Leite – depoimento e
artigos. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
32 Stuart Hall, já citado, utiliza esse termo para refletir sobre formas de resistência
cultural, nas quais os despossuídos e os subalternos por algum momento
interpelam ou interditam as formas culturais hegemônicas e impõem uma
agenda ou demanda.
36 Essa rica história cultural tem sido tratada com preconceito enorme nos meios
acadêmico e cultural. Episodicamente, pesquisadores têm tratado da dispersão
de artistas e intelectuais negros ou da passagem de artistas caribenhos e
estadunidenses pelo Brasil. Contudo, parece haver fluxos descontínuos, mas não
menos importantes, integrando produções artísticas, ações políticas e projetos
sociais de afro-brasileirxs, com interlocutorxs negrxs ou não em volta do mundo,
cujos canais não advêm da indústria cultural.
39 Ver a introdução de: FRY, Peter; VOGT, Carlos. Cafundó – a África no Brasil:
linguagem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
4. TRÂNSITOS ÁFRICA-BRASIL
168. ENTREVISTA
Kabengele Munanga
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
TRÂNSITOS ÁFRICA-BRASIL
Entrevista com Kabengele Munanga, por Silvio Luiz de Almeida
“O
verdadeiro desenvolvimento é aquele que respeita a deman-
da e as prioridades de um povo.” Com essa frase, o professor
Kabengele Munanga sintetiza a relação entre desenvolvimento
econômico e cultura. Em nome do desenvolvimento, as mais terríveis tragédias
foram perpetradas: escravidão, colonialismo, genocídios, destruição de povos
e culturas. Nesse sentido, não haveria desenvolvimento, segundo as palavras
do professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), sem o respeito
à vida e a todos os seus variados modos.
O professor Kabengele fala dos dilemas do desenvolvimento e da cultura
com a autoridade de quem dedicou toda a vida a pensar o tema. Nesse senti-
do, busca identificar nas tramas dos tecidos sociais do Brasil e do continente
africano o fio inquebrantável que une as duas culturas, operação que realiza
destacando a unidade entre as dimensões objetiva e subjetiva.
Ao nos apresentar a África, Kabengele Munanga nos ensina muito sobre o
Brasil. Com as suas lições também aprendemos o porquê do esforço de parte da
sociedade brasileira para ocultar a africanidade que nos constitui. Obras como
Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil e Negritudes: Usos e Sentidos revelam o
esforço de estabelecer um novo parâmetro para a discussão racial, tratando a
negritude como um constituinte ativo da cultura brasileira.
Na entrevista a seguir, Kabengele Munanga, um dos maiores antropólogos
do nosso tempo, nos fala da sua trajetória intelectual em que política, economia
e cultura se cruzam com tanta originalidade.
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
PROFESSOR, FALE UM POUCO SOBRE COMO Quando olho para trás, pergunto-me às ve-
SE INICIOU A SUA RELAÇÃO COM O BRASIL, zes como consegui tal feito. O que me ajudou
A TRAJETÓRIA NA USP E A RECENTE EXPE- muito foi o fato de eu ter iniciado a tese na
RIÊNCIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO Universidade Católica de Louvain (Bélgi-
RECÔNCAVO DA BAHIA (UFRB). ca) e também ter feito a pesquisa de campo
Cheguei ao Brasil, exatamente em São no Congo. E por que não terminei a tese na
Paulo, em julho de 1975 vindo da Repúbli- Bélgica? Durante a ditadura militar implan-
ca Democrática do Congo (ex-Zaire) com tada no então Zaire, depois do assassinato de
uma bolsa de estudos da Universidade de Patrice Émery Lumumba, em 1961, alguns
São Paulo, para concluir o meu doutorado membros da minha família entraram em
em antropologia. Era uma bolsa de dois oposição contra o regime do ditador Mobutu
anos no quadro de cooperação entre a USP Sese Seko. Alguns presos morreram na pri-
e as universidades africanas. O Ministério são e outros se exilaram. Foi nesse contexto
das Relações Exteriores do Brasil pagava que a bolsa de estudo do governo belga para
as passagens de ida e volta, e a USP dava a o doutorado foi cortada, enquanto eu con-
bolsa. Imagine só ter de concluir um dou- cluía a pesquisa de campo no país. Não pude
torado em apenas dois anos! Tive de me voltar e fiquei dando aula na Universidade
esforçar muito nesse período (1975-1977) Nacional do Congo, onde eu já era professor.
para aprender a língua portuguesa, cursar Em 1974, numa conferência na universida-
todas as disciplinas de pós-graduação, a de, conheci o professor F ernando Mourão
fim de cumprir os créditos exigidos, fazer (USP) e, ao lhe falar das minhas dificuldades
as pesquisas bibliográficas e escrever a tese. de concluir o doutorado na Bélgica, ele me
Consegui concluí-la e defendê-la em outu- informou sobre a possibilidade de fazê-lo na
bro de 1977 com nota 10, distinção e louvor! USP, por meio dos acordos de cooperação
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 171
com algumas universidades africanas. Foi como todo aposentado que não quer morrer
assim que cheguei à USP em julho de 1975 cedo intelectualmente, consegui uma bolsa
e defendi o meu doutorado em outubro de da Capes para atuar como professor visitan-
1977. Missão cumprida, voltei ao Congo para te sênior na UFRB, Campus de Cachoeira,
retomar o posto de professor na Universi- onde colaboro com o Programa de Pós-Gra-
dade Nacional. Infelizmente, por causa da duação em Ciências Sociais dando aulas e
ditadura militar, tive de fugir de volta ao com alguns projetos para o crescimento da
Brasil, onde reiniciei a carreira em 1979 universidade. A UFRB é uma universidade
na Universidade Federal do Rio Grande do nova que completou dez anos de vida neste
Norte (UFRN) (1979-1980). Em dezembro ano de 2016. E, como é de esperar, o corpo
de 1980, voltei à USP não mais como es- docente é muito jovem e está crescendo com
tudante, mas como professor concursado a instituição. A bolsa de professor visitante
no atual Departamento de Antropologia. sênior para aposentados foi criada justa-
Também ocupei três cargos de direção: di- mente para que essas novas universidades
retor do Museu de Arqueologia e Etnologia pudessem receber professores com mais
(1983-1989), vice-diretor do Museu de Arte tempo na carreira e com certa experiência
Contemporânea (2002-2006) e diretor do em termos de pesquisas e outras aptidões
Centro de Estudos Africanos (2006-2010). que os jovens ainda não possuem, visto que
Foi na USP que comecei, sem abrir mão da o processo de conhecimento é cumulativo.
África, a estudar a questão do negro no Bra- A bolsa é de dois anos e vence no meio des-
sil e onde orientei mais de 20 teses de douto- te ano. Antes do golpe, já estava garantida a
rado e 10 dissertações de mestrado. Cheguei renovação por mais dois anos. Entretanto,
ao topo da carreira como professor titular tendo-se em vista a situação de indefinição
e aposentei-me em 2012 por idade. Porém, em que vive o país, paira a incerteza no ar.
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
NOS ÚLTIMOS ANOS TEM-SE FALADO DE africanos e muitos países africanos abriram
UMA INTENSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES CO- embaixadas no Brasil. Além das relações di-
MERCIAIS COM OS PAÍSES AFRICANOS COMO plomáticas que envolvem acordos bilaterais
ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO. SE e de cooperação, constituintes das relações
CONSIDERARMOS QUE TROCAS MERCANTIS políticas entre os países, paralelamente são
TAMBÉM ENVOLVEM RELAÇÕES CULTURAIS desenvolvidas as relações econômicas e
E POLÍTICAS, QUAIS AS PERSPECTIVAS DESSA comerciais. Empresas brasileiras estão in-
RELAÇÃO BRASIL-ÁFRICA NO CONTEXTO DA vestindo na África, e mercadorias e produ-
ECONOMIA ATUAL? tos manufaturados brasileiros começaram
As relações entre o Brasil e os países a circular com intensidade no continente.
africanos datam da época do tráfico transa- Não tenho informações sobre a balança co-
tlântico, quando milhões de africanos, entre mercial entre o Brasil e os países africanos
os séculos XVI e XIX, foram deportados e em termos de exportação e importação, mas
escravizados neste país, cuja construção foi elas existem certamente. Na época da crise
ajudada por eles com a sua mão de obra escra- petrolífera, o petróleo de Angola interessou
vizada. De acordo com historiadores, cerca ao Brasil. Atualmente, a Companhia Vale
de 40% dos africanos transportados para as do Rio Doce tem concessão para explorar o
Américas tiveram o Brasil como país de des- carvão em Moçambique. A Odebrecht está
tino. Mas as relações das quais falamos hoje em Angola atuando na construção civil antes
datam das independências dos países africa- mesmo dos chineses. O esforço diplomático
nos, começando com Gana, onde o presidente do Brasil, em especial do governo Lula, que
Jânio Quadros inaugurou a primeira embai- não pode ser negado, fortaleceu grandemente
xada brasileira no continente africano e para as relações Sul-Sul com a África. São relações
onde ele enviou como primeiro embaixador bilaterais diferentes das existentes entres as
o brasileiro Raimundo Souza, ex-jornalista antigas metrópoles colonizadoras e as nações
negro. Essas relações se intensificaram muito africanas em construção. São relações que
durante os dois mandatos do presidente Lula. envolvem os sentimentos de solidariedade e
O Brasil abriu embaixadas em muitos países de respeito mútuo. Contudo, existem relações
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 173
desinteressadas, pois os interesses existem Graças a essas bolsas, os jovens têm acesso
em ambos os lados: africano e brasileiro. O a uma formação universitária fora dos seus
Brasil, como todo país no contexto da globa- países, sem passar pela lavagem cerebral so-
lização, tem o direito de entrar no mercado frida por muitos que estudam na Europa. O
globalizado, exportar produtos manufatu- CNPQ tem também um programa de bolsas
rados, serviços e comprar matérias-primas de estudos para graduação e pós-graduação
ou manufaturadas de outros países. Alguns que beneficia estudantes africanos dos países
enxergam isso como um imperialismo bra- conveniados com o Brasil dentro da política
sileiro na África, mas não é o meu ponto de de cooperação cultural ou universitária. Cor-
vista. Os países africanos se libertam rem boatos que o governo golpista de Temer
politicamente das relações bilaterais vai reduzir o número de representações di-
com os antigos colonizadores, que os plomáticas brasileiras nos países africanos
aprisionavam, ao comercializar com no- para contenção de despesas. Entretanto, por
vos parceiros não comprometidos com o que isso não se dá em países europeus e asiá-
neocolonialismo. Os interesses existem em ticos e por que somente na África? Podemos
ambos os lados, mas pautados em vínculos especular que a África não é significativa na
de respeito e sem a prepotência que caracte- diplomacia brasileira por causa das suas difi-
riza as relações com as antigas metrópoles culdades em matéria de desenvolvimento e de
colonizadoras pelas quais o Brasil também governança ou simplesmente por preconceito
foi colonizado. A criação da Universidade contra o continente negro? E a África que está
de Integração Internacional da Lusofonia dentro do Brasil? Essa África que ajudou no
Afro-Brasileira (Unilab), realizada pelo go- desenvolvimento do país com mão de obra
verno Lula faz parte dessas relações de coo- escrava? Como o atual governo pretende
peração Sul-Sul, pois muitos universitários lidar com ela considerando que alguns dos
africanos que estudam na Unilab, bolsistas seus ministros pertencem aos partidos que
subsidiados pelo governo brasileiro, são filhos se opuseram às políticas afirmativas para o
do povo africano; já que a elite africana man- ingresso dos estudantes negros na universi-
da os filhos para as universidades ocidentais. dade brasileira? Quem viver verá!
174 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
COMO UM DOS FUNDADORES DO CENTRO DE mais de 20 anos. Foi o primeiro centro uni-
ESTUDOS AFRICANOS (CEA), FALE UM POUCO versitário no Brasil que começou a se dedi-
SOBRE ESSA EXPERIÊNCIA? E QUAL A IMPOR- car inteiramente à África, sem influência do
TÂNCIA DO CEA HOJE? Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA
O Centro de Estudos Africanos, que e do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da
completou 50 anos, foi fundado nove anos Universidade Cândido Mendes, as primeiras
antes da minha chegada à USP. Aliás, foi por universidades a se dedicar à Á frica. Como
meio do então diretor do CEA, Fernando esta, segundo o acordo da União Africana, in-
Augusto de Albuquerque Mourão, que en- clui a diáspora como a sua sexta parte (África
contrei o caminho do Brasil e da USP. Par- do Norte, África Austral, África Ocidental,
ticipei intensamente da vida do CEA desde África Oriental, África Central e diáspora),
que entrei na universidade paulista, a ponto o Centro de Estudos Africanos da USP não
de me tornar um dos diretores (2006-2010) deixa de estudar a diáspora africana, o que
e ser membro do conselho deliberativo por fiz como estudioso do negro no Brasil. O CEA
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 177
continua a divulgar a África que ainda é mal desses dois cursos não pertencem apenas
conhecida pelo grande público brasileiro e aos quadros da USP. Participam também
a produzir por meio dos seus raros pesqui- intelectuais e notórios saberes negros, jus-
sadores um conhecimento direto sobre a tamente para destruir o mito de que é preciso
África, sem passar pela relação triangular ser branco para ensinar na USP. Aliás, tenho
África-Europa-Brasil como antigamente. É certeza de que é um dos cursos de difusão
por isso que no espírito da Lei 10.639/2003 cultural da universidade paulista com núme-
o CEA é o único centro de estudos africa- ro significativo de professores e professoras
nos no Brasil a introduzir dois cursos para negros e negras. Creio que a presença de dois
a formação dos professores que funcionam professores, um de naturalidade angolana
sem interrupção nos dois semestres do ano (Carlos Serrano) e outro congolesa (eu), que
há cerca de dez anos: introdução aos es- idealizaram e efetivaram esses dois cursos,
tudos africanos e aspectos da cultura e da foi determinante na definição no perfil “mul-
história do negro no Brasil. Os professores tirracial” dos professores e das professoras.
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
deixando de enxergar as dificuldades que em luta pelo poder para formar clientelas.
tal modelo acarretaria ao processo de cons- Os conflitos em Ruanda não eram étnicos
trução das novas nações. Por isso, quase porque Ruanda é uma sociedade testamen-
todos socialistas marxistas ou neoliberais tar ou de castas; os conflitos na Somália não
implantaram o partido único como me- eram étnicos porque a Somália é um Estado
lhor caminho para evitar as divisões que construído com base num único grupo étni-
resultariam das brigas pelo acesso ao po- co; os conflitos em Angola durante mais de
der. Isso prejudicou também o processo de 20 anos de guerra não eram étnicos, mas,
construção da democracia na África e está sim, partidários, entre dois partidos políti-
em grande parte na origem das guerras civis cos, o MPLA e a Unita, liderada por Jonas
que a imprensa ocidental chama de guerras Savimbi; a guerra de Biafra não era étnica,
tribais – ou étnicas, pelos mais generosos. mas uma guerra para o controle nacional do
As guerras na África pós-colonial são fun- poder desencadeada por lideranças nacio-
damentalmente guerras civis e não tribais nais no poder e fora dele. Podemos multipli-
nem étnicas. Nenhum país africano tem car os exemplos para desconstruir a ideia de
guerras entre grupos étnicos ou comunida- guerras étnicas, muitas vezes evocada para
des tradicionais, como acontecia na época explicar as dificuldades que o continente
da formação dos impérios em toda a história africano tem para levantar o processo do
da humanidade e não somente na África. É seu desenvolvimento econômico, deixando
claro que as afinidades étnicas e regionais de enxergar o neocolonialismo e o imperia-
são sempre manipuladas pelas lideranças lismo reforçados pela globalização.
180 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
O SENHOR COSTUMA AFIRMAR QUE “NO frase de Ali Wiesel, judeu ganhador do Nobel
BRASIL O RACISMO É UM CRIME PERFEITO”. da Paz 1986. Ele disse que o carrasco mata
PODERIA DISCORRER SOBRE ISSO? sempre duas vezes, a segunda pelo silêncio.
O racismo brasileiro é um crime perfei- Aproximei essa frase do racismo brasileiro,
to! Essa coisa de socializar as nossas ideias que, ao discriminar os negros, os mata fisi-
faz com que muitas vezes percamos de vista camente por meio de inúmeras exclusões
autores de algumas frases e conceitos-cha- que criam desigualdades e os levam a ser,
ves a respeito da nossa sorte coletiva como entre todos os pobres brasileiros, os mais
negros na sociedade brasileira. Repeti várias pobres; entre os analfabetos, os mais anal-
vezes essa frase nos meus textos a ponto de fabetos; entre os jovens universitários, o
ser considerado o seu cunhador. Na reali- abismo entre negros e brancos é o mais as-
dade, a primeira vez que escutei essa frase sustador (o que justifica a luta pelas cotas
foi em um dos nossos debates intelectuais ditas raciais); entre os executivos no setor
engajados sobre a discriminação racial ou empresarial, os negros são raríssimos; nos
racismo à brasileira. Recordo-me, se não três poderes (executivo, legislativo e judi-
me falha a memória, de ouvir da boca do in- cial), os negros são contados nos dedos da
telectual e militante negro professor Hélio mão (não sei quando teremos o segundo
Santos; era o que me faltava para qualificar Joaquim Barbosa no STF!); entre os pro-
o racismo e a discriminação contra o negro fessores universitários, os negros são quase
na sociedade brasileira. O professor Hélio invisíveis. Fui o primeiro professor negro
Santos não explicou o que ele entendia por na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
“crime perfeito”, mas fiz um esforço de bus- Humanas (FFLCH), a maior faculdade da
ca e especulação racional para entender o USP, onde ingressei em dezembro de 1980,
que ele queria dizer. Lembrei-me então da três anos antes do ingresso dos professores
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 181
das suas religiões, ou da “alma”, daí por que que desembocaram na promulgação das
desenvolveram estratégias que explicam a leis 10.639/2003 e 11.645/2008, obrigando
existência das chamadas religiões brasi- que sua história e cultura, como também a
leiras de matrizes africanas, como o can- dos povos indígenas, fossem ensinadas na
domblé. Por meio das religiões, resistiram escola básica brasileira. Há, sim, uma cul-
as artes visuais ligadas aos cultos. As con- tura negra de resistência que faz parte do
dições de vida no novo mundo os levaram pluralismo cultural brasileiro cujos símbo-
a criar novas culturas de resistência em los foram integrados na identidade nacional
defesa da sua dignidade e liberdade huma- brasileira. Nesse sentido, samba, feijoada,
nas, como a música, a literatura, a dança e capoeira, candomblé, congado e diversos es-
a capoeira – todas categorias de cultura ou, tilos musicais, inventados pelos negros nas
melhor, da chamada cultura negra. Embora condições assimétricas do Brasil colonial,
essas culturas fizessem parte do cotidiano são culturas negras manipuladas pelo dis-
de todos os brasileiros sem distinção de curso da ideologia dominante por meio dos
“raça”, elas não foram colocadas no mesmo conceitos de miscigenação e mestiçagem
pé de igualdade que os aportes culturais de para escamotear as desigualdades raciais.
origem europeia; não foram incluídas como Não somos racistas porque o samba, a fei-
resultantes de uma história no processo de joada, o candomblé, o maculelê, a capoeira
formação do cidadão brasileiro de modo etc. já são “nossos”. Entretanto, o conheci-
geral. Cruzando o Brasil do norte ao sul, do mento de onde ficam os produtores dessas
leste ao oeste, passando pelo centro, encon- culturas na sociedade brasileira é resolvido
tramos a cultura negra, produto da história pelo mito da democracia racial. Assim as
e das condições sociais, que muitas vezes situações de subalternidade, subserviência,
é vivida e consumida inconscientemente invisibilidade social dos negros em todos os
por todos os brasileiros. Daí as reivindica- setores da vida nacional são resolvidas pelo
ções das entidades do movimento negro binômio socioeconômico.
184 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES Entrevista com Kabengele Munanga 185
o golpe e até a volta da ditadura militar. Que se os jovens e as jovens querem participar,
educação eles receberam a ponto de esque- a maneira mais dinâmica é a performativa.
cer a história recente do Brasil, tendo-se em Eles/Elas têm de inventar estilos próprios
vista o fato de o ano 1968 não estar tão dis- de linguagem, de expressão, de se vestir, de
tante assim em termos de tempo histórico? se comportar que fujam do modelo mono-
Mas não devemos generalizar, pois muitos lógico da educação passiva recebida nas
jovens tomaram caminho oposto, fazendo escolas tradicionais ou nas suas próprias
até manifestações nas ruas para defender a famílias e dialogar com as sociedades e
democracia e as suas conquistas. No entanto, culturas numa pluralidade de vozes. Nessa
o futuro de uma nação repousa nas gerações perspectiva, não vejo contradições. A ques-
mais jovens, daí a importância da responsa- tão é saber em que ideologia eles se enqua-
bilidade dos “moribundos” ainda no poder, dram para exercer as suas performances, ou
no sentido de não deixar para os jovens uma seja, a serviço de quem eles desenvolvem os
herança envenenada. Essa responsabilidade comportamentos performativos: a serviço
passa pela educação na qual o respeito da da maioria da sociedade ou a serviço de
diversidade e das diferenças é fundamental. uma elite conservadora preocupada com a
Sabe-se que a educação sozinha não resolve manutenção do status quo? Creio que, nas
todos os problemas da sociedade se não for manifestações de rua em defesa do “golpe”
apoiada nas políticas públicas distributivas e contra ele, deu para perceber essas duas
e nas leis justas e equitativas. Não há como categorias de juventude, tendo cada uma um
equacionar todas essas questões quando modelo performativo diferente do outro de
não existe um projeto nacional que sirva de acordo com os interesses em jogo e as ideo-
âncora e de guarda-chuva capaz de abrigar logias envolventes. Quero dizer que a perfor-
todas as diferenças que constituem a riqueza mance em si não representa um problema,
coletiva da humanidade. No meu entender, mas sim a ideologia que a impulsiona.
188 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
imaginário coletivo das pessoas que enxer- macacos até nos campos de futebol! Mas nin-
gam a África só por meio dos clichês, ali todos guém se pergunta: por que os ocidentais e os
passam fome, só há miséria por toda parte e imperialistas não saem definitivamente do
os habitantes vivem permanentemente em continente africano se todo ele é tão ruim? É
guerras “tribais”. A única coisa boa que lhes essa imagem negativa da África distorcida e
agrada é a fauna africana exibida a todo tem- falsificada que se tenta descontruir por meio
po, como se no Hemisfério Norte não existis- da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino de
sem também animais dignos de exposição uma África real e verdadeira com os seus pro-
nas telas de TV. No entanto, na África há tam- blemas e dificuldades e não uma África idea-
bém gente que come, ri, canta, dança, festeja lizada e falsificada. Nós fomos surpreendidos
e se diverte enquanto outras adoecem e mor- ao escutar que, para diminuir as despesas,
rem de HIV ou outras calamidades. Quero o governo interino do Brasil quer reduzir o
dizer que existe uma África real com os seus número das representações diplomáticas no
54 países e os seus problemas, além da Áfri- continente africano. Por que não na Europa
ca dos clichês, do Simba Safári e do Tarzan. e na Ásia e sim na África? Deixo a resposta
Porém é esta a permanecer no imaginário sujeita à reflexão de cada um. Quem idealiza
de muitos brasileiros. A África dos clichês, a África ou oculta as dificuldades e os proble-
que é mais exibida que a África real, tem uma mas africanos não são os africanos. Por que
função ideológica indiscutível. Ela serve para não fazer o contrário e mostrar a verdadeira
fazer “calar a boca” de brasileiros(as) de as- África para melhor se aproximar dela no con-
cendência africana. Afinal, por que se queixar texto da chamada solidariedade humana? Se
da discriminação racial quando vivem me- isso não é feito é porque existe o interesse em
lhor aqui que os seus ancestrais na terra dos mostrar a África falsa ou idealizada e não a
“macacos”? Eles também são considerados África verdadeira e autêntica.
190 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
QUAIS INICIATIVAS O SETOR PÚBLICO E A INI- não apenas morais, mas sobretudo políticas
CIATIVA PRIVADA PODERIAM TOMAR PARA A para protegê-la e conservá-la. Porém, isso
PROMOÇÃO DA CULTURA NEGRA E, CONSE- não se faz sem um projeto político-cultu-
QUENTEMENTE, DE NEGROS E NEGRAS QUE ral que se encaixaria no projeto nacional de
PRODUZEM CULTURA? desenvolvimento cultural. Hoje se discute
Não pertence a mim dizer quais inicia- bastante a questão do multiculturalismo na
tivas o setor público e a iniciativa privada educação como se discute também a biodi-
brasileiros poderiam tomar para promover a versidade e a proteção do meio ambiente.
cultura negra e os homens e as mulheres que Não vejo como os setores público e privado
a produzem. Quem sou eu para sugerir o que brasileiros protegeriam a cultura negra fora
o Brasil deveria fazer ou deixar de fazer com do contexto do multiculturalismo, que é o
sua diversidade cultural, que é uma de suas oposto ao eurocentrismo. Os homens negros
grandes riquezas? A cultura negra, como já e as mulheres negras, produtores dessa cha-
disse, nada tem a ver com o fato de ser ne- mada cultura negra, devem ser protegidos e
gro, mas sim com as condições históricas que promovidos dentro do contexto geral do com-
os deportaram a fim de os transformar em bate ao racismo à brasileira, que faz com que
máquinas humanas escravizadas. Mas hoje sua produção cultural não seja incentivada
essa cultura faz parte do patrimônio histó- como ocorre com a produção cultural de seus
rico-cultural do Brasil, que tem obrigações compatriotas brancos.
192 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
Com o Cérebro na Mão
Teixeira Coelho
As inovações tecnológicas estão alterando em alta velocidade a ideia de
cultura e o próprio sentido de vida humana. A produção de bens culturais
nunca foi tão intensa, o consumo de cultura assume novas formas e pro-
fissões aparentemente estáveis, como as de analista financeiro e crítico de
arte, são hoje substituídas por programas de computador – cuja metáfora
mais aguda é o cérebro na mão. O ser humano começa a ter uma vida mais
longa num ambiente cada vez menos amigável enquanto a humanidade,
anotou Walter Benjamin há um bom tempo, se prepara para sobreviver à
civilização. Neste texto breve e intenso, Teixeira Coelho traça um quadro
da cultura contemporânea e das forças que a tensionam.
O Lugar do Público
Com a organização de Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e
Bernardette Goldstein, a publicação tem como foco conhecer efetivamen-
te o público. Acompanhar a visitação, identificar e compreender os tipos
de público tornou-se um desafio para a política de desenvolvimento dos
museus e monumentos. A partir de estudos de caso, O Lugar do Público
apresenta uma visão em perspectiva, lança luz sobre o jogo dos agentes
(quem encomenda e quem executa, os que decidem e os eleitos) e ilustra
o diálogo entre os setores de atividade e o campo acadêmico.
POLÍTICA, TRANSFORMAÇÕES E IDENTIDADES 193
Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a ocupar-se mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do turismo
e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral – do que de
suas questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é o primeiro
passo para colocar a arte em condições de atender realmente aos direi-
tos culturais, que hoje se reconhecem como seus.
Cultura e Educação
Teixeira Coelho (Org.)
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e Cul-
tura realizado no Itaú Cultural em setembro de 2009. Os participantes
latino-americanos (inclusive brasileiros) e espanhóis refletem sobre
práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de iniciativas admi-
nistrativas e curriculares e de ações cotidianas em sala de aula.
Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos “Matrimonium” e “Apocalipse”, de Michel
Maffesoli. Neles, o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade
para além do domínio das artes e analisa os fatos e os efeitos pós-mo-
dernos na vida social. A partir desse debate, Maffesoli questiona valores
como indivíduo, razão, economia e progresso – pedras fundamentais da
sociedade ocidental moderna, que está em crise, saturada.
Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser até mesmo
panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as conquistas
teóricas dos séculos passados que não mais servem para entender a
época contemporânea. Discutindo com o pensamento oficial, o autor
investe contra o politicamente correto, o moralmente correto e todas as
formas do bem pensar, isto é, contra as ideias feitas que se transmitem
e se repetem acriticamente.
Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo, os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão eco-
nômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cultural, as
ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida de desenvol-
vimento; para os tomadores de decisões, a contribuição da cultura para
a economia do conhecimento abre oportunidades originais de ação; para
os cidadãos, trata-se de ter os meios para compreender e defender um
setor cujo valor simbólico e potencial de riqueza humana e econômica
não podem mais ser ignorados.
198 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO