Sunteți pe pagina 1din 160

Carolina Alfaro de Carvalho

A tradução para legendas:


dos polissistemas
à singularidade do tradutor

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra Maria Paula Frota

Rio de Janeiro
Março de 2005
Carolina Alfaro de Carvalho

A tradução para legendas:


dos polissistemas
à singularidade do tradutor

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós-
Graduação em Letras do Departamento de Letras do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.

Profa. Dra. Maria Paula Frota


Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Dra. Heloisa Gonçalves Barbosa


UFRJ

Profa. Dra. Marcia do Amaral Peixoto Martins


Departamento de Letras – PUC-Rio

Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade


Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas

Rio de Janeiro, 28 de março de 2005.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e da
orientadora.

Carolina Alfaro de Carvalho


Graduou-se em Letras com Bacharelado em Tradução inglês-
português na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
em 1996. Cursou a Especialização em Tradução inglês-português
(pós-graduação lato sensu) na Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro em 1997. É tradutora de textos em inglês, espanhol
e português desde 1995 e realiza traduções para a legendagem de
filmes e programas, para cinema, televisão a cabo, VHS e DVD
desde 1998.

Ficha catalográfica

Carvalho, Carolina Alfaro de

A tradução para legendas: dos polissistemas à


singularidade do tradutor / Carolina Alfaro de Carvalho;
orientadora: Maria Paula Frota. – Rio de Janeiro: PUC-
Rio, Departamento de Letras, 2005.

160 f.: il.; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras.

Inclui referências bibliográficas

1. Letras – Teses. 2. Estudos descritivos de tradução.


3. Polissistemas. 4. Tradução audiovisual. 5. Legendas.
6. Tradução. I. Frota, Maria Paula. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento
de Letras. III. Título.

CDD: 400
Para minhas duas famílias
— vocês são o que eu mais prezo.
Agradecimentos

Ao Gustavo, minha outra metade, pelo carinho e apoio incondicional


a tudo.
A meus pais, pelas escolhas que me ensinaram a fazer.
A Maria Paula Frota, muito mais que orientadora, pela dedicação ao meu
projeto nestes dois anos, pelos comentários de fazer fundir a cabeça, pelo
incentivo constante e inclusive, no final, pelo apoio emocional.
A Marcia Martins, que tanto me incentivou a entrar no Mestrado e me
apresentou aos teóricos descritivistas, por todas as explicações e idéias trocadas
em muitas conversas.
A Marcelo Gattass e ao pessoal do Tecgraf/PUC-Rio pelo fundamental
apoio profissional para que eu pudesse me dedicar ao Mestrado.
A Marcelo Leite, Walkyria Nadaz e pessoal da Drei Marc, pelas
informações trocadas e pela enorme paciência com minha falta de disponibilidade
durante este período.
A Monika Pecegueiro do Amaral, que me abriu as portas ao mundo da
legendagem e ainda hoje me orienta e serve de inspiração.
Aos professores que se dispuseram a participar da banca de defesa: Marcia
Martins, Heloísa Barbosa e Helena Martins.
A meus colegas, professores e amigos da PUC pela troca de idéias, pelas
horas e horas de conversas, trabalhos e ensaios em conjunto, apresentações em
seminários e pelo incentivo na reta final.
À PUC-Rio pela bolsa de isenção de mensalidade que me permitiu cursar
o programa de Mestrado, e às secretárias do Departamento de Letras, Vera e
Francisca, pela atenção ao longo do curso.
Resumo

Carvalho, Carolina Alfaro de; Frota, Maria Paula (orientadora). A


tradução para legendas: dos polissistemas à singularidade do
tradutor. Dissertação de Mestrado, Departamento de Letras, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, 160 p.

Este trabalho se insere no contexto dos Estudos da Tradução contemporâneos, em


consonância com as teorias pós-estruturalistas no campo dos Estudos Sociais.
Adotando uma postura crítica que visa reaproximar teoria e prática, academia e
mercado profissional, este estudo investiga a prática da tradução para legendas,
entendida no âmbito da tradução audiovisual, a partir de uma perspectiva
sistêmica e funcional. A base teórica e metodológica adotada tem como ponto de
partida a Teoria dos Polissistemas e os fundamentos teóricos dos Estudos
Descritivos de Tradução, os quais são aqui ampliados e adaptados de modo a
incorporar o campo da tradução audiovisual. A tradução para legendas é então
investigada a partir de um contexto em maior escala — no qual incluem-se as
instituições, os profissionais e os procedimentos envolvidos na legendagem de
materiais audiovisuais — sendo enfocadas unidades progressivamente menores:
meios de veiculação, parâmetros técnicos, normas sintáticas e estilísticas.
Finalmente, examinando o processo tradutório no campo da legendagem, o estudo
culmina em reflexões sobre a dimensão singular do trabalho do tradutor — uma
lacuna nos Estudos Descritivos da Tradução e pouco explorada nas teorias
tradutórias de modo geral — e em considerações sobre a possibilidade de aliar ao
paradigma descritivo pesquisas sobre a subjetividade inerente à prática tradutória.

Palavras-chave

Estudos Descritivos de Tradução, polissistemas, tradução audiovisual, legendas,


subjetividade.
Abstract

Carvalho, Carolina Alfaro de; Frota, Maria Paula (advisor). Translation


for subtitles: from polysystems to the translator’s singularity. MSc
Dissertation, Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, 160 p.

The present work was developed in the context of contemporary Translation


Studies, in accordance with Post-Structuralist theories in the field of Social
Studies. Adopting a critical view that attempts to reunite theory and practice,
academy and industry, this study investigates the practice of subtitle translation —
seen within the scope of audiovisual translation — based on a systemic and
functional perspective. The theoretical and methodological bases are Polysystem
Theory and the fundaments of Descriptive Translation Studies, which are here
increased and adapted to comprehend the field of audiovisual translation.
Subtitling is then studied from a large-scale context — including the institutions,
professionals and proceedings involved in the subtitling of audiovisual materials
— and focusing on progressively smaller units: media, technical parameters,
syntactic and stylistic norms. Finally, by examining the process of translation in
the area of subtitling, this study leads to reflections on the singular dimension of
the translator’s task — a gap in Descriptive Translation Studies and still little
explored in translation theories in general — and to considerations on the
possibility of combining the descriptive paradigm with research about the
subjectivity intrinsic to translation.

Keywords

Descriptive Translation Studies, polysystems, audiovisual translation, subtitles,


subjectivity.
Sumário

I Introdução...................................................................................................... 14
I.1 Pesquisas no campo da tradução audiovisual ........................................ 18
I.2 Esclarecimento terminológico ............................................................... 23
I.3 Estrutura da dissertação ......................................................................... 26
II Fundamentos Teóricos e Metodológicos....................................................... 28
II.1 A Teoria dos Polissistemas.................................................................... 29
II.1.1 O polissistema literário .................................................................... 30
II.1.2 O polissistema de tradução literária................................................. 34
II.2 Os Estudos Descritivos de Tradução..................................................... 38
II.2.1 O foco no sistema-alvo .................................................................... 41
II.2.2 O conceito de assumed translation.................................................. 44
II.2.3 O conceito de norma e as normas de tradução ................................ 47
II.2.4 Os mecanismos de controle ............................................................. 54
II.3 O modelo metodológico de Lambert e van Gorp .................................. 56
II.4 Comentários sobre a Teoria dos Polissistemas e os Estudos
Descritivos de Tradução ........................................................................ 58
III Ampliação dos Fundamentos Teóricos e Aplicação ao Estudo da
Tradução Audiovisual................................................................................ 66
III.1 O polissistema audiovisual .................................................................... 67
III.2 O polissistema de tradução audiovisual................................................. 70
III.2.1 A relação entre o polissistema audiovisual e o polissistema
literário............................................................................................. 71
III.2.2 Configuração interna do polissistema de tradução audiovisual....... 75
III.2.3 O processo da tradução audiovisual ................................................ 82
III.2.4 Modelo de Lambert e van Gorp adaptado à tradução audiovisual .. 88
IV A Tradução para Legendas ........................................................................ 92
IV.1 A legendagem em contraposição à dublagem ....................................... 94
IV.2 A legendagem em contraposição à tradução literária............................ 97
IV.3 A legendagem como tradução diagonal................................................. 99
IV.4 Normas da tradução para legendas ...................................................... 101
IV.4.1 Normas referentes ao meio ............................................................ 102
IV.4.2 Normas referentes à elaboração das legendas ............................... 112
IV.4.3 Normas dos clientes e mecanismos de controle ............................ 126
IV.5 Reflexões sobre a posição do tradutor no sistema de tradução para
legendas ............................................................................................... 133
V A Subjetividade na Tradução para Legendas .............................................. 137
V.1 O sujeito-tradutor................................................................................. 138
V.2 A vulnerabilidade da legendagem ....................................................... 144
V.3 Uma nova proposta.............................................................................. 151
VI Conclusões............................................................................................... 155
Referências Bibliográficas................................................................................... 157
Lista de figuras

Figura 1 - Representação gráfica da Teoria dos Polissistemas.............................. 38


Figura 2 - Inserção do polissistema audiovisual na representação gráfica da
Teoria dos Polissistemas. ...................................................................... 71
Figura 3 - Capa da segunda edição do livro Cidade de Deus; capa do DVD
lançado no Brasil; capa do DVD lançado nos Estados Unidos
(Exemplo 1). ......................................................................................... 74
Figura 4 - Ilustração da noção de tradução diagonal............................................ 77
Figura 5 - Trecho de roteiro cinematográfico (Exemplo 3)................................. 105
Figura 6 - Time code exibido na parte superior da tela. ...................................... 108
Figura 7 - Tela de um programa de legendagem. ................................................ 109
Figura 8 - Trecho de arquivo de texto recebido para legendagem em DVD
(Exemplo 4). ....................................................................................... 112
Figura 9 - Representação de um trecho de discurso oral (Exemplo 5)................ 115
Figura 10 - Legendas e timing correspondentes ao trecho da figura anterior
(Exemplo 5). ..................................................................................... 116
Figura 11 - Trecho de roteiro cinematográfico (Exemplo 6)............................... 122
Figura 12 - Legendas correspondentes ao trecho reproduzido na figura anterior
(Exemplo 6). ..................................................................................... 122
Figura 13 - Transcrição de trecho de narração (Exemplo 7). .............................. 123
Figura 14 - Legendas correspondentes ao trecho reproduzido na figura anterior
(Exemplo 7). ..................................................................................... 123
Figura 15 - Transcrição de trecho de palestra (Exemplo 8). ............................... 124
Figura 16 - Legendas correspondentes ao trecho reproduzido na figura anterior
(Exemplo 8). ..................................................................................... 125
Figura 17 - Trecho do roteiro cinematográfico de The madness of King George
(Exemplo 9). ..................................................................................... 130
Figura 18 - Transcrição correspondente ao trecho da figura anterior
(Exemplo 9). ..................................................................................... 131
Figura 19 - Legendas correspondentes à transcrição da figura anterior
(Exemplo 9). ..................................................................................... 131
Figura 20 - Transcrição de trecho de diálogo (Exemplo 10)............................... 146
Figura 21 - Legendas correspondentes à transcrição da figura anterior
(Exemplo 10). ................................................................................... 148
Lista de exemplos

Exemplo 1 - Relação entre o livro e o filme Cidade de Deus................................72


Exemplo 2 - Objetivos diferentes, traduções diferentes.........................................87
Exemplo 3 - Roteiro cinematográfico. .................................................................104
Exemplo 4 - Transcrição e timing de material a ser traduzido para DVD. ..........111
Exemplo 5 - Segmentação do texto oral para adequação ao formato das
legendas ...........................................................................................114
Exemplo 6 - Tratamento de referências culturais e geográficas (caso 1).............121
Exemplo 7 - Tratamento de referências culturais e geográficas (caso 2).............122
Exemplo 8 - Tratamento de referências culturais e geográficas (caso 3).............123
Exemplo 9 - Conflito de normas. .........................................................................127
Exemplo 10 - Decisões singulares do tradutor.....................................................145
A essência da tradução
é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização.
Ela é relação, ou não é nada.

Antoine Berman, A prova do estrangeiro.


I
INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a Lingüística e a Teoria Literária passaram por significativas


transformações teóricas e metodológicas provocadas por reflexões no campo das
Ciências Humanas, principalmente ligadas à Filosofia, à Psicanálise, à Sociologia
e à Antropologia. Em tais reflexões, alguns tópicos que merecem destaque são a
relação sujeito/objeto, o relativismo lingüístico e a fragmentação e permeabilidade
das identidades individuais. Neste início de século XXI, penso que já podemos
dizer que os questionamentos teóricos do Pós-Estruturalismo e o entrecruzamento
entre sujeito, língua, cultura e ideologia representam a visão hegemônica entre
teóricos da linguagem.
Uma das conseqüências dessas transformações foi o enfraquecimento da
postura cientificista nas Ciências Humanas, acompanhado de uma flexibilização
metodológica e uma maior contextualização e relativização dos fenômenos
tratados. A prescrição cedeu espaço à descrição; o etnocentrismo à etnografia. A
noção de originalidade também perdeu força em relação à de intertextualidade, de
forma que toda escrita será sempre uma reescrita de inúmeros outros textos.
No campo dos Estudos da Tradução, essas mudanças tiveram como
principal contribuição libertar a atividade tradutória dos ideais tradicionais de
literalidade e fidelidade e, conseqüentemente, aliviar o tradutor da tarefa
impossível de resgatar e preservar um suposto sentido original contido no texto. O
tradutor passou a ser visto por muitos como intérprete e criador, e entende-se que
seus textos são informados por seu contexto histórico, seu meio social, sua
ideologia, seu inconsciente.
Entretanto, em casos mais extremos esse movimento acabou por conferir
às concepções teóricas sobre a tradução uma certa falta de limites que parece
legitimar como ato tradutório toda e qualquer prática de escrita ou reescrita, intra
ou inter-cultural. Porém, se não existe original, se um texto não possui nenhum
conteúdo intrínseco, se toda escolha de palavras representa um posicionamento
ideológico e se qualquer tentativa de conceituação mais restrita de tradução é
Introdução 15

rotulada de logocêntrica ou prescritivista, então qual seriam, de fato, a natureza


dessa atividade e o papel do tradutor?
Começou-se a perceber então a inviabilidade, para a prática tradutória, de
uma concepção de tradução que, destituída de suas definições tradicionais, não
mais possuísse parâmetros delimitadores minimamente claros e partilhados. Uma
das conseqüências disso é o acirramento da distância entre teoria e prática, entre
academia e mercado de trabalho. Por um lado, a maioria dos tradutores
profissionais não tem interesse pela teoria por considerá-la inútil; por outro,
muitos acadêmicos desdenham os tradutores que continuam a trabalhar
acreditando em concepções ultrapassadas semelhantes às do senso comum. Desse
modo, a maior parte dos trabalhos de tradução, assim como sua recepção e crítica,
não é influenciada pelas discussões teóricas, as quais ficam relegadas a exercícios
de divagação filosófica — sem dúvida fascinantes, mas sem aplicação prática.
Esse abismo foi reconhecido pela Lingüística, pela Teoria Literária e pelos
Estudos da Tradução, e começou a configurar-se um movimento que, sem
desconsiderar a relevância dos avanços teóricos, busca identificar ou estabelecer
algumas restrições à aparente falta de limites por estes gerada. Diversos autores,
inclusive alguns dos que participaram intensamente do movimento pós-
estruturalista, vêm refletindo sobre o rumo tomado pelas teorias, a relação entre a
academia e o mercado e entre a teoria e o senso comum, além de questões éticas
de diversas naturezas. No campo da tradução, em paralelo a essas discussões, tem-
se repensado a própria identidade do fazer tradutório e sua relação com outras
atividades, tais como a criação autoral e a adaptação.
Como exemplos dessas reflexões, podemos mencionar as discussões de
Umberto Eco em Os limites da interpretação (2000) e Interpretação e
superinterpretação (1993), nas quais o autor defende que todo texto possui algum
conteúdo intrínseco e reivindica, se não um número restrito de leituras possíveis
para um determinado texto, ao menos a possibilidade de descartar leituras
consideradas extrapolações — isto é, “estabelecer uma espécie de princípio
popperiano, não para legitimar as boas interpretações mas para deslegitimar as
ruins” (Eco, 2000: 16). O autor afirma ainda que

dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato
de interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionista
mais radical aceita a idéia de que existem interpretações clamorosamente
inaceitáveis. Isso significa que o texto interpretado impõe restrições a
Carolina Alfaro de Carvalho 16

seus intérpretes. Os limites da interpretação coincidem com os direitos do


texto (o que não quer dizer que coincidam com os direitos de seu autor).
(ibid: xxii)1

As conseqüências desses argumentos para o trabalho do tradutor são


evidentes: o fato de que ele possa interpretar o texto de inúmeras maneiras não
quer dizer que todas as suas interpretações serão válidas, principalmente se ele
não respeitar certos limites impostos pelo texto. Essas colocações voltam a trazer
à tona a discussão sobre que tipo de informação está de fato contida no texto e
sobre a natureza e os objetivos do esforço interpretativo por parte do leitor.
Outro trabalho que merece menção é o recente livro de Kanavillil
Rajagopalan (2003), Por uma Lingüística crítica, em que ele questiona o
isolamento no qual a Teoria Lingüística se colocou e defende uma Lingüística
mais crítica, política e ética que volte a se preocupar com problemas práticos e
não simplesmente descarte o senso comum como sendo ignorante das “verdades”
sobre a língua.

Contrariamente a muitos colegas, no Brasil e no exterior, que acreditam


que o que falta é a maior divulgação dos resultados das pesquisas
realizadas numa linguagem acessível ao leigo, sou da opinião de que é
preciso também rever alguns postulados fundadores da disciplina. No
lugar da divulgação, penso que o que deve haver é uma maior interação.
Entre o lingüista e o leigo. Interação implica, por sua vez, entrosamento.
A divulgação é monológica, unilateral. [...] De nada vale nossa vontade,
como lingüistas, de nos comunicar com o público leigo, se ela se limita a
uma vontade de “promulgar” os ensinamentos da lingüística. (ibid: 9-10)

A presente pesquisa procura levar em consideração essa observação.


Apesar de o público-alvo direto deste trabalho não serem os leigos em tradução e
sim os tradutores — tanto os mais voltados para a academia quanto os envolvidos
com o mercado profissional —, concordo com Rajagopalan que é necessário um
entrosamento maior entre nós, produtores de traduções e de reflexões sobre nossa
atividade, e o público leigo que consome os produtos de nosso trabalho e que gera
demanda pela maior parte de nossos serviços. Portanto, ao longo deste texto,
buscarei levar em conta essa demanda e as expectativas do público consumidor.
Já no campo específico da tradução, vale destacar The return to ethics,

1
Ao longo deste trabalho, estou convencionando manter as citações sempre em português. No
caso de textos escritos ou traduzidos em português, a citação não é acompanhada por nota de
rodapé. Já no caso de textos em outras línguas — inglês ou espanhol —, decidi manter como nota
de rodapé o texto original, para dar ao leitor a liberdade de verificar os termos ou formas
originalmente empregados por seus autores.
Introdução 17

coletânea organizada por Anthony Pym, o qual explicitamente considera o


movimento teórico dos anos 1990 uma “over-reaction” (Pym, 2001a: 129) e busca
reaproximar teoria e prática retomando conceitos e metodologias que
necessariamente devem passar por considerações de natureza ética. Duas
observações que o autor faz ao apresentar seus objetivos se aproximam do
percurso deste trabalho:

A ética é agora uma questão amplamente contextual, dependente da


prática realizada em locais culturais específicos e de determinantes
situacionais. Parece haver uma concordância cada vez maior em se focar
nas pessoas e não nos textos [...].2 (ibid: 137)

E:

O retorno à ética, para que tenha alguma substância, deve ser um retorno
a um pensamento de uma natureza muito aplicada [...]. A ética deve estar
enraizada na individualidade histórica daquilo que os tradutores fazem, e
só então em apelos a princípios abstratos ou atemporais.3 (ibid: 136)

Essas citações se relacionam à presente pesquisa em três aspectos, os quais


permearão toda esta dissertação: (i) a necessária convergência entre teoria e
prática; (ii) a ênfase na contextualização das diversas atividades e no papel dos
profissionais que as exercem; e (iii) a menção à dimensão subjetiva inerente à
prática tradutória.
Assim, o presente trabalho procura se alinhar a esse movimento atual, que
se baseia no Pós-Estruturalismo porém assume uma atitude crítica em decorrência
de alguns de seus efeitos. Ele incorpora posturas adotadas nas últimas décadas do
século XX, adota uma abordagem descritiva e sistêmica, relativiza conceituações,
busca evitar o uso de distinções e dicotomias baseadas em uma visão de mundo
que se pretende neutra, leva em consideração o olhar e a postura da pesquisadora
com relação ao objeto de estudo e inclui algumas reflexões informadas por outras
áreas das chamadas Ciências Humanas. Tudo isso atrelando as discussões teóricas
a uma prática específica que cumpre diversas funções e envolve interesses de
tradutores, clientes, acadêmicos e também do público que usufrui dos produtos
desse trabalho sem partilhar de uma visão mais elaborada sobre o processo de

2
Ethics is now a broadly contextual question, dependent on practice in specific cultural locations
and situational determinants. There would seem to be increasing agreement to focus on people
rather than texts […].
3
The return to ethics, if it is to have any substance, must be a return to thought of a very applied
nature […]. Ethics must take root in the historical individuality of what translators do, and only
then in appeals to abstract or timeless principles.
Carolina Alfaro de Carvalho 18

tradução.
Essa prática é a da tradução para legendas, atividade que exerço
regularmente há alguns anos e em relação à qual desenvolvi um grande interesse
teórico. Essa atividade constitui o objeto de estudo central desta dissertação e é
apresentada a seguir.

I.1 Pesquisas no campo da tradução audiovisual

Desde o advento do cinema, os meios audiovisuais vêm se desenvolvendo, se


diversificando e se tornando mais influentes como recursos de comunicação entre
as culturas de todo o mundo. E a tradução dos diversos produtos ligados a tais
meios sempre acompanhou esse desenvolvimento. O século XX testemunhou a
explosão dos meios audiovisuais com o cinema falado, a televisão, os
equipamentos de vídeo domésticos, a computação, a Internet e o DVD, muitos dos
quais permitem, além da simples recepção de produtos, a interação com eles de
inúmeras maneiras. Hoje, cada vez mais vertiginosamente, a “[c]onvergência
entre mídia, telecomunicações e TIC [Tecnologias de Informação e Comunicação]
continua aumentando a natureza multimedial, ou polissemiótica, da comunicação
eletrônica”4 (Gambier & Gottlieb, 2001: xiii).
Contudo, apesar de praticadas há tanto tempo e em enorme expansão nas
últimas décadas, as diversas modalidades de tradução empregadas para facilitar o
trânsito de todos esses produtos entre culturas têm sido praticamente ignoradas
como objeto de estudo teórico até a virada deste século. Como aponta Jorge Díaz
Cintas, trata-se de

um certo paradoxo, que destaca o surpreendente desequilíbrio que existe


entre a pouca pesquisa que tem sido dedicada a este fenômeno do
comportamento humano e seu enorme impacto social. Em termos
numéricos, a tradução levada a cabo nos meios audiovisuais é talvez a
atividade tradutora mais importante de nossos dias. Por duas razões. Em
primeiro lugar pelo número de pessoas a que ela chega, dada a facilidade
de recepção através, fundamentalmente, da televisão. Em segundo lugar,
pela grande quantidade de produtos traduzidos que são transmitidos a
outras culturas: documentários, entrevistas, filmes, notícias, debates,

4
Convergence between media, telecommunications and ICT keeps increasing the multimedial, or
polysemiotic, nature of electronic communication.
Introdução 19

espetáculos, etc...5 (Díaz Cintas, 1997: 9)

Dentre essas modalidades, as mais conhecidas em nossa cultura são as


seguintes: a tradução feita através da inserção de legendas, geralmente na parte
inferior da tela de exibição, de forma sincronizada com as falas — também
chamada legendação ou legendagem —; a dublagem, que consiste em substituir o
canal de áudio com o texto oral na língua original por um canal de áudio com o
texto traduzido; o voice over, em que a voz de um intérprete se sobrepõe ao áudio
original mas sem apagá-lo; e, mais recentemente, o closed caption, semelhante à
legendagem porém feito na mesma língua do produto, visando auxiliar deficientes
auditivos ou pessoas com dificuldade de compreensão da língua oral.
Existem ainda várias outras práticas e diversas subdivisões dessa área,
dependendo de como ela é delimitada — conforme será visto na Seção I.2.
Gambier (2002) chega a identificar 14 modalidades no campo que ele denomina
screen translation. Entre elas, além das já mencionadas, podemos destacar a
tradução de roteiros; a legendagem simultânea ou ao vivo, que pode ser realizada
em conjunto por um intérprete e um digitador ou, mais recentemente, por um
intérprete utilizando um sistema de reconhecimento de voz que gera as legendas; a
interpretação simultânea ou consecutiva de eventos transmitidos ao vivo; o
surtitling, também semelhante à legendagem e exibido sobre o palco em peças
teatrais e óperas; e o audio vision, um tipo de dublagem em que são feitos
comentários e descritas as cenas, para auxiliar deficientes visuais.
Como foi dito na seção anterior, meu principal objeto de estudo será a
tradução para legendas ou legendagem. No Brasil, essa prática divide com a
dublagem a tradução da quase totalidade dos produtos audiovisuais veiculados
através de cinemas, canais de televisão abertos e fechados, VHS e DVD.
Um dos pontos acerca do qual concordam aqueles que se aventuram a
pesquisar esta área de forma mais aprofundada é a carência de fundamentos
teóricos e metodológicos adequados ao desenvolvimento de estudos mais

5
una cierta paradoja, que subraya el sorprendente desequilibrio que existe entre la poca
investigación que se le ha dedicado a este fenómeno del comportamiento humano y su enorme
impacto social. En términos numéricos, la traducción que se lleva a cabo en los medios
audiovisuales es quizás la actividad traductora más importante de nuestros días. Por dos razones.
En primer lugar por el número de personas al que llega, dada la facilidad de recepción a través,
fundamentalmente, de la televisión. En segundo lugar, por la gran cantidad de productos
traducidos que se trasvasan a otras culturas: documentales, entrevistas, películas, noticias, debates,
galas, etc...
Carolina Alfaro de Carvalho 20

sistemáticos. Essa falta de fundamentação torna difícil agregar pesquisas isoladas


e assim fazer com que os resultados convirjam de forma a melhorar a qualidade
das práticas, elaborar métodos de ensino especializados e direcionar o
desenvolvimento da teoria. Yves Gambier e Henrik Gottlieb afirmam, na
introdução à coletânea que organizaram dedicada à tradução de multimídia, que

[a]pesar das muitas contribuições apresentadas neste volume, a pesquisa


em tradução de (multi)mídia continua difícil [...] devido à falta de
arcabouços teóricos e instrumentos metodológicos apropriados. Até hoje,
essa pesquisa não foi confrontada, por exemplo, pela teoria da relevância,
abordagem polissistêmica, análise crítica do discurso (tão útil em Estudos
de Mídia) ou psicologia cognitiva.6 (Gambier & Gottlieb, 2001: xix-xx)

Um dos principais empecilhos ao desenvolvimento de tais arcabouços é a


grande gama de práticas e modalidades tradutórias envolvidas sob rótulos como
tradução de multimídia ou tradução audiovisual. É ingênuo esperar que uma só
teoria possa dar conta de todas essas modalidades, sobretudo considerando-se que
cada uma delas sofre transformações nos diversos contextos culturais. Parece-me
mais lógico e sensato partir de descrições e reflexões sobre práticas mais
localizadas, fazendo-as convergir gradativamente com base em seus aspectos
comuns para então chegar a modelos mais gerais. Isso é o que se vem buscando
com mais constância desde o fim da década de 1990, mas geralmente de forma
dispersa e desconexa, a partir de áreas da Lingüística, da Semiologia ou mesmo
dos Estudos da Tradução que seguem direções distintas e nem sempre se prestam
facilmente à desejada convergência.
Com relação à tradução para legendas, a ampla maioria dos artigos e
trabalhos acadêmicos sobre o assunto se restringe ou a descrever as principais
características técnicas e operacionais dessa atividade, ressaltando as dificuldades
no trabalho do tradutor, ou a relatar casos concretos, como a tradução de um
determinado filme ou programa para uma língua específica, destacando questões
problemáticas e fazendo observações que, ainda que ajudem a constituir um
corpus de estudos nesta área, são de difícil generalização devido a seu caráter
predominantemente empírico. Há ainda alguns manuais elaborados por produtoras
especializadas em legendagem cujo nível de detalhe pode fornecer insights

6
In spite of the many contributions presented in this volume, research in (multi)media translation
remains difficult […], for lack of appropriate theoretical frames and methodological tools. Until
today, this research has not been confronted, for instance, by relevance theory, polysystemic
approach, critical discourse analysis (so useful in Media Studies) or cognitive psychology.
Introdução 21

interessantes ao pesquisador mas que são centrados apenas na prática, geralmente


com o objetivo de obter um certo grau de padronização técnica no trabalho da
equipe de tradutores e facilitar o controle de qualidade.
Porém, dado o interesse que o tema vem despertando, a partir desta virada
de século começaram a surgir estudos teóricos de maior fôlego — geralmente
ligados a práticas e contextos culturais específicos, como dito acima. No Brasil,
consegui localizar menos de uma dezena de dissertações e teses dedicadas à
tradução para legendas, mas sei que há várias outras em desenvolvimento e o
primeiro volume temático sobre tradução audiovisual está sendo preparado para
ser lançado em 2005 como um número especial dos Cadernos de Tradução,
publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina. No exterior, as duas
principais editoras de obras sobre Estudos da Tradução, a John Benjamins e a St.
Jerome, recentemente publicaram edições especiais incluindo colaborações dos
autores mais reconhecidos na área — respectivamente, o já citado (Multi)Media
translation: concepts, practices, and research (Gambier & Gottlieb, 2001) e
Screen Translation (Gambier, 2003).
Durante minha pesquisa, até muito recentemente eu não havia encontrado
outros trabalhos de teor eminentemente teórico que examinassem a tradução para
legendas segundo o enfoque de duas abordagens inter-relacionadas que a meu ver
representam um meio termo entre o superado cientificismo e os posicionamentos
pós-estruturalistas mais radicais, e que se prestam a serem adaptadas de modo a
fornecer subsídios para estudos mais aprofundados nessa área: a Teoria dos
Polissistemas e os Estudos Descritivos de Tradução. Como já foi mencionado, por
um lado as pesquisas de caráter descritivo tendem a relatar estudos de casos
concretos empregando diretamente — muitas vezes de forma não explícita —
conceitos e métodos dos Estudos Descritivos. Por outro, as raras propostas
metodológicas para o estudo de modalidades da tradução audiovisual por vezes
focalizam práticas diferentes da legendagem — vale destacar que a dublagem é a
forma mais empregada em muitos países da Europa, de onde provém grande parte
das pesquisas em tradução — ou se baseiam em outras subáreas ou paradigmas
teóricos dos Estudos da Linguagem.
Dada a suposta inexistência de um enfoque sistêmico, descritivo e
funcional que permitisse o desenvolvimento de estudos bem fundamentados sobre
a tradução para legendas, comecei então a empreender a tarefa dupla de (i)
Carolina Alfaro de Carvalho 22

descrever sistemicamente a legendagem no contexto das práticas de tradução


audiovisual realizadas no Brasil, empregando como subsídios tanto os diversos
manuais técnicos, artigos e trabalhos acadêmicos publicados sobre o tema quanto
minha própria experiência como tradutora para legendas; e (ii) refletir sobre as
concepções teóricas e as propostas metodológicas da Teoria dos Polissistemas e
dos Estudos Descritivos de Tradução de forma a adaptá-las ao contexto da
tradução audiovisual, com foco na legendagem, visando contribuir para o
desenvolvimento de uma metodologia de estudo sólida, capaz de sistematizar e
agregar o número crescente de pesquisas realizadas nessa área.
Paralelamente a essa tarefa, a leitura de A singularidade na escrita
tradutora – linguagem e subjetividade nos Estudos da Tradução, na Lingüística e
na Psicanálise, de Maria Paula Frota (2000), me fez dedicar uma parcela de
minha atenção ao aspecto singular das escolhas do tradutor durante seu trabalho,
aspecto esse que, de modo intuitivo, eu já percebia como especialmente presente
na tradução para legendas e que tende a ser excluído do escopo das teorias e
pesquisas em tradução. Surgiu então um segundo objetivo: no contexto da prática
da tradução para legendas vista sob a ótica de um modelo ampliado dos Estudos
Descritivos de Tradução, refletir sobre o tradutor enquanto sujeito inserido em
determinados polissistemas e sobre os aspectos singulares da sua prática.
O presente trabalho já estava em pleno desenvolvimento quando o teórico
espanhol Jorge Díaz Cintas, cujo trabalho tive a oportunidade de conhecer há
poucos meses, gentilmente me enviou sua tese de Doutorado (1997), uma
pesquisa extensa e muito abrangente cujo objetivo é justamente propor um modelo
teórico e metodológico para o estudo da tradução para legendas de filmes com
base nos Estudos da Tradução, dentre os quais se destacam a Teoria dos
Polissistemas e os Estudos Descritivos. Meu trabalho e o dele se diferenciam em
vários aspectos, muitos deles devidos às diferenças significativas no papel da
legendagem na Espanha e no Brasil — na primeira, ela ocupa uma posição muito
secundária com relação à dublagem e, no segundo, a legendagem é uma prática já
tradicional e amplamente aceita — e ao grande desenvolvimento nos últimos 7 ou
8 anos dos estudos sobre a tradução audiovisual, além da questão da subjetividade
do tradutor, que não é por ele abordada. Mas também há vários pontos de
sobreposição, em relação aos quais não quero deixar de apontar a anterioridade
das contribuições de Díaz Cintas e tentar fazer com que essa convergência
Introdução 23

produza reflexões mais atuais, abrangentes e úteis para os estudiosos e


profissionais da área.
Portanto, em síntese, a presente dissertação visa trazer contribuições em
três frentes:
(i) no ramo teórico e metodológico dos Estudos da Tradução, através da
ampliação, adaptação e atualização da Teoria dos Polissistemas e dos
Estudos Descritivos de Tradução, enfocando os sistemas em que se praticam
algumas das modalidades da tradução audiovisual, particularmente a
tradução para legendas;
(ii) na prática da tradução para legendas entendida no contexto da tradução
audiovisual, por meio de uma visão sistêmica e funcional dessa atividade
que possa fornecer insights úteis a profissionais, estudiosos, professores e
alunos de tradução;
(iii) nas reflexões sobre o aspecto singular da intervenção do tradutor em sua
prática, com o intuito de manter em pauta essa importante faceta da
tradução, a qual, a meu ver, pode enriquecer ainda mais as duas frentes
acima.
A despeito do desmembramento desses assuntos em diferentes capítulos
com vistas a estruturar e facilitar a leitura do texto, minha intenção é entendê-los
de forma inter-relacionada, procurando integrar teoria e prática e propiciar uma
maior aproximação entre academia e mercado de trabalho.

I.2 Esclarecimento terminológico

Estou adotando o termo tradução audiovisual, mas essa denominação não é


unânime. Na literatura relacionada ao vasto conjunto de práticas entre as quais
inclui-se a tradução de filmes e programas no formato de legendas, ainda se está
buscando uma denominação que delimite essa área de forma satisfatória.
Por vezes fala-se na tradução de cinema ou tradução cinematográfica,
mas o cinema é apenas um dos meios em que um determinado produto e sua
tradução podem ser exibidos. De forma semelhante, tradução de filmes ou
tradução fílmica (film translation) deixa de considerar — muitas vezes
involuntariamente — uma ampla gama de produtos que a rigor não são filmes, tais
Carolina Alfaro de Carvalho 24

como reportagens, documentários, séries ou desenhos animados.


Em inglês, usa-se também o termo screen translation, por vezes traduzido
em português como tradução para as telas, que em sua acepção mais restrita
talvez seja o que mais se aproxime do conjunto de práticas que integram o foco
central deste trabalho: programas exibidos nas telas dos cinemas e dos aparelhos
de televisão, traduzidos através de diversas formas orais e escritas. Contudo, sua
acepção mais abrangente e atual inclui também vários produtos exibidos na tela
do computador, tais como páginas da Internet, jogos e aplicações de Informática
(Díaz Cintas, 2003), o que a torna ampla demais para meus propósitos.
Os dois termos mais empregados atualmente, tradução de multimídia
(multimedia translation) e tradução audiovisual (audiovisual translation), são
vastos, difíceis de delimitar e freqüentemente se confundem (Gambier & Gottlieb,
2001). O primeiro dá conta dos múltiplos canais envolvidos na emissão e o
segundo remete aos sentidos envolvidos na recepção dos produtos e suas
traduções. Isso faz com que esses termos sejam empregados para abrigar práticas
tão diversas quanto a localização de sistemas computacionais, a adaptação de
materiais educacionais e pedagógicos, a interpretação simultânea de espetáculos
transmitidos ao vivo e a elaboração de legendas fechadas para deficientes
auditivos, atividades claramente distintas e em geral praticadas por profissionais
com especializações diferentes.
Outra proposta terminológica é constrained translation, termo apresentado
por Christopher Titford e empregado por Jorge Díaz Cintas (1997), traduzido
como tradução subordinada. Esse termo é também utilizado por outros teóricos
espanhóis em referência às modalidades de tradução nas quais outros códigos
semióticos, além do lingüístico, impõem coerções à tarefa do tradutor. Ele se
aplica muito bem a diversas práticas tradicionalmente relacionadas à tradução
audiovisual, tais como a legendagem e a dublagem, que são subordinadas a
imagens, sons e aspectos fonéticos (no caso da dublagem), além de restrições de
tempo e espaço (este último no caso da legendagem). Porém, esse termo é ainda
mais vasto do que tradução audiovisual, visto que também abrange modalidades
de tradução subordinadas somente ao canal auditivo, como músicas, ou somente
ao meio visual, tais como cartazes publicitários ou histórias em quadrinhos. Outro
inconveniente que vejo no termo tradução subordinada é que, se a expressão
original em inglês já não é muito encontrada em textos nessa língua, nunca o vi
Introdução 25

utilizado em português, e não acho recomendável forçar a inserção de mais um


termo em nossa literatura sobre o tema, já tão pulverizada.
Dado que nenhuma solução é inequívoca e plenamente satisfatória, escolhi
o termo tradução audiovisual, que está sendo amplamente adotado em várias
partes do mundo e também no Brasil. Com ele, quero designar o conjunto de
práticas que envolve principalmente a tradução oral e escrita de programas e
filmes de gêneros e formatos variados, exibidos ou transmitidos em cinemas,
aparelhos de televisão ou computadores e veiculados através de diversos meios
eletrônicos, digitais e analógicos, tais como filmes cinematográficos, fitas VHS,
DVDs, arquivos de computador e transmissões via satélite. Mais adiante, quando
meu foco passar a ser apenas a tradução para legendas, o escopo das práticas
consideradas ficará mais restrito.
Mas a terminologia é apenas o primeiro e mais superficial dos problemas
que envolvem a identidade da área de estudos que lida com esse conjunto de
atividades. Como bem resumem Yves Gambier e Henrik Gottlieb na já
mencionada introdução à coletânea sobre tradução de multimídia/audiovisual,
após discutir as dificuldades terminológicas,

[d]e fato, com textos audiovisuais e de multimídia, ficam turvos os


limites entre centro e periferia em termos de produção e recepção, entre
setores públicos e privados em termos de organização, entre distância e
proximidade em termos de espaço, entre ao vivo e gravado em termos de
transmissão, entre realidade e ficção em termos de referência, entre
escrito e oral em termos de código, entre verbal e não verbal em termos
de sistemas de signos.7 (Gambier & Gottlieb, 2001:xi)

Ao longo do presente trabalho nos aprofundaremos em algumas dessas


questões, um tanto quanto desestabilizadoras e para as quais não há uma solução
definitiva, mas que proporcionam reflexões que considero proveitosas para os
Estudos da Tradução de modo geral e enriquecedoras para a prática da tradução
para legendas em particular.

7
Indeed, with audiovisual and multimedia texts, the borders are blurred between centre and
periphery in terms of production and reception, between public and private sectors in terms of
organization, between distance and proximity in terms of space, between live and pre-recorded in
terms of broadcasting, between reality and fiction in terms of reference, between written and oral
in terms of code, between verbal and non-verbal in terms of systems of signs.
Carolina Alfaro de Carvalho 26

I.3 Estrutura da dissertação

No próximo capítulo, são apresentados os fundamentos teóricos e metodológicos


do presente trabalho, destacando-se as reflexões e os conceitos mais pertinentes. A
Seção II.1 resume a Teoria dos Polissistemas, elaborada por Itamar Even-Zohar
(1990), e a II.2 caracteriza as contribuições e a metodologia dos Estudos
Descritivos de Tradução, cuja autoria remete principalmente a Gideon Toury
(1991, 1995a, 1995b, 1998) mas que alia trabalhos importantes de outros autores,
como André Lefevere (1992), José Lambert (1991) e Theo Hermans (1991). A
Seção II.3 apresenta o modelo metodológico elaborado por José Lambert e
Hendrik van Gorp (1985) para auxiliar no desenvolvimento de pesquisas
descritivas no campo da tradução literária, o qual será adaptado para a área da
tradução audiovisual no Capítulo III. O Capítulo II se encerra com uma reunião e
análise de comentários e críticas feitos à Teoria dos Polissistemas e aos Estudos
Descritivos de Tradução, na Seção II.4.
No Capítulo III, os fundamentos teóricos e metodológicos apresentados no
capítulo anterior são ampliados e adaptados ao contexto da tradução audiovisual.
Na Seção III.1 é descrito o polissistema audiovisual, que incorporo ao
polissistema cultural de Even-Zohar, e a Seção III.2 explora o polissistema de
tradução audiovisual — contido no polissistema audiovisual —, no qual situo as
atividades que são o objeto central desta pesquisa. Ao final dessa seção, fechando
o capítulo, apresento uma proposta de adaptação do modelo metodológico de
Lambert e van Gorp ao campo da tradução audiovisual, no intuito de facilitar a
sistematização de trabalhos de investigação nessa área.
O Capítulo IV é inteiramente dedicado à tradução para legendas, atividade
que é caracterizada tanto em função de suas relações sistêmicas externas, sendo
contraposta à dublagem (Seção IV.1) e à tradução literária (Seção IV.2), quanto
em termos dos componentes e processos que nos permitem entendê-la como um
polissistema (Seções IV.3 e IV.4). Na Seção IV.4 são também examinados três
conjuntos de normas desse polissistema: aquelas referentes aos meios em que os
produtos audiovisuais são veiculados, as que dizem respeito aos processos de
elaboração das legendas e as instituídas pelos clientes e mecanismos de controle
do sistema. A Seção IV.5 conclui o capítulo com algumas reflexões sobre a
posição do tradutor que faz parte desse sistema, as quais nos levam ao capítulo
Introdução 27

seguinte.
O Capítulo V aborda a questão da subjetividade na área da tradução para
legendas, levando em conta tanto a singularidade do tradutor (Seção V.1) quanto a
particular vulnerabilidade da legendagem (Seção V.2), a qual expõe essa
singularidade mais do que a maioria das outras modalidades de tradução. Essas
seções representam apenas uma abordagem inicial a um assunto tão complexo, e o
capítulo se encerra com uma nova proposta que reivindica a integração de
reflexões sobre a subjetividade na tradução aos fundamentos teóricos nos quais se
baseia este trabalho.
Finalmente, o Capítulo VI apresenta as conclusões da presente pesquisa.
II
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

O principal modelo teórico que adotarei como base para este trabalho é a Teoria
dos Polissistemas, elaborada por Itamar Even-Zohar, a qual constitui um
arcabouço vasto e maleável o suficiente para permitir sua adequação a contextos
históricos, sociais e investigativos diferentes daqueles em que foi originalmente
concebida, além de inúmeros recortes que abordem eixos ou escopos específicos
dentro da sua concepção mais geral. Assim sendo, apresentarei na próxima seção
uma síntese dessa teoria destacando questões pertinentes aos interesses da
presente pesquisa, e a partir dessa síntese farei no Capítulo III uma adaptação da
teoria de modo a incluir o que chamo de polissistema audiovisual, no qual
proponho inserir o polissistema de tradução audiovisual — foco central deste
estudo —, fazendo nele recortes específicos.
Além disso, dada a inter-relação existente entre a Teoria dos Polissistemas
e os Estudos Descritivos de Tradução, cuja concepção teórica é em sua maior
parte de autoria de Gideon Toury, emprestarei destes os principais conceitos e
propostas metodológicas, os quais considero muito ricos e úteis como
instrumentos de pesquisa. Para tanto, na Seção II.2 apresentarei esse paradigma
teórico, novamente dando maior atenção a seus aspectos e conceitos mais
relevantes para este trabalho — inclusive a questão da singularidade do tradutor,
que será abordada no Capítulo V.
Na Seção II.3 apresentarei a proposta metodológica elaborada por José
Lambert e Hendrik van Gorp para auxiliar na realização de estudos de casos de
traduções literárias segundo o paradigma descritivo, visando conferir uma maior
padronização a essas análises. O modelo proposto é prático, sintético e flexível, e
tornou-se referência entre muitos pesquisadores alinhados com a abordagem
descritivista. No Capítulo III, adaptarei também esse modelo para a área da
tradução audiovisual, a qual carece de padronização metodológica.
Na quarta e última seção do presente capítulo, reúno alguns comentários e
críticas feitos por outros autores às teorias que fundamentam esta dissertação e
Fundamentos teóricos e metodológicos 29

acrescento alguns meus, de modo a destacar questões de particular importância


para o desenvolvimento deste trabalho e a não perder de vista os aspectos dessas
teorias que são considerados seus pontos fracos. No que tange a estes últimos,
meu intuito é o de contribuir, na medida do possível, para a sua superação através
do aporte de outras reflexões.

II.1 A Teoria dos Polissistemas

O paradigma teórico que ficou conhecido como Teoria dos Polissistemas


(Polysystem Theory ou Polysystem Studies) começou a ser apresentado pelo
israelense Itamar Even-Zohar no final da década de 1960 e início da de 1970. Ao
longo dos anos 1970 ocorreu seu maior desenvolvimento e deu-se seu
aproveitamento pelo campo do saber que passou então a ser denominado Estudos
da Tradução, mas Even-Zohar continuou publicando versões revistas e atualizadas
de seus próprios textos até a década de 1990. São essas versões mais recentes que
aqui tomo por base, em particular uma edição de Poetics Today publicada em
1990 que contém uma compilação de textos de Even-Zohar divulgados ao longo
dos 20 anos anteriores, então revistos. Essa é a referência bibliográfica que
informa toda a presente seção e suas subseções, exceto quando indicado de outra
forma.
O objetivo inicial de Even-Zohar consistia em elaborar uma base teórica
capaz de explicar as particularidades da história da literatura israelense e das
traduções literárias realizadas nessa cultura, as quais foram em grande parte
empreendidas visando enriquecer a jovem literatura israelense. Para tanto, ele
recorreu ao Formalismo russo e ao Estruturalismo tcheco, buscando resgatar e
esclarecer algumas de suas particularidades que, segundo o autor, não foram bem
compreendidas, tais como a não separação entre estudos lingüísticos e literários e
a complementaridade entre sincronia e diacronia. Ele enfatiza que nem a história
pode ser associada exclusivamente à diacronia e nem a sincronia pode ser vista
como algo estático. Visando romper a associação que se faz entre Formalismo
russo e estagnação sincrônica com ênfase exclusiva na sintaxe, Even-Zohar deu
uma nova denominação a esse paradigma teórico: Funcionalismo Dinâmico,
expressão que podemos considerar uma síntese da própria teoria de Even-Zohar.
Carolina Alfaro de Carvalho 30

Em linhas gerais, a Teoria dos Polissistemas concebe uma determinada


cultura como um grande sistema que é internamente constituído por outros
sistemas — sendo por isso chamado polissistema — e que se relaciona com outros
sistemas paralelos. O autor define sistema, com base no Funcionalismo Dinâmico,
como “a rede de relações que pode ser tomada como hipótese para um
determinado conjunto de supostos observáveis (‘ocorrências’/‘fenômenos’)”8
(Even-Zohar, 1990: 27) e polissistema como “um sistema múltiplo, um sistema de
vários sistemas que se entrecruzam e em parte se sobrepõem, que empregam
opções concorrentemente diferentes mas que funcionam como um todo
estruturado cujos membros são interdependentes”9 (ibid: 11). Desde já cabe
destacar o caráter dinâmico e permeável dos sistemas, bem como o papel do
observador em sua constituição. Aquilo que é considerado como um conjunto de
ocorrências ou fenômenos observáveis é resultado de relações estabelecidas na
própria observação, estando portanto vinculado aos procedimentos empregados
nesse processo — procedimentos estes que devem justificar sua adequação ao
estudo que se pretende realizar.
Os sistemas são portanto redes dinâmicas, hierarquizadas em estratos
formados pelas relações intra e inter-sistêmicas de seus elementos, e cujas
fronteiras com sistemas adjacentes estão sempre se redefinindo. Even-Zohar
concebe as relações de poder entre os elementos dos sistemas através das imagens
de centro e periferia, sendo o centro o lugar ocupado por aqueles que detêm maior
poder dentro de um sistema e a periferia a região ocupada por elementos menos
dominantes ou hegemônicos. É a disputa por poder entre os constituintes de cada
sistema — que se esforçam por ocupar e manter-se no centro, alternando-se e
produzindo movimentos centrífugos e centrípetos — que dá forma ao sistema e o
leva a transformar-se no eixo diacrônico.

II.1.1 O polissistema literário

Dentre os vários sistemas que constituem uma determinada cultura encontra-se o

8
the network of relations that can be hypothesized for a certain set of assumed observables
(‘occurrences’/‘phenomena’)
9
a multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly
overlap, using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose
members are interdependent
Fundamentos teóricos e metodológicos 31

polissistema literário, principal objeto de estudo de Even-Zohar dado seu objetivo


de explicar o desenvolvimento da literatura israelense. Esse polissistema é
composto por diversos sistemas e correlaciona-se com outros sistemas semióticos
e demais integrantes do polissistema cultural. É no centro do polissistema literário
e dos sistemas que o compõem que residem seus respectivos repertórios
canônicos, os quais são instituídos pelo grupo que detém o poder em um dado
sistema e representam modelos a serem seguidos por aqueles integrantes do
sistema que queiram ter boa aceitação. O cânone é por isso associado, entre as
pessoas de uma cultura, a prestígio, status e qualidade.
Mas o repertório canônico certamente não é o único presente nos sistemas,
em função inclusive do fato de que a sobrevivência de um sistema depende da
tensão entre seus vários componentes, sem a qual ele fica estagnado e pode deixar
de existir. O cânone também não ocupa o centro devido a supostas qualidades
intrínsecas, mas às injunções daqueles que detêm o poder e impõem seus modelos
lingüísticos e literários sobre os demais integrantes do sistema.
Uma das conseqüências dessa visão sistêmica da literatura é que ela nos
obriga a levar em conta os fenômenos ou sistemas não centrais que também fazem
parte do polissistema e em oposição aos quais é possível compreender melhor
aqueles que ocupam o centro, as estratégias que utilizam, seus valores e interesses,
sua evolução, etc. Portanto, as variedades lingüísticas e literárias que gozam de
menos status numa dada cultura adquirem interesse enquanto objetos de estudo,
tais como a literatura de massa, infantil ou traduzida. É esta última que
examinaremos em detalhe adiante.
Outra conseqüência da visão sistêmica da literatura é que, segundo esse
paradigma, o objeto de estudo do pesquisador não pode ficar restrito
exclusivamente aos textos literários propriamente ditos, cuja influência na
caracterização do sistema não é necessariamente maior do que as atividades e
interações dos diversos outros integrantes do polissistema literário. Para ilustrar
esse argumento, Even-Zohar faz uma adaptação do conhecido modelo
comunicativo de Jakobson (1969: 123), segundo o qual todo ato de comunicação
envolve (i) contexto, (ii) código, (iii) remetente, (iv) destinatário, (v) contato e (vi)
mensagem. Even-Zohar equipara esses componentes, com uma certa liberdade,
aos atores que constituem o polissistema literário, respectivamente: (i) instituição,
(ii) repertório, (iii) produtor, (iv) consumidor, (v) mercado e (vi) produto.
Carolina Alfaro de Carvalho 32

Portanto, o contexto externo ao texto propriamente dito não pode ser deixado de
lado, visto que todos esses elementos em conjunto constituem, digamos assim, o
ato de comunicação literária. As definições dadas por Even-Zohar para esses
componentes são:
(i) Instituição: “o agregado de fatores envolvidos na manutenção da literatura
como uma atividade sociocultural”10 (Even-Zohar, 1990: 37). Ela governa
as normas que permeiam tal atividade. Esse componente do polissistema
literário, que por sua vez também constitui um sistema, congrega alguns dos
próprios produtores literários, críticos, editoras, periódicos, clubes e grupos
de escritores, órgãos governamentais e os meios de comunicação de massa,
entre outros.
(ii) Repertório: “o agregado de regras e materiais que governam a elaboração e
o uso de qualquer produto”11 (ibid: 39). Essa definição pressupõe a
existência de acordos e conhecimentos partilhados entre membros de uma
comunidade.
(iii) Produtor: empregado por Even-Zohar para se referir aos autores e criadores
de textos literários, esse conceito é mais abrangente que o de escritor, de
modo semelhante aos conceitos de consumidor e de produto, abaixo. O
produtor é um agente político, engajado em um discurso de poder destinado
a legitimar o repertório que emprega.
(iv) Consumidor: também é mais do que apenas um leitor, visto que o consumo
de obras literárias se dá através de outras atividades além da leitura integral
de cada obra — leitura que muitas vezes não é o único objetivo do
consumidor nem a prerrogativa exclusiva para que ele faça parte de certos
grupos sociais como consumidor de um determinado cânone. Por exemplo,
ele pode aprender em uma instituição sobre determinado autor ou obra,
interagir com outros consumidores, ter acesso a fragmentos, críticas,
traduções e outros materiais paralelos que lhe permitem integrar um ou mais
subsistemas e partilhar dos conhecimentos e interpretações vigentes sobre a
obra, sem que ele necessariamente a tenha lido integralmente ou em sua
versão original.
(v) Mercado: “o agregado de fatores envolvidos na venda e compra de produtos

10
the aggregate of factors involved with the maintenance of literature as a socio-cultural activity
11
the aggregate of rules and materials which govern both the making and use of any given product
Fundamentos teóricos e metodológicos 33

literários e na promoção de tipos de consumo”12 (ibid: 38). Também


constitui um sistema, do qual participam livrarias e clubes literários, por
exemplo, e se relaciona proximamente com a instituição, havendo uma
sobreposição entre esses dois sistemas através de alguns de seus integrantes,
tais como instituições de ensino.
(vi) Produto: da mesma forma que Even-Zohar não quer restringir o produtor e o
consumidor apenas às suas funções como escritor e leitor, respectivamente,
ele também não inclui entre os produtos literários apenas as obras literárias,
mas também a enorme quantidade e variedade de fragmentos retirados das
obras ou referentes a elas — tais como citações, resumos, resenhas, críticas,
etc. — e que ajudam a estabelecer e manter modelos canônicos.
Even-Zohar lamenta que a teoria literária tenha progressivamente excluído
a figura do produtor de textos de seu objeto de estudo. Em contraposição a esse
movimento, a Teoria dos Polissistemas volta a dar destaque a esse importante
integrante do polissistema literário como uma força que é simultaneamente
condicionadora e condicionada pelas tensões sistêmicas, um produtor de discursos
que cumpre seu papel nas relações de poder que definem os estratos dos sistemas.
Considero importante essa valorização do produtor de textos e de sua função nos
sistemas que integra para refletirmos sobre a tradução e o papel do tradutor, o que
farei nos próximos capítulos.
O objetivo da utilização desse modelo teórico em estudos literários
consiste em investigar as relações existentes nos sistemas, a interferência entre
sistemas e os processos de mudanças provocados por pressões exercidas da
periferia para o centro e vice-versa, buscando-se chegar às leis que regem os
fenômenos que constituem os sistemas. Na Seção II.2, em que trataremos
principalmente da obra de Gideon Toury, veremos como este parte desse objetivo
de Even-Zohar para estabelecer outros conceitos pertinentes ao estudo da
tradução, particularmente o de norma.
Segundo Even-Zohar, uma das propriedades dos sistemas é o isomorfismo
entre um sistema maior e seus subsistemas. Isto é, apesar de possuir leis e
componentes próprios, um subsistema de outro maior partilha do funcionamento
deste, refletindo sua hierarquia e sendo em muitos aspectos governado por ele.

12
the aggregate of factors involved with the selling and buying of literary products and with the
promotion of types of consumption
Carolina Alfaro de Carvalho 34

Desse modo, se por um lado as instituições literárias, por exemplo, podem ser
vistas como constituindo um sistema próprio devido às relações que apresentam
entre si, por outro são entendidas como parte do polissistema literário e em grande
medida obedecem às normas deste. O mesmo ocorre com o polissistema de
tradução literária, que veremos a seguir.

II.1.2 O polissistema de tradução literária

Contrário à tendência mais geral de tratar as obras literárias traduzidas


individualmente, como práticas isoladas, Even-Zohar argumenta a favor de se
observar o conjunto da literatura traduzida de forma inter-relacionada, em função
dos princípios que regem a seleção dos textos a serem traduzidos e do modo como
as traduções utilizam o repertório literário de um sistema. Tal conjunto pode então
ser estudado como constituindo um polissistema próprio dentro do polissistema
literário. Sendo ele isomórfico ao sistema que o contém, muitos de seus
componentes são do mesmo tipo e ele está sujeito às leis e hierarquias desse
sistema, mas também se constitui em parte pela relação entre seus próprios
integrantes, fenômenos e processos internos.
Even-Zohar aponta para uma inconsistência no estudo tradicionalmente
feito de produtos traduzidos. Por um lado, tende-se a assumir que a tradução
envolve uma reformulação da mensagem original, isto é, uma reescrita que
pressupõe a decomposição de um texto e sua recomposição através de outro texto.
Por outro lado, quando um produto examinado não corresponde às normas padrão
de tradução aceitas pela teoria empregada nesse estudo, o produto em questão
recebe outra denominação, tal como “adaptação” ou “imitação”, e é então
desconsiderado como objeto de estudo pertinente. O autor afirma que os produtos
de transferências interlinguais excluídos do escopo das teorias de tradução
provavelmente constituem um grupo maior do que aqueles considerados válidos.
Em lugar de tal exclusão, ele propõe que os Estudos da Tradução reconheçam
todos os produtos de transferências interlinguais como objetos de estudo
relevantes, preocupando-se em investigar sob quais circunstâncias, num contexto
particular, um produto-alvo B pode estar relacionado a um produto-fonte A.
Além disso, não só os textos concretos, já existentes, participam das
relações sistêmicas estudadas, mas também os modelos que regem a competência
Fundamentos teóricos e metodológicos 35

tradutória em um determinado sistema, os quais estão implicados nos textos


propriamente ditos. A justificativa para essa postura é que as descrições de textos
traduzidos e as análises contrastivas de traduções e originais ou de diferentes
traduções de um mesmo original, por si só, não dão conta de explicar o
comportamento tradutório em várias circunstâncias. Levando em conta somente o
nível da língua, o estudioso pode ter acesso às opções lingüísticas de que o
tradutor dispõe. Contudo, torna-se muito difícil explicar decisões mais globais —
tais como alterações de caráter funcional ou mesmo inovações estilísticas ou
textuais não restritas ao nível lingüístico — sem considerar as coerções que
influem nas estratégias adotadas pelos produtores de textos e os modelos que
informam essas estratégias. Tal visão mais ampla será viabilizada pela idéia dos
sistemas dinâmicos e heterogêneos, da investigação de suas inter-relações, e da
produção, transferência e imposição de modelos e normas através dos sistemas.
Como já foi mencionado, a investigação das normas que regem a produção textual
— inclusive a tradução — será um dos principais interesses de Gideon Toury,
como veremos na próxima seção. Além disso, a oportunidade de refletirmos sobre
os vários conjuntos de normas e coerções com os quais o tradutor deve lidar e os
vários níveis de decisões que pode tomar — inclusive com a possibilidade de
inovações — será de grande valia para esta pesquisa, como ficará claro nos
próximos capítulos.
Em síntese, o funcionamento do polissistema de literatura traduzida se dá
da seguinte forma: ele pode ocupar uma posição mais periférica ou mais central
no polissistema literário. Normalmente ocupa uma posição periférica, exercendo
pouco poder no sistema e seguindo de forma um tanto quanto submissa os
modelos estabelecidos pelo cânone literário, cumprindo assim a função de
instrumento de conservação do repertório canônico. Tal processo tende a produzir
traduções que se afastam dos modelos e normas da cultura de origem de modo a
se ajustarem aos moldes já existentes na cultura de chegada e assim serem melhor
aceitas no sistema. Já em situações em que a tradução ocupa uma posição mais
central no polissistema literário — por exemplo, no caso de culturas jovens ainda
com pouco repertório próprio, de literaturas que ocupam um lugar muito
periférico no sistema cultural ou em situações de crise e grandes mudanças de
posicionamento nos sistemas —, a literatura traduzida pode exercer um papel
inovador, importando repertórios e modelos de outras culturas, não se prendendo
Carolina Alfaro de Carvalho 36

ao cânone local e contribuindo para a transformação e a configuração de sua


cultura. Nesse caso, como o objetivo maior da tradução não é obter a
aceitabilidade do grupo que detém o poder no sistema mas justamente transformar
esse sistema ampliando seu repertório, o texto tende à adequação, que, nas
palavras de Even-Zohar (1990: 50), significa “uma reprodução das relações
textuais dominantes do original”13. Os conceitos de adequação e aceitabilidade
também serão explorados por Toury.
Dentro desse quadro, a constatação daquilo que é considerado como
equivalência entre dois textos em línguas diferentes, e portanto o próprio conceito
de tradução, não pode ser determinado a priori nem fora do contexto estudado,
pois depende do funcionamento do sistema que dela faz uso. Como diz o próprio
autor (ibid: 52), “a tradução não é mais um fenômeno cuja natureza e cujas
fronteiras são dadas de uma vez por todas, mas uma atividade que depende das
relações dentro de um determinado sistema cultural”.14 De forma análoga ao
estudo do polissistema literário, o objetivo dos pesquisadores do polissistema de
tradução literária é entender suas relações, o posicionamento e a movimentação de
seus estratos, as interferências inter e intra-sistêmicas, os vários repertórios e
normas utilizados e o papel da tradução nos sistemas da qual ela faz parte. A
compreensão do que é tradução, ou de como as traduções funcionam numa
determinada cultura, está diretamente ligada a esse contexto. Como bem resume
Marcia Martins:

De acordo com o modelo polissistêmico, o que faz uma dada tradução


“funcionar” ou não num determinado período não é a sua qualidade
intrínseca, na medida em que tal propriedade não existe, mas sim a sua
adequação à prática e à ideologia predominantes — inspiradas e
consolidadas pelas estruturas de poder. (Martins, 1999: 52)

Dentro dessa perspectiva, um esboço de lei geral da tradução proposto por


Even-Zohar é enunciado da seguinte forma:

Em um sistema-alvo B, seja dentro do mesmo polissistema ou em um


polissistema diferente — dependendo de se está estável ou em crise e se é
forte ou fraco, em relação a um sistema-fonte A — um texto-alvo b será
produzido de acordo com procedimentos de transferência mais as
coerções impostas a estes pelas relações internas do polissistema-alvo, as
quais ao mesmo tempo governam e são governadas pelo repertório de

13
a reproduction of the dominant textual relations of the original
14
translation is no longer a phenomenon whose nature and borders are given once and for all, but
an activity dependent on the relations within a certain cultural system
Fundamentos teóricos e metodológicos 37

funções existentes e não existentes do polissistema-alvo.15 (Even-Zohar,


1990: 78)

Esse modelo permite traçar um complexo mapa de relações dinâmicas


entre sistemas e forças de naturezas e intensidades diversas, desde um contexto
mais macro, como as coerções exercidas por outros sistemas pertencentes a uma
cultura — por exemplo políticos, econômicos ou religiosos —, passando pelas
normas e cânones literários vigentes em determinados contextos históricos e
culturais e chegando até níveis minuciosos de análise dos objetivos, estratégias e
soluções de traduções específicas. De fato, muitas vezes esse arcabouço pode ser
considerado complexo demais para que os estudos possam dar conta de todos
esses níveis. Outra observação que será importante na presente pesquisa é que
freqüentemente, sobretudo em definições sintéticas e abrangentes como a acima
citada, a participação individual das pessoas que intervêm nesses processos, as
quais de fato constituem os vários sistemas, não é considerada — ou ao menos
não recebe destaque. Essa questão merecerá atenção ao longo do presente
trabalho.
Para concluir esta seção, no intuito de facilitar a visualização da base
teórica aqui sintetizada — que será expandida no próximo capítulo, tornando-se
ainda mais complexa —, apresento uma proposta para sua representação gráfica
(Figura 1), algo que nunca vi na bibliografia relacionada ao tema. É claro que
qualquer ilustração bidimensional implica diversas simplificações. Não tenho a
presunção de dar conta de todas as nuances da teoria; viso apenas fornecer um
esquema que ajude a visualizar as relações sistêmicas de nosso interesse, as quais
aparecem identificadas e em tamanho maior em relação às outras estruturas.

15
In a target system B, either within the same polysystem or in a different polysystem —
depending on whether it is stable or in crisis, and whether it is strong or weak, vis-à-vis a source
system A — a target text b will be produced according to transfer procedures plus the constraints
imposed upon them by the intra-target-polysystem relations, both governing and governed by the
target-polysystem repertoire of existing and non-existing functions.
Carolina Alfaro de Carvalho 38

Cultura
Outros sistemas,
outras culturas

Polissistema
literário

Outros
s i s te m a s ,
outras culturas
Sistema dede
tradução outros
literária

Outros
s i s te m a s ,
outras Outros
culturas s i s te m a s ,
outras
culturas

Figura 1 - Representação gráfica da Teoria dos Polissistemas.

II.2 Os Estudos Descritivos de Tradução

O também israelense Gideon Toury foi diretamente influenciado pela teoria de


Even-Zohar. Ele reconhece o impacto que a tese de Doutorado de Even-Zohar, de
1971, teve sobre a teoria que ele próprio começava a desenvolver (Toury, 1998).
Foi na conferência sobre Literatura e Tradução em Leuven, na Bélgica, em 1976,
que Toury apresentou seu primeiro trabalho internacional. Dessa conferência
também participaram Even-Zohar e Theo Hermans, outro autor de destaque na
linha dos Estudos Descritivos. Em 1980, Toury publicou o livro In search of a
theory of translation, onde estabeleceu as principais reivindicações, conceitos e
objetivos dos Estudos Descritivos da Tradução. Assim como Even-Zohar, nos
anos 1990 Toury publicou várias versões revistas e atualizadas de seus textos, e
são algumas delas que tomo como base no presente trabalho.
As denominações Estudos da Tradução (Translation Studies) e Estudos
Descritivos de Tradução (Descriptive Translation Studies) são atribuídas a James
Holmes. Em seu célebre artigo publicado em 1972, “The name and nature of
Translation Studies” (Holmes, 1988), ele apresentou um gráfico que identificava
Fundamentos teóricos e metodológicos 39

os vários ramos e subdivisões da disciplina, o qual foi muito empregado por


outros estudiosos. A visão abrangente e holística de Holmes dos Estudos da
Tradução tem várias características em comum com a Teoria dos Polissistemas
(além de outra escola que possui pontos de contato com estas, a Skopostheorie), e
portanto também com os Estudos Descritivos.
Penso que aqui cabe fazer um esclarecimento quanto às denominações que
emprego neste trabalho. Holmes optou por Estudos da Tradução com o propósito
de evitar o uso, por um lado, de ciência — termo muito associado ao universo
material e físico (Snell-Hornby, 1991) e às disciplinas já bem constituídas, o que
Holmes não julgava ser o caso da tradução (Lambert, 1991) — e, por outro, de
teoria — conceito visto como algo desconexo da prática, como um fim em si
mesmo, visão contra a qual Holmes também lutava (Lambert, 1991). Contudo,
duas décadas após o texto em que Holmes batizou a disciplina, José Lambert
(1991) constatou que o termo Estudos da Tradução passara a ser fortemente
associado à tradução literária e aos Estudos Descritivos, principalmente de teor
histórico, o que representa um desvio da definição de Holmes. É claro que há
denominações diferentes empregadas por outros autores, como Tradutologia e
Teoria da Tradução, mas nenhuma delas é unívoca. Ao longo do presente
trabalho, estou empregando o termo Estudos da Tradução entendendo-o do modo
como foi apresentado por Holmes, isto é, referente ao campo disciplinar em
termos mais amplos e não estritamente associado à tradução literária — que
sequer é meu principal foco de estudo — nem aos Estudos Descritivos de
Tradução, aos quais em geral chamo apenas Estudos Descritivos.
Segundo Mary Snell-Hornby (1991: 14), Holmes freqüentemente
enfatizava que, “para o tradutor [...], é inútil uma teoria que não consegue ver
além dos limites da sentença”16. Ele reivindicava um aumento de perspectiva nos
Estudos da Tradução, trazendo insights externos à Lingüística e perseguindo uma
visão holística da nova área de estudo, que constituiria um campo do saber próprio
mas cuja origem e natureza eram — e ainda são — multidisciplinares e
multidimensionais. Falando sobre o state of the art (em 1991, há quase 15 anos)
dos Estudos da Tradução, Snell-Hornby constata que muito da luta de Holmes
tornou-se realidade entre as teorias de tradução atuais, que abrangem todas as

16
for the translator [...], a theory is useless which cannot see beyond the limits of the sentence
Carolina Alfaro de Carvalho 40

formas de tradução, inclusive as que até pouco tempo atrás eram freqüentemente
excluídas do escopo da área, tais como a interpretação e a tradução audiovisual.
Um parêntese que considero importante é que, na longa lista dos campos que
compõem os Estudos da Tradução, Snell-Hornby inclui algumas das formas de
tradução audiovisual como fazendo parte da tradução literária:

Tal interdisciplina não podia mais ser representada por um campo de


estudos bidimensional [tradução literária e “outras” traduções], mas seria
um complexo multidimensional que conecta campos tão variados quanto
os seguintes: estudos lingüísticos especiais, terminologia e lexicografia,
tradução automática e tradução assistida por computador; áreas relevantes
da lingüística, como a semiótica, a gramática contrastiva, a lingüística
textual, a sócio e a psicolingüística; tradução literária (incluindo todas as
formas de tradução cênica, diálogos fílmicos e dublagem, legendas, etc.)
e campos de interesse próximos, da história literária à psicologia.17
(Snell-Hornby, 1991: 19 — grifo meu)

Apesar de explicitamente incluídos nos Estudos da Tradução alguns dos


tipos de tradução audiovisual — que só recentemente passaram a receber maior
atenção teórica —, em minha opinião não deixa de ser curioso que eles ganhem
uma posição restrita e um tanto quanto controversa como uma subárea da tradução
literária, particularmente num texto que enfatiza a pluralidade da área. No
próximo capítulo, buscarei dar à tradução audiovisual um lugar que considero
mais lógico, principalmente visando propiciar um desenvolvimento maior e bem
fundamentado desse campo dos Estudos da Tradução.
Mas voltemos a Gideon Toury. Em linhas gerais, como já dito, ele se
baseia na teoria de Even-Zohar e adota numa visão sistêmica da tradução, a qual é
entendida como inserida no sistema maior de uma determinada cultura. Seu foco
não se restringe ao polissistema literário e nem exclusivamente à tradução literária
mas, como ele e a maioria dos principais teóricos que desenvolvem trabalhos
nessa linha provêm do campo da Literatura, inevitavelmente os estudos mais
influentes acabam tratando da tradução literária (Toury, 1998). Assim como
reivindicado por Even-Zohar, Toury procura não partir de uma concepção a priori
do que é tradução, de forma a considerar como objeto passível de estudo todo

17
Such an interdiscipline could no longer be represented as a neat two-dimensional [literary
translation and “other” translation] field of study, but would rather be a multi-dimensional
complex linking such varied fields as the following: special language studies, terminology and
lexicography, machine translation and machine-aided translation; relevant areas of linguistics such
as semantics, contrastive grammar, text linguistics, socio- and psycholinguistics; literary
translation (including all forms of stage translation, film dialogue and dubbing, sub-titles and so
forth) and neighbouring fields of interest from literary history to psychology.
Fundamentos teóricos e metodológicos 41

texto que seja aceito como tradução por uma dada cultura. Essa idéia, que Toury
apresenta como “hipótese de trabalho”, está ligada a seu conceito de assumed
translation, o qual veremos em mais detalhe na Seção II.2.2. Ele desenvolve então
uma metodologia para o estudo de traduções que se baseia fortemente em sua
exploração do conceito de norma, também de grande relevância no presente
trabalho, e que examinaremos na Seção II.2.3. Mas, antes disso, apresentarei
brevemente a visão de Toury sobre o funcionamento sistêmico da tradução e a
metodologia que ele propõe para o estudo dessa atividade no contexto do
paradigma que ele defende, conhecido como target oriented.

II.2.1 O foco no sistema-alvo

Reagindo contra a forte tendência que havia até os anos 1970 de estudar a
tradução sempre a partir do texto original e reivindicando que só é possível
estudar uma dada tradução a partir da constatação de que ela exerce essa função
num sistema, Toury defende e adota uma abordagem conhecida como target
oriented — de difícil tradução em português, mas poderíamos dizer que seu foco
principal está no sistema do texto-alvo. A necessidade da tradução é geralmente
determinada pela cultura-alvo e ela é ali produzida com o objetivo de ocupar um
lugar ou preencher alguma lacuna nesse sistema. Mesmo em casos em que a
tradução é realizada ou imposta pela cultura de origem — como por vezes ocorre
com obras literárias brasileiras, por exemplo, que são traduzidas aqui para então
serem exportadas para outras culturas —, a tradução só funcionará como tal se o
sistema-alvo lhe der esse uso. Em suma, é a partir da cultura-alvo que é possível
constatar que um determinado texto é tratado como uma tradução, sendo a partir
desse fato que a pesquisa tem início (Toury, 1995b).
No entanto, Toury (1991) argumenta contra a visão às vezes disseminada
de que os Estudos Descritivos se preocupam apenas com o lugar da tradução na
cultura-alvo. Ele também contesta a divisão dos Estudos Descritivos em function
oriented, process oriented e product oriented como subáreas separadas — tal
como consta no gráfico da disciplina feito por James Holmes (1988). De fato,
essas três abordagens são interdependentes: a função que um texto traduzido
desempenhará na cultura-alvo orienta o processo através do qual o produto
traduzido é elaborado. Toury não exclui de sua abordagem o texto e a cultura de
Carolina Alfaro de Carvalho 42

partida e nem o processo de produção da tradução, inclusive segundo a


perspectiva cognitiva, mas justifica que a hierarquia que ele julga apropriada
considera o sistema-alvo em primeiro lugar por ser, por um lado, o fim que rege
todo o processo da tradução e, por outro, o ponto de partida do pesquisador.
Marcia Martins oferece uma explicação sucinta de todo esse movimento:

As tradicionais preocupações essencialistas dão lugar a uma visão


funcionalista, na medida em que o novo paradigma tenta explicar as
estratégias textuais que determinam a forma final de uma tradução e o
modo como esta funciona na literatura receptora. Procura, ainda, entender
as razões que levaram o tradutor a recorrer a certas decisões e estratégias,
além de chamar a atenção para as condições sociohistóricas que
permeiam a sua atividade, oferecendo, assim, uma idéia mais clara dos
mecanismos que permitem às traduções funcionarem (ou não) na cultura
de recepção. Para o estudioso, o que importa é determinar o lugar que
uma tradução ocupa dentro do sistema literário da língua-meta, e não
mais verificar até que ponto o texto traduzido conseguiu refletir o
chamado original. (Martins, 1999: 32)

O percurso metodológico seria então o seguinte (Toury, 1995b): o


pesquisador deve começar com a menor quantidade de pressupostos possível,
evitando impor suas próprias distinções. Ele observa o funcionamento sistêmico
de uma determinada cultura e identifica os textos que exercem a função de
traduções. Isso exige um grande trabalho de contextualização do fenômeno
estudado, o mais detalhado possível e em diferentes níveis — desde o plano mais
macro, cultural, até o micro, referente às características dos textos estudados.
Após formular hipóteses iniciais sobre algum fenômeno observado, o pesquisador
realiza estudos de casos mais aprofundados, cujos resultados o levarão a revisar
seus postulados teóricos, gerando novas hipóteses. Estas são testadas através de
mais análises empíricas e novamente conduzem a uma adaptação da teoria, e
assim sucessivamente. Desse modo, partindo da constatação de uma tradução na
cultura-alvo, o objetivo do estudioso é ir reconstruindo os objetivos, as tensões e
as coerções que regeram a produção dessa tradução com base nos vários níveis
sistêmicos observados, procurando chegar, ainda que de forma hipotética, às
intenções que determinaram decisões de diversas naturezas tomadas em todo o
processo da tradução. Em resumo, nas palavras do autor,

um estudo das atividades tradutórias que já geraram seus produtos deve


começar pelos observáveis, antes de mais nada, os próprios enunciados
traduzidos, ao longo de seus constituintes, situados em seus contextos
imediatos. A partir daí, o estudo pode proceder aos fatos observáveis “de
segunda ordem” (i.e. fatos que precisam ser (re)construídos antes de
Fundamentos teóricos e metodológicos 43

ficarem sujeitos a análise), notadamente as relações que unem o output e


o input de atos individuais, sendo a intenção final terminar reconstruindo
os não-observáveis na sua origem, particularmente os processos exatos
através dos quais eles passaram a existir.18 (Toury, 1995b: 145)

Outros autores elaboraram modelos metodológicos mais explícitos e práticos,


como o apresentado no consagrado texto de José Lambert e Hendrik van Gorp
“On describing translations” (1985), que está resumido na Seção II.3.
Toury (1991) também desmistifica a idéia de que a função desses estudos
seja apenas descrever estados de coisas sem que os resultados tenham qualquer
aplicação, idéia essa gerada a partir de sua afirmação de que o pesquisador não
deve fazer julgamentos valorativos sobre os casos estudados. Segundo o autor, o
objetivo da pesquisa é produzir explicações (portanto não prescrições) sobre a
produção e a recepção das traduções em culturas e épocas variadas. Porém, uma
vez produzidas essas explicações, elas podem ser empregadas com vários
propósitos, tais como o ensino da tradução numa determinada cultura — o que
pode ser feito inclusive de forma prescritiva.
Além disso, a meta mais alta (e, em meu entender, controversa, como será
discutido na Seção II.4) que ele estabelece para os Estudos da Tradução — e para
a qual os Estudos Descritivos em parte contribuem — é a elaboração de uma
teoria geral da tradução por meio da formulação de um conjunto coerente das leis
que regem o comportamento tradutório através das várias culturas e modalidades
de tradução. Essa teoria deveria ser capaz de explicar o que a tradução é em
determinadas circunstâncias, de prever o que ela provavelmente será dadas certas
condições e, finalmente, de dar conta de tudo aquilo que a tradução pode vir a ser.
Essa teoria seria expandida aos poucos, por meio do aporte de várias contribuições
teóricas parciais desenvolvidas a partir de estudos de caso, numa progressão
helicoidal infinita na qual a teoria informa as pesquisas concretas e estas
expandem a teoria. Nas palavras de Toury,

[u]ma teoria refinada dessa forma também possibilitará a realização de


estudos descritivo-explanatórios ainda mais elaborados, os quais, por sua

18
a study in translation activities which have already yielded their products would start with the
observables, first and foremost, the translated utterances themselves, along with their constituents,
as situated within their immediate contexts. From there on, the study could proceed to facts which
are observational ‘in the second order’ (i.e. facts which need (re)construction before they can be
submitted to scrutiny), most notably the relationships which tie together the output and input of
individual acts, the ultimate intention being to end up reconstructing the non-observables at their
root, particularly the exact processes whereby they came into being.
Carolina Alfaro de Carvalho 44

vez, enriquecerão a teoria tornando-a progressivamente mais intrincada; e


assim por diante, rumo a uma compreensão cada vez melhor dos modos
como a tradução e os tradutores, tanto como indivíduos quanto como
membros de grupos sociais, transitam entre as várias coerções impostas
a eles.19 (Toury, 1991: 186 — grifo meu.)

O segmento grifado na citação acima é um ponto que será bastante explorado mais
adiante no presente trabalho, principalmente nos Capítulos IV e V.
É claro que todo esse percurso — desde a identificação da tradução como
fato contextualizado da cultura-alvo até suas intenções iniciais, investigando o
processo nos vários níveis sistêmicos, apresentando explicações e contribuindo
para a elaboração de uma teoria cada vez mais vasta e complexa — não precisa
ser feito em cada trabalho de pesquisa desenvolvido, ainda que Toury (1991)
afirme que todo estudo bem realizado acaba funcionando como uma verificação
das teorias subjacentes. Conforme comentamos na seção anterior, sobre a Teoria
dos Polissistemas, é possível fazer vários recortes, de modo a enfocar somente
uma parte desse processo. A presente pesquisa não tem a ambição de transcender
o polissistema cultural brasileiro, debruçando-se predominantemente sobre um de
seus sistemas — o polissistema audiovisual — e examinando em detalhe uma
modalidade específica de tradução — a legendagem. Além disso, ao longo deste
estudo meu foco de interesse se deslocará da caracterização dessa atividade, com
seus produtos, consumidores, mercados, instituições e normas, para seu processo
de produção, o qual é freqüentemente deixado de lado em pesquisas descritivas.

II.2.2 O conceito de assumed translation

Em português, já me deparei com a tradução deste termo como tradução


assumida, mas dada a ambigüidade dessa expressão prefiro utilizar tradução
suposta, ainda que nunca tenha visto essa solução para assumed translation. De
qualquer forma, o termo se refere àqueles textos que se supõe (ou assume) que
sejam traduções.
Como já foi mencionado, Toury argumenta contra a investigação teórica a
partir de conceitos a priori, principalmente o de tradução. Isso porque, segundo o

19
A theory thus refined will also make possible the performance of yet more elaborate descriptive-
explanatory studies, which will, in turn, bear on the theory making it ever more intricate; and so on
and so forth, towards an ever better understanding of the ways translation and translators, as
individuals and members of societal groups alike, manoeuvre within the various constraints
imposed on them.
Fundamentos teóricos e metodológicos 45

autor, esse tipo de postura visa imobilizar aquilo que é necessariamente variável,
além de gerar uma circularidade em que os fatos são analisados de modo a
confirmar os pressupostos dos quais parte a investigação. A citação abaixo deixa
mais claros esses argumentos:

qualquer definição a priori, especialmente se formulada em termos


essencialistas, que supostamente especifique o que é “inerentemente”
tradutório, envolveria uma pretensão insustentável de fixar de uma vez
por todas as fronteiras de um objeto que — culturalmente falando — se
caracteriza justamente pela sua variabilidade: diferença entre culturas,
variação dentro de uma cultura e transformação ao longo do tempo.
Desse modo, não somente o campo de estudo ficaria consideravelmente
reduzido em relação àquilo que as culturas têm aceito e estão dispostas a
aceitar como traduções, como a pesquisa limitada a essas fronteiras
também produziria um raciocínio circular: isso porque a definição à qual
se adere, independente de qual seja o objeto de estudo — que foi
selecionado para estudo pois sabe-se que cabe na definição, para começar
— está fadada a reafirmar a definição.20 (Toury, 1995b: 141)

Toury (1995b) insiste em que, para o pesquisador, o objetivo é


compreender a fundo as atividades estudadas, independentemente dos rótulos a
elas atribuídos pelos teóricos. Conforme visto na Seção II.1.2, Even-Zohar
argumenta que denominações como “adaptação” ou “imitação” servem para
excluir do âmbito da investigação aqueles produtos de transferência interlingual
que não se ajustam à noção preconcebida do investigador de como deve ser uma
tradução. Segundo Toury, esses rótulos não têm muita utilidade nem relevância se
o pesquisador mantém o foco em um conjunto de fenômenos detalhadamente
contextualizado e não insiste em querer fixar a natureza desses fenômenos
segundo seu julgamento. De fato, com relação a distinções terminológicas
problemáticas como aquelas entre “tradução” e “adaptação”, Toury (ibid: 142)
afirma que “o número dessas distinções pode ser multiplicado quase que
indefinidamente e, de qualquer forma, elas não têm muito a oferecer em termos de
poder explicativo quando se trata de fenômenos culturalmente
21
contextualizados”. Ele então apresenta um conceito mais amplo de tradução que

20
any a priori definition, especially if couched in essentialist terms, allegedly specifying what is
‘inherently’ translational, would involve an untenable pretense of fixing once and for all the
boundaries of an object which — culturally speaking — is characterized by its very variability:
difference across cultures, variation within a culture and change over time. Not only would the
field of study be considerably shrunk that way, in relation to what cultures have been, and are
willing to accept as translational, but research limited to these boundaries may also breed circular
reasoning: to the extent that the definition is indeed adhered to, whatever is studied — selected for
study because it is known to fall within it, in the first place — is bound to reaffirm the definition.
21
the number of these distinctions could be multiplied almost indefinitely, and, at any rate, they do
Carolina Alfaro de Carvalho 46

abrange todas as atividades que ele considera relevantes para os Estudos da


Tradução, definindo aquilo que se supõe ser uma tradução como um conjunto
interconectado de pelo menos três postulados (ibid: 143-144):
(i) o postulado do texto-fonte (source-text postulate), segundo o qual presume-
se a existência de um texto anterior à tradução, do qual esta procede;
(ii) o postulado da transferência (transfer postulate), que assume que o processo
de tradução tenha envolvido a transferência de certas características do
suposto texto-fonte, as quais a tradução retém e que passam a estar presentes
em ambos; e
(iii) o postulado da relação (relationship postulate), que supõe a existência de
relações verificáveis que vinculem a tradução ao seu suposto texto-fonte.
Esses postulados podem ser verificados pelo pesquisador, mas a
comprovação ou não de sua veracidade — através da análise comparativa entre a
tradução e seu original, por exemplo — não influi no uso que a comunidade
estudada faz do texto e em sua condição de tradução suposta. Isto é, o modo
como tradicionalmente entende-se a equivalência é invertido: em vez de constituir
uma característica intrínseca daquilo a que se denomina tradução, sendo tarefa do
teórico julgar se ela foi ou não atingida, a equivalência passa a ser postulada a
partir das suposições acima, cabendo ao teórico compreender, na cultura e no
contexto estudados, quais as normas que precisaram ser atendidas para que um
texto fosse aceito como equivalente a outro. Como sintetiza Theo Hermans (1991:
157), “‘equivalência’ é meramente o nome dado à ‘relação tradutória’ que existe
entre dois textos, um dos quais é uma tradução do outro.”22
Pode inclusive acontecer de não se ter acesso ao texto original, de uma
tradução ser produto de vários originais diferentes ou de um texto que é
amplamente reconhecido como uma tradução legítima em um contexto não o ser
em outro, como Even-Zohar e Toury afirmam ser o caso da literatura traduzida na
cultura israelense, que não seria considerada tradução para os padrões ocidentais
por muitas vezes não se prender à forma original ou a um único texto-fonte. Para
que um texto exerça o papel de tradução basta que os postulados acima estejam

not offer very much by way of explanatory power, when it comes to culturally contextualized
phenomena
22
‘equivalence’ is merely the name given to the ‘translational relation’ that exists between two
texts, one of which is a translation of the other.
Fundamentos teóricos e metodológicos 47

supostos, mas não é imprescindível que sejam confirmados. De fato, a maioria dos
consumidores de textos traduzidos nem pensaria em fazer essa comprovação, visto
que, nas palavras de Toury (1995b: 137), “quando um texto é oferecido como uma
tradução, ele é prontamente aceito como tal de boa fé, sem mais perguntas”23.
Assim, se uma comunidade supõe que um texto é uma tradução, então ele pode
ser incluído no escopo dos Estudos da Tradução como um objeto de estudo válido.
Sintetizando os três postulados, a definição de tradução suposta, objeto de
estudo do pesquisador de tradução, é:

qualquer texto da cultura-alvo em relação ao qual existem razões para que


tentativamente se postule a existência de outro texto, em outra cultura e
língua, do qual ele foi presumivelmente derivado através de operações de
transferência e ao qual ele agora está vinculado por meio de determinadas
relações, algumas das quais podem ser vistas — dentro daquela cultura
— como necessárias e/ou suficientes.24 (ibid: 145)

Portanto, o objetivo do estudioso é investigar o campo da tradução — sua


concepção em cada cultura, seu funcionamento, sua história, seus produtos, os
processos que geram esses produtos, as intenções e coerções que direcionam esses
processos — de modo a compreender por que ela se comporta de certa forma ou
ocupa uma dada posição, para então poder determinar seus comportamentos
futuros ou potenciais.
Nos próximos capítulos, também explorarei essa questão tendo em vista a
prática específica da tradução para legendas, dentro do contexto da tradução
audiovisual.

II.2.3 O conceito de norma e as normas de tradução

As duas seções anteriores sinalizam a importância, para Toury, do estudo das


coerções, estratégias e objetivos implicados na realização de traduções. Isso nos
traz a um dos pilares de sua teoria: o conceito de norma, que ele adapta ao campo
da tradução a partir da Antropologia, da Sociologia e da Psicologia. Nesta seção,
estão sintetizadas as reflexões sobre esse conceito que julgo mais pertinentes, as

23
when a text is offered as a translation, it is quite readily accepted bona fide as one, no further
questions asked
24
any target-culture text for which there are reasons to tentatively posit the existence of another
text, in another culture and language, from which it was presumedly derived by transfer operations
and to which it is now tied by certain relationships, some of which may he regarded — within that
culture — as necessary and/or sufficient.
Carolina Alfaro de Carvalho 48

quais foram extraídas de dois textos de Toury (1995a e 1998), exceto quando
indicado de outra forma.
De modo geral, as normas são oriundas das convenções sociais, as quais
são permanentemente negociadas em função de ações realizadas. Segundo explica
Theo Hermans (1991), as convenções decorrem de comportamentos regulares que
se mostram soluções eficientes para problemas recorrentes, tornando-se a ação
preferida por um grupo de indivíduos em determinadas situações. Essa
regularidade passa a gerar expectativas de comportamento, aumentando a
previsibilidade das ações e restringindo as opções de resposta às situações
recorrentes, isto é, adquirindo força normativa.
Portanto, as normas refletem os valores e as idéias partilhados por uma
comunidade, traduzidos em instruções implícitas que regem o comportamento de
membros de um grupo em certas circunstâncias, e podem ter abrangência e força
muito variáveis. Cada indivíduo apreende as normas existentes em sua
comunidade durante sua socialização, através de sanções reais ou potenciais
positivas (recompensas para quem as cumpre) ou negativas (restrições para quem
não as observa). Ainda assim, uma norma não é uma lei, capaz de regulamentar
um comportamento como sendo o único lícito e de impor punições a quem não o
cumprir. É claro que, dependendo do poder de uma norma, aquele que optar por
não segui-la pode sofrer alguma conseqüência no contexto em que a situação
ocorre, mas de modo geral as normas admitem uma gama relativamente vasta de
comportamentos discrepantes sem que sejam por estes invalidadas. Nas palavras
de Hermans, “a existência de uma norma não impede o comportamento errático
ou idiossincrático, e uma norma não pode impedir que alguém decida rompê-la
deliberadamente”25 (ibid: 162). Segundo esse autor, tal tolerância é importante
para manter um certo grau de heterogeneidade no sistema, o que lhe permite se
adaptar e transformar com o tempo.
As normas propriamente ditas não são verbalizadas. Elas podem ser menos
ou mais explícitas, e freqüentemente as mais explícitas são enunciadas na forma
de regras, em geral com o objetivo de sistematizar ou controlar o comportamento
dos membros de um grupo. Toury ressalta que, quando ocorre essa explicitação
por meio de enunciados, estes não refletem estritamente a natureza das normas

25
the existence of a norm does not preclude erratic or idiosyncratic behavior; nor can a norm
prevent anyone from setting out deliberately to break it.
Fundamentos teóricos e metodológicos 49

que pretendem revelar, pois os interesses de quem verbaliza os enunciados estão


também neles implicados. Ainda assim, a explicitação de regras é uma evidência
da importância e do grau de consciência que se tem das normas subjacentes.
Desse modo, em termos do nível de explicitação, se o entendermos como uma
gradação, no extremo mais fraco estariam as convenções, que seriam mais difusas
ou obscuras, e, no extremo mais forte, as regras, explicitamente enunciadas. Entre
elas estariam as normas, com uma ampla variação entre um extremo e outro.
Já com relação ao poder de coerção sobre o comportamento dos
indivíduos, na extremidade mais forte estariam as regras gerais, amplamente
aceitas e consideradas, por assim dizer, absolutas, e, na mais fraca, as
idiossincrasias. Novamente, as normas preencheriam o vasto espaço entre umas e
outras, podendo inclusive assumir o caráter de regras absolutas ou de
idiossincrasias quando próximas das extremidades desse espectro. De fato, nas
palavras, de Toury,

[e]m um sentido muito forte, os dois outros tipos de coerções [regras e


idiossincrasias] são meras variações de normas, e não entidades
independentes. Portanto, eles podem facilmente — e de modo justificado
— ser redefinidos em seus próprios termos: regras como normas “[mais]
objetivas”, idiossincrasias como normas “[mais] subjetivas [ou: menos
intersubjetivas]”.26 (Toury, 1998: 17)

Isto é, toda a gama de coerções sobre o comportamento de uma comunidade,


desde as mais genéricas e estabelecidas até as mais individuais, seriam de
interesse para quem estuda o funcionamento dessa comunidade.
É claro que a gradação e a distinção entre as várias normas são relativas e
um tanto quanto difusas, até porque os sistemas são dinâmicos, as ações são
permanentemente renegociadas e o papel de cada norma nunca é totalmente
cristalizado. A própria diferenciação entre o que seria uma convenção ou uma
idiossincrasia só existe no âmbito da rede conceitual em que elas estão inseridas e
de acordo com a perspectiva de quem pretende estabelecer essa diferenciação.
Sobre comportamentos considerados idiossincráticos, por exemplo, Toury destaca
que membros da comunidade ou observadores externos são capazes de reconhecê-
los como tal “somente contra o pano de fundo da nossa familiaridade com o

26
In a very strong sense, the other two types of constraints [rules and idiosyncrasies] are mere
variations of norms, and not independent entities. Consequently, they may easily — and justifiably
— be redefined in their terms: rules as ‘[more] objective’, idiosyncrasies as ‘[more] subjective [or:
less inter-subjective]’ norms.
Carolina Alfaro de Carvalho 50

comportamento médio e sua gradação interna” 27 (ibid: 17).


Além de, naturalmente, variarem com o tempo, as normas variam entre os
(sub)sistemas de uma cultura e permeiam culturas diferentes, adquirindo graus
distintos de generalização e coerção conforme as características específicas de
cada sistema, das instituições e pessoas que o integram e de suas relações de
poder. Desse modo, em função da interação entre os múltiplos sistemas e
subsistemas, algumas normas ganham poder enquanto outras o perdem; normas
bem estabelecidas em um contexto podem ser novidade em outro e já obsoletas
em um terceiro; ou mesmo comportamentos mais próximos da idiossincrasia ou
oriundos de sistemas periféricos podem ir ganhando status com o tempo e
tornando-se mais influentes. Em sistemas maiores e mais heterogêneos, muitas
normas podem ser mais genéricas e vagas, enquanto em sistemas mais restritos e
homogêneos o poder de coerção sobre seus integrantes tende a ser maior. Nas
palavras de Toury:

aquilo que é apenas um tipo de comportamento preferido em um grupo


grande e/ou heterogêneo pode ganhar muito mais poder coercitivo em um
determinado subgrupo dele, que provavelmente também será mais
homogêneo (p.ex., tradutores entre produtores de textos, tradutores de
literatura entre tradutores, tradutores de poesia entre tradutores de
literatura, tradutores ativos em um centro sistêmico vs. tradutores que
operam em uma periferia, etc.). Pode-se discernir um tipo semelhante de
relatividade em termos dos tipos de atividades, os quais ou formam parte
um do outro (p.ex., a interpretação ou a tradução jurídica dentro da
tradução como um todo) ou apenas partilham territórios adjacentes (p.ex.,
crítica de tradução vs. a tradução propriamente dita [...]). Desse modo,
ainda que seja uma única pessoa que empreende mais de uma atividade
e/ou pertence a mais de um (sub)grupo, ela pode muito bem seguir
normas diferentes e manifestar diferentes tipos de comportamento em
cada um de seus papéis e contextos sociais.28 (ibid: 17-18)

Essa pluralidade de papéis e a convivência com normas de mais de um subsistema


constituem uma questão bastante relevante no contexto do presente trabalho. No
Capítulo IV veremos os vários conjuntos de normas com que o tradutor para

27
only against the backdrop of our acquaintance with the middle ground and its internal gradation
28
what is just a favoured mode of behaviour within a large and/or heterogeneous group may well
be assigned much more binding force within a particular subgroup thereof, which is likely to be
more homogeneous too (e.g. translators among text-producers, translators of literature among
translators, translators of poetry among translators of literature, translators active in a systemic
centre vs. translators who operate on a periphery, etc.). A similar kind of relativity can be
discerned in terms of types of activity, forming either parts of each other (e.g. interpreting, or legal
translation, within translation at large) or just sharing adjacent territories (e.g. translation criticism
vs. actual translation [...]). Thus, even if it is one and the same person who engages in more than
one activity, and/or belongs to more than one (sub) group, s/he may well abide by different norms,
and manifest different kinds of behaviour, in each one of his/her roles and social contexts.
Fundamentos teóricos e metodológicos 51

legendas deve lidar em diversas situações de trabalho e como eles influem no


resultado das traduções.
A partir dessas considerações sobre as normas e seu funcionamento, Toury
estabelece algumas categorias de normas especificamente ligadas à tradução (ver,
além dos dois textos de Toury, Martins (1999)):
y normas preliminares (preliminary norms): regem a seleção dos textos a
serem traduzidos e as estratégias globais adotadas para a sua realização e
inserção no sistema-alvo, decisões que muitas vezes não são tomadas pelo
tradutor mas pelos outros agentes e instituições envolvidos;
y normas iniciais (initial norms): mais ligadas às decisões tomadas pelo
tradutor, determinam suas políticas e estratégias em função do lugar que a
tradução pretende ocupar no sistema-alvo, tal como o grau de adequação
(reprodução das relações intra-textuais do texto de partida) e de
aceitabilidade (aproximação maior às normas textuais da cultura de
chegada) buscados; e
y normas operacionais (operational norms): referentes às decisões tradutórias,
isto é, envolvendo a relação existente entre a tradução e o original, dividem-
se em normas matriciais (matricial norms), que determinam os acréscimos,
omissões, alterações e segmentações feitos com relação ao texto de partida,
e normas textuais (textual norms), que regem opções lingüísticas e
estilísticas.
É claro que essas distinções não são estritamente delimitadas, constituindo
mais um suporte metodológico para o pesquisador. Como foi dito, as normas são
estabelecidas nas sociedades a partir da classificação de inúmeras situações
particulares em determinados tipos de ações ou comportamentos recorrentes,
visando restringir a variabilidade e imprevisibilidade dessas situações (Hermans,
1991). O estudioso, por sua vez, identifica esses comportamentos recorrentes para
inferir as normas subjacentes que os regem. Mas Toury deixa claro que não
existem regularidades absolutas no comportamento humano, o qual sempre
envolverá uma combinação de normas, políticas e preferências em diversos níveis
— e isso vale para ambos os extremos: o comportamento nunca será nem 100%
regrado nem 100% errático.
Essa combinação de múltiplas normas se dá de modo especial na atividade
da tradução, visto que ela necessariamente envolve pelo menos dois sistemas de
Carolina Alfaro de Carvalho 52

normas — aquelas subjacentes ao texto original, sua língua e cultura, e as do


sistema-alvo. Como mediador, a tarefa do tradutor é produzir um texto que
represente outro, pré-existente (que ocupa uma determinada posição na sua cultura
de origem), e que consiga ocupar um lugar (preferencialmente aquele que os
produtores da tradução tinham em mente ao empreender essa tarefa) na cultura de
chegada. Em outras palavras, o texto traduzido deve conjugar um grau satisfatório
de adequação e um nível suficiente de aceitação para os seus propósitos. Em
muitos casos, os dois sistemas culturais não serão plenamente compatíveis e o
tradutor buscará uma solução de compromisso, fazendo concessões de um lado ou
de outro. É claro que cada tradutor tomará uma série de decisões idiossincráticas,
mas, segundo Toury, o fato de que tantas traduções ocupem a posição planejada
indica que há um grau significativo de regularidade nas estratégias adotadas.
Além disso, em função das normas que regem a atividade da tradução em
cada contexto, os textos traduzidos partilham de certas características formais —
estruturas estilísticas, construções sintáticas, opções lexicais — que em muitos
casos permitem aos integrantes da cultura-alvo identificá-los como sendo
traduções, mesmo sem ter acesso ao original — o que reforça a noção de tradução
suposta vista na seção anterior. Em função de sua vivência no sistema e portanto
do conhecimento das normas que o regem, ao receberem textos assumindo que
são traduções os consumidores são capazes de perceber se o tradutor aderiu menos
ou mais às práticas de tradução hegemônicas naquele contexto observando
aquelas características formais comuns aos textos traduzidos do sistema. Isso leva
Toury a argumentar que a tradução possui normas textuais específicas, diferentes
daquelas que regem a escrita autoral na mesma cultura.
O processo de socialização dos tradutores com relação às normas de
tradução é semelhante àquele descrito mais no início desta seção, sobre a
socialização dos indivíduos de uma comunidade: a recepção de cada texto
traduzido produz um retorno para o tradutor quanto às expectativas e às reações
dos consumidores, as quais podem acarretar sanções positivas ou negativas. Com
base nesse retorno, o tradutor passará a ajustar suas estratégias e decisões em
função de suas finalidades, buscando antecipar a recepção que seu texto terá. Com
a experiência, muitas estratégias acabarão ficando automatizadas, de modo que
diversas decisões tradutórias serão tomadas sem que o tradutor precise ponderar
explicitamente sobre as conseqüências de cada ato. Nesse processo, as normas vão
Fundamentos teóricos e metodológicos 53

sendo renegociadas ou perpetuadas.


Visto que as normas mais gerais ou canônicas são interiorizadas pelos
tradutores, geralmente os esforços mais conscientes são dirigidos às decisões mais
problemáticas ou controversas, podendo mesmo implicar a infração de uma
norma, em função de determinados objetivos. Por isso, como mostra Hermans
(1991), a “simples” tradução, que parece não envolver maiores reflexões sobre as
decisões tomadas, significa que o tradutor está aderindo às normas hegemônicas,
por ele interiorizadas. Naturalmente, os grupos e instituições que detêm o poder
em um sistema desejam a manutenção das normas canônicas que padronizam o
trabalho de tradutores e regem a preferência dos consumidores.
Uma conseqüência disso é que os tradutores iniciantes, que ainda não
ocuparam um lugar no mercado, costumam ser mais conservadores, com o
objetivo (geralmente inconsciente) de obterem boa aceitação. Entre eles, os
desvios de norma tendem a ser considerados erros, e não alternativas possíveis ou
inovações. Estas, por outro lado, são mais bem recebidas pela comunidade quando
propostas por tradutores que já detêm maior prestígio no sistema, os quais podem
tentar expandir o escopo daquilo que é aceitável correndo menos riscos de
sofrerem sanções negativas. Como já visto, são várias as normas que interagem e
trafegam entre sistemas e subsistemas, muitas delas concorrentes ou conflitantes,
e que se transformam ao longo do tempo. Os tradutores sempre têm mais de uma
opção possível em relação ao caminho a ser seguido e devem saber lidar com os
diversos repertórios que têm à disposição. Cada decisão tomada adere a certos
conjuntos de normas e pode estar desrespeitando outros. Como sintetiza Theo
Hermans (1991: 168), “traduzir é menos uma questão de aderir em larga escala a
uma única norma geral do que de negociar uma multiplicidade de normas, com
graus variáveis de sucesso, para atingir objetivos complexos”.29 O grifo é meu,
para destacar um aspecto importante da tradução audiovisual, conforme veremos
no Capítulo IV.
Finalmente, a tarefa do pesquisador é procurar chegar às normas que
governam a atividade da tradução em cada contexto específico, para através delas
compreender o papel da tradução no sistema. Como já foi dito, a contextualização
detalhada do fenômeno estudado é fundamental para estabelecer as relações e os

29
translating is less a matter of full-scale adherence to a single overriding norm than of negotiating
a multiplicity of norms, with varying degrees of success, to reach complex aims
Carolina Alfaro de Carvalho 54

conceitos existentes e entender a função de cada norma. As fontes de estudo das


normas são:
y o que Toury chama de produtos primários, isto é, os textos traduzidos que
constituem objetos de estudo, através do reconhecimento de estratégias e
padrões;
y os produtos secundários, ou seja, os para-textos (a forma de apresentação da
tradução; no caso de livros, capa, quarta-capa, orelhas, etc.) e meta-textos
(textos sobre a tradução, tais como prefácios, resenhas, críticas, resumos,
etc.), a partir dos quais é possível inferir os interesses na produção do texto;
e
y regras explícitas, tais como instruções passadas ao tradutor (pelo cliente,
por exemplo), as quais buscam condicionar e restringir seu comportamento
e que também revelam interesses e estratégias gerais.

II.2.4 Os mecanismos de controle

As teorias apresentadas por Even-Zohar e Toury descrevem, em termos gerais, os


mecanismos de controle empregados por aqueles que detêm o poder para manter-
se no centro dos sistemas. Como foi visto, os grupos e instituições centrais tendem
a impor sua ideologia e seus valores ao sistema por meio de normas, e estas são
associadas a qualidade e prestígio. Os integrantes do sistema que aderem a essas
normas obtêm maior aceitação e, ao mesmo tempo, ajudam a reforçar o cânone.
O teórico belga André Lefevere, vinculado aos Estudos Descritivos de
Tradução mas também influenciado pela teoria de Michel Foucault, dedicou maior
atenção às forças que atuam nos sistemas e às estruturas de poder que os
caracterizam, de certa forma refinando esse aspecto das teorias de Even-Zohar e
Toury. Também enfocando a literatura, ele procurou compreender e explicitar as
relações de poder e influência entre os integrantes do polissistema literário,
atendo-se particularmente à tradução literária e a outras formas de reescrita de
textos provenientes de outros sistemas — tais como resumos, resenhas, críticas,
citações e referências, assim como o uso de fragmentos dos textos com diversas
finalidades. Suas contribuições tiveram grande influência nos Estudos da
Tradução e também serão relevantes na presente pesquisa sobre a tradução
audiovisual.
Fundamentos teóricos e metodológicos 55

Lefevere (1992) divide os mecanismos de controle em dois tipos inter-


relacionados: um interno ao polissistema literário e outro externo. Internamente,
os profissionais da área literária — como críticos, revisores, professores e
tradutores — são responsáveis por filtrar os produtos literários segundo o
repertório canônico (a poética, de acordo com a nomenclatura de Lefevere) e a
ideologia dominante no sistema. Isso é feito através da repressão a textos
divergentes do cânone ou de sua transformação, por meio de reescritas, até que
eles sejam considerados aceitáveis. O mecanismo de controle externo ao
polissistema literário é o que Lefevere denomina patronagem (patronage), termo
com o qual ele se refere às pessoas e instituições que impõem coerções,
principalmente de cunho ideológico, sobre a literatura de uma cultura. Como
exemplos dessas pessoas e instituições, Lefevere lista figuras históricas tais como
a família Médici e o rei Luis XIV, além de instituições religiosas, partidos
políticos, classes sociais, cortes monárquicas, editoras e a imprensa. Ele explica:

Os patronos tentam regular a relação entre o sistema literário e os outros


sistemas, os quais, juntos, compõem uma sociedade, uma cultura. Como
regra geral, eles operam através de instituições destinadas a regular, se
não a escrita literária, ao menos sua distribuição: academias, agências de
censura, revistas de crítica e, de longe os mais importantes, os
estabelecimento educacionais.30 (ibid: 15)

Lefevere divide ainda a patronagem em três componentes: ideológico,


econômico e de status. Essa sistematização facilita a compreensão dos
mecanismos de socialização e controle apresentados de forma mais genérica por
Even-Zohar e Toury, que falam apenas em sanções e benefícios. Aqueles que se
alinham à ideologia dominante e a reforçam tendem a obter em troca vantagens
econômicas e posições de prestígio nos sistemas dos quais fazem parte. Já no caso
de atores do sistema que não concordem com a ideologia hegemônica, os fatores
econômicos e de status serão instrumentos importantes no combate, no
enfraquecimento e mesmo na transformação de ideologias dissidentes.
A literatura de autoria de Lefevere é extensa e muito rica, mas no escopo
do presente trabalho não nos aprofundaremos mais. O objetivo desta breve
apresentação é apenas esmiuçar um pouco mais as teorias que servem de base para

30
Patrons try to regulate the relationship between the literary system and the other systems, which,
together, make up a society, a culture. As a rule they operate by means of institutions set up to
regulate, if not the writing of the literature, at least its distribution: academies, censorship bureaus,
critical journals, and, by far the most important, the educational establishment.
Carolina Alfaro de Carvalho 56

esta pesquisa no que concerne aos mecanismos de controle dos sistemas para, nos
próximos capítulos, empregar conceitos como o de patronagem ao polissistema de
tradução audiovisual.

II.3 O modelo metodológico de Lambert e van Gorp

Com base nas teorias desenvolvidas por Even-Zohar e Toury, José Lambert e
Hendrik van Gorp (1985) propuseram um modelo, bastante sintético e prático,
para o estudo descritivo de traduções literárias através de uma abordagem
funcional e sistêmica. Dado que os textos de Even-Zohar e Toury apresentam o
funcionamento dos sistemas e os métodos de estudo de uma forma que tende à
generalização e à abstração, o artigo de Lambert e van Gorp é um contraponto
muito útil e tornou-se uma referência freqüente nos estudos descritivistas. Na
presente dissertação, esse modelo metodológico também ajudará a pensarmos a
tradução audiovisual segundo uma perspectiva sistêmica.
A base para o modelo é uma visão ampla dos polissistemas literários da
cultura de origem e da cultura de chegada do texto a ser estudado. Ainda que a
maior parte da análise recaia sobre o texto traduzido e seu original — inclusive
porque, muitas vezes, eles serão (praticamente) os únicos materiais disponíveis
para estudo —, é importante contextualizá-los sistemicamente. Isto é, estabelecer
as relações entre o texto traduzido e outros textos da cultura receptora da tradução,
entre o texto original e outros da cultura de origem, entre o texto traduzido e o
original; a posição ocupada pelo autor na cultura de origem e na de chegada e a
ocupada pelo tradutor; e as caracterizações dos públicos leitores no sistema de
chegada e no de origem.
Como é bem característico dos artigos relacionados aos Estudos
Descritivos, no de Lambert e van Gorp são levantadas diversas perguntas para
motivar investigações mais específicas: sobre a relação entre os vários sistemas,
paralelos entre cada um dos textos em sua cultura, como o autor é visto em cada
sistema, a relação entre adequação e aceitabilidade na tradução, etc. A quantidade
de enfoques possíveis é ilimitada e é impossível dar conta de todos os aspectos
envolvidos na transferência intercultural de textos. Os autores se declaram cientes
disso e deixam claro que cada estudioso deve estabelecer suas prioridades e que a
Fundamentos teóricos e metodológicos 57

sistematização que eles propõem visa aliviar o pesquisador de confiar somente na


sua intuição, ajudando-o a evitar julgamentos a priori.
Com base nas relações sistêmicas estabelecidas e nas informações
contextuais coletadas, a metodologia consiste basicamente em transitar entre o
nível macro-estrutural — apresentação e estrutura geral do texto, normas iniciais
que regem o texto traduzido como um todo — e o nível micro-estrutural —
estrutura interna do texto e diversas estratégias e escolhas lingüísticas, estilísticas
e tradutórias —, contrastando as hipóteses formuladas a partir de observações em
um nível com análises feitas no outro. Isto é, a partir de observações de ordem
macro-estrutural são formuladas hipóteses, as quais são então verificadas através
de análises realizadas no nível micro-textual. A análise micro-estrutural também
levará à formulação de hipóteses mais específicas a serem confirmadas voltando-
se a observar a estrutura macro-estrutural e sistêmica do texto. Os autores
admitem a inviabilidade de se analisarem exaustivamente todos os componentes
micro-estruturais e recomendam a seleção de fragmentos a serem estudados sob
diferentes perspectivas estruturais. Mais recentemente, Toury e outros estudiosos
da área começaram a empregar ferramentas computacionais para realizar
levantamentos estatísticos de ordem micro-estrutural.
O principal objetivo do método é revelar as diversas normas que atuam
não somente em produtos específicos mas, de modo mais geral, na atividade
tradutória do polissistema literário de uma cultura, o que é atingido conectando-se
sistemicamente os vários aspectos observados nas traduções. Isso leva os autores a
destacarem a importância de estudos em larga escala, para além da contribuição
de análises de casos individuais:

Não é possível analisarmos adequadamente traduções específicas se não


levarmos em consideração outras traduções pertencentes ao(s) mesmo(s)
sistema(s) e se não as analisarmos em vários níveis micro e macro-
estruturais. Certamente não é absurdo estudar um único texto traduzido
ou um só tradutor, mas é absurdo desconsiderar o fato de que essa
tradução ou esse tradutor tem conexões (positivas ou negativas) com
outras traduções e outros tradutores. (Lambert e van Gorp, 1985: 51)31

Em síntese, os quatro níveis do esquema para o estudo descritivo de

31
We cannot properly analyze specific translations if we do not take into account other translations
belonging to the same system(s), and if we do not analyze them on various micro- and macro-
structural levels. It is not at all absurd to study a single translated text or a single translator, but it is
absurd to disregard the fact that this translation or this translator has (positive or negative)
connections with other translations and translators.
Carolina Alfaro de Carvalho 58

traduções literárias que consta no apêndice do artigo são os seguintes:


(i) Dados preliminares: título, para-textos (diagramação da capa, quarta-capa,
orelhas, presença ou não da indicação de que se trata de uma tradução,
gênero, nome do autor, nome do tradutor), meta-textos (prefácio, ensaios,
críticas, etc. sobre a obra) e estrutura geral da tradução.
(ii) Nível macro-estrutural: divisões do texto, títulos de capítulos e seções,
estrutura narrativa, estratégia global da tradução.
(iii) Nível micro-estrutural: seleção vocabular, estruturas gramaticais, formais e
estilísticas, tipo de narrativa, modalização, registros, etc.
(iv) Contexto sistêmico: relações macro e micro-sistêmicas do texto estudado
(normas e modelos), relações com outros textos (originais e traduzidos)
naquele sistema, relações intersistêmicas.
No Capítulo III, apresentarei uma adaptação desse modelo ao contexto da
tradução audiovisual, visando facilitar a realização de estudos sistêmicos nessa
área.
Para finalizar este capítulo, listo na próxima seção alguns comentários e
críticas feitos aos paradigmas teóricos que estou adotando antes de me debruçar
sobre o objeto de estudo mais concreto deste trabalho.

II.4 Comentários sobre a Teoria dos Polissistemas e os


Estudos Descritivos de Tradução

Reúno nesta seção alguns comentários que considero pertinentes, feitos pelo
teórico americano Lawrence Venuti e pelas pesquisadoras brasileiras Else Vieira,
Marcia Martins e Maria Paula Frota, além de uma colocação mais pontual
apresentada pelo russo Vilén Komissarov.
A crítica de Komissarov (1996, apud Amorim, 2003) dirige-se à definição
do conceito de tradução suposta (assumed translation, aqui visto na Seção II.2.2),
que entende como objeto de estudo legítimo qualquer texto apresentado à cultura
de chegada como sendo uma tradução e por ela aceito como tal. O autor
argumenta que essa definição não incluiria traduções utilizadas por uma cultura
sem que ela saiba que se tratam de traduções, isto é, textos traduzidos (não
necessariamente literários) introduzidos na cultura sem a indicação de que se
Fundamentos teóricos e metodológicos 59

tratam de traduções, e que portanto são recebidos como textos originais. Esse é
freqüentemente o caso de matérias jornalísticas traduzidas e publicadas em meio a
textos autorais. A noção de tradução suposta, concebida por Toury com vistas a
ampliar o escopo dos objetos de estudo pertinentes, estaria portanto ignorando
muitos textos que, apesar de não serem assim apresentados aos consumidores, são
de fato traduções. Komissarov propõe então a ampliação do conceito de tradução
suposta a partir de sua idéia de tradução como pretensão (translation as
pretension), isto é, aquela que foi produzida com a intenção de constituir uma
tradução. O autor argumenta que a pretensão ou intenção necessariamente precede
a recepção de um texto como tradução e é um fator indispensável para que uma
tradução seja aceita como tal.
Essa argumentação tem fundamento e pode ser muito relevante no estudo
de certos fenômenos. Porém, é preciso contra-argumentar que, apesar de sua
ênfase no conceito de tradução suposta, Toury não descarta o estudo de textos que
não se apresentam ou não são recebidos como traduções, seja por preencherem
alguma outra função ou porque sua identificação como traduções não era algo
relevante na cultura-alvo. E ele destaca:

É claro que itens desse tipo também podem ser estudados, mas será
preciso dar conta precisamente do fato de que eles não foram
apresentados/considerados como traduções na cultura que os recebeu; e
isso como parte do próprio estudo, não apenas como um tipo de
“informação contextual”.32 (Toury, 1995b: 142)

Conforme será visto nos próximos capítulos, a legendagem e outras


modalidades de tradução audiovisual não têm autonomia como textos originais, de
modo que só podem ocupar a posição de traduções de outro produto — ficando
sujeitas a serem consideradas traduções boas e válidas ou não. Mas ainda farei
menção à proposta de Komissarov de tradução como pretensão no Capítulo V.
Por sua vez, Lawrence Venuti (1997 e 2002) reconhece a relevância dos
Estudos Descritivos, afirmando inclusive (1997) que os conceitos e métodos
propostos por Toury já se transformaram em princípios básicos seguidos pelos
estudiosos da tradução mesmo quando não são explicitamente atribuídos ao
teórico. Mas ele faz também algumas críticas, duas das quais considero

32
Items of this kind can of course be studied too, but an account will have to be given precisely of
the fact that they were not presented/regarded as translational within the culture which hosts them;
and as part of the study itself, not just as some kind of ‘background information’.
Carolina Alfaro de Carvalho 60

particularmente relevantes.
A primeira delas afirma que a busca de autonomia para os Estudos da
Tradução (termo que Venuti emprega para se referir aos Estudos Descritivos, o
que impede uma distinção clara entre ambos) através de uma delimitação rigorosa
do campo da tradução com base em teorias do início do século passado — o
Formalismo russo e o Estruturalismo tcheco — acaba deixando de lado discussões
mais atuais e provenientes de outras áreas de estudo. Nas palavras de Venuti
(1997):

A obra de Even-Zohar e Toury, enraizada no Formalismo russo, ignora as


mudanças radicais que vários desenvolvimentos teóricos provocaram nos
estudos literários e culturais — a saber, as variedades de psicanálise,
feminismo, marxismo e pós-estruturalismo no cenário atual —, todos
discursos que insistem na dificuldade de se separar fato de valor na
interpretação humanística. Sem eles, o teórico de tradução não pode
sequer começar a pensar sobre uma ética da tradução ou sobre o papel
exercido pela tradução em movimentos políticos, questões que hoje
parecem mais cruciais do que delimitar tênues fronteiras disciplinares.33

Venuti tem razão quanto às origens da Teoria dos Polissistemas e dos


Estudos Descritivos e, de fato, não podemos ignorar os avanços teóricos de outros
setores das Ciências Humanas — que inclusive estão sendo considerados na
presente pesquisa, como dito na Introdução. Contudo, em meu entender, a própria
estrutura sobre a qual aqueles dois paradigmas estão construídos prevê adaptações
em função de cada contexto específico, sendo essa contextualização um de seus
elementos fundamentais, como foi afirmado mais de uma vez nas seções
precedentes. Épocas, locais, objetos de estudo e perspectivas diferentes
inescapavelmente envolvem posturas teóricas diversas, e não me parece que haja
nada nesses paradigmas que impeça os estudiosos de explicitamente aliarem
contribuições e posicionamentos que lhes pareçam relevantes. Apesar de as
propostas teóricas e metodológicas de Even-Zohar e Toury não se vincularem a
determinadas correntes recentes das Ciências Humanas, também não penso que
esses teóricos ignorem as discussões atuais. Além disso, é bem possível

33
The work of Even-Zohar and Toury, rooted in Russian Formalism, has ignored the radical
changes that various theoretical developments have caused in literary and cultural studies —
namely, the varieties of psychoanalysis, feminism, Marxism, and poststructuralism on the current
scene — all discourses that insist on the difficulty of separating fact from value in humanistic
interpretation. Without them the translation theorist cannot begin to think about an ethics of
translation, or the role played by translation in political movements, issues that seem more crucial
today than sketching narrow disciplinary boundaries.
Fundamentos teóricos e metodológicos 61

incorporar essas discussões a estudos de base descritivista, como feito por


Lefevere, que introduziu contribuições de Foucault nos Estudos Descritivos de
Tradução. Em meu entender, essa maleabilidade é uma grande vantagem dos
paradigmas nos quais se fundamenta o presente trabalho, e também será explorada
aqui.
Além disso, Venuti questiona a viabilidade dos estudos filiados ao
paradigma dos Estudos Descritivos devido à pretensão de se constituírem como
observações “neutras”, isto é, sem a interferência de julgamentos a priori do
pesquisador, bem como ao rigor científico exigido pela metodologia proposta.
Venuti diz que, embora Toury demonstre ter consciência da impossibilidade dessa
neutralidade, essa postura é ingênua em qualquer abordagem científica e que a
própria seleção dos fenômenos estudados e a escolha vocabular presente nos
estudos de casos revelam as preferências do pesquisador, inclusive do próprio
Toury.
Conforme destacado na Seção II.1, Even-Zohar deixa claro o papel ativo
do observador na constituição dos sistemas e daquilo que se consideram
fenômenos observáveis, de modo que a postura do pesquisador não pode ser
considerada neutra. Com relação ao rigor proposto por Toury — também
evidenciado no esquema metodológico de Lambert e van Gorp apresentado na
seção anterior —, eu o entendo mais como um ideal a ser buscado pelo
pesquisador do que como um modelo que realmente pretende excluir os interesses
deste. A ênfase no despojamento do pesquisador de idéias preconcebidas, a meu
ver, acabou ficando um pouco exagerada por ser uma reação contra o tão criticado
prescritivismo (muito associado a logocentrismo e etnocentrismo, há algumas
décadas vistos como males a serem superados).
Claro está que um estudioso sequer começa a empreender uma
investigação sem nenhum tipo de idéia preconcebida sobre o objeto que lhe
chamou a atenção e que todo estudo acarreta interesses implícitos. Portanto,
acredito ser possível assumir, hoje em dia, que os autores contemporâneos levam
essas questões em conta em suas teorias sem a necessidade de continuamente
fazerem ressalvas nesse sentido. Além disso, penso que o pesquisador pode
escapar de acusações de ingenuidade científica esclarecendo qual é seu
posicionamento em relação ao objeto de pesquisa escolhido, incluindo seus
pressupostos, sua bagagem e seus objetivos na contextualização da situação
Carolina Alfaro de Carvalho 62

estudada, de modo que nada disso fique oculto nas entrelinhas de uma descrição
supostamente objetiva. Essa explicitação da perspectiva do pesquisador talvez
implique em uma certa flexibilização dos Estudos Descritivos, o que considero
desejável — como será visto no Capítulo V. Por isso, ao longo do presente
trabalho, procuro apresentar do modo mais claro possível minha visão com
relação a meu objeto de estudo — a tradução para legendas, dentro do âmbito da
tradução audiovisual — e minha própria posição no sistema que analiso.
Os comentários feitos por Else Vieira, Marcia Martins e Maria Paula Frota
têm alguns pontos em comum.
Martins (1999) lamenta a falta de uma base epistemológica clara, tanto da
parte de Even-Zohar quanto de Toury, além da indefinição no que diz respeito à
inter-relação entre a Teoria dos Polissistemas e os Estudos Descritivos. Quanto à
segunda questão, vimos nas seções anteriores que Toury reconhece o impacto que
a teoria de Even-Zohar teve no desenvolvimento dos Estudos Descritivos e que
alguns conceitos empregados são comuns a ambos, mas de fato não fica muito
claro se os dois paradigmas formariam um conjunto fechado — como
freqüentemente são vistos —, se teriam a intenção de serem complementares ou se
apenas compartilhariam alguns fundamentos, assim como quais seriam suas
divergências, caso haja alguma. No presente trabalho, estou mantendo-os
parcialmente separados e numa relação de precedência — a Teoria dos
Polissistemas anterior aos Estudos Descritivos —, entendendo que claramente há
uma forte relação entre eles. Em particular, a primeira exerceu forte influência
sobre os últimos e estes então formularam novos conceitos e propostas sobre a
base construída por aquela.
Quanto à falta de esclarecimentos epistemológicos, Martins e Frota fazem
uma crítica semelhante, argumentando que conceitos essenciais usados por essas
teorias, tais como o de literatura, texto e cultura, não são bem definidos. Martins
(1999) afirma que a mudança de ótica com relação aos conceitos de tradução e
equivalência, assim como a opção por uma perspectiva descritivo-explanatória em
vez de normativa, se deve a uma nova postura epistemológica que não mais toma
por base a essência absoluta do texto ou a intenção autoral. Contudo, não há uma
explicitação dessa mudança, uma contextualização da abordagem descritiva em
relação a outras áreas e linhas de pensamento, o que, segundo Martins, enfraquece
esse paradigma enquanto teoria de tradução. Já Frota (1999) enfatiza a indefinição
Fundamentos teóricos e metodológicos 63

do conceito de cultura não só pelos Estudos Descritivos, mas por várias vertentes
e teóricos agrupados sob o rótulo de culturalistas ou associados à virada cultural,
entre os quais a autora inclui a Skopostheorie e diversos autores vinculados aos
Estudos Descritivos. Na falta de uma definição explícita, fazendo inferências a
partir de vários textos teóricos, Frota conclui que a cultura é vista também como
um sistema, mas, paradoxalmente, não instável e heterogêneo como a Teoria dos
Polissistemas reivindica para outros sistemas. Freqüentemente, cada cultura é
tratada como uma unidade, associada a uma só língua, e suas diferenças internas
são ignoradas, o que é evidenciado quando teóricos afirmam que os tradutores são
biculturais ou que transitam entre duas culturas. “Por que ver apenas duas
culturas [...]?”, pergunta Frota (1999: 58).
Essas colocações são muito relevantes e a falta de uma explicitação
coerente dos conceitos fundamentais da teoria continua constituindo uma lacuna, a
qual eu não me sinto preparada para tentar preencher no escopo deste trabalho. Na
medida do possível, buscarei definir ou contextualizar os conceitos da forma
como os emprego aqui.
Outra crítica com a qual concordo plenamente, também feita por Martins,
diz respeito à meta final de Toury de elaborar uma teoria geral da tradução que dê
conta de suas várias modalidades, culturas, contextos e possibilidades. A teórica
argumenta que “a plasticidade do modelo sistêmico dificulta a previsão de
regularidades dessa amplitude cuja especificidade transcenda a própria dinâmica
do modelo” (Martins, 1999: 61), assim como a identificação de universais no
comportamento tradutório. De fato, como foi visto nas seções anteriores, a ênfase
que Even-Zohar e Toury dão ao dinamismo e à instabilidade dos sistemas não
parece viabilizar a elaboração de teorias desvinculadas do contexto de cada estudo
realizado, ainda que esse contexto possa (e deva) incluir uma visão macro, dos
sistemas maiores. Por mais que Toury esclareça que essa teoria geral não seria
algo cristalizado, mas estaria sempre sendo refinada e atualizada através de
estudos de caso, poderíamos talvez nos perguntar se a busca de universais trans-
sistêmicos não comprometeria a própria noção de sistema na qual se baseia o
paradigma descritivo. Como já foi dito, a presente pesquisa está ligada ao sistema
cultural brasileiro, o qual integro, e se debruça sobre algumas das modalidades da
tradução audiovisual, incluindo um pouco do seu diálogo com a tradução literária.
Ainda que seja possível empregar as reflexões aqui desenvolvidas em outros
Carolina Alfaro de Carvalho 64

contextos, não é minha pretensão que elas sejam universais.


Finalmente, dentre outros comentários críticos feitos por Vieira, um dos
que destaco é sua afirmação de que “não há espaço na teoria dos poli-sistemas
para a dimensão humana” (Vieira, 1996: 130), como a do escritor, do tradutor e
dos leitores, além da teoria não esclarecer qual é o papel exercido por outros
agentes envolvidos, tais como editores, antologistas ou críticos. Martins (1999)
concorda com essa colocação, acrescentando que o pólo receptor fica
sobrecarregado por acumular várias funções ligadas ao processamento dos textos
produzidos.
Efetivamente, em função da ênfase dada por Even-Zohar e Toury ao
caráter sistêmico e sociocultural das relações envolvidas na produção e na
recepção de traduções, o espaço que eles destinam à participação de integrantes
individuais dos vários sistemas fica reduzido. Como foi observado na Seção
II.1.2, as pessoas envolvidas no processo de tradução sequer foram mencionadas
na definição de tradução apresentada por Even-Zohar. Contudo, prefiro ser mais
reticente e não dizer que “não há espaço” para essa participação, pois não entendo
que a dimensão humana — ao menos no sentido sociocultural — seja
desconsiderada. Vieira não esclarece o que entende exatamente por “dimensão
humana”, mas, em função justamente da ênfase dada por Toury e Even-Zohar ao
caráter sociocultural dos sistemas, estes são, por definição, humanos. É bem
verdade que Even-Zohar destaca a concepção mais geral e estrutural dos sistemas
e de seu funcionamento, e que Toury explicitamente opta por não se ater ao estudo
de comportamentos subjetivos ou idiossincráticos — o que será por mim
explorado no Capítulo V. Porém, Toury e outros teóricos descritivistas propõem,
por exemplo, o estudo das traduções realizadas por um único tradutor e a
consideração de críticas, prefácios e dados referentes à recepção das traduções
como parte da metodologia de estudo, o que a meu ver demonstra que a
participação humana não é deixada de lado.
Numa linha semelhante, Frota aborda essa questão de uma forma que me
chamou particularmente a atenção, novamente referindo-se às abordagens
culturalistas e não somente aos Estudos Descritivos de Tradução. Ela afirma que,
ao priorizar a cultura ou os contextos sociais, ampliando o escopo para além do
sistema da língua, essas abordagens passam a conceber o sujeito como
“absolutamente determinado pelos contextos sociais em que transita, pela história
Fundamentos teóricos e metodológicos 65

e pelas ideologias” (Frota, 1999: 63), sendo recalcada ou mesmo descartada sua
singularidade. A partir de citações que afirmam que a tradução é inevitavelmente
uma reescrita informada por uma ideologia e, como tal, é sempre uma
manipulação a serviço do poder, Frota aponta o seguinte paradoxo:

O sujeito [...] apresenta-se como um sujeito social, não havendo


investigação acerca da subjetividade em um plano mais particular.
Paralela e contraditoriamente, [...] é assumida uma postura absolutamente
subjetivista quando formuladas ou aplicadas as “novas” estratégias
tradutórias de manipulação. (ibid: 63-64)

De fato, num mesmo texto, Toury (1998) apresenta sua opção por uma concepção
sociocultural da tradução em contraposição a uma situação de comunicação
individual entre uma pessoa e um texto, ao mesmo tempo em que afirma que
mudanças de paradigma podem ser causadas pela ação de indivíduos que ocupam
uma posição de maior poder no sistema.
Conforme será visto no Capítulo V, essa dificuldade de superar a
dicotomia sujeito/objeto é comum nos Estudos da Tradução e pode ser detectada
mesmo entre teóricos pós-estruturalistas mais radicais, como Lawrence Venuti e
Stanley Fish. Mas, a meu ver, assim como é possível agregar reflexões teóricas
atuais à base polissistêmica e descritivista apresentada ao longo deste capítulo,
penso que há também espaço para refletir sobre a singularidade no âmbito dessas
abordagens, o que tentarei fazer progressivamente nos capítulos que se seguem,
enfocando a prática da tradução para legendas.
III
AMPLIAÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO
AO ESTUDO DA TRADUÇÃO AUDIOVISUAL

Neste capítulo, buscarei primeiramente ampliar a Teoria dos Polissistemas de


modo a que os estudos sobre a tradução audiovisual também possam tomar como
base esse modelo teórico. Para tanto, descreverei o que estou concebendo como
polissistema audiovisual no contexto do sistema cultural brasileiro, levando em
conta suas relações externas e internas.
A partir dessa extensão teórica, agora com foco na tradução audiovisual,
retomarei os conceitos, reflexões e modelos dos Estudos Descritivos de Tradução
apresentados no capítulo anterior. Adaptarei também o modelo proposto por
Lambert e van Gorp, no intuito de fornecer subsídios para um maior
desenvolvimento dos estudos descritivistas na área da tradução audiovisual e de
facilitar a padronização e convergência desses estudos. Isto levará a certos ajustes,
visto que a tradução audiovisual — e especificamente a tradução para legendas,
que será abordada no Capítulo IV — possui algumas particularidades bem
distintas de outras modalidades de tradução. Em especial, por vezes será
necessário marcar diferenças com relação à tradução literária, principal objeto de
estudo das abordagens teóricas nas quais estou me apoiando, de modo a
caracterizar a tradução audiovisual segundo esses paradigmas.
Ao mesmo tempo, procurarei levar em conta as críticas feitas a esses
modelos teóricos e apresentadas no capítulo anterior, formulando minhas
ampliações e adaptações de modo a evitar ou mesmo superar, na medida do
possível, aquilo que se consideram seus pontos fracos ou questionáveis. Desta
forma, procurarei chegar a um dos objetivos deste trabalho, que é contribuir para
as discussões teóricas atuais nos Estudos da Tradução — discussões essas
vinculadas à prática tradutória, neste caso no campo audiovisual.
Nas próximas duas seções, apresentarei minha concepção do polissistema
audiovisual e do polissistema de tradução audiovisual, passando então, no capítulo
seguinte, à descrição sistêmica da tradução para legendas no contexto brasileiro.
Ampliação dos fundamentos teóricos 67

Finalmente, parto para a última etapa deste trabalho, onde teço considerações
sobre a singularidade do tradutor.

III.1 O polissistema audiovisual

A partir da Teoria dos Polissistemas, de autoria e Itamar Even-Zohar (1990) e


apresentada no capítulo anterior, concebi uma extensão desse modelo no intuito
de que ele sirva como base para o estudo sistêmico da tradução audiovisual.
Vale ressalvar que me baseio em meu conhecimento do mercado
brasileiro. Embora acredite que nosso mercado seja em vários aspectos
semelhante ao de outras culturas em desenvolvimento ou não hegemônicas, não
tenho pretensões de que minha proposta reflita outras realidades culturais em
todas as suas particularidades. Como já foi dito, uma das vantagens desse modelo
teórico é a possibilidade de adaptá-lo a contextos diferentes e de fazer recortes
específicos. Porém, ele exige um grau de contextualização que, no nível micro-
estrutural, dificulta a sua generalização através das fronteiras culturais,
principalmente ao enfocarmos práticas cujo funcionamento sofre variações
significativas em diferentes culturas. Portanto, ainda que, em larga escala, o
modelo polissistêmico aqui ampliado possa ser transposto para outros contextos,
meu objetivo não é elaborar uma base geral para o estudo da tradução audiovisual
que seja diretamente aplicável aos diferentes subsistemas do polissistema
audiovisual de várias culturas.
Meu ponto de partida é a descrição do funcionamento interno desse
polissistema a partir do contexto cultural no qual estou inserida, dando atenção
especial ao sistema de tradução para legendas, no Capítulo IV, e chegando até a
reflexão sobre a participação singular de um tradutor que faz parte do sistema, no
Capítulo V. À medida que meus recortes forem ficando restritos a escalas
menores, as descrições dos atores e processos que compõem os sistemas
inevitavelmente ficarão mais situadas, estando mais presas a seu contexto e sendo
menos passíveis de serem transportadas diretamente para outras situações e
realidades. Assim, para o estudo posterior de atividades ou contextos diferentes,
seria preciso fazer os ajustes pertinentes de nível micro-estrutural na descrição dos
respectivos sistemas com base na concepção mais macro do polissistema
Carolina Alfaro de Carvalho 68

audiovisual.
Retomemos então a concepção de cultura como polissistema desenvolvida
por Even-Zohar e sintetizada na Seção II.1. O polissistema literário (Seção II.1.1)
é um dos sistemas pertencentes à cultura e o objeto de estudo central do autor
israelense. Com base nesse modelo, concebi o polissistema audiovisual como
também estando inserido no polissistema cultural, compartilhando seu espaço com
o polissistema literário e os outros sistemas que compõem a cultura.
Como foi visto no capítulo anterior, os sistemas são redes de relações
estabelecidas entre ocorrências ou fenômenos observáveis, configurados tanto
pelas inter-relações de seus subsistemas quanto pela interação com sistemas
adjacentes. Na busca por permanência e centralidade num polissistema, os
sistemas que o compõem fazem contato, se movimentam, alternam posições,
enfim, negociam continuamente seus limites, seu papel e seu poder no
polissistema.
Além disso, há sobreposições entre sistemas e existem componentes —
pessoas, instituições, subsistemas — que transitam em mais de um sistema.
Dentro do polissistema cultural, se pensarmos na relação entre o polissistema
literário e o audiovisual, podemos mencionar, por exemplo, a adaptação de obras
literárias em versões cinematográficas — ou tradução intersemiótica, para usar o
termo comumente empregado nesse processo, baseado na distinção clássica feita
por Jakobson (1969: 65) — e o trânsito de autores-roteiristas, críticos e agentes de
marketing entre os dois sistemas, os quais geram pontos de sobreposição entre
suas fronteiras.
Internamente, o polissistema audiovisual é configurado por seus
subsistemas, os quais por sua vez são formados pelos grupos de pessoas e
instituições que neles interagem. Pensemos, por exemplo, na produção e
distribuição de um filme. De sua concepção e produção participam roteiristas,
adaptadores, produtores, diretores, pesquisadores e profissionais especializados
em diversos assuntos e técnicas, além de agentes e atores. Sua comercialização
envolve laboratórios cinematográficos, distribuidores, agentes de marketing,
patrocinadores, meios de propaganda e canais de venda, exibição e transmissão.
Podemos ainda diferenciar grupos ligados a determinados meios — tais como
circuitos de salas de cinema, sites especializados na Internet ou sistemas de
distribuição de televisão a cabo — como constituindo subsistemas, por
Ampliação dos fundamentos teóricos 69

envolverem profissionais especializados e infra-estruturas, usuários e formatos


específicos.
Ainda pensando na produção e distribuição de filmes, várias atividades
relacionadas envolvem sistemas que não estão inteiramente inseridos no
polissistema audiovisual mas que a ele se sobrepõem e com o qual interagem
diretamente. É o caso, por exemplo, da crítica especializada, veiculada através de
meios específicos ou segmentos de publicações mais amplas. Podemos pensar
também em processos de importação e exportação de filmes, que envolvem
agentes, financiadores e analistas de mercado, entre outros. O ensino das diversas
práticas relacionadas à área também exerce um papel importante e abrange uma
gama diferente de profissionais, instituições e procedimentos. Aqui podemos
evocar os mecanismos de controle vistos no capítulo anterior, como o conceito de
patronagem de André Lefevere (1992), uma vez que a formação de profissionais,
a opinião da crítica e as expectativas referentes à recepção de um filme afetam
diretamente as políticas e atividades adotadas na preparação, produção e
distribuição do produto.
Conforme foi explicitado no esclarecimento terminológico feito na Seção
I.2, tenho em mente uma concepção relativamente restrita do termo audiovisual.
De qualquer forma, seria possível levar em conta sua acepção mais ampla e incluir
outros produtos, tais como jogos por computador, por exemplo. Nesse caso
estariam envolvidos outros profissionais e processos, e o subsistema de jogos por
computador seria regulado por forças semelhantes às que controlam o mercado
audiovisual mas com a participação de profissionais com especializações distintas.
Talvez à primeira vista a relação entre a produção de um filme e a de um
jogo de computador não seja muito aparente. Como foi mencionado no Capítulo I,
essa é uma das dificuldades de se desenvolver uma teoria que forneça subsídios
para o estudo do campo audiovisual como um todo. Contudo, é possível
estabelecer uma relação mais concreta entre essas atividades se concebermos um
subsistema comum a essas práticas formado pelas pessoas e instituições
envolvidas no trabalho com os diversos tipos de textos — tanto orais quanto
escritos — necessários à elaboração, produção, distribuição, comercialização,
divulgação e mesmo à recepção de todos esses produtos. De modo particular, meu
interesse é investigar um tipo de atividade em torno desses textos sem a qual
várias etapas fundamentais do processo descrito acima não seriam possíveis: a
Carolina Alfaro de Carvalho 70

tradução. Esse subsistema do polissistema audiovisual, que por sua vez também
constitui um polissistema, é o que denomino polissistema de tradução
audiovisual.

III.2 O polissistema de tradução audiovisual

Voltemos ao polissistema literário de Even-Zohar, apresentado na Seção II.1.1


desta dissertação. Um de seus subsistemas é o sistema de tradução literária (Seção
II.1.2), principal foco das atenções dos estudiosos ligados aos Estudos Descritivos
de Tradução. Mantendo o paralelismo com esse modelo, em minha extensão o
polissistema de tradução audiovisual seria um dos subsistemas do polissistema
audiovisual descrito na seção anterior.
Possuindo uma relação de isomorfismo com o polissistema audiovisual, o
polissistema de tradução audiovisual reflete sua hierarquia e submete-se a esta em
diversos aspectos, porém também possui componentes e leis que lhe são próprios.
Entremeando-se às inúmeras atividades relacionadas à concepção, produção e
distribuição de produtos audiovisuais, as várias modalidades de tradução e
interpretação realizadas nesse campo são fundamentais para que seus produtos e
subprodutos possam circular em diferentes sistemas e culturas — o que, cada vez
mais, é um aspecto crucial para o sucesso dos empreendimentos. Uma grande
gama de profissionais e instituições especializados é responsável por essas
traduções. Apenas como alguns exemplos, podemos destacar produtoras e
laboratórios voltados para a preparação e produção dos diversos meios e formatos
de tradução audiovisual — película para projeção em cinemas, VHS, DVD, CD-
Rom, transmissões via satélite —, além de tradutores e revisores com
conhecimentos específicos nos diferentes subsistemas — legendagem, closed
caption, dublagem, voice over, sites e aplicativos na Internet, localização de
programas de computação, etc.
No intuito de facilitar a visualização desse conjunto de sistemas e
subsistemas antes de discuti-lo em mais detalhe, retomo aqui a ilustração
esquemática da Teoria dos Polissistemas apresentada no capítulo anterior e
acrescento a ela o polissistema audiovisual e seus sistemas, com destaque para o
polissistema de tradução audiovisual (Figura 2). Se o objeto de estudo da maioria
Ampliação dos fundamentos teóricos 71

dos autores descritivistas é o polissistema literário, o foco agora é deslocado para


o polissistema de tradução audiovisual e as relações internas que o configuram —
simbolizadas pela seta amarela na Figura 2 — e, de modo particular, o sistema de
tradução para legendas, no qual me aprofundarei no próximo capítulo.
Naturalmente, são mantidas as ressalvas feitas na Figura 1, uma vez que o
propósito da ilustração é justamente ser uma simplificação gráfica. Como foi visto
acima, as diversas modalidades de tradução interagem com vários dos subsistemas
do polissistema audiovisual, porém ficaria visualmente confuso tentar ilustrar essa
permeabilidade entre sistemas.

Cultura
Outros sistemas,
Outros outras culturas
s i s te m a s Polissistema
literário

outros
Outros Outros Sistema de
s i s te m a s , s i s te m a s tradução outros
outras culturas
literária

outros
Sistema de
de
tradução
Outros audiovisual
s i s te m a s , outros Outros
outras Outros
s i s te m a s
culturas s i s te m a s ,
outras
Polissistema culturas
outros Outros
audiovisual s i s te m a s

Figura 2 - Inserção do polissistema audiovisual na representação gráfica da Teoria dos


Polissistemas.

III.2.1 A relação entre o polissistema audiovisual e o polissistema


literário

Antes de nos debruçarmos sobre os subsistemas do polissistema audiovisual, é


pertinente fazermos algumas considerações sobre a relação entre ele e o
polissistema literário. Como pode-se ver na figura acima, o polissistema literário
continua em destaque no sistema cultural e existe um contato explícito entre ele e
o polissistema audiovisual, assim como entre seus respectivos subsistemas. Esse
paralelismo entre tais polissistemas visa deixar claro que, ao ampliar a teoria
Carolina Alfaro de Carvalho 72

proposta por Even-Zohar, desejo também adaptar os conceitos e métodos


associados a esse paradigma, que versam quase exclusivamente sobre a tradução
literária, ao contexto da tradução audiovisual. Tal adaptação levará à reformulação
de alguns desses conceitos e métodos em função de modalidades específicas da
tradução audiovisual — com ênfase, no caso da presente pesquisa, na
legendagem. Penso que não seria possível torná-los mais abrangentes, de modo
que se prestassem à aplicação tanto para a tradução literária quanto para a
audiovisual, sem que eles perdessem em eficácia enquanto instrumentos de
pesquisa. Haverá, portanto, um paralelismo conceitual e metodológico entre os
dois polissistemas: o literário e o audiovisual.
Mas o contato entre os polissistemas literário e audiovisual e seus
subsistemas é também uma realidade, conforme mencionado na seção anterior.
Sem dúvida existe um diálogo entre autores literários e diretores ou roteiristas de
programas, filmes e mesmo jogos de computador; entre editoras e distribuidoras
de filmes e outros produtos audiovisuais; entre os respectivos veículos de
propaganda; entre agentes literários e agentes ligados à indústria cinematográfica,
etc. — diálogo que é muitas vezes mediado por tradutores. Tendo em vista, por
um lado, a anterioridade histórica da literatura e, por outro, o crescimento e a
maior penetração dos meios audiovisuais em praticamente todas as culturas
mundiais em contraposição às notórias dificuldades enfrentadas pelo mercado
editorial, a cooperação é algo desejável e benéfico para ambos os sistemas. Se em
diversos casos um produto audiovisual — por exemplo, um filme — não existiria
sem se basear em um produto literário anterior — um livro —, é cada vez mais
comum que as vendas desse livro só adquiram impulso graças ao sucesso do
filme. Inclusive, freqüentemente são lançadas novas edições de livros cuja
apresentação faz referência direta aos filmes que inspiraram, de modo a deixar
clara essa relação. Estratégias como essa derivam de uma prática mercadológica
recente: a promoção de “vendas casadas”, através da qual uma pessoa que se
interessa por um dos produtos relacionados a uma obra torna-se alvo de
estratégias de marketing para adquirir mais de um item vinculado ao seu interesse.
Exemplo 1 - Relação entre o livro e o filme Cidade de Deus.
A título de ilustração, pensemos em Cidade de Deus — o livro é de autoria
de Paulo Lins, publicado originalmente pela Companhia das Letras em 1997 e
reeditado em 2002; o filme foi dirigido por Fernando Meirelles e lançado em
Ampliação dos fundamentos teóricos 73

2002. No Brasil, apesar da boa vendagem do livro antes do lançamento do filme,


foi o grande sucesso deste que deu um novo impulso àquele. A segunda edição do
livro, publicada no mesmo ano de lançamento do filme, traz na capa uma imagem
extraída do filme — a mesma que aparece na capa do DVD distribuído no Brasil
— e uma tarja amarela informando que o livro inspirou o filme de Fernando
Meirelles e que a nova edição do livro foi revista pelo autor (Figura 3).
Desconheço o teor de tal revisão, mas a meu ver essa informação insinua uma
aproximação maior entre o livro e o filme e tem como alvo principal o público que
assistiu ao filme. Também está à venda o roteiro do filme, um tipo de publicação
pouco comum e que tende a ter um público muito restrito. Trata-se de um
subproduto do filme comercializado no mercado literário cujo público-alvo
principal são provavelmente roteiristas e outros profissionais e estudantes de
cinema, o que demonstra a sobreposição entre esses dois sistemas.
O filme foi prontamente distribuído nos Estados Unidos, onde foi muito
bem recebido (IMDB). Conquistou diversos prêmios internacionais, foi exibido
em cinemas em grandes cidades americanas e recebeu ótimas críticas, muitas das
quais fazem menção ao livro, ainda não publicado em língua inglesa. Em livrarias
virtuais norte-americanas, é possível adquirir o livro em português, francês e
espanhol. Acredito ser alta a probabilidade de que em breve o livro receba uma
tradução em inglês. Nesse caso, é bem possível que a capa do livro seja
semelhante à do DVD (Figura 3), evocando sentimentos bem distintos daqueles
inspirados pela imagem divulgada nos produtos brasileiros. Aqui, temos o rosto
sisudo e preocupado do jovem fotógrafo, sem sabermos o que ele está vendo. Lá
há duas imagens: a do casal de jovens — ela branca, ele negro — frente à praia
evoca calor e sensualidade, enquanto a outra remete à violência da favela, dois dos
temas brasileiros mais enfatizados internacionalmente.
Carolina Alfaro de Carvalho 74

Figura 3 - Da esquerda para a direita: capa da segunda edição do livro Cidade de Deus; capa do
DVD lançado no Brasil; capa do DVD lançado nos Estados Unidos (Exemplo 1).

Nessa interface entre os polissistemas de tradução literária e audiovisual,


podem ser realizadas investigações interessantes. O quanto a apresentação do
filme e do livro será aproximada para que esses produtos sejam vendidos de forma
“casada” nos Estados Unidos? O quanto a tradução do livro em inglês será
influenciada pela apresentação e tradução do filme? O quanto o impacto causado
pelo filme já terá direcionado a futura interpretação e recepção do livro, e como o
reconhecimento dessa influência do filme pode pesar em decisões dos editores e
do tradutor quanto a reforçar ou reverter essa interpretação? E como a tradução, a
distribuição e a recepção desses produtos na cultura norte-americana será refletida
novamente na brasileira, influenciando nossa produção literária e
cinematográfica?
As diversas pesquisas motivadas por perguntas desse tipo que se prestam a
serem desenvolvidas segundo o paradigma descritivo podem produzir resultados
úteis tanto para a teoria quanto a prática e o ensino da tradução, no campo literário
e audiovisual. No entanto, o empreendimento de estudos mais aprofundados sobre
o sistema de tradução audiovisual nos moldes dos Estudos Descritivos claramente
demanda, como já foi dito, uma adaptação de seu instrumental conceitual e
metodológico, visto que há diferenças significativas entre os processos e produtos
da tradução literária e os da tradução audiovisual. Assim, neste trabalho, estou
marcando a mudança de foco do polissistema literário para o audiovisual visando
facilitar as reformulações conceituais, que seguirão esse mesmo percurso.
Ampliação dos fundamentos teóricos 75

Anthony Pym afirma que “há [...] bons motivos para esperar que um termo
relativamente indefinido e indisciplinado como ‘multimídia’ [e acrescento: o
mesmo se aplica a ‘audiovisual’] trará problemas a qualquer tentativa de abordá-lo
com preceitos metodológicos desenvolvidos para outros objetos”34 (Pym, 2001b:
277) — e aqui ele se refere justamente aos Estudos Descritivos de Tradução. De
fato, conforme já mencionado, a dificuldade de delimitação e mesmo de
denominação do conjunto heterogêneo que estou englobando sob o rótulo de
tradução audiovisual é um grande obstáculo à elaboração ou aplicação de uma
teoria abrangente, capaz de explicá-lo e fundamentá-lo de forma satisfatória. É por
isso que, uma vez contextualizado o sistema de tradução audiovisual, enfocarei
primordialmente a tradução para legendas, atividade importante no contexto
brasileiro. Penso que, com alguns ajustes, é possível fazer o mesmo tipo de
adaptação a outras modalidades de tradução audiovisual — adaptação que
envolveria mudanças mais significativas no caso da Internet e de programas de
computação — e assim ir chegando a um conjunto mais amplo de bases teóricas e
metodológicas direcionadas a essa área como um todo.

III.2.2 Configuração interna do polissistema de tradução audiovisual

Retornemos ao sistema de tradução audiovisual. Como foi dito na seção III.1,


estabelecendo-se as relações comuns às atividades ligadas à tradução de textos
audiovisuais torna-se mais viável pensar essas atividades de forma integrada,
constituindo um dos sistemas do polissistema audiovisual. Já foram listadas, no
Capítulo I, algumas dessas práticas, dentre outras identificadas por Gambier
(2002). Convém aqui retomá-las, acrescentando contribuições de Díaz Cintas
(1997) e agrupando-as segundo certas características comuns (com a ressalva de
que esses autores não tratam de diversos recursos audiovisuais, principalmente
aqueles ligados à Informática, tais como sites e programas de computação):
1. tradução de roteiros
2. dublagem
3. audio vision

34
[t]here are [...] good reasons to expect that a relatively undefined and unruly term like
“multimedia” will create trouble for any attempt to handle it with methodological precepts
developed for other objects
Carolina Alfaro de Carvalho 76

4. narração
5. voice over
6. interpretação simultânea e consecutiva de eventos transmitidos ao vivo
7. legendagem simultânea
8. legendagem
9. surtitling
10. closed caption
A primeira é a mais próxima de outras modalidades tradicionais da
tradução escrita, porém as diversas funções possíveis da tradução dos vários tipos
de roteiros — para guiar a produção fotográfica de programas e filmes, orientar
atores, coordenar o desenvolvimento de um programa de computador, permitir a
recriação de um produto em outra cultura ou facilitar as tarefas de tradutores em
outros sistemas, por exemplo — nos permitem entendê-la como um processo
claramente inserido no polissistema audiovisual. Essa prática não está sujeita à
maioria das coerções das outras modalidades listadas, sendo o principal fator
coercivo sua funcionalidade enquanto produto interno do sistema, do qual
dependem muitas atividades decorrentes.
As cinco modalidades seguintes trabalham com o registro oral, sendo a
dublagem, o audio vision, a narração e o voice over gravados sobre os canais de
áudio originais para transmissão posterior e a interpretação feita ao mesmo tempo
em que o produto é transmitido. A principal coerção comum a essas práticas
corresponde à adequação ao tempo de transmissão do áudio original e às imagens
exibidas. Já as diferenças se dão em função dos objetivos de cada modalidade —
tal como o fato de que o audio vision é direcionado a deficientes visuais — e de
outras características particulares. Por exemplo, uma forte coerção na dublagem é
o movimento dos lábios das pessoas que aparecem na imagem, visto que se
procura ajustar o ritmo e a fonética do texto traduzido a esse movimento. Já o
voice over guarda uma semelhança com a legendagem, pois o som original
permanece audível e a voz do dublador não se sobrepõe totalmente a ele,
começando depois do início do áudio original e terminando antes de seu fim.
Portanto, se por um lado a tradução para voice over não sofre a coerção fonética
que impõe restrições à dublagem, por outro ela é obrigada a reduzir a extensão do
texto — uma das restrições impostas à legendagem. A dublagem é ainda a
modalidade mais custosa dentre as acima listadas, por envolver um grande
Ampliação dos fundamentos teóricos 77

número de profissionais, sendo as mais econômicas as que veremos a seguir.


As modalidades 7 a 10, que recorrem ao emprego de legendas,
correspondem ao que Gottlieb (1992, apud Díaz Cintas, 1997) denomina tradução
diagonal em função da necessidade de adaptação de um original em código oral a
um produto em código escrito. Essa noção de diagonal fica clara através do
seguinte quadro:

Língua-fonte Língua-meta

Código oral ÁUDIO

Código escrito LEGENDAS

Figura 4 - Ilustração da noção de tradução diagonal.

Portanto, de acordo com esse quadro, todas as outras modalidades da lista acima
seriam horizontais, estando a modalidade 1 na linha do código escrito e as
modalidades 2 a 6 na linha do código oral.
No próximo capítulo examinaremos em mais detalhe a legendagem,
inclusive essa qualidade diagonal e suas implicações. Por ora, basta destacar que
as modalidades 7 a 10 possuem duas coerções principais: a temporal, visto que
devem se ajustar ao tempo de duração do áudio correspondente — nesse aspecto
assemelhando-se às modalidades orais vistas acima —, e a espacial, pois ficam
restritas a uma porção limitada da tela de exibição. A legendagem simultânea
sofre ainda uma forte pressão sobre o tempo para sua elaboração, pelo fato de ser
realizada ao vivo. A finalidade de cada uma também gera diferenças — o closed
caption, por exemplo, destina-se a pessoas com dificuldade de audição.
Devido a todas essas coerções, que afetam sensivelmente as soluções
tradutórias e levam à produção de textos traduzidos muito diferentes entre si,
embora a partir de um mesmo original, alguns teóricos da tradução questionam o
fato de que essas práticas sejam realmente traduções e optam por referir-se a elas
como adaptações. Porém, como bem observa Díaz Cintas, em sua maioria

[o]s estudiosos do assunto parecem recorrer tanto a um termo quanto a


outro [tradução e adaptação] com uma imparcialidade assombrosa, de
modo que a distinção entre a figura do tradutor e a do adaptador tende a
desaparecer, e não é raro que ocasionalmente se recorra à nomenclatura
Carolina Alfaro de Carvalho 78

dual tradutor-adaptador.35 (Díaz Cintas, 1997: 105)

Como foi visto no Capítulo II, a imposição de rótulos aos processos e fenômenos
de um sistema é criticada pelos Estudos Descritivos como sendo um ato
desprovido de relevância face ao objetivo de contextualizar e compreender a
natureza e o funcionamento dos objetos estudados — que é o que procuro fazer no
presente trabalho.
Para além das características mais aparentes descritas acima, há outras,
subjacentes a todo esse conjunto de práticas e inclusive às que não foram
consideradas na lista acima, relacionadas ao campo da Informática. Três dessas
características, destacadas por Gambier e Gottlieb (2001), têm grande relevância
no sistema de tradução audiovisual mas são freqüentemente ignoradas por
estudiosos da tradução que não transitam por seus vários subsistemas. São elas:
(i) o aspecto crucial do trabalho em equipe, visto que o tradutor é apenas um
dos profissionais que manipulará os textos em meio aos complexos
procedimentos que constituem a produção, distribuição e divulgação de
produtos audiovisuais;
(ii) o fato de que o tradutor trabalhará muitas vezes com textos intermediários,
empregados durante os processos de produção e distribuição dos materiais
— isto é, cujo original não é o produto completo recebido pelo público da
cultura de origem e cuja tradução não se destina ao público consumidor do
produto na cultura de destino — e de vida curta, pois serão atualizados,
modificados ou simplesmente descartados após cumprirem sua função; e
(iii) os principais critérios que norteiam a tradução audiovisual são a
compreensibilidade, a acessibilidade e a usabilidade, isto é, a função que ela
deve desempenhar freqüentemente terá precedência sobre outros fatores,
inclusive por vezes normas lingüísticas.
No contexto da produção de filmes, Patrick Catrysse apresenta uma
situação que envolve simultaneamente os três itens da lista acima:

quando é preciso obter financiamento internacional com base em


documentos de pré-produção, ou quando um projeto diz respeito a uma
equipe de produção internacional, a tradução pode ter de lidar com

35
Los estudiosos del tema parecen recurrir tanto a un término como a otro con una imparcialidad
asombrosa, por lo que la distinción entre la figura del traductor y la del adaptador tiende a
desaparecer, y no es raro que en ocasiones se recurra a la nomenclatura dual traducteur-
adaptateur.
Ampliação dos fundamentos teóricos 79

sinopses, relatórios de projeto, roteiros, fluxogramas, etc., dirigidos a


vários produtores-financiadores em diferentes países ou culturas, ou à
equipe de produção internacional.36 (Catrysse, 2001: 4)

Portanto, temos o aspecto do trabalho em equipe e o emprego de textos


intermediários de duração restrita, além do que a finalidade desses textos norteará
boa parte da estratégia a ser adotada na tradução em questão.
Essas características afetam o significado de alguns conceitos tradicionais
dos Estudos da Tradução, conceitos que são de certo modo ampliados no contexto
da tradução audiovisual. Em função do visto no item 2 acima, o binômio texto-
fonte/texto-meta (Gambier & Gottlieb, 2001), que, geralmente remeteria
respectivamente a um produto final da cultura-fonte e a outro produto final da
cultura-alvo, não mais implica objetos entendidos de forma tão inequívoca, sendo
necessário contextualizar o texto em cada situação apresentada. Patrick Catrysse
reforça o argumento de que a noção de texto é dessacralizada no sistema de
tradução audiovisual. Falando a respeito da Internet, o autor afirma:

os textos on-line são publicados antes, mas também mudam mais


depressa. Como conseqüência, a natureza dos textos torna-se mais
“fluida”. Em decorrência disso, conceitos como original, versão
subseqüente, tradução ou adaptação se transformam. Um texto pode
existir de uma determinada forma um dia mas mudar consideravelmente
no dia seguinte. Não resta nenhum vestígio da primeira versão.37
(Catrysse, 2001: 4.)

Segundo Gambier e Gottlieb (2001), a noção de texto também é expandida


para algo que inclui outros sistemas semióticos além do verbal, visto que diversos
signos não verbais também participam: imagens, sons, música, cores, gráficos,
etc. Delabastita sistematiza esses conjuntos de signos em quatro categorias:

signos verbais transmitidos acusticamente (diálogos), signos não verbais


transmitidos acusticamente (ruídos de fundo, música), signos verbais
transmitidos visualmente (créditos, letreiros, documentos exibidos na
tela) e signos não verbais transmitidos visualmente.38 (Delabastita, 1990:

36
where international financing has to be found on the basis of pre-production documents, or
where a project concerns an international production crew, translation may deal with synopses,
design reports, screenplays, flow charts, etc., targeted either at several producer-financers in
different countries or cultures, or at the international production crew.
37
on-line texts get published earlier, but change quicker also. As a consequence, the nature of texts
becomes more ‘fluid’. Concepts like original, subsequent version, translation or adaptation shift
consequently. A text may exist in one form or another one day, but change considerably the next
day. No traces are left of the first version.
38
verbal signs transmitted acoustically (dialogue), non-verbal signs transmitted acoustically
(background noise, music), verbal signs transmitted visually (credits, letters, documents shown on
the screen), non-verbal signs transmitted visually.
Carolina Alfaro de Carvalho 80

101-2)

Nesse sentido, podemos evocar o conceito de tradução subordinada (a outros


códigos semióticos além do lingüístico) empregado por Díaz Cintas (1997) e
apresentado na Seção I.2 do presente trabalho.
A noção de significado também é ampliada em função dessa expansão do
conceito de texto, visto que os outros sistemas semióticos neste implicados
também participam da construção do significado. Conseqüentemente, a recepção
desse novo texto será diferente, de modo que o significado de leitura também não
fica restrito ao sistema verbal. Como dizem Gambier e Gottlieb,

o espectador passa das legendas às imagens, de uma legenda a outra,


ambos em velocidades diferentes. O navegador da Internet passa de uma
parte do site a outra, sem se importar com a possível ordem linear dos
elementos. Portanto, o esforço para compreender não está mais focado
em um único sistema de sinais, em uma única lógica.39 (Gambier &
Gottlieb, 2001: xviii)

Essas características e seu impacto em conceitos-chave dos Estudos da


Tradução sugerem que a tradução audiovisual não pode ser entendida apenas no
que concerne a seu componente verbal. Catrysse explicita esse problema:

A tradução MM [de multimídia] [...] é freqüentemente entendida como a


tradução (verbal) da parte lingüística das mensagens MM. [...]
Geralmente, não são feitas perguntas sobre as relações entre a parte
lingüística e o restante da mensagem MM. Se quisermos analisar como a
tradução dos elementos lingüísticos de uma mensagem MM afeta seu
efeito MM global, temos que integrar a análise da parte verbal à
comunicação MM global.40 (Catrysse, 2001: 1)

Diversos autores concordam que, para se tentar minimizar esse problema,


é preciso em primeiro lugar reconhecer a multidisciplinaridade desse campo e, em
segundo lugar, buscar uma maior padronização e coordenação dos processos de
desenvolvimento de produtos audiovisuais — estando a etapa da tradução incluída
nesses processos. Catrysse (ibid) considera a busca de novas formas de
cooperação o maior desafio para a tradução audiovisual. Essa cooperação é

39
the viewer jumps from the subtitles to the picture, from one subtitle to another, both running at a
different speed. The Netsurfer jumps from one part of the website to another, without caring about
the possible linear order of elements. Thus, the effort to understand is no longer focused on only
one system of signs, on only one logic.
40
MM translation [...] is often understood as the (verbal) translation of the linguistic part of MM
messages. […] Questions concerning the relations between the linguistic part and the rest of the
MM message are not often raised. If one wants to analyse how the translation of the linguistic
elements of a MM message affects its global MM effect, one has to integrate the analysis of the
verbal part within the global MM communication.
Ampliação dos fundamentos teóricos 81

fundamental em três níveis: na pesquisa científica, na formação de tradutores e no


processo de produção — no qual se inclui a tradução — de multimídia. Do meu
ponto de vista como tradutora profissional e estudiosa da tradução, penso que o
exame holístico e sistêmico da tradução audiovisual, empregando-se as bases
teóricas dos Estudos Descritivos de Tradução adaptadas às particularidades dessa
área, fornecerá ricos subsídios para uma integração multidisciplinar mais sólida e
coesa nos níveis da pesquisa científica e da formação de tradutores.
Quanto ao nível da produção de multimídia, lamentavelmente os
tradutores não gozam de muito prestígio no polissistema audiovisual e
freqüentemente sequer são lembrados nas etapas de planejamento e produção de
materiais, sendo incluídos às pressas já no processo de distribuição dos produtos.
Anthony Pym atribui a falta de poder dos tradutores desse campo à excessiva
especialização e fragmentação desses profissionais, que segundo ele acabam
desenvolvendo “uma visão limitada a aspectos técnicos e metas de curto prazo”
(Pym, 2001b: 282) e se consideram sofisticados demais para se unirem em torno
de objetivos coletivos e mundanos tais como decisões referentes às políticas de
tradução na área. Nas palavras do autor, de teor bastante semelhante às de
Rajagopalan (2003) citadas na Introdução da presente dissertação:

Em primeiro lugar, como nosso poder deriva de uma relativa


especialização, tendemos a permanecer técnicos especialistas mesmo
entre nós: tradutores não são intérpretes; dubladores não são
legendadores; pesquisadores não são profissionais; e parece que ninguém
é como aquelas pessoas estranhamente anônimas que decidem as políticas
de tradução. Em segundo lugar, como nosso poder deriva de
manipularmos códigos complexos, somos profissionalmente levados a
criticar e mesmo a desconfiar do tipo de linguagem relativamente simples
capaz de promover a identificação mútua e de estabelecer objetivos
coletivos. Em outras palavras, nos tornamos especializados e inteligentes
demais para uma ideologia unificadora.41 (Pym, 2001b: 282.)

Portanto, a busca de maior prestígio para a tradução e os tradutores no


campo audiovisual, assim como para os tradutores e a tradução de modo geral e
para os lingüistas e a Lingüística, passa por um esforço de integração com as

41
First, since our power comes from relative specialization, we tend to remain specialist
technicians even among ourselves: translators are not interpreters; dubbers are not subtitlers;
researchers are not practitioners; and no one seems to be like those strangely anonymous people
who decide translation policies. Second, since our power comes from handling complex codes, we
are professionally given to criticize and even mistrust the kind of relatively simple language that
can foster belonging and map out collective goals. If you like, we become too specialized and too
smart for any unifying ideology.
Carolina Alfaro de Carvalho 82

pessoas à nossa volta — desde os consumidores leigos até especialistas de outras


áreas que de alguma forma participam do processo de elaboração e distribuição de
produtos traduzidos. E, nesse sentido, acredito que a perspectiva polissistêmica
também pode ser útil por propiciar uma visão ampla e complexa das relações que
configuram os sistemas — conforme expresso pela adaptação feita por Even-
Zohar do modelo comunicativo de Jakobson, apresentado na Seção II.1.1

III.2.3 O processo da tradução audiovisual

Antes de passar a examinar especificamente a tradução para legendas, o que será


feito no próximo capítulo, caracterizarei o percurso mais comum de produção e
distribuição de produtos audiovisuais, percurso no qual se inclui a tradução
audiovisual. É claro que esse processo não é idêntico nem padronizado nos
diversos sistemas, mas podemos entendê-lo como uma espécie de denominador
comum. A partir deste ponto, passo a considerar a acepção mais restrita de
tradução audiovisual, conforme a defini na Seção I.2: o conjunto de práticas que
envolve principalmente a tradução oral e escrita de programas e filmes de
naturezas e formatos variados, exibidos ou transmitidos em cinemas, aparelhos de
televisão ou computadores e veiculados através de diversos meios eletrônicos,
digitais e analógicos, tais como filmes cinematográficos, fitas VHS, DVDs,
arquivos e transmissões via satélite.
Patrick Catrysse (2001) divide o processo de produção de multimídia em
três estágios:
(i) no estágio de pré-produção são desenvolvidos o conceito e o planejamento
do produto — objetivos, meios a serem empregados, público-alvo,
orçamento, prazos, requisitos técnicos, etc. —, é elaborado o design gráfico
e planejado o tipo de interatividade que o produto permitirá, e são
preparados os roteiros, esquemas e fluxogramas pertinentes;
(ii) no estágio de produção são criados e preparados todos os elementos que
comporão o produto: textos, imagens, gráficos, animações, sons, música,
etc.;
(iii) no estágio de pós-produção são integrados todos os elementos, finalizando-
se o produto, que é então verificado, testado, comercializado e distribuído.
Como foi mencionado na seção anterior, a tradução pode ter um papel
Ampliação dos fundamentos teóricos 83

fundamental em todos esses estágios. Mas o principal foco das atenções de


pesquisadores e críticos é a tradução dos produtos finais que foram distribuídos ao
público da cultura de origem, a qual ganha mais visibilidade por destinar-se ao
público consumidor na cultura-alvo e portanto torna-se objeto de críticas e
estudos. Esse tipo de tradução, que também aqui será o principal foco de atenção,
ocorre no estágio de pós-produção e pode ser realizado ou ainda na cultura de
origem ou pela cultura receptora.
Já a distribuição dos produtos, principalmente no caso de programas e
filmes destinados a públicos maiores, em geral ligados à indústria do
entretenimento, costuma seguir o seguinte percurso (Gambier & Gottlieb, 2001):
y o produto, previamente financiado por instituições produtoras e adquirido por
distribuidoras, é exibido primeiro em cinemas, geralmente antes em sua(s)
cultura(s) de origem e naquelas que falem a mesma língua e, depois, em
culturas diferentes;
y alguns meses após a exibição em cinemas, ele é comercializado nos formatos
DVD e VHS para ser adquirido por locadoras e particulares;
y algum tempo depois, ele é exibido em canais de televisão pagos
individualmente ou por assinatura;
y finalmente, é exibido gratuitamente em canais abertos de televisão.
Cabe aqui destacar uma observação interessante, feita por Gambier e
Gottlieb (2001). Tradicionalmente, o cinema é visto como um meio destinado a
uma parcela da população mundial que de certa forma representa uma elite, sendo
a televisão um meio mais popular, de massa e “unilateral” — isto é, os canais
transmitem a mesma programação, nos mesmos horários, para todos os
espectadores de uma determinada cultura, os quais devem se ajustar à
programação predeterminada. Contudo, desde o advento da televisão por
assinatura, vem se dando uma segmentação na recepção da programação
televisiva — também em função de poder aquisitivo, já que esses serviços são
pagos. Há canais especializados em gêneros e temas específicos que os
espectadores interessados podem adquirir. O mais novo formato televisivo
promovido pelo avanço tecnológico é a televisão interativa, que já está sendo
implementada em alguns países e permite que o espectador selecione a
programação a que pretende assistir e a veja quando desejar. De modo
semelhante, a Internet é cada vez mais utilizada para comercializar e veicular
Carolina Alfaro de Carvalho 84

programas audiovisuais a públicos específicos.


Uma situação um tanto quanto paradoxal decorrente desse quadro é a
intensificação simultânea da globalização e da localização. Isto é, por um lado o
alcance de cada programa cruza continentes cada vez mais facilmente através de
satélites e da Internet, atingindo audiências em qualquer parte do mundo, as quais
são muitas vezes imprevisíveis durante o processo de produção. Por outro, o
acesso aos programas tende à segmentação e à individualização, de modo que
potenciais espectadores, pertencentes a culturas as mais diversas, espalhados por
todo o mundo e que assistem ao programa em momentos distintos e por razões
muito particulares, podem ainda assim constituir um público especializado. Tal
situação é bastante complexa e merece ser levada em consideração nos diversos
níveis do processo de pós-produção e distribuição de produtos audiovisuais.
Em face dessas etapas e processos de nível mais macro, apresento agora
um percurso comum da tradução de produtos audiovisuais enfocando os atores e
suas interações no sistema de tradução audiovisual. Tal descrição se baseia
sobretudo em minha própria experiência nas práticas comumente realizadas no
Brasil com materiais provenientes de outras culturas.
(i) Uma distribuidora multinacional de produtos audiovisuais negocia com uma
agência ou distribuidora da cultura-alvo a venda ou transmissão de um
material a ser exibido ou comercializado num determinado meio — cinema,
VHS, DVD, canal de televisão fechado ou aberto — incorporando uma ou
mais modalidades diferentes de tradução;
(ii) entre outras atividades relacionadas à transmissão ou comercialização desse
material, a agência local negocia com uma produtora ou um laboratório a
pós-produção do material para a sua veiculação nessa cultura, contratando
ela mesma o serviço de tradução ou incumbindo a produtora ou o
laboratório de realizar essa tarefa;
(iii) o tradutor contratado recebe o material a ser traduzido e as informações e
instruções pertinentes àquele serviço, realiza o trabalho de acordo com a
modalidade de tradução e o meio especificado e envia a tradução a quem
contratou o serviço;
(iv) a tradução pronta é encaminhada à produtora ou ao laboratório para que
finalize o processo de pós-produção, realizando as gravações e edições
necessárias;
Ampliação dos fundamentos teóricos 85

(v) é feita uma revisão ou controle de qualidade, o que pode ocorrer na


produtora, no laboratório ou mesmo na distribuidora que encomendou o
serviço;
(vi) finalmente, uma vez exibido ou comercializado, o produto fica sujeito à
apreciação de espectadores e críticos, e os vários profissionais e empresas
responsáveis por sua preparação e veiculação, principalmente os que têm
seu nome creditado no produto, ficam também sujeitos a receber críticas.
Logicamente, a atividade que mais nos interessa nesse processo é a (iii): a
participação do tradutor como um agente-chave do polissistema de tradução
audiovisual — mas sem perder de vista esse panorama sistêmico e a
complexidade das relações que ocorrem nesse contexto.
Em face dos percursos e processos vistos nesta seção, pode-se notar que o
tradutor inserido no polissistema de tradução audiovisual não deve apenas
dominar seu — nada trivial — ofício de tradução de textos, mas também conhecer
o funcionamento básico da produção de materiais audiovisuais. A cada nova etapa
na distribuição dos produtos, para cada meio em que eles são veiculados e para
cada público, a tendência é se providenciar uma nova tradução, em função de suas
diversas finalidades, das diferentes normas pertinentes a cada meio e modalidade
de tradução e dos direitos autorais de cada tradução específica — por exemplo,
ainda na etapa de produção, a tradução de roteiros com objetivos diversos; depois
de finalizado o produto, uma tradução legendada a ser exibida inicialmente para
uma platéia seleta de distribuidores, jornalistas ou críticos; outra legendada
visando o circuito comercial de salas de cinema; outra versão legendada para ser
comercializada em VHS; mais uma adequada ao formato da tela no DVD; uma
tradução dublada e closed captions para DVD; outra tradução legendada a ser
exibida em um determinado canal de televisão a cabo; e mais uma dublagem para
a televisão aberta. O tradutor precisa estar ciente de sua posição nesse processo,
entender as etapas de pós-produção dos materiais, conhecer e saber interagir com
outros integrantes importantes dos sistemas com os quais ele tem contato e ser
capaz de lidar com os vários conjuntos de normas que coexistem nesse conjunto
de relações.
Como foi visto no capítulo anterior, as normas podem ser entendidas como
abrangendo uma vasta gama com diferentes graus de explicitação — das
convenções às regras — e de poder coercitivo — das leis ou regras gerais às
Carolina Alfaro de Carvalho 86

idiossincrasias. Em termos gerais, os principais conjuntos de regras — com alto


grau de explicitação e coerção — que o tradutor de materiais audiovisuais deve
saber manipular simultaneamente são:
y as normas referentes à modalidade de tradução realizada,
y os parâmetros próprios do meio no qual o produto será distribuído ou
transmitido, e
y as regras impostas por seus clientes diretos e indiretos.
Com relação à modalidade de tradução, a tradução horizontal escrita,
como a de roteiros, pode possuir parâmetros próprios em função de sua finalidade;
a tradução horizontal oral (dublagem, audio vision, narração, voice over,
interpretação) impõe normas específicas referentes a restrições temporais,
prioridades na relação entre o texto e a imagem e ao propósito de cada
modalidade; e a tradução diagonal (legendagem simultânea ou não, surtitling,
closed caption) possui outro conjunto próprio de regras em função do espaço
disponível, dos diferentes parâmetros temporais e de objetivos específicos de cada
prática.
Os diferentes meios (cinema, VHS, DVD, canal de televisão fechado ou
aberto) também impõem suas regras particulares, de forma mais rigorosa no caso
da tradução diagonal do que para as modalidades orais. Nestas, as variações se
devem principalmente aos objetivos e ao público-alvo da tradução, que
determinam o tipo de recursos técnicos e lingüísticos empregados e os registros de
linguagem permitidos. Já no caso das modalidades que empregam legendas, o
espaço físico disponível para a exibição restringe o tamanho e a duração das
legendas na tela — por exemplo, para o cinema preferem-se legendas mais
extensas e menos segmentadas enquanto para os meios exibidos na televisão,
como VHS e canais por assinatura, o tamanho das linhas é menor e o texto tende a
ser segmentado em um número maior de legendas.
As várias pessoas e empresas que participam do processo e que são os
clientes diretos e indiretos dos tradutores também impõem suas normas. O cliente
direto, que pode ser a distribuidora, produtora ou laboratório local, muitas vezes
lista na forma de um manual os parâmetros técnicos com que trabalha —
referentes às diferentes modalidades tradutórias e aos meios —, suas preferências
lingüísticas, estilísticas e lexicais, e diversos procedimentos que os tradutores
devem respeitar visando facilitar as tarefas e os prazos de outras etapas do
Ampliação dos fundamentos teóricos 87

processo de pós-produção do material. Mas as instituições que contratam essa


distribuidora, produtora ou laboratório ou que detêm algum controle sobre o
processo de distribuição do material freqüentemente também impõem suas
preferências por meio de regras explícitas. É o caso dos produtores ou
distribuidores originais do produto e dos proprietários de canais de televisão, os
quais podem fazer exigências técnicas e lingüísticas que ocasionalmente geram
divergências em relação a algum dos outros conjuntos de normas.
Isso sem considerarmos normas menos específicas desse sistema e menos
explícitas, referentes por exemplo ao uso da língua, à influência de fontes de
consulta e referência, a coerções mais sutis impostas por revisores, etc. Mais
adiante veremos em detalhe diversos níveis de normas relacionadas
especificamente à modalidade de tradução para legendas, ilustrando-as com
exemplos.
Essas regras estão vinculadas aos mecanismos de controle internos ao
polissistema de tradução audiovisual, os quais também estão sujeitos a
mecanismos de controle externos. Para a carreira do tradutor, é fundamental que
ele mantenha uma boa relação com seus clientes. Essa relação se dá
essencialmente através do cumprimento rigoroso da deontologia formada por
esses conjuntos de normas explícitas, o qual é recompensado com a remuneração
dos serviços e com a contratação de novos trabalhos. Violar alguma das regras dos
três conjuntos listados acima — não cumprir o prazo combinado, empregar
palavras censuradas ou exceder o espaço ou o tempo permitido para as legendas,
por exemplo —, principalmente quando elas são fornecidas por escrito, pode
trazer conseqüências graves ao tradutor, visto que afetam as atividades
subseqüentes do processo e, desse modo, prejudicam os compromissos assumidos
pela produtora ou laboratório local com seu cliente. Externamente, a patronagem
pode ser exercida por críticos, pelos meios de comunicação, por cursos,
professores e colegas de profissão e mesmo por grupos políticos, econômicos ou
religiosos que de alguma forma detenham poder sobre elementos centrais dos
sistemas e imponham a eles sua ideologia.
Exemplo 2 - Objetivos diferentes, traduções diferentes.
Vejamos um breve exemplo ilustrativo do que foi visto nesta seção.
Realizei a tradução do filme de ficção de longa-metragem (drama, romance)
Tortilla soup, dirigido por Maria Ripoll, Estados Unidos, 2001, na modalidade de
Carolina Alfaro de Carvalho 88

legendagem, para exibição em um canal de televisão por assinatura no Brasil. O


filme retrata uma família de origem mexicana (pai viúvo e três filhas adultas) que
reside nos Estados Unidos e sofre alguns conflitos de identidade devido ao choque
entre a tradição mexicana e os costumes norte-americanos. Ocasionalmente, as
filhas misturam palavras em espanhol em meio aos enunciados em inglês e o pai
protesta, repetindo variações em torno de “English or Spanish, not Spanglish.”
Visto que se tratava de uma tradução para legendas, em que o público tem
acesso às línguas originais e sabe, pelo conteúdo do filme em questão, que se trata
de uma família de origem mexicana, minha tradução para “spanglish” manteve a
mistura de espanhol com inglês: “espanglês”. Mas seria essa a melhor solução no
caso de uma dublagem em que os personagens do filme traduzido falassem
português misturando palavras do espanhol? Nesse caso, provavelmente a solução
“portunhol” ficaria mais adequada. Já uma tradução do roteiro visando a
adaptação dessa história para o contexto brasileiro, por exemplo com a finalidade
de se produzir uma refilmagem na qual a família que reside nos Estados Unidos
não é mexicana mas sim brasileira, levaria à solução “portunglês”, por exemplo.
Portanto, é fundamental que o tradutor conheça o processo e a posição em
que está inserido, as finalidades da tradução, os interesses dos clientes, o meio e o
público-alvo.
Para encerrar este capítulo sobre o sistema de tradução audiovisual e antes
de finalmente enfocarmos a tradução para legendas, proponho a seguir uma
adaptação do modelo metodológico de Lambert e van Gorp (1985) à tradução
audiovisual, visando fornecer uma base mais concreta para o estudo sistêmico de
traduções nesse campo.

III.2.4 Modelo de Lambert e van Gorp adaptado à tradução


audiovisual

Conforme visto no Capítulo II, o modelo proposto por José Lambert e Hendrik
van Gorp (1985) para a descrição de traduções literárias tornou-se referência
conhecida entre os pesquisadores de tradução vinculados aos Estudos Descritivos
por ser simples e prático, ajudando a padronizar a contextualização do objeto de
estudo nos vários níveis sistêmicos e a orientar o processo em que se alternam a
formulação de hipóteses e constatações concretas.
Ampliação dos fundamentos teóricos 89

Eu já havia elaborado uma versão inicial (não divulgada) da extensão


desse modelo para o contexto da tradução audiovisual quando tomei
conhecimento da tese de doutorado de Jorge Díaz Cintas (1997), na qual o autor
também propõe adaptar essa metodologia. Alguns dos tópicos que ele lista a
serem considerados pelo pesquisador não constavam em meu modelo, e outros
presentes em meu modelo não foram levantados por esse autor. Portanto, combino
aqui as duas propostas, enriquecendo meu projeto inicial com a contribuição de
Díaz Cintas no intuito de torná-lo mais completo e facilmente aplicável a estudos
descritivos na área da tradução audiovisual. Vale lembrar ainda que Dirk
Delabastita (1990) havia feito uma primeira aproximação a esse modelo para
propor uma metodologia descritiva para o estudo de film translation, de forma que
seu clássico artigo em parte informa a adaptação de Díaz Cintas e a minha.
Apresento então os quatro níveis de análise sintetizados ao fim da Seção
II.3 da presente dissertação, agora focados no polissistema de tradução
audiovisual:
(i) Dados preliminares: produto a ser estudado (produto final ou intermediário,
natureza — ficção ou não ficção, longa ou curta-metragem, série, outros —,
gênero — drama, comédia, aventura, infantil, animação, educativo,
documentário, propaganda, outros —, produtores, distribuidores, diretor,
agência responsável pela tradução, tradutor); língua(s) original(is) e da
tradução; ano de produção do original e da tradução; para-textos
(apresentação do produto, pôster, caixa, capa, materiais impressos
suplementares); apresentação da tradução (título traduzido, nome do
tradutor, menções à tradução, modalidade(s) de tradução realizada(s)); meta-
textos (resenhas, críticas, trailers, documentários, making-of); estrutura
geral da tradução (completa ou parcial, ampliada ou reduzida, título ou
créditos traduzidos, vigência de censura).
(ii) Nível macro-estrutural: estrutura interna do produto (divisões, partes, cenas,
estrutura narrativa); emprego de música; presença de texto escrito e relação
com o texto oral; características técnicas da tradução (tipo de meio utilizado,
parâmetros espaciais e temporais, tipo de roteiro e outros materiais de apoio
disponíveis, locais e modos de exibição); relação adequação/aceitabilidade;
normas e políticas gerais de tradução (omissões, acréscimos, paráfrases,
edição).
Carolina Alfaro de Carvalho 90

(iii) Nível micro-estrutural: escolhas gramaticais, vocabulares, formais e


estilísticas (sintaxe, registro, tratamento de variações dialetais e linguagem
de baixo calão); estratégias de redução (paráfrase, omissão, abreviaturas);
coesão e coerência internas; referências (nomes próprios, referências
geográficas e culturais); tratamento de expressões idiomáticas e elementos
humorísticos.
(iv) Contexto sistêmico: relações macro e micro-sistêmicas do produto estudado
(relações entre o autor, o diretor, os atores, o público-alvo, o gênero e o
tema do produto com outros equivalentes no sistema de origem e no de
chegada; papel desempenhado no sistema pela(s) modalidade(s) de
tradução, o meio empregado e o modo de exibição; relação entre o produto e
outros produtos vinculados, como livros ou trilhas sonoras).
O pesquisador transita entre um nível e outro, formulando hipóteses a
partir de suas observações em um dos níveis e avaliando e refinando essas
hipóteses com as constatações feitas em outro nível — e assim sucessivamente.
Como foi ressalvado no Capítulo II, não se pretende que todas as pesquisas
descritivas sejam exaustivas, tanto no que concerne à estrutura macro-sistêmica
quanto com relação às análises micro-estruturais, e podem ser feitos diversos
recortes.
Há uma grande carência de estudos bem fundamentados e
contextualizados sistemicamente no polissistema audiovisual. Como profissional
da área, considero insatisfatório que a grande maioria dos estudos acadêmicos
neste campo deixe de apresentar o contexto do produto estudado; ou ignore
quais foram as instituições e profissionais responsáveis pela produção,
distribuição e tradução do produto; ou fale apenas em “filmes” aparentemente
sem dar-se conta de que está ignorando um grande número de outros gêneros; ou
apresente os parâmetros técnicos empregados em um dos subsistemas (por
exemplo, laboratórios especializados em materiais a serem exibidos em salas de
cinema) e realize estudos de casos com base em produtos de outro subsistema
(tal como o de DVD); ou que se preocupe unicamente com o componente
lingüístico do texto traduzido sem sequer mencionar os outros sistemas
semióticos presentes. Acredito que o emprego do modelo proposto nesta seção
pode ajudar a reverter esse quadro e a produzir reflexões e contribuições
relevantes, que ajudarão a melhorar a qualidade da prática e do ensino das
Ampliação dos fundamentos teóricos 91

modalidades de tradução desta área.


IV
A TRADUÇÃO PARA LEGENDAS

Chegamos finalmente ao cerne do objeto de estudo deste trabalho. Apesar de nos


posicionarmos agora em um dos sistemas do polissistema de tradução audiovisual,
ocasionalmente traçarei comparações e delimitações com outros sistemas
próximos, tal como o de dublagem, ou com sistemas externos, como o literário.
Este capítulo abordará questões mais detalhadas e concretas, as quais ilustrarei
com exemplos práticos extraídos de traduções e versões realizadas por mim para
diferentes clientes e meios (que explicitarei ao fornecer cada exemplo, conforme
feito no Exemplo 2, na Seção III.2.3).
Emprego minhas próprias traduções por dois motivos: em primeiro lugar,
para não utilizar materiais de terceiros que podem estar presos a contratos
referentes a direitos autorais e confidencialidade, como fui informada por meu
principal cliente, a quem solicitei materiais para inserir em minha pesquisa. Sei
que não estou violando nenhum contrato refletindo sobre minha própria tradução e
empregando os roteiros que recebi para realizar o serviço e materiais audiovisuais
que estão disponíveis ao público. Em segundo lugar, e o mais importante, por
poder não só contextualizar a situação em que realizei cada tradução dentro do
sistema de tradução audiovisual, apresentando em detalhe as condições de
trabalho, instruções recebidas, restrições, interações com os clientes, etc., mas
também por poder trazer reflexões que motivaram algumas de minhas decisões
tradutórias, reflexões essas que, no grau de profundidade com que são aqui
apresentadas, só são conhecidas por mim.
Como foi dito na Introdução deste trabalho, considero importante que o
pesquisador explicite sua posição com relação ao objeto de pesquisa, portanto é
oportuno aqui apresentar o lugar que ocupo no sistema de tradução audiovisual
que descrevo. Sou falante nativa de português e espanhol, sendo de família
argentina mas tendo residido no Brasil durante toda a vida. Além disso, sempre
estudei inglês e sou graduada em Letras na Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, com bacharelado em tradução inglês-português. No ramo de
A tradução para legendas 93

tradução para legendas, traduzo do inglês ao português, do espanhol ao português,


do português ao espanhol e do inglês ao espanhol, preferindo apenas não fazer
versões para o inglês por não me considerar suficientemente familiarizada com a
linguagem informal e cotidiana presente na maioria dos produtos audiovisuais
com que trabalho. Meu primeiro contato com a tradução para legendas se deu
durante o ano de 1997, no módulo de legendagem para cinema ministrado por
Monika Pecegueiro do Amaral durante o curso de Especialização em
Tradução/Pós-Graduação Lato Sensu da PUC-Rio. Portanto, houve uma etapa de
aprendizado e treinamento antes que eu tivesse minha primeira experiência
profissional nesse ramo. Entre 1998 e 2000, realizei algumas traduções para
legendas de filmes a serem exibidos no cinema, por indicação e sob orientação de
Monika Pecegueiro do Amaral. Em 2001, fui selecionada pela Globosat e pela
Drei Marc Produções, respectivamente a maior distribuidora de canais de
televisão por assinatura e a maior produtora de legendas para a televisão por
assinatura do Rio de Janeiro. Dentro dessas produtoras, fiz um treinamento
específico em legendagem para a televisão no qual aprendi a utilizar o programa
de computador na época empregado para a preparação das legendas e realizei
algumas traduções supervisionadas. Desde então, trabalho intensamente — ainda
que não com exclusividade — como tradutora para legendas. Meu principal
cliente é a Drei Marc, a qual presta serviços prioritariamente à Globosat e outras
distribuidoras de canais de televisão por assinatura e a clientes menos constantes,
produzindo materiais em VHS e DVD. Com menor freqüência, realizo traduções
para distribuidoras de filmes para cinema. Até o fim de 2004, traduzi pouco mais
de 50 filmes de longa metragem, sendo 10 deles para cinema (2 dos quais
documentários), e cerca de 60 programas de naturezas diversas — documentários,
entrevistas, séries e programas institucionais ou de treinamento — para a televisão
por assinatura e VHS.
Nas próximas seções desenvolvo uma descrição sistêmica das legendas,
dividida em tópicos distintos no intuito de facilitar a apresentação dos vários
aspectos envolvidos nessa prática.
Carolina Alfaro de Carvalho 94

IV.1 A legendagem em contraposição à dublagem

A legendagem e a dublagem são as duas modalidades de tradução audiovisual


mais praticadas no mundo. Há países em que predomina uma forte preferência por
uma das duas formas de tradução e a outra é relegada a sistemas periféricos,
preferência que ocorre pelos mais variados motivos. Há diversas explicações de
base política, econômica e social empregadas como argumentos para a utilização
de uma modalidade ou outra, mas o fato é que geralmente uma delas ocupa o
centro do sistema desde o advento do cinema falado por razões circunstanciais
muitas vezes hoje já superadas ou transformadas, e a população de cada cultura
tende a preferir a forma com a qual está mais acostumada. Recentemente, com a
diversificação e o acesso mais fácil a tecnologias e instrumentos empregados na
pós-produção de materiais audiovisuais, vem-se buscando oferecer uma maior
gama de opções aos espectadores, portanto sociedades que tinham uma ampla
preferência por uma modalidade estão dando mais abertura à outra. É o caso da
França e da Espanha, em que a absoluta maioria dos produtos audiovisuais é
dublada mas onde a legendagem está assumindo posições menos periféricas.
No Brasil, não há o predomínio claro de uma modalidade sobre a outra.
Como mostra Vera Lúcia Araújo (2000), na televisão aberta quase toda a
programação é dublada (há um decreto promulgado em 1962 por Jânio Quadros
que obriga a dublagem de todos os filmes transmitidos pela televisão, o qual tudo
indica que continua válido). No cinema, a maioria dos filmes é legendada, com a
exceção de alguns filmes e animações infantis. O mesmo ocorre em VHS. Na
televisão por assinatura são empregadas as duas modalidades e é difícil
estabelecer um padrão. Há canais especializados em determinados gêneros de
programas que empregam a dublagem enquanto outros semelhantes preferem a
legendagem. O mesmo ocorre com os canais de entretenimento. A maioria dos
canais dedicados à exibição de filmes tende a preferir a legendagem, porém
recentemente vem-se abrindo mais espaço para a dublagem a pedido dos
assinantes.
Em termos gerais, a dublagem consiste em substituir os canais de áudio
correspondentes aos diálogos em língua estrangeira por enunciados gravados por
atores (chamados dubladores) da cultura de chegada. Estes se baseiam numa
tradução elaborada de modo a que a pronúncia das palavras na língua-alvo fique o
A tradução para legendas 95

mais sincronizada possível com os movimentos labiais das pessoas que aparecem
na tela. Já na legendagem todo o som original é mantido e a tradução dos
enunciados em língua estrangeira é apresentada por escrito na parte inferior da
tela, através de legendas exibidas em sincronia com as falas e eventuais textos
escritos do material audiovisual. Portanto, a sincronia no caso da dublagem é
visual — o espectador espera uma proximidade entre os movimentos labiais das
pessoas que vê e os sons que ouve —, enquanto na legendagem ela é
prioritariamente sonora — espera-se que as legendas apareçam quando ouve-se
algo pronunciado em língua estrangeira e que elas desapareçam quando a fala
termina.
Essas diferenças básicas implicam várias divergências. A principal crítica
feita à dublagem é que ela priva o espectador do acesso ao texto original e à voz
real dos atores ou personalidades exibidos. Essa crítica é acentuada quando o
desempenho vocal é um componente importante do efeito artístico do filme ou
programa. Além disso, sem o acesso ao original não é possível controlar as
alterações feitas na dublagem pelo sistema de chegada. São vários os relatos de
modificações significativas impostas ao texto traduzido por censuras lingüísticas e
ideológicas: linguagem de baixo calão é amenizada, componentes sexuais ou
obscenos são minimizados ou excluídos e críticas a determinados grupos sociais
ou culturais são substituídas. Jorge Díaz Cintas (1997) relata algumas das
alterações feitas na Espanha durante a ditadura de Franco, como a efetuada no
filme Casablanca, de 1942, dirigido por Michael Curtiz: em inglês, quando o
delegado diria que o personagem de Humphrey Bogart lutara na Espanha ao lado
dos republicanos, o público espanhol o ouviu dizer que ele lutara pela anexação da
Áustria à Alemanha. Apesar dessa crítica, a substituição do texto original pelo
traduzido é o que se dá na grande maioria das modalidades de tradução, inclusive
a literária, que corre os mesmos riscos de manipulação.
Aquelas que se consideram ser as vantagens da dublagem emanam do
mesmo fato de que ela substitui os diálogos originais. Em sociedades não
hegemônicas culturalmente, considera-se que a dublagem reduz a penetração de
línguas e valores culturais de sistemas estrangeiros dominantes através dos meios
audiovisuais, além de valorizar a língua doméstica. Ela também permite o acesso
ao produto de parcelas não alfabetizadas da população, sendo vista como mais
“democrática” do que a legendagem. Por não demandar tanta concentração no que
Carolina Alfaro de Carvalho 96

aparece na tela, ao contrário das legendas, a dublagem é por muitos preferida para
a programação de canais de televisão, visto que os espectadores domésticos
freqüentemente dividem a atenção dedicada à televisão com outras atividades.
Gottlieb (1994, apud Rodrigues, 1998) recomenda o emprego de dublagem em
programas nos quais o aspecto informativo é o mais relevante, como notícias e
documentários, pois normalmente trazem uma grande quantidade de dados verbais
e visuais, e assim os espectadores não precisam fazer um esforço cognitivo
adicional para ler as legendas. Estas cumpririam um papel melhor em situações
em que o aspecto humano, expressivo, é o mais importante, como em programas e
filmes de ficção.
Algumas das características consideradas vantagens ou desvantagens da
legendagem decorrem de sua comparação com a dublagem: se por um lado ela
preserva sons, vozes e desempenhos interpretativos do material audiovisual
original, por outro ela facilita o domínio cultural de sistemas estrangeiros
hegemônicos e é mais elitista; se permite o cotejo com o original, demanda um
maior esforço cognitivo; se não naturaliza um produto alheio fazendo-o passar por
doméstico, interfere visualmente no material exibido e é limitada e incompleta.
Essas questões são vistas sob uma ótica mais positiva ou mais negativa de
acordo com o viés de cada estudioso. Em resposta à crítica de que as legendas são
menos “democráticas” por não permitirem o acesso de espectadores da cultura de
chegada não alfabetizados ou com dificuldade de leitura, há pesquisas que
mostram que o emprego de legendas pode ajudar na alfabetização da população e
de estrangeiros residentes na cultura de chegada e no ensino de línguas
estrangeiras. Com relação a demandar um esforço cognitivo maior, há
pesquisadores que não consideram essa questão muito relevante, visto que esse
esforço é bem menor do que o necessário para uma leitura convencional
(Delabastita, 1990).
Veremos a questão da sobreposição das legendas sobre a imagem e sua
limitação e insuficiência como representante do material original — papel
geralmente atribuído a uma tradução — dentro de uma discussão um pouco mais
ampla, que abordarei na próxima seção.
A tradução para legendas 97

IV.2 A legendagem em contraposição à tradução literária

Assim como, na Seção III.2.1, foi traçada a relação entre o polissistema de


tradução audiovisual e o de tradução literária, considero relevante contrastar
algumas das características das legendas com aspectos e conceitos ligados à
tradução literária, no intuito tanto de aprofundar a descrição da legendagem em
contraposição a outras práticas quanto de dar continuidade à adaptação dos
paradigmas teóricos que informam o presente estudo para o contexto do sistema
de tradução audiovisual.
Uma diferença óbvia, porém crucial entre a tradução de uma obra literária
e a tradução de um material audiovisual (um filme, por exemplo) através de
legendas, diferença que nem sempre parece ser lembrada por críticos das legendas
que as entendem somente como textos escritos, é que um livro é feito para ser
lido, enquanto um filme é feito para ser visto e ouvido. O objetivo das legendas é
facilitar a compreensão do que está sendo dito sem desviar a atenção do
espectador das imagens e dos sons. Para tanto, elas precisam ser breves, para
poderem ser inteiramente lidas ao mesmo tempo em que o texto oral é
pronunciado, e de leitura simples e direta, de modo a não demandarem mais
atenção visual e cognitiva do que a estritamente necessária.
Uma curiosidade sobre essa qualidade das legendas é que, se teóricos e
tradutores como Lawrence Venuti criticam a invisibilidade do tradutor literário,
cuja intervenção geralmente não é percebida pelos leitores de obras traduzidas, os
quais acreditam estar lendo as palavras do autor do texto original, poderíamos
dizer que as legendas almejam passar desapercebidas aos espectadores porém são
visíveis por natureza. O espectador não tem como ignorar a presença do tradutor
das legendas e dificilmente tomará a tradução pelo original. As legendas não
substituem o produto de origem e sequer o representam integralmente — embora
esta seja a expectativa mais comum por parte do público.
Isso porque as legendas têm um papel claramente ancilar e secundário no
produto audiovisual. Elas não têm razão de existir sem o material original,
tornando-se pouco compreensíveis sem o acompanhamento das imagens e dos
sons correspondentes. Além disso, como explica Díaz Cintas, diferentemente da
dublagem, que pode empregar como modelos diálogos produzidos originalmente
na língua de chegada,
Carolina Alfaro de Carvalho 98

não existe nenhuma tradição (e não teria sentido) de criação de legendas


por si sós, na língua-fonte, independentes do produto externo ao
polissistema. As legendas só têm razão de ser enquanto elementos
secundários e, por isso, é difícil abstrair quais são ou deveriam ser as
características próprias e intrínsecas das legendas independentes dos
filmes.42 (Díaz Cintas, 1997:149)

Daí também a oportuna distinção feita por Gottlieb (1994, apud Araújo, 2000:
54), segundo a qual a dublagem “dá a impressão de ser o original” enquanto a
legendagem “dá a impressão de ser uma tradução”.
Entretanto, essa dependência das legendas com relação ao produto ao qual
servem vai de encontro a postulados dos Estudos Descritivos de Tradução
elaborados tendo em vista sobretudo a tradução literária. Como foi visto no
Capítulo II, as pesquisas descritivas partem da constatação da existência de um
texto que é aceito como tradução na cultura-alvo. Esse texto ocupa um lugar
próprio nessa cultura e sua importância é avaliada com base não na sua relação
com o original mas na sua relação com outros textos do sistema receptor — na sua
posição relativa aos outros componentes desse sistema. Essa visão pressupõe a
autonomia do texto traduzido com relação ao original, pressuposição evidenciada
pela afirmação de Toury (1995b) de que a presença empírica do original não é
imprescindível para o estudo de uma tradução suposta (assumed translation),
como foi apresentado na Seção II.2.2. Visto que as legendas não têm autonomia
no sistema de chegada, elas não podem ser estudadas de forma desvinculada do
original. No caso dos produtos audiovisuais, aquilo que é importado pela cultura-
alvo para preencher uma lacuna e ocupar um lugar no sistema é o original, e sua
tradução tem o objetivo de viabilizar essa importação porém sem ocupar um
espaço totalmente próprio.
Mas isso não invalida a aplicação às legendas da noção de tradução
suposta. A afirmação de Toury (1995b: 137) de que “quando um texto é oferecido
como uma tradução, ele é prontamente aceito como tal de boa fé, sem mais
perguntas”43 continua válida. O mesmo ocorre com os três postulados que
determinam uma tradução suposta: o postulado do texto original, o da

42
no existe ninguna tradición (y no tendría sentido) de creación de subtítulos por sí solos, en la
LM, independientes del producto externo al polisistema. Los subtítulos sólo tienen razón de ser en
tanto que elementos secundarios y, por ello, es difícil hacer abstracción de cuáles son o habrían de
ser las características propias e intrínsecas de los subtítulos alejados de las películas.
43
when a text is offered as a translation, it is quite readily accepted bona fide as one, no further
questions asked
A tradução para legendas 99

transferência e o da relação entre a tradução e o original. Apesar de sua


insuficiência como representante do material original, a legendagem é de fato
aceita como tradução pelos participantes do polissistema audiovisual e fica
portanto postulada a equivalência entre as legendas escritas e os diálogos com os
quais elas estão sincronizadas.
Essa relação nos remete à definição de Gottlieb (1992, apud Díaz Cintas,
1997) de tradução diagonal aplicada à legendagem, que veremos em mais detalhe
no próximo tópico.

IV.3 A legendagem como tradução diagonal

Conforme discutido na Seção III.2.2, a legendagem e outras formas de tradução


audiovisual são subordinadas a diferentes sistemas semióticos verbais e não
verbais, acústicos e visuais. Além disso, as modalidades de tradução que
empregam legendas são denominadas diagonais por envolverem a transformação
de um original em código oral para um produto traduzido em código escrito.
Sem dúvida, o texto oral é o principal componente do material original no
que concerne aos tradutores, mas não o único. Assim como as imagens são
inseparáveis dos sons, complementando-se mutuamente, também as legendas
estão vinculadas a ambos.
Alain M. Mouzat (1995), autor da primeira tese de Doutorado sobre
legendagem desenvolvida no Brasil, explica que a ilusão de uma ligação direta
entre a linguagem e o real leva a conceber a fala como uma redundância da
imagem. Esse postulado seria um dos fundamentos nos quais os tradutores de
legendas se baseiam para parafrasear o texto de forma mais compacta e omitir
determinadas informações nas legendas: aquilo que está explicitamente informado
numa imagem, num gesto, numa ilustração, não precisa ser prioritariamente
repetido nas legendas.
Mouzat mostra ainda que o grau de redundância entre o texto e a imagem
varia conforme o gênero do material audiovisual. Falando estritamente de filmes,
o autor afirma que quanto mais estereotipados forem o esquema narrativo, a
caracterização e os diálogos dos personagens e quanto mais conhecidos forem os
modelos subjacentes aos filmes (perseguições, histórias românticas, comédias
Carolina Alfaro de Carvalho 100

“pastelão”, etc.), mais redundante será a palavra com relação à imagem, pois os
diálogos terão um papel suplementar à seqüência visual do filme. Já quando se
procura fugir dos estereótipos e desenvolver uma história centrada na construção
do personagem tende-se a privilegiar o texto, e então as imagens é que são mais
acessórias. Nesse caso, as estratégias de redução e omissão aplicadas às legendas
serão bem diferentes da primeira situação.
Do ponto de vista sistêmico e funcional, considero essa reflexão bem mais
lógica do que as diversas pesquisas que procuram determinar a porcentagem ideal
de redução do texto original que deve ser praticada na tradução para legendas sem
levar em conta o tipo de material apresentado e todas as informações transmitidas
pelos outros canais semióticos. Se pensarmos não só em filmes mas em produtos
de naturezas distintas — programas educativos, desenhos animados, entrevistas,
shows musicais, documentários sobre assuntos específicos, telejornais, reality
shows, etc. —, concluiremos que a prioridade dada aos componentes texto oral,
imagens e sons será diferente para cada um deles.
Outra pesquisa interessante realizada no Brasil é a de autoria de Mahomed
Bamba (1997). Mesmo sem empregar o conceito de tradução diagonal, o autor
enriquece essa noção ao mostrar a correlação que se opera entre os diferentes
sistemas semióticos na tradução para legendas. Com base na nomenclatura de
Jakobson (1969), o autor identifica na legendagem um caso de tradução
interlingual — de uma língua para outra — complementado por duas formas de
tradução intersemiótica, uma referente à reformulação do código oral através do
código escrito e outra referente à relação entre informações transmitidas por
signos verbais e por signos não verbais.
Em função da presença dos diálogos e das imagens originais, as legendas
não precisam, como em uma transcrição escrita de um texto oral, reproduzir a
prosódia e traços suprassegmentais do discurso oral através de convenções
gráficas. Isto é, os códigos se sobrepõem e se complementam. Ainda que não
sejamos capazes de compreender o que é dito na língua original, o ritmo, a
entonação, a expressão, o gesto, a atitude — tão difíceis de serem captados por
escrito — se justapõem ao texto sincronizado das legendas formando uma espécie
de simbiose. O autor chega a afirmar que essa complementaridade aproxima a
legendagem de “um caso de tradução e de transcrição ideal: o texto de partida está
presente para suprir as deturpações e perdas de sentido que podem provocar estas
A tradução para legendas 101

duas formas de operação de reformulação” (Bamba, 1997: 109).


E conclui:

a linearidade temporal e espacial que constitui de longe a maior


discrepância entre a encodagem oral e a encodagem escrita deixa de
existir numa sessão de projeção de filme legendado. [...] As legendas
aparecem e se desvanecem quase ao ritmo das palavras orais que elas
substituem e acompanham ao mesmo tempo, sem deixar traços alguns.
(ibid: 173)

Munidos dessas reflexões iniciais, passemos então às normas específicas


que governam a prática da tradução para legendas.

IV.4 Normas da tradução para legendas

Como foi visto no processo de tradução audiovisual apresentado na Seção III.2.3,


o tradutor precisa conhecer o funcionamento básico dos sistemas com os quais
interage dentro do polissistema de tradução audiovisual. Além disso, ele deve
lidar corretamente com as normas referentes à modalidade de tradução realizada,
os parâmetros próprios do meio no qual o produto será distribuído ou transmitido
e as regras impostas por seus clientes diretos e indiretos. Neste caso, a modalidade
é a tradução para legendas, a qual possui um grande número de normas que lhe
são particulares e que foram sendo estabelecidas ao longo do tempo em função do
próprio desenvolvimento dessa prática tradutória, da receptividade do público, de
preferências dos clientes, das diferentes restrições técnicas impostas pelos meios
em que são veiculadas e das prioridades estabelecidas de acordo com o conteúdo
do material traduzido.
De forma quase unânime, empregam-se no máximo duas linhas de
legendas (o número máximo de caracteres por linha varia segundo o meio) e
estabelece-se uma razão entre o tempo de duração de cada legenda e o número
máximo de caracteres que ela deve comportar para que o espectador adulto médio
tenha tempo de lê-la integralmente. Essa razão é baseada em diversos estudos. Os
padrões mais comumente encontrados na literatura sobre legendagem são
baseados no número de palavras lidas em um minuto, estipulado em 150 a 180
palavras (Karamitroglou, 1998), e na chamada “regra dos seis segundos”, que
estabelece que o espectador médio demora seis segundos para ler duas linhas de
Carolina Alfaro de Carvalho 102

legendas cheias, com 35 caracteres cada (Díaz Cintas, 1997). Mas o número exato
de caracteres por segundo, determinado em cada situação, varia em função do
meio empregado, do público-alvo e de preferências dos clientes.
Essas duas normas fazem parte dos três conjuntos — modalidade, meio e
clientes. Examinemos as normas mais proximamente vinculadas a cada um.

IV.4.1 Normas referentes ao meio

No sistema brasileiro, os quatro meios mais utilizados têm suas normas agrupadas
em três conjuntos diferentes: aquele empregado na legendagem de filmes para
exibição nos cinemas, o utilizado em VHS e canais de televisão por assinatura e o
ligado à tradução para DVD. Descrevo a seguir as normas e os processos mais
característicos de cada um desses três conjuntos com base principalmente na
minha experiência: aulas, contatos com colegas e serviços prestados a diversos
clientes utilizando esses quatro meios.
Cinema
A grande maioria dos filmes exibidos no cinema utiliza rolos de película
com 35 milímetros de largura. As medidas e os parâmetros empregados nesse
meio fazem referência ao comprimento da película e aos fotogramas que a
compõem, segundo o sistema métrico inglês. A unidade básica de referência é o
pé. Um pé de película contém 16 fotogramas ou quadros. A cada segundo são
projetados 24 quadros, o equivalente a 1,5 pé de película.
O número máximo de caracteres permitido por linha de legenda, incluídos
os espaços, depende do tamanho da fonte tipográfica utilizada pelo laboratório e
geralmente varia entre 32 e 40 caracteres. A razão do número de caracteres na
legenda por segundo de exibição é fornecida de acordo com a pietagem (indicação
relativa ao número de pés e quadros da película) e geralmente estabelecida em, no
máximo, 10 caracteres por pé de película, o que resulta em 15 caracteres por
segundo.
O procedimento mais usual entre as principais distribuidoras e os
laboratórios cinematográficos que a elas prestam serviços é o seguinte:
(i) a distribuidora fornece os rolos de película e o roteiro ao laboratório;
(ii) funcionários do laboratório fazem a pietagem do produto, isto é,
acompanham os diálogos do roteiro juntamente com a seqüência de
A tradução para legendas 103

fotogramas da película e registram no roteiro, para cada trecho de diálogo e


eventuais textos escritos, um número que indica o pé e o quadro em que
cada trecho começa e termina — essa indicação já determina em que ponto
deve ser segmentado o texto oral; também podem ser indicadas mudanças
de cenas quando muito próximas ao início ou ao fim de alguma fala;
(iii) o tradutor, que pode ter sido contratado pela distribuidora, pelo laboratório
ou por alguma produtora intermediária, recebe o roteiro com os diálogos
acompanhados das indicações de pietagem e mudanças de cena; em muitos
casos ele não tem acesso ao material audiovisual nesse primeiro momento,
mas pode ocorrer de receber uma fita de VHS com o produto gravado;
(iv) as legendas são traduzidas utilizando-se um editor de textos convencional e
devem respeitar a pietagem indicada: uma legenda para cada trecho de
diálogo previamente segmentado, de acordo com o número de caracteres
máximo permitido por segundo de exibição;
(v) caso o tradutor não tenha recebido o material em VHS, após uma tradução
inicial ele assiste a uma exibição do produto na cabine de cinema do
laboratório ou da distribuidora, fazendo as anotações e correções pertinentes
numa versão impressa das legendas;
(vi) o tradutor então prepara a versão final da tradução e envia o arquivo com a
seqüência de legendas a seu cliente direto, seja a distribuidora, o laboratório
ou algum intermediário;
(vii) o laboratório realiza a inserção das legendas na película de acordo com a
pietagem preestabelecida; o laboratório realiza parte do controle de
qualidade, verificando principalmente a adequação das legendas aos
parâmetros referentes ao número de caracteres por linha e por segundo, e o
respeito à pietagem indicada;
(viii) o produto legendado é enviado à distribuidora, que pode realizar outro
controle de qualidade da tradução;
(ix) o produto é copiado e distribuído.
Três observações são pertinentes no contexto deste estudo. Primeiro, o
investimento tecnológico que o tradutor de filmes para o cinema precisa fazer é
relativamente baixo: basta um computador com editor de textos e o acesso a um
aparelho de videocassete e a uma televisão. O acesso a outros recursos, como
Internet, é altamente recomendável, mas não indispensável. Segundo, como foi
Carolina Alfaro de Carvalho 104

visto, as tarefas de segmentação dos diálogos e de determinação do ponto exato


em que cada legenda aparece e desaparece na projeção do material não são de
responsabilidade do tradutor. Por um lado, isso é vantajoso porque o tradutor não
precisa dominar essas funções e dedicar a elas uma parcela de seu tempo de
trabalho. Por outro, ao não ter a liberdade de fazer mudanças e ajustes na
segmentação do texto e no número de quadros de película em que cada legenda
ficará exposta, suas opções de manipulação do texto ficam restritas ao conteúdo
interno de cada trecho de diálogo predeterminado. Isto é, ele é obrigado a
reescrever cada trecho e a encontrar a melhor divisão entre as duas linhas de modo
a respeitar o número de caracteres estabelecido. Terceiro, na maioria das vezes o
roteiro exerce o papel de original para o tradutor, visto que geralmente ele só terá
acesso ao material audiovisual — e ainda assim acesso talvez restrito a uma única
exibição — após a tradução inicial do produto com base exclusivamente no
roteiro. Quando ele recebe o material gravado em VHS juntamente com o roteiro,
ambos constituirão o produto original e a ênfase dada a um ou a outro ficará a
critério do tradutor.
A título de ilustração, apresento um exemplo de roteiro para a tradução de
legendas para o cinema, ilustrado na Figura 5.
Exemplo 3 - Roteiro cinematográfico.
Trata-se do filme de ficção de longa-metragem (drama, romance) Laurel
Canyon, dirigido por Lisa Cholodenko, Estados Unidos, 2002. O serviço foi
prestado à Columbia Tristar Buena Vista. Fiz a tradução do inglês para o
português com base no roteiro e então assisti ao filme na cabine de cinema de uma
produtora no Rio de Janeiro.
Tendo por base a primeira linha do quadro apresentado a seguir, estão
indicados nas colunas verticais, da esquerda para a direita:
y o número da cena (105);
y a pietagem de início da cena (975 pés e 3 quadros), seguida da descrição do
que é visto na cena, em caixa-alta (local, hora, posição dos personagens em
relação à câmera, personagem que está falando, se há sobreposição de fala ou
alguma outra indicação pertinente), e da fala de cada personagem separada
segundo os cortes de câmera;
y o número de cada legenda (130 a 137, no caso da cena aqui reproduzida) —
no arquivo traduzido, o tradutor deve indicar esse número em cada legenda;
A tradução para legendas 105

y a pietagem de entrada da legenda (975 pés e 3 quadros no caso da primeira


legenda; a barra indica que a mudança de cena é imediatamente antes dessa
marcação);
y a pietagem de saída da legenda (979 pés e 14 quadros no caso da primeira
legenda);
y o número de pés e quadros durante os quais a legenda será exibida, isto é, sua
duração (4 pés e 11 quadros no caso da primeira legenda, o que significa que o
tradutor pode empregar no máximo 47 caracteres nessa legenda);
y o diálogo já segmentado, com a indicação do personagem que está falando —
o texto em português deve seguir essa estrutura.

Cena # Cena Leg # Entrada Saída Duração Texto


105 975+03 130 /975+03 979+14 4+11 JANE
It's a shag, you know. I
EXT. HOUSE - DAY - give them a gorgeous
MFS OF SAM, BACK record…
TO CAMERA. JANE 131 980+02 982+06 2+04
ENTERS L. JANE (CONT)
…and they come back
JANE with "there's no single".
It's a shag, you know. I 132 983+07 987+15 4+08
give them a gorgeous JANE
record… No superlatives, no
thank yous, no
SHE STEPS INTO FG 133 988+03 991+01 2+14 congratulations.
TO LIGHT A
CIGARETTE. JANE
134 991+05 992+09 1+04 Just "go back in and
JANE (CONT) find it".
…and they come back
with "there's no single". 135 996+01 1001+01 5+00 JANE
No superlatives, no thank Otherwise…
yous, no congratulations.
Just "go back in and find JANE (CONT)
it". Otherwise… 136 1001+05 1002+10 1+05 …I would not be
behind like this. I'm
SHE CROSSES TO never behind like this.
SAM IN BG.
137 1002+14 1006+12 3+14 SAM
JANE (CONT) Oh Jane, you're always
…I would not be behind behind like this.
like this. I'm never
behind like this. JANE
No, I've changed.
SAM (OVERLAPS) Truly, I have.
Oh Jane, you're always
behind like this.

JANE
No, I've changed. Truly,
I have.
Figura 5 - Trecho de roteiro cinematográfico (Exemplo 3).
Carolina Alfaro de Carvalho 106

Em casos como esse, a segmentação dos diálogos segundo a estrutura da


língua inglesa e a transcrição escrita dos diálogos exercerão uma forte influência
sobre as legendas traduzidas, ficando reduzida a participação dos outros códigos
semióticos. Sem ter o material audiovisual à disposição em VHS, a correção da
tradução em função das imagens e da enunciação dos diálogos é feita durante a
possivelmente única exibição do produto a que o tradutor poderá assistir. Esse
roteiro é bastante completo e inclui a descrição de cada cena, mas muitas vezes os
roteiros contêm apenas a lista de diálogos, nos piores casos sequer informando
quem está pronunciando cada fala.
VHS e televisão por assinatura
O sistema de VHS empregado no Brasil é o NTSC, no qual são exibidos
30 fotogramas (geralmente chamados pela denominação em inglês, frames, entre
as distribuidoras e produtoras ligadas a esses meios) de película por segundo. Esse
é o mesmo padrão utilizado pelos canais de televisão. A unidade básica de
referência é o segundo de exibição do material.
O número máximo de caracteres por linha de legenda é geralmente menor
do que o permitido no cinema, em função das dimensões da tela da televisão, e
varia entre 30 e 35 caracteres por linha. A razão de caracteres por segundo tende a
variar entre 10 e 16, também tendendo a ser ligeiramente menor do que no caso do
cinema.
O procedimento comumente realizado para traduções nesse meio é o
seguinte:
(i) o tradutor pode ser contratado pela distribuidora de VHS, pelo canal de
televisão por assinatura ou por alguma produtora intermediária; recebe o
material audiovisual em VHS, CD ou DVD e, se houver, o roteiro;
(ii) no material audiovisual é gravado um código numérico chamado time code,
exibido na parte superior ou inferior da tela, que registra, em cada
fotograma, a hora, o minuto, o segundo e o frame que está sendo exibido;
(iii) na maioria das vezes utilizando um programa de computador desenvolvido
para a confecção de legendas, baseando-se no material audiovisual e,
quando houver, usando o roteiro como suporte, o tradutor segmenta os
trechos de diálogo (os critérios empregados nessa segmentação serão vistos
na Seção IV.4.2, referente às normas para a elaboração das legendas) e os
traduz, já digitando-os de acordo com o formato de cada legenda no espaço
A tradução para legendas 107

apropriado do programa computacional — esse trabalho de segmentação é


denominado spotting;
(iv) ao fim da tradução, o tradutor reproduz o material no videocassete,
computador ou aparelho de DVD e, empregando os recursos integrados ao
programa computacional, registra o tempo de entrada e de saída de cada
legenda (até pouco tempo atrás, esse processo era manual e o tradutor
precisava digitar a hora, o minuto e o segundo de entrada e saída de cada
legenda; atualmente os programas computacionais são capazes de
sincronizar as legendas traduzidas com o material exibido e o tradutor marca
o tempo — com hora, minuto, segundo e frame — de entrada e saída
pressionando as respectivas teclas no computador) — esse processo é
denominado timing;
(v) o tradutor revisa as legendas traduzidas observando se todas estão dentro do
padrão de tempo mínimo e máximo estabelecido; caso alguma legenda
esteja fora do padrão, ele pode alterar o texto da tradução ou ajustar o tempo
de entrada ou de saída da legenda (muitas vezes, basta estender a legenda
por poucos frames a mais para que o texto fique dentro do padrão de tempo
e a alteração será imperceptível para o espectador); ele pode ainda revisar
sua tradução reproduzindo de modo sincronizado o material audiovisual e as
legendas;
(vi) o tradutor envia o arquivo de legendas a seu cliente direto, o qual faz a
inserção das legendas na película empregando um programa computacional
que lê o timing e as legendas definidos pelo tradutor e imprime as legendas
no meio definitivo, e realiza o controle de qualidade — caso o cliente direto
do tradutor não seja o cliente final do produto, este provavelmente também
realizará algum tipo de controle de qualidade;
(vii) o produto é finalizado para ser transmitido ou copiado para ser distribuído.
É interessante aqui comparar as três observações feitas no caso do cinema
com o processo de tradução para VHS e televisão por assinatura. Primeiro, o
investimento tecnológico do tradutor, se ele não trabalhar nas instalações de seu
cliente, é maior: é indispensável ter um computador com os recursos mínimos
suficientes para executar mais do que um editor de textos, além de aparelhos de
videocassete e televisão instalados ao lado do computador. Ele precisa também
adquirir um programa de legendagem, o que geralmente representa um
Carolina Alfaro de Carvalho 108

investimento que pode ser alto. Segundo, neste meio o tradutor realiza mais
funções técnicas do que nas traduções para o cinema, visto que precisa fazer o
spotting e o timing das legendas, além da tradução. Essas tarefas exigem prática e
demandam tempo, de modo que, se tiver o mesmo prazo para realizar um serviço
de legendagem para o cinema e outro para VHS, no segundo caso o tradutor
precisará fazer a tradução das legendas mais depressa para poder executar também
as outras duas tarefas. Por outro lado, o tradutor tem agora controle sobre todo o
procedimento de legendagem e pode reformular a segmentação dos diálogos de
forma a adequá-la melhor à estrutura da língua portuguesa e fazer ajustes no
tempo de cada legenda, o que lhe dá mais liberdade no trabalho do texto como um
todo. Terceiro, o papel de original é claramente exercido pelo material
audiovisual, sendo o roteiro apenas uma referência adicional. Portanto, o conjunto
oral e visual do produto terá uma influência maior na tradução do que o suporte
escrito.
Para facilitar a visualização de alguns dos componentes mencionados neste
processo, reproduzo abaixo duas imagens: uma com a tela de exibição contendo o
time code e outra com um dos programas computacionais utilizados para a
confecção de legendas. A Figura 6 apresenta uma imagem extraída de uma série
cômica inglesa gravada em meio digital contendo o time code, cujo fotograma
atual aparece em 10 horas, 09 minutos, 42 segundos e 26 frames.

Figura 6 - Time code exibido na parte superior da tela.


A tradução para legendas 109

Figura 7 - Tela de um programa de legendagem.

O programa apresentado na Figura 7 é o que atualmente utilizo, chamado


ONO, desenvolvido no Brasil pela Vogsys. Existem diversos outros programas
semelhantes. Na parte superior, com fundo preto, estão indicados o número da
legenda que está sendo editada e o número total de legendas, o time code de
entrada da legenda que está sendo editada e a visualização dessa legenda. Na
porção maior da tela, sobre fundo branco, podemos ver uma seqüência de cinco
legendas, com a legenda que está sendo editada em destaque, em azul. À esquerda
da legenda em azul está indicado seu timing de entrada e de saída e acima, nas
caixas brancas sobre fundo cinza, os tempos de saída mínimo, sugerido (o que
equivaleria ao tempo médio considerado ideal) e máximo para a legenda que está
sendo editada. A legenda em destaque surgirá na tela no timing de 1 hora, 38
minutos, 28 segundos e 20 frames e desaparecerá em 1 hora, 38 minutos, 29
segundos e 27 frames, tendo portanto duração de 1 segundo e 7 frames e
permanecendo na tela exatamente o tempo mínimo permitido pelo programa para
a sua exibição. No caso desse serviço, um filme de longa metragem a ser exibido
num canal de televisão por assinatura, a razão configurada no programa era de 13
caracteres por segundo.
DVD
O formato DVD comporta, além do material audiovisual, a inserção de
Carolina Alfaro de Carvalho 110

vários canais separados de áudio e de legendas que podem ser selecionados pelo
usuário no momento da exibição. Por isso, a maioria dos produtos comerciais
distribuídos em DVD inclui a tradução oral (dublagem) e escrita (geralmente
legendas e closed caption) nas línguas das comunidades em que o produto será
distribuído. Isso significa que cada produto distribuído em DVD pode receber
várias traduções distintas — geralmente entre duas e cinco línguas, em diferentes
modalidades. O processo de legendagem foi então modificado com relação ao
empregado para a tradução de VHS e canais de televisão por assinatura, de modo
a padronizar e acelerar o trabalho de tradução.
O número de caracteres por linha pode ser mais próximo do utilizado no
cinema ou no VHS, dependendo do formato da tela. O formato widescreen
reproduz as proporções das telas dos cinemas, com 16 unidades de comprimento
horizontal por 9 de altura, enquanto o formato anamórfico (anamorphic) é
ajustado às proporções da tela da televisão, com 4 unidades de comprimento por 3
de altura. A razão de caracteres por segundo é semelhante à empregada em VHS e
canais de televisão por assinatura, e são empregadas as mesmas convenções de
medida em hora, minuto, segundo e frame.
O procedimento geralmente realizado é:
(i) a distribuidora, ou o laboratório ou a produtora contratados, prepara uma
transcrição integral dos diálogos e eventuais textos escritos na língua
original do produto, os quais já são segmentados e recebem a marcação do
tempo de entrada e de saída de acordo com o time code; essa transcrição
com timing é convertida num arquivo de texto;
(ii) cada tradutor que fará a tradução para uma das línguas recebe esse arquivo
de texto, preferencialmente acompanhado de uma cópia do material
audiovisual; visto que o texto integral está transcrito, não é necessário
utilizar o roteiro como material de apoio;
(iii) o tradutor, empregando um editor de textos, substitui cada trecho de diálogo
previamente segmentado pela legenda traduzida, respeitando o número
máximo de caracteres permitido por segundo de acordo com a duração
estabelecida para cada segmento; se tiver o material audiovisual à
disposição, ele o utiliza para acompanhar a transcrição;
(iv) o tradutor envia o arquivo de volta ao cliente, com as legendas no lugar dos
trechos transcritos na língua original do produto; caso o tradutor não tenha
A tradução para legendas 111

recebido o material audiovisual, o cliente revisa as legendas acompanhando-


as com o material e fazendo as correções necessárias;
(v) a produtora ou distribuidora faz a inserção digital das legendas no DVD e o
controle de qualidade;
(vi) o produto é copiado e distribuído.
Portanto, o procedimento de legendagem para DVD acaba aproximando-se
mais do procedimento realizado para o cinema do que daquele realizado para
VHS e canais por assinatura. O tradutor precisa fundamentalmente de um
computador com editor de textos e de um videocassete ou aparelho de DVD. Ele
não realiza a segmentação (ou spotting) do texto oral nem a marcação de tempo
(timing). Caso tenha à disposição o material audiovisual, este constituirá seu
original juntamente com a transcrição dos diálogos. Contudo, freqüentemente isso
não acontece devido a uma preocupação das distribuidoras com a distribuição
ilegal dos produtos (“pirataria”), de modo que muitas vezes elas preferem privar
os tradutores de terem acesso ao material do que correr o risco de terem seu
produto distribuído ilicitamente. Portanto, em muitos casos o tradutor contará
apenas com a transcrição dos diálogos, sem sequer saber quem está pronunciando
cada fala ou o que está se passando na cena. Nesses casos, a qualidade final do
trabalho será em grande medida de responsabilidade dos revisores e editores que
farão o controle de qualidade da tradução. Apresento abaixo um exemplo do
conteúdo de um arquivo recebido para tradução.
Exemplo 4 - Transcrição e timing de material a ser traduzido para DVD.
Este material é referente aos “extras” (documentário e entrevistas)
fornecidos juntamente com episódios da série cômica Seinfeld, Estados Unidos,
2004. O serviço foi prestado à Gemini Vídeo, intermediário contratado pela
distribuidora do produto para realizar as traduções. Fiz a tradução do inglês para o
espanhol com base no arquivo do qual extraí o fragmento apresentado abaixo, sem
ter acesso a nenhum outro material. No quadro abaixo, podemos ver que a
primeira linha de cada segmento contém, da esquerda para a direita:
y o número do segmento, correspondente ao número da legenda (no caso do
primeiro segmento, 62);
y o timing de início da fala e entrada da legenda (no caso do primeiro segmento,
1 hora, 4 minutos, 29 segundos e 23 frames);
y o timing de fim da fala e saída da legenda (1 hora, 4 minutos, 34 segundos e
Carolina Alfaro de Carvalho 112

10 frames);
y o tempo de duração do segmento (4 segundos e 17 frames);
y o número total de caracteres permitidos na legenda (78).

62: 01:04:29.23 01:04:34.10 04.17 78


The third season of# Seinfeld#
also earned the Television Critics
Association Award...

63: 01:04:34.15 01:04:36.15 02.00 34


...for Outstanding Series.

64: 01:04:42.28 01:04:45.15 02.17 44


Jerry won the American
Comedy Award...

65: 01:04:45.20 01:04:48.28 03.08 56


...for Funniest Male Performer
in a TV series.
Figura 8 - Trecho de arquivo de texto recebido para legendagem em DVD (Exemplo 4).

Assim como no Exemplo 3, na falta de acesso ao material audiovisual, o


texto escrito cumpre a função de original. Contudo, no caso da transcrição do
material a ser traduzido para DVD há menos contexto do que na maioria dos
roteiros ou listas de diálogos cinematográficos, o que dificulta o trabalho. O
fornecimento do material completo aos tradutores, algo que não ocorre com muita
freqüência em nosso sistema, ajudaria a melhorar a tão criticada qualidade das
traduções para DVD realizadas no Brasil.

IV.4.2 Normas referentes à elaboração das legendas

Passemos agora às normas envolvidas na confecção das legendas,


independentemente do meio utilizado. Mais uma vez, lanço mão aqui
principalmente de minha própria experiência no mercado brasileiro, mas incluo
algumas das convenções listadas por Karamitroglou (1998) em seu prático
“Proposed set of subtitling standards in Europe”, disponível na Internet, e
observações feitas por Díaz Cintas (1997).
Uma série de convenções e decisões técnicas adotadas pelas distribuidoras,
laboratórios de cinema, produtoras de VHS e DVD, e canais de televisão, sobre as
quais os tradutores não têm qualquer influência, afetam alguns dos parâmetros que
A tradução para legendas 113

o tradutor precisa respeitar. Essas decisões se referem principalmente ao formato


das legendas na tela, tais como:
y o tamanho da fonte usada na legenda — determina o número máximo de
caracteres por linha, em função do meio utilizado;
y a cor, o contorno e o sombreamento da fonte usada na legenda;
y o alinhamento das linhas da legenda — alguns preferem que seja centralizado
para que a visão do espectador permaneça mais próxima ao centro da tela;
outros alinham a legenda à esquerda para que a visão do espectador se habitue
a voltar sempre ao mesmo ponto inicial de leitura, visando automatizar o
processo; há ainda uma solução intermediária que consiste em centralizar as
legendas correspondentes à fala de uma só pessoa e alinhar à esquerda as
legendas que incluem enunciados de duas pessoas (indicadas por travessão);
y a altura da legenda no caso de legendas com uma só linha — alguns preferem
que a legenda fique na altura da linha superior para que a visão do espectador
retorne sempre à mesma altura, acelerando o início da leitura, e outros
preferem que a legenda fique na altura da linha inferior de modo a deixar livre
de interferência visual uma porção maior da tela;
y o intervalo entre legendas, geralmente definido de acordo com as
características do sistema ou programa computacional utilizado para inserir as
legendas no material — pode não haver nenhum intervalo entre legendas
consecutivas ou haver intervalos mínimos obrigatórios, geralmente definidos
entre 4 e 10 quadros; e
y o tempo mínimo e máximo de duração da legenda, geralmente estipulado em
1 segundo no mínimo e 6 segundos no máximo.
Há outras convenções formais que, se não forem explicitamente
informadas ou decididas pelo cliente, podem ficar a critério do tradutor. É o caso
da norma aplicada à sincronia de entrada e saída da legenda em relação à fala,
quando cabe ao tradutor definir o timing. A legenda sempre estará em sincronia
com a fala, mas há profissionais que preferem que a legenda apareça frações de
segundo após o início do enunciado oral, considerando que o espectador precisa
desse tempo para perceber que a fala teve início e dirigir a visão para onde a
legenda aparece, enquanto outros preferem justamente o contrário, inserindo a
legenda alguns quadros antes do início da fala, de modo que nesse espaço de
tempo o espectador perceba o surgimento da legenda e inicie sua leitura ao mesmo
Carolina Alfaro de Carvalho 114

tempo que o enunciado oral tem início. Quanto à saída, geralmente a legenda
permanece na tela por algumas frações de segundo após o fim da fala, podendo
estender-se por até 1 segundo a mais (desde que não tenha se iniciado outra fala
imediatamente subseqüente).
Um aspecto que merece mais consideração são as normas que norteiam a
segmentação das legendas, tanto no que diz respeito aos trechos de diálogo a que
cada legenda corresponderá quanto internamente, com relação à divisão entre a
primeira e a segunda linhas da legenda (nos casos em que a legenda tem mais de
uma linha), o que no sistema de VHS e canais por assinatura é chamado spotting
interno.
O intervalo entre legendas costuma aproveitar as pausas feitas no discurso
oral. Geralmente, as pausas mais significativas ocorrem ao fim dos períodos, nos
quais muitas vezes são feitos cortes de cenas. No meio de um enunciado, ocorrem
pausas menores em função de respiração, hesitações e do próprio ritmo de fala de
cada pessoa. Para ser lido rapidamente, o texto de cada legenda é escrito de forma
sintaticamente simples, de acordo com o permitido pelo ritmo e entonação da fala.
Na medida do possível, tenta-se fazer com que uma legenda inclua um período
completo ou uma oração. Caso o período precise se estender por mais de uma
legenda, procura-se manter juntos os sintagmas de ordem mais alta na estrutura da
sentença, de forma a que cada legenda transmita uma idéia fechada e coerente.
Internamente, caso o cliente não forneça instruções sobre a distribuição
das legendas entre as duas linhas, fica a critério do tradutor decidir se prefere
priorizar legendas de uma só linha, de modo a manter a tela de exibição mais
livre, ou legendas mais curtas com duas linhas, para que a visão do espectador
fique mais concentrada no centro da tela. Da mesma forma, se o cliente não
expressar sua preferência, o tradutor determina os parâmetros para realizar o
spotting interno. Pode-se priorizar o formato geométrico do conjunto das linhas da
legenda, procurando fazer com que o tamanho das duas linhas seja semelhante, ou
pode-se dar prioridade à estrutura sintática e ao ritmo do texto da legenda.
Um exemplo ajudará a esclarecer essas questões.
Exemplo 5 - Segmentação do texto oral para adequação ao formato das
legendas.
O trecho selecionado é do filme de ficção de longa-metragem (drama,
comédia, romance) argentino El hijo de la novia (O filho da noiva), dirigido por
A tradução para legendas 115

Juan José Campanella, 2001. Fiz a tradução, incluindo spotting e timing, do


espanhol para o português a serviço da Drei Marc, produtora intermediária
contratada por uma empresa controladora de canais de televisão por assinatura,
com base no material audiovisual e num arquivo de texto com a transcrição dos
diálogos.
Para representar o discurso oral, indicando assim que o que estou tomando
como original é o material audiovisual, apresento a transcrição de uma seqüência
de diálogos empregando algumas convenções da análise da conversação: não é
utilizada pontuação; o alinhamento que marca o início de cada turno
conversacional é feito com relação à fala anterior, de modo a sinalizar se há ou
não pausa entre um turno e o seguinte; uma barra indica sobreposição entre os
diálogos; caracteres em caixa-alta representam maior volume ou tom de voz mais
alto; reticências significam pausa com menos de um segundo de duração; e um
número entre parênteses indica pausa com um segundo de duração ou mais, não
sendo registradas frações de segundo (a indicação (1+), por exemplo, significa
pausa de pouco mais de um segundo).
Nesta cena, o casal de namorados Natalia e Rafael está tendo uma
discussão acalorada sobre suas famílias e seu relacionamento.

Personagem # Transcrição
Natalia (interrompendo fala anterior de Rafael)
1 bueno está bien no grites
Rafael 2 por qué no puedo gritar
3 estoy en mi CAsa... griTEmos viva los NOvios y
4 tiremos arrOZ ya es/tá
Natalia 5 /yo no te DIgo que sea fácil pero
6 si tu papá se quiere casar con tu /mamá
Rafael 7 /ahí está... es mi
8 papá. (1+) es MI viejo... vos qué dirías si YO me
9 meto con como te abandonó tu viej/o
Natalia 10 /pará... a mi mi
11 viejo no me abandonó... mi mamá se vino acá porque
12 quiso es MUY dis/tinto
Rafael 13 /no sé es un tema tuyo es tu familia
14 yo no me MEto...
Natalia 15 vos NUNca te metés en mis problemas
16 porque le tenés pánico al compromiso
Rafael 17 no pará nena
18 paráparápará pará a mi si me querés llevar a la cama
19 llevame pero al diván no EH
(próxima fala de Natalia sobreposta a esta)
Figura 9 - Representação de um trecho de discurso oral (Exemplo 5).
Carolina Alfaro de Carvalho 116

Como pode-se ver, quase todas as tomadas de turno conversacional são


feitas através de interrupções, de forma que há várias sobreposições e falas
inconclusas. Ainda sem examinarmos outras decisões no nível tradutório,
apresento no quadro abaixo minhas legendas correspondentes a esse trecho. Na
coluna da esquerda estão indicados os tempos de entrada e saída de cada legenda
em hora, minuto, segundo e frame, os quais estão de acordo com a duração de
cada segmento de diálogo correspondente, com uma margem de erro de alguns
quadros. A segunda coluna mostra a duração, em segundos e frames (lembrando
que há 30 frames por segundo), de cada legenda. A terceira coluna contém a
numeração das legendas apresentadas no exemplo e na coluna da direita estão as
legendas. O padrão permitido é de até 32 caracteres por linha de legenda e 15
caracteres por segundo, e todas as legendas estão dentro do número máximo de
caracteres permitido — geralmente próximas do limite desse número máximo, em
função da alta velocidade do diálogo. A única norma estabelecida pelo cliente
final (a controladora de canais de televisão por assinatura) com relação ao spotting
foi a de que não fossem feitas legendas com duas linhas se todo o conteúdo da
legenda coubesse em uma.

Tempo Duração # Legenda


01:45:01.25 1.10 1 Está bem, não grite.
01:45:03.05
01:45:03.05 1.17 2 Por que não?
01:45:04.22 É minha casa!
01:45:04.22 1.25 3 Vamos gritar: “Viva os noivos!”
01:45:06.17
01:45:06.17 2.11 4 Pode não ser fácil,
01:45:08.28 mas seu pai quer casar...
01:45:08.28 1.23 5 Isso: é meu pai.
01:45:10.21
01:45:10.21 1.20 6 É “meu” pai.
01:45:12.11
01:45:12.11 2.15 7 Seu pai a abandonou
01:45:14.26 e eu não me meto.
01:45:14.26 1.24 8 Meu pai não me abandonou.
01:45:16.20
01:45:16.20 2.00 9 Minha mãe foi embora,
01:45:18.20 é diferente.
01:45:18.20 2.05 10 Mas é sua família
01:45:20.25 e eu não me meto.
01:45:20.25 3.02 11 Evita meus problemas porque
01:45:23.27 tem medo de compromisso!
01:45:23.27 1.17 12 Espere aí, garota, espere.
01:45:25.14
01:45:25.14 2.08 13 Me leve para a cama,
01:45:27.22 mas não para o divã.
Figura 10 - Legendas e timing correspondentes ao trecho da figura anterior (Exemplo 5).
A tradução para legendas 117

Como pode-se ver, a única indicação de interrupção nos diálogos foi feita
através do uso de reticências na legenda 4, correspondente à linha 6 da
transcrição, pois o início da fala de Rafael na linha 7 se sobrepõe a uma palavra
inteira de Natalia e, pela entonação, podemos perceber que a oração que Natalia
estava enunciando ficou inconclusa. As outras sobreposições são rápidas e
comuns em diálogos espontâneos, principalmente em discussões, e podem ser
omitidas para simplificar a leitura das legendas.
Os trechos do diálogo foram segmentados ou na tomada de turno de cada
interlocutor, que coincide com os cortes de câmera, ou nas pausas feitas durante a
fala de cada personagem. Devido à grande velocidade com que cada enunciado é
dito, aproveitei essas breves pausas para alongar as legendas por alguns quadros a
mais. Pode-se ver, por exemplo, que a pausa de pouco mais de 1 segundo na linha
8 da transcrição foi totalmente preenchida pelas legendas estendendo-se a saída da
legenda 5 por frações de segundo e antecipando ligeiramente a entrada da legenda
6. Como foi visto na seção anterior em relação às normas de cada meio, esse tipo
de manipulação do tempo de duração de cada legenda só é possível quando o
próprio tradutor fica responsável pelo timing do serviço de legendagem.
Cada legenda nesse trecho corresponde a um período com sintaxe simples
e direta. Como o diálogo original é constituído de enunciados também simples e
curtos, não foi preciso fazer alterações sintáticas significativas para facilitar a
segmentação das legendas. Internamente, sempre que foi preciso empregar as duas
linhas da legenda, optei por dividi-las de acordo com os componentes sintáticos
das orações, sem dar prioridade ao formato geométrico da legenda.
O exemplo acima também evidencia outras normas importantes que
orientam a elaboração de legendas: as normas referentes a simplificações
sintáticas e a omissões.
As estruturas sintáticas e simplificações mais empregadas e
freqüentemente explicitadas em cursos e manuais sobre legendagem são as
seguintes:
y componentes sintáticos em ordem direta em vez de inversa ou intercalada;
y orações coordenadas em vez de subordinadas;
y construções ativas em vez de passivas;
y construções positivas em vez de negativas;
y verbos simples em vez de compostos;
Carolina Alfaro de Carvalho 118

y elipses em vez de sujeitos ou verbos repetidos na mesma oração;


y interrogações em vez de perguntas indiretas;
y imperativo em vez de solicitações indiretas.
Podem-se empregar também abreviações, siglas, símbolos e numerais para
reduzir o número de caracteres, segundo critérios estabelecidos pelos clientes ou
pelo tradutor.
Voltando ao Exemplo 5 acima, vemos que o enunciado que foi mais
alterado sintaticamente devido ao pouco espaço disponível para a legenda,
inevitavelmente acarretando uma certa alteração de sentido, foi o segmento das
linhas 8 e 9 na transcrição, traduzido na legenda de número 7. O enunciado “¿Vos
qué dirías si yo me meto con como te abandonó tu viejo?”, que poderia ser
traduzido em português como “O que você diria se eu me metesse em como seu
pai a abandonou?”, foi legendado como “Seu pai a abandonou e eu não me meto.”
Em minha interpretação, essa pergunta de Rafael é retórica, não espera uma
resposta, o que é confirmado pela réplica de Natalia: “Pará... A mí mi viejo no me
abandonó.” (‘Espere... Meu pai não me abandonou.”). Visto que todas as versões
que experimentei desse enunciado na forma de uma pergunta retórica
ultrapassavam em muito o número permitido de caracteres e que a entonação
desse enunciado não seguia o padrão tradicional de uma indagação, aproximando-
se mais de uma exclamação, decidi abrir mão da forma como o enunciado é
apresentado e transmitir aquilo que, em meu entender, era a mensagem principal:
Natalia tem problemas de relacionamento com o pai (informação que julguei
importante reter, em função da trama do filme) e Rafael supõe que Natalia não
gostaria que ele se metesse nos problemas familiares dela, por isso se abstém de
emitir opiniões. Isso levou à afirmação feita através de duas orações coordenadas:
“Seu pai a abandonou e eu não me meto.”
Quando é necessário omitir parte do enunciado para que a legenda não
ultrapasse o número de caracteres permitidos, o que é bastante freqüente, procura-
se manter na legenda os itens lexicais entendidos como mais carregados de
sentido e relevantes para o enunciado. Além disso, na medida do possível, são
mantidas palavras do diálogo que foram enunciadas de modo enfático ou que
tendem a ser mais facilmente identificadas ou compreendidas pelo público-alvo,
seja por terem significado conhecido ou por se assemelharem foneticamente a
uma palavra da língua-alvo. Essa norma é recomendada por muitos teóricos e
A tradução para legendas 119

profissionais por aumentar a sensação de confiabilidade do espectador, uma vez


que ele tende a procurar na legenda palavras que identifica oralmente. Portanto,
em caso de omissões, os componentes geralmente considerados mais redundantes
e portanto dispensáveis são:
y vocativos, quando já se conhece o nome das pessoas envolvidas;
y pronomes demonstrativos, quando o objeto demonstrado está explícito
(alternativamente, pode-se manter o pronome e omitir o substantivo referente
ao objeto demonstrado);
y hesitações, gaguejos, vícios de linguagem e auto-correções na enunciação,
desde que não sejam considerados relevantes;
y falas em segundo plano, pouco audíveis ou sem relevância para o texto
principal;
y onomatopéias;
y respostas sucintas e formalmente semelhantes à língua da tradução, tais como
“sim”, “não”, “tchau”, “obrigado”, “ok”;
y construções redundantes ou desnecessariamente longas, tais como seqüências
de adjetivos ou advérbios (particularmente comuns em língua inglesa), ou
advérbios terminados em -mente (freqüentes em português, espanhol e outras
línguas latinas).
Como destaca Díaz Cintas (1997), essas características tornam a redação
das legendas coerente, mas não muito coesa. É através das imagens e do texto oral
que os espectadores complementam a coesão que falta ao texto, confirmando
quem são os interlocutores, a que objetos se referem, quais as emoções e intenções
subjacentes a um enunciado, etc.
Vejamos no Exemplo 5 alguns casos de omissões. Na legenda 2, o verbo
“gritar”, transcrito nas linhas 2 e 3 do diálogo, foi omitido por estar repetido na
legenda anterior e na seguinte, deixando a elipse clara. Nas linhas 3 e 4 da
transcrição, o trecho “y tiremos arroz, ya está” foi omitido na legenda 3 — uma
decisão difícil — por falta de espaço, visto que o segmento dura menos de 2
segundos. Na linha 15 da transcrição, o sujeito “vos” (“você”) foi omitido na
legenda 11, visto que Rafael é o único interlocutor de Natalia e, no contexto da
cena, fica claro que “Evita meus problemas” está se referindo a ele. Finalmente, o
verbo “parar” nas linhas 17 e 18 da transcrição, repetido uma vez antes de “nena”
e quatro vezes após esse vocativo, foi reduzido para “Espere aí, garota, espere.”,
Carolina Alfaro de Carvalho 120

sendo marcada a repetição do verbo mas sem sobrecarregar a legenda.


A despeito das reflexões feitas na Seção IV.3 com relação à
complementação simbiótica entre os códigos oral, visual e escrito, essas operações
indicam que os espectadores que não tenham noções, ainda que superficiais, da
língua de origem não compreenderão o conjunto formado pelo original e a
tradução, ao contrário daqueles capazes de extrair algumas informações
lingüísticas adicionais a partir do material audiovisual. É claro que os tradutores
em geral não contam com uma ampla compreensão do original por parte dos
espectadores, mas várias de suas decisões se baseiam no que consideram mais
relevante ou mais redundante em contraste com os sons e imagens exibidos, o que
pode comprometer a compreensão do conjunto no caso de espectadores com uma
capacidade de síntese dos diversos canais semióticos menor do que a suposta.
Esse aspecto reforça o caráter ancilar e limitado da legendagem, conforme visto
na Seção IV.2.
Com relação a variações dialetais, quando são sutis elas geralmente não
são marcadas. Os enunciados excessivamente coloquiais ou as variantes dialetais
fortes são indicados por escolhas lexicais e sintáticas que sinalizem, de forma
sutil, que se trata de um dialeto não padrão ou informal. Também é freqüente, por
ordem dos clientes e mesmo por escolha dos tradutores, amenizar-se o uso de
linguagem de baixo calão. Essas normas devem-se à maior concentração dedicada
à escrita e à leitura em relação à audição e à fala, o que confere um “peso” maior à
palavra escrita. Como explica Mahomed Bamba (1997: 172), o texto das legendas
“tenta manter um duplo compromisso com as variantes lingüísticas e discursivas
da língua escrita e da língua falada” — porém, em meu entender, no contexto
brasileiro o compromisso maior é claramente com a primeira.
Essa questão também fica evidente nas legendas do Exemplo 5, nas quais
o registro é certamente mais formal do que se a tradução do roteiro original
tivesse sido feita objetivando, por exemplo, uma re-encenação por atores
brasileiros. Nesse caso, uma oração como a da legenda 13, “Me leve para a cama,
mas não para o divã.”, seria escrita num registro mais próximo da linguagem oral,
por exemplo “Me leva pra cama, mas não pro divã.” Na tradução para legendas,
uma sentença como essa, com registro mais coloquial, tenderia a ser empregada
no caso de variações dialetais muito distantes da norma culta, e ainda assim
questionada ou censurada por muitos clientes.
A tradução para legendas 121

Finalmente, as referências culturais e geográficas, que impõem


dificuldades significativas a qualquer prática tradutória, também demandam
decisões difíceis no caso das legendas, principalmente em função da
impossibilidade de se acrescentarem notas explicativas ou informações adicionais
extensas e da prioridade dada à legibilidade e à compreensibilidade do texto. As
estratégias geralmente utilizadas são as mesmas de outras modalidades de
tradução:
y manutenção da referência na cultura de origem;
y transferência para uma referência com função equivalente ou semelhante na
cultura de chegada;
y neutralização ou generalização;
y explicação; ou
y omissão.
Porém, as normas aplicadas para se tomar uma decisão e a forma como o
texto na língua-alvo será reformulado dependerão das restrições técnicas, do
contexto textual, da natureza e do gênero do material, do público-alvo e das
preferências do cliente. Vejamos três exemplos ilustrativos.
Exemplo 6 - Tratamento de referências culturais e geográficas (caso 1).
Apresento aqui um pequeno trecho do documentário de longa-metragem
The fog of war: eleven lessons from the life of Robert S. McNamara (Sob a névoa
da guerra), dirigido por Errol Morris, EUA, 2003. O serviço foi prestado à
Columbia Tristar Buena Vista, a tradução foi feita a partir do roteiro
cinematográfico para um número pequeno de exibições no Festival de Cinema do
Rio de 2003 e assisti ao material na cabine de uma produtora logo antes de
entregar a versão final da tradução. Os parâmetros técnicos foram de 37 caracteres
por linha de legenda e 10 caracteres por pé de película. O documentário apresenta
uma longa entrevista com Robert McNamara, que entre outros cargos importantes
foi secretário de defesa no governo Kennedy. O texto é repleto de referências a
personalidades, datas e eventos da época, além de cidades e localizações
geográficas dos Estados Unidos e outros países. O trecho selecionado foi copiado
a partir do roteiro cinematográfico e inclui as marcações de pietagem.
Carolina Alfaro de Carvalho 122

Leg. # Entrada Saída Duração Texto


97 708.13 713.12 5.00 After graduating the University of
California I went to Harvard
graduate school…

98 714.01 719.13 5.12 of business for two years and then


I went back to San Francisco.

99 724.11 730.15 6.04 I began to court this young lady


that I’d met when we were 17…

100 731.05 733.14 2.09 in our first week at Berkeley…

101 736.00 737.02 1.02 Margaret Craig.

Figura 11 - Trecho de roteiro cinematográfico (Exemplo 6).

A seqüência não impõe grandes dificuldades de tradução. Sua principal


característica é a menção a quatro lugares: Califórnia, Harvard, San Francisco e
Berkeley. Na legendagem, procurei considerar a natureza do material e o público:
trata-se de um documentário a respeito de personalidades, locais e eventos bem
específicos, dirigido a um público interessado nos bastidores das administrações
norte-americanas entre as décadas de 1940 e 1970. Em função disso, optei por
priorizar a especificidade dos locais mencionados em detrimento de eventuais
explicações ou simplificações destinadas à parcela do público que porventura não
saiba que Harvard não fica na Califórnia, que San Francisco fica na Califórnia e
que Berkeley fica em San Francisco. As legendas ficaram assim:

Leg. # Legenda
97 Após me formar na Califórnia,
fui a Harvard...
98 fiz pós-graduação em administração
e voltei a San Francisco.
99 Comecei a cortejar uma moça
que conheci aos 17 anos...
100 chegando em Berkeley.

101 Margaret Craig.

Figura 12 - Legendas correspondentes ao trecho reproduzido na figura anterior (Exemplo 6).

Exemplo 7 - Tratamento de referências culturais e geográficas (caso 2).


Trata-se de outro documentário de longa-metragem, Timor Lorosae: o
massacre que o mundo não viu, dirigido por Lucélia Santos, Brasil, 2001. Nesse
A tradução para legendas 123

caso foi feita uma versão do português ao espanhol para distribuição em VHS e
DVD, porém seguindo apenas os procedimentos da tradução para VHS, com 32
caracteres por linha e 13 caracteres por segundo. Meu cliente direto foi a Drei
Marc, meu original foi uma gravação do material em VHS acompanhada da
transcrição do texto, e o público-alvo seria potencialmente qualquer país de língua
hispânica. Transcrevo abaixo um trecho da narração de abertura do filme,
seguindo as mesmas convenções da análise da conversação empregadas no
Exemplo 5:

# Transcrição
1 Banhada pelos oceanos Índico e Pacífico... esta faixa oriental
2 de território da ilha de Timor... tem 14.874 quilômetros
3 quadrados... o equivalente ao estado de SERGIpe no Brasil... e
4 faz fronteira com o Timor OESTE... território indonésio.
Figura 13 - Transcrição de trecho de narração (Exemplo 7).

Nesse caso, a meu ver as prioridades eram diferentes. A comparação feita


entre a área ocupada pelo território do Timor Leste e o estado de Sergipe (linha 3)
é dirigida ao público brasileiro, principal alvo do documentário. Considerei que a
referência a Sergipe não seria muito útil ao espectador argentino, cubano ou
espanhol. A partir do número fornecido em quilômetros quadrados, pesquisei em
atlas virtuais disponíveis na Internet locais com território semelhante que fossem
mais conhecidos internacionalmente. A melhor solução que encontrei (legenda 4)
foi:

Tempo Duração # Legendas


01:05:04.16 3.02 1 Bañada por los océanos
01:05:07.18 Índico y Pacífico,
01:05:07.18 3.01 2 esta faja oriental
01:05:10.19 de la isla de Timor
01:05:10.19 3.01 3 tiene 14.874km2,
01:05:13.20
01:05:13.20 3.23 4 un poco menos que Hawai.
01:05:17.13
01:05:17.13 4.12 5 Hace frontera con el territorio
01:05:21.25 indonesio de Timor Occidental.
Figura 14 - Legendas correspondentes ao trecho reproduzido na figura anterior (Exemplo 7).

Exemplo 8 - Tratamento de referências culturais e geográficas (caso 3).


Este exemplo envolve um programa que seria utilizado para
Carolina Alfaro de Carvalho 124

aprofundamento e treinamento dos funcionários de uma multinacional da área de


negócios. Trata-se de uma palestra de uma hora de duração dada por um professor
de Psicologia Social a alunos de Pós-Graduação em Administração na
Universidade de Stanford, Estados Unidos, 2001. A tradução foi feita do inglês
para o espanhol, mais uma vez para virtualmente qualquer cultura de língua
hispânica, com base apenas no material gravado em VHS. O meio de veiculação
seria VHS e DVD, seguindo os parâmetros da tradução para VHS, com no
máximo 32 caracteres por linha e 13 caracteres por segundo de exibição.
Durante a palestra, utilizando slides de PowerPoint com denominações e
definições, o professor lista seis princípios para se exercer influência sobre os
membros de um grupo. No final, porém, ele lembra que o importante não é
decorar os princípios, mas saber identificar situações em que eles podem ser
empregados. Ele diz em tom de brincadeira, falando como se fosse um dos alunos
numa situação de pressão:

# Transcrição
1 Let’s see... this guy Cialdini he was talking to us...
2 ah...ah... two months ago... let’s see the six principles
3 there’s reciprocation there’s liking there’s Donor there’s
4 Blitzen there’s... Sleepy there’s Sneezy... you can’t reMEMber
5 these things!
Figura 15 - Transcrição de trecho de palestra (Exemplo 8).

“Reciprocation” e “liking” são as denominações de dois dos princípios que


ele listou. Já “Donor” e “Blitzen” são os nomes de duas das renas de Papai Noel e
“Sleepy” e “Sneezy” são dois dos anões da versão de Walt Disney de Branca de
Neve. Refletindo e pesquisando essas duas referências culturais, constatei
diferenças no seu tratamento por diferentes culturas hispânicas.
No caso das renas de Papai Noel, elas são relativamente pouco conhecidas,
visto que a figura e a lenda de Papai Noel chegou a várias dessas culturas bem
depois de já existir na cultura norte-americana (até poucas décadas atrás, nas
culturas hispânicas quem trazia presentes às crianças eram os Reis Magos, no dia
6 de janeiro). Portanto, se as crianças norte-americanas crescem sabendo os nomes
das principais renas — Rudolph, Dasher, Dancer, Prancer, Vixen, Comet, Cupid,
Donor e Blitzen —, constatei em pesquisas pela Internet que, em espanhol, a
única rena bastante conhecida é Rudolph, devido ao filme Rudolph, the red-nosed
A tradução para legendas 125

reindeer (traduzido no Brasil como Rudolph, a rena do nariz vermelho). Há


menções em espanhol a algumas das outras renas, mas nesses casos a tradução —
ou não — de seus nomes é muito variável. Constatei que uma rena citada com
relativa freqüência e quase sempre traduzida era Comet (Cometa).
Quanto aos anões de Branca de Neve, a dificuldade foi outra: as traduções
dos nomes de alguns dos anões variam nas diferentes culturas de língua hispânica.
Doc é traduzido como Doc, Doctor e Profesor; Sleepy pode ser Dormilón ou
Bostezo; Bashful é chamado Tímido ou Vergonzoso. Felizmente não encontrei
variações nas traduções de Dopey (Tontín), Grumpy (Gruñón), Sneezy
(Estornudo) e Happy (Feliz) — o que não é garantia de que não possam existir
outras versões das quais eu não tenha tomado conhecimento. Selecionei então dois
deles, Estornudo e Feliz, para utilizar na tradução. Não sei dizer por que fiz essa
escolha, apenas intuí que esses dois nomes remeteriam inequivocamente aos anões
do conto infantil.
Minha principal preocupação neste caso foi com (i) a mensagem
transmitida pelo palestrante, de que os alunos não deveriam procurar
simplesmente decorar nomes, pois isso levaria a confusões quando fosse
necessário aplicar as estratégias a que as denominações se referem, e (ii) o efeito
humorístico do enunciado, que provocou risadas — plenamente audíveis no
material — no público da palestra. Esse componente humorístico dependeria de
deixar clara a mistura de três grupos de nomes que nada têm em comum:
princípios psicológicos, renas de Papai Noel e anões de Branca de Neve. Por isso
escolhi as renas e os anões mais conhecidos e unívocos entre as diversas culturas
hispânicas, sem me preocupar com a relação direta entre cada nome dito pelo
palestrante e os que aparecem nas legendas. Minha tradução ficou assim:

Tempo Duração # Legendas


01:48:43.10 4.03 1 "Ese Cialdini que nos habló
01:48:47.13 hace dos meses...
01:48:47.13 3.07 2 A ver, los seis principios:
01:48:50.20 reciprocidad, aprecio,
01:48:50.20 3.15 3 Rudolph, Cometa,
01:48:54.05 Estornudo, Feliz...”
01:48:54.05 2.28 4 ¡No se pueden
01:48:57.03 acordar de todo!
Figura 16 - Legendas correspondentes ao trecho reproduzido na figura anterior (Exemplo 8).
Carolina Alfaro de Carvalho 126

Portanto, assim como foi visto no Exemplo 2 (referente ao filme Tortilla soup),
novamente fica claro que contextos diferentes demandam traduções diferentes.
Para concluir este exame das normas que regem a tradução para legendas,
vejamos aquelas impostas pelos clientes que encomendam, revisam e remuneram
os serviços de tradução.

IV.4.3 Normas dos clientes e mecanismos de controle

Algumas das normas definidas pelos clientes já foram mencionadas nas seções
anteriores. Além de procedimentos referentes à realização dos serviços e à relação
entre o tradutor e as equipes de trabalho do cliente — tais como as
responsabilidades de cada um, prazos, entrega e devolução de materiais, valores
de remuneração, cessão de direitos autorais, resolução de problemas específicos,
etc. — e dos parâmetros técnicos já listados na subseção anterior, podem ser
fornecidas ao tradutor instruções específicas referentes a:
y padrões de marcação de tempo (timing) — sincronia de entrada e saída das
legendas, duração mínima e máxima das legendas, intervalo entre legendas,
razão de caracteres por segundo de exibição;
y padrões de segmentação (spotting) — preferência por uma linha longa ou duas
mais curtas, normas para a divisão das duas linhas da legenda (critério
geométrico ou sintático);
y convenções tipográficas — uso de aspas, itálico e caixa-alta;
y uso ou não de reticências ao fim de legendas inconclusas (que continuam na
legenda seguinte);
y normas sobre o uso de abreviações, siglas, símbolos e numerais;
y grau de permissividade com respeito ao uso de linguagem de baixo calão;
y grau de prioridade da norma culta sobre registros mais coloquiais —
corruptelas e contrações (“pra”, “tá”...), mistura de pessoas e conjugações
verbais ( “você” e “tu”).
Como foi dito na Seção III.2.3, respeitar as normas e preferências do
cliente é de suma importância para a permanência do tradutor no mercado. Assim
funcionam os mecanismos de controle. As instruções fornecidas explicitamente
devem ser observadas e, havendo a necessidade de se rediscutir alguma delas, o
ideal é que isso se faça de modo a não interferir em procedimentos e prazos já em
A tradução para legendas 127

andamento.
Mas nem sempre as normas são explícitas ou detalhadas. Freqüentemente
ocorre de várias decisões serem deixadas a critério do tradutor e, depois de
entregue o trabalho, uma das instituições ou dos profissionais envolvidos na pós-
produção ou distribuição do material discordar de alguma escolha do tradutor ou
impor uma regra antes não explícita. É em situações desse tipo que ocorrem
renegociações explícitas de normas, situações que, se bem conduzidas, podem
levar a soluções com mais qualidade e que atendam melhor às prioridades de cada
integrante do sistema.
Também pode haver conflitos de prioridades e entre os diferentes
conjuntos de normas. Os diversos parâmetros e processos decisórios apresentados
nas subseções anteriores demonstram que o tradutor precisa saber balancear
habilmente todas essas coerções e interesses. Seu cliente direto deve ficar
satisfeito com o cumprimento das tarefas combinadas, os produtores e
distribuidores do material devem considerar que este foi traduzido e editado com a
precisão adequada, e o público-alvo deve usufruir satisfatoriamente do produto
sem que algum problema técnico ou no conteúdo da tradução o faça questionar a
confiabilidade ou reclamar da qualidade de produção do material. Porém, nem
sempre todas essas prioridades coincidem, de modo a ficarem todos satisfeitos.
Para concluir esta seção, vejamos uma situação de conflito entre conjuntos
concorrentes de normas.
Exemplo 9 - Conflito de normas.
Fui contratada pela produtora Drei Marc para realizar o serviço de
tradução do inglês para o português do filme de ficção de longa-metragem (drama,
comédia) The madness of King George (As loucuras do rei George), dirigido por
Nicholas Hytner, Reino Unido, 1994, a ser exibido num dos canais Telecine,
pertencentes à Globosat. A produtora do filme é a Samuel Goldwyn Company.
Uma das instruções mais coercivas de meu cliente direto é que os
tradutores se ajustem às regras estabelecidas em seu Manual de legendagem (Drei
Marc, 2003), que é atualizado e ampliado cerca de duas vezes ao ano. Nenhuma
das regras ali contidas pode ser descumprida sem uma prévia negociação. O
manual é bastante abrangente e inclui vários procedimentos referentes ao processo
de tradução e pós-produção, padrões de marcação de tempo e segmentação de
legendas, e preferências sintáticas e estilísticas da Drei Marc determinadas por seu
Carolina Alfaro de Carvalho 128

setor de controle de qualidade. Há também seções referentes às normas de seus


principais clientes, que vão sendo atualizadas à medida que estes divergem dos
padrões da Drei Marc e renegociam algum padrão. A Drei Marc especifica que as
preferências de seus clientes têm prioridade sobre as dela. Assim, enquanto as
normas da Drei Marc são um tanto quanto flexíveis de modo a permitir ao tradutor
buscar um equilíbrio entre a norma culta da língua escrita e uma linguagem que se
ajuste às características de produtos de naturezas muito variadas, por vezes as
normas de seus clientes são mais rigorosas. Um exemplo é o uso de linguagem de
baixo calão. A Drei Marc permite seu uso, desde que seja considerado adequado
ao contexto do produto. Na seção referente a um de seus clientes, o manual
informa: “Seguir todas as informações anteriores. Considerar apenas que é um
canal de entretenimento e, por isso, a linguagem deve ser amenizada. Podemos até
usar palavrões mas, por favor, informem à Produção para que o cliente seja
alertado.” (ibid: 27). Já na seção destinada a outro cliente, consta: “palavras chulas
não podem ser usadas nas legendas. Suavizar SEMPRE.” (ibid: 27).
O serviço apresentado neste exemplo tinha como cliente da Drei Marc o
canal Telecine, com respeito ao qual quero aqui destacar três regras explícitas no
manual:
(i) com relação à prioridade do material audiovisual sobre o roteiro:

o que vale é o conteúdo do material gravado, e não o script, que serve de


base. [...] Mesmo os scripts “as broadcast”, transcritos a partir do material
já gravado e finalizado, trazem problemas. Nada impede um erro de
entendimento por quem está transcrevendo, um erro de digitação ou
mesmo desconhecimento. A grafia de um nome, palavras com mesma
sonoridade, etc. poderão causar erros graves. (ibid: 5)

(ii) com relação à segmentação das legendas:

legendas de 5 segundos ou mais, não sendo em músicas, óperas, cartazes,


título, quase sempre ficariam melhor se divididas em duas legendas de 2,
3 segundos. (ibid: 20)

(iii) com relação ao intervalo entre legendas:

não deixar menos de 10 frames entre legendas. Neste caso, colar as


legendas. (ibid: 21)

O roteiro enviado juntamente com o material em VHS foi elaborado pela


Samuel Goldwyn Company de modo a facilitar o trabalho dos tradutores e é muito
detalhado. Contudo, ele segue os padrões utilizados na tradução para cinema: a
A tradução para legendas 129

pietagem e a segmentação do texto já estão definidos no roteiro. Além disso, logo


após a página de rosto, uma página contendo o título “Instructions to translators”
dá a seguinte informação, ao lado de definições técnicas e explicações de
convenções adotadas no roteiro: “Spotted titles are numbered consecutively. Your
title numbers must match these exactly.” Isto é: os trechos de diálogo,
previamente segmentados, estão numerados e as legendas devem corresponder
exatamente a esses segmentos, respeitando sua numeração. Sobre a marcação de
tempo, é informado: “The elapsed footage indicates the time that the title remains
on screen and determines the maximum length permitted for your translation.”
Portanto, as legendas devem respeitar a pietagem predeterminada. Mais abaixo, a
última instrução, em destaque: “Adhere as closely as possible to the English title,
but not to the detriment of your adaptation.” Apesar de um certo grau de liberdade
implícito nessa última ressalva (e aqui destaco o único emprego do termo
adaptation nas instruções desse roteiro, o que confirma a citação de Díaz Cintas
feita na Seção III.2.2 sobre o uso indiscriminado de tradução e adaptação), as
instruções deixam claro que o texto transcrito, segmentado e marcado com a
pietagem deve funcionar como o original e ser respeitado como tal pelo tradutor.
Essa última constatação já revela um conflito com a regra (i) da Drei
Marc, listada acima. O conflito se agrava quando constato que uma das
transcrições feitas no roteiro traz “We were married for 27 years...”, porém no
material audiovisual eu vejo e ouço o personagem dizer: “We were married for 28
years...”. Minha decisão é priorizar a norma da Drei Marc e de meu cliente
indireto, o canal Telecine, em detrimento das instruções da Samuel Goldwyn.
Além do relacionamento com meu cliente, penso também no público que assistirá
ao filme, que pouco está interessado no que diz o roteiro e verá meu nome ao final
da transmissão.
Por diversas vezes também ocorrem conflitos com as regras (ii) e (iii)
listadas acima, os quais exemplifico com o trecho abaixo. O roteiro
cinematográfico traz a seguinte seqüência de diálogos, segmentados e marcados
com pietagem:
Carolina Alfaro de Carvalho 130

# Entrada Saída Duração Transcrição


THE KING WALKS TOWARD THE CAMERA, FOLLOWED BY OTHERS
835 122.04 125.04* 3.00 KING [TO ALL]
…plough you a furrow as straight as
a ruler…
M.S. WIDE ANGLE WILLIS AND GREVILLE.
THE KING WALKS IN L.F.G. WITH OTHERS. CAMERA TRACKS IN PAST WILLIS
AND GREVILLE
836 125.08 128.12 3.04 …straight as a ruler done by a
ruler.
837 129.00 136.04 7.04 And another beside that and another
beside that until you had as pretty
a ploughed field as you could find
this side of Cirencester.
838 136.08 138.12 2.04 Put us out of our kingdom tomorrow
and I would not want for…
839 139.00 141.00 2.00 WILLIS [TO KING]
I have a farm.
THEY ALL STOP AND LOOK BACK TOWARDS L.F.G.
THE KING WALKS BACK TOWARD CAMERA. CAMERA TRACKS BACK WITH HIM.
840 155.08 159.00 3.08 KING [TO ALL]
Put us out of our kingdom tomorrow,
we would not want for employment.
841 159.04 163.04 4.00 Give me the management of 50 acres
and ploughing and sowing and
harvest…
842 163.08 166.03 2.11 …and I could do it and make me a
handsome profit into the bargain.
M.C.S. WILLIS
843 *166.07 171.10* 4.03 WILLIS [TO KING]
I said I have a farm, Your Majesty.
M.C.S. KING OVER WILLIS TIPPED L.F.G
M.C.S. GREVILLE
844 *176.12 180.12 4.00 GREVILLE [TO KING]
This gentleman, Sir, has made the
illness under which Your Majesty
labours…
845 181.00 185.12* 4.12 …his special study, Sir.
Figura 17 - Trecho do roteiro cinematográfico de The madness of King George (Exemplo 9).

Podemos ver que, ao longo de quase toda essa seqüência, o intervalo entre
a pietagem de saída de uma legenda e a de entrada da legenda seguinte é de 4
quadros, o que entra em conflito com a regra (iii) de meu cliente direto e do
cliente dele. E uma legenda longa como a de número 837, com quase 5 segundos,
ficaria melhor aos olhos de meu cliente se dividida em duas, principalmente em
função do ritmo dos diálogos que constatei no material audiovisual, transcrito
abaixo empregando as mesmas convenções das transcrições anteriores.
A tradução para legendas 131

King 1 plough you a furrow as STRAIGHT as a ruler!...


2 STRAIGHT as a ruler!... straight as a ruler DONE
3 by a ruler... and another beside that and another
4 beside that until you had as pretty a ploughed
5 field as you could find this side of
6 Cirencester... put us OUT of our kingdom tomorrow
7 we would not /want
Willis 8 /I have a FARM
King (10)
9 out of our kingdom tomorrow we would not want for
10 employment give me the management of fifty
11 acres... and ploughing and sowing and harvest and
12 I could DO it and make me a handsome profit into
13 the BARGAIN
Willis 14 I SAID (1) I have a FARM your majesty
Greville (2)
[pigarro]
(1)
16 this GENTLEman sir... has made the ILLNESS under
17 which your majesty labours his special STUDY sir
Figura 18 - Transcrição correspondente ao trecho da figura anterior (Exemplo 9).

Minhas legendas correspondentes a esse trecho ficaram da seguinte forma:

Timing Duração # Legenda


02:01:21.29 2.03 1 ...arar um sulco bem reto,
02:01:24.02
02:01:24.02 2.08 2 como uma régua
02:01:26.10 de um homem direito.
02:01:26.10 2.08 3 E outro ao lado deste
02:01:28.18 e outro e outro,
02:01:28.18 2.24 4 até ter uma terra arada
02:01:31.12 bela como estas daqui.
02:01:31.12 1.24 5 Se amanhã perdermos
02:01:33.06 o reino...
02:01:33.06 1.21 6 Eu tenho uma fazenda.
02:01:34.27
02:01:44.12 2.08 7 ...perdermos o reino,
02:01:46.20 teremos emprego.
02:01:46.20 3.03 8 Posso cuidar de 50 acres,
02:01:49.23 arar, plantar e colher
02:01:49.23 1.24 9 e consigo lucrar bastante.
02:01:51.17
02:01:51.17 3.26 10 Eu disse que tenho
02:01:55.13 uma fazenda, Majestade.
02:01:58.04 2.16 11 O cavalheiro vai estudar
02:02:00.20
02:02:00.20 2.26 12 a doença que aflige
02:02:03.16 Sua Majestade.
Figura 19 - Legendas correspondentes à transcrição da figura anterior (Exemplo 9).

Pode-se ver que há apenas dois intervalos entre legendas: são aqueles entre
as legendas 6 e 7, com quase 10 segundos, e entre as legendas 10 e 11, com pouco
Carolina Alfaro de Carvalho 132

menos de três segundos. Todas as outras não possuem intervalo, visto que este
teria menos do que 10 frames. Com relação à segmentação, além de subdividir o
segmento 837 do roteiro (linhas 3 a 6 na transcrição), reestruturei as legendas 11 e
12, referentes aos segmentos 844 e 845 do roteiro (linhas 16 e 17 na transcrição),
para poder dar uma redação ao texto em português mais direta e menos calcada na
estrutura da língua inglesa.
Neste caso, o conflito entre as normas não chegou a se instalar graças às
prioridades explicitamente estabelecidas no manual de meu cliente e às minhas
próprias nesse contexto. A produtora desse material provavelmente não realizará o
controle de qualidade da tradução e, de qualquer modo, trata-se de outro meio,
com normas distintas. Mas poderia não ser assim.
Diferentemente dos Estados Unidos e dos principais países europeus,
culturalmente hegemônicos, o sistema brasileiro não só importa produtos de
outras culturas e traduz a grande maioria deles aqui, como empenha esforços para
conseguir exportar seus materiais a outras culturas, investindo recursos e muito
trabalho para que cada produto exportado encontre um lugar na cultura de
chegada e providenciando aqui todo o trabalho de tradução para as principais
línguas estrangeiras. Nesse sentido, a legendagem também difere da tradução
literária e de outras formas de tradução audiovisual, como a dublagem, que
geralmente são feitas na cultura de chegada. Em função desse conjunto de
esforços para inserir os produtos em outros sistemas, produtores, distribuidores e
diretores brasileiros exercem um controle bem mais rigoroso sobre o processo de
tradução de seus materiais do que no caso da imensa maioria dos produtos
estrangeiros trazidos para a nossa cultura. Esse controle dos criadores
ocasionalmente gera conflitos com as empresas contratadas para realizar a
tradução. Por exemplo, muitas vezes os criadores do filme tendem a zelar por uma
tradução mais adequada (no sentido empregado por Toury) de seu material,
enquanto os responsáveis pela tradução costumam priorizar a recepção de seu
trabalho, preferindo uma tradução mais aceitável na cultura de destino.
Se o exemplo visto acima envolvesse a versão de um material brasileiro
cuja equipe de produção controlasse a qualidade da tradução segundo seus
parâmetros e meu cliente direto fosse a Drei Marc, como intermediária, o conflito
de instruções poderia dar margem a negociações explícitas para determinar as
normas prioritárias, de acordo com os objetivos da tradução e as supostas
A tradução para legendas 133

expectativas do público.

IV.5 Reflexões sobre a posição do tradutor no sistema de


tradução para legendas

Este capítulo apresentou o sistema de tradução para legendas inserido no


polissistema de tradução audiovisual, destacando seus integrantes, procedimentos
e normas. Como pôde-se ver, o tradutor para legendas deve conhecer os processos
de produção e pós-produção de materiais audiovisuais, entender sua posição como
integrante do sistema e saber relacionar-se com os múltiplos participantes e
conjuntos de normas envolvidos na legendagem. Além dos desafios pertinentes à
atividade tradutória de modo geral, é preciso equilibrar os diversos interesses,
parâmetros e preferências em jogo: dos clientes diretos e indiretos que criam,
distribuem e comercializam seus produtos, além de verificar a qualidade e
remunerar os serviços ligados a essas atividades; dos meios de veiculação dos
materiais audiovisuais e suas restrições técnicas; e das características próprias da
tradução para legendas. Isso sem esquecer os diversos públicos a que se destinam
os produtos, a verdadeira motivação que aciona todo o funcionamento do sistema.
Alheios aos procedimentos e decisões que resultaram na versão final do produto
traduzido, os consumidores têm seus próprios interesses e expectativas com
relação ao material a que irão assistir. A previsão acertada dessas expectativas
pode ser decisiva na posição assumida pelo produto no sistema-alvo e informa
muitas das escolhas feitas por todos os envolvidos nos processos de pós-produção
e distribuição dos materiais, entre os quais se inclui a tradução.
Conforme mostraram os exemplos apresentados nas subseções
precedentes, é com base nesses diferentes conjuntos de coerções que o tradutor
avalia os rumos que pode seguir e toma decisões de acordo com o que considera
mais adequado para seus objetivos em função de suas avaliações. Nesse sentido, a
Teoria dos Polissistemas e os conceitos e metodologias associados aos Estudos
Descritivos de Tradução são instrumentos ricos e flexíveis que ajudam a
compreender essas decisões em função dos múltiplos níveis sistêmicos com os
quais elas se relacionam. Assim como as regras, restrições e metas levam a excluir
determinadas alternativas e a favorecer outras, as decisões estratégicas tomadas
Carolina Alfaro de Carvalho 134

nos vários níveis, uma vez implementadas e submetidas à recepção e aos


mecanismos de controle, contribuem para reforçar, renegociar ou modificar as
normas que ajudam a configurar os sistemas. Esses paradigmas teóricos e métodos
práticos como o de Lambert e van Gorp (1985), adaptados ao contexto da
tradução audiovisual, podem portanto ser úteis ao desenvolvimento de pesquisas
bem fundamentadas nesse campo, que em muito colaborariam para questões de
natureza mais teórica — reflexões e estudos acadêmicos, preparação de
professores, metodologias de ensino — e prática — treinamento de profissionais,
controle de qualidade, crítica especializada.
Porém, os exemplos vistos também apontam para um aspecto crucial da
atividade tradutória que, a meu ver, faz-se mais evidente na tradução para
legendas do que na maioria das outras modalidades de tradução devido à presença
do original: o caráter singular de parte do processo de decisão realizado pelo
tradutor. Sem dúvida, as possíveis formas de se segmentar o texto oral e colocá-lo
no formato das legendas, a definição de informações mais relevantes ou
redundantes, preferências sintáticas e estilísticas na redação das legendas para
torná-las mais compactas e diretas, as estratégias escolhidas de acordo com
instruções de clientes ou inferências sobre o público-alvo podem ser em grande
parte explicadas em termos de relações de poder, coerções e normas. Contudo,
ainda que vários tradutores inseridos em um subsistema de uma determinada
cultura sigam as mesmas instruções e tomem decisões semelhantes com base nos
mesmos objetivos, a solução final adotada nas legendas correspondentes a um
conjunto de enunciados nunca será igual para dois desses tradutores. Não me
refiro aos conhecimentos lingüísticos, tradutórios e enciclopédicos de cada um,
mas a algo mais profundo.
Nos exemplos das seções anteriores, as justificativas apresentadas para
cada decisão que tomei em função das diferentes características de cada contexto
estão permeadas de inferências e preferências um tanto quanto subjetivas. Por
exemplo, ainda que normas próprias da legendagem e do meio levassem vários
tradutores a decidir que o enunciado “¿Vos qué dirías si yo me meto con como te
abandono tu viejo?”, nas linhas 8 e 9 da transcrição apresentada no Exemplo 5,
precisava ser reformulado de modo mais direto e enxuto, quantos chegariam à
tradução final “Seu pai a abandonou e eu não me meto.”, priorizando exatamente
essas informações e dessa forma? No Exemplo 8, em que apresentei as bases
A tradução para legendas 135

normativas e objetivas que informaram grande parte de minhas decisões com


respeito às renas de Papai Noel e aos anões de Branca de Neve em espanhol, não
transparecem também escolhas em um nível mais subjetivo, inclusive
inconsciente?
O Exemplo 7, no qual adaptei a comparação feita entre a área do Timor
Leste e o estado de Sergipe, direcionada ao público brasileiro, para o Havaí, que
julguei ser uma referência mais conhecida de públicos falantes de espanhol nas
Américas e na Europa, contém aspectos que evidenciam de modo mais marcante
essa questão da subjetividade. Ao pesquisar outras referências geográficas que se
aproximassem dos 14.874 km2 do Timor Leste, após descartar opções que me
pareceram ainda mais obscuras do que o Timor Leste e Sergipe, descobri que as
Ilhas Falkland (Malvinas) são ligeiramente menores e as ilhas do arquipélago do
Havaí são um pouco maiores, mas apenas se considerada somente a área terrestre
das ilhas havaianas. A área total formada pelo conjunto dessas ilhas é alguns
milhares de quilômetros quadrados maior do que a do Timor Leste. Fiquei em
dúvida quanto a qual seria a melhor escolha: o Havaí talvez fosse uma referência
mais popular em países como o México, mas as Falkland poderiam ser mais
conhecidas da população da América do Sul, que supus ser o principal público-
alvo do documentário.
No entanto, minha escolha definitiva não se baseou em nenhuma dessas
questões, mas na minha incapacidade de escolher entre empregar “Falkland” ou
“Malvinas” caso optasse por essa referência. O nome oficial das ilhas, que
pertencem à Grã-Bretanha, é Falkland, portanto essa seria a solução tecnicamente
correta. Porém, conheço a sensibilidade argentina ao assunto. Já me aconteceu de
fazer indagações sobre as Malvinas em território argentino — por exemplo, certa
vez perguntei por que havia um feriado nacional chamado “dia das Malvinas
argentinas” se as Malvinas eram britânicas — e fui severamente aconselhada a
nunca fazer provocações desse tipo. Como a Argentina muito provavelmente seria
um dos alvos da distribuição do documentário, pensei que escrever “Ilhas
Falkland” na legenda, principalmente visto que a narradora do filme não fala nada
parecido com isso, causaria uma reação negativa do público que, no mínimo,
desviaria a atenção do documentário e talvez mesmo levasse a conseqüências mais
indesejáveis, como reclamações à produtora ou à distribuidora. E sim, meu nome
apareceria no final. Já se escrevesse “Malvinas” para não gerar esse tipo de
Carolina Alfaro de Carvalho 136

reação, não estaria empregando o nome tecnicamente correto das ilhas. Optei
então por evitar esse problema fazendo referência ao Havaí — solução isenta e
livre de controvérsias. No relatório que entreguei à Drei Marc juntamente com a
tradução, expliquei por que decidi tirar a referência a Sergipe e como cheguei ao
Havaí, o que foi aceito pelo setor de controle de qualidade. Reflexões deste tipo
evidenciam o peso de fatores pessoais, subjetivos, em diversas decisões tomadas
pelo tradutor.
Passamos assim ao terceiro interesse desta pesquisa, conforme apresentado
na Introdução: dar início a uma reflexão sobre a parcela de singularidade presente
na tradução para legendas, sobre aquele espaço do processo tradutório que não
pode ser ocupado por duas pessoas diferentes, por mais próximas que estejam
num mesmo contexto — um espaço que não se deixa dominar totalmente pelos
interesses e normas do sistema em que se encontra o indivíduo.
V
A SUBJETIVIDADE NA TRADUÇÃO PARA LEGENDAS

Conforme visto no Capítulo II, ao estabelecer as bases teóricas dos Estudos


Descritivos de Tradução, Gideon Toury faz a opção metodológica de explorar o
aspecto sociocultural da atividade tradutória, relegando a segundo plano aquilo
que seria individual ou idiossincrático. Toury não nega esse componente, o que
fica claro em algumas passagens destacadas no Capítulo II — por exemplo,
referentes a seu objetivo de partir dos fatos observáveis para reconstruir os
processos não observáveis na origem da tradução e de compreender como os
tradutores transitam entre as várias coerções a que são submetidos, além de
considerar as idiossincrasias quando discute diferentes graus de coerção na gama
de normas que regem o comportamento humano. Contudo, ele precisa destacar o
caráter sociocultural da tradução para poder melhor entendê-la como uma
atividade convencionalizada e regida por normas. Ainda que as normas não
excluam o comportamento idiossincrático, criativo ou subversivo, este não
constitui o foco de sua teoria.
É claro que a tradução é uma atividade sociocultural: sua própria razão de
existir é o contato entre sociedades e culturas. Toury admite que toda tradução é
fruto da atividade cognitiva de um indivíduo, mas afirma que seria uma
incongruência pretender separar o ato cognitivo da tradução do evento contextual
no qual estão inseridos o ato tradutório e a pessoa que o realiza. Ele então explica:

É desnecessário dizer que não se pode afirmar que ocorreu um evento


tradutório [contextual] a menos que um ato tradutório [cognitivo] tenha
sido realizado. Por outro lado, ao menos em instâncias de tradução
socialmente relevantes [...], todos os processos cognitivos ocorrem dentro
de contextos que constituem eventos. Acredito que isto é indiscutível e
deveria ser uma justificativa suficiente para abordar o evento como um
todo em termos socioculturais.44 (Toury, 1998: 19.)

44
Needless to say, no translation event can be said to have taken place unless an art of translation
was indeed performed. On the other hand, at least in socially-relevant instances of translation […],
all cognitive processes occur within contexts which constitute events. This much I believe should
be taken for granted, and it should be justification enough for approaching the overall event in
sociocultural terms.
Carolina Alfaro de Carvalho 138

Concordo com Toury quanto à impossibilidade de se separar o ato


cognitivo do evento contextual ou de se pensar o indivíduo independentemente da
sociedade. Entretanto, a despeito das intenções de Toury de reconstruir os
processos não observáveis e compreender os tradutores como indivíduos em uma
sociedade, sua ênfase no estudo das normas socioculturais como meio para chegar
a uma teoria cada vez mais ampla e genérica, acompanhada do desenvolvimento
de modelos metodológicos e de um corpus cada vez maior de pesquisas empíricas
de base sistêmica e cultural, acabou por desconsiderar o plano subjetivo inerente à
atividade tradutória. Contudo, como visto na Seção II.4, por vezes Toury e outros
autores descritivistas atribuem a determinadas ações individuais o papel de pivôs
responsáveis por súbitas transformações nos sistemas.
Conforme comentei naquela mesma seção, não me parece que a dimensão
humana seja excluída dos Estudos Descritivos, uma vez que são notadamente as
relações humanas que configuram os sistemas. Mas sim, fica esquecida a
dimensão subjetiva do processo, que a meu ver é complementar às normas
socioculturais e sem a qual uma parte significativa das decisões tradutórias
permanece sem explicação, como visto no fim do capítulo anterior. Tal dimensão
subjetiva, como a percebo, não corresponde a atos idiossincráticos entendidos a
partir da dicotomia indivíduo/sociedade — ela justamente desfaz esse binômio e
entrelaça esses dois aspectos do sujeito.

V.1 O sujeito-tradutor

Na obra que informa a maior parte deste capítulo, Maria Paula Frota (2000)
aproxima Psicanálise e Estudos da Tradução no intuito de superar a dicotomia
sujeito/objeto que ainda subjaz às teorias de tradução atuais e com base na qual se
dá o apagamento — ou ao menos o recalque — do aspecto subjetivo da tarefa do
tradutor, apagamento que ocasionalmente cede o lugar a atos idiossincráticos
supostamente capazes de manipular textos ou transformar sistemas.
A reflexão de Frota parte do Estruturalismo saussuriano para explicar parte
da atual postura adotada por muitos teóricos pós-estruturalistas da tradução. Por
um lado, a langue — objeto de estudo da Lingüística, segundo Saussure — foi
caracterizada como um sistema lingüístico abstrato e estável, referente ao
A subjetividade na tradução para legendas 139

conhecimento lingüístico partilhado por todos os membros de uma sociedade. Por


outro, a parole corresponderia à realização lingüística, concreta e variável, de
cada falante individual de uma comunidade. Entretanto, em ambos os casos,
língua(gem) e sujeito estão separados: a langue é concebida como exterior e
anterior ao falante, sobre a qual este não tem poder algum, enquanto no que tange
à parole o indivíduo é elevado a seu mestre, com total controle sobre sua
produção e compreensão.
Na segunda metade do século XX, surgem e cada vez mais se intensificam
críticas ao caráter de abstração, transcendência e imobilidade do sistema
lingüístico tal como concebido pelo Estruturalismo saussuriano. No campo da
tradução, muitos teóricos responsabilizaram esse paradigma — predominante nos
Estudos da Linguagem e da Tradução até poucas décadas atrás — pela
incompreensão acerca do que de fato se dá em um processo tradutório. Se cada
língua é entendida como um sistema abstrato, homogêneo e estável, os
significados repousariam, fixos, no sistema, imunes à intervenção dos falantes. A
partir dessa visão, a tradução consistiria na identificação neutra dos significados
supostamente presentes no texto de partida e sua transposição para a língua de
chegada — o que reforça tanto a noção ingênua de que a leitura é pura recepção
passiva quanto a nefasta idéia da tradução como uma inevitável traição, visto que
o transporte de significados entre diferentes sistemas lingüísticos é uma tarefa
difícil ou mesmo impossível. As críticas ao Estruturalismo saussuriano,
formuladas em diversos campos do saber interessados em pensar a linguagem, vão
dando ensejo à elaboração de novas teorias que passam então a enfatizar a
natureza cultural, histórica e ideológica dos usos lingüísticos.
Outra noção que foi desconstruída por teorias literárias e lingüísticas, com
impacto direto nas reflexões sobre tradução, foi a de originalidade — e portanto a
de autoria —, conforme colocado na Introdução deste estudo. A intertextualidade
inevitavelmente permeia todo ato de leitura e de escrita, de modo que o autor de
um texto não é mais o detentor único ou origem primeira das idéias que nele
procura exprimir. Da mesma forma, o tradutor, como qualquer indivíduo, passou a
ser entendido como sobredeterminado pela cultura na qual está inserido, por
valores ideológicos, por suas experiências, por todos os textos que leu e
conhecimentos que detém, disso resultando a impossibilidade de se desconsiderar
a intervenção que ele necessariamente opera no texto ao empreender sua tradução.
Carolina Alfaro de Carvalho 140

Assim, a ênfase recaiu sobre a dimensão sociocultural, como é o caso das


chamadas abordagens culturalistas de tradução, entre as quais incluem-se os
Estudos Descritivos. Contudo, essas abordagens continuam mantendo a separação
entre sujeito e língua(gem) que subjazia ao Estruturalismo. Como mostra Frota,

em geral, os estudiosos filiados a essa tendência [culturalista], sem que


tivessem investigado e minimamente resolvido as dificuldades
decorrentes da dicotomia sujeito/linguagem, tendem a reproduzir, agora
na relação tradutor-cultura ou tradutor-história, o mesmo equívoco: a
transcendentalidade ora de um termo, ora de outro. Do mesmo modo que
reificavam as línguas e os discursos, agora reificam as culturas,
concebendo-as em uma relação de exterioridade ao sujeito. (Frota, 2000:
134)

É importante mencionar também reflexões que explicitamente criticam a


dicotomia sujeito/objeto, como é o caso do teórico americano Stanley Fish, um
dos expoentes do Pós-estruturalismo — muitas vezes dito neo-pragmatista — nos
Estudos da Tradução. Ele de fato desconstrói a oposição entre objetividade e
subjetividade mostrando que ela “é, na verdade, uma falsa oposição, uma vez que
ambas inexistem no estado puro que daria sentido à oposição” (Fish, 1993: 162).
Porém, para Fish, a esfera social acaba anulando o subjetivo, isto é, Fish acaba por
pensar o sujeito como sujeito social, ignorando os efeitos de sua história pessoal
sobre sua subjetividade:

todos os objetos são construídos e não descobertos, e [...] são construídos


através das estratégias interpretativas que colocamos em funcionamento.
Isto, no entanto, não implica a subjetividade, pois os meios através dos
quais os objetos são construídos são sociais e convencionais. Assim,
embora seja correto dizer que criamos poesia [...], nós o fazemos através
de estratégias interpretativas que em última instância não são nossas,
porém têm sua origem em um sistema de inteligibilidade que é público.
(ibid: 162)

Mais do que a substituição da reificação da língua pela reificação da


cultura em oposição ao sujeito individual, os dois termos da dicotomia
sujeito/linguagem por vezes se alternam numa mesma teoria, conforme
comentado na Seção II.4. Ora o tradutor é entendido como um produto de seu
meio sociocultural, da ideologia dominante em sua cultura, da história ou da
língua, a eles submisso e sem voz própria — como ilustrado pela citação de Fish,
acima —, ora é concebido como alguém com suficiente domínio da língua para
desvelar intenções e sentidos ocultos nos textos e condicionar as interpretações de
seus leitores, manipulando assim as relações de poder que configuram as culturas
A subjetividade na tradução para legendas 141

e inclusive mudando os rumos da história — ocupando portanto o posto do Autor


pré-bartheano, mestre de todo sentido contido no texto.
É o que transparece, como mostra Frota, nos argumentos de Lawrence
Venuti, outro teórico pós-estruturalista influente e crítico dos Estudos Descritivos.
Por um lado, ele rejeita a idéia de subjetividade (entendida no sentido cartesiano)
para negar a noção de autoria e assim libertar o tradutor da obrigação de
fidelidade às intenções originais do autor. Nesse sentido, argumenta que a
subjetividade é “necessariamente constituída pelo social e pelo histórico” (Frota,
2000: 90) e que essas dimensões informam todas as interpretações que o sujeito é
capaz de realizar. Isto é, cada leitor tem sua interpretação sobredeterminada pelas
dimensões sociais e históricas do contexto em que está inserido, o que vale tanto
para o autor quanto para os leitores e tradutores de uma obra em diferentes épocas
e locais. Por outro lado, Venuti defende para a tradução a “escrita de resistência”,
uma tradução politicamente engajada que pressupõe um tradutor capaz de detectar
as posturas ideológicas implícitas no texto e de manipulá-las de modo a
neutralizá-las e mesmo a impor seus próprios interesses políticos — que, para
Venuti, devem ser anti-hegemônicos.
Como visto na seção anterior, um paradoxo semelhante ocorre nos Estudos
Descritivos de Tradução: apesar da opção pela dimensão sociocultural da
atividade tradutória, ocasionalmente faz-se necessário abordar situações que
envolvem a participação de um indivíduo, e nesses casos o sujeito é elevado à
mesma condição autoral rejeitada por Barthes e combatida pelos Estudos da
Tradução. Isso ocorre porque o “sujeito-tradutor” continua sendo concebido como
separado da linguagem, num reflexo da dicotomia sujeito/objeto. Com respeito a
esta dicotomia, diz Frota:

por serem os dois termos encarados como instâncias unas e


hierarquizáveis, o que quer que seja colocado no lugar de “objeto” (a
natureza ou a cultura; formações sociais e ideológicas; línguas, textos ou
discursos; significados) pode assumir um caráter de dominação sobre o
sujeito, ou, ao contrário, de submissão a ele. (Frota, 2000: 128)

Com o objetivo de superar essa dicotomia e melhor compreender a


subjetividade — e, portanto, investigar mais a fundo o sujeito-tradutor —, Frota
recorreu à Psicanálise. Segundo Lacan, o plano do real propriamente dito é
inacessível e aquilo a que chamamos realidade é criado pelo discurso. Por isso,
nem o contexto sociocultural nem o indivíduo existem como entidades separadas
Carolina Alfaro de Carvalho 142

da linguagem. Por um lado, o sujeito não é livre, senhor de seus atos, pois é
assujeitado pelo discurso que permeia toda a realidade que o cerca. Ele é, nesse
sentido, sobredeterminado pela língua, pela história, pela cultura, pela ideologia,
pelo inconsciente. Mas, por outro lado, tais realidades não independem do sujeito
— elas o constituem, mas também são por ele constituídas. Por meio do discurso,
o sujeito é capaz de agir sobre a realidade.
Essa interferência se dá de modo especial através de formações discursivas
singulares, isto é, enunciados que transcendem tanto a “intenção” consciente do
falante quanto as possíveis interpretações em circulação num determinado
contexto social, remetendo portanto a uma instância íntima do sujeito. Nas
palavras de Frota, “formas e sentidos singulares não acontecem a partir do falante
ou da língua, tomados isoladamente, mas de ambos” (ibid: 135). “Porque referidos
a uma dimensão social, [língua e sujeito] apresentam uma faceta de estabilidade,
de previsibilidade; porque imbricados ao desejo, apresentam uma faceta de
imprevisibilidade e de ruptura.” (ibid: 232.)
A autora então traz esse insight sobre a singularidade para o âmbito da
tradução, para através dela explorar a subjetividade do tradutor. E argumenta:

A hipótese da singularidade (do sujeito como assujeitado ao inconsciente)


parece-me muito mais forte para demonstrar teoricamente a diferença
como “interferência” necessária de um tradutor em sua escrita do que a
noção de sujeito como assujeitado às formações sociais e ideológicas,
visto que estas não incluem a dimensão subjetiva enquanto
“acontecimentos na estrutura”. (ibid: 95)

Definamos melhor essa singularidade na tradução:

Através da noção de singularidade, fica delineada uma modalidade de


evento na escrita tradutória para além daquelas que contam com os selos
do certo e do errado. Tal evento, do ponto de vista de sua recepção, não é
unanimemente aceito nem rejeitado; do ponto de vista de sua produção,
ele se realiza através de formas lingüísticas sobredeterminadas na
diversidade lingüístico-cultural, que é ao mesmo tempo condicionante e
efeito da história subjetiva daquele que (se) escreve. (ibid: 194)

Sendo não dicotômica, a singularidade não se adéqua à lógica binária que


empregamos para classificar as ações humanas. Entretanto, devido à ruptura que
opera, quando uma formação tradutória singular é detectada por um crítico, este
tende a rotulá-la segundo pólos binários, seja como um erro — por distração,
incompetência lingüística ou tradutória, interpretação incorreta do original ou
mesmo subversão da intenção autoral — ou como uma decisão acertada — não
A subjetividade na tradução para legendas 143

literalidade, valorização do conteúdo sobre a forma, criatividade de um tradutor


competente, etc. —, dependendo do tipo de expectativa desse crítico em relação à
tradução. Contudo, muitas vezes nem mesmo o autor do texto é capaz de aplicar
um único desses rótulos à sua escolha. Isso porque “a singularidade ocupa um
terceiro lugar, permeado por uma fluidez ou instabilidade acentuadas” (ibid: 228).
Uma conseqüência disso é que as singularidades não são devidamente
identificadas quando não se conhecem suas motivações. Um observador externo
não tem como julgar se dada solução tradutória que rompe com suas expectativas
é um deslize, um erro por má compreensão, uma manipulação planejada, uma
censura ou um ato criativo se não souber, por meio de algum tipo de depoimento
do tradutor, se trata-se de uma decisão intencional ou não e baseada em que
reflexões. Vale destacar que um ato intencional não implica estar livre da
interferência do desejo inconsciente, pois este sempre participa de nossos atos,
mesmo aqueles que pensamos ser absolutamente conscientes. Às vezes, um ato
singular pode não ter sido intencional e o próprio tradutor o considerará um erro
ao percebê-lo. Já nos casos em que há uma intencionalidade mais forte, se o
tradutor tiver a oportunidade de apresentar as motivações e justificativas que
nortearam sua decisão, muitas delas até então ignoradas por ele próprio, o
julgamento de terceiros pode se flexibilizar de modo a acolher soluções
tradutórias diferentes das esperadas.
Outra conseqüência é que as formações singulares não destoam nem do
contexto lingüístico dos textos em que aparecem e nem dos possíveis contextos
interpretativos, factuais e históricos dos quais partilham seus leitores ou ouvintes.
Nas palavras de Frota,

[a]s singularidades não se dão a ver do ponto de vista lingüístico, se este é


tomado estritamente em termos de sua materialidade; ou seja, elas se
configuram sempre como formas corretas, tanto no que tange apenas a si
próprias, à sua ortografia, digamos assim, quanto em sua relação com a
cadeia sintática ou textual que as encerra. Tampouco se pode dizer que
elas sejam incongruentes com um material histórico e/ou factual no
sentido freudiano, isto é, como uma informação compartilhada, passível
de aceitação ou refutação unânimes. Não se pode, a rigor, atribuir um
“caráter de realidade objetiva” seja ao ato, seja ao material em que a
singularidade se constitui [...]. (ibid: 231)

Por isso, as singularidades não são percebidas sem o cotejo da tradução


com o original. Cotejo que raramente ocorre, afirma Frota, de modo que a
singularidade tradutora quase nunca é percebida. Mas esse não é o caso da
Carolina Alfaro de Carvalho 144

tradução para legendas — a tradução vulnerável.

V.2 A vulnerabilidade da legendagem

Conforme visto no Capítulo IV, a tradução na forma de legendas não possui


autonomia — o material audiovisual original sempre a acompanha. Além disso,
ela está sempre visível e é notoriamente uma interferência — secundária e ancilar
— sobre o produto de interesse do público. É nesse sentido que Díaz Cintas
chama a legendagem de tradução vulnerável, visto que

[o] TM [texto-meta] não só deve se adequar às numerosas limitações


impostas pelo meio [...] como também deve se submeter ao escrutínio
comparativo e avaliativo de um público que, como regra geral, tende a ter
um conhecimento (variável e discutível) das línguas em contraste [...].45
(Díaz Cintas, 1997: 218)

Naturalmente, a medida em que o público compreenderá o texto na língua


original dependerá de diversos fatores, a começar por qual é a língua original. No
caso dos dois idiomas enfocados no presente trabalho, inglês e espanhol, ainda
que para a maioria dos espectadores a compreensão fique restrita a palavras soltas
e frases simples, a comparação entre o texto das legendas e os enunciados ouvidos
é praticamente inevitável. Como também destaca Díaz Cintas, a presença do áudio
em língua estrangeira associada à segmentação e à sincronia das legendas facilita
o contraste entre ambos. Isso torna a legendagem vulnerável não só à avaliação de
observadores críticos e com conhecimentos suficientes para julgar um tipo de
tradução tão peculiar, mas sobretudo à opinião do público, geralmente pertencente
à elite cultural que tem acesso a salas de cinema, locadoras de VHS e DVD e
canais de televisão por assinatura. O público, por partilhar do senso comum no
que se refere às noções de língua e tradução, vendo a primeira como mera
nomenclatura e a segunda como simples transferência, sente-se ainda mais
indignado ao detectar algum “erro” de tradução. É por isso que, conforme visto na
Seção IV.4.2, referente às normas de legendagem, procuram-se manter nas
legendas palavras formalmente semelhantes às que podem ser claramente ouvidas

45
El TM no sólo se debe adecuar a las numerosas limitaciones impuestas por el medio […] sino
que también ha de someterse al escrutinio comparativo y evaluador de una audiencia que, por regla
general, suele tener un conocimiento (variable y discutible) de las lenguas en lidia […].
A subjetividade na tradução para legendas 145

ou mais facilmente compreendidas nos enunciados originais. No tocante a esse


aspecto, Díaz Cintas comenta que a brevidade e a efemeridade das legendas são
sua única vantagem, pois o espectador tem muito pouco tempo para dedicar maior
atenção ao texto.
Mas, mais do que no contraste entre original e tradução feito pelo público,
pensemos aqui num encontro entre sujeitos: de um lado, o sujeito-tradutor, com
sua interpretação do material audiovisual, seus objetivos, coerções,
conhecimentos, experiências, inferências, sua projeção do público-alvo e dos
conhecimentos que este pode vir a ter; do outro, o sujeito-espectador, com sua
própria interpretação permeada por sua história pessoal e expectativas sobre o
material a que está assistindo e sobre aquilo que se apresenta como sendo a
tradução desse material. É claro que esses dois sujeitos têm muito em comum,
pois partilham de diversas normas que regem as relações dos sistemas nos quais
se encontram, referentes à língua, aos diferentes produtos audiovisuais, a seus
meios de veiculação, às formas de distribuição e exibição, à função das legendas,
ao seu formato e a várias das convenções que elas utilizam. Contudo, o espectador
também se deparará com o produto de outro sujeito e eventualmente detectará a
singularidade que inevitavelmente o permeia.
Ilustremos esta discussão final com um último exemplo.
Exemplo 10 - Decisões singulares do tradutor.
O produto é o mesmo que o empregado no Exemplo 5: o filme de ficção
de longa-metragem (drama, comédia, romance) argentino El hijo de la novia (O
filho da noiva), dirigido por Juan José Campanella, 2001, que traduzi do espanhol
para o português a serviço da Drei Marc para um canal de televisão por assinatura.
Nas últimas cenas do filme, é realizada uma cerimônia de casamento entre
os pais (Norma e Antonio), já idosos, do protagonista Rafael. Norma sofre do mal
de Alzheimer e não entende o que está acontecendo. Sem que os noivos o saibam,
o homem que se faz passar por padre é na realidade um amigo de infância de
Rafael, que é ator. Nervoso ao falar aos noivos e sem saber como encerrar o
sermão, ele começa de repente a recitar versos de El gaucho Martín Fierro, obra
tradicional argentina escrita em 1872 por José Hernández, em uma linguagem que
imita o sotaque dos gauchos dos pampas argentinos. Para facilitar a leitura, copio
abaixo os versos recitados pelo falso padre, extraídos do 13o e último canto de El
gaucho Martín Fierro:
Carolina Alfaro de Carvalho 146

Dios formó lindas las flores,


delicadas como son;
le dio toda perfeción
y cuanto él era capaz,
pero al hombre le dio más
cuando le dio el corazón.

Le dio claridá a la luz,


juerza en su carrera al viento,
le dio vida y movimiento
dende la águila al gusano;
pero más le dio al cristiano
al darle el entendimiento.

Seguindo as convenções empregadas em exemplos anteriores, transcrevo a


seguir parte desse sermão e o comentário que Rafael faz ao falso padre, seu amigo
ator, logo após a declamação dos versos:

Personagem # Transcrição
Padre 1 El señor ... quien observa todas nuestras
2 acciones y pensamientos ... nos permite hoy ...
3 celebrar el matrimonio de Norma y Antonio ...
4 El señor quiso que todas sus criaturas tuvieran
5 una razón de ser ... un sentido...
6 Dios formó lindas las flores ... delicadas como
7 son ... les dio toda perfección y cuanto él era
8 capaz ... pero al hombre ... le dio más cuando le
9 dio el corazón ... le dio claridad a la luz ...
10 JUERRza en su carrera al viento ... le dio vida y
11 movimiento dende la águila al gusano ... pero más
12 ... le dio al cristiano al DARle el
entendimiento...
Rafael 13 Sí quería un cura gaucho lo traía
14 a Enrique Muiño
[Na fala seguinte, o noivo pede ao padre para
encurtar o sermão e em seguida o padre pede para
os noivos fazerem as promessas.]
Figura 20 - Transcrição de trecho de diálogo (Exemplo 10).

Ao me deparar com esse trecho, minha primeira tarefa foi pesquisar a


origem e o contexto desses versos (que, no roteiro que recebi como apoio, vieram
agrupados em pares, de modo a deixar claro que se tratava de um poema) e
informações sobre Enrique Muiño, a quem eu desconhecia. Constatei na Internet
que se tratava do Martín Fierro e que Enrique Muiño, falecido em 1956, foi ator
de vários filmes argentinos na primeira metade do século XX e havia ficado
A subjetividade na tradução para legendas 147

conhecido por seus papéis épicos de gaucho. Interpretei o comentário de Rafael


— “Si quería un cura gaucho lo traía a Enrique Muiño” (que poderíamos traduzir
por “Se quisesse um padre gaucho, eu trazia o Enrique Muiño”) — como uma
crítica sarcástica a seu amigo, sinalizando que Enrique Muiño seria um ator
melhor do que ele, e uma referência ao público argentino, principalmente à
parcela mais velha, que talvez tenha assistido aos filmes com esse ator.
Inferindo sobre o que supus ser o público médio desse filme no Brasil,
veiculado através de um canal por assinatura, considerei essa referência obscura
demais, principalmente em função da carência de informações fornecidas pelo
contexto: enquanto a câmera enfoca o rosto dos personagens, o padre começa a
declamar versos que pouco têm a ver com o discurso típico de um casamento, ao
fim dos quais o noivo e seu filho se entreolham com ar de reprovação e a noiva
olha para os lados, parecendo impaciente; então o filho dos noivos comenta sobre
um ator desconhecido falecido há meio século e a cerimônia continua como de
praxe. Em minha opinião, uma tradução muito próxima dos diálogos originais não
só não causaria nenhum dos efeitos que imaginei serem seus objetivos como faria
o espectador se sentir deslocado. Por outro lado, tive o desejo de transmitir
algumas informações sobre o contexto daquela seqüência, no intuito de diminuir a
sensação de estranhamento.
Cheguei a considerar brevemente a hipótese de substituir os versos do
Martín Fierro por versos de algum poema tradicional brasileiro e criar um
comentário semelhante adaptado ao contexto brasileiro. Porém, além de manipular
de modo extremo uma extensa seqüência de legendas, pareceu-me que pôr versos
e referências brasileiros na boca de personagens argentinos, num filme claramente
passado em Buenos Aires, poderia provocar um estranhamento ainda maior, o que
chamaria atenção demais para as legendas e aumentaria muito sua
vulnerabilidade. Decidi então traduzir os versos sem efetuar adaptações
significativas e alterar somente o enunciado de Rafael, fazendo o possível para,
em cerca de dois segundos, fornecer ao espectador uma breve explicação sobre
aquela cena que não fugisse demais à natureza do comentário.
As legendas ficaram assim:
Carolina Alfaro de Carvalho 148

Tempo Duração # Legenda


02:54:52.02 3.21 1 Deus, que observa
02:54:55.23 nossos atos e pensamentos,
02:54:55.23 4.00 2 nos faz celebrar o matrimônio
02:54:59.23 de Norma e Antonio.
02:54:59.23 5.01 3 Ele quis que suas criaturas
02:55:04.24 tivessem razão de ser, sentido.
02:55:04.24 3.10 4 Deus fez lindas flores,
02:55:08.04 tão delicadas.
02:55:08.04 2.26 5 E lhes deu toda a perfeição
02:55:11.00 de que foi capaz.
02:55:11.00 2.28 6 Mas deu mais ao homem
02:55:13.28 ao lhe dar o coração.
02:55:13.28 3.08 7 Deu claridade à luz,
02:55:17.06 velocidade ao vento,
02:55:17.06 3.03 8 deu vida e movimento
02:55:20.09 desde a águia até o botão,
02:55:20.09 3.17 9 mas mais deu ao cristão
02:55:23.26 ao lhe dar o entendimento.
02:55:24.05 2.06 10 Tirou o casamento
02:55:26.11 do "Martín Fierro"?
Figura 21 - Legendas correspondentes à transcrição da figura anterior (Exemplo 10).

O padre não pronuncia os primeiros versos como se estivesse recitando um


poema e a entonação e o sotaque gaucho só ficam claros a partir de “le dio
claridad a la luz...”, na linha 9 da transcrição, então eu também não me preocupei
com a métrica e a rima das legendas, para que o texto fosse mais fluente. Assim,
as legendas 7, 8 e 9 refletem mais tanto a estrutura do poema quanto os sons e
imagens do material audiovisual: o ritmo e o sotaque do padre e os olhares
irritadiços dos noivos e seu filho.
Quanto à solução que adotei para o comentário “Si quería un cura gaucho
lo traía a Enrique Muiño” — “Tirou o casamento do ‘Martín Fierro’?” —, ela
dificilmente se enquadraria em alguma definição tradicional de tradução. Mesmo
se retomarmos o abrangente conceito de tradução suposta proposto por Toury
(Seção II.2.2), que envolve como postulados a existência de um texto-fonte, a
transferência e retenção de determinadas características do original na tradução, e
a existência de relações verificáveis que vinculem a tradução ao original, os dois
últimos ficam invalidados perante o cotejo, por mais superficial que este seja.
Posso evocar ainda o conceito de tradução como pretensão proposto por
Komissarov (Seção II.4), supostamente ainda mais amplo que o de Toury —
porém sinceramente não penso que, a partir do momento em que tomei a decisão
de reescrever esse enunciado, tive a pretensão de fazer uma tradução. Entendo que
A subjetividade na tradução para legendas 149

o que fiz foi substituir um enunciado por outro, totalmente diferente, que procura
informar ao público: esses versos são da obra Martín Fierro. Comuniquei essa
alteração a meu cliente, por escrito, e ela foi acatada.
Minha justificativa para a solução que adotei nesse caso se baseia
sobretudo em minha preocupação com os espectadores do filme. Dentro das
restrições dessa modalidade de tradução, procurei fazer algo semelhante a
incorporar ao texto uma nota explicativa, como tantas vezes fazem os tradutores
de literatura. Sei que muitos espectadores não saberão o que é Martín Fierro, mas,
perguntando entre conhecidos, constatei que vários têm ciência de que se trata de
uma obra literária clássica argentina. Inferi que a menção a um ator falecido há
tanto tempo também não seria totalmente óbvia ou não causaria muita graça para
o público argentino mais jovem que não o conhecesse. Então, eu também dediquei
minha reescrita a um público mais restrito, capaz de reconhecer a referência à
obra Martín Fierro. Considerei que, se o diretor do filme não viu por bem facilitar
a compreensão do público jovem ou pouco conhecedor de cinema argentino
antigo, eu também não precisaria simplificar o enunciado ao ponto de ele ser
plenamente compreendido por todo o público brasileiro, sacrificando assim a
referência a uma obra literária tradicional. Se algum espectador ficasse intrigado
demais com essa referência, poderia inclusive investigar o que é Martín Fierro e
aprender um pouco mais sobre a cultura argentina.
Acima de tudo, trata-se de uma decisão singular. Assim como no caso da
comparação entre a área do Timor Leste e a de Sergipe, é bem possível que outros
tradutores decidissem intervir de forma incisiva na tradução desse trecho, mas
altamente improvável que qualquer outra pessoa — ou eu mesma, num contexto
um pouco diferente — fizesse as mesmas considerações que fiz nessas
circunstâncias e chegasse ao mesmo resultado. Minha escolha final é
conseqüência não apenas da modalidade de tradução, do meio de veiculação, das
instruções de meu cliente e das línguas envolvidas, mas também de minha história
pessoal, minha interpretação e sentimento com relação ao filme, minha relação
com a cultura argentina, a concepção que tenho de minha identidade e minha
posição na cultura brasileira. Tudo isso informou as inferências que fiz com
relação ao público e as decisões que tomei com base no que julguei ser melhor
para ele. Essa formação singular fica portanto exposta, através de uma forma de
tradução vulnerável, a inúmeros outros sujeitos, com vivências e interpretações
Carolina Alfaro de Carvalho 150

também singulares, ainda que unidos por uma língua e uma cultura que tendemos
a agrupar na forma de um grande sistema.
Exemplos como esse nos levam a refletir sobre algumas questões éticas —
que, em consonância com a citação de Pym feita na Introdução deste trabalho,
precisam ser contextualizadas e situadas antes de se buscar uma generalização. A
postura ética que procurei adotar como tradutora foi no sentido postulado por
Antoine Berman. Para ele, a tradução antiética é a tradução etnocêntrica, que,
“sob pretexto de transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza
da obra estrangeira” (Berman, 2002:18), sendo a tradução ética aquela que
preserva a marca do estrangeiro. Segundo minha compreensão, trata-se de um
filme explicitamente argentino de um gênero que não se encaixa nos estereótipos
da maioria dos filmes comerciais, destinado a um público relativamente restrito
que julguei capaz de entender referências um pouco mais herméticas. Supus que
esses fatores não justificariam uma neutralização maior do texto original, como a
que tantas vezes se pratica na legendagem de produtos destinados a um público
mais vasto e heterogêneo.
Sob a perspectiva do relacionamento profissional com meu cliente —
neste caso específico, a produtora Drei Marc —, a ética diz respeito
principalmente à observância das normas estabelecidas. Mas se o tradutor não
violar nenhum procedimento profissional, parâmetro técnico ou norma gramatical
ou estilística estabelecidos no manual ou nos materiais de referência por este
indicados, ele tem um grau considerável de liberdade para reescrever o texto da
forma que lhe parecer mais apropriada. No caso de alterações significativas com
relação ao original, adaptações culturais ou reescritas mais “criativas” que possam
gerar indagações do controle de qualidade ou do cliente final, pede-se que o
tradutor faça as observações pertinentes no relatório que deve enviar juntamente
com o arquivo de legendas. Ao se demonstrar a intenção de reescrever o texto de
uma certa forma e apresentar as justificativas que informaram tal decisão, fica
caracterizada a singularidade como algo motivado, evitando-se assim que ela seja
entendida como um erro de compreensão ou uma distração. O controle de
qualidade do cliente direto ou indireto pode nem sempre concordar com a decisão
tomada, mas ao menos as qualificações profissionais básicas do tradutor não
ficam abaladas, o que comprometeria a continuidade da relação com seu cliente.
Mas e no caso do público? Como já foi dito, suas expectativas com relação
A subjetividade na tradução para legendas 151

à tradução se baseiam em noções há muito superadas pela teoria, porém é a ele


que se destina o produto. Ele é o consumidor e, como tal, tem o direito de fazer
exigências e reclamações sobre o produto que adquire. Desconhece
procedimentos, parâmetros e normas, não recebe ou tem acesso a nenhum tipo de
material referente à tradução — ao contrário do que muitas vezes acontece no
mercado literário, em que há resenhas, prefácios ou notas sobre a tradução ou o
tradutor — e muito menos tem contato direto com os profissionais envolvidos.
Acredito que aqui entra mais um desafio que o tradutor nesta área deve enfrentar:
de acordo com sua avaliação de cada situação — línguas, culturas, tipo de
material, características do produto, condições de trabalho, instruções dos clientes,
objetivos da tradução —, procurar o equilíbrio que melhor satisfaça a todos os
envolvidos. Tal avaliação é sem dúvida subjetiva, mas, em última instância, é de
subjetividades que se compõem os sistemas e são as relações, afinidades e tensões
entre os sujeitos que lhes dão vida.

V.3 Uma nova proposta

Os Estudos Descritivos de Tradução relativizaram e flexibilizaram o conceito de


tradução e vários outros vinculados a ele, como equivalência, fidelidade,
literalidade, aceitabilidade. Essas noções deixaram de ser impostas a priori e
levam-se em conta diferenças culturais e o contexto de cada fenômeno tradutório
estudado, incluindo motivações, prioridades, meios e objetivos. A análise apenas
do conteúdo do texto traduzido em contraste com o original é insatisfatória sem
que esse texto seja entendido numa situação interacional ampla, na qual incluem-
se produtores, fornecedores e consumidores; instituições, mercados e mecanismos
de controle; repertórios, normas e produtos.
Entretanto, como aponta Frota (2000: 135-6), os Estudos de Tradução de
modo geral “não abandonaram o dualismo certo/errado, ou, como preferem
chamar, aceitável/inaceitável”. É certo que o foco principal das investigações
descritivistas recai sobre a tradução como produto integrado à cultura-alvo e a
reação do sistema receptor aos produtos traduzidos costuma ser expressa em
termos binários, de modo que o pesquisador muitas vezes tende a reportar essa
reação nos mesmos termos. Mas sem dúvida as reflexões seriam muito mais ricas
Carolina Alfaro de Carvalho 152

se, além do estudo sistêmico dos fenômenos tradutórios a partir do sistema de


chegada, fossem considerados os sujeitos responsáveis por sua elaboração e sua
inserção nos sistemas.
Conforme visto na Seção II.4, Venuti critica as teorias de Even-Zohar e
Toury por não levarem em conta os avanços teóricos dos Estudos Sociais e
literários, tais como Pós-Estruturalismo, Marxismo, Feminismo e Psicanálise,
crítica à qual eu respondi argumentando que a estrutura polissistêmica e os
métodos descritivos permitem acomodar essas discussões. Anthony Pym, outro
teórico cujo discurso é freqüentemente contrário aos Estudos Descritivos,
argumenta a favor de uma mudança de foco, do sistema-alvo para as pessoas que
movimentam textos através de sistemas e culturas, não apenas realizando
traduções mas também selecionando, organizando, programando e desenvolvendo
textos e meta-textos. Diz o autor: “[s]e observarmos mais de perto essas pessoas e
a configuração desse espaço [o espaço intercultural], talvez possamos encontrar
mais do que determinismo imposto pelo sistema-alvo.”46 (Pym, 2001b: 278-9)
A discussão apresentada neste último capítulo da dissertação deixa claro
que eu também considero importante incorporar aos Estudos Descritivos
investigações que supram as lacunas identificadas por outros teóricos e inclusive
por mim própria, referentes à dimensão subjetiva inerente à tradução. Entendo que
reflexões sobre subjetividade, identidade, cognição, espaços interculturais,
relações interpessoais, políticas e éticas, questões étnicas e de gênero e tantas
outras que raramente fazem parte das pesquisas descritivas poderiam lançar luzes
que muito enriqueceriam os cenários observados. Isso talvez venha a implicar
uma flexibilização do rigor científico e metodológico geralmente associado aos
Estudos Descritivos, visto que haveria um grau de envolvimento e de
interpretação maior (ou ao menos mais explícito) por parte do pesquisador.
Porém, conforme mencionado na Seção II.4, acredito que tal flexibilização
poderia ser encarada como um avanço teórico, visto que a postura cientificista
postulada por Even-Zohar e Toury é freqüentemente criticada.
Contudo, meu objetivo não é suplantar os Estudos Descritivos, mas sim
ampliá-los e atualizá-los. Quase todos os estudos que vejo com foco no processo
e não no produto da tradução, como os que recorrem a protocolos verbais,

46
If we looked more closely at those people and the configuration of that space [intercultural
space], we might find rather more than target-system determinism.
A subjetividade na tradução para legendas 153

começam por demonstrar a insatisfatoriedade ou mesmo a invalidade das teorias


de tradução que enfatizam o produto. Diferentes alternativas metodológicas
empregadas na área de Estudos da Linguagem também adotam freqüentemente
posturas antagônicas: as qualitativas, de natureza etnográfica ou interpretativas em
contraposição às quantitativas ou estatísticas. Em minha opinião, privilegiar um
pólo oposto àquele criticado em abordagens com pretensões mais objetivas,
quantitativas ou generalistas deixando de lado as contribuições positivas dessas
abordagens significa apenas substituir determinadas limitações por outras. Não
existe um único modelo que dê conta de todos os fatores implicados em qualquer
atividade humana, por isso penso que é necessário buscar um diálogo maior entre
teorias e metodologias de pesquisa capazes de abordar aspectos diferentes da
tradução. Assim como afirmou-se, no Capítulo III, que um dos maiores desafios
da tradução audiovisual é a coordenação de esforços multidisciplinares ligados à
produção de materiais, à preparação de profissionais e ao desenvolvimento de
estudos, entendo que esse é um desafio a ser empreendido pelo campo de Estudos
da Tradução como um todo.
Os Estudos Descritivos ocupam hoje uma posição de destaque nesse
campo. Conforme visto, eles se prestam a diversas adaptações e recortes de
acordo com as diferentes culturas, situações e objetos de pesquisa. Além disso, a
Teoria dos Polissistemas permite contextualizar cada situação estudada em várias
escalas e sob diversas perspectivas — no caso do presente trabalho, no escopo da
cultura brasileira, foi possível deslocar o foco do polissistema literário para o
audiovisual, nos aproximarmos progressivamente de uma prática particular e,
dentro dessa prática, refletirmos sobre as escolhas interpretativas de um único
sujeito.
Minha proposta, portanto, consistiria em ampliar e enriquecer essas bases
teóricas com instrumentos utilizados em outras áreas dos Estudos Sociais, da
Lingüística e de Estudos da Tradução. É o caso, com relação à questão da
subjetividade, dos já mencionados protocolos verbais (think-aloud protocols), que
procuram compreender os processos cognitivos envolvidos numa atividade e
associados a fatores socioculturais, e dos estudos etnográficos, que consistem em
interpretações baseadas em depoimentos dos sujeitos pesquisados — cujo objeto
de investigação pode ser o próprio pesquisador, na chamada auto-etnografia
(autoethnography). De certa forma, o que fiz no presente trabalho ao empregar
Carolina Alfaro de Carvalho 154

minhas próprias traduções, examinadas a partir de minhas lembranças dos motivos


que me levaram a cada resultado, ainda que sem me adequar formalmente às
convenções de tais instrumentos guarda semelhanças com essas duas ferramentas
metodológicas que, a meu ver, poderiam muito bem ser integradas à base
sistêmica e funcional na qual se fundamentou a presente investigação.
Com uma gama mais vasta de recortes em função de uma maior variedade
de objetos de estudo, a própria concepção das culturas como polissistemas poderia
se enriquecer, superando assim algumas das críticas levantadas no Capítulo II.
Isso porque seria possível investigar não só o papel das relações de poder entre
instituições, normas e práticas na configuração dos sistemas, como também a
influência de estratégias e decisões subjetivas adotadas nos processos tradutórios
sobre a relação entre os integrantes dos sistemas, a negociação de fronteiras e
mesmo a construção de identidades culturais.
VI CONCLUSÕES

Esta dissertação apresentou uma visão descritiva, sistêmica e funcional da


tradução para legendas com foco no mercado brasileiro.
Com base na Teoria dos Polissistemas, de autoria de Itamar Even-Zohar,
sua concepção do polissistema cultural foi adaptada de modo a incluir o
polissistema audiovisual, no qual concebi o sistema de tradução audiovisual como
um de seus subsistemas. Tais sistemas foram caracterizados a partir das
formulações já existentes dos polissistemas literário e de tradução literária, no
qual está centrada a maioria das pesquisas associadas aos Estudos Descritivos de
Tradução. O sistema de tradução audiovisual é composto por diversos integrantes,
procedimentos e modalidades de tradução audiovisual que se inter-relacionam, os
quais foram aqui apresentados. Uma dessas modalidades é a tradução para
legendas, objeto central do presente estudo.
A partir de conceitos e métodos dos Estudos Descritivos de Tradução,
abordagem associada principalmente a Gideon Toury desenvolvida com base na
Teoria dos Polissistemas e que considero um útil arcabouço teórico que, em meu
entender, representa um meio termo entre o Estruturalismo e as vertentes mais
radicais do Pós-estruturalismo, foram descritos os principais integrantes e
atividades ligados à tradução audiovisual. O modelo metodológico elaborado por
José Lambert e Hendrik van Gorp para o estudo descritivo de traduções literárias
também foi revisto e adaptado para o contexto da tradução audiovisual. A
tradução para legendas foi contrastada com a tradução literária, no intuito de
explicitar a mudança de foco do polissistema literário para o audiovisual, e com a
dublagem, outra modalidade de tradução audiovisual muito praticada na cultura
brasileira. A legendagem foi descrita sistêmica e funcionalmente, levando-se em
conta sua inserção em contextos mais amplos, as pessoas e instituições envolvidas
em sua realização, os diversos conjuntos de normas que regem sua elaboração
(referentes aos meios em que é veiculada, a suas particularidades formais,
lingüísticas e estilísticas, e aos clientes que a encomendam e mecanismos que a
controlam) e as tarefas empreendidas pelos profissionais nela especializados.
Carolina Alfaro de Carvalho 156

Minha atenção voltou-se então para a figura do tradutor como indivíduo


integrado a esses vários sistemas, o qual precisa saber interagir com múltiplos
outros participantes, estar familiarizado com diversos procedimentos e manipular
os vários conjuntos concorrentes de normas. Com base na investigação de Maria
Paula Frota, tracei então algumas reflexões sobre o aspecto singular da tarefa
desse tradutor no intuito de superar dicotomias baseadas na distinção
sujeito/objeto — tais como sujeito/linguagem e indivíduo/sociedade — e assim
tentar trazer à pauta dos Estudos da Tradução a dimensão tão fundamental da
subjetividade do tradutor, subjetividade concebida como constituída por fatores
socioculturais mas também pela faceta mais íntima da vida do sujeito.
A consideração de todo esse conjunto heterogêneo e por vezes até mesmo
contraditório de sistemas, grupos, instituições, indivíduos, práticas, meios,
hierarquias, interesses, expectativas e motivações é a meu ver fundamental para
todos aqueles de alguma forma envolvidos com a tradução: profissionais, teóricos
e críticos; professores e alunos; experientes e iniciantes. A importância da
discussão de questões teóricas complexas é indiscutível, assim como o preparo de
tradutores na academia, mas ambas as atividades perdem parte de seu propósito se
não levarem em conta as práticas adotadas pelo mercado profissional e as noções
do senso comum em que se baseiam as expectativas dos consumidores, aspectos
que procurei considerar nesta pesquisa. O mercado, por sua vez, só tem a se
beneficiar da interação com tradutores bem preparados e críticos, que não
pretendam apenas impor “verdades” teóricas contrárias à visão geral mas que
saibam promover um diálogo proveitoso para todas as partes. O tradutor precisa
saber transitar em múltiplos sistemas e interagir com diversas subjetividades,
sobredeterminadas por forças muito distintas, aplicando seus conhecimentos mas
ao mesmo tempo ajustando e equilibrando interesses concorrentes, de modo a
produzir resultados de qualidade que sirvam aos propósitos de cada um dos
envolvidos nesse complexo jogo que é a tradução.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, L. M. (2003). Tradução e adaptação: entre a identidade e a diferença,


os limites da transgressão. Dissertação de Mestrado, Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto.

ARAÚJO, V. L. S. (2000). Ser ou não ser natural, eis a questão dos clichês de
emoção na tradução audiovisual. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

BAMBA, M. (1997). Da interação da língua falada com a língua escrita a outras


formas de interação semiótica na geração de texto de legendas de filmes.
Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo.

BERMAN, A. (2002). A prova do estrangeiro. Trad. M. E. Pereira Chanut, São


Paulo: EDUSC (original 1984).

CATRYSSE, P. (2001). Multimedia & translation: methodological considerations.


In: (Multi) Media translation: concepts, practices and research. Y. Gambier & H.
Gottlieb (eds.), Philadelphia: John Benjamins.

DELABASTITA, D. (1990). Translation and the mass media. In: Translation, history
& culture. Lefevere, A. & Bassnett, S. (eds.), London/New York: Pinter.

DÍAZ CINTAS, J. (1997). El subtitulado en tanto que modalidad de traducción


fílmica dentro del marco teórico de los Estudios sobre Traducción (Misterioso
asesinato en Manhattan, Woody Allen, 1993). Tese de Doutorado, Valencia:
Universitat de Valencia.

DÍAZ CINTAS, J. (2003). Audiovisual translation in the third millennium. In:


Translation today: trends and perspectives. G.M. Anderman (org.), Clevedon:
Multilingual Matters.

DREI MARC. (2003). Manual de legendagem. Rio de Janeiro, arquivo de texto,


inédito.

ECO, U. (2000). Os limites da interpretação. Trad. P. de Carvalho, São Paulo:


Carolina Alfaro de Carvalho 158

Perspectiva (original 1992).

ECO, U. (1993). Interpretação e superinterpretação. Trad. M. F., São Paulo:


Martins Fontes (original 1990).

EVEN-ZOHAR, I. (1990). Polysystem studies. Poetics Today, 1:11.

FISH, S. (1993). Como reconhecer um poema ao vê-lo. Trad. S. Moreira, In:


PaLavra, n. 1, Departamento de Letras da PUC-Rio, 156-165 (original 1980).

FROTA, M. P. (1999). Por uma redefinição de subjetividade nos Estudos da


Tradução. In: Tradução e multidisciplinaridade. M. Martins (org.), PUC-Rio, Rio
de Janeiro: Lucerna.

FROTA, M. P. (2000). A singularidade na escrita tradutora – linguagem e


subjetividade nos estudos da tradução, na lingüística e na psicanálise.
Campinas/São Paulo: Pontes/FAPESP.

GAMBIER, Y. & GOTTLIEB, H. (orgs.) (2001). (Multi)Media translation: concepts,


practices and research. Philadelphia: John Benjamins.

GAMBIER, Y. (2002). Screen translation: an overview. In: Tradução e


Comunicação, n. 11, UNIBERO, 93-103.

GAMBIER, Y. (org.) (2003). Screen translation. The Translator, v. 9, n. 2, Special


Issue.

GOTTLIEB, H. (1992). Subtitling — a new university discipline. In: Teaching


translation and interpreting. C. Dollerup, & A. Loddegaard (eds.), Amsterdam-
Philadelphia: John Benjamins, apud Díaz Cintas, J. (1997).

GOTTLIEB, H. (1994). Subtitling: diagonal translation. In: Perspectives: Studies in


Translatology, v. 2, 101-121, apud Rodrigues, R. (1998). Também apud Araújo,
V. L. S. (2000).

HERMANS, T. (1991). Translational norms and correct translations. In: Translation


Studies: the state of the art — proceedings of the First James S Holmes
Symposium on Translation Studies. K. M. Leuven-Zwart & T. Naaijkens (eds.),
Amsterdam-Atlanta: Rodopi.

HOLMES, J. (1988). Translated! Papers on Literary Translation and Translation


Studies, n. 7. Amsterdam: Rodopi.
A tradução para legendas: dos polissistemas à singularidade do tradutor 159

IMDB — International Movie Data Base. www.imdb.com.

JAKOBSON, R. (1969). Lingüística e comunicação. Trad. I. Blikstein e J. P. Paes,


São Paulo: Cultrix.

KARAMITROGLOU, F. (1998) A proposed set of subtitling standards in Europe. In:


Translation Journal, v. 2, n.2, periódico virtual sem numeração de páginas,
http://www.accurapid.com/journal/.

KOMISSAROV, V. N. (1996). Assumed translation: continuing the discussion. In:


Target, v. 8, n. 2, p. 365-374, apud Amorim, L. M. (2003).

LAMBERT, J. & VAN GORP, H. (1985) On describing translations. In: The


manipulation of literature — studies in literary translation. T. Hermans (ed.),
London-Sydney: Croom Helm.

LAMBERT, J. (1991). Shifts, oppositions and goals in translation studies: towards a


genealogy of concepts. In: Translation Studies: the state of the art — proceedings
of the First James S Holmes Symposium on Translation Studies. K. M. Leuven-
Zwart & T. Naaijkens (eds.), Amsterdam-Atlanta: Rodopi.

LEFEVERE, A. (1992). Translation, rewriting, and the manipulation of literary


fame. London-New York: Routledge.

MARTINS, M. A. P. (1999). A instrumentalidade do modelo descritivo para a


análise de traduções: o caso dos hamlets brasileiros. Tese de Doutorado,
Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo.

MOUZAT, A. M. (1995). A forma e o sentido na tradução: a tradução de filmes


por legendas. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

PYM, A. (ed.) (2001a). The return to ethics. The Translator v. 7, n. 2, Special


Issue.

PYM, A. (2001b). Four remarks on translation research and multimedia. In: (Multi)
Media translation: concepts, practices and research. Y. Gambier & H. Gottlieb
(eds.), Philadelphia: John Benjamins.

RAJAGOPALAN, K. (2003). Por uma Lingüística crítica – linguagem, identidade e


a questão ética. São Paulo: Parábola.
Carolina Alfaro de Carvalho 160

RODRIGUES, R. (1998). Por trás das imagens: um estudo da legendação no Brasil.


Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo.

SNELL-HORNBY, M. (1991). Translation Studies — art, science or utopia? In:


Translation Studies: the state of the art — proceedings of the First James S
Holmes Symposium on Translation Studies. K. M. Leuven-Zwart & T. Naaijkens
(eds.), Amsterdam-Atlanta: Rodopi.

TOURY, G. (1980). In search of a theory of translation. Tel Aviv: The Porter


Institute for Poetics and Semiotics.

TOURY, G. (1991). What are descriptive studies into translation likely to yield
apart from isolated descriptions? In: Translation Studies: the state of the art —
proceedings of the First James S Holmes Symposium on Translation Studies. K.
M. Leuven-Zwart & T. Naaijkens (eds.), Amsterdam-Atlanta: Rodopi.

TOURY, G. (1995a). The nature and role of norms in translation. In: Descriptive
Translation Studies and beyond. Amsterdam-Philadelphia: John Benjamins.

TOURY, G. (1995b). The notion of “assumed translation” — an invitation to a new


discussion. In: Letterlijkheid, woordelijheid (literality, verbality). H. Bloemen, E.
Hertog & W. Segers (eds.), Antwerpen-Harmelen: Fantom.

TOURY, G. (1998). A handful of paragraphs on “translation” and “norms”.


Translation and norms. C. Schäffner (ed.), Clevedon: Multilingual Matters.

VENUTI, L. (1997). Unequal developments: current trends in translation studies.


In: Comparative Literature, v. 49, n. 4, 360-369, versão digital, sem indicação de
páginas.

VENUTI, L. (2002). Escândalos da tradução. Trad. L. Pelegrin, L. Marcelino


Villela, M. Dias Esqueda, V. Biondo, São Paulo: EDUSC.

VIEIRA, E. R. P. (1996). Contextualizando a tradução. In: Teorizando e


contextualizando a tradução. E. R. P. Vieira (org.), Belo Horizonte: UFMG.

S-ar putea să vă placă și