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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Março de 2005
Carolina Alfaro de Carvalho
Ficha catalográfica
CDD: 400
Para minhas duas famílias
— vocês são o que eu mais prezo.
Agradecimentos
Palavras-chave
Keywords
I Introdução...................................................................................................... 14
I.1 Pesquisas no campo da tradução audiovisual ........................................ 18
I.2 Esclarecimento terminológico ............................................................... 23
I.3 Estrutura da dissertação ......................................................................... 26
II Fundamentos Teóricos e Metodológicos....................................................... 28
II.1 A Teoria dos Polissistemas.................................................................... 29
II.1.1 O polissistema literário .................................................................... 30
II.1.2 O polissistema de tradução literária................................................. 34
II.2 Os Estudos Descritivos de Tradução..................................................... 38
II.2.1 O foco no sistema-alvo .................................................................... 41
II.2.2 O conceito de assumed translation.................................................. 44
II.2.3 O conceito de norma e as normas de tradução ................................ 47
II.2.4 Os mecanismos de controle ............................................................. 54
II.3 O modelo metodológico de Lambert e van Gorp .................................. 56
II.4 Comentários sobre a Teoria dos Polissistemas e os Estudos
Descritivos de Tradução ........................................................................ 58
III Ampliação dos Fundamentos Teóricos e Aplicação ao Estudo da
Tradução Audiovisual................................................................................ 66
III.1 O polissistema audiovisual .................................................................... 67
III.2 O polissistema de tradução audiovisual................................................. 70
III.2.1 A relação entre o polissistema audiovisual e o polissistema
literário............................................................................................. 71
III.2.2 Configuração interna do polissistema de tradução audiovisual....... 75
III.2.3 O processo da tradução audiovisual ................................................ 82
III.2.4 Modelo de Lambert e van Gorp adaptado à tradução audiovisual .. 88
IV A Tradução para Legendas ........................................................................ 92
IV.1 A legendagem em contraposição à dublagem ....................................... 94
IV.2 A legendagem em contraposição à tradução literária............................ 97
IV.3 A legendagem como tradução diagonal................................................. 99
IV.4 Normas da tradução para legendas ...................................................... 101
IV.4.1 Normas referentes ao meio ............................................................ 102
IV.4.2 Normas referentes à elaboração das legendas ............................... 112
IV.4.3 Normas dos clientes e mecanismos de controle ............................ 126
IV.5 Reflexões sobre a posição do tradutor no sistema de tradução para
legendas ............................................................................................... 133
V A Subjetividade na Tradução para Legendas .............................................. 137
V.1 O sujeito-tradutor................................................................................. 138
V.2 A vulnerabilidade da legendagem ....................................................... 144
V.3 Uma nova proposta.............................................................................. 151
VI Conclusões............................................................................................... 155
Referências Bibliográficas................................................................................... 157
Lista de figuras
dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato
de interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionista
mais radical aceita a idéia de que existem interpretações clamorosamente
inaceitáveis. Isso significa que o texto interpretado impõe restrições a
Carolina Alfaro de Carvalho 16
1
Ao longo deste trabalho, estou convencionando manter as citações sempre em português. No
caso de textos escritos ou traduzidos em português, a citação não é acompanhada por nota de
rodapé. Já no caso de textos em outras línguas — inglês ou espanhol —, decidi manter como nota
de rodapé o texto original, para dar ao leitor a liberdade de verificar os termos ou formas
originalmente empregados por seus autores.
Introdução 17
E:
O retorno à ética, para que tenha alguma substância, deve ser um retorno
a um pensamento de uma natureza muito aplicada [...]. A ética deve estar
enraizada na individualidade histórica daquilo que os tradutores fazem, e
só então em apelos a princípios abstratos ou atemporais.3 (ibid: 136)
2
Ethics is now a broadly contextual question, dependent on practice in specific cultural locations
and situational determinants. There would seem to be increasing agreement to focus on people
rather than texts […].
3
The return to ethics, if it is to have any substance, must be a return to thought of a very applied
nature […]. Ethics must take root in the historical individuality of what translators do, and only
then in appeals to abstract or timeless principles.
Carolina Alfaro de Carvalho 18
tradução.
Essa prática é a da tradução para legendas, atividade que exerço
regularmente há alguns anos e em relação à qual desenvolvi um grande interesse
teórico. Essa atividade constitui o objeto de estudo central desta dissertação e é
apresentada a seguir.
4
Convergence between media, telecommunications and ICT keeps increasing the multimedial, or
polysemiotic, nature of electronic communication.
Introdução 19
5
una cierta paradoja, que subraya el sorprendente desequilibrio que existe entre la poca
investigación que se le ha dedicado a este fenómeno del comportamiento humano y su enorme
impacto social. En términos numéricos, la traducción que se lleva a cabo en los medios
audiovisuales es quizás la actividad traductora más importante de nuestros días. Por dos razones.
En primer lugar por el número de personas al que llega, dada la facilidad de recepción a través,
fundamentalmente, de la televisión. En segundo lugar, por la gran cantidad de productos
traducidos que se trasvasan a otras culturas: documentales, entrevistas, películas, noticias, debates,
galas, etc...
Carolina Alfaro de Carvalho 20
6
In spite of the many contributions presented in this volume, research in (multi)media translation
remains difficult […], for lack of appropriate theoretical frames and methodological tools. Until
today, this research has not been confronted, for instance, by relevance theory, polysystemic
approach, critical discourse analysis (so useful in Media Studies) or cognitive psychology.
Introdução 21
7
Indeed, with audiovisual and multimedia texts, the borders are blurred between centre and
periphery in terms of production and reception, between public and private sectors in terms of
organization, between distance and proximity in terms of space, between live and pre-recorded in
terms of broadcasting, between reality and fiction in terms of reference, between written and oral
in terms of code, between verbal and non-verbal in terms of systems of signs.
Carolina Alfaro de Carvalho 26
seguinte.
O Capítulo V aborda a questão da subjetividade na área da tradução para
legendas, levando em conta tanto a singularidade do tradutor (Seção V.1) quanto a
particular vulnerabilidade da legendagem (Seção V.2), a qual expõe essa
singularidade mais do que a maioria das outras modalidades de tradução. Essas
seções representam apenas uma abordagem inicial a um assunto tão complexo, e o
capítulo se encerra com uma nova proposta que reivindica a integração de
reflexões sobre a subjetividade na tradução aos fundamentos teóricos nos quais se
baseia este trabalho.
Finalmente, o Capítulo VI apresenta as conclusões da presente pesquisa.
II
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
O principal modelo teórico que adotarei como base para este trabalho é a Teoria
dos Polissistemas, elaborada por Itamar Even-Zohar, a qual constitui um
arcabouço vasto e maleável o suficiente para permitir sua adequação a contextos
históricos, sociais e investigativos diferentes daqueles em que foi originalmente
concebida, além de inúmeros recortes que abordem eixos ou escopos específicos
dentro da sua concepção mais geral. Assim sendo, apresentarei na próxima seção
uma síntese dessa teoria destacando questões pertinentes aos interesses da
presente pesquisa, e a partir dessa síntese farei no Capítulo III uma adaptação da
teoria de modo a incluir o que chamo de polissistema audiovisual, no qual
proponho inserir o polissistema de tradução audiovisual — foco central deste
estudo —, fazendo nele recortes específicos.
Além disso, dada a inter-relação existente entre a Teoria dos Polissistemas
e os Estudos Descritivos de Tradução, cuja concepção teórica é em sua maior
parte de autoria de Gideon Toury, emprestarei destes os principais conceitos e
propostas metodológicas, os quais considero muito ricos e úteis como
instrumentos de pesquisa. Para tanto, na Seção II.2 apresentarei esse paradigma
teórico, novamente dando maior atenção a seus aspectos e conceitos mais
relevantes para este trabalho — inclusive a questão da singularidade do tradutor,
que será abordada no Capítulo V.
Na Seção II.3 apresentarei a proposta metodológica elaborada por José
Lambert e Hendrik van Gorp para auxiliar na realização de estudos de casos de
traduções literárias segundo o paradigma descritivo, visando conferir uma maior
padronização a essas análises. O modelo proposto é prático, sintético e flexível, e
tornou-se referência entre muitos pesquisadores alinhados com a abordagem
descritivista. No Capítulo III, adaptarei também esse modelo para a área da
tradução audiovisual, a qual carece de padronização metodológica.
Na quarta e última seção do presente capítulo, reúno alguns comentários e
críticas feitos por outros autores às teorias que fundamentam esta dissertação e
Fundamentos teóricos e metodológicos 29
8
the network of relations that can be hypothesized for a certain set of assumed observables
(‘occurrences’/‘phenomena’)
9
a multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly
overlap, using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose
members are interdependent
Fundamentos teóricos e metodológicos 31
Portanto, o contexto externo ao texto propriamente dito não pode ser deixado de
lado, visto que todos esses elementos em conjunto constituem, digamos assim, o
ato de comunicação literária. As definições dadas por Even-Zohar para esses
componentes são:
(i) Instituição: “o agregado de fatores envolvidos na manutenção da literatura
como uma atividade sociocultural”10 (Even-Zohar, 1990: 37). Ela governa
as normas que permeiam tal atividade. Esse componente do polissistema
literário, que por sua vez também constitui um sistema, congrega alguns dos
próprios produtores literários, críticos, editoras, periódicos, clubes e grupos
de escritores, órgãos governamentais e os meios de comunicação de massa,
entre outros.
(ii) Repertório: “o agregado de regras e materiais que governam a elaboração e
o uso de qualquer produto”11 (ibid: 39). Essa definição pressupõe a
existência de acordos e conhecimentos partilhados entre membros de uma
comunidade.
(iii) Produtor: empregado por Even-Zohar para se referir aos autores e criadores
de textos literários, esse conceito é mais abrangente que o de escritor, de
modo semelhante aos conceitos de consumidor e de produto, abaixo. O
produtor é um agente político, engajado em um discurso de poder destinado
a legitimar o repertório que emprega.
(iv) Consumidor: também é mais do que apenas um leitor, visto que o consumo
de obras literárias se dá através de outras atividades além da leitura integral
de cada obra — leitura que muitas vezes não é o único objetivo do
consumidor nem a prerrogativa exclusiva para que ele faça parte de certos
grupos sociais como consumidor de um determinado cânone. Por exemplo,
ele pode aprender em uma instituição sobre determinado autor ou obra,
interagir com outros consumidores, ter acesso a fragmentos, críticas,
traduções e outros materiais paralelos que lhe permitem integrar um ou mais
subsistemas e partilhar dos conhecimentos e interpretações vigentes sobre a
obra, sem que ele necessariamente a tenha lido integralmente ou em sua
versão original.
(v) Mercado: “o agregado de fatores envolvidos na venda e compra de produtos
10
the aggregate of factors involved with the maintenance of literature as a socio-cultural activity
11
the aggregate of rules and materials which govern both the making and use of any given product
Fundamentos teóricos e metodológicos 33
12
the aggregate of factors involved with the selling and buying of literary products and with the
promotion of types of consumption
Carolina Alfaro de Carvalho 34
Desse modo, se por um lado as instituições literárias, por exemplo, podem ser
vistas como constituindo um sistema próprio devido às relações que apresentam
entre si, por outro são entendidas como parte do polissistema literário e em grande
medida obedecem às normas deste. O mesmo ocorre com o polissistema de
tradução literária, que veremos a seguir.
13
a reproduction of the dominant textual relations of the original
14
translation is no longer a phenomenon whose nature and borders are given once and for all, but
an activity dependent on the relations within a certain cultural system
Fundamentos teóricos e metodológicos 37
15
In a target system B, either within the same polysystem or in a different polysystem —
depending on whether it is stable or in crisis, and whether it is strong or weak, vis-à-vis a source
system A — a target text b will be produced according to transfer procedures plus the constraints
imposed upon them by the intra-target-polysystem relations, both governing and governed by the
target-polysystem repertoire of existing and non-existing functions.
Carolina Alfaro de Carvalho 38
Cultura
Outros sistemas,
outras culturas
Polissistema
literário
Outros
s i s te m a s ,
outras culturas
Sistema dede
tradução outros
literária
Outros
s i s te m a s ,
outras Outros
culturas s i s te m a s ,
outras
culturas
16
for the translator [...], a theory is useless which cannot see beyond the limits of the sentence
Carolina Alfaro de Carvalho 40
formas de tradução, inclusive as que até pouco tempo atrás eram freqüentemente
excluídas do escopo da área, tais como a interpretação e a tradução audiovisual.
Um parêntese que considero importante é que, na longa lista dos campos que
compõem os Estudos da Tradução, Snell-Hornby inclui algumas das formas de
tradução audiovisual como fazendo parte da tradução literária:
17
Such an interdiscipline could no longer be represented as a neat two-dimensional [literary
translation and “other” translation] field of study, but would rather be a multi-dimensional
complex linking such varied fields as the following: special language studies, terminology and
lexicography, machine translation and machine-aided translation; relevant areas of linguistics such
as semantics, contrastive grammar, text linguistics, socio- and psycholinguistics; literary
translation (including all forms of stage translation, film dialogue and dubbing, sub-titles and so
forth) and neighbouring fields of interest from literary history to psychology.
Fundamentos teóricos e metodológicos 41
texto que seja aceito como tradução por uma dada cultura. Essa idéia, que Toury
apresenta como “hipótese de trabalho”, está ligada a seu conceito de assumed
translation, o qual veremos em mais detalhe na Seção II.2.2. Ele desenvolve então
uma metodologia para o estudo de traduções que se baseia fortemente em sua
exploração do conceito de norma, também de grande relevância no presente
trabalho, e que examinaremos na Seção II.2.3. Mas, antes disso, apresentarei
brevemente a visão de Toury sobre o funcionamento sistêmico da tradução e a
metodologia que ele propõe para o estudo dessa atividade no contexto do
paradigma que ele defende, conhecido como target oriented.
Reagindo contra a forte tendência que havia até os anos 1970 de estudar a
tradução sempre a partir do texto original e reivindicando que só é possível
estudar uma dada tradução a partir da constatação de que ela exerce essa função
num sistema, Toury defende e adota uma abordagem conhecida como target
oriented — de difícil tradução em português, mas poderíamos dizer que seu foco
principal está no sistema do texto-alvo. A necessidade da tradução é geralmente
determinada pela cultura-alvo e ela é ali produzida com o objetivo de ocupar um
lugar ou preencher alguma lacuna nesse sistema. Mesmo em casos em que a
tradução é realizada ou imposta pela cultura de origem — como por vezes ocorre
com obras literárias brasileiras, por exemplo, que são traduzidas aqui para então
serem exportadas para outras culturas —, a tradução só funcionará como tal se o
sistema-alvo lhe der esse uso. Em suma, é a partir da cultura-alvo que é possível
constatar que um determinado texto é tratado como uma tradução, sendo a partir
desse fato que a pesquisa tem início (Toury, 1995b).
No entanto, Toury (1991) argumenta contra a visão às vezes disseminada
de que os Estudos Descritivos se preocupam apenas com o lugar da tradução na
cultura-alvo. Ele também contesta a divisão dos Estudos Descritivos em function
oriented, process oriented e product oriented como subáreas separadas — tal
como consta no gráfico da disciplina feito por James Holmes (1988). De fato,
essas três abordagens são interdependentes: a função que um texto traduzido
desempenhará na cultura-alvo orienta o processo através do qual o produto
traduzido é elaborado. Toury não exclui de sua abordagem o texto e a cultura de
Carolina Alfaro de Carvalho 42
18
a study in translation activities which have already yielded their products would start with the
observables, first and foremost, the translated utterances themselves, along with their constituents,
as situated within their immediate contexts. From there on, the study could proceed to facts which
are observational ‘in the second order’ (i.e. facts which need (re)construction before they can be
submitted to scrutiny), most notably the relationships which tie together the output and input of
individual acts, the ultimate intention being to end up reconstructing the non-observables at their
root, particularly the exact processes whereby they came into being.
Carolina Alfaro de Carvalho 44
O segmento grifado na citação acima é um ponto que será bastante explorado mais
adiante no presente trabalho, principalmente nos Capítulos IV e V.
É claro que todo esse percurso — desde a identificação da tradução como
fato contextualizado da cultura-alvo até suas intenções iniciais, investigando o
processo nos vários níveis sistêmicos, apresentando explicações e contribuindo
para a elaboração de uma teoria cada vez mais vasta e complexa — não precisa
ser feito em cada trabalho de pesquisa desenvolvido, ainda que Toury (1991)
afirme que todo estudo bem realizado acaba funcionando como uma verificação
das teorias subjacentes. Conforme comentamos na seção anterior, sobre a Teoria
dos Polissistemas, é possível fazer vários recortes, de modo a enfocar somente
uma parte desse processo. A presente pesquisa não tem a ambição de transcender
o polissistema cultural brasileiro, debruçando-se predominantemente sobre um de
seus sistemas — o polissistema audiovisual — e examinando em detalhe uma
modalidade específica de tradução — a legendagem. Além disso, ao longo deste
estudo meu foco de interesse se deslocará da caracterização dessa atividade, com
seus produtos, consumidores, mercados, instituições e normas, para seu processo
de produção, o qual é freqüentemente deixado de lado em pesquisas descritivas.
19
A theory thus refined will also make possible the performance of yet more elaborate descriptive-
explanatory studies, which will, in turn, bear on the theory making it ever more intricate; and so on
and so forth, towards an ever better understanding of the ways translation and translators, as
individuals and members of societal groups alike, manoeuvre within the various constraints
imposed on them.
Fundamentos teóricos e metodológicos 45
autor, esse tipo de postura visa imobilizar aquilo que é necessariamente variável,
além de gerar uma circularidade em que os fatos são analisados de modo a
confirmar os pressupostos dos quais parte a investigação. A citação abaixo deixa
mais claros esses argumentos:
20
any a priori definition, especially if couched in essentialist terms, allegedly specifying what is
‘inherently’ translational, would involve an untenable pretense of fixing once and for all the
boundaries of an object which — culturally speaking — is characterized by its very variability:
difference across cultures, variation within a culture and change over time. Not only would the
field of study be considerably shrunk that way, in relation to what cultures have been, and are
willing to accept as translational, but research limited to these boundaries may also breed circular
reasoning: to the extent that the definition is indeed adhered to, whatever is studied — selected for
study because it is known to fall within it, in the first place — is bound to reaffirm the definition.
21
the number of these distinctions could be multiplied almost indefinitely, and, at any rate, they do
Carolina Alfaro de Carvalho 46
not offer very much by way of explanatory power, when it comes to culturally contextualized
phenomena
22
‘equivalence’ is merely the name given to the ‘translational relation’ that exists between two
texts, one of which is a translation of the other.
Fundamentos teóricos e metodológicos 47
supostos, mas não é imprescindível que sejam confirmados. De fato, a maioria dos
consumidores de textos traduzidos nem pensaria em fazer essa comprovação, visto
que, nas palavras de Toury (1995b: 137), “quando um texto é oferecido como uma
tradução, ele é prontamente aceito como tal de boa fé, sem mais perguntas”23.
Assim, se uma comunidade supõe que um texto é uma tradução, então ele pode
ser incluído no escopo dos Estudos da Tradução como um objeto de estudo válido.
Sintetizando os três postulados, a definição de tradução suposta, objeto de
estudo do pesquisador de tradução, é:
23
when a text is offered as a translation, it is quite readily accepted bona fide as one, no further
questions asked
24
any target-culture text for which there are reasons to tentatively posit the existence of another
text, in another culture and language, from which it was presumedly derived by transfer operations
and to which it is now tied by certain relationships, some of which may he regarded — within that
culture — as necessary and/or sufficient.
Carolina Alfaro de Carvalho 48
quais foram extraídas de dois textos de Toury (1995a e 1998), exceto quando
indicado de outra forma.
De modo geral, as normas são oriundas das convenções sociais, as quais
são permanentemente negociadas em função de ações realizadas. Segundo explica
Theo Hermans (1991), as convenções decorrem de comportamentos regulares que
se mostram soluções eficientes para problemas recorrentes, tornando-se a ação
preferida por um grupo de indivíduos em determinadas situações. Essa
regularidade passa a gerar expectativas de comportamento, aumentando a
previsibilidade das ações e restringindo as opções de resposta às situações
recorrentes, isto é, adquirindo força normativa.
Portanto, as normas refletem os valores e as idéias partilhados por uma
comunidade, traduzidos em instruções implícitas que regem o comportamento de
membros de um grupo em certas circunstâncias, e podem ter abrangência e força
muito variáveis. Cada indivíduo apreende as normas existentes em sua
comunidade durante sua socialização, através de sanções reais ou potenciais
positivas (recompensas para quem as cumpre) ou negativas (restrições para quem
não as observa). Ainda assim, uma norma não é uma lei, capaz de regulamentar
um comportamento como sendo o único lícito e de impor punições a quem não o
cumprir. É claro que, dependendo do poder de uma norma, aquele que optar por
não segui-la pode sofrer alguma conseqüência no contexto em que a situação
ocorre, mas de modo geral as normas admitem uma gama relativamente vasta de
comportamentos discrepantes sem que sejam por estes invalidadas. Nas palavras
de Hermans, “a existência de uma norma não impede o comportamento errático
ou idiossincrático, e uma norma não pode impedir que alguém decida rompê-la
deliberadamente”25 (ibid: 162). Segundo esse autor, tal tolerância é importante
para manter um certo grau de heterogeneidade no sistema, o que lhe permite se
adaptar e transformar com o tempo.
As normas propriamente ditas não são verbalizadas. Elas podem ser menos
ou mais explícitas, e freqüentemente as mais explícitas são enunciadas na forma
de regras, em geral com o objetivo de sistematizar ou controlar o comportamento
dos membros de um grupo. Toury ressalta que, quando ocorre essa explicitação
por meio de enunciados, estes não refletem estritamente a natureza das normas
25
the existence of a norm does not preclude erratic or idiosyncratic behavior; nor can a norm
prevent anyone from setting out deliberately to break it.
Fundamentos teóricos e metodológicos 49
26
In a very strong sense, the other two types of constraints [rules and idiosyncrasies] are mere
variations of norms, and not independent entities. Consequently, they may easily — and justifiably
— be redefined in their terms: rules as ‘[more] objective’, idiosyncrasies as ‘[more] subjective [or:
less inter-subjective]’ norms.
Carolina Alfaro de Carvalho 50
27
only against the backdrop of our acquaintance with the middle ground and its internal gradation
28
what is just a favoured mode of behaviour within a large and/or heterogeneous group may well
be assigned much more binding force within a particular subgroup thereof, which is likely to be
more homogeneous too (e.g. translators among text-producers, translators of literature among
translators, translators of poetry among translators of literature, translators active in a systemic
centre vs. translators who operate on a periphery, etc.). A similar kind of relativity can be
discerned in terms of types of activity, forming either parts of each other (e.g. interpreting, or legal
translation, within translation at large) or just sharing adjacent territories (e.g. translation criticism
vs. actual translation [...]). Thus, even if it is one and the same person who engages in more than
one activity, and/or belongs to more than one (sub) group, s/he may well abide by different norms,
and manifest different kinds of behaviour, in each one of his/her roles and social contexts.
Fundamentos teóricos e metodológicos 51
29
translating is less a matter of full-scale adherence to a single overriding norm than of negotiating
a multiplicity of norms, with varying degrees of success, to reach complex aims
Carolina Alfaro de Carvalho 54
30
Patrons try to regulate the relationship between the literary system and the other systems, which,
together, make up a society, a culture. As a rule they operate by means of institutions set up to
regulate, if not the writing of the literature, at least its distribution: academies, censorship bureaus,
critical journals, and, by far the most important, the educational establishment.
Carolina Alfaro de Carvalho 56
esta pesquisa no que concerne aos mecanismos de controle dos sistemas para, nos
próximos capítulos, empregar conceitos como o de patronagem ao polissistema de
tradução audiovisual.
Com base nas teorias desenvolvidas por Even-Zohar e Toury, José Lambert e
Hendrik van Gorp (1985) propuseram um modelo, bastante sintético e prático,
para o estudo descritivo de traduções literárias através de uma abordagem
funcional e sistêmica. Dado que os textos de Even-Zohar e Toury apresentam o
funcionamento dos sistemas e os métodos de estudo de uma forma que tende à
generalização e à abstração, o artigo de Lambert e van Gorp é um contraponto
muito útil e tornou-se uma referência freqüente nos estudos descritivistas. Na
presente dissertação, esse modelo metodológico também ajudará a pensarmos a
tradução audiovisual segundo uma perspectiva sistêmica.
A base para o modelo é uma visão ampla dos polissistemas literários da
cultura de origem e da cultura de chegada do texto a ser estudado. Ainda que a
maior parte da análise recaia sobre o texto traduzido e seu original — inclusive
porque, muitas vezes, eles serão (praticamente) os únicos materiais disponíveis
para estudo —, é importante contextualizá-los sistemicamente. Isto é, estabelecer
as relações entre o texto traduzido e outros textos da cultura receptora da tradução,
entre o texto original e outros da cultura de origem, entre o texto traduzido e o
original; a posição ocupada pelo autor na cultura de origem e na de chegada e a
ocupada pelo tradutor; e as caracterizações dos públicos leitores no sistema de
chegada e no de origem.
Como é bem característico dos artigos relacionados aos Estudos
Descritivos, no de Lambert e van Gorp são levantadas diversas perguntas para
motivar investigações mais específicas: sobre a relação entre os vários sistemas,
paralelos entre cada um dos textos em sua cultura, como o autor é visto em cada
sistema, a relação entre adequação e aceitabilidade na tradução, etc. A quantidade
de enfoques possíveis é ilimitada e é impossível dar conta de todos os aspectos
envolvidos na transferência intercultural de textos. Os autores se declaram cientes
disso e deixam claro que cada estudioso deve estabelecer suas prioridades e que a
Fundamentos teóricos e metodológicos 57
31
We cannot properly analyze specific translations if we do not take into account other translations
belonging to the same system(s), and if we do not analyze them on various micro- and macro-
structural levels. It is not at all absurd to study a single translated text or a single translator, but it is
absurd to disregard the fact that this translation or this translator has (positive or negative)
connections with other translations and translators.
Carolina Alfaro de Carvalho 58
Reúno nesta seção alguns comentários que considero pertinentes, feitos pelo
teórico americano Lawrence Venuti e pelas pesquisadoras brasileiras Else Vieira,
Marcia Martins e Maria Paula Frota, além de uma colocação mais pontual
apresentada pelo russo Vilén Komissarov.
A crítica de Komissarov (1996, apud Amorim, 2003) dirige-se à definição
do conceito de tradução suposta (assumed translation, aqui visto na Seção II.2.2),
que entende como objeto de estudo legítimo qualquer texto apresentado à cultura
de chegada como sendo uma tradução e por ela aceito como tal. O autor
argumenta que essa definição não incluiria traduções utilizadas por uma cultura
sem que ela saiba que se tratam de traduções, isto é, textos traduzidos (não
necessariamente literários) introduzidos na cultura sem a indicação de que se
Fundamentos teóricos e metodológicos 59
tratam de traduções, e que portanto são recebidos como textos originais. Esse é
freqüentemente o caso de matérias jornalísticas traduzidas e publicadas em meio a
textos autorais. A noção de tradução suposta, concebida por Toury com vistas a
ampliar o escopo dos objetos de estudo pertinentes, estaria portanto ignorando
muitos textos que, apesar de não serem assim apresentados aos consumidores, são
de fato traduções. Komissarov propõe então a ampliação do conceito de tradução
suposta a partir de sua idéia de tradução como pretensão (translation as
pretension), isto é, aquela que foi produzida com a intenção de constituir uma
tradução. O autor argumenta que a pretensão ou intenção necessariamente precede
a recepção de um texto como tradução e é um fator indispensável para que uma
tradução seja aceita como tal.
Essa argumentação tem fundamento e pode ser muito relevante no estudo
de certos fenômenos. Porém, é preciso contra-argumentar que, apesar de sua
ênfase no conceito de tradução suposta, Toury não descarta o estudo de textos que
não se apresentam ou não são recebidos como traduções, seja por preencherem
alguma outra função ou porque sua identificação como traduções não era algo
relevante na cultura-alvo. E ele destaca:
É claro que itens desse tipo também podem ser estudados, mas será
preciso dar conta precisamente do fato de que eles não foram
apresentados/considerados como traduções na cultura que os recebeu; e
isso como parte do próprio estudo, não apenas como um tipo de
“informação contextual”.32 (Toury, 1995b: 142)
32
Items of this kind can of course be studied too, but an account will have to be given precisely of
the fact that they were not presented/regarded as translational within the culture which hosts them;
and as part of the study itself, not just as some kind of ‘background information’.
Carolina Alfaro de Carvalho 60
particularmente relevantes.
A primeira delas afirma que a busca de autonomia para os Estudos da
Tradução (termo que Venuti emprega para se referir aos Estudos Descritivos, o
que impede uma distinção clara entre ambos) através de uma delimitação rigorosa
do campo da tradução com base em teorias do início do século passado — o
Formalismo russo e o Estruturalismo tcheco — acaba deixando de lado discussões
mais atuais e provenientes de outras áreas de estudo. Nas palavras de Venuti
(1997):
33
The work of Even-Zohar and Toury, rooted in Russian Formalism, has ignored the radical
changes that various theoretical developments have caused in literary and cultural studies —
namely, the varieties of psychoanalysis, feminism, Marxism, and poststructuralism on the current
scene — all discourses that insist on the difficulty of separating fact from value in humanistic
interpretation. Without them the translation theorist cannot begin to think about an ethics of
translation, or the role played by translation in political movements, issues that seem more crucial
today than sketching narrow disciplinary boundaries.
Fundamentos teóricos e metodológicos 61
estudada, de modo que nada disso fique oculto nas entrelinhas de uma descrição
supostamente objetiva. Essa explicitação da perspectiva do pesquisador talvez
implique em uma certa flexibilização dos Estudos Descritivos, o que considero
desejável — como será visto no Capítulo V. Por isso, ao longo do presente
trabalho, procuro apresentar do modo mais claro possível minha visão com
relação a meu objeto de estudo — a tradução para legendas, dentro do âmbito da
tradução audiovisual — e minha própria posição no sistema que analiso.
Os comentários feitos por Else Vieira, Marcia Martins e Maria Paula Frota
têm alguns pontos em comum.
Martins (1999) lamenta a falta de uma base epistemológica clara, tanto da
parte de Even-Zohar quanto de Toury, além da indefinição no que diz respeito à
inter-relação entre a Teoria dos Polissistemas e os Estudos Descritivos. Quanto à
segunda questão, vimos nas seções anteriores que Toury reconhece o impacto que
a teoria de Even-Zohar teve no desenvolvimento dos Estudos Descritivos e que
alguns conceitos empregados são comuns a ambos, mas de fato não fica muito
claro se os dois paradigmas formariam um conjunto fechado — como
freqüentemente são vistos —, se teriam a intenção de serem complementares ou se
apenas compartilhariam alguns fundamentos, assim como quais seriam suas
divergências, caso haja alguma. No presente trabalho, estou mantendo-os
parcialmente separados e numa relação de precedência — a Teoria dos
Polissistemas anterior aos Estudos Descritivos —, entendendo que claramente há
uma forte relação entre eles. Em particular, a primeira exerceu forte influência
sobre os últimos e estes então formularam novos conceitos e propostas sobre a
base construída por aquela.
Quanto à falta de esclarecimentos epistemológicos, Martins e Frota fazem
uma crítica semelhante, argumentando que conceitos essenciais usados por essas
teorias, tais como o de literatura, texto e cultura, não são bem definidos. Martins
(1999) afirma que a mudança de ótica com relação aos conceitos de tradução e
equivalência, assim como a opção por uma perspectiva descritivo-explanatória em
vez de normativa, se deve a uma nova postura epistemológica que não mais toma
por base a essência absoluta do texto ou a intenção autoral. Contudo, não há uma
explicitação dessa mudança, uma contextualização da abordagem descritiva em
relação a outras áreas e linhas de pensamento, o que, segundo Martins, enfraquece
esse paradigma enquanto teoria de tradução. Já Frota (1999) enfatiza a indefinição
Fundamentos teóricos e metodológicos 63
do conceito de cultura não só pelos Estudos Descritivos, mas por várias vertentes
e teóricos agrupados sob o rótulo de culturalistas ou associados à virada cultural,
entre os quais a autora inclui a Skopostheorie e diversos autores vinculados aos
Estudos Descritivos. Na falta de uma definição explícita, fazendo inferências a
partir de vários textos teóricos, Frota conclui que a cultura é vista também como
um sistema, mas, paradoxalmente, não instável e heterogêneo como a Teoria dos
Polissistemas reivindica para outros sistemas. Freqüentemente, cada cultura é
tratada como uma unidade, associada a uma só língua, e suas diferenças internas
são ignoradas, o que é evidenciado quando teóricos afirmam que os tradutores são
biculturais ou que transitam entre duas culturas. “Por que ver apenas duas
culturas [...]?”, pergunta Frota (1999: 58).
Essas colocações são muito relevantes e a falta de uma explicitação
coerente dos conceitos fundamentais da teoria continua constituindo uma lacuna, a
qual eu não me sinto preparada para tentar preencher no escopo deste trabalho. Na
medida do possível, buscarei definir ou contextualizar os conceitos da forma
como os emprego aqui.
Outra crítica com a qual concordo plenamente, também feita por Martins,
diz respeito à meta final de Toury de elaborar uma teoria geral da tradução que dê
conta de suas várias modalidades, culturas, contextos e possibilidades. A teórica
argumenta que “a plasticidade do modelo sistêmico dificulta a previsão de
regularidades dessa amplitude cuja especificidade transcenda a própria dinâmica
do modelo” (Martins, 1999: 61), assim como a identificação de universais no
comportamento tradutório. De fato, como foi visto nas seções anteriores, a ênfase
que Even-Zohar e Toury dão ao dinamismo e à instabilidade dos sistemas não
parece viabilizar a elaboração de teorias desvinculadas do contexto de cada estudo
realizado, ainda que esse contexto possa (e deva) incluir uma visão macro, dos
sistemas maiores. Por mais que Toury esclareça que essa teoria geral não seria
algo cristalizado, mas estaria sempre sendo refinada e atualizada através de
estudos de caso, poderíamos talvez nos perguntar se a busca de universais trans-
sistêmicos não comprometeria a própria noção de sistema na qual se baseia o
paradigma descritivo. Como já foi dito, a presente pesquisa está ligada ao sistema
cultural brasileiro, o qual integro, e se debruça sobre algumas das modalidades da
tradução audiovisual, incluindo um pouco do seu diálogo com a tradução literária.
Ainda que seja possível empregar as reflexões aqui desenvolvidas em outros
Carolina Alfaro de Carvalho 64
e pelas ideologias” (Frota, 1999: 63), sendo recalcada ou mesmo descartada sua
singularidade. A partir de citações que afirmam que a tradução é inevitavelmente
uma reescrita informada por uma ideologia e, como tal, é sempre uma
manipulação a serviço do poder, Frota aponta o seguinte paradoxo:
De fato, num mesmo texto, Toury (1998) apresenta sua opção por uma concepção
sociocultural da tradução em contraposição a uma situação de comunicação
individual entre uma pessoa e um texto, ao mesmo tempo em que afirma que
mudanças de paradigma podem ser causadas pela ação de indivíduos que ocupam
uma posição de maior poder no sistema.
Conforme será visto no Capítulo V, essa dificuldade de superar a
dicotomia sujeito/objeto é comum nos Estudos da Tradução e pode ser detectada
mesmo entre teóricos pós-estruturalistas mais radicais, como Lawrence Venuti e
Stanley Fish. Mas, a meu ver, assim como é possível agregar reflexões teóricas
atuais à base polissistêmica e descritivista apresentada ao longo deste capítulo,
penso que há também espaço para refletir sobre a singularidade no âmbito dessas
abordagens, o que tentarei fazer progressivamente nos capítulos que se seguem,
enfocando a prática da tradução para legendas.
III
AMPLIAÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS E APLICAÇÃO
AO ESTUDO DA TRADUÇÃO AUDIOVISUAL
Finalmente, parto para a última etapa deste trabalho, onde teço considerações
sobre a singularidade do tradutor.
audiovisual.
Retomemos então a concepção de cultura como polissistema desenvolvida
por Even-Zohar e sintetizada na Seção II.1. O polissistema literário (Seção II.1.1)
é um dos sistemas pertencentes à cultura e o objeto de estudo central do autor
israelense. Com base nesse modelo, concebi o polissistema audiovisual como
também estando inserido no polissistema cultural, compartilhando seu espaço com
o polissistema literário e os outros sistemas que compõem a cultura.
Como foi visto no capítulo anterior, os sistemas são redes de relações
estabelecidas entre ocorrências ou fenômenos observáveis, configurados tanto
pelas inter-relações de seus subsistemas quanto pela interação com sistemas
adjacentes. Na busca por permanência e centralidade num polissistema, os
sistemas que o compõem fazem contato, se movimentam, alternam posições,
enfim, negociam continuamente seus limites, seu papel e seu poder no
polissistema.
Além disso, há sobreposições entre sistemas e existem componentes —
pessoas, instituições, subsistemas — que transitam em mais de um sistema.
Dentro do polissistema cultural, se pensarmos na relação entre o polissistema
literário e o audiovisual, podemos mencionar, por exemplo, a adaptação de obras
literárias em versões cinematográficas — ou tradução intersemiótica, para usar o
termo comumente empregado nesse processo, baseado na distinção clássica feita
por Jakobson (1969: 65) — e o trânsito de autores-roteiristas, críticos e agentes de
marketing entre os dois sistemas, os quais geram pontos de sobreposição entre
suas fronteiras.
Internamente, o polissistema audiovisual é configurado por seus
subsistemas, os quais por sua vez são formados pelos grupos de pessoas e
instituições que neles interagem. Pensemos, por exemplo, na produção e
distribuição de um filme. De sua concepção e produção participam roteiristas,
adaptadores, produtores, diretores, pesquisadores e profissionais especializados
em diversos assuntos e técnicas, além de agentes e atores. Sua comercialização
envolve laboratórios cinematográficos, distribuidores, agentes de marketing,
patrocinadores, meios de propaganda e canais de venda, exibição e transmissão.
Podemos ainda diferenciar grupos ligados a determinados meios — tais como
circuitos de salas de cinema, sites especializados na Internet ou sistemas de
distribuição de televisão a cabo — como constituindo subsistemas, por
Ampliação dos fundamentos teóricos 69
tradução. Esse subsistema do polissistema audiovisual, que por sua vez também
constitui um polissistema, é o que denomino polissistema de tradução
audiovisual.
Cultura
Outros sistemas,
Outros outras culturas
s i s te m a s Polissistema
literário
outros
Outros Outros Sistema de
s i s te m a s , s i s te m a s tradução outros
outras culturas
literária
outros
Sistema de
de
tradução
Outros audiovisual
s i s te m a s , outros Outros
outras Outros
s i s te m a s
culturas s i s te m a s ,
outras
Polissistema culturas
outros Outros
audiovisual s i s te m a s
Figura 3 - Da esquerda para a direita: capa da segunda edição do livro Cidade de Deus; capa do
DVD lançado no Brasil; capa do DVD lançado nos Estados Unidos (Exemplo 1).
Anthony Pym afirma que “há [...] bons motivos para esperar que um termo
relativamente indefinido e indisciplinado como ‘multimídia’ [e acrescento: o
mesmo se aplica a ‘audiovisual’] trará problemas a qualquer tentativa de abordá-lo
com preceitos metodológicos desenvolvidos para outros objetos”34 (Pym, 2001b:
277) — e aqui ele se refere justamente aos Estudos Descritivos de Tradução. De
fato, conforme já mencionado, a dificuldade de delimitação e mesmo de
denominação do conjunto heterogêneo que estou englobando sob o rótulo de
tradução audiovisual é um grande obstáculo à elaboração ou aplicação de uma
teoria abrangente, capaz de explicá-lo e fundamentá-lo de forma satisfatória. É por
isso que, uma vez contextualizado o sistema de tradução audiovisual, enfocarei
primordialmente a tradução para legendas, atividade importante no contexto
brasileiro. Penso que, com alguns ajustes, é possível fazer o mesmo tipo de
adaptação a outras modalidades de tradução audiovisual — adaptação que
envolveria mudanças mais significativas no caso da Internet e de programas de
computação — e assim ir chegando a um conjunto mais amplo de bases teóricas e
metodológicas direcionadas a essa área como um todo.
34
[t]here are [...] good reasons to expect that a relatively undefined and unruly term like
“multimedia” will create trouble for any attempt to handle it with methodological precepts
developed for other objects
Carolina Alfaro de Carvalho 76
4. narração
5. voice over
6. interpretação simultânea e consecutiva de eventos transmitidos ao vivo
7. legendagem simultânea
8. legendagem
9. surtitling
10. closed caption
A primeira é a mais próxima de outras modalidades tradicionais da
tradução escrita, porém as diversas funções possíveis da tradução dos vários tipos
de roteiros — para guiar a produção fotográfica de programas e filmes, orientar
atores, coordenar o desenvolvimento de um programa de computador, permitir a
recriação de um produto em outra cultura ou facilitar as tarefas de tradutores em
outros sistemas, por exemplo — nos permitem entendê-la como um processo
claramente inserido no polissistema audiovisual. Essa prática não está sujeita à
maioria das coerções das outras modalidades listadas, sendo o principal fator
coercivo sua funcionalidade enquanto produto interno do sistema, do qual
dependem muitas atividades decorrentes.
As cinco modalidades seguintes trabalham com o registro oral, sendo a
dublagem, o audio vision, a narração e o voice over gravados sobre os canais de
áudio originais para transmissão posterior e a interpretação feita ao mesmo tempo
em que o produto é transmitido. A principal coerção comum a essas práticas
corresponde à adequação ao tempo de transmissão do áudio original e às imagens
exibidas. Já as diferenças se dão em função dos objetivos de cada modalidade —
tal como o fato de que o audio vision é direcionado a deficientes visuais — e de
outras características particulares. Por exemplo, uma forte coerção na dublagem é
o movimento dos lábios das pessoas que aparecem na imagem, visto que se
procura ajustar o ritmo e a fonética do texto traduzido a esse movimento. Já o
voice over guarda uma semelhança com a legendagem, pois o som original
permanece audível e a voz do dublador não se sobrepõe totalmente a ele,
começando depois do início do áudio original e terminando antes de seu fim.
Portanto, se por um lado a tradução para voice over não sofre a coerção fonética
que impõe restrições à dublagem, por outro ela é obrigada a reduzir a extensão do
texto — uma das restrições impostas à legendagem. A dublagem é ainda a
modalidade mais custosa dentre as acima listadas, por envolver um grande
Ampliação dos fundamentos teóricos 77
Língua-fonte Língua-meta
Portanto, de acordo com esse quadro, todas as outras modalidades da lista acima
seriam horizontais, estando a modalidade 1 na linha do código escrito e as
modalidades 2 a 6 na linha do código oral.
No próximo capítulo examinaremos em mais detalhe a legendagem,
inclusive essa qualidade diagonal e suas implicações. Por ora, basta destacar que
as modalidades 7 a 10 possuem duas coerções principais: a temporal, visto que
devem se ajustar ao tempo de duração do áudio correspondente — nesse aspecto
assemelhando-se às modalidades orais vistas acima —, e a espacial, pois ficam
restritas a uma porção limitada da tela de exibição. A legendagem simultânea
sofre ainda uma forte pressão sobre o tempo para sua elaboração, pelo fato de ser
realizada ao vivo. A finalidade de cada uma também gera diferenças — o closed
caption, por exemplo, destina-se a pessoas com dificuldade de audição.
Devido a todas essas coerções, que afetam sensivelmente as soluções
tradutórias e levam à produção de textos traduzidos muito diferentes entre si,
embora a partir de um mesmo original, alguns teóricos da tradução questionam o
fato de que essas práticas sejam realmente traduções e optam por referir-se a elas
como adaptações. Porém, como bem observa Díaz Cintas, em sua maioria
Como foi visto no Capítulo II, a imposição de rótulos aos processos e fenômenos
de um sistema é criticada pelos Estudos Descritivos como sendo um ato
desprovido de relevância face ao objetivo de contextualizar e compreender a
natureza e o funcionamento dos objetos estudados — que é o que procuro fazer no
presente trabalho.
Para além das características mais aparentes descritas acima, há outras,
subjacentes a todo esse conjunto de práticas e inclusive às que não foram
consideradas na lista acima, relacionadas ao campo da Informática. Três dessas
características, destacadas por Gambier e Gottlieb (2001), têm grande relevância
no sistema de tradução audiovisual mas são freqüentemente ignoradas por
estudiosos da tradução que não transitam por seus vários subsistemas. São elas:
(i) o aspecto crucial do trabalho em equipe, visto que o tradutor é apenas um
dos profissionais que manipulará os textos em meio aos complexos
procedimentos que constituem a produção, distribuição e divulgação de
produtos audiovisuais;
(ii) o fato de que o tradutor trabalhará muitas vezes com textos intermediários,
empregados durante os processos de produção e distribuição dos materiais
— isto é, cujo original não é o produto completo recebido pelo público da
cultura de origem e cuja tradução não se destina ao público consumidor do
produto na cultura de destino — e de vida curta, pois serão atualizados,
modificados ou simplesmente descartados após cumprirem sua função; e
(iii) os principais critérios que norteiam a tradução audiovisual são a
compreensibilidade, a acessibilidade e a usabilidade, isto é, a função que ela
deve desempenhar freqüentemente terá precedência sobre outros fatores,
inclusive por vezes normas lingüísticas.
No contexto da produção de filmes, Patrick Catrysse apresenta uma
situação que envolve simultaneamente os três itens da lista acima:
35
Los estudiosos del tema parecen recurrir tanto a un término como a otro con una imparcialidad
asombrosa, por lo que la distinción entre la figura del traductor y la del adaptador tiende a
desaparecer, y no es raro que en ocasiones se recurra a la nomenclatura dual traducteur-
adaptateur.
Ampliação dos fundamentos teóricos 79
36
where international financing has to be found on the basis of pre-production documents, or
where a project concerns an international production crew, translation may deal with synopses,
design reports, screenplays, flow charts, etc., targeted either at several producer-financers in
different countries or cultures, or at the international production crew.
37
on-line texts get published earlier, but change quicker also. As a consequence, the nature of texts
becomes more ‘fluid’. Concepts like original, subsequent version, translation or adaptation shift
consequently. A text may exist in one form or another one day, but change considerably the next
day. No traces are left of the first version.
38
verbal signs transmitted acoustically (dialogue), non-verbal signs transmitted acoustically
(background noise, music), verbal signs transmitted visually (credits, letters, documents shown on
the screen), non-verbal signs transmitted visually.
Carolina Alfaro de Carvalho 80
101-2)
39
the viewer jumps from the subtitles to the picture, from one subtitle to another, both running at a
different speed. The Netsurfer jumps from one part of the website to another, without caring about
the possible linear order of elements. Thus, the effort to understand is no longer focused on only
one system of signs, on only one logic.
40
MM translation [...] is often understood as the (verbal) translation of the linguistic part of MM
messages. […] Questions concerning the relations between the linguistic part and the rest of the
MM message are not often raised. If one wants to analyse how the translation of the linguistic
elements of a MM message affects its global MM effect, one has to integrate the analysis of the
verbal part within the global MM communication.
Ampliação dos fundamentos teóricos 81
41
First, since our power comes from relative specialization, we tend to remain specialist
technicians even among ourselves: translators are not interpreters; dubbers are not subtitlers;
researchers are not practitioners; and no one seems to be like those strangely anonymous people
who decide translation policies. Second, since our power comes from handling complex codes, we
are professionally given to criticize and even mistrust the kind of relatively simple language that
can foster belonging and map out collective goals. If you like, we become too specialized and too
smart for any unifying ideology.
Carolina Alfaro de Carvalho 82
Conforme visto no Capítulo II, o modelo proposto por José Lambert e Hendrik
van Gorp (1985) para a descrição de traduções literárias tornou-se referência
conhecida entre os pesquisadores de tradução vinculados aos Estudos Descritivos
por ser simples e prático, ajudando a padronizar a contextualização do objeto de
estudo nos vários níveis sistêmicos e a orientar o processo em que se alternam a
formulação de hipóteses e constatações concretas.
Ampliação dos fundamentos teóricos 89
mais sincronizada possível com os movimentos labiais das pessoas que aparecem
na tela. Já na legendagem todo o som original é mantido e a tradução dos
enunciados em língua estrangeira é apresentada por escrito na parte inferior da
tela, através de legendas exibidas em sincronia com as falas e eventuais textos
escritos do material audiovisual. Portanto, a sincronia no caso da dublagem é
visual — o espectador espera uma proximidade entre os movimentos labiais das
pessoas que vê e os sons que ouve —, enquanto na legendagem ela é
prioritariamente sonora — espera-se que as legendas apareçam quando ouve-se
algo pronunciado em língua estrangeira e que elas desapareçam quando a fala
termina.
Essas diferenças básicas implicam várias divergências. A principal crítica
feita à dublagem é que ela priva o espectador do acesso ao texto original e à voz
real dos atores ou personalidades exibidos. Essa crítica é acentuada quando o
desempenho vocal é um componente importante do efeito artístico do filme ou
programa. Além disso, sem o acesso ao original não é possível controlar as
alterações feitas na dublagem pelo sistema de chegada. São vários os relatos de
modificações significativas impostas ao texto traduzido por censuras lingüísticas e
ideológicas: linguagem de baixo calão é amenizada, componentes sexuais ou
obscenos são minimizados ou excluídos e críticas a determinados grupos sociais
ou culturais são substituídas. Jorge Díaz Cintas (1997) relata algumas das
alterações feitas na Espanha durante a ditadura de Franco, como a efetuada no
filme Casablanca, de 1942, dirigido por Michael Curtiz: em inglês, quando o
delegado diria que o personagem de Humphrey Bogart lutara na Espanha ao lado
dos republicanos, o público espanhol o ouviu dizer que ele lutara pela anexação da
Áustria à Alemanha. Apesar dessa crítica, a substituição do texto original pelo
traduzido é o que se dá na grande maioria das modalidades de tradução, inclusive
a literária, que corre os mesmos riscos de manipulação.
Aquelas que se consideram ser as vantagens da dublagem emanam do
mesmo fato de que ela substitui os diálogos originais. Em sociedades não
hegemônicas culturalmente, considera-se que a dublagem reduz a penetração de
línguas e valores culturais de sistemas estrangeiros dominantes através dos meios
audiovisuais, além de valorizar a língua doméstica. Ela também permite o acesso
ao produto de parcelas não alfabetizadas da população, sendo vista como mais
“democrática” do que a legendagem. Por não demandar tanta concentração no que
Carolina Alfaro de Carvalho 96
aparece na tela, ao contrário das legendas, a dublagem é por muitos preferida para
a programação de canais de televisão, visto que os espectadores domésticos
freqüentemente dividem a atenção dedicada à televisão com outras atividades.
Gottlieb (1994, apud Rodrigues, 1998) recomenda o emprego de dublagem em
programas nos quais o aspecto informativo é o mais relevante, como notícias e
documentários, pois normalmente trazem uma grande quantidade de dados verbais
e visuais, e assim os espectadores não precisam fazer um esforço cognitivo
adicional para ler as legendas. Estas cumpririam um papel melhor em situações
em que o aspecto humano, expressivo, é o mais importante, como em programas e
filmes de ficção.
Algumas das características consideradas vantagens ou desvantagens da
legendagem decorrem de sua comparação com a dublagem: se por um lado ela
preserva sons, vozes e desempenhos interpretativos do material audiovisual
original, por outro ela facilita o domínio cultural de sistemas estrangeiros
hegemônicos e é mais elitista; se permite o cotejo com o original, demanda um
maior esforço cognitivo; se não naturaliza um produto alheio fazendo-o passar por
doméstico, interfere visualmente no material exibido e é limitada e incompleta.
Essas questões são vistas sob uma ótica mais positiva ou mais negativa de
acordo com o viés de cada estudioso. Em resposta à crítica de que as legendas são
menos “democráticas” por não permitirem o acesso de espectadores da cultura de
chegada não alfabetizados ou com dificuldade de leitura, há pesquisas que
mostram que o emprego de legendas pode ajudar na alfabetização da população e
de estrangeiros residentes na cultura de chegada e no ensino de línguas
estrangeiras. Com relação a demandar um esforço cognitivo maior, há
pesquisadores que não consideram essa questão muito relevante, visto que esse
esforço é bem menor do que o necessário para uma leitura convencional
(Delabastita, 1990).
Veremos a questão da sobreposição das legendas sobre a imagem e sua
limitação e insuficiência como representante do material original — papel
geralmente atribuído a uma tradução — dentro de uma discussão um pouco mais
ampla, que abordarei na próxima seção.
A tradução para legendas 97
Daí também a oportuna distinção feita por Gottlieb (1994, apud Araújo, 2000:
54), segundo a qual a dublagem “dá a impressão de ser o original” enquanto a
legendagem “dá a impressão de ser uma tradução”.
Entretanto, essa dependência das legendas com relação ao produto ao qual
servem vai de encontro a postulados dos Estudos Descritivos de Tradução
elaborados tendo em vista sobretudo a tradução literária. Como foi visto no
Capítulo II, as pesquisas descritivas partem da constatação da existência de um
texto que é aceito como tradução na cultura-alvo. Esse texto ocupa um lugar
próprio nessa cultura e sua importância é avaliada com base não na sua relação
com o original mas na sua relação com outros textos do sistema receptor — na sua
posição relativa aos outros componentes desse sistema. Essa visão pressupõe a
autonomia do texto traduzido com relação ao original, pressuposição evidenciada
pela afirmação de Toury (1995b) de que a presença empírica do original não é
imprescindível para o estudo de uma tradução suposta (assumed translation),
como foi apresentado na Seção II.2.2. Visto que as legendas não têm autonomia
no sistema de chegada, elas não podem ser estudadas de forma desvinculada do
original. No caso dos produtos audiovisuais, aquilo que é importado pela cultura-
alvo para preencher uma lacuna e ocupar um lugar no sistema é o original, e sua
tradução tem o objetivo de viabilizar essa importação porém sem ocupar um
espaço totalmente próprio.
Mas isso não invalida a aplicação às legendas da noção de tradução
suposta. A afirmação de Toury (1995b: 137) de que “quando um texto é oferecido
como uma tradução, ele é prontamente aceito como tal de boa fé, sem mais
perguntas”43 continua válida. O mesmo ocorre com os três postulados que
determinam uma tradução suposta: o postulado do texto original, o da
42
no existe ninguna tradición (y no tendría sentido) de creación de subtítulos por sí solos, en la
LM, independientes del producto externo al polisistema. Los subtítulos sólo tienen razón de ser en
tanto que elementos secundarios y, por ello, es difícil hacer abstracción de cuáles son o habrían de
ser las características propias e intrínsecas de los subtítulos alejados de las películas.
43
when a text is offered as a translation, it is quite readily accepted bona fide as one, no further
questions asked
A tradução para legendas 99
“pastelão”, etc.), mais redundante será a palavra com relação à imagem, pois os
diálogos terão um papel suplementar à seqüência visual do filme. Já quando se
procura fugir dos estereótipos e desenvolver uma história centrada na construção
do personagem tende-se a privilegiar o texto, e então as imagens é que são mais
acessórias. Nesse caso, as estratégias de redução e omissão aplicadas às legendas
serão bem diferentes da primeira situação.
Do ponto de vista sistêmico e funcional, considero essa reflexão bem mais
lógica do que as diversas pesquisas que procuram determinar a porcentagem ideal
de redução do texto original que deve ser praticada na tradução para legendas sem
levar em conta o tipo de material apresentado e todas as informações transmitidas
pelos outros canais semióticos. Se pensarmos não só em filmes mas em produtos
de naturezas distintas — programas educativos, desenhos animados, entrevistas,
shows musicais, documentários sobre assuntos específicos, telejornais, reality
shows, etc. —, concluiremos que a prioridade dada aos componentes texto oral,
imagens e sons será diferente para cada um deles.
Outra pesquisa interessante realizada no Brasil é a de autoria de Mahomed
Bamba (1997). Mesmo sem empregar o conceito de tradução diagonal, o autor
enriquece essa noção ao mostrar a correlação que se opera entre os diferentes
sistemas semióticos na tradução para legendas. Com base na nomenclatura de
Jakobson (1969), o autor identifica na legendagem um caso de tradução
interlingual — de uma língua para outra — complementado por duas formas de
tradução intersemiótica, uma referente à reformulação do código oral através do
código escrito e outra referente à relação entre informações transmitidas por
signos verbais e por signos não verbais.
Em função da presença dos diálogos e das imagens originais, as legendas
não precisam, como em uma transcrição escrita de um texto oral, reproduzir a
prosódia e traços suprassegmentais do discurso oral através de convenções
gráficas. Isto é, os códigos se sobrepõem e se complementam. Ainda que não
sejamos capazes de compreender o que é dito na língua original, o ritmo, a
entonação, a expressão, o gesto, a atitude — tão difíceis de serem captados por
escrito — se justapõem ao texto sincronizado das legendas formando uma espécie
de simbiose. O autor chega a afirmar que essa complementaridade aproxima a
legendagem de “um caso de tradução e de transcrição ideal: o texto de partida está
presente para suprir as deturpações e perdas de sentido que podem provocar estas
A tradução para legendas 101
legendas cheias, com 35 caracteres cada (Díaz Cintas, 1997). Mas o número exato
de caracteres por segundo, determinado em cada situação, varia em função do
meio empregado, do público-alvo e de preferências dos clientes.
Essas duas normas fazem parte dos três conjuntos — modalidade, meio e
clientes. Examinemos as normas mais proximamente vinculadas a cada um.
No sistema brasileiro, os quatro meios mais utilizados têm suas normas agrupadas
em três conjuntos diferentes: aquele empregado na legendagem de filmes para
exibição nos cinemas, o utilizado em VHS e canais de televisão por assinatura e o
ligado à tradução para DVD. Descrevo a seguir as normas e os processos mais
característicos de cada um desses três conjuntos com base principalmente na
minha experiência: aulas, contatos com colegas e serviços prestados a diversos
clientes utilizando esses quatro meios.
Cinema
A grande maioria dos filmes exibidos no cinema utiliza rolos de película
com 35 milímetros de largura. As medidas e os parâmetros empregados nesse
meio fazem referência ao comprimento da película e aos fotogramas que a
compõem, segundo o sistema métrico inglês. A unidade básica de referência é o
pé. Um pé de película contém 16 fotogramas ou quadros. A cada segundo são
projetados 24 quadros, o equivalente a 1,5 pé de película.
O número máximo de caracteres permitido por linha de legenda, incluídos
os espaços, depende do tamanho da fonte tipográfica utilizada pelo laboratório e
geralmente varia entre 32 e 40 caracteres. A razão do número de caracteres na
legenda por segundo de exibição é fornecida de acordo com a pietagem (indicação
relativa ao número de pés e quadros da película) e geralmente estabelecida em, no
máximo, 10 caracteres por pé de película, o que resulta em 15 caracteres por
segundo.
O procedimento mais usual entre as principais distribuidoras e os
laboratórios cinematográficos que a elas prestam serviços é o seguinte:
(i) a distribuidora fornece os rolos de película e o roteiro ao laboratório;
(ii) funcionários do laboratório fazem a pietagem do produto, isto é,
acompanham os diálogos do roteiro juntamente com a seqüência de
A tradução para legendas 103
JANE
No, I've changed. Truly,
I have.
Figura 5 - Trecho de roteiro cinematográfico (Exemplo 3).
Carolina Alfaro de Carvalho 106
investimento que pode ser alto. Segundo, neste meio o tradutor realiza mais
funções técnicas do que nas traduções para o cinema, visto que precisa fazer o
spotting e o timing das legendas, além da tradução. Essas tarefas exigem prática e
demandam tempo, de modo que, se tiver o mesmo prazo para realizar um serviço
de legendagem para o cinema e outro para VHS, no segundo caso o tradutor
precisará fazer a tradução das legendas mais depressa para poder executar também
as outras duas tarefas. Por outro lado, o tradutor tem agora controle sobre todo o
procedimento de legendagem e pode reformular a segmentação dos diálogos de
forma a adequá-la melhor à estrutura da língua portuguesa e fazer ajustes no
tempo de cada legenda, o que lhe dá mais liberdade no trabalho do texto como um
todo. Terceiro, o papel de original é claramente exercido pelo material
audiovisual, sendo o roteiro apenas uma referência adicional. Portanto, o conjunto
oral e visual do produto terá uma influência maior na tradução do que o suporte
escrito.
Para facilitar a visualização de alguns dos componentes mencionados neste
processo, reproduzo abaixo duas imagens: uma com a tela de exibição contendo o
time code e outra com um dos programas computacionais utilizados para a
confecção de legendas. A Figura 6 apresenta uma imagem extraída de uma série
cômica inglesa gravada em meio digital contendo o time code, cujo fotograma
atual aparece em 10 horas, 09 minutos, 42 segundos e 26 frames.
vários canais separados de áudio e de legendas que podem ser selecionados pelo
usuário no momento da exibição. Por isso, a maioria dos produtos comerciais
distribuídos em DVD inclui a tradução oral (dublagem) e escrita (geralmente
legendas e closed caption) nas línguas das comunidades em que o produto será
distribuído. Isso significa que cada produto distribuído em DVD pode receber
várias traduções distintas — geralmente entre duas e cinco línguas, em diferentes
modalidades. O processo de legendagem foi então modificado com relação ao
empregado para a tradução de VHS e canais de televisão por assinatura, de modo
a padronizar e acelerar o trabalho de tradução.
O número de caracteres por linha pode ser mais próximo do utilizado no
cinema ou no VHS, dependendo do formato da tela. O formato widescreen
reproduz as proporções das telas dos cinemas, com 16 unidades de comprimento
horizontal por 9 de altura, enquanto o formato anamórfico (anamorphic) é
ajustado às proporções da tela da televisão, com 4 unidades de comprimento por 3
de altura. A razão de caracteres por segundo é semelhante à empregada em VHS e
canais de televisão por assinatura, e são empregadas as mesmas convenções de
medida em hora, minuto, segundo e frame.
O procedimento geralmente realizado é:
(i) a distribuidora, ou o laboratório ou a produtora contratados, prepara uma
transcrição integral dos diálogos e eventuais textos escritos na língua
original do produto, os quais já são segmentados e recebem a marcação do
tempo de entrada e de saída de acordo com o time code; essa transcrição
com timing é convertida num arquivo de texto;
(ii) cada tradutor que fará a tradução para uma das línguas recebe esse arquivo
de texto, preferencialmente acompanhado de uma cópia do material
audiovisual; visto que o texto integral está transcrito, não é necessário
utilizar o roteiro como material de apoio;
(iii) o tradutor, empregando um editor de textos, substitui cada trecho de diálogo
previamente segmentado pela legenda traduzida, respeitando o número
máximo de caracteres permitido por segundo de acordo com a duração
estabelecida para cada segmento; se tiver o material audiovisual à
disposição, ele o utiliza para acompanhar a transcrição;
(iv) o tradutor envia o arquivo de volta ao cliente, com as legendas no lugar dos
trechos transcritos na língua original do produto; caso o tradutor não tenha
A tradução para legendas 111
10 frames);
y o tempo de duração do segmento (4 segundos e 17 frames);
y o número total de caracteres permitidos na legenda (78).
tempo que o enunciado oral tem início. Quanto à saída, geralmente a legenda
permanece na tela por algumas frações de segundo após o fim da fala, podendo
estender-se por até 1 segundo a mais (desde que não tenha se iniciado outra fala
imediatamente subseqüente).
Um aspecto que merece mais consideração são as normas que norteiam a
segmentação das legendas, tanto no que diz respeito aos trechos de diálogo a que
cada legenda corresponderá quanto internamente, com relação à divisão entre a
primeira e a segunda linhas da legenda (nos casos em que a legenda tem mais de
uma linha), o que no sistema de VHS e canais por assinatura é chamado spotting
interno.
O intervalo entre legendas costuma aproveitar as pausas feitas no discurso
oral. Geralmente, as pausas mais significativas ocorrem ao fim dos períodos, nos
quais muitas vezes são feitos cortes de cenas. No meio de um enunciado, ocorrem
pausas menores em função de respiração, hesitações e do próprio ritmo de fala de
cada pessoa. Para ser lido rapidamente, o texto de cada legenda é escrito de forma
sintaticamente simples, de acordo com o permitido pelo ritmo e entonação da fala.
Na medida do possível, tenta-se fazer com que uma legenda inclua um período
completo ou uma oração. Caso o período precise se estender por mais de uma
legenda, procura-se manter juntos os sintagmas de ordem mais alta na estrutura da
sentença, de forma a que cada legenda transmita uma idéia fechada e coerente.
Internamente, caso o cliente não forneça instruções sobre a distribuição
das legendas entre as duas linhas, fica a critério do tradutor decidir se prefere
priorizar legendas de uma só linha, de modo a manter a tela de exibição mais
livre, ou legendas mais curtas com duas linhas, para que a visão do espectador
fique mais concentrada no centro da tela. Da mesma forma, se o cliente não
expressar sua preferência, o tradutor determina os parâmetros para realizar o
spotting interno. Pode-se priorizar o formato geométrico do conjunto das linhas da
legenda, procurando fazer com que o tamanho das duas linhas seja semelhante, ou
pode-se dar prioridade à estrutura sintática e ao ritmo do texto da legenda.
Um exemplo ajudará a esclarecer essas questões.
Exemplo 5 - Segmentação do texto oral para adequação ao formato das
legendas.
O trecho selecionado é do filme de ficção de longa-metragem (drama,
comédia, romance) argentino El hijo de la novia (O filho da noiva), dirigido por
A tradução para legendas 115
Personagem # Transcrição
Natalia (interrompendo fala anterior de Rafael)
1 bueno está bien no grites
Rafael 2 por qué no puedo gritar
3 estoy en mi CAsa... griTEmos viva los NOvios y
4 tiremos arrOZ ya es/tá
Natalia 5 /yo no te DIgo que sea fácil pero
6 si tu papá se quiere casar con tu /mamá
Rafael 7 /ahí está... es mi
8 papá. (1+) es MI viejo... vos qué dirías si YO me
9 meto con como te abandonó tu viej/o
Natalia 10 /pará... a mi mi
11 viejo no me abandonó... mi mamá se vino acá porque
12 quiso es MUY dis/tinto
Rafael 13 /no sé es un tema tuyo es tu familia
14 yo no me MEto...
Natalia 15 vos NUNca te metés en mis problemas
16 porque le tenés pánico al compromiso
Rafael 17 no pará nena
18 paráparápará pará a mi si me querés llevar a la cama
19 llevame pero al diván no EH
(próxima fala de Natalia sobreposta a esta)
Figura 9 - Representação de um trecho de discurso oral (Exemplo 5).
Carolina Alfaro de Carvalho 116
Como pode-se ver, a única indicação de interrupção nos diálogos foi feita
através do uso de reticências na legenda 4, correspondente à linha 6 da
transcrição, pois o início da fala de Rafael na linha 7 se sobrepõe a uma palavra
inteira de Natalia e, pela entonação, podemos perceber que a oração que Natalia
estava enunciando ficou inconclusa. As outras sobreposições são rápidas e
comuns em diálogos espontâneos, principalmente em discussões, e podem ser
omitidas para simplificar a leitura das legendas.
Os trechos do diálogo foram segmentados ou na tomada de turno de cada
interlocutor, que coincide com os cortes de câmera, ou nas pausas feitas durante a
fala de cada personagem. Devido à grande velocidade com que cada enunciado é
dito, aproveitei essas breves pausas para alongar as legendas por alguns quadros a
mais. Pode-se ver, por exemplo, que a pausa de pouco mais de 1 segundo na linha
8 da transcrição foi totalmente preenchida pelas legendas estendendo-se a saída da
legenda 5 por frações de segundo e antecipando ligeiramente a entrada da legenda
6. Como foi visto na seção anterior em relação às normas de cada meio, esse tipo
de manipulação do tempo de duração de cada legenda só é possível quando o
próprio tradutor fica responsável pelo timing do serviço de legendagem.
Cada legenda nesse trecho corresponde a um período com sintaxe simples
e direta. Como o diálogo original é constituído de enunciados também simples e
curtos, não foi preciso fazer alterações sintáticas significativas para facilitar a
segmentação das legendas. Internamente, sempre que foi preciso empregar as duas
linhas da legenda, optei por dividi-las de acordo com os componentes sintáticos
das orações, sem dar prioridade ao formato geométrico da legenda.
O exemplo acima também evidencia outras normas importantes que
orientam a elaboração de legendas: as normas referentes a simplificações
sintáticas e a omissões.
As estruturas sintáticas e simplificações mais empregadas e
freqüentemente explicitadas em cursos e manuais sobre legendagem são as
seguintes:
y componentes sintáticos em ordem direta em vez de inversa ou intercalada;
y orações coordenadas em vez de subordinadas;
y construções ativas em vez de passivas;
y construções positivas em vez de negativas;
y verbos simples em vez de compostos;
Carolina Alfaro de Carvalho 118
Leg. # Legenda
97 Após me formar na Califórnia,
fui a Harvard...
98 fiz pós-graduação em administração
e voltei a San Francisco.
99 Comecei a cortejar uma moça
que conheci aos 17 anos...
100 chegando em Berkeley.
caso foi feita uma versão do português ao espanhol para distribuição em VHS e
DVD, porém seguindo apenas os procedimentos da tradução para VHS, com 32
caracteres por linha e 13 caracteres por segundo. Meu cliente direto foi a Drei
Marc, meu original foi uma gravação do material em VHS acompanhada da
transcrição do texto, e o público-alvo seria potencialmente qualquer país de língua
hispânica. Transcrevo abaixo um trecho da narração de abertura do filme,
seguindo as mesmas convenções da análise da conversação empregadas no
Exemplo 5:
# Transcrição
1 Banhada pelos oceanos Índico e Pacífico... esta faixa oriental
2 de território da ilha de Timor... tem 14.874 quilômetros
3 quadrados... o equivalente ao estado de SERGIpe no Brasil... e
4 faz fronteira com o Timor OESTE... território indonésio.
Figura 13 - Transcrição de trecho de narração (Exemplo 7).
# Transcrição
1 Let’s see... this guy Cialdini he was talking to us...
2 ah...ah... two months ago... let’s see the six principles
3 there’s reciprocation there’s liking there’s Donor there’s
4 Blitzen there’s... Sleepy there’s Sneezy... you can’t reMEMber
5 these things!
Figura 15 - Transcrição de trecho de palestra (Exemplo 8).
Portanto, assim como foi visto no Exemplo 2 (referente ao filme Tortilla soup),
novamente fica claro que contextos diferentes demandam traduções diferentes.
Para concluir este exame das normas que regem a tradução para legendas,
vejamos aquelas impostas pelos clientes que encomendam, revisam e remuneram
os serviços de tradução.
Algumas das normas definidas pelos clientes já foram mencionadas nas seções
anteriores. Além de procedimentos referentes à realização dos serviços e à relação
entre o tradutor e as equipes de trabalho do cliente — tais como as
responsabilidades de cada um, prazos, entrega e devolução de materiais, valores
de remuneração, cessão de direitos autorais, resolução de problemas específicos,
etc. — e dos parâmetros técnicos já listados na subseção anterior, podem ser
fornecidas ao tradutor instruções específicas referentes a:
y padrões de marcação de tempo (timing) — sincronia de entrada e saída das
legendas, duração mínima e máxima das legendas, intervalo entre legendas,
razão de caracteres por segundo de exibição;
y padrões de segmentação (spotting) — preferência por uma linha longa ou duas
mais curtas, normas para a divisão das duas linhas da legenda (critério
geométrico ou sintático);
y convenções tipográficas — uso de aspas, itálico e caixa-alta;
y uso ou não de reticências ao fim de legendas inconclusas (que continuam na
legenda seguinte);
y normas sobre o uso de abreviações, siglas, símbolos e numerais;
y grau de permissividade com respeito ao uso de linguagem de baixo calão;
y grau de prioridade da norma culta sobre registros mais coloquiais —
corruptelas e contrações (“pra”, “tá”...), mistura de pessoas e conjugações
verbais ( “você” e “tu”).
Como foi dito na Seção III.2.3, respeitar as normas e preferências do
cliente é de suma importância para a permanência do tradutor no mercado. Assim
funcionam os mecanismos de controle. As instruções fornecidas explicitamente
devem ser observadas e, havendo a necessidade de se rediscutir alguma delas, o
ideal é que isso se faça de modo a não interferir em procedimentos e prazos já em
A tradução para legendas 127
andamento.
Mas nem sempre as normas são explícitas ou detalhadas. Freqüentemente
ocorre de várias decisões serem deixadas a critério do tradutor e, depois de
entregue o trabalho, uma das instituições ou dos profissionais envolvidos na pós-
produção ou distribuição do material discordar de alguma escolha do tradutor ou
impor uma regra antes não explícita. É em situações desse tipo que ocorrem
renegociações explícitas de normas, situações que, se bem conduzidas, podem
levar a soluções com mais qualidade e que atendam melhor às prioridades de cada
integrante do sistema.
Também pode haver conflitos de prioridades e entre os diferentes
conjuntos de normas. Os diversos parâmetros e processos decisórios apresentados
nas subseções anteriores demonstram que o tradutor precisa saber balancear
habilmente todas essas coerções e interesses. Seu cliente direto deve ficar
satisfeito com o cumprimento das tarefas combinadas, os produtores e
distribuidores do material devem considerar que este foi traduzido e editado com a
precisão adequada, e o público-alvo deve usufruir satisfatoriamente do produto
sem que algum problema técnico ou no conteúdo da tradução o faça questionar a
confiabilidade ou reclamar da qualidade de produção do material. Porém, nem
sempre todas essas prioridades coincidem, de modo a ficarem todos satisfeitos.
Para concluir esta seção, vejamos uma situação de conflito entre conjuntos
concorrentes de normas.
Exemplo 9 - Conflito de normas.
Fui contratada pela produtora Drei Marc para realizar o serviço de
tradução do inglês para o português do filme de ficção de longa-metragem (drama,
comédia) The madness of King George (As loucuras do rei George), dirigido por
Nicholas Hytner, Reino Unido, 1994, a ser exibido num dos canais Telecine,
pertencentes à Globosat. A produtora do filme é a Samuel Goldwyn Company.
Uma das instruções mais coercivas de meu cliente direto é que os
tradutores se ajustem às regras estabelecidas em seu Manual de legendagem (Drei
Marc, 2003), que é atualizado e ampliado cerca de duas vezes ao ano. Nenhuma
das regras ali contidas pode ser descumprida sem uma prévia negociação. O
manual é bastante abrangente e inclui vários procedimentos referentes ao processo
de tradução e pós-produção, padrões de marcação de tempo e segmentação de
legendas, e preferências sintáticas e estilísticas da Drei Marc determinadas por seu
Carolina Alfaro de Carvalho 128
Podemos ver que, ao longo de quase toda essa seqüência, o intervalo entre
a pietagem de saída de uma legenda e a de entrada da legenda seguinte é de 4
quadros, o que entra em conflito com a regra (iii) de meu cliente direto e do
cliente dele. E uma legenda longa como a de número 837, com quase 5 segundos,
ficaria melhor aos olhos de meu cliente se dividida em duas, principalmente em
função do ritmo dos diálogos que constatei no material audiovisual, transcrito
abaixo empregando as mesmas convenções das transcrições anteriores.
A tradução para legendas 131
Pode-se ver que há apenas dois intervalos entre legendas: são aqueles entre
as legendas 6 e 7, com quase 10 segundos, e entre as legendas 10 e 11, com pouco
Carolina Alfaro de Carvalho 132
menos de três segundos. Todas as outras não possuem intervalo, visto que este
teria menos do que 10 frames. Com relação à segmentação, além de subdividir o
segmento 837 do roteiro (linhas 3 a 6 na transcrição), reestruturei as legendas 11 e
12, referentes aos segmentos 844 e 845 do roteiro (linhas 16 e 17 na transcrição),
para poder dar uma redação ao texto em português mais direta e menos calcada na
estrutura da língua inglesa.
Neste caso, o conflito entre as normas não chegou a se instalar graças às
prioridades explicitamente estabelecidas no manual de meu cliente e às minhas
próprias nesse contexto. A produtora desse material provavelmente não realizará o
controle de qualidade da tradução e, de qualquer modo, trata-se de outro meio,
com normas distintas. Mas poderia não ser assim.
Diferentemente dos Estados Unidos e dos principais países europeus,
culturalmente hegemônicos, o sistema brasileiro não só importa produtos de
outras culturas e traduz a grande maioria deles aqui, como empenha esforços para
conseguir exportar seus materiais a outras culturas, investindo recursos e muito
trabalho para que cada produto exportado encontre um lugar na cultura de
chegada e providenciando aqui todo o trabalho de tradução para as principais
línguas estrangeiras. Nesse sentido, a legendagem também difere da tradução
literária e de outras formas de tradução audiovisual, como a dublagem, que
geralmente são feitas na cultura de chegada. Em função desse conjunto de
esforços para inserir os produtos em outros sistemas, produtores, distribuidores e
diretores brasileiros exercem um controle bem mais rigoroso sobre o processo de
tradução de seus materiais do que no caso da imensa maioria dos produtos
estrangeiros trazidos para a nossa cultura. Esse controle dos criadores
ocasionalmente gera conflitos com as empresas contratadas para realizar a
tradução. Por exemplo, muitas vezes os criadores do filme tendem a zelar por uma
tradução mais adequada (no sentido empregado por Toury) de seu material,
enquanto os responsáveis pela tradução costumam priorizar a recepção de seu
trabalho, preferindo uma tradução mais aceitável na cultura de destino.
Se o exemplo visto acima envolvesse a versão de um material brasileiro
cuja equipe de produção controlasse a qualidade da tradução segundo seus
parâmetros e meu cliente direto fosse a Drei Marc, como intermediária, o conflito
de instruções poderia dar margem a negociações explícitas para determinar as
normas prioritárias, de acordo com os objetivos da tradução e as supostas
A tradução para legendas 133
expectativas do público.
reação, não estaria empregando o nome tecnicamente correto das ilhas. Optei
então por evitar esse problema fazendo referência ao Havaí — solução isenta e
livre de controvérsias. No relatório que entreguei à Drei Marc juntamente com a
tradução, expliquei por que decidi tirar a referência a Sergipe e como cheguei ao
Havaí, o que foi aceito pelo setor de controle de qualidade. Reflexões deste tipo
evidenciam o peso de fatores pessoais, subjetivos, em diversas decisões tomadas
pelo tradutor.
Passamos assim ao terceiro interesse desta pesquisa, conforme apresentado
na Introdução: dar início a uma reflexão sobre a parcela de singularidade presente
na tradução para legendas, sobre aquele espaço do processo tradutório que não
pode ser ocupado por duas pessoas diferentes, por mais próximas que estejam
num mesmo contexto — um espaço que não se deixa dominar totalmente pelos
interesses e normas do sistema em que se encontra o indivíduo.
V
A SUBJETIVIDADE NA TRADUÇÃO PARA LEGENDAS
44
Needless to say, no translation event can be said to have taken place unless an art of translation
was indeed performed. On the other hand, at least in socially-relevant instances of translation […],
all cognitive processes occur within contexts which constitute events. This much I believe should
be taken for granted, and it should be justification enough for approaching the overall event in
sociocultural terms.
Carolina Alfaro de Carvalho 138
V.1 O sujeito-tradutor
Na obra que informa a maior parte deste capítulo, Maria Paula Frota (2000)
aproxima Psicanálise e Estudos da Tradução no intuito de superar a dicotomia
sujeito/objeto que ainda subjaz às teorias de tradução atuais e com base na qual se
dá o apagamento — ou ao menos o recalque — do aspecto subjetivo da tarefa do
tradutor, apagamento que ocasionalmente cede o lugar a atos idiossincráticos
supostamente capazes de manipular textos ou transformar sistemas.
A reflexão de Frota parte do Estruturalismo saussuriano para explicar parte
da atual postura adotada por muitos teóricos pós-estruturalistas da tradução. Por
um lado, a langue — objeto de estudo da Lingüística, segundo Saussure — foi
caracterizada como um sistema lingüístico abstrato e estável, referente ao
A subjetividade na tradução para legendas 139
da linguagem. Por um lado, o sujeito não é livre, senhor de seus atos, pois é
assujeitado pelo discurso que permeia toda a realidade que o cerca. Ele é, nesse
sentido, sobredeterminado pela língua, pela história, pela cultura, pela ideologia,
pelo inconsciente. Mas, por outro lado, tais realidades não independem do sujeito
— elas o constituem, mas também são por ele constituídas. Por meio do discurso,
o sujeito é capaz de agir sobre a realidade.
Essa interferência se dá de modo especial através de formações discursivas
singulares, isto é, enunciados que transcendem tanto a “intenção” consciente do
falante quanto as possíveis interpretações em circulação num determinado
contexto social, remetendo portanto a uma instância íntima do sujeito. Nas
palavras de Frota, “formas e sentidos singulares não acontecem a partir do falante
ou da língua, tomados isoladamente, mas de ambos” (ibid: 135). “Porque referidos
a uma dimensão social, [língua e sujeito] apresentam uma faceta de estabilidade,
de previsibilidade; porque imbricados ao desejo, apresentam uma faceta de
imprevisibilidade e de ruptura.” (ibid: 232.)
A autora então traz esse insight sobre a singularidade para o âmbito da
tradução, para através dela explorar a subjetividade do tradutor. E argumenta:
45
El TM no sólo se debe adecuar a las numerosas limitaciones impuestas por el medio […] sino
que también ha de someterse al escrutinio comparativo y evaluador de una audiencia que, por regla
general, suele tener un conocimiento (variable y discutible) de las lenguas en lidia […].
A subjetividade na tradução para legendas 145
Personagem # Transcrição
Padre 1 El señor ... quien observa todas nuestras
2 acciones y pensamientos ... nos permite hoy ...
3 celebrar el matrimonio de Norma y Antonio ...
4 El señor quiso que todas sus criaturas tuvieran
5 una razón de ser ... un sentido...
6 Dios formó lindas las flores ... delicadas como
7 son ... les dio toda perfección y cuanto él era
8 capaz ... pero al hombre ... le dio más cuando le
9 dio el corazón ... le dio claridad a la luz ...
10 JUERRza en su carrera al viento ... le dio vida y
11 movimiento dende la águila al gusano ... pero más
12 ... le dio al cristiano al DARle el
entendimiento...
Rafael 13 Sí quería un cura gaucho lo traía
14 a Enrique Muiño
[Na fala seguinte, o noivo pede ao padre para
encurtar o sermão e em seguida o padre pede para
os noivos fazerem as promessas.]
Figura 20 - Transcrição de trecho de diálogo (Exemplo 10).
o que fiz foi substituir um enunciado por outro, totalmente diferente, que procura
informar ao público: esses versos são da obra Martín Fierro. Comuniquei essa
alteração a meu cliente, por escrito, e ela foi acatada.
Minha justificativa para a solução que adotei nesse caso se baseia
sobretudo em minha preocupação com os espectadores do filme. Dentro das
restrições dessa modalidade de tradução, procurei fazer algo semelhante a
incorporar ao texto uma nota explicativa, como tantas vezes fazem os tradutores
de literatura. Sei que muitos espectadores não saberão o que é Martín Fierro, mas,
perguntando entre conhecidos, constatei que vários têm ciência de que se trata de
uma obra literária clássica argentina. Inferi que a menção a um ator falecido há
tanto tempo também não seria totalmente óbvia ou não causaria muita graça para
o público argentino mais jovem que não o conhecesse. Então, eu também dediquei
minha reescrita a um público mais restrito, capaz de reconhecer a referência à
obra Martín Fierro. Considerei que, se o diretor do filme não viu por bem facilitar
a compreensão do público jovem ou pouco conhecedor de cinema argentino
antigo, eu também não precisaria simplificar o enunciado ao ponto de ele ser
plenamente compreendido por todo o público brasileiro, sacrificando assim a
referência a uma obra literária tradicional. Se algum espectador ficasse intrigado
demais com essa referência, poderia inclusive investigar o que é Martín Fierro e
aprender um pouco mais sobre a cultura argentina.
Acima de tudo, trata-se de uma decisão singular. Assim como no caso da
comparação entre a área do Timor Leste e a de Sergipe, é bem possível que outros
tradutores decidissem intervir de forma incisiva na tradução desse trecho, mas
altamente improvável que qualquer outra pessoa — ou eu mesma, num contexto
um pouco diferente — fizesse as mesmas considerações que fiz nessas
circunstâncias e chegasse ao mesmo resultado. Minha escolha final é
conseqüência não apenas da modalidade de tradução, do meio de veiculação, das
instruções de meu cliente e das línguas envolvidas, mas também de minha história
pessoal, minha interpretação e sentimento com relação ao filme, minha relação
com a cultura argentina, a concepção que tenho de minha identidade e minha
posição na cultura brasileira. Tudo isso informou as inferências que fiz com
relação ao público e as decisões que tomei com base no que julguei ser melhor
para ele. Essa formação singular fica portanto exposta, através de uma forma de
tradução vulnerável, a inúmeros outros sujeitos, com vivências e interpretações
Carolina Alfaro de Carvalho 150
também singulares, ainda que unidos por uma língua e uma cultura que tendemos
a agrupar na forma de um grande sistema.
Exemplos como esse nos levam a refletir sobre algumas questões éticas —
que, em consonância com a citação de Pym feita na Introdução deste trabalho,
precisam ser contextualizadas e situadas antes de se buscar uma generalização. A
postura ética que procurei adotar como tradutora foi no sentido postulado por
Antoine Berman. Para ele, a tradução antiética é a tradução etnocêntrica, que,
“sob pretexto de transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza
da obra estrangeira” (Berman, 2002:18), sendo a tradução ética aquela que
preserva a marca do estrangeiro. Segundo minha compreensão, trata-se de um
filme explicitamente argentino de um gênero que não se encaixa nos estereótipos
da maioria dos filmes comerciais, destinado a um público relativamente restrito
que julguei capaz de entender referências um pouco mais herméticas. Supus que
esses fatores não justificariam uma neutralização maior do texto original, como a
que tantas vezes se pratica na legendagem de produtos destinados a um público
mais vasto e heterogêneo.
Sob a perspectiva do relacionamento profissional com meu cliente —
neste caso específico, a produtora Drei Marc —, a ética diz respeito
principalmente à observância das normas estabelecidas. Mas se o tradutor não
violar nenhum procedimento profissional, parâmetro técnico ou norma gramatical
ou estilística estabelecidos no manual ou nos materiais de referência por este
indicados, ele tem um grau considerável de liberdade para reescrever o texto da
forma que lhe parecer mais apropriada. No caso de alterações significativas com
relação ao original, adaptações culturais ou reescritas mais “criativas” que possam
gerar indagações do controle de qualidade ou do cliente final, pede-se que o
tradutor faça as observações pertinentes no relatório que deve enviar juntamente
com o arquivo de legendas. Ao se demonstrar a intenção de reescrever o texto de
uma certa forma e apresentar as justificativas que informaram tal decisão, fica
caracterizada a singularidade como algo motivado, evitando-se assim que ela seja
entendida como um erro de compreensão ou uma distração. O controle de
qualidade do cliente direto ou indireto pode nem sempre concordar com a decisão
tomada, mas ao menos as qualificações profissionais básicas do tradutor não
ficam abaladas, o que comprometeria a continuidade da relação com seu cliente.
Mas e no caso do público? Como já foi dito, suas expectativas com relação
A subjetividade na tradução para legendas 151
46
If we looked more closely at those people and the configuration of that space [intercultural
space], we might find rather more than target-system determinism.
A subjetividade na tradução para legendas 153
ARAÚJO, V. L. S. (2000). Ser ou não ser natural, eis a questão dos clichês de
emoção na tradução audiovisual. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
DELABASTITA, D. (1990). Translation and the mass media. In: Translation, history
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TOURY, G. (1991). What are descriptive studies into translation likely to yield
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TOURY, G. (1995a). The nature and role of norms in translation. In: Descriptive
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