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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

A NOTICIA COMO DISPOSITIVO


DE ENUNCIAÇÃO CONTEMPORÂNEO 1
Mozahir Salomão Bruck 2

Resumo: Este artigo toma como ponto de partida reflexões de Giorgio Agamben (2009) sobre os dispositivos
na contemporaneidade. Para o autor, os dispositivos adquiriram um caráter de mecanismo de sujeição e para que
voltem a se constituir como vetores efetivos de subjetividades precisariam ser ‘profanados’, ou seja, seria
necessária a restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses. Propõe, assim, uma nova
ordem para os dispositivos. Tomando-se como válido o pressuposto de que, como dispositivo contemporâneo de
enunciação, a notícia – bem como seus formatos e estruturas de circulação – acaba menos por contribuir para
que o indivíduo construa efetivas possibilidades de conhecer-se e localizar-se no mundo, e mais por alimentar a
tendência à efetivação de processos de dessubjetivação, é que este artigo apresenta sua pergunta: o que seria
hoje profanar o jornalismo? Valemo-nos para este estudo da noção foucaultiana de dispositivo e das leituras
sobre esta de Agamben e Deleuze.

Palavras-Chave: Notícia Dispositivo Agamben Deleuze

1. Considerações táticas
O provocativo ensaio de Agamben (2009) acerca do que pode ser compreendido como
dispositivo, na e em função da contemporaneidade, se oferece como oportunidade de
reflexão, no campo do jornalismo, sobre as notícias e os noticiários/veículos que os
enquadram e emolduram como dispositivos de enunciação que alimentam uma intensa rede
de distribuição e de tensão entre discursos nos mais distintos e amplos campos da vida social.
Para tanto, movidos pela conceituação de Agamben e das aproximações desta com sua matriz
foucaultiana, optamos por tentar recuperar, no campo comunicacional, como se deu a
apropriação do termo ‘dispositivo’ e também a apropriação de um conceito próximo, muitas
vezes empregado como um par, que é a noção de ‘suporte’. Do ensaio de Agamben
interessou-nos mais especificamente os apontamentos do autor em relação às circunstâncias e
modos da presença na sociedade contemporânea dos dispositivos e as complexas teias de
relações e, especialmente, de representações e imaginários que esses tecem e nas quais
operam.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Jornalismo do XX Encontro da Compós, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, de 14 a 17 de junho de 2011.
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC Minas, Doutor,
mozahir@uol.com.br.

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Buscamos em Gilles Deleuze, que a exemplo do recente texto de Agamben, constroi


sua reflexão a partir de Foucault, a formulação sobre dispositivo que nos pareceu que mais
contribuiria para fundamentarmos nossa ideia. Elegemos a percepção deleuzeana, clara e
devidamente tributada a Foucault, e que percebe o dispositivo como um “conjunto
multilinear, composto por linhas de natureza diferente” (DELEUZE, 1996, p.83).
Entendemos que seria esse um proveitoso caminho para pensarmos notícia/noticiários como
dispositivos de enunciação contemporâneos tomando a arquitetura conceitual em que os
dispositivos são percebidos por feixes de linhas de naturezas diversas e originadas em
distintas dimensões e que, a todo momento, se entrecruzam.
Para Deleuze, pensar uma “filosofia do dispositivo” significa levar em consideração
que os dispositivos têm por componentes diversificados tipos de linhas (de enunciação, de
força, de fratura, de subjetivação etc) que se entrecruzam e se misturam. Entre as
conseqüências desse frenético e instável modo de existência dos dispositivos, estaria o fato de
que cada dispositivo se torna uma multiplicidade na qual diversos processos operam em
devir, e assim agem distintamente em cada dispositivo.
E como enxergar a notícia/noticiários/veículos como dispositivos, aplicando-lhes essa
perspectiva? Como indica o próprio Deleuze, desenredar as linhas de um dispositivo é
“construir um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas”, o que Foucault denominava
de ’trabalho de terreno’. E só é possível fazê-lo se nos dispusermos a “instalarmo-nos sobre
as próprias linhas”, sabendo, a priori, que essas não se detêm apenas na composição de um
dispositivo, “mas atravessam-no, conduzem-no, do norte ao sul, de leste a oeste, em
diagnonal” (DELEUZE, 1996, p.84).
O discurso jornalístico – priorizando aqui as notícias e outras unidades e séries
narrativas que lhe dão forma - é resultado de complexas dinâmicas em que se articulam
estruturas, processos de produção, contratos de leitura, paradigmas deontológicos, éticos e
técnicos e, ainda, os conteúdos, tidos como a matéria-prima que emerge da vida cotidiana, do
real. Mais que isso, é um discurso essencialmente orgânico e motriz por natureza e
circunstância inescapável. Como se dirá à frente, a notícia pode ser entendida como um
dispositivo de enunciação, mas também instala regimes de visibilidade – e por isso mesmo
poder-se-ia considerá-la como linhas de força e de luz, produtoras de curvas de visibilidade e

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de enunciação3, envolvendo e impactando outros dispositivos sociais. Ao mesmo tempo,


pode-se afirmar que os modos de produção, circulação e também o impacto sócio-político-
econômico-cultural da notícia e suas estruturas de produção e distribuição têm se alterado
intensamente.
Por ora, nossa perspectivação, dentro do que permite a extensão deste artigo, se detém
sobre o jornalismo e a partir da notícia/noticiários como dispositivos enunciativos, buscando
ir ao encontro, da inquietante provocação que nos faz Agamben ao final do ensaio O que é
um dispositivo?: é urgente que se agende a “profanação dos dispositivos – isso é, que se
proceda a restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses”
(AGAMBEN,2009, p.51). No entendimento do autor, os dispositivos apenas cumprirão suas
funções originais se aqueles que deles se encarregam estiverem em condições de intervir
sobre os processos de subjetivação, assim como sobre os próprios dispositivos. Se a chamada
contemporaneidade estabeleceu para distintos campos de conhecimento e áreas de atuação
profissional – nomeadamente aqueles que lidam com a produção de natureza simbólica –
novos paradigmas, estratégias e parâmetros de produção de sentido, com o jornalismo não
tem sido diferente.
Tomando-se como válido o pressuposto de que, como um dispositivo contemporâneo
(na perspectiva de Agamben) de enunciação, a notícia – e, por assim dizer, o conjunto dos
discursos jornalísticos, assim como os formatos e suas estruturas de distribuição – acaba
menos por contribuir para que o indivíduo constitua efetivas possibilidades de conhecer-se e
localizar-se no mundo a sua volta, e mais por alimentar esta tendência à efetivação de
processos de dessubjetivação, é que este artigo esboça sua pergunta: o que seria hoje profanar
a notícia, entendendo esta como dispositivo? O que, em termos do jornalismo, significaria,
como defendeu Agamben, restituir ao uso comum daquilo que foi capturado e separado
neste? E se realmente assim se deu, em que o jornalismo da contemporaneidade foi, enfim,
mutilado?

3
Em O que é um dispositivo, Deleuze(1996) procura deslindar a noção foucaultiana de dispositivo apresentando
os diversos elementos recorrentes no que ele mesmo denomina de uma ‘filosofia do dispositivo’. Compõem os
dispositivos, assim, dimensões (visibilidade, de enunciação e de poder) em que se originam e por onde também
passam linhas de luz, de força e de subjetivação.

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2. Suporte e dispositivo: conceitos amplos


Não sem motivo, é possível perceber certa permissividade por parte de autores dos
mais diversos campos de conhecimento no que diz respeito ao uso dos termos dispositivo e
suporte. Algumas vezes, esses aparecem em textos como a indicação de noções tão
aproximadas que, naquela aplicação, poderiam ser percebidos como sinônimos. Por vezes, os
significados que evocam apresentam divergências entre si, mas, especialmente, chamam a
atenção pela imprecisão das qualificações e sentidos que acabam por produzir. Não se pode
desconsiderar, importante dizê-lo, que mesmo no discurso científico tais denominações nem
sempre são devidamente descoladas dos próprios significados que adquiriram e adquirem no
senso comum.
A respeito dos termos mencionados – suporte e dispositivo - pode-se afirmar que seus
usos ganham contornos, muitas vezes, de um recurso retórico que os lança em condições e
circunstâncias de um conceito geral4. É um primeiro dizer, uma sinalização inicial que, como
recurso, permitirá à especificação e detalhamento da ideia à qual se deseja dar a conhecer.
Poderíamos nomeá-la de uma ‘ideia-força’ que alavanca o dizer, lança pontes à tentativa de
melhor compreensão do conceito de fundo – o processo, ou seja, a nuclear especificidade do
conhecimento em questão. Em muitas situações, a ideia de dispositivo acaba por nomear um
movimento, uma circunstância, uma passagem - menos que um processo ou uma fase de um
processo, um estado.
A utilização de termos como dispositivo e suporte esteja, muitas vezes, entre aquelas
formulações conceituais em que vemos operadas estratégias de nomeação de conceitos, que,
além da designação conceitual, muitas vezes parecem querer dar visibilidade à própria noção
a que se referem, como nos alerta Lucrecia D’Alessio Ferrara (2010). Mesmo percebendo
riscos de redução conceitual em função das operações de nomeações, essa passagem da
abstração ao concreto (a nomeação), se dá em função da efetiva necessidade que a ideia seja
nomeada, pois é carente de um modo de dizer que a nomeie e a torne visível. “Ou seja, o
conceito submete suas categorias aos nomes que, para classificar, devem distinguir
(FERRARA,2010, p.53). Pois o nome dado propiciará o hábito de repetição do conceito

4
Tomamos aqui a ideia de ‘conceito geral’ aqueles para termos de aplicação genérica, mas predicativa e
preditiva que antecipam, no sentido de uma pré-legibilidade, e auxiliam na compreensão da noção/ideia em
descrição.

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“com sua conseqüente explicação totalizante, como se designar o mundo pelo seu nome
conceitual fosse suficiente para a atividade investigativa”. (FERRARA, 2010, p. 53):

Se o conceito corresponde àquela necessidade disciplinadora e codificadora do


mundo, seu nome deve corresponder a uma espécie de registro causal das
manifestações do mundo, de modo que acreditamos conhecer através dos nomes
que atribuímos às coisas que queremos conhecer.
[...] Através do nome pode-se montar entre o conceito e o mundo uma articulação
orgânica, uma mediação que utiliza a imaginação ou a ficção para construir a
adesão própria à comunicabilidade científica de um conceito. (FERRARA,2010,
p. 53)

Antes de ‘dispositivo’, talvez, o termo suporte é que primeiro tenha aparecido nos
estudos de comunicação. Aliás, muitas vezes o termo ‘dispositivo’ é percebido como uma
readequação e sofisticação ou aprimoramento em relação ao primeiro. Cabe lembrar que
ambos já estavam presentes, de modo corrente, em distintas áreas de estudo como as ciências
exatas, biológicas, áreas outras como a psicologia e psicanálise e ainda no campo da
lingüística e da literatura. Na comunicação, a utilização do conceito de suporte avançou de
uma perspectiva técnico-tecnológica para o plano das estruturas de produção, chegando aos
estudos de natureza narrativa – os conteúdos e os discursos. Com a noção de ‘dispositivo’
também não foi diferente.
Mesmo não sendo o objetivo deste artigo se dedicar ao aprofundamento etimológico e
epistemológico de tais conceitos, não podemos nos furtar, no entanto, de explicitar qual
noção de dispositivo – base desta reflexão – pretendemos lançar mão. Não se deve entender o
dispositivo como o suporte técnico no qual os discursos são enunciados e por meio do qual se
propagam. Referem-se, antes a matrizes dinâmicas que orientam e que co-determinam os
vínculos que os receptores estabelecem com essa oferta discursiva. Os dispositivos
constituem-se por estruturas, agenciamentos e pontos de vinculação em que há um modo
próprio de significar: as discursividades. Os dispositivos têm autonomia para produzir suas
tessituras, mas que seguem também prescrições que vêm de outros campos. É um permanente
jogo, uma disputa de validação, em que engrenagens não rígidas e muito menos constantes se
movimentam e se alteram.
Antes de Foucault, já no pós-guerra, autores como Heidegger (a essência da técnica
como desocultamento e a visão moderna da técnica, o Ge-steell – o aparato, o dispositivo),
Simondon, e depois desses, pensadores como Deleuze, Aumont, entre outros vários, se
dedicaram à tarefa complexa de tentar explicitar o que o dispositivo pode expressar, tentando

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compreendê-lo de modo mais aprofundado e articulado ao pensamento filosófico. Mais


recentemente, Agamben se valeu da noção de dispositivo desenvolvida por Foucault e
Deleuze e apresentou releituras relacionando-as a condições determinadas pelo que se
convencionou denominar contemporaneidade.

3. Entre Foucault e Agamben: a noção deleuzeana de dispositivo


Em textos homônimos, Agamben e Deleuze tentaram, mais do que explicar o que é o
dispositivo em Foucault - e talvez não fosse esse realmente o foco mais importante – nos
mostrar a que Foucault se referiu quando tratou dos dispositivos. Mais ainda, dentro do
pensamento foucaultiano, discriminar não apenas a importância desses estudos, mas por que
o filósofo francês se deteve na tentativa de melhor compreendê-lo e a importância de estudá-
lo na perspectiva dos regimes de visibilidade e de poder.
Em sua leitura sobre os dispositivos, a partir de Foucault, Gilles Deleuze (1996)
assinala que a história dos dispositivos é a história dos regimes de luz e dos enunciados.
Ressalta, enfaticamente, que o dispositivo é uma ocorrência em que perpassam
enfeixamentos de linhas em movimento e de curvas que são tangenciadas em função de
variáveis múltiplas que lhe são internas e externas. Linhas de força, linhas de luz e linhas de
enunciação que não circunscrevem ou envolvem sistemas homogêneos. Antes, seguem
direções, traçam processos que se mostram sempre em desequilíbrio e que continuamente se
afastam e se aproximam uma das outras.
Deleuze destaca também as dimensões que compõem um dispositivo: de visibilidade,
de enunciação, de subjetivação e, por fim, o conceito matricial em Foucault, a dimensão do
poder – que Deleuze afirma ser a terceira dimensão do espaço, interior ao dispositivo, e, por
isso mesmo, variável com e como eles. Por último, Deleuze nos lembra que estamos todos, de
algum modo, ligados a dispositivos e neles agimos. E que o dispositivo, agente motriz do
mundo, mas também sempre resultado desse mundo, tende à atualização. Ao novo. Por isso,
pode-se dizer que a atualidade de um dispositivo é sempre a novidade de um dispositivo em
relação aos que o precederam.

O novo é o actual. O actual não é o que somos, mas aquilo em que vamos nos
tornando, aquilo que somos em devir, quer dizer, o Outro, o nosso devir-Outro. É
necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais)
e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do actual. (DELEUZE,
1996, p.92)

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Deleuze nos deixa, em seu texto, contundentes questões acerca do jogo história>>
razão >>subjetivação e, talvez, com elas a expressão de um profundo desejo de que a
filosofia do dispositivo de Foucault fosse mais radicalmente compreendida. Recupera em
Foucault a força da revelação que traz o diagnóstico e a descrição do dispositivo, pois
“dissipa em nós a identidade temporal em que gostamos de olhar para nós próprios para
exorcizar as rupturas da história”. (FOUCAULT, 2009, p.149). Uma das grandes
interrogações que Foucault nos deixa, na opinião de Deleuze, diz respeito aos novos modos
de subjetivação em um mundo que se altera cada vez mais rapidamente. Os dispositivos, para
Foucault, traduzem, de algum modo, como o mundo se move, se estrutura em termos das
redes de poder e dos seus regimes de visibilidade e, por isso mesmo, como se atualiza. Daí, a
enorme importância que ele lhes dá no curso de seus estudos.

4. Acerca do conceito de dispositivos midiáticos e enunciativos


Os termos suporte e dispositivo passaram a receber atenção e, portanto, estarem mais
presentes no vocabulário usual das ciências da comunicação, pode-se dizer, nas últimas cinco
décadas. Não seria incorreto afirmar que a captura e perfiliação desses conceitos por parte
dos pesquisadores da área da comunicação tiveram o patrocínio das importantes e
rapidíssimas mudanças verificadas na complexificação dos processos de produção e
circulação da informação, destacadamente a partir da gigantesca onda de digitalização e
virtualização do ambiente comunicacional.
A ideia dos meios de comunicação, massivos ou não, como ‘canal’ ou como ‘suporte’
ganhou força em nosso pensamento comunicacional, e também pode-se dizer, em nosso
imaginário comunicacional, especialmente a partir de Marshall Mcluhan5, na década de 1960.
A reiterada noção de que o meio é a mensagem parece ter levado ao extremo o entendimento
de que o meio, o canal, a tecnologia a partir da qual a comunicação se estabelece, não apenas
constitui a forma comunicativa, mas determina o próprio conteúdo da comunicação. Para o
autor canadense, o meio é a mensagem porque é o meio que configura e controla a proporção
e a forma das ações e associações humanas. O conteúdo ou usos desses meios, segundo o
autor, seriam tão diversos quanto ineficazes na estruturação da forma das associações

5
McLuhan publica, juntamente com Quentin Fiore, em 1967, The Medium is the Message: An Inventory of
Effects,.

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humanas. Para Mcluhan, seria bem compreensível o fato de o “conteúdo” de qualquer meio
nos cegue para a natureza desse mesmo meio. Algumas percepções de Mcluhan sobre
estruturas, canais ou suportes e conteúdos, alimentaram uma visão excessiva da força dos
meios sobre os conteúdos. Percepções que, nas últimas décadas vieram sendo revistas e
criticadas.
Os dispositivos receberam nos últimos anos olhares múltiplos, de lugares distintos,
Estudos que buscaram percebê-los de perspectivas diversas, determinadas, claro, pelo
interesse específico de cada autor. KLEIN (2011) destaca os estudos de Daniel Peraya, que
apresentam uma perspectiva teórica que ultrapassa a unidimensionalidade do dispositivo
midiático, ou seja, acrescenta um passo importante numa perspectiva mais ampla. Sua
proposta para os dispositivos midiáticos é triádica, onde estão em destaque a sociedade, a
tecnologia e a linguagem. O dispositivo aparece como um lugar das interações entre os três
universos: uma tecnologia, um sistema de relações sociais e um sistema de representações.
Perspectiva próxima pode ser observada em RODRIGUES (1994), que também salienta o
dispositivo como um conjunto de regras “de gestão” das interações (tomadas de palavra,
réplicas, uso de mecanismos de repetição, correção etc.). Para Rodrigues, o conceito de
dispositivo deve associar a linguagem e a sociedade em que esta se insere. Autores como
Chareaudeau, de outra forma, entendem que o dispositivo é a tecnologia enquanto mediação,
através da qual os meios (materiais significantes) são colocados em relação aos suportes. O
dispositivo seria, portanto, composto de elementos materiais, ou seja, do suporte físico que
carrega a mensagem. – um conjunto de circunstâncias materiais.
Mouillaud (2002), ao analisar o jornal como dispositivo, tenta percebê-lo em sua
estrutura multidimensional e de acoplamento de ocorrências distintas.

Os dispositivos não são apenas aparelhos tecnológicos de natureza material. O


dispositivo não é o suporte inerte do enunciado, mas um local onde o enunciado
toma forma. Os dispositivos da mídia também não exercem o simples papel de
contextos. Enquanto que o enunciado e seu contexto podem ser – em uma certa
medida – destacados um do outro (um mesmo enunciado aparecendo em diversos
contextos) [...] e o contexto traz ao enunciado apenas uma variável de sentido, o
local desempenha o papel de uma matriz, de tal maneira que um certo tipo de
enunciado só possa aparecer in situ (sic). (MOUILLAUD, 2002, p. 85)

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5. A notícia e os noticiários como dispositivos de enunciação


O modelo preponderante de jornalismo que se adotou na grande imprensa brasileira
no século passado foi fundado em um contrato com destacadas cláusulas de objetividade e
imparcialidade. O jornalismo, que surgiu antes da própria imprensa6, nasceu, no mundo
ocidental, opinativo e literário. No caso brasileiro, praticamente um século depois de já
instalado em seus países de origem, importamos um modelo marcado pelas promessas de
verdade, isenção e efetiva reposição do acontecimento. O jornalismo no Brasil, e em vários
outros países, buscou radicalmente distinguir seus modos narrativos – demarcando-os como
relatos de pretensa objetividade, de espelhamento do mundo cotidiano e efetiva representação
do fato, ou seja, do real – de escrituras outras que se valem da imaginatividade e de recursos
de dramatização, O caráter noticioso - o DNA que está na sua origem, mas que também é o
seu fim, sua finalidade - é o que geneticamente discriminaria o campo jornalístico e seus
modos e formas narrativas.
Mas especialmente a partir do avanço e popularização da internet, a sensação é de que
experimentamos, na atualidade, um inédito reposicionamento do jornalismo na sociedade. O
jornalismo parece não apenas ter perdido a legitimidade exclusiva de dar visibilidade às
coisas do mundo, mas cada vez mais, ele mesmo, acaba por se perceber como apenas mais
um agente de uma difusa, diferida (BRAGA, 2007) e complexa rede alimentadora de pontos
de vista e discursos sociais a partir das informações que oferece por meio de um modus
operandi que, ainda, lhe é exclusivo. O mundo parece tornar-se cada vez mais informativo e
menos noticioso.
Com abordagens distintas, autores como Sodré (2009), Benetti (2008), Traquina
(2004), Henn (2002) e Gomes (2009), entre tantos outros, assinalam que o jornalismo tem
alterado seus paradigmas tanto em termos dos processos de percepção do mundo cotidiano
quanto em termos dos seus modos e padrões narrativos. Sobre esses processos de
visibilidades e circulação de mensagens, Dayan e Katz enfatizam a coexistência dentro dos
relatos jornalísticos da fábula e da ficção, que se apresentam como uma festa que ressalta
algum valor central da memória coletiva (DAYAN E KATZ, 1999) - uma espécie de
simbiose entre o espetáculo e a participação. DARDENNE e BIRD (1993) chamam a atenção

6
Diz-se, assim, no sentido de que formas e estratégias de preparação e circulação da informação de efetivo e
amplo interesse já estavam presentes antes que os jornais, como passaram a existir na modernidade, se
estabelecessem como tal.

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para o fato de que mais do que um mecanismo de apresentação e representação do cotidiano,


a notícia institui-se como um mecanismo de interpretação do real. Para os autores, assim
como as narrativas míticas, a enunciação noticiosa só tem significado no contar e, portanto,
requer reiteração e seriação. Ou seja, por estratégias bem similares as dos mitos, as notícias,
para terem força enquanto tal, devem ser constantemente recontadas, em uma estratégia em
que os temas são rearticulados e reinterpretados ao longo do tempo, mas construídas a partir
de modelos, de arquétipos – ou seja, reconhecemos aquela estória, independentemente de
suas variações.
Observe-se, no entanto, que a anunciada crise de identidade vivida pelo jornalismo em
suas configurações em termos de campo de conhecimento imediato, de sua função e papéis
sociais e como atividade profissional (a luta que já não é recente em torno da regulamentação
da profissão de jornalista tem aspectos mais profundos do que exclusivamente um embate
entre classes) parece, entre outras explicações, resultar de movimentos que aproximam o
discurso jornalístico de discursos outros de marcante viés dramático ou ficcional.
Movimentos concomitantes e sísmicos. Internos e externos ao jornalismo como campo de
circulação de um tipo de conhecimento que é perecível e imediato.
A sensação é de que, em devir, estejamos experimentando, no jornalismo, o novo
mencionado por Deleuze. Se o atual “não é o que somos, mas aquilo em que nos vamos
tornando” (DELEUZE, 1996, p.92), como afirma o filósofo francês ao referir-se à pulsão do
dispositivo para a atualidade, é preciso, por isso mesmo, ter mais prudência nas análises que
tentam dar conta dos movimentos que percebemos nos modos, formatos e configurações
narrativas da notícia e dos processos e rotinas que a instituem. Por isso, é imprescindível
recuperar na teoria da enunciação de Foucault uma noção fundamental: em termos dos
elementos e critérios para análise, o autor privilegiava menos a <originalidade> e mais a
<regularidade> dos enunciados. Deleuze nos mostra que essa regularidade referia-se à “linha
da curva que passa pelos pontos singulares, ou valores diferenciais do conjunto enunciativo”
(DELEUZE, 1996, p. 91). E faz-se aí necessária uma distinção: o original não significa
exatamente o novo, pois este ainda está em construção e é revelado não pela sua emergência
exclusiva e inédita, mas por revelar-se como ponto reincidente. Pode-se tomar como exemplo
uma análise dos modos de fabulação no telejornalismo atual. Na edificação metodológica e
constituição do corpus de análise, sendo esse o caso, deve-se tentar perceber eventuais
elementos de alteração, mas que incidam com regularidade e sinalizem para mudanças na

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própria essencialidade do objeto de estudo. Não é o original, o episódico e eventual, o inédito


(termo que Foucault rejeitava) que é o suficiente para atestar uma tangência – uma mudança.
A novidade, no sentido que lhe confere Deleuze, requer tendência. Requer regularidade.
Pensar a notícia como um dispositivo de enunciação significa buscar percebê-la a
partir dos dinâmicos, intrincados e opacizados processos que a instituem, a saber, as rotinas
produtivas do jornalismo (WOLF, 1999), mas também a partir de suas linhas de força, de luz
e de enunciação. Como assinala Deleuze, a visibilidade dos dispositivos é feita de linhas de
luz que formam figuras variáveis. “Inseparáveis de um dispositivo ou de outro – não remete
para uma luz em geral, que viria iluminar objetos pré-existentes”. (DELEUZE, 1996, p.84). A
importância disso, nos mostra Foucault, é que como os enunciados remetem para linhas de
enunciação sobre as quais se distribuem distintamente seus elementos e sendo as próprias
curvas (de visibilidade e de enunciação), elas mesmas enunciadas, pode-se dizer que as
enunciações são curvas que distribuem variáveis. Ou seja, num dado momento, campos como
o jornalismo são definidos precisamente pelos regimes de enunciados a que dão origem. A
notícia é atravessada, assim, por linhas que agonicamente lhe tangenciam (curvas) em termos
culturais, políticos, ideológicos, psicológicos, estéticos etc. Deleuze destaca, nesse processo,
as linhas de força, que se produzem em toda a relação e atravessam todo o dispositivo.
“Invisível e indizível, ela está estreitamente enredada nas outras e é totalmente desenredável”
(DELEUZE, 1996, p 85). Ou seja, as linhas de força – o poder – se fazem sempre presentes.

6. Agamben: o dispositivo como mecanismo de sujeição


A retomada de Agamben da reflexão sobre o dispositivo tem a marca forte de um
ceticismo em relação a como se desenrolam, na contemporaneidade, os processos de
subjetivação. Para o autor, uma das características do mundo contemporâneo é uma enorme
oferta de dispositivos. Mas ao contrário dos dispositivos ditos tradicionais7, os dispositivos
hodiernos – entre eles o telefone celular, as mídias e a internet – não efetivam o que
Agamben denomina de um ciclo completo de subjetivação – um novo sujeito que se estrutura
e se estabelece a partir da negação de um velho. Para o autor, quanto menos subjetividades
são formadas a partir das relações entre os indivíduos e também pelos e com os dispositivos

7
Essa ideia também inspira-se em Michel Foucault quando, na década de 1970,o autor trata das instituições nas
sociedades disciplinares e dos dispositivos de controle: a família, a escola, a prisão, os hospitais etc.

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contemporâneos, mais e mais dispositivos são criados como tentativa de “sujeição dos
indivíduos às diretrizes do poder” (AGAMBEN, 2009, p. 14).

O que define os dispositivos com os quais temos que lidar na atual fase do
capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto
por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. Um momento
dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação [...]
(AGAMBEN,2009, p.47)
[...] o que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de
dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à
recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer,
espectral. Na não-verdade do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade.
(AGAMBEN,2009, p.47).

Na aproximação possível entre as reflexões de Agamben e sua base foucaultiana, e


aqui retomando, da obra de Agamben, sua intervenção propositiva do que seria uma nova
ordem para os dispositivos de modo que esses efetivamente contribuam para a criação e
afirmação das subjetividades e não seu encolhimento ou apagamento, o que se observa é que
Agamben se vale da filosofia do dispositivo de Foucault, mas se descola dela - na verdade, a
abandona - para pensar o contemporâneo. Ao contrário de Deleuze, que ressalta no
dispositivo sua natureza de instabilidade e de devir, Agamben atomiza as articulações e
intercâmbios de linhas e curvas que fazem dos dispositivos, dispositivos. Para pensá-los na
contemporaneidade, ele os separa dos seus usuários protagonistas, jogando-os numa inscrição
meramente técnica.
É nessa operação que Agamben – separando o que denomina ‘seres viventes’ dos
dispositivos – passa a denominar dispositivo qualquer coisa que tenha a “capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). E o faz
por acreditar, como ele mesmo afirma, que o homem deveria, para só assim subverter o atual
domínio dessa cultura de dispositivos, adotar novos modos e estratégias de convivência com
os dispositivos e uso dos mesmos. O que se observa na contemporaneidade, que Agamben
denomina de fase atual do capitalismo, é que

estes [os dispositivos] não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto por
meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação.
[...] Aquele que se deixa capturar no dispositivo “telefone celular”, qualquer que
seja a intensidade do desejo que o impulsionou, não adquire, por isso, uma nova
subjetividade, mas um número pelo qual pode ser, eventualmente, controlado; o
espectador que passa as suas noites diante da televisão recebe em troca de sua

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dessubjetivação apenas a máscara frustrante do zappeur ou a inclusão no cálculo


de um índice de audiência. (AGAMBEN, 2009, p.48)

Agamben formula, assim, sua perspectiva própria e quase (?) apocalíptica em torno
dos dispositivos. Para ele, as sociedades contemporâneas se apresentam “como corpos inertes
atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não correspondem a nenhuma
subjetivação real” (AGAMBEN, 2009, p.49). Pelo que, para o autor, é possível que se
explique o eclipse da política, que pressupõe sujeitos e identidades reais (o movimento
operário, a burguesia etc.), e o triunfo da oikonomia8, isto é, de uma mera atividade de
governo que visa somente à sua própria reprodução. Agamben não o afirma claramente, mas
é evidente que sua percepção de dispositivo, que emerge dos estudos de Foucault se opõe a
sua fonte. Poderíamos mesmo considerá-la anti-foucaultiana. Desconhece ou recusa na sua
fonte conceitual a percepção autônoma, dinâmica, cinética, deslizante e de interminável devir
dos dispositivos.
Giorgio Agamben não só parece acreditar nela como faz apologia da possibilidade de
uma subversão na gestão e nos usos dos dispositivos. Recorrendo nomeadamente a uma
figura da religião e do direito (profanar>> restituir ao mundo dos homens, ao seu uso e a sua
propriedade, aquilo que estava sob a ordem do sagrado e do religioso), Agamben nos instiga
a pensar o que significa na contemporaneidade restituir os dispositivos ao seu uso comum, ou
seja, o que poderia significar a profanação dos dispositivos.

7. O que seria, enfim, profanar o jornalismo?


Se para aqueles que refletem sobre o jornalismo e os que tentam estudá-lo mais
profundamente, este possui uma inerente essência de versão (ALSINA, 2009), ou seja, de
traduzir a construção de um mundo possível9, (o que, por si só, também se coloca como um
posicionamento em torno de apenas mais uma verdade sobre o jornalismo), para os que
consomem as notícias e, geralmente, para muitos que as produzem, o noticiário parece se
estabelecer como um efetivo vetor de verdade. Há algumas décadas, algumas teorias e
estudos tentaram perceber o jornalismo como uma janela entre o leitor e o cotidiano em que

8
Giorgio Agamben recupera a noção teológica de oikonimia (a administração do oikos, a casa). A ideia, segundo
Agamben, tornou-se alternativa para que as instâncias religiosas passassem a ter uma solução para o governo
das ‘coisas do mundo’. Deus, substancialmente é uno, mas quanto a sua oikonomia, como administra sua casa é
tríplice – confia ao filho, como bom pai que é, o desenvolvimento de muitas de suas tarefas e funções, mas sem
perder seu poder e unidade.
9
Tomamos aqui o conceito de Miquel Rodrigues Alsina em A construção da notícia (2009).

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este está inserido. Ao relato do acontecimento seria, então, possível atingir a plenitude de
reposição da cena primária, do fato como ele realmente ocorreu. Percepções mais críticas
acerca do mundo da notícia acabaram por nos mostrar que na sua condição de agente e vetor
social as operações de designação do jornalismo são mais complexas e vão muito além do
que um mero papel de mediação.
Não se pode negar, ao mesmo tempo, que todos os processos e técnicas que o
jornalismo mobiliza para a construção da notícia têm o objetivo de fazer com que o receptor
efetivamente acredite que o que ele recebe é o fato em si e não apenas um mero relato – a
notícia: uma narrativa resultante de complexas rotinas de captura, reescrita e edição (com o
inerente apagamento dos sinais de incongruências e incompletudes internos ao acontecimento
e sua apresentação), perpassadas por um amplo leque de aspectos (in) tensos como interesses
de diversas ordens, limitações de natureza linguageira e determinações de ordem, política,
econômica, deontológica e de cultura profissional, para citar algumas (WOLF, 1999).
Prosseguir em nossa linha de raciocínio acerca da notícia como dispositivo de
enunciação implica dizer que as verdades construídas pelo jornalismo se instituem, em
termos de seus processos de produção e circulação, a partir de um complexo jogo de
intercorrências de inúmeras variáveis e indeterminações. Foucault – que pouco abordou o
jornalismo e os media em seus escritos/conferências/entrevistas - sinalizou que o jornalismo
foi uma invenção fundamental do século XIX e acabou por manifestar o caráter utópico de
uma política do olhar, de toda uma crença moderna de que o poder poderia ser exercido em
uma circunstância de visibilidade completa, numa sociedade transparente. O jornalismo, aí,
como um saber, no sentido foucaultiano: definido pelas combinações de visível e dizível
próprias de cada estrato, de cada formação histórica.
O exercício final desta reflexão, e que foi seu ponto de partida, é ir, na verdade, de
encontro à provocação de Agamben acerca da profanação dos dispositivos. Tomando como
válido o pressuposto de que, como um dispositivo contemporâneo, a notícia menos contribui
para que o indivíduo constitua efetivas possibilidades de conhecer-se e localizar-se no mundo
a sua volta, e acaba mais por alimentar esta tendência à efetivação de processos de
dessubjetivação – faz-se a pergunta sobre o que, em termos do jornalismo, significaria, como
defendeu Agamben, restituir ao uso comum da notícia daquilo que nela foi capturado e
separado nesta? E se realmente assim se deu, em que o jornalismo da contemporaneidade foi,
enfim, mutilado?

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Certamente, não é o caso aqui de ocuparmo-nos de tentar responder às questões


acima. Explico: para os que estudam a notícia, sua estrutura e processos de produção e
configuração, e que sabem-lhe as complexidades e indeterminações, a proposição de
Agamben pode parecer, e os sinais são de que realmente o é, uma simplificação, um
reducionismo de todo o pensamento que Foucault nos legou acerca dos dispositivos.
Acompanhamos, nas últimas décadas, alterações intensas nos modos de produção e
distribuição da notícia e séries narrativas outras do jornalismo. Cabe aqui recuperar Deleuze:
o novo é o atual e o atual não é o que somos, mas aquilo em que vamos nos tornando. Aquilo
que somos em devir, o nosso devir-outro. Toda ação no presente, por isso, é um agir futuro.
Não na perspectiva salvadora e messiânica que nos propõe Agamben (não é à toa que o autor
toma como base de reflexão sobre o dispositivo a noção teológica da oikonomia). Mas em
uma lógica outra, no sentido de que a reflexão crítica e a competência ética e técnica passem
a ser também linhas de força e de luz que atuam nos processos de produção, circulação e
recepção de enunciados, ou seja, no acionamento dos dispositivos do jornalismo. Não se lhes
pode negar, por fim, sua dimensão de instâncias de saber e, sempre, de poder. Pois, como nos
lembra Deleuze, pertencemos inexoravelmente a dispositivos. E neles agimos.
Foucault percebia a verdade como “o conjunto das regras segundo as quais se
distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”
(FOUCAULT, 1979, pg.13). Se a verdade, para Foucault, não existe fora do poder ou sem
poder, certamente o combate a que se referiu Foucault não se daria “em favor” da verdade,
mas em torno do estatuto da verdade e das implicações sociais deste.
Por isso mesmo, como exercício futuro, parece-nos instigante a possibilidade de
cartografar o notícia, levando em consideração suas curvas e linhas de luz e de enunciação,
buscando perceber como essas se enfeixam nas dimensões de visibilidade e de poder. Um
trabalho a ser feito nesse movediço terreno que é o jornalismo, que pode ser considerado um
dos mais complexos dispositivos da contemporaneidade.

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Referências
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