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A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO

EM PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

Elenita de Rício Tanamachi


Marisa Eugênia Melillo Meira

O objetivo deste texto é o de apontar algumas possibilidades de intervenção


concretamente já elaboradas pelas autoras e que se constituem em expressões do pensamento
crítico já construído em Psicologia e Educação.
A Psicologia Escolar é aqui entendida

como área de estudo da Psicologia e de atuação/formação profissional do


psicólogo, que tem no contexto educacional – escolar ou extra-escolar,
mas a ele relacionado – o foco de sua atenção, e na revisão crítica dos
conhecimentos acumulados pela Psicologia como Ciência, pela Pedagogia
e pela Filosofia da Educação, a possibilidade de contribuir para a
superação das indefinições teórico-práticas que ainda se colocam nas
relações entre a Psicologia e a Educação (Tanamachi, 2002, p. 85).

Desta forma, o que define um psicólogo escolar não é o seu local de trabalho, mas o seu
compromisso teórico e prático com as questões da escola. Defendemos que

o melhor lugar para o psicólogo escolar é o lugar possível, seja dentro ou


fora de uma instituição, desde que ele se coloque dentro da educação e
assuma um compromisso teórico e prático com as questões da escola, já
que independente do espaço profissional que possa estar ocupando, ela
deve se constituir no foco principal de sua reflexão, ou seja, é do trabalho
que se desenvolve em seu interior que emergem as grandes questões para
as quais deve buscar tanto os recursos explicativos, quanto os recursos
metodológicos que possam orientar sua ação (Meira, 2000, p. 36).
Considerando a existência de distintas referências teórico-filosóficas e metodológicas
iniciaremos o texto com a discussão de algumas das principais questões teórico-práticas da
Psicologia na educação em uma perspectiva crítica.
Para tanto, apresentaremos as questões mais propriamente teóricas da Psicologia na
Educação, analisando as explicações tradicionais sobre o fracasso escolar e as tendências atuais
do pensamento crítico em Psicologia Escolar, defendendo que o momento atual exige uma
revisão dos pressupostos teórico-filosóficos e metodológicos – sobre o homem em geral, a
formação do indivíduo, as concepções de Educação e de Psicologia – e a delimitação de um novo
sentido para a Psicologia Escolar.
Em seguida apresentaremos algumas reflexões enfocando as possibilidades teórico
críticas de intervenção do psicólogo junto a demanda de queixa escolar e em instituições de
ensino.
Discutiremos a atuação em Psicologia Escolar, anunciando um novo lugar para o
psicólogo, buscando delimitar os elementos da avaliação e da intervenção, as estratégias
principalmente utilizadas e os resultados possíveis.
Embora considerando que tanto no caso da intervenção junto à demanda de queixa
escolar, quanto em instituições de ensino as questões teórico-práticas envolvidas e as etapas do
trabalho sejam as mesmas, em cada um destes momentos de apresentação no texto retornamos a
elas, ao mesmo tempo que destacamos as especificidades a eles pertinentes. Além disso, para
permitir uma compreensão mais ampla do que estamos considerando como atuação do psicólogo
escolar em uma perspectiva crítica, enfocamos principalmente na segunda parte, um exemplo de
encaminhamento de ação junto à demanda de queixa escolar e, na terceira parte, a metodologia e
a sistemática empregada no trabalho em instituições de ensino. Os fundamentos teórico-
filosóficos são retomados em ambas.

I. PRINCIPAIS QUESTÕES TEÓRICO-PRÁTICAS DA PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO

Para apresentar as principais questões teórico-práticas da Psicologia na Educação,


iniciamos com a análise das explicações tradicionais sobre o fracasso escolar, considerando tanto
a realidade educacional brasileira, quanto a história da Psicologia em relação ao movimento de
constituição da sociedade, da Educação e da própria Psicologia como ciência.

2
Análise crítica das abordagens tradicionais em Psicologia Escolar

Dados obtidos por pesquisas realizadas sobre o processo de escolarização no Brasil1,


revelam ausência de escola para todos, evasão ou permanência sem nada aprender
(expulsão/exclusão), índices altos de analfabetismo, mostrando que a impossibilidade de
constituição da condição humana pela via da educação formal é ainda uma realidade em nosso
país.
Situando a história da Psicologia em relação ao movimento de constituição da sociedade,
da Educação e da própria Psicologia como ciência, Maria Helena Patto (1990) aponta-nos como a
Psicologia tem contribuído para justificar esta realidade educacional.
A autora reporta-se ao século XIX para assinalar o momento no qual a contradição vivida
pela burguesia atinge o apogeu, intensificando-se o abismo entre a acumulação de riquezas e as
pequenas conquistas do proletariado que, segregado pela burguesia, já não é mais seu aliado.
Buscar justificar tal abismo é também uma tarefa das ciências humanas que nascem e se
oficializam neste período.
Conforme Patto (1990, p. 17), a burguesia traduz as reivindicações das massas em termos
assimiláveis pela ordem social existente com o auxílio das ciências. Este é o caminho mais eficaz
para permitir uma participação política, sem que tais reivindicações tornem-se ameaças
incontroláveis.
Deste modo a Psicologia, para explicar os ajustes da ordem social capitalista em função
das exigências dos novos momentos históricos de sua recomposição, tem transitado entre teorias
e abordagens que nada mais são do que recursos da Psicologia como ciência para a reordenação
do status quo da própria sociedade, da Filosofia, da Sociologia...
Podemos concluir com a autora que, tendo surgido neste período, a Psicologia mantém-se
até o momento presente, hegemonicamente, reproduzindo esta condição, conforme o quadro a
seguir permite visualizar2.

1
IBGE (2001), Otaviano Helene (1997) e Alceu Ferraro (1999).
2
O quadro busca sistematizar, ainda que de modo bastante esquemático, alguns dos aspectos que caracterizam principalmente as
relações entre o movimento teórico/político, a concepção teórica e a abordagem principalmente presente em cada um dos
momentos deste movimento, os procedimentos, os tratamentos, os termos de referência e onde está situada a origem do problema
em cada caso. Embora simplificado e inacabado, preferimos o quadro porque nos permite melhor visualizar o desenvolvimento da
Psicologia na Educação, em relação com o contexto de nossa sociedade.

3
Movimento Concepção Abordagem Procedimentos Tratamento Termo de Origem do Por que a
teórico e teórica Referência Problema criança não
político aprende?
Darwinismo Teoria do Dom Psicomoteria Testes de Aptidão e Educação Criança No indivíduo Hereditariedade
social ou das Personalidade Especial anormal (determinantes
(consolidação da Aptidões heredológicos)
sociedade Individuais
capitalista)
Movimento Ambientalismo Clínica e - Psicodiagnóstico Psicoterapia/ Criança - Ambiente Fatores
Higienista (Psicanálise x Modificação do (observação/ Orientação problema familiar emocionais ou
(família Behaviorismo) Comportamento entrevista/ história Familiar e desajustado controle
idealizada) de vida) Escolar - Na criança e seus inadequado do
- Condicionar relacionamentos comportamento
comportamentos
adequados e (determinantes da
eliminar personalidade)
inadequados
Movimento de Organicismo Organicista Exame Neurológico Medicação/ Criança com Disfunção cerebral Fatores
Saúde Escolar (alteração na e Terapias de distúrbio de orgânicos
ordem natural Eletroencefalograma reeducação aprendizagem (determinantes
da aprendizagem neuropsicológicos)
por
anormalidades
neurais)

4
Reivindicações Interacionismo Teoria da privação/ Testes de Aptidão e Educação Criança Determinantes Aspectos sócio-
de minorias carência cultural Personalidade, Compensatória carente/ sociais e culturais culturais
raciais e étnicas Psicodiagnóstico ou (merenda/ deficiente ou (nível sócio-
nos EUA Modificação de estimulação diferente econômico)
(acordos de Comportamento precoce/
cooperação antecipação da
Brasil x EUA) escolaridade /
programas
especiais para
crianças
carentes)
Mundialização Inatismo, Socioconstrutivista, - Aplicação de - Aguardar Criança No processo de - Não atingiu
(Neoliberalismo, Ambientalismo, Sociointeracionista, provas para avaliar maturação imatura desenvolvimento maturidade
Pós- Interacionismo/ Sociointeracionismo desenvolvimento/ física das do indivíduo em suficiente
Modernidade) Construtivismo Construtivista, capacidade da funções contato com o - Ausência de
Construtivismo Pós- criança intelectuais meio adequado ambiente
Piagetiano - Avaliação de - Preparação facilitador
condições do de ambiente
ambiente favorável à
aprendizagem

5
Embora reconhecendo a forma extremamente simplificada de apresentação dos dados
contidos no quadro3, é possível identificar que a heterogeneidade por ele revelada é apenas
aparente. Consideramos ser esta a expressão do pensamento de Patto (1990), quando afirma que
embora por caminhos teórico-práticos diferentes, a Psicologia em suas relações com a Educação
tem sido conduzida por finalidades semelhantes. Referenda o status quo da Educação e da própria
Psicologia como ciência, por meio da ênfase em aspectos particulares dos indivíduos, das
famílias ou do meio sócio-cultural que caracterizam a maioria de suas explicações.
Neste caso, a única pergunta possível ao psicólogo refere-se a “porque os indivíduos não
aprendem”, apontando para uma ausência de compromisso da Psicologia com a condição
multideterminada das circunstâncias nas quais os indivíduos se humanizam.

Tendências atuais do pensamento crítico em Psicologia Escolar

A visão tradicional e hegemônica da Psicologia na Educação acima apresentada, passou a


ser sistematicamente denunciada no Brasil, a partir da década de oitenta, momento no qual
consolida-se uma postura crítica em relação à identidade e à função social do psicólogo escolar.
Tendo como uma das principais referências o texto de Maria Helena Patto (1984), o movimento
de crítica pauta-se nesse momento, pela constatação e denúncia dos pressupostos teórico-práticos
da Psicologia e da Educação e pelo diagnóstico e análise crítica da história da Psicologia na
Educação, enfatizando concepções progressistas e o trabalho coletivo, entre outros.
A década de noventa4 assinala um momento privilegiado deste movimento, marcado pela
tentativa de descrever, explicitar, construir/propor respostas que traduzem em ações as tendências
apontadas na década anterior.
Na atualidade, verificamos que apesar de persistirem as tendências já assinaladas, têm
ocorrido várias tentativas de retorno às concepções tradicionais, que acabam sendo incorporadas
ao discurso das concepções defendidas pelo movimento de crítica, como seria o caso por exemplo
das aproximações entre as teorias de Piaget e Vigotski, estudadas por Duarte (1996, 2000).

3
Os dados contidos no quadro foram obtidos por meio da leitura de textos de Maria Helena Souza Patto (1990),
Newton Duarte (1996) e troca de idéias entre as autoras e Marilene Proença.
4
Para uma análise das tendências atuais do pensamento crítico em Psicologia Escolar, pode-se consultar textos das
autoras, publicados no ano de 2000 no livro “Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos” organizado em
conjunto com professoras Marilene Proença e Marisa Rocha.

6
Assim compreendidas, estas tendências atuais do pensamento em Psicologia e Educação,
podem reafirmar, neste início de século, o movimento de recomposição das justificativas da
ciência psicológica e pedagógica para a manutenção da realidade educacional no contexto da
sociedade mais ampla, quadro semelhante ao já denunciado por Patto (1984).
Deixando de se posicionar diante das dimensões ontológica, epistemológica e lógica do
conhecimento, o retorno às explicações tradicionais, encoberto por meio de uma nova linguagem,
prepara o cenário ideológico propício às mudanças para adaptar o já existente ao novo momento
histórico social, sem que seja necessário questionar as finalidades da organização social, da
produção do conhecimento e dos próprios indivíduos.
Neste contexto, a tese aqui defendida refere-se ao rompimento com estas tendências, tanto
por meio da explicitação de fundamentos teórico-filosóficos e metodológicos que permitam
discutir finalidades histórico-sociais concretas, quanto pela ênfase em referencial ainda pouco
explorado como alternativo à superação dos conhecimentos elaborados pela Psicologia em
relação à Educação.

Uma concepção crítica de Psicologia Escolar

Tomamos como referência teórico-filosófica e metodológica, o conjunto de elaborações


da Psicologia, efetivados a partir do Materialismo Histórico Dialético, enfocando as categorias
que têm implicações imediatas para a compreensão do processo de humanização dos indivíduos
no contexto sócio-histórico atual.
No nível da análise sobre o homem em geral desenvolvida por Marx, destacamos o
trabalho como atividade vital por meio da qual o homem relaciona-se com a natureza e com os
outros homens, criando as condições para a produção e reprodução da humanidade; o caráter
material e histórico do desenvolvimento humano que permite compreender as relações de
produção como determinantes da forma e do conteúdo das relações entre os homens e,
finalmente, a lógica dialética, cujas categorias centrais – contradição, totalidade,
particularidade..., viabilizam o conhecimento e a interpretação da realidade, considerando a
origem multideterminada e contraditória dos fenômenos, apreendendo-os em sua dinâmica
horizontal (sua história de desenvolvimento) e vertical (articulação entre aparência e essência).

7
Como a concepção Materialista Histórico Dialética foi gestada visando à análise crítica da
sociedade capitalista, ela veicula, para além de um visão de homem e de sociedade, uma
concepção ética. Implica a responsabilidade de se construir uma nova ordem social, capaz de
assegurar a todos os homens um presente e um futuro dignos. Exige compromisso pessoal e com
a construção de um conhecimento científico capaz de contribuir para que o homem se objetive de
forma social e consciente, tornando-se cada vez mais livre e universal. A finalidade explícita é o
compromisso ético-político com a emancipação humana, estando portanto presentes as dimensões
ontológica – formação do ser dentro de determinadas circunstâncias sócio históricas,
epistemológica – como se conhece esse processo e a dimensão lógica – lógica inerente a essa
peculiaridade e que precisa ser apropriada.
Neste sentido concordamos que a concepção científica sobre o homem em geral, na visão
de Marx, pode dar sustentação aos estudos sobre a individualidade/subjetividade, uma tarefa para
a Psicologia, assumida por Sève (1979), Vigotski (1996), Leontiev (1978), entre outros.
No nível da formação da individualidade, enfocamos os fundamentos da concepção
histórico-social do ser humano, tal como propõe Leontiev (1978), no texto “O homem e a
cultura”. Ao explicitar o momento de constituição da natureza social do homem, o autor explica
como se dá o processo de apropriação das objetivações humano-genéricas que permite a
objetivação do indivíduo, o lugar da comunicação e da educação (em geral e escolar) nesse
processo, sem deixar de considerar que tudo isto ocorre em uma determinada circunstância, no
caso, a sociedade capitalista que tem a alienação como uma de suas marcas. Como não há
unidade no referido processo de apropriação, porque esta forma de organização social é
caracterizada por diferenças nas condições de vida (fruto da desigualdade econômica, de classe e
de relação com as aquisições sócio-históricas), a constituição da individualidade está
condicionada à superação do processo de alienação.
Discutindo a alienação econômica e cultural, o autor aponta elementos progressistas e
reacionários da cultura intelectual, ou seja, os elementos que servem ao desenvolvimento da
humanidade e aqueles que servem ao interesse das classes no poder. Explicita, finalmente, a
ruptura entre as gigantescas possibilidades desenvolvidas pelo gênero humano e a pobreza e
estreiteza que cabe aos homens individualmente como a contradição que caracteriza a sociedade
capitalista. Defende que essa situação não é eterna porque não o são as relações sócio-

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econômicas que lhes dão origem, colocando a superação dessa realidade como uma possibilidade
no contexto atual.
Concluímos, a partir da análise do autor, que a superação da alienação só se constitui uma
possibilidade quando a compreendemos por contradição (porque o que os indivíduos precisam
para dela se libertar está no mesmo contexto que a provoca), quando consideramos a
historicidade dos fatos humanos e quando podemos entender para transformar as circunstâncias.
Além disso, é preciso considerar tanto um processo de educação para permitir a humanização
(que implica compromisso com a superação da alienação), quanto uma concepção de Psicologia
que possa dar sustentação, no que a ela compete como ciência, a este processo de educação.
Em relação à Educação, encontramos na Concepção Histórico-crítica de Saviani (2000), a
explicitação de finalidades transformadoras para a Educação e para a Psicologia.
Ao discutir as finalidades da educação escolar, destaca o caráter conservador e ao mesmo
tempo contraditório do projeto burguês de escola, pensando por contradição tanto as relações da
escola com a sociedade, quanto a função da escola e os temas relativos ao processo educativo
(conteúdos, métodos, relação professor/aluno). Toma o processo de democratização da educação
no sentido formal e substancial, defendendo a garantia de acesso e permanência na escola, como
uma condição de humanização no sentido da “onilateralidade”5.
O autor permite apresentar, como elementos que garantam a transformação da escola em
instrumento de emancipação:
 a natureza e a especificidade do trabalho da escola, enfatizando a seleção e organização
dos conteúdos com base no saber universal (clássico/erudito), o movimento de
continuidade (com aquilo que o aluno já sabe) e ruptura (quando o professor apresenta,
introduz novos conhecimentos) e a discussão sobre as práticas diárias (o que/como/para
que fazer, a fim de garantir a transformação a partir da educação escolar);
 a competência técnico-pedagógica do professor, para selecionar os conteúdos e os
procedimentos de ensino e o compromisso político com os pressupostos e as finalidades
de emancipação;
 o lugar do professor como coordenador da ação educativa e o trabalho coletivo;
 a compreensão da escola como um local, ao mesmo tempo, conservador e revolucionário
que difunde a cultura, que é ao mesmo tempo fictícia e verdadeira.

5
Para aprofundar esta discussão, ler Manacorda (1989).

9
As práticas pedagógicas imprescindíveis a uma educação escolar emancipatória,
enfocadas por Giroux (1986), acrescentam aspectos importantes a respeito da natureza ativa da
participação dos alunos e dos professores no espaço da educação escolar. Propondo o professor
como mediador entre os alunos e o conhecimento e o conhecimento como mediação entre os que
aprendem, o autor anuncia que as relações em sala de aula devem garantir a aprendizagem do
pensamento crítico. Professores e alunos devem ir além do raciocínio fragmentado, buscando a
origem do conhecimento para permitir a autoria dos próprios atos. Devem aprender porque certos
valores são imprescindíveis à vida humana, indignando-se diante das forças contrarias à
qualidade da existência humana, despertando paixão e otimismo em relação às possibilidades de
um mundo melhor. Conforme Suchodolski (1984), o processo de formação geral e específica dos
indivíduos deve levá-los a responsabilizar-se pela transformação da realidade sócio-histórica
atual.
Ainda discutindo o espaço específico – e possível nas circunstâncias atuais – da escola no
processo de transformação da sociedade, Pucci (1995) sinaliza na direção da construção de uma
teoria comprometida com a transformação humana e social, destacando:
 a educação das consciências, para que os indivíduos possam tomar distância do material a
ser interpretado, ao mesmo tempo apreendendo no hiato entre um presente e um futuro
radicalmente diferentes, as contradições a serem superadas por ação individual e social;
 a necessidade de romper com a autoconfiança e a autosatisfação do senso comum para
resistir/superar o estado estabelecido das coisas, indignando-se com a realidade;
 o restabelecimento das condições de autonomia, liberdade e consciência dos indivíduos,
trabalhando com o conhecimento necessário ao rompimento da consciência domesticada,
pela via da formação cultural;
 a importância da conscientização dos mecanismos subjetivos da dominação e dos motivos
que levam a ela, para que a submissão torne-se insuportável e o desejo de viver melhor
tome conta dos indivíduos.

Neste contexto, consideramos juntamente com Sève (1979), Duarte (1993) e Vigotski
(1996), que cabe à Psicologia oferecer subsídios para o desenvolvimento de uma concepção
científica do indivíduo, entendido como síntese da história social da humanidade, de cujo
desenvolvimento deve conscientemente participar para assegurar sua emancipação. Trata-se de

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tomar como tarefa também da Psicologia o estabelecimento de mediações entre o
desenvolvimento histórico-social da humanidade e a vida particular dos indivíduos.
E, se no momento atual as relações entre os homens têm favorecido a alienação, deve-se
ressaltar que estas mediações teóricas não podem apenas explicar como e porque os indivíduos
agem ou são de uma ou de outra maneira, mas deverão também buscar responder como e porque
os indivíduos podem vir a agir ou tornarem-se seres emancipados.
A concepção de Psicologia de Vigotski6 (1996, 1998, 2000, 2001), enfrenta este desafio,
marcada por princípios que caracterizam a elaboração de estudos da Psicologia, desenvolvidos a
partir do Materialismo Histórico Dialético.
Entendendo-a como ciência que se propõe a explicar como a partir do mundo objetivo
(que é histórica e socialmente determinado) se constrói o mundo subjetivo do indivíduo, Vigotski
e os demais autores citados acima explicitam tanto a concepção filosófico-metodológica que
embasa as análises da Psicologia, quanto os procedimentos e as funções de tal conhecimento; não
reduzem “o pensamento e a ação humana a determinações do psiquismo individual”, não partem,
portanto, “de um errôneo primado ontológico do indivíduo”, mas das relações sociais para chegar
à “biografia” do indivíduo e retornar ao social; não reduzem o conceito de indivíduo à descrição
das características de indivíduos em geral (indivíduos empíricos)7.
O projeto principal de Vigotski (1996) constituiu-se no estudo dos processos de
transformação do desenvolvimento humano em sua dimensão filogenética, histórico-social e
ontongenética, buscando chegar até à dimensão micro-genética – formação e manifestação de
determinado processo psicológico. Priorizou as funções psicológicas superiores – controle
consciente do comportamento/atenção/pensamento abstrato/capacidade de planejamento, as
mudanças qualitativas do comportamento, a educação em geral e escolar e o seu papel no
desenvolvimento. A finalidade de seu trabalho era redefinir o método de compreensão do
fenômeno humano, para descobrir o meio pelo qual a natureza social torna-se a natureza
psicológica dos indivíduos.

6
Aqui fizemos um recorte no interior da Psicologia Soviética, para situar as contribuições de Vigotski, que estudou
principalmente aqueles temas que nos permitem aproximar a Psicologia da Educação. Entre outros, poderíamos
ainda buscar as contribuições de Alexander Romanovich Luria e de Alexei Nicolaevich Leontiev e de outros
representantes da Psicologia Soviética, tais como Zinchenko, Petroviski, Davidov, Andréeva, conforme indicação de
Marta Shuare (1990).
7
Para análise dos princípios que caracterizam os estudos da Psicologia, desenvolvidos a partir do Materialismo
Histórico Dialético, consultar as fontes utilizadas para as citações, além dos textos de Lucien Sève – Marxismo e a
Teoria da Personalidade (1979) e do texto de Newton Duarte – A Individualidade para-si (1993).

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Para tanto, destaca o cérebro como órgão material da atividade mental, que também se
adapta às transformações no meio físico e social; o processo de internalização que permite a
apropriação de conceitos, valores e significados, a partir da atividade cognitiva e da consciência
em relação com a atividade externa; o conceito de mediação, possível por meio dos sistemas
simbólicos que representam a realidade (instrumentos e linguagem, que regulam as ações sobre
os objetos e sobre o psiquismo respectivamente). Conclui que os processos de funcionamento
mental do homem são fornecidos pela cultura (no plano social-interpsicológico), por meio de
instrumentos psicológicos são internalizados (movimento intrapsicológico), produzindo o
movimento de individuação (que é singular, mas socialmente construído).
Estudando principalmente a relação pensamento/linguagem, a relação
aprendizagem/desenvolvimento, a consciência e as emoções, o autor supera as concepções
inatistas, ambientalistas e interacionistas que reforçam a idéia de determinismo prévio (inato ou
adquirido), defendendo a perspectiva sócio-histórica ou histórico-cultural para explicar tais temas
relativos ao desenvolvimento humano.
Toma o pensamento e a linguagem como processos de origem bio-psicológica diferentes e
desenvolvimento independente, mas que se relacionam para permitir o funcionamento
psicológico superior. A linguagem, impulsionada pela necessidade de comunicação, expressa o
pensamento e age como organizadora do mesmo e no processo de internalização, mediatiza a
ação dos indivíduos. Portanto, para o autor, a comunicação é fator de desenvolvimento. Deve ser
clara, precisa, provocar dúvidas e o desejo de iniciar novos processos construtivos.
No que se refere à relação aprendizagem/desenvolvimento, explica que a aprendizagem
(escolar e extra-escolar) possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento e que o
desenvolvimento é um processo dinâmico (não gradativo, nem de evolução progressiva ou de
acumulação quantitativa, como no caso das outras concepções), no qual estágios de relativa
estabilidade sucedem períodos de mudanças radicais, com ênfase nos momentos de crise. De
acordo com a perspectiva sócio-histórica, o desenvolvimento ocorre no nível real (aquilo que o
indivíduo já é capaz de fazer só) e por meio da Zona de Desenvolvimento Próximo – obtida pela
diferença entre o que é capaz de fazer só e aquilo que faz com ajuda e que explica a possibilidade
de novas aprendizagens.
Neste caso, a educação escolar deve produzir desenvolvimento – que segue a
aprendizagem e cria a Zona de Desenvolvimento Próximo. O ensino deve estar voltado para

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novos conhecimentos. E a Psicologia deve estudar como os indivíduos elaboram conceitos,
enfatizando as estratégias, os erros, o processo de generalização.
A teoria de Vigotski lembra ainda que a formação da consciência individual envolve as
relações entre pensamento/linguagem, desenvolvimento/aprendizagem, o significado das mesmas
e os afetos e emoções que oferecem as condições para sua elaboração. Deste modo, para o autor,
o pensamento tem origem na esfera motivacional (desejos, necessidades, interesses, afetos...) que
explicam o porquê de sua existência.
Os aspectos da teoria do autor aqui ressaltados permitem explicitar espaços muito bem
delimitados para a Psicologia e para a Educação, no contexto da constituição histórico-social dos
indivíduos. Em ambos os casos, a finalidade seria favorecer os processos de humanização e a
reapropriação da capacidade de pensamento crítico.
No que se refere à educação, este objetivo concretiza-se por meio da valorização do papel
da escola, para trabalhar com o que ainda não está formado no aluno (adiantando-se ao seu
desenvolvimento), com o controle das atividades, sempre privilegiando a autonomia, a
criatividade, a auto-motivação e a diferenciação. Ainda, a ênfase no papel do professor como
mediador na dinâmica das relações interpessoais e na relação da criança com os objetos do
conhecimento, ressaltando um lugar importante para a imitação e para o brinquedo.
Em relação ao espaço da Psicologia, cabe um posicionamento diante das finalidades
sociais da Educação e da própria Psicologia como ciência, sempre pautado na explicitação e
conhecimento dos pressupostos teórico-filosóficos e metodológicos que fundamentam sua ação e
reflexão; a redefinição do seu objeto de estudo, enfocando o modo como a atividade dos alunos é
determinada pela Educação e a descoberta das leis psicológicas que regem esse processo. Cabe
ainda, a consideração dos determinantes sociais e dos aspectos subjetivos inerentes à organização
escolar e à definição dos problemas de ensino-aprendizagem, visando a transformação do
trabalho da escola. A atuação do psicólogo deve visar uma multiplicidade de ações, uma vez que
a identidade profissional está nas finalidades a serem atingidas por recursos teóricos e práticas
diferenciadas; a pesquisa não pode se constituir em mera investigação científica, deve produzir
efeitos, deve permitir a participação de todos no processo de transformação dos resultados em
ações concretas para transformar a realidade.
Podemos então concluir que o referencial aqui apresentado permite o reconhecimento de
lugares específicos no interior do processo de humanização dos indivíduos, à Filosofia cabendo

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as finalidades (por que e para que tal processo); à Psicologia, a explicação de como a
aprendizagem e o desenvolvimento ocorrem e à Educação Escolar, a efetivação da
educação/aprendizagem por meio de recursos pedagógicos concretamente organizados pelo
professor.
Se estamos considerando que a Educação é o principal processo por meio do qual os
indivíduos se objetivam como humanos, apropriando-se dos bens produzidos pelo conjunto dos
homens. Que a Psicologia é a ciência que se propõe a explicar como a partir do mundo objetivo
se constrói o mundo subjetivo do indivíduo, então os processos de subjetivação/objetivação do
mundo social pelos indivíduos são o seu objeto de estudo. E a Psicologia não pode desconsiderar
a dimensão educativa em qualquer de suas áreas de estudo/atuação/formação. A Psicologia
Escolar não pode ser compreendida como especialidade na formação do psicólogo, embora tenha
especificidades. Necessariamente, há que se rever a Psicologia na Educação, atribuindo-lhe um
novo sentido, além de um outro lugar ao psicólogo.

II. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO JUNTO À DEMANDA DE QUEIXA ESCOLAR

Situamos o psicólogo como mediador no processo de elaboração das condições


necessárias para a superação da queixa escolar, uma demanda freqüentemente presente em nosso
trabalho.
Para tanto, defendemos a aprendizagem dos conceitos cotidianos e científicos como a
atividade principal da criança para garantir o seu processo de humanização, uma vez que ela
possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento do pensamento, tendo a linguagem, a
consciência e as emoções como mediadoras desta ação. Assim, podemos tomar como objeto de
estudo/intervenção da Psicologia na Educação, o modo como esta atividade da criança é
determinada pela Educação em geral e/ou escolar, além da descoberta das leis psicológicas que
regem este processo.
No que compete à ação do psicólogo, propomos a descrição e análise da relação entre o
processo de produção da queixa escolar e os processos de subjetivação/objetivação dos
indivíduos nele envolvidos, como uma mediação necessária à superação das histórias de fracasso
escolar.

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Herbert8 tinha dois anos de idade quando, em condições precárias de saúde e
financeiras de sua família, foi levado por sua madrinha para morar na casa dela. O
marido da madrinha e as filhas não queriam a adoção, mas esta foi feita à revelia de
todos, inclusive dos pais biológicos.
Restabelecido, todas as vontades satisfeitas e ouvindo desde as primeiras artes e
desobediências que não poderia ser diferente mesmo, afinal seu futuro é ser um
catador de papel como o pai biológico, chegou a hora de ir para a escola... a mesma
na qual também estudam seus irmãos biológicos.
A mãe adotiva apressa-se em contar sua história para a direção/coordenação e
professores da escola. Trata-se de uma criança que inspira cuidados... A última birra
que ele fez foi quando estava em consulta médica de rotina. O médico, amigo da
família, recomendou que consultassem um neurologista porque o menino é muito
nervoso. A ele foi prescrito calmante e antidepressivo que o fazem oscilar entre a
apatia total e a euforia, dependendo do medicamento tomado (dorme tarde, não tem
sono na hora que todos dormem; na escola fica prostrado ou bate, briga, não para
quieto...).
Logo ao final do primeiro ano, a escola que já havia conversado semanalmente
com a mãe adotiva, faz o encaminhamento da “queixa” para o Centro de Psicologia,
para a Psicologia Escolar.
Nesse momento, Herbert encontra-se com oito anos, é agressivo, desobediente,
não tem concentração na sala de aula e apesar de copiar muito bem quando quer,
não sabe ler nada. Só vai passar de ano devido à progressão continuada..., afirma o
encaminhamento feito pela escola.

Entendemos a “queixa” como uma síntese de múltiplas determinações – relações


familiares, grupos de amigos, contexto social e escolar, portanto, consideramos que a superação
das condições nas quais a “queixa” é apresentada depende da ação comprometida e consciente de
todos aqueles com ela envolvidos, mediada pelo psicólogo.

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As análises teórico-práticas da atuação do psicólogo serão acompanhadas, no decorrer do texto, de trechos retirados
do relatório de um trabalho desenvolvido em 2001 e 2002 pelas estagiárias Aline Luzia Pavan e Célia Regina da
Silva do curso de graduação em Psicologia da UNESP-Bauru, respectivamente e supervisionado por Elenita de Rício
Tanamachi. Para evitar identificação, o nome do cliente foi substituído.

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A escola diz que o ideal seria Herbert ir para uma classe especial, afinal ele tem
“problemas” porque é adotivo. O médico confirma, receitando medicamentos
considerados adequados para o caso. A mãe adotiva diz que sem os remédios não dá
para “agüentá-lo”, ele bate nela..., nos colegas da escola, não obedece, vai para a
diretoria, não faz o que a professora pede... As irmãs adotivas dizem que é muito
mimo, que ele tem tudo o que elas não tiveram. Junto com o pai adotivo elas acham
que ele deve voltar a morar com os pais biológicos. A mãe adotiva e as professoras
acham que tudo fica pior quando Herbert encontra com os irmãos e os pais
biológicos... Quando ele vai brincar na casa dos amigos, ele briga e tem que voltar
para casa. Os pais dos amigos não querem mais que os filhos brinquem com Herbert.
Na escola, quando tem passeios, os pais já perguntam se o Herbert vai...

Escola, professores, pais, amigos, a criança e o próprio psicólogo precisam compreender


que a “queixa” é apenas a aparência, o nível imediato que se caracteriza como uma representação
isenta de análise, cabendo ao psicólogo a mediar a compreensão da essência do que foi
apresentado como “queixa”, por meio da investigação/explicação/ação conjunta.

A professora disse que Herbert tem problemas para aprender porque viveu em
precárias condições até dois anos de vida. Noutro dia, disse que tem problema
porque é adotado... é traumatizado por se sentir abandonado pelos pais biológicos e é
mimado pela mãe adotiva que tenta compensar as carências...

Perguntamos sobre os conteúdos escolares, procuramos entender como são trabalhados


na sala de aula e investigamos com a escola (em conversa com professora/coordenadora/diretora
e em observações na escola) o que acontece quando a professora ensina, o que ensina, quando os
alunos aprendem, quando não aprendem. O que ocorre que às vezes não dá vontade de ensinar,
de aprender? O que acontece quando os alunos fazem uma parte do que é solicitado? Quando o
aluno é encaminhado ao médico, ao psicólogo?... O que ocorre quando o professor pede ajuda?...

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A mãe adotiva disse que a professora não sabe ensinar, que a escola chama os
pais toda semana, para cobrar que façam aquilo que é trabalho da escola... que a
professora deveria ser mais enérgica. Em outro momento disse que cobra demais...
Ela também acha que o menino tem problemas por ser adotivo. “Ele tem problema de
cabeça, por isso não aprende”, disse em um dos encontros com a psicóloga...
As irmãs adotivas e o pai culpam a mãe adotiva por dar atenção demais ao
menino. O pai já decretou, ele vai ser como os pais biológicos, não tem jeito.

Fizemos, com a família adotiva, uma lista do que Herbert faz, para destacar que a família
só observa aquilo que considera errado, negativo. E se pensamos nos afazeres domésticos já
realizados, nas tarefas escolares quando ele realiza, nos carinhos feitos a todos...? O que faz com
que a mãe adotiva o trate de modo diferente do que o faz com as demais filhas? O que faz o pai
adotivo achar que será igual aos pais biológicos?

Herbert não quer falar, nem vivenciar qualquer situação que se assemelhe à
escola. Quando os temas referem-se a outras situações de seu dia-a-dia, ele
esbofeteia os bonecos, xinga a psicóloga, diz que ela não sabe de nada e que não vai
fazer nada porque está com sono. Diz que não sabe ler nem escrever. Outras vezes diz
que vai à escola para aprender...
A psicóloga insiste para que ele faça um desenho, conte uma história, leia ou
ouça a leitura de um livrinho, escreva o seu nome ou alguma letra que conhece,
brinque de escolinha.
Embora irritado com esta condição insuportável que todos (pais, escola, a
psicóloga e ele próprio, que não consegue ver sua realidade de outro modo, já que
impedido de vivenciá-la...) insistem como sendo a única possibilidade... (se
conhecessem outras formas de análise talvez tivessem elementos para romper com
estas já cristalizadas)..., Herbert vai à aula, acredita que é lá que irá aprender,
quando a professora passa atividades iguais às dos colegas, ele se empenha e
participa ao menos. Quando a psicóloga diz que ele não precisa fazer a atividade,
mas que ela vai realizá-la... e joga com os pais adotivos, ou lê e escreve... ele entra na
atividade e mostra tudo o que já é capaz de fazer...

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Herbert adora encontrar os irmãos biológicos. Ele quer ir na casa deles... ver os
pais biológicos... A escola e os pais adotivos não querem que isso ocorra... mas não
falam sobre isso... A mãe adotiva tem medo de perdê-lo... A professora acha que
desconcentra... Os irmãos adotivos e o pai acham que tem que ir e ficar... A psicóloga
não sabe a hora exata de suas intervenções. Como contar esta história a todos?
Esquece-se que a história poderia ser elaborada por todos, desde que cada um
deixasse de entender que esta é tarefa exclusiva dele... Herbert, sem conhecer estas
expectativas e análises, só quer ficar com todos, quer desfrutar da riqueza de
possibilidades que sua condição de vida lhe permite. Impedido, se irrita... A
professora desiste, a mãe está cansada e não sabe mais o que fazer. O pai e as irmãs
adotivas acham que deve voltar para a família biológica. Um dia a mãe adotiva
viajou, ele quis bater numa das irmãs adotivas, ela ficou brava e ele fugiu e foi parar
na casa da família biológica...

A avaliação e a intervenção não podem se pautar por métodos que visem encontrar nos
indivíduos a explicação para a “queixa”. Não se trata de desfocar a criança, para culpabilizar a
família e/ou a escola. Mudamos a pergunta, em vez de nos dirigirmos a pessoas ou situações
isoladas – o que tem efeito paralisador – buscamos as circunstâncias, porque estas podem ser
transformadas.
Se consideramos que a subjetividade só se constitui a partir das condições concretas de
vida dos indivíduos, é a historicidade dos fatos apresentados como “queixa” que deverá ser
investigada. Trata-se de buscarmos, com todos os envolvidos, as ações, os acontecimentos, as
concepções que “produziram” a “queixa” e “motivaram” seu encaminhamento, conforme nos
indica Machado (2000).
A avaliação aqui adquire caráter investigativo e não classificatório, do que concluímos
que a base de nossa avaliação é o resgate histórico das situações concretas que permitiram a
existência da “queixa”. Identificar as possibilidades concretamente existentes para a superação
dessa condição, constitui-se no desafio da intervenção.
Conforme Vigotski (in Duarte, 2000, p. 87), devemos

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Saber descobrir sob o aspecto externo do processo seu conteúdo interno,
sua natureza e sua origem. Toda a dificuldade da análise científica radica
no fato da essência dos objetos, isto é, sua autêntica e verdadeira
correlação não coincidir diretamente com a forma de suas manifestações
externas e por isso é preciso analisar os processos; é preciso descobrir por
esse meio a verdadeira relação que subjaz nesses processos por detrás da
forma exterior de suas manifestações. Desvelar essas relações é a missão
que há de cumprir a análise.

Para dar conta desse trabalho, Collares e Moysés (1997), sugerem que o psicólogo deve
olhar não para o que a criança não tem e não sabe, mas para o que ela sabe e gosta de fazer.
Assim como indica Meira (2000), o profissional deve articular o processo de
avaliação/intervenção a partir daquilo que todos apresentam como dados concretos, já
conhecidos, como entendem e agem nas situações apresentadas.
Nesse caso, com a criança observamos nas atividades realizadas durante os encontros, os
aspectos que estão relacionados com nossa investigação, elementos que revelam seu potencial de
aprendizagem quando colocada diante de situações-problema, desafios. Com a família e a escola,
investigamos as concepções, as hipóteses sobre a “queixa”, o que fazem para superá-la e quais
são suas expectativas. Avaliamos e mobilizamos, portanto, as objetivações, os significados, os
sentidos atribuídos ou a serem atribuídos, visando preparar a apropriação de novas
possibilidades.

A intervenção tem dois eixos principais que não podem ser trabalhados em
separado. O primeiro eixo refere-se à relação desenvolvimento/aprendizagem em
Herbert e em todas as pessoas envolvidas, na perspectiva da constituição das
condições de humanização pela via do conhecimento de conteúdos pertencentes tanto
à educação escolar, quanto à Psicologia. O segundo eixo refere-se à elaboração de
afetos/emoções como motivos compatíveis com a formação da consciência.
Quando a professora desiste de ensinar Herbert, aprendizagem dele em relação a
novos conhecimentos, fica defasada... Constata-se ausência de mediação da
linguagem (verbal e escrita)... Ele não pede, empurra... ele “manda” a psicóloga, ou

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a mãe e o pai escreverem o resultado dos jogos... Ele não utiliza a linguagem como
um recurso nas relações cotidianas ou mesmo escolares... As pessoas não conversam
com ele, não explicam o que está acontecendo... Ele também não quer escrever o que
já sabe, precisa aprender que quem sabe uma parte, com ajuda, poderá saber o todo.
Precisa ser desafiado a ouvir as explicações, precisa ser cobrado... Precisa entender-
se dentro do processo de alfabetização, pode estabelecer uma outra relação com o
seu processo de aprender a ler, escrever, contar... Pela via do conhecimento, os
motivos começam a ser compatíveis com novas possibilidades de aprender...
Um dia a psicóloga deixou o nome dos colegas de Herbert e o dele próprio na
lousa da sala de atendimento. Quando ele entrou, ela disse “vou apagar aqui; por
que será que deixaram a lousa assim?... o que será que estavam fazendo? Me ajude
aqui!” Ele diz “olha o meu nome aqui! Ta cheio de nome...”, e reconheceu mais
alguns nomes. “Herbert, o que você está fazendo?” “Estou lendo nomes!” “Lembra
quando você dizia que não sabia ler? E agora?” “Agora eu já sei”... A psicóloga
continua... “Quem sabe ler alguns nomes, pode ler outros, pode escrever também. É
só ter alguém que ensine; para isto existe a escola, professor, ninguém nasce
sabendo...” Avaliando o dia, pergunta: “o que aconteceu de bom hoje?” Herbert
apressa-se...: “descobri que sei ler e que posso escrever” e a psicóloga diz “quem
precisa saber disso? Vamos pensar como contar e vamos fotografar, desenhar este
momento”... No mesmo dia, faz uma reunião com a família adotiva, na qual Herbert
conta tudo o que ocorreu... Depois, as fotos e desenhos vão para a escola... Todos
precisam entender e analisar o que aconteceu para incorporar o fato em sua relação
com Herbert e em outras circunstâncias semelhantes... Ele quer contar tudo isso para
a família biológica e pede à psicóloga “você vai comigo?”...
Todos precisam também entender que a adoção não é limite, mas uma condição,
assim não pode ser causa da não-aprendizagem, da agressividade, do mesmo modo
que o trabalho do professor, da família e mesmo do psicólogo podem ser condições a
serem preservadas ou superadas. Se tomados como limites, podem imobilizar.
Quais são as possibilidades concretas existentes para a superação dessa história
que já não é mais somente a história de Herbert? Mas, a dele em relação à da

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professora, dos pais, da psicóloga em formação... Do que efetivamente não dá para
abrir mão?
Herbert precisa por sua descoberta a serviço da aprendizagem de conhecimentos
úteis a uma vida cada vez mais autônoma e participativa – ele vai fazer dez anos e só
pode sair de casa acompanhado, não pode ver os pais biológicos quando quer, não
faz as atividades escolares como os colegas...
A família adotiva precisa reconhecer a legitimidade da relação de Herbert com a
família biológica e que o fato de ter duas famílias enriquece sua história. Ele não
precisa escolher uma... Isso deixa todos mais seguros! Deve ainda entender que a
adoção não é causadora de dificuldade para aprender... Convencer-se de que ele é
capaz de aprender... que a escola pode/deve ensinar...
A escola, de posse daquilo que Herbert já é capaz de fazer, precisa desafiá-lo na
direção do que ainda não sabe realizar só, solicitando-o, passando tarefas, cobrando
sua realização, avaliando, oferecendo modelos, apresentando conceitos, ensinando...
O psicólogo, como mediador na efetivação de todos esses objetivos, deve superar
a condição de “resolvedor de problemas” – que espera a aprovação de Herbert no
final do ano, a reconciliação entre as famílias, enfim finais felizes para encerrar “o
caso”, para saber que como as finalidades da Psicologia não são as da Educação e
nem as das famílias, essa atuação já pode ter se encerrado...
O retorno à especificidade da Psicologia, por meio da intervenção, constitui-se
em mais uma etapa de seu trabalho.

Falemos ainda, sobre as principais estratégias utilizadas:

 Temas/situações geradores9 de possibilidades de trabalho: condições necessárias para


provocar, desafiar as pessoas envolvidas, em busca da superação das condições postas no
momento, por meio da “queixa”; geradores, enfim, da atividade principal da criança e da
condição de participação de pais, professores e crianças.

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Parte da fundamentação teórica utilizada para a organização dessa estratégia foi apropriada do conjunto de
elaborações desenvolvidas por Celestin Freinet e Paulo Freire.

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Um dia Herbert entra na sala de atendimento e vai em direção a um carrinho de
bombeiros lá esquecido... A psicóloga tinha planejado outro encaminhamento para
avaliar o conceito de número, mas sabendo de sua rejeição aos conteúdos escolares,
substitui a atividade, mantendo a finalidade prevista. Arremessou o quebra-cabeça
numérico ao chão, anunciando um incêndio e chamando pelo bombeiro... que chegou
prontamente. Seus olhos brilhavam!... Estava preparada a situação geradora de
muitas possibilidades... Descobriu, junto com Herbert, motivos para aprender a
trabalhar com números; depois puderam contar isto para os pais e para a
professora...
Cada peça do quebra-cabeça era uma casa destruída em parte pelo fogo, de modo
que para reconstruí-la teria que utilizá-la adequadamente (conforme as regras do
quebra-cabeça, adequadas para o trabalho com conceitos numéricos...).
Herbert puxou um tapete com os números do quebra-cabeça, colocou-os em
seqüência e assim numerou as casas a serem restauradas. Disse que as casas ficavam
em uma rua... E como a cena montada não podia ficar na sala de atendimento, a
psicóloga sugeriu que fosse construída com cartolina, para poder guardar... A
maquete teria que ser completa e Herbert caprichou... fez placas, sinal de trânsito e
escreveu “PAE” (pare), tem um posto e escreveu “POT”... e fez o convite para a
reinauguração da rua, pediu o alfabeto móvel e começou a organizar o convite,
escreveu tudo o que já sabia com ajuda da psicóloga, fez todo o convite. Indagado
sobre o que faziam, disse “escrevemos”. “Então já sabe escrever? Vamos fotografar,
registrar. O que vamos fazer?” O menino diz: “vou contar pro meu pai, minha mãe e
minha professora”. “Como?” “Mandando o convite de reinauguração da rua para
eles”.

 Jogos coletivos, como estratégias para a compreensão das contradições não explicitadas
na “queixa” ou para evidenciá-las.

A psicóloga marcou o encontro de Herbert junto com o de outra criança atendida


por sua colega... e planejou um jogo...

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Herbert ensinou o menino a jogar, o menino ganhou o jogo e ele xingou o
menino...

 Dinâmicas, que permitam ultrapassar os limites individuais colocados pela “queixa”.

Em uma dinâmica envolvendo uma volta ao passado, os pais adotivos contaram


as suas histórias de vida para a psicóloga e para o Herbert e ele quis saber a dele... e
depois quis conversar com os pais biológicos sobre isso...

 Leitura e discussão de textos e relatórios e planejamento conjunto de atividades.

A análise e discussão de um texto sobre aprendizagem/desenvolvimento, ajuda o


pai adotivo entender que Herbert não é igual ao pai biológico. “Então não está tudo
definido quando nasce?”
A leitura conjunta dos relatos dos encontros anteriores e do planejamento do
trabalho, após os primeiros encontros, permite a Herbert posicionar-se “não precisa
ir lá na escola, eu não vou mais porque sou burro mesmo! O pai falou que eu vou
puxar carroça”... O pai e a mãe adotivos não querem marcar reunião com a família
biológica: “Pode tirar isso do planejamento”...
Ao ver o relatório do encontro no qual o Herbert leu e escreveu, a mãe adotiva
disse ao pai: “Eu não falei que ele esconde o jogo?”...
A psicóloga muda o jeito de escrever... faz novo planejamento... Redige texto para
leitura e discussão.
Em outro momento, estavam todos reunidos, em atendimento conjunto, família
biológica, Herbert, a psicóloga, organizando as etapas do trabalho, até onde poderia
chegar a intervenção, qual o lugar de cada um neste processo!

 Grupo de crianças, para privilegiar a relação que elas têm com o que sabem, gostam,
querem fazer, enfatizando os conhecimentos de cada um no coletivo – tomado como o
espaço de manifestação dos diferentes níveis de conhecimento.

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Cada criança seleciona uma atividade que sabe fazer e que os demais não
conhecem... planeja com o psicólogo os passos para ensinar os colegas e a cada
encontro uma delas coordena com a psicóloga os trabalhos... Herbert fez a lista de
material para ensinar a fazer pipa (escreveu o que já sabia e pediu ajuda em casa, na
escola e para a psicóloga...), foram comprar e arrumar o material, pensou com a
psicóloga como ensinar aos colegas. No dia da reunião, ele fez passo a passo
mostrando aos colegas... Olhava o trabalho de cada um... Um menino não conseguiu
fazer, ele deixou a sua pipa e ajudou o menino até dar certo, depois voltou para a
sua...
Depois foram escrever o material para todos guardarem. Herbert põe na lousa...
Quando pula letras nas palavras, outro colega vai lá e completa. A lista fica pronta...
Na avaliação, todos disseram: “o Herbert ensinou a fazer certinho... as pipas
subiram... ele sabe fazer...”

 Grupo de pais: para discutir diferentes formas de ocupar seu espaço na educação escolar
do filho e para se posicionarem em relação às questões da escola, da Psicologia, da
medicalização e outras tantas que surgem no decorrer do trabalho.

Em uma das reuniões mensais, a atividade inicial era ler um texto em alemão,
para entender como os filhos podem sentir-se em situações variadas na escola ou em
casa... quando exige-se a tarefa pronta, quando pede-se para fazerem o que já for
possível... Na avaliação um pai concluiu “quando você sabe que pode fazer o que dá,
descobre que já sabe muita coisa”...
Noutra reunião, a mãe conta que o filho não tomava o remédio que o neurologista
passou (ela descobriu que ele jogava no lixo) e concluiu: “ele não podia estar mais
calmo por causa do comprimido”... “eu não insisti mais para ele tomar”.
Outro dia, uma mãe disse à mãe de Herbert: “Lá em casa eu falo: vem comer! e
ponho o prato. Se não vier na hora, fica sem comer e ele não faz mais isso!. Não sei
porque tem que ser diferente para o Herbert! Experimente fazer assim”.
No primeiro encontro, as psicólogas contaram quem é o psicólogo, o que ele faz...
Uma mãe disse: “naquele que eu ia antes não era assim, aqui é diferente...” Foi

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possível falar de formas diferentes de atuar e de finalidades para cada uma delas,
discutindo as finalidades do trabalho que fazemos.

 Grupo de professores e reuniões na escola, para colocar os conhecimentos da Psicologia a


serviço do trabalho pedagógico.

Em atividade conjunta, a professora de Herbert falou para a psicóloga que “não


chama ele na lousa, para ele não passar vergonha...” A psicóloga perguntou: “quem
quer vir à lousa?” Herbert foi o primeiro... “Escreve aí, Herbert... professora”. Ele
escreve po..., chama o colega e pede ajuda e escreve corretamente. Todos lêem
“professora”...
Assim planejam e discutem inúmeras situações. A psicóloga prepara texto para
explicar a lógica de sua intervenção... A professora pede para apresentar em reunião.
Psicóloga e Professora preparam e coordenam a reunião na escola...

 Visitas domiciliares e ao bairro: para investigar e compreender a dinâmica familiar e as


relações entre o bairro e a escola.

Herbert queria ir à casa da família biológica. A psicóloga marca reunião na casa


da família adotiva para discutir a visita. A mãe fala: “se for, tenho medo que não
volte”; as irmãs e o pai “é bom que fique”;... Herbert fala: “eu só quero passar o dia
com eles, eu gosto de vocês”. A mãe diz: “ele não sabe o caminho.” A psicóloga não
aceita que a mãe explique, deixando que ele a conduza; chegam certinho.
Conversam muito, ele brinca com os irmãos biológicos. Todos falam com muito
respeito da família adotiva. Na volta, muita coisa para contar e analisar!

 Eventos científicos, para entender que todos os participantes do trabalho contribuem com
a elaboração do saber/fazer Psicologia Escolar.

Em um congresso na universidade, para fazer o painel do trabalho desenvolvido


junto à demanda de “queixa escolar”, tínhamos fotos dos grupos de crianças e de

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pais. Precisávamos de autorização para a exposição. Levamos o painel para os
grupos de pais e crianças. Contamos sobre o evento, para que servia e que sem eles a
formação dos psicólogos não se efetiva como julgamos que deva ser. Uma mãe disse:
“anota aí, você esqueceu de contar aquele dia que eu descobri que minha filha não
tinha nascido com problema, mas que se alguém tivesse ensinado antes ela teria
aprendido, agora ela sabe”. O pai adotivo de Herbert disse: “ele quer ir lá, posso
levar?”.
Na apresentação do painel, lá estava Herbert, o pai adotivo e a estagiária.
Quando começaram a chegar os observadores, Herbert chamou um grupo de alunos
de Psicologia e a supervisora do estágio: “vem cá ver a foto do meu grupo... este
aqui sou eu! Sabe por que eu estou aqui?...” E contou a história do trabalho para
todos, junto com a psicóloga e o pai. Nos detalhes dizia: “Este aqui foi o dia que eu
descobri que sabia ler e escrever e agora que não preciso mais ir no CPA, falo com a
psicóloga por carta ou por e-mail, quando dá saudade”.

O envolvimento das pessoas relacionadas às situações de escolarização em questão,


compreendendo-as e transformando-as, é o resultado geral das investigações.
Os professores apropriam-se de peculiaridades de seu trabalho e dos alunos que não
haviam compreendido.
Os pais descobrem capacidades e especificidades de seus filhos e de sua própria relação
familiar.
As crianças apropriam-se de suas possibilidades de aprender.
O psicólogo define seu lugar nesse processo e organiza novos conhecimentos sobre a
Psicologia na Educação, quando retorna à teoria.
Consideramos que este trabalho é a expressão concreta do referencial anunciado, pois
enfoca as diferentes relações das quais a criança participa, mobiliza todos os elementos presentes
nessas relações e põe o psicólogo em condições de mediar, junto com o professor, a construção
do sentido pessoal e social do processo de ensinar e de aprender de todos os participantes.

III. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOCO EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO

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Tomando como fundamento as categorias do pensamento crítico e suas expressões nos
pressupostos da Pedagogia histórico crítica e da Psicologia sócio histórica, defendemos que o
objeto do psicólogo em uma instituição de ensino - escolas de educação infantil, ensino
fundamental e médio; creches; universidades; projetos educacionais ligados a diferentes
instituições públicas e privadas; trabalhos de educação popular etc - é o encontro entre os sujeitos
e a educação e a finalidade central de seu trabalho deve ser a de contribuir para a construção de
um processo educacional que seja capaz de socializar o conhecimento historicamente acumulado
e de contribuir para a formação ética e política dos sujeitos.
Assim, o principal critério para a delimitação das áreas de intervenção mais importantes
relaciona-se diretamente com a definição do quanto a atuação da Psicologia pode contribuir para
que a escola cumpra sua função social. Nesta perspectiva, o psicólogo não é um “resolvedor” de
problemas, um mero divulgador de teorias e conhecimentos psicológicos, mas um profissional que
dentro de seus limites e de sua especificidade, pode ajudar a escola a remover obstáculos que se
interpõem entre os sujeitos e o conhecimento e a formar cidadãos por meio da construção de
práticas educativas que favoreçam processos de humanização e reapropriação da capacidade de
pensamento crítico.
Para dar conta dessa tarefa, o psicólogo deve compreender de forma mais aprofundada
tanto as maneiras pelas quais o trabalho educativo produz nos indivíduos singulares a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens (Saviani, 1991)
desempenhando o papel de atividade mediadora entre a esfera da vida cotidiana a as esferas não-
cotidianas de objetivação do gênero humano (Duarte, 1995), quanto as funções e a natureza
social do desenvolvimento cognitivo, dos afetos e emoções no processo de humanização desses
indivíduos pela via da apropriação da cultura.
Esta fundamentação pode tornar o profissional capaz de contribuir para o processo de
desvelamento ideológico de uma série de idéias e concepções cristalizadas e combater em
diferentes instâncias as explicações psicologizantes que buscam re-situar os problemas
educacionais como problemas dos próprios alunos.
É evidente que cada instituição apresenta necessidades e particularidades que devem ser
compreendidas, respeitadas e trabalhadas. No entanto, parece-nos oportuno apresentar neste texto
alguns elementos que podem, em alguma medida, contribuir para o delineamento de propostas de
intervenção fundadas em finalidades transformadoras.

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Para facilitar a exposição, apresentaremos estas reflexões organizadas em três tópicos:
fundamentos, metodologia e sistemática do trabalho em instituições de ensino.

Principais fundamentos do trabalho em instituições de ensino

Como já evidenciamos anteriormente, independente do espaço social e da área de atuação


que o psicólogo escolar esteja ocupando, as bases filosóficas e teóricas nas quais assenta seu
trabalho são as mesmas, desde que elas lhe garantam a compreensão e a possibilidade de
intervenção crítica e competente em contextos educativos.
Entretanto, é preciso destacar que o trabalho em instituições educacionais apresenta certas
especificidades que exigem do profissional o domínio mais aprofundado de algumas mediações
teóricas, dentre as quais destacaremos três que nos parecem ser as mais importantes: a
compreensão de possíveis articulações entre teorias de aprendizagem e práticas educativas; a
análise crítica do espaço social da sala de aula e a concepção de conhecimento como instrumento
do vir a ser.

Articulação entre teorias da aprendizagem e práticas pedagógicas

Conforme aponta Antunes (2000), ao longo de nossa história a Psicologia tornou-se parte
constitutiva do pensamento educacional brasileiro.
Isso significa que é possível localizar com maior ou menor grau de clareza e importância
diferentes contribuições da Psicologia, provenientes de variadas tendências teóricas, nos
processos constitutivos dos ideários pedagógicos que fundamentam práticas e propostas
educacionais no Brasil.
E, se é verdade que os conhecimentos psicológicos podem efetivamente contribuir para a
elaboração de propostas mais consistentes que resultem em melhorias do processo ensino
aprendizagem, é fundamental que o psicólogo escolar compreenda e domine tanto os referenciais
da psicologia, quanto da educação.
Existem múltiplas possibilidades de articulação entre teorias de aprendizagem e práticas
pedagógicas. Neste texto destacamos o tema das relações entre desenvolvimento e aprendizagem
em uma perspectiva sócio-histórica.

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Um processo pedagógico qualitativamente superior pode ser construído por meio de
inúmeros caminhos e, neste sentido, não existe uma definição suficientemente ampla que possa
dar conta de todas as possibilidades. No entanto, podemos afirmar de maneira geral e um tanto
óbvia, que um bom ensino é aquele que garante uma aprendizagem efetiva. Neste sentido, um
bom professor é aquele que dá conta de ensinar seus alunos.
Mas, o que é preciso para que um professor ensine de fato? Poderíamos enumerar uma
série de condições tais como: formação adequada, salários dignos, espaços de estudo e reflexão,
valorização social e tantas outras mais. Embora estas sejam questões fundamentais, neste
momento vamos analisar de forma mais detida o valor e a importância de uma adequada
compreensão do desenvolvimento humano e de suas articulações com a aprendizagem e as
relações sociais, já que não se pode verdadeiramente ensinar se não se considerar como o aluno
aprende, ou ainda, porque às vezes ele não aprende.
Se a escola é a instância socializadora do conhecimento historicamente acumulado e se a
finalidade da ação docente se concretiza na tarefa de ensinar e ensinar bem, é preciso que o
professor selecione tanto os elementos culturais que precisam ser assimilados pelos alunos,
quanto as formas mais adequadas para atingir este objetivo.
De acordo com Saviani (1992), os educadores devem nortear sua ação a partir de três
objetivos fundamentais: a identificação das formas mais desenvolvidas em que se exprime o
saber objetivo socialmente produzido; a transformação deste saber objetivo em saber escolar que
possa ser assimilado pelo conjunto dos alunos e a garantia das condições necessárias para que
estes não apenas se apropriem do conhecimento, mas ainda elevem seu nível de compreensão
sobre a realidade.
Mas, a tarefa docente vai muito mais além, já que após ter definido os conteúdos e
delimitado a metodologia e os recursos pedagógicos a serem utilizados, o professor ainda tem que
enfrentar um novo desafio: o fato de que nem todos aprendem do mesmo modo, no mesmo
momento, no mesmo ritmo. Além disso, alguns alunos parecem simplesmente não aprender nada.
Dentre as várias explicações para o não aprender, que são freqüentemente utilizadas nos
meios educacionais, a mais conhecida é aquela que parte da idéia de que os alunos não aprendem
porque não estão “prontos”.
Uma análise crítica deste tipo de abordagem denominada maturacionista aponta para pelo
menos duas questões principais. Em primeiro lugar, a afirmação de imaturidade neurológica,

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intelectual ou emocional da criança só é possível se tomarmos o adulto como padrão, o que
significa que essas explicações desconsideram que o ser humano é histórico e está em um
permanente processo de construção. Conforme apontam Collares e Moysés (1996), o conceito de
imaturidade colocado nesses termos não possui nenhuma legitimidade científica, já que, desde o
nascimento e ao longo de toda a sua vida, o ser humano apresenta as características físicas,
emocionais e cognitivas adequadas e convenientes a cada momento determinado, ou seja, não
podemos considerar a criança como um ser imaturo pelo simples fato de diferenciar-se de um
adulto.
Interessa-nos, outrossim, discutir de forma mais aprofundada a segunda questão, que se
relaciona com o pressuposto mais geral que fundamenta essa forma de compreender as
dificuldades de aprendizagem dos alunos: a idéia de que a aprendizagem depende diretamente do
desenvolvimento. Esta perspectiva, considera que determinados alunos apresentam dificuldades
porque não atingiram o nível de desenvolvimento psico-intelectual necessário. Assim, o professor
não pode ensinar porque estes alunos não têm condições de aprender, não lhe restando outra
alternativa a não ser esperar que eles fiquem “maduros”, para só então cumprir sua função social.
Consideramos que para rompermos com o maturacionismo é preciso transformar a
concepção de conhecimento e de como ele pode ser transmitido pelos professores e apropriado
pelos alunos. Em outras palavras, é preciso compreender de uma nova forma as relações entre
desenvolvimento e aprendizagem.
Encontramos esse novo olhar nas contribuições de L. S. Vigotski, para quem o principal
fato humano é a transmissão e assimilação da cultura. Assim, a aprendizagem é alçada a uma
posição de extrema importância, na medida em que se constitui em condição fundamental para o
desenvolvimento das características humanas não naturais, mas formadas historicamente.
Vygotsky (1977) concorda que existe uma relação entre um determinado nível de
desenvolvimento e a capacidade ou competência para a aprendizagem de certos conteúdos. No
entanto, a grande inovação proposta por ele é a defesa de que não existe um único nível de
desenvolvimento, mas sim dois: o nível de desenvolvimento atual e a zona de desenvolvimento
próximo (no Brasil também são utilizadas as expressões potencial e proximal).
O nível de desenvolvimento atual corresponde ao nível de desenvolvimento da criança
que foi conseguido como resultado de um processo de desenvolvimento já realizado.
O professor atento aos seus alunos pode perceber o nível de desenvolvimento efetivo de

30
seu grupo observando o que cada um é capaz de realizar de maneira independente, ou seja, o que
já é possível em função do desenvolvimento que foi efetivado até o momento. No entanto, estas
expressões não são capazes de explicar completamente o processo de desenvolvimento das
crianças. É necessário ainda que se busque apreender a zona de desenvolvimento próximo que
corresponde ao que a criança é capaz de realizar com a ajuda de adultos ou companheiros mais
experientes.
Trazendo essa discussão para o universo da sala de aula, tais reflexões apontam que o fato
dos alunos não conseguirem realizar sozinhos determinadas atividades não significa que eles não
tenham condições para tanto. Ocorre que, naquele momento, as capacidades cognitivas
necessárias à realização das tarefas propostas encontram-se em processo de formação, razão pela
qual esses alunos necessitam do auxílio do professor, que pode vir em forma de novas
explicações, apoio afetivo, atividades diferenciadas, organização de trabalhos em grupo, jogos,
brincadeiras etc.
Para Vigotski, o ensino não deve estar “a reboque” do desenvolvimento. Ao contrário, um
processo de aprendizagem adequadamente organizado é capaz de ativar processos de
desenvolvimento.
É importante ressaltar que essa perspectiva aponta para o resgate do papel ativo do
professor em relação aos processos de aprendizagem e desenvolvimento de todos os alunos,
especialmente daqueles que apresentam mais dificuldades.
O professor que sabe que o desenvolvimento cria potencialidades, mas que só a
aprendizagem as concretiza, é aquele que se volta para o futuro, para dar condições para que
todos os seus alunos se desenvolvam e que, portanto, busca intervir ativamente nesse processo,
não se limitando a esperar que as capacidades necessárias à compreensão de um determinado
conceito algum dia “amadureçam”.
Esse professor que sabe que seus alunos se desenvolvem à medida em que os ensina e os
educa que poderá contribuir para a reversão dos processos de produção do fracasso escolar.

A sala de aula como local de formação social da mente

A sala de aula é o lugar onde a educação de fato acontece, já que é o espaço no qual
professores e alunos se encontram e constroem o processo educativo.

31
Assim, se a sala de aula constitui-se no espaço privilegiado da educação é preciso
compreender que existe uma clara correspondência entre a qualidade do trabalho pedagógico e as
práticas e concepções que lhes dão sustentação.
As diferentes maneiras pelas quais se constrói o encontro entre professores e alunos
trazem conseqüências importantes tanto no que se refere ao processo de transmissão e
apropriação dos conhecimentos, quanto no que se refere a formação de atitudes e valores.
Podemos afirmar, portanto, utilizando a expressão que dá título a uma das obras mais
conhecidas de Vigotski, que a sala de aula é de fato um local de formação social da mente.
Essa compreensão pode iluminar de diferentes maneiras a análise dos processos
psicológicos e pedagógicos que se constroem e se tecem de forma articulada no cotidiano das
escolas. Várias questões podem decorrer desta concepção de sala de aula. Podemos destacar as
seguintes:
 A aprendizagem é um processo. Em função do momento de desenvolvimento no qual se
encontra, o ser humano compreende e interpreta de diferentes maneiras os fenômenos
com os quais se defronta, sejam eles de natureza física, social ou psicológica. Em outras
palavras, quando a criança apresenta uma resposta diferente daquela esperada pelo adulto,
não podemos afirmar que ela simplesmente cometeu um erro. Na verdade, ela apresentou
a resposta que lhe foi possível para aquele momento. Por isso é fundamental conhecer e
respeitar o processo de pensamento infantil como ponto de partida do processo educativo;
 A aprendizagem escolar requer articulação entre os conceitos cotidianos ou espontâneos -
aqueles construídos através da experiência de vida - e os conceitos científicos - aqueles
conhecimentos sistematizados que, para serem adquiridos, dependem diretamente do
trabalho desenvolvido pela escola;
 A atividade do indivíduo é condição fundamental para que a aprendizagem ocorra.
Compreende-se, pois, que o educador não “deposita” o saber na cabeça do educando nos
moldes da educação “bancária” denunciada por Paulo Freire; por outro lado, sabe também
que não é deixando o educando sozinho que o conhecimento irá “brotar” de forma
espontânea. Resgata-se, assim, o papel ativo do professor, pois é ele quem poderá
garantir, pela organização intencional de uma proposta de trabalho adequada, as
condições necessárias à aprendizagem e ao desenvolvimento de seus alunos;
 A aprendizagem depende da socialização. O conhecimento é construído, transmitido e

32
apropriado necessariamente na relação com outros. É fundamental que a escola favoreça o
maior número possível de oportunidades de vivência de relações sociais significativas.
Acreditamos que um dos caminhos para garantir algumas das condições necessárias para
o estabelecimento desse tipo de relações no contexto de sala de aula é o trabalho em
grupo. Embora a relação entre os alunos seja vista como secundária e até como elemento
perturbador do andamento das aulas, as elaborações teóricas desenvolvidas por Vigotski
indicam que a interação aluno-aluno é fundamental no processo de socialização e
desenvolvimento cognitivo;
 A aprendizagem requer motivação. Só há atividade verdadeira e com sentido se houver
motivação. Na medida em que é impossível separar processos intelectuais e afetivos, para
que a aprendizagem ocorra é preciso que se estabeleça um vínculo que possa levar o aluno
a dirigir sua atenção para o objeto do conhecimento. Isso não significa, em absoluto, criar
situações artificiais que provoquem a motivação de “fora para dentro”. Trata-se de pensar
em um processo pedagógico que é motivador porque faz sentido para o aluno, como uma
resposta para sua necessidade de compreender melhor sua vida e a vida em sua sociedade;
 A aprendizagem não se separa da individualidade. O desenvolvimento é determinado
pelas relações sociais, mas cada um dá um sentido particular a essas vivências. Assim, é
preciso estar atento ao mesmo tempo para as maneiras a partir das quais o
desenvolvimento da espécie humana é determinado pelas condições sociais e culturais que
afetam todos os homens, mas também para o fato de que esse processo também comporta
uma dimensão de singularidade pessoal. Conforme aponta Sève (1989), as relações dos
homens com a natureza e entre si desenvolvem-se ao mesmo tempo numa formação social
e numa formação individual específicas, ou seja, embora a essência humana encontre-se
no seio do mundo social, a forma psicológica dessa essência só pode existir numa
individualidade concreta. Assim, a vida humana constitui-se de atos pessoais que são
mediados em todos os níveis, até os mais íntimos, pelo mundo social e, ao mesmo tempo,
plenos de sentido dado pela biografia de cada indivíduo. Por isso, é imprescindível que o
educador conheça de fato a realidade dos alunos. É a compreensão das representações e
visões de mundo, dos interesses e valores dos alunos que poderá indicar os pontos de
articulação com o conhecimento que deve ser apropriado;
 O conhecimento é também conscientização e instrumento de transformação social. Como

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ensinou tão bem Paulo Freire (1979), a educação é prática de liberdade, é aproximação
crítica da realidade. A conscientização que o conhecimento possibilita implica
necessariamente ultrapassar a esfera espontânea de apreensão da realidade e, por isso, ela
pode colocar os homens no lugar de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Concordamos
com Duarte (1995), que o trabalho desenvolvido na escola tem um papel fundamental no
processo de formação da individualidade humana, já que as práticas pedagógicas podem
enriquecer os indivíduos pela mediação das objetivações genéricas para-si.

O conhecimento como instrumento do vir-a-ser

Para pensarmos o conhecimento como instrumento do vir a ser, é preciso, antes de mais
nada, rompermos com a idéia da existência de uma natureza humana fixa, imutável, natural, dada
a priori.
Conforme aponta Bock (2000, p.14), o homem tem sido pensado, tanto na ciência quanto
no senso comum, a partir dessa idéia de natureza humana, sendo concebido como portador de
uma essência natural e universal. Assim, se consolida a idéia de que haveria em nós uma semente
de homem que vai desabrochando, conforme vamos sendo estimulados adequadamente pelo meio
cultural e social.
Para a autora, a Psicologia não tem sido capaz de falar do fenômeno psicológico em sua
articulação com a vida, as condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os
homens. Em suas palavras:

Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como instituição social


marcada historicamente pela apropriação dos sujeitos; fala-se da
sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de repressão à
sexualidade; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das
características machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo
na cultura; fala-se de habilidades e aptidões de um sujeito sem se falar das
suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se do homem sem falar
do trabalho; fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social. Na
verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia (Bock, 2001, p. 25).

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Em uma perspectiva crítica, a visão sócio-histórica alerta para o fato de que pensar o
homem dessa forma significa naturalizar os fenômenos humanos e desconsiderar todo o processo
histórico que determina a constituição do ser humano. Por isso, a partir desta concepção é preciso
trabalhar com a idéia de condição humana, de construção social do psiquismo humano, que nos
permita compreender a plasticidade do sistema psicológico humano. E, a possibilidade
permanente de múltiplas transformações do sujeito ao longo de seu processo de desenvolvimento,
aponta, entre outras coisas, para a importância da intervenção educativa.
Desta forma, podemos compreender o desenvolvimento de forma prospectiva, de modo a
que possamos estar atentos para a emergência daquilo que é novo. Conforme ensinou Vigotski
(1987), é preciso transformar a direção de nosso olhar para que possamos não apenas buscar
colher os “frutos” do desenvolvimento, mas sobretudo saber reconhecer seus “brotos” ou
“flores”.

Metodologia de trabalho

Partimos do pressuposto de que a educação transforma o mundo de forma mediada; por


isso entendemos que os processos educacionais são, antes de mais nada, instrumentos de
educação das consciências. É fundamental em todos os momentos possíveis contribuir para a
constituição de sujeitos capazes de olhar para o seu cotidiano e relacioná-lo com a realidade num
plano mais amplo, de se envolver com ações que tenham como horizonte a transformação social.
Para que a Psicologia possa contribuir com a construção da cidadania no interior das
práticas educativas, dentro e fora da escola, é preciso construir metodologias de trabalho
fundadas em um movimento de ação/reflexão/ação, de tal forma que todos os envolvidos possam
refletir sobre a própria prática social, buscar elementos teóricos que venham a iluminar essa
prática de modo qualitativamente diferente e comprometer-se com o desenvolvimento de projetos
de ação que traduzam em ações concretas essa nova compreensão crítica sobre si mesmo e sobre
a realidade social.
Com isso, rompe-se com a idéia do psicólogo escolar como um técnico e se torna possível
pensá-lo como um elemento mediador que, junto com educadores, alunos, funcionários, direção,
famílias e comunidade, poderá avaliar criticamente os conteúdos, métodos de ensino e as

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escolhas didáticas que a escola faz como um todo. Assim, ele pode participar de um esforço
coletivo voltado para a construção de um processo pedagógico qualitativamente superior,
fundamentado em uma compreensão crítica do psiquismo, do desenvolvimento humano e de suas
articulações com a aprendizagem e as relações sociais.
Este trabalho de mediação só é possível se houver um investimento contínuo e sistemático
na articulação de projetos coletivos que viabilizem, de diferentes maneiras, processos de efetiva
participação social no campo da educação, dentro e fora da escola. Isso significa que os possíveis
beneficiários dos serviços da Psicologia devem ser, antes de mais nada, sujeitos ativos e não
apenas objetos passivos de ações sobre as quais não tem qualquer controle.
Embora existam diferenças mais ou menos significativas na articulação dos passos
metodológicos que caracterizam os processos de intervenção, podemos dizer que, em síntese,
existem quatro “momentos” principais:
 Reflexão sobre a vida cotidiana da escola em suas mais diferentes expressões;
 Análise crítica dessa realidade a partir do recurso a elementos teóricos disponíveis que
permitam compreendê-la como construção social historicamente datada, ou seja, como
objeto possível da ação humana transformadora;
 Reflexão e planejamento de ações que podem ser desenvolvidas buscando as
transformações desejadas;
 Desenvolvimento de projetos que traduzam em ações concretas o compromisso ético,
político e profissional com a construção de processos educacionais humanizadores.

Sistemática de trabalho

Em linhas gerais, a sistemática de trabalho envolve quatro momentos principais: avaliação


da realidade escolar e/ou institucional, discussão dos resultados preliminares com todos os
segmentos da instituição educacional, elaboração do plano de intervenção e execução do plano de
intervenção.
É evidente que na prática nem sempre esses momentos sucedem-se da forma como estão
sendo apresentados. No entanto, é importante destacá-los separadamente para que se possa
evidenciar o papel e a importância de cada um deles.

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O processo de avaliação

Quando um profissional não compreende adequadamente sua própria realidade de


trabalho predominam atividades mais esporádicas e assistemáticas, que se limitam a demandas
consideradas emergenciais. Desta forma, os eixos de trabalho acabam resultando de uma
imposição externa da direção da instituição ou de uma decisão pessoal do profissional, baseada
naquilo que ele julga ser mais adequado ou conveniente. Em qualquer uma das situações não se
reúnem as condições necessárias para a construção de uma proposta de trabalho consistente que
possa constituir-se na expressão de uma síntese criativa e crítica entre os conhecimentos da
Psicologia e as necessidades e possibilidades de cada escola.
Por tudo isso, uma avaliação adequada é a primeira condição para a articulação de um
bom plano de trabalho, com objetivos, metas e estratégias definidas.
Para que seja efetivo e realmente leve a uma compreensão adequada da realidade a ser
trabalhada, o processo de avaliação deve envolver uma multiplicidade de fatores, trazendo pelo
menos o seguinte conjunto de dados:
 Dados relativos à organização da escola: número de turmas (total, por período e por
série); número de alunos (total, por período e por série); número de professores (total e
por série); número de funcionários e descrição de funções e atividades; serviços prestados
aos alunos e ä comunidade; esquema de reuniões (de direção e professores, de
professores, de alunos, de funcionários, de pais etc);
 Dados relativos aos recursos físicos da escola: número e condições das salas de aula;
laboratórios; biblioteca (quantidade, qualidade do acervo e condições de acesso); salas de
reunião; salas de projetos; equipamentos e materiais disponíveis (televisão, computadores,
impressoras, vídeo-cassete, filmadora, retro-projetores, máquina fotográfica, xerox,
projetor de slides, filmes educativos etc); quadras de esporte; jardins e áreas de lazer;
 Dados relativos ao corpo docente: formação dos professores (básica, graduação, pós-
graduação); condições de estudo e reflexão; salário e condições de trabalho; tempo médio
de permanência dos professores na escola; experiências educacionais anteriores;
 Dados relativos ao trabalho pedagógico: metodologia utilizada; recursos didáticos; relação
entre professores e alunos; conteúdos trabalhados; tipo de rotina construída em sala de
aula; critérios de organização e atribuição das classes; processos de avaliação;

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 Dados relativos à equipe dirigente da escola: formação, tempo de experiência e forma de
escolha do diretor; número de coordenadores e respectivas funções;
 Dados quantitativos sobre a progressão escolar dos alunos: índices de evasão (total, por
série, por professor e período); índices de repetência (total, por série, por professor e
período);
 Dados relativos ao nível de organização dos diferentes segmentos da escola: Associação
de pais e mestres; Conselho de escola; Grêmio estudantil; projetos em andamento; nível
de participação dos pais (nas organizações formais e não formais);
 Dados relativos às condições sócio-econômicas dos alunos: classe social a que pertence a
maioria dos alunos; profissão e nível de instrução dos pais (geral, por série e por período);
 Dados relativos à história da escola: ano da fundação; circunstâncias que determinaram
sua criação;
 Dados relativos ao bairro no qual a escola está inserida: características e história do
bairro; recursos físicos, institucionais e de serviços presentes no bairro;
 Dados relativos à compreensão que os diferentes segmentos da escola e/ou instituição
apresentam em relação a seus problemas mais fundamentais. Neste campo é preciso
responder a questões como: quais as “queixas” que se colocam? que tipos de demandas
são apresentadas como possíveis objetos de intervenção do profissional?;
 Dados relativos às expectativas dos diferentes segmentos da escola e/ou instituição em
relação ao trabalho do profissional da Psicologia: o que imaginam sobre a função de um
psicólogo na escola e/ou instituição escolar? qual seria seu papel em relação às demandas
apresentadas?
 Dados relativos a possibilidades e limites que se apresentam em relação ao trabalho da
Psicologia: qual o grau de abertura para o desenvolvimento de projetos de ação? quais os
principais limites que se apresentam? quais seriam os parceiros potenciais para dar início
a um trabalho coletivo e solidário?
No que se refere aos procedimentos de avaliação, os dados podem ser coletados junto a
documentos da escola - regimentos, regulamentos, atas de reunião, livros de ocorrência, dados
estatísticos, fichas de inscrição, históricos escolares etc.-, direção e coordenação, professores,
alunos, pais e funcionários.

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Dependendo das possibilidades e condições, os dados podem ser obtidos diretamente por
meio de conversas ou da aplicação de questionários e/ou entrevistas dirigidas.

O relatório de avaliação

O segundo momento do trabalho é a discussão dos resultados preliminares, de preferência


com todos os segmentos organizados da instituição (professores, coordenadores, funcionários,
pais, alunos etc).
Para subsidiar essa discussão é importante que o psicólogo prepare e apresente um
relatório escrito contendo todos os dados obtidos no processo de avaliação. Esse relatório pode se
constituir em um instrumento extremamente rico para estimular a reflexão sobre os problemas da
realidade institucional, bem como a discussão sobre diferentes formas de enfrentamento dessas
dificuldades.
Desta forma, o profissional se coloca desde o princípio como um mediador que pode
contribuir, nas questões que lhe são pertinentes, para a abertura de espaços de discussão e de
resgate da capacidade de pensamento crítico, o que pode colocar todos os segmentos da escola no
lugar de sujeitos ativos.
A discussão do relatório permite que todos possam contribuir para uma compreensão mais
aprofundada sobre sua própria realidade e se comprometerem de alguma forma com as
transformações que se fizerem necessárias para a melhoria do trabalho desenvolvido pela escola.
Não existe um modelo único de relatório e cada profissional pode elaborar aquele que lhe
parecer mais adequado. Mas, algumas questões importantes devem ser garantidas, tais como:
síntese dos principais procedimentos utilizados; apresentação geral dos dados que aponte para
uma compreensão globalizada da realidade; indicações sucintas e precisas das questões que
devem ser trabalhadas e como isto poderia ser feito.

A elaboração do plano de intervenção

O terceiro momento do trabalho é a elaboração do plano de intervenção.


O plano de intervenção deve constituir-se em uma resposta às questões levantadas no
processo de avaliação. Para tanto, devem ser indicados os segmentos que deverão ser envolvidos

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(direção, professores, funcionários, pais, famílias, comunidade) e os objetivos que se pretende
atingir a curto, médio e longo prazos com cada um deles, bem como algumas estratégias que
serão utilizadas.
Não existe um modelo único de plano de intervenção, mas alguns itens não podem deixar
de ser destacados: objetivo geral do trabalho; objetivos específicos dos projetos a serem
realizados com cada um dos segmentos a curto, médio e longo prazos; principais estratégias a
serem utilizadas; condições objetivas necessárias para a realização da intervenção, tais como
horários de reunião, materiais de apoio e de consumo, recursos humanos etc.

O processo de intervenção

O quarto momento do trabalho é o processo de intervenção propriamente dito.


Na medida em que cada realidade é única, não se pode definir a priori uma forma de
intervenção. No entanto, podemos afirmar que o psicólogo escolar deve contribuir de diferentes
formas para:
 a construção de uma gestão escolar democrática, a partir de uma organização do trabalho
coletiva e solidária;
 a melhoria da situação docente e o resgate da autonomia, do papel dirigente e do valor
social do professor;
 a construção de relações sociais que propiciem a formação de vínculos que garantam o
máximo desenvolvimento possível das possibilidades humanas de todos os envolvidos;
 o desenvolvimento de ações que contribuam para a ampliação da participação popular na
escola;
 a definição de planejamentos e diretrizes educacionais que levem em conta o nível de
desenvolvimento, os interesses e a realidade dos alunos;
 a identificação e a remoção dos obstáculos que possam estar impedindo os alunos de se
apropriarem dos conhecimentos;
 a definição de conteúdos e métodos de ensino que não só garantam a apropriação do
saber, mas que também expressem o objetivo de formação de um ser humano pleno de
potencialidades e possibilidades;
 a escolha de materiais didáticos que estimulem o pensamento crítico e criativo dos alunos.

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É evidente que todas estas questões a respeito do trabalho do psicólogo escolar em
instituições educacionais não podem ser pensadas de forma desvinculada dos diferentes contextos
nos quais ele se insere.
As maneiras pelas quais os psicólogos constroem suas propostas de trabalho estão sujeitas
a uma multiplicidade de fatores que se relacionam, por um lado, aos seus posicionamentos
filosóficos, teóricos e metodológicos e por outro, a política educacional das instituições e as
expectativas construídas em relação à ação da Psicologia, que em geral se traduzem por
solicitações de trabalho de diagnóstico e atendimento de casos individuais considerados
problemáticos.
No entanto, a participação em inúmeros trabalhos e projetos de extensão desenvolvidos
nos últimos anos, permite-nos afirmar que é possível abrir espaços que podem diminuir os limites
e ampliar nossas possibilidades de concretização de uma prática contextualizada e criticamente
comprometida com a humanização.

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