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Somos assim, em toda a natureza, privilegiados por poder praticar prazerosamente o coito - e
outras formas de exercícios da sexualidade - durante a gestação, após o período funcional
reprodutivo (menopausa) e ainda quando (ou talvez até principalmente quando) a gestação não
é desejada. Inventamos, portanto, outras "indicações" que não a reprodução para o exercício da
sexualidade. Podemos praticá-lo (e o praticamos) por mero prazer ("sexo-prazer"), por amor
("sexo-amor") e por muitas outras motivações, aí incluindo-se a econômica.
Do ponto de vista psicológico, na medida em que foi surgindo nos hominídeos a consciência do
"eu", foram-se também elaborando parâmetros para auto-avaliação de desempenho,
consciência de aceitação, sensação de adequação ao meio etc. Esses aspectos intrapsíquicos,
tão valorizados que passaram a ser medida da própria existência ("penso, logo existo"),
possuem grande papel no exercício da sexualidade, ao lado do componente social.
No entanto, durante a maior parte da história da humanidade essa influência foi negada, em
especial entre os povos ligados às tradições judaicas e cristãs, atualmente representadas pela
assim denominada "civilização cristã ocidental". As civilizações denominadas "orientais", por
terem relativamente pouca visível influência sobre a nossa, ao menos até recentemente, não
serão incluídas no presente texto, tendo em vista a necessidade de concisão.
Segundo Gênesis (1:27), "E criou Deus o Homem à sua imagem: fê-lo à imagem de Deus, e
criou-os macho e fêmea". Aliás, em hebraico, os nomes que o Homem e a Mulher receberam foi
"Ish e "Ishsha", talvez até para lembrar a semelhança entre ambos.
O curioso desse evento é que na tradição bíblica mais antiga que conhecemos, a tradição javista
(aproximadamente 950 a.C.), não existe nenhum desprezo pela natureza sexual do homem. De
fato, a leitura do "Gênesis" permite a interpretação de estar a sexualidade ali exposta apenas
como mais um aspecto da vida, nem inferiorizado nem enaltecido em relação a qualquer outro.
Assim, a exegese mais isenta apresenta como motivação divina para a criação da mulher
apenas a atenuação da angústia da solidão vital do homem. A interpretação patrística da Bíblia,
porém, que há tantos séculos vem influenciando nossa cultura, considera o sexo como um mal
necessário, admissível apenas por ser indispensável à reprodução da espécie. Inaugurou-se,
partir dessa interpretação, a confusão entre sexualidade e genitalidade, que perdura até nossos
dias.
Assim, para se diferenciar desses outros povos, os israelitas cultuam um deus assexuado
(Javé), que cria o Universo a partir do nada, isto é, sem parceria, de maneira assexuada. Nota-
se assim que para os israelitas a sexualidade perde os atributos divinos, deixando de haver uma
"sexualidade sagrada", cultivada nos templos, como era comum entre os seguidores das outras
religiões.
Além disso, pelas suas características expansionistas e guerreiras, Israel necessitava de muitos,
muitos soldados. Como a mortalidade infantil era muito alta, a solução encontrada foi estimular
o aumento da natalidade, devendo todos praticarem apenas o "sexo-reprodução". O "sexo-
prazer", assim, passou a ser malvisto e a esterilidade considerada a maior das maldições. A
anticon-cepção, em qualquer modalidade, passou a ser uma ofensa aos conterrâneos e a
religião, sendo Onã (Gênesis, 38:8) fulminado por Javé por haver usado de subterfúgios
anticonceptivos. A masturbação e a homossexualidade masculina eram abominações terríveis,
enquanto a homossexualidade feminina era um crime tão horrível que nem sequer era cogitado.
Seguindo essa linha de pensamento, os pensadores judeus (seguidos mais tarde pelos cristãos)
deram até mesmo uma nova interpretação às causas da queda do Homem. Uma leitura um
pouco mais atenta do Velho Testamento nos permite observar que Adão e Eva foram expulsos
do Paraíso apenas por não terem obedecido às ordens de Jeová, que os proibiu de comer dos
frutos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal (Gênesis, 2:17). Fica explícito, no texto, que a
expulsão do paraíso se deveu à desobediência em si, e não ao fato de terem eles tido relações
sexuais (Gênesis, 3:22). Registra-se, no mesmo versículo, o receio divino de que o Homem,
tendo já condições de conhecer o Bem e o Mal, por ter provado do fruto da Árvore, continuasse
a ser desobediente e provasse também dos frutos da Árvore da Vida, passando assim a ser
também imortal. No claro intuito de reprimir as manifestações da sexualidade, no entanto, o
texto foi reinterpretado, sendo apresentada como causa da queda a experiência sexual que
Adão e Eva tiveram.
A sexualidade foi, seguindo esse caminho, deixando de ser fonte de prazer, passando a ser
apenas mais uma das "obrigações" que os bons patriotas judeus deveriam cultivar. Esse
comportamento anti-sexual foi cristalizado em todo um ritual de purificação das mulheres
durante e após as menstruações. Consideradas "impuras" nesses períodos, deviam - as
ortodoxas ainda devem - se submeter a todo um processo de purificação que, por durar vários
dias, termina próximo ao período ovulatório seguinte, levando como consequência a um
aumento das taxas de reprodução.
Não que os judeus não conhecessem o prazer advindo da sexualidade; conheciam-no sim e,
embora não fosse considerado louvável, era ao menos socialmente tolerável... para os homens!
Basta ler no Velho Testamento o Cântico dos Cânticos para que se tenha uma boa visão do
erotismo que permeava a vida e os pensamentos de, ao menos, alguns privilegiados como o Rei
Salomão. No geral, entretanto, podemos dizer que a cultura judaica é sexualmente repressora,
machista e sexista.
Com o surgir do cristianismo as coisas se mantiveram nos mesmos moldes, ou talvez até
piores, sob certos aspectos. Os cristãos dos primeiros séculos, como os primitivos israelitas,
eram minoritários e tinham que se esforçar para diferenciar-se das outras religiões vigentes no
Império Romano. Mesmo os sacerdotes cristãos, nos primeiros séculos, casavam-se
regularmente e mantinham vida sexual ativa. Embora a obrigatoriedade do celibato sacerdotal
fosse discutida desde o Concílio de Ancisa, em 314 d.C. (e essa discussão foi cheia de marchas
e contramarchas que duraram vários séculos), foi só a partir de determinação expressa do Papa
Gregório VII, em 1075, que o matrimônio passou a ser proibido para os sacerdotes católicos.
Assim, repetiram os cristãos o mesmo modelo repres-sor da sexualidade herdado dos judeus.
No entanto, embora as igrejas cristãs (especialmente a Católica) sejam no geral bastante
repressoras em termos de sexualidade, vale a pena lembrar que não existe registro, em todo o
Novo Testamento, de qualquer ato ou palavra repressora que possa ser atribuída ao próprio
Jesus. Pelo contrário, em alguns episódios (o referente à mulher adúltera, por exemplo, em
João, 8:7), suas palavras demonstram uma tolerância e uma compreensão das fraquezas e dos
desejos humanos absolutamente incompatível com a ferocidade com que seus seguidores
reprimiram (e alguns ainda reprimem) as manifestações da sexualidade. Aliás, cite-se como um
registro curioso que Aristóteles, o grande Aristóteles tão querido de alguns dos teóricos
medievais da Igreja Católica, expressava sérias dúvidas sobre se a mulher teria ou não uma
alma.
Considerando tudo isso, podemos dizer que pela vertente cultural judaica cristã herdamos uma
visão extremamente repressora da sexualidade, mais acentuadamente marcada, como sempre,
para o contingente feminino.
Nossa outra vertente, a greco-romana, embora por motivos diferentes também exerceu
repressão sobre a sexualidade, ao menos sobre a feminina. Os homens gregos tinham a busca
do prazer como ideal, sendo permitidas e até incentivadas quaisquer experiências hedonistas.
Esse prazer, no entanto, era buscado fora de casa, entre as prostitutas (hetairas dicterides e
pornois), ou em práticas homossexuais ("amor-paixão"), com efe-bos. As esposas eram quase
que prisioneiras de uma dependência doméstica - gineceu, sendo mantidas como embrutecidas
e emburrecidas máquinas de administrar casas e fazer filhos, sendo-lhes negado qualquer
direito ou qualquer prazer. A cultura grega foi, assim, machista, hedonista e, do ponto de vista
da mulher, repressora.
Os romanos, ao menos em certos períodos e para certas classes sociais, foram um pouco mais
liberais. Vista como um todo, entretanto, a cultura romana foi bastante machista, sendo o
prazer permitido apenas aos homens e a algumas privilegiadas mulheres.
Assim, como se vê, nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão distorcida da
sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual, ao menos para as
mulheres, quando não também para os homens. Em outras palavras, em nossa cultura, ao
menos até bem recentemente, o machismo reinou impunemente.
Embora nossa civilização tenha, nos últimos séculos, vivido alguns momentos de maior
liberalidade, essa visão distorcida da sexualidade foi a tônica principal, mantida durante todos
esses séculos em que ela vem se cristalizando. Diga-se de passagem que, mesmo em seus
momentos de mais liberdade, o exercício pleno da sexualidade sempre foi apanágio das pessoas
adultas, que vêem com maus olhos a sexualidade dos adolescentes, ridicularizam as
manifestações sexuais da terceira idade e negam - ao menos negaram até a poucas décadas - a
sexualidade na infância. De fato, foi necessário que surgisse um Freud, no apagar das luzes do
século XIX, para que "descobríssemos" que a sexualidade existe e se manifesta, ainda que de
formas diferentes, durante toda a duração da vida humana.
Usado inicialmente como instrumento preservador do poder masculino, o machismo deu tão
certo, como recurso, que até hoje ainda não conseguimos nos livrar adequadamente de suas
consequências.
Devemos muito, nesse sentido, a homens como Henry Havelock Hellis (1859-1939) e Sigmund
Freud (1856-1939), que nos deram o embasamento científico para o estudo das manifestações
da sexualidade. Hellis, na Inglaterra, ainda como um ranço do puritanismo vitoriano, sofreu
severa censura e mesmo coação legal, tendo sido proibido de publicar seus trabalhos. Freud,
em Viena, teve suas idéias fortemente rejeitadas pela comunidade médica e científica de então.
Quando alguém for escrever uma História mais pormenorizada do estudo da sexualidade
humana, não poderá deixar de citar uma série de precursores e pioneiros, todos eles
importantes para que obtivéssemos os conhecimentos atuais, tais como Van de Velde, Dickin-
son, Gold, Lief, Calderone, Kinsey, Kegel, Mas-ters, Kaplan e Lo Picollo, entre outros.
Desses, talvez a figura mais citada e menos conhecida seja a de Alfred C. Kinsey, nascido em
1894 e formado em Engenharia Mecânica (1914) e em Biologia (1920). Reconhecido como
cientista (com doutorado em ento-mologia) e acatado professor universitário, pelas
características de conservadorismo e respeitabilidade, foi chamado em 1937, pela Universidade
de Indiana, para criar e lecionar um novo curso, sobre sexualidade e casamento. Interessando-
se cada vez mais por um assunto que em princípio parecia estar tão fora de sua área de
conhecimento, Kinsey iniciou uma série de pesquisas sobre o comportamento sexual dos norte-
americanos, que culminou com a publicação de obra absolutamente revolucionária para a
época, o livro "Sexual Behavior in the Human Male", seguido alguns anos depois pelo "Sexual
Behavior in the Human Female", que revolucionaram a até então aparentemente conservadora
sociedade norte-americana. Kinsey morreu aos 62 anos, em 1956.
Ainda que seja este apenas um despretencioso e breve apanhado sobre a história do
conhecimento da sexualidade humana, não pode nele faltar ao menos a menção de alguns dos
mais importantes nomes, sem cuja contribuição nossos conhecimentos estariam ainda mais
defasados. Assim, parece-nos importante que se citem, pela relevância, os nomes de Kegel e de
Masters.
Graças aos estudos, quase sempre encarados de início com incompreensão e falta de créditos,
embora reconheçamos que existe ainda muito a ser estudado, já temos ao menos esboçadas
nos dias atuais as linhas mestras do conhecimento sobre as tão ricas e multifacetadas
expressões da sexualidade humana.
Como já foi dito e repetido incontáveis vezes, a sexualidade humana pode manifestar-se - e
frequentemente se manifesta - de maneira extremamente polimorfa. De fato, mesmo nas mais
adversas condições e nas mais difíceis situações, o impulso sexual, um dos motores básicos da
conduta humana se apresenta, ora de maneira explícita, outras vezes veladamente.
O adjetivo "normal" pode ser compreendido de várias e diferentes maneiras. Os dicionários (o
Aurélio, por exemplo), definem-no como sendo o que é feito segundo a norma, o habitual, o
natural. Em matemática, "normal" é a reta perpendicular à uma superfície ou linha. Em uso
comum, "normal" é usado com o sentido de algo que não causa espanto, do que é usual, do
que segue os mesmos padrões que a maioria das pessoas segue.
Quanto ao sexo praticado a dois, vejamos o que se considera normal em termos de constituição
de casais. Assim, seria "normal" o casal heterossexual, em que o homem é um pouco mais
velho e mais alto do que a mulher, sendo ambos aproximadamente do mesmo extrato
socioeconômico. Tolera-se, ainda que isso seja por vezes alvo de pilhérias, algumas variantes.
Nesse sentido, um homem até cerca de dez anos mais velho que a mulher é ainda considerado
normal; casais em que a idade do homem excede em 20 ou mais anos a da mulher são vistos
com certa curiosidade, sendo sempre levantada a suspeita de que existem interesses
pecuniários em jogo, mas ainda assim não são vistos como pares "anormais". Houve épocas e
culturas, porém, em que as famílias julgavam perfeitamente normal e até mesmo desejável que
suas filhas se casassem com homens bem mais velhos.
O mesmo se diga para casamentos inter-raciais. Há cem anos seria visto como algo
completamente fora da norma, por exemplo, a união entre um homem branco com parceira
mulata ou negra, que hoje vem sendo encarados com mais naturalidade. Embora tenham
havido historicamente inúmeros exemplos dessas uniões, sempre foram elas levadas na
clandestinidade e entendidas como algo de errado.
Mesmo em considerando-se que em outros períodos históricos isso não tenha sido assim,
podemos dizer que em nossa cultura cristã ocidental até bem poucos anos o homoerotismo foi
visto como uma perversão e até mesmo como uma doença. Ainda que entre os círculos mais
cultos tal visão não mais seja vigente, não se pode negar que a sociedade como um todo
mesmo hoje vê nele muito de sujo, de indigno ou, em outras palavras, "anormal".
Quanto aos aspectos sociais do exercício da sexualidade, o normal é aquilo que foi esboçado
linhas atrás, ou seja, a prática heterossexual por casais com as características descritas. O que
foge a essas normas é denominado de "desvio" (como a gerontofilia e a homossexualidade, por
exemplo), "parafilia" (como o sadoma-so-quismo) ou até mesmo de "perversão" (a necrofilia,
por exemplo), embora essa nomenclatura ainda não seja bem universalizada, havendo os que
denominam de "desvio" o que outros chamam de "parafilia", e vice-versa.
É no componente psicológico do exercício da sexualidade, no entanto, que, em nosso ver,
existem mais dificuldades em conceituar-se o normal. Na verdade, para saber se nossa
sexualidade está sendo normalmente exercida, deve-se responder a indagação sobre se é ela
satisfatória. Estou contente com minha sexualidade? Exerço-a prazerosamente? Estou satisfeito
com a frequência e com a maneira em que a exerço? Minha parceira (ou meu parceiro), por
quem tenho afeto e a quem me é importante satisfazer, está feliz com esses parâmetros? A
isso, a essa satisfação com o exercício da própria sexualidade, costuma-se denominar de
"adequação sexual". Quando essa adequação não existe, ou seja, quando está insatisfeito com
a prática da sexualidade, denomina-se a isso de "inadequação sexual", que em última análise é
o objetivo de todas as correntes de terapia sexual, quer as de fundo orgânico, quer as de
fundamentação psicológica.