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a desconstrução da origem
Alice Mara Serra
na estética quase-transcendental
de Jacques Derrida
Alice Mara Serra
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Ver, por exemplo, J. Derrida:
Schibboleth pour Paul Celan.
Paris, 1986; Demeure – Maurice
Blanchot. Paris, 1998; Parages
(livro também dedicado a
Na obra de Derrida não se encontra, de forma sistematizada, uma
Blanchot). Paris, 1986; “Qual abrangente teoria estética. Suas considerações sobre a arte ocupam
Quelle: Les sources de Valéry”. ali, todavia, um espaço significativo, em interface com temas centrais
In: Marges de la Philosophie. Paris,
1972, p. 325-364; “Mallarmé”. de seu pensamento: questões relativas ao signo e significado, lingua-
In: Acts of Literature. New York/ gem e escrita, problemas de filosofia política e social. Sua obra é ainda
London, 1992, p. 110-126. perpassada pelo diálogo com textos literários1 e desenvolve-se ela
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J. Derrida, “This Strange mesma, sobretudo no período tardio, em uma forma que o próprio
Institution Called Literature”.
In: Acts of Literature, 34 s. Derrida denomina de fronteira entre filosofia e literatura2. Já as teo-
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rias do autor sobre pintura e desenho condensam-se em De la verité
J. Derrida: “+ R (par dessus
le marché)”. In: De la verité en en peinture (1978) e encontram-se dispersas em textos anteriores e
peinture, 169-209; “Cartouches”. posteriores, sejam estes dedicados a artistas particulares3, à teoria da
In: ib., 211-300; “Das Subjektil
ent-sinnen”. In: P. Thévenin,
imagem4 ou ainda a temas não diretamente ligados à arte5. Paralela-
Antonin Artaud. Zeichnungen mente, dedica Derrida reflexões sobre a arte a teóricos da pintura e
und Portraits. München, literatura6 e desenvolve análises sobre fotografia7 e arquitetura8, além
1986; “Videor”. In: Passage de
l’image. Paris, 1990; “Sauver les de apresentações preparadas para exposições de arte9.
phénomènes. Pour Salvatore Se as reflexões de Derrida sobre a arte deixam-se elaborar e
Puglia”. In: Contretemps, 1995,
14-22; Lignées. Bordeaux, 1996.
redimensionar através de seu contínuo diálogo com obras literárias e
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artes visuais, é possível apresentar seus direcionamentos filosóficos no
J. Derrida, Mémoires d’auvegle.
L’autoportrait et autres ruines. contexto de outros diálogos do autor: principalmente aquele que se
Paris, 1990. desenvolve, desde suas primeiras obras, com a fenomenologia husser-
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Este é o caso, por exemplo, liana e a partir desta, com o pensamento de Heidegger. Por sua vez, as
da análise da imagem como teorias de Husserl (em especial sobre o signo, o significado e o tempo
“fantasma” em Spectres de Marx.
Paris, 1993. imanente) e de Freud (sobre o traço de lembrança, a arquiescritura e
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a temporalidade a posteriori ou Nachträglichkeit) aparecem diametral-
J. Derrida: “Kraft der Trauer.
Die Macht des Bildes bei Louis mente correlaciodas no pensamento derridiano: Elas são pensadas
Marin”. München, 1994; “Les repectivamente como ponto culminante da “filosofia da presença”
morts de Roland Barthes”.
Poétiques, 47 (1981), 269-292; e como “apresentação da différance”.10 O diálogo de Derrida com
Mémoires: for Paul de Man os autores mencionados será apresentado, aqui, com a finalidade de
(1986). situar o arcabouço teórico da quase-estética derridiana.
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Marie F. Plissart e J. Derrida, A questão sobre se o pensamento derridiano funda e é ele mes-
Recht auf Einsicht. Wien, 1985.
mo fundado em uma teoria estética foi tematizada por diversos au-
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J. Derrida, “Point de folie – tores. Rösch formula a tese de que Derrida apresenta uma estética
maintenant l’architecture”.
London, 1986. serial, segundo a qual a obra de arte é vista como um modelo genera-
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J. Derrida, Mémoires d’auvegle.
tivo que atualiza uma dinâmica desconstrutora: Remetendo a diver-
L’autoportrait et autres ruines. sos discursos numa estrutura serial e polimorfa, a obra de arte escapa
Paris, 1990. a uma fenomenologia da percepção, bem como a uma hermenêutica
10
Rudolf Bernet apresenta a fundada no ideal de compreensão.11 Com sua estética serial, Derrida
coloca em xeque a categoria da obra de arte individual como enti-
dade fechada, contendo uma essência significativa que seria passível 121
de ser decodificada através da apresentação de seus níveis constituti-
vos internos e da análise das influências externas provenientes de seus
mais ela deixa aparecer o mundo em si.48 Como tal, ela não restitui o
vivível, mas faz visível (macht sichtbar).49
Todavia, como mostra Derrida em sua leitura da teoria estética
de Heidegger, embora esse autor recuse o caráter referencial da arte,
ele não supera a hierarquia husserliana entre o Fiktum e o sujeito da
imagem. Heidegger fundamenta a visibilidade da obra de arte em uma
zeigen) significados (signifiés, forma mais originária de presença, diante da qual a dimensão onto-
Bedeutungen) ideais, presentes
imediatamente à intuição. Dessa lógica da obra de arte, sublinhada pela sua filosofia da arte, termina
forma, as palavras atuam antes por reduzir-se à dimensão ôntica. Isto se vê na leitura de Heidegger,
como palavras representadas
(représentés, vorgestellte) do que em A origem da obra de arte (Der Ursprung des Kunstwerkes, 1935), sobre
como palavras reais (réels, os sapatos pintados por Van Gogh, leitura que Derrida classificaria
wirkliche). (J. Derrida, La voix et como “análise espectral de imagens”. Abrindo seu texto sobre a in-
le phénomène, 47 s.).
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terpretação heideggeriana com a pergunta “Não há fantasmas nos
E. Husserl, Hua XIX/1, 30 ss.
quadros de Van Gogh?”50, conduz-nos Derrida ao tema do espectro,
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E. Husserl, Hua XXIII, 18 s. figura de pensamento que reenvia ao sujeito e ao objeto da imagem
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husserlianos, e que Derrida também pensa em sua leitura sobre o
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“Repräsentant für ein anderes, Hamlet51 e em sua crítica a Heidegger em De l’esprit52. Ao espectro
ihm gleiches oder ähnliches” (E. ou fantasma é inerente um antagonismo da imagem enquanto visi-
Husserl, Hua XXIII, 20).
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bilidade de uma presença que não se vê diretamente, mas que está lá,
E. Husserl, Hua XXIII, 21 s.
circundando o fenômeno, naquilo que, a partir do visível, imagina-se,
33
E. Husserl, Hua XXIII, 34 s. projeta-se, segundo o que nele se quer ver.53 Esse caráter imaginário
34
E. Husserl, Hua XXIII, Text do fantasma acompanha-se de uma temporalidade específica: o que
Nr. 6 (1909), 247 s.
doa valor de presença à presença não se situa na mesma dimensão
35
E. Husserl, Hua IV: Ideen temporal do fenômeno visível, e sim, preexiste a este, expreita-o sem
zu einer reinen Phänomenologie
und phänomenologischen ser visto, constitui-se como ameaça contínua de entrar em cena, de
Philosophie. Zweites Buch: re-aparecer ao lado do visível ou de fundir-se a este. Tal como em
Phänomenologische
Untersuchungen zur Hamlet, o fantasma começa por reaparecer, ele seria a repetição de
Konstitution. uma aparição mais originária.54 Por relações de semelhança, a figura-
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E. Husserl, Hua XV: ção evoca uma percepção prévia, que, todavia, não se constitui por si
Zur Phänomenologie der como presença perceptiva.
Intersubjektivität.Texte aus dem
Nachlass. A leitura desconstrutora não visa a exterminar o espectro – o
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fantasma, diz Derrida, não possuindo uma materialidade palpável, não
M. Merleau-Ponty, “Sur la
phénoménologie du langage”. pode ser aniquilado como o poderia ser um corpo sensível. Mas tra-
In: Signes, 136-158. ta-se de reconhecê-lo como “alteridade radical”55 e de desmontar, de
38
Ver E. Husserl, Hua XI, 179 s. des-sedimentar, no interior da leitura filosófica de escrituras (pinturas,
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E. Husserl, Hua XI, 84 ss.; obras literárias e outras formas de escrita), o fantasma que ali habita e
Hua III, 253 s. que ameaça passar despercebido – como na imputação de Heidegger
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F. Brentano, Psychologie vom dos sapatos de Van Gogh ao camponês –, confundindo-se com o fenô-
empirischen Standpunkt, 128. meno aparecente. Tal prática de des-sentimentação pode ser vista, de
***
forma paradigmática, na crítica de Derrida, em De la verité en peinture, à
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Ver A. M. Serra, “Deckung/ concepção heideggeriana sobre a origem da obra de arte.
Adäquation”. In: H.-H. Gander Segundo Derrida, na leitura de Heidegger, o quadro de Van
(org.), Husserl-Lexikon, 55-57.
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Gogh possui um lugar marginal, sendo utilizado como mera ilustra-
Sobre o fenômeno da
“modalização”, ver E. Husserl, ção: Primeiro, Heidegger teria escolhido um dos quadros da série de
Hua XI, 25-116. sapatos pintados por Van Gogh, sem ressaltar a que quadro da série
ele se refere.56 Segundo, Heidegger imputa esse exemplo figurativo a
uma origem mais originária que os sapatos pintados: Ele logo se refe- 127
re aos sapatos como sendo sapatos de camponeses (Bauernschuhe), ou
de uma camponesa, mesmo que isso não seja claro na visibilidade dos