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Gerald Bray
Traduzido por Jurandy Bravo e revisado por Jonathan Silveira
... ele é chamado de Espírito de adoção por ser a testemunha para nós da benevolência
desmedida de Deus, com a qual Deus, o Pai, nos abraçou em seu amado Filho único a
fim de se tornar um Pai para nós... (Institutas, 3.1.3).
O filho adotivo não compartilha da natureza dos pais e não tem nenhuma
reivindicação física sobre eles. Foi aceito na família por escolha pessoal e seu
parentesco com os novos pais não se dá por sangue, mas por amor. Assim acontece com
os crentes. Não somos filhos de Deus por natureza e não temos nenhum direito inato de
passar a eternidade no reino do céu, mesmo se alcançarmos de algum modo a perfeição
moral e espiritual. Somos herdeiros por meio da esperança do reino de Deus porque
fomos adotados — esse é o selo e a garantia da nossa salvação. Essa adoção é a obra do
Espírito Santo, que entra em nosso coração e clama “Aba, Pai” (Gl 4.6).
A tragédia da Reforma foi essa verdade ter sido escondida em seguida, inclusive
entre protestantes, devido em parte a um tradicionalismo irrefletido e em parte ao medo
de que uma ênfase na presença residente do Espírito Santo pudesse levar a uma forma
desordenada e nociva de pseudoespiritualidade. Em tempos modernos, ainda
encontramos os mesmos problemas. Os que adotam uma visão reformada acentuada
rejeitam com exagerada frequência qualquer forma de emoção por recear que se
degenere em emocionalismo irracional, ao passo que outros dão tanta ênfase ao ser
“cheio do Espírito” e “guiado pelo Espírito” que parecem perder todo contato com a
realidade.
Muita gente se sente pressionada a escolher um desses extremos em detrimento
do outro, é inevitável. E essa escolha, é preciso que se diga, costuma ter mais a ver com
personalidade e temperamento do que com uma compreensão bíblica da obra do
Espírito Santo. Enquanto nos preparamos para comemorar meio milênio da Reforma,
será que podemos não retornar às nossas raízes e considerar novamente o grande poder
motivador que a redescoberta e a experiência renovada da obra do Espírito desencadeou
no século 16? Podemos aprender a evitar os excessos do passado e a resistir aos temores
do presente expondo uma doutrina sadia dessa obra que faça justiça à sua importância
em nossa vida de crentes, sem perder de vista o contexto teológico mais amplo em que
ela encontra seu lugar apropriado?
Conseguimos fazer isso se nos lembrarmos como era fundamental para o
pensamento dos reformadores protestantes a obra do Espírito Santo. Nas palavras de
Lutero:
O Espírito, a graça divina, dá força e poder ao coração; de fato, cria um novo homem
que tem prazer nos mandamentos de Deus e faz tudo que deve com alegria. O espírito
[que nele habita] jamais pode ser contido na letra. Não há como escrevê-lo como a lei,
com tinta, sobre pedra ou em livros. Em vez disso, ele é gravado só no coração como
uma escrita viva do Espírito Santo [...] todos que creem em Cristo recebem a graça de
Deus e o Espírito Santo, por meio dos quais todos os pecados são perdoados, toda a lei é
cumprida e eles se tornam filhos de Deus, abençoados eternamente (De littera et spiritu,
29:182,183).
Em geral ainda se concorda que a justificação só pela fé foi o ponto sobre o qual
Lutero disse que a igreja se coloca se prega a doutrina, ou cai se não o faz. Todavia,
embora este seja um tema proeminente para ele desde suas primeiras séries de
conferências sobre Gálatas (1519), não se tornou o centro do seu ensinamento senão
algum tempo depois. Na Confissão de Augsburgo de 1530, por exemplo, que se tornou
a declaração definidora do que era um protestante (luterano), a doutrina da justificação
foi tratada de maneira muito breve:
... os homens não podem ser justificados diante de Deus pela sua própria força, méritos
ou obras, mas são justificados gratuitamente pela fé em virtude de Cristo, quando creem
que foram recebidos na graça e que seus pecados foram perdoados em virtude de Cristo,
que com sua morte pagou por nossos pecados. Deus considera essa fé como justiça aos
seus olhos (Rm 3.4) (Confissão de Augsburgo 4).
Como a renovação ocorre na justificação, essa nova vida é obediência a Deus. Logo, a
justificação não pode ser retida a menos que o mesmo aconteça a essa obediência
incipiente [...] o valor dessa obediência incipiente é grande, pois embora imperfeita,
ainda assim, pelo fato de as pessoas envolvidas estarem em Cristo, ela é computada
como um tipo de cumprimento da lei e é justiça, como costumam chamá-la [...] Isso não
deveria ser entendido como se obtivéssemos a remissão dos pecados e a reconciliação
em razão das nossas obras, mas que ambas as justiças são necessárias. Primeiro, a fé é
necessária, pois por ela somos justificados diante de Deus [...] e depois uma outra
justiça é necessária e devida, a justiça das obras e de uma boa consciência (Artigos de
Wittenberg, 5).
Meu ensino é que existe uma clara distinção entre dois tipos de justiça, a ativa e a
passiva, de modo que a moralidade não deve ser confundida com a fé, as obras não
devem tomar o lugar da graça e a sociedade secular não deve prevalecer sobre a
religião. Ambos os tipos de justiça são necessários, mas cada um deles tem seus limites.
A justiça cristã se aplica ao novo homem e a justiça da lei, ao velho homem, nascido da
carne e do sangue. [...] No cristão, a lei deveria governar apenas sobre a carne e não
sobre a consciência. Dê à carne o que lhe é devido, mas não lhe permita ultrapassar sua
jurisdição.
A justiça passiva validava seu equivalente ativo pois só uma justiça recebida de
Cristo haveria de ter poder para justificar. Do início ao fim, o refrão constante de Lutero
era que não podemos fazer nada para nos salvarmos, mas devemos nos manter unidos a
Cristo, a fim de que sua justiça seja estendida de modo a nos cobrir por imputação. A
justiça ativa, por outro lado, é válida apenas desde que estejamos unidos a Cristo e sua
justiça opere em nós, pois antes mesmo de sermos justificados continuamos sendo
pecadores.
Essas declarações provam que, por volta de 1536, a obra do Espírito Santo na
justificação estava não apenas sendo claramente articulada mas se tornara um ponto
importante da doutrina protestante.
A importância da obra do Espírito Santo na justificação fica mais clara quando
constatamos que, para Lutero, o cristão não é uma pessoa que parou de pecar, feito
impossível nesta vida, mas alguém levado a perceber qual o seu verdadeiro estado
espiritual e que confia na justiça de Cristo para sua salvação. Lutero defendeu essa ideia
com energia em seus comentários sobre Gálatas 3.6, que resumem muito bem seu
ensinamento:
O cristão é justo e pecador ao mesmo tempo (simul iustus et peccator), santo e profano,
inimigo de Deus e filho de Deus. Só aqueles que compreendem o verdadeiro significado
da justificação entenderão esse aparente paradoxo.
Calvino prosseguiu então dizendo-nos que conferir fé aos crentes era a obra
primeira e mais importante do Espírito. Citando diversas passagens do Novo
Testamento que sustentam essa visão, ele culminou sua exposição com uma rápida
discussão das palavras de Cristo aos discípulos antes da crucificação, quando prometeu
lhes enviar “o Espírito da verdade, o qual o mundo não pode receber...” (Jo 14.17).
Após discursar longo tempo sobre a natureza da fé como um dom divino e de
refutar diversos erros que se haviam imiscuído no ensinamento da igreja medieval,
Calvino enfim chegou à questão central da justificação, pela qual os capítulos sobre fé
foram evidente preparação. Em oito capítulos substanciais, seguidos por um adicional
sobre a liberdade cristã, ele expôs a doutrina da justificação só pela fé, ignorando as
objeções levantadas contra o ensino de Lutero pelo concílio de Trento e se
concentrando, em vez disso, no falso ensinamento de Andreas Osiander, teólogo
luterano que, nas palavras de Calvino, ensinava “que não somos justificados por mera
graça do mediador, e que a justiça não nos é simples ou inteiramente oferecida em sua
pessoa, mas que somos feitos participantes da justiça divina quando Deus se une a nós
em sua essência” (Institutas, 3.11.5). Calvino, acompanhado de Melâncton e outros
teólogos luteranos, opôs-se a Osiander baseado em que ele distorcia o que o Novo
Testamento ensinava sobre a obra do Espírito Santo na vida do crente. Utilizando a
imagem do sol, que ao mesmo tempo é luz e calor, Calvino argumentou que assim como
não podemos dizer que a Terra é aquecida pela luz do sol ou iluminada por seu calor,
tampouco podemos confundir os dois aspectos da graça de Deus em operação em nossa
vida. Justificação e santificação são inseparáveis, mas não idênticas. O Pai nos aceita
em sua presença graças à intercessão do Filho, nosso mediador, mas em seguida nos dá
seu Espírito de adoção a fim de que possamos ser re-formados à sua imagem (Institutas,
3.11.6).
O erro de Osiander, na visão de Calvino, ocorreu devido a um entendimento
equivocado da fé, que é o meio indicado para um fim, qual seja, a união com Cristo,
mas que não deve ser confundido com o fim propriamente dito. Calvino comparava a fé
a um vaso de barro em que se deposita ouro (a justificação) — não é a fé, sempre frágil
e inadequada, que conta, mas o dom que ela traz, que é nosso real tesouro e salvação
(Institutas, 3.11.7). O vaso de barro em que o tesouro é encerrado representa, antes de
mais nada, a natureza humana do Filho encarnado e, em segundo lugar, nós que
partilhamos dessa natureza humana. Jesus foi feito justo por nós não em função de sua
divindade, mas porque sua natureza humana foi transformada pela presença residente de
Deus. Se fosse justo em razão de sua natureza divina ele não seria nosso Salvador, pois
seríamos incapazes de partilhar dessa justiça de qualquer maneira. Mas como a justiça
divina foi imputada à sua natureza humana, assim também ela nos é imputada pela
presença residente do Espírito Santo. Permanecemos vasos de barro e jamais podemos
ser qualquer outra coisa além disso, mas o Espírito divino no interior desses vasos opera
seu poder de regeneração em nós, de modo que nos tornamos, pela graça, algo que
jamais poderíamos ser (ou nos tornar) por natureza. Após uma longa discussão desse
assunto, Calvino resumiu tudo como segue:
Quando Deus nos reconcilia consigo pela intervenção da justiça de Cristo, e conferindo
a nós o perdão gratuito dos pecados, considera-nos como justos, sua bondade se associa
simultaneamente à misericórdia, de modo que ele habita em nós por seu Espírito Santo,
por cuja obra os desejos da nossa carne são todos os dias mortificados e nós,
santificados, o que significa que somos consagrados ao Senhor para a pureza de vida e
nosso coração é treinado para obedecer a lei (Institutas, 3.14.9).
Calvino contrapôs isso com o ensino dos escolásticos medievais, os quais agrupava
como uma coisa só. Começou dizendo não haver nenhuma diferença entre eles e os
reformados no que diz respeito ao princípio básico, uma vez que ambos concordam que
os pecadores são libertos gratuitamente da condenação e recebem justificação por meio
do perdão de seus pecados. Mas ele prosseguiu a fim de chamar a atenção para o fato de
que:
Deve-se observar com grande cuidado que a liberdade cristã é em todos os aspectos uma
questão espiritual, que consiste em dar paz a consciências trepidantes, estejam elas
ansiosas e aborrecidas para saber se obtiveram o perdão dos pecados, ou se suas obras
imperfeitas [...] são agradáveis a Deus, ou se estão preocupadas em fazer coisas que não
importam nem em um sentido, nem no outro (Institutas, 3.19.9)