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ANTROPOIÍXIIA l i KELKUÀO
Se D e u s existe o u n ã o é q u e s t ã o q u e a A n t r o p o l o g i a n ã o ousa
enfrentar, q u a n t o m a i s r e s p o n d e r . É q u e s ã o tantas as culturas e tantas
as forma s de r e c o n h e c e r a d i v i n d a d e , o A b s o l u t o , o t r a n s h u m a n o , a q u i l o
q u e está a l é m d a v i d a c o t i d i a n a , q u e a A n t r o p o l o g i a se sente como
uma grande m ã e q u e a c o l h e todos, acata os sentimentos e as visões de
todas as religiões. U m deus, u m p a n t e ã o de deuses, espíritos d a água
e do fogo, da onça e da hiena, tudo, enfim, tem sua vivência e
c o n s i s t ê n c i a e e s t i m u l a c r e n ç a e f é . C o m o já d i s s e D u r k h e i m , o s o c i ó l o g o
francês q u e tanto c o n t r i b u i u p a r a os estudos sobre a religião, "toda
religião é v e r d a d e i r a " .
A Antropologia da Religião é u m a especialidade d a Antropologia
q u e trata d e s s a g r a n d e q u e s t ã o . D e r e b o q u e , trata d e a s s u n t o s como
rituais, m e s m o q u a n d o n ã o s e j a m necessariamente d e o r d e m religiosa,
1 e d o relacionamento d a religião c o m as outras d i m e n s õ e s d a cultura, d a
identidade das pessoas aos interesses e c o n ó m i c o s . É u m a tarefa de largo
espectro, q u e se t o r n a m a i s realizável e m v i r t u d e d e ser c o m p l e m e n t a d a
p o r outras grandes disciplinas, c o m o a Sociologia d a Religião, a Filosofia
e a própria Teologia.
A p a l a v r a religião, c o m o l e m b r a m os teólogos, v e m d o latim re-ligare,
que quer dizer mais o u m e n o s o sentimento de voltar a algo inerente ao
K I I I <. I A n , |i I I II A I I M I I < > . I l'i
134 A N I K t ) I' t l I ti I A
q u e m a i s q u e r e m é f a z e r o s fiéis v i v e n c i a r e m o s e n l i m e i i l o d o s a ^ i . i i l n
Kl .lAO COMO INSTITUIÇÃO
n o s s e u s r i t u a i s r e l i g i o s o s . A l g u m a s o c o n s e g u e m , a t r a v é s t i e l i i i i . i c , i|i
A k i l l d e d e r i v a r ck) s e n t i m e n t o d o s a g r a d o , a l é m d e s e r u m a d i m e n s ã o
p o s s e s s õ e s , c o m o v e r e m o s adiante, e outras se m a n t ê m m a i s d i s c i v l i i f t i '
I )irst'iiie e m todas as culturas e além de servir c o m o identidade mítica q u e
deixam que cada u m sinta o que p u d e r sentir de sagrado n a SWA
.i).íix'ga p e s s o a s e m t o r n o d e u m a o r i g e m t r a n s c e n d e n t a l e d e u m a f i n a l i d a d e
concentração consigo m e s m o , o u n a sua entrega a u m todo misliiiiIMI
iillima d a existência, a religião é mais frequentemente focalizada c o m o
D u r k h e i m foi dos primeiros antropólogos a analisar e sistemali/ai ,i
uma instituição cultural. U m a instituição cultural é algo q u e se a p r e s e n t a
distinção que todas as culturas f a z e m entre coisas consideradas S(igriiilíi\
i i i l i d a m e n t e n a s o c i e d a d e c o m três atributos: 1 . u m d i s c u r s o , isto é, u m a
e c o i s a s c o n s i d e r a d a s profanas. P a r a ele o s a g r a d o é tuck) a q u i l o (|iic
l u s i i f i c a t i v a q u e l h e d á s e n t i d o e f i n a l i d a d e ; 2. p a r t i c i p a n t e s o u m e m b r o s
está c o l o c a d o à parte das coisas m u n d a n a s , q u e são o p r o f a n o . O sagi-adi i,
<|ue s e a g r e g a m ; e 3- c o m p o r t a m e n t o s e s p e c í f i c o s , i n c l u i n d o r i t u a i s . T o d a
n o f u n d o , origina-se d o sentimento q u e junta as pessoas e as faz s e n l i i
instituição cultural está c o n e c t a d a c o m outras instituições, as q u a i s s ã o
c o m o se p e r t e n c e s s e m u m a s às outras, e m u m a c o m u n h ã o de i d e n l i t h u i c
reconhecidas e m suas especificidades e funções. Todavia, e m muitos casos
coletiva, q u e está a c i m a de c a d a indivíduo. O p r o f a n o é a q u i l o corric]ueii( >
r difícil a n a l i s a r u m a i n s t i t u i ç ã o c u l t u r a l de per si, p o i s e l a e s t á i m b r i c a d a
q u e p o d e s e r c o m p r e e n d i d o e c a l c u l a d o p e l o i n t e r e s s e i n d i v i d u a l . <)
vm o u t r a s i n s t i t u i ç õ e s . I s s o p o d e a c o n t e c e r c o m a i n s t i t u i ç ã o r e l i g i ã o o u
sagrado é aquilo que a cultura, c o m o coletividade, reconhece como
com a instituição e d u c a ç ã o , o u c o m q u a l q u e r outra. D e m o d o que, ao
merecedor de respeito e reverência porque toca a todos. D u r k h e i m viu
tratarmos de religião, c o m o instituição, necessariamente trataremos de
nisso a o r i g e m social d o sentimento religioso. A s s i m , a religião derivaria,
aspectos de outras instituições culturais que lhe estão imbricadas, c o m o a
antes de tudo, d o sentimento de pertencimento d o indivíduo ao coletivo.
política, a e c o n o m i a , a m o r a l , etc.
E x e m p l o s dessa p r o p o s i ç ã o de D u r k h e i m estão e m todas as religiões,
A religião, c o m o instituição, q u e r d i z e r u m conjunto d e crenças e m
d e s d e a s q u e s e b a s e i a m n a c r e n ç a e m e s p í r i t o s q u e r e p r e s e n t a m as
t o r n o d o s a g r a d o , u m m o d o d e r e a l i z a r essas c r e n ç a s , isto é, rituais
coisas da n a t u r e z a , até em religiões que pregam sentimentos
p r ó p r i o s , i n s t r u m e n t o s e / o u l o c a i s p r ó p r i o s , e, n a g r a n d e m a i o r i a d o s
e x t r e m a m e n t e abstratos, c o m o a integração d o indivíduo n o todo que
casos, especialistas q u e se c o m u n i c a m c o m os entes religiosos e os
aparece c o m o o nada, conforme existe no zen-budismo. A sacralização
participantes, que se j u n t a m p e l a m o t i v a ç ã o d a c r e n ç a c o m u m . U m
da sociedade, o u d o coletivo, é s e m p r e u m a abstração. O q u e a c o n t e c e
p o n t o e x t r a q u e se a p r e s e n t a c o m o f u n d a m e n t a l n a religião é q u e ela
com mais frequência é a sacralização de alguma coisa, sejam deuses o u
t e n h a eficácia, isto é, q u e ela seja c a p a z n ã o s ó de d a r sentido ( e m o c i o n a l
espíritos, seja u m a p e s s o a , c o m o s í m b o l o d a s o c i e d a d e . P o r e x e m p l o ,
e r a c i o n a l ) às c r e n ç a s , m a s t a m b é m d e p r o v a r q u e é " v e r d a d e i r a " , o q u e
certos p o v o s africanos, que estavam n o processo de constituir o estado
significa também que produza resultados. Isso é particularmente
c o m o instituição política à parte d a sociedade, e l e v a r a m a figura d o rei,
importante nas questões de pedidos e intercessões e m geral, e t a m b é m
e especificamente seu corpo, à própria representação do estado e da
em q u e s t õ e s d e m a g i a , feitiçaria e c u r a s .
sociedade, tornando-a livre do contato c o m o profano, impoluta,
É certo q u e muitos autores f a z e m u m a distinção clara entre m a g i a e
portanto, sagrada. É nesse sentido t a m b é m que os antigos egípcios
religião, s e n d o a p r i m e i r a c o n s i d e r a d a algo m a i s instrumental e m a i s dirigida
e l e v a r a m o faraó à c o n d i ç ã o de u m d e u s v i v o , u m ser sagrado, por
a certos objetivos. E n t r e t a n t o , m a g i a o u feitiçaria s ã o t a m b é m m o d o s d e
representar a união indissolúvel de todo o p o v o .
c o m u n i c a ç ã o e i n t e r m e d i a ç ã o e n t r e as c o i s a s s a g r a d a s e o s p a r t i c i p a n t e s , tal
k E o p o v o que partilha dessas culturas efetivamente vê, pela fé, pessoas c o m o a religião. N e s s e sentido, a c o m p r e e n s ã o d e u m o u d e u m outro r e q u e r
como seres sagrados. A l g u m a s religiões, c o m o a m o d a l i d a d e católica metodologias semelhantes, c o m o instituições culturais. ,
do cristianismo, transferem o objeto sagrado para figuras, imagens e
ícones, q u e representariam materialmente espíritos q u e estariam v i v o s
ou existentes e m outra dimensão, fora da vida. Escapulários, imagens e RELIGIÃO E MAGIA ' ! V i .•
vida social, ela é algo que tem bases comuns com a religião. A do", tornando-se menos emocional e irracional e mais moral e rack)nal.
A n t r o p o l o g i a t e m tradicionalmente tratado desses dois assuntos como E m b o r a c o m diferenças entre si, p o d e - s e dizer q u e os antropólogos
u m a rubrica d u p l a . C o m o a religião, a m a g i a requer u m sistema de evolucionistas d o século xix b a s e a v a m suas análises e interpretações de
crenças, que inclui espíritos e sentimentos, u m corpo de crentes e f e n ó m e n o s religiosos n u m a c o n c e p ç ã o colocada ainda nos anos 1830
m e d i a d o r e s entre esses espíritos e os crentes. A m a g i a é propositadamente pelo sociólogo francês Auguste Comte (1789-1857) e m passagens de
u m sistema de intervenção n a o r d e m das coisas. O s mediadores são seus livros sobre a chamada ciência positiva, que d e u origem ao termo
doenças provocadas por intervenções de mediadores maus, como P r o p u n h a C o m t e q u e as religiões e r a m manifestações dos limites d o
feiticeiros) o u para o m a l . Além de feiticeiros, x a m ã s e pajés, há os conhecimento d o h o m e m diante dos f e n ó m e n o s da natureza; portanto,
a d i v i n h o s e seus sistemas de adivinhação, s e j a m tripas d e g a l i n h a , seja n a m e d i d a e m que o h o m e m ia entendendo esses f e n ó m e n o s por u m prisma
cera de v e l a s e m c o p o s d e á g u a nas festas de S ã o J o ã o , seja leitura de racional, b a s e a d o n a lógica de c a u s a e efeito e n a sistematicidade, a religião
m ã o , e dezenas de outros tipos de adivinhação. iria p e r d e n d o suas características e m o c i o n a i s e se r e d u z i n d o a c o n t o r n o s
D u r a n t e muitos anos foi m o t i v o de m u i t a discussão entre antropólogos morais, para, enfim, dar lugar à ciência e à centralidade do h o m e m no
com respeito, mesmo com a predominância do espírito científico, d a natureza e c o m características gerais de instituição cultural.
dois antropólogos mais criativos da época, escreveram sobre religião se c o m u n i c a r e controlá-los. E s s e s "sacerdotes", n u m sentido amplo,
A passagem para o terceiro estágio seria caracterizada pela entrada espírito u n o n o u n i v e r s o ) , d e m o n s t r a v a o quanto de básica e f u n d a m e n t a l
da ciência no pensamento moderno, ao lado do desenvolvimento da era a necessidade d o h o m e m de manter o espírito d o religioso e do sagrado
e de projeção e m o u t r e m d a capacidade d o h o m e m . A religião e a encontrando abrigo nos corações e sentido nas mentes dos homens.
f i l o s o f i a d a r i a m v e z à c i ê n c i a , p o i s o h o m e m já n ã o t e r i a r a z ã o p a r a ter
m e d o e t i n h a as b a s e s p a r a a m p l i a r s e u c o n h e c i m e n t o do mundo. A
O E S T U D O D E RELIGIÕES N O B R A S I L / •
religião seria n ã o mais q u e u m sistema m o r a l de c o m p o r t a m e n t o racional,
de tolerância entre os h o m e n s , q u e s e r i a m guiados pelos e x e m p l o s q u e O interesse de antropólogos pela religião n o B r a s i l t e m o r i g e m n o
o p a s s a d o l h e s h a v i a t r a z i d o . N o l i m i t e d e s u a v i s ã o , já q u a n d o seu interesse pelas religiões q u e e s t a v a m à m a r g e m d a d o m i n a n t e religião
trabalho dito científico tinha sido r e c o n h e c i d o p o r seus c o n t e m p o r â n e o s , católica. T ê m sido objetos de especial estudo o c a n d o m b l é , o espiritismo,
n a d é c a d a d e 1850, C o m t e p r o j e t o u u m a religião d a h u m a n i d a d e e m a u m b a n d a e as variações evangélicas d o protestantismo. Entretanto, há
q u e o panteão de "demiurgos" seriam os grandes h o m e n s d o passado estudos antropológicos sobre as d e m a i s religiões que se e n c o n t r a m n o
que haviam contribuído para o conhecimento e, p o r t a n t o , para a Brasil, inclusive o budismo, o xintoísmo, o islamismo, o hare-krishna,
liberdade dos homens. Entre esses novos "demiurgos" estariam figuras b e m c o m o dezenas de religiões de p o v o s indígenas.
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R I I I (. I A o , Kl I II A I S I M I I II S M.l
m u n d a n a s . É c o m u m encontrar oferendas de alimentos e bebida a orixás dois m u n d o s através de sessões religiosas e m q u e os espíritos p o d e m
nas encruzilhadas e esquinas de ruas, b e m c o m o nas matas urbanas, "baixar" e conversar c o m as pessoas, o u , ao menos, c o m mediadores
nas nascentes e nos veios de água. Ultimamente tem havido reclamações, mais capazes. O s espíritos t a m b é m p o d e m "incorporar-se" e m h o m e n s
e m u l h e r e s já e s p i r i t u a l m e n t e s u p e r i o r e s , o s m é d i u n s o u a t é d e c u r a d o r e s
p o r parte das autoridades pijblicas e dos m o v i m e n t o s ecologistas, sobre
extravagantes (que são rejeitados pelas ciências, b e m como pela
a poluição de águas correntes devido a essas oferendas. Variações do
medicina), e deles servirem de porta-vozes.
c a n d o m b l é são praticadas e m modalidades próprias e m muitas cidades
O espiritismo é u m a religião de grande aceitação entre pessoas de
interioranas, e s p e c i a l m e n t e as q u e t i v e r a m influência s u b s t a n t i v a d e e x -
classe média e média-baixa nas grandes cidades brasileiras. Mais do que
escravos, c o m o nos estados do Maranhão e n o R e c ô n c a v o bahiano.
isso, a n o ç ã o generalizada de espiritismo é u m sentimento m u i t o c o m u m
A l g u n s aspectos d o c a n d o m b l é têm ultimamente se tornado de grande
e n t r e b r a s i l e i r o s , já q u e se b a s e i a e m princípios d o c r i s t i a n i s m o ,
importância para a cultura brasileira e m geral. O mais notável v e m enfatizando aspectos de grande interesse de brasileiros, c o m o a
a c o n t e c e n d o e m c i d a d e s litorâneas, o n d e t e m se e s p a l h a d o u m culto mediunidade, a intervenção mágico-religiosa e m curas e a emulação de
religioso originário d o c a n d o m b l é , o culto à orixá Y e m a n j á , a d e u s a das u m a ética de v i d a . , .
I4'l A N I lí o 1' o I o i, I A lU I u. I A o , iu r u A I s i: M I T O S 145
P o r s u a v e z , d a d o a t e n d ê n c i a à cissiparidade, isto é, à criação d e Para a Antropologia, vale o ateísmo tanto quanto v a l e o teísmo.
existência a i n d a está restrita à influência direta d o s missionários e d e religioso o u diz respeito ao sagrado. T o d a sociedade t e m momentos e m
completar. Numa versão mais branda, há aqueles que se d i z e m p a s s a g e m " . A s s i m , e m s e u m a g i s t r a l l i v r o Ritos de passagem (orig. 1906),
o c o r r e r á a o f i n a l . T u d o p a r e c e estar i n d e f i n i d o , s u s p e n s o d a s s e n d o i n d e f i n i d a . E s s e é o p o n t o alto d o C a r n a v a l , ãs v e z e s , a q u i l o q u e
lipo de ritual festivo. No aniversário, por mais simples cjue seja sua com um marimbondo que picou a barriga da mãe. Ela se zangou,
comemoração, podemos discernir as fases de afastamento, liminaridatle bateu na barriga e o filho parou de falar. Numa encruzilhada
e reincorporação. A preparação da festa e da recepção, a chegada dos perguntou ao filho por onde ir, ele não respondeu. Ela pegou a
convidados, a recepção dos presentes, enfim, o esperado canto de vereda que foi dar na casa do Gambá, o Mykura. Quando chegou,
parabéns e corte do bolo, até o alívio da saída de todos e a avaliaçàt) estava chovendo e o Gambá ofereceu abrigo e uma rede para ela.
sobre todo o ritual e seus participantes. Daí dormiu com ela e lhe fez outro filho, Mykura-yra, o filho do
O casamento é um ritual de passagem da condição de solteiro para Gambá. A mãe continua seu caminho até dar na aldeia das Onças,
ca.sado. Pode ser visto como um ritual em si, ou como parte de um ritual as lawamhu. Mas elas estavam caçando e a mãe foi abrigada por
mais longo, que começa com o namoro, passa pelo noivado, que é a fase uma velha, uma avó, lari, que a recomendou se esconder para as
de liminaridade, em que não se é mais propriamente solteiro, mas também Onças não a virem quando voltassem. Quando as Onças chega-
não se é casado, até a conclusão de todo o ritual do casamento e a ram, sentiram o cheiro diferente, a mãe se espantou, virou uma
incorporação dos recém-casados à sua nova condição social. veada e saiu correndo, mas as Onças a pegaram e a mataram. Ao
O trote que acontece nas universidades com os calouros é um ritual esquartejá-la para assá-la, viram que havia um casal de gémeos
vivos e os deram para lari comer, porque só os velhos comem
em si, mas também é parte de um ritual maior, que é a passagem do
fetos. lari tentou a.ssá-los no espeto, cozinhá-los na panela ou
estado de estudante de ensino médio para aluno de faculdade. Nesse
moqueá-los no jirau, mas os gémeos se mexiam, pulavam fora e
caso, o trote é a fase liminar desse ritual maior, aquele em que o calouro
ela não conseguiu. Aí resolveu guardá-los num cofo até decidir o
não é nada ainda, é um não-sujeito, por isso pode ser "humilhado" e
que fazer. No dia seguinte, os dois veadinhos tinham se transfor-
levado a fazer coisas que normalmente não faz. É uma fase de indefinição,
mado em duas paquinhas. Aí ela resolveu criá-los e não matá-los.
portanto, perigosa. E alguns trotes chegam literalmente a ser perigosos!
Nos dias seguintes, os gémeos foram se transformando em diver-
sos bichinhos, até que um dia, já grandinhos viraram meninos. O
filho de Maíra era poderoso como seu pai e costumava brincar
MITOS
com a avó, retirando sua cabeça e jogando-a no chão e depois
Se alguém perguntar a um índio Guajá como o mundo foi feito, ele recolocando-a na velha. Um dia foram caçar passarinhos e um
vai discorrer sobre uma estória que ouviu de seus pais e avós, ou de deles lhes contou o que eles eram e como as Onças haviam comido
sua mãe. Aí eles resolveram se vingar e matar todas as Onças.
algum homem velho e sábio, a qual responde sobre alguns aspectos da
Maíra-yra criou um brejo com todas as palmeiras e frutas, e com
existência da humanidade e da natureza que são importantes para a sua
partes das palmeiras fez jacarés e piranhas e os jogou no rio. Aí
cultura. Algo assim resumido:
convidou as Onças para ver as maravilhas que havia no brejo.
Tramou com seu irmão fazer uma ponte de pau e quando todas
' ' No princípio, os animais eram iguais aos seres humanos, falavam ""' ' as Onças estavam passando pelo pau, virou-o e elas caíram no rio
e .se comportavam iguais. Um dia, uma mulher viu um homem onde foram trucidadas pelos jacarés e piranhas. Aí resolveram
muito bonito, se apaixonou por ele e eles se amaram. Era Maíra, seguir caminho à procura do pai, Maíra. Finalmente, depois de
o encantado, o demiurgo. Em seguida Maíra foi embora e a mulher muitas aventuras chegaram ao pai, que não os reconheceu e lhes
• ficou com um filho no ventre, o filho de Maíra, Maíra-yra. Logo ' deu várias tarefas para cumprir, até Maíra-yra .ser reconhecido
essa criatura começou a falar e pedir para ir ao encontro do pai, como filho. Nessas tarefas muitas coisas foram criadas e transfor-
mostrando o caminho. A mãe estranhou o pedido e o madas de outras, como a cobra que se faz de um cipó, etc, etc.
desembaraço da criança, mas acatou-o. A criança foi indicando o ;
. ! í caminho, e não parava de falar e pedir: "Mãe, eu quero cheirar . O mito de Maíra, ou melhor, de Maíra-yra e seu irmão gémeo Mykura-
vl . í essa flor, pegue-a para eu cheirar!" A mãe pegava a flor e a levava yra, prossegue por muitos temas e aventuras. Além dos Guajá, vários
; ; até sua barriga para Maíra-yra cheirar, até que uma vez a flor veio povos indígenas da cultura tupi-guarani guardam esse mito, com variações
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propósito mais claramente pedagógico o u moralista. Seu conteúdo é s o b r e e s s a t e o r i a , c h a m a d o s d e Mitológicas (1964-1971), conclui ao final
m a i s fácil d e ser e n t e n d i d o p o r todos. P o r isso, elas s ã o c o n t a d a s com que os mitos n ã o servem c o m o conteúdos de mensagens inconscientes
despojamento e sobretudo para as crianças. J á o mito t e m u m caráter do social, mas c o m o estruturas de linguagem inconsciente que são
mais reverenciado, e aqueles que os sabem contar são reconhecidos reflexos das formas possíveis de comportamento humano, portanto,
p e l o s d e m a i s m e m b r o s d a s o c i e d a d e . O c o n t e ú d o d o s m i t o s é difícil d e n ã o e s t a r i a m restritos ãs s o c i e d a d e s q u e os p r o d u z e m , m a s se c o m u n i c a m
para os antropólogos q u e os e s t u d a m e os tentam interpretar. Só l e n d o esses quatro v o l u m e s p a r a crer q u e tal teoria seja possível
N u m sentido analítico, mitos se p a r e c e m c o m s o n h o s . E l e s m i s t u r a m de ser aplicada por alguém q u e n ã o o autor original. D e qualquer m o d o ,
objetos fabulosos c o m objetos corriqueiros s e m levar e m conta n e m a fica o desafio de q u e o mito é a i n d a u m mistério para a Antropologia,
t e m p o r a l i d a d e , n e m a espacialidade, n e m a lógica d e c a u s a e efeito, n e m m e s m o e m s e u r a m o q u e se i n c l i n a p a r a a F i l o s o f i a e p a r a a Linguística,
a lógica de estruturas. E i s p o r q u e F r e u d , o p a i d a psicanálise, u s o u tanto e m q u e p a r e c e m estar os m e l h o r e s c a m i n h o s d e c o m p r e e n s ã o .
u m c o m o o outro p a r a criar s u a teoria psicanalítica e t a m b é m p a r a tentar Por tudo isso, a palavra mito tem outras a c e p ç ó e s na linguagem
dar a essa teoria u m a ampliação explicativa ao todo social. N u m livro c o m u m . Serve p a r a significar histórias fantásticas, e n r e d o s labirínticos,
instigante, q u e a j u d o u a f u n d a r s u a teoria, e q u e t a m b é m é merecedor até ideologias, q u e c o n d i c i o n a m visóes e c o m p o r t a m e n t o s humanos.
d a l e i t u r a d e a n t r o p ó l o g o s . Totem e tabu (1917), Freud analisou o mito N ã o é q u e se v a l e m de fatos irreais o u a r g u m e n t o s duvidosos, mas
grego de Édipo para demonstrar o quanto u m mito pode representar a p r o j e t a m u m s e n t i d o aos fatos, antes d e s e r e m testados n u m contexto
estrutura psíquica do h o m e m , e m sua formação pessoal, o u ontogênese, mais a m p l o . É nesse sentido q u e a filósofa brasileira M a r i l e n a Chauí
b e m a s s i m , s u a e v o l u ç ã o cultural, o u s o c i o g ê n e s e . P a r a F r e u d , o q u e se c h a m a a história brasileira, tal c o m o c o n t a d a p e l o s livros académicos
p a s s a n a f o r m a ç ã o d o h o m e m , q u a l q u e r h o m e m , c o m o criança, se p a s s o u o u analisada n o dia-a-dia d a política, de mito! O n d e , pois, estaria a
u m dia, n o passado remoto, n a s u a f o r m a ç ã o c o m o ser cultural. O mito história v e r d a d e i r a ?